Justiça Restaurativa e Emergência da Cidadania na Dicção do Direito. A Construção de Um Novo Paradigma de Justiça [1 ed.] 8540903350, 9788540903357

A obra aborda assuntos polêmicos e atuais, como - pena de morte, reinserção e ressocialização do condenado e controle so

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Justiça Restaurativa e Emergência da Cidadania na Dicção do Direito. A Construção de Um Novo Paradigma de Justiça [1 ed.]
 8540903350, 9788540903357

Table of contents :
Agradecimento
prefácio
UM UNIVERSO EM EXPANSÃO: RAQUEL TIVERON ESTÁ VOCACIONADA PARA SER A MELHOR JURISTA DA SUA GERAÇÃO BRASILEIRA
INTRODUÇÃO
PARTE I
A CRISE
DO PARADIGMA
PUNITIVO
tudo o que é sólido
desmancha no ar?
CAPÍTULO I
O SISTEMA PENAL POSTO EM QUESTÃO crise de legitimidade da pena de prisão?
1.1 A tensão entre facticidade e validade no direito:a importância do reconhecimento da legitimidade da lei penal
1.2 O déficit de legitimidade da lei penal
1.3 O uso político da sanção penal para excluir: uma visão agnóstica da pena
1.4 Críticas às tradicionais funções da pena: retribuição e prevenção
1.4.1 Comunicando a pena ao ofensor: a prevenção especial
1.4.2 A ideia de prevenção dirigida à sociedade
1.5 A cifra obscura da criminalidade
1.6 Ineficácia dissuasória da pena de prisão
1.7 Os números da eficácia invertida da prisão
CAPÍTULO II
OS DEPÓSITOS DE PRESOS COMO FATOR CRIMINÓGENOa morte dos ideais de “ressocialização”?
2.1 A prisão como fator criminógeno
2.2 A realidade carcerária
2.3 O pessimismo do nothing works
2.4 O endurecimento via pena de morte
2.5 Just deserts
2.6 Poderia a pena de prisão ser abolida?
PARTE II
A EMERGÊNCIA DO PARADIGMA DA TRANSMODERNIDADE
da insurgência à assimilação da justiça restaurativa?
CAPÍTULO III
DIÁLOGOS ENTRE A FILOSOFIA DO DIREITO, A SOCIOLOGIA JURÍDICA E A TEORIA POLÍTICAfundamentos plurais do novo paradigma
3.1 Contextualizando a revolução: a pós-modernidade
3.1.1 A superação paradigmática rumo à transmodernidade
3.1.2 Justiça restaurativa e transmodernidade
3.2 O fundamento político da jurisconstrução: a democracia deliberativa
3.2.1 A ampliação de atores para o debate na jurisconstrução
3.2.2 Avaliando o grau de inclusão participativa e de deliberação democrática do novo paradigma
3.2.3 O enquadramento do modelo jurisdicional penal na teoria política democrática contemporânea
3.2.4 A democracia deliberativa
3.2.5 A poliarquia
3.2.6 A justiça restaurativa como forma de poliarquia diretamente deliberativa
3.2.7 Críticas à democracia deliberativa
3.3 Compreendendo a dinâmica do encontro restaurativo e as suas bases filosóficas
3.3.1 A justiça restaurativa como esfera pública de deliberação
3.3.2 Justiça restaurativa: um locus para o reconhecimento recíproco
3.3.3 O impacto do encontro face a face segundo Lévinas
3.3.4 O agir comunicativo habermasiano
3.3.5 A dinâmica do círculo restaurativo
3.3.5.1 A metodologia da CNV
3.3.5.2 O caso do encontro entre um adolescente autor de “sequestro relâmpago” e sua vítima, um policial
3.3.5.3 O caso do encontro entre uma vítima idosa e o ladrão de sua residência
3.4 Uma nova racionalidade para a pena: a função comunicativa
3.4.1 A racionalidade comunicativa de Habermas
3.4.2 A função comunicativa da pena
3.4.3 As ponderações de Joel Feinberg
3.4.4 Críticas e respostas à proposta comunicativa da pena
PARTE III
ONDE SE ENCONTRA O FUNDAMENTO DA VALIDADE DA JUSTIÇA RESTAURATIVA?
A BUSCA DE SUA SUSTENTABILIDADE TEÓRICA
CAPÍTULO IV
DAS ESTRADAS LARGAS AOS BECOS SEM SAÍDAa vereda dos movimentos criminológicos até a emergência restaurativa
4.1 A justiça restaurativa na contramão do atavismo positivo
4.2 Normalidade e funcionalidade do crime — o influxo das teorias sociológicas
4.2.1 A apoteose do bem-estar e a frustração de status: uma contribuição da teoria da anomia
4.2.2 A ordem social como um mosaico de grupos (teorias subculturais)
4.2.3 O crime como resultante das interações psicossociais do indivíduo
4.2.4 As teorias do controle social
4.2.5 Prevenção situacional do crime
4.3 Labelling approach, interacionismo simbólico e construtivismo social
4.4 Apontando as antinomias do sistema penal: o papel das teorias críticas
4.4.1 A criminologia radical
4.4.2 Neorrealismo de esquerda
4.4.3 Minimalismo penal
4.4.4 Garantismo
4.4.5 Abolicionismo
4.5 Entre pirâmides e círculos: a proposta da criminologia pacificadora
4.5.1 A pirâmide de pacificação de Fuller
CAPÍTULO V
A DINÂMICA VITAL DA JUSTIÇA RESTAURATIVA princípios, características, procedimentos, atores e apostas
5.1 Os princípios da justiça restaurativa
5.1.1 Um destaque para a voluntariedade
5.2 Os atores no procedimento restaurativo
5.2.1 Facilitadores
5.2.2 O advogado: aliado ou opositor?
5.2.3 Ofensores — uma nova visão do “inimigo”
5.2.3.1 Uma observação necessária: a desumanização do ofensor e a mídia
5.2.3.2 O caso da vítima de estupro que encarou seu ofensor
5.2.4 Vítimas
5.2.5 A relação entre ofensor e vítima
5.2.6 Predisposição vitimária e níveis de vitimização
5.2.7 Reaproriação dos conflitos ou retorno à vingança privada?
5.2.8 A vitimização secundária
5.3 O papel da comunidade na justiça restaurativa
5.3.1 A janela da disciplina social
5.3.2 A vergonha reintegradora
5.3.3 Riscos do incremento do controle social pela justiça restaurativa
PARTE IV
A PRÁXIS
RESTAURATIVA
NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO
uma estranha no ninho?
CAPÍTULO VI
O DILEMA DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL: política de governo ou política de estado?
6.1 A experiência paulista de justiça restaurativa
6.1.1 O diferencial em São Caetano do Sul: a estratégia de sensibilização de lideranças e de “mudança de lentes” dos agentes públicos
6.1.2 A evolução do projeto e a situação atual
6.2 Justiça para o Século XXI em Porto Alegre
6.2.1 A evolução do programa gaúcho
6.3 Uma justiça para maiores no Distrito Federal
CAPÍTULO VII
EM BUSCA DE UM ESTATUTO LEGALconsolidando a justiça restaurativa no ordenamento jurídico brasileiro
7.1 O espaço legislativo para a edificação da justiça restaurativa no Brasil
7.1.1 Na infanto-adolescência
7.1.2 Nos juizados especiais criminais
7.2 A compatibilização da justiça restaurativa com a lei brasileira
7.2.1 O respeito aos direitos fundamentais dos acusados
7.2.2 A obrigatoriedade da ação penal: mitos e verdades
7.2.3 A mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal em outros países
7.2.4 Limites da capacidade operacional do estado (ou o estado de ineficiência estatal)
7.3 A construção de uma política pública de resolução de conflitos
7.3.1 O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) e a lei do SINASE
7.3.2 A política pública de tratamento adequadoaos conflitos do CNJ
7.3.3 O Projeto de Lei nº 7006, de 2006
7.4 O desafio de um novo papel para o Ministério Público brasileiro
7.4.1 A participação ministerial na experiência comparada
7.4.2 A nova identidade do Ministério Público brasileiro pós-88: indutor de política criminal
7.4.3 Considerações parciais
CAPÍTULO VIII
PESQUISA EMPÍRICA E ENCONTROS RESTAURATIVOS EM DOIS CASOS DRAMÁTICOS a busca da dimensão humana em meio a conflitos hediondos
8.1 A justiça restaurativa em crimes graves
8.2 Estudo comparativo — caso de estupro tratado na justiça restaurativa no DF e no exterior
8.2.1 Caso 1 — Estupro de vulnerável por três jovens, um deles menor de idade
8.2.2 Caso 2 — Estupro de vulnerável entre irmãos
8.2.3 Análise dos aspectos relevantes em cada situação
8.3 A justiça restaurativa para crimes cometidos em contexto de violência doméstica
8.4 Pesquisa de campo: comparação entre os graus de informação, comunicação e reparação do sistema de justiça criminal e do programa de justiça restaurativa do DF
8.4.1 Aspectos metodológicos da pesquisa de campo
8.4.1.1 Objetivo geral
8.4.1.2 Objetivos específicos
8.4.2 Hipóteses testadas na pesquisa de campo
8.4.3 Sujeitos, locais e instrumento de coleta de dados
8.4.4 Metodologia de investigação e análise
8.4.5 Contextualizando a pesquisa
8.4.5.1 Histórico e peculiaridades das cidades pesquisadas
8.4.5.2 Perfil dos entrevistados
8.4.6 Resultados
8.4.7 Outras considerações relevantes
8.4.7.1 Descriminalização de condutas de menor potencial ofensivo
8.4.7.2 Aplicação de programas restaurativos para delitos cometidos em contexto de violência doméstica
8.4.7.3 Uso abusivo de álcool ou drogas e a importância da integração da justiça restaurativa com as políticas públicas de saúde e com a comunidade
8.4.8 Conclusão
CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS

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Sumário Agradecimento prefácio UM UNIVERSO EM EXPANSÃO: RAQUEL TIVERON ESTÁ VOCACIONADA PARA SER A MELHOR JURISTA DA SUA GERAÇÃO BRASILEIRA INTRODUÇÃO PARTE I A CRISE DO PARADIGMA PUNITIVO

tudo o que é sólido desmancha no ar? CAPÍTULO I O SISTEMA PENAL POSTO EM QUESTÃO crise de legitimidade da pena de prisão? 1.1 A tensão entre facticidade e validade no direito:a importância do reconhecimento da legitimidade da lei penal 1.2 O déficit de legitimidade da lei penal 1.3 O uso político da sanção penal para excluir: uma visão agnóstica da pena 1.4 Críticas às tradicionais funções da pena: retribuição e prevenção 1.4.1 Comunicando a pena ao ofensor: a prevenção especial 1.4.2 A ideia de prevenção dirigida à sociedade 1.5 A cifra obscura da criminalidade 1.6 Ineficácia dissuasória da pena de prisão 1.7 Os números da eficácia invertida da prisão

CAPÍTULO II OS DEPÓSITOS DE PRESOS COMO FATOR CRIMINÓGENOa morte dos ideais de “ressocialização”? 2.1 A prisão como fator criminógeno

2.2 A realidade carcerária 2.3 O pessimismo do nothing works 2.4 O endurecimento via pena de morte 2.5 Just deserts 2.6 Poderia a pena de prisão ser abolida? PARTE II A EMERGÊNCIA DO PARADIGMA DA TRANSMODERNIDADE

da insurgência à assimilação da justiça restaurativa? CAPÍTULO III DIÁLOGOS ENTRE A FILOSOFIA DO DIREITO, A SOCIOLOGIA JURÍDICA E A TEORIA POLÍTICAfundamentos plurais do novo paradigma 3.1 Contextualizando a revolução: a pós-modernidade 3.1.1 A superação paradigmática rumo à transmodernidade 3.1.2 Justiça restaurativa e transmodernidade 3.2 O fundamento político da jurisconstrução: a democracia deliberativa 3.2.1 A ampliação de atores para o debate na jurisconstrução 3.2.2 Avaliando o grau de inclusão participativa e de deliberação democrática do novo paradigma 3.2.3 O enquadramento do modelo jurisdicional penal na teoria política democrática contemporânea 3.2.4 A democracia deliberativa 3.2.5 A poliarquia 3.2.6 A justiça restaurativa como forma de poliarquia diretamente deliberativa 3.2.7 Críticas à democracia deliberativa 3.3 Compreendendo a dinâmica do encontro restaurativo e as suas bases filosóficas 3.3.1 A justiça restaurativa como esfera pública de deliberação 3.3.2 Justiça restaurativa: um locus para o reconhecimento recíproco 3.3.3 O impacto do encontro face a face segundo Lévinas 3.3.4 O agir comunicativo habermasiano 3.3.5 A dinâmica do círculo restaurativo 3.3.5.1 A metodologia da CNV 3.3.5.2 O caso do encontro entre um adolescente autor de “sequestro relâmpago” e sua vítima, um policial 3.3.5.3 O caso do encontro entre uma vítima idosa e o ladrão de sua residência

3.4 Uma nova racionalidade para a pena: a função comunicativa 3.4.1 A racionalidade comunicativa de Habermas 3.4.2 A função comunicativa da pena 3.4.3 As ponderações de Joel Feinberg 3.4.4 Críticas e respostas à proposta comunicativa da pena PARTE III ONDE SE ENCONTRA O FUNDAMENTO DA VALIDADE DA JUSTIÇA RESTAURATIVA?

A BUSCA DE SUA SUSTENTABILIDADE TEÓRICA CAPÍTULO IV DAS ESTRADAS LARGAS AOS BECOS SEM SAÍDAa vereda dos movimentos criminológicos até a emergência restaurativa 4.1 A justiça restaurativa na contramão do atavismo positivo 4.2 Normalidade e funcionalidade do crime — o influxo das teorias sociológicas 4.2.1 A apoteose do bem-estar e a frustração de status: uma contribuição da teoria da anomia 4.2.2 A ordem social como um mosaico de grupos (teorias subculturais) 4.2.3 O crime como resultante das interações psicossociais do indivíduo 4.2.4 As teorias do controle social 4.2.5 Prevenção situacional do crime 4.3 Labelling approach, interacionismo simbólico e construtivismo social 4.4 Apontando as antinomias do sistema penal: o papel das teorias críticas 4.4.1 A criminologia radical 4.4.2 Neorrealismo de esquerda 4.4.3 Minimalismo penal 4.4.4 Garantismo 4.4.5 Abolicionismo 4.5 Entre pirâmides e círculos: a proposta da criminologia pacificadora 4.5.1 A pirâmide de pacificação de Fuller

CAPÍTULO V A DINÂMICA VITAL DA JUSTIÇA RESTAURATIVA princípios, características, procedimentos, atores e apostas 5.1 Os princípios da justiça restaurativa 5.1.1 Um destaque para a voluntariedade

5.2 Os atores no procedimento restaurativo 5.2.1 Facilitadores 5.2.2 O advogado: aliado ou opositor? 5.2.3 Ofensores — uma nova visão do “inimigo” 5.2.3.1 Uma observação necessária: a desumanização do ofensor e a mídia 5.2.3.2 O caso da vítima de estupro que encarou seu ofensor 5.2.4 Vítimas 5.2.5 A relação entre ofensor e vítima 5.2.6 Predisposição vitimária e níveis de vitimização 5.2.7 Reaproriação dos conflitos ou retorno à vingança privada? 5.2.8 A vitimização secundária 5.3 O papel da comunidade na justiça restaurativa 5.3.1 A janela da disciplina social 5.3.2 A vergonha reintegradora 5.3.3 Riscos do incremento do controle social pela justiça restaurativa PARTE IV A PRÁXIS RESTAURATIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

uma estranha no ninho? CAPÍTULO VI O DILEMA DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL: política de governo ou política de estado? 6.1 A experiência paulista de justiça restaurativa 6.1.1 O diferencial em São Caetano do Sul: a estratégia de sensibilização de lideranças e de “mudança de lentes” dos agentes públicos 6.1.2 A evolução do projeto e a situação atual 6.2 Justiça para o Século XXI em Porto Alegre 6.2.1 A evolução do programa gaúcho 6.3 Uma justiça para maiores no Distrito Federal

CAPÍTULO VII

EM BUSCA DE UM ESTATUTO LEGALconsolidando a justiça restaurativa no ordenamento jurídico brasileiro 7.1 O espaço legislativo para a edificação da justiça restaurativa no Brasil 7.1.1 Na infanto-adolescência 7.1.2 Nos juizados especiais criminais 7.2 A compatibilização da justiça restaurativa com a lei brasileira 7.2.1 O respeito aos direitos fundamentais dos acusados 7.2.2 A obrigatoriedade da ação penal: mitos e verdades 7.2.3 A mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal em outros países 7.2.4 Limites da capacidade operacional do estado (ou o estado de ineficiência estatal) 7.3 A construção de uma política pública de resolução de conflitos 7.3.1 O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) e a lei do SINASE 7.3.2 A política pública de tratamento adequadoaos conflitos do CNJ 7.3.3 O Projeto de Lei nº 7006, de 2006 7.4 O desafio de um novo papel para o Ministério Público brasileiro 7.4.1 A participação ministerial na experiência comparada 7.4.2 A nova identidade do Ministério Público brasileiro pós-88: indutor de política criminal 7.4.3 Considerações parciais

CAPÍTULO VIII PESQUISA EMPÍRICA E ENCONTROS RESTAURATIVOS EM DOIS CASOS DRAMÁTICOS a busca da dimensão humana em meio a conflitos hediondos 8.1 A justiça restaurativa em crimes graves 8.2 Estudo comparativo — caso de estupro tratado na justiça restaurativa no DF e no exterior 8.2.1 Caso 1 — Estupro de vulnerável por três jovens, um deles menor de idade 8.2.2 Caso 2 — Estupro de vulnerável entre irmãos 8.2.3 Análise dos aspectos relevantes em cada situação 8.3 A justiça restaurativa para crimes cometidos em contexto de violência doméstica 8.4 Pesquisa de campo: comparação entre os graus de informação, comunicação e reparação do sistema de justiça criminal e do programa de justiça restaurativa do DF 8.4.1 Aspectos metodológicos da pesquisa de campo 8.4.1.1 Objetivo geral 8.4.1.2 Objetivos específicos 8.4.2 Hipóteses testadas na pesquisa de campo

8.4.3 Sujeitos, locais e instrumento de coleta de dados 8.4.4 Metodologia de investigação e análise 8.4.5 Contextualizando a pesquisa 8.4.5.1 Histórico e peculiaridades das cidades pesquisadas 8.4.5.2 Perfil dos entrevistados 8.4.6 Resultados 8.4.7 Outras considerações relevantes 8.4.7.1 Descriminalização de condutas de menor potencial ofensivo 8.4.7.2 Aplicação de programas restaurativos para delitos cometidos em contexto de violência doméstica 8.4.7.3 Uso abusivo de álcool ou drogas e a importância da integração da justiça restaurativa com as políticas públicas de saúde e com a comunidade 8.4.8 Conclusão

CONCLUSÕES REFERÊNCIAS

AGRADECIMENTO

Uma tese de doutorado não é escrita e amadurecida durante quatro anos sem o apoio e a colaboração de importantes pessoas. Quero registrar meu agradecimento e carinho especial: A Deus, pelas bênçãos e pelas dificuldades permitidas, para que eu aprendesse a superá-las; À minha mãe e ao meu pequeno anjinho, pois sei que juntos assistem ao coroamento do esforço que vivenciaram comigo. Aquela, por mais tempo e este, durante sua breve passagem neste mundo; Ao Álvaro e à Valentina, pelo amor incondicional, pela paciência e pela companhia nas longas madrugadas; Ao meu pai, pelo seu exemplo, pelo incentivo aos estudos e por todas as oportunidades que me proporcionou; Ao Júnior, pela ajuda com seu colossal conhecimento informático e generoso coração; À Claudia, Dalilian e Luciene, pela sua dedicação à pequena Valentina, para que eu tivesse a tranquilidade de estudar; À Rosemari Barletta, pela companhia firme e permanente ao longo desses anos e pelo apoio incondicional à confecção desta tese, cuja “gestação” vem acompanhando; Ao meu orientador, Prof. Dr. Roberto Freitas Filho, pela confiança em mim depositada e por todos os seus ensinamentos, como professor e como pessoa; Ao amigo, mentor, filósofo, habitante eterno do meu coração, Prof. Dr. Rossini Corrêa, detentor de um conhecimento monumental, sorriso aberto e amizade incondicional, pelo seu amparo nas horas de desespero, pelo incentivo à pesquisa e à publicação e por sua eterna e sincera disponibilidade em ajudar; Ao Prof. Dr. Bruno Amaral Machado, meu exemplo profissional, acadêmico e humano, que, mesmo estando em um patamar de conhecimento muito acima dos mortais, não se furta a descer e iluminar com seu brilho único aos que, como eu, lhe pedem socorro; Aos meus professores do UniCEUB, na pessoa dos docentes Álvaro Ciarlini, Léa Ciarlini, Bruno Amaral Machado e Luciana Musse, membros da minha banca de qualificação, pela disposição em discutir comigo a pesquisa e dar um norte a ela; Aos professores Josué Silva e René Mallet Raupp, profissionais excepcionais em suas áreas, sem cujo conhecimento esta tese não seria possível da forma em que se encontra; À Thays Braga, pesquisadora nata, que emprestou sua gentileza e simpatia ao trabalho de campo; Ao Conselho Superior do MPDFT, pela confiança em mim depositada, concedendo-me licença para a redação desta tese e, especialmente ao Prof. Dr. Rogério Schietti, que acreditou e encampou pessoalmente este sonho; Ao Dr. Weiss Webber e à Lúcia Helena Barbosa de Oliveira, pessoas e profissionais singulares, que labutam diuturnamente para a humanização do sistema de justiça criminal e para a implementação da Justiça Restaurativa; Ao corpo de funcionários do UniCEUB, nas pessoas especialíssimas de Rosilene Croner Abreu e Rosileide Oliveira Nunes, rosas na minha vida, que, com amizade e apoio, tornaram essa missão mais leve;

Por último, e não por ser menos importante, à valorosa equipe da Justiça Restaurativa do TJDFT — nas pessoas da Helena, do Manoel e da Bárbara, visto que acreditam na causa restaurativa e a vivenciam inspirando todos que têm a sorte de cruzar os seus caminhos —, pelo crédito e pelo amplo e irrestrito apoio para a confecção deste trabalho; Sem a ajuda de todos vocês, amigos, esta tese não seria possível!

PREFÁCIO

UM UNIVERSO EM EXPANSÃO: RAQUEL TIVERON ESTÁ VOCACIONADA PARA SER A MELHOR JURISTA DA SUA GERAÇÃO BRASILEIRA Rossini Corrêa 1 Um dos nós górdios da crise da modernidade e da construção, ainda embrionária, da pós-modernidade, sem a mínima dúvida, se encontra na dimensão institucional da Sociedade, na medida em que a crise do Estado alcança uma ressonância quase universal, a perpassar as organizações sociais de substrato urbano-industrial. A chamada Grande Sociedade, na tessitura complexa de elementos que a definiram, seguramente encontrou em sua caminhada estadual, em última instância, o ribombar da Revolução Francesa, a experiência da Codificação do Direito e a mística, senão mistificação, da Escola da Exegese. Os clamores da Razão, retomados, no mínimo, desde o século XIII da cristandade, por Santo Tomás de Aquino, na esteira do seu Mestre de Pensamento, Alberto da Saxônia, que se tornaria, em Paris, Alberto Magno, por ser considerado ali o maior sábio de todos os tempos e um preceptor apoteótico em sua Universidade e se transformaria, na Igreja, Santo Alberto Magno, em virtude da proclamação dos elevados serviços que o alçaram, também, ao reconhecimento como Doutor e à sua proclamação como padroeiro dos cientistas, não cessaram de avançar. O Renascimento recepcionou o espírito do racionalismo medieval, passando, entretanto, a cultivá-lo, mais por ser portador da supostamente confiável ordenação da razão, do que por ser aristotélico. Começará no Ressurgimento o processo de desconstrução incessante do Estagirita, que foi merecedor da melhor dedicação intelectual e acadêmica não apenas de Santo Alberto Magno e de Santo Tomás de Aquino, em seu resgate e nos comentários produzidos, desde que ambos já dialogavam com a tradição do aristotelismo árabe.

Avicena era persa, nascido em 980 e Averróis era andaluz, nascido em 1126, constituindo os dois estrelas polares de uma suntuosa tradição da Era de Ouro do Islã, religião em expansão no mundo desde o seu nascimento, no século VII depois de Cristo, do Oriente Médio para o Norte da África e deste para a Península Ibérica, enquanto procurava a vastidão de outros horizontes da geografia conhecida. Avicena e Averróis foram produtos do código ético do Islã original, a que se reportou Roger Garaudy, quando os califas não eram do petróleo, e trouxeram para a Península Ibérica, e desta para a Europa, significativos valores civilizatórios. Ambos foram mestres de múltiplos saberes, inclusive da teologia profunda e do direito canônico muçulmano, irrigando a sua visão de mundo com o singular conhecimento da tradição filosófica grega, inclusive, de Platão e de Aristóteles. O trabalho de Santo Alberto Magno e Santo Tomás de Aquino foi, portanto, de resgate, comentário e estabelecimento de Aristóteles no ambiente universitário da Alemanha, da França e da Itália, cristianizando-o, ao passo em que, do Estagirita ofereciam interpretação distinta da consagrada pelo islamismo da tradição muçulmana, que levaria a cristandade da cavalaria à sangrenta experiência das Doze Cruzadas, por hipótese, em busca do Reino Cristão de Jerusalém. O Renascimento começou todo um processo de racionalismo antiaristotélico, por combater a Igreja, o Papado e o Estado Religioso, cuja doutrina teológica passou a repousar em fundamentos racionais advindos, de maneira mais próxima, do Estagirita, cuja filosofia foi posta em auxilio de sua doutrina da fé desde a cristianização de Sócrates, por São Justino e de Platão, por Santo Agostinho. Confrontar a Igreja, o Papado e o Estado Religioso, com certeza, passou a ser confundido com a negação de Aristóteles. Eis o Estagirita, em consequência, contestado na política de Nicolau Maquiavel, na epistemologia de Francis Bacon e na filosofia social de Thomas Hobbes, entre muitos outros que se seguiriam, em movimento que duraria meio milênio. O Ressurgimento pretendeu retornar à cultura do paganismo, dela retirando a tradição aristotélica, que se cristianizara na sociedade medieval contestada pela modernidade em ascensão. Os iluministas – cujo movimento intelectual foi maturado entre 1650 e 1750, difundindo-se da Holanda para a França, a Itália, a Escócia, a Alemanha, a Inglaterra e outras paragens da Europa – tornaram-se herdeiros desta tradição racionalista advinda do Medievo e retomada no

Renascimento, exaltando-a como instrumento de reinvenção geométrica do mundo da vida. Neste sentido, advogaram o advento de um Estado, de um Poder e de um Direito segundo os ditames da Razão. Nos momentos mais radicais do movimento iluminista, sem cuidados, a Razão foi o substituto simbólico de Deus. Na esfera jurídica, o Direito dos iluministas foi reivindicado segundo a perspectiva naturalista. Sucede que, uma vez conquistado o Poder pela Revolução Francesa, caminhou-se na diretriz da consumação do Estado Nacional Soberano, que começara a nascer entre os séculos XIII e XIV da cristandade. A centralidade do Estado tornou-se a regra magna da era das nações, conformando as ideias de soberania econômica e soberania política, em um mundo de assimetrias entre nações e colônias e de embates imperiais entre nações do epicentro da comunidade internacional. As metrópoles do mundo estatizaram o Direito, positivando-o, ao revés de sua reivindicação naturalista pretérita à Revolução Francesa e difundindo-o como o máximo de engenharia jurídica racional, por meio da obra de codificador de Napoleão Bonaparte. Aquilo a que denominei alhures de ‘Razão Legal’ tornou-se a regra redutora da experiência jurídica, cujo positivismo repudiou, em seu monismo estatista, todos os pluralismos jurisprudentes, para restringir o Direito ao Estado, na reificação do Legalismo, do Tecnicismo e do Formalismo, em Norma Geral que pretendeu responder a toda a complexa e variegada experiência de vida social, no suposto de que dispunha de previsibilidade e de completitude suficientes para equacioná-la em sua totalidade. Nada mais falacioso. De mim para mim, sonhando com o reverso, de um Direito que, transfigurado, servisse de energia de transfiguração da vida social, emancipando-a de maneira solidaria, escrevi em determinado tempo: ‘Da ampliação das referidas experiências dar-se-á a ponte para o futuro, em que poderão sobreviver os julgamentos por Tribunal, mas excelerão a negociação, a conciliação, a facilitação, a mediação e a arbitragem, em um mundo de luta por um Direito mais, muito mais comprometido com a Sociedade do que com o Estado; com o Caso do que com a Lei; com a Justiça do que com a Segurança; com as Pessoas do que com as Coisas; sabendo sempre que, no Caso, o prioritário é a consideração das Pessoas, centelhas humanas e divinas de dramas e de esperanças. Construí-lo é tarefa de todos. Jamais valerá apenas ficar à espera, pois a tibieza é contrária à

lição da sabedoria e não transfigura em claridade as névoas cinzentas da existência’. A ‘Razão Legal’ por mim criticada, impermeável ao magistério de Pietro Verri, em Observações sobre a Tortura e de Cesare Beccaria, em Dos Delitos e das Penas, duas magistrais figuras do iluminismo italiano, programou de maneira diversa o sistema penal, em paradigma totalmente fracassado, por sua incapacidade de restaurar para a sociabilidade aqueles que, regra geral, a sociedade empurrou para a criminalidade. De onde o mal formado como ‘gente’ do sistema prisional resultar deformado como ‘bicho’. O sistema penal passou a ser, de maneira crescente na modernidade, a consumação da tragédia. Eis que a Tese Doutoral de Raquel Tiveron, ora servida em livro, intitulada Justiça Restaurativa e Emergência da Cidadania na Dicção do Direito, a qual constitui a melhor contribuição das letras jurídicas nacionais à relevante temática em questão, vem significar, na melhor tradição dialética, a presença da utopia no Direito à Esperança, na expectativa de que topias sejam possíveis e tópicas conquistem substantivação, na dinâmica da construção global de um novo modo de produção jurídica. Trata-se de uma obra de estreia adulta de uma jurista destinada a ser única em sua geração brasileira, se confirmar, como está desafiada a fazê-lo, com constante trabalho, fidelidade criativa e renovada reflexão, a vocação de que é portadora. Raquel Tiveron, desta maneira, acrescentará ao ser humano excepcional que é, em sua aguda sensibilidade aberta à beleza e à alegria, os horizontes múltiplos do trabalho intelectual fértil e diferenciado, no qual inscreverá, decerto, as digitais de sua personalidade de jurista comprometida, filosófica e sociologicamente, com os valores mais expressivos da tradição humanística, em busca de um ser mais humano, em uma ordem social em que o todo seja mais de todos. Compreendendo o estrangulamento moral do direito de punir do Estado, cujo sistema penal instituiu a decomposição do humano como mecanismo vingativo de punição, Raquel Tiveron, que também visualiza o porquê de outras camadas sociais conhecerem a impunidade, mergulha na Justiça Restaurativa enquanto semente de um paradigma criminal alterativo, no qual Ego e Alter, em dialogia reconstrutiva do humano perdido, possam em si reinventar a humanidade possível. É a percepção de que a (re)humanização de todos é um produto do Verbo, esta própria condição do humano, que o

humano define e o humano restaura, à margem da marcha do ordinário no sistema judicial do Estado, no qual a Lei Geral se aplica, com cegueira do espírito e à distancia de toda e qualquer pedagogia, à multiplicidade de casos concretos, como guilhotina à procura de pescoços, sem sensibilidade humana e moral frente às dores e dramas da vida do mundo desumano. Raquel Tiveron contribui de maneira decisiva para o debate em torno de um novo modo de produção do direito, receptivo ao concurso vertical da Sociedade, como alternativa à máquina deficitária e em crise de legitimidade, do Estado da era das nações. Do argumento teórico à análise empírica, o presente livro conversa com o direito comparado e reclama não somente uma mudança legislativa no Brasil, bem como uma renovação de mentalidade compatível com as exigências da sociedade pós-moderna em formação, exigente em todas as latitudes, sobretudo, nos domínios em que não há tradição de devolução dos poderes aos geradores do poder. É a situação do Brasil, este ‘acampamento apressado’ de que falava Gilberto Amado, a tremular no fio da navalha, correndo o risco de ‘encontrar a decadência sem ter experimentado a civilização’, como sublinhou Claude Levi-Strauss. Brasil que não pode ser objeto de desistência, como reclamou a altivez moral e política de Eduardo Campos, candidato à Presidência da República vitimado em acidente aéreo, em 13 de agosto de 2014, mas que deixou um legado de ética pública que fecundará os sonhos das novas gerações, cuja bandeira será a de transformar o ‘acampamento apressado’ em responsável civilização, capacitada, esta, a ser e a estar, aqui e no mundo, com a soberana consciência de que gente tem que ser tratada como gente. A Justiça Restaurativa versada por Raquel Tiveron foi delineada com mão de mestra e compreendeu em profundidade o evolver do rio subterrâneo a procurar a superfície, no compromisso com os seus mais relevantes aspectos – ‘gestão emancipatória e participativa do conflito, devolução da sua administração aos seus protagonistas, o empoderamento comunitário e elevado conteúdo pedagógico’ – a construir uma legitimidade nova, para a combalida arquitetura da justiça criminal. Neste sentido, quando o polêmico Desembargador Estadual do Rio de Janeiro, Siro Darlan, em entrevista à BBC Brasil, realiza a impugnação global do papel que a Constituição da República Federativa do Brasil – Artigo 127 - O Ministério Público é instituição permanente, essencial à

função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis – reserva ao Ministério Público, o livro ora publicado encontra em Raquel Tiveron alguém que o vincula, por meio da Justiça Restaurativa, ao visceral compromisso democrático e aos caminhos desafiantes da transmodernidade. Se se quiser, entretanto, na valorosa tessitura da Tese Doutoral Justiça Restaurativa e Emergência da Cidadania na Dicção do Direito, construída por Raquel Tiveron como testemunho do seu excepcional talento, encontrar um ponto central, a melhor resposta será a de que o seu centro está em toda parte, segundo uma irrecusável exigência. Qual? A de que, em toda parte deste todo orgânico, de maneira essencial, exista o compromisso humano com um mundo mais humano, de interminável construção, mas de necessária e infinita procura, a reconhecer o fundamento de validade da magna aspiração: ‘Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos’ (Mateus 5.6). Por ora, convido todos a saciarem a sua fome e a sua sede de justiça, realimentando a constante busca, na bem-aventurança da leitura de Raquel Tiveron e de sua decisiva obra Justiça Restaurativa e Emergência da Cidadania na Dicção do Direito. Desfrutemos juntos deste banquete do espírito que, segundo a nossa maior satisfação, já está soberanamente servido, para que nunca mais se tenha por ‘satisfeita a Justiça’, por alguma ‘salutar dureza’ das Leis, quando em gemidos não só a Natureza, mas a Consciência, como no verso de Manuel Maria Barbosa du Bocage: AO RÉU QUE FOI CONDUZIDO AO PATÍBULO NO DIA

11

DE JULHO DE

Ao crebro som do lúgubre instrumento, Com tardo pé caminha o delinquente; Um Deus consolador, um Deus clemente Lhe inspira, lhe vigora o sofrimento: Duro nó pelas mãos do algoz cruento Estreitar-se no colo o réu já sente; Multiplicada a morte anseia a mente, Bate horror sobre horror no pensamento:

1797

Olhos e ais dirigindo à Divindade, Sobe, envolto nas sombras da tristeza, Ao termo expiador da iniquidade: Das leis se cumpre a salutar dureza: Sai a alma dentre o véu da humanidade; Folga a Justiça, e geme a Natureza’. Brasília-DF, agosto de 2014.

1 Advogado e Professor em Brasília. Filósofo do Direito, Rossini Corrêa é autor de Saber Direito – Tratado de Filosofia Jurídica; Jusfilosofia de Deus; Crítica da Razão Legal; O Liberalismo no Brasil; e Teoria da Justiça no Antigo Testamento. Pertence à Academia Brasiliense de Letras. É membro titular do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

INTRODUÇÃO O objetivo do presente estudo é avaliar as condições para o desenvolvimento da justiça restaurativa no Brasil como um novo paradigma de justiça criminal, cujo propósito é orientar o trabalho dos órgãos desse sistema. A primeira parte do estudo será dedicada à análise do paradigma punitivo atual e o contexto fático, político, jurídico e filosófico da sua crise. Este paradigma apresenta sinais de esgotamento que podem ser constatados na realidade precária do sistema carcerário no qual ocorrem corriqueiras violações dos direitos fundamentais dos apenados e dos princípios basilares do Estado democrático de direito. Exemplo disso é o histórico “massacre do Carandiru”, com a morte de 111 presos e o recente assassínio de 63 reclusos no presídio maranhense de Pedrinhas. Considerando a forma como são acautelados os apenados atualmente, a pena de prisão tem sido aplicada mediante o sacrifício da dignidade humana, o que compromete a legitimidade do sistema punitivo. O cárcere encontra-se colapsado com a ocupação de mais de meio milhão de pessoas em trezentas mil vagas e com outros trezentos e vinte mil mandados de prisão aguardando cumprimento, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça (InfoPen), explorados na primeira parte do trabalho. Quanto ao modo de acautelar os presos, a realidade brasileira viola frontalmente a normativa internacional, tornando quimérica a aplicação das “Regras Mínimas da ONU para o Tratamento de Prisioneiros”, consoante registrou a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário. O embrutecimento, a ociosidade, o abandono e as violações sexuais fazem com que o recluso se torne outra vítima, gerando a chamada “síndrome de vitimização do cárcere”. Esta síndrome causa revoltas e motins face à impossibilidade de se executar as condenações sob a égide da legalidade e da humanidade. Os sintomas de debilidade do paradigma punitivo atual se manifestam não só no campo fático, mas também no político e no jurídico. Quanto ao aspecto político, denuncia a criminologia crítica que atesta que o direito

penal vem sendo utilizado como técnica de controle social em prol da criação de uma sociedade de controle e exclusão. Nesta sociedade, são selecionadas, para repressão severa (por meio de políticas endurecedoras do tipo “lei e ordem”), as condutas conflituosas praticadas pelas camadas mais débeis e marginais da sociedade (em geral, delitos patrimoniais). Este uso de sanções penais é incoerente, já que condutas que causam prejuízos muito maiores do que todos os roubos e furtos somados do país, como a corrupção, são pontualmente punidos. Portanto, o uso político e incoerente da sanção penal — que permanece, inclusive no projeto de reforma do Código Penal — também contribui para o questionamento da legitimidade do sistema. Para o exame dessas questões, será utilizado o estudo bibliográfico de autores da criminologia, em especial da corrente crítica, ou seja, autores como Alessandro Baratta, Claus Roxin, Louk Hulsman, Lola Aniyar de Castro, Eugenio Raúl Zaffaroni, Antonio Beristain e Juarez Cirino dos Santos. Do ponto de vista jurídico, as finalidades atribuídas em lei à pena privativa de liberdade — em especial as de prevenção do delito, de reinserção e de “ressocialização” do condenado — são diuturnamente descumpridas. Ao invés de desempenhar suas funções jurídicas declaradas, a pena de prisão opera numa eficácia invertida, que, no lugar de reduzir a criminalidade, incrementa-a, pois o contato com outros presos no cárcere propicia oportunidades para mais práticas criminosas, à medida que consolida valores delitivos, gerando a reincidência. Desta forma, a seletividade das pessoas a serem encarceradas e a impossibilidade de cumprimento dos fins prescritos pela lei incutem à pena certa dose de injustiça, colocam em evidência a fragilidade dos fundamentos do modelo punitivo e põem em xeque a sua legitimidade (SILVA et al, 2006, p. 801 e KARAM, 2004, p. 93). Seria impossível tratar de temas como pena e prisão sem perpassar pelos aspectos filosóficos sobre o assunto, tendo em vista que o fundamento do direito de punir, a natureza da pena, sua finalidade, o emprego da pena de morte, por exemplo, a despeito do seu conteúdo marcadamente jurídico, sempre foram objeto de reflexão por parte dos grandes filósofos da história. Este assunto é tratado na primeira parte do trabalho.

Compreender os fundamentos desta crise de legitimação do direito penal, sejam fáticos, jurídicos, políticos ou filosóficos, pode auxiliar no desenvolvimento de alternativas para se minimizar os efeitos negativos da aplicação da pena e fazê-la mais consentânea com os princípios do Estado democrático de direito. Neste trabalho, referimo-nos especificamente à alternativa representada pela justiça restaurativa cujo formato e benefícios serão evidenciados na segunda parte deste estudo. Em resposta à crise paradigmática relatada, a justiça restaurativa se apresenta como paradigma alternativo que oferece uma resposta ao crime inspirada nos valores transmodernos de convergência, humanização e “outridade”. Ela reconhece o crime como um conflito humano e propõe um modelo penal mais reparador e integrador. A justiça restaurativa promove uma intervenção tridimensional sobre o crime: mediante a reparação dos danos patrimoniais e emocionais das vítimas, com a responsabilização e reintegração do ofensor e pela participação comunitária no processo. Ela o faz por meio de um processo deliberativo que congrega os afetados por um delito na construção de respostas para o tratamento do delito (a “jurisconstrução”, anunciada por Warat). Estas características da justiça restaurativa conferem a ela componentes democráticos significativos, como a participação e a deliberação, características que a diferenciam do sistema ordinário de justiça, e que podem contribuir para suprir o seu déficit de legitimidade, fato que é identificado na primeira parte deste estudo. A teoria política contemporânea (de Schumpeter, Robert Dahl, Joshua Cohen e Charles Sabel) será usada a para enquadrar a justiça restaurativa e o sistema de justiça criminal em modelos democráticos com o fito de avaliar qual deles promoveria, em maior grau, os valores democráticos fundamentais. A filosofia e os conceitos teóricos de Jürgen Habermas (esfera pública de deliberação, agir comunicativo e racionalidade comunicativa), de Emmanuel Lévinas (encontro face a face) e de Axel Honneth (reconhecimento intersubjetivo recíproco) serão usados para se compreender a dinâmica restaurativa e os seus fundamentos. Para tanto, será feita uma revisão bibliográfica do referencial teórico mencionado sem o propósito de abordar todas as dimensões da teoria completa de cada um deles.

Por ser um paradigma em construção e não possuir uma teoria própria, a justiça restaurativa se vale do conhecimento das escolas criminológicas que a antecederam para engendrar uma teoria de resposta ao crime, integrando elementos de várias delas. Na terceira parte do trabalho, com auxílio do método histórico, será percorrido, por meio de um estudo longitudinal, os movimentos criminológicos que mais contribuem para a sua edificação. Na quarta parte deste trabalho será avaliada a práxis restaurativa brasileira por meio dos três programas pioneiros de justiça restaurativa iniciados em 2005 que já apresentam alguns resultados nestes nove anos de atividade. Optou-se pelo corte metodológico para o exame de apenas estas três experiências brasileiras por elas possuírem dados consolidados há mais tempo e por serem as incentivadoras das demais. Conhecer estes programas, ao mesmo tempo em que se dissemina a informação sobre o que tem sido feito, torna possível se identificar onde estão as principais lacunas e ausências visando ao seu aperfeiçoamento. Procurar-se-á identificar seus méritos, a fim de testá-los por meio de hipóteses junto à opinião dos usuários do sistema de justiça por meio de uma pesquisa exploratória de campo. As respostas quantitativas serão trabalhadas estatisticamente, a fim de confirmar ou refutar as hipóteses estabelecidas. O estudo será completado qualitativamente com a análise comparativa de dois casos de estupro tratados pela justiça restaurativa — um no Brasil e outro no exterior — a fim de aprofundar a compreensão da dinâmica e dos princípios restaurativos. Os casos foram selecionados metodologicamente, procurando-se explorar a maior quantidade de variáveis possíveis em cada um deles, a despeito das diferenças de contexto em que ocorreram. Considerou-se o fato de se tratarem de crimes graves, de natureza sexual, cujas vítimas e ofensores possuíam a mesma idade na data dos fatos (treze e dezoito anos, respectivamente) e eram conhecidos entre si (no primeiro caso, irmãos; no segundo, namorados). Dessa forma, tornar-se-á possível a sua avaliação com profundidade e, ao mesmo tempo, a comparação para a extração de conclusões válidas. A partir do estudo dos casos, será possível visualizar as similaridades e as diferenças das intervenções restaurativas no Brasil e no exterior, e também perceber as vantagens que o tratamento restaurativo oferece. Afinal, tão válido quanto o conhecimento teórico — constituído a partir de conceitos

gerais, efetuado na primeira parte da pesquisa — é o conhecimento indutivo, obtido a partir da prática, como a reflexão ora proposta. A justiça restaurativa, em especial sob a forma de mediação penal, já está incorporada e em vigor no ordenamento jurídico de alguns países europeus e americanos, independentemente do sistema de direito adotado e está integrando ousados projetos de modernização da justiça. Na Espanha, por exemplo, mecanismos de justiça restaurativa estão em andamento em mais de quarenta tribunais. No Canadá, o Código Penal e a lei menorista (“Youth Criminal Justice Act” — YCJA) foram alterados para incluírem princípios restaurativos. Na Nova Zelândia, há a previsão expressa no “Sentencing Act” de 2002 da obrigação de juízes de condenação considerarem os processos restaurativos como atenuantes da pena. Estes estatutos serão analisados na terceira parte do estudo, todavia sem a pretensão de esgotar o seu exame ou de advogar a sua cópia para o ordenamento jurídico brasileiro, em respeito às especificidades locais, tão valorizadas pela justiça restaurativa. Neste processo, destaca-se também, o necessário envolvimento do Ministério Público em virtude da sua posição de titular da ação penal e da sua conformação constitucional ampliada pela Constituição Federal de 1988 para a concretização de suas promessas de cidadania. Na Alemanha e em Portugal, por exemplo, a remessa de um processo para o acordo restaurativo fica a cargo do Ministério Público. Neste último país, é o Ministério Público quem designa o mediador para a causa. O mediador é escolhido dentre vários que constam de uma lista de profissionais cadastrados no Ministério da Justiça. No México, em 2008, procedeu-se a uma reforma constitucional na qual se permitiu, entre outras medidas, a mediação penal no sistema de justiça criminal. Esta reforma representou uma mudança paradigmática muito significante, porque estatuiu, em sede constitucional, que as leis devem prever meios alternativos de resolução de disputas inclusive em matéria penal, e que o Ministério Público pode considerar critérios de oportunidade para o exercício da ação penal. Na Argentina, a mediação penal o ocorre no âmbito do próprio Ministério Público (no “Gabinete de Resolução Alternativa de Litígios Departamentais” do Ministério Público). A ele é textualmente atribuída a responsabilidade de pacificar conflitos e buscar a reconciliação entre as

partes, com respeito às garantias constitucionais e neutralizando os prejuízos derivados do processo penal. No Brasil, por não haver uma legislação específica para regulamentá-la, a prática restaurativa vem encontrando o seu caminho em espaços em que há alguma margem legal para a justiça consensuada (como nos juizados especiais criminais nos quais é autorizada uma solução conciliatória para o crime) ou quando o fato não é tecnicamente considerado crime (para atos infracionais praticados por adolescentes, inimputáveis penalmente) e, por isso, não são passíveis tecnicamente de pena ou de persecução penal. Entretanto, para se desenvolver e ser amplamente adotada no Brasil, a justiça restaurativa precisa oferecer respostas a dois questionamentos: como compatibilizá-la com alguns direitos e garantias individuais dos acusados (por exemplo, o princípio da presunção de inocência ou da nãoculpabilidade), já que ela tem como pressuposto o reconhecimento e a responsabilização do ofensor pela prática do delito? e Como compatibilizála com o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública pelo Ministério Público, quando presentes indícios de autoria e materialidade do crime? Isso porque a participação do ofensor no acordo restaurativo demanda, em primeiro lugar, o reconhecimento da sua responsabilidade pelo ato. O problema jurídico que se instaura a este respeito é o de que esta exigência pode, aparentemente, contrastar com a garantia da presunção de inocência ou da não-culpabilidade do acusado. O princípio da obrigatoriedade da ação penal pública informa que o Ministério Público está obrigado a oferecer a denúncia ao tomar conhecimento de uma conduta típica e antijurídica. Assim, a atuação ministerial será vinculada, ou seja, ele não pode optar por não denunciar em tais casos, ainda que por razões de política criminal, tendo em vista a natureza indisponível do interesse público. Entretanto, a vigorar esse entendimento, quase não haverá espaço de consenso para as partes deliberarem a respeito do tratamento para as consequências do crime, o que impedirá o desenvolvimento da justiça restaurativa para abarcar crimes mais graves. Dessa forma, os programas de justiça restaurativa continuarão restritos aos conflitos de menor potencial ofensivo, no qual há algum espaço legal reservado ao consenso das partes para a resolução do conflito (nos crimes de ação penal privada ou pública condicionada à representação do ofendido).

Portanto, viabilizar a aplicação da justiça restaurativa a crimes mais graves parece ser a saída para que ela possa ser útil para auxiliar no desencarceramento e nas mudanças dos números e da realidade prisional. Estas são questões que necessitam ser enfrentadas — e o serão no decorrer deste trabalho — para que a justiça restaurativa tenha chance de florescer, abrindo uma chance para que as partes envolvidas no conflito como protagonistas alcancem o consenso e decidam a melhor forma de solucionar os seus litígios.

PARTE I A CRISE DO PARADIGMA PUNITIVO TUDO O QUE É SÓLIDO DESMANCHA NO AR?

CAPÍTULO I

O SISTEMA PENAL POSTO EM QUESTÃO CRISE DE LEGITIMIDADE DA PENA DE PRISÃO?

Na primeira parte do estudo, analisam-se os sinais de esgotamento do sistema penal a fim de compreender o contexto fático da sua crise de legitimação. Os sintomas da debilidade deste sistema se manifestam na realidade das prisões, nas quais ocorrem corriqueiras violações dos direitos fundamentais dos apenados, o que evidencia a fragilidade do modelo punitivo, desafiando a sua legitimidade e a propositura de alternativas a ele. O conceito habermasiano de tensão entre facticidade e validade do direito é utilizado para explicar como a dissenção entre os fins programados da pena (prevenir e “ressocializar2”) e a realidade fática do seu cumprimento (reincidência e geração de carreiras criminosas a partir da prisão) afetam a legitimidade do direito penal e do próprio sistema de justiça criminal, pois fazem com que se questione o uso da força e do poder de punir pelo Estado. A criminologia crítica é empregada para demonstrar esta crise de legitimidade e de eficiência do sistema, visto que as supostas vantagens anunciadas por ele são muito inferiores aos custos arcados pela população sem que se dispense aos reclusos um tratamento digno (o qual está bastante distante das “Regras Mínimas da ONU para o Tratamento de Prisioneiros”), conforme constatou a CPI do sistema carcerário. Por fim, seria impossível tratar de temas como pena e prisão, sem perpassar pelos aspectos filosóficos sobre o assunto, tendo em vista que o fundamento do direito de punir, a natureza da pena, sua finalidade, o emprego da pena de morte, por exemplo, a despeito do seu conteúdo marcadamente jurídico, sempre foram objeto de reflexão por parte dos grandes filósofos da história. 1.1 A tensão entre facticidade e validade no direito: a importância do reconhecimento da legitimidade

da lei penal Antes de abordar a crise do sistema penal propriamente dita, é preciso demonstrar a importância do reconhecimento da sua legitimidade pelos cidadãos. Isso porque, a confiança na lei e a crença na sua legitimidade são pressupostos de primeira ordem para o funcionamento exitoso do sistema e, por outro lado, a deslegitimação contínua da lei penal pode contribuir para o comprometimento deste modelo. Habermas observa que, para existir socialmente, o direito deve satisfazer simultaneamente a duas condições necessárias, ainda que aparentemente contraditórias: a facticidade e a validade. O direito preenche os requisitos da facticidade, ou seja, existe como um fato social concreto, à medida que está positivado (incorporado ao mundo jurídico por um ato legislativo) e por ser dotado de coerção (que lhe confere eficácia). Essas características — positividade e coerção — tornam-no apto a ser conhecido e obedecido pelos cidadãos (COELHO, 2013d, p. 1). Além da facticidade, há a necessidade de se conferir validade ao direito, no sentido de que seja reconhecido como “valioso” pelos cidadãos. Sobre a importância do atributo da validade, assevera Habermas (1997a, p. 9): o modo de operar de um sistema político, constituído pelo Estado de direito, não pode ser descrito adequadamente, nem mesmo em nível empírico, quando não se leva em conta a dimensão de validade do direito e a força legitimadora da gênese democrática do direito.

Para o reconhecimento da sua validade, o direito precisa preencher duas condições: proteger a liberdade e possuir legitimidade. Na medida em que protege as liberdades individuais, o direito é considerado caro aos cidadãos. O seu reconhecimento como legítimo faz com que o direito obtenha adesão racional por parte dos indivíduos (COELHO 2013d, p. 1). Consoante Habermas, as duas características do direito — facticidade e a validade — são complementares e essenciais, a despeito de se encontrarem em constante tensão. Assim, a liberdade (condição de validade) limita a coerção estatal (condição de facticidade), mas ao mesmo tempo a torna aceitável. Já a coerção limita a liberdade, mas, por outro lado, a tornaa possível. Nas palavras de Habermas (1997a, p. 49), “as normas do direito são, ao mesmo tempo e sob aspectos diferentes, leis da coerção e leis da liberdade.”

O mesmo se passa com a positividade e a legitimidade. Para Habermas, não basta que as normas tenham sido positivadas para terem validade, pois o fato de estarem positivadas quer dizer que elas existirem, no entanto podem ter sido impostas, por exemplo, o que não as justificaria do ponto de vista da legitimidade: Só vale como direito aquilo que obtém força de direito através de procedimentos juridicamente válidos — e que provisoriamente mantém força de direito, apesar da possibilidade de derrogação, dada no direito. Porém, o sentido desta validade do direito somente se explica através da referencia simultânea à sua validade social ou fática (Geltung) e à sua validade ou legitimidade (Gültigkeit) (HABERMAS, 1997a, p. 50).

No mesmo sentido, o magistério de José Rossini Campos do Couto Corrêa (2011, p. 175) salienta que existência e legitimidade são coisas distintas, sendo que esta seria fruto do procedimento, como defende Habermas: Não nasceu o Homem para o Estado, nasceu o Estado para o Homem. E mais: ninguém autorizou o Estado, em seu nascedouro, a retirar a Vida do Homem. E ainda: a simples existência do Estado e do Direito a ambos não legitima. O consentimento é consequência do procedimento.

Observa André Coelho (2013d, p. 1) que, sem legitimidade, a positividade consistiria em atos de decisão que não teriam por que serem obedecidos. Por outro lado, sem positividade, a legitimidade é impossível: A positividade implica possibilidade de tornar qualquer conteúdo em direito, ao passo que a legitimidade obriga a que apenas certos conteúdos possam ser tornados direito. No plano conceitual, novamente, ambos são opostos. Contudo, sem legitimidade, a positividade consistiria em atos de decisão que não teriam por que ser obedecidos, enquanto, sem positividade, os conteúdos que merecem ser obedecidos não teriam atos de decisão com os quais se tornarem obrigatórios. Novamente, sem positividade, a legitimidade é impossível, mas, sem legitimidade, a positividade é inaceitável (COELHO, 2013d, p. 1).

Consoante Habermas (1997a, p. 12), a legitimidade do Estado mede-se pelo seu reconhecimento por parte dos que estão submetidos à sua autoridade. A legitimidade é condição direta de validade, que faz com que o direito seja reconhecido como merecedor de obediência (COELHO, 2013d, p. 1). Sobre a importância da legitimidade, assevera Habermas: A aceitação da ordem jurídica é distinta da aceitabilidade dos argumentos sobre os

quais ela apoia a sua pretensão de legitimidade [...]. Os membros do direito têm que poder supor que eles mesmos, numa formação livre da opinião e da vontade política, autorizariam as regras às quais eles estão submetidos como destinatários [...]. O direito extrai a sua força muito mais da aliança que a positividade do direito estabelece com a pretensão à legitimidade (HABERMAS, 1997a, p. 59-60).

Assim, por causa da dependência recíproca entre facticidade e validade, o direito (especialmente o direito penal) deve satisfazer, ao mesmo tempo, a ambas condições. Por conseguinte, é necessária uma constante renovação do direito para que possa gerir seus eventuais déficits que, no momento, é de legitimidade, consoante identificaram os criminólogos críticos, na discussão feita a seguir. 1.2 O déficit de legitimidade da lei penal Na opinião da criminologia crítica — que muito contribuiu para uma análise questionadora do direito penal e seus fundamentos —, o paradigma punitivo atual encontra-se esgotado não só na sua eficácia prática, mas também na sua legitimidade moral (quanto ao direito de punir) e política (no tocante à definição dos eventos classificados como delitos). Segundo os críticos, este modelo lastreia-se em pressupostos tradicionais bastante contestáveis, como o de que há pessoas más, merecedoras da pena de prisão. Isso ocorre em razão de uma norma oriunda do consenso coletivo, ou seja, a lei penal. Quanto à legitimidade do direito de punir, temos que a aplicação puramente do castigo e da punição sobre o condenado é oriunda da tradição que confere autoridade religiosa e moral ao soberano. Considera Warat (2001, p. 170) que o direito moderno ostentou esta autoridade, legislando os significados e os padrões de justiça em nome de uma suposta ordem racional plena. Habermas (1997b, p. 23) critica esta visão, asseverando que o conceito de soberania, segundo o qual o Estado monopoliza os meios da aplicação legítima da força, traz em si uma ideia absolutista de concentração de poder, capaz de sobrepujar todos os demais poderes deste mundo”. Consoante o autor, o ideal é uma visão procedimentalista de exercício do poder que remete à ideia de soberania do povo e “chama a atenção para condições sociais marginais, as quais possibilitam a auto-organização de uma comunidade jurídica” (HABERMAS, 1997b, p. 25).

Aduz Beristain (2000, p. 59) que “passamos da cultura mágica à cultura mítica e depois ao homem racional, onde permanecemos estancados, ancorados, há muitos séculos”. O atual paradigma punitivo, afirma o professor espanhol (2000, p. 176), “padece de múltiplos anacronismos que devem ser rejeitados, como o seu crasso maniqueísmo, sua excessiva abstração filosófica, seu casamento com a moral religiosa, seu falso pressuposto de que toda a sociedade está de acordo com o Estado, com a classe dominante, etc. Esquece a diversidade de cosmovisões que convivem na sociedade e merecem seu amplo respeito”. No tocante ao segundo tipo de legitimidade (da criminalização ou da definição dos eventos classificados como delitos), a lei penal declara certos tipos de conduta como erradas e exige que todos os cidadãos acatem os seus decretos. Entretanto, tal legitimidade tem sido contestada em face não só da ausência de um consenso sobre os valores por ela afirmados, mas porque suas determinações geralmente revelam a imposição de princípios próprios de cidadãos mais favorecidos socialmente ou exercentes de algum poder3. Neste sentido, assevera Ferrajoli (2010, p. 18) que o direito penal constituiria, em verdade, uma técnica de controle social, conforme várias orientações — autoritárias, idealistas, ético-estatais, positivistas, irracionais, espirituais, correcionais ou também puramente tecnicistas e pragmáticas — que formam o fundo filosófico da cultura penal dominante4. Maria Lúcia Karam (2004, p 73)5 argumenta que crimes são meras criações da lei penal, através da seleção de determinadas condutas conflituosas ou socialmente negativas, que, por intervenção da lei penal, recebem esta denominação. O que é crime em um determinado lugar, pode não ser em outro; o que hoje é crime, amanhã poderá não ser.

Quanto a este aspecto — de que o que é crime em lugar pode não ser em outro - é exemplar a descriminalização do uso de drogas para uso recreativo, recentemente admitida nos estados americanos de Washington e Colorado, num país conhecido por estar há mais de quarenta anos em “guerra contra as drogas”. 1.3 O uso político da sanção penal para excluir: uma visão agnóstica da pena Para a criminologia crítica, o discurso jurídico define o crime como realidade ontológica pré-constituída e apresenta o sistema de justiça

criminal6 como instituição neutra, que realiza uma atividade imparcial. Mas, em verdade, de acordo com esta escola, há uma criminalização desigual dos fatos (uso político da sanção penal) se concentrando nas drogas e na área patrimonial, por exemplo, e não nos crimes contra a economia, a ordem tributária, meio ambiente etc.7 O sistema de justiça, por seu turno, funcionaria como instituição que transforma o cidadão em “criminoso”, segundo o alvedrio dos operadores do direito, “repletos de preconceitos, estereótipos, traumas e outras idiossincrasias pessoais” (CIRINO DOS SANTOS, 2013b, p. 2). Ele serviria, antes de tudo, para diferenciar e administrar os conflitos existentes na sociedade, taxando-os de “criminosos” (BARATTA, 1987, p. 628). Em perspectiva idêntica, acrescenta Louk Hulsman (2003, p. 195): somos inclinados a considerar “eventos criminais” como eventos excepcionais que diferem de forma importante de outros eventos que não são definidos como criminais [...]. Criminosos seriam — nesta visão — uma categoria especial de pessoas, e a natureza excepcional da conduta criminal e/ou do criminoso justificam a natureza especial da reação contra eles.

Ainda acerca da incoerência e do uso político da sanção penal, Alessandro Baratta (1987, p. 19) define o sistema criminal como um “aglomerado arbitrário de objetos heterogêneos” (comportamentos puníveis), que não têm em comum outro elemento senão o de estarem sujeitos a respostas punitivas, em razão de uma definição completamente artificial, resultante de uma decisão humana modificável. A fronteira entre o crime e outras ações prejudiciais ao homem é artificial e está constantemente sujeita a mudanças. Afinal, os crimes não são atitudes necessariamente diferentes de outras ações pelas quais as pessoas prejudicam as outras. Louk Hulsman (1993, p. 64) exemplifica a afirmativa do colega italiano: “um belo dia, o poder político para de caçar as bruxas e aí não existem mais bruxas. (...). É a lei que diz onde está o crime; é a lei que cria o ‘criminoso’”. Nessa mesma esteira, Alessandro Baratta questiona: O que mais teriam em comum “delitos” tão diferentes entre si, como, por exemplo, o aborto e o funcionamento ilegal das instituições do Estado, a injúria entre particulares e a grande criminalidade organizada, os pequenos furtos e as grandes infrações ecológicas, as calúnias e os atentados contra a saúde no trabalho industrial, além do fato de estarem sujeitos a uma resposta punitiva? Como se pode aceitar a pretensão de um sistema, como o penal, de responder, com os mesmos instrumentos e os mesmos

procedimentos, a conflitos de tão vasta heterogeneidade? 8 (BARATTA, 1987, p. 642).

A constatação de diferentes condutas a serem punidas com o mesmo remédio — a pena — refuta, portanto, a natureza ontológica do crime ou do ofensor. Assim, a seleção de condutas como criminosas encontraria muito mais uma justificativa política do que orgânica, uma manifestação de poder do Estado. Nas palavras de Maria Lúcia Karam (2004, p. 82), “a pena, na realidade, só se explica — e só pode se explicar — em sua função simbólica de manifestação de poder e em sua finalidade não explicitada de manutenção e reprodução deste poder”. A mesma lógica é identificada por Louk Hulsman (2003, p. 191), que não considera “a justiça criminal como um sistema que distribui a punição, mas como um sistema que usa a linguagem da punição de uma maneira que esconde os reais processos que acontecem e gera apoio através da apresentação incorreta destes processos como semelhantes a processos conhecidos e aceitos pelo público”. Os valores dignos de proteção — assim escolhidos por quem tem o poder para tanto — são refletidos não só na definição dos tipos penais, como na realidade carcerária e nas propostas de política criminal e atuação legislativa brasileira. Conforme Fabiana Costa Barreto9 (SENADO FEDERAL, 2013b, p. 1), apenas nove tipos de crimes, na maioria patrimoniais, são responsáveis por praticamente 80% da população carcerária atual do país, entre eles: roubo (simples e qualificado), tráfico de entorpecentes, furto etc.10 A elaboração do projeto de reforma do Código Penal também é exemplo desta seleção. Na proposta, foram descriminalizadas condutas geralmente perpetráveis pelas categorias privilegiadas, tais como a violação de direito autoral (quando se tratar de cópia de obra, som ou vídeo de um só exemplar, para uso privado); a eutanásia e o aborto no caso de feto anencéfalo11. Houve, além disso, um endurecimento da lei com relação aos crimes praticados mais comumente pela população, como jogos de azar (transformando em crime a atual contravenção penal do “jogo do bicho”); crimes contra a honra (que tiveram a sua pena máxima dobrada) e a criminalização da violação de comunicação eletrônica ou intrusão informática (inspirada pela divulgação não autorizada de fotos de uma famosa atriz televisiva). Dificultou-se, também, a progressão de pena em casos com violência e grave ameaça ou lesão social, como no caso dos constantes “arrastões” em restaurantes de São Paulo, que fez com que o

movimento nos estabelecimentos diminuísse, motivando as alterações, segundo declarou o relator da comissão12. Edson Passetti13 identifica certa seletividade em relação aos crimes patrimoniais, asseverando que ela “dimensiona os privilégios, segrega os demais como perigosos e os associa [os crimes] aos mais pobres” (2004, p. 26). Desse modo, a igualdade perante a lei e a segurança jurídica do cidadão vulnerável “desmoronam diante de sua clientela restrita a um limitado número de violadores da lei penal” (KARAM, 2004, p. 93). Consoante essa autora, uma intervenção assim seleta é, por isso mesmo, injusta, pois faz com que a reação punitiva se dirija, necessária e prioritariamente, aos membros das classes subalternas, hipossuficientes e alijados de poder (KARAM, 2004, p. 93)14. Esta seletividade não é só injusta como também compromete a legitimidade do direito penal, construído para escudar o oposto desta realidade, ou seja, protege os mais fracos contra os mais fortes. A esse respeito, observa Tatiana Viggiani Bicudo: Entendemos que um direito penal legítimo é aquele que representa um limite máximo ao poder puntivo do Estado. Dito em outras palavras, é o Direito que se estrutura como a garantia dos mais fracos contra os mais fortes, quer seja o mais forte representado pelos poderes públicos quer seja pelos particulares (BICUDO, 2010, p. 184).

O desenvolvimento deste modelo penalizador resultou na criação de uma sociedade de controle e reclusão caracterizada pelo encarceramento em massa de pessoas socialmente excluídas devido à criação de um complexo prisional-industrial composto por uma rede de funcionários e entidades (públicas e privadas) que sobrevivem por força da acusação, do policiamento, da punição e da continuidade do castigo sob forma diversa (estimagizadora), mesmo após o término do cumprimento da pena (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 189). A esse respeito, observa Alessandro Baratta (2002, p. 186) que a sociedade era quem necessitaria de reforma: A verdadeira reeducação deveria começar pela sociedade, antes que pelo condenado: antes de querer modificar os excluídos, é preciso modificar a sociedade excludente, atingindo assim, a raiz do mecanismo de exclusão.

Sobre uma eventual imposição da pena a um ou outro membro das classes dominantes ou a algum condenado “enriquecido”, Maria Lúcia

Karam (2004, p. 94) considera que tal fato serviria tão-somente para legitimar o sistema penal e melhor ocultar o seu papel de dominação. Neste mesmo diapasão, Boaventura de Sousa Santos (1996, p. 33) considera que o combate à corrupção é apenas pontual e não sistêmico. O combate tópico à corrupção consiste na sua repressão seletiva, incidindo sobre alguns casos eleitos por razões de política judiciária. A sua investigação é particularmente fácil; porque contra eles há uma opinião forte a qual, se defraudada pela ausência de repressão, aprofunda a distância entre os cidadãos e a administração da justiça; porque, sendo exemplares, têm um elevado potencial de prevenção; porque a sua repressão tem baixos custos políticos15 (SOUSA SANTOS, 1996, p. 33).

Dessa forma, consoante o autor, um ou outro caso de repercussão seria selecionado para fins de repressão exemplar com o fim único de transmitr a ideia de que também se realiza o combate à “grande criminalidade”. Ferrajoli (2010, p. 196) salienta outro aspecto relacionado à legitimidade da lei penal: o seu custo. O autor não se refere apenas ao “custo da justiça” propriamente dito, mas também ao “custo das injustiças” inerentes ao funcionamento concreto de um sistema penal. Isso ocorre porque, embora todos estejam sujeitos às leis penais, nem todos “criminosos” se veem submetidos ao processo e à pena. Muitos culpados subtraem-se ao julgamento e à condenação (“cifra da ineficiência”) ou, sendo inocentes, são obrigados a suportar um julgamento, o cárcere e o erro judiciário em razão da inevitável falibilidade do sistema penal (“cifra da injustiça”16). Ambas as cifras são facetas do “custo da injustiça”, identificado por Ferrajoli. Para o professor florentino, ambas as cifras geram complicações, normalmente ignoradas quando se trata da justificação da pena e do direito penal. Se os custos da ineficiência são geralmente tolerados com base em doutrinas e ideologias de justiça, os custos da injustiça (impostos aos inocentes), na sua opinião, são injustificáveis (FERRAJOLI, 2010, p. 196). Em suma, por todos os motivos elencados é que os chamados “abolicionistas” — como Juarez Cirino dos Santos e Eugenio Raúl Zaffaroni — não reconhecem a legitimidade ou a justificação do direito penal. Louk Hulsman (2003, p. 198) acrescenta que “a justiça criminal não é “natural” e sua “construção” não pode ser legitimada. (...) a linguagem prevalecente sobre a justiça criminal tem de ser desconstruída e a justiça criminal

aparecerá como um problema público em vez de uma solução para problemas públicos”. Os críticos abolicionistas defendem a supressão do direito penal, por sua total ausência de fundamento ético-político e transferem ao Estado o ônus de justificar suficientemente a utilização da pena, este “poderoso recurso de coação de que ele dispõe para limitar os direitos individuais com o propósito de assegurar a convivência pacífica” (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 471). Adiantam, outrossim, ser impossível essa justificativa, já que as supostas vantagens do sistema criminal são inferiores aos seus custos (como os de limitação da liberdade de ação para a população em geral, de sujeição a um processo por aqueles tidos como suspeitos e de punição dos condenados) (FERRAJOLI, 2010, p. 196). Os abolicionistas acusam o sistema de justiça criminal ter se tornado um arranjo de extremos, variando entre “prisões infamantes” e a “liberdade condicional ineficaz”, sem abrir a possibilidade de outra resposta mais eficiente e particularizada aos conflitos. Usando uma analogia médica, Jerome Miller (1989, p. 1)17 diz que: seria como pedir a um médico uma solução para o alívio da dor de cabeça, sendo-lhe informado que há apenas dois tratamentos: uma aspirina ou uma lobotomia. Ou então ir ao médico com um braço quebrado ou com uma apendicite aguda e ele lhe oferecer os mesmos dois tratamentos disponíveis: uma aspirina ou uma lobotomia.

Esta excrescência resulta do fato de que, como qualquer outra doença física ou social, o comportamento criminoso não é unitário. Da mesma forma que a enfermidade, se as opções de tratamento são limitadas, a probabilidade de sucesso também será. A conclusão é que as chances terapêuticas do ofensor18 são tão maiores quanto mais opções existirem. No mesmo sentido, acrescenta Maíra Rocha Machado (2012, p. 1): Não há dúvida de que o baixíssimo grau de criatividade para se pensar sanções que sejam adequadas e eficientes para lidar com as mais diversas modalidades de crimes são as causas da obsolescência do sistema penal. Nos crimes que lesionam o patrimônio público, causa estranheza que o foco seja a prisão e não a recuperação do patrimônio público ou o aperfeiçoamento de mecanismos de controle e transparência para que tais práticas sejam evitadas.

Além de tornar o sistema ineficiente, esse cenário contribui para a superlotação das prisões brasileiras. Temos quase meio milhão de pessoas

presas e somos — em um ranking pouco louvável — o quarto país que mais encarcera no mundo (perdendo para EUA, China e Rússia). Neste ponto, a justiça restaurativa tem muito a oferecer, como soluções mais apropriadas, reparadoras, criativas, estabelecidas pelas próprias partes. Num acordo restaurativo, as soluções são lastreadas na diversidade, com alta sensibilidade para as condições locais e pessoais da ofensa e de suas circunstâncias. Uma vez cada conflito é único, sentenças padronizadas não seriam adequadas para sua solução, embora situações semelhantes anteriores possam servir como base para a construção de uma resposta. Neste diapasão entre minimalismo ou abolicionismo do direito penal, a justiça restaurativa, segundo a classificação de Luigi Ferrajoli (2010, p. 196), pode ser tida como uma doutrina minimalista, reformadora do sistema penal, na medida em que preceitua a redução da esfera de intervenção penal, ou, na mais ousada das suas versões, a abolição especifica da pena de reclusão em favor de sanções penais menos aflitivas. De todo modo, em quaisquer destas vertentes, a justiça restaurativa pode auxiliar numa resposta à crise de legitimidade do poder punitivo estatal em três aspectos: diminuindo a violência estatal representada pela pena (mediante a apresentação de alternativas para reparação, que não as penas excessivas e inutilmente aflitivas)19; minimizando o impacto da seletividade das condutas criminosas (visto que confere voz e poder decisório aos excluídos, dando-lhes substancial acesso à justiça) e mitigando (ou eliminando) os “custos das injustiças”, na expressão de Ferrajoli, uma vez que o acordo restaurativo, com suas implicações, somente é firmado se contar com a voluntariedade e o consenso do autor do fato. Destarte, a justiça restaurativa apresenta o potencial de aplacar a “brutalidade” do sistema penal, tal como referido por Juarez Cirino dos Santos, na medida em que oportuniza ao ofensor ser, de fato, escutado; dispensa tratamento não só respeitoso, mas também digno e humano durante o procedimento. A justiça restaurativa também possui mecanismos que garantem que as obrigações constantes no acordo restaurativo não sejam desmedidas e injustas, já que necessitam do assentimento do ofensor, do seu advogado (se for o caso) e do Ministério Público e do juiz (GARCÍAPABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 367). A justiça restaurativa oferece, ainda, novas propostas finalísticas para a pena, como a de reparação e de comunicação ao ofensor da reprovabilidade

de sua conduta (presente na chamada “vergonha reintegradora”). São propostas diversas dos tradicionais propósitos de retribuição ou prevenção da pena, as quais se encontram superadas, conforme justificado a seguir. 1.4 Críticas às tradicionais funções da pena: retribuição e prevenção20 O artigo 59 do Código Penal estabelece, como finalidades da pena (na qual se inclui a de prisão), a retribuição e a prevenção do crime ao determinar ao juiz que aplique a pena “necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime”. Edmundo Oliveira explica que o caráter retributivo da pena não decorre de considerações de ordem moral, mas da própria natureza do mecanismo usado pelo Estado para ilidir a criminalidade e aduz: Até hoje não se inventou outro mecanismo diferente, até porque nenhum novo Pasteur descobriu a vacina contra o crime, ainda que grande parte do trabalho dos criminólogos consista em identificar as causas da criminalidade e apontar a terapêutica dos crimes (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 472).

Ressalta o autor a função e a necessidade da pena a perpetuação do funcionamento deste sistema: sempre que houver a possibilidade de delitos, será então forçoso lançar mão da ameaça penal para evitar o crime e executá-la se ele não for evitado, a fim de que a pena não se desmoralize como promessa lírica que não se cumpre (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 472).

Entretanto, criminólogos críticos apontam outro significado para a pena como retribuição. Consoante informam, retribuir pela imposição da pena consistiria simplesmente, em expiar ou compensar o mal injusto causado pelo crime, sem qualquer racionalidade utilitária, unicamente com base no conteúdo religioso de expiação, à semelhança retributiva da justiça divina (CIRINO DOS SANTOS, 2012b, p. 3)21. O autor faz referência à época em que se atribuía uma compreensão religiosa à justiça penal. Como o crime suscitava a cólera divina, ela só seria aplacada com o respectivo castigo, o que tornava necessária a expiação do culpado. No mesmo rumo, a crítica de Louk Hulsman (1993, p. 126 e 127): O “programa” de atribuição da culpa típico da justiça criminal é uma cópia verídica da doutrina do “último julgamento” e do “purgatório” desenvolvidas em certas

variedades pela teologia crista ocidental. É marcado também pelas características da “centralidade” e do “totalitarismo específicas dessas doutrinas. Naturalmente, essas origens - essa “velha” racionalidade - estão escondidas por trás de novas palavras: “Deus” é substituído por “Lei”, “consenso do povo”, “purgatório” é substituído por “prisão” e, em certa medida, por “multa”.

A retribuição, conforme descrevem, conceberia a pena como um fim em si mesmo, de forma absoluta, como um “castigo”, uma “reação” ou “vingança” pelo crime. Historicamente, a retribuição é associada ao princípio bíblico da “lei de talião” ou “da lei da vingança”. Sintetizada pela expressão “olho por olho, dente por dente”, este ponto de vista punitivo argumenta que o ofensor deve experimentar o mal que atraiu para si. Nilo Batista (2004, p. 111) assinala que esse sentimento de vingança, atualmente se encontra revertido pelo cognome “justiça”, exemplificado pelo jargão publicitário “não se cogita de vingança, e sim de justiça”. Ao mesmo tempo, assevera Beristain, esta expressão não oculta o sentido vindicativo e expiacionista do sistema penal (2000, p. 172). Ela estaria ainda radicada num suposto nexo entre culpa e punição, fundando-se na convicção de que é justo “transformar mal em mal” (FERRAJOLI, 2010, p. 236). As teorias de índole retributiva justificam a pena pelo seu valor axiológico, ou seja, a pena não seria “um meio” ou “um custo”, mas um dever-ser metajurídico, que possui em si seu próprio fundamento. A legitimidade da pena seria, portanto, apriorística, no sentido de que não é condicionada por finalidades extrapunitivas (como prevenir outros delitos, desestimular crimes na comunidade, reeducar o ofensor), senão como reação ao delito. Ferrajoli explica que as teorias retributivas contêm influência da ideia kantiana segundo a qual a pena é uma retribuição ética, que se justifica pelo valor moral da lei penal violada e pelo castigo que é imposto ao culpado22. Em sua obra “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, publicada em 1785, Kant argumentou que os seres humanos são agentes livres e racionais23, portanto, devem reconhecer suas ações e aceitar suas consequências. Desta forma, a pena como retribuição respeitaria a dignidade do ofensor, porque o trataria como agente responsável por seu ato (COELHO, 2012, p. 1). A justificação retributiva é chamada quia peccatum, ou seja, diz respeito ao passado. As razões utilitárias para a pena, por seu turno, a consideram e a

justificam como meio para a prevenção de futuros delitos, isto é, são do tipo ne peccetur, ou seja, referem-se ao futuro (FERRAJOLI, 2010, p. 29 e 236). Maria Lúcia Karan (2004, p. 81) questiona a irracionalidade da pena retributiva: Por que razão o mal deveria ser compensado com outro mal de igual proporção: se o mal é algo que se deseja ver afastado ou evitado, por que se deveria reproduzi-lo, por que se deveria insistir nele com a pena? [...] Decerto pareceria mais lógica a opção pela reparação do dano material ou moral causado pelo crime, especialmente porque aí se levariam em conta os interesses das pessoas diretamente afetadas.

Zaffaroni (1991b, p. 210) complementa a crítica informando que o próprio nome “penalização” indica um sofrimento. Entretanto, o sofrimento existe em quase todas as penas da lei: “sofremos quando se embarga a casa, quando se cobram juros de mora, quando se anula um processo, quando se coloca em quarentena, quando se conduz à força para depor etc.” Nenhum desses sofrimentos, pontifica, é chamado de “castigo”, porque eles têm um sentido, isto é, servem para resolver um conflito. A pena, por outro lado, seria um sofrimento — “órfão de racionalidade” —, que há séculos procura um sentido e não pôde ser encontrado, simplesmente porque existe a não ser como manifestação do poder24. Mais modernamente, o ideal retribuicionista encontra-se preocupado com a proporcionalidade na aplicação desta “vingança”. Seus defensores visam, ademais, garantir que os ofensores recebam “a justa punição” para seus erros, de forma proporcional à gravidade de sua ofensa, como apregoa a teoria do just deserts25. Passos e Penso (2009, p. 81) destacam que a função da pena é, portanto, mal compreendida, pois até hoje a sociedade a associa à vingança, enxergando as medidas alternativas, por exemplo, como formas de impunidade: Ainda não conseguimos diferenciar vingança de punição e a sociedade não consegue visualizar resposta para o delito sem a pena privativa de liberdade, entendendo que as medidas e penas alternativas refletem a impunidade. Isso significa que estamos longe de compreender a punição como uma função de controle social, no qual os métodos punitivos têm sua especificidade e a sua validade, compreendendo a pena como um meio e não como fim.

Aponta Beristain (2000, p. 184) que, realmente, a pena representou um progresso se comparado à vingança imediata e ilimitada (especialmente das

sociedades primitivas). A pena procura evitar os excessos de uma reação incontrolada, introduzindo o processo no lugar da vingança. Não obstante, ele mantém a disposição primitiva de inimizade das vítimas (e de toda a sociedade) contra o ofensor. O processo penal não eliminaria essa relação adversarial, mas a ritualizaria. Ele conservaria o “castigo”, a inflição de dor ao ofensor e despreza as vítimas para que o Estado ocupe seu lugar26. A justiça restaurativa se opõe ao ideário meramente retributivo da pena e propõe um novo modelo de justiça no qual a resposta para o crime, ao invés de impor danos adicionais sobre o ofensor, procura restabelecer a situação violada. Ela introduz a ideia de um maior respeito pelo ofensor, resgata a vítima e propicia uma atmosfera de diálogo, visando ao entendimento sobre as formas de restauração do “malefício” causado, em substituição do tom de expiação e castigo retributivos (BERISTAIN, 2000, p. 184). Ao substituir a ideia de retribuição pela de reparação, a justiça restaurativa busca atitudes positivas, verdadeiramente úteis e de baixos custos sociais (a chamada “restituição criativa”), cujo foco está em ações futuras, ao invés de condutas do passado, sintonizando as exigências sociais e expectativas em torno de uma solução do crime (BERISTAIN, 2000, p. 185). 1.4.1 Comunicando a pena ao ofensor: a prevenção especial As doutrinas utilitaristas (ou relativas) são tradicionalmente divididas entre teorias da prevenção especial e da prevenção geral. A prevenção especial é dirigida ao ofensor e comunica-lhe as consequências da pena. É subdividida em duas categorias — negativa e positiva — conforme a sua forma de atuação. A negativa (ou de neutralização do ofensor) se verifica com a prisão do condenado e o seu confinamento no cárcere. A dimensão positiva é a de correção do condenado por meio da pena (ou “ortopedia moral do estabelecimento penitenciário”, no dizer de Juarez Cirino dos Santos (2013c, p. 5)). O ideal de prevenção especial negativa visa à proteção da sociedade contra o ofensor e pressupõe que o condenado, ao longo do período em que cumpre a pena de prisão, estaria neutralizado, ou seja, impedido de cometer novos delitos por estar fora da circulação social. Na prática, este efeito é contestado pelo fato de que, mesmo na prisão, o condenado pode cometer alguns crimes simples — agressão a outro interno ou a um agente penitenciário — ou complexos — comandar o crime

organizado. É certo que, de modo geral, as oportunidades para cometimento de novos delitos são reduzidas, mas o contato com outros presos propicia, na verdade, oportunidades para mais práticas criminosas após a liberação do cárcere visto que, imerso em um ambiente corrompido, o detento estabelece conexões com outros “delinquentes”, assimila novas técnicas criminais e consolida valores delitivos (SIMÕES, 2010, p. 38). Outra crítica feita ao uso da pena de prisão como forma de neutralização e proteção da sociedade é a de que, considerando a forma como são acautelados os reclusos atualmente, não se pode defender a pena mediante o sacrifício da dignidade humana. A infamação dos seus cidadãos não poderia ser vista como meio íntegro de defesa da sociedade (GALVÃO JÚNIOR, 2003, p. 2). A prevenção especial positiva, por seu turno, presume a alteração dos valores do ofensor por meio da punição (a chamada “reabilitação” ou “reforma”). Com a prisão, imagina-se que o ofensor também seria demovido de cometer crimes futuros, devido a sua experiência de suplício e à ameaça de ser punido novamente, caso reincida (SIMÕES, 2010, p. 37-38). O campo de inferência da prevenção especial positiva vai além: o condenado, após cumprir a pena, já não cometeria crimes, não só porque teme a punição, mas porque estaria convencido de que o comportamento criminoso é equivocado. Segundo a criminologia crítica, o insucesso deste uso da pena é comprovado pelos altos índices de reincidência e pela influência negativa da subcultura da prisão sobre o condenado. O cumprimento da pena marca a entrada do ofensor pela “porta giratória” das prisões, onde sempre volta a entrar, marcando o início de uma carreira delitiva, na qual o crime prediz o próprio crime, iniciando um círculo vicioso e consolidando a “profecia autorrealizável” (self-fulfilling prophecy) (MERTON, 1948, p. 196). Dessa forma, é improvável que o encarceramento contribua para uma melhora do interno, pois se encontra imerso na subcultura carcerária. A crítica feita à pena como prevenção especial baseia-se no fato de que o efeito de reabilitação pode ser alcançado também por meios não punitivos e, quiçá com maior eficácia, como a justiça restaurativa, muito mais profunda, abrangente e democrática (SIMÕES, 2010, p. 38). Em primeiro lugar, o padrão preventivo ordinário implica uma intervenção tardia no problema criminal (déficit etiológico), de forma reativa e não preventiva, sem que possa impedi-lo ou solucioná-lo. Incide

ainda sobre os efeitos do crime e não sobre os conflitos propriamente ditos. Em segundo lugar, revela um acentuado traço individualista e ideológico na seleção dos seus destinatários e no desenho dos seus programas (déficit social) e, por fim, concede um protagonismo desmedido às instâncias oficiais do sistema legal (déficit comunitário) (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 356). Prevenir o delito seria algo mais do que dissuadir o “infrator” potencial com a ameaça do castigo. O conceito de prevenção não poderia se desvincular da gênese do fenômeno criminal, isto é, de uma intervenção dinâmica e positiva que neutralize suas origens. A mera dissuasão deixa essas causas intactas. No lugar de compor conflitos, reprime-os, e eles adquirem um caráter mais grave do que o próprio contexto originário (BARATTA, 1987, p. 628). A prevenção, por conseguinte, deve ser contemplada numa perspectiva mais ampliada, com a mobilização de todos os setores comunitários para enfrentar solidariamente o problema do crime. Ademais, refrear o crime não interessa exclusivamente aos poderes públicos e ao sistema legal. Interessa a todos. Não é um corpo “estranho” alheio à sociedade, mas um problema que diz respeito a ela (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 356). 1.4.2 A ideia de prevenção dirigida à sociedade A prevenção geral, assim como a especial, apresenta uma dimensão positiva e uma negativa, ambas direcionadas aos demais membros da sociedade. Sua dimensão negativa reside no poder intimidador da pena, pelo qual o Estado espera desestimular potenciais “infratores”, contendo impulsos criminosos da população, com a ameaça do castigo 27. A prevenção geral negativa se vale da dimensão simbólica e apelativa da pena, em especial da cominação de altas penas em abstrato28. Consoante esta perspectiva, a pena seria essencial para reforçar as proibições, para indicar o que é permitido e para mostrar aos cidadãos que a observância aos mandamentos legais é absolutamente necessária. Segundo Zaffaroni e Oliveira (2010, p. 471), “é a dosagem de vigor da pena que desperta na consciência de cada um o efeito inibidor da norma penal imperativa”. A prevenção equivaleria, portanto, à dissuasão mediante o efeito inibitório da pena. No rigor e na severidade da pena é que estaria a suposta eficácia preventiva do mecanismo intimidatório. Prevenção, dissuasão e intimidação,

nesta perspectiva, seriam termos correlatos (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 360). Consoante aponta Maria Lúcia Karam (2004, p. 79), “a história demonstra que a função de prevenção geral negativa jamais funcionou. A ameaça, mediante leis penais, não evita a formação de conflitos ou a prática das condutas qualificadas como crimes”. As razões para esse insucesso já foram identificadas por Beccaria, em 1764, para quem o que importa não é a gravidade das penas, mas a rapidez (imediatidade) com que são aplicadas. Para ele, o fundamental não é o rigor do castigo, mas sua certeza ou infalibilidade29, ou seja, a pena que realmente intimida é a que se executa, pronta e implacavelmente, de forma proporcional ao delito e, cabe acrescentar, que seja percebida pela sociedade como justa e merecida (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 362). Edmundo Oliveira observa: De que adianta a lei cominar penas gravíssimas, se certos delinquentes têm bons motivos para achar que não as sofrerão? Reafirme-se: a força intimidativa das penas previstas em lei reside na certeza da punição (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 473)

Thomas Mathiesen acrescenta que o insucesso das penas severas como método de prevenção reside na própria brutalidade das penas. A mensagem é claramente direcionada aos mais fracos e vulneráveis do sistema que, ao as receberem, desfiam-nas ou a as desconsideram, cientes da impossibilidade da sua execução: Vocês podem perguntar: por que esses resultados? Deixe-me lembrar, resumidamente, que a ineficiência preventiva da prisão se constitui em um problema de comunicação. Nesse contexto, a punição é um modo pelo qual o Estado tenta comunicar uma mensagem, especialmente a grupos particularmente vulneráveis na sociedade. Como um método de comunicação, é extremamente rude. A própria mensagem é difícil de ser transmitida, devido à incomensurabilidade da ação e da reação. A mensagem é filtrada e deturpada durante processo e é confrontada com uma resposta cultural nos grupos que a desconsidera, acabando por neutralizá-la (2003, p. 92).

A realidade e a doutrina criminológica têm demonstrado, portanto, o contrário do que prega a prevenção geral negativa, ou seja, tem mostrado que a pena dura e cruel é de difícil execução prática e não intimida, o que torna o sistema desacreditado.

O aspecto positivo da prevenção geral, por sua vez, informa que a execução concreta da pena cumpriria a função de estabilizar as expectativas normativas da comunidade bem como a de restabelecer a confiança no ordenamento jurídico violado, numa perspectiva hegeliana. Observa ainda Maria Lúcia Karam (2004, p. 80) que, de acordo com esse ponto de vista, a pessoa do ofensor se converte em instrumento para uma ação simbólica, cujos fins a ultrapassam: Aqui, com clareza insofismável, aparece a figura do bode expiatório naquele que, recebendo a pena, deve cumpri-la, seja para dissuadir os demais da prática do crime, seja para exercitá-los no reconhecimento da norma e na fidelidade ao direito.

Aplicada dessa forma, a pena acaba por tornar o direito penal simbólico, ou seja, o homem não seria o cerne de sua preocupação, mas mero objeto da sanção penal, “portador de funções jurídico-penais”. Ou, como diria Foucault (2008, p. 165), trata-se da mera sujeição “dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujeitam” à pena. Nessa concepção, o direito penal não existiria para ser efetivo, mas teria função meramente política de criar símbolos na psicologia popular, produzindo efeitos úteis, como o de legitimar o poder político e o próprio direito penal (CIRINO DOS SANTOS, 2013c, p. 3). Na locução mais contundente de Louk Hulsman (2004, p. 36), a justiça criminal não é um sistema destinado a dispensar punições, mas sim um sistema que usa a linguagem da punição de modo a esconder os reais processos em curso e produzir consenso através de sua errônea apresentação, assimilando-os aos processos conhecidos e aceitos pelo público.

Critica-se que a demonstração da validade da norma jurídica às custas de um responsável seria uma variante do direito penal do inimigo de Günther Jackobs30, que distingue cidadãos e inimigos, de acordo com a determinação dos agentes de controle social. O outro é visto como um inimigo, ou seja, perigoso, anormal, subversivo, pertencente a grupos ou classes tidos como intoleráveis (PASSETTI, 2004, p. 21)31. Essa distinção assenta-se no maniqueísmo simplista que divide as pessoas entre boas e más. Conforme anota Maria Lúcia Karam (2004, p. 89), a intervenção do sistema penal corresponde a um desejo irracional de castigo sobre esse ser “diferente”, pertencente a uma espécie apartada do comum. Desejo que é prontamente atendido.

A imposição da pena a um responsável pela prática de um crime também exerce outra função: a de “absolvição” de todos os demais não selecionados pelo sistema penal, que, assim, podem comodamente se autointitularem “cidadãos de bem”, diferentes e contrapostos ao “criminoso”, ao “delinquente”, ao mau (KARAM, 2004, p. 89). Aos bons cidadãos, aplica-se o respeito a todos os direitos. Aos inimigos, esses direitos costumam ser negados, o que vulnera o princípio de igualdade perante a lei (CIRINO DOS SANTOS, 2012a, p. 12). Isso ocorre porque, segundo Louk Hulsman (2004, p. 43), somos levados a considerar os “eventos criminosos” como fatos excepcionais, ou seja, fatos que diferem substancialmente de outros eventos não definidos como crimes. Assim, sob tal ponto de vista, os ofensores tornam-se uma categoria especial de pessoas e a natureza excepcional da conduta criminosa justifica a natureza especial da reação feita contra eles. Alessandro Baratta (1987, p. 11) lembra que, a despeito do “sacrifício simbólico do condenado considerado como bode expiatório”, a maior parte dos infratores da lei penal, em especial dos crimes mais graves, permanece impune. Os reveses desta incongruência são ressaltados por Juarez Cirino dos Santos (2013a, p. 4), o qual lembra que, se a punição do “criminoso” reforça a fidelidade jurídica do povo e reduz a criminalidade, a não punição do “infrator” reduz a confiança da população na austeridade do Direito, ampliando a criminalidade. Ironiza o autor, por fim, afirmando que, na verdade, a pena de prisão e todo o arcabouço do sistema de justiça não falharam no cumprimento de suas funções, apesar de não as terem cumprido com “absoluto sucesso histórico, porque a gestão diferencial da criminalidade garante as desigualdades sociais em poder e riqueza das sociedades fundadas na relação capital/trabalho assalariado” (CIRINO DOS SANTOS, 2005b, p. 5) 32. 1.5 A cifra obscura da criminalidade Ao se tratar da impunidade, é de rigor se mencionar a chamada “cifra negra” da criminalidade. A esse respeito, Lola Aniyar de Castro (1983, p. 67) menciona a existência de três tipos de criminalidade: a legal, a aparente e a real. A legal é a registrada nas estatísticas oficiais, restrita aos casos em que houve condenação. A aparente ou judicializada refere-se a toda criminalidade levada ao conhecimento dos órgãos de controle social —

polícia, ministério público, juízes etc. —, ainda que não apareça registrada nas estatísticas e a real reporta-se à quantidade de delitos cometidos em determinado momento. Pode-se observar que há diferença de volume entre as três categorias de criminalidade, em especial a real, cuja extensão não é conhecida. Entre a criminalidade real e a aparente (noticiada), há uma grande quantidade de crimes que não são conhecidos. A criminalidade aparente é, segundo a criminóloga venezuelana, tão-somente “uma mostra não representativa da delinquência” (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 34). A diferença entre elas é o que se denomina “cifra obscura”, “cifra negra” ou “delinquência oculta” (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 68). O filtro mais importante da cifra obscura está nos primeiros níveis: do descobrimento do fato, da atitude da vítima e da conduta da polícia. Muitos fatos criminosos não são descobertos ou não são comunicados pela vítima por alguns motivos: porque não é percebido por ela como fato criminoso (pode, por exemplo, pensar que o objeto foi extraviado ao invés de subtraído); porque ela julga o incidente sem importância; porque ela teme represálias ou mesmo porque, ao comunicá-lo, teria que confessar um fato criminoso ou desonroso de sua parte (por exemplo, sua própria torpeza num crime de estelionato, o seu envolvimento com a prostituição, a frequência a um ambiente mal-afamado, a lida com jogos ilícitos, em casos de extorsão); porque ela foi ameaçada pelo ofensor para não denunciá-lo (com agressões físicas, ameaças verbais ou atos de vandalismo); porque há envolvimento de parentes ou amigos no crime (como no caso de delitos sexuais); por desconfiança ou aversão à polícia (por acreditar que o crime não será investigado ou solucionado devido à burocracia exigida nas delegacias); porque sua comunidade é culturalmente contra denúncias; porque a condenação do autor lhe resultaria mais despesas ou danos do que o decorrente do próprio delito (por exemplo, vítimas de violência doméstica, cujo agressor-provedor é preso); por simpatia ao acusado; para não ter que testemunhar ou comparecer aos atos processuais; pela possibilidade de obter reparação por outra via etc. (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 69-70)33. Louk Hulsman (2004, p. 49) observa que estes e muitos outros fatos criminosos são, portanto, intencionalmente tratados fora do sistema de justiça criminal.

No tocante à contribuição da polícia para a cifra negra, esta pode ocorrer em decorrência de desinteresse na apuração (quando não há vítimas determinadas, como nos crimes relacionados às drogas); da incapacidade de mobilização do efetivo; de incapacidade técnica para se desvendar o delito (autoria desconhecida); devido a algum impedimento processual; pelo desinteresse em não o descobrir ou não o perseguir em virtude de pressões do poder etc. (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 70). A esses fatores para a inércia policial, Sousa Santos acrescenta “o elevado nível de estereotipização da criminalidade por parte das polícias de investigação (a respeito dos crimes considerados mais importantes ou dos criminosos considerados mais prováveis ou mais perigosos)”. Além disso, poderia haver uma possível falta de vontade política para alargar o controle social a outros domínios representa riscos para a instituição que os investiga (SOUSA SANTOS, 1996, p. 693). Consoante Lola Aniyar de Castro (1983, p. 68), a cifra negra diminui à medida que aumentam a gravidade e a visibilidade do delito, isto é, ela seria maior em crimes menos ostensivos, como aborto, furtos no comércio, estelionato, roubo de veículos segurados etc. Louk Hulsman (2004, p. 45) discorda da ideia de que a punição é proporcional à gravidade do delito (o correspondente à ideia de que “isto é tão grave que não se pode deixar impune”), pois, na prática, fatos com consequências verdadeiramente desastrosas, como a limpeza étnica na Iugoslávia e na África, quase sempre escapam da punição. Na verdade, crimes cotidianos da realidade brasileira, como a corrupção, produzem consequências mais graves do que a de vários roubos ou furtos somados e permanecem fora da seara de apuração (a chamada “cifra dourada”). Neste sentido, completa Versele (1979, p. 27): Além da cifra negra dos delinquentes que escapa a toda detenção oficial, existe uma cifra dourada de criminosos que detêm o poder político e que o exercem impunemente, lesando os cidadãos e a coletividade em proveito de suas oligarquias, ou que dispõem de um poder econômico que se desenvolve em detrimento da sociedade em seu conjunto.

Observa Seffair (2013, p. 10) que, curiosamente, em nosso país, “desviar milhões de reais de recursos públicos geralmente não implica em outras consequências jurídicas, senão ainda mais status político e admiração

social”. Por outro lado, a intervenção é diferente quando se trata de crimes praticados pelas classes mais baixas: Indivíduos desprovidos de melhor condição econômica, observam silenciosamente este mau exemplo, se armam e se transformam em “inimigos da sociedade” ao assaltar outros seres humanos ou traficar drogas ilícitas em busca de patrimônio a qualquer custo, sendo punidos exemplarmente e jogados ao cárcere, sujeitos às condições impostas pelas facções criminosas que comandam nossos presídios (SEFFAIR, 2013, p. 10).

No tocante à criminalidade legal (condenações) e à aparente (registrada), a diferença entre elas também é considerável, visto que nem todos os casos que chegam ao conhecimento das autoridades recebem sentença condenatória ao final por diferentes razões (por falta de provas, desinteresse, falta de diligência dos funcionários, falta de queixa-crime ou desistência desta, tráfico de influência, porque não se encontrou o autor etc.) (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 69). Além da deficiência na comunicação de crimes (que evidencia a discrepância entre a criminalidade real e a aparente), o hiato entre a criminalidade legal (condenações obtidas) e a aparente (crimes comunicados) também pode estar relacionado à falta de equipamentos e de peritos em número suficiente para a produção de provas confiáveis para lastrear uma condenação (KAHN, 2012, p. 88). Neste espírito, aduz o sociólogo que “uma investigação precária produz uma acusação frágil, que, por sua vez acarreta lentidão judicial e incerteza quanto à condenação ou absolvição do indivíduo, feita geralmente por falta de provas”. Para se ter uma ideia, segundo dados do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)34, durante o ano de 2012, foram recebidos 3.294.394 inquéritos policiais e termos circunstanciados pelo Ministério Público de todos os estados e do Distrito Federal (CNMP, 2013, p. 58-60). Destes, 258.519 foram arquivados no mesmo ano (aproximadamente, 9,3% do número total). Também deste montante, 395.346 foram denunciados (cerca de 18,04% do total). A maior parte dos feitos (72,66%), por conseguinte, ainda depende de alguma apuração policial para decidir sobre o seu desfecho. A pesquisa criminológica para quantificação da cifra negra é bastante complexa. Relata Louk Hulsman (2004, p. 49) que, inicialmente, para terem uma ideia da frequência e da natureza de um crime, os criminólogos trabalhavam com os “dados estatísticos” extraídos das atividades dos

tribunais penais. Entretanto, quando se descobriu que muitos fatos criminosos comunicados à polícia nem sequer chegavam aos tribunais, estes cientistas passaram a atentar mais para as estatísticas da polícia do que para as judiciais. De acordo com o criminólogo holandês (HULSMAN, 2004, p. 49), há algumas décadas, começaram a ser introduzidas as pesquisas de autoconfissão e de vitimização para melhor apuração destes dados. Nas primeiras, pergunta-se a pessoas selecionadas por amostragem qual a frequência em que cometeram atos potencialmente criminosos, em um determinado período, e quantas vezes, após o ato criminoso, se seguiu uma intervenção da justiça criminal. Nas segundas, fazem-se perguntas sobre a ocorrência e as consequências de um evento criminoso. Lola Aniyar de Castro (1983, p. 71) ressalva que, ainda assim, essa metodologia apresenta algumas falhas, como falta de colaboração do público (desabituado a pesquisas, enquetes, etc.); o não preenchimento correto dos dados nos formulários; a existência de delitos que não são confessáveis, nem sob promessa de anonimato e devido ao fato de que as vítimas geralmente só recordam dos delitos mais graves e dos mais recentes. Conclui Hulsman que, o que se sabe, até agora, é que a efetiva criminalização é um fato raro e excepcional (2004, p. 49). Observa o autor (HULSMAN, 2004, p. 50-52) que o fato de estes crimes não serem noticiados não significa que não sejam cotidianamente tratados de modo alternativo, ou seja, de forma não judicial. Estas condutas são enfrentadas de vários modos, sobre os quais não temos muitas informações, mas são relevantes para a determinação da legitimidade da justiça criminal. Isso demonstra que a criminalização não é uma resposta específica aos eventos, mas sim um modo específico de olhar para estes. Neste aspecto, a abordagem restaurativa poderia funcionar como uma alternativa ao modo de tratar tais fatos, em substituição à pena de prisão pura e simples. Estima-se que a taxa nacional de registro de ocorrências (criminalidade aparente) esteja em torno de trinta por cento do total de fatos considerados criminosos (criminalidade real) (KAHN, 2012, p. 88). Boaventura de Sousa Santos considera esta discrepância de 70% entre o registro da criminalidade aparente e a real (cifra negra) muito elevada se comparada aos padrões europeus, americanos ou australianos. Ainda segundo o sociólogo lusitano, o fato de a grande maioria das notícias de crimes permanecer alheia ao

sistema não significa que tenhamos uma “cultura jurídica de pacificação”, mas sim uma “cultura jurídica passiva”. Haveria, em verdade, uma cultura de “fuga à judicialização”, devida, em grande parte, a um juízo negativo da população sobre a adequação das soluções judiciais aos conflitos, aos custos deste sistema e à sua morosidade35 (SOUSA SANTOS, 1996, p. 694). Boventura Sousa Santos (1996, p. 695) observa que esta cultura jurídica cidadã passiva se manifesta não só na omissão em relação à comunicação dos crimes, mas também por meio de uma deficiente interiorização dos direitos conquistados (muitas vezes concebidos como expressões de benevolência estatal); por uma aceitação de que é natural o Estado pactuar com a não aplicação ou má aplicação das leis (prática tolerada pelo Estado porque é promovida por ele mesmo) e por um nível baixo de participação política, em geral. 1.6 Ineficácia dissuasória da pena de prisão Como visto, a prevenção geral da pena, em sua dimensão negativa, pretende dissuadir a prática criminosa mediante a intimidação causada pela imposição de penas mais severas. Muitas políticas criminais do nosso tempo (em verdade, “políticas penais” ou “políticas eleitoreiras”) 36 identificam-se com este modelo37. A opinião pública, estimulada pelos meios de comunicação que potencializam o medo do delito, assume, de forma simplória, a necessidade de um desmedido rigor político-criminal para fazer frente ao crime (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 360)38. Há uma crença no full enforcement, ou seja, uma convicção de que o aumento da pena de um crime seja suficiente para evitá-lo (GARCÍAPABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 489). Esta foi a tônica das últimas reformas penais no Brasil (como a Lei nº 10.972, de 2004, que instituiu o regime disciplinar diferenciado; a Lei nº 12.850, de 2013, que trata das organizações criminosas; a Lei nº 8.072, de 1990, conhecida lei dos crimes hediondos, encampada pela novelista Glória Perez após a morte de sua filha, e a sempre presente proposta de redução da maioridade penal39). Este endurecimento se inspira no movimento norte-americano law and order, que predica o agravamento das penas, criação de novos tipos penais, restrição ou supressão de direitos e garantias fundamentais e uma execução penal rígida (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 495)40.

Geralmente, quanto maior o alarme social, maior a urgência e interesse na produção de novas normas penais. A respeito disso, Alessandro Baratta pondera que a edição de leis de afogadilho contraria o princípio da resposta não-contingente do direito penal. Quer dizer: a lei penal é um ato solene reservado aos problemas sociais fundamentais, gerais e duradouros em uma sociedade e não instrumento de contemplação de situações atípicas ou excepcionais. A sua edição deve compreender um estudo aprofundado, um debate parlamentar exaustivo, acompanhado de ampla discussão pública. A edição de leis penais de emergência, feita mediante o uso emocional ou irracional do direito penal, derroga o caráter de “abstração e a generalidade” da norma introduz o inconveniente de corromper a lógica dos códigos e gera desproporcionalidade entre sanções penais vigentes e as novas (BARATTA, 1987, p. 631). Nos Estados Unidos, o exemplo mais eloquente desta tendência populista na condução da “política penal” é a lei do three strikes and you are out (numa referência à regra do beisebol, segundo a qual um jogador é expulso após cometer a terceira falta). As razões que originaram a three strikes law não são muito distintas das que ensejam mudanças similares na legislação brasileira41. A referida lei impõe a obrigatoriedade da pena de prisão ao ofensor reincidente42 após o cometimento do seu terceiro crime grave ou violento43, como forma de “retirá-lo de circulação” da vida em sociedade. Atualmente, vinte e oito estados americanos adotam uma legislação neste sentido, variando em rigor conforme as especificidades locais44 (LAMANCE, 2013, p. 1). Após intensa campanha publicitária a favor da instituição destas normas em todo o país, constatou-se que elas não traziam os resultados esperados. A prática mostrou que as leis não necessariamente reduziram a criminalidade violenta, no entanto, ao contrário, trouxeram um efeito oposto: houve algumas evidências de que os ofensores, quando da prática do terceiro crime, passaram a agredir mais os policiais, no afã de não serem capturados (WORRALL, 2004, p. 288). Em relação à lei dos three strikes, outras críticas foram feitas, especialmente em virtude da desproporção das penas dos crimes pelos quais o réu é preso. Um condenado por furto, por exemplo, poderia receber uma pena de 25 anos de prisão segundo esta lei, caso fosse o terceiro crime praticado. Entretanto, se ela não estivesse em vigor naquele local, sua pena

de prisão seria de apenas alguns meses45. Além disso, ao considerar os crimes anteriores cometidos pelo réu para a imposição do regime mais gravoso, a lei o pune novamente por tais delitos, ainda que ele já tenha cumprido a pena46. A apreciação judicial dos fatos também restou seriamente comprometida neste sistema, já que os juízes devem aplicar rigorosamente a lei quando do cometimento do terceiro crime, não importando sua convicção sobre a justiça deste cumprimento no caso concreto. A eficácia das leis penais mais severas é contestável, pois o efeito dissuasório da pena encontrar-se-ia mais condicionado pela percepção do ofensor sobre a efetiva imposição do castigo do que pelo quantum da pena em si. O ofensor indeciso valora e analisa com mais acuidade as consequências próximas e imediatas de sua conduta (por exemplo, o risco de ser preso) do que as finais ou definitivas (gravidade da pena cominada pela lei para o delito) (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 361). Mais modernamente, ponderou-se que o efeito dissuasório preventivo talvez estivesse mais associado ao funcionamento do sistema legal (mais do que ao rigor nominal da pena ou à possibilidade de ser pego e processado), ou seja: mais e melhores policiais, mais e melhores juízes, mais e melhores prisões poderiam conferir maior efetividade ao sistema legal e, por conseguinte, prevenir crimes. Entretanto, essa suposta efetividade do castigo significa mais reclusos nas prisões, porém não necessariamente menos delitos (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 363). Segundo Lola Aniyar de Castro (1983, p. 66-67), este tipo de resultado e melhores policiais, mais e melhores juízes, mais e melhores prisões - não é significativo, porque a criminalidade pode permanecer a mesma, havendo apenas uma multiplicação de esforços por parte da polícia e maior eficiência dos tribunais. Ademais, fórmulas repressivas ou intimidatórias são meramente sintomatológicas, policialescas e não cuidam das raízes do problema criminal, prescindindo da sua análise científica. Sobre o efeito destas políticas, observa Rogério Schietti (CRUZ, 2011, p. 63) que a criação de novos crimes e o aumento de penas não resolvem o problema da criminalidade. Quando muito, aliviam a sensação de impunidade e fazem crer que o Estado está intervindo com maior rigor 47. Desta forma, para uma possível política dissuasória e preventiva do crime, devem-se considerar outros fatores, além da duração ou do rigor do

castigo, como a natureza do delito, o tipo de ofensor, o apoio informal que ele possa receber pelo comportamento desviado, a rapidez e imediação da resposta penal, o modo pelo qual a sociedade e o ofensor percebem o castigo (efetividade) etc. (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 361). A justiça restaurativa apresenta potencial para atender satisfatória e simultaneamente a todos esses fins concorrentes, como a segurança pública, a dissuasão, a reabilitação do ofensor — , respondendo às necessidades das vítimas e de prevenção (BRANCHER, 2007, p. 6). Ela preserva todos os recursos enumerados e, ao invés do fortalecimento do controle social do delito, propicia uma melhor sincronização entre controle social formal e informal, como o envolvimento ativo da comunidade, da família e dos que estão em entorno do ofensor (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 363). Claus Roxin (1997, p. 109) vê fortes razões para a inclusão deste tipo de resposta ao conflito como uma “terceira via” do direito penal. Ele sugere que, para fatos puníveis atualmente com multas, ela poderia ser dispensada quando o ressarcimento dos danos se desse por completo e, em caso de crimes mais graves, a reparação deveria resultar em uma atenuação obrigatória de punição ou em até sua remissão. De acordo com o jurista alemão, a pesquisa empírica mostrou que ambos os feridos (autor e vítima) e a comunidade não costumam exigir um castigo adicional ao autor quando ele repara os danos, em casos de crime de pequeno ou médio porte. Para ele, a justiça restaurativa é bem-vinda em favor dos interesses das vítimas, cuja reparação de danos é geralmente frustrada com a prisão do autor. Ressalva o autor que a questão da reparação dos danos não é uma questão meramente jurídico-civil. Se feita de acordo com os princípios restaurativos, por exemplo, ela contribuiria significativamente para a realização das finalidades da punição. Consoante preleciona, isso é possível à medida que se requer que o autor enfrente as consequências de seu ato e conheça os legítimos interesses da vítima. Este enfrentamento tem mais chances de ser reconhecido pelo autor como algo necessário, justo, melhor do que a pena, e pode fomentar o reconhecimento das normas penais, tal como propõe a função de prevenção geral positiva da pena (ROXIN, 1997, p. 109).

1.7 Os números da eficácia invertida da prisão Diante do exposto, o paradigma punitivo atual falha em cumprir sua proposta de reprimir a criminalidade, mas também veremos que ele opera contrariamente à sua função. Como observa Juarez Cirino dos Santos (2005a, p. 5), o sistema carcerário é marcado por uma eficácia invertida, pois “em lugar de reduzir a criminalidade, introduz os condenados em carreiras criminosas, produzindo reincidência e organizando a delinquência”. Um dos fatores para a inoperância e a eficácia invertida da pena de prisão é o número de detentos e a forma como eles se encontram alojados. Conforme dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça (InfoPen), a população carcerária brasileira está estimada em meio milhão de pessoas (mais exatamente 548.003, em dezembro de 2012) 48. Na mesma época, o país possuía apenas 309.074 vagas para seu abrigamento, o que gera uma taxa de ocupação de 77,3% superior à capacidade e um déficit de 238.929 vagas no sistema penitenciário. Portanto, seria necessária a construção de aproximadamente duzentas e quarenta mil acomodações apenas para manter os atuais presos na forma como determina a lei de execução penal, já que as prisões existentes não têm condições de habitabilidade. Na toada da demanda crescente por uma maior criminalização e encarcerização (comum não só no Brasil, mas também em outros países do mundo, conforme já visto), o país ostenta a quarta maior população carcerária mundial em números absolutos, estando atrás apenas dos Estados Unidos (com 2.228.424 pessoas presas), da China (1.701.344 presos) e da Rússia (675.000 reclusos), segundo dados do último relatório anual do Centro Internacional de Estudos Prisionais do King’s College London (LONDON, 2014, p. 1) 49. Em termos percentuais, considerando a população total destes países (China — 1.355.692.576; Rússia — 142.470.272; Estados Unidos — 318.892.103 e Brasil — 202.656.78850), o Brasil também ocupa o quarto lugar, com 0,2% da sua população encarcerada (Estados Unidos, 0,69%; Rússia, 0,47%; Brasil, 0,2% e China, 0,1%), ou seja, uma proporção de 270 pessoas presas para cada cem mil habitantes.

Nos últimos dez anos, o quantitativo da população carcerária mais que dobrou, aumentando de 233.859 (dados de dezembro de 2001) para os atuais 548.003 (dados de dezembro de 2012)51, o que gera um índice de crescimento de 134% (BRASIL, 2009, p. 364). Para se ter uma ideia, o aumento da população brasileira entre os anos 2000 e 2010 (anos em que houve censo demográfico pelo IBGE) foi de 12,48% (de 169.590.693 habitantes em 2000 para 190.755.799 em 2010). Destarte, comparando os índices de crescimento destes períodos (120% X 12,48%), pode-se concluir que o aumento proporcional da população carcerária foi muito maior — dez vezes superior ao da população em geral — ascensão que não veio acompanhada, na mesma intensidade, de políticas públicas ou melhorias para os detentos. O incremento da população carcerária não é um evento exclusivamente brasileiro. Os Estados Unidos, por exemplo, quintuplicaram seus presos nos últimos anos: de 500 mil, em 1980, para 2,2 milhões de presos em 2011, especialmente após a edição da three strikes law. Com suas punições demasiado severas e longas — variando de no mínimo de 25 anos até a prisão perpétua, sem permitir, muitas vezes, a liberdade condicional — a população carcerária norte-americana aumentou drasticamente. Não existem dados ou informações precisas sobre o custo de todo este encarceramento, em especial o dispendido com a manutenção de cada preso. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema Carcerário, após diligências a cada uma das penitenciárias do país, entre os anos de 2007 e 2009, estimou que cada nova vaga no sistema custa aos cofres públicos cerca de R$ 22.000,00 por ano (BRASIL, 2009, p. 363). Este valor é apenas prognosticado, já que há grande disparidade nos gastos informados por cada estado, com variações entre R$ 500,00 (Amapá) e R$ 1.700,00 (Minas Gerais) por mês. A oscilação se deve, principalmente, à diferença do valor pago nas contratações de serviços como alimentação, remuneração de agentes de segurança etc. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), a média mensal nacional de custo de cada preso em presídios comuns é de R$ 1.300,00 e, nos de segurança máxima, de R$ 4.500,00 (BRASIL, 2009, p. 364). Cabe, aqui, ressalvar que os gastos efetuados com a manutenção do preso ou da prisão não correspondem ao custo do delito para a sociedade. Anota Lola Aniyar de Castro (1983, p. 48) que as despesas com a execução da lei

(número de forças policiais), tratamento (cárcere, colônias penais, manicômios judiciais, estabelecimentos para menores de idade) e administração da justiça (juízes, promotores, servidores, etc.) são apenas as mais aparentes. Há outros custos do crime, como o da repressão; o da investigação (estudos científicos, DNA, perícia); o da prevenção (pública e privada, como investimento em sistemas de alarme, segurança, caixa forte, despesas para as companhias de seguro, empresas privadas etc.); o dos danos causados (dos bens, da lesão ou do sofrimento da vítima, individual ou coletiva, pública ou privada); o do lucro cessante (como despesa médica, ônus à economia pelo decréscimo na produtividade); o do custo social (a manutenção das famílias dos detentos, ajuda às vítimas, etc.) e outros não estimáveis facilmente do ponto de vista econômico). A criminóloga venezuelana ressalta especialmente o custo dos chamados “crimes do colarinho branco”, que supera, em muitas vezes, o somatório de todos os furtos e roubos do país, pois “altera a qualidade de vida, obriga a frequentes gastos com reparações, limita as entradas de impostos, traz em si a ruína de pequenas empresas, aumenta o custo de vida e implica, além disso, um alto custo moral, tomando-se em conta que os autores desses fatos, geralmente são os lideres da comunidade” (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 48). Segundo o Banco Mundial, os países latino-americanos dispendem cerca de oito por cento do seu Produto Interno Bruto (PIB) no combate ao crime e à violência, incluindo a segurança dos cidadãos, os processos judiciais e os gastos com saúde52. Esta despesa enfraquece o crescimento econômico não apenas por salários perdidos, mas porque desvia o investimento de recursos públicos já escassos para o sistema penal judiciário, em vez de promover a atividade econômica. O custo da manutenção do arranjo prisional é um dos principais argumentos que tem levado legisladores e formuladores de políticas públicas a reconsiderarem o mérito do atual sistema punitivo, especialmente porque o gasto implica cortes em outras áreas de investimento que poderiam funcionar como polos de inclusão (políticas sociais de educação, saúde, cultura, trabalho, assistência social) (UMBREIT, 2007, p. 1). Quer dizer, a população estaria custeando um sistema que, ao invés de “recuperar” os detentos, torna-os piores, além de deixar de atuar preventivamente, o que seria menos custoso e doloroso.

O eleitorado americano, por exemplo, costumeiro entusiasta quanto a programas de “guerra contra o crime”, não acolheu com simpatia os custos carcerários desses programas. A aplicação da three strikes law teve um impacto significativo, com o gasto médio de manutenção do preso encarcerado de vinte e cinco mil dólares por ano (HEYER, 2011, p. 1229). Isso porque a longevidade das penas de prisão acarreta o envelhecimento da população carcerária, provocando um aumento nos gastos decorrentes não só do prolongamento temporal, mas também com os cuidados médicos próprios da senilidade. Além disso, muitos detentos idosos não precisariam mais de contenção, mas o rigor legal impõe a sua permanência, fato que eleva os custos e diminui a disponibilidade de vagas para os que realmente precisam de repressão. Esta despesa foi bastante criticada pela população norteamericana, que reivindicou o uso do orçamento para outros fins, tais como construção de escolas ou de programas de reabilitação para os próprios detentos53. Ainda numa perspectiva utilitarista, percebe-se que tamanho investimento no encarceramento não corresponde necessariamente a uma diminuição do número de crimes. No Brasil, no período que compreende os anos de 1998 e 2008, o número total de homicídios registrados pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM) passou de 41.950 para 50.113, o que representou um incremento de 17,8%, índice superior ao crescimento populacional do período, estimado oficialmente em 17,2%. (BRASIL, 2011, p. 21). Segundo o estudo “Mapa da Violência 2011”, feito pelo Ministério da Justiça (BRASIL, 2011, p. 24), o número de mortes violentas no país no período excede, com folga, o de vários conflitos armados registrados no mundo54. Outro dado que atesta o colapso do paradigma punitivo é o número de mandados de prisão que aguardam cumprimento. Quando da implantação do “Banco Nacional de Mandados de Prisão”, o CNJ apurou a existência de 500 mil ordens de prisão a serem cumpridas em dezessete estados brasileiros e no Distrito Federal, de acordo com informações enviadas pelos Tribunais de Justiça destes estados55. Atualmente, este número é de 390.653 mandados não cumpridos56. Face à superlotação constatada, verifica-se que o sistema penitenciário estaria completamente inviabilizado se as determinações do paradigma punitivo fossem realmente observadas e o Estado cumprisse suas ordens judiciais.

Com o déficit existente de cerca de 200 mil vagas e mais de 390 mil mandados judiciais por cumprir, é forçoso admitir que o sistema entrou em colapso e exige a revisão da política criminal e penitenciária atual. Nem mesmo as soluções mais populares, como a construção de mais presídios, por exemplo, seriam capazes de resolver satisfatoriamente o nó górdio a que chegou a questão57. Acerca da ruína desse arranjo, Maria Lúcia Karam (2004, p. 92) observa que, “se, em algum momento, o sistema de justiça penal tivesse que ser julgado sob uma ótica de produtividade — como tendem a fazer alguns tecnocratas retóricos que falam de ‘justiça-empresa’ — a falência já teria sido, há tempos, inexoravelmente declarada”. 2 A expressão “ressocializar” foi utilizada entre aspas a fim de pontuar nossa discordância com o termo (em que pese ser o utilizado pela legislação), nos moldes do pensamento de Foucault (2008, p. 183), que rechaça expedientes de qualquer natureza que, a pretexto de educação ou tratamento, visem disciplinar ou mecanizar o sujeito (tornando-o “corpo dócil”). No mesmo sentido, a criminologia crítica, que propõe a substituição semântica de “ressocialização” por “reintegração social”, deslocando a atenção do condenado para a relação sujeito/comunidade (CIRINO DOS SANTOS, 2005b, p. 6). 3 A respeito da relação entre poder e seletividade dos crimes, Boaventura de Sousa Santos (1996, p. 38) ressalta que “um poder político concentrado, tradicionalmente assente numa pequena classe política de extracção oligárquica, soube ao longo dos anos criar imunidades jurídicas e fácticas que redundaram na impunidade geral dos crimes cometidos no exercício de funções políticas. Esta prática transformou-se na pedra angular de uma cultura jurídica autoritária nos termos da qual só é possível condenar ‘para baixo’ (os crimes das classes populares) e nunca ‘para cima’ (os crimes dos poderosos).” Ressalta o sociólogo lusitano que o desempenho dos tribunais é também muito seletivo e acentua essas assimetrias. No domínio da justiça penal, por exemplo, há uma disponibilidade geral das Cortes para a judicialização de um número relativamente restrito de tipos de crimes e também no tipo de litigantes, quais sejam, dos mais pobres (1996, p. 687). 4 No mesmo diapasão, Zaffaroni (2003, p. 99), para quem “a legitimação do poder punitivo é, portanto, simultaneamente, legitimação de componentes do Estado de polícia e atua em detrimento do Estado de direito”. 5 Juíza aposentada, membro do IBCCrim — Instituto Brasileiro de Ciências Criminais — e da “Associação de Juízes para a Democracia”, entre outros organismos. 6 Por “justiça criminal” entende-se aqui como “uma forma específica de interação de uma gama de agentes: a lei, a polícia, os tribunais, a prisão (produtos da criminalização secundária)” (HULSMAN, 1993, p. 121) 7 Neste mesmo sentido, é a teoria do “realismo marginal jurídico-penal”, de Eugenio Raúl Zaffaroni. Diz-se realista, porque reconhece o atuar real e irracional das agências punitivas e a deslegitimação do poder de punir, já que as penas criminais não podem ser juridicamente fundamentadas, senão segundo o seu sentido político (teoria agnóstica da pena) (BATISTA, s/d, p. 6). 8 No mesmo sentido, temos a constatação de Louk Hulsman (2004, p. 43): “Dentro do conceito de criminalidade, encontramos variadas situações, ligadas entre si. Em sua maior parte, têm propriedades diversas e nenhum denominador comum: violência na família, violência em um contexto

anônimo das ruas, arrombamentos, diversas formas de receber mercadorias ilegalmente, diferentes condutas no trânsito, a poluição do ambiente, algumas modalidades de atividade política. Não se pode identificar qualquer estrutura comum, quer na motivação de quem está implicado em tais fatos, quer na natureza de suas consequências, quer nas possibilidades de enfrentá-los (seja em um sentido preventivo, seja no sentido de controle do conflito). Tudo o que estes fatos têm em comum é que o sistema de justiça criminal está autorizado a intervir contra eles. Alguns destes eventos causam um sofrimento significativo a quem está diretamente envolvido, geralmente prejudicando tanto o autor quanto a vítima. Consideremos, por exemplo, os acidentes de trânsito e a violência na família”. 9 Promotora de justiça e pesquisadora, autora da dissertação de Mestrado em Direito (Universidade de Brasília), “Flagrante e prisão provisória na criminalização de furto: da presunção de inocência à antecipação de pena”, 2006. Disponível em: http://repositorio.bce.unb.br/handle/10482/5179. Acesso: em 30 dez. 13. 10 Para Boaventura de Sousa Santos (1996, p. 687), o aumento da criminalidade contra bens patrimoniais nos últimos anos estaria relacionado à toxicodependência. 11 Conforme texto definitivo e oficial do anteprojeto (Projeto de Lei do Senado nº 236, de 2012) acessado no sítio do Senado Federal. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=106404. Acesso: em 6 fev. 2013. 12 Entrevista do relator da comissão, o procurador da República Luiz Carlos Gonçalves em junho de 2012. Disponível em: http://noticias.bol.uol.com.br/brasil/2012/06/28/nao-teve-assunto-tabu-dizrelator-sobre-reforma-do-codigo-penal.jhtm. Acesso: em 5 fev. 13. 13 Professor livre-docente coordenador do núcleo de sociologia da PUC-SP. 14 Consoante Túlio Kahn (2012, p. 87), sociólogo e ex-chefe da Coordenadoria de Análise e Planejamento (CAP) da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, em países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, haveria maior propensão para a prática de crimes, sejam eles associados à pobreza e à desigualdade social, como os crimes contra a pessoa (homicídio, lesões etc.) ou associados à riqueza, como os crimes patrimoniais (roubos e furtos). Os crimes contra a pessoa normalmente ocorrem na periferia das grandes cidades, onde há elevado consumo de droga e álcool, poucas opções de lazer, disponibilidade de armas e uma cultura de violência para a resolução de conflitos. Em relação aos crimes patrimoniais, o aumento da renda e do emprego implica não só maiores opções de ganhos “dentro da lei”, mas também maior disponibilidade de bens subtraíveis (celulares, automóveis etc.), em especial quando o crescimento econômico é acelerado e desigual, como no caso brasileiro. A realidade econômica e social brasileira seria, portanto, terreno fértil para a prática de ambos os tipos de crimes, patrimoniais e contra a pessoa, justamente por congregar fatores desfavoráveis tão distintos, como, por exemplo, crescimento rápido e desorganizado, grande oferta de bens, desigualdade social e baixa expectativa de punição. Assim, tornam-se cada vez mais necessárias alternativas criativas e multipontuais para se reverter tais estatísticas (KAHN, 2012, p. 87). 15 A despeito de sua opinião cética, o professor da universidade de Coimbra reconhece que, em anos mais recentes, tem se multiplicado os sinais de um ativismo dos tribunais no combate à criminalidade organizada, à corrupção da classe política e até dentro do próprio sistema judicial, o que explica as dificuldades dos tribunais de exercerem o controle penal nestes domínios (SOUSA SANTOS, 1996, p. 39). 16 Conforme o jurista italiano, esta cifra engloba: “a) os inocentes reconhecidos por sentença absolutória, após terem se sujeitado ao processo e, não poucas vezes, ao encarceramento preventivo; b) os inocentes condenados com sentença definitiva e posteriormente absolvidos em grau de revisão criminal; c) as vítimas dos erros judiciários não reparados, cujo número restará sempre ignorado (verdadeira cifra negra da injustiça)” (FERRAJOLI, 2010, p. 196).

17 Assistente social clínico americano, Jerome Miller é considerado uma autoridade em reforma de sistemas penais juvenis e de adultos. Defensor de alternativas ao encarceramento, ele liderou o fechamento de vários reformatórios juvenis em Massachusetts no início de 1970. 18 Neste trabalho utilizaremos o termo “ofensor” para nos referimos à “pessoa objeto da intervenção penal”, pois como ressalta Maíra Rocha Machado (2005, p. 80), expressões como “delinquente” ou “criminoso” dão a entender uma distinção entre pessoas boas e más, “entre eles e nós”, o que contraria o escopo deste trabalho. Ademais, como assevera a autora, “o que parece ser uma simples questão de linguagem relaciona-se muito estreitamente às escolhas do aplicador do direito e do pesquisador”. 19 Sobre a reparação no sistema atual, assinala Louk Hulsman (1993, p. 121): “A criminalização é um serviço cujos “clientes potenciais” (as vítimas) não querem comprar. O que elas normalmente querem é proteção e reparação. Estes são produtos que a justiça criminal não vende (...).” 20 A crítica neste trabalho se limita às duas funções mais tradicionais da pena, não se ignorando a existência de outras finalidades, como a de expiação, de emenda e de defesa social. 21 A respeito do caráter retributivo da pena, aduz o professor paranaense: “A pena como compensação ou retribuição atualiza o impulso de vingança, tão velho quanto o mundo. A psicologia popular parece explicar essa sobrevivência, aparentemente regida pelo talião: olho por olho, dente por dente. Mas a determinação é social, não biológica: na base da psicologia do povo está a tradição religiosa judaicocristã ocidental, que sustenta uma imagem retributivo-vingativa da justiça divina” (CIRINO DOS SANTOS, 2013a, p. 2). 22 Salo Carvalho faz a seguinte ressalva: “O modelo penalógico de Kant é estruturado na premissa básica de que a pena não pode ter jamais a finalidade de melhorar ou corrigir o homem, ou seja, o fim utilitário ilegítimo. Se o direito utilizasse a pena como instrumento de dissuasão, acabaria por mediatizar o homem, tornando-o imoral. Logo, a penalidade teria como thelos a imposição de um mal decorrente da violação do dever jurídico, encontrando neste mal (violação do direito) sua devida proporção. Muito embora utilize critérios de medida e proporção da pena, Kant rememorará modelos primitivos de vingança privada. A teoria absoluta da pena sob o viés kantiano recupera o principio taliônico, encobrindo-o, no entanto, pelos pressupostos de civilidade e legalidade” (CARVALHO, 2003, p. 122). 23 “Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as acções das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática” (KANT, 1785, p. 47). 24 No original: “El mismo nombre de ‘pena’ indica un sufrimiento, pero sufrimiento hay en casi todas las sanciones jurídicas: sufrimos cuando nos embargan la casa, cuando nos cobran un interés punitorio, nos anulan un proceso, nos ponen en cuarentena, nos llevan por la fuerza a declarar como testigos etc. Ninguno de estos sufrimientos se llama ‘pena’, porque tienen un sentido, es decir, conforme a modelos abstractos todos sirven para resolver algún conflicto. La pena, en lugar, como sufrimiento huérfano de racionalidad, hace varios siglos que busca un sentido y no lo encuentra, sencillamente porque no lo tiene, más que como manifestación de poder” (ZAFFARONI, 1991a, p. 210). 25 A teoria do just deserts (no sentido de “apenas o merecido”) defende que a punição deve ser proporcional à gravidade da infração cometida. 26 Louk Hulsman (1993, p. 124) ilustra a situação da vítima no atual sistema de justiça criminal da seguinte forma: “O código criminal e outras legislações penais contêm muitas “incriminações”; eles são como “caixas” prontas que podem receber a realidade de fora recortada e simplificada para adequá-la à prefiguração da caixa (...). No caso da justiça criminal, a vítima não pode escolher a caixa. Isto é feito pelo policial e pelo promotor público principalmente de acordo com os hábitos e as práticas em uso na organização. Essas escolhas podem ter importantes consequências para a

possibilidade de prisão do suposto criminoso e muitos outros efeitos no procedimento judicial. Se o acusado é condenado, a vítima não tem influencia na escolha e na execução da sentença”. 27 A ideia de dissuasão remete à teoria da coação psicológica ou da intimidação proposta por Feuerbach no século XVIII, para quem a ameaça de punição legal é um fator decisivo para o indivíduo com tendências antissociais que, antes de praticar uma conduta criminosa sopesaria racionalmente as vantagens esperadas, frente ao risco de ser punido. A teoria de Feuerbach foi contestada pelo seu contemporâneo Beccaria, para quem a prática criminosa não é desestimulada pela gravidade da pena, mas pela certeza ou probabilidade da punição (CIRINO DOS SANTOS, 2013c, p. 6). Mais contemporaneamente, Gary S. Becker, economista e ganhador do prêmio Nobel em 1992, dedicou-se, entre outros assuntos, ao cálculo dos benefícios de uma ação criminosa, tendo em conta a probabilidade de alguém ser identificado e punido (análise econômica do delito). Assim, segundo o professor americano, em países onde a punição é falha, faria mais sentido optar-se pelo crime. 28 Por exemplo: homicídio (“art. 121 do Código Penal: Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos”; corrupção passiva (art. 317), “Pena — reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.”, etc. 29 Na sua clássica obra Dos delitos e das penas, tão jurídica quanto filosófica, e marcante para o direito penal, o autor observa: “Não é o rigor do suplício que previne os crimes com mais segurança, mas a certeza do castigo, o zelo vigilante do magistrado e essa severidade inflexível que só é uma virtude no juiz quando as leis são brandas. A perspectiva de um castigo moderado, mas inevitável causará sempre uma forte impressão mais forte do que o vago temor de um suplício terrível, em relação ao qual se apresenta alguma esperança de impunidade” (BECCARIA, 1764, p. 113). Aduz ainda o fidalgo a necessidade de observância da proporcionalidade da pena, para que não constitua uma agressão: “É que, para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser essencialmente pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei.” (BECCARIA, 1764, p. 201) 30 O penalista alemão apresentou esta teoria em 2004, no clássico artigo Bürgerstrafrecht und Feindstrafrecht (direito penal do cidadão e direito penal do inimigo). Disponível em: http://www.hrrstrafrecht.de/hrr/archiv/04-03/index.php3?seite=6. Acesso em: 5 jan. 14. 31 Jackobs não pressupõe que os cidadãos não cometam crimes. Entretanto, explica Juarez Cirino dos Santos (2012a, p. 5), o cidadão seria autor de crimes “normais” e preservariam uma atitude de fidelidade jurídica intrínseca, sendo capazes de manter as expectativas normativas da comunidade sem desafiar o sistema social. Já o inimigo seria autor de “crimes de alta traição”, que assume uma atitude de insubordinação jurídica intrínseca, capaz de produzir um estado de guerra contra a sociedade e perderia a qualidade de pessoa portadora de direitos, porque desafia o sistema social. 32 A tese apontada pelo autor corresponde à da criminologia crítica, detalhada na seção 4.4, a qual denuncia o fracasso histórico do sistema penal no cumprimento dos seus objetivos ideológicos (funções aparentes ou declaradas) e identifica o êxito histórico do sistema punitivo no cumprimento dos seus objetivos reais (funções ocultas), na medida em que funciona como aparelho de garantia e de reprodução do poder social (CIRINO DOS SANTOS, 2005b, p. 5). 33 Há algumas iniciativas que visam estimular a comunicação de crimes que são dignas de nota, como o registro de boletins de ocorrência via internet, para crimes cometidos sem violência, como é feito no Distrito Federal. Túlio Kahn observa que “este tipo de informação é fundamental para o mapeamento do crime e a melhoria da eficiência do trabalho policial” (KAHN, 2012, p. 88). 34 Dados divulgados na publicação “Ministério Público — Um Retrato” que apresenta informações relativas ao ano de 2012, enviadas por todas as unidades dos Ministérios Públicos ao CNMP até 31 de março de 2013. Disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Noticias/2013/Arquivos/ANUARIO_UM_RETRATO _Completo_Final_17_06_2013.pdf. Acesso em: 31 dez. 13.

35 No tocante à morosidade, Sousa Santos relata que, muitas vezes, é difícil definir as fronteiras entre o que é negligência e o que é a duração dos processos resultantes de outras causas, como o volume de trabalho e a acumulação de processos. Neste rumo, o professor da Universidade de Coimbra identificou dois tipos de morosidades sistêmicas: a endógena ao sistema e a funcional (que serviria os interesses de ambas ou de uma das partes implicadas). A primeira delas seria inerente ao próprio sistema processual e seria devida à necessidade de existirem prazos para que as partes possam exercer ponderadamente os seus direitos processuais com observância do contraditório, para que os magistrados possam proferir suas decisões com reflexão e para que os funcionários possam cumprir, sem atropelos, as tarefas que lhes são confiadas. Já a segunda (morosidade funcional) radica no funcionamento obsoleto dos serviços dos tribunais, como o mau aproveitamento (ou carência) dos recursos humanos; a não utilização de meios materiais que permitiriam uma maior rentabilização daqueles ou, ainda, a rotina há muitos anos neles instalada (SOUSA SANTOS, 1996, p. 431). 36 O termo “política penal” é empregado no sentido dado por Alessandro Baratta (2002, p. 201), ou seja, de “resposta à questão criminal circunscrita ao âmbito do exercício da função punitiva do Estado”. Difere de “política criminal”, mais genérico, para se referir ao “programa do Estado para controlar a criminalidade” (CIRINO DOS SANTOS, 2013b, p. 1). 37 Observa Seffair (2013, p. 2) que a violência sempre foi uma preocupação dos indivíduos e gera uma demanda da sociedade por medidas intensivas de segurança pública. Não existe plataforma de governo que não contemple ações no âmbito da segurança, sendo um dos mais relevantes elementos de prestação de serviços públicos realizados pelo Estado, confundindo-se até mesmo com a justificação da própria existência deste. Historicamente, no Brasil, as políticas públicas de segurança estiveram voltadas para a repressão, como a compra de armas, viaturas, construção de presídios etc. As ações de segurança pública eram associadas à atuação da polícia e se restringiam à contenção social e ao uso da força. Como observa Souza (2011, p. 1), nas lacunas deixadas pela ausência de políticas de segurança mais completas, que promovessem a cidadania, o protagonismo coube às corporações policiais livres para decidir sua forma de atuação. Em segundo plano, houve ações como investimento no treinamento policial, desarmamento da população em geral e controle de armas, amadurecimento de programas de proteção a testemunhas, melhorias no sistema prisional, reforma na legislação penal, controle de venda e uso de bebidas alcoólicas, etc. (LIMA, 2010, p. 1). Ainda segundo o autor (SEFFAIR, 2013, p. 5), o Brasil tem sido prodigioso em converter programas de segurança pública em meios de promoção publicitária de governos. Findos estes, as estratégias de segurança são abandonadas, pois o próximo governante não quer conviver com a herança política do antecessor, restando ao Ministério Público e ao Judiciário arrumar um meio de atuar diante de “resíduos”, como o número elevado de processos e o aprofundamento da complexidade da violência. 38 A esse respeito, observa Gary LaFree (2002, p. 879) que, mesmo nos Estados Unidos, que possuem o sistema mais austero e punitivo do mundo, muitos americanos — entre eles políticos e notoriedades da mídia — afirmam que a maioria dos “criminosos” recebem apenas um “tapinha na mão” (a slap on the wrist). No Canadá e nos Estados Unidos, para se ganhar a aprovação dos eleitores, a fórmula eleitoreira encontrada pelos políticos foi propor reduções bruscas no orçamento do governo, mas aumentos significativos nos gastos com policiamento e prisões. 39 No Brasil, o esforço mais conhecido pela aprovação da redução da maioridade penal de dezoito para dezesseis anos foi o de Ari Friedenbach, pai de Liana Friedenbach, estuprada, torturada e morta aos dezesseis anos de idade, juntamente com seu namorado Felipe Caffé (dezenove anos) por um imputável e um menor de idade, conhecido como “Champinha”. Com a causa da redução da maioridade penal, Ari foi eleito vereador em 2012 em São Paulo. Atualmente, afirma ser contra a proposta. 40 Segundo o criminólogo espanhol, “o maior problema da justiça criminal brasileira não é a ausência de

leis duras (já as temos), mas o não cumprimento das leis vigentes” (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 489). 41 Em junho de 1992, a jovem Kimber Reynolds, de dezoito anos, foi abordada por dois homens ao sair de um restaurante local. Os autores, ao lhe tomarem a bolsa, efetuaram, com uma pistola 357 magnum, um disparo na sua cabeça. A jovem morreu 26 horas depois do ataque. Seu pai, Mike Reynolds, prometeu “que faria qualquer coisa para evitar que isso acontecesse a outras crianças” (“I promised her that if I could do anything to prevent this from happening to other kids, I would do everything I could”). Os responsáveis pela morte dela eram reincidentes, o que motivou Mike Reynolds a encabeçar a jornada pela aprovação da three strikes law. A campanha ganhou reforço dezoito meses após a morte de Kimber Reynolds, quando a adolescente Polly Klaas, de doze anos de idade, foi sequestrada, estuprada e assassinada por Richard Allen Davis, também reincidente (HEYER, 2011, p. 1220-1221). Consoante David Greenberg (2004, p. 243), professor de sociologia da universidade de Nova Iorque, a austera lei norte-americana three strikes and you are out ganhou o apoio de muitos grupos de interesses e, em especial, de um governador impopular, Pete Wilson, que a usou buscando revitalizar sua campanha. Segundo Gary LaFree (2002, p. 877), professor do departamento de criminologia e justiça criminal da universidade de Maryland, estas leis populistas podem causar punição excessiva e dificuldades de controle pelo Estado. 42 Ofensor reincidente ou “criminoso habitual” (persistent ofender), como a ele se refere a legislação de alguns estados (especialmente Connecticut e Kansas). 43 Os crimes violentos e graves são arrolados nas leis estaduais americanas e geralmente incluem homicídio doloso (murder), roubo com emprego de arma, estupro e outros crimes sexuais, roubo a residência (burglary) e agressão com a intenção de cometer um roubo ou assassinato (assault) (HEYER, 2011, p. 1232). 44 A primeira three strikes law foi aprovada em 1993, em Washington. Na Califórnia, a lei decorreu de iniciativa popular e foi aprovada por uma maioria de 72% de votos a favor e 28% contra. Massachusetts foi o último estado a aprovar a three strikes law, acompanhando Arizona, Arkansas, California, Colorado, Connecticut, Florida, Georgia, Indiana, Kansas, Louisiana, Maryland, Massachusetts, Montana, Nevada, New Hampshire, New Jersey, New Mexico, North Carolina, North Dakota, Pennsylvania, South Carolina, Tennessee, Texas, Utah, Vermont, Virginia, Washington e Wisconsin. Alguns destes aplicam a lei já para o segundo crime violento. New Hampshire é o que aplica a lei de forma mais branda, com pena máxima de prisão de 30 anos para a terceira condenação criminal (LAMANCE, 2013, p. 1). 45 O propósito inicial era aplicar a lei apenas para crimes violentos. Entretanto, há estados como a Califórnia em que não se exigia que o terceiro strike fosse grave ou violento, fazendo com que as pessoas fossem encaminhadas à prisão perpétua por sanções menores, inclusive contravenções penais (misdemeanor). É o caso de subtração de valores inferiores a quatrocentos dólares em propriedades, como o furto de três tacos de golfe de uma loja (Ewing x Califórnia 538 U.S. 11, 2003) ou o furto de uma fatia de pizza de pepperoni de um grupo de crianças (People v Williams, Cr No. YA 020612-01.). Ambos os autores ostentavam condenações anteriores por roubo, mesmo já tendo cumprido pena de prisão por elas. Casos disponíveis em: http://supreme.justia.com/cases/federal/us/538/11/case.html e http://www.threestrikes.org/calaw01.html. Acesso em: 1º out. 13. 46 A Califórnia tem mais crimes que se enquadram na categoria de “graves” ou “violentos” do que outros estados. Computam-se no número de três faltas os delitos cometidos durante a menoridade penal. A lei californiana também não leva em conta o tempo decorrido entre os crimes, de forma que os crimes anteriores são incluídos na contagem, mesmo se praticados muitos anos antes. Por fim, o estado lidera o ranking nacional de sentenças sob a lei three strikes, com mais de 90% de todas as

sentenças impostas. 47 O aspecto sintomático desta situação foi a redução significativa do número de encarcerados em virtude da three strikes law nos EUA. A depender do ponto de vista, a lei pode ser considerada um sucesso ou um fracasso. Apenas no ano de 1996, 1.700 sentenças de prisão perpétua foram impostas nos 58 condados da Califórnia, com base na lei three strikes. Entre 2008-2010, esse número caiu para menos de 200 por ano. No condado de Sacramento, foram 94 sentenças no ano de 1996. Este número caiu para 16 em 2010. Para o procurador (district attorney) de Sacramento, Jan Scully, a razão da queda nestes números não é o reconhecimento paulatino do fracasso da lei, mas o contrário, o seu sucesso absoluto, já que todos os ofensores reincidentes se encontrariam encarcerados (no original: “not just in Sacramento but across the state, we’ve put away people on three strikes and they aren’t now in our communities”. Informação disponível em: http://ballotpedia.org/wiki/index.php/California_Proposition_184,_the_Three_Strikes_Initiative_(1994 ). Acesso em: 2 out. 13. 48 Disponível em: http://portal.mj.gov.br/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp? DocumentID={BFF5E35A-C0E2-4F02-BEF9-92DC225F5998}&ServiceInstUID={4AB016227C49-420B-9F76-15A4137F1CCD}. Acesso em: 4 fev. 13. 49 Disponível em: http://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison-population-total? field_region_taxonomy_tid=All&=Apply. Acesso em: 10 ago. 14. 50 Fonte: CIA — Central Intelligence Agency. The world factbook. Disponível em: https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/. Acesso em: 10 ago. 14. No caso brasileiro, consideramos a população carcerária e a total referentes ao ano de 2010, consoante os dados fornecidos pelo INFOPen e IBGE para este ano. Disponíveis em: InfoPen: http://portal.mj.gov.br/services/DocumentManagement/FileDownload.EZTSvc.asp?DocumentID= {9388597E-6809-4EF0-AAF6-D328D8E3B388}&ServiceInstUID={4AB01622-7C49-420B-9F7615A4137F1CCD} e IBGE: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm. Acesso em: 15 fev. 13. 51 Idem, ibidem. 52 Fonte: http://siteresources.worldbank.org/INTLAC/Resources/FINAL_VOLUME_I_SPANISH_CrimeAn dViolence.pdf 53 Constatações como estas motivaram, no ano de 2012, a aprovação da “Proposição 36” pelos eleitores californianos, que instituiu uma série de temperamentos ao rigor da lei three strikes: imposição da pena de prisão perpétua somente quando a nova condenação criminal for “grave ou violenta”; revisão das sentenças de prisão perpétua anteriormente aplicadas fora deste critério (que beneficiou cerca de 3.000 condenados, cuja terceira falta era um crime não-violento) e a substituição da pena de vinte e cinco anos de prisão ou prisão perpétua por tratamento, para o caso de reiteração de posse de drogas para uso próprio. (Informação disponível no guia de informação oficial ao eleitor do governo californiano: http://voterguide.sos.ca.gov/propositions/36/. Acesso em: 2 out. 13). 54 São eles, por exemplo: guerrilha colombiana (1964-2000; 45.000 mortes); disputa territorial entre Armênia e Azerbaijão (1988-1994, 30.000 mortes); guerra civil na Nicarágua (1972-1979, 30.000 mortes); guerra do Golfo (1990-1991, 10.000 mortes); guerra civil em Sri Lanka (1978-2000, 50.000 mortes); o movimento emancipatório/étnico da Chechênia (1994-1996, 50.000 mortes) entre outros. Fonte: UNESCO. Mortes matadas por arma de fogo no Brasil 1979-2003, p. 19. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001399/139949por.pdf. Acesso em: 4 fev 13. 55 Obviamente, muitas destas se referem a um mesmo ofensor, contra o qual pode haver várias ordens de captura. Além disso, é possível que muitas delas não estejam mais válidas, pela prescrição da pena ou pela morte do acusado, por exemplo. Dessa forma, não é possível saber com exatidão a quantos ofensores se refere esta quantidade de mandados.

56 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/bnmp/. Acesso: em 10 ago. 2014. 57 Maria Lúcia Karam (2004, p. 91) acrescenta que a ineficácia operacional do sistema penal demonstrada pelos números citados é intencional. Segundo ela, a excepcionalidade de sua intervenção é condição de sua própria existência. A impunidade não ocorreria apenas por questões conjunturais ou por deficiências operacionais. A ideia é fazer com que as condenações dos identificados como “criminosos”, diante do “grande número de crimes que diuturnamente ocorrem”, sejam cumpridas com maior rigor. Destarte, o objetivo do sistema não seria alcançar todos os responsáveis pela prática das condutas criminalizadas, mas atuar excepcionalmente e com rigor sobre os selecionados.

CAPÍTULO II

OS DEPÓSITOS DE PRESOS COMO FATOR CRIMINÓGENO A MORTE DOS IDEAIS DE “RESSOCIALIZAÇÃO”?

Observa Lola Aniyar de Castro (1983, p. 187) que a pena privativa de liberdade substituiu as penas corporais e capitais e, no lugar de suplícios, surgiram as casas de correção e detenção. Supostamente, a humanidade deveria substituir a crueldade das penas, mas não é o que ocorre dadas as condições de acondicionamento dos presos58. Sobre estas condições, emblemática exposição de motivos do relatório final da CPI do Sistema Carcerário, na qual relata as razões para a sua criação: As constantes rebeliões, a violência entre encarcerados, com corpos mutilados; os óbitos não explicados no interior dos estabelecimentos; denúncias de torturas e maustratos; presas vítimas de abusos sexuais; crianças encarceradas; corrupção de agentes públicos; superlotação; reincidência elevada; organizações criminosas controlando a massa carcerária; custos elevados de manutenção de presos; falta de assistência jurídica e descumprimento da Lei de Execução Penal motivaram o Deputado Domingos Dutra a requerer a criação da CPI sobre o sistema carcerário brasileiro (BRASIL, 2009, p. 41).

A realidade prisional do Brasil viola frontalmente a normativa internacional, tornando quimérica a sua aplicação prática. As “Regras Mínimas da ONU para o Tratamento de Prisioneiros” (ONU, 1955) prescrevem exigências mínimas para um tratamento digno dos presos e para os locais a eles destinados. Entre elas, está a exigência de que satisfaçam as condições de higiene, o volume de ar, o espaço mínimo, a iluminação, o aquecimento e a ventilação; que as janelas sejam suficientemente grandes para que os presos possam ler e trabalhar com luz natural e ar fresco; que a luz artificial seja suficiente para os presos poderem ler ou trabalhar sem prejudicar a visão; que todos os locais sejam mantidos e conservados escrupulosamente limpos (ONU, 1955). No Brasil, essas condições estão longe de serem cumpridas. A Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário identificou numa

penitenciária no Piauí a seguinte situação: “além de paredes encardidas pela sujeira e pelo tempo, não havia luz nos corredores e nas celas. Quando a CPI retornou no meio da noite, para refazer a diligência, os Deputados usaram lanternas e isqueiros para iluminar o local” (BRASIL, 2009, p. 269). Em São Paulo, a CPI encontrou numa cela do “castigo”, no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, dez homens que esperavam transferência. No local não havia nem entrada de ar nem de luz, e eles informaram à CPI que estavam há mais de sessenta dias sem banho-de-sol (BRASIL, 2009, p. 269). A normativa da ONU sobre o tratamento de prisioneiros (ONU, 1955) determina também que sejam postos à disposição dos presos meios para cuidarem do cabelo e da barba, a fim de que conservem o respeito por si mesmos; que cada preso disponha de uma cama individual e de roupa de cama suficiente e própria, trocada com frequência. Contrastando com esta prescrição, na cidade de Formosa, Estado de Goiás, a CPI identificou na cela da Cadeia Pública local setenta homens e apenas um banheiro, nas seguintes condições: Na verdade, um buraco no chão, chamado de “banheiro”. Na hora do “aperto”, quando a privada está ocupada, o jeito é improvisar. Num cantinho da cela, há várias garrafas PET de dois litros. É nelas que os detentos urinam, porque nem sempre dá para esperar que o banheiro seja desocupado. Há ainda o banheiro “vitrine”, onde os presos são obrigados a fazer suas necessidades na frente de todos os companheiros e também à vista de quem estiver passando no corredor, pois, através das grades, podem ser observados urinando ou defecando. É que a cela, de 5x5, abriga quase setenta homens. Dentro dela havia um banheiro e, para que coubessem mais homens (que dormem no chão), as paredes do banheiro foram derrubadas e a privada ficou no meio da cela, à mostra, obrigando os apenados a passar pelo vexame de ficarem como numa vitrine, enquanto usam o “banheiro”. [...] depois de usar as privadas, os detentos não têm água para lavar as mãos, nem sequer para jogar água na privada, porque em muitos presídios só é permitido jogar água uma vez por dia, independentemente de quantas pessoas e de quantas vezes a privada foi usada. [...] (BRASIL, 2009, p. 191 e 196).

Já na Colônia Agrícola de Campo Grande (MS), unidade prisional de regime semi-aberto, a CPI verificou que uma parte dos presos dormia em barracas improvisadas e outros presos compartilhavam com porcos a pocilga (BRASIL, 2009, p. 191 e 196).

As “Regras Mínimas” (ONU, 1955) prescrevem ainda que a administração penitenciária forneça a cada preso uma alimentação de boa qualidade, bem preparada, bem e servida e com valor nutritivo; que todo preso tenha ao menos uma hora por dia para fazer exercícios apropriados ao ar livre — apenas para citar algumas delas. Entretanto, em relação à alimentação e ingestão líquida, a CPI do sistema carcerário encontrou essa situação: Em muitos estabelecimentos, os presos bebem em canos improvisados, sujos, por onde a água escorre. Em outros, os presos armazenam água em garrafas de refrigerantes, em face da falta constante do líquido precioso. Em vários presídios, presos em celas superlotadas passam dias sem tomar banho por falta de água. [...] No Instituto Penal Paulo Sarasate, no Ceará, a comida dos presos é fornecida em sacos plásticos e os detentos usam as mãos, porque a direção do presídio não fornece talheres. [...] Denúncias de cabelos, baratas e objetos estranhos misturados na comida foram constantes. Comida azeda, estragada ou podre também foi denunciada. [...] A pouca quantidade e a má qualidade da comida servida não condizem com os preços exorbitantes que o contribuinte paga — em média R$ 10,00 — por preso. Nas diligências realizadas, a CPI verificou que a quantidade, a qualidade e a variedade da alimentação servida aos presos não valem mais do que R$ 3,00 (três reais) por preso ao dia (BRASIL, 2009, p. 195-200).

No tocante ao atendimento à saúde do preso, informa o relatório da CPI o seguinte episódio, ocorrido entre um detento e um parlamentar da Comissão: — ‘Quanto tempo você está assim?’ — ‘Quatro anos.’ O jovem, no presídio Vicente Piragibe, localizado na cidade do Rio de Janeiro, carrega uma bolsa de colostomia. Tem que fazer cirurgia, mas como para a administração é apenas mais um preso, está lá, carregando a bolsa, numa visão impressionante. A mesma situação foi encontrada em outras cadeias, como em Franco da Rocha, em São Paulo, onde o preso também tinha a bolsa pendurada na barriga e já estava assim há três anos. [...] Em Porto Velho, o preso esperou tanto tempo pelo atendimento, que a gangrena avançou demais. Depois de meses lutando e chorando por atendimento, foi levado ao hospital, onde recebeu a notícia de que teria que amputar o pé. Mas não havia vagas, então, para tratar de um detento e fazer a cirurgia. Ele foi mandado de volta ao presídio, para aguardar até o dia em que surgisse uma possibilidade de cirurgia. O preso, um homem de mais de 60 anos, com o pé erguido para o alto, tinha uma visível expressão de dor e sofrimento. No Centro de Detenção Provisória, em Pinheiros, a CPI encontrou um homem com um enorme tumor no pescoço. Ele reclamava

de dor e disse que, embora o caroço já tivesse feito dois aniversários, nenhum médico o havia atendido ainda (BRASIL, 2009, p. 203).

As consequências práticas da realidade contrária à normativa internacional sobre a pessoa do preso são abordadas neste capítulo. 2.1 A prisão como fator criminógeno Há muito filósofos como Foucault, Bentham ou Goffman advertiam que este fracasso da prisão não é ocasional, afinal, seus objetivos são distintos dos declarados, e na realidade seriam o de controlar, disciplinar, selecionar e degradar. Foucault (2008, p. 183-184) aponta a origem do cárcere como a mesma das outras instituições (exército, escola, hospital, fábrica). O núcleo de todas elas é a disciplina. O professor do Collège de France demonstra como a regulamentação dos exércitos, das instituições educacionais, dos cárceres, hospitais e oficinas perseguem uma ideia construtiva, arquitetônica, do corpo (economia política do corpo), acostumando-o a determinados movimentos, repetitivos e regulares, de modo que possa funcionar docilmente como uma máquina. Desta forma, a prisão é vista por Foucault como um mecanismo de transformar o “criminoso” violento, agitado, impulsivo (sujeito real) em preso, em sujeito disciplinado, mecânico (sujeito ideal) (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 191). Também ressaltando o aspecto disciplinar da prisão, escreveu Jeremy Bentham em 1787 o seu projeto de panopticum (pan + opticum), em uma série de cartas remetidas de Crecheff, na Rússia, a um amigo na Inglaterra: O panóptico ou a casa de inspeção: contendo a ideia de um princípio de construção aplicável a qualquer sorte de estabelecimento no qual pessoas de qualquer tipo necessitem ser mantidas sob inspeção; e em particular, às casas penitenciárias, prisões, casas de indústrias, casas de trabalho; casas para pobres, manufaturas, hospícios, lazaretos, hospitais, escolas, com um plano de administração (BENTHAM, 1789, p. 15).

O “panopticum” seria, pois, a representação arquitetônica da disciplina, simbolizando a possibilidade de “ver sem ser visto”59. Erving Goffman (1974, p. 17) enfatizou a rotina prisional a fim de demonstrar a incongruência entre a sua dinâmica como instituição totalizadora e a vida extramuros, o que impossibilitaria o intercâmbio social do preso e o seu preparo para o retorno à convivência no mundo externo. De acordo com o sociólogo canadense, enquanto na sociedade atual o indivíduo

tende a dormir, brincar e trabalhar em diferentes lugares - com diversos coparticipantes, sob distintas autoridades e sem um plano racional geral nas instituições totais, todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma única autoridade, na companhia de um grupo de pessoas onde todos são tratados da mesma forma e obrigados a fazer as mesmas coisas em conjunto, em horários estabelecidos, de acordo com num plano racional único planejado para atender aos objetivos oficiais da instituição60. Os internados vivem nelas com limitado contato com o mundo e são controlados por uma pequena equipe, que geralmente presta um serviço diário de oito horas. Mais hodiernamente, Juarez Cirino dos Santos (2005a, p. 3) define a prisão como “instrumento de gestão diferencial da criminalidade” e não de supressão desta. Haveria, portanto, uma distinção entre os objetivos ideológicos e os objetivos reais do arranjo carcerário: os imaginados seriam a repressão e a redução da criminalidade, enquanto os factuais são a repressão seletiva da criminalidade e a organização da “delinquência”. Para a crítica criminológica, a prisão reproduz intramuros a criminalidade e as injustiças das relações sociais vigorantes fora deles61. O cárcere seria útil para a produção e reprodução dos “delinquentes” selecionados entre as camadas mais débeis e marginais da sociedade. Ele representa como normais as relações de desigualdade existentes na sociedade exterior. Como acentua Antonio Beristain (2000, p. 173), são os “pobres diabos”, “delinquentes de bagatela”, vítimas de nossas estruturas sociais injustas, que representam mais de 90% dos que vivem em nossos cárceres. A violência estatal, até então vista como inútil, seria, na verdade, violência útil do ponto de vista da autorreprodução do sistema social, da manutenção das relações de produção, da defesa dos interesses dos detentores do poder e para a distribuição desigual dos recursos (BARATTA, 1987, p. 628). Roberto Lyra destacou o processo de degradação humana e assimilação de novas práticas criminosas patrocinados pela prisão. Segundo ele, a prisão é a ruptura, de oficio, do chamado contrato social. O preso passa, compulsoriamente, a vegetar, noutra sociedade. Prisão é a morte moral, morte cívica, morte civil, morte mesmo pela consumição da vida (LYRA, 1971, p. 108-109).

Este jurista brasileiro destacou o efeito criminógeno da prisão, definindo-a como “escola anormal de periculosidade”, um “curso de

aperfeiçoamento celerado mantido pelo Estado”. Quanto aos fins da pena, destacou: Seja qual for o fim atribuído à pena, a prisão é contraproducente. Nem intimida, nem regenera. Embrutece e perverte. Insensibiliza ou revolta. Descaracteriza e desambienta. Priva de funções. Inverte a natureza. Gera cínicos ou hipócritas (LYRA, 1971, p. 120)

Portanto, em que pesem as funções declaradas da pena de prisão — seja do ponto de vista filosófico, funcional ou utilitário —, desde há muito, elas têm sido subvertidas (se é que algum dia existiram, como denunciam os filósofos). Seja com propósito disciplinar, como instrumento de seleção ou de gerenciamento da criminalidade, o fato é que a prisão gera uma paulatina degradação do encarcerado, com efeitos criminógenos exatamente inversos aos pretendidos, dignos de serem esmiuçados. 2.2 A realidade carcerária A perversidade no cumprimento da pena faz com que o ofensor se torne, em certo ponto, uma nova vítima, pois se responde à violência perpetrada por ele com outro tipo de violência, a estatal. Isso porque, a pretexto de combater violência, o direito penal acaba gerando mais violência, nem sempre legítima, mas como pretexto para a violação sistemática de direitos humanos (QUEIROZ, 2007, p. 1). Nas palavras de Louk Hulsman: Gostaríamos que quem causou um dano ou um prejuízo sentisse remorsos, pesar, compaixão por aquele a quem fez mal. Mas como esperar que tais sentimentos possam nascer no coração de um homem esmagado por um castigo desmedido, que não compreende, que não aceita e não pode assimilar? Como este homem incompreendido, desprezado, massacrado, poderá refletir sobre as consequências de seu ato na vida da pessoa que atingiu? [...] Para o encarcerado, o sofrimento da prisão é o preço a ser pago por um ato que uma justiça fria colocou numa balança desumana. E, quando sair da prisão, terá pago um preço tão alto que, mais do que se sentir quite, muitas vezes acabará por abrigar novos sentimentos de ódio e agressividade. [...] O sistema penal endurece o condenado, jogando-o contra a ‘ordem social’ na qual pretende reintroduzilo, fazendo dele uma outra vítima (1993, p. 71-72).

Edmundo Oliveira (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 460) cita alguns problemas humanos do recluso: insegurança, embrutecimento, solidão, ociosidade, abandono da família, desajuste sexual62 e incertezas quanto ao futuro livre. Tais sentimentos são passíveis de causar-lhe a chamada “síndrome de vitimização do cárcere” a qual o faz sentir-se “credor” da

sociedade e livre para exercer a violência, devido às violações rotineiras que padece no cárcere63, violências que vão além da privação da sua liberdade: Uma vez conscientizada a vitimização, o preso comporta-se como possuidor de um imenso crédito em relação à sociedade, sentindo-se às vezes com poderes para fazer exercitar seus direitos até com o uso de violência física por não estabelecer um fluxo de causa e efeito entre seu crime e a perda da liberdade. A sensação de vitimizado desmotiva a reabilitação pessoal. [...] No ambiente carcerário existe todo um processo de crescente redução do valor antiético do crime, sempre que se procura estabelecer uma comparação com os efeitos da pena reclusiva imposta ao condenado. Para aquele que furtou, o direito de propriedade de sua vítima não se equipara com a perda maior do valor da liberdade. O homicida, mesmo admitindo a proporcionalidade de valores, diante da inoperância da execução penal, adquire também a posição de vitimizado, que se estereotipa em suas atitudes e comportamentos.

Aponta Edmundo Oliveira (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 464) que vítimas e ofensores possuem, de fato, características comuns, como a propensão a atos violentos, a correr riscos, à desvalorização da autoestima, à satisfação de impulsos proibidos e à realização de acidentes. O autor relata que, aos problemas preexistentes à experiência carcerária, outros tantos se agregam, fazendo com que o condenado se embruteça, se perverta, se insensibilize. O seu sentimento é o de que as autoridades não se preocupam com ele, julgando-se um marginalizado social. A síndrome carcerária, a desanimação, a revolta, os motins e as tentativas de fugas são decorrentes da impossibilidade de se executar as condenações sob a égide da legalidade e da humanidade. Lola Aniyar de Castro (1983, p. 193) explica este fenômeno pelo fato da prisão não ensinar ao preso viver fora da sociedade, mas criar nele uma consciência de injustiça da pena aplicada e provocar a rebelião contra os abusos de poder a que é submetido dentro do cárcere. O preso adquire, então, a consciência de que, se sua condição social fosse outra, certamente não estaria na prisão, como normalmente não estão os mais afortunados (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 460). Em virtude do tipo de vida que são obrigados a levar — isolamento, trabalho escasso, violência por parte de guardas e de outros detentos, rompimento de vínculos (familiar, profissional e social), perda do direito de

serem considerados membros confiáveis da sociedade — os reclusos ficam cada vez mais distanciados dos modelos de comportamento social. A vida no cárcere consolida o status de “criminoso” à pessoa, gera estereótipos e afeta as possibilidades laborativas futuras. Promove, ainda, a interiorização do papel do “criminoso” no recluso, a construção psíquica da sua autoimagem como tal, causando-lhe deformações emocionais. As definições legais e a rejeição social determinam a percepção do “eu” como efetivamente desviante, conduzindo-o a viver marginalmente, conforme a imagem interiorizada (KARAM, 2004, p. 98). O preso é, desta forma, introduzido em um processo de desculturação, caracterizado pelo desaprendizado progressivo dos valores e das normas de convivência social. No cárcere, a punição não lhe acrescenta as habilidades necessárias para a convivência futura no mundo exterior. Ao isolar e estigmatizar os escolhidos, o sistema os faz mais desadaptados ao convívio social e, consequentemente, mais aptos a realizar novas condutas socialmente negativas (KARAM, 2004, p. 97). “Um mínimo de raciocínio lógico repudia a ideia de se pretender reintegrar alguém à sociedade, afastando-o dela” (KARAM, 2004, p. 81). Isso porque as ideias de “ressocialização”, “reeducação” e “reintegração” à sociedade são absolutamente incompatíveis com a segregação, consoante lembram Maria Lúcia Karam e Zaffaroni (1991b, p. 223): o encarceramento é algo tão absurdo quanto tentar ensinar alguém a jogar futebol em um elevador64. Por estas razões é que, ao invés de controlar a delinquência e de reintegrar o apenado na comunidade, a pena privativa de liberdade tem fomentado a exclusão e o crime, estigmatizando o condenado e servindo como incentivo para a aprendizagem da prática criminosa. Para sobreviver neste ambiente inóspito, o ofensor assimila novas práticas criminosas num processo de aculturação conforme os valores e as normas deste (como a violência, a corrupção e a “malandragem”, nas palavras de Juarez Cirino dos Santos (2013c, p. 5)). Cria associações e relações paralelas de poder, que reforçam a cultura da violência e a geração de futuras organizações criminosas (CRUZ, 2011, p. 62-63)65. Toda esta dinâmica o torna confiante e motivado para persistir na “carreira criminosa”. “Trata-se de uma delinquência formada no subsolo do aparelho judicial, da qual a justiça desvia os olhos pela vergonha que

experimenta ao castigar aqueles a quem condena, forte o bastante para deixar o juiz sem voz” (FOULCAULT, 2008, p. 216). Dessa forma, o sistema penal produz o “criminoso” em pelo menos dois momentos distintos: no processo de criminalização, ao qualificar determinadas situações conflituosas ou fatos socialmente negativos como crimes e com a interiorização do etiquetamento legal e social pelo condenado, desde o primeiro contato com o sistema penal, especialmente por intermédio da prisão provisória (KARAM, 2004, p. 98). Do ponto de vista das consequências para os que circundam o recluso, acrescenta Rogério Schietti (CRUZ, 2011, p. 64) que, quanto mais pessoas são presas, um número maior de famílias é desestruturado e seus dependentes têm maior probabilidade de se envolver em ilícitos, caso não recebam assistência social adequada. Assim, além das consequências diretas da punição sobre a figura do ofensor, deve-se, portanto, considerar também o sofrimento (de toda espécie), infligido aos seus amigos e parentes66. Em suma, Edmundo Oliveira identifica três ordens de desvantagens do cárcere: utilitária (relativa ao custo de construção, com a manutenção de sua estrutura administrativa, sem qualquer retomo); de ordem moral (ao final, a prisão, seria puro castigo) e de ordem social (não desempenhando o seu papel “ressocializador” à altura dos esforços e dos investimentos implementados) (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 460). Diante destes fatos, conclui Ferrajoli (2010, p. 379) que, da forma como tem sido praticada, a prisão é muito mais do que a “privação de um tempo abstrato de liberdade”. Ela tem elementos de aflição física (manifestados nas formas de vida e de tratamento, “e que diferem das antigas penas corporais somente porque não estão concentradas no tempo, senão que se dilatam ao longo da duração da pena”) e de aflição psicológica (solidão, isolamento, sujeição disciplinar, perda da sociabilidade, da afetividade e até da identidade). Todas essas adversidades do cárcere geram a reincidência, que desmente a promessa de “ressocialização” do condenado. De acordo com o expresidente do CNJ, Cezar Peluso, o Brasil possuía, em março de 2012, uma das maiores taxas de reincidência do mundo, estimada pelo órgão em 70% (BRASIL, 2011, p. 1). Expressada nas palavras de Foucault (2008, p. 216), a reincidência é “a vingança da prisão contra a justiça”. Percebe-se que a própria prisão tem se tornado um obstáculo intransponível para a

“ressocialização”, de forma que “o problema da prisão torna-se a própria prisão” (PRUDENTE, 2011, p. 1). Conclui-se, por conseguinte, que o encarceramento é dispendioso para o Estado, não reintegra ou ressocializa e ainda versa o apenado nas “carreiras criminais” (PASSETTI, 2004, p. 26). Assim, embora o Estado despenda cada vez mais com repressão, com a polícia, com a construção de novas prisões, com a edição e aplicação de mais leis incriminadoras, com mais condenações, a resposta de uma sociedade mais justa e segura ainda não se faz presente. Neste contexto, o que se sobressai é a inflação legislativa, a sobrecarga dos tribunais, a ineficiência da justiça e a ineficácia das penas clássicas (PALADINO, 2010, p. 406). 2.3 O pessimismo do nothing works Até a primeira metade do século XX, a política criminal confiava na força ressocializadora da execução da pena, entretanto, a realidade indigna do cárcere ora relatada desacreditou o “ideal de reabilitação” (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 472-473). O senso de pessimismo e de incapacidade instalado pela falha no cumprimento deste mister pode ser traduzido pela expressão “nada funciona” (nothing works)67. “Nothing works” foi a locução utilizada por Robert Martinson ao divulgar, na revista “The public interest”, uma pesquisa feita por ele — em conjunto com Douglas Lipton e Judith Wilks — com 231 pessoas que frequentaram programas de reabilitação entre os anos de 1945 e 1967. A pesquisa foi intitulada “The effectiveness of correctional treatment: a survey of treatment evaluation studies”. Após o estudo, os pesquisadores chegaram à conclusão de que, com poucas e isoladas exceções, os esforços de reabilitação feitos até aquele momento não tiveram efeito significativo sobre a reincidência. A partir daí, a expressão nothing works tornou-se um “mantra” para designar o fracasso dos programas liberais de reabilitação e para a retribuição ou dissuasão como justificativas para a punição. Algumas pesquisas relataram que as diferenças das taxas de reincidência entre jovens que receberam os serviços especiais (aconselhamento, programas educacionais, orientação, assistência à saúde, acampamentos) e os que não dispuseram de semelhante trato foram insignificantes e concluíram que este tipo de intervenção é de pouca eficácia68.

A partir do reconhecimento da falha do sistema de justiça criminal em alcançar a reabilitação dos agressores69, algumas posturas extremas reclamaram o regresso à pura retribuição. As conclusões de Martinson repercutiram para que o propósito da reabilitação fosse abandonado, por exemplo, dos programas de correção nos Estados Unidos. Em 18 de janeiro de 1989, a Suprema Corte americana, no julgamento Mistretta v. United States70, considerou razoável e racional a remoção da reabilitação das “diretrizes condenatórias” federais ao sentenciar os réus. Estes passaram a ser condenados estritamente em retribuição ao crime cometido, sem reconhecimento de fatores em seu favor, como receptividade ao tratamento, histórico pessoal e familiar, esforços anteriores para reabilitar-se ou possíveis alternativas à prisão. Neste processo, o Estado pôde eximir-se da sua responsabilidade com a reabilitação e a reintegração dos ofensores. Robert Martinson — que se suicidou em 1980 — talvez imaginasse que seu ceticismo acerca da reabilitação, se bem divulgado, esvaziasse as prisões. Segundo ele próprio asseverou, se as prisões não podem ser reformadas, devem ser gradualmente demolidas71. Entretanto, o efeito foi contrário. Contemporaneamente, a reabilitação ainda se encontra ausente de boa parte do sistema de correção americano. Penas mais pesadas, prisõesceleiros (warehouses) tornaram-se a regra. O raciocínio é que, se “nada funciona” para reabilitar os “infratores”, deve-se neutralizá-los por meio de duras penas de prisão e do uso ocasional da pena de morte (MILLER, 1989, p. 1). Além dos efeitos surtidos nas decisões judiciais e na execução da pena, Francis T. Cullen e Paul Gendreau (2001, p. 316) relatam que o nothing works teve reflexos indesejados no pensamento criminológico. Conforme os professores canadenses, ao apontar que nada funciona, essa ideologia legitimou a “destruição do conhecimento criminológico”, fazendo com que, a partir daí, os criminólogos se concentrassem na crítica de que nada funciona, ao invés de empregarem seus esforços na “construção do conhecimento”, apontando o que é que funcionaria. 2.4 O endurecimento via pena de morte Manifestações contundentes em favor de políticas penais rigorosas como a pena de morte não são um fenômeno recente. Conforme os diálogos narrados por Platão, a pena de morte era defendida por Sócrates como fruto da

necessidade de obediência irrestrita às leis. O próprio Sócrates não se furtou a esta obediência, enfrentando sua pena de morte, decidida pelo Tribunal Popular mediante a ingestão do cálice de cicuta, narrada nas palavras de José Rossini Campos do Couto Corrêa (2011, p. 164-165): Sócrates não titubeou frente ao Tribunal Popular, composto de 501 juízes, muitos deles marinheiros e comerciantes, dos quais 280 votaram pela condenação e 221 pela absolvição, com 59 sufrágios decidindo o destino do mestre dos mestres, que não abjurou da Filosofia, declarando que jamais faria outra coisa em sua existência, mesmo que mil vezes tivesse que morrer. [...] Nada de fuga, nada de multa, nada de exílio, nada de suborno, nada de abjuração e, muito menos, nada de comutação da pena.

Platão (2013, p. 358-359), em As leis, Livro IX, demonstra acolher a pena de morte, afirmando que ela seria apenas o menor dos males, se benéfica para outros cidadãos: Entendemos que toda punição legalmente aplicada não visa ao mal, mas via de regra produz um destes dois efeitos: ou torna a pessoa que sofreu a punição, melhor ou a torna menos má. Mas se qualquer cidadão é reiteradamente condenado por esse ato, ou seja, a perpetração de alguma falta gravíssima e infame contra os deuses, os pais ou o Estado, o juiz o considerará como já incurável reconhecendo que, apesar de todo o treinamento e educação que recebeu desde a infância, não se conteve, a ponto de cometer a pior das iniquidades. Para ele apenas será a morte, o menor dos males, o que para os outros [cidadãos] será um exemplo benéfico, pois o verão caído em desgraça e eliminado para além das fronteiras do país.

Walter Nunes da Silva Júnior (2009, p. 8) aduz que, para Platão, a pena de morte era uma “pena natural” para delitos graves, como os praticados contra as divindades, os cultos, os genitores e contra o próprio homicídio. O mesmo autor informa que, após o Renascimento, a pena (incluindo a de morte) não tinha mais a finalidade de aplacar a ira dos deuses, mas de proteger a ordem e a paz públicas, como forma de imposição da autoridade do soberano e do Estado. Nesta época, desenvolveu-se, também, o “antihumanismo”, caracterizado por uma Igreja e um poder estatal autoritários em que se perseguiram bruxos e bruxas, mediante execuções em fogueiras, guerras religiosas sangrentas etc (SILVA JÚNIOR, 2009, p. 10). Para manter a autoridade do soberano, além da pena de morte, inseriu-se, no ordenamento jurídico, mecanismos bárbaros, utilizados tanto para a punição dos culpados quanto como meio processual para se “descobrir a

verdade”. O corpo do homem tornou-se “objeto da pena” e “objeto do processo” e padecia provações (suplícios) com o fito de “esclarecer” o crime72. A tortura, por exemplo, foi a técnica empregada para se “encontrar a verdade” do crime em processos “secretos”73, e a pena corporal foi infligida publicamente como exemplo aos demais e como forma estratégica de prevenção geral. A prisão, nesta época, era apenas uma forma de detenção do homem para a aplicação da futura pena corporal (SILVA JÚNIOR, 2009, p. 11). Anos mais tarde, a pena de morte ainda era defendida pelos filósofos modernos. Para Kant, ela também atenderia ao seu imperativo categórico, no sentido de que “se ele matou, deve morrer”. A finalidade da pena capital, assim como das demais, seria aplicar a justiça como igualdade, de realizar a perfeita correspondência entre o crime e o castigo, não podendo ser mitigada ou afastada por razões de utilidade ou felicidade sob pena de injustiça. Assim, se a comunidade não punisse o assassino com a morte, tornar-se-ia cúmplice de seu crime e, indiretamente, responsável pelo sangue derramado, consoante anota André Coelho (2012, p. 1). Um dos primeiro arautos contra a pena de morte foi Beccaria, que se valendo de argumentos contratualistas de Rousseau e da doutrina da divisão dos poderes de Montesquieu, criticou as atrocidades do sistema penal, em especial a pena capital, a tortura e os suplícios. Segundo Bobbio, a obra de Beccaria influenciou o debate sobre a pena de morte e inspirou a primeira lei penal que a aboliu, a lei toscana de 178674. Silva Júnior (2009, p. 11) explica que, sob a influência de Montesquieu, Beccaria desenvolveu a ideia de que o direito de punir estatal deve ser limitado pela lei e só poderia ser exercido dentro dos parâmetros concebidos pela sociedade e estabelecidos em lei. A influência contratualista em Beccaria é explicada por Bobbio: Se sociedade política deriva de um acordo dos indivíduos que renunciam a viver em estado de natureza e criam leis para se proteger reciprocamente (o contrato social), é inconcebível que esses indivíduos tenham posto à disposição de seus semelhantes também o direito à vida (BOBBIO, 2004, p. 69).

Assim, posto que o indivíduo tivesse se comprometido perante a sociedade com o pacto social, conferindo ao Estado o poder-dever de punilo, caso viesse a transgredir as normas de conduta, ele conservaria o seu direito à vida, pois não o teria renunciado.

A despeito da tese contrária à pena de morte de Beccaria ter encontrado entusiastas de renome como Voltaire, que lhe deu visibilidade, ela não foi acolhida pelos criminologistas que se seguiram. Tanto Enrico Ferri quanto Cesare Lombroso foram partidários da pena capital, seja pela sua função exemplar, seja pela “seleção” que ela institui ao eliminar a “raça criminosa”. Ferri, porém lamentava seu escasso impacto dissuasório ou intimidatório devido à sua pouca utilização. Raffaele Garófalo a considerava um mecanismo de seleção artificial que segue o sábio modelo da natureza (uma espécie de “darwinismo social”) (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2000, p. 175 e 182). Outras escolas que se seguiram à clássica (escola positiva, terceira escola italiana, moderna, técnico-jurídica, da defesa social) também encontraram partidários à pena de morte. Junto a elas, há outros autores que contribuíram de forma relevante e aprofundada para o exame da questão da pena de morte. Entretanto, a menção ou a abordagem de todos eles ultrapassaria o nosso escopo de uma singela contextualização histórica desta problemática. Atualmente, no Brasil, a pena de morte ainda é admitida, para os casos de guerra declarada (art. 5º, XLVII, CF). Nos Estados Unidos, ela é aceita em cerca de trinta e cinco estados americanos. Seu fundamento é a dissuasão geral, vista na seção 1.4.2, uma vez que pressupõe que a pena capital previna homicídios futuros, o que faria com que os ofensores se refreariam em matar por temer o castigo final. A respeito do suposto efeito dissuasivo da pena capital, ponderam Fuller e Wozniak (2006, p. 266) que a sua medição é uma tarefa difícil. Questionam os autores se os homicidas, de fato, cogitariam da possibilidade de serem executados posteriormente por esta razão. Estimam os americanos que a maioria dos ofensores provavelmente não calcula racionalmente as consequências de suas ações antes de praticá-las ou, se o fazem, é provável que a sanção capital não os impediria de qualquer maneira. Por outro lado, lembram que, quando o Estado mata, ele apresenta um modelo de comportamento que pode ter consequências remotas como, por exemplo, a “síndrome do suicida-assassino” (quando pessoas incapazes de cometer suicídio matam outra pessoa na expectativa de que o Estado as execute), a “síndrome do carrasco” (quando ofensores em série acreditam que estão fazendo um serviço à sociedade, eliminando os indivíduos

indesejáveis) e a notoriedade, na hipótese em que indivíduos, animados pela atenção conferida pela mídia a casos sensacionalistas, matam com o fim de se tornarem conhecidos75. Entre argumentos utilitaristas e razões éticas contrárias à pena de morte, Bobbio (2004, p. 74) cita a sua irreversibilidade, em caso de erro judiciário, que, neste caso, seria irreparável. O cientista político refuta ainda a possiblidade de alegação de uma suposta “legítima defesa” pelo Estado, ao aplicar a pena de morte, e assevera: “A condenação à morte depois de um processo não é mais um homicídio em legítima defesa, mas um homicídio legal, legalizado, perpetrado a sangue frio, premeditado. Um homicídio que requer executores, ou seja, pessoas autorizadas a matar”76. 2.5 Just deserts A teoria do just deserts (no sentido de “apenas o merecido”) defende que a punição deve ser proporcional à gravidade da infração cometida. Os defensores desta filosofia (cujo arauto maior é Andrew von Hirsch77) enfatizam a importância do devido processo legal, das sentenças com prazos determinados e a remoção da discricionariedade judicial no momento de sentenciar (BARTON, A., 2004, p. 1). Este pensamento tornou-se influente nos Estados Unidos durante a década de 1970, após a publicação da obra “Doing Justice”, de Hirsch, que explorava as conclusões do “Committee for the Study of Incarceration”. Assim como o nothing works de Robert Martinson, os princípios retributivos do just deserts influenciaram a retirada da ideia de reabilitação do modelo americano (VON HIRSCHI, 1985, p. 1926). Com base na classificação outrora citada, just deserts pode ser considerada uma filosofia retributiva da pena. Ao contrário das correntes preocupadas em prevenir futuras infrações (como a dissuasão, a reabilitação ou a incapacitação), a vertente retributiva se importa com a punição dos crimes já cometidos (quia peccatum), ao modo kantiano (ver seção 1.3.1). Trata-se de punição sob o eufemismo de just deserts. Segundo o just deserts, embora outros benefícios positivos possam advir da punição (como, por exemplo, a prevenção de novos crimes), existem os que são simplesmente efeitos incidentais da sanção e não o seu fim precípuo78.

O modelo just deserts foi bastante prestigiado nos Estados Unidos em meados da década de 1970, em virtude da crescente preocupação com as práticas discricionárias e discriminatórias do modelo de reabilitação ou de tratamento, então dominantes (BARTON, A., 2004, p. 2)79. Nestes métodos, um ofensor poderia receber uma medida de segurança por tempo indeterminado e seria liberado apenas quando estivesse “curado”. O ideal incapacitante era, dessa forma, utilizado para endossar penas de prisão excessivamente longas, a fim de evitar futuras agressões pelo indivíduo. O just deserts e a sua ideia de proporcionalidade pretendiam estabelecer limites para a extensão e para o tipo de punição aplicada (BARTON, A., 2004, p. 2)80. Alana Barton (2004, p. 2) relata que, ao longo da década de 1990, a ideologia punitiva — juntamente com uma crescente ênfase na proteção “do público” — continuou a florescer nos Estados Unidos e também no Reino Unido. A autora acusa a direita política destes países de apropriar-se da filosofia do just deserts e alterar o foco da proporcionalidade para a aplicação de castigos mais severos e sentenças mais longas (nos moldes da tree strikes law), tornando as sentenças desproporcionalmente graves. Em que pese o modelo just deserts possa, teoricamente, oferecer decisões mais justas e imparciais (restringindo sentenças desproporcionais ou “exemplares”, que contenham punições inconsistentes e discriminatórias), Barbara Hudson81 aponta que o just deserts, com sua ênfase no tratamento igualitário para crimes semelhantes, não leva em conta fatores estruturais e econômicos, tais como a pobreza. A criminologista britânica afirma que neste modelo não há espaço para o reconhecimento das desigualdades sociais e, portanto, não permite mitigações para pessoas que tenham menos oportunidades de permanecerem obedientes à lei. O bloqueio de oportunidades pode, de fato, levar a processos criminógenos ou a atividades desviantes, consoante já identificara Robert Merton desde 1938, em sua teoria criminológica da anomia (v. seção 4.2.1). Assim, uma sentença preocupada apenas com o crime, que não reconhece outras questões de fundo ou circunstancias do ofensor, poderia perpetuar a discriminação contra os pobres, as minorias, as mulheres e os jovens (BARTON, A., 2004, p. 2). Portanto, concluímos com Barton e Hudson que, teorias como o just deserts — que em tese poderiam garantir um sistema justo e imparcial de

justiça por meio da aplicação dos princípios de proporcionalidade — necessitam ser cuidadosamente outras mais flexíveis, como a justiça restaurativa, consideração de circunstâncias individuais e do impacto estruturais, tanto no comportamento ofensivo quanto criminalização (BARTON, A., 2004, p. 2). 2.6 Poderia a pena de prisão ser abolida?

coerência e de equilibradas com que permitam a das desigualdades no processo de

Há mais de trinta anos, Lola Aniyar de Castro lançou a seguinte provocação, até hoje bastante atual: “Apesar do seu fracasso, a prisão não desaparece. Por quê?”. Segundo ela, a prisão se mantém porque introduz um elemento no seu autor: o estigma, representado pelos antecedentes penais do ofensor. A prisão não pretenderia, assim, acabar com o cometimento de infrações penais, mas distinguir umas das outras, definindo a “verdadeira delinquência”. Consoante a criminóloga venezuelana, é conveniente considerar a plebe “imoral ou sediciosa, bárbara ou fora da lei”. O ofensor aparece como pertencendo a um mundo diferente, o do “basfond”, o do vilão, fazendo crescer a desconfiança para com as classes baixas e, por oposição, a confiança nas altas (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 194). Louk Hulsman acrescenta a esta perquirição o fato de que a prisão — e mesmo a pena de morte — não só permanecem, como são defendidas inclusive por aqueles que mais sofrem o peso do sistema penal82. À mesma conclusão chegou o realista Roger Matthews. Para este, apesar de todas as queixas sobre a ineficiência, os custos da prisão e suas consequências nefastas, a população em geral a prefere, se comparada a outras políticas. “Ninguém defende a prisão, mas ninguém é contra ela, apesar de seus custos” (MATTHEWS, 2009, p. 349). Este reclamo pela prisão também é identificado por Luiz Flávio Gomes (2001, p. 37), “A população desesperada, totalmente incrédula [...] pede o irracional (pena de morte), o inconstitucional (prisão perpétua), o absurdo (agravamento de penas, mais rigor na execução) e o aberrante (diminuição da maioridade penal)”. De acordo com Louk Hulsman, isso ocorre porque: Na vida real, muito poucas pessoas ficam satisfeitas com o que está acontecendo com a justiça criminal quando elas (ou pessoas próximas a elas) são diretamente envolvidas em um evento que é criminalizado. [...] Quando se dá a estas pessoas a possibilidade de

escolher outras soluções, elas têm muitas dificuldades para achar uma solução fora do modelo punitivo. E quando se pede uma manifestação àqueles que não estão diretamente envolvidos nas situações problemáticas, eles manifestam solidariedade com o sistema da justiça criminal e pedem, inclusive, uma solução mais grave. Esse estado de coisas faz com que os políticos, na maioria das vezes, combatam as medidas de minimalização ou abolição da justiça criminal (1993, p. 127).

Luisa de Marillac Passos e Maria Aparecida Penso (2009, p. 80 e 89) acrescentam que, em geral, a sociedade não consegue perceber uma alternativa de punição que não seja a prisão. Caso adote outros meios de resolução de conflitos, o sistema de justiça criminal é visto como ineficiente e promotor da impunidade: A comunidade tem a Justiça como ineficiente no sentido do controle social, pois entende que a Justiça tem que ser unicamente punitiva, ou seja, deve basear-se na privação de liberdade, caso contrário não estará cumprindo o seu papel, e que as medidas alternativas seriam então uma forma ‘de passar a mão na cabeça’ de quem comete algum delito.

Rogério Schietti alerta para os riscos e enganos trazidos por este tipo de pensamento que poderia espargir a repressão contra todos, indiscriminadamente, às custas de valorosos direitos e garantias individuais duramente conquistados: Sobre isso e ante o ingresso, no sistema de justiça criminal brasileiro, de pessoas detentoras de cargos e prestígio político que até há alguns anos as afastavam do risco de punição penal, tivemos oportunidade de observar (Cruz, 2011: 27) que ultimamente se passou a ver, com maior frequência, cenas de conhecidos políticos e grandes empresários algemados e conduzidos ao cárcere preventivo, a engendrar a percepção, pela população em geral, de uma espécie de «democratização» na aplicação da prisão cautelar. [...] soa irracional, a pretexto de combater a generalizada impunidade em relação a certos setores da sociedade, institucionalizar-se uma repressão abusiva contra todos, jogando no ralo a custosa construção dos valores e princípios do direito penal moderno (Gomes, 1995: 166) (CRUZ, 2013, p. 50).

Maíra Rocha Machado atribui parte da responsabilidade por essa desinformação pública aos próprios operadores do direito, que poderiam valer-se de oportunidades em que estão em evidência para esclarecer à população sobre meios alternativos e mais eficazes que a prisão: Além disso, é preciso tocar na responsabilidade do próprio Poder Judiciário, que sistematicamente perde a oportunidade de comunicar à opinião pública que há várias outras formas de punir além do envio à prisão. Isso aconteceu no julgamento da AP

470, em que o debate sobre penas restritivas de direitos, multa e reparação do dano ficou para segundo plano até o presente momento. Enquanto essas questões não se tornarem protagonistas de nossa política de penas, não há política de criação de vagas que resolva o problema do nosso sistema prisional (MACHADO, M., 2012, p. 1).

Maria Lúcia Karam (2004, p. 84) aduz, como razões para a indispensabilidade da prisão, o seu simbolismo (bastante expressivo) e sua visibilidade (com a exposição da condenação penal). Fato é que, conforme observado na seção 1.5, nas tendências criminalizadoras hoje dominantes, a pena privativa de liberdade subsiste com incidência e rigor cada vez maiores, a despeito das suas conhecidas mazelas. Diante de todas estas constatações, Thomas Mathiesen arrisca uma conclusão: Devemos, então, concluir que a abolição das prisões é “um sonho impossível”? À primeira vista, parece que sim. No mínimo, o presente e o futuro imediato parecem sombrios. O clima político favorece enormemente a prisão; realmente, o clima político aprova o ressurgimento de algo tão medieval quanto a sentença de morte. Hoje em dia, nos Estados Unidos, não existe mais o político manifestando-se contra a sentença de morte. A ordem do dia é: “três vaciladas e você está fora (MATHIESEN, 2003, p. 8182).

O autor vislumbra, portanto, a impossibilidade de abolição das prisões a curto e médio prazos, principalmente em face das “políticas penais” (que não são verdadeiramente “políticas criminais”) já referidas nas seções 1.6, 2.3 e 2.5 (como tree strikes and you are out, nothing works, just deserts), estimuladas pelos próprios parlamentares e seus eleitores, como lembrou Hulsman83. No mesmo sentido, entende Salo de Carvalho (2013, p. 1 e 9) que, na atual conjuntura (em especial na realidade brasileira), o abolicionismo do sistema penal se revela impraticável, porque o modelo abolicionista, em última instância, levaria a uma possível “anarquia punitiva”, isento de legalidade e de limites às liberdades. No mesmo diapasão, Antonio Beristain (2000, p. 55) relata que “a história sociológica e a filosofia jurídica ensinam que, sem sanções penais, resulta impossível a convivência, ao menos nos tempos historicamente conhecidos e na atualidade”. Aduz, entretanto, que esta necessidade de aplicação de sanções penais não significa “que os delinquentes tenham que ser encarcerados entre quatro paredes para castigá-los com intuito

unicamente vingativo, sem gastar um minuto para sua integração na sociedade” (BERISTAIN, 2000, p. 55). Afora todas as deformidades apontadas na pena de prisão — tanto em relação ao seu déficit de legitimidade quanto à sua prática desvirtuada das finalidades propostas (ver seções 1.1 e 1.2) —, alguns abolicionistas a consideram necessária. Mathiesen (2003, p. 97) reconhece que “temos que admitir talvez a possibilidade de que encarcerar alguns indivíduos permaneça. A forma de se tratar deles deveria ser completamente diferente do que acontece hoje em nossas prisões”. Nils Christie (1977, p. 4) não descarta a necessidade de prisão para casos de maior periculosidade, mas alerta que o sistema de justiça não é eficiente em determinar “os incorrigíveis” e os que não necessitam de segregação. Ferrajoli (2010, p. 231) encara a prisão como uma técnica institucional de minimização da reação violenta à desviação socialmente não tolerada, funcionando como garantia do acusado contra os arbítrios, os excessos e os erros conexos a sistemas não jurídicos de controle social (por exemplo, a vingança privada)84. A pena, segundo o jurista italiano, é justificada como mal menor, ou seja, porque seria menos aflitiva e menos arbitrária do que outras reações não-jurídicas, que se produziriam na sua ausência (FERRAJOLI, 2010, p. 312). Juarez Cirino dos Santos (2005b, p. 7) assente que o objetivo imediato é “menos melhor cárcere” e “mais menos cárcere”, com a maximização dos substitutivos penais, das hipóteses de regime aberto, dos mecanismos diversórios85 (diversion) e de todas as indispensáveis mudanças humanistas do cárcere. Ferrajoli (2010, p. 378-379) ressalva, entretanto, que a imprescindibilidade da pena de prisão não impede a sua justificada superação a longo prazo ou, ao menos, uma drástica redução da sua duração, a curto e médio prazos. Existem, ainda conforme o professor italiano, dois fatores que fazem com que não resulte utópica uma batalha pela abolição da pena privativa de liberdade, mesmo que seja a longo prazo. O primeiro deles é a insatisfação cada vez mais difundida no interior da cultura jurídica (inclusive dos operadores carcerários) e o segundo refere-se ao seu caráter cada vez mais obsoleto. Mathiesen comparte da necessidade desta expectativa de superação: Porém, creio que a conclusão do “sonho impossível” é muito apressada. Em um trecho provocativo sobre as vitórias abolicionistas do passado, o criminologista alemão

Sebastian Scheerer lembra-nos que “nunca houve uma transformação social significante na história que não tenha sido considerada irreal, estúpida ou utópica pela grande maioria dos especialistas, mesmo antes do impensável se tornar realidade (MATHIESEN, 2003, p. 82).

Assim como um dia imaginamos impossível a abolição da escravatura, por exemplo — hoje uma realidade incontestável —, o mesmo pode ser pensado em relação à medieva pena de prisão, especula Mathiesen. Em conclusão, pode-se afirmar que, se no atual estágio ainda não podemos prescindir das prisões, a pena privativa de liberdade deve ser deixada como um último e extremo recurso, visto que ela evidencia, de forma cada vez mais inequívoca, o seu esgotamento histórico sem cumprir as promessas de retribuição e de “ressocialização” com um mínimo de humanidade ou plausibilidade. Imperiosa é, por fim, a mudança de orientação na política criminal brasileira para uma responsabilização proveitosa do ofensor, reparando vítima e comunidade atingidas, envolvendo todos no processo de sua reinserção social, tal como aventa a justiça restaurativa86. Afinal, no sistema de justiça criminal, o ofensor não é efetivamente responsabilizado, mas punido pelo ato praticado. Renato Campos de Vitto (2005, p. 41) provoca sobre essa necessidade de mudança: “Antes de mais nada, precisamos definir o que, de fato, se pretende construir por meio do nosso sistema de Justiça: uma nação de jaulas ou uma nação de cidadãos.” Em resposta, Mathiesen (2003, p. 96) indica um caminho de objetivos semelhantes ao restaurativo: “A direção desse novo clima, é com certeza, difícil de predizer, mas provavelmente implicaria numa ênfase renovada no apoio real às vitimas, assim como nos recursos e serviços sociais ao transgressor, uma vez que a solução altamente repressiva falhou completamente”. García-Pablos de Molina (2012, p. 437) comenta o potencial rejuvenescedor da justiça restaurativa como alternativa à crise ora identificada: “Representam ou parecem representar a nova seiva rejuvenescedora do sistema, capaz de apresentar, com seu discurso positivo e otimista, alternativas válidas ao niilismo do nothing works que caracteriza o referido sistema.” Esta aspiração perdura há anos como já vaticinou o penalista e ministro da justiça alemão, Gustav Radbruch (1961, p. 97): “Não precisamos de um

Direito Penal melhor, mas de algo melhor do que o Direito Penal”. Beristain (2000, p. 55) encoraja esta expectativa: “Oxalá, as próximas gerações possam prescindir da sanção penal”. De acordo com o autor espanhol, historicamente já demonstramos que a superação é possível, afinal, “afortunadamente, superamos o antigo homo faber, trabalhador, e o homo sapiens, que constata a realidade exterior a ele. Chegamos ao homo pius, compassivo e solidário, ao homo creator, que do seu interior vai fazendo e refazendo as coisas” (BERINSTAIN, 2000, p. 57). Somos, portanto, fundamental e essencialmente criadores. Ademais, tão indesejável quanto a prisão em grades seria a nossa prisão em ideias limitadas. A justiça restaurativa apresenta-se, nesta senda, como uma nova seiva criadora. 58 Não é por outra razão que autores como João Carlos Galvão Júnior (2003, p. 2-3) proclamam a inconstitucionalidade da pena de prisão: “Reconhecemos que a prisão é uma realidade absolutamente inconstitucional, visto que, pelo Texto Maior, ‘ninguém será [ou deveria ser] submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante’ (CF, art. 5.º , inc. III). Aliás, o mesmo diploma constitucional proíbe as penas cruéis (inc. XLVII, e), assinala que ‘a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado’ e assegura aos presos ‘o respeito à integridade física e moral.” No mesmo sentido, declara García-Pablos de Molina (2012, p. 494): “penas proibidas “formalmente” pela nossa Constituição (art. 5.°, XLVII), penas cruéis, trabalhos forçados, pena de morte via aids etc.) acham-se presentes no dia-a-dia de qualquer estabelecimento prisional.” 59 Bentham (1789, p. 29-31) afirma: “Não apenas isso, mas quanto maior for a probabilidade de que uma determinada pessoa, em um determinado momento, esteja realmente sob inspeção, mais forte será a persuasão — mais intenso, se assim posso dizer —, o sentimento que ele tem de estar sendo inspecionado. [...] Regozijo-me com o fato de que há, agora, pouca dúvida de que o plano possui as vantagens fundamentais que venho atribuindo a ele: quero dizer, a aparente onipresença do inspetor (se os teólogos me permitirem a expressão), combinada com a extrema facilidade de sua real presença.” 60 Segundo Goffman (1974, p. 17), “Nas instituições totais, existe uma divisão básica entre um grande grupo controlado, que podemos denominar o grupo dos internados, e uma pequena equipe de supervisão. Geralmente, os internados vivem na instituição e têm o contato restrito com o mundo existente fora de suas paredes; a equipe dirigente muitas vezes trabalha num sistema de oito horas por dia e está integrada no mundo exterior. Cada agrupamento tende a conceber o outro através de estereótipos limitados e hostis; a equipe dirigente muitas vezes vê os internados como amargos, reservados e não merecedores de confiança; os internados muitas vezes veem os dirigentes como condescendentes, arbitrários e mesquinhos. Os participantes da equipe dirigente tendem a sentir-se superiores e corretos; os internados tendem, pelo menos sob alguns aspectos, a sentir-se inferiores, fracos, censuráveis e culpados” . 61 Boaventura de Sousa Santos (1996, p. 692) observa que, no domínio da justiça penal, os grandes “consumidores” (réus) são indivíduos jovens do sexo masculino. Porém, do seu ponto de vista, a juventude da população prisional recomenda, ao contrário, um uso muito maior das medidas alternativas à pena de prisão do que aquele que tem sido feito.

62 A homossexualidade, a prostituição e a castração química são realidades do sistema carcerário, segundo apurou a CPI. A primeira é facilitada pelas condições de alojamento e pela desconsideração das necessidades de índole sexual dos presos: “Os colchões são sempre em menor quantidade do que o número de presos. Os presos têm que colar vários colchões e grudar o corpo com o de outro para se agasalharem” (BRASIL, 2009, p. 197- 198). Sobre a prostituição, relata Luiz Fernando Correa da Rocha, Presidente da Federação Brasileira dos Servidores do Sistema Penitenciário: “Prostituição há, com certeza, nos presídios. Muitas vezes, a namorada começa a passar para outro preso e assim ela vai visitando um, dois, três. [...] O problema nosso são essas crianças que estão sendo encaminhadas para a prostituição dentro do presídio. [...] Porque o preso também é pressionado lá: ‘Ó, tua filha é bonitinha. Passa para cá, senão acontece alguma coisa contigo ou com a tua família na rua’. Quando vê, ele é obrigado a entregar a filha ou o filho para um outro preso. Isso é normal. Seria inocência nossa achar que isso não acontece. [...].”. Em relação às crianças nascidas no presídio e que permanecem com suas mães, cita: “Como também há crianças presas, no Rio Grande do Sul, dentro do presídio feminino. Nós temos lá, se não me engano, 30 crianças, piazinhas lá, de 3 a 4 anos de idade, que estão presas desde que nasceram. E tem muitos deles que nem conhecem o que é rua, que ficam na grade ali, pendurados na grade” (BRASIL, 2009, p. 261). Por fim, quanto à castração química, “à CPI também foi denunciado por presos, e confirmado pelo Diretor da Penitenciária de Urso Branco, o uso de uma substância na comida chamada salitre, com o objetivo de diminuir o consumo de alimentos e reduzir o apetite sexual dos internos” (BRASIL, 2009, p. 201). 63 Ilustrando a violência que ocorre literalmente no cárcere, o relatório da CPI carcerária afirma: “Em uma cadeia na Bahia, o preso disse à CPI que, quando eles têm dores e pedem remédio, o Diretor manda um agente com um porrete, onde está escrito “dipirona”, para agredi-los. “Porradas” é o remédio que tomam” (BRASIL, 2009, p. 204). 64 No original: “Sabemos que la ejecución penal no resocializa ni cumple ninguna de las funciones “re” que se la han inventado (“re”-socialización, personalización, individuación, educación, inserción, etc.), que todo eso es mentira y que pretender enseñarle a un hombre a vivir en sociedad mediante el encierro es, como dice Carlos Elbert, algo tan absurdo como pretender entrenar a alguien para jugar futbol dentro de un ascensor” (ZAFFARONI, 1991a, p. 223). 65 Acerca da arregimentação de presos por organizações criminosas, relata a CPI Carcerária que esta prática influencia e até determina a rotina e as normas do presídio: “As Regras Mínimas para Tratamento dos Presos no Brasil asseveram, em seu art. 7º, que os presos pertencentes a categorias diversas devem ser alojados em diferentes estabelecimentos prisionais ou em suas seções, observadas características pessoais tais como: sexo, idade, situação judicial e legal, quantidade de pena a que foi condenado, regime de execução, natureza da prisão e o tratamento específico que lhe corresponda, atendendo ao princípio da individualização da pena. (...) No Rio de Janeiro o critério principal de separação dos presos é a organização criminosa a que pertencem. A Lei de Execução Penal e seus critérios de separação dos presos foi substituída pelo Comando Vermelho, pelo Terceiro Comando, pelo Amigo dos Amigos, Inimigos dos Inimigos ou pelos Amigos de Israel. O mais grave é que esse critério é aceito e respeitado pelo Secretário de Administração Penitenciária, pelo promotor de execução e pelo defensor público” (BRASIL, 2009, p. 277). 66 Neste ponto, merecem destaque as conclusões da CPI Carcerária acerca da indiferença com a mulher reclusa e sobre os impactos na sua família: “(...) na prática, que as políticas de execução penal simplesmente ignoram a questão de gênero. (...) Há crianças recém-nascidas na maioria dos presídios do País, muitas delas vivendo em condições subumanas, como a CPI constatou em Recife, onde, na Colônia Bom Pastor, vimos um bebê de somente seis dias dormindo no chão, em cela mofada e superlotada, apenas sobre panos estendidos diretamente na laje. (...) Nas cadeias

femininas, nem mesmo absorvente higiênico ou remédios para cólicas estão disponíveis.(...). Quanto aos absorventes, quando são distribuídos, são em quantidade muito pequena, dois ou três por mulher, o que não é suficiente para o ciclo menstrual. A solução? As mulheres pegam o miolo do pão servido na cadeia e os usam como absorvente. (...) Acompanhamos casos de presas com câncer de mama e outros problemas graves simplesmente deixadas à morte, sem atendimento (BRASIL, 2009, p. 204, 205 e 283). Sobre o descaso com a mulher presa, vale lembrar o fato, ocorrido no Pará, da adolescente de quinze anos que “ficou presa por mais de trinta dias em uma cela da Cadeia Pública de Abaetetuba com cerca de vinte presos do sexo masculino, sendo torturada e estuprada repetidamente, às vistas das autoridades que administravam a unidade. A menina foi “resgatada” pelo Conselho Tutelar local, após sofrer as mais variadas e constantes violências sexuais e psicológicas. O Caso Lidiany, porém, não é único. A CPI acompanhou em, outros Estados, situações semelhantes, e, pior, muitas vezes, as autoridades responsáveis tratam a questão como de somenos importância. Ouvimos de diversos delegados, promotores, agentes penitenciários e até juízes que “quando não tem onde prender mulher, a gente coloca com os homens, mesmo... Fazer o quê?”. (...) Detectamos outros casos semelhantes ao daquela jovem. Encontramos mais duas detentas, uma já havia tirado cinco meses de cadeia com mais 38 homens, no Estado do Pará — esta inclusive engravidou de um dos presos e teve um filho —, e uma outra detenta que ficou presa por seis meses, já tirou cadeia acho que duas vezes e tem dois filhos de presidiários. Ela não sabe nem quem é o pai, porque teve de fazer sexo com outras pessoas também, dentro do sistema prisional” (BRASIL, 2009, p. 285). 67 A locução foi enfaticamente repetida pela imprensa americana em manchetes (como em “Nothing works!”), o que contribuiu para a sua difusão. O original da entrevista de Martinson à revista “The public interest” está disponível em: http://pt.scribd.com/doc/58100576/MARTINSON-What-WorksQuestions-and-Answers-About-Prison-Reform. Acesso em: 25 out. 13. 68 Um estudo feito nas dependências das instituições penais do estado de Ohio relatou que a “velocidade de reincidência” entre os jovens ofensores, na verdade, se eleva com cada institucionalização (VITO, Gennaro F; ALLEN, Hary E. Shock probation in Ohio: a comparison of outcomes. International journal of offender therapy and comparative criminology, vol. 25, no. 1, 1981, pp. 70-76. Disponível em: http://ijo.sagepub.com/content/25/1/70.extract. Acesso em: 15 out. 10). Esta experiência foi confirmada numa pesquisa sobre os presos adultos de prisões estaduais da Califórnia (GREENWOOD, Peter W; TURNER, Susan. Selective incapacitation revisited, RAND publication, Santa Monica, California, 1987. Disponível em: http://www.rand.org/pubs/reports/R3397.html. Acesso em: 25 out. 13.). A conclusão de ambas é que as prisões são criminógenas — produzindo a mesma mazela que pretendem tratar. 69 Neste sentido, o criminologista nova-iorquino afirmou: “the present array of correctional treatments has no appreciable effect - positive or negative - on rates of recidivism of convicted offenders” (MARTINSON, 1972, p. 317); “…rehabilitative efforts that have been reported so far have no appreciable effect on recidivism” (MARTINSON, 1974, p. 25). 70 Relatório do caso disponível em: http://laws.findlaw.com/us/488/361.html. Acesso em: 25 out. 13. 71 Nas palavras de Martinson (1972, p. 327), “on the whole, the prisons have played out their allotted role. They cannot be reformed and must be gradually torn down”. 72 Consoante Foucault (2008, p. 31-32), “uma pena, para ser considerada um suplício, deve obedecer a três critérios principais: em primeiro lugar, produzir uma certa quantidade de sofrimento que se possa, se não medir exatamente, ao menos, apreciar, comparar e hierarquizar; [...] o suplício faz parte de um ritual. É um elemento na liturgia punitiva, e que obedece a duas exigências, em relação à vítima, ele deve ser marcante: destina-se a [...] tornar infame aquele que é a vítima. [...] e pelo lado da justiça que o impõe, o suplício deve ser ostentoso, deve ser constatado por todos, um pouco como seu triunfo.”

73 Silva Júnior (2009, p. 11) explica que, nos processos secretos, o acusado não sabia qual era a imputação feita contra si, tampouco os depoimentos tomados ou as provas apuradas. “Imperava o entendimento de que, sendo inocente, de defesa o acusado não precisava, enquanto se fosse culpado, a ela não teria direito. Era a influência, ainda, de alguns dogmas da concepção religiosa”. 74 Segundo o cientista político, o §51 da referida lei determina: “abolir para sempre a pena de morte contra qualquer réu, seja primário ou contumaz, e ainda que confesso e convicto de qualquer delito declarado capital pelas leis até aqui promulgadas, todas as quais ficam revogadas e abolidas no que a isso se refere” (BOBBIO, 2004, p. 69). 75 Um estudo feito entre estados americanos que aplicam a pena de morte como sanção e os que não a aplicam demonstrou que a taxa de homicídios, entre os anos de 1991 e 2011, é menor nos que não a adotam, o que denota a ineficácia do alardeado efeito dissuasório da pena de morte em relação a outras menos severas. Pesquisa disponível em: http://www.deathpenaltyinfo.org/deterrence-stateswithout-death-penalty-have-had-consistently-lower-murder-rates. Acesso em: 18 fev. 13. Vale ainda mencionar outra interessante pesquisa feita pelos americanos Radelet e Lacock que concluiu haver consenso entre os maiores criminologistas do mundo de que a pena de morte, por exemplo, não adiciona qualquer efeito dissuasor significativo além do que já faz uma prisão por longo prazo. Disponível em: http://www.deathpenaltyinfo.org/files/DeterrenceStudy2009.pdf. Acesso em: 18 fev. 13. 76 Para exemplificar seu argumento, Bobbio (2004, p. 71) cita a frase de Dostoiévski em O Idiota, atribuída ao príncipe Myshkin: “E, então, se alguém matou, por que se tem de matá-lo também? Matar quem matou é um castigo incomparavelmente maior do que o próprio crime. O assassinato legal é incomparavelmente mais horrendo do que o assassinato criminoso”. 77 Em 1976, Andrew von Hirschi era o diretor do referido comitê, que concluiu que as sentenças de reabilitação eram, muitas vezes, excessivamente longas e desproporcionais à ofensa cometida e que, por esta razão, o modelo just deserts deveria substituir o vigente (BARTON, A., 2004, p. 1). 78 Neste aspecto, um argumento a favor do modelo just deserts é que ele ofereceria um nível de proteção aos inocentes, inexistente em outras filosofias (ao menos em tese). Por exemplo, a punição de um inocente poderia ser justificada, teoricamente, dentro de uma teoria de dissuasão geral rigorosa, segundo a qual justifica-se a imposição do castigo a um inocente, desde que dissuada outros potenciais ofensores, o que seria benéfico para a sociedade em geral. Como uma teoria retribucionista, o just deserts defende sanções apenas aos culpados e considera a punição do inocente — independentemente de qualquer consequência positiva que possa ser alcançada com ela — como inerentemente injusta (BARTON, A., 2004, p. 1). 79 Alana Barton é coordenadora do programa de criminologia e justiça criminal da Universidade Edge Hill, na Inglaterra. 80 A autora revela que, na prática, há alguma dificuldade em estabelecer valores de referência para a proporcionalidade das sentenças. Nos Estados Unidos, estados tradicionalmente mais liberais (como Minnesota) introduziram “escalas” de castigo mais moderadas, ao passo que estados tradicionalmente mais punitivos (como o Novo México) se valem de parâmetros muito mais duros. Consequentemente, naquele país, continua a haver grandes diferenças nas sentenças que os indivíduos recebem por delitos semelhantes (BARTON, A., 2004, p. 2). 81 Barbara Hudson, socióloga, foi professora na University of Central Lancashire, Reino Unido e crítica da abordagem just deserts, dedicando-se à construção de uma “teoria social de culpabilidade”. Para a autora “culpability should be able to be reduced or nullified by economic duress or similar circumstantial constraint, and that in every case, assessment of culpability should be informed by an understanding of freedom of choice as a matter of degree, rather than seeing offenders as either totally freely-choosing, or totally determined” (Hudson, 1995, p. 76). 82 Oportuno aqui ressaltar a opinião de Noberto Bobbio para quem, em matéria de bem e de mal, prisão

ou desencarcerização, pena de morte ou não, o princípio da maioria não é válido. Isso porque “as pesquisas de opinião provam pouco, já que estão sujeitas às mudanças de humor das pessoas, que reagem emotivamente diante dos fatos de que são espectadoras. É sabido que a atitude do público diante da pena de morte varia de acordo com a situação de menor ou maior tranquilidade social. Se não tivessem ocorrido o terrorismo e o aumento da criminalidade nestes últimos anos, é provável que o problema da pena de morte sequer tivesse sido levantado” (BOBBIO, 2004, p. 68). 83 Seffair (2013, p. 9) explica que a população tem a percepção de que polícia eficiente é aquela que realiza muitas prisões e desenrola inquéritos, que Ministério Público eficiente seria aquele que oferece mais denúncias e que justiça eficiente é a que apresenta maiores índices de condenação, não importando a forma de fazê-lo. Por estas razões, as políticas públicas na área da segurança, no Brasil, privilegiam o encarceramento como estratégia de dissuasão da prática de outros crimes, mesmo diante de evidências científicas de que tal estratégia não obteve êxito em outros lugares. 84 Note-se que a justiça restaurativa não se confunde com a vingança privada e que uma reação violenta ou desproporcional da vítima ao delito não contribui para diminuir seu sofrimento. Exemplo disso ocorreu numa escola de São Caetano do Sul, em um caso de bullying: uma menina foi apelidada de “testuda” e assim chamada por meses. Em determinado dia, ela agrediu violentamente quem a tratava por esse apelido. Levado o caso ao círculo restaurativo, ela pode apontar o quanto o apelido a incomodava e a fazia sofrer. O autor da alcunha (e vítima da agressão) disse não imaginar o impacto que aquele apelido lhe causava. As partes chegaram a um acordo e o caso revelou o quanto a menina ainda se sentia vítima de uma conduta opressora e indesejada, por mais que tenha reagido em excesso. O círculo restaurativo pode, assim, equacionar o problema com maior profundidade e satisfação a todos (MELO, EDNIR e YAZBEK, 2008, p. 63). 85 Este mecanismo surgiu no final dos anos 60, nos países de tradição anglo-saxã (sistema americano, britânico, australiano e canadense, entre outros países), em busca de vias alternativas ao sistema legal, ou seja, de instâncias não oficiais e mecanismos informais que pudessem resolver os conflitos com eficácia e menor custo (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 454). 86 Sobre o significado desta mudança de orientação, Beristain (2000, p. 63) afirma: “A nova espistemologia tem de prestar atenção ao direito penal solidário, fraternal, generoso e criador, que saiba converter o esterco do delito em flores do companheirismo, o direito talional no direito premial”.

PARTE II A EMERGÊNCIA DO PARADIGMA DA TRANSMODERNIDADE DA INSURGÊNCIA À ASSIMILAÇÃO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA?

CAPÍTULO III

DIÁLOGOS ENTRE A FILOSOFIA DO DIREITO, A SOCIOLOGIA JURÍDICA E A TEORIA POLÍTICA FUNDAMENTOS PLURAIS DO NOVO PARADIGMA “Paradigma” é a expressão utilizada por Thomas Kuhn para se referir ao conjunto de avanços científicos universalmente reconhecidos que, por algum tempo, fornecem problemas e soluções-modelo para uma comunidade de pesquisadores (KUHN, 1992, p. 13). Um paradigma define os problemas legítimos e métodos de pesquisa em uma determinada disciplina e conquista novos adeptos para além das abordagens triviais, ofertando a esses profissionais desafios inéditos por resolver. Um paradigma domina uma disciplina científica, impondo sua matriz conceitual e suas estratégias cognitivas para a solução de várias questões. À proporção que se desenvolve e amadurece, ele revela incapacidades ocasionais para enfrentar novas vicissitudes. As respostas produzidas ao longo das pesquisas não correspondem mais às expectativas da comunidade científica. O paradigma é, então, deflacionado ou abandonado quando estudiosos instigados começam a procurar novas fórmulas e soluções. Não se trata simplesmente da passagem de uma opção teórica para outra, mas de uma mudança epistemológica radical. Esta ruptura oportuniza uma forma diferente de pensar e proporciona novos modelos e teorias que desafiam o modo tradicional de interpretar e explicar eventos. Obviamente, esta mudança gera conflitos e resistências cognitivas que são ainda mais evidentes pelo fato de que não só o modo de configurar e lidar com problemas são questionados, mas também a habilidade de cientistas e profissionais tradicionais até então considerados como depositários do “conhecimento oficial” (SALVINI, 2006, p.1). Neste estudo, utilizamos a noção de paradigma e de crise paradigmática de Kuhn para demonstrar a inadequação das respostas dadas para o crime pelo nosso sistema de justiça criminal e a necessidade da sua superação. A aplicação do conceito kuhniano de paradigma das ciências sociais (soft

sciences) - na qual se costuma incluir o Direito87 - seria, a princípio, questionável, visto que o próprio físico e filósofo atribui a estas ciências um carácter pré-paradigmático distinguindo-as das ciências naturais (hard sciences) — essas, sim, paradigmáticas. Isso se deve ao fato de que, enquanto nas ciências naturais é possível a formulação de um conjunto de princípios e de teorias sobre a estrutura da matéria que são aceitos sem discussão por toda a comunidade científica, nas ciências sociais não haveria consenso paradigmático, pelos seguintes motivos: os fenômenos sociais são de natureza subjetiva e, como tal, não se deixam captar pela objetividade do comportamento; as ciências sociais não dispõem de teorias explicativas que lhes permitam abstrair do real para depois buscar nele, de modo metodologicamente controlado, a prova adequada; as ciências sociais não podem estabelecer leis universais porque os fenômenos sociais são historicamente condicionados e culturalmente determinados e as ciências sociais não podem produzir previsões fiáveis, porque os seres humanos modificam o seu comportamento em função do conhecimento que sobre ele se adquire (SOUSA SANTOS, 2010, p. 20). Trata-se, entretanto, de uma concepção de ciência social típica do modernismo. Este modelo parte de uma visão mecanicista que distingue entre natureza e ser humano, entre a matéria e a natureza que a compõe. Porém, observa Sousa Santos, essa distinção dicotômica entre ciências naturais e ciências sociais deixou de ter sentido e utilidade, pois todo o conhecimento científico-natural é também científico-social. Há uma progressiva fusão das ciências naturais e sociais que coloca a pessoa, autor e sujeito do mundo, no centro do conhecimento. Ela revaloriza conceitos como ser humano, cultura, sociedade, historicidade, processo, liberdade, autodeterminação e até consciência (SOUSA SANTOS, 2010, p. 44). Esta ciência atual, unívoca, reconhece que não se possui a verdade objetiva de forma constante e permanente, e que não é possível uma pretensa e utópica validez universal de seus princípios. Envida uma busca constante e permanente pela verdade, pela explicação evolutiva dos diversos fenômenos naturais e sociais num continuum (FRIEDE, 2009, p. 237). Por isso, o conceito de paradigma científico de Kuhn se aplica a esta ciência enriquecida, na qual se inclui o Direito. A reforçar este argumento está a observação de Freitas Filho (2003, p. 30), de que vigora entre os operadores do direito um conjunto de crenças, o

qual possui certa unidade e uma aceitação por estes profissionais, ainda que não se faça uma opção declarada por ele. É a chamada “cultura jurídica”, uma postura ideológica e teórica que guia a prática jurídica (a chamada “cultura jurídica”88) à qual o conceito de paradigma é também adequado. Rogério Schietti observa que a cultura jurídica no Direito costuma ser resistente ao pensamento crítico, o que acarreta lentidão ao seu processo de atualização e modernização: [...] a Ciência do Direito é, quiçá, a que ostenta maior lentidão no seu processo de atualização e modernização. Enquanto a Medicina, a Engenharia, a Física e outras ciências avançam a passos largos, renovando seus postulados e aperfeiçoando suas técnicas, em um ritmo compatível com a flexibilidade da sociedade pós-industrial, o Direito do século XXI ainda é, na sua essência, muito similar ao que se ensinava e praticava nas primeiras décadas do século XX. Nossa formação acadêmica e profissional dificulta-nos pensar criticamente o Direito e acompanhar o seu processo de evolução, bastando olhar o abismo ideológico e semântico que separa o Código de Processo Penal da Constituição Federal, o que já bastam para impelir os intérpretes e aplicadores do direito a uma releitura atualizadora de certos dogmas e institutos jurídicos mantidos intactos no percurso de nossa história colonial, imperial e republicana (CRUZ, 2013, p. 52).

Segundo o autor, não há como dissociar a modernização das instituições da mudança na cultura jurídica: De fato, mesmo se tivéssemos o melhor código de processo penal do mundo e as melhores e mais aparelhadas instituições, nenhum resultado concreto e efetivo se alcançaria sem a necessária mudança de mentalidade por parte dos operadores do Direito. Afinal, não se pode reformar a instituição sem uma prévia reforma das mentes, mas não se podem reformar as mentes sem uma prévia reforma das instituições (Morin, 2000: 99) (CRUZ, 2013, p. 52).

Um exemplo de mudança paradigmática significativa na criminologia (em que pese alguns autores, como Salo de Carvalho (2009, p. 299-300) assim não a considere, foi a virada criminológica (criminological turn) ocorrida nas décadas de 1940 e 1950, com a publicação dos estudos sociológicos de Sutherland (The White Collar Crime) e Becker (Outsiders: Studies in the Sociology of Deviance), que desestabilizaram a estrutura de pensamento positivista à época, ao ponto de serem tachados de “anti-criminologia”89. O trabalho dos autores inovou ao superar o conceito de criminalidade (que buscava no homem as causas do crime, tendo-o como objeto de

investigação), em favor da noção de criminalização (como processo social dinâmico, no qual o homem é sujeito). A partir de então, a criminologia assumiu a feição crítica e suas investigações foram “direcionadas à crítica dos processos de criminalização (política criminal), dos fundamentos dogmáticos do direito e do processo penal (crítica à dogmática penal) e da aplicação judicial do direito penal e do processo penal (dogmática penal crítica)” (CARVALHO, 2009, p. 305). Em que pese, vez por outra, um estudo criminológico remontar à etiologia do crime, como visto na seção 4.1, este tipo de abordagem não encontra guarida significativa no pensamento criminológico atual90. A virada criminológica desafiou, portanto o paradigma então vigente, em que pese não ter significado uma ruptura completa com este. Afinal, lembra Khun, a transição paradigmática não é instantânea, senão um processo sem limite de tempo pré-definido. Atualmente, no âmbito penal, a cultura jurídica vigorante é a punitiva. Nela, o ofensor deve pagar o mal causado por meio da pena, a qual serve para castigá-lo, desestimulá-lo (assim como os demais cidadãos), neutralizálo (retirando-o do convívio social) e tratá-lo para que volte à vida em sociedade. Entretanto, o paradigma punitivo contemporâneo não tem logrado oferecer soluções adequadas para o problema da criminalidade crescente seja porque a reação ao crime não tem sido rápida, eficaz e capaz de prevenir novos delitos, seja porque a alegada finalidade de “ressocialização” do ofensor, se considerada como forma de intervenção benéfica e positiva nele, também não tem sido alcançada. Tal situação se amolda ao que Kuhn descreve como crise paradigmática, na qual um número significativo de anomalias se acumula e as instituições deixam de responder apropriadamente a elas. A identificação dos limites e das insuficiências estruturais de um paradigma é resultado do grande avanço no conhecimento que ele mesmo propiciou. Por outro lado, esse aprofundamento do conhecimento permite ver a fragilidade dos pilares em que se funda. Neste cenário, a disciplina é lançada em um estado de crise e novas ideias passam a ser consideradas. A nova proposta paradigmática é pelo reconhecimento do crime como um conflito humano, que gera expectativas outras, além do mero castigo ou da satisfação da pretensão punitiva estatal. A mudança reclamada é por um novo modelo de justiça penal, mais humano e integrador, que contemple o

delito como um problema social e comunitário, capaz de responder às demandas legítimas de todos os implicados no fenômeno criminal: a reparação em favor da vítima, cujo protagonismo foi redescoberto; a reintegração do ofensor e uma eficaz política criminal prevencionista (racional e com o menor custo social possível). A demanda é pelo desenvolvimento de uma nova cultura, resistente às práticas simplificadoras de combate à criminalidade (seja a da violência estatal em resposta à violência do ofensor ou, no outro extremo, do permissivo que impede a sua responsabilização) (BRANCHER, 2007, p. 7). Trata-se de um paradigma bastante ambicioso e que requer a flexibilização de procedimentos formais, de modo a abranger soluções espontâneas e comunitárias. Representa uma superação do paradigma anterior, demandando novas lentes para antigos problemas. Entretanto, é provável que, por algum tempo, ainda terá que se conviver inusitadamente com ambos os paradigmas, até que os operadores do sistema de justiça criminal se apercebam do mau funcionamento do sistema de justiça criminal e da necessidade de se encontrar caminhos alternativos e até que vítimas, ofensores e comunidades se deem conta de que o sistema de justiça criminal não os atende, que ignora as suas necessidades, e que desejariam ser escutados e participarem ativamente da solução de seus conflitos. 3.1 Contextualizando a revolução: a pós-modernidade 91 O paradigma vigente concebe o crime como sendo uma violação das leis do Estado. O delito é um fato “típico, antijurídico e culpável”, merecedor de sanção. Há um enfrentamento simbólico entre a lei e o violador, e a este é atribuído o papel de sujeito ativo da infração, enquanto a vítima é meramente o sujeito passivo da relação. Essa concepção ideal de um sujeito formal, encapsulado em si mesmo e apartado de suas relações humanas, é típica do paradigma moderno92. Conforme Warat (2001, p 160), esta consideração de pessoas como meros “sujeitos jurídicos”, o ser pensado como um ente é uma distorção violenta, viciosa e uma denegação de humanidade. Esta visão impessoal e mecanicista do indivíduo não se coaduna com a peculiaridade do ser humano, único e irrepetível. Impõe-se, portanto, uma mudança de paradigma que reconheça a singularidade do ser, a humanidade presente nas suas relações (a “outridade”) e a humanização93 dos seus conflitos.

No vigor deste novo paradigma jurídico-cultural, a justiça passa a se preocupar com a qualidade de vida e não em castigar supostos desvios valorativos, morais ou de ações, “considerados como tais por uma civilização que faz da ordem sua neurose”. A pós-modernidade prenuncia a emergência de um paradigma de sentidos e de sensibilidades, baseada na relação interpessoal como condutora da produção de um direito transmoderno (WARAT, 2001, p 160). Consoante o professor Warat (2001, p. 179), o discurso científico moderno emprega termos como determinismo, racionalidade, universalidade e progresso. O direito não escapou a esses pressupostos míticos e crê na existência de fórmulas mágicas que podem realizá-los na sociedade, na forma de uma geometria racional e unívoca, como simbolizam os tipos penais e suas penas. Atestando o repúdio às grandes narrativas modernas e às suas verdades universais também no direito, o comentário de Salo de Carvalho (2009, p. 316): A área da penalogia parece ser a de maior sensibilidade em termos de recepção da crítica pós-moderna, [...] sobretudo, pelo esgotamento dos discursos de legitimação (teorias absolutas, relativas e ecléticas) a partir da não-correspondência das crenças em suas finalidades com o real impacto da punição sobre o criminalizado e sobre a sociedade.

O autor acusa a modernidade, no âmbito das ciências criminais, de simplificar o controle social punitivo, com a fixação de uma resposta penal unívoca (o cárcere), independente da diversidade do ato praticado: A fórmula é relativamente simples: reduzir os problemas em casos-padrão, vinculandoos a respostas-receituário. O sintoma do esgotamento da fórmula dogmática é percebido nas indagações, nada atuais, sobre quais os critérios que permitem conceber condutas tão significativamente díspares sob o mesmo rótulo (crime) e como se justificativa à proposição de mesma resolução (pena) (CARVALHO, 2009, p. 319).

Para Salo, a associação delito-pena constitui uma inaceitável simplificação, porque ela abarca sob a mesma categoria (crime), problemas muito distintos, propondo-lhes a mesma solução (pena). O mesmo se sucederia em relação à criminologia. Segundo o autor, ela poderia, no máximo, fazer eleições parciais e sugerir respostas limitadas ao problema criminal, já que em sociedades complexas como a nossa, não seria cabível propor um projeto metodológico universal: A vontade de sistema (pretensão de totalidade) além de revelar o caráter narcísico

patológico das ciências (criminais) expõe sintoma de absoluta ausência de maturidade face à falta de percepção dos limites do possível, sendo que, todas as metodologias, até mesmo as mais óbvias, têm seus limites. Assim, invariavelmente, apresentam profundos déficits, teóricos ou práticos (CARVALHO, 2009, p. 330).

Em suma, o sistema de justiça criminal, positivista, dogmático, baseado na figura do ofensor e na atribuição de culpa, parte de um ponto de vista de “universal” para as situações problemáticas, sem considerar o seu contexto ou fornecer alternativas emancipatórias para enfrentá-las (HULSMAN, 2004, p. 68). Segundo Boaventura de Sousa Santos, a ordem científica emergente questiona o dogmatismo e a autoridade refutando todas as formas de positivismo, seja ele lógico ou empírico, bem como quaisquer mecanicismos94, seja materialistas ou idealistas. Na seara criminal, acrescenta Salo (2009, p. 320), a era pós-moderna incorpora o fator “complexidade” de modo a possibilitar o reconhecimento da diferença entre os atos desviantes e os criminalizados e permitir a construção de respostas distintas para eles (sejam formais ou informais) e diminuir a violência do controle estatal. Revaloriza-se, portanto, o que convencionalmente se chama de “humanidades” ou “estudos humanísticos”, especialmente em matéria de crime e punição (SOUSA SANTOS, 2010, p. 9-10). Nas palavras de Warat (2001, p. 191): como se fosse possível, fazem de conta que não existem conflitos existenciais concretos que transbordam permanentemente a magia sonhada. Uma magia que, no lugar de ensinar que a riqueza estava na imprevisibilidade, na diversidade, nos fez crer, de modo extremadamente confiante, na uniformidade, no já dito desde sempre.

Entretanto, adverte o autor, há um momento em que a utopia moderna decai em favor da condição pós-moderna, cujos pilares são a desconstrução, a alternativa e a descentralização. Desconstruir, segundo a proposta derridiana, é “desnudar um edifício para que apareçam suas fissuras, denunciando suas aporias, ou mais contundentemente: escancarar as escandalosas fendas irracionais e insensatas dos discursos considerados sérios” (WARAT, 2001, p. 159 e 188). Ao descontruir, o pós-modernismo, abdica-se das ilusões racionais da modernidade e “deixa de lado as ilusões semiológicas dos grandes relatos que fundamentaram o sentido comum manipulador dos juristas da modernidade” (WARAT, 2001, p. 159).

Salo de Carvalho (2009, p. 312) informa que as tendências pós-modernas causaram uma mudança na agenda da investigação criminológica: eles substituíram seus tradicionais objetos de análise — crime, criminoso, reação social, instituições de controle, poder político e econômico — pela formação da linguagem da criminalização e do controle. Analisa-se, assim, a “gramática do crime”, um estilo punitivo vigente nos círculos informais de controle social. 3.1.1 A superação paradigmática rumo à transmodernidade A transciência, diferentemente da pós-modernidade, não se destina a criticar a razão, mas a ampliá-la, estendendo-a ao sensível, ao que se vive na experiência. Se a racionalidade moderna não aceitava o caótico, encerrando-o em objetividades e conceitualidades, buscando fundamentos absolutos e universais; a transciência aceita a contradição, o caos, a fragmentação, o imprevisível na conduta de um indivíduo (WARAT, 2001, p. 190). Salienta Sousa Santos (2010, p. 28) que o novo paradigma em vez da eternidade, busca a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a autoorganização; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente95. A expressão “transmoderna” tem a ver com uma tentativa de retorno para a autonomia, uma transição impulsionada por uma nova sensibilidade como forma de a pessoa encontrar-se consigo mesma e com os outros. O dever da ética é substituído por solidariedade, compaixão e alteridade e o normativismo do Direito é substituído por mediação, participação direta e de encontro face a face (WARAT, 2001, p. 186). Esse trânsito é chamado por Warat de “transmodernidade”. A transmodenidade não diz respeito necessariamente à alteridade, mas sim ao que Warat (2001, p. 209) chama de outridade: um espaço ético de reconhecimento, existente entre duas pessoas, que lhes permite se enxergarem mutuamente, descontruírem-se e, mirando-se um no outro, descobrirem o que falta em suas supostas existências completas. A ciência moderna preconizava o conhecimento objetivo, factual e rigoroso, sem a interferência dos valores humanos ou religiosos. Esta foi a base para a distinção dicotômica, estanque e incomunicável entre sujeito/objeto que metodologicamente se articularam pelo distanciamento. O

paradigma transmoderno, por seu turno, introduz a consciência do sujeito no próprio objeto do conhecimento, ocasionando uma transformação radical nesta distinção sujeito/objeto. A transmodernidade prega outra forma de conhecimento, um conhecimento compreensivo e íntimo que não separa, antes que se une ao pesquisador que é estudado. Para ela, todo conhecimento científico é também autoconhecimento (SOUSA SANTOS, 2010, p. 33 e 50). Na transmodernidade, o conhecimento científico traduz-se num saber prático, ou seja, o conhecimento científico visa, em última instância, constituir-se em ensinar a viver, em senso comum. Os sistemas de crenças, os juízos de valor não são colocados antes nem depois da explicação científica da natureza ou da sociedade, mas são partes integrantes dessa justificação96. Na origem de uma nova racionalidade estão o senso comum e a humanidade, interpenetrados pelo conhecimento científico (SOUSA SANTOS, 2010, p. 52). Neste paradigma jurídico-cultural que está aflorando, a ciência abandona tendências totalizantes e universalizadoras em direção à fragmentação. Acerca da fragmentação no campo do saber criminológico, um dos sintomas da crise paradigmática, o comentário de Salo de Carvalho (2009, p. 311): O fenômeno da fragmentação e, sobretudo, a forma pela qual é tratado pelos teóricos da criminologia, configura espécie de sintoma, ou seja, como situação que indicaria, em linguagem khuneana, crise paradigmática. Representaria o ponto de esgotamento de determinado pensamento — no caso o da racionalidade criminológica moderna (instrumental) no qual decisões estratégicas necessitam ser tomadas para salvação, redefinição, reconstrução, abandono ou esfacelamento do modelo científico convalescente. A fragmentação pós-moderna, observa Sousa Santos, não é disciplinar, e sim temática. “Os temas são galerias por onde os conhecimentos progridem ao encontro uns dos outros. Ao contrário do que sucede no paradigma atual, o conhecimento avança à medida que o seu objeto se amplia, ampliação que, como a da árvore, procede pela diferenciação e pelo alastramento das raízes em busca de novas e mais variadas interfaces” (SOUSA SANTOS, 2010, p. 48). 3.1.2 Justiça restaurativa e transmodernidade Nesta senda, a justiça restaurativa e a proposta transmoderna possuem muita coisa em comum. No âmbito restaurativo, o próprio ideal de justiça é

redefinido em prol de um arquétipo reparador e integrador, afinando-se com o plano transmoderno de criação de um espaço de convergências, solidariedade e compaixão. A justiça restaurativa contempla o conflito criminal de modo diferenciado, optando por tratá-lo (crime handling) e não o afastar ou suplantar. Ela reconhece a sua especificidade, complexidade e diversidade, muito diferentemente da visão impessoal e mecanicista da modernidade mencionada (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 454). Ela o personaliza, de forma a resgatar sua dimensão humana, real, concreta e histórica, abrindo espaço para a humanização, para o reconhecimento da “outridade” e para a manifestação de sentimentos e de sensibilidades, tal como na proposta transmoderna. Nela, as partes têm a oportunidade de exteriorizar suas vivências com relação ao fato conflitivo, satisfazendo a sua dimensão emocional e relacional, sem as limitações e os condicionamentos próprios do processo penal, que instrumentaliza e revitimiza seus personagens (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 451 e 460)97. Já a justiça moderna “despersonaliza o conflito delituoso, distancia artificialmente autor e vítima e propicia a indiferença e a falta de solidariedade do ofensor em relação à vitima e à comunidade”. Nela, a intervenção no conflito é feita de modo técnico e formalista. Sua orientação repressiva a obriga a conformar-se com a imposição do castigo ao culpado, sem reclamar deste mudança de atitudes” (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 448). Sob o prisma da modernidade, a justiça criminal não apresenta respostas aos conflitos sociais. Pelo contrário, torna-se uma fonte de conflitos, na opinião de Louk Hulsman (1993, p. 128). O criminólogo holandês (2004, p.45) acrescenta que o sistema de justiça criminal reconstrói (ou constrói) o crime e a ordem dos acontecimentos de um modo bastante específico, produz uma construção artificial da realidade a partir de um episódio definido no espaço e no tempo, e imobiliza a ação daquele momento, voltando-se contra uma pessoa, um indivíduo, a quem pode atribuir o comportamento (a causalidade) e a culpa. Como resultado, o indivíduo é isolado de seu ambiente, dos amigos, da família, do seu mundo e da vítima e são ignorados aspectos importantes do conflito. As pessoas são afastadas artificialmente de seus contextos e separadas. A organização cultural da justiça criminal criaria, assim, “indivíduos fictícios” e uma

interação “fictícia” entre eles, desconsiderando a sua humanidade, tão valorizada pela perspectiva transmoderna. Hulsman questiona a validade e a legitimidade desta reconstrução que desconsidera e expropria seus principais interessados. Nas suas palavras, essa reconstrução da realidade não é válida, já que “o menu não é a refeição, o mapa não é o território. Um evento, objeto de um discurso ou de qualquer forma de processo decisório, é sempre reconstruído. A reconstrução jamais é idêntica ao evento.” Para o professor, ela somente seria válida se baseada nas intenções dos atores principais no mundo real (HULSMAN, 2004, p. 42). A crítica que o autor faz ao sistema de justiça criminal consiste no fato de que ele oferece uma construção inválida (não realista) dos fatos e, consequentemente, também confere uma resposta não realista e não efetiva. Ele tende a “influenciar organizações como a polícia e os tribunais de um modo tal que elas se tornam autopoiéticas e não podem lidar de um modo criativo com as situações problemáticas e tampouco aprender com elas” (HULSMAN, 1993, p. 123). O que o sistema faz, em síntese, é “segmentar, de modo artificial, o que vai em nossos corações” (HULSMAN, 2004, p. 62), na contramão da sensibilidade transmoderna. Por outro lado, os desafios multifacetados da justiça contemporânea exigem dos julgadores e aplicadores do Direito criatividade e empenho para a sua solução. É necessário que, a despeito do arcabouço jurídico moderno, muitas vezes rígido e defasado, que se prepare para lidar com os conflitos emergentes em uma sociedade heterogênea e complexa. No arcabouço moderno, o Estado continua atuando com base em instrumentos normativos obsoletos, rigorosos e sem vínculos com a realidade plural emergente. As demandas atuais geralmente possuem uma dimensão comunitária e grupal que desafiam as regras processuais vigentes (FARIA, 2004, p. 106)98. Por compreender a especificidade dos conflitos, a justiça restaurativa reconhece a diversidade das soluções que eles reclamam e oferece possibilidades de respostas mais criativas, mais adequadas a cada um deles, renegando a já referida tendência totalizante da modernidade. A justiça restaurativa propugna fórmulas de intervenção no conflito igualmente diferenciadas (como a mediação, o círculo de paz, o círculo de sentença etc.), todas de índole pacificadora, comunicativa, participativa, integradora

e comunitária (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 451). Ela permite o “trânsito” referido por Warat, no sentido desta nova sensibilidade, como forma do ser encontrar-se consigo mesmo e com os outros. O elevado conteúdo pedagógico dos procedimentos restaurativos possibilita que uma solução para o conflito emerja como consequência natural do processo de comunicação autor-vítima, da percepção direta do dano causado, com potencial de mudança de atitudes dos envolvidos, rechaçando qualquer imposição coativa ou heterônoma de desfechos. Aqui ela coincide com o culto à riqueza, à diversidade e à imprevisibilidade transmodernas. Em comum entre o paradigma restaurativo e a transmodernidade está a valorização da “micro-justiça do cotidiano”, comprometida com as possibilidades reais e usuais, mediante a afirmação e o reconhecimento da outridade e não da sua eliminação. Assim, a justiça restaurativa não vê no outro ou no conflito, algo nocivo, mas uma confrontação construtiva, revitalizadora. O conflito seria “uma diferença energética, um potencial construtivo” (MENDONÇA, 2008, p. 122). A justiça restaurativa, portanto, se une à transmodernidade para conferir um salto qualitativo no sistema de justiça, superando a condição jurídica moderna alicerçada no litígio, na rigidez e numa visão negativa do conflito (MENDONÇA, 2008, p. 123). Ilustra Warat (2001, p. 82): os juristas pensam que o conflito é algo que tem de ser evitado. Eles o redefinem, pensando-o como litígio, como controvérsia. [...] Jamais os juristas pensam o conflito em termos de satisfação, o conflito como forma de inclusão do outro na produção do novo.

Ressalta Rafael Mendonça (2008, p. 97) que, na maioria das vezes, os próprios sujeitos não conseguem conhecer ou elaborar seus desejos insatisfeitos e são transformados em partes, em litigantes no “processo” em que, o que hoje “ganha”, amanhã “perde”. Essa realidade gera cada vez mais indivíduos insatisfeitos e alienados de si, que em nome de uma vitória processual, valem-se das estratégias mais censuráveis do ponto de vista ético (MENDONÇA, 2008, p. 98). Warat (1998, p. 40) completa afirmando que foi assim que aprendemos retórica, ou seja, para ganhar, para perder, para argumentar não para mostrar

nossos desejos, mas para derrotar, destruir e aniquilar o outro. Vezzulla (2001, p. 59) aduz que todas essas circunstâncias contribuíram para que a sociedade, durante tanto tempo, precisasse depositar num terceiro a responsabilidade de decidir sobre seus próprios problemas, pois, deixar que um terceiro decida por nós, nos libera da responsabilidade e da angústia da decisão.

Neste paradigma de “solução de conflitos”, os “acordos de paz” a que se chegam são impostos externamente em situação de supra-ordenação, tudo isso após violentos e extenuantes enfretamentos processuais (MENDONÇA, 2008, p. 98). Revelam Passos e Penso (2009, p. 89 e 92) que, neste paradigma, “a justiça representa mais um pai protetor a quem invocar do que uma instituição solidária que está do lado das lutas comunitárias. Essa relação paternalista é vertical e, por isso, dificulta o diálogo. [...] O sistema de justiça, nesta concepção, é o único detentor dos saberes que importam na relação, é o dono do discurso, é o que fala, o inatingível que se põe à disposição”. A justiça restaurativa é um caminho democrático para superar essas perplexidades da jurisdição ordinária. Ela resgata as potencialidades emancipatórias do conflito, “como um sendero no qual os verdadeiros atores da vida são protagonistas” (MORAIS DA ROSA, 2005, p. 19). Assim é que, enquanto no sistema ordinário se fala em “jurisdição”, em alusão à função e ao poder estatal de “dizer o direito”, numa perspectiva restaurativa, a expressão mais adequada é “jurisconstrução”, para descrever a forma de elaborar a resposta para o conflito que envolve as partes (MENDONÇA, 2008, p. 124). Este termo é mais consentâneo com a natureza humana de ser inter-relacional, sendo que um dos grandes desafios, atualmente é fomentar as relações baseadas na parceria e não na dominação, tanto na esfera pública, quanto na privada (MENDONÇA, 2008, p. 42). O paradigma emergente nas “ciências abertas” testemunha a existência de conexão e comunicação constantes entre as pessoas. O humano é parte integrante na evolução da teia de conexões e comunicações que envolve o seu sistema. Essa mentalidade difere drasticamente da cosmovisão do paradigma individualista e subjetivista moderno, baseado inicialmente nas teorias econômicas liberais e neoliberais, nas quais a competitividade é o foco principal (MENDONÇA, 2008, p. 43). 3.2 O fundamento político da jurisconstrução:

a democracia deliberativa Outrora afirmou Noberto Bobbio (2004, p. 1) que “direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos não há democracia; sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos”. Igualmente, Kant concebia a democracia como instrumento de busca da paz perpétua. Neste capítulo busca-se refletir mais detalhadamente acerca dos predicados democráticos da justiça restaurativa, essenciais na busca da paz e superação do conflito (os quais supostamente a diferenciariam do sistema ordinário e poderiam contribuir para suprir o seu déficit de legitimidade, identificado na primeira parte deste estudo). Participação e deliberação, por exemplo, são duas características essencialmente democráticas cuja relevância nos é apontada, entre outros autores, por Nancy Fraser (seção 3.2.1). Essas características podem ser relativamente mensuradas, com auxílio das teorias de Sherry Arnstein e Archon Fung (seção 3.2.2) e permitem a classificação dos sistemas de justiça em “estágios democráticos” (mais avançados ou menos avançados), segundo a teoria política contemporânea, com base nos modelos desenvolvidos por Shumpeter, Robert Dahl, Joshua Cohen e Charles Sabel. A justiça restaurativa privilegia valores democráticos por meio da ampliação do rol de participantes na deliberação, pela confiança depositada na sua capacidade decisória, pelo empoderamento produzido e pela educação para a paz. Oportuna, portanto, a análise do seu potencial democrático conforme estas teorias. 3.2.1 A ampliação de atores para o debate na jurisconstrução Como é sabido, as respostas disponibilizadas pelo sistema de justiça criminal para resolução de conflitos (absolvição, sentença condenatória, transação penal, suspensão condicional do processo ou da pena etc.) são restritas e entabuladas exclusivamente entre Estado e ofensor, de modo que a vítima e a comunidade são excluídas. Ao agir dessa forma, o sistema desperdiça possibilidades proveitosas de exploração de novas respostas, e as partes — para quem haveria a possibilidade de ganhos mútuos — não têm a chance de captá-los (FARIA, 2004, p. 114).

Também, no entender de Nancy Fraser (2002, p. 19), já não convém que o Estado funcione como a única instância de justiça. Apesar da sua importância, o ente estatal constitui apenas um de vários enquadramentos possíveis numa nova estrutura emergente de múltiplos níveis. É importante, destarte, que se abra espaço para a emergência de mecanismos menos institucionalizados de resolução de conflitos e que se desloque alguma demanda dos tribunais para outras instâncias decisórias — as justiças emergentes nos espaços infraestatais (as locais, com influência comunitária) e nos espaços supraestatais (as justiças de caráter internacional e transnacional) (FARIA, 2004, p. 114). Ao mesmo tempo, este fenômeno desafia a exclusividade do exercício da função de dirimir conflitos de interesses, modificando o conceito tradicional de jurisdição, segundo o qual, o juiz deve substituir a vontade das partes99. Em várias matérias e setores (cível, empresarial, familiar etc.), o Estado — com sua estrutura organizacional formal, hierarquizada e submetida rigidamente à lei — vem delegando o monopólio adjudicatório. Ele se depara com um cenário novo e incerto no qual se movimenta para modernizar suas estruturas administrativas e para rever seus padrões funcionais, de modo a continuar assegurando a sua imprescindível independência (FARIA, 2004, p. 114)100. A demanda cada vez maior dos serviços judiciários não traduz, necessariamente, a democratização dos meios e instrumentos de acesso a ele. Conforme informações do Ministério da Justiça, as demandas da população economicamente necessitada não chegam, por muitas vezes, às instâncias formais da Justiça (BRASIL, 2005, p. 7). Na opinião de Nancy Fraser e Axel Honneth, o sistema de justiça criminal, especificamente, não privilegia a interação tampouco as diferenças de contexto das partes, tendendo a encorajar a vindita, a intolerância, o autoritarismo, etc. Apregoam, portanto, uma nova concepção de justiça não identitária que desencoraje a apartação e promova a interação entre as diferenças, o que significa rejeitar as definições habituais de reconhecimento (FRASER, 2002, p. 14). Consoante Fraser, o sistema de justiça deve incorporar uma reflexão explícita sobre o problema do enquadramento, ou seja, devemos perguntar quem são precisamente os sujeitos relevantes para a justiça e quem são os atores sociais que devem dela participar. Isso porque os padrões

institucionalizados de valor cultural sempre tratam alguns atores como inferiores, excluídos ou invisíveis, fazendo com que haja um falso reconhecimento ou uma subordinação de estatuto (FRASER, 2002, p. 15). Igualmente, Beristain (2000, p. 75 e 76) reivindica uma democratização dos poderes mais realista e que permita, ou exija, a intervenção mais direta e decisiva possível do povo na tarefa legislativa e nos organismos judiciais (a exemplo do júri). O criminólogo espanhol assume que a participação direta dos interessados conferiria ao processo maior legitimidade e o tornaria mais democrático por retirar a jurisdição penal das mãos exclusivas de profissionais governamentais, a fim de dividi-la com os implicados no conflito. Como visto na seção 1.1, a exclusão de outros implicados na discussão de assuntos de seu interesse desafia a legitimidade do processo, condição de validade do direito, segundo Habermas. Este desvio de deliberação dos envolvidos comprometeria o seu conteúdo democrático, conforme adverte Habermas (1997b, p. 10) para quem, “um conceito procedimental de democracia é incompatível com o conceito da sociedade centrada no Estado”. Consoante Habermas (1997a, p. 53), a participação deliberativa é o núcleo de uma sociedade democrática e um elemento essencial para o desenvolvimento do indivíduo. Para o filósofo tedesco, os cidadãos devem ser os próprios agentes da construção democrática, já que deles emana a vontade legítima (HAMEL, 2009, p. 1). São, portanto, considerados “parceiros” do direito e da própria democracia, mediante o exercício do direito de comunicação e direito de participação, de modo a corroborar, inclusive, com a própria legitimidade do processo101. Conforme Habermas (1997b, p. 11): Nem a pretensão de legitimidade do direito, que se comunica ao poder político através da forma do direito, nem a necessidade de legitimação, a ser preenchida através do recurso a determinadas medidas de validade, são descritas na perspectiva dos participantes, ou seja, nesta perspectiva as condições da aceitabilidade do direito e da dominação política transformam-se em condições de aceitação, e as condições de legitimidade, em condições para a estabilidade de uma fé da maioria na legitimidade da dominação.

Aduz Alessandro Baratta (1987, p. 20) que “a ideia da democracia e da soberania popular são os princípios-guia para a transformação do Estado,

não somente para um modelo formal de Estado de Direito, senão, também, para um modelo substancial do Estado dos direitos humanos.” De acordo com o autor, o respeito aos sujeitos e aos seus direitos humanos inclui não dispensar a eles apenas um tratamento institucional e burocrático, sem tornálos “ativos na definição dos conflitos de que formam parte e na construção das formas e dos instrumentos de intervenção institucional idôneos para resolvê-los, segundo suas próprias necessidades reais”. Habermas (1997b, p. 17-18) assevera a importância da deliberação para o convencimento racional dos interessados, a fim de reforçar sua confiança no jogo democrático: O abismo que se abre entre aquilo que é afirmado na perspectiva do observador e aquilo que pode ser aceito na perspectiva de participantes, não pode ser coberto apenas através de considerações racionais teleológicas [...] os cidadãos racionais não teriam razões suficientes para manter as regras do jogo democrático, caso se limitassem a isso. [...] O processo da política deliberativa constitui o âmago do processo democrático. E esse modo de interpretar a democracia tem consequências para o conceito de uma sociedade centrada no Estado. No mesmo sentido, observa Gabriel Ignacio Anitua (2013, p. 115), asseverando que as decisões judiciais devem ser tomadas pelos cidadãos e não só para eles, o que possibilitaria também gerar a reflexão democrática 102: O julgamento criminal diz respeito a toda a sociedade (que é o que se pretende em um Estado democrático) e esta deve participar do momento comunicacional em que ele se desenvolve. A função simbólica, como projeção de imagem que se quer dar para a sociedade, só terá sucesso se for feita por parte dos cidadãos, não apenas para eles. Isso permitirá, também, gerar a reflexão democrática sobre certas funções sociais que se realizam privilegiadamente no marco estatal.

A justiça restaurativa atende a esta necessidade plurifocal de justiça, já anunciada por Fraser e Honneth, por tratar também de cidadania103, do reconhecimento da vítima e do ofensor como atores decisórios, além das preocupações tradicionais de justiça destacadas pela teoria crítica, como a reintegração social do ofensor, a seletividade do sistema de justiça, a igualdade de direitos, de liberdade e de oportunidades. Esta plasticidade lhe possibilita aumentar o grau democrático nas decisões finais, à medida que a justiça restaurativa congrega todos os afetados interagindo na construção de

um desfecho para o crime em condições paritárias de expressão e comunicação. Portanto, a participação dos interessados para deliberação acerca das decisões que lhes dizem respeito está diretamente relacionada à sua eficácia, sentimento de justiça e legitimidade. Eles podem contribuir para o processo decisório participativo agregando informações relevantes sobre os contornos específicos do problema e trazendo à tona o conhecimento e os valores locais relevantes para subsidiarem um desfecho adequado. A participação também fortalece o senso de pertencimento e de responsabilidade coletiva, incentivando a compreensão e o cumprimento das decisões (SECHI, 2010, p. 112). 3.2.2 Avaliando o grau de inclusão participativa e de deliberação democrática do novo paradigma Cientistas políticos americanos como Sherry Arnstein, Archon Fung e Joshua Cohel entendem que uma decisão é democrática quanto mais inclusiva, representativa e comunicativa ela puder ser. Cada qual, por meio de elaborações gráficas reproduzidas a seguir, pretende demonstrar a contribuição destes três atributos para o incremento da condição democrática. Sherry Arnstein (1969, p. 1)104, em “A escada de participação da cidadania” (ladder of participation), argumenta que a participação do interessado em qualquer processo decisório que lhe diz respeito é valiosa na medida em que “é a redistribuição de poder que permite que os cidadãos sejam incluídos no futuro”. Ilustrando o seu argumento, ela postula uma “escada” de participação, com oito degraus, de acordo com o grau de empoderamento: manipulação, terapia, informação, consulta, apaziguamento, parceria, delegação de poder e, finalmente, o controle cidadão. Figura 1 - A escada de participação da cidadania105. controle cidadão delegação de poder grau de empoderamento parceria conciliação consulta grau de simbolismo informação terapia manipulação

não-participação

Na escada de participação da cidadania de Sherry Arnstein, a justiça restaurativa se encontra no último e mais elevado degrau de representatividade — que varia da manipulação ao controle cidadão, uma vez que seus acordos são mediados e não obtidos por meio de pura conciliação106 ou impostos por terceiros. Visando compreender o funcionamento dos mecanismos de participação em tomadas de decisões, Archon Fung (2006, p. 66)107 lançou a ideia de um “cubo da democracia” (democracy cube) que permitiria avaliar o “grau democrático” de um processo decisório, mediante a sua análise em três dimensões: quem participa (acessibilidade), como os participantes se comunicam (grau de interação) e o grau de influência das discussões nas decisões tomadas (autoridade). A primeira dimensão do cubo diz respeito a quem participa do processo decisório, ou seja, da acessibilidade à tomada de decisão. Este eixo varia do grau mais excludente (restrito aos expertos, como juízes, promotores e advogados) e passa pelos representantes eleitos (sistema americano), representantes profissionais (árbitros, mediadores), pelos representantes leigos (conciliadores, líderes comunitários) e pela participação pessoal e direta dos interessados (ofensor, vítima, comunidade), o que seria o mais inclusivo possível.

Figura 2 - Primeiro eixo do cubo: acessibilidade ao processo decisório 108. Expertos Mais excludentes

Representantes Eleitos

Representantes Profissionais

Representantes Leigos

Participação Direta Mais inclusivos

No sistema de justiça criminal comum, o número de participantes ativos é mínimo. Geralmente, só se confere voz às partes (ofensor e vítima) e testemunhas. Outros afetados pelo crime não são considerados. O ofensor não atua por si, mas apenas representado por seu advogado (salvo se habilitado para atuar em causa própria). A vítima é escutada apenas se interessar para o deslinde do processo. Vítimas e testemunhas se expressam por meio de depoimento formal, em momento próprio, limitando-se a responder ao que for perguntado. O ofensor é ouvido no interrogatório, na fase final do procedimento.

Na justiça restaurativa, o grau de participação é máximo (com participação direta e ativa de todos os envolvidos), variando apenas em número de atores. Nos círculos de sentença, este quantitativo é maior, pois reúne um grupo mais amplo de participantes do que a mediação vítimaofensor, acrescentando outras pessoas ligadas aos envolvidos, tais como familiares, amigos e colegas de trabalho. Logo, podemos concluir que neste eixo do cubo democrático de Fung (relativo à participação), a justiça restaurativa revelaria o maior potencial democrático possível, com a participação direta dos interessados. O segundo eixo do cubo classifica a interação dos participantes na tomada de decisão. O processo participativo pode variar de uma participação pouco intensa (por exemplo, escuta passiva) à mais intensa (por exemplo, interação comunicativa e decisória). Figura 3 — Segundo eixo do cubo: grau de comunicação109. Ausente/ dispensada Menos comunicativo

Mero expectador

Depoimento formal

Expressa opiniões, sentimentos e necessidades Mais comunicativo

Na justiça restaurativa, não há julgamento, mas diálogo, que é a sua base. Portanto, o seu grau de comunicação é intenso. Por meio dele, os interlocutores podem levantar pretensões de validade, de sinceridade, de verdade e de retidão, consoante assevera HABERMAS (2012b, p. 124). O processo dialógico, além de saída para se alcançar o consenso, é um meio de expressão de pensamentos, sentimentos e experiências, uma maneira de compreender melhor os fatos, suas causas bem como as consequências das ações. Por facilitar todas estas possibilidades é que a justiça restaurativa revela o maior potencial democrático possível, também nesse eixo. A terceira dimensão diz respeito ao grau de influência dos envolvidos no processo de tomada de decisão. Em muitas esferas públicas como o sistema de justiça criminal, a decisão é exclusiva do julgador ou dos julgadores (em caso de órgão colegiado). Os participantes apenas escutam o veredicto dos atores centrais e, caso discordem, têm, como forma de manifestação, o recurso processual. Já na justiça restaurativa, há um conjunto muito maior de atos deliberativos, por meio dos quais os cidadãos tomam posições, trocam ideias e, às vezes, mudam de opinião no curso das discussões. A decisão final é tomada de forma coordenada e pessoal pelos próprios implicados,

com auxílio do mediador, cuja atuação se limita a conduzir o debate, orientando os participantes na descoberta das suas necessidades. Figura 4 — Terceiro eixo do cubo: influência na tomada de decisão110. Recebe o veredicto Opinião considerada Delibera Barganha Decide Menos autoridade

Mais autoridade

Por conferir maior autoridade às partes, permitindo que decidam os termos do acordo, a justiça restaurativa também apresenta o grau máximo de democracia neste eixo. Com base em três perguntas — quem participa, como os participantes se comunicam e quem toma as decisões — Archon Fung ordenou três vetores (âmbito da participação, grau de comunicação e influência na tomada de decisão) em um espaço tridimensional composto pelos três eixos, ao qual chamou de “cubo de democracia”, por meio do qual se pode aferir o grau democrático de um processo decisório (FUNG; 2006, p. 66). Figura 5 — Cubo da democracia111

Da análise do cubo democrático de Archon Fung, percebe-se que a justiça restaurativa, em qualquer de suas três dimensões, é o mecanismo de tomada de decisão mais democrático possível. Do ponto de vista da acessibilidade (ou de quem dela participa), a justiça restaurativa é a mais democrata por permitir a atuação pessoal e direta dos interessados (ofensor,

vítima, comunidade), além de ampliar o círculo de pessoas “legitimadas” a intervir no conflito. Quanto ao grau de interação, a comunicação é intensa, possibilitando a expressão de sentimentos, opiniões e necessidades e, no tocante à autoridade ou ao grau de influência das discussões nas decisões tomadas, a justiça restaurativa pressupõe que o acordo final seja estabelecido de forma coordenada e pessoal pelos próprios implicados. Neste sentido, a justiça restaurativa permite uma gestão emancipatória e participativa do conflito por devolver aos protagonistas a sua administração. Essa característica também faz com que a justiça restaurativa detenha elevado conteúdo pedagógico, pois empodera os envolvidos para encontrarem fórmulas de solução para seu problema. Neste sentido, a opinião de Gabriel Ignacio Anitua (2013, p. 114)112: Os rituais comunicativos da justiça criminal são cerimônias que despertam compromissos de valor específicos nos participantes e no público, e atuam assim com um importante conteúdo legitimante e pedagógico, reproduzindo os valores republicanos e democráticos e gerando e regenerando uma mentalidade e sensibilidade maiores para o conflito e a violência.

3.2.3 O enquadramento do modelo jurisdicional penal na teoria política democrática contemporânea A doutrina democrática clássica, sintetizada na célebre expressão de Abraham Lincoln — “A democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo” — remonta o ideal rousseauniano de protagonismo de um povo soberano, capaz de produzir a vontade coletiva. Seus fundamentos políticofilosóficos remetem a polis grega cuja ideia central é a plena igualdade política entre os cidadãos dotados de indelegável soberania113 (AVRITZER, 2000, p. 27). A democracia direta oferece vantagens incontestáveis por ser um sistema de contas para o exercício do poder coletivo, no qual os cidadãos são tratados como iguais. Sem dúvida, ela limita o exercício do poder, protege a maioria do governo das minorias, evita flagrantes violações dos direitos das minorias e promove uma maior capacidade de resposta do governo aos governados (BOBBIO, 2004, p. 90). Este ideal democrático de participação direta e de tomada de decisões pelo povo muitas vezes se revela empiricamente impossível. Em primeiro lugar, porque a depender da escala política, a participação direta seria organizacionalmente ou administrativamente inviável. Em segundo, a

heterogeneidade cultural dos cidadãos impediria a troca racional mútua e, em terceiro, ao priorizar características e deliberações locais, minorias poderiam ficar à mercê de ideais radicais majoritários (BOBBIO, 2004, p. 64). Contudo, mesmo diante das dificuldades empíricas de uma teoria democrática radical, cientistas políticos contemporâneos não desistiram do ideal de aperfeiçoamento democrático, cônscios das deficiências de um poder centralizado e das virtudes da descentralização, da participação e da discussão cidadã (AVRITZER, 2000, p. 27). A forma atual de exercício da jurisdição penal pode ser interpretada pelo modelo democrático elitista de Schumpeter. Para este cientista político, o que caracteriza a democracia, em verdade, é a existência de várias elites que competem entre si pelo apoio e pela condução das massas. Nas suas palavras, “o método democrático é um sistema institucional para a tomada de decisões, no qual o indivíduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor” (SCHUMPETER, 1961a, p. 321). Com uma teoria elitista da democracia, Schumpeter inferiu que as elites é que seriam portadoras de racionalidade política e, portanto, os únicos atores com competência para tomarem decisões. Aos demais indivíduos, caberia uma participação limitada, já que seriam incapazes de ter ideias próprias, restando-lhes seguir ou não a liderança oferecida (COSTA, 2007, p. 218). A teoria elitista de Schumpeter parece bastante descritiva do exercício da jurisdição nos dias atuais. De fato, os operadores do sistema de justiça criminal (juízes, promotores, delegados, defensores etc.) são selecionados dentre um grupo seleto de expertos (bacharéis em Direito), tidos como os únicos dotados do conhecimento apropriado para o trato deste tipo de questão. Aos jurisdicionados, atualmente cabe cumprir as decisões judiciais — exemplificado pelo adágio popular “ordem judicial não se discute, se cumpre” — perpetuando a lógica democrática schumpeteriana de condução das massas pelas elites. Todavia, a democracia baseada puramente na representação, como é a proposta de Schumpeter, é criticada por denotar um “elitismo democrático” pautado por dois princípios: a redução do conceito de democracia ao aspecto formal, decorrente da observação do processo e das garantias próprios de um Estado democrático de direito estabelecido constitucionalmente, e da justificação da sua racionalidade enquanto

decorrente da presença de elites intelectuais, democraticamente investidas no cargo com poder decisório (SOUZA, 2010, p. 124). Entretanto, observa Leonardo Sechi (2010, p. 113), a questão da participação cidadã na tomada de decisões é bastante controvertida na teoria política contemporânea. Enquanto para Schumpeter (1961b, p. 52) a cooperação é prejudicial, pois poucos teriam senso de responsabilidade, capacidade de discernir os fatos e preparo para agir sobre eles, Habermas (2002a, p. 36), Joshua Cohen e Charles Sabel (2006, p. 154)114, por meio de modelos procedimentalistas, defendem que a participação tem valor em si mesma e não nos potenciais resultados que um processo participativo possa trazer (maior eficácia, maior igualdade etc.), como seria o caso da justiça restaurativa. Segundo estes autores, o conceito de democracia se confunde com a própria participação e deliberação cidadã. Stuart Mill (1981, p. 18), por exemplo, entende a democracia como “o governo por meio do debate” e a trata como sendo uma argumentação racional pública, na qual o debate é enriquecido mediante relações interativas e disponíveis de informações. Igualmente, Habermas (1997b, p. 24) propõe um conceito de democracia apoiado na teoria do discurso o qual parte da imagem de uma sociedade descentralizada, que contém na esfera pública-política “uma arena para a percepção, a identificação e o tratamento de problemas”. Ele sustenta a importância do discurso para o reconhecimento do conteúdo democrático e da legitimidade do direito: O princípio do discurso tem inicialmente o sentido cognitivo de filtrar contribuições e temas, argumentos e informações, de tal modo que os resultados obtidos por este caminho têm a seu favor a suposição da aceitabilidade racional: o procedimento democrático deve fundamentar a legitimidade do direito. Entretanto, o caráter discursivo da formação da opinião e da vontade na esfera pública política e nas corporações parlamentares implica, outrossim, o sentido prático de produzir relações de entendimento, as quais são ‘isentas de violência’, no sentido de H. Arendt, desencadeando a força produtiva da liberdade comunicativa. O poder comunicativo de convicções comuns só pode surgir de estruturas da intersubjetividade intacta. E esse cruzamento entre normatização discursiva do direito e formação comunicativa do poder é possível, em última instância, porque no agir comunicativo os argumentos também formam motivos (HABERMAS, 1997a, p. 191).

Se considerarmos, com estes filósofos, que, num sistema democrático, a participação e a deliberação popular são fundamentais e se partirmos do princípio de que quanto maior a sua capacidade deliberativa e decisória mais democrático será o procedimento, podemos concluir que o modelo de justiça restaurativo é altamente democrático, dada a sua característica inclusiva e agregadora, que implica a presença das partes no trato do conflito na condição de protagonistas do processo. 3.2.4 A democracia deliberativa A crítica à legitimidade da democracia representativa vem contribuindo para a institucionalização e expansão de novas práticas — como a justiça restaurativa — inspiradas nas teorias democráticas participativas e deliberativas (SOUZA, 2010, p. 128). Nos últimos anos, tem havido uma reavaliação do peso do elemento decisório em prol do argumentativo, o que é corroborado na teoria de autores como Habermas e Cohen (SOUZA, 2010, p. 123). Lorenzo Cini (2011, p. 1-2) e André Coelho (2013e, p. 1) advertem que democracia participativa não se confunde necessariamente com democracia deliberativa. A democracia participativa tem como pressuposto básico a defesa da participação direta dos cidadãos na tomada de decisão, como ocorre em audiências públicas, conselhos gestores, orçamento participativo etc. Segundo esta proposta, os agentes decisórios, em número cada vez maior, devem ser os próprios interessados. A democracia participativa (e não a deliberativa) se opõe à democracia meramente representativa na qual os representantes eleitos tomam decisões em nome de seus eleitores. Enquanto a democracia participativa concentra-se em debater quem devem ser os atores decisórios, a democracia deliberativa se preocupa com o procedimento, com o modo como é feita a tomada a decisão. Esclarecem Tim O´Riordan (2002, p. 87-88) e André Coelho (2013e, p. 1) que a democracia deliberativa critica concepções de democracia em que os cidadãos decidem com base em opiniões ou preferências pré-concebidas sobre um assunto, pois, neste caso, o processo de tomada de decisão não as afetou ou transformou. Isso porque a democracia deliberativa valoriza a tomada de decisão como um processo de transformação por meio de argumentos. Os conceitos e as opções prévias seriam o ponto de partida e não o ponto de chegada do processo decisório (COELHO, 2013e, p. 1). No

mesmo sentido, a crítica de Habermas (1997b, p. 46): “a integração social, realizada politicamente, tem que passar através de um filtro discursivo”. André Coelho (2013e, p. 1) explica também que a democracia deliberativa pressupõe que os envolvidos no processo argumentativo estejam dispostos a dar e receber razões, sejam capazes de crítica e passíveis de convencimento e que todos estejam mais comprometidos com encontrar a melhor decisão e não em fazer prevalecer a sua convicção inicial a qualquer preço, tal como ocorre na racionalidade comunicativa de Habermas, examinada na seção 3.4.1. Para os autores (O´RIORDAN, 2002, p. 91; CINI, 2011, p.5-6 e COELHO, 2013e, p. 1), a democracia deliberativa não especifica qual seria o processo para se chegar a uma decisão final. Ela não é uma teoria normativa e não pretende se tornar uma teoria sobre como as decisões devem ser tomadas, nem mesmo substituir os processos decisórios democráticos já existentes, como é o caso da justiça restaurativa em relação ao sistema de justiça criminal atual. A democracia deliberativa pretende ampliá-los, agregá-los, demonstrando como incrementar o seu teor cognitivo, mediante uma participação emancipatória e empoderadora dos atores diretamente interessados. Ela demonstra a necessidade do debate prévio, de concessão de maior informação aos interessados, de equidade e transparência nos processos decisórios, para que a tomada de decisão seja uma deliberação mais racional possível. Assim como ocorre na justiça restaurativa, na qual o consenso nem sempre é possível, o seu alcance é também um ideal regulador da democracia deliberativa, mas não uma exigência concreta. O que ela requer é que a tomada de decisão tenha sido antecedida de um amplo debate de ideias, em que cada lado tenha se esforçado para convencer o outro com base em razões. Ainda que as divergências persistam, elas serão produto de convicções firmes e esclarecidas. Mesmo sem o alcance do consenso, terá havido um significativo ganho de teor cognitivo, de qualidade da reflexão e crítica, o que representa um aprendizado para a solução de conflitos vindouros (COELHO, 2013e, p.1). Portanto, o modelo de democracia deliberativa pela via restaurativa ora proposto não é incompatível com a democracia representativa típica do modelo jurisdicional, podendo ambos coexistir. O que se advoga não é a democracia participativa (decisão tomada diretamente pelas partes

interessadas), mas que lhes seja conferida a oportunidade de deliberação racional, que atribui maior legitimidade ao processo decisório, possibilita o reconhecimento intersubjetivo entre as partes e o aprendizado via racionalidade comunicativa. A alteração pretendida é, portanto, procedimental (“jurisconstrução”) e que não afasta a possibilidade de controle judicial do que foi “construído” (princípio da inafastabilidade da apreciação judicial). 3.2.5 A poliarquia Uma das formas de democracia deliberativa é poliarquia (governo de muitos), fruto da teoria democrática pluralista de Robert Dahl. Ela é caracterizada pela dispersão do poder e pelo reconhecimento da diversidade de interesses entre os cidadãos (COSTA, 2007, p. 220). Neste sistema, todos teriam direito ao sufrágio, à expressão política, à associação e acesso a diversas fontes de informação. Entretanto, ela pressupõe o que se chama de “deliberação autêntica”, ou seja, que a deliberação entre os decisores esteja livre de distorções, como um poder decisório obtido por meio da riqueza econômica ou do apoio de grupos de interesse115 (LÜCHMANN, 2002, p. 15). Segundo Habermas (1997b, p. 42), o modelo proposto por Dahl fornece um processo que proporciona o interesse simétrico de todos e apresenta as seguintes vantagens: a) a inclusão de todas as pessoas envolvidas; b) chances reais de participação no processo político, repartidas equitativamente; c) igual direito a voto nas decisões; d) o mesmo direito para a escolha dos temas e para o controle da agenda; e) uma situação na qual todos os participantes, tendo à mão informações suficientes e bons argumentos, possam formar uma

compreensão

articulada

acerca

das matérias a

serem

regulamentadas e dos interesses controversos.

A poliarquia, para Dahl, corresponderia a um estágio mais avançado de democracia e atenderia ao ideal democrático na medida em que propicia baixo índice de coerção, elevado índice de persuasão e uma relativa autonomia dos indivíduos (COSTA, 2007, p. 221). Habermas ressalta a importância da proposta poliárquica de Dahl para a solução de problemas em sociedades complexas, nas quais a discursão precisa ser fomentada, não se contentando mais com a divisão de trabalho pura e simples ou com a delegação de tarefas: [...] pois o âmago da política deliberativa consiste precisamente numa rede de discursos

e de negociações, a qual deve possibilitar a solução racional de questões pragmáticas, morais e éticas — que são precisamente os problemas acumulados de uma fracassada integração funcional, moral e ética da sociedade. A necessidade de coordenação funcional, que surge nas atuais sociedades complexas, não pode mais ser suprida através do modelo simples da divisão de trabalho ou da cooperação entre indivíduos e coletividades: são necessários mecanismos de regulação indireta do sistema administrativo (HABERMAS, 1997b, p. 47).

Na poliarquia, o exercício do poder e o controle de decisões e de políticas públicas seriam indiretos, realizados por funcionários públicos, eleitos pelo povo por meio de eleições livres e justas. Portanto, na forma proposta por Dahl, a poliarquia equivaleria à democracia representativa. De acordo com ele, “quanto mais cidadãos uma unidade democrática contém, menos esses cidadãos podem participar diretamente das decisões e mais eles têm de delegar a outros essa autoridade” (DAHL, 2001, p. 125). Destarte, segundo o cientista político, em benefício de “uma maior eficácia do sistema democrático”, seria necessário prescindir de uma participação popular mais efetiva, o que evidencia a sua defesa de um sistema representativo. Habermas (1997b, p. 42) atenta para os riscos da representatividade proposta por Dahl, como a monopolização do saber especializado e a restrição do acesso às fontes, privando os demais cidadãos do conhecimento: [...] a maior dificuldade a ser enfrentada daqui para frente pela democracia reside no encapsulamento do saber político especializado, o que impede os cidadãos de aproveitá-lo para a formação das próprias opiniões. O perigo principal reside, segundo ele, na variante tecnocrática de um paternalismo que se nutre nos monopólios do saber. E o acesso privilegiado às fontes do saber político relevante abre as portas para uma dominação imperceptível que se estende sobre o público dos cidadãos, os quais não têm acesso a essas fontes, alimentando-se de uma política simbólica (HABERMAS, 1997b, p. 42).

3.2.6 A justiça restaurativa como forma de poliarquia diretamente deliberativa A teoria de Dahl foi aperfeiçoada, no final dos anos noventas, pelos professores norte-americanos Joshua Cohen, Michael Dorf e Charles Sabel, os quais, partindo da conclusão de uma crescente volatividade e diversidade nas sociedades contemporâneas, concluíram que a democracia representativa

e a democracia constitucional não seriam mais modelos tão funcionais e desejáveis (COHEN; SABEL, 1997, p. 319). Os autores desenvolveram, então, a teoria da poliarquia diretamente deliberativa segundo a qual decisões que reúnam interesse público e interesses privados devem ser tomadas diretamente pelos interessados e apenas monitoradas pelos poderes estatais (Parlamento, Poder Judiciário etc.) (LÜCHMANN, 2002, p. 16). Diferentemente da poliarquia representativa de Dahl, a poliarquia diretamente deliberativa é um tipo de democracia direta, na qual a deliberação e a participação são fundamentais para a tomada de decisão. Nela, os cidadãos - mesmo leigos - participam do processo de tomada de decisão. O sistema é chamado de poliarquia (governo de muitos) porque tanto a tomada decisória quanto a sua implementação são devolvidas para unidades de “níveis inferiores” (indivíduos ou grupos). Ele é diretamente deliberativo porque uma gama de atores participa da decisão local que seria alcançada por deliberação, que é, em última instância, a troca de argumentos mutuamente reconhecidos (COHEN; SABEL, 1997, p. 320). Difere da forma tradicional de democracia por defender que, para uma decisão democrática legítima, ela deve ser precedida de deliberação autêntica e não apenas resultar da agregação de preferências, conforme visto na seção 3.2.4. Na poliarquia diretamente deliberativa, os arranjos são atraentes e democráticos porque promovem dois valores democráticos fundamentais: a deliberação e a participação direta dos interessados. A ideia de Cohen e Sabel de poliarquia diretamente deliberativa é aplicável à justiça restaurativa porque ambas têm em comum a capacidade de promover a democracia na sua forma mais atraente - direta e deliberativa - e assim aumentar a capacidade coletiva de resolver conflitos etiologicamente (LÜCHMANN, 2002, p. 31). Assim, como a justiça restaurativa, a poliarquia diretamente deliberativa é animada pelo reconhecimento dos limites da capacidade dos julgadores para resolver todos os conflitos criminais, como demonstra a elevada cifra negra discutida na seção 1.5. Por outro lado, ambas assumem que os atores — apesar do conflito que os envolve — concordam em sentido amplo sobre suas necessidades e metas, mas, muitas vezes, não podem realizar esta

concordância, dadas as restrições e uniformidades próprias das decisões judiciais116. Num acordo restaurativo, as soluções são lastreadas na diversidade, com alta sensibilidade para as condições locais e pessoais da ofensa e de suas circunstâncias. Como cada conflito é diferente, sentenças padronizadas ou cópias de soluções adotadas em outros casos não são adequadas, embora possam servir como linha de base a partir da qual uma solução possa ser construída. Estudos realizados por James Fishkin117 constataram que a democracia deliberativa tende a produzir resultados superiores aos de outras formas de democracia, tais como menos partidarismo, mais simpatia com visões opostas, um maior compromisso dos envolvidos com as decisões tomadas, uma maior chance de alcance do consenso, coesão social entre pessoas de diferentes origens e aumento no espírito público (LÜCHMANN, 2002, p. 33). Consoante o ex-diplomata americano Carne Ross (2011, p. 1), os debates decorrentes da democracia deliberativa são muito mais civilizados e colaborativos do que os realizados em reuniões tradicionais ou em fóruns da internet. O modelo democrático deliberativo apresenta outras vantagens. Segundo Carlos Santiago Nino (1996, p. 65), ele tende, mais que qualquer outro modelo, a gerar condições ideais de imparcialidade, racionalidade e conhecimento dos fatos relevantes. Quanto mais estas condições forem cumpridas, maior a probabilidade de que as decisões tomadas sejam moralmente corretas. Uma jurisdição democrático-participativa apresenta, ainda, aspectos educativos que devem ser considerados. Ao estabelecer a posição de igualdade entre os cidadãos, com direito a participarem das determinações, os arranjos democráticos não só respeitam, mas também possibilitam a disseminação de informações relevantes para a resolução de problemas e constituem uma oportunidade para a aprendizagem coletiva (LÜCHMANN, 2002, p. 32). No mesmo sentido, assevera Rawls: Para que os cidadãos de uma sociedade bem ordenada reconheçam uns aos outros como livres e iguais, as instituições básicas devem educá-los para essa concepção de si mesmos, assim como expor e estimular publicamente esse ideal de justiça política. [...] familiarizar-se com a cultura pública e participar dela é uma das maneiras que os cidadãos têm de aprender a se conceberem como livres e iguais, concepção esta que

provavelmente jamais formariam se dependessem apenas de suas próprias reflexões, e que tampouco aceitariam ou desejariam realizar (1993, p. 79).

Como testifica Rawls, participar da cultura pública é a maneira democrática de aprendermos que somos livres e iguais, o que dificilmente compreenderíamos sozinhos, encapsulados em nossas próprias reflexões. 3.2.7 Críticas à democracia deliberativa André Coelho (2013e, p. 1) informa que a crítica tende a considerar a democracia deliberativa um processo utópico e irrealizável, especialmente para o tratamento de conflitos de natureza criminal e de suas consequências. O debate neste âmbito costuma ser polarizado, explosivo, movido por paixões (tais como ideias sobre prisões longevas, rigor no cumprimento da pena, pena de morte, descriminalização do uso de drogas, do aborto). Especialmente quando se trata de uma resposta específica a um crime cometido, afluem sentimentos, convicções irracionais e intransigentes que não são tão “civilizados” quanto supõe a democracia deliberativa. Argumenta a crítica ainda que, em se tratando de partes processuais, leigas e com interesses presumidamente opostos, elas não teriam argumentos jurídicos para sustentar suas posições, não abandonariam suas convicções porque estão emocionalmente ligadas ao fato e, no caso das vítimas, estariam interessadas apenas na punição do ofensor e este apenas em livrarse da pena. Explica o autor que esta posição realista do debate é denominada de “ceticismo da deliberação”. Em resposta a elas, os deliberacionistas argumentam que, em realidade, os processos de tomada de decisão nunca são inteiramente racionais nem inteiramente irracionais. Afinal, os temas de deliberação em matéria criminal são bastante diversos, variando desde os mais pragmáticos até os de conteúdo moral. Com isto, diversifica o nível de paixão do envolvimento dos agentes com suas posições prévias. Por outro lado, na maior parte das vezes, existe algum consenso sobre fins a serem alcançados (necessidade de reparação, formas de “expiação” úteis, reconciliação, convivência pacífica), em que pesem as divergências sobre meios de atingi-los. Entretanto, esta dissensão pode ser sanada com a escuta, com a consideração de pontos de vista diferentes e com o acesso a mais informações sobre novas possibilidades de seguir em frente após o conflito (COELHO, 2013e, p. 1).

Argumentam ainda os deliberacionistas que as discussões sobre o crime e sua punição assumem o perfil polarizado, explosivo, intransigente, tal como os céticos a acusam, justamente pela falta da deliberação a respeito do tema e não em decorrência do debate. Cidadãos habituados a uma cultura democrática, aberta, de solução pacífica, apresentados à tomada de decisões transparentes, inteligíveis e justificadas tendem a socializarem-se de forma mais comunicativa e racional. Tornam-se capazes de submeter suas opiniões e preferências prévias ao teste de aceitabilidade, de examinar criticamente, de olhar sob o ponto de vista do outro, tal como propõe Habermas. Portanto, cada deliberação em particular torna-se um processo de aprendizado dos implicados não só quanto à questão debatida, mas também quanto a se tornarem mais aptos e receptivos à deliberação (COELHO, 2013e, p. 1). Em síntese, podemos concluir que a introdução de mecanismos de deliberação direta no sistema de justiça criminal brasileiro, como é o caso da justiça restaurativa, pode ampliá-lo e incrementar o seu teor cognitivo, permitindo sua evolução para um estágio mais avançado de democracia. O sistema seria composto de mecanismos decisórios-democráticos, que congregaria as perspectivas da participação, deliberação e representação, as quais, como visto, não são incompatíveis entre si e, por isso, podem coexistir. Assim, as decisões seriam tomadas diretamente pelos interessados e monitoradas pelo Poder Judiciário. A justiça restaurativa como forma de poliarquia diretamente deliberativa não deve ser tomada como substituta do atual sistema judicial, mas como forma de reconstrução racional da sua lógica democrática. Neste sistema, a maior parte das decisões é tomada de modo racional e fundamentado, porém não deliberativo. A deliberação apresenta ganhos cognitivos e emancipatórios, como adverte André Coelho (2013e, p. 1), e corresponderia a um aperfeiçoamento da experiência democrática acumulada ao do tempo. As decisões judiciais se tornariam também mais democráticas, à medida que incorporam visões mais abrangentes, pluralistas, sensíveis e sofisticadas no sentido transmoderno visto na seção 3.1.1, ultrapassando a tomada de decisões uniformes e polarizadas, de ganhadores e perdedores, tipicamente modernas. Afinal, já anunciava Warat (2001, p. 121), não há nada mais democrático do que a possibilidade de decidir por si e por meio da reflexão com o outro.

3.3 Compreendendo a dinâmica do encontro restaurativo e as suas bases filosóficas Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 45) observa que, depois da euforia cientista do século XIX e da aversão à reflexão filosófica simbolizada pelo positivismo, há um desejo de se complementar o conhecimento “das coisas”, da sua dinâmica por meio de uma compreensão mais profunda, interativa, de ordem filosófica e sociológica (um conhecimento inclusive sobre “nós próprios”, diz ou autor). O direito, por exemplo, que reduziu a complexidade da vida jurídica à dogmática jurídica, redescobre a filosofia e a sociologia em busca desta nova consciência (SOUSA SANTOS, 2010, p. 46). Tal como o salto paradigmático descrito na seção 3.1, abandona-se o paradigma da consciência, alicerçado na relação cognitiva sujeito-objeto (em que o sujeito pensante, solitário, procura desvendar as leis gerais que governam o mundo repleto de diversidade), em prol de um paradigma mais comunicativo, dinâmico, de natureza intersubjetiva, que visa alcançar o entendimento com o outro (PINTO, 1995, p. 1). No campo da justiça penal, a justiça restaurativa se propõe a atender a este novo modelo, em busca de um acertamento entre ofensor e vítima, eis que aberta à consideração das responsabilidades e necessidades de cada envolvido. Com auxílio das teorias filosóficas de Jürgen Habermas, Emmanuel Lévinas e Axel Honneth, podemos compreender os fundamentos éticos e filosóficos dessa nova abordagem e aclarar o significado e a dinâmica do encontro restaurativo. Habermas, com base no interacionismo simbólico de Mead118, no conceito de jogos de linguagem de Wittgenstein119, na teoria dos atos de fala de Austin120 e na hermenêutica de Gadamer, propôs uma teoria da comunicação em que, assim como ocorre na justiça restaurativa, sujeitos interagem em ação comunicativa121, em uma esfera pública de deliberação, estabelecendo relações interpessoais, com o objetivo de alcançar uma compreensão sobre fatos e planos de ação, coordenando suas ações pela via do entendimento. Neste locus apropriado e por intermédio do agir comunicativo, os interlocutores remetem a pretensões de validade criticáveis quanto à sua veracidade, correção normativa e autenticidade, que se referem

ao mundo objetivo dos fatos, ao mundo social das normas e ao mundo das experiências subjetivas, respectivamente (PINTO, 1995, p. 1). Em seguida, Honneth elaborou a sua teoria crítica, segundo a qual se deve interpretar a sociedade a partir de uma única categoria, a do reconhecimento, com base no conceito de luta por reconhecimento de Hegel. Na ausência de reconhecimento de valores e de reivindicações estaria a origem dos conflitos. Sob esta perspectiva, a função da justiça restaurativa pode igualmente ser compreendida, constituindo-se em um fórum para o reconhecimento recíproco de diferenças e de minimização de conflitos. Por fim, Lévinas nos fornece uma filosofia existencial a partir da experiência ética do encontro com o outro, a qual pode auxiliar na compreensão do impacto e do efeito transformativo de atitudes sobre os participantes do procedimento de justiça restaurativa. Em síntese, com o apoio da filosofia destes autores, seria possível compreender a dinâmica restaurativa e o seu potencial para comunicar o impacto do comportamento ofensivo sobre formas de sua administração (Habermas), para promover o reconhecimento intersubjetivo recíproco das partes em conflito, a aceitação da outridade (Honneth) e reconhecer a humanidade presente no outro, assumindo responsabilidades por ele (Lévinas)122. As teorias destes filósofos são complexas, profundas e expansivas, a cujo desenvolvimento dedicaram a vida profissional. A discussão que aqui se apresenta não tem o propósito de abordar todas as dimensões da teoria completa de cada um deles, mas de explorar apenas uma pequena parte delas, com o objetivo de refletir e traduzir aspectos do processo restaurativo. A utilização de tais teorias se limita a abordar algumas perspectivas que sejam relevantes para o propósito desta pesquisa, sempre com o cuidado de não deturpar essas ideias ao retirá-las do seu contexto original. 3.3.1 A justiça restaurativa como esfera pública de deliberação Habermas refere-se à ideia de “esfera pública” para designar espaços sociais onde as pessoas se reúnem para discutir assuntos comuns e, dessa forma, podem se organizar contra as formas arbitrárias e opressivas de exercício do poder estatal. Habermas (1997b, p. 92) a define da seguinte maneira: A esfera pública não pode ser entendida como uma instituição, nem como uma

organização, pois ela não constitui uma estrutura normativa capaz de diferenciar entre competências e papéis, nem regula o modo de pertencer a uma organização, etc. Tampouco ela constitui um sistema, pois, mesmo que seja possível delinear seus limites internos, exteriormente ela se caracteriza através de horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis. A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões, nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos [...]. A esfera pública se reproduz através do agir comunicativo, implicando apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana.

A esfera pública de Habermas é concebida, portanto, como um locus para a troca de informações, discussão, contestação, luta política e organização. Um dos seus princípios é a discussão aberta de todas as questões de interesse comum. Ela pressupõe liberdade de expressão, de reunião e o direito de participar livremente do debate e da tomada de decisão. A esfera pública habermasiana é constituída e mantida por meio do diálogo, dos atos de fala, do debate e da discussão que possibilitam a comunicação e participação política. Segundo Habermas (1997b, p. 191), ela apresenta o mérito de ser sensível e, ao mesmo tempo, não especializada: “A esfera pública é um sistema de alarme dotado de sensores não especializados, porém, sensíveis no âmbito de toda a sociedade.” Outra vantagem da esfera pública, de acordo com o autor, é “ser um meio de comunicação isento de limitações, no qual é possível captar melhor novos problemas, conduzir discursos expressivos de autoentendimento e articular, de modo mais livre, identidades coletivas e interpretações de necessidades” (HABERMAS, 1997b, p. 33). O filósofo a vislumbra como única forma possível de solução comunicativa de conflitos capaz de gerar “solidariedade entre estranhos” (HABERMAS, 1997b, p. 33). É, neste caso, adequado compreender o encontro restaurativo como uma esfera pública habermasiana de comunicação tendo em vista a interlocução propiciada por ele, que o torna uma arena voltada para a discussão racional, para o debate e o consenso. Este locus neutro e apropriado à comunicação favorece também a formação da empatia, o reconhecimento recíproco e a assunção de responsabilidades intersubjetivas dos interlocutores, em um processo detalhado a seguir.123

3.3.2 Justiça restaurativa: um locus para o reconhecimento recíproco Para Honneth (2004, p. 105), com o advento da modernidade, o indivíduo se desvencilhou dos seus laços tradicionais e pôde determinar os objetivos relevantes de sua própria vida. Entretanto, um elemento extra de significação se estabeleceu na compreensão moderna da liberdade: a de que o indivíduo, na realização de sua liberdade, poderia fazê-lo independente dos demais participantes na interação. De acordo com o autor, este conceito individualista de autonomia pessoal, apesar de equívoco, também se infiltrou nas modernas teorias da justiça124. O filósofo defende uma revisão conceitual dessas teorias consoante a perspectiva de que a justiça alcança não apenas a liberdade de ação individual, mas também as esferas de comunicação social. Como acentua Honneth (2004, p. 111), na medida em que as partes são concebidas isoladamente umas das outras, elas têm necessidade de se visualizar além desta cortina de fumaça, que passa a ser a ignorância sobre o próprio destino. Honneth (2004, p. 105) lembra que Hegel foi o primeiro a se opor contra o delineamento individualista da concepção de liberdade moderna. Enquanto seus antecessores consideravam o Estado como o assegurador da autonomia individual dos participantes da sociedade, Hegel se concentrou, com o mesmo propósito, no caráter garantidor de liberdade das esferas de interação social. Para Hegel (1991, p. 42), apenas por meio da experiência do reconhecimento de suas capacidades e necessidades é que os seres humanos estão em posição de ganhar força para a configuração autônoma de seus objetivos de vida. Destarte, para estes dois filósofos, as liberdades individuais são o produto de uma forma de comunicação intersubjetiva (Zwischenmenschlicher) que contém o caráter de um reconhecimento recíproco (HONNETH, 2004, p. 112). Longe de construir uma limitação, as liberdades intersubjetivas são uma condição da liberdade do sujeito partindo do princípio de que o indivíduo só estaria capacitado para o desenvolvimento da autonomia porque mantém relações com outros sujeitos, relações que possibilitam o reconhecimento recíproco de suas personalidades individuadas. Dessa forma, podemos inferir que os homens dependem das experiências básicas de reconhecimento recíproco para

assegurar suas autonomias individuais. Este reconhecimento sucederia em três esferas de interação intersubjetivas: a do amor (entre pessoas íntimas, o que gera autoconfiança), a do direito (que produz o autorrespeito) e a da solidariedade (que germina a autoestima). A injustiça, nesse caso, estaria relacionada aos sentimentos morais de não reconhecimento social das faculdades e necessidades individuais. Assim, diversamente dos clássicos, para quem a justiça social é obtenível mediante a garantia uniforme das liberdades individuais fundamentais, Honneth defende que tal justiça só é possível por meio da participação igualitária em relações de reconhecimento que só são viáveis se encontrarem as esferas de comunicação apropriadas. Segundo o representante da “terceira geração” da Escola de Frankfurt125, mais do que a demanda por uma distribuição equitativa de bens materiais, a justiça diz respeito ao reconhecimento proporcionado nas relações sociais e pela harmonia das várias esferas de comunicação. A sua teoria da justiça pressupõe, então, um conceito intersubjetivo e não individualista de liberdade. A justiça restaurativa atende a este ideal de Honneth, ao ideal de uma justiça igualitária e ao mesmo tempo promotora da autonomia individual. Nessa proposta terapêutica, vítima e ofensor são reconhecidos reciprocamente, mediante o seu envolvimento ativo no processo por meio do diálogo. São adjudicados como principais intervenientes no sistema e detêm o controle do resultado, graças ao processo decisório compartilhado. Diferentemente do método tradicional, em que as partes se manifestam por meio dos seus advogados, sua participação é direta e todos têm a oportunidade de contar suas histórias e expressar suas dores emocionais e psicológicas. Tais aspectos são geralmente ignorados quando se trata do arranjo ordinário de justiça, no qual os depoentes devem se cingir às perguntas objetivamente formuladas, abstendo-se de declarações subjetivas, que “não interessam para o julgamento do fato”, pois as partes muitas vezes são consideradas como “um entrave” ao procedimento por levarem uma emoção indesejada para uma deliberação objetiva e jurídica dos fatos. Dessa forma, de acordo com a ideia de “luta por reconhecimento” de Axel Honneth, os conflitos são pautados pelo não reconhecimento de diferenças no mosaico plural da vida em sociedade, palco de embates pela afirmação de valores e interesses diversos. Em conclusão, o círculo

restaurativo pode constituir um locus apropriado para o reconhecimento intersubjetivo recíproco das partes em conflito. A harmonia do encontro gerado nesta esfera comunicativa tem o potencial de promover a afirmação e o reconhecimento da outridade, ao invés de sua eliminação. 3.3.3 O impacto do encontro face a face segundo Lévinas Lévinas, filósofo francês nascido numa família judaica na Lituânia, é considerado um visionário de sensibilidade ímpar que explora o status negligenciado da ética da alteridade de quem a ideia é fundamental para a justiça restaurativa (LECHTE, 2006, p. 15). A ideia de alteridade é explicada por José Rossini Campos do Couto Corrêa (2011, p. 287): Alteridade, no sentido de relação entre Ego (Eu) e Alter (Outro), pois abertura para outrem é a essência verdadeira da Justiça, que não se esgota em “A”, mas se projeta para “B”, o alcança e o envolve, conformando uma bilateralidade A e B.

O pensamento e a crítica de Lévinas acerca da alteridade estão relacionados com os princípios de justiça restaurativa e assumem total pertinência e aplicação à realidade atual quando se trata especificamente do encontro restaurativo. A realização da justiça, para Lévinas, tem sua origem na proximidade dos relacionamentos face a face, nos quais tanto ofensor quanto ofendido estariam envolvidos. Qualquer imposição de pena sem dar atenção aos relacionamentos face a face acaba sendo um “tirar de” alguém em vez de um “dar ao” outro (LECHTE, 2006, p. 149). A justiça constitui, assim, uma exigência de responsabilidades infinitas por todos os desejos, independentemente de quem os possua. Ela conecta esses “eus” individuais em sua própria diferença sem despojá-los de individualidade. A filosofia de Lévinas se destaca por conferir primazia à alteridade em relação ao sujeito pensante. Como fenomenólogo, Lévinas explorou aspectos (como o conceito de responsabilidade e a relação com o “Outro”) negligenciados pela ética, para quem, antecede à própria ontologia. Nas suas palavras, a responsabilidade pelo outro é “pré-originária”, uma responsabilidade “sempre mais antiga que o conatus da substância, mais antiga que o começo e o princípio” (LÉVINAS, 2012, p. 106). Essa responsabilidade do “Eu” pelo “Outro” seria anterior até mesmo à própria liberdade ou vontade do indivíduo, o que torna a ética da responsabilidade e não a liberdade — a sua “primeira filosofia” (HUTCHENS, 2009, p. 19).

O ideal da justiça restaurativa se realiza apenas por meio da outridade, do colocar-se no lugar do outro, com foco nas possibilidades do futuro ao invés de nas perdas do passado. Essa premissa é válida tanto para ofensores quanto para vítimas, a fim de que não fiquem reféns da culpa e do ressentimento gerados pelo crime. Para alcançar esse objetivo, as partes são ouvidas e consideradas em sua inteireza, sem desprezo ou desrespeito aos seus traumas e conflitos. Trata-se de “uma justiça que olha, escuta, compreende, bem diferente da deusa tradicional, surda, muda, cega, empunhando a espada” (CHRISTIE, 1993, p. 149). Ainda em relação à outridade, Lévinas diz que nada que esteja relacionado com o alheio pode nos deixar indiferente126, já que o homem é “tecido de responsabilidades”. Declara Lévinas (2012, p 105): “A humanidade do homem, a subjetividade, é uma responsabilidade pelos outros, uma vulnerabilidade extrema”. Sua ética da responsabilidade indica, portanto, que nascemos em um mundo de relacionamentos sociais, os quais não escolhemos e não podemos ignorar (HUTCHENS, 2009, p. 35). O “Eu” não pode conceber-se isolado dos demais, retirado em si, visto que, “bem antes da consciência e da escolha, antes mesmo do homem se reunir em presente e representação para se fazer essência, ele se aproxima de outro homem” (LÉVINAS, 2012, p 105)127. Até mesmo o homem que se considera livre é voltado ao próximo, já que ninguém pode salvar-se sem os outros (LÉVINAS, 2012, p. 104). Até inconscientemente, diz Lévinas (2012, p. 98), somos dependentes uns dos outros: No aconchegar do outro em que este se encontra imediatamente sob minha responsabilidade, ‘alguma coisa’ extrapolou minhas decisões livremente tomadas, infiltrou-se em mim sem eu saber, alienando assim minha identidade. Essa responsabilidade é “indeclinável”, de modo que não podemos dizer “não” a ela. “Ser eu”, proclama, significa não ser capaz de evitar a responsabilidade, pois estamos ligados, de uma maneira peculiar, ao “Outro”. Assim, a aproximação da face daquela pessoa evoca uma inevitável responsabilidade para com ela128. De certa forma, a face por si só já fala antes que qualquer palavra seja emitida, como descreve (LÉVINAS, 2012, p. 51): “o rosto fala. A manifestação do rosto é o primeiro discurso. Falar é,

antes de tudo, este modo de chegar por detrás de sua aparência, uma abertura na abertura”. De mais a mais, a face do “Outro” é uma epifania que nos solicita: no face a face humano se irrompe todo sentido da nossa existência129. Ainda que nos recusemos a falar, há meramente uma recusa a responder por meio da fala, simplesmente já respondemos ao rejeitar o impulso de falar (HUTCHENS, 2009, p. 75-76). “Lá onde eu teria podido permanecer como espectador, eu sou responsável” (LÉVINAS, 2012, p. 85). Lévinas (2012, p. 52-53) descreve a repercussão do encontro face a face com o outro nos seguintes termos: Despojado de sua própria forma, o rosto é transido em sua nudez. Ele é uma miséria. A nudez do rosto é a indigência e a suplica na retidão que me visa. Mas esta súplica é uma exigência. O rosto impõe-se a mim sem que eu possa permanecer surdo a seu apelo, ou esquecê-lo, sem que eu possa cessar de ser responsável pela sua miséria. A presença do rosto significa, assim, uma ordem irrecusável, um mandamento. O rosto desconcerta a intencionalidade que o visa. A sua presença é uma intimidação para responder. Ser Eu (Moi) significa, a partir daí, não se poder furtar à responsabilidade, como se todo o edifício da criação repousasse sobre meus ombros. O Eu (Moi) diante do Outro é infinitamente responsável e ninguém pode responder em meu lugar. O Outro provoca esse movimento ético na consciência, que desordena a consciência da coincidência do Mesmo consigo próprio. Isto é o Desejo: queimar de um fogo diverso que o da necessidade, pensar além daquilo que se pensa, entrar em relação com o inapreensível, um excesso inassimilável que une o Eu (Moi) a outro, numa ideia de infinito.

No caso da justiça restaurativa, no momento do diálogo restaurativo, há o “desnudamento da pele exposta à ferida e à ofensa, para além de tudo aquilo que se pode mostrar, para além de tudo aquilo que pode expor-se à compreensão” (LÉVINAS, 2012, p. 99). Neste momento, o indivíduo “coloca-se a descoberto, expõe-se um nu mais nu que a pele que, forma e beleza, inspira as artes plásticas, nu de uma pele exposta ao contato, à carícia que sempre é sofrimento pelo sofrimento do outro” (LÉVINAS, 2012, p. 99). Diante do rosto do “Outro”, o sujeito se descobre responsável e lhe vem à ideia o “Infinito”130. 3.3.4 O agir comunicativo habermasiano Segundo Habermas (2012b, p. 120), os seres humanos são seres racionais e autônomos que se relacionam e interagem com o mundo por meio da linguagem. Para ele, a linguagem é muito mais do que apenas palavras e

frases. Não só transmite significado por meio de símbolos, mas é por meio dela que somos capazes, entre outras coisas, de estabelecer relações interpessoais, influenciar pessoas, de chegar a uma compreensão sobre o mundo, sobre os outros e sobre nós mesmos e coordenar nossas ações. Nas palavras dele: Na

própria

prática

cotidiana,

o

entendimento

entre

sujeitos

que

agem

comunicativamente se mede por pretensões de validade, as quais levam a uma tomada de posição em termos de sim/não perante o maciço pano de fundo de um mundo da vida compartilhado intersubjetivamente. Elas estão abertas à crítica e mantêm atualizado, não somente o risco do dissenso, mas também a possibilidade de um resgate discursivo. Neste sentido, o agir comunicativo aponta para uma argumentação, na qual os participantes justificam suas pretensões de validade perante um auditório ideal sem fronteiras (HABERMAS, 1997b, p. 50).

Em sua teoria, Habermas (2012b, p. 124) preocupa-se não só com o significado da linguagem, mas também com o que ela é capaz de empreender. O autor explica que, implicitamente num discurso, nós levantamos várias pretensões de validade, de sinceridade, de verdade e de retidão131. É por meio de um acordo ou de discordância em relação a estas pretensões implícitas que os indivíduos são capazes de chegar a um entendimento e concordância para se coordenar a ação. Quando concordamos com as pretensões levantadas no discurso, pode-se dizer que há um consenso; quando não, solicitamos justificativas ou razões pelas quais devemos aceitar estas reivindicações como verdadeiras, sinceras e corretas. Se a justificativa é suficiente, então há uma aprendizagem e é atingido um consenso com base nestas informações. Se a justificativa não é suficiente, as partes entabulam diálogo e raciocínio adicionais até que se chegue a um consenso ou até que a comunicação seja interrompida (BARRET, 2011, p. 41). Habermas reconhece que a linguagem também é usada para o conflito, para a competição e para a ação estratégica, no entanto, segundo ele, estes são simplesmente resultados derivados do objetivo original da linguagem, qual seja, o de alcançar a compreensão e a ação coordenada (HABERMAS, 2012b, p. 124). Assim, quando nos expressamos por meio da fala, fazemo-lo com objetivo de sermos compreendidos. O alcance deste consenso compartilhado, do entendimento e da ação coordenada é denominado por

Habermas de “mútua intersubjetividade” ou “reconhecimento intersubjetivo da validade do que alega o interlocutor” (HABERMAS, 2012b, p. 131). Na justiça penal, parte-se de uma situação de conflito, na qual há uma falta de consenso, de compreensão e de ação coordenada. Demanda-se, portanto, um processo de ação comunicativa para trazer entendimento, consenso e ação coordenada (que é a proposta restaurativa). Nesta forma de justiça, o processo de diálogo é um meio de expressar pensamentos, sentimentos e experiências132, de entender o ocorrido, bem como as consequências das ações e de chegar a um consenso e a um acordo formal sobre a melhor forma de lidar com o mal causado133. Mais detalhadamente em sua obra “A teoria do agir comunicativo”, Habermas (2012b, p. 125) se reporta ao trabalho de Piaget para explicar os três âmbitos diferentes da realidade em que a pessoa se percebe e se envolve: o domínio do objetivo, do subjetivo e do campo social (compartilhado). Inicialmente, o indivíduo apenas alcança a perspectiva do seu próprio universo interno, ou seja, ele reconhece o mundo apenas através de seus olhos. À medida que interage com o mundo físico e observa os demais fazendo o mesmo, ele passa a perceber que o “mundo” pode ser visto a partir de outras perspectivas subjetivas. Ou seja, ele pode ver a si mesmo por meio de outros olhos (alter), ele pode ver o outro através de outras lentes, ele pode ver a interação entre o eu e o outro por intermédio de outra perspectiva (3 ª pessoa) e ele pode ver o mundo com outro olhar. Assim como no processo desenvolvido e explicado por Piaget em relação às crianças, os adultos também se desenvolvem a ponto de se tornarem mais reflexivos, levando a sua perspectiva ao outro e percebendo o seu próprio pensamento e comportamento (BARRET, 2011, p. 44). 3.3.5 A dinâmica do círculo restaurativo Do ponto de vista restaurativo, a capacidade de tomar várias perspectivas ou “tomar a atitude do outro” é crucial, pois é ela que possibilita às partes a empatia com os demais e a estarem, metaforicamente, “no lugar do outro”. Nos círculos restaurativos, a metodologia de “contar histórias”, por exemplo, pode desencadear este processo. Nesta fase, os participantes são estimulados a contar histórias de suas vidas a fim de construir compreensão um do outro e para aumentar a empatia134.

A Comunicação não-violenta (CNV) é outra técnica bastante útil e pedagógica para se alcançar este objetivo. Desenvolvida por Marshall Rosemberg135, a técnica propõe a divisão do diálogo em quatro etapas sucessivas, quais sejam: observação, sentimento, necessidades e pedido. Essas etapas expressam as pretensões de validade habermasianas e repercutem os três domínios mencionados por Piaget (CNVC, 2012). 3.3.5.1 A metodologia da CNV A metodologia da CNV pode ser sintetizada nos seguintes passos: em primeiro lugar, cada um dos participantes discute o que aconteceu no mundo dos fatos (mundo objetivo), identificando as ações concretas do outro que afetaram o seu bem-estar. Rosemberg (2003, p. 126) ilustra com exemplos o que se entende por observação: “São 2:00h e ele ouve música estéreo” (fato observado), ao invés de “É muito tarde para ele estar fazendo esse barulho horrível” (introduz uma avaliação); ou “Eu olhei na geladeira e vi que não há comida, então percebi que você não foi às compras de supermercado” (fato observado), em vez de “Você desperdiçou o dia inteiro” (faz uma avaliação). Em seguida, o interlocutor relata o seu sentimento quanto às ações observadas (mundo subjetivo): decepção, susto, alegria, irritação etc. Por exemplo: “Eu vejo o seu cão correndo sem coleira e latindo” (observação — 1ª etapa). “Estou com medo” (sentimento — 2ª etapa). Para a justiça restaurativa, a expressão de sentimentos e intenções é fundamental, a fim de que os demais saibam o que cada um sente e o efeito da sua conduta em relação ao outro. Em terceiro lugar, as pessoas relatam os seus valores, desejos e necessidades relacionados a estes sentimentos, por exemplo, o que eles desejam que seja feito a respeito do fato e o que eles próprios podem fazer para melhorá-los. Seria o caso de: “Eu te vejo olhando para longe, enquanto eu estou falando” (1ª fase - observação). “Estou me sentindo desconfortável” (2ª fase - sentimento), “porque eu estou precisando de atenção agora” (3ª fase - necessidade). Outro exemplo de aplicação destas três etapas pode ocorrer numa situação cotidiana de uma mãe com seu filho adolescente, dizendo: “Filho, quando vejo duas bolas de meias sujas debaixo da mesa de café e outras três ao lado da televisão (observação), eu me sinto irritada (sentimento) porque preciso de mais ordem na área comum (necessidade)”. De imediato, seguese o quarto componente, que constitui um pedido específico de ações

concretas que se espera da outra pessoa: “Você estaria disposto a colocar suas meias no seu quarto ou na máquina de lavar?” (pedido — 4ª etapa). Após esta etapa, em resposta ao orador e a fim de construir empatia com ele, o ouvinte lhe responde com versões reformuladas de declarações do próprio locutor (“eu ouvi você dizendo que ....”), confirmando, assim, que ele foi ouvido e compreendido. Isto porque a CNV exige escuta atenta e paciente do outro, especialmente quando o falante e o ouvinte estão em conflito. Qualquer que seja a técnica empregada, está no cerne do processo de justiça restaurativa a necessidade de expressão dos três tipos de pretensões de validade identificados por Habermas (de sinceridade, de verdade e de retidão), as quais refletem, respectivamente, os três âmbitos da realidade de uma pessoa, distinguidos por Piaget (o objetivo, o subjetivo e o social). Uma das características essenciais das técnicas restaurativas é o desenvolvimento da habilidade dos interlocutores de articularem observações sem a introdução de julgamentos ou avaliações. Por meio destas técnicas, as partes se expressam em termos objetivos e neutros (preferindo observações factuais sobre sentimentos e necessidades) em vez de em termos de julgamento (como bem e mal, certo ou errado, justo ou abusivo), propiciando uma compreensão mais profunda do outro. Por meio destes métodos, é possível que o processo restaurativo atinja seu escopo de chegar a um acordo sobre quais ações devem ser tomadas para reparar os danos e reestabelecer as relações entre os envolvidos (CNVC, 2012). Assim, a dinâmica do encontro possibilita reconhecer os erros cometidos, estabelecer expectativas comportamentais adequadas e desenvolver relações interpessoais. Após o ritual introdutório, de apresentação e ambientação, o momento é de recontar a versão de cada participante para o conflito em questão. Nesta ocasião, eles colocam as três pretensões de validade habermasianas nos seus atos de fala (sinceridade, verdade e correção), alegando que o que eles estão dizendo sobre o evento é verdade, que eles estão sendo sinceros, e o que estão dizendo sobre o evento é normativamente adequado no contexto (BARRET, 2011, p. 51) No encontro, todos os participantes têm a oportunidade de apresentar reivindicações e explicar o porquê delas. Também têm a chance de

questionar, argumentar, aceitar ou desafiar o ponto de vista dos demais, tudo em um espaço de diálogo aberto e honesto. Superada a fase “objetiva” de exposição dos acontecimentos segundo a perspectiva do falante (o mundo objetivo de Piaget), vem a parte “subjetiva”, onde os participantes são indagados sobre como se sentiram com o fato, suas consequências e o impacto sobre suas vidas. A cada pronunciamento, levantam novamente pretensões de validade, agora tematizando o seu mundo subjetivo. Neste ponto, podem expressar suas necessidades, desejos e sentimentos. As vítimas são capazes de tornar conhecidas a natureza e a extensão de suas lesões e, ao ouvi-las, o ofensor pode expressar arrependimento e remorso, pois se torna capaz de assumir a atitude do outro e ver a sua experiência no mundo subjetivo sob outra perspectiva. Assim, por meio da aceitação, de críticas e do engajamento em argumentos, as partes chegam à compreensão do mundo subjetivo do outro (BARRET, 2011, p. 62). Após conhecer o ponto de vista do outro, pode-se adquirir autoconhecimento, superar as dificuldades de compreensão, identificar falhas e melhorá-las com base nas razões válidas oferecidas. Isso resulta em uma mudança de pensamento e de “saber” e pode ajudar as pessoas a adquirirem uma nova visão dos fatos, superar o autoengano e as dificuldades para compreensão. A esse respeito, comenta García-Pablos de Molina (2012, p. 449): O confronto direto e pessoal humaniza uma vivência traumática e a torna mais compreensível, mais aceitável, liberando a vítima de estereótipos e imagens interessadas que radicalizariam e potencializariam a confrontação. [...] “Seu” infrator-não é o inimigo sem rosto, “o” outro, senão mais um “como” os outros.

Dessa forma, os participantes podem, por exemplo, abandonar falsas crenças sobre o que aconteceu na cena do crime ou por que este ocorreu e superar os estereótipos e preconceitos em relação a outras pessoas e como elas se sentem sobre o fato. Barnett (2011, p. 71) cita o exemplo de um ofensor em um crime patrimonial que, ao se deparar com sua vítima, percebeu que ela não tinha seguro, que ela não era rica e que cresceu no mesmo bairro que ele cresceu, sob as mesmas condições socioeconômicas e desafios que ele. Num último momento, as partes entabulam o acordo restaurativo, no qual novamente colocam em debate as suas pretensões de validade, agora

dirigidas ao campo social (compartilhado) de Piaget. Desafiar e criticar reivindicações alheias dá origem ao processo de aprendizagem potencial referido por Habermas136. Durante este procedimento, as reivindicações recíprocas são novamente contestadas, alteradas e até melhoradas137. A argumentação confere aos participantes a oportunidade de aprender, modificar as suas reivindicações, o seu comportamento e alcançar a compreensão mútua e a ação coordenada, tudo por meio do reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade recíprocas (BARRET, 2011, p. 55). Outra vantagem da dinâmica habermasiana neste campo social identificado por Piaget é o potencial de ligação (uma relação de obrigatoriedade entre falante e ouvinte) que pode auxiliar no fortalecimento das relações sociais. Habermas (2012b, p. 155) refere-se a esta ligação como “força vinculativa ilocucionária ou racionalmente motivada da ação comunicativa”. Com o envolvimento das partes na ação comunicativa e com o potencial de chegarem a um acordo, eles formam uma compreensão e um conhecimento recíprocos. Eles sabem o que o outro está pensando, sentindo e experimentando por meio das reivindicações de pensamento, sentimento e experiência levantadas. Esse “saber” reforça as relações sociais. Quando as pessoas experimentam situações de igualdade e respeito mútuo, elas se tornam mais propensas a abandonar suas defesas que são, muitas vezes, a causa do comportamento destrutivo ou não-cooperativo. Elas se tornam abertas para reconhecerem um terreno comum e para agirem no interesse comum, o que é elementar no conceito de comunidade (BARRET, 2011, p. 57). 3.3.5.2 O caso do encontro entre um adolescente autor de “sequestro relâmpago” e sua vítima, um policial Relatos de mudanças de atitude das partes, de que foi possível reconhecer a humanidade no outro, de que o processo restaurativo foi capaz de tocar corações e mentes podem ser explicados, em parte, pela modificação ou abandono de pretensões de validade não sustentadas referidas. Um exemplo é o encontro restaurativo relatado por Dominic Barter, ocorrido em abril de 2007, durante um círculo de conferência realizado na Vara da Infância e Juventude no Rio de Janeiro. Mediados por um servidor do Tribunal de Justiça local, participaram, de um lado, um adolescente de 16 anos autor de ato infracional, sua avó, seu pai e a

namorada do pai. De outro lado, um policial militar (vítima), sua esposa e seu filho de um relacionamento anterior. O fato ensejador do encontro foi um “sequestro relâmpago” praticado pelo adolescente e um amigo não identificado contra o policial. Na noite do crime, os jovens viram um homem sair sozinho de seu carro em um estacionamento ermo e decidiram assaltá-lo. Armados, eles o surpreenderam, colocaram-no no banco de trás do carro e se dirigiram ao caixa eletrônico mais próximo, a fim de sacar dinheiro. Os jovens não perceberam que o homem era um policial à paisana e que portava uma arma pequena junto ao corpo. O policial reagiu e baleou o adolescente por três vezes na perna. O outro jovem fugiu. Cada parte envolvida no ato e, em seguida, o seu núcleo de apoio, teve a oportunidade de narrar seu ponto de vista sobre o delito e como este impactou a vida de cada um deles. Num primeiro momento, o policial fez uma descrição do fato em detalhes gráficos, como quando foi levado para o assento detrás do carro, onde pensou como seria sua reação: na cabeça de qual jovem atiraria primeiro? Cogitou esta possibilidade como uma forma de proteger a si mesmo, a sua propriedade e como sendo a reação natural de um policial. Descreveu que, quando o adolescente virou a cabeça, percebeu que algo no rosto dele lembrava o de seu filho. Pensou, em seguida, nos pais dos jovens, nas famílias perdendo entes queridos e decidiu que em vez de matalos, iria rendê-los e prendê-los. O policial pôde expor suas lembranças desde o dia em que foi sequestrado, como sua rotina mudou, como trabalhou durante anos para adquirir seu carro sem recorrer a atos deste tipo, como um sentimento de medo afetou sua família e que foi condenado ao ostracismo por seus pares por não “fazer a coisa esperada” de um agente da segurança. O jovem, por seu turno, falou de sua vida no momento do crime, sobre o momento de tomar a decisão de cometer o sequestro, sobre o que ele e seu colega esperavam fazer com o dinheiro, sobre seus pensamentos a respeito da polícia, sobre seu pânico ao descobrir que sua vítima estava armada e que se tratava de um policial militar. Relatou a sua semana de recuperação no hospital, o seu desejo de estar morto quando se sentou no piso da cela, falou da perda de sua mãe recentemente falecida, falou sobre ser preso, estudar na prisão e estar separado de sua família. Na última etapa do círculo, todos colaboraram na elaboração de ações específicas para cada um, a fim de contribuir para o bem-estar do outro e atender às necessidades não satisfeitas. Muitos planos foram feitos no

acordo como, por exemplo, o policial levaria seu filho à praia, a avó visitaria o neto adolescente internado a fim de compartilhar histórias de sua filha (recém-falecida) com o neto, o policial faria uma palestra para os detentos na unidade de internação de jovens e o adolescente internado daria uma palestra aos seus colegas. A finalidade foi compartilhar este plano de ação com o juiz de condenação do jovem (ele foi sentenciado a 18 meses de internação, no mínimo), para que o magistrado o considere quando da sua liberação condicional e para que houvesse comprometimento do adolescente com os estudos durante a internação. Ao fim do diálogo, quando se indagou a todos se ouviram uns aos outros com atenção, o adolescente disse ao policial: “Você é como um espelho para mim”. 3.3.5.3 O caso do encontro entre uma vítima idosa e o ladrão de sua residência Um caso emblemático de como as partes podem estabelecer um entendimento comum sobre o mundo objetivo (fatos), o mundo subjetivo (sentimentos e intenções) e o mundo social (normativo, erros, e o que é necessário para corrigi-lo) em relação a um conflito particular foi o furto à residência de uma idosa (LAUGHLAND, 2011, p. 1), de 72 anos por parte de Reggie Aitchison, um jovem de 34 anos, dependente químico e conhecido pela prática contumaz de furtos a residências. Ele ingressou na casa de Kethleen enquanto estava sob o efeito de um coquetel de drogas (álcool, crack e diazepam). Depois da sua condenação, eles aceitaram se encontrar no âmbito da justiça restaurativa para tratarem as consequências do delito. Segundo o autor, ele estava a caminho da cidade para praticar alguns furtos a fim de financiar o seu vício em drogas. Naquele dia, ele e seus amigos já tinham feito cinco tentativas frustradas de subtração em lojas. Os seguranças locais perceberam a intenção deles e eles foram impedidos de entrar nos estabelecimentos. Reggie já retornava para casa, quando passou em frente à casa da idosa e avistou a janela aberta. Por meio dela, ele ingressou na residência à procura de algo rápido para vender (como ouro ou mesmo dinheiro). A vítima apareceu assim que ele abriu a porta da frente para sair e, então, ele correu com medo de ser pego. O autor informou que temia ser preso e passar novamente pelo processo de desintoxicação. Na versão da vítima, ao chegar a casa, ela tentou ingressar pela porta da frente, mas viu o autor sair correndo de dentro de sua casa. Ela ainda tentou segurá-lo, mas ele fugiu. No andar de cima, ela encontrou tudo em absoluta

desordem. Ligou para a polícia, que foi até o local. Após o fato, a vítima não se sentiu mais segura em casa. Sempre andava pela residência imaginando que alguém estivesse ali e, quando ia para a cama, escutava ruídos. A sua neta morava do outro lado da rua e, então, Kathleen foi residir com ela por algumas semanas. Mesmo após o episódio, a idosa não se sentia segura ao voltar para casa. Por isso ela deixou a casa e foi para um alojamento. Ela teve que passar a tomar medicamentos para ajudar a superar o medo e o seu sentimento era de raiva do autor. Após exporem suas visões e sentimentos sobre o mesmo fato, as partes puderam manifestar-se sobre o ponto de vista um do outro. Reggie informou que, um dia, após ser preso, mesmo ainda estando sob a influência das drogas, sabia o que tinha feito: assaltado a casa de uma senhora de idade. Nesse momento, ele ainda não tinha se arrependido do feito, mas, após a sua desintoxicação, ele começou a se sentir mal. Além da necessidade de expressar seu sofrimento e da raiva que sentia, a vítima disse que gostaria de tirar algumas dúvidas. Ela quis saber por que o ofensor escolhera furtar residências. Ele respondeu a ela que era por desespero, porque já haviam esgotado todas as outras possibilidades (bens da família, suas próprias posses etc.), pois as drogas levam seu dependente a um ponto em que ele não se importa consigo mesmo, não tem sentimentos para os outros e tudo o que faz é motivado por ela e pelo desejo de usá-la. A vítima quis saber se esse tipo de pensamento seria uma obsessão, ao que ele respondeu que sim, que a mente de um viciado diz: “Tudo bem, pode fazer, porque você precisa da droga.” A partir desse momento, ele só pensa satisfazer a sua necessidade e nada mais. Após o encontro, as partes concederam entrevista ao jornalista Oliver Laughland, do “The Guardian”, no dia 21 de maio de 2011, a fim de relatarem como a experiência de diálogo os ajudou. Perguntados se se recordavam do dia em que se conheceram por meio do processo de justiça restaurativa, Reggie respondeu que estava com muito medo, pensando como é que a vítima iria reagir. Entretanto, ele sentiu que ela merecia uma explicação e que ela merecia dizer a ele como se sentiu a respeito dos fatos. Ele imaginou que a vítima esperava que ele fosse “uma espécie de monstro” antes do encontro. Kethleen respondeu que, quando foi ao encontro com Reggie, ainda tinha muita raiva acumulada. Disse também que, quando se falaram, explodiu em lágrimas. Todos os maus sentimentos que o ódio tinha

construído dentro dela foram liberados e, depois disso, ela pôde retomar a vida. Reggie afirma que imagina quão assustador foi o fato e que certamente compreende o sofrimento da vítima e que se sente mal por isso. Disse refletir sobre o que fez a uma senhora que trabalhou toda a vida, tem todas as suas coisas, para que alguém simplesmente chegue e invada sua propriedade desse jeito. Por tudo isso, ele se sentiu mal e quis enfrentar a sua vítima para saber o que tinha feito. Informou a Kethleen que tudo o que ela disse está “bem guardado na sua cabeça”, porque é um constante lembrete do que ele era capaz de fazer em virtude do vício em drogas. Afinal, ele “roubou” a independência dela. Kethleen afirma que não sabia que o autor era viciado em drogas até que ele contou no encontro. Para ela, ele era um rapaz completamente diferente, muito distinto do Reggie que ela tinha visto sair correndo de sua casa. Ele afirma que Kathleen ter dado a ele a oportunidade de se explicar foi muito terapêutico para ele também. Naquele dia, isso o motivou a ficar desintoxicado porque ele ainda estava sob o efeito da metadona. Segundo ele, a desintoxicação durou cinco semanas e foi um pesadelo, a pior abstinência que já teve. Ele passou pelo processo e agora tem o seu próprio apartamento. Ele não se aproxima mais de pessoas que usam drogas e diz estar tentando reorganizar a vida (LAUGHLAND, 2011, p. 1). Com base na filosofia do face a face levinasiano, do agir comunicativo de Habermas e do reconhecimento recíproco de Axel Honneth, podemos compreender como o processo de argumentação, a capacidade de tomar a perspectiva do outro e o simples fato de sentarem-se frente a frente e se olharem, antes mesmo do diálogo, dão origem à empatia e às mudanças “no coração e nas mentes” dos participantes. Eles podem transformar a imagem subjetiva inicial que tinham do outro. Como visto no caso citado, esse aspecto é especialmente relevante em relação às vítimas, que podem “livrarse” da imagem “poderosa” do ofensor, criada devido à violência sofrida, mas que não corresponde à realidade. As vítimas podem, assim, ressignificar o potencial da ofensa (COSTA; MOURA, 2010, p. 616). Em conclusão, denota-se que a justiça restaurativa se vale de um processo dialógico que congrega os afetados pelo delito com o objetivo de proporcionar o entendimento de um com o outro e a um acordo sobre que ações podem ser tomadas para reparar o dano causado e, a partir disso,

coordenar suas ações. Nesta senda, a teoria do agir comunicativo de Habermas, a explanação sobre a necessidade de reconhecimento de Honneth e o despertar da responsabilidade e da empatia pela proximidade face a face de Lévinas são perspectivas úteis para compreender o desenrolar do encontro, especialmente porque fornecem um conjunto de mecanismos que nos ajuda a entender a importância da linguagem e do despertar empático para se chegar a um consenso138 e à assunção de responsabilidades compartilhadas para a solução das consequências do conflito. Estas não são as únicas perspectivas ou os únicos quadros a partir dos quais se pode explicar o processo restaurativo, no entanto, eles proporcionam um ponto de partida para uma discussão mais aprofundada que possa colmatar a lacuna entre teoria e prática restaurativa. 3.4 Uma nova racionalidade para a pena: a função comunicativa A teoria de Habermas foi utilizada em três momentos distintos neste trabalho. Em primeiro lugar, utilizou-se a tensão identificada pelo autor entre facticidade e validade do direito para compreender a crise de legitimidade por que passa a lei penal. Por meio de suas ideias, foi possível perceber que, mais importante do que o rigor da lei penal, está o preenchimento das condições validade do direito, a fim de que este seja reconhecido legítimo e merecedor de obediência (seção 1.1). Em segundo lugar, valemo-nos do conceito de esfera pública habermasiana para assimilar a importância de uma arena neutra, voltada para a discussão racional, para o debate e o consenso, da qual participam comunidade, ofensor, vítima e seus apoiadores no tratamento de conflitos (seção 3.3.1). A interlocução realizada neste encontro é denominada por Habermas de “agir comunicativo”, o qual possui uma racionalidade própria, emancipadora, chamada por ele de “racionalidade comunicativa”. A razão comunicativa não estabelece normas, valores, formas de agir ou resultados válidos a serem alcançados, mas permite às partes chegarem a um acordo racionalmente motivado sobre a melhor maneira de agir. Por meio desta nova racionalidade, é possível comunicar ao ofensor sobre a sua responsabilização, de um modo racional e persuasivo, oferecendo-lhe uma justificação para a pena. A sanção, comunicada nestes termos, assumiria uma função de persuasão e de expressão da condenação,

não se tratando de simples ato de incapacitação, retribuição ou vingança. Portanto, às funções de prevenção e retribuição da pena, atualmente existentes, acrescentar-se-ia, como alternativa, a comunicativa, estudada por James Fishkin na teoria explicitada a seguir. Nesta seção, portanto, explicamos a racionalidade comunicativa presente no encontro restaurativo e como ela pode atuar para conferir uma nova função à pena, mais consentânea com os princípios da justiça restaurativa. 3.4.1 A racionalidade comunicativa de Habermas A racionalidade comunicativa de Habermas diz respeito à formação de consensos com base em razões aceitáveis para todos os envolvidos. Ela se vale das razões para chegar a um entendimento comum sobre algo por meio de um convencimento livre, manifestando-se nos processos de comunicação (COELHO, 2013b, p. 1). As suas razões não se encontram vinculadas a nenhum dos sujeitos, mas emergem do próprio meio, do agir comunicativo. A racionalidade comunicativa não teria por objetivo o êxito, mas o entendimento. Seus participantes não se tratam como objetos e meios, senão como sujeitos livres e iguais, capazes de avaliação e crítica139. Habermas (1997b, p. 92) ressalta a finalidade de compreensão mútua (na razão comunicativa) em contraposição à de satisfação de interesses individuais (da razão instrumental), nos seguintes termos: Ainda conforme Habermas (1997a, p. 20), “a razão comunicativa, ao contrário da figura clássica da razão prática, não é uma fonte de normas do agir”. Ou seja, a razão comunicativa não estabelece de antemão normas, valores, formas de agir ou resultados válidos a serem alcançados (COELHO, 2013c, p. 1). Segundo o filósofo tedesco: O que age comunicativamente não se defronta com o “ter que” prescritivo de uma regra de ação e, sim, com o “ter que” de uma coerção transcendental fraca — derivado da validade deontológica de um mandamento moral, da validade axiológica de uma constelação de valores preferidos ou da eficácia empírica de uma regra técnica (HABERMAS, 1997a, p. 20).

A razão comunicativa fixa um processo (no caso, o discurso) em que os próprios participantes podem, em caso de problematização, chegar a um acordo racionalmente motivado sobre a melhor maneira de agir. Ela atribui a este resultado, qualquer que ele seja, a presunção de ser racional em virtude de ter sido obtido mediante um discurso. Trata-se, portanto, de uma razão procedimental, cuja racionalidade está no processo que justificam suas

normas, ou seja, no fato de as normas terem sido obtidas por meio do discurso (COELHO, 2013c, p. 1). 3.4.2 A função comunicativa da pena A ausência de resultados auspiciosos e efetivos para as propostas de retribuição e prevenção da pena, vista nas seções 1.4 e 1.6, leva-nos a perquirir se haveria, no âmbito da filosofia penal, uma finalidade proveitosa a se perseguir com a punição. Afinal, pode haver maneiras melhores e mais úteis de lidar com os delitos em sociedade do que punir ofensores, como respostas reparatórias, terapêuticas, conciliatórias etc. Encarar a punição pura e simples como resposta a um ato criminoso corresponde a ignorar o fato de que quase todos os que estão encarcerados um dia retornarão para a comunidade, talvez até mais irascíveis que antes. Quando as pessoas são condenadas ao ostracismo da comunidade, elas não têm motivos para se preocupar sobre como suas ações poderão atingi-las ou aos demais membros (BRANCHER, 2007, p. 7). Em vista disso, convém lembrar que a censura ao ofensor pode ser transmitida de várias formas — das mais severas até as mais veniais. A justiça restaurativa anima o nosso sistema penal para a construção de um modelo menos vingativo. De acordo com a proposta restaurativa, a repreensão estatal não precisa corresponder necessariamente à violência ou à prisão, pois, muitas vezes, este tipo de tratamento é improdutivo e tampouco necessário. A sua proposta é a de valorização, muito mais do que da retribuição ou prevenção, da função comunicativa da pena. Na justiça restaurativa, a função comunicativa decorreria do procedimento de deliberação racional entre os participantes (vítima, ofensor e comunidade) que discutem, no decorrer do encontro restaurativo, a respeito da contribuição de cada um para o fato criminoso, da forma de responsabilização do autor e da reparação dos danos à vítima e à comunidade, entre outras questões que entenderem relevantes. Nela, a definição da pena é feita de forma participativa e não apenas imposta por uma autoridade exterior ao conflito. A sanção não seria uma consequência ontológica, natural, mas uma construção social a partir do dano causado com vistas para o futuro (BERISTAIN, 2000, p. 187). Ao final do encontro, firma-se consensualmente o acordo restaurativo, que contém obrigações e compromissos recíprocos. Por meio dele, e também devido à sua participação ativa em todo o processo, as partes tanto podem

comunicar as razões que as levaram àquela situação conflituosa como podem ser comunicadas sobre as consequências de suas ações e como repará-las. Em que pese o processo restaurativo possa não desfazer o mal causado, ele é guiado pela possibilidade, entre outras, de transformar a compreensão de cada um sobre suas ações e parcela de contribuição para solução do fato. Essa compreensão é assaz importante, como explica Raimon Panikkar, citado por Beristain (2000, P. 179): “O delito e o mal desaparecem, em certo grau, ou quase todo, quando são compreendidos. Ainda que, sociologicamente, permaneça todo o dano produzido”. A participação dos envolvidos também apresenta a vantagem de evitar distorções sobre seus posicionamentos e interesses. Nas questões criminais, a participação do ofensor é importante não apenas porque confere a oportunidade de conhecer a sua versão dos fatos, mas também devido ao próprio significado da sua presença e do status concedido a ele (de participante e protagonista do processo decisório). Afinal, o objetivo de um julgamento não precisaria ser o de realizar uma determinação precisa dos fatos e determinar uma sanção, mas também o de envolver o ofensor de forma racional no processo de discussão, de julgamento e de reparação (DUFF, 1986, p. 35). Em relação ao ofensor, uma vez que a função comunicativa da pena se manifesta por meio da discussão e do convencimento racional, ele pode ser racionalmente persuadido sobre a importância de respeito às normas sociais e jurídicas, pois o diálogo expõe as necessidades de informações e emocionais da vítima, necessidades centrais para sua recuperação e para o desenvolvimento entre eles de uma empatia que pode conduzir a uma diminuição do comportamento criminoso no futuro (UMBREIT, 2007, p. 1). A justiça restaurativa propicia, assim, um processo mais dialógico, visto que não comunica simplesmente, mas persuade as partes envolvidas140. Em relação ao ofensor, o objetivo de responsabilizá-lo não é apenas para levá-lo a mudar seu comportamento, mas a fazê-lo pelas razões certas. Ou seja, ele deve ser convencido, por um processo de argumentação que procura levá-lo a compreender e a aceitar sua responsabilidade para avaliar o seu comportamento passado e orientar sua conduta futura (DUFF, 1986, p. 48). A pena, assim, assume uma função de comunicação, de persuasão e de expressão da condenação, não se tratando de simples meio de incapacitação

ou de tutela das partes e dos ofensores. Oferece-se, destarte, uma justificação da pena ao autor e não mera retribuição ou vingança. Portanto, às funções de prevenção e retribuição da pena, atualmente existentes, acrescentar-se-ia, como alternativa, a comunicativa propiciada pela justiça restaurativa. Neste ponto, o conceito de esfera pública de deliberação de Habermas e a sua teoria da ação comunicativa são particularmente úteis para a compreensão do encontro restaurativo como locus para o encontro entre comunidade, ofensor, vítima e seus apoiadores, bem como a comunicação ao ofensor da sua responsabilização de modo racional e persuasivo. Além disso, uma função comunicativa da pena introduziria no processo criminal o conceito de cidadania responsável que exige comprometimento do ofensor e dos demais no cumprimento das obrigações assumidas (SIMÕES, 2010, p. 43). Se, no modelo vigente, o papel reservado ao ofensor é cumprir (sofrer) a pena, na proposta restaurativa, sua responsabilidade consiste em compreender o impacto de sua ação e o comprometer-se em reparar esse dano. Desta forma, se no modelo atual o ofensor não tem responsabilidade de solução do problema (do delito), mas apenas de cumprir a pena, no restaurativo, ele a assume. A sua dívida não é mais abstrata perante o Estado e a sociedade, mas concreta e também em prol da vítima (BERISTAIN, 2000, p. 175). Trata-se, em última instância, de uma orientação favorável ao empoderamento, à responsabilização e ao reconhecimento da autonomia dos implicados no conflito. 3.4.3 As ponderações de Joel Feinberg A questão da pertinência da via comunicativa para a transmissão da rigidez penal foi estudada por Joel Feinberg141 (1965, p. 397), nos idos de 1960. Para este filósofo político, a desaprovação social e sua adequada expressão são o que melhor respondem ao crime, ao invés do tratamento rígido ou da dor. Assim, para exprimir juízos sobre a responsabilidade, o sistema de justiça criminal não precisaria fazê-lo necessariamente por meio da imposição de penas de prisão. Haveria situações em que modos alternativos de expressão estenderiam o manto da responsabilidade de forma mais eficaz e mais justa. Nas palavras de Feinberg (1965, p. 415): É claro que devemos condenar a prática de crimes. Mas por que esta condenação envolveria qualquer dor ou dificuldade? Por que a condenação viria pelo meio físico usual, o encarceramento e o tratamento corporal? Poder-se-ia imaginar um ritual

público, explorando os dispositivos mais confiáveis de religião e de mistério, de música e drama, tudo para expressar da forma mais solene a condenação do criminoso pela comunidade por seu ato covarde.142

Assim, de acordo com Feinberg, a censura pelo ato praticado, o pesar e a aflição decorrentes deste podem ser comunicados ao ofensor até mesmo por meio de um sistema de punições simbólicas, como o serviço comunitário obrigatório ou multa. Acrescente-se a isso que, numa perspectiva comunicativa, é perfeitamente possível que as partes cheguem a um entendimento quanto à aplicação deste tipo de penalidade. Feinberg se dedicou a distinguir a gravidade da pena em relação aos demais tipos de sanções, em função da capacidade expressiva de cada uma delas. Para tanto, o filósofo americano salientou que estamos sujeitos às mais diversas penalidades, em vários aspectos (civil, administrativo etc.), tais como a multa pecuniária, a multa de trânsito, a suspensão do direito de dirigir, entre outras. A diferença entre elas não estaria necessariamente na sua gravidade ou na rigidez em que são aplicadas (Feinberg, 1965, p. 403). Por exemplo, a perda do poder familiar de um pai em relação a todos os seus filhos pela prática de maus-tratos contra um deles, ou a perda de um herdeiro do seu direito sucessório por indignidade podem ser muito mais severas do que o castigo imposto na condenação pela prática de maus-tratos ou mesmo de crime contra a honra do autor da herança, cujas penas são menores do que dois anos de prisão143. O que as diferencia, segundo Feinberg, é que as punições de natureza criminal teriam um significado simbólico ou expressivo, que falta às demais penalidades. As penas expressariam atitudes de ressentimento, de indignação e desaprovação, em nome de quem o castigo é infligido (Feinberg, 1965, p. 398). Esta expressão da pena seria uma fonte “independente” de sofrimento e é o que lhe conferiria atributos que a distinguem das demais sanções. O autor cita exemplos ou situações que evidenciam as características distintivas das penas, as quais transmitiriam a reprovação social: a) a desaprovação oficial (authoritative disavowal): ao punir um funcionário público corrupto, por exemplo, um governo expressaria a intolerância com sua ação. Assim, a chamada do faltante para a punição indica que ele não agiu com o beneplácito do Estado; b) não-aquiescência simbólica (nonacquiescence simbolic): para Feinberg, ao não punir assassinatos de amantes em crimes passionais,

pode-se afirmar que o estado do Texas os tolera. Chamá-los para a responsabilização penal pode significar uma recusa em identificar-se com estes; c) justificar a lei (vindicating the law): apesar da previsão legal, se os linchamentos nunca são punidos, conclui-se que a lei contra eles é ineficaz. A punição do linchador, neste caso, poderia funcionar como uma reafirmação da lei; d) absolvição dos demais (absolution of others): a punição de uma pessoa por um crime alivia outros de suspeita e de culpa pela prática do mesmo crime. Feinberg conclui, destarte, que uma condenação simbólica não se confunde necessariamente com um tratamento rígido. Em favor da suavidade das penas, informando que elas não necessitam ser cruéis para serem dissuasórias, também já se manifestou Beccaria, na sua célebre obra de 1764, no parágrafo intitulado “Da doçura das penas”. Entretanto, a conclusão dos filósofos não é indene de críticas. 3.4.4 Críticas e respostas à proposta comunicativa da pena A proposta comunicativa contempla o castigo como forma de comunicação entre comunidade e ofensor, com vistas a quatro metas: o arrependimento, a autorreforma, a reparação e a conciliação. Apresenta, dessa forma, um novo modelo de controle penal (eunômico) frente ao modelo repressivo clássico (anômico), que apresenta as vantagens de ser mais “comunicativo, horizontal, responsabilizador, educativo, inovador, orgânico, terapêutico, racional, de direito real, funcional, liberalizador e reparador” (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 444). Entretanto, a atribuição de uma função essencialmente comunicativa à pena está longe de ser consenso. O primeiro argumento contrário é que ela não comportaria a rigidez necessária para fazer frente aos crimes mais graves cujo castigo também deve ser exemplarmente comunicado. Numa perspectiva consequencialista, critica-se a teoria comunicativa da pena argumentando que muitos ofensores não seriam demovidos por um sistema de censura meramente formal ou por castigos meramente simbólicos144. Afinal, o tratamento penal endurecido adicionaria um elemento dissuasor e apelaria para o cumprimento da lei. Do ponto de vista retribucionista, pode-se alegar que o tratamento rigoroso traduz o desprezo da sociedade para com o sistema de valores do indivíduo recalcitrante e,

portanto, ele seria indispensável e incompatível com uma função simbólicacomunicativa da pena145. Assim, segundo tais convicções, a condenação deve ser expressa por uma providência rígida e o seu grau de dureza expressaria a intensidade de reprovação. Em resposta, argumenta Feinberg que há situações em que a punição rigorosa não é necessária, tampouco seria suficiente para transmitir a rigidez pretendida. A introdução de penas mais severas não resolveu necessariamente o problema da redução da criminalidade146. Ao contrário, esta medida apresenta o risco de tornar as penas austeras e, paradoxalmente, menos frequentemente aplicáveis. Beato Filho (1999, p. 22), por exemplo, identificou que “estados americanos que adotaram severas sanções para o porte de armas verificaram que, após algum tempo, os policiais tendiam a aplicá-las muito menos”. Para o filósofo, ainda que não se possa descartar totalmente a punição, ela não serve isoladamente a nenhum propósito social útil: Houve um tempo em que a forca e a tortura foram os principais símbolos claros de vergonha e ignomínia. Agora vamos condenar criminosos à servidão penal como forma de tornar seus crimes infames. Não seria possível fazer o trabalho mais economicamente? Será que não existe uma forma de estigmatizar sem infligir qualquer dor (inútil) ainda mais para o corpo, para a família e para a capacidade criativa? 147 (1965, p. 401).

Feinberg destaca, ademais, a falta de economicidade da punição por meio da prisão e a inutilidade da dor por ela infligida (não só ao apenado, mas também aos seus familiares e à nossa capacidade de reflexão). Nils Christie (1977, p. 9) assinalou que a imposição meramente de dor para o delito passado não é moral, mas bárbara e se podemos comunicar a reprovação aos ofensores por meio da censura, não devemos fazê-lo pela entrega da dor punitiva. No mesmo sentido, Foucault (2008, p. 66), que salientou o abandono da dramaturgia das execuções públicas, substituído pela brutalidade da pena corporal e “pelo concreto e aço” do sistema carcerário moderno. Este poder punitivo e manipulador mudou de locus, mas manteve inalterada a sua natureza, estando oculto em outros projetos “humanitários”, igualmente reformadores de pessoas, ainda que inconscientemente. Uma abordagem comunicativa para a pena tampouco significa leniência para com o ofensor. Ao contrário, exige-lhe o reconhecimento voluntário da

prática do seu ato, disposição para reparar suas consequências e para o encontro com a vítima, o que nem sempre é fácil e pode lhe trazer desconforto, pois deve revelar-se e lidar com a vergonha e a culpa. Portanto, por meio deste ritual de crítica e censura, a função comunicativa da pena atende à demanda da sociedade de reafirmação dos seus valores e demonstração da sua seriedade. Por outro lado, ela também confere uma resposta honesta ao delito, respeitando os ofensores como agentes morais responsáveis. A concepção da punição sob o aspecto comunicativo serve, em algum grau, aos objetivos utilitaristas do sistema penal, em especial de prevenção do crime, pois a ameaça e a imposição de punição transmitiriam aos potenciais ofensores a mensagem de que sofrerão algo desagradável caso transgridam a lei. Por isso, a função comunicativa seria uma forma de codificá-los a não o fazerem, influenciando comportamentos futuros. Uma teoria comunicativa da pena poderia ser criticada por representar um retribucionismo disfarçado, já que ambos têm em comum o fato de serem retrógrados, ou seja, relacionados a fatos passados e dados em resposta a uma ação digna de reprovação. Entretanto, o retribucionismo presente no papel comunicativo não é absoluto, já que atribui à punição uma sofisticada relação com outro fim social: a dissuasão. Nas palavras de Hampton (1981, p. 215), a punição seria então justificada como uma forma de prevenir delitos, na medida em que se preocupa em educar cidadãos para não se envolverem nesse tipo de comportamento. Neste aspecto, Feinberg (1965, p. 416) apresenta outra distinção entre a função comunicativa e a retribuição: esta visaria distribuir sofrimento para os que moralmente o merecem, enquanto aquela visaria expressar a condenação da sociedade. Foucault, que sempre nutriu uma profunda desconfiança em relação às “formas humanizadas” de punição da sociedade contemporânea, também criticaria a função comunicativa da pena sob este ponto de vista. Até mesmo a novel proposta comunicativa poderia ser tornar uma delas, caso não realize uma verdadeira ruptura paradigmática com o sistema anterior. Na verdade, Foucault desafia qualquer tentativa de justificação da prática da punição, a qual ele considera sempre suspeita. Seu ponto de vista é o de que qualquer justificação da punição ou outra prática social similar estará sempre ligada a ideologias, a suposições e ao uso do poder de forma

irracional e altamente duvidosa. Segundo ele (FOUCAULT, 2008, p.107), o poder de ameaçar, coagir, suprimir, destruir, transformar está presente em qualquer época. A censura agiria para modificar a conduta da pessoa tratando-o como um objeto a ser manipulado e não como um sujeito responsável e autônomo. A perspectiva suspeitosa de Foucault serve como reflexão e alerta para práticas punitivas de nosso tempo. Uma função comunicativa da pena deve conter limites para a pretendida persuasão racional do indivíduo (encontrados nos princípios restaurativos estudados na seção 5.1) e jamais objetivar a reforma, a manipulação ou o condicionamento do apenado, como apregoado pelas teorias “reeducativas” e “ressocializadoras” típicas do paradigma punitivo. Se assim fosse, ela se limitaria a endossar as práticas punitivas atuais, ofuscando o seu potencial de mudar a abordagem punitiva do sistema de justiça criminal. Afinal, como disse o filósofo, “as luzes que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas” (FOUCAULT, 2008, p. 183). Após a análise da teoria de Feinberg e das críticas de Foucault, podemos perceber que muitas das punições instituídas pelo sistema jurídico hodierno — prisão, multas e serviço comunitário obrigatório — apartadas de quaisquer objetivos restaurativos ou emancipadores constituem não só atos simbólicos de censura, mas também têm funcionado como castigo retributivo ao ofensor, buscando sua obediência por meio de ameaça, coação ou reforma. Conclui-se, portanto, que o sistema penal tem fracassado não só em atingir os seus objetivos declarados de punir e reeducar. Falhou, também, ao definir tanto seus objetivos como suas finalidades. Com base na teoria comunicativa da pena, percebemos, sobretudo, que o sistema penal tem errado nos meios empregados para alcançá-los. Trata-se de uma alternativa violenta, dispendiosa e inútil. A atribuição de uma função comunicativa à pena pode igualmente demonstrar a desaprovação social à conduta e responder satisfatoriamente a alguns crimes, ao invés do tratamento rígido ou da dor. 87 Reis Friede (2009, p. 249) observa que a ciência do direito tem sido classificada como efetiva ciência social, de nítida feição hermenêutica. Entretanto, a ciência jurídica não se restringe a isso, pois se caracteriza por ser uma ciência particular, com características especiais tais como, projeção

comportamental (ciência de projeção de um mundo ideal - meta do dever-ser) e por ser uma ciência inexoravelmente axiológica (valorativa). Nem por isso o Direito estaria distante da característica fundamental de todas as ciências: a busca permanente e contínua pela verdade, por meio da interpretação de fatos (naturais ou sociais) e da necessária e insuperável valoração intrínseca de um dado fenômeno, originando uma norma ou tese (explicativa e/ou comportamental). 88 Entende-se, aqui, cultura como um conjunto de símbolos, de significados, de crenças, de atitudes e de valores compartilhados, transmissíveis e apreendidos (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 10). 89 Ressalta Lola Aniyar de Castro (1983, p. 72) que há dois momentos marcantes da história da criminologia: o aparecimento do livro de Cesare Lombroso, o “Homem Delinquente”, em 1876, que acentua o nascimento da Criminologia e, em segundo lugar, o discurso pronunciado por Sutherland perante a Sociedade Americana de Criminologia, em 1949, na qual define o conceito de “crime do colarinho branco”. 90 Um exemplo citado pelo autor de revitalização do positivismo criminológico, a fim de explicar o comportamento criminoso, seria a “neurocriminologia”, influenciada pela neurociência (CARVALHO, 2009, p. 319). 91 Vale aqui anotar a observação de Bruno Amaral Machado (2007, p. 20) acerca da imprecisão no uso do termo “pós-modernidade”: “embora não exista consenso sobre como denominar o momento atual, pós-modernidade, modernidade tardia ou sociedade diferenciada funcionalmente, a sociedade contemporânea apresenta elevada complexidade, que se reflete na forma como operam os sistemas político, econômico e jurídico, entre outros (LUHMANN, 1990a; LUHMANN e DE GIORGI, 2003)”. 92 Sousa Santos (2010, p. 31) observa que as leis da ciência moderna pressupõem ordem e estabilidade do mundo. A simplicidade das leis constitui uma simplificação arbitrária da realidade, que confina o homem a um horizonte mínimo para além do qual outros conhecimentos da natureza, provavelmente mais ricos e com mais interesse humano, ficam por conhecer. 93 Warat (2001, p. 161) define humanização como “a possibilidade de escapar das condições de alienação (em muitos casos, determinadas pelo próprio Direito) e fugir para as condições de produção e realização existencial da autonomia”. 94 O mecanicismo é uma teoria que oferece uma explicação possível para os fatos naturais interpretando-os como movimentos ou combinações de movimentos de corpos no espaço. Aqui, o termo é empregado para designar o método diretivo da pesquisa científica, de índole causalista (em contraposição ao finalismo), reducionista (por exemplo, em sociologia, reduzindo as leis sociológicas a leis biológicas e psicológicas), que privilegia a exigência de análise quantitativa, por exemplo (ABBAGNANO, 1998, p. 653-654). 95 O conhecimento pós-moderno, segundo Sousa Santos (2010, p. 48), é um conhecimento sobre as condições de possibilidade da ação humana ser projetada no mundo a partir de um espaço-tempo local. Um conhecimento deste tipo é relativamente imetódico, utilizando-se de uma pluralidade metodológica. O sociólogo lusitano cita o exemplo de Foucault que é, ao mesmo tempo, historiador, filósofo, sociólogo e cientista político, cujo trabalho apresenta inquestionável composição transdisciplinar sem deixar de ser científico. 96 Observa Sousa Santos (2010, p. 52) que a ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e não há sequer qualquer razão científica para considerá-la melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou da poesia. A razão por que hoje se privilegia determinada forma de conhecimento nada tem de científico. Seria, no seu ponto de vista, um juízo de valor (SOUSA SANTOS, 2010, p. 52). 97 Ainda segundo o autor, “o sistema de justiça que não oferecer o acesso pela justiça restaurativa não poderá ser considerado, na contemporaneidade, um sistema realmente humanizado de resolução de conflitos” (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 451).

98 Por exemplo, se antes as decisões judiciais se circunscreviam aos autos e às partes, hoje a resolução de litígios geralmente implica a implementação de políticas públicas cuja responsabilidade é do Executivo, segundo Faria (2004, p. 106). 99 Neste sentido, Chiovenda (1969, p. 11) ensina que a jurisdição “é função do Estado que tem como escopo a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torná-la, praticamente efetiva.” 100 Além do déficit participativo, da exiguidade de respostas adequadas aos conflitos, da ausência de deliberação racional entre os interessados e de todos dos fatores acima elencados, Boaventura Sousa Santos (1996, p. 301 e 435) identificou outros que impedem o bom funcionamento (de forma correta e a tempo) da jurisdição na seara penal, capazes de gerar o descrédito do sistema. Seriam eles: a irracionalidade da distribuição de recursos humanos e a sua mobilidade; a nem sempre pronta substituição dos funcionários ausentes (inclusive magistrados, ressalta o autor, pois há Varas que permanecem longos períodos sem juízes, gerando atraso e acúmulo de serviço, muito difíceis de sanar posteriormente); a falta de conhecimento, formação ou experiência de alguns funcionários; a falta de brio e de motivação de servidores e magistrados para minorarem os revezes; a incapacidade de resposta das polícias; a carência de instalações e de condições de trabalho (como a falta de espaço, mobiliário ou equipamento); a demora das perícias e exames médicos (nomeadamente nos hospitais e institutos de medicina legal); o tempo que os processos aguardam despachos ou andamento nos escaninhos judiciais, a ponto de ensejar a sua prescrição; a demora no cumprimento de cartas rogatórias ou precatórias para inquirição de testemunhas; a ausência ou revelia do réu, entre outros. O sociólogo ressalta que o mau funcionamento do sistema de justiça criminal em virtude dessas razões, além do déficit participativo e deliberativo, é determinante na imagem que os cidadãos têm da justiça. Afinal, tais fatores provocam a desconfiança no sistema, o impedimento da justa reparação do direito violado e a agravação do seu custo econômico, constituindo um desincentivo do recurso ao sistema de justiça (SOUSA SANTOS, 1996, p. 387 e 432). Uma das missões contemporâneas do arranjo democrático seria justamente adotar estratégias defensivas para limitar a erosão das suas instituições, entre elas o Poder Judiciário e o Ministério Público, se possível, fortalecê-las e estendê-las (FARIA, 2004, p. 114). 101 Nas palavras do filósofo tedesco: “Esses direitos subjetivos [de comunicação e de participação] não podem ser tidos como os de sujeitos jurídicos privados e isolados. Eles têm que ser apreendidos no enfoque de participantes orientados pelo entendimento, que se encontram numa prática intersubjetiva de entendimento” (HABERMAS, 1997a, p. 53). 102 No original: “El juicio penal atañe a toda la sociedad (es lo que se pretende en un Estado democrático) y ésta debe participar del momento comunicacional que en él se desarrolla. La función simbólica, como proyección de imágenes que se quierem dar de la sociedad, tendrá éxito sólo si es realizada por los ciudadanos y no sólo para ellos. A la vez esto permitirá, también, generar la reflexión democrática sobre ciertas funciones sociales que se realizan privilegiadamente el marco estatal” (ANITUA, 2013, p. 115). 103 A cidadania a que se refere a justiça restaurativa, vista sob a óptica da doutrina de Nancy Fraser, não se confunde com o conceito formal e individual do liberalismo, mas de uma cidadania exercitada com viés coletivo, dotada de força de pressão, negociação e controle (FERRAJOLI, 2010, p. 763). 104 Especialista norte-americana em políticas públicas, em especial da área de saúde. 105 (ARNSTEIN, 1969, p. 1). 106 A medição difere da conciliação, por ser uma “forma de solução de conflitos em que um terceiro neutro e imparcial auxilia as partes a conversar, refletir, entender o conflito e buscar, por elas próprias, a solução. Nesse caso, as próprias partes é que tomam a decisão, agindo o mediador como

um facilitador”. Já a conciliação é uma “forma de solução de conflitos em que as partes, através da ação de um terceiro, o conciliador, chegam a um acordo, solucionando a controvérsia. Nesse caso, o conciliador terá a função de orientá-las e ajudá-las, fazendo sugestões de acordo que melhor atendam aos interesses dos dois lados em conflito”. Por fim, a arbitragem é “forma de solução de conflitos em que as partes, por livre e espontânea vontade, elegem um terceiro, o árbitro ou o Tribunal Arbitral, para que este resolva a controvérsia, de acordo com as regras estabelecidas no Manual de Procedimento Arbitral das Centrais de Conciliação, Mediação e Arbitragem (v. Legislação). O árbitro ou Tribunal Arbitral escolhido pelas partes emitirá uma sentença que terá a mesma força de título executivo judicial, contra a qual não caberá qualquer recurso, exceto embargos de declaração. É, o árbitro, juiz de fato e de direito, especializado no assunto em conflito, exercendo seu trabalho com imparcialidade e confidencialidade” (TJPE, 2013, p. 1). 107 Professor de políticas públicas na Escola de Governo John F. Kennedy, da Universidade de Havard. 108 (FUNG, 2006, p. 68). 109 (FUNG, 2006, p. 69). 110 (FUNG, 2006, p. 70). 111 (adaptado de FUNG, 2006, p. 71). 112 No original: “Los rituales comunicativos de la justicia penal son ceremonias que despiertan compromisos de valor específicos en los participantes y en el público, y actúan así con un importante contenido legitimante y pedagógico, reproduciendo los valores republicanos y democráticos y a la vez generando y regenerando una mentalidad y sensibilidad mayores hacia el conflito y la violência” (ANITUA, 2013, p. 114). 113 Os ideais clássicos de democracia como “auto-organização política da sociedade”, “associação de sujeitos livres e iguais” ou relacionados à “regra da maioria” são censurados por Habermas (1997b, p. 13), para quem “as regras de uma democracia apoiada na concorrência, que obtém sua legitimidade a partir do voto da maioria, através de eleições livres, iguais e secretas, tornam-se plausíveis a partir de uma peculiar compreensão do mundo e de si mesmo. Tal compreensão apoiase num “subjetivismo ético” que seculariza, de um lado, a compreensão judaico-cristã da igualdade de cada ser humano perante Deus e toma como ponto de partida a igualdade fundamental de todos os indivíduos”. O autor cita, também, a opinião de John Dewey: “Os críticos têm razão em afirmar que a regra da maioria, enquanto tal, é absurda. Porém, ela nunca é pura e simplesmente uma regra da maioria... É importante saber quais são os meios através dos quais uma maioria chega a ser maioria: os debates anteriores, a modificação dos pontos de vista para levar em conta as opiniões das minorias... Noutras palavras, a coisa mais importante consiste em aprimorar os métodos e condições do debate, da discussão e da persuasão” (HABERMAS, 1997b, p. 27). 114 Joshua Cohen é um filósofo norte-americano especializado em filosofia política, professor de ciência política, filosofia e direito na Universidade de Stanford. Charles Frederick Sabel é professor de direito e ciências sociais na Universidade de Columbia. 115 James Fishkin (2009, p.1) projetou implementações práticas de democracia deliberativa, descritas em cinco características essenciais para deliberação legítima: informação (dados precisos e relevantes seriam disponibilizados a todos os participantes); equilíbrio material; diversidade (todas as posições relevantes para o assunto seriam consideradas); conscienciosidade (os participantes pesam todos os argumentos); e igual consideração dos pontos de vista. 116 A respeito do tema, citamos, na seção 1.3, a analogia médica utilizada por Jerome Miller (1989, p. 1) para descrever as opções de “tratamento” bastante limitadas, oferecidas pelo sistema criminal: “Seria como pedir a um médico uma solução para o alívio da dor de cabeça, sendo-lhe informado que há apenas dois tratamentos: uma aspirina ou uma lobotomia. Ou então ir ao médico com um braço quebrado ou com uma apendicite aguda e ele lhe oferece os mesmos dois tratamentos disponíveis: uma aspirina ou uma lobotomia”.

117 Em When the people speak: deliberative democracy and public consultation, publicado em 2011, Fishkin critica que, em todo o mundo, as reformas democráticas trouxeram o poder para o povo, mas em condições nas quais as pessoas têm poucas oportunidades de pensar sobre o poder que elas exercem. A partir desta ideia, James Fishkin combina uma nova teoria da democracia com a prática real e mostra como uma ideia que remonta à antiga Atenas pode ser utilizada para reavivar nossas democracias modernas. Disponível em: http://cdd.stanford.edu/research/whenthepeoplespeak/. Acesso em: 13 out. 13. Na sua obra The voice of the people: public opinion and democracy, de 1995, o pesquisador avalia as práticas democráticas modernas e explica como tem sido a luta histórica para que se escute a “voz do povo”. Ele narra o histórico de mudança de conceitos e práticas da democracia, com exemplos que incluem a realidade norte-americana. Disponível em: http://www.nuibooks.com/thevoice-of-the-people-public-opinion-and-democracy-PDF-1258109/. Por fim, em The dialogue of justice: toward a self-reflective society, de 1993, Fishkin propõe o ideal de uma “sociedade autorreflexiva” - uma cultura política em que os cidadãos são capazes de decidir seus próprios destinos por meio de um diálogo sem restrições que levaria a uma democracia mais participativa. Nesta obra, o autor apresenta pesquisas de opinião sobre o tema. Disponível em: http://www.muebooks.com/the-dialogue-of-justice-toward-a-self-reflective-society-hardcover-PDF205209/. 118 Segundo Glória Maria Palma (2004, p. 1), o interacionismo simbólico de George Hebert Mead (1863-1931) concebe a sociedade humana como fundamentada na base do consenso em sentido compartilhado na forma de compreensões e expectativas comuns. Trata-se de um método científico de construção do conhecimento que concebe a vida social como interações mediadas simbolicamente. “O símbolo é construído nas interações e dá o sentido da ação individual, assim como coordena as ações interindividuais. O simbólico não é resultado da interação do sujeito consigo, nem do sujeito com o objeto, mas do sujeito constituído e do sujeito projetado pela linguagem. O sujeito está em si e está no outro em interação, construindo a realidade” (PALMA, 2004, p. 1). 119 Wittgenstein utiliza a expressão “jogo de linguagem” para salientar que “o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida” (1999, §23). Para o filósofo da linguagem, “a significação de uma palavra é seu uso na linguagem” (1999, §43), ou seja, o significado da palavra não deve mais ser compreendido como algo fixo e determinado, como uma propriedade que emana da palavra, mas de acordo com o seu uso em um determinado contexto, no qual falante e ouvinte interagem, empregando tais expressões com um objetivo determinado (RUY, 2008, p. 2-3). 120 Assim como Wittigenstein, Austin se distanciou das posições essencialistas da filosofia que restringiam a linguagem à sua função designativa, dando precedência à semântica (RODRIGUES, 2012, p. 36). Em sua obra How to do Things With Words, resultado de doze conferências ministradas nos anos 50, Austin apresenta sua “teoria dos atos de fala”, na qual investiga o fato de determinadas sentenças (enunciados performativos) corresponderem, na verdade, a ações (por exemplo, em “aceito”, “batizo”, “lego”, “aposto”) (AUSTIN, 1990, p. 24). O enunciado performativo teria três dimensões indissociáveis e simultâneas (locucionária, ilocucionária e perlocucionária) (AUSTIN, 1990, p. 85), sendo que o filósofo britânico classificou as expressões em cinco grupos, conforme a força ilocucionária de cada uma delas (veridictivas, exercitivas, comissivas, comportamentais e expositivas) (AUSTIN, 1990, p. 124). 121 Habermas (1997b, p. 56) define a ação comunicativa ou o agir comunicativo como o “uso da linguagem orientada pelo entendimento, através da qual os atores coordenam suas ações”. 122 Uma situação prática em que foi possível a “conexão com o outro” e o reconhecimento da sua humanidade é relatada pela professora Soraia Melo, num dos encontros restaurativos realizados

numa escola do Rio de Janeiro: “Não há nada tão intenso e transformador como aprender a se conectar com o outro, por meio da humanidade, da verdade que cada um tem e divide por meio de seus valores, sonhos e fraquezas. Quando alguém chorava ou contava uma história muito pessoal, eu tinha o desejo de chorar também. Aprendi que escutar é, muitas vezes, muito mais interessante e libertador do que falar e que não há ninguém que possa ter controle absoluto sobre o outro. Há uma força no círculo, ela está viva e por isso não possui um dono — pertence a todos” (CECIP, 2013, p. 98). 123 Um relato de reconhecimento empático propiciado pela justiça restaurativa é feito por uma educadora de uma escola no Rio de Janeiro que se disse mais próxima de seus alunos após participar de encontros restaurativos: “Ah, eu mudei bastante coisa, né? Eu olhei os problemas dos alunos mais de perto, que eu desconhecia, da personalidade. Passei a vê-los com outros olhos a partir do momento que conheci um pouco de cada um, no nosso círculo aqui” (CECIP, 2013, p. 76 e 77). 124 Honneth critica especificamente as teorias liberais por adotarem um conceito de liberdade de caráter individualista. Segundo a tradição liberal, em uma situação originária ideal (denominada por Rawls de “véu da ignorância”), os futuros membros de uma sociedade deliberariam acerca dos princípios morais que os regerão. Neste momento, eles calculariam suas perspectivas de vida segundo o grau de liberdade individual colocado à sua disposição. Para Honneth, essa suposição não pode ser absolutamente verdadeira, já que as escolhas dos deliberantes devem contemplar também a qualidade das relações sociais esperadas, ou seja, não só a garantia da liberdade individual, mas também a reciprocidade social. Isso por si só já seria suficiente para questionar a validade da tese de deliberação hipotética proposta pelos liberais (HONNETH, 2004, p. 110). 125 O termo “Escola de Frankfurt” é utilizado para se referir aos pensadores afiliados ao Instituto para Pesquisa Social de Frankfurt, não representando o nome de qualquer instituição propriamente dita. Tem entre seus membros originais os filósofos Max Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert Marcuse. Jürgen Habermas e Axel Honneth são os representantes mais célebres da segunda e terceira gerações, respectivamente, dessa escola. 126 A esse respeito, Hutchens (2009, p. 43) dá o seguinte exemplo: “quando alguém sentindo dor se aproxima, a responsabilidade por essa dor é radical mesmo que não tenhamos causado essa dor nem assumido qualquer responsabilidade por ela. Somos solidários com a outra pessoa em seu sofrimento. ‘Posso lhe ajudar?’ ou ‘Você está bem?’ ou ‘O que foi que houve?’ ou ‘Quem lhe fez isso?’ são reações possíveis que sugerem ‘responsabilidade por’. Nossa exposição à face de uma pessoa que sofre nos coloca em uma posição em que devemos tratar desse sofrimento como se fosse nosso próprio. A ‘responsabilidade pelos outros’ também tem outros aspectos. Podemos nos sentir responsáveis por alguma ação realizada por outra pessoa. “Não devemos deixar que o genocídio ocorra outra vez” é um exemplo do reconhecimento de um tipo especial de responsabilidade. É como se estivéssemos dizendo em sã consciência: ‘Embora isso não tenha nada a ver comigo pessoalmente sinto-me responsável pelas ações desses criminosos’”. A “responsabilidade por” de Lévinas significa, destarte, considerar como próprio o sofrimento das vítimas, bem como a ação do ofensor. “Perturbados pela proximidade de outros, somos não só responsáveis por eles, mas também responsáveis por nós mesmos sob seu olhar. Colocar-se no lugar do outro é acusar-se do mal e da dor do outro” (LÉVINAS, 2012, p. 98). 127 Em outro momento, também afirma Lévinas (2012, p. 104): “O domínio reservado da alma não se fecha a partir do íntimo”. 128 Nas palavras de Lévinas (2012, p. 88): “é apesar de Mim (Moi) que o Outro me concerne”. 129 A noção de “face” para Lévinas é um exemplo de transcendência, associada a ideias como a de alteridade, a de diversidade e a de ruptura (HUTCHENS, 2009, p. 17) 130 Caso emblemático de descoberta de uma nova reação de responsabilidade deflagrada pelo encontro

face a face com o ofensor é o do comerciante proprietário de doze lojas de “1,99”, pai do menino Yves Yoshiaki Ota, de 8 anos, sequestrado em 29 de agosto de 1997, enquanto brincava com seu primo no sobrado onde morava, na Vila Carrão, periferia de São Paulo. O menino foi morto com dois tiros no rosto algumas horas depois do sequestro porque reconheceu um de seus algozes como um dos policiais militares que trabalhavam como seguranças nas lojas de seu pai. Foi enterrado sob o piso de cimento do quarto de um dos autores, embaixo do berço de sua enteada de 2 anos e meio. Enquanto os jornais ainda estampavam manchetes nas quais o pai de Yves aparecia, em desespero, clamando por pena de morte, ele deu uma entrevista à Revista Veja para dizer que esse tipo de punição não traria seu filho de volta e, portanto, não era mais o desejado e reclamava por justiça social: “Precisamos de mais escolas e empregos para acabar com essa miséria que empurra muita gente para a criminalidade”. Em entrevista à Revista Veja, o comerciante relatou a importância e o potencial transformador do encontro face a face com os ofensores do seu filho: “Revista Veja — O que aconteceu quando o senhor encontrou com os sequestradores no julgamento? Ota — Quando eu cheguei ao fórum, eles estavam numa sala, os três juntos. O juiz disse que, se eu quisesse, poderia vê-los pelo olho mágico. Só que, em vez de olhar pelo olho mágico, eu fui lá e abri a porta. Fiquei frente a frente com os três. Eles abaixaram a cabeça. Eu cutuquei um de cada vez e falei: “Olha para mim, olha para o pai do garoto que vocês mataram”. Eles não olhavam. Aí, eu disse: “Vocês mataram meu filho, mas eu não vou matar vocês. Vim aqui para perdoar vocês”. Eu não tinha planejado falar aquilo, mas saiu. Naquele momento, eu nem sabia por que eu falava aquilo. Revista Veja — O senhor disse que já os perdoou. Nunca chegou a sentir ódio deles? Ota — Senti muito ódio. Mas o que adianta você ficar com ódio, colocar uma arma na cintura e ir ao julgamento para matar?... Revista Veja — O senhor chegou a pensar em fazer isso? Ota — Cheguei. Na véspera do julgamento, eu não dormi. Passei a madrugada toda sentado no sofá, com a arma na cintura, esperando o dia clarear.” Atualmente, o pai da vítima dirige uma fundação que se dedica a ajudar, além de crianças carentes, ofensores condenados. Pelo menos duas vezes por mês, ele visita o presídio militar onde dois dos autores cumprem pena (visto que são ex-policiais militares). Ele leva sementes e implementos agrícolas para que possam cultivar a terra e se ocupar enquanto lá estiverem. Fonte: Revista Veja. Disponível em: http://veja.abril.com.br/idade/educacao/050901/p_054.html. Acesso em: 11 fev. 13. 131 Habermas (2012b, p. 126) explica que o diálogo pode ser dividido em “unidades menores”, as quais ele chama de “expressão” ou “ato de fala”. Nossas conversas são compostas de atos de fala. Dentro deles, levantamos o que se chama de “pretensões de validade”, ou seja, afirmarmos que o que estamos dizendo é algo legítimo ou aplicável. Para Habermas (2012, p. 128), sempre que falamos, levantamos três pretensões de validade: a sinceridade, a verdade e a correção. Ou seja, ao discorrermos, estamos em essência pedindo aos nossos ouvintes que aceitem que o que estamos dizendo é verdade, que as intenções e sentimentos que estamos expressando são sinceros e verdadeiros e que o que estamos dizendo (e, portanto, pensando) é normativamente correto ou apropriado. 132 Todos os pensamentos e emoções são bem-vindos em um encontro restaurativo, contanto que sejam expressos de forma respeitosa, ou seja, que não seja de maneira opressiva, ofensiva (com xingamentos, ameaças) ou violenta. 133 No mesmo sentido, o criminólogo abolicionista Louk Hulsman (2003, p. 211) advoga por uma nova linguagem, que substituiria a linguagem convencional sobre “crime e justiça criminal”, cuja ênfase estaria “em situações, em vez de comportamentos; na natureza problemática, em vez de na natureza ilegal criminosa; na pessoa/instância para quem algo é problemático (vítima), em vez do no agressor.

O agressor somente entra em cena quando a vítima define o evento de uma maneira que o torna relevante; na questão: “o que pode ser feito, por quem?” sob a perspectiva do futuro (menos problemas ou menos problemático) e do passado (reordenação), em vez de na gravidade e na alocação da culpa ao agressor.” 134 Por exemplo, os participantes são convidados a compartilhar uma história sobre uma ocasião em que “perderam o controle”; uma situação em que ficaram fora de suas zonas de conforto; uma experiência de vida quando “fizeram do limão uma limonada”; uma experiência de transformação quando, a partir de uma crise ou dificuldade, eles descobriram um dom em sua vida; uma ocasião em que alguém lhes disse uma verdade muito difícil para aceitarem e tempos depois ficaram agradecidos por este fato ter acontecido; uma experiência de ter prejudicado alguém e depois ter lidado com a situação de maneira que fez com que se sentissem bem a respeito daquela situação; uma experiência em que deixaram a raiva e o ressentimento de lado; uma ocasião em que agiram de acordo com os valores em que acreditam, mesmo com os outros agindo de maneira diferente; uma experiência que os levaram a descobrir que alguém era muito diferente da primeira impressão negativa que tinham daquela pessoa; uma experiência em que se sentiram excluídos; uma ocasião em que viram “a justiça sendo feita”; um momento embaraçoso de que agora acham graça (PRANIS, 2011, p. 34). Esse compartilhamento de experiências é capaz de gerar empatia entre os interlocutores, à medida que se identificam com as situações ou despertam sentimentos ou reações semelhantes. 135 PHD em psicologia clínica pela Universidade de Wisconsin — Madison. 136 A aprendizagem propiciada pela ação comunicativa não se restringe a estes aspectos. Por seu intermédio é possível, por exemplo, exercitar uma reflexão crítica acerca do sistema penal. Ao se questionar o monopólio estatal da jurisdição e a consideração do Estado como vítima principal de um delito, pode-se desenvolver uma consciência crítica acerca da função deste sistema (a serviço de quem se encontra), da sua eficiência (se atende aos seus objetivos declarados) e estimular a adoção de uma política criminal nova. 137 Note-se que não há nada de agressivo no processo habermasiano de questionamento e de defesa de pretensões de validade. Nele, nenhuma força ou coação é permitida que não seja o vigor das razões do melhor argumento. O processo de justiça restaurativa é um fórum aberto de discussões no qual os participantes são livres para falar de maneira respeitosa. O encontro não só permite como também incentiva a manifestação de discordância com a declaração do outro, seja no que diz respeito à verdade da afirmação, à sinceridade da declaração ou à sua adequação. Isso é o que Habermas descreve como pretensões de validade e argumentações criticáveis. 138 Consenso é, aqui, definido como a decisão com a qual todos conseguem conviver. Observa Kay Pranis (2011, p. 23) que não se exige que todos estejam entusiasmados, mas que todos os presentes possam apoiar a decisão. Ressalta a autora que todos os acordos devem ser registrados de forma clara (para que fique esclarecido quem vai fazer o quê ou que comportamento mudará) e nele constar algum método de monitoramento do seu cumprimento. Segundo ela, a falta de clareza pode levar à frustração e à desilusão com o processo. 139 Habermas observou que a sociedade moderna se caracterizava por uma dupla racionalização: uma sistêmica (ou instrumental) e outra comunicativa, sendo que a modernidade conferia uma indevida primazia à primeira (COELHO, 2013b, p. 1). Como visto nas seções 3.1 e 3.2, o processo de racionalização moderno instituiu um processo de dominação sobre a natureza e a sociedade, a fim de converter o universo desconhecido que, de certa forma, controlava o homem, limitando e frustrando os seus fins, num universo conhecido e controlável. André Coelho (2013b, p. 1) explica que a racionalidade instrumental moderna seria um meio empregado para justificar fins previamente propostos nem sempre legítimos a serviço desta ideologia de dominação da natureza, de submissão do universo natural aos fins humanos.

Ele (2013b, p. 1) observa que, apesar de ser o tipo de racionalidade geralmente aplicada no estudo de objetos, a racionalidade instrumental pode ser empregada numa relação entre pessoas, em que cada uma delas vê a si mesma como sujeito e vê a outra como meio para alcançar seus fins. Mesmo que entre os dois se estabeleça uma comunicação, neste caso, ela não seria regida pela racionalidade comunicativa, e, sim, pela instrumental. O autor cita o exemplo da compra e venda de uma casa, em que o comprador vê em seu vendedor um meio para alcançar a casa, enquanto o vendedor vê no comprador um meio para obter o dinheiro: “não interessa ao vendedor nem ao comprador que a descrição e a avaliação da casa corresponda à verdade, mas, pelo contrário, se o vendedor puder mostrar a casa como valendo mais do que vale e o comprador puder mostrá-la como valendo menos do que vale, eles assim o farão. Pode-se, inclusive, imaginar que, não fosse pelas normas jurídicas que proíbem e sancionam o erro, a fraude e a coerção, seriam estes os meios que predominariam entre compradores e vendedores para concretizarem seus negócios”. Segundo o autor, este exemplo demonstra a importância do direito para limitar a racionalidade instrumental e obrigar os indivíduos a se tratarem como sujeitos, do modo como se tratariam caso empregassem a racionalidade comunicativa. Destarte, se a linguagem é empregada para a consecução dos fins individuais de cada interlocutor e não visando ao entendimento mútuo sobre o que é válido, a racionalidade presente é a instrumental e não a comunicativa. 140 Saliente-se que o tipo de persuasão pretendida com a justiça restaurativa não diz respeito a valores morais, mas sobre o que seria justo para aquele caso, no sentido de ser igualmente no interesse de todos. O consenso final, por seu turno, não corresponderia a uma necessária concordância com todas as ponderações colocadas no encontro, mas num arranjo final com o qual todos possam conviver futuramente. “Não exige que todos estejam entusiasmados, mas exige que todos no círculo possam apoiar a decisão” (PRANIS, 2011, p. 23). 141 Joel Feinberg foi um filósofo americano conhecido por seu trabalho nos campos da ética, da filosofia do direito e da filosofia política. Foi uma das figuras mais influentes na jurisprudência norteamericana nos últimos cinquenta anos e obteve reconhecimento internacional por suas pesquisas em filosofia moral, social e do direito. Sua maior obra, “The Moral Limits of Criminal Law”, em quatro volumes, foi publicada entre 1984 e 1988. Fonte: “In Memoriam: Joel Feinberg”, University of Arizona News. Disponível em: http://uanews.org/story/memoriam-joel-feinberg. Acesso em: 18 fev. 13. 142 No original: “It is clear why we should condemn crimes. But why must this condemnation involve any further pain or hardship? Why should the condemnation come through the ‘usual physical media —incarceration and corporal treatment’? ‘One can imagine an elaborate public ritual, exploiting the most trustworthy devices of religion and mystery, music and drama, to express in the most solemn way the community’s condemnation of criminal for his dastardly deed” (FEINBERG, 1965, p. 415). 143 Os crimes citados são considerados de menor potencial ofensivo, de competência do Juizado Especial Criminal, em virtude da pena máxima privativa de liberdade ser menor que dois anos. Para o crime de maus tratos, por exemplo, o Código Penal prevê pena de detenção, de dois meses a um ano, ou multa, aumentada de um terço, se o crime for praticado contra pessoa menor de 14 (catorze) anos. Já as causas de exclusão do sucessor por indignidade estão elencadas no art. 1.814 do Código Civil: “São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários: I - que houverem sido autores, coautores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente; II - que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro; III - que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade”. Para os crimes contra a honra, o

Código Penal prevê penas que variam entre um mês a dois anos de detenção (arts. 138 a 140, do Código Penal). 144 A justificativa consequencialista para a punição tem em vista sua função prospectiva com olhar no futuro. É tida também por utilitarista, na medida em que justifica a punição pela sua capacidade de aumentar o bem-estar social por meio da redução das taxas de reincidência, da ocorrência de crime ou, idealmente, da sua erradicação. A principal crítica à justificativa utilitária é a de que ela pode levar a punições demasiadas (desproporcionais ou até mesmo injustas), se assim se mostrar proveitoso para o bem-estar geral. Obviamente, esta crítica pressupõe um utilitarismo extremado, que provavelmente não subsistiria, já que se cidadãos descobrissem que seriam punidos injustamente ou independentemente de cometerem crimes, isso dificilmente ajudaria no objetivo de dissuasão (DUFF, 2001, p. 11). 145 Como visto na seção 1.2, segundo a abordagem retribucionista, a punição é vista tanto como um bem em si mesmo quanto como uma prática exigida pela justiça, um reclame a nossa fidelidade à lei. A maior crítica à lógica retribucionista é a frequência de penalidades a que ela levaria. Cidadãos seriam punidos por assim merecerem, independentemente de isso ser benéfico ou não. Por exemplo, os responsáveis por crimes praticados há muito, praticamente esquecidos, ainda que levassem vidas exemplares, seriam punidos mesmo que isso não trouxesse nenhum proveito (DUFF, 2001, p. 13). 146 Lembre-se aqui a discussão feita na seção 2.4, em que citamos estudos que concluíram que a pena de morte não adiciona qualquer efeito dissuasor significativo além do que já faz uma prisão por longo prazo. Disponível em: http://www.deathpenaltyinfo.org/files/DeterrenceStudy2009.pdf. Acesso em: 18 fev. 13. 147 No original: “There was a time after all, when the gallows and the rack were the leading clear symbols of shame and ignominy. Now we condemn felons to penal servitude as the way of rendering their crimes infamous. Could not the job be done still more economically? Isn’t there a way to stigmatize without inflicting any further (pointless) pain to the body, to family, to creative capacity?” (FEINBERG, 1965, p. 401).

PARTE III ONDE SE ENCONTRA O FUNDAMENTO DA VALIDADE DA JUSTIÇA RESTAURATIVA? A BUSCA DE SUA SUSTENTABILIDADE TEÓRICA

Como visto na primeira parte deste trabalho, a justiça restaurativa se apresenta como um novo paradigma de conceitualização do crime e de resposta a ele. Inspirada nos valores transmodernos, a justiça restaurativa aborda o problema da criminalidade com maior ênfase na responsabilização e na reintegração do ofensor, na reparação do dano causado às vítimas e na participação comunitária nestes processos, a fim de reconstruir os laços sociais. Na perspectiva deste trabalho, a justiça restaurativa é vista com lentes mais amplas, como sendo um paradigma criminal em construção cujos princípios devem orientar o trabalho de todos os órgãos da justiça criminal (policiamento restaurador, sanções restauradoras, prisões restauradoras etc.), propiciando um sentindo emancipador a este sistema148. Ela não se restringe ao desenvolvimento de programas restaurativos, a moldes já existentes que propõem medidas alternativas às sanções penais, tampouco se resume a uma política criminal, um programa de Estado em resposta para controle, combate ou prevenção ao crime. Por óbvio, a justiça restaurativa pode auxiliar a política criminal, inspirando respostas ao crime que não se limitam ao direito penal, abarcando outros meios de controle (sociais, formais ou informais) (DELMAS-MARTY, 1992, p. 5). Ela intenta propor programas de intervenção mais adequados às especificidades locais e das partes envolvidas, além de conjugar exigências de prevenção com as de responsabilização do ofensor, tudo com vistas a promover a reparação e a participação comunitária. A justiça restaurativa também pode contribuir criminologicamente, porque aborda problemas essenciais para a reflexão criminológica tais como a finalidade do castigo, a administração penal etc. Ela é relevante criminologicamente porque permite avaliar e melhorar a resposta social e legal ao delito. Como as demais correntes criminológicas, ela pode orientar a política criminal, auxiliando-a a compreender a razão pela qual o ofensor age, as vulnerabilidades das vítimas , quais as demandas e as possíveis reações da vítima e da comunidade em relação ao crime, e que respostas elas almejam. Dessa forma, ela agrega qualidade à intervenção penal, visto que questiona e aperfeiçoa seus pressupostos, fundamentos e efeitos. Segundo Garcia-Pablos de Molina (2012, p. 10), a moderna criminologia possui uma visão mais complexa do acontecimento delitivo, não se

esgotando no castigo ao ofensor. A reintegração do ofensor, a reparação do dano e a prevenção do crime são metas que também estão em primeiro plano e, neste ponto, a justiça restaurativa tem muito a ofertar. Por outro lado, um embasamento teórico criminológico também é relevante para a práxis restaurativa que, atualmente, se encontra em pleno desenvolvimento, com experiências difundidas em vários países, sendo que o mesmo progresso não se verifica na sua teoria. Em que pese teoria e prática serem reciprocamente interdependentes, elas se retroalimentam, pois a prática requer adequado quadro teórico que lhe sirva de guia, ao passo que o progresso da teoria criminológica necessita de novos horizontes, o que uma bem orientada práxis pode lhe oferecer (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 353). Carente de um quadro teórico próprio, a justiça restaurativa se embebe do conhecimento das escolas criminológicas predecessoras para engendrar uma abordagem eclética sobre o crime e a resposta adequada a ele, integrando elementos de várias delas. A exploração das escolas criminológicas, portanto, torna-se fundamental para a identificação e compreensão dos componentes da proposta restaurativa. 148 O sentido emancipador aqui referido é o empregado por Antônio Suxberger (2010, p. 59) para se referir à política criminal emancipatória: “Essa mesma política criminal poderá proporcionar um acesso regulador (restritivo, excludente, monológico, ideológico) ou emancipador (comprometido com a ampliação do que se entende por humano, inclusivo e plural).”

CAPÍTULO IV

DAS ESTRADAS LARGAS AOS BECOS SEM SAÍDA A VEREDA DOS MOVIMENTOS CRIMINOLÓGICOS ATÉ A EMERGÊNCIA RESTAURATIVA

O pensamento criminológico passou por diversas fases de amadurecimento, conhecidas como “escolas” da criminologia que costumam ser divididas em escola clássica (Beccaria, séc. XVIII), escola positiva (Lombroso, séc. XIX) e escola sociológica (a partir do final do século XIX). A primeira delas, da qual a justiça restaurativa hauriu axiomas, ficou conhecida como “escola clássica” e, influenciada pelos ideais iluministas, preocupou-se com excessos no poder de punir do Ancien Régime, tais como a pena capital, o encarceramento por tempo indeterminado, a atribuição de poderes ilimitados aos juízes, as acusações secretas, os interrogatórios sugestivos e a aplicação da tortura como meio de se obter confissão. O propósito basilar desta escola era reagir contra a arbitrariedade, a tirania e a subjetividade na aplicação da pena, estabelecendo razão e limites ao poder estatal, enquanto reivindicava garantias individuais na persecução penal em favor daqueles que violaram a lei (NORDENSTAL, 2008, p. 15). O corifeu dessa fase humanitária do Direito Penal foi Cesare Bonesana, marquês de Beccaria, com sua obra Dos delitos e das penas, de 1764. O economista italiano valeu-se de argumentos como o direito natural (pressupondo a existência de direitos anteriores ao próprio Estado que, por natureza, caberiam a todos os indivíduos)149 e o contratualismo rosseauniano (que afirma que não só o “infrator”, mas também o Estado violavam o contrato social), a fim de criticar as penas cruéis e predicar sua abolição150 (CIRINO DOS SANTOS, 2012b, p. 10). Além do iluminismo, a criminologia clássica se lastreou em outro ideal: o livre-arbítrio dos indivíduos, ou seja, a capacidade de fazer uma escolha racional, distinguindo entre o certo e o errado, o que possibilita que o indivíduo escolha entre seguir a lei ou violá-la. Conforme esse raciocínio, o autor racional ponderaria os prós e contras da prática criminosa, sopesando

entre o prazer de cometer o ato e a dor eventual de ser punido por ele. Assim, caso o prazer superasse a dor, ele faria uma opção lógica pelo crime151 (BATISTA, 2009, p. 22). Ao considerar uma possibilidade de reflexão racional pelo agente, tornou-se imperioso criar um sistema de dissuasão, a fim de desestimular sua eleição pelos atos criminosos. Este sistema é o punitivo. Por conseguinte, para compensar o prazer advindo da prática criminosa, deveriam ser impostas punições que trouxessem consigo a dor suficiente para dissuadi-lo. É o denominado pleasure-pain principle, difundido por utilitaristas como Stuart Mill e Jeremy Bentham152, segundo o qual as pessoas agiriam sempre de maneira a aumentar os seus benefícios e a reduzir suas perdas, incrementando o seu prazer e minimizando sua dor (CIRINO DOS SANTOS, 2012b, p. 11). Esse princípio é exemplo da crescente influência da economia no pensamento criminológico. A tese clássica foi reavivada em 1968, por Gary Becker, sob o título de “teoria neoclássica” (ou “perspectiva econômica do crime”), no seu histórico artigo Crime and punishment: an economic approach153. Seus fundamentos foram retomados pelo sociólogo americano Ronald Akers, com a sua “teoria do condicionamento operante” (ou da aprendizagem por meio das consequências da própria ação), para a qual a conduta delitiva é controlada por uma série de estímulos: ela se reforça quando obtém gratificações positivas ou evita punições (reforço negativo) e se debilita mediante estímulos negativos (castigos) ou perda de gratificações (sanções positivas)154 (BATISTA, 2009, p. 23). Para essa teoria, justiça restaurativa é um benefício ao ofensor, como forma de livramento das sanções penais habituais e pode representar um reforço negativo para o cometimento de atos criminosos. Por outro lado, se vista como uma forma de responsabilização, que exige do ofensor o reconhecimento da culpa e a reparação dos danos causados, ela se torna uma sanção duplamente positiva, com ganhos mútuos para o autor e a vítima (win-win situation). Afinal, a justiça não precisa ser reduzida a um jogo de soma zero, em que as necessidades e os interesses das vítimas diretas da violência são vistos como contraditórios com os dos ofensores. Até os dias atuais, a abordagem clássica continua atraente, especialmente para agentes estatais. Por ser centrada na escolha de um autor racional, transfere a este a responsabilidade pelo crime, na medida em que a decisão

de cometer atos criminosos teria sido sua, consoante a própria vontade e propósitos, devendo, portanto, o ofensor assumir, exclusivamente, a responsabilidade por realizar melhores escolhas. Neste sentido, a opinião de Luisa de Marillac Passos e Maria Aparecida Penso (2009, p. 21): “ao atribuir responsabilidades penais, o sistema político se libera de sua própria responsabilidade por conflitos que não é capaz de administrar”. Em similitude à escola clássica, a justiça restaurativa tem entre seus pilares o reconhecimento da transgressão feita pelo ofensor e a assunção de responsabilidade pela sua reparação, entretanto, difere desta escola ao demandar que esta incumbência seja partilhada entre os membros da comunidade155. O ideal clássico assentou-se na teoria contratualista (pacto social), como fundamento da sociedade civil e do poder e numa representação do homem como ser racional, livre e igual. A principal crítica apresentada à escola é que ela não se interessou pela gênese ou etiologia do delito (indagando causas ou fatores que podem influir no comportamento criminoso) e tampouco pela sua prevenção. Por olvidar uma concepção etiológica, acabou por oferecer uma explicação meramente “situacional” para o crime, tornando-se incapaz de oferecer bases e informações necessárias para um programa de prevenção e combate ao crime (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 161). Ainda segundo o autor, a doutrina clássica sequer interessou-se pela personalidade do “infrator” ou sua realidade social para compreensão do crime. Pelo contrário, trata-o como mero sujeito ativo do delito. Desse modo, a pessoa do ofensor foi relegada a um segundo plano, tratada abstratamente e não como ser concreto e real. Neste ponto, esta escola difere bastante da abordagem restaurativa que, no trato criminológico, confere protagonismo ao ofensor, considerando-o em seu meio e em seus relacionamentos sociais. Outro aspecto relevante é que o pensamento clássico contempla uma concepção abstrata, jurídico-formal do delito, além de basear-se em dogmas (como a liberdade e igualdade do homem, retidão das leis etc.). Por esta razão, apresenta um enfoque mais reativo ao delito, limitando-se a escudar uma pena justa, proporcionada e útil, pressupondo uma aplicação equânime da lei penal, a qual seria infringida por uma decisão livre do seu autor (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 161). A justiça

restaurativa, por seu turno, vai além de uma concepção utilitarista do castigo, questionando o seu fundamento ético. Entre os seus pressupostos, está a construção de um modelo mais comunicativo, no qual a censura possa ser transmitida ao ofensor após o consenso obtido no procedimento de deliberação racional entre os participantes (vítima, ofensor e comunidade), como visto na seção 3.4.2. A visão clássica de que os seres humanos são racionais e, portanto, podem tomar decisões livres, de acordo com a sua vontade, foi contrastada posteriormente com o entendimento de que o crime seria resultado de forças biológicas, psicológicas ou sociais fora do controle de um indivíduo. Todavia, até lá, a práxis criminológica operou por influência de concepções populares de escasso rigor teórico-científico156 ou com base nas ciências (ou pseudociências) naturais, como a fisionomia (estudo da aparência externa do indivíduo, baseada especialmente na observação de reclusos e na prática de necropsias)157, a frenologia (determinação das características da personalidade humana e do comportamento criminoso pelo formato da cabeça)158 e a psiquiatria159 (SHECAIRA, 2013, p. 73-75). Já no século XIX, a sociedade europeia em geral não se preocupava com os excessos do sistema penal, mas com o incremento da criminalidade e os problemas sociais oriundos da revolução industrial. Tornou-se, então, imprescindível, analisar de outro modo a desorganização social crescente e adotar medidas que restabelecessem o bem-estar social e moral da coletividade. À luz da antropologia e da tendência determinista nas ciências sociais, os esforços foram concentrados no estudo do controle do crime e na proteção da sociedade contra tais “criminosos” (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2000, p. 165). 4.1 A justiça restaurativa na contramão do atavismo positivo Inicialmente, a criminologia dedicou-se a desvendar a origem do crime com vistas a eliminar os seus efeitos. Valendo-se do método das ciências naturais, ela elegeu o homem “criminoso” seu objeto de estudo, buscando nele as causas para a delinquência. A escola positiva, cujos principais expoentes são Raffaele Garofalo, Cesare Lombroso e Enrico Ferri, apresentou um estudo etiológico para explicar o crime, compreendendo-o não como um ato de livre-arbítrio, mas como um ato anormal em uma cadeia de causalidade160. A lógica era de que, se características como cor dos

olhos, cor do cabelo, aspectos faciais e personalidade são passados de geração em geração, era de se esperar que o comportamento criminoso pudesse também ser transmitido161 (SHECAIRA, 2013, p. 77). Maíra Rocha Machado (2005, p. 82-83) informa que, no Brasil, um dos aplicadores dos pressupostos lombrosianos foi Nina Rodrigues, professor e médico legista na Faculdade de Medicina na Bahia, autor do livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil (1894), e de alguns artigos. Ressalta a autora, entretanto, que Nina Rodrigues aplicava as ideias lombrosianas combinadas com uma sofisticada reflexão jurídica sobre as possibilidades de reforma do sistema penal162. A escola positiva revela um nível elevado de empirismo, vocação clínica e terapêutica. É considerada positivista, pois supõe a existência de um mundo físico externo ao observador, cognoscível de forma objetiva e neutra. Foi a primeira a usar o método científico na medição de partes do corpo, formas e tamanhos, congregando conhecimento das mais diversas ciências (genética, neurociência, bioquímica, antropologia, endocrinologia etc.)163, o que representou uma drástica mudança em relação ao silogismo e à dedução acadêmica da escola clássica (SHECAIRA, 2013, p. 78). Na concepção dos teóricos da escola biológica, o comportamento criminoso era resultado de um “defeito” no indivíduo, de natureza biológica ou genética, que distinguiria o “criminoso” do cidadão obediente. Os “criminosos” nasceriam com certas características físicas hereditárias reconhecíveis (transtornos, patologias, disfunção ou anormalidade)164 que os tornam “distintos” dos “não-delinquentes”165. Concluíram que o tipo criminoso seria um “tipo humano” singular, organicamente inferior, degenerado, hipoevolutivo (fruto da regressão, não da evolução das espécies), marcado por uma série de “estigmas”, transmissíveis hereditariamente166 (SHECAIRA, 2013, p. 78-79). O sistema penal passa a se sustentar, assim, baseando-se no autor do delito e na classificação tipológica deste e tendo como fulcro o conceito de periculosidade. Observa Maíra Rocha Machado (2005, p. 81): A preocupação central dos autores que participaram da elaboração desse conhecimento foi descobrir as causas do comportamento criminal, descrever as tendências estatísticas da criminalidade e, ainda, compreender os processos de adaptação social e pessoal que conduzem à prática de um crime.

A importância da pena passou a ser em função da defesa da sociedade, a fim de protegê-la do “delinquente”, separando-o do ambiente social. Por outro lado, a pena estaria totalmente desprovida de um efeito dissuasor, porque haveria, no indivíduo, defeitos ou anormalidades inerentes, de forma que a ameaça de punição não afetaria seu comportamento. Se as teorias biológicas estiverem corretas, a sociedade estará bastante limitada em suas respostas aos ofensores 167 (MAGUIRE et. al., 2012, p. 24). Este paradigma etiológico, nascido com a criminologia positivista e que com ela formou a base da criminologia tradicional, até hoje influencia as correntes mais recentes, oriundas do movimento neolombrosiano ou póslombrosiano. Variações das técnicas lombrosianas foram incorporadas à biocriminologia contemporânea como, por exemplo, estudos que associam ao comportamento delitivo aspectos morfológicos, neurofisiológicos, endocrinológicos etc.168, como formato do cérebro do afro-americano aos índices de criminalidade entre os negros nos Estados Unidos (MACHADO, B., 2012, p. 86); o QI — quociente de inteligência e as disfunções hormonais (como elevados níveis de testosterona à delinquência sexual masculina, de forma a sugerir tratamentos hormonais com o fornecimento de drogas em seus autores) (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 205 e 208). Além disso, a genética criminal tem se dedicado ao estudo das famílias “de criminosos” (cujos descendentes ostentam antecedentes criminais); a pesquisas sobre a adoção (observação do comportamento de pessoas adotadas em comparação aos filhos biológicos de um mesmo casal, numa tentativa de demonstrar relação entre genética e comportamento criminoso); ao exame de famílias gemelares (análise comparativa do comportamento entre gêmeos fraternos e idênticos cujo comportamento seria discordante ou concordante, respectivamente); à análise de alterações cromossômicas, como do cromossomo “XYY” (o “super-homem criminoso”), segundo a qual os nascidos com um cromossomo Y excedente, por terem mais testosterona, tornar-se-iam mais agressivos, violentos e mais propensos a cometerem atos criminosos (BOMAN, 2010, p. 1). O risco — ainda atual — da procura de causas biológicas para a criminalidade é a promoção da discriminação, da exclusão e do assassínio de pessoas fundados em motivos racistas, de defeitos físicos ou genéticos, estereótipos sexistas etc (SHECAIRA, 2013, p. 105-107).

A escola positiva pode ser criticada por muitos pontos de vista, em especial porque não pode demonstrar uma correlação necessária entre os estigmas elencados e uma tendência criminosa, pois é possível encontrar pessoas com tais traços característicos que não sejam “delinquentes”, além de que nem todos os “criminosos” apresentam tais anomalias169. Por outro lado, a teoria biológica não explica o fato de que famílias socialmente “qualificadas” produzem “delinquentes”, enquanto membros de famílias “indesejadas” se adaptam às exigências comunitárias (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 236). Do ponto de vista da justiça restaurativa, é de se contestar especificamente a conclusão positivista de que o “atavismo” (caráter regressivo do tipo “criminoso”) é característico de tribos selvagens e de civilizações indígenas, pois, contrariamente a este dado, foi nelas que se originou o ideal pacificador inspirador das práticas restaurativas sem se demonstrar a existência de índices de criminalidade superiores nas tribos primitivas. Adicionalmente, a escola positiva ignora o contexto em que ocorrem os eventos criminosos. De acordo com a concepção restaurativista, não é possível se desvincular do contexto ou da gênese do fenômeno criminal, a fim de possibilitar uma intervenção dinâmica e positiva que neutralize suas origens. Do contrário, o crime pode adquirir um caráter mais grave do que o seu próprio contexto originário (MAGUIRE et. al., 2012, p. 28). García-Pablos de Molina (2012, p. 206) critica a escola positiva por se concentrar no estudo do “delinquente”, ao qual tenta modificar, e não questionar a elaboração da lei penal. A lei é tida como sendo uma realidade estabelecida, uma verdade dada, o que não se coaduna com a postura criminológica crítica hodierna. Outro aspecto contestável desta teoria é desconsideração de fatores exógenos (sociais, ambientais, psicológicos, de aprendizagem social etc.) no exame do crime, visto que a teoria positiva o faz sob a óptica exclusiva do autor. Do ponto de vista restaurativo, esta omissão é relevante, pois é imprescindível considerar as peculiaridades do caso, a particularidade dos envolvidos que, a despeito da sua carga biológica e genética, não é um produto terminado, objeto da história, e incapaz de decidir por si e de transformar a sociedade que o regula (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 206).

Nesta esteira, o determinismo da escola biológica, segundo o qual um estilo de vida criminoso é resultado direto da herança genética ou predisposição biológica foi temperado posteriormente por outras teorias (o chamado determinismo “soft”) que o examinam em conjunto com outros fatores — do ambiental à escolha individual. Estas teorias biológicas contemporâneas são menos propensas a se referir a defeitos ou anormalidades biológicas e se concentram mais na interação destes fatores com o meio ambiente, como a genética comportamental170 (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2000, p. 106-107). 4.2 Normalidade e funcionalidade do crime — o influxo das teorias sociológicas Nos Estados Unidos, nas décadas de 1920 e 1930, despontaram correntes criminológicas influenciadas pela sociologia que iniciaram seu trabalho entre as chamadas teorias culturalistas171. As teorias culturalistas possuem, como postulados, a normalidade e a funcionalidade do crime. O delito seria um fato normal, não relacionado a patologias individuais ou sociais. Ele seria inevitável numa sociedade democrática, pluralista, antagônica e estratificada, estando relacionado a fenômenos normais da vida cotidiana172 (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 280). Para Ralf Dahrendorf (1958, p. 115), o anormal não é a presença de conflitos, senão a sua ausência. Consoante o sociólogo alemão, é possível regulá-los, controlá-los e até suprimi-los temporariamente, porém não os erradicar por completo e para sempre. Do ponto de vista da tese funcionalista, o conflito não seria necessariamente nocivo, mas poderia atuar funcionalmente: ele contribuiria para uma modificação positiva da estrutura social, promovendo as alterações normativas necessárias para um desenvolvimento dinâmico mais justo e efetivo173 (DAHRENDORF, 1958, p. 115). A perquirição criminológica, então, deixou de debruçar-se sobre as causas da conduta criminosa para se concentrar nas razões pelas quais uma sociedade produz o fenômeno criminoso. Observa Maíra Rocha Machado (2005, p. 82) que “o crime deixa de ser considerado uma característica ou um comportamento da pessoa, para ser visto como o produto das agências de controle social. Quem define o comportamento de quem como ‘criminoso’?”

Com este tipo de indagação, consolidou-se um paradigma contrastante com o etiológico que se nutriu da reflexão sociológica e histórica sobre o comportamento criminoso, o direito penal e a resposta do grupo social ao delito174 (SHECAIRA, 2013, p. 123). Anota García-Pablos de Molina (2012, p. 282) que as teorias sociológicas contemplam o fato delituoso como um fenômeno social, valendo-se dos mais diversos marcos teóricos — ecológico, estruturalfuncionalista, subcultural, conflitual, interacionista etc. Em comum a todas elas, há o fato de que analisam as características da sociedade que podem produzir maiores taxas de criminalidade em bairros ou grandes grupos (a chamada “sociologia da grande cidade”). Supõe-se que os distritos caracterizados por constantes mudanças e deterioração estariam mais propensos à criminalidade, porém mal sucedidos em controlar o comportamento de seus residentes. Nota Shecaira (2013, p. 124) que o fato de esta corrente ter nascido em Chicago não é ocasional, pois foi justamente no início do século XX que esta cidade experimentou um período de grande desenvolvimento urbano, com modificações edilícias, crescimento populacional, migração e mudanças na dinâmica etnográfica. Conceitos como “princípio da aprendizagem” e “associação diferencial” foram engendrados para esclarecer como o comportamento criminoso pode ser aprendido com os demais. Tais ideias moldaram uma verdadeira subcultura criminosa e tentaram explicar a influência do meio ambiente como um fator criminógeno, especialmente para os casos de delinquência juvenil. A justiça restaurativa compactua com algumas premissas das teorias sociológicas, como a relação entre crime e as estruturas sociais como fenômenos ordinários da vida cotidiana. Elas sublinham a normalidade do delito e a impossibilidade de sua eliminação da sociedade sem atribuí-lo a patologias individuais ou complexos conflitos sociais já que a ordem social é constituída de uma pluralidade de grupos, segmentos e estratos. De outra aresta, à impessoalidade da grande cidade — onde o contato físico é próximo, mas o contato social é distante — a justiça restaurativa responde com re-estabelecimento de relações entre ofensor e vítima e com o estreitamento de seus laços comunitários. Em que pese as escolas sociológicas terem em comum a premissa da influência do meio social no comportamento do indivíduo, elas não

apresentam homogeneidade em relação aos seus objetos de estudos, abordagens, nem mesmo técnicas de pesquisa, dialogando cada qual com diferentes campos do saber (ecologia, antropologia, arquitetura)175, como se expõe. 4.2.1 A apoteose do bem-estar e a frustração de status: uma contribuição da teoria da anomia A anomia é uma linhagem da teoria sociológica, segundo a qual, nas comunidades em que as normas são incertas ou ausentes, haveria condições mais favoráveis à proliferação do crime. O termo se refere a um estado de ausência ou de confusão de normas dentro de uma sociedade e foi cunhado por Durkheim para explicar o suicídio na sociedade francesa176. Mais tarde, foi aplicado por Robert Merton e outros criminólogos para descrever as formas de desvio e o crime177 na sociedade estadunidense. Nesse caso específico, a anomia residiria na lacuna, no desequilíbrio ou na disjunção entre as aspirações culturalmente induzidas para o sucesso econômico e as possibilidades estruturalmente distribuídas para tal realização. O “plano de sucesso” apresentado pela sociedade (em especial a americana) é que quem seguir suas regras para alcançar os objetivos impostos por ela (aspirações relacionadas à renda, educação ou objetivos profissionais), triunfará. Esta seria a forma adequada de se atingir o êxito. Entretanto, nem todos os cidadãos têm a mesma oportunidade de alcançar o “sonho americano”, exortado culturalmente por meio do consumo e da publicidade. De acordo com os adeptos da teoria da anomia, o bloqueio de oportunidades e a tensão (strain) associada a ele (por exemplo, ao se aperceber das baixas chances de atingi-lo) podem levar o indivíduo a processos criminógenos ou a atividades desviantes. O crime seria, assim, uma forma eficaz, embora ilegítima, para se obter o sucesso (SHECAIRA, 2013, p. 196). A versão de Merton da anomia dedica-se a avaliar a atitude do indivíduo ao perceber que nem todos possuem igual oportunidade para o sucesso econômico. Num sentido mais amplo, seu intuito é descrever as adaptações de comportamento e a interação entre meios legítimos e ilegítimos disponíveis para tanto, nestas situações178. Mais tarde, a fim de estudar a subcultura criminal de jovens de classe baixa, Albert K. Cohen expandiu os postulados de Merton. De acordo com o criminologista, as razões da criminalidade neste segmento não são racionais

e utilitárias, como na orbe dos adultos, mas reside na dificuldade destes adolescentes em alcançar bens e valores da classe média179. Haveria, sobretudo, um descompasso entre o “status” a ser alcançado por esses jovens e o “status” que lhes é atribuído (família) (COHEN, 1955, p. 202). Aos moços de classe baixa, teria sido outorgado um estatuto familiar diverso daquele demandado pela escola, por exemplo, que sublinha valores da classe média. Para Cohen, além da tensão causada pelos exigentes padrões de vestir, de falar, de comportamento e de ganho material (já identificada por Merton), haveria também o descompasso de valores — como honestidade, cortesia, personalidade, responsabilidade, tenacidade, luta e respeito, ao que chamou de “frustração de status” (COHEN, 1955, p. 203) 180. Uma das nuances criminológicas mais significativas, da qual a justiça restaurativa emprestou alguns de seus fundamentos, foi a teoria da anomia de Agnew (1992, p. 52) que conferiu ênfase às emoções, mais especificamente à tensão. Para ele, a tensão mais relevante gerada pelo sistema não seria a estrutural, tampouco a interpessoal, mas emocional, ou seja, a raiva propriamente dita (concebida como estado episódico)181. As ideias estruturais-funcionalistas acima descritas servem de inspiração para o desenvolvimento de projetos restaurativos destinados a trazer estabilidade e ordem às comunidades. Como já identificado pelos sociólogos da Escola de Chicago, na cidade grande, fatores como superpopulação, mobilidade social e a perda de raízes no lugar de residência favorecem um enfraquecimento do controle social, com a deterioração de grupos primários (como a família) e a modificação das relações interpessoais, que se tornam cada vez mais superficiais (GARCÍAPABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 274). Os círculos restaurativos — que contam com a presença de membros da comunidade, das escolas, e das famílias — oferecem a possibilidade de contribuir para o empoderamento destas instituições e para o aumento da sua estabilidade e, assim, reduzir atos ofensivos182. Entretanto, diz o autor espanhol, deve-se fazer ressalva a alguns postulados da escola de Chicago, pois nem todos são atualmente aplicáveis e até contradizem alguns princípios da justiça restaurativa. Em primeiro lugar, o crime não é necessariamente um sintoma de desorganização social, mas um conflito rotulado como tal, inerente à vida comunitária e que deve ser

solucionado por ela. Além disso, para a causação de uma conduta delituosa, não se pode desprezar componentes individuais, como os fatores biológicos e psicológicos do agente (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2000, p. 274). Outro ponto bastante contestável é o determinismo da escola de Chicago sobre a influência do meio social no comportamento do indivíduo e sobre a imagem associativa que ela faz entre jovens, pobreza e criminalidade. Por exemplo, Edwin Sutherland (1940, p. 4) demonstrou ser equivocada a ideia de que as classes pobres cometeriam uma porção maior de crimes, demonstrando a grande incidência também de “crimes do colarinho branco” (white-collar crime, expressão cunhada pelo autor em obra do mesmo nome. Por seu turno, Richard Cloward e Lloyd Ohlin, teóricos da “ocasião diferencial”, defendem que, embora possam ser negadas ao indivíduo oportunidades legítimas de realização, ele não necessariamente recorreria ao crime. Isso porque, apesar da tensão sofrida pela discordância entre as expectativas culturais existentes e das vias oferecidas para a sua satisfação, pode-se aprender uma resposta positiva ou não para saná-la. A reação pode variar desde a opção pelo crime (dinheiro fácil por meio do tráfico, roubo, extorsão — criminal gangs) à resistência e luta contra as vicissitudes (reinvindicações — conflict gangs) e o afastamento de todas as alternativas (não à luta e não ao lucro com o crime, os chamados duplo-perdedores ou retreatist gangs) (TOBY, 1961, p. 283-284)183. Assim, a despeito do mérito da escola de Chicago em considerar a interação do meio na prática do comportamento desviado das lower classes, ela não fornece explicação satisfatória para algumas questões, como a existência de significativa criminalidade nas classes médias184 e privilegiadas nem para o fato de jovens “delinquentes” das classes baixas abandonarem o comportamento desviado na maturidade. Tampouco explica porque alguns indivíduos deste estrato não delinquem (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 281). Por outro lado, observa perspicazmente Juarez Cirino dos Santos (2012b, p. 14), o problema da criminalidade não está nas pessoas ou nas classes subalternas, mas na seletividade das sanções do sistema penal. 4.2.2 A ordem social como um mosaico de grupos (teorias subculturais)

As teorias subculturais firmam o caráter pluralista e atomizado da ordem social: um mosaico de grupos, subgrupos etc., fragmentado e conflitivo em que cada qual possui seu próprio código de valores que pretendem fazer valer frente aos demais, mas que nem sempre coincidem com os majoritários. Um de seus adeptos, o antropólogo Walter B. Miller (1958, p. 7), novamente em referência ao comportamento de jovens “delinquentes”, considera-os como uma adaptação à cultura de classe baixa (lower class culture) a qual valoriza atributos como: problemas, tenacidade, esperteza, excitação, autonomia etc., nos quais a subcultura criminal é tida como uma cultura de “grupo” e não como uma opção individual. Portanto, para as teorias subculturais, a conduta delitiva não seria produto do “contágio social” (teoria ecológica), da “desorganização” (sociológica) ou da “ausência de valores” (anomia), mas oriunda de uma organização social diferenciada, com códigos de valores próprios distintos dos majoritários: os “subculturais”. Desse modo, tanto a conduta normal, regular, adequada ao direito, como a delitiva, a desviada, contariam com estrutura e significação. Por conseguinte, o seu autor (“delinquente” ou não) reflete, reforça e transmite os valores da subcultura à qual pertence (SHECAIRA, 2013, p. 214). A justiça restaurativa reconhece, em conformidade com o conceito de subcultura, a existência de uma sociedade pluralista, com diversos sistemas de valores divergentes. Ambas requerem o exame detido das referidas minorias e seus códigos axiológicos a partir da óptica dos próprios subgrupos. Com base na teoria de Axel Honneth, vista na seção 3.3.2, podemos perceber o encontro restaurativo como uma oportunidade para o reconhecimento dessas diferenças. Por esta razão, a justiça restaurativa vem sendo amplamente aplicada para o enfrentamento de conflitos juvenis (vide a experiência de São Caetano do Sul e Porto Alegre), já que permite a estes grupos expressarem seus valores e reivindicar reconhecimento. A justiça restaurativa, portanto, compactua com as teorias sociológicas a admissão de que o conflito de valorações é inerente às sociedades plurais ressalvando o componente classista das teorias subculturais, de estratificação da sociedade entre lower e high ou medium classes, visto que a justiça restaurativa não faz esta distinção, apresentando-se como uma oportunidade para tratamento do conflito.

4.2.3 O crime como resultante das interações psicossociais do indivíduo As teorias do processo social constituem um grupo de teorias psicossociológicas para as quais o crime é resultante das interações psicossociais do indivíduo e de diversos processos da sociedade. Segundo tais teorias, o comportamento individual encontra-se permanentemente modelado pelas experiências da vida cotidiana. Sutherland é um adepto desta escola, e desenvolve sua conhecida “teoria da associação diferencial” aludindo a um comportamento aprendido mediante processos ativos de interação e de comunicação no interior de grupos sociais (de condenados, nos crimes comuns; de empresários, nos crimes econômico-financeiros, por exemplo) com transmissão de técnicas de execução de crimes. A criminalidade seria o resultado do engajamento em comportamentos inapropriados exibidos por aqueles com quem se interage185 (GARCÍAPABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 308). Para essas teorias, o crime não é algo anormal, tampouco sinal de uma personalidade imatura, mas um comportamento adquirido, em resposta a situações reais que o sujeito assimila. Conforme Sutherland (1940, p. 1-12), o crime não é hereditário nem se imita ou inventa; não é algo fortuito ou irracional: o crime se aprende. A capacidade, a destreza ou a motivação para o delito seriam desenvolvidas mediante a interação do indivíduo com pessoas e grupos num intenso e complexo processo de comunicação186. A justiça restaurativa e as teorias do processo social têm em comum a relevância dada a conceitos como reeducação, modificação de conduta, aprendizagem compensatória etc. Ambas incorporam a ideia de que o crime, assim como o comportamento virtuoso, está relacionado a processos de interação social e de comunicação. A justiça restaurativa propicia espaço para um intenso contato e intercâmbio experiencial, favorecedor da recepção e da aprendizagem de pautas positivas entre os indivíduos. O primeiro conceito da teoria do processo social que a justiça restaurativa utiliza é o do reforço social. O reforço social reporta-se às recompensas ou punições reais, percebidas ou esperadas, tangíveis ou intangíveis, transmitidas a um indivíduo pela sociedade ou um subconjunto desta. Forte neste conceito é que a justiça restaurativa adota programas que envolvem ofensores, suas famílias e membros da comunidade no tratamento do crime ou de suas consequências. O reforço social emerge, então, como

consequência do agir comunicativo no círculo à medida que as partes vão expressando suas pretensões e sentimentos. O segundo conceito da teoria do processo social aplicável à justiça restaurativa é a reforma retroflexiva a qual sugere que a junção entre “criminosos” e “não-criminosos” em tais grupos possam fazer com que os “criminosos” modifiquem suas posições favoráveis à violação da lei e que, com isso, acabem por reduzir as suas próprias concepções tendentes ao crime. Na experiência de justiça restaurativa do Núcleo Bandeirante, no Distrito Federal, vítimas e ofensores de crimes cometidos no contexto de violência doméstica se encontram em grupos mistos terapêuticos (porém nunca ofensores e suas próprias vítimas, mas autores e vítimas de processos distintos). Nestes encontros, eles podem aprender mediante a escuta da outra parte a respeito da sua percepção sobre o delito e dos seus impactos em suas vidas. A principal crítica feita às teorias do processo social é a de que nem todo comportamento delitivo tem um mecanismo ordinário de aprendizagem. Há, sem dúvida, crimes que nem sempre correspondem a padrões racionais e utilitários (crimes passionais, espontâneos, impulsivos etc.) bem como há fatores ocultos e inconscientes que influenciam na conduta. É preciso, portanto, levar em conta a incidência de elementos individuais e complexos processos psicossociais na ação187. Essa classe de crimes também representa um desafio para a justiça restaurativa. Algumas vezes, nestes casos, a teoria restaurativa contenta-se em propiciar um espaço curativo para as vítimas desses crimes no qual elas possam expor suas dores e iniciar o processo de cura interior. Uma tônica diferenciada às teorias do processo social digna de nota é dada por Sykes e Matza (1957, p. 664-670). Enquanto a maioria delas pressupõe que, ao longo da convivência com os demais, o indivíduo interioriza valores, atitudes e técnicas intrinsecamente delitivos que os levam à atividade delitiva, os autores afirmam o contrário: que a maioria dos ofensores comparte, na verdade, os valores convencionais da sociedade. O que eles aprenderiam são técnicas capazes de neutralizar estes valores, racionalizando e autojustificando a conduta desviada. Estas técnicas de auto-isenção constituiriam genuínos mecanismos de defesa com os quais o ofensor neutraliza sua culpa, defende seu comportamento e legitima sua conduta188. Seriam elas, segundo os autores, a

negação da própria responsabilidade (“ah, mas a vítima também provocou”, “quem mandou ela...”, “eu estou doente”); a negação do injusto (da ilicitude e da nocividade do comportamento (“que mal há?”, “todo mundo faz isso”, “com isso ela vai aprender a lição, a respeitar, a se comportar...”); a desqualificação dos condenadores (das pessoas incumbidas de perseguir e condenar o delito (“a polícia é mais bandida que o ladrão”, “pior é a polícia”, “a polícia é violenta”, “bandidos são os corruptos”, “o governo é corrupto”, “todo mundo usa algum tipo de droga”); a negação da vitimização (suposta inexistência de uma vítima (“quem vai arcar é o seguro”, “ele não vai ter nenhum prejuízo”, “a empresa é rica, ela quem vai pagar”, “ninguém será prejudicado”) e a invocação de instâncias ou motivações superiores (“Deus quis assim”, “era assim que tinha que ser”, “azar”, “não faço isso por mim”) (CIRINO DOS SANTOS, 2012b, p. 15). No mesmo sentido, Antonio Beristain (2000, p. 98) assinala que, antes de cometer o delito, o ofensor realizaria uma racionalização e uma maturação dos processos mentais e do desenvolvimento real de uma vitimação, com a pretensão de justificar seu crime, anular as possíveis inibições e apagar os normais sentimentos de culpa ou de remorso subsequentes ao delito.

Também, nesta perspectiva, a justiça restaurativa pode ser útil, na medida em que determina a assunção de responsabilidade pelo ofensor, o que necessariamente o levaria a “desneutralizar” esse tipo de justificação. Este é o cerne da teoria da “vergonha reintegradora” de Braithwaite. Esta expressão foi cunhada pelo autor para se referir à reprovação, à censura e à condenação moral expressada pelos membros comunitários durante o círculo restaurativo. Na opinião do autor, esta “vergonha” que sentiria o ofensor no momento não seria estigmatizadora porque não se trata de humilhá-lo, submetendo-o a uma cerimônia degradante. Ademais, esse tipo de vergonha seria incapaz de gerar marginalidade e subculturas, como acontece no sistema ordinário (BRAITHWAITE, 2001b, p. 34). 4.2.4 As teorias do controle social A Escola de Chicago, em que pesem as críticas já apontadas, teve a virtude de lançar um interessante olhar para a relação entre o ambiente e o comportamento desviado, para a influência do desenho urbano, para o uso dos espaços públicos e para a estigmatização das comunidades de classe baixa. Posteriormente, as teorias do controle surgiram a fim de explicar o

crime com base nesta mesma sociologia americana, perguntando exatamente o oposto: Por que uma pessoa não delinque? (SHECAIRA, 2013, p. 127). Para a teoria clássica, a resposta seria por medo do castigo. Já para a escola do controle, seriam as conexões que o indivíduo estabelece com a sociedade (apego, compromisso, envolvimento e crença). Conjeturam — como Hirschi em sua teoria do enraizamento social — que indivíduos com participação ativa na sua comunidade, que internalizam seus códigos morais e que possuem apego e consideração com as pessoas (especialmente dos grupos primários) limitam a sua propensão para cometer atos desviantes. Ao mesmo tempo, na ausência desses laços (bonds) ou mesmo quando estes estão enfraquecidos, desaparecem as raízes sociais que funcionam como impeditivo para a prática do ato criminoso (PRATT et. al., 2010, p. 55). A teoria do controle social pressupõe a existência de um sistema normativo na sociedade com regras relativas à forma como as pessoas devem e não devem se comportar. Haveria duas formas de controle social: o informal, que se encontra nas famílias, pares, escolas, igrejas e nas comunidades e o formal, representado pela lei, polícia, tribunais etc. Quando há uma ruptura do primeiro, aumenta o segundo tipo de controle. A combinação entre o controle formal e o informal seria o que encoraja e promove a conformidade das pessoas com compromissos, valores, normas e crenças da sociedade, ao tempo em que desencoraja e pune o desvio. A teoria pretende, assim, compreender as formas pelas quais é possível reduzir a probabilidade de desenvolvimento da criminalidade em indivíduos (PRATT et. al., 2010, p. 61). Esta teoria considera o controle social operado por três modos: diretamente, como a supervisão, a disciplina, a ameaça de punição ou de recompensa pelos pais, familiares e figuras de autoridade; de forma indireta, como o receio de causar dor ou decepção para pessoas com quem o autor mantém relações estreitas (família, amigos, vizinhos etc.) e interno, por meio da consciência ou sentimento de culpa, do desejo de não desapontar o próximo, de uma personalidade individual sólida, da boa autoestima, do elevado grau de tolerância à frustração ou por possuir metas e projetos bemdefinidos etc. Walter Reckless189, em sua “teoria da contenção”, argui que estes estímulos interiores citados e as pressões exteriores impelem (drift) o indivíduo para o comportamento desviado ou o fazem variar (float back and forth) entre cumprir a lei ou infringi-la (PRATT et. al., 2010, p. 65)

Ao contrário das escolas socioculturais, os teóricos do controle social não restringem sua análise na conduta das lower classes, aplicando sua teoria a todos os estratos sociais. Independentemente da sua classe social, o enfraquecimento dos laços com a sociedade, a ausência de solidariedade, de interesse ou sensibilidade frente aos seus grupos e o vazio moral levariam o indivíduo à conduta criminosa (SHECAIRA, 2013, p. 128). Inspirada pela teoria do controle social, a justiça restaurativa apresenta uma política criminal capaz de promover a prevenção eficaz do delito. Em sua resposta ao crime, a justiça restaurativa contempla ativamente os vínculos sociais do ofensor ou o seu apego às instituições, as expectativas de terceiros sobre ele (família, amizades) e a sua preocupação com a incidência do comportamento em outras esferas de relacionamento (profissional, laboral etc.)190. No lugar do populismo vingativo das políticas criminais corriqueiras que apregoam um fortalecimento do controle social “formal”, a justiça restaurativa propõe uma melhor sincronização do controle social “formal” e do “informal”, especialmente mediante o compromisso ativo da comunidade. Afinal, as instâncias e sanções dos controles sociais informal e formal se condicionam e se complementam (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 318). Não obstante o mérito da teoria do controle em identificar e ponderar a interferência dos mecanismos de adesão e compromisso do indivíduo com a ordem social, a crítica que se faz a ela é a de que ela não clarifica como estes mecanismos surgem, como se fortalecem ou se debilitam. Pergunta-se, por exemplo, por que “duas pessoas de uma mesma família, crescidas em um mesmo ambiente e com idêntica educação, são tão distintas, uma se inclinando para o crime e outra para a conformidade com o Direito”; “por que uma delas desenvolve um conceito de si mesma relativamente favorável, ao passo que a outra adquire um alto conceito desfavorável”; “por que jovens sem apego aos valores convencionais se abstêm de delinquir ou por que delinquem jovens com um muito considerável grau de compromisso e identificação com os valores da ordem social” (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 318). 4.2.5 Prevenção situacional do crime A teoria da prevenção situacional do crime — também chamada da “prevenção primária”191 ou da “redução de oportunidade” — é uma espécie de teoria do controle que procura o auxílio comunitário para desenvolver

medidas de gestão ou de manipulação de ambientes em que há alta incidência de crimes (os chamados hot spots), de forma a dificultar sua ocorrência (CLARKE, 1983, p. 227). Esta teoria se centra mais na redução das oportunidades para o delito e não sobre as características dos “criminosos” ou do ambiente onde vivem. A estratégia é aumentar os riscos e as dificuldades associadas ao delito e reduzir suas recompensas. Ela se baseia na ideia de que o crime, muitas vezes, é fruto da oportunidade ou da atração para a sua prática (como ocorre, por exemplo, quando um carro ou uma janela são encontrados abertos). Salienta Garland (1999, p. 66) que, ao invés de confiar no eventual efeito dissuasor das penas, na capacidade da polícia de deter potenciais ofensores ou de conscientização de jovens transgressores, essa nova abordagem dedica-se a promover uma “engenharia situacional” na qual a “engenharia social” falhou: [...] substituir o dinheiro vivo por cartões de crédito, embutir travas nas colunas de direção dos automóveis, contratar vigias nos estacionamentos e colocar circuitos internos de televisão nos shoppings, coordenar os horários de fechamento de discotecas rivais, oferecer ônibus de madrugada, aconselhar os varejistas sobre segurança, estimular as autoridades locais a coordenar os diferentes organismos que lidam com a criminalidade e, claro, estimular os cidadãos a organizar rondas de quarteirão e outros grupos de autodefesa. Essa nova abordagem não reivindica mais o papel principal no campo do controle da criminalidade. Ela tampouco pretende um recrudescimento da repressão social e do domínio de si. Ao invés disso, ela procura promover um novo estilo de “engenharia situacional”, ali onde a “engenharia social” fracassou.

Neste tipo de abordagem, a responsabilidade e as iniciativas recaem mais sobre as vítimas potenciais e a comunidade (com adoção de técnicas de target hardening192) do que sobre órgãos estatais. À polícia, por exemplo, caberia oferecer conselhos de segurança por meio de cartilhas, campanhas publicitárias; aos órgãos de urbanização, cumpriria melhorar a iluminação pública, restringir o fluxo de tráfego e dividir espaços residenciais em áreas identificáveis etc. Esta teoria é muito criticada em virtude das providências de segurança que reclama, as quais tendem a produzir uma “sociedadefortaleza” onde todos estariam encarcerados em suas casas para evitar o

crime (CLARKE, 1983, p. 236). No mesmo sentido, a observação de Garland (1999, p. 67): [...] desenvolveu-se uma nova maneira de governar o crime — a estratégia de “responsabilização” —, que opera procurando impor e delegar responsabilidades a grupos ou indivíduos que, antes, voltavam-se para o Estado na procura de proteção contra o crime. Essa estratégia de responsabilização procura envolver o governo central numa ação contra o crime que não se exerce mais diretamente, pela via dos organismos do Estado (polícia, tribunais, prisões, trabalho social etc.), mas indiretamente, através da ação preventiva de organismos e organizações não estatais.

Esta teoria “preventiva” do crime atualmente conforma-se à chamada “criminologia atuarial” (managerialism) e constitui um exemplo da influência do mercado sobre o pensamento criminológico. Nesta perspectiva, não se pretende identificar as causas ou prever o comportamento delituoso, mas diminuir os riscos e as oportunidades para a prática criminosa, por meio do uso de técnicas securitárias (MACHADO, B., 2012, p. 91 e 92). Esta nova penalogia modifica, assim, os fundamentos do discurso criminológico, tornando-o mais estatístico, atuarial, reduzindo o seu interesse no indivíduo (GARLAND, 1999, p. 62). Sobre este aspecto, Roger Matthews (2009, p. 343) questiona se a criminologia não estaria sendo levada pelo mercado, ao se concentrar na gestão de riscos, na privatização das prisões e na relação custo-eficácia das prisões, já que estes aspectos têm influenciado a produção de conhecimento criminológico193. De fato, as empresas que trabalham no ramo penitenciário atuam cada vez mais no sistema de full-scale management (gestão total do estabelecimento penitenciário) e vêm ampliando a sua área de atuação para a construção de presídios (como a Correction Corporation of America, com 68 prisões e 50 mil presos e a Wackenhut, 32 prisões e 22 mil presos). Suas ações, inclusive, são cotadas no índice Nasdaq da Bolsa de Valores americana (WACQUANT, 2002, p. 14, 30 e 31). Juarez Cirino dos Santos (2013c, p. 3) responde à indagação de Matthews com a seguinte afirmativa: “A questão das empresas privadas é muito simples: elas não são constituídas com objetivos humanitários, mas de lucro. Existe, portanto, uma contradição insuperável entre prisão e empresa”. Segundo o criminólogo brasileiro, a gestão privada na execução da pena interfere não só no pensamento criminológico, mas também sobre o Poder

Judiciário, pressionando-o para aplicação de penas longas e introduzindo critérios econômicos para decisões sobre livramento condicional, progressão de regimes, comutação ou redução de penas e de outros direitos do preso. 4.3 Labelling approach, interacionismo simbólico e construtivismo social As teorias do etiquetamento ou rotulagem (labelling approach) surgiram por volta dos anos 70 nos Estados Unidos e são alicerçadas nos conceitos de “conduta desviada” e “reação social”. Elas diferem das demais por não intentarem explicar as razões pelas quais um indivíduo comete um ato criminoso (seja o primeiro ou os subsequentes) antes da aplicação a ele do rótulo de “criminoso”, ou seja, a elas não interessa a chamada “desviação primária”. O teórico da rotulagem busca conhecer o que acontece depois que a sociedade atribui a alguém o estigma de “delinquente”, sobretudo com a condenação (o chamado processo de criminalização ou de criação das carreiras criminais, ou ainda, desviação secundária). Por tais razões, a teoria do labelling approach não é definida como uma teoria da criminalidade, mas da criminalização (CIRINO DOS SANTOS, 2013d, p. 16)194. Para a teoria do etiquetamento, os rótulos podem ser aplicados formal ou informalmente. Eles estigmatizam os desviantes e, ao invés de detê-los, podem instigar futuros atos criminosos. Ela extrai esta conclusão do interacionismo simbólico, da perspectiva sociológica derivada do pragmatismo americano e da obra de George Herbert Mead, segundo a qual os egos das pessoas são produtos sociais, construídos num processo intencional e criativo (SHECAIRA, 2013, p. 249). Nesse panorama, os autoconceitos são reflexos das concepções das pessoas a respeito umas das outras, que são reveladas em suas interações (CARVALHO; BORGES e RÊGO, 2010, p. 147)195. Destarte, uma vez rotulado pelos demais pares da sociedade como “delinquente” ou “criminoso”, é assim que o ofensor passa a ser portar. Em outras palavras, sintetiza o sociologista americano William Isaac Thomas (no vulgo “teorema de Thomas”): “Se as pessoas definem certas situações como reais, elas são reais em suas consequências”. Numa perspectiva interacionista e construtivista, o crime não é uma conduta delitiva em si mesma. Não se pode compreendê-lo prescindindo do

processo social de definição e de seleção das pessoas e das condutas etiquetadas como delitivas. Neste ponto, o construtivismo social apresenta a vantagem de atentar para a natureza problemática da lei (a lei seria a “causa” do delito e não o “delinquente”). Já o interacionismo enfatiza o papel da agência humana, da linguagem e do discurso neste processo (CIRINO DOS SANTOS, 2013d, p. 15). A vertente mais radical do etiquetamento afirma que o crime é uma construção arbitrária e fictícia. É, também, definido como transgressão por mera rotulação feita pelo controle social (legislador, polícia, promotores, juízes, órgãos de execução etc.), da mesma forma que etiquetou como “delinquente” o seu autor. Frise-se, ademais, que estes membros da justiça penal não representariam os interesses da sociedade em geral, mas, sobretudo, os interesses de grupos socialmente privilegiados dentre os quais são recrutados (BARATTA, 1987, p. 627). Na elocução de Lola Aniyar de Castro (1983, p. 15), “não há uma natureza própria do delitivo, mas o delitivo é imposto de cima pela pessoa ou grupo que tem mais poder”. Acrescenta, outrossim, que as chances de ser etiquetado como “delinquente” dependem mais da posição do indivíduo na pirâmide social do que da conduta praticada propriamente dita. Observa García-Pablos de Molina (2012, p. 323) que o labelling approach teve o mérito indiscutível de ampliar o objeto da investigação criminológica para o problema da desviação secundária e das carreiras criminais. Com o seu enfoque interacionista, a teoria ressaltou o papel desempenhado pelos mecanismos seletivos do controle social, que etiquetam determinadas condutas como delitivas196. A seletividade diz respeito tanto à outorga de proteção a determinados bens e aos interesses quanto ao processo de criminalização e quanto ao de recrutamento da clientela criminal (a população carcerária)197. Todo o sistema estaria dirigido, quase que unicamente, contra as classes populares e os grupos sociais mais débeis (com fragilidade laboral, financeira ou habitacional, baixo nível de instrução, desorganização familiar, etc.), a despeito de os comportamentos socialmente negativos estarem distribuídos em todos os níveis sociais (BARATTA, 1987, p. 627 e 633). O etiquetamento oferece, além do mais, uma interpretação realista do dogma da “igualdade perante a lei” que, conforme Heleno Fragoso, é

“puramente formal e inteiramente ilusório”. Em 1975, o penalista brasileiro já denunciava: A identificação do criminoso com o marginal decorre do fato de atingir a justiça, sobretudo, os pobres e desfavorecidos, que enchem as prisões e que constituem clientela do sistema. O direito penal é realmente o direito dos pobres, não porque os tutela e protege, mas porque sobre todos eles, exclusivamente, faz recair sua força e o seu dramático rigor (FRAGOSO, 1975, p. 3).

Por tais razões é que a teoria da rotulagem, além de pregar a necessidade de remoção do status de criminoso, preconiza a necessidade de desinstitucionalização, ou seja, a remoção das prisões, centros de detenção e instituições afins. Seus ideais inspiram iniciativas conhecidas como de “desvio” ou diversórios (diversion movement ou diversion programmes) que visam redirecionar tratamento de pequenos delitos para fora do processo penal e do sistema de justiça criminal (juvenil ou adulto). Neste ponto, a teoria do labelling approach muito influencia a justiça restaurativa198. São citados exemplos desses empreendimentos na transação penal nos juizados especiais criminais, nas propostas de suspensão condicional do processo ou da pena etc.199 A intenção seria evitar a condenação ou a penalização e, com isso, reduzir o estigma das etiquetas formais de “delinquentes” ou “criminosos” sobre estes indivíduos (SHECAIRA, 2013, p. 252)200. Maria Lúcia Karam (2004, p. 88) adverte sobre o risco de que a pretexto de uma suposta “humanização da pena”, estas medidas diversórias servirem como meio paralelo de ampliação do poder do Estado de punir. Na opinião da autora, as penas alternativas teriam sido instituídas para “alcançar um número crescente daqueles excluídos da produção e do mercado, que não cabem no interior da dispendiosa estrutura carcerária, e, por outro lado, serve para sinalizar e ensaiar a onipresença do Estado”. Sobre a estigmatização e os crimes de “de colarinho branco”, Lola Aniyar de Castro observa que este tipo de “criminoso” não costuma ser estigmatizado, diferentemente do que ocorre com os ofensores convencionais. A autora cita uma pesquisa realizada após o conhecimento de um grande estelionato contra o público consumidor pelas companhias elétricas venezuelanas, que demonstrou uma reação social de grande indiferença a este crime. Concluiu a criminóloga venezuelana que as pessoas comuns não captam a essência danosa de atos cometidos em um nível tão elevado, ainda que a perda para a sociedade, em um só crime de “colarinho

branco”, possa ser igual à quantidade total de muitos furtos ou roubos. Lola afirma que o “criminoso decolarinho branco” é uma pessoa não estigmatizada pela coletividade, que não o considera “delinquente”, não o segrega, não o deprecia nem o desvaloriza. Assevera que o próprio “delinquente do colarinho branco”, por sua vez, considera-se respeitável, conceito reafirmado pelo público, já que, depois do delito, o seu status continua sendo o mesmo (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 79). Constata Aniyar de Castro que até mesmo a lei e os tribunais tratam distintamente os “criminosos de colarinho branco”: para as pessoas que cometem delitos convencionais, as sanções são de privação de liberdade (prisão, detenção); para os “delinquentes de colarinho branco”, são aplicadas multas ou outras medidas administrativas, de modo que seus autores nunca chegam a habitar as prisões201. Por fim, ainda em relação a este tipo de crime, Aniyar de Castro cita outro tratamento diferenciado pelos tribunais: eles não costumam ser julgados pelas varas criminais comuns, com as suas consequências estigmatizantes, mas por varas especializadas ou tribunais superiores, em competência originária. O privilégio destas, explica a criminóloga, deve-se à tecnicidade e complexidade das leis especiais que regem algumas atividades (tais como o regulamento do imposto de renda, leis aduaneiras, leis de sucessões, etc.), alguma cumplicidade de autoridades, uso da imunidade diplomática e parlamentar etc.202. Além do apoio às medidas diversórias (diversion), em comum, a justiça restaurativa e o labelling approach têm o reconhecimento e o repúdio à vergonha “desintegrativa”, ou seja, ao processo pelo qual um indivíduo é punido, rotulado e envergonhado por ter cometido um ato considerado desviado, de forma a degradá-lo e desvalorizá-lo. Isso ocorre toda vez que os ofensores são punidos e não são reconciliados com a comunidade. A justiça restaurativa almeja transmutar este tipo de vergonha na chamada “vergonha reintegradora”, ou seja, o indivíduo reconhece e se envergonha pela prática do ato, mas de maneira em que a vergonha o traga de volta à comunidade, em uma posição de respeitabilidade203 (ver seção 5.3.2). A abordagem restaurativa corresponderia, ainda, a uma linha mais moderada da teoria da rotulagem. Ambas reconhecem as desvantagens trazidas pelo processo de desviação secundária, mas a justiça restaurativa não prega uma radical substituição das teorias da criminalidade pelas da

criminalização, ao contrário do etiquetamento. Ela reconhece — se apropriando de um dos pressupostos do labelling — que a pena tem um efeito criminógeno. Anui, também, que a reação social pelo castigo, pura e simplesmente, é ilógica, pois, longe de fazer justiça, de prevenir a criminalidade ou de reinserir o criminoso, ele exarceba o conflito social sem resolvê-lo. A justiça restaurativa adere à concepção da rotulagem de que a pena perpetua a desviação, consolida o status de criminoso à pessoa gerando estereótipos e inicia um círculo vicioso, consolidando a “profecia autorrealizável” (self-fulfdling prophecy)204. Enfim, ambas concordam com as palavras do criminólogo espanhol de que a pena “culmina uma escala dramática e um ritual de cerimônia de degradação do condenado, estigmatizando-o com o selo de um status irreversível”, esforçando-se ao máximo possível para evitá-la (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 322). Conclui Juarez Cirino dos Santos (2013d, p. 17) que, se as premissas do labelling approach estiverem corretas, no sentido de que o crime e o “criminoso” são realidades construídas mediante a definição legal de crime (lei oriunda do Poder Legislativo) e pela demarcação judicial de sujeitos como “criminosos” (condenação pela Justiça criminal), então, é forçoso concluir que o Estado cria o crime e produz o “criminoso”. Por outro lado, se a criminalização posterior é efeito da anterior, então este mesmo Estado também reproduz a criminalidade, por meio da reincidência criminal. 4.4 Apontando as antinomias do sistema penal: o papel das teorias críticas As teorias criminológicas críticas inovam em relação às anteriores por se preocuparem com a elaboração da lei em si, e não apenas com as causas do delito ou com as consequências da prisão sobre o ofensor. A norma penal é o método formal de controle social utilizado pelo sistema de justiça para punir os ofensores e manter a ordem na sociedade. Esta escola questiona tanto a autoridade da lei quanto a legitimação e o funcionamento da justiça penal (SHECAIRA, 2013, p. 282). As antecedentes, de caráter contratualista, partem da ideia de consenso, ou seja, de que a lei é resultado de um acordo geral da sociedade acerca das normas sociais e dos interesses comuns que garantem o seu funcionamento normal e seguro. O Estado asseguraria uma aplicação neutra destas leis,

primando pela prevalência do interesse público (geral) sobre os particulares ou dos grupos. À criminologia, então, caberia examinar as causas ou as razões do afastamento dos ofensores deste consenso (CIRINO DOS SANTOS, 2005, p. 4). A perspectiva crítica refere que as leis são formadas para atender às necessidades e interesses dos grupos mais influentes e não aos da sociedade em sentido lato. Assim, o direito, ao invés de representar os interesses gerais da coletividade, tutelaria os valores das classes dominantes. O crime consistiria, então, numa expressão destes conflitos inerentes à sociedade, uma reação à desigual distribuição de poder (ou riqueza). A lei e o sistema de justiça criminal seriam, destarte, instrumentos de controle das massas e de mantença dos poderosos no controle205 (SHECAIRA, 2013, p. 283). A seguir, analisaremos as principais correntes críticas e a sua contribuição para uma teoria de justiça restaurativa. 4.4.1 A criminologia radical Como visto, enquanto para a teoria do consenso a lei é o amálgama que mantém a sociedade unida, para o teórico do conflito, a lei é o bordão que mantém os “sem-poder” em contenção (CIRINO DOS SANTOS, 2005, p. 5). Esta última escola deu azo à criação de teorias conflituais de índole marxista (denominada criminologia “radical” ou “nova” criminologia), que conferiram um novo significado para o crime e a criminalização, contemplando-os em função das relações de produção da sociedade capitalista206. A teoria marxista é aplicada para explicar a confecção das leis e o funcionamento da justiça penal com base na divisão entre elite e trabalhadores (o conflito social seria, na verdade, um conflito de classes). Na sociedade capitalista, a classe dominante controlaria não só os meios de produção, mas também a política de Estado. Ela usaria o controle para manipular o proletariado e mantê-lo em posição de impotência, dominando as massas econômica e legalmente (com a seletividade do sistema penal operando em prejuízo das classes oprimidas207. Os membros e as repartições da justiça penal seriam “administradores” da criminalidade, porque, em verdade, não se dedicam a lutar contra o crime, senão a “recrutar” a população desviada dentre a sua clientela natural: a classe trabalhadora (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 185).

O direito penal e a política criminal seriam mecanismos para proteger a riqueza acumulada dos “vencedores” — criados pelo capitalismo e autorizados a gozar dos frutos e das recompensas de seu empreendimento pelos riscos assumidos — da fúria do inconformismo dos “perdedores”, que insistem em tomá-la. Desse modo, segundo a análise criminológica marxista, o delito seria um produto histórico, patológico e contingente da sociedade capitalista a qual se serve do direito e da justiça penal para oprimir a classe trabalhadora208 (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 293 e 294). Nesse contexto, a criminologia crítica redefine o objeto e o papel da investigação criminológica, desapegando-se da dogmática definição legal de crime e do controle das pessoas selecionadas como clientela criminosa209. A criminologia assume, como missão, a defesa do homem contra este tipo de sociedade (e não da sociedade contra o homem rotulado de “delinquente”), encontrando formas de capacitá-lo210 (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 187). A partir dos seus preceitos, a crítica que se faz à criminologia radical é a de ela é uma tendência utópica e maximalista da política criminal. Por outro lado, seus conceitos fundamentais (como classe social, propriedade, meios de produção etc.) — porque muito rígidos —, são limitados para analisar o problema criminal bastante complexo da sociedade capitalista (GARCÍAPABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 294). A justiça restaurativa se assemelha à escola crítica por não haver se conformado com a ordem existente e por buscar alternativas para os mitos da lei, da prisão, da punição etc. Elas compartilham a ânsia de empoderamento dos excluídos do sistema criminal, entretanto, se distanciam porque a justiça restaurativa não trata diretamente dos interesses dos grupos pelo controle, não relacionando o conflito com os modos de produção da sociedade capitalista. A justiça restaurativa não associa o capitalismo como causa do crime e da delinquência ou mesmo infere que o Estado (especialmente a lei e o sistema de justiça criminal) é sempre e apenas um instrumento da burguesia para oprimir a classe trabalhadora. Ambas desconfiam do intuito de “ressocialização do delinquente” (prevenção especial da pena), pois, antes de o ofensor ser “ressocializado”, deve a própria sociedade punitiva ser radicalmente transformada.

A pesquisa empírica da teoria do conflito é baseada em estudos da promulgação das leis, da opinião pública e na análise das disparidades em prisões e condenações com base em raça, sexo e condição socioeconômica. Essa metodologia de pesquisa pode ser bastante útil para medir os índices de satisfação, de eficiência, de redução da reincidência etc. da justiça restaurativa em que pese o fato de que os resultados de diversas investigações empíricas não possam ser descritos como concludentes. De fato, parece lógica, porém de difícil verificação empírica, a relação entre conflitos e formas concretas da criminalidade. Além desta cautela, a justiça restaurativa também deve cuidar para que, em termos político-criminais, suas teses não se contaminem pela utopia de algumas teorias conflituais, como a marxista, que sugerem, como solução do problema criminal, uma eliminação total do sistema de justiça criminal (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 493). 4.4.2 Neorrealismo de esquerda Cerca de dez anos após o nascimento da corrente criminológica radical, surgem outras escolas críticas mais temperadas, como a neorrealista de esquerda, o minimalismo penal e o abolicionismo a longo prazo. O “neorrealismo de esquerda” protesta tanto contra a política criminal de direita — que promove campanhas de “lei e ordem”, com uma aplicação rigorosa da lei, da disciplina, de sanções severas, de supressão de direitos e garantias fundamentais, de novas tipificações com inflação do direito penal (em suma, “tolerância zero” com o crime)211 — quanto contra o realismo de esquerda (left realism), acusando-o de importar-se apenas com a criminalidade da classe dominante (crimes de colarinho branco, racismo, corrupção, tráfico etc.) e de negligenciar as violações cometidas contra a classe trabalhadora por seus próprios pares. Para os neorrealistas, os criminólogos críticos ignoram a criminalidade comum, de rua, perpetrada contra o povo em geral, interessando-se apenas pela violência contra minorias, como mulheres, crianças e negros (MAGUIRE; MORGAN; REINER, 2012, p. 181)212. O neorrealismo de esquerda refuta os ideais da própria esquerda cuja ideologia considera irrealizável, simplista e baseada numa concepção marxista e feminista do Estado e da lei213. Assim, consoante seus postulados, a classe trabalhadora seria duplamente vitimizada numa sociedade

capitalista: pela burguesia e por seus próprios integrantes214 (SHECAIRA, 2013, p. 286). Neste ponto, os métodos de abordagem dos conflitos sugeridos pela justiça restaurativa podem ser úteis para a administração das violações denunciadas pelo neorealismo de esquerda, já que são bastante apropriados para o tratamento do impacto, dos danos e do medo procedentes da tradicional “criminalidade de rua”. Ambas as teorias escudam reformas no sistema penal para lidar com esse tipo de criminalidade, ajudar as vítimas e, em última instância, reduzir o uso de prisões e a criminalização, como um todo. Outro ponto de contato entre elas é a consideração da vítima e da comunidade como protagonistas no exame do fenômeno criminológico. Segundo os neorrealistas, uma análise criminológica apropriada deve considerar ao menos quatro elementos: o Estado e suas agências, o ofensor e suas ações, os métodos informais de controle social (também chamados de “sociedade” ou de “público”) e a vítima. A relação entre a polícia e o público, por exemplo, é o que expressaria a eficiência e a capacidade da polícia. O relacionamento entre a vítima e o ofensor, por seu turno, refletiria o impacto do crime. A relação entre o Estado e o ofensor já seria um fator importante para a reincidência. Tais elementos compõem o que o neorealismo denominou de “quadrado do crime” (square of crime)215. Além do “quadrado do crime”, o neorealismo de esquerda introduziu outros conceitos relevantes em criminologia, como a noção de “privação relativa” (relative deprivation) e o “princípio da especificidade” (principle of specificity). A ideia de privação relativa refere-se à pobreza tida como injusta, ou seja, a privação econômica de alguém comparada com a situação econômica de outrem216. De acordo com o neorealismo, essa carência comparativa gera descontentamento e insatisfação e, quando não houver solução política para este problema, ela pode levar ao crime. Assim, a privação relativa equivaleria à insatisfação e ao descontentamento, e a falta de solução política para ela remeteria ao crime. O segundo conceito realista, o “princípio da especificidade” reporta-se à imprescindibilidade de compreensão das circunstâncias específicas em que os crimes ocorrem, ou seja, compreensão do seu contexto social217. Neste ponto, tanto a justiça restaurativa quanto o neorealismo de esquerda compartilham que o controle do crime deve refletir as particularidades da comunidade: o trabalho preventivo em um bairro, por

exemplo, pode ser mais efetivo do que a presença maciça da polícia após o fato; a reintegração de jovens que não se sentem parte da comunidade e, portanto, não teriam “nada a perder” com a prática de um delito; a valorização do comando democrático ou comunitário da polícia e a participação de conselhos municipais no desenvolvimento de políticas para a prevenção do crime etc. Este aspecto — participação democrática na formulação de uma resposta política para o problema da criminalidade — é tido como crucial tanto pela justiça restaurativa quanto pelo neorealismo de esquerda, característica por eles denominada de democratic input218 (NEWBURN; PEAY, 2012, p. 126). Tal como os realistas, a justiça restaurativa também considera que o crime não é simplesmente uma construção imposta “de cima para baixo” pelo sistema de justiça ao criminoso e tampouco é um processo de “baixo para cima”, envolvendo certos “atos” ou “comportamentos”. É uma relação complexa entre essas duas determinantes. O crime, portanto, não seria redutível a um ato não é o produto de reação social. Crime, como realistas criminologistas têm apontado em seu square of crime, é o produto de um processo de ação e reação (MATTHEWS, 2009, p. 346). Os neorrealistas transcenderam os realistas de esquerda ocupando-se não só com o crime entre classes (uma redistribuição de bens dos ricos para os pobres), mas, sobretudo, com o crime intraclasses. Para eles, a criminologia não deve ser “monocromática”, simplista, como evoca o denuncismo da opressão histórica entre ricos e pobres, negros e brancos, devendo-se atentar para as classes intermediárias, como os latinos etc. (MATTHEWS, 2009, p. 348). Em relação ao Estado, os neorrealistas denunciam a ampliação do controle estatal, a despeito da tendência à privatização (da segurança, das prisões etc.), já que o incremento das “prisões privadas”, por exemplo, não foi acompanhado do respectivo declínio no número de prisões estatais (MATTHEWS, 2009, p. 350). Com efeito, o aumento do intervencionismo estatal nas relações cotidianas pode ser verificado no caso brasileiro no anteprojeto da reforma do Código Penal, que, a pretexto de “unificar” a legislação extravagante, inclui, na parte especial do código, cerca de 200 novos tipos penais, entre eles, crimes cibernéticos, de homofobia, de abandono e maus tratos de animais, de uso de informações privilegiadas e amplia o rol dos crimes hediondos219.

Os neorrealistas são criticados por retomar a preocupação com o estudo da “causa” do delito, ao modo positivista, quando esta questão já estaria superada há algum tempo na criminologia, cujas correntes mais contemporâneas refutam a natureza ontológica do delito: o crime não seria um fato natural, mas uma definição legal, um fato assim rotulado pela lei, ou seja, criado pelo próprio homem. 4.4.3 Minimalismo penal Um dos princípios fundamentais do direito penal é a intervenção mínima que estabelece que este ramo do direito não deve ser utilizado quando há a possibilidade de utilizar outros instrumentos jurídicos não-penais para restaurar a lei violada. Esta corrente parte da convicção de que a pena é um mal irreversível e uma solução imperfeita que deve ser usada somente quando não houver escolha (ou seja, após a falha de outros modos de proteção). Requer, portanto, minimização do uso do direito penal, que deve ser considerado como o último recurso (ultima ratio)220. Exige, portanto, a demonstração de que não há meios não-penais de intervenção aptos a responder a determinada situação. Assim, não basta provar a idoneidade da resposta penal. É mister que também se demonstre que ela não é substituível por outros modos de intervenção de menor custo social (comprovação da necessidade e da utilidade da ingerência penal) (BARATTA, 1987, p. 632). Winfried Hassemer221 (2003, p. 156) propõe um direito penal mínimo (embora não seja possível delinear com precisão os limites desse direito penal) mediante a criação de um “direito de intervenção que esteja localizado entre o direito penal e o direito dos ilícitos administrativos, entre o direito civil e o direito público e que, na verdade disponha de garantias e regulações processuais menos exigentes que o Direito Penal. Para isso, deve ser equipado com sanções menos intensas para os indivíduos. Segundo esta teoria, ao direito penal, deve ser preferida a utilização de meios desprovidos de caráter sancionatório como uma política social adequada. Em seguida, prefere-se sanções não-penais, como a civil, por exemplo, com a reparação de danos ou as multas administrativas. Somente quando nenhum dos meios elencados se afigurar recurso suficiente é que se apela para a punição ou medida de segurança. Diferentemente do abolicionismo, que defende a supressão de todo sistema de justiça criminal, é a corrente do direito penal mínimo, contudo,

ambos o reconhecem como um sistema de reprodução de desigualdades, sem competência para executar suas funções declaradas. O minimalismo e a sua exigência de uma gravidade relevante da infração para a intervenção penal justifica-se para evitar que o controle social formal se estenda desmedidamente, abarcando casos que dariam lugar ao arquivamento do procedimento, que poderiam ser resolvidos com institutos civis com a reparação civil do dano ou mesmo pela via restaurativa (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 443). A proposta minimalista coincide com a restaurativa na medida em que ambas defendem a utilização de outras instâncias, que não a penal, para a resolução de conflitos como a despenalização (substituição da pena por outras sanções mais producentes e adequadas às partes em conflito, como intervenção médica, psicológica, social, pedagogia, etc.), o recurso a penas alternativas, a reparação da vítima e, até mesmo, a descriminalização progressiva de condutas. Tudo isso de modo a evitar o uso do cárcere (com os seus conhecidos reveses) ou a banalização do recurso ao direito penal222 (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 136). A descriminalização, porém, nem sempre significa a aceitação da conduta descriminalizada, nem o afastamento do caráter socialmente negativo da situação ou mesmo uma ausência de qualquer controle sobre ela. Descriminalizar significa afastar uma das formas pelas quais se exerce o controle social de condutas — o direito penal — substituindo-a por outras formas de controle social, formal ou informal, como os juízes cíveis, os programas de justiça restaurativa dentro dos tribunais ou fora deles, o sistema de saúde ou de assistência social, a família, a escola, as igrejas, os clubes, as associações etc. (KARAM, 2004, p. 103-104). A autora relata que há uma falsa crença de que a intervenção do sistema penal é a única forma de controle ou enfrentamento de situações negativas ou condutas delituosas (KARAM, 2004, p. 104). Destarte, neste sentido, a justiça restaurativa e o minimalismo têm em comum a negação ao Estado do monopólio da luta e da prevenção do delito, tarefa que deve compartir com a própria comunidade. Os dois pregam a retirada do “mundo jurídico” de parcelas do direito penal em função de uma política criminal eficaz (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 195). A despeito de o minimalismo reivindicar o emprego do direito penal como ultima ratio, o que se percebe atualmente é um movimento oposto a

este, sendo aplicado o direito penal como sola ou prima ratio para a solução dos problemas sociais (HASSEMER, 2003, p. 149). A tendência é que qualquer conduta lesiva seja tratada por este ramo (crimes de trânsito, tributários, de porte de arma, contra as relações de consumo, violência doméstica etc.). É o que chamam de “modernizar” (modernisieren) o Direito Penal, de ampliá-lo para um instrumento funcional de política interna e de pedagogia popular, a fim de sensibilizar as pessoas (HASSEMER, 2003, p. 144). Exemplo disso é o fenômeno chamado de “administrativização do direito penal”, caracterizado pelo uso indiscriminado da tutela penal com o fim de reforçar o cumprimento de obrigações para com o Estado, expandindo-se o poder punitivo aleatoriamente. Dessa forma, o direito penal não se distingue dos outros instrumentos de solução dos conflitos pela sua utilidade ou pela sua gravidade, apesar dos seus instrumentos rigorosos, tornando-se uma soft law, um meio de manobra (Steuerung) social (HASSEMER, 2003, p. 149). À medida que tudo se torna penalmente relevante, o conceito de relevância perde prestígio partindo do ponto de vista penal. Esta constatação reforça a tese de Paulo de Souza Queiroz (2007, p. 1) em defesa do minimalismo, para quem “um direito penal mínimo não significa enfraquecer o sistema penal, mas fortalecê-lo”. A amplitude de tipificações torna necessária, portanto, a aplicação prática de filtros para se decidir quais fatos se deve realmente apurar, processar, julgar, condenar e, eventualmente, punir. Do contrário, o direito penal pode se tornar o “direito penal do blefe”, incidindo concretamente em uma infinitesimal proporção dos delitos cometidos223 (HASSEMER, 2003, p. 154). 4.4.4 Garantismo Outro movimento de política criminal advindo da criminologia crítica e que visa controlar a aplicação do direito penal é o garantismo penal. Ele prega a interação entre direito penal, processo penal e direito constitucional, vinculando-se ao conceito de “Estado Democrático de Direito”224. Segundo esta perspectiva, o texto constitucional refrearia a atividade do legislador ordinário, evitando — mediante a noção de direitos humanos e princípios jurídicos positivados — a arbitrariedade do poder punitivo estatal. Neste contexto, a função do direito penal seria a de impor freio à

violência institucional, com a utilidade de um “funcionalismo redutor” (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 473). Beccaria (1764, p. 201), consoante já citado na seção 1.4.2, constatou esta necessidade, ainda no século XVIII: “para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser essencialmente pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias dadas, proporcionada ao delito e determinada pela lei”. Luigi Ferrajoli (2010, p. 91) estabelece dez axiomas limitadores do poder estatal que conformariam o modelo garantista de direito ou de responsabilidade penal: princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação ao delito; princípio da legalidade; princípio da necessidade ou da economia do direito penal; princípio da lesividade ou da ofensividade do evento; princípio da materialidade ou da exterioridade da ação; princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; princípio da jurisdicionariedade; princípio acusatório ou da separação entre juiz e acusação; princípio do ônus da prova ou da verificação; princípio do contraditório, da defesa ou da falseabilidade. As penas, então, seriam aplicadas tendo em conta tais garantias constitucionais, de modo que o autor de um crime não seja despejado da condição de cidadão, a despeito do erro cometido. Destarte, na opinião desta escola, o direito penal serviria não só para combater com eficácia o delito, mas também para limitar o poder de intervenção governamental. Ele defenderia não só “a sociedade e seus membros de abusos que o integrante do conjunto social possa cometer”. Também protegeria o indivíduo de uma repressão ilimitada do Estado (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 473). Com tais convicções, o garantismo contesta o discurso maniqueísta de incompatibilidade entre defesa social e direitos individuais. A supremacia do interesse público não seria discordante dos interesses individuais e tampouco legitimaria qualquer abuso de poder contra os ofensores ou a vulgarização da resposta estatal (PALADINO, 2010, p. 415). Uma questão específica do garantismo que toca a justiça restaurativa é a necessidade de reconhecimento de culpa, pelo ofensor, para a participação de encontros restaurativos, o que aparentemente poderia contrastar com a garantia da presunção de inocência ou da não-culpabilidade do acusado.

Este direito fundamental, entretanto, é preservado mediante o princípio da confidencialidade da justiça restaurativa, ou seja, de que a participação do autor no procedimento não pode ser utilizada como prova de admissão de culpa em eventual processo judicial. Esta proibição é importante especialmente para os casos em que não é possível ultimar um acordo restaurativo entre as partes ou elas desistam de participar no curso do procedimento restaurativo. Isso porque, além do acordo final necessariamente depender da anuência do ofensor, a qualquer momento ele pode decidir retirar-se deste tipo de intervenção e sua vontade será respeitada, sendo-lhe assegurado o retorno aos meios convencionais de jurisdição. Dessa forma, mediante os princípios da voluntariedade e da confidencialidade do processo restaurativo, pode-se assegurar a garantia constitucional da não-culpabilidade (ou da presunção da inocência) do acusado. Acresça-se a isso o fato de que outros direitos fundamentais seus são privilegiados pela via restaurativa, tais como sua não-estigmatização e reintegração comunitária por vias alternativas. A crítica que se faz ao modelo garantista é que, não obstante a sua restrição ao poder punitivo estatal, ele ainda o concebe como um instrumento legítimo e, eventualmente, eficiente de atuação estatal. Já a perspectiva abolicionista, tal como vista na seção 1.3, questiona a legitimidade do poder de punir, afirmando que as penas não podem ser juridicamente fundamentadas, guardando apenas um sentido político. 4.4.5 Abolicionismo O movimento criminológico abolicionista possui várias vertentes, desde a institucional, que apregoa o fim das prisões, ao reducionismo penal, que visa limitar a esfera de atuação jurídico-penal, passando pelo abolicionismo penal, que defende a própria extinção do sistema penal, até a sua forma mais radical, que refuta toda forma de castigo. Explicado nas palavras de Edson Passeti (2004, p. 17-18), “o abolicionismo penal é uma prática anti-hierárquica que não se limita ao sistema penal”. Segundo o autor, adepto da vertente radical, pretende-se mais do que abolição do direito penal ou da prisão moderna, isto é, o abolicionismo se preocuparia não só com os efeitos do direito penal, mas com a formação acadêmica de profissionais nas universidades e com o autoritarismo presente no castigo, nas palmadas e até nas pequenas surras.

A este ponto de vista, acrescenta Louk Hulsman (2004, p. 35 e 48) que a abolição volta-se para a punição em diversas práticas sociais: na família, na escola, no trabalho, no esporte, ou seja, onde quer que se tenha o castigo e os papéis de ativo e passivo, do ser punido e daquele que pune. Os abolicionistas compartilham com os minimalistas a ideia da necessidade de contenção do poder do Estado de punir. Advogam o resgate de um direito penal essencialmente mínimo. Entendem que esta é uma tarefa urgente e imediata, mas que constitui apenas os primeiros passos dentro de um caminho muito maior e mais longo, que é o abolicionismo (KARAM, 2004, p. 106). Em semelhança com as teorias sociológicas, o minimalismo reconhece a existência de lower classes e consideram que as teorias deveriam ter uma compensação para fazer frente a sua situação de desvantagem. Por pertencerem a estratos sociais mais baixos (econômico, sócioeducacional, familiar etc.), disporiam de um espaço mais restrito de alternativas de ação. Nesse contexto, deveriam ser reconhecidas em seu favor causas de nãoexigibilidade social do comportamento (BARATTA, 1987, p. 639). No mesmo sentido, com uma teoria que nominou de “realismo marginal jurídico-penal”, Eugenio Raúl Zaffaroni defende que a responsabilidade pelo ato desviado praticado por alguém em tais condições deveria ser divida com os demais membros da sociedade, num sistema de “co-culpabilidade”. Além disso, considerando que o Estado-juiz que pune é o mesmo que não cumpre suas promessas constitucionais, seria de rigor a atenuação da pena do indivíduo225. Nils Christie, um dos principais expoentes do abolicionismo, considera o crime como um conflito entre as pessoas as quais devem participar de sua solução como seres humanos plenos. Ele prega a recuperação do protagonismo das partes, personalizando os conflitos e resgatando a sua solução do monopólio estatal (NORDENSTAL, 2008, p. 19-20). As ideias desta corrente re-privatizadora constituem o gérmen da justiça restaurativa, que prega a devolução do conflito às pessoas nele implicadas e sua solução com recursos extraoficiais não punitivos, com critérios reparatórios e não repressivos (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 443). As teorias críticas também inspiram a justiça restaurativa a refletir sobre a utilização da lei e do sistema de justiça como instrumentos de poder sobre os oprimidos, para que ela não se torne apenas mais uma teoria que

compactua e robustece o sistema vigente. Contudo, observa Renato Sócrates Gomes Pinto (2007, p. 2), a justiça restaurativa: “Não se trata de desjudicialização nem privatização da justiça criminal, mas de democracia participativa no processo judicial, [...] em que as partes passariam ao centro do processo, deixando de ser meros espectadores mudos, com a função de meios de prova, para apropriar-se de um conflito que lhes pertence, quando quiserem e for possível esse caminho”.

A proposta restaurativa não chega a ser tão ousada quanto a abolicionista que defende a total abolição do sistema penal, tarefa que consideram irrealizável no momento. Entretanto, a justiça restaurativa é um passo neste caminho. Por outro lado, em que pese a perspectiva abolicionista muitas vezes ser tida como utópica, idealista e impraticável, tem influenciado uma série de inovações dentro e fora da disciplina criminológica e, em especial, a criminologia pacificadora. 4.5 Entre pirâmides e círculos: a proposta da criminologia pacificadora A criminologia pacificadora é uma teoria criminológica não convencional e uma das perspectivas teóricas mais recentes no cenário criminológico. Ela não possui orientação positivista e aborda a questão etiologia do crime por meios outros que não necessariamente a análise estatística detalhada da causa do comportamento criminal. Alguns autores incluem a criminologia pacificadora como uma forma de criminologia crítica. Outros encaram esta teoria apenas como uma filosofia que contém um núcleo religioso. Em essência, trata-se de uma proposta que intenta incentivar todos os atores (vítimas, agressores e agentes de justiça criminal) a reconhecerem e reduzirem a violência inerente à sociedade e ao sistema, valendo-se de soluções não-violentas. A criminologia pacificadora surgiu há quinze anos por meio da obra homônima organizada pelos criminólogos Harold Pepinsky e Richard Quinney226. Neste volume, foram colecionados artigos originais agrupados de acordo com as três tradições intelectuais, não excludentes entre si: a religiosa/humanista, a feminista e a crítica. O pensamento religioso e humanista é a primeira referência da criminologia pacificadora. A justificativa para o seu uso é que, ignorar os fundamentos religiosos do sistema de justiça criminal equivaleria a não compreender o desenvolvimento da moderna criminologia. Por exemplo, a

palavra “penitenciária” teria ligações religiosas com o conceito de fazer penitência. A prisão canônica, por exemplo, é um antecedente muito semelhante à prisão moderna posto que aplicada com outros fundamentos227. A privação da liberdade foi adotada como pena pelo direito canônico com vistas a recolher o condenado a uma cela para expiação da falta cometida, para meditação e estudo (GONZAGA, 1993, p. 37). A reclusão tinha como objetivo induzir o pecador a arrepender-se de suas faltas e emendar-se graças à compreensão da gravidade de sua culpa (SILVA, 2013, p. 1). Como visto na seção 1.4, o componente religioso ainda se encontra presente como justificativa para a imposição da pena de prisão. O artigo 59 do Código Penal, por exemplo, determina ao juiz que aplique a pena “necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime”. A reprovação com função da pena remete à ideia de purificação do delito por meio do castigo. Isso traduz o caráter religioso da “vingança” (ex parte agentis), da “expiação” (ex parte patientis) e do “reequilíbrio” entre pena e delito (FERRAJOLI, 2010, p. 237). De acordo com Braswell, Fuller e Lozoff (2001, p. 11), “a criminologia pacificadora convoca uma variedade de sabedorias antigas e tradições religiosas incluindo o cristianismo, o budismo, o hinduísmo, o islam, o judaísmo e os nativos norte-americanos”. Embora cada uma dessas religiões tenha a sua quota de conflitos, guerras e problemas sociais, na raiz de cada uma delas está o ensinamento de paz e harmonia que sugere que os indivíduos, grupos e estados-nação podem coexistir. Quinney preocupou-se especificamente com a forma com que o sistema de justiça criminal contribui para o sofrimento de todos os envolvidos no sistema de justiça criminal — não só das vítimas de crime, mas do ofensor e da sociedade em geral, como visto nas seções 5.2.3 a 5.2.5 — valendo-se, para tanto, de ideias budistas228. O mesmo é dito das tradições humanistas. Assim como a religião que prega a recuperação da alma, a reabilitação de padrões próprios de comportamento também se fundamenta na crença de que os indivíduos mudam. Por exemplo, a “regra de ouro” que incentiva a “fazer aos outros o que gostaria que fosse feito a si próprio” é um princípio inerente à pacificação. Palavras como “compaixão”, “amor” e “perdão” são utilizadas pela criminologia pacificadora com base nessas tradições. Dalai Lama, durante

visita ao Brasil em 1999, salientou que existem diferentes definições entre as grandes religiões sobre o significado dessas palavras, mas todas elas têm um papel importante no desenvolvimento dessas qualidades, visto que guardam o potencial de ajudar a humanidade (DALAI LAMA, 1999, p. 1)229. Basicamente, as grandes tradições religiosas falam da necessidade de se cultivar a compaixão. Como ressalta Marcial Maçaneiro (2013, p. 1)230, compaixão, misericórdia e ternura estão intimamente relacionadas à piedade, à justiça e à solidariedade e, assim, cooperam mutuamente na edificação de uma humanidade reconciliada. Estes termos podem ser encontrados “nas páginas da Bíblia, na voz dos místicos, na observação profunda da psique, no protesto das artes e no aprendizado dramático da história”. Dalai Lama ressalta que compaixão não significa pena, mas senso de preocupação, ou mais do que isso: “é a noção clara de que todos os seres têm exatamente o mesmo direito à felicidade”. Aduz que a compaixão não deve ser confundida com a sensação de proximidade que se tem com amigos e parentes, pois esta não é compaixão verdadeira, mas apego. A compaixão que se se baseia na compreensão da igualdade de todos os seres é a que seria a verdadeira (DALAI LAMA, 1999, p. 1). No mesmo sentido, o Papa João Paulo II, na carta encíclica Dives in misericórdia, ressaltou que o amor misericordioso implica ternura, compaixão e sensibilidade do coração. É dela que trata a parábola do filho pródigo, a da ovelha e a das dracmas perdidas. O amor misericordioso é indispensável não só entre aqueles que estão mais próximos (cônjuges, pais, filhos e amigos), mas, principalmente, em outros campos de ação. O Papa Paulo VI231 já havia pregado a necessidade de “civilização do amor”, ou seja, a extensão desse sentimento nos campos social, cultural, econômico e político. Segundo o pontífice, “o mundo dos homens só se tornará mais humano se introduzirmos no quadro multiforme das relações interpessoais e sociais, juntamente com a justiça, o “amor misericordioso” que constitui a mensagem messiânica do Evangelho” (PAULO II, 1980, p. 1). De acordo com o Papa, a exigência generosa de se perdoar não anula as exigências objetivas da justiça. Para ele, a justiça bem entendida constitui a finalidade do perdão. Ressalta que em nenhuma passagem do Evangelho o perdão, nem mesmo a misericórdia como sua fonte, significam indulgência para com o mal ou com os ultrajes. “Em todos estes casos, a reparação do

mal ou do escândalo, a compensação do prejuízo causado e a satisfação da ofensa são condição do perdão” (PAULO II, 1980, p. 1). A necessidade de reconhecimento de sentimentos como perdão e compaixão já foi declarada por outras correntes criminológicas, como a abolicionista, nas palavras da sua representante Maria Lúcia Karam (2004, p. 106): Temos que nos libertar do destrutivo sentimento de vingança, trocando-o pelo perdão, pela compaixão, pela compreensão, abrindo espaço, nos conflitos interindividuais, para estilos compensatórios, assistenciais, conciliadores [...] não podemos mais nos dividir em bons e maus, superiores e inferiores, “cidadãos de bem” e “criminosos”. Temos sim que reconhecer e praticar a fraternidade genética e espiritual que une todas as pessoas.

Em conclusão, enquanto no modelo vigente de justiça criminal não se fomenta o arrependimento e o perdão, estas são palavras de primeira ordem na proposta pacificadora, assim como na justiça restaurativa (BERISTAIN, 2000, p. 175). A justiça restaurativa apoia a ideia de “odiar o pecado, mas amar o pecador”, afirmando que aos ofensores deve ser dada a oportunidade de voltar a juntar a sua comunidade, em condição de respeitabilidade, por se engajarem na reparação de suas ofensas. A segunda grande tradição intelectual na qual a criminologia pacificadora se inspirou foi no movimento feminista. Há uma longa história de desafio relacionada aos instrumentos de justiça usados pelas mulheres que lhes concedeu um estatuto secundário nos grupamentos sociais (DALY; CHESNEY-LIND, 1988, p. 497- 498). Questões que vão desde o direito ao voto, à propriedade, ao trabalho, à assunção de posições de liderança e a serem tratadas com justiça e dignidade pelo sistema de justiça criminal. Esses direitos têm sido arduamente conquistados pelo movimento feminista232. Ambas — criminologia pacificadora e perspectiva feminista — partilham a compreensão de que um sistema de justiça racional, humano e efetivo não deve apenas tratar indivíduos igualmente, independentemente do seu sexo, mas também reconhecer que, por causa dos processos históricos e sociais, as mulheres continuam a ser colocadas em desvantagem. Apenas por meio do desafio das desigualdades no sistema de justiça criminal podem as injustiças arraigadas ser corrigidas. Em ambas (assim como nas teorias críticas do reconhecimento e do multiculturalismo) a participação paritária ativa é a gramática de reivindicação. Palavras de ordem feministas como

“direitos iguais”, “igualdade de oportunidades” e “cooperação” são também o mote da criminologia pacificadora. O terceiro tipo de tradição intelectual da qual a criminologia pacificadora hauriu seus fundamentos é a tradição crítica. O termo “criminologia crítica” é usado para referir-se a uma ampla gama de teorias que criticam os acordos de poder na sociedade, particularmente aqueles relativos à classe social, raça e gênero, como a análise da criminalidade e da classe social marxista, o realismo de esquerda e teoria crítica da raça. Ideias como “justiça social”, “esclarecimento” e “emancipação” são comuns à criminologia pacificadora e à escola crítica. As contribuições destas três correntes são absorvidas como luz pela pirâmide da criminologia pacificadora e refletidas em ao menos quatro campos: intrapessoal, interpessoal, institucional e global (ou internacional), conforme ilustra a figura a seguir. As três correntes que inspiram a criminologia pacificadora são descritas como feixes de luz no lado esquerdo da figura, que são refratados em quatro níveis, conforme ilustra o lado direito da representação (FULLER; WOZNIAK, 2006, p. 256). Figura 6 — Pirâmide da pacificação233.

O primeiro nível de refração da criminologia pacificadora é o intrapessoal. Um de seus fundamentos é que os envolvidos num conflito externo, antes de resolvê-lo, devem incorporar uma filosofia de amor e

compaixão para consigo mesmos. Geralmente tais pessoas podem estar em conflito ou em hostilidade própria, o que os impede de se relacionarem com os outros de maneira positiva. Um saudável autoconceito pode refrear a propensão para ofender os outros ou, em sentido oposto, diminuir-lhes a estima. A pacificação envolve, portanto, um processo de transformação individual e social. Deve-se considerar que o impacto do crime ocorre, antes de tudo e mais intensamente, no nível pessoal das pessoas nele implicadas. Quinney (1991, p. 10) afirma que a libertação de si mesmo é necessária antes que se possa realmente trabalhar para reformar o sistema de justiça criminal. Edson Passetti (2004, p. 12) completa essa ideia aquiescendo que “o abolicionista penal é aquele que começa abolindo o castigo dentro de si. Inventa uma linguagem, um estilo de vida, em que, mesmo não se apartando das utopias, atua no presente de maneira heterotópica. Não deixa para o futuro o que é preciso fazer agora”. No mesmo sentido, a opinião de Louk Houslman (2003, p. 213): A abolição é, assim, em primeiro lugar, a abolição da justiça criminal em nós mesmos: mudar percepções, atitudes e comportamentos. Tal mudança causa uma mudança na linguagem e, por outro lado, uma mudança na linguagem pode ser um veículo poderoso para causar mudanças em percepções e atitudes. Mudar a própria linguagem é algo que todos somos capazes de fazer: até certo ponto isto pode ser ainda mais fácil para não-profissionais que para profissionais. Somos capazes de abolir a justiça criminal em nós mesmos, de usar outra linguagem para que possamos perceber e mobilizar outros recursos para lidar com situações-problema. Quando usamos outra linguagem, ensinamos esta linguagem a outras pessoas. Nós as convidamos, de uma certa maneira, para também abolirem a justiça criminal.

Assim, abolicionistas e pacificadores acordam que as mudanças desejadas no sistema penal se iniciam dentro de cada um dos seus operadores, nas suas percepções, comportamentos e até na linguagem. O segundo campo de reflexo considerado pela criminologia pacificadora é o interpessoal. Além da necessidade de ser sereno consigo mesmo, a criminologia pacificadora advoga que se deve ser compassivo com os demais. Para a convivência em comunidades civilizadas, é fundamental a capacidade de amar o próximo, incluindo aqueles que discordam do seu ponto de vista (BOULDING, 2000, p. 89). Este é o território de várias teorias psicológicas e sociológicas que tratam do crime e a criminologia

pacificadora compartilha com ela tais preocupações, próprias da vida em comum em sociedades complexas. O terceiro nível, nível institucional ou social, reflete a resposta da sociedade ao crime. A criminologia pacificadora tem muito a oferecer neste patamar, pois aborda as práticas de justiça criminal e o processo de paz em instituições, como escolas, famílias, igrejas e os meios de comunicação. Neste sentido, políticas públicas como o controle de armas, oposição à pena capital, policiamento comunitário (a fim de envolver policiais no tecido social dos bairros que patrulham), ênfase na reabilitação e uma política mais humana, racional e eficaz para uso de drogas (com relevo no tratamento ao invés de punição) são consentâneas com uma política pacificadora (FULLER; WOZNIAK, 2006, p. 257). Um exemplo prático deste nível ocorre no desestímulo estatal para a aquisição de armas de fogo. Consoante relata Fuller e Wozniak (2006, p. 256), muitos americanos têm um verdadeiro “caso de amor” com armas de fogo, o que torna a sua posse um problema nacional. Enquanto há usos legítimos para esses armamentos — como a caça e tiro ao alvo —, a aquisição de armas para fins de proteção contra outros cidadãos poderia resultar em violência armada234. A criminologia pacificadora pode beneficiar a sociedade em geral pregando a redução deste tipo de violência. Finalmente, a perspectiva pacificadora pretende ser aplicável às questões internacionais como o terrorismo, a guerra, o meio ambiente e o comércio internacional. Seus arautos a entendem particularmente aplicável no lugar das políticas de prisão feitas pelos militares no Iraque, em Cuba e nos Estados Unidos, onde direitos humanos ficam particularmente vulneráveis. Todavia, o cabimento de uma justiça pacificadora para crimes de tal gravidade está longe de ser consenso. Questiona-se se a aplicação de tais procedimentos para violações graves — e por vezes sistemáticas — dos direitos humanos não seria uma tentativa disfarçada de impunidade. Percebe-se, outrossim, que nenhum dos procedimentos atualmente existentes — nem o judicial do TPI, por exemplo, e nem o restaurativo — é capaz de fazer frente a estes crimes, isoladamente. Parece que a melhor forma de fazê-los é combiná-los, numa hibidração, de modo a aproveitar as vantagens de cada um. Esta solução atenderia à necessidade de mudanças de longo prazo, promoveria os direitos humanos e criaria um ambiente favorável para uma paz sustentável.

4.5.1 A pirâmide de pacificação de Fuller John Fuller (2006, p. 258) desenvolveu um modelo de seis estágios para a teoria pacificadora, o qual chamou de “pirâmide de pacificação”. A pirâmide foi elaborada como forma de abranger as várias perspectivas que têm sido denominadas de “criminologia pacificadora”. São os seis conceitos: a) não-violência — O conceito mais importante incorporado na criminologia pacificadora é a nãoviolência, que não significa necessariamente passividade, mas que a resposta ao crime seja feita por outros meios que não pela violência. Segundo a criminologia pacificadora, a violência premeditada do Estado é tão reprovável quanto a violência do agressor. Não-violência não significa apenas que ofensores não devam cometer crimes violentos, mas, além disso, que o sistema de justiça criminal, em sua resposta ao ofensor, não deve perpetuar a violência. A “guerra contra o crime” é uma metáfora inadequada e contraproducente para a confecção das respostas eficazes e humanas para os problemas de criminalidade. A pena de morte, a disponibilidade de armas de fogo e uma série de outras respostas tradicionais para crime violariam o princípio de não-violência. Há um número de indivíduos notórios que defenderam a não-violência como uma política, incluindo Leo Tolstoy, Mahatma Gandhi e Martin Luther King (FULLER; WOZNIAK, 2006, p. 261); b) justiça social — Conforme Fuller (FULLER; WOZNIAK, 2006, p. 261), qualquer solução para um caso de justiça criminal deve incluir necessariamente o conceito de justiça social. A Justiça social possui um conceito mais amplo, que inclui questões de sexismo, racismo e desigualdade. O autor identificou casos de pena capital, por exemplo, em que a “raça” do agressor e da vítima influenciou a sentença de morte, constatando que minorias são mais propensas a receber este tipo de pena. De acordo com essa teoria, somente por meio da promoção do bem de todos, incluindose os destituídos de poder, é que uma sociedade pode desenvolver uma atmosfera de cooperação e compromisso da parte de todos os cidadãos a longo prazo. Enquanto o racismo, o sexismo e a discriminação de acordo com as classes sociais forem apoiados pelo Estado, o conceito de justiça social é violado, ainda que a sociedade tenha um alto grau de não-violência (BARNES, 2007, p. 1); c) inclusão — Uma realidade que causa perplexidade aos defensores da criminologia pacificadora é como o Estado pode assumir para si a responsabilidade de tratar um caso criminoso ignorando a opinião da vítima e do ofensor. O criminologista norueguês Nils Christie (1977, p. 4) compara esta atitude do Estado à expropriação de algo que pertence às partes em conflito. O princípio de pacificação de inclusão pretende recolocar a vítima e o agressor na equação da justiça criminal. Isso é melhor ilustrado pelos programas de justiça restaurativa, em que, além destes, outros impactados pelo crime são incluídos no entabulamento de uma solução consensuada para o conflito, como as famílias da vítima e do ofensor, membros da vizinhança, da comunidade etc. A intenção é manter o apoio e a colaboração de todos os envolvidos, a fim de reparar o dano causado pelo crime. A criminologia pacificadora argumenta que tais condições de inclusão formam soluções mais satisfatórias e duradouras do que penas convencionais (BARNES, 2007, p. 1); d) meios corretos — O conceito de meios corretos defende que o sistema de justiça criminal deve chegar a soluções para os problemas relacionados ao crime de forma ética e moral. “Meios corretos” é um termo utilizado por Gandhi que diz que os meios utilizados são tão importantes quanto o resultado, porque eles formam um modelo comportamental. Quando um agente estatal ilude um jovem a fim de obter uma confissão, pode ter resolvido o caso, mas, a longo prazo, pode

ter plantado as sementes para um futuro de criminalidade por enganar e alienar a juventude (FULLER; WOZNIAK, 2006, p. 262).

Assim, as políticas e procedimentos empregados pelo sistema de justiça criminal não devem sacrificar o meio adequado para que surtam os efeitos desejados (confirmando a máxima “os fins não justificam os meios”). Ademais, o direito processual foi desenvolvido com a finalidade de garantir a integridade dos direitos legais e civis do ofensor. A criminologia pacificadora parte da premissa de que as garantias do devido processo legal precisam ser preservadas, mesmo quando se buscam soluções mais criativas e eficazes para o conflito. Mais especificamente em relação à justiça restaurativa, a criminologia pacificadora ressalta a necessidade de assegurar que os ofensores e as vítimas não sejam coagidos a aceitar acordos que lhes sejam impostos (FULLER; WOZNIAK, 2006, p. 262); e) Critérios verificáveis — A burocracia do sistema de justiça criminal evoluiu quanto aos seus procedimentos, linguagem e protocolos, entretanto, tudo isso ainda pode parecer confuso para os leigos. Ofensores e vítimas não raramente confundem-se entre as jurisdições que se sobrepõem na política organizacional e nos procedimentos, muitas vezes contraintuitivos. Programas de educação para auxiliar cidadãos na compreensão das complexidades do sistema de justiça criminal são necessários, a fim de assegurar a percepção do processo legal. Muitas vezes, os praticantes da justiça criminal olvidam que a maioria dos envolvidos tem apenas um contato ocasional com o seu sistema e não estão a par da linguagem privilegiada, dos atalhos procedimentais ou da rotina do tribunal. Nos Estados Unidos, por exemplo, os pesquisadores citam outra dificuldade em relação à linguagem, que é a incapacidade de muitos imigrantes recém-chegados para compreenderem o inglês235. Na perspectiva da criminologia pacificadora, é necessário envidar esforços para assegurar que as partes entendam os procedimentos, o que inclui a necessidade de que a fala e a escrita sejam feitas de forma clara, visando aos seus destinatários, especialmente, as vítimas e os ofensores (BARNES, 2007, p. 1); f) imperativo categórico — A criminologia pacificadora se utiliza do conceito de imperativo categórico de Kant para justificar que as respostas para o crime devem refletir uma filosofia subjacente de não-violência e de justiça social. Consoante essa teoria, as decisões de justiça criminal devem seguir o axioma de Kant: “Agir apenas de acordo com aquela máxima a qual você deseja que se torne uma lei universal”. Vítimas, ofensores, profissionais da justiça criminal e o público devem, portanto, ser tratados com o respeito e a dignidade merecidos e recíprocos (BARNES, 2007, p. 1). Figura 7 — Pirâmide da pacificação de Fuller236.

A pirâmide de pacificação é oferecida por Fuller como um exemplo de como a perspectiva pacificadora pode ser futuramente desenvolvida como uma teoria criminológica. Ela é bastante criticada porque trabalha, de forma hierárquica, uma proposta pacifista e democrática que é justamente contra qualquer graduação ou verticalização. Atualmente, no entanto, a proposta de Fuller constitui apenas um ponto de partida que pode dar a futuros investigadores uma visão global desta perspectiva, a fim de extrair proposições teóricas testáveis. Outro modelo de criminologia pacificadora foi desenvolvido por John Wozniak (2002, p. 208), após uma análise do conteúdo dos capítulos de criminologia pacificadora de Pepinsky e Quinney237. Wozniak apresenta um modelo circular de pacificação que contém cinco elementos essenciais para tratar do crime e seu controle. Esta abordagem circular convida à visualização de todas as pessoas — incluindo os ofensores responsáveis por danos graves — como conectados (WOZNIAK, 2002, p. 213). À luz deste modelo, a teoria, a pesquisa e a política criminal também seriam empreendimentos conectados. Figura 8 — Modelo circular de criminologia pacificadora238.

Assim, devem ser examinadas criminologicamente as conexões entre estrutura social, crimes, danos sociais, sistema de justiça criminal e alternativas de pacificação. Deve ser assim porque a pesquisa em criminologia pacificadora avalia a forma como as pessoas tornam-se afetadas e afetam estes cinco elementos básicos, de modo a propiciar uma compreensão completa do crime e como tratá-lo de uma forma humana. Os criminologistas são, portanto, incentivados a se engajarem em uma “criminologia compassiva”, reconhecendo a inter-relação entre todos estes elementos e entre eles e o seu ambiente. O autor propôs, também, a sistematização dos princípios da criminologia pacificadora sob a forma de postulados, descritos a seguir (FULLER; WOZNIAK, 2006, p. 270): • os crimes e as vitimizações são mais propensos a diminuir com a promoção da paz positiva e quando os males ou os danos sociais subjacentes são abordados de forma mais consistente; • quanto mais responsivo, consciente e conectado com a sua comunidade é o indivíduo, menos provável é que cometa um crime;

• quanto maior o grau de dignidade e compreensão do indivíduo, menos provável é que ele pratique um crime; • quanto mais as necessidades de um indivíduo são satisfeitas, menor a probabilidade de um crime.

De forma bastante semelhante aos críticos pós-modernos que estabelecem relação entre cultura e crime, a criminologia pacificadora amplia o foco sobre o crime e a criminalidade, indo além das explicações tradicionais sobre as causas do crime, da incriminação dos indivíduos desviantes e das respostas socialmente oferecidas como a detenção, a punição e a incapacitação. Por influência de tais teorias, a criminologia pacificadora considera o indivíduo como imerso em forças sociais que definem o que é crime, conceitua o sistema de justiça penal como sendo uma ferramenta seletiva de punição e defende que uma mentalidade de guerra impulsiona a indústria de bilhões de dólares de (in)justiça (BRASWELL; FULLER; LOZOFF, 2001, p.13). A criminologia pacificadora tem aplicação em várias searas: é alternativa para o processamento judicial a fim de melhorar o tratamento de reabilitação e torná-lo mais humano e efetivo numa proposta de criação de comunidades mais seguras nas quais os cidadãos possam confiar na equidade e na eficácia do sistema de justiça. A abrangência da criminologia pacificadora permite, ainda, que ela seja aplicada a questões que vão desde o âmbito interpessoal, de autoaperfeiçoamento, ao nível internacional e global. Nisto reside tanto a força quanto a fraqueza da teoria. É uma força, porque se torna relevante como fonte de consulta e de partilha com outras teorias que visam lidar com os problemas sociais. É também uma fraqueza porque ela não aborda diretamente todas as questões relacionadas ao crime e à criminalidade, da mesma maneira que as tradicionais teorias criminológicas (QUINNEY, 1991, p. 10). Há, no entanto, quem a veja como uma criminologia marginal ou irrelevante. A crítica afirma que a pacificação não acrescenta nada de novo à criminologia sob o argumento de que a pacificação é vaga e não pode oferecer um plano de mudanças políticas que resultariam em um projeto de sistema de justiça criminal. Em resposta, afirmam os pacificadores que os seus críticos não têm investido no estudo da criminologia pacificadora e que

suas críticas são baseadas numa percepção equivocada sobre o sentido e o âmbito da perspectiva (WOZNIAK, 2002, p. 229). A respeito disso, Pepinsky (1991, p. 300) observa que o problema não é que a criminologia pacificadora é nova e não testada. O problema é a ignorância da grande quantidade do que está sendo ensinado e feito por pacificadores, tanto na criminologia quanto na justiça criminal. Em relação à justiça restaurativa, alguns criminologistas argumentam que a criminologia pacificadora é a teoria e a justiça restaurativa é a prática. Ambas conciliam justiça e não-violência a conceitos como perdão, reconciliação e restabelecimento da paz social. Criminologia pacificadora e justiça restaurativa estariam, então, relacionadas. Prova disso é que, embora existam muitas formas de programas de justiça restaurativa, todas focam na reparação do dano causado pelo crime e no reestabelecimento de relações entre ofensores e vítimas e no fortalecimento da comunidade, propostas inegavelmente de índole pacificadoras (BRASWELL; FULLER; LOZOFF, 2001, p. 42). A partir de uma perspectiva pacificadora, a justiça restaurativa concebe não só a reparação do dano causado e a reintegração do ofensor, mas a pacificação das relações sociais como metas irrenunciáveis para a intervenção no delito. As correntes criminológicas apontadas neste estudo são apenas algumas das várias atualmente existentes. Roger Matthews (2009, p. 358) observa que, nos últimos decênios, a criminologia tem se tornado cada vez mais fragmentada e diversificada, com o aumento no número de diferentes criminologias e anti-criminologias emergentes. Os realistas críticos, como o autor, veem nelas a vantagem de possuírem natureza interdisciplinar. Porém, em virtude do seu pouco impacto sobre o desenvolvimento de políticas criminais ou para influenciar mudanças sociais, eles a denominam ironicamente de “so what? criminology”. 149 É exemplo da admissão da existência de um direito natural (no caso, a liberdade) o seguinte excerto da obra do autor milanês: “Só a necessidade constrange os homens a ceder uma parte de sua liberdade; daí resulta que cada um só consente em pôr no depósito comum a menor porção possível dela, isto é, precisamente o que era preciso para empenhar os outros em mantê-lo na posse do resto. O conjunto de todas essas pequenas porções de liberdade é o fundamento do direito de punir. Todo exercício do poder que se afastar dessa base é abuso e não justiça; é um poder de fato e não de direito; é uma usurpação e não mais um poder legítimo. As penas que ultrapassam a necessidade de

conservar o depósito da salvação pública são injustas por sua natureza; e tanto mais justas serão quanto mais sagrada e inviolável for a segurança e maior a liberdade que o soberano conservar aos súditos” (BECCARIA, 1764, p. 28). 150 Os argumentos da teoria contratualista são utilizados pelo jusfilósofo para criticar os excessos do poder de punir. Segundo ele, não só o ofensor estaria quebrando o contrato social, mas também o Estado, ao agir com imoderação: “Se cada cidadão tem obrigações a cumprir para com a sociedade, a sociedade tem igualmente obrigações a cumprir para com cada cidadão, pois a natureza de um contrato consiste em obrigar igualmente as duas partes contratantes” (BECCARIA, 1764 p. 230). 151 A teoria racional econômica se manifesta na obra de Beccaria em vários trechos, como o seguinte: “É melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma boa legislação não é senão a arte de proporcionar aos homens o maior bem-estar possível e preservá-los de todos os sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos males desta vida” (BECCARIA, 1764, p. 190). 152 Este princípio foi originalmente descrito pelos filósofos utilitaristas nos seguintes termos: “nature has placed mankind under the governance of two sovereign masters, pain and pleasure. It is for them alone to point out what we ought to do, as well as to determine what we shall do. On the one hand the standard of right and wrong, on the other the chain of causes and effects, are fastened to their throne” (BENTHAM, 1789, p. 4). “The creed which accepts as the foundation of morals, Utility, or the Greatest Happiness Principle, holds that actions are right in proportion as they tend to promote happiness, wrong as they tend to produce the reverse of happiness. By happiness is intended pleasure, and the absence of pain; by unhappiness, pain, and the privation of pleasure” (MILL, 1863, p. 10). 153 Texto original de Gary Becker disponível em: http://www.ww.unimagdeburg.de/bizecon/material/becker.1968.pdf. Acesso em: 15 out. 13. 154 A ideia utilitarista de que o indivíduo age racionalmente não considera outros fatores que envolvem o seu comportamento. Se o indivíduo for realmente racional, a decisão de violar a lei deve ser informada por sua condição social ou outros fatores relevantes para ele. Identificar quais são estes fatores que condicionam a sua decisão seria útil para auxiliar o processo de prevenção e orientar políticas públicas governamentais como, por exemplo, inserir no currículo escolar orientações claras sobre as razões da prática criminosa ser uma “má” decisão (BATISTA, 2009, p. 23). 155 Um exemplo da imprescindibilidade do envolvimento comunitário para o tratamento de um litígio ocorreu em São Caetano do Sul. Tratava-se de uma situação de violência doméstica com fatores múltiplos, entre eles o alcoolismo do agressor. Após o encontro, as partes estabeleceram planos de ação para a convivência respeitosa, superando os pontos de conflito, com o compromisso adicional de participação do ofensor em programa de atendimento a alcoolistas. Entretanto, ele não aderiu ao tratamento e um novo círculo foi solicitado espontaneamente pelos envolvidos. Convidou-se, então, representantes de outro programa de atendimento comunitário a alcoolistas para participar do círculo no qual foi elaborado um novo plano de ação. Desta vez, houve a participação efetiva do agressor no tratamento, além do cumprimento dos demais pontos acordados (MELO, EDNIR e YAZBEK, 2008, p. 47). 156 Uma prática corrente neste século era a aplicação do “Édito de Valério”, lançado pelo imperador romano de mesmo nome, segundo o qual, em caso de dúvida entre dois presumidos culpados, condena-se o mais feio. No mesmo sentido, vigorou a fórmula processual lançada por um juiz napolitano, o marquês de Moscardi, dois séculos mais tarde: “Ouvidas as testemunhas de acusação e de defesa e visto o rosto e a cabeça do acusado, condeno-o...” (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 162). Ainda hoje parece haver resquícios desta teoria. Um estudo recente, da universidade britânica de Bath Spa, concluiu que a “boa aparência” pode ajudar réus culpados a evitarem uma condenação. De acordo com seus experimentos, os jurados são mais propensos a

condenar suspeitos “feios” do que aos vistos como atraentes, na medida em que associam a beleza física com bondade, inteligência e habilidade esportiva. Durante a pesquisa, os cientistas relataram um mesmo caso de roubo (fictício) a noventa e seis voluntários participantes da pesquisa. A um grupo foi entregue a imagem de um suspeito atraente e, a outro, a de um réu supostamente feio. Os voluntários foram convidados a decidir se o suspeito era inocente ou culpado e, nesse caso, a decidir sobre a sentença. A análise dos resultados revelou que os suspeitos atraentes eram mais propensos a serem absolvidos, mesmo sem qualquer evidência extra em seu favor. O estudo foi apresentado na Conferência Anual da Sociedade Britânica de Psicologia e está disponível em: http://www.thepsychologist.org.uk/archive/archive_home.cfm/volumeID_20-editionID_147ArticleID_1193. Acesso em: 16 set. 13. 157 Entre os fisionomistas, García-Pablos de Molina (2012, p. 163) cita Johann Kaspar Lavater (17411801), para quem tudo o que acontece na alma do homem se manifesta em seu rosto. Por exemplo, sua beleza ou feiura corresponderiam com a bondade ou a maldade. Consoante o teólogo suíço, o intelecto do indivíduo podia ser observado na fronte (testa); suas características morais ou sensitivas nos olhos e no nariz e o aspecto animal, no mento (maxilar inferior). O autor chegou a descrever o “homem de maldade natural” aquele que “tem o nariz oblíquo em relação com o rosto, que é disforme, pequeno e amarelado; não tem a barba pontiaguda; tem a palavra negligente; os ombros cansados e pontiagudos; os olhos grandes e ferozes, brilhantes, sempre iracundos (coléricos), as pálpebras abertas, ao redor dos olhos pequenas manchas amarelas e, dentro, pequenos grãos de sangue brilhante como fogo, envolvidos por outros brancos, círculos de um vermelho sombrio rodeiam a pupila, olhos brilhantes e pérfidos e uma lágrima colocada nos ângulos interiores; as sobrancelhas rudes, as pálpebras direitas, a mirada feroz e às vezes atravessada” (LAVATER, Johann Kaspar. Physiognomische Fragmente zur Beförderung der Menschenkenntniß und Menschenliebe, verkürzt herausgegeben von Johann Michael Armbruster ... mit vielen Kupfern. Winterthur: Heinrich Steiners und Compagnie, 1783-1787, vol. 2, p. 19). 158 Nesta seara, destaca García-Pablos de Molina (2012, p. 164) a obra de Franz Joseph Gall (17581828) que mapeou as zonas cerebrais em trinta e oito regiões com intuito de localizar pontos específicos do cérebro responsáveis pela agressividade, pelo instinto homicida, relacionados ao sentido patrimonial, moral etc. (GALL, Franz Joseph; SPURZHEIM, Johann. Untersuchungen ueber die Anatomie des Nervensystems ueberhaupt, und des Gehirns insbesondere. Paris e Strasburg: Treuttel e Würtz, 1809, reedição 2001). 159 O fundador da psiquiatria, Pinel (1745-1826), foi o primeiro a realizar diagnósticos clínicos distinguindo os “delinquentes” dos enfermos mentais. Foi, também, o primeiro a contestar a crença vigente de que nos doentes mentais havia uma personalidade demoníaca totalmente alienada e incurável (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 166). 160 A escola positiva italiana surgiu como crítica à escola clássica. No entanto, observa García-Pablos de Molina (2012, p. 175 e 182), ela apresenta duas orientações opostas: uma biológica (de Lombroso), que enfoca fatores individuais e outra sociológica (de Ferri), centrada nos fatores sociais para a compreensão do delito. Para Ferri (1884, p. 1), o delito não é produto exclusivo de uma patologia individual (o que vai de encontro à tese biológica de Lombroso). É resultado da contribuição de fatores individuais, físicos e sociais. Porém, o pai da moderna Sociologia Criminal entende que a criminalidade possui uma dinâmica própria e que o cientista poderia antecipar o número exato de delitos, se pudesse quantificar todos os fatores individuais, físicos e sociais (haveria, portanto, uma lei da “saturação criminal”, segundo a qual não se comete delitos a mais nem a menos). De acordo com Ferri (1884, p.1), no original: “Our ignorance of many physical and psychical laws and of innumerable conditions of fact, will prevent us from obtaining a precise view of this level of criminality. But none the less is it the necessary and inevitable result of a given physical and social environment. Statistics show us, indeed, that the variations of this environment

are always attended by consequential and proportional variations of crime.” 161 Trata-se, em última análise, de uma teoria “evolucionista”, segundo a qual certos tipos de comportamentos criminosos seriam genéticos e transmitidos de uma geração a outra por meio de processos evolutivos da seleção natural e da sobrevivência (SHECAIRA, 2013, p. 77). 162 A autora explica que, não raro, Nina Rodrigues chegava a conclusões distintas das afirmações de Lombroso, como num caso sobre a conduta de “criminosos” que agiam em bando. No exame psicológico de “Lucas da Feira” (um famoso bandoleiro citado por Maíra em seu artigo), por exemplo, “Nina Rodrigues não identificou este traço, este hábito que Lombroso notava nos criminosos associados de se acusarem em princípio, depois buscarem atenuar seu crime atribuindo-o ao domínio dos cúmplices”. Relata a autora que, ao contrário, Nina Rodrigues teria identificado “traços de alta generosidade” em Lucas da Feira (MACHADO, M., 2005, p. 84). 163 Observa Bruno Amaral Machado (2012, p. 95) que o trabalho de Garófalo sugere uma tradução do discurso médico à linguagem jurídica. Por exemplo, a “periculosidade” surge como conceito descritivo para situações de perigo propiciadas pelos atavismos e outras aberrações humanas. 164 García-Pablos de Molina (2012, p. 207) cita, por exemplo, Alphonse Bertilllon (1857-1914) utilizouse da antropometria para criar um complexo sistema de medidas corporais que serviria como instrumento de identificação de “delinquentes”. Conforme seu método, “medindo-se a estatura, o comprimento da cabeça, do dedo médio, dos braços etc., poderiam ser identificados muitos delinquentes que houvessem escapado da Justiça” (BERTILLON, Alphonse. La identificación antropométrica. In Revista Mexicana de Criminologia, I, 1976, p. 187). 165 Uma deficiência desta corrente é que os sujeitos observados clinicamente para desenvolver a teoria das causas do crime eram indivíduos alcançados pelas engrenagens da justiça criminal e, acima de tudo, clientes da prisão e de manicômios judiciários e indivíduos selecionados pelo sistema penal (NORDENSTAL, 2008, p. 15). Mais insuspeita, por exemplo, seria a busca das diferenças entre os condenados e os que cometeram os mesmos atos sem que tenham sido presos. 166 O termo estigma (ou estigmata), entre os antigos gregos, designava “sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou de mau acerca do estatuto moral de quem os apresentava” (Enciclopédia Porto, 2003-2013, p. 1). O termo refere-se a marcas corporais realizadas com cortes ou com fogo, que identificavam, de antemão, um escravo ou um “criminoso”, por exemplo. Lombroso usou o termo para se referir às características típicas dos nascidos “criminosos” (lábios grandes, dedos extras nas mãos ou nos pés, queixo recuado, excessivas rugas na pele, orelhas “de macaco”). García-Pablos de Molina (2012, p. 210, 218, 178, 183, 184 e 187) cita, por exemplo, a conclusão de J. Cortés, psicólogo da Universidade de Georgetown, de que o grupo “delinquente” é predominantemente mesomórfico (ou seja, pré-disposto a obter ganhos musculares). O antropólogo americano E. A. Hooton relacionou a característica física do “delinquente” ao tipo de delito cometido: “Os indivíduos altos e delgados teriam inclinação para o cometimento de homicídios e roubos; os altos e corpulentos, para falsificações e enganos; os baixos, para furtos; os baixos e gordos, para violações e abusos sexuais”. O arauto desta teoria, Cesare Lombroso, distinguiu seis grupos de “delinquentes”: o “nato” (atávico), o epilético, o louco, o louco moral (doente), o ocasional e o passional. Ele enriqueceu sua tipologia posteriormente com o exame da criminalidade feminina e do delito político. Para ele, o fenômeno atávico específico da mulher seria a prostituição e não o crime; as classes baixas representariam o passado e a brutalidade atávica e às classes privilegiadas — “hiperevoluídas” e superiores —, caberia a criminalidade astuta e fraudulenta. Enrico Ferri, seu sucessor, concluiu que as investigações antropológicas teriam demonstrado que o homem “delinquente” é completamente distinto do tipo normal do homem são, adulto e civilizado, sendo um “selvagem perdido em nossa civilização que reproduz as características orgânicas e psíquicas da humanidade primitiva”. Tanto Ferri quanto Lombroso eram partidários da pena de morte, seja pela sua função exemplar, seja pela “seleção” que ela institui ao eliminar a “raça

criminosa”. Ferri, porém lamentava seu escasso impacto dissuasório ou intimidatório devido à pouca utilização da pena capital. Já Garófalo a considerava um mecanismo de seleção artificial, que segue o sábio modelo da natureza (um “darwinismo social”). O conceito atual de estigma é mais amplo, considerando-se estigmatizante qualquer característica, ainda que não seja física ou visível, que não se coaduna com o quadro de expectativas sociais acerca de determinado indivíduo (Enciclopédia Porto, 2003-2013, p. 1). Para Erving Goffman (1988, p. 6), todas as sociedades definem categorias acerca dos atributos considerados normais, comuns do ser humano, o que ele designa por identidade social virtual. O indivíduo estigmatizado é aquele cuja identidade social contém um atributo qualquer que frustra as expectativas de normalidade. 167 Neste caso, haveria apenas cinco respostas possíveis: em primeiro lugar, poder-se-ia tentar corrigir o ofensor, por meio da medicação, da terapia ou do tratamento; em segundo, neutralizá-lo e mantê-lo fisicamente separado da sociedade; em terceiro, esterilizá-lo, de modo a impedi-lo de repassar os genes defeituosos para as futuras gerações; em quarto lugar, deportá-lo, expulsá-lo ou matá-lo. Se o crime é um fato biologicamente determinado, essas opções (ou outras derivadas destas) seriam mais úteis do que qualquer punição projetada para remover o prazer de um ato criminoso (MAGUIRE et. al., 2012, p. 25-26). 168 O descobrimento do eletroencefalograma (EEG), por exemplo, permitiu o registro gráfico da atividade elétrica do cérebro e possibilitou investigações sobre a correlação entre irregularidades ou disfunções cerebrais — como o ritmo delta (slower rhythms) — com a conduta humana delituosa (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 220). Cite-se, ainda, a Teoria de Mednick, segundo a qual o Sistema Nervoso Autônomo (SNA) mais lento do que o de costume faz com que seus possuidores controlem, de forma mais demorada (ou não controlem), seu comportamento agressivo ou antissocial, levando ao aumento da violência e de atividades criminosas (BOMAN, 2010, p. 1). 169 Lombroso (1911, p. XV), por exemplo, ao examinar o crânio de um conhecido ofensor, notou que ele apresentava características que o assemelhavam aos animais “inferiores”: “I, therefore, began to study criminals in the Italian prisons, and, amongst others, I made the acquaintance of the famous brigand Vilella. This man possessed such extraordinary agility, that he had been known to scale steep mountain heights bearing a sheep on his shoulders. His cynical effrontery was such that he openly boasted of his crimes. On his death one cold grey November morning, I was deputed to make the post-mortem, and on laying open the skull I found on the occipital part, exactly on the spot where a spine is found in the normal skull, a distinct depression which I named median occipital fossa, because of its situation precisely in the middle of the occiput as in inferior animals, especially rodents. This depression, as in the case of animals, was correlated with the hypertrophy of the vermis, known in birds as the middle cerebellum. O “delinquent”, portanto, apresentaria distintivamente uma série de estigmas degenerativos comportamentais, psicológicos e sociais: “The external ear is often of large size; occasionally also it is smaller than the ears of normal individuals. Twenty-eight per cent. of criminals have handle-shaped ears standing out from the face as in the chimpanzee: in other cases they are placed at different levels. Frequently too, we find misshapen, flattened ears, devoid of helix, tragus, and anti-tragus, and with a protuberance on the upper part of the posterior margin (Darwin’s tubercle), a relic of the pointed ear characteristic of apes” (LOMBROSO, 1911, p. 15). 170 Sérgio Salomão Shecaira (2013, p. 106-107) faz referência ao estudo feito por Ilana Casoy sobre os serial killers. Intitulado “Serial killer: louco ou cruel?”, a autora analisa estudos genéticos e psicológicos a fim de concluir sobre a capacidade do autor em saber se sua ação foi correta ou errada. Consoante apurou a pesquisadora, apenas 5% dos assassinos estavam mentalmente doentes quando do cometimento do crime. Em relação aos fatores genéticos, Shecaira informa que “existem serial killers que têm um cromossomo feminino extra (YXX), os que têm um cromossomo Y a mais

(XYY) e os que não têm nenhuma anomalia genética. No entanto, quanto aos que têm cromossomo extra (X ou Y), não restou comprovado que essa anomalia genética os transformaria em um “criminoso”. Embora muitos cientistas tenham estudos sobre o crime e a biologia, não existe quaisquer provas sobre a existência de um gene criminoso. Íntegra da pesquisa disponível em: xa.yimg.com/kq/groups/19620342/2060016746/name/Serial+Killer.pdf. Acesso em: 8 jan. 14. 171 Malinowski e sua antropologia cultural influenciou no sentido de que a cultura fosse incorporada às estruturas sociais e por elas considerada. Entende-se, aqui, cultura como um conjunto de símbolos, de significados, de crenças, de atitudes e de valores compartilhados, transmissíveis e apreendidos. O processo de socialização é o meio pelo qual a cultura penetra na personalidade do agente (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 10). 172 Em relação à conduta desviada, o antropólogo polonês afirma que ela está presente em sociedades primitivas e de alto desenvolvimento industrial, mesmo em situações de normalidade (GARCÍAPABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 282). 173 Para Lola Aniyar de Castro (1983, p. 48), o crime seria funcional inclusive para desfocar o controle e a agressividade social dos detentores do poder e os direcionar para as camadas menos favorecidas, praticantes do delito estereotipado. 174 A chamada “reação social” ao delito, segundo a criminóloga venezuelana (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 14), pode ser de tolerância, aprovação ou desaprovação deste. O espanhol Antonio GarcíaPablos de Molina (2012, p. 283) a vislumbra noutro sentido: A conduta desviada seria a “reação social normal” dos menos favorecidos numa sociedade que exalta a ascensão social quando suas oportunidades se restringem, porque frustrados em seus propósitos e pressionados a alcançá-la (opinião mais especificamente relacionada com a teoria da anomia — ver item 4.2.1). 175 Disciplinas como a ecologia, antropologia, arquitetura podem ser empregadas de diferentes maneiras: a teoria da ecologia humana, de Robert Ezra Park, por exemplo, valeu-se de métodos antropológicos a fim de explicar que a conduta criminosa, antes de ser adotada pelas pessoas, seria determinada pelos grupos aos quais elas pertencem (PARK et. al., 1925, p. 1). Já a teoria das zonas concêntricas, de Ernest Burgess, baseou-se na divisão urbanística de Chicago em cinco zonas concêntricas, para uma análise mais acurada dos fenômenos criminógenos (PARK et. al., 1925, p. 47). A “ecologia urbana” ou “criminal”, por exemplo, enxergou a cidade como uma comunidade análoga àquela ecológica-natural de plantas e animais. Nessa perspectiva, a cidade foi vista como um macro-organismo, com referências constantes a conceitos biológicos como “processos orgânicos”, “equilíbrio biótico”, “desorganização”, “debilidade do controle social”, “contágio” etc. 176 O sociólogo é autor das seguintes obras essenciais na moderna Sociologia, em que aborda este conceito: As regras do método sociológico, A divisão do trabalho social e O Suicídio. 177 Ressalta Lola Aniyar de Castro (1983, p. 12) que o desvio pode ser examinado sob quatro aspectos: como conduta fortemente desaprovada pela coletividade; como conduta que se opõe a expectativas institucionalizadas (lei ou conveniência social consolidada); como conduta vinculada a um fenômeno patológico ou como conduta diversa da média estatística. Neste trabalho, referimo-nos à primeira espécie de desvio. Ressalte-se que, para a criminóloga venezuelana, nem toda conduta desviada é delitiva e vice-versa, pois há condutas desviadas que não são criminalizadas (não são consideradas crimes propriamente ditos), pois o que é considerado crime hoje só o é porque foi imposto sob a forma de lei por quem tem mais poder e de acordo com seus interesses (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 17). A esse respeito, ver seção 1.3. 178 Quando há discrepância entre o desejo de atingir o “sonho americano” e a falta de oportunidades reais para satisfazê-lo, uma de cinco adaptações poderá ocorrer, consoante Merton (1938, p. 676678): o conformista aceitaria os objetivos da sociedade e os meios para alcançá-los (a exemplo do estudante universitário); o inovador acataria os objetivos da sociedade, mas rejeitaria os meios de alcançá-los (no caso do traficante de drogas); o rebelde rejeitaria tanto os objetivos quanto os meios

da sociedade e desejaria substituí-los por novas metas e significados (como o membro de uma milícia); o apartado desistiria de ambos os objetivos e meios da sociedade e dela se retiraria (caso do alcoólico) e, finalmente, o ritualista rejeitaria as metas, mas aceitaria os meios (para Merton, esta pessoa desistiria da promoção no emprego, do bom carro, etc. e se contentaria em simplesmente “bater o ponto” (punch the clock) no trabalho para manter o que tem). 179 As investigações de Cohen, em sua obra Delinquent Boys, demonstram que as subculturas criminais juvenis caracterizam-se por certas nuances: são não-utilitárias, possuem um espírito de grupo e pretendem negar os valores correlativos da sociedade oficial. Em seu comportamento, predomina o significado simbólico sobre o material ou o pecuniário, por exemplo, como a fama e a íntima satisfação. Não há um cálculo racional dos riscos e esforços empregados, pois, por vezes, subtraem coisas que frequentemente são abandonadas, destruídas ou presenteadas logo após. São levadas pelo hedonismo de curto prazo (como vandalismo, vadiagem e furto de veículos para passeio, “joyriding”) (COHEN, 1955, p. 201-202). 180 Frustração é aqui entendida como um estado aversivo interno devido ao bloqueio objetivo ou qualquer evento irritante. A frustração ou o conflito, diz Cohen (1955, p. 203), originariam-se quando os jovens se identificam com as classes médias e, simultaneamente, interiorizam os valores da classe a que pertencem. Vinculados a uma posição social inferior — e em desvantagem —, não podem superar essas demandas sem sofrer graves problemas de adaptação. Então, a resposta a este conflito admitiria três alternativas: a adaptação (college boy), a transação ou o pacto (corner boy) e a rebelião (delinquent boy). Essa frustração levaria a uma reação por parte dos jovens (reaction formation), particularmente em grupo (gangues), a fim de substituir as normas e valores vigentes na sociedade por outros, relativos a suas próprias subculturas (COHEN, 1955, p. 201). Assim, os ideais “das classes superiores” não seriam apenas desrespeitados, mas também rejeitados. Ao invés de considerar o estudo ou o trabalho honesto como fatores de respeito, por exemplo, o jovem optaria pelo vandalismo, num processo de adaptação à sua exclusão da sociedade (COHEN, 1955, p. 203). Para Cohen, os desviantes procuram se agrupar entre amigos de igual comportamento, a fim de ajudarem-se mutuamente a enfrentar o problema comum de legitimidade. Por esta razão, atribui-se à teoria de Cohen o argumento comumente apresentado por familiares de autores de ato infracional de que “meu filho é uma pessoa boa, mas suas más amizades o influenciaram” (NORDENSTAL, 2008, p. 16-17). Sua teoria serviu como base política para programas de repressão ao crime durante a década de 1960, sendo o mais conhecido deles a “Mobilização pela Juventude” (Mobilization for Youth — MFY). A Mobilization for Youth (MFY) iniciou suas atividades como uma agência de serviço social, operando no lado leste da cidade de Nova Iorque. No ano de 1957, a crescente delinquência juvenil — especialmente na comunidade de jovens imigrantes africanos e porto-riquenhos — chamou a atenção de Jacob Kaplan, um próspero homem de negócios local e membro do Conselho de Administração da Henry Street Settlement House (uma organização de serviço social que auxiliava imigrantes). Sensibilizado com a situação desses jovens, Kaplan financiou o projeto de auxílio a eles e recrutou Lloyd Ohlin, então diretor da escola de serviço social da Universidade de Columbia, e Richard Cloward, seu colega, para liderarem-no. Ohlin e Cloward, especialistas já reconhecidos na época pelo combate à delinquência juvenil com a “teoria da oportunidade”, defenderam que a criação de oportunidades educacionais, sociais, culturais e econômicas faria com que os jovens se envolvessem em atividades produtivas e, portanto, haveriam de se manter afastados de comportamentos desviados. O presidente John F. Kennedy conseguiu a aprovação do Congresso do Juvenile Delinquency and Youth Offenses Control Act, que autorizou o gasto de mais de trinta milhões de dólares ao longo de três anos para financiar projetos desta natureza, conseguindo que Lloyd Ohlin liderasse este esforço. A MFY abriu seu primeiro

escritório-loja na cidade de Nova York, em outubro de 1962, e contratou mais de 300 líderes comunitários, assistentes sociais, entre outros profissionais, para realizar seu ambicioso projeto. O programa encontra-se em vigor até a presente data, porém concentrado na área de assessoria jurídica gratuita aos necessitados. Fonte: http://www.mfy.org/wp-content/uploads/MFY-History-50thAnniversary1.pdf. Acesso: em 10 jan. 14. 181 Segundo Agnew, atos criminosos e desviantes são uma possível adaptação a este estresse. Ainda que essa tensão pudesse ser estabilizada por meio de recompensas não-econômicas, haveria uma preocupação com resultados, intrínseca à concorrência, que igualmente causaria tensão. Para o autor, os três principais tipos de desvio produtores de tensão são a falha para atingir as metas positivamente valorizadas (a diferença entre as expectativas e as realizações reais, assim como a diferença o que uma pessoa acredita que deva ser o resultado e o que realmente é considerado como tal), a remoção dos estímulos positivamente valorizados (relativo a uma mudança drástica ou perda, como mudança de residência, morte ou doença grave na família) e o confronto com estímulos negativos (pressão de colegas, abuso infantil). Para ele, haveria uma maior probabilidade de ocorrência do desvio quando a resposta do indivíduo a um desses mecanismos estressores fosse a raiva (AGNEW, 1992, p. 66). Já os criminólogos americanos Stephen F. Messner e Richard Rosenfeld, autores de “Crime e o sonho americano” (Crime and the American dream), amoldaram a teoria da anomia ao plano institucional. Sua premissa é a de que a sociedade americana — que privilegia a acumulação de riqueza e sucesso individual — está configurada de maneira a prestigiar e priorizar instituições econômicas em detrimento de outras instituições sociais (como família, educação, governo) (MESSNER; ROSENFELD, 2012, p. 6). O sonho americano seria um amplo “ethos” cultural, que implicaria um compromisso com a meta de sucesso a ser perseguido por todos, em uma sociedade de massas dominada por grandes corporações multinacionais . Os autores vão além da teoria de Merton, preocupando-se não apenas com o fato de que a economia tenha passado a dominar a cultura atual, mas também com a tendência das instituições não-econômicas da sociedade de tornarem-se subservientes à economia. Por exemplo, os autores citam que todo o sistema educacional parece ter se tornado impulsionado pelo mercado de trabalho (já que ninguém vai à faculdade apenas por razões de adquirir maior instrução); que políticos são eleitos com base na força da economia, a despeito de apresentarem seus discursos baseados em “valores da família”; que os executivos preterem suas famílias a serviço da vida corporativa etc. Uma vez que é dada ênfase na forma mais eficiente de alcançar o sucesso econômico, o crime pode ser visto como o meio mais oportuno de ganho monetário imediato. A lógica competitiva, individualista e materialista da economia exerceria uma poderosa força social, motivando a busca por dinheiro a qualquer custo, inclusive por meio do crime (MESSNER; ROSENFELD, 2012, p. 2-15). 182 Um exemplo de integração de sucesso entre comunidade e família para o fortalecimento de ambas as instituições ocorreu num procedimento de justiça restaurativa em uma escola de São Caetano do Sul. Membros da escola, um adolescente hiperativo, instigado pelos demais colegas da classe a provocar situações de conflito, e membros das famílias dos demais envolvidos fizeram uma avaliação em conjunto. O aluno em questão era filho de pais separados com cujo pai não se relacionava há anos e sua mãe era ausente às reuniões de classe e de acompanhamento do filho. Ambos foram chamados à participação no círculo. A confrontação das perspectivas de todos — e em especial dos pais, que procuravam resolver questões apenas por meio da diretoria — permitiu um envolvimento maior da mãe, a assistência do pai (que pôde perceber as implicações de sua ausência no comportamento do filho) e uma atitude de solidariedade entre os demais pais, que até então se limitavam a criticar e a julgar a mãe do autor. Tal situação contribuiu para fortificar aquela família e as relações entre alunos e suas famílias no ambiente escolar (MELO, EDNIR e YAZBEK, 2008, p.

44). 183 Observa García-Pablos de Molina (2012, p. 302) que a teoria da “oportunidade diferencial” de Cloward e Ohlin contém particularidades em relação à proposta subcultural de Cohen e apresenta uma descrição mais realista e complexa da delinquência juvenil urbana. Para os referidos autores, a organização interna das classes sociais baixas não é idêntica nem constante entre elas, e mesmo estas classes não oferecem as mesmas oportunidades a seus membros. Existiria, também, uma distribuição desigual no próprio slum das “chances” de aceder por vias ilícitas às metas culturais. 184 Como salienta Lola Aniyar de Castro (1983, p. 74), o cometimento de crimes tributários contra a administração pública, em prejuízo das finanças públicas etc., não é privilégio das classes altas. Mesmo funcionários públicos, pessoas de status socioeconômico médio ou de classe média-baixa podem cometê-los no exercício do seu trabalho. São os chamados ”crimes de camisa azul” ou overall ou “delitos ocupacionais”. 185 São também teóricos da social learning theory: Cressey, Cloward e Ohlin (teoria da ocasião diferencial); Glaser (teoria da identificação diferencial); Akers (teoria do condicionamento operante); Jeffery (teoria do reforço diferencial) e Sykes e Matza (teoria da neutralização) (GARCÍAPABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 305). 186 Além da “associação diferencial”, inclui-se nas teorias do processo social a da “identificação diferencial” (Glaser) e do “reforço diferencial” (Jeffery). Para Glaser (1956, p. 436), os “delinquentes” podem se identificar mais com o grupo desviante do que com os membros “conformes” da sociedade. Essa identificação pode ser real, imaginária (por exemplo, como personagem de um filme) ou afetiva (a fim de permitir sua aceitação ou aprovação por pessoas importantes em suas vidas), mas capaz de transferir as competências necessárias para se cometer um crime (como, por exemplo, ofensores mais velhos serviriam como modelos para os ofensores mais jovens). A essa identificação, o criminólogo americano chamou de “identificação diferencial”, uma variante da teoria da associação diferencial. O “reforço diferencial” concebido por Jeffery (1965, p. 294) em referência às potenciais recompensas e punições ao se cometer ou não um ato criminoso. Este processo inclui a consideração de punições e recompensas recebidas no passado, as presentes e as futuras. Um reforço negativo ocorreria quando um indivíduo conseguisse escapar de algo doloroso (como uma punição) ao cometer um determinado ato. O reforço positivo aconteceria ao receber uma recompensa pelo ato cometido (como aprovação, dinheiro etc.) No original do autor: “The theory of differential reinforcement states that a criminal act occurs in an environment in which in the past the actor has been reinforced for behaving in this manner, and the aversive consequences attached to the behavior have been of such a nature that they do not control or prevent the response. Criminal behavior is under the control of reinforcing stimuli. An act of robbery produces money; it also may produce being shot at by the victim or the police, being arrested, being imprisoned, etc. However, if the aversive consequences of the act control the behavior, then the behavior does not occur, e.g., if a thief regards the consequences of his act as being shot or arrested, he will not steal in that particular situation” (JEFFERY, 1965, p. 295). 187 As teorias psicanalíticas da agressividade humana podem oferecer alguma resposta para os casos mencionados. Elas se baseiam nos distúrbios no desenvolvimento da libido, com projeções destrutivas do instinto de morte (CIRINO DOS SANTOS, 2012b, p. 13). Neste trabalho, não são destacadas devido à sua limitação para descrever a criminalidade em geral. 188 Nas palavras dos autores: “It is our argument that much delinquency is based on what is essentially an unrecognized extension of defenses to crimes, in the form of justifications for deviance that are seen as valid by the delinquent but not by the legal system or society at large” (SYKES; MATZA; 1957, p. 666) 189 Reckless, Walter C.. The etiology of criminal and delinquent behavior. New York: Social

Science Research Council, 1943. 190 Exemplar deste apreço restaurativo pelas instâncias de controle informal foi a participação, em um círculo restaurativo realizado no Distrito Federal para o tratamento das consequências do crime de estupro, da patroa da mãe de um dos ofensores e do patrão de outro, como apoiadores das partes, além dos envolvidos diretos e seus familiares (vide caso apresentado na seção 8.1.2.1). 191 García-Pablos de Molina (2012, p. 358) salienta que a expressão “prevenção primária” se refere a programas de educação, socialização, moradia, trabalho, bem-estar social e qualidade de vida, que seriam os mais eficazes, pois representam a genuína prevenção, atuando etiologicamente nas causas do conflito criminal, neutralizando-o antes que se manifeste. Entretanto, este tipo de programa opera sempre a longo e médio prazos e reclama prestações sociais e intervenção comunitária que possuem limitações práticas. A sociedade, a todo tempo, exige soluções a curto prazo e as identifica com fórmulas drásticas e repressivas. Segundo o autor, “os governantes tampouco demonstram paciência ou altruísmo, ainda mais quando oprimidos pela periódica demanda eleitoral e o interessado bombardeio propagandístico dos forjadores da opinião pública” (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 357). Observa o professor que a prevenção secundária, por sua vez, atua somente quando o conflito criminal se manifesta ou se exterioriza, orientada seletivamente para setores concretos (particulares) da sociedade e seus programas e, em geral, exibem uma característica marcadamente policial, como a criticada pelos autores. A terciária tem como destinatário o recluso e objetiva evitar sua reincidência. Das três modalidades, é a que possui caráter punitivo mais acentuado e também a mais falha, pois se trata de uma intervenção tardia (depois do cometimento do delito), parcial (focada no condenado) e insuficiente (não neutraliza as causas do problema criminal). 192 São exemplos desta técnica a instalação de mecanismos visíveis de defesa da propriedade (grades, cercas, câmeras), reforço nos hábitos cotidianos de segurança, remoção de objetos que podem servir de esconderijo ou para acesso à residência (arbustos, árvores), contratação de segurança particular, controle de acesso aos prédios (por pedestres, automóveis). Em nível comunitário, estariam iniciativas como o neighborhood watch, que incentivam pessoas a controlarem seus bairros e relatar incidentes suspeitos para a polícia (CLARKE, 1983, p. 236-237). 193 O criminologista britânico lembra que não só o mercado, mas também os governos podem interferir no pensamento criminológico, por exemplo, financiando formas de “criminologia administrativa” que não estaria interessada em gerar investigação crítica e reflexiva, mas somente na pesquisa de dados, patrocinada pelo governo, desprovida de uma teoria. Consequentemente, a “criminologia administrativa” “muito tende a envolver uma política que orienta as evidências ao invés de evidências que orientam a política” (MATTHEWS, 2009, p. 343). 194 Neste ponto, critica Lola Aniyar de Castro (1983, p. 142) que os teóricos do labeling approach estavam inclinados a fazer da criminologia uma sociologia do direito penal. Já Juarez Cirino dos Santos (2013d, p. 16) acrescenta que “o labeling approach não é uma teoria criminológica, mas um novo paradigma de abordagem da questão criminal, que desloca o objeto de estudo da criminalidade para a criminalização”. 195 De acordo com o interacionismo simbólico, os indivíduos têm a capacidade de incorporar reações das pessoas sobre seu próprio comportamento e usá-las para compreender mais sobre si mesmo. Assim, o indivíduo se percebe também pela forma como os demais reagem a ele (reações faciais, linguagem corporal, a própria linguagem) (CARVALHO; BORGES e RÊGO, 2010, p. 148). A consciência sobre si é então desenvolvida na interação social, mediante internalização da atitude dos outros em relação àquela pessoa (CIRINO DOS SANTOS, 2013d, p. 16). 196 A seletividade pode ser traduzida nas palavras de Leaute: “Quando a polícia lança as suas redes, não são os peixes pequenos que escapam, mas os maiores” (Yamarellos, E. e Kellens, G.; Le Crime et la Criminologie, Verviers, Marabout Université, 1970, 2 vols.; ANIYAR DE CASTRO, 1983, p.

67). 197 Boaventura Souza Santos (1996, p. 38) identifica três níveis de seletividade (também chamados “graus de criminalização” — primário, secundário e terciário): na tipificação de crimes, em âmbito Legislativo; na seleção dos criminalizáveis (feita pela polícia, pelo Ministério Público, pelo juiz etc.) e na seleção dos que serão efetivamente etiquetados como “criminosos” (encarcerados). 198 No Brasil, a justiça restaurativa apresenta grande potencial de emprego como uma medida de desvio. Um exemplo ocorreu durante uma situação de conflitos recorrentes entre alunos adolescentes de uma escola municipal em São Caetano do Sul. Neste caso, apesar de as ofensas serem recíprocas, uma das partes tomou a iniciativa de lavrar boletim de ocorrência contra os demais colegas em uma delegacia de polícia. Após tal atitude, os alunos apontados como autores passam a ser chamados de “acusados” em ambiente escolar, com sua consequente estigmatização e rejeição por colegas e pais de colegas, sendo tratados como pessoas a serem evitadas. Após esta constatação, o caso foi encaminhado para o círculo comunitário, com presença de professores de confiança de todos os envolvidos. A partir de então, foi estabelecido um plano de ação para superar o conflito, com a intermediação na escola para se trabalhar a remoção deste estigma entre seus alunos, bem como modificar o procedimento interno de condução dos casos, encaminhando os conflitos primeiramente ao projeto de justiça restaurativa e só então para as autoridades policiais, caso não fossem solucionados. A partir de então, a justiça restaurativa pode funcionar como medida de desvio (MELO, EDNIR e YAZBEK, 2008, p. 37). 199 São exemplos de diversion movement ou diversion programmes nos Estados Unidos: a) deferred prosecution agreement (DPA) ou non-prosecution agreement (NPA), uma espécie de anistia concedida pelo promotor (prosecutor) em troca do cumprimento de alguns requisitos (pagamento de multa, prestação de serviço, cooperação com a investigação). Cumpridos os requisitos, renuncia-se a acusação; b) plea bargain (plea agreement, plea deal ou ‘copping a plea’): um acordo entre o promotor e o réu, no qual ele se compromete a declarar-se culpado de uma acusação menos grave ou de uma das várias acusações, em troca de algumas concessões do Ministério Público; c) nolle prosequi (“não estar disposto a prosseguir”, “não processar”): expressão latina usada para designar a decisão de um promotor de interromper voluntariamente a acusação antes do julgamento (DERVAN, Lucian E.; EDKINS, Vanessa A., 2013, p. 1). 200 Uma crítica que se faz a estas medidas despenalizadoras é que os ofensores que seriam liberados do sistema são colocados em programas alternativos simplesmente porque eles existem. Por exemplo, na justiça juvenil estrangeira (Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia e Austrália), os “campos de reinicialização” (boot camps) — acampamentos para adolescentes primários que funcionam como “prisão-choque”, com duração aproximada entre 90 e 180 dias — são uma opção viável para manter os adolescentes fora das instituições penais. Por outro lado, os juízes tendem a usá-los para ofensores de baixo risco que não deveriam ser, de fato, enviados para a prisão, ampliando o alcance da rede punitiva (netwidening) (JOHN HOWARD SOCIETY OF ALBERTA, 1996, p. 10). 201 Neste sentido, o Brasil possui um exemplo bastante eloquente que é a Lei 10.684/03, que dispõe sobre parcelamento de débitos junto à Secretaria da Receita Federal. Segundo o artigo nono da referida lei, o pagamento integral do tributo extingue a punibilidade pelos crimes tributários que enuncia, ou seja, uma vez paga a dívida, o sonegador não será encaminhado ao cárcere (assim como não irá aquele que parcelar o pagamento do tributo, cujo processo está suspenso). Dispõe o art. 9º da Lei 10.684/03: “É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 — Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento. § 1º A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão

punitiva. § 2º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios. O entendimento jurisprudencial ainda é mais indulgente ao permitir que o pagamento apto a extinguir a punibilidade possa ser feito a qualquer tempo (antes ou depois do recebimento da denúncia, ou mesmo após a condenação transitar em julgado), já que a lei não fixou prazo para a quitação. Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF) afirma: “O pagamento do tributo, a qualquer tempo, ainda que após o recebimento da denúncia, extingue a punibilidade do crime tributário” (HC 81929, Relator(a): Min. Sepúlveda Pertence, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Cezar Peluso, Primeira Turma, julgado em 16/12/2003, DJ 27-02-2004 PP 27). Os tribunais também admitem, por questão de “isonomia”, que aos autores de quaisquer outros crimes tributários seja estendida a regra da exclusão de punibilidade prevista no art. 9º da referida lei, ainda que não expressamente prevista esta possibilidade para aqueles crimes. Assim se posicionou o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em recente acórdão: “Embora o crime de descaminho encontre-se, topograficamente, na parte destinada pelo legislador penal aos crimes praticados contra a Administração Pública, predomina o entendimento no sentido de que o bem jurídico imediato que a norma inserta no art. 334 do Código Penal procura proteger é o erário público — diretamente atingido pela evasão de renda resultante de operações clandestinas ou fraudulentas. Cuida-se, ademais, de crime material, tendo em vista que o próprio dispositivo penal exige a ilusão, no todo ou em parte, do pagamento do imposto devido. Assim, mostra-se possível a extinção da punibilidade pelo delito de descaminho, ante o pagamento do tributo devido, nos termos do que disciplinam os arts. 34, caput, da Lei nº 9.249/1995, 9º, § 2º, da Lei nº 10.684/2003 e 83, § 4º, da Lei nº 9.430/1996, com redação dada pela Lei nº 12.382/2011. Precedentes desta Corte e do Supremo Tribunal Federal” (HC 265.706/RS, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Quinta Turma, julgado em 28/05/2013, DJe 10/06/2013). 202 Paulo de Souza Queiroz (2002, p. 27) alerta para a impossibilidade de se eliminar as desigualdades geradas pelo direito penal, afirmando que “seria ingênuo supor que se trate de algo facilmente superável: ainda que o próprio Deus ditasse as leis, ainda que os juízes fossem santos, ainda que os promotores de justiça fossem super-homens, ainda que os delegados e policiais formassem um exército de querubins, ainda assim o direito, e o direito penal de modo particular, seria um instrumento de desigualdade, porque a igualdade formal ou jurídica não anula a desigualdade material que lhe subjaz.” 203 Num caso de furto tratado pela justiça restaurativa de São Caetano do Sul, a vítima procurou se reconectar com o autor da ofensa, valendo-se do conceito da vergonha reintegradora. O ofensor trabalhava para a vítima quando a furtou. As partes celebraram um acordo de reparação dos danos causados e, não satisfeita apenas em ser ressarcida, a vítima ofereceu-se em apoio para conseguir novo trabalho para o autor, estabelecendo como condição o esforço pessoal deste no novo emprego. O genitor do adolescente manifestou vergonha pelo comportamento de seu filho e todos concordaram com a condição sugerida pelo ofendido. O adolescente declarou-se surpreso com a postura da vítima e muito envergonhado por ter que se confrontar com as consequências de sua ação em relação à vítima e aos seus familiares (MELO, EDNIR e YAZBEK, 2008, p. 46). 204 Expressão cunhada pelo sociólogo Robert King Merton, a profecia autorrealizável (ou selffulfilling prophecy (SFP) é, inicialmente, uma falsa definição da situação, porém, que evoca um novo comportamento, o qual faz com que a falsa concepção original possa se tornar realidade (BEARMAN, Peter; HEDSTRÖM, Peter. 2009, p. 294). 205 Juarez Cirino dos Santos (2005, p. 4 e 5), em comentário aos trinta anos da obra de Foucault “Vigiar e Punir”, ressalta que “o sistema punitivo seria um subsistema social garantidor do sistema de produção da vida material, cujas práticas punitivas consubstanciam uma economia política do corpo

para criar docilidade e extrair utilidade das forças corporais”. Além disso, a pena se apropria do tempo livre do condenado — bem jurídico valioso para uma sociedade fundada na relação capital/trabalho assalariado, onde o tempo é o critério geral de medição do valor. Ferrajoli (2010, p. 360) acrescenta que não só o “tempo de liberdade” e subtraído pelas penas privativas de liberdade; mas também a propriedade (“dinheiro”) é subtraída pelas penas pecuniárias e a capacidade de trabalhar ou do direito de cidadania subtraída pelas penas privativas de direitos. 206 A teoria marxista passou a influenciar o pensamento criminológico adquiriu vigor a partir da obra conjunta The new criminology: for a social theory of deviance, de Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young, publicada em 1973 na Inglaterra e também após a National Deviancy Conference, iniciada em 1968 por um grupo de sociólogos britânicos que, num ato de protesto contra o tradicionalismo criminológico, se retirou da Terceira Conferência Nacional de Criminologia, tal como descrito por Leon Radzinovics (2001, p. 259): “right in the middle of the Third National (Criminology) Conference, taking place in Cambridge in July 1968, a group of seven young social scientists and criminologists, participants of the Conference, met secretly and decided to establish an independent ‘National Deviancy Conference’ and soon afterwards they duly met in York. At the time, it reminded me a little of naughty schoolboys, playing a nasty game on their stern headmaster. (…) Those were the years of dissent, protest and ferment in the United States with their unmistakable echoes in Britain. They affected not only the ways people acted, but also their thinking on many matters relating to social life and its reinterpretations. But it was also a reaction to some extent inevitable and to some extent misguided of the new generation of British criminologists against what appeared to be the stolid establishment of Criminology as personified by the Cambridge Institute and probably also by its first Director.” 207 Vale, aqui, mencionar a crítica de Lola Aniyar de Castro (1983, p. 185-186), para quem a história do sistema penal é a das relações entre duas nações que compõem a população: os ricos e os pobres. Assim, estudá-la fora do contexto global das relações de produção conduz a apreciações falsas da realidade, permitindo afirmações tais como as tendências à humanização das prisões. 208 Neste sentido, Juarez Cirino dos Santos (2005, p. 8) argumenta que, na gestão diferencial capitalista da criminalidade, “a lei penal é instrumento de classe, produzida por uma classe para aplicação às classes inferiores; a justiça penal constitui mecanismo de dominação de classe, caracterizado pela gestão diferencial das ilegalidades; a prisão é a instituição central da estratégia de dissociação política da criminalidade, com repressão da criminalidade das classes inferiores e imunização da criminalidade das elites de poder econômico e político”. Destarte, se o capitalismo é uma criação dos “vencedores” sobre os “perdedores” e se os responsáveis pela criação e acumulação de riqueza devem ser protegidos contra as atividades dos “criminosos”, a lei tem sido aplicada para vigiar e monitorar as atividades dos pobres e impotentes. 209 Observa Bruno Amaral Machado (2012, p. 89 e 91) que a nova criminologia apresenta, além das severas críticas às tradições anteriores, um ceticismo em relação ao discurso da ciência e do direito, partindo em defesa de uma política criminal alternativa. Entretanto, para alguns marxistas radicais, qualquer reforma da justiça penal é inútil. Apenas uma mudança fundamental da economia capitalista e da socialista pode reduzir ou eliminar o crime. O sociólogo faz uma ressalva à vertente mais pragmática do neorrealismo, que busca as causas sociais do delito e que aposta na possibilidade de políticas alternativas, inclusive, no uso estratégico do direito penal. 210 As mensagens da criminologia crítica podem ser resumidas nos seguintes postulados, segundo Bruno Amaral Machado (2012, p. 91): “na denúncia aos usos instrumentais do direito penal para a gestão de problemas sociais (imigração, pobreza, etc.); na seletividade do sistema de justiça criminal (programa inicial que não foi abandonado); na crítica ao giro autoritário das políticas criminais, especialmente nos Estados Unidos e na Europa após o 11 de Setembro”. 211 Para seus fundamentos, o realismo de direita combinou elementos das correntes sociobiológicas e

da teoria da escolha racional. Para os teóricos realistas, o crime não é determinado por forças sociais, mas por escolhas individuais dos “criminosos”. Eles desdenham de soluções utópicas, de ideologias, sendo mais pragmáticos sobre formas de lidar com o crime (ou seja, são a favor de um “endurecimento” da política criminal, com adoção de programas como “tolerância zero”, three strikes and you are out etc). Ao contrário das outras escolas da criminologia, o realismo de direita não se interessa por explorar conceitos como “poder” e “estruturas” na sociedade, tampouco se preocupa com o desenvolvimento de teorias de causalidade em relação ao crime e ao desvio. Neste sentido, a célebre frase de James Q. Wilson — cientista politico, criminólogo, consultor de alguns presidentes americanos, autor da “teoria das janelas quebradas”: “To people who say ‘crime and drug addiction can only be dealt with by attacking their root causes’, I am sometimes inclined, when in a testy mood, to rejoin: ‘stupidity can only be dealt with by attacking its root causes’. I have yet to see a ‘root cause’ or encounter a government programme that has successfully attacked it...” (THEODORE, 1986, p. 239). Como se percebe, o realismo de direita escuda valores de ordem moral, de índole conservadora, que se supõe sejam compartilhados por todos na comunidade de forma a definir os insiders (cumpridores da lei, os membros da comunidade consensuais) contra os outsiders (estranhos, “criminosos”) (MAGUIRE; MORGAN; REINER, 2012, p. 182). Do ponto de vista restaurativo, a desaprovação que se faz é que um pensamento assim maniqueísta ignora o papel das partes e o potencial da comunidade definir seus próprios interesses e a agir coletivamente, sem que tenha que apelar para a intervenção Estatal por meio de políticas agressivas que alienam a opinião e a participação local. 212 Bruno Amaral Machado (2012, p. 91) observa que houve “uma sofisticação” com a incorporação de teorias de gênero e de discussões sobre a raça e o racismo na análise dos processos de criminalização pela visão marxista. 213 O mesmo autor (MACHADO, B., 2012, p. 90) sublinha que esta corrente crítica surgiu na Inglaterra como contraposição ao idealismo das esquerdas. Com ela, visões mais pragmáticas do ponto de vista político-criminal substituíram a práxis revolucionária de conscientização sobre as condições estruturais (econômicas) do início dos anos 1970. 214 Os realistas de esquerda repreendem a omissão da criminologia crítica em relação à maioria populacional, o que permitiu que políticos de direita reivindicassem, com exclusividade, o combate ao “crime de rua”, como se apenas eles detivessem expertise para a compreensão desse tipo de ofensa e do seu policiamento, abrindo espaço para o apoio popular a políticas duras de “lei e ordem” (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 67). 215 Os realistas de esquerda acreditam que o crime só pode ser entendido em termos de inter-relações entre estes quatro elementos. Todos eles são importantes e o trato entre os componentes muda de acordo com a situação. Por exemplo, a relação vítima-ofensor é diferente no crime de colarinho branco se comparada ao crime de rua. Em que pese tratarem dos quatro elementos do crime, os realistas são criticados por mostrarem-se mais preocupados com as vítimas. Além disso, são acusados de caírem na “armadilha” subcultural de classificar indivíduos entre “desviantes” e “não-desviantes” (MAGUIRE; MORGAN; REINER, 2012, p. 119). 216 Jock Young (2001, p. 1) relaciona o problema do crime com a natureza da modernidade e a exclusão social, examinando tanto as causas do crime quanto as diferentes reações sociais a ele. O sociólogo e criminologista argumenta que, no último terço do século XX (período de transição da late modernity ou high modernity), as mudanças ocorridas nas sociedades industriais avançadas tornaram-nas “exclusivas”. De acordo com Young, uma das principais razões para o aumento dos índices de criminalidade na sociedade exclusiva de alta modernidade é a privação relativa. Embora os padrões de vida em geral tenham subido, a desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres aumentou. Em uma economia capitalista competitiva globalmente, as recompensas para os mais bem

sucedidos são astronômicas. A mercantilização coloca maior ênfase no sucesso material individual e intensifica a sensação de privação experimentada pelos não bem-sucedidos. Assim, a despeito da alta modernidade produzir elevados níveis de inclusão cultural, ela os combina com a exclusão social e econômica. Muitos daqueles que conseguiram algum sucesso podem ainda se sentir privados, porque a ideologia da meritocracia — que sugere que cada um recebe o que merece — contrasta com a realidade do “caos” no mercado de recompensas. 217 Por exemplo, uma das ferramentas metodológicas preferidas do realismo de esquerda são os métodos quantitativos e qualitativos, tais como o levantamento do local do crime, a pesquisa local sobre vitimização, o medo do crime, de violência contra a mulher, de percepção da polícia, etc. (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 327). 218 São exemplos de inputs democráticos na construção de um trato para o crime: a ampla participação nas decisões políticas, a capacidade de resposta da política para os órgãos representativos; as informações para formar uma base para a tomada de decisões por representantes; uma distribuição equilibrada do poder entre os diferentes atores do sistema; a possibilidade de recurso; a prestação efetiva de resultados, como a manutenção da ordem, a prevenção do crime e repressão e, finalmente, uma preocupação com a equidade, a partir da qual os outros seis defluem. (NEWBURN; PEAY, 2012, p. 126). 219 Conforme texto definitivo e oficial do anteprojeto (Projeto de Lei do Senado nº 236, de 2012) acessado no sítio do Senado Federal. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=106404. Acesso: em 6 fev. 2013. 220 O princípio da ultima ratio é convenientemente explicado na seguinte expressão de Paulo Queiroz (2007, p. 1): “Se o direito penal é a forma mais violenta de intervenção do Estado na liberdade dos cidadãos, segue-se que, como ultima ratio do controle social formal, somente deve intervir quando for absolutamente necessário. (...) Porque o direito penal deve ser minimamente célere, minimamente eficaz, minimamente confiável, minimamente justo” (QUEIROZ, 2007, p. 1). 221 Catedrático de direito penal, processo penal, teoria do direito e sociologia jurídica. Atua na universidade de Frankfurt e é vice-presidente do Tribunal Constitucional Federal. 222 A banalização do uso do direito penal se refere, por exemplo, à tipificação de condutas relativas à moral pública ou privada (ato obsceno, escrito obsceno, objeto obsceno, “jogo do bicho”) ou às drogas (porte ou posse para uso próprio). Esses tipos penais, por cominarem penas muito pequenas, jamais levariam seu autor ao cárcere. Assim, a sua descriminalização não teria o efeito pretendido de diminuir a população prisional, mas apenas de trivializar o emprego do direito penal. 223 Segundo Paulo de Souza Queiroz (2007, p. 1), justamente por se “ocupar de um sem número de ações e omissões, a efetiva intervenção do sistema penal (ações penais, condenações, prisões etc.) é estatisticamente desprezível”. Beccaria (1764, p. 191-192) também atentou para a improdutividade da inflação legislativa, asseverando que, quanto mais crimes tipificados, maior a ocorrência de delitos e não o contrário: “Ora, quanto mais se estender a esfera dos crimes, tanto mais se fará que sejam cometidos, porque se verão os delitos multiplicar-se à medida que os motivos de delitos especificados pelas leis forem mais numerosos, sobretudo se a maioria dessas leis não passarem de privilégios, isto é, de um pequeno número de senhores. Quereis prevenir os crimes? Fazeis leis simples e claras; fazei-as amar; e esteja a nação inteira pronta a armar-se para defendê-las, sem que a minoria de que falamos se preocupe constantemente em destruí-las.” 224 Zaffaroni (2007, p. 173) critica a visão garantista do direito penal afirmando que “referir-se a um direito penal garantista em um Estado de direito é uma redundância grosseira, porque nele não pode haver outro direito penal senão o de garantias”. 225 No caso brasileiro, a autorização legislativa para aplicação do princípio da co-culpabilidade estaria no artigo 66 do Código Penal, segundo o qual, “a pena poderá ser ainda atenuada em razão de

circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei”. 226 Harold Pepinsky é doutor em direito na universidade de Harvard e pós-doutor em sociologia na universidade da Pennsylvania. Atualmente é professor na universidade de Indiana. Dedicou maior parte de sua carreira acadêmica a escrever sobre o crime e a violência, as suas raízes, antíteses e as maneiras pelas quais as pessoas podem pratica a paz. Realizou pesquisa de campo nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Noruega, Polônia e na Tanzânia. Richard Quinney é um sociólogo americano conhecido por sua abordagem filosófica e crítica ao crime e em favor da justiça social. É doutor em sociologia pela universidade de Wisconsin em 1962, lecionou na universidade de northern Illinois University de 1983 até sua aposentadoria em 1997 e foi agraciado com o Sutherland Edwin Award, em 1984, pela Sociedade Americana de Criminologia por suas contribuições à teoria criminológica. 227 A prisão canônica e a prisão moderna até hoje compartem de alguns princípios penais, tais como a aplicação da lei posterior mais benéfica (cânone 1313, §1º), o princípio da proporcionalidade (cânone 1317), o princípio da responsabilidade pessoal e subjetiva (cânone 1321), entre outros. “Can. 1313 - §1. Se dopo che il delitto è stato commesso la legge subisce mutamenti, si deve applicare la legge più favorevole all’imputato. Can. 1317 - Le pene siano costituite nella misura in cui si rendono veramente necessarie a provvedere più convenientemente alla disciplina ecclesiastica. La dimissione dallo stato clericale non può essere stabilita per legge particolare. Can. 1321 - §1. Nessuno è punito, se la violazione esterna della legge o del precetto da lui commessa non sia gravemente imputabile per dolo o per colpa” (VATICANO, 1983, p. 1). 228 Uma destas ideias é a de que o crime e o sofrimento estão relacionados e, para eliminá-los, é preciso uma transformação do ser humano. Nas palavras de Quinney (1991, p. 11): “All of this is to say, to us as criminologists, that crime is suffering and that the ending of crime is possible only with the ending of suffering. And the ending both of suffering and of crime, which is the establishing of justice, can come only out of peace, out of a peace that is spiritually grounded in our very being. To eliminate crime — to end the construction and perpetuation of an existence that makes crime possible — requires a transformation of our human being. We as human beings must be peace if we are to live in a world free of crime.” 229 Segundo o líder budista, “cada uma das grandes religiões tem coisas únicas, mas também há muita coisa em comum entre elas. Assim, é sábio usar técnicas úteis de outras religiões, mesmo sem mudar de religião. Até para aplicá-las na própria religião. Com isso, as tradições religiosas diferentes desenvolvem respeito mútuo e compreensão. Isso é fundamental” (DALAI LAMA, 1999, p. 1). 230 Doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e pertencente à Congregação dos Padres do Coração de Jesus (dehonianos). 231 Cf. Insegnamenti di Paolo VI, vol. XIII (1975), p. 1568 (Discurso no encerramento do Ano Santo de 1975, 25-XII-1975) e vol. XIV (1976), p. 40-42; PAULO II, João. Carta encíclica dives in misericordia (sobre a misericórdia divina). Roma, 1980. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_30111980_divesin-misericordia_po.html. Acesso em: 26 nov. 13. 232 A respeito da lenta e difícil conquista dos direitos femininos, remetemos o leitor à seção 2.2, onde transcrevemos as conclusões da CPI Carcerária sobre a indiferença com a mulher reclusa do atual sistema. Segundo o relatório: “Nas cadeias femininas, nem mesmo absorvente higiênico ou remédios para cólicas estão disponíveis. (...) Quanto aos absorventes, quando são distribuídos, são em quantidade muito pequena, dois ou três por mulher, o que não é suficiente para o ciclo menstrual. A solução? As mulheres pegam o miolo do pão servido na cadeia e os usam como absorvente. (...) Acompanhamos casos de presas com câncer de mama e outros problemas graves simplesmente deixadas à morte, sem atendimento” (BRASIL, 2009, p. 204, 205 e 283). Deve-se, ainda, fazer

menção à ausência de locais próprios para o aprisionamento da mulher, o que leva a flagrantes desrespeitos aos seus direitos, como o caso da adolescente de 15 anos que ficou presa por mais de 30 dias em uma cela de uma cadeia pública no Pará com cerca de 20 presos do sexo masculino. Nesse ambiente, ela foi vítima de torturas e estupros repetidamente. 233 (FULLER; WOZNIAK, 2006, p. 256) 234 Segundo os autores, há um velho ditado no teatro, atribuído ao dramaturgo russo Anton Pavlovitch Chekhov (“Chekhov´s gun”) que diz que se uma arma é apresentada no primeiro ato, ela disparará até o terceiro ato (“If you say in the first chapter that there is a rifle hanging on the wall, in the second or third chapter it absolutely must go off. If it’s not going to be fired, it shouldn’t be hanging there”). Em muitas famílias e vizinhanças, muitas vezes, não leva tanto tempo para que se cumpra a predição (FULLER; WOZNIAK, 2006, p. 256). 235 Nos Estados Unidos, muitas jurisdições fornecem tradutores adequados, mas outras não. Alguns argumentam que os tribunais e a polícia também deveriam se tornar proficientes na língua da comunidade (BARNES, 2007, p. 1). 236 (FULLER; WOZNIAK, 2006, p. 258) 237 Não se ignora a existência de outras teorias de índole pacifista como, por exemplo a de Aleksandar Fatic, professor montenegrino que, em 1995, publicou “Punishment and restorative crime-handling: a social theory of trust” na qual se empenhou em encontrar uma justificativa filosófica para a justiça restaurativa, alegando que a maioria das teorias da justiça são racionalizações para a vingança privada e pública. Na sua obra, ele propôs uma teoria reparadora como forma de intervenção no crime. Ele baseou sua teoria no princípio moral de “abster-se da imposição deliberada de dor”. Fatic acredita em uma transformação cultural e na criação de uma sociedade pacifista em que comportamentos de reconciliação seriam recompensados. Entretanto, optamos por nos concentrar nas teorias pacifistas citadas (Quinney, Pepinsky e Fuller) por serem as de maior expressão. 238 (FULLER; WOZNIAK, 2006, p. 263)

CAPÍTULO V

A DINÂMICA VITAL DA JUSTIÇA RESTAURATIVA PRINCÍPIOS, CARACTERÍSTICAS, PROCEDIMENTOS, ATORES E APOSTAS

A justiça restaurativa é um novo paradigma239 de justiça criminal que confere um olhar diferenciado sobre o crime. Antes de conceber o delito como uma violação às leis do Estado, ela o considera como uma violação perpetrada por uma pessoa contra outra, reconhecendo sua dimensão intersubjetiva e conflitiva. O crime seria, portanto, um conflito social e interpessoal (BERISTAIN, 2000, p. 174). O Estado não é visto como a vítima principal, mas sim os diretamente afetados pelo crime, tais como o ofendido e a comunidade (podendo alcançar até o próprio ofensor)240. Este novo modelo se propõe a suprir antinomias do paradigma vigente, uma delas explicada por Passeti (2004, p. 21): “[no sistema atual] a vítima se transforma em testemunha de acusação de um crime cometido contra a sociedade. Então, em lugar da sua indenização, o Estado investe em punir o julgado culpado”. Assim, ao invés de simplesmente punir os responsáveis pela ofensa, como acontece, a justiça restaurativa desafia uma maneira diferente de responder à transgressão, com uma solução mais humanizada. Nesta nova perspectiva, o papel do Estado na resposta ao crime é redefinido, priorizando-se os mais atingidos pela infração para que se tornem protagonistas no processo de solução. Dessa forma, todos os envolvidos (comunidade, autor e vítima) têm a oportunidade de assumirem responsabilidades e de se envolverem, de forma consensuada e ativa, na reparação dos danos (materiais, emocionais etc.) e na reintegração do ofensor. Com esse proceder, eles podem avançar para além das suas vulnerabilidades e se empoderarem para a solução de outros conflitos vindouros241. Estas são as características gerais da justiça restaurativa. Entretanto, para que seja reconhecido como verdadeiramente restaurativo, um programa desta natureza deve atender a determinados princípios, investigados a seguir. 5.1 Os princípios da justiça restaurativa

A Resolução nº 12/2002 da UNESCO (2002, nº 2) define programa de justiça restaurativa como “qualquer programa que usa um processo restaurador e que busque atingir resultados restaurativos”. Ainda segundo o citado documento, o “processo restaurativo é entendido como aquele em que a vítima e o ofensor — e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos afetados por um crime — podem participar ativa e conjuntamente na resolução de questões decorrentes do delito, geralmente com a ajuda de um facilitador”242. Em que pese a abrangência desses conceitos, há, entretanto, alguns valores mínimos que necessitam ser respeitados, mesmo que em diferentes graus e formas, para que se considere um procedimento como sendo restaurativo, independentemente da técnica envolvida ou da sua denominação243. São eles (ZEHR, 2005, p. 113): 1. foco maior nos danos causados do que nas regras violadas; 2. concentração na reparação, na prevenção de danos e na restauração da relação entre vítimas, ofensores e suas comunidades, tanto quanto possível; 3. envolvimento e capacitação da comunidade afetada para reconhecer a potencialidade de ocorrência de novas ofensas e saber como responder a elas; 4. foco em resultados positivos para as vítimas e para ofensores; 5. envolvimento ativo das partes durante o processo, com o fornecimento de oportunidades para o diálogo; 6. incentivo à colaboração e reintegração, em vez de coerção e isolamento; 7. respeito a todas as partes: vítima, agressor e funcionários de justiça; 8. igual preocupação com vítimas e ofensores, incentivando ambos à assunção de compromissos; 9. apoio aos ofensores, encorajando-os a compreender, a aceitar sua responsabilidade e a cumprir com as obrigações assumidas; 10 . reconhecer que, embora os compromissos assumidos possam ser bastante exigentes, eles devem ser alcançáveis, ou seja, não devem ser concebidos como sendo um mal para o ofensor.

O primeiro destes princípios (atenção maior aos danos causados do que à lei violada) sugere uma inversão no primado do “interesse público” (no caso, do Estado ou da sociedade) em favor dos interesses das pessoas envolvidas e da comunidade. Atualmente, o sistema de justiça é orientado pelo interesse estatal. Neste arranjo, o Estado é a vítima em perspectiva e a comunidade é abstratamente representada por ele. Os danos causados às vítimas não são o foco da intervenção, pois se sobressai a “dívida” do ofensor com o Estado a qual deve ser paga com a expiação da pena. Na seção 1.7, pode-se perceber o quanto é improdutivo esse sistema, com altos custos, sem reparação à vítima e sem proveito comunitário. Na seção supracitada, compreende-se que esta é

a razão por que a criminologia abolicionista radical prega a “reprivatização” do conflito244. Por outra aresta, este princípio desafia o monopólio estatal da jurisdição criminal em prol de um modelo de justiça criminal mais participativo que leve em conta, prioritariamente, o interesse das partes afetadas. Para a justiça restaurativa, portanto, o crime é fundamentalmente uma violação de pessoas e relações interpessoais. Ele não é um conceito estritamente jurídico ou um embate entre o indivíduo e o Estado, mas um conflito entre indivíduos e, em consequência, o foco do seu processo é a restauração. Tal construção deve contar ainda com a participação ativa das vítimas e dos membros da comunidade, para que estes também tenham sua confiança restaurada. O segundo preceito (relativo à reparação e restauração de prejuízos) não se limita ao ressarcimento civil e ao pedido de desculpas, em que pese a justiça restaurativa comportar reparações simbólicas, como o oferecimento de explicações, de prestações pessoais (de cunho não monetário, como o trabalho) em favor da vítima, de outras pessoas ou da comunidade, entre outras medidas. A esse respeito, observa García-Pablos de Molina (2012, p. 454): Não é um mero acordo formal reparatório ou indenizatório. Antes de tudo, exige uma comunicação interpessoal fecunda entre autor e vítima, a implicação séria e convencida de ambas no processo de negociação, uma positiva mudança de atitudes, fruto da confrontação direta e pessoal com o fato delitivo e suas consequências, assim como a livre aceitação de responsabilidade. Seus objetivos não são, pois, modestos.

O princípio da restauração de prejuízos diz respeito também à assistência e ao reestabelecimento de conexões entre as partes, quando for o caso. Sua relevância está no fato de que, em geral, o ofendido não recebe qualquer auxílio psicológico, social, jurídico ou econômico do Estado, o que gera nele frustração e ressentimento em relação ao aparato penal (GOMES PINTO, 2005, p. 26). Apenas recentemente, após a edição da Lei nº 11.690, de 2008, que reformou o Código de Processo Penal, há a possibilidade de o juiz, se entender necessário, encaminhar o ofendido para atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde (art. 201, §5º, do Código de Processo Penal). O envolvimento comunitário e a capacitação de seus membros para reconhecer o potencial de ocorrência de novas ofensas e saber como

responder a elas é o objeto do terceiro princípio. A resolução de conflitos pela própria comunidade contribui para a sua desjudicialização (retirando-os das instâncias oficiais, a chamada diversion), ao tempo em que colabora na desencarcerização, reduz o impacto estigmatizante do sistema criminal e auxilia para aplicação do direito penal como ultima ratio (consoante apregoa o minimalismo penal). Também, por meio do empenho comunitário, a justiça restaurativa pode contribuir para a prevenção de novos conflitos e evitar a reincidência, à medida que empodera as próprias partes e comunidade para resolverem conflitos futuros. Neste sentido, a opinião de García-Pablos de Molina (2012, p. 445): O sistema, em consequência, deposita uma firme confiança na capacidade e na autonomia dos indivíduos para resolver, pacífica e eficazmente, os conflitos em que possam se envolver. E implica, desde logo, uma decidida tendência a desjudicializá-los e desjurisdicializá-los, optando pela mediação flexível de instâncias não oficiais de caráter comunitário e por procedimentos informais sempre mais pacificadores.

Ressalve-se, contudo, que a justiça restaurativa não tem por objetivo imediato a diminuição da reincidência criminal. Todavia, à medida que o ofensor participa e compreende o processo restaurativo e a comunidade se prepara para identificar fatores potenciais de desencadeamento de novos crimes, favorece-se uma reinserção exitosa do ofensor e reúnem-se maiores chances de se evitar a sua reincidência245. O quarto princípio trata da priorização de resultados positivos para as vítimas e para ofensores. Ao invés de penas desarrazoadas e desproporcionais em uma organização carcerária degradante e criminógena ou mesmo de penas alternativas ineficazes (como o pagamento de cestas básicas), a justiça restaurativa privilegia o proveito à vitima e a reintegração do ofensor na assunção de obrigações no acordo restaurativo. O quinto princípio trata do envolvimento ativo das partes durante o processo por meio do diálogo. Vítima e ofensor são tratados como principais intervenientes em um programa de restauração do qual têm o controle do resultado, por se tratar de um processo decisório compartilhado. Diferentemente do sistema tradicional no qual se manifestam por meio dos seus advogados, aqui, a participação deles é direta e todos têm a oportunidade de contar suas histórias e expressar sua dor emocional e psicológica, como ressaltado na seção 3.3.5246. Tais aspectos são geralmente

ignorados quando se trata do arranjo ordinário de justiça em que os depoentes devem cingir-se às perguntas objetivamente formuladas, abstendose de declarações subjetivas, que “não interessam para o julgamento do fato”. Na verdade, as partes muitas vezes são consideradas como um entrave no caminho do processo, por levarem uma emoção indesejada para uma deliberação objetiva e jurídica dos fatos. O sexto princípio (incentivo à colaboração e reintegração, ao contrário dos vigentes coerção e isolamento) diz respeito à imagem mais humana e racional do ofensor feita pela justiça restaurativa, abandonando a concepção patológica do “delinquente”. No processo penal ordinário, o ofensor é mantido a distância, em uma realidade juridicamente reconstruída sobre os fatos, distante do seu contexto, que dispersa a realidade do dano e neutraliza a vítima. Este mesmo sistema comum foca na culpa do ofensor, no fato passado, pugnando pela aplicação de penas que podem gerar a sua estigmatização. A justiça restaurativa, por outro lado, concentra-se no reparo destas sequelas, mediante a assunção de responsabilidades e obrigações pelo ofensor, com o potencial de permitir sua restauração e inclusão, atuando numa perspectiva pró-futuro. Consequentemente, ele abre um espaço para o arrependimento e o perdão, enquanto que no sistema tradicional não há incentivo para tal247. O respeito aos participantes (vítimas, agressores e funcionários de justiça etc.) estatuído no sétimo princípio é fundamental para se criar um ambiente propício e seguro para o diálogo248. A comunicação respeitosa e sem ofensas é possibilitada mediante o uso de técnicas específicas, como a comunicação não-violenta (CNV) e o círculo de paz (comunicações compassivas). A igualdade entre vítimas e ofensores referida no princípio oito diz respeito tanto ao tratamento dispensado às vítimas (respeitoso, sentados no mesmo plano etc.) como às iguais oportunidades de elas se expressarem. Todos são incentivados à assunção de compromissos, pois, em muitos casos, o papel de vítima e de ofensor é impreciso249. O nono princípio trata do apoio aos ofensores, encorajando-os a compreender e aceitar sua responsabilidade e a cumprir com as obrigações assumidas. A justiça restaurativa possui um impacto positivo sobre os autores, confrontando-os com as consequências de seus atos e

responsabilidades, dando-lhes a oportunidade de reparar o dano causado às vítimas e de trabalhar na busca de uma solução para os seus problemas. Um requisito para a participação num encontro restaurativo, que também é condição para o cumprimento eficaz do acordo, é o reconhecimento voluntário do ofensor da prática do seu ato, com disposição para reparar suas consequências, o que nem sempre é uma tarefa fácil, pois demanda coragem. Estas expectativas podem lhes trazer desconforto, na medida em que devem desnudar-se e lidar com a vergonha e a culpa250. É a proposta da chamada “vergonha reintegradora”, de Braithwaite, por meio da qual o ofensor reconhece sua prática e se envergonha dela, procurando formas de expiá-la. Assim, ele pode se conciliar e se reintegrar à sua comunidade, em uma posição de respeitabilidade, conforme descrita na seção 5.3.2. Por esse motivo, não se pode afirmar que a justiça restaurativa seja tutelar ou “protetora” do ofensor. Ela não o considera um “inimigo temível”, tampouco um ser débil e necessitado de tutela. Ao contrário: ela exige-lhe responsabilização, assunção de seus atos e engajamento na reparação. O princípio dez (reconhecer que, embora os compromissos assumidos possam ser bastante exigentes, eles devem ser alcançáveis e não significam um mal para o ofensor) tem a ver com a natureza restaurativa e não retributiva deste novo modelo de justiça251. A observância destes princípios é necessária para distinguir as práticas conciliatórias que, apesar de pautadas pelo diálogo, não são restaurativas em si (como a transação penal, a conciliação e a negociação)252. Estes programas, embora apresentem resultados finais restauradores (como uma indenização ou prestação de serviço comunitário), não respeitam princípios restaurativos centrais e não contêm natureza reparadora em sua essência, como no caso da transação penal nos juizados especiais criminais. Por outro lado, nem todos os programas restaurativos aplicam estes princípios integralmente. Alguns não exigem a participação da vítima e outros não requerem a participação voluntária do ofensor. Eles também têm lugar em diferentes etapas do processo: alguns requisitam que o ofensor se declare culpado antes de prosseguir com o programa; outros ocorrem somente após a acusação formal ser estabelecida; outros após a condenação, mas antes da sentença transitar em julgado. Em uns, após a condenação, na fase de execução253.

Esta flexibilidade dos princípios restaurativos é temerária, pois afeta o nível de “restauratividade” do procedimento, fazendo com que alguns percam a característica de genuinamente restaurativos. 5.1.1 Um destaque para a voluntariedade Uma das principais características da justiça restaurativa é a sua voluntariedade. De acordo com a Resolução da UNESCO (2002, nº 7 e 8), o procedimento restaurativo só acontece mediante o consentimento livre e voluntário da vítima e do ofensor, podendo esse consentimento ser retirado a qualquer momento, durante o processo. A voluntariedade é tida como essencial para o sucesso do empreendimento254, entretanto, a sua aplicação tem dividido proponentes: há os que afirmam que um nível de coerção é aceitável se a justiça restaurativa trabalhar lado a lado com o sistema de justiça penal em vigor, e outros acreditam que, se o princípio não for totalmente respeitado, a prática não pode simplesmente ser chamada de restauradora. Há modelos, como no País de Gales, por exemplo, que compelem os ofensores a participarem de uma intervenção restaurativa, caso a vítima assim deseje, e vice-versa. Já se teve notícia, inclusive, de que vítimas foram pressionadas a aceitarem acordos restaurativos, para o atingimento de metas de “conciliação”. Trata-se, na verdade, de programas de natureza retributiva e punitiva que são simplesmente re-rotulados como iniciativas restaurativas, a fim de se beneficiarem da crescente popularidade do conceito (ZEHR; MIKA, 1998, p. 49). No Brasil, quando a mediação penal é feita no âmbito do Judiciário, o acordo restaurativo tem que ser aprovado por um juiz. Se o encontro se ultima sem um consenso, o mediador elabora um relatório, sem declinar os motivos do insucesso (por exemplo, a falta de voluntariedade, tudo para que se assegure a confidencialidade) e envia o processo ao Ministério Público para dar continuidade ao feito. Note-se que o fato de o autor ter concordado em participar do processo restaurativo não pode ser encarado como assunção de culpa ou em detrimento do princípio da não-culpabilidade. Se o acordo é cumprido, o Ministério Público requer ao juiz o arquivamento do procedimento. Entretanto, uma pergunta relevante acerca da voluntariedade é: Pode a justiça restaurativa ser considerada verdadeiramente voluntária se o ofensor

sabe que o processo penal pode ser suspenso ou extinto caso ele participe dela? A sustação do processo penal pode ser a razão genuína pela qual um ofensor aceita participar do procedimento restaurativo e não necessariamente a sua compunção pelo ato praticado. Esta foi uma das razões, por exemplo, de alteração do programa de Justiça restaurativa realizado na Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (FASE). Aos adolescentes internados naquela instituição, era oferecida a oportunidade de um encontro restaurativo com suas vítimas no decorrer do processo. Ao saberem dos benefícios concedidos aos optantes (saídas temporárias, saídas-teste etc.), a adesão dos adolescentes ao programa foi maciça, mas o mesmo comprometimento não se refletiu no número de acordos restaurativos efetivamente cumpridos255. Atualmente, a oportunidade de encontro restaurativo com as vítimas é oferecida após a saída do adolescente da internação. A resposta dos exinternos aos acordos têm sido mais satisfatórias, visto que, mesmo depois de liberados, não vão necessariamente para o meio aberto e permanecem vinculados ao processo, podendo sofrer regressão da medida256. Contudo, ainda no que tange à voluntariedade dos ofensores, a justiça restaurativa pode apresentar desvantagens. Embora os programas assegurem a participação voluntária, ofensor e vítimas podem se sentir pressionados a participar. Como resultado, os ofensores podem optar por não buscar assistência jurídica ou podem sentir que têm de admitir a culpa, mesmo quando acreditam ser inocentes. Para ser eficaz, a justiça restaurativa deve responder às preocupações sobre segurança pública, respeitando também os direitos do acusado a declarar que é inocente e de ter um julgamento justo. 5.2 Os atores no procedimento restaurativo A justiça criminal atual é um sistema projetado por advogados, para advogados, e o resultado é que vítimas e ofensores frequentemente são espectadores no processo. Incentiva-se o acusado a negar a culpa, mesmo quando responsável pelo ato. Exclui-se a parte lesada — as vítimas. Concentra-se mais na forma como a prova foi colhida do que sobre o que ela realmente significa. Na justiça restaurativa, por outro lado, todos aqueles que têm interesse na resolução de determinado conflito ou foram direta ou indiretamente

afetados por ele encontram espaço para diálogo e deliberação. Autoridades, facilitadores, membros comunitários, vizinhos, amigos, familiares, ofensores e ofendidos, todos têm a sua parcela de contribuição para a solução do conflito. São consideradas partes interessadas principais as mais afetadas pela transgressão, geralmente vítimas e ofensores. No entanto, os que têm uma relação emocional significativa com elas (pais, esposos, irmãos, amigos, professores ou colegas), também são considerados diretamente afetados e têm participação ativa no processo, com a consideração de suas necessidades específicas. As partes interessadas secundárias (indiretas) são os vizinhos, autoridades públicas, membros da comunidade religiosa, educacional ou de empresas das quais os principais afetados participam. Elas também têm a participação estimulada e delas se espera o apoio às partes neste processo de busca de uma solução restaurativa e do seu cumprimento (McCOLD; WACHTEL, 2003, p. 1). 5.2.1 Facilitadores O modelo restaurativo demanda uma reformulação do papel tradicional do mediador, requerendo que eles abandonem uma postura voltada para elaboração de acordos, para assumir outra que priorize o diálogo e a ajuda recíproca. Envolve, ainda, o planejamento do encontro restaurativo em si e dos pré-encontros, em sessões separadas com cada uma das partes e seus apoiadores257. O objetivo do pré-encontro é preparar vítimas e ofensores, a fim de que não experimentem frustração ou decepção caso a outra parte se mostre desinteressada ou não queira participar de um programa de restauração258. Há ofensores, por exemplo, que não estão dispostos a aceitar a responsabilidade por suas ações ou a demostrar remorso. Isso poderia ser desolador para vítimas que esperam finalmente receber deles respostas para suas perguntas sobre o crime. O facilitador tem a responsabilidade de criar e manter um ambiente respeitoso e seguro para o encontro, mediante a utilização de um estilo indireto de mediação que propicie um diálogo profundo entre os participantes. Para tanto, é fundamental relacionamento imparcial com as partes, construção de uma relação de entendimento e de confiança com elas, sensibilidade para a identificação de possíveis relações de força e de poder em cada um dos lados e reconhecimento e utilização do poder do silêncio quando necessário (UMBREIT, 2007, p. 1)259.

É primordial que o facilitador esclareça às partes sobre o procedimento, suas etapas e características, de forma a ajudá-los a compreender e a utilizar a linguagem da justiça restaurativa. Com essa iniciativa, ele inicia o estabelecimento de um vínculo de confiança com elas e a participação delas ocorrerá de maneira consciente, livre e visando a um bom resultado para todos. Para que isso aconteça, é imprescindível que os participantes compreendam a filosofia básica da justiça restaurativa. Os participantes que conservam uma mentalidade punitiva ou retributiva geralmente apresentam dificuldades durante o processo (ora por achá-lo brando para o ofensor, ora por receio das consequências de se reconhecer a responsabilidade pelo fato). Caso o esclarecimento não seja feito a contento, eles podem ver a justiça restaurativa apenas como uma punição adicional ou como uma forma de evitá-la. Caso uma das partes apreenda a justiça restaurativa apenas como um benefício para o outro, isso dificultará o processo porque, na verdade, a justiça restaurativa não tem nenhum lado: trata-se de restauração e cura das pessoas. Ainda a respeito do facilitador, o cuidado com a neutralidade, a imparcialidade e a compreensão dos princípios restaurativos inicia-se com ele260. Como se está acostumado a uma cultura jurídica de litigiosidade e julgamento na qual os operadores da justiça criminal estão habituados a “guerrear” contra os ofensores, há de se cuidar para que o facilitador não se torne arbitrário ou não resolva, por si mesmo, “julgar” os casos. É importante a lembrança do adágio “o mediador intervém, mas não decide nem resolve”. Na prática, o sucesso do mediador está na sua capacidade de escutar atentamente e angariar informações para compreender as necessidades de cada parte conflitante, para, em seguida, debater com elas uma saída para o conflito que realmente atenda a estas necessidades. Sobre o papel do facilitador no círculo, a opinião de Kay Pranis261 (2011, p. 17): O facilitador auxilia o grupo a criar e manter um espaço coletivo no qual cada participante possa se sentir seguro para falar honesta e abertamente sem desrespeitar ninguém. O facilitador monitora a qualidade do espaço coletivo e estimula as reflexões do grupo através de perguntas ou tópicos sugeridos. O facilitador não controla as questões levantadas pelo grupo nem tenta direcionar o grupo para um determinado resultado. Sua função é iniciar um espaço que seja respeitoso e seguro para envolver os participantes no compartilhamento da responsabilidade pelo espaço e por seu

trabalho coletivo. O facilitador não atua como fiscal das diretrizes do grupo. A responsabilidade por reportar-se a problemas com as diretrizes pertence ao círculo todo. Não é papel do facilitador consertar o problema que o círculo está reportando. O facilitador está numa relação de zelar pelo bem-estar de cada membro do círculo e é um participante.262

Em países como o Canadá, Estados Unidos e Reino Unido, os facilitadores são voluntários. Nestes países, a justiça restaurativa tem atraído o especial interesse de formuladores de políticas que trabalham no setor voluntário e no comunitário. Em algumas províncias da Argentina, são remunerados pelo Judiciário local263. Há países que aceitam e valorizam a presença de mediadores de diversas áreas do conhecimento (advogados, psicólogos, assistentes sociais etc.) e outros que admitem apenas advogados com experiência (geralmente, três anos de atuação), residentes no local e com formação específica em mediação264. Observe-se que, para ser facilitador, não se exige uma formação específica (aliás, é até desejável um conhecimento multidisciplinar), entretanto, é premente uma reciclagem contínua sobre as técnicas para a intervenção restauradora265. Esta é uma das preocupações dos desenvolvedores de programas da justiça restaurativa, devido ao rápido crescimento destes — afinal, um facilitador que não esteja devidamente treinado pode causar danos significativos aos envolvidos. No Brasil, informa o Ministério da Justiça (BRASIL 2005, p. 14), predominam as equipes multidisciplinares de facilitadores remuneradas que atuam de maneira profissional. Quanto aos voluntários, em geral estudantes de Direito, neste grupo não é investido qualquer preparo prévio ou capacitação. A sua qualificação para este trabalho torna-se, portanto, duvidosa se levarmos em conta que o currículo padrão das faculdades de Direito não contempla disciplinas específicas sobre solução alternativa de conflitos (BRASIL, 2005, p. 14). No que tange à independência e imparcialidade do facilitador, interessante citar o artigo 10 da lei de mediação penal portuguesa que exige que o mediador tenha imparcialidade, independência, confidencialidade e diligência. Segundo a lei, o mediador que, por razões legais, éticas ou deontológicas, não tenha ou deixe de ter assegurada a sua independência, imparcialidade e isenção deve recusar ou interromper o processo de mediação e informar disso o Ministério Público, que procede à sua substituição266 (PORTUGAL, 2007, p. 1).

A lei portuguesa ainda veda ao facilitador intervir (principalmente como testemunha), em quaisquer procedimentos subsequentes à mediação, como o processo judicial ou o acompanhamento psicoterapêutico, quer se tenha aí obtido ou não um acordo e ainda que tais procedimentos estejam apenas indiretamente relacionados com a mediação realizada. A lista de mediadores penais em Portugal é organizada pelo Ministério da Justiça, que os remunera (arts. 12 e 13 da Lei nº 21/2007) (PORTUGAL, 2007, p. 1). Por fim, para o êxito dos programas de justiça restaurativa, é necessário infraestrutura adequada e aparelhamento, com meios e pessoal suficientes. Afinal, a consecução do acordo reparatório exige tempo e esforços, contatos exploratórios prévios, aproximação, diálogo e comunicação, além da habilidade dos facilitadores (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2000, p. 454). 5.2.2 O advogado: aliado ou opositor? A assistência de um advogado é sempre garantida às partes no decorrer de todas as fases do procedimento restaurativo267. Muitas vezes, eles apresentam uma desconfiança inicial do método (acerca da sua eficácia, da imparcialidade etc.), talvez por estarem acostumados a uma cultura de litígio. O receio dos patronos pode se dever ao fato de que, num encontro restaurativo, se perde o controle das declarações e provas que são apresentadas pelas “partes e testemunhas” (ainda que nada disso possa ser usado perante um juiz ao tribunal, dado o princípio da confidencialidade da justiça restaurativa). Leoberto Brancher (2007, p. 6) relata que uma das dificuldades encontradas no projeto de justiça restaurativa gaúcho se refere ao campo da cultura das práticas sociais e institucionais. Identifica, sobretudo, “resistências ao novo nas diferentes instâncias socioinstitucionais que se expressam no percurso de implementação do projeto”. Menciona Mark Umbreit (2007, p. 1) que, nos Estados Unidos, a American Bar Association tem desempenhado um importante papel de liderança na área da mediação civil em tribunais. Somente em 1994, após alguns anos de ceticismo e de pouco interesse na mediação criminal, é que a associação passou a endossar práticas restaurativas e a recomendar o seu desenvolvimento nas cortes americanas. Ela conta com um comitê específico de resolução alternativa de litígios e justiça restaurativa que, além de

promover a mediação vítima-ofensor, orienta os advogados como proceder em tais instâncias268. Órgãos de classe como a Ordem dos Advogados do Brasil, a American Bar Association, escolas como a da Magistratura, do Ministério Público, Advocacia Pública etc. exercem um relevante papel na disseminação da educação por uma cultura de paz no meio acadêmico e de profissionalização. Várias seccionais da OAB em estados brasileiros já contam com “Comissões de Mediação” 269 em sua estrutura organizacional ou patrocinam iniciativas como a “Casa de Mediação” 270, que tem como “objetivo oferecer, com a presença dos advogados, atendimento gratuito para solução de conflitos às pessoas em situação de vulnerabilidade social” (OAB — RS, 2013, p. 1). Sobre o importante papel do advogado na transformação desta cultura, a lição de Boaventura Sousa Santos (1996, p. 50): É possível que o advogado se transforme, ele próprio, num mecanismo de resolução do litígio, buscando, por exemplo, o acordo entre as partes. [...] E logo aí pode ver-se como a transformação cria novas alternativas de resolução, algumas das quais com um forte componente extra-judicial.

5.2.3 Ofensores — uma nova visão do “inimigo” O sistema de justiça criminal — constituído pelas leis penais, pelas agências e pelas prisões — é quase que inteiramente voltado ao ofensor, já que depois da prática ofensiva, preocupa-se precipuamente em apurar sua culpa e puni-lo. Entretanto, o foco é direcionado ao seu passado e ao seu comportamento criminoso e desconsidera aspectos outros, como suas necessidades271. Sob o codinome de “sujeito processual”, o ofensor é despersonalizado e transformado, na verdade, em “objeto do processo”. A ele o sistema limita reconhecer importantes direitos, porém tratando-o como sujeito processual e não como pessoa. Rogério Schietti critica este tipo de “despersonalização” do ofensor, escudando a necessidade de sua escuta ativa, ainda que isso leve mais tempo que o de costume: Sem dúvida alguma, falar de democracia no processo penal reclama a elevação do acusado à condição de protagonista da atividade processual; sua “personalização” é condição para que, tratado como um sujeito processual com voz ativa perante o órgão julgador (Bidart, 1996: 25), participe da produção de seu caso (Hassemer, 1984: 173). O acusado é, portanto, sempre um “sujeito” do processo penal, e não mero objeto de

uma “inquisição” oficial. Ser sujeito e não objeto do processo significa assegurar ao acusado “posição jurídica que lhe permita uma participação constitutiva na declaração do direito do caso concreto, através da concessão de autônomos direitos processuais, legalmente definidos, que hão de ser respeitados por todos os intervenientes no processo penal” (Figueiredo DIAS, 1984: 428). [...] Sob tal perspectiva, é impositiva a adoção de uma postura judicial em que os direitos individuais do acusado saiam do plano formal e se realizem na rrárica judiciária, ainda que isso traga maiores custos e consuma um tempo maior para a realização do juízo (CRUZ, 2013, p. 51).

A restauração dos laços com a sua comunidade (reintegração) e a reparação do dano causado são relegados a um segundo plano, quando não completamente negligenciados. Isso porque a lógica vigente, de defesa social, vê no ofensor um inimigo e como tal deve ser tratado, portanto, excluído do seio social272. O que faz o sistema penal ser de forma predominante é colocar o apenado contra a “ordem social” na qual pretende reintroduzi-lo, o que se afigura um contrassenso. O efeito produzido é contrário ao proclamado no discurso oficial, que diz favorecer a reabilitação do condenado (HULSMAN, 1993, p. 72). Diferentemente deste arranjo, a justiça restaurativa é sensível às suas necessidades, assim como às das vítimas. Com o intuito de reverter o quadro apresentado, a justiça restaurativa apresenta um potencial inclusivo que possibilita a aceitação e a incorporação do ofensor na vida comunitária, por meio do cumprimento dos compromissos acordados. Estes são, assim, úteis às vítimas, à comunidade e ao ofensor. Esta medida é salutar, pois colabora para o reconhecimento espontâneo da responsabilidade do ofensor, para o seu empenho pessoal em reparar a ofensa, para o consequente aumento da sua autoestima e para a recuperação da sua autoconfiança, ocasionalmente abaladas pela prática ofensiva (UMBREIT, 2007, p. 1). Percebe-se, portanto, que a justiça restaurativa é muito exigente para com os ofensores, na medida em que lhes requer a assunção de uma responsabilidade verdadeiramente pessoal sobre o que fizeram. Isto significa estarem dispostos a enfrentar e a sentir o senso de responsabilidade por suas ações e comportamentos e remorso pelos efeitos dessas ações sobre as vítimas ou sobreviventes. Significa ter uma compreensão da profundidade da dor, da tristeza e do sofrimento que causaram. Por tal razão, justiça restaurativa não deve ser compreendida como sinônimo de leniência para

com o ofensor. Ao contrário: ela implica alto grau de responsabilização deste, engajamento das partes na busca de uma solução para o conflito e apoio para alcançarem as metas estabelecidas por elas no acordo restaurativo273. Neste sentido, a opinião de García-Pablos de Molina (2012, p. 448): A justiça “restaurativa” é, paradoxalmente, mais exigente com o infrator, pois não se contenta com que este cumpra o castigo merecido, nem sequer com que repare o mal que causou a sua vítima e à comunidade. Pretende, sobretudo, que ele se envolva ativa e responsavelmente na busca negociada de uma solução válida. Que assuma a realidade do dano causado e sua própria responsabilidade. Que se comprometa na solução do conflito, sem relatar um (dano) ou outra (responsabilidade) com perniciosas técnicas de neutralização ou autojustificação.

De um diálogo mediado com as vítimas, o ofensor também pode extrair proveitos, como: a descoberta de emoções e sentimentos de empatia; o conhecimento dos impactos de seus atos; o aumento do autoconhecimento; o despontar para o mundo fora da prisão; sentir-se bem por ter tentado um novo procedimento e, eventualmente, alcançar a paz consigo mesmo, sabendo que as vítimas foram ajudadas (UMBREIT, 2007, p. 1)274. Ao priorizar a restauração dos relacionamentos, a proposta restaurativista sugere não só nova prática para a justiça, mas, principalmente, outorga-lhe uma missão pacificadora. Neste panorama, o malefício gerado pelo crime não é respondido com a segregação e o isolamento do ofensor (o que corresponderia a uma nova forma de violência, representada pela pena), mas com a sua reintegração na sociedade, por meio do diálogo com os demais afetados e pelo cumprimento dos compromissos assumidos. À reintegração do ofensor, deve ser dada maior atenção, especialmente se considerarmos um sistema em que a pena de prisão é por tempo determinado e que o ofensor voltará ao convívio comunitário. O processo, portanto, não se finda no cumprimento da pena, mas com o retorno do ofensor ao meio social. 5.2.3.1 Uma observação necessária: a desumanização do ofensor e a mídia Outrora afirmou Foucault (2008, p. 175) que a justiça penal é, em geral, um ritual de exclusão, uma forma de degradação simbólica que retira o ofensor de sua participação na comunidade moral A percepção do professor

do Collège de France permanece bastante atual, especialmente se considerarmos que o sistema vigente tende a desumanizar o ofensor, tratando-o como um diferente e desviado o qual deve manter-se afastado e segregado da sociedade. Destaque neste processo exerce a mídia, que ajuda a difundir essa imagem, por vezes beirando a sua “demonização”. Em geral, o ofensor é mostrado como uma pessoa transtornada, vítima de uma infância difícil ou de uma vida problemática, constituindo-se uma verdadeira “ameaça social” (PRADO, 2006, p. 60)275. Como se sabe, a criminalidade é um fenômeno socialmente seletivo, recaindo sobre os menos favorecidos econômica ou socialmente que compõem a clientela prevalecente das prisões. A opinião pública retroalimenta esta seleção quando associa a pobreza à criminalidade (“mendigos perigosos”, “pobres maus” etc.). A imprensa explora, dramatiza e reforça esses estereótipos, incutindo um suposto temor do ofensor276. Com base nesses códigos, ela julga o crime, condena ou absolve o ofensor e devolve-o aos seus espectadores, juntamente com os estigmas produzidos277 (CARVALHO JR, 2009, p. 5). O medo que a população adquire do crime e dos “criminosos” torna-se, destarte, um sério obstáculo para o desenvolvimento de uma sociedade na qual as pessoas conectam-se umas às outras e podem trabalhar em conjunto para um objetivo comum, consoante pressupõe a proposta restaurativa. Por outro lado, esta postura da mídia favorece a imputação da responsabilidade exclusivamente ao ofensor, acompanhada da reivindicação de medidas punitivas mais severas contra ele ao tempo em que limita a análise racional dos fatos e dificulta a busca das causas da violência num contexto mais ampliado (CARVALHO JR, 2009, p. 5). A reincidência penal, por exemplo, não é associada à ineficiência das prisões, mas a uma suposta incorrigibilidade do condenado (PASSOS; PENSO, 2009, p. 22). “É como culpar o enfermo pelo fato de o remédio não lhe fazer efeito”, dizem as autoras. Essa forma simplificada de pensar, maniqueísta, nasce da intolerância ou do desconhecimento da verdade do outro. É o chamado senso comum penal, que, alimentado pela mídia e pela ideologia dogmática do direito penal, permanece restrito ao diagnóstico simplista de causa e efeito e com uma percepção restrita sobre a pena, a criminalidade e o ofensor. Ele banaliza a discussão da violência mediante a inculpação exclusiva do ofensor, exigindo criminalização de mais condutas,

o recrudescimento de penas, a redução da maioridade penal, o encarceramento, a construção de mais prisões sem descortinar os reais motivos e promover uma reflexão crítica a respeito (DUARTE, 2012, p. 7)278. Tal dinâmica provavelmente provoca ressonância psicológica, por exemplo, nos mais de 188 milhões de espectadores da televisão brasileira279. Ademais, não há barreiras para o acesso televisivo que equaliza letrados, semiletrados e iletrados em uma só categoria: a de sua audiência (CARVALHO JR, 2009, p. 5). Já em países mais desenvolvidos, é provável que a ingerência da televisão seja mitigada, visto que a família, a escola e a imprensa escrita também intervêm no processo informacional em maior medida do que no Brasil280. Entretanto, os países mais desenvolvidos contam com outros meios de transmissão sem cortes dos valores da violência seletiva, como a literatura, os jogos, a imprensa, a internet, a imprensa escrita (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 33). Não se trata de responsabilizar a mídia pela ocorrência dos fatos criminosos que reproduz ou por inferir que suas representações e imagens sejam infundadas. É certo que, sem o evento criminoso, a mídia não teria estímulo para a sua atuação ou mesmo não suscitaria audiência. Ocorre, não obstante, uma discrepância entre a criminalidade real e a noticiada. São selecionados como notícia fatos raros, esporádicos e particularmente violentos (genocídios, estupros, latrocínios, tiroteio em escolas) enquanto que os fatos mais corriqueiros são pospostos (homicídios simples, furtos, porte de armas, porte de drogas para uso próprio, tráfico de drogas, roubo, estelionato)281 em atendimento à regra de ouro do jornalismo comercial: crime, sexo e esporte (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 33). Há, portanto, uma seletividade e hierarquização da informação que se afigura mais dramática que factual. Percebe-se um favoritivismo pela divulgação de crimes mais violentos em detrimento dos mais triviais (como os patrimoniais) que são sub-representados. Sobre este aspecto, vale ressaltar a constatação de Maria Lúcia Karam (2004, p. 78): Amplamente divulgada a conveniente ideia de que as maiores ameaças à sobrevivência provêm de ações individualizadas de estupradores, sequestradores, assaltantes ou homicidas, fortalecida a crença em um suposto aumento descontrolado do número de crimes e em um imaginado crescimento do perigo por eles provocados, estimulados os sentimentos de medo e insegurança, criado o fantasma da criminalidade —

“organizada” ou “desorganizada” —, tem-se o campo propício para a penetração da publicidade, tão enganosa quanto intensa, que faz crer que, com a imposição de uma pena a individualizados responsáveis por identificados crimes, toda a violência, todos os perigos e ameaças, todos os problemas estariam solucionados, com a recuperação da paz, da tranquilidade e da segurança, supostamente perdidas.

Portanto, o que a imprensa realiza, em última instância, é uma seleção do que é noticiado, bem como a sua frequência. Ou seja, ainda que a mídia não tenha o poder de determinar “como” as pessoas devem pensar, ela certamente intervém sobre “o que” as pessoas devem pensar (CARVALHO JR, 2009, p. 5). O uso exacerbado de recursos como a transmissão acelerada de informações faz crer que a criminalidade é ainda maior do que a retratada, o que acarreta percepção de insegurança na população. Este proceder desfoca a atenção do público do problema da criminalidade em si, direcionando-a para imagens construídas sobre ela. Trata-se de um recurso que tem sua tônica na desinformação e na exacerbação da carga emocional, classificado por Hulsman como um “dialeto penal”. Esta “carga emocional” permite uma simplista identificação das ideias de violência e insegurança da criminalidade, imagem bastante conveniente para se incutir na comunidade que as maiores ameaças à sobrevivência provêm de ações individualizadas de estupradores, sequestradores, assaltantes ou homicidas (KARAM, 2004, p.75)282. Marcuse (1973, p. 86) observa que não só o noticiário, mas também a publicidade têm um efeito hipnótico sobre o seu destinatário: a sintaxe é abreviada e condensada, tornando a linguagem mais direta e assertiva. Há um uso constante de expressões como “você” e “seu” e uma repetição incessante de imagens, de forma a incuti-las na mente do telespectador. Este estilo de retórica cria o cidadão “unidimensional”, incapaz de protesto ou recusa, no dizer de Marcuse. A esse respeito, relatou Mills (1968, p. 336) que, quanto mais relaxadas as mentes e mais cansados os corpos, mais as pessoas se expõe à mídia. Aqui, seus personagens convertem-se em alvos fáceis de identificação, em especial com respostas simplórias para os problemas estereotipados. Tais artifícios, desacompanhados de uma discussão mais profunda sobre a origem da violência e das proposições de reformas, prejudicam não só uma reflexão

racional sobre a violência, mas também o seu combate efetivo (PRADO, 2006, p. 61). O que era para ser mais uma esfera pública na qual os indivíduos pudessem buscar informações — para se usar a linguagem habermasiana — tornou-se um mero acesso a temas e discursos previamente eleitos, limitados e validados pelas corporações de mídia e seus patrocinadores283. Não há, portanto, oportunidade para o discurso racional para o debate e para a avalição crítica da informação, de modo a transformá-la em conhecimento e compreensão. Neste âmbito, os argumentos são traduzidos em símbolos, de modo que não se pode respondê-los com argumentos, mas apenas se identificar com eles284. O gerenciamento de imagens se coaduna com um estilo de discurso que oferece pouca chance de diálogo. Tal proceder gerencia pontos de vista, promove o “teatro político” e transmite “opiniões abalizadas” (Habermas, 1984, p. 245). A interconexão entre uma esfera de debate público e a participação individual torna-se fraturada e transmutada em um reino de informação política e de espetáculo no qual os cidadãos-consumidores ingerem e absorvem passivamente o entretenimento e a informação (Habermas, 1984, p. 206). É preciso estar atento, pois a televisão, o rádio e a própria internet285 têm tanto o potencial para revigorar a democracia e aumentar a difusão de ideias críticas e progressistas tanto como criar novas possibilidades de manipulação, de controle social, de reforço de posições e de rótulos estigmatizantes. Por exemplo, o criminólogo americano Daniel Glaser (1956, p. 1), teórico da teoria da identificação diferencial, em sua obra “Criminality Theories and Behavioral Images”, sublinhou a importância que os meios de comunicação de massa podem exercer na conduta do indivíduo, já que a aprendizagem da conduta delitiva ocorreria pela identificação: um indivíduo inicia ou segue uma carreira criminosa ao se identificar com outras pessoas, reais ou fictícias, mediante uma relação positiva com os papéis representados pelos desviados como reação às forças que se opõem à criminalidade. Sob este ponto de vista, sobressaem a responsabilidade e o poder de influência da mídia na forma como divulgar os fatos. De todo o exposto, avulta a importância da iniciativa restaurativa de encontro entre ofensor e vítima. O face a face levinasiano oportuniza o desfazimento de preconceitos estereotipados, muitas vezes incentivados pela

mídia, e a percepção da humanidade um do outro, talvez pela primeira vez. Os ofensores podem perceber como as vítimas se sentem e isso torna possível uma identificação com elas. Por outro lado, o encontro também os auxilia a visualizar suas responsabilidades como membros da comunidade (UMBREIT, 2007, p. 1). Do ponto de vista das vítimas, quando elas conseguem compreender por que um crime ocorreu, conhecer detalhes do delito ou mesmo a realidade do seu ofensor, elas podem ir além da imagem estereotipada de um ofensor (“louco, cruel ou drogado”) difundida pela imprensa. Esta pode ser a chave para uma experiência de empatia entre eles e de encerramento de um ciclo de dor e de questões não-resolvidas. Esse encontro pode tornar o diálogo muito mais útil e restaurador para todos os participantes, mais do que qualquer aconselhamento ou programa televisivo poderia alcançar286. 5.2.3.2 O caso da vítima de estupro que encarou seu ofensor Vale aqui mencionar o interessante relato de Diana Owen, 21 anos, sobre seu encontro com Michael Money, pessoa que dela abusou sexualmente na infância.287 O encontro aconteceu na prisão em que ele cumpre pena e foi conduzido e filmado pela equipe de Justiça restaurativa e de Mediação Vítima-Ofensor do Estado do Texas, mediante consentimento de todos. Condenado a 20 anos de prisão pelo estupro de outra criança, o ofensor estava “longe do olhar de Diana, mas não de sua mente”, relata a ofendida. Quando decidiu “entregar toda a sua raiva para a pessoa certa”, Diana sentou-se com seu abusador e disse-lhe sem rodeios, como o crime a prejudicou e o que ele deveria fazer para melhorar. Segundo a vítima, “as crianças devem ser alimentadas e protegidas e não usadas para satisfazer fantasias sexuais, a custa de sua inocência”. Ela narrou que sofreu doze anos de insônia, pânico e ansiedade, acordando com pesadelos nos quais o ofensor cumpria suas ameaças de morte caso ela contasse à mãe sobre os abusos. Ora imaginava que o ofensor tentava matá-la durante o sono, apunhalando-a ou sufocando-a com o travesseiro, ora que ele assassinava toda a sua família apesar de ela tentar convencê-lo a não matar seus pais. Algumas vezes, via-se tentando escapar do porta-malas de seu carro ou fugindo pela garagem etc. Relatou, também, que, durante a adolescência, não conseguia relacionar-se mais intimamente com outros rapazes, pois a memória de tais fatos a impedia, mesmo com auxílio de terapia psicológica. Encerrava seus relacionamentos sempre com o argumento de que “se você

realmente me ama, você não gostaria de fazer isso comigo”, referindo-se à intimidade sexual. Diana declarou a Michael que nunca seria uma boa esposa por causa dele. Pediu que ele pensasse sobre isso. Para os que consideram que justiça restaurativa tem a ver necessariamente com o perdão, Diana afirma que gostaria de ser o tipo de pessoa que diria a Michael “eu te perdoo”, mas disse-lhe que isso não seria possível288. A justiça restaurativa parece estar mais relacionada a um processo de cura. Esta conclusão ampara-se no fato de que apenas o encontro mediado com o ofensor ofereceu a Diana algum alívio considerável. Ainda assim, informa que continua se tratando de um problema persistente, a insônia. Por outro lado, registrou que a reunião transformou sua vida, livrando-a da raiva cega e iniciando um processo de cura. Desde então, a garçonete de Austin, Texas, trabalha como voluntária ajudando outras vítimas de crimes sexuais. Ela relata estar mais feliz com sua vida amorosa. Após uma série de rompimentos causados por seu trauma, ela conseguiu romper um relacionamento recente, de forma amigável, simplesmente “porque não deu certo”. Isso, diz ela, é um progresso.289 5.2.4 Vítimas Para o direito, vítima é a pessoa que sofre uma lesão (ou ameaça de lesão) a um direito legalmente protegido ou, mais especificamente, a pessoa que sofre a consequência da violação de uma norma penal (NORDENSTAL, 2008, p. 30). A ONU (1985, n. 1) define vítimas do delito como “as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento emocional, perda financeira ou menoscabo substancial dos seus direitos fundamentais, por meio de atos ou omissões que violem as leis penais dos Estados-Membros, incluindo as que proíbem o abuso de poder”290. Antonio Beristain (2000, p. 97) ressalta que a vítima não se confunde com o sujeito passivo do delito. Embora uma pessoa sofra a ofensa criminosa, várias outras podem ser afetadas por esse fato. Assim, no conceito das vítimas, há que se incluir não somente os sujeitos passivos do delito, mas todos os tocados por ele (familiares, vizinhos, colegas de trabalho ou estudo, instituições, etc.). O professor espanhol lembra ainda que o crime é uma forma de interação social que brota de específicos contextos sociais. Neles, por outro lado, a

distinção entre ofensores e vítimas nem sempre é precisa: As pessoas vítimas e as pessoas delinquentes não são coletivos distintos e que se excluam. Em certo grau, são homogêneas e se encobrem mutuamente. A pessoa vítima de ontem com frequência é a delinquente de amanhã, e a delinquente de hoje é a vítima de amanhã. Os papéis de vitimador e de vitimado não são fixos, nem estáticos, nem permanentes, mas sim dinâmicos, mutáveis, intercambiáveis. O mesmo indivíduo pode, sucessivamente ou simultaneamente, passar de um papel a outro. [...] O laço que une a vítima ao delinquente, pois são dois lados da mesma moeda (BERISTAIN, 2000, p. 102).

Sobre os direitos das vítimas, afirma Beristain (2000, p. 188): “Reconhecem-se também seus deveres, suas possíveis responsabilidades e coculpabilidades. Busca-se que o ofensor assuma suas obrigações, mas também se reconhecem seus direitos, alguns em relação à vítima”. 5.2.5 A relação entre ofensor e vítima Neste sentido, Hans Von Hentig, na sua obra publicada em 1948 “The criminal & his victim: studies in the sociobiology of crime” elaborou uma análise da relação do agressor com a vítima, à qual Benjamin Mendelsohn chamou posteriormente de “penal couple” (ou “dupla penal”). Esta associação entre vítimas e ofensor interferiria no fator vitimizador, tornando as vítimas mais ou menos vulneráveis ao sofrimento de crimes. Segundo Hilda Marchiori291, citada por Beristain (2000, p. 99), o vínculo entre o ofensor e suas vítimas pode ser dividido em três grupos: • intrafamiliar (por exemplo, delitos cometidos contra menores de idade, que podem futuramente repetir a conduta danosa contra outras vítimas; o homicídio “passional”; e os relacionados ao uso abusivo de álcool ou outras drogas); • casos em que vítimas e vitimador são conhecidos, mas não são familiares (derivados da aproximação profissional, domiciliária etc, que podem desencadear delitos de natureza sexual, conflitos de vizinhança ou outros motivados pela vingança, por exemplo); • grupo composto por aqueles que não se conhecem pessoalmente (podendo ou não o autor do delito ter notícias prévias de sobre a profissão das vítimas, seus costumes ou conhecimento do lugar em que habita, como nos delitos de roubo, lesões etc.). Acrescente-se a este grupo os casos em que não há qualquer elo entre ofensor e vítima, como na hipótese em que esta fosse alvejada por um desconhecido, que dispara a esmo.

A justiça restaurativa pode ser especialmente útil para reconciliar os laços sociais desfeitos pelo delito entre vítimas e autores do primeiro e segundo grupo. São relações de cunho duradouro (vínculo familiar, de vizinhança etc.), as quais são difíceis de interromper ou finalizar, ou sua cessação acarretaria custos importantes para os seus intervenientes. Neste caso, é interessante que tenham a oportunidade de conversarem sobre o delito e fixarem novos termos para a convivência social futura pacífica292.

No caso de autores e vítimas do terceiro grupo identificado por Marchiori, em que eles são desconhecidos, a justiça restaurativa também se revela útil para que possam realizar perguntas e obter respostas sobre o crime, a fim de tratarem o padecimento passado e seguirem em frente, prevenindo-se de novas ocorrências. 5.2.6 Predisposição vitimária e níveis de vitimização Os estudos de Von Hentig (WOLHUTER et al., 2009, p. 14) concluíram que há variáveis psicológicas ou sociais que causam uma predisposição no indivíduo para sofrer vitimização, seja provocando ou incitando uma situação que conduza ao crime. O vitimologista Ezzat Abdel Fattah293 identificou três diferentes tipos de predisposições específicas nas vítimas de crime: as biopsicológicas (idade, sexo, raça, estado físico etc.), as sociais (condições econômicas, trabalho e lazer) e as psicológicas (desvios sexuais, negligência, imprudência, extrema confiança em si mesmo, traços do caráter individuais etc.) (BERISTAIN, 2000, p. 98). A justiça restaurativa é adequada para tratar a disposição vitimária, pois permite conhecer os motivos do crime e, a partir daí, elaborar formas de prevenção de novos episódios. Ainda com relação às vítimas, os efeitos do delito sobre elas podem se dar em três níveis, conforme o momento em que sejam perpetrados. Neste casso, fala-se em vitimização primária, para se referir à diretamente decorrente do crime; secundária, a que se origina das respostas formais e informais que recebem as vítimas e a terciária, a que procede, principalmente, da conduta posterior das vítimas294. Os danos da vitimização primária podem ser de ordem material (econômico ou financeiro, como perda de bens, despesas com medicamentos, consultas médicas, cirurgias, tratamentos etc.), física (taquicardia, sudorese, espasmos musculares, náuseas, tonturas, dor de cabeça, perturbações do sono, bloqueio do pensamento, dificuldade de concentração, ideias hipocondríacas, problemas sexuais etc.), psicológica (como situação de “alarme”, desespero, hiperemotividade, irritabilidade, hipervigilância, ansiedade, medo, sensação de abandono, humilhação, depressão, raiva, sensação de culpa, reexperiência traumática com “flashbacks” e pesadelos etc,) e social (como a esquiva e isolamento social)295.

Beristain (2000, p. 105) relata que, no primeiro momento, ao descobrir o delito, predominam, nas vítimas, o aborrecimento e o choque diante da situação. Em seguida, estes sentimentos se transformam em desgosto ou ansiedade, e, progressivamente, há uma reorganização das ideias e sentimentos até que se acalmam296. Nordenstal (2008, p. 32) lembra que nem todas as pessoas sofrem as mesmas consequências do delito, bem como as sofrem em diferentes graus de padecimento. Para a avaliação dele, deve-se levar em conta a natureza da infração, a personalidade da vítima, a relação vítima-ofensor, o grau de participação da vítima no crime, os recursos próprios da rede comunitária com que conta etc. A vitimização secundária se refere ao sofrimento das vítimas e testemunhas por causa de um delito imposto pelas instituições diretamente encarregadas de lidar com o crime, como policiais, juízes, peritos, promotores, funcionários de instituições penitenciárias, etc. Para evitar este tipo de vitimização é que a justiça restaurativa teria mais a contribuir, visto que ela promove a “humanização” do sistema de justiça criminal. Conforme Antonio Beristain, a história do sistema penal demonstra que a vítima, nos últimos séculos, encontra-se desamparada e vitimada durante o processo penal, já que ela praticamente não é considerada. Neste, somente atuam o poder estatal, por uma parte, e o ofensor, por outra. Ambos abandonam e desconhecem a vítima: Durante o processo, a vítima é, no mais, um convidado de pedra. Outras vezes, nem convidado. Tão injusta postergação do sujeito passivo do delito produz nele uma segunda vitimação. [...] Mais marginalização sofrem as vítimas que não são imediatamente sujeito passivo do crime. Por exemplo, em dezembro de 1992, uma autoridade judicial do País Vasco afirmou que o escultor Agustín Ibarrola não tinha nada a dizer no processo em que se julgava quem havia destruído uma obra artística dele, em Vitória, porque a obra era propriedade da municipalidade, não de A. Ibarrola. ‘O autor da obra artística não é parte no processo penal’, disse (BERISTAIN, 2000, p. 112).

Dessa maneira, de acordeo com o autor, as vítimas foram progressivamente esquecidas e o ofensor foi transformado em “objeto do processo”. Neste quadro, tanto os seus desejos, como os seus interesses foram substituídos pelo “interesse público”297 (NORDENSTAL, 2008, p. 25).

Se ao ofensor o sistema se limitou a reconhecer-lhe importantes direitos conforme afirmado, em relação às vítimas, esses direitos foram esquecidos (com exceção do direito e obrigação de comunicar o crime, segundo o autor). Os envolvidos na ofensa tiveram, portanto, a sua condição de “pessoas” paulatinamente negada e o conflito foi despersonalizado. 5.2.7 Reaproriação dos conflitos ou retorno à vingança privada? Relata Nordesntal (2008, p. 24) que, enquanto o modo de resolução de litígios foi a vingança privada, a vítima foi o ator principal, papel que foi diminuindo com a imposição de regras que tentaram moderar as consequências desse sistema primitivo, como a consolidação das monarquias e a centralização do poder nas mãos do soberano298. Alguns autores classificam este tempo como de “neutralização” da vítima, de seu “ostracismo” ou de “expropriação do conflito” (Nils Christie) 299. Ressalta o autor que a intervenção estatal na resolução dos conflitos em detrimento de objetivos individuais foi plenamente justificada por razões muito relevantes, como a pacificação. Ela evitou conflitos maiores entre grupos e as consequências nefastas da vingança privada, como reações informais, arbitrárias, punitivas (mas não penais), da parte dos ofendidos ou de pessoas solidárias a eles. Ferrajoli (2010, p. 309-310) destaca que o direito penal serve não apenas para prevenir os delitos injustos, mas, igualmente, as injustas punições. Haveria, portanto, um receio de que a justiça restaurativa, ao pregar a “reapropriação dos conflitos” pelos seus implicados, funcionasse como um retorno sutil à vingança privada contra o ofensor. Este receio é sintetizado por Zaffaroni: Qualquer proposta que inclua exceções ou limites à atitude do governo frente ao delito deve ser cuidadosamente avaliada, porque um sistema demasiadamente permissivo que não imponha e não afirme suas leis, com seriedade, desloca ou desvaloriza outros setores de controle social, favorecendo o surgimento de uma justiça particular, que terminará por impor suas próprias normas, sanções e procedimentos (ZAFFARONI; OLIVEIRA, 2010, p. 473).

Este temor, entretanto, não procede no modelo restaurativo proposto conforme os princípios elencados na seção 5.1. Em primeiro lugar, porque qualquer acordo de caráter sancionatório teria que contar, necessariamente, com a anuência do ofensor. A liberdade do seu consentimento estaria assegurada pelos princípios da voluntariedade (que permite que ele possa, a

qualquer momento, retirar-se do processo restaurativo, sem qualquer prejuízo, garantido a ele o retorno aos meios ordinários de jurisdição) e da confidencialidade (que afiança que nada do que foi discutido ou afirmado durante os encontros restaurativos possa ser usado no processo judicial). Em segundo, a aceitação mútua do autor e da vítima desta forma de solução de conflitos não a transforma em mecanismos privados ao sabor da autonomia da vontade. A justiça restaurativa requer, inevitavelmente, um efetivo controle público-estatal “que defina seu marco de atuação, seus limites objetivos, subjetivos, formais e estruturais e que garanta um processo justo, evitando possíveis abusos”, melhor explorado na seção 7.4.2 (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 451). Por fim, convém lembrar que a justiça restaurativa diz respeito a matérias de ordem penal e, por isso, deve reger-se por seus princípios garantidores, ainda que seus procedimentos terminem de forma extrajudicial, antes ou após um processo judicial. Dessa forma, ao aliar garantismo e protagonismo, a justiça restaurativa pode se consubstanciar na proteção do fraco contra o mais forte: “do fraco ofendido ou ameaçado com o delito, como do fraco ofendido ou ameaçado pela vingança; contra o mais forte, que no delito é o réu e na vingança é o ofendido ou os sujeitos públicos ou privados que lhe são solidários” (FERRAJOLI, 2010, p. 311). 5.2.8 A vitimização secundária Consoante Beristain (2000, p. 185), os atuais modelos de justiça criminal “pressupõem e fomentam uma solução de continuidade entre o delito e o processo, pois olvidam e desprezam as vítimas e vendem barato seu papel de protagonistas ao Estado, ao poder judicial”. Além disso, aduz Hulsman (2004, p. 59) que segmentam de modo artificial os laços entre pessoas normalmente ligadas entre si (autor e vítima), contrapondo, de maneira irreal, a sua situação jurídica e a social. Observa Baratta (1987, p. 12-13) que as vítimas são silenciadas, objetivadas, coisificadas, racionalizadas e marginalizadas, tornando-se “não-sujeitos”, com a quase total expropriação do direito de articular seus próprios interesses. São impedidas de participar do tratamento do “seu” conflito com o “seu” ofensor. Diz Beristain (2000, p. 112) que elas “são instrumentalizadas a serviço de um processo mordaz que replica no ofensor a violência por elas sofrida, num desperdício de esforços”.

O cumprimento da pena não costuma trazer qualquer resultado útil ou proveitoso às vítimas: não há uma conexão racional entre a pena de prisão e a reparação dos seus danos. Some-se a isso o fato de que o sistema de justiça impõe-lhe custos não compensados, como perdas financeiras e de tempo. A esse desestímulo, acresce-se que boa parte dos crimes permanece impune e que, mesmo em caso de uma eventual resposta ao ofensor, o caminho até ela será longo, árduo e distante da prática criminosa (DUFF, 2001, p. 30). Geralmente, as vítimas não são ouvidas pelos profissionais da justiça e não têm qualquer participação direta na responsabilização dos seus ofensores, a não ser quando testemunham. Muitas vezes, o ofendido não é informado sobre o estado do processo, sobre datas de atos processuais ou mesmo sobre a sentença do seu caso300. Segundo Beristain (2000, p. 107 e 112), em geral, nos primeiros contatos com a polícia, as vítimas se dizem satisfeitas com o comportamento policial visto que as acode de imediato e dá mostras de apreciar a gravidade do delito. Mesmo não sendo formada para cumprir sua missão assistencial, a polícia as escuta, ajuda-lhes a formular a denúncia, a buscar alojamento, assistência médica e psicológica. Entretanto, salienta o vitimólogo, o sentimento de abandono e a insatisfação se manifestam ao longo do tempo, conforme as vítimas vão encontrando menos compreensão e, sobretudo, menos informação301: Raríssimas vezes lhe é comunicado se o delinquente foi preso, julgado, condenado, etc.; se reparou os danos, se devolveu o que roubou, etc. Também muitas vítimas manifestam que a polícia não está à altura devida para prestar-lhes a ajuda necessária ou esperada. Algumas vítimas declaram que jamais voltarão a recorrer à polícia. [...]. Talvez essa falha se deva, em grande parte, à escassa formação científica e humana que receberam nas academias policiais. Já na esfera judicial, às vezes, se esquece de que as vítimas necessitam de um tratamento especial e não cumpre as medidas adequadas para a sua atenção. Com frequência, desconhece algumas das facilidades que o sistema judicial oferece às vítimas, ou essas facilidades não chegam ao grau desejado. (BERISTAIN, 2000, p. 107-108).

Conclui Beristain acerca da vitimização secundária que, quem padece de um delito, ao entrar no aparato judicial, em vez de encontrar a resposta adequada às suas necessidades e direitos, recebe uma série de sofrimentos posteriores, incompreensões, etc. nas diversas etapas em que transcorre o

processo penal, desde a policial até a penitenciária, passando pela judicial sem esquecer a pericial. A preocupação com este tipo de vitimização é tão grande que a ONU editou a “Declaração dos princípios básicos de justiça relativos às vítimas de crime e de abuso do poder”, por meio da Resolução nº 40/34, de 29 de novembro de 1985, porém de caráter apenas propositivo (ONU, 1985, p. 1). A citada Resolução determina que “mecanismos informais de resolução de disputas (incluindo a mediação, a arbitragem e a justiça tradicional ou as práticas indígenas) devem ser utilizados sempre que necessário para facilitar a conciliação e a reparação para as vítimas” (art. 7º)302. No mesmo sentido, o Conselho da União Europeia emitiu a decisãoquadro de 15 de março de 2001 (2001/220/JAI) com força vinculante aos seus Estados impondo-lhes o “estatuto da vítima em processo penal”. Esse estatuto estabelece que “as necessidades da vítima devem ser consideradas e tratadas de forma abrangente e articulada, evitando soluções parcelares ou incoerentes que possam dar lugar a uma vitimização secundária”. A referida decisão-quadro não se limitou a tutelar seus interesses no curso do processo penal stricto sensu, abrangendo o apoio às vítimas antes ou depois do processo penal, de modo a atenuar os efeitos do crime303. Ainda em prol do reconhecimento de direitos às vítimas, na Nova Zelândia, por exemplo, movimentos da sociedade civil organizaram-se politicamente para a aprovação da “Victim of Offences Act”, em 2002304. É uma lei que contém dispositivos aguerridos, como a incumbência do promotor de justiça de levar ao conhecimento do juiz a “declaração de impacto da vítima” a fim de que seja mencionada na sentença e efetivamente considerada na determinação da penalidade do ofensor (for purpose of sentence indication — art. 21A da Lei). Tal declaração contém informações sobre lesões físicas, danos emocionais ou patrimoniais sofridos pela vítima, relacionados à ofensa (art. 17 da Lei)305. Na Inglaterra e País de Gales, um empreendimento semelhante veio por iniciativa da comunidade, mas sem qualquer ato legislativo ou outro apoio do Governo. Em 1972, a BACRO — Bristol Association for the Care and Resettlement of Offenders — buscava uma forma de tornarem os ofensores mais conscientes dos danos que causavam, apresentando-os às suas vítimas. Durante a execução do projeto, a BACRO modificou-o de forma a não só apresentar as partes, mas também de lhes conferir a oportunidade de

expressão, em especial às vítimas, para dizerem o quanto foram afetadas pelo crime, aumentando o seu poder de participação (GAVRIELIDES, 2007, p. 64). Já no Canadá, o papel da vítima varia de forma bastante substancial, a depender da província, visto que, neste país, os programas de justiça restaurativa são predominantemente conduzidos por organizações nãogovernamentais e são geralmente focados no ofensor (seu objetivo primeiro é ajudá-lo na sua reabilitação e reintegração)306. Na Colúmbia Britânica, todos os participantes do círculo são habilitados a falar livremente e as vítimas podem discutir o impacto do crime com os demais membros, incluindo o agressor (CRCVC, 2011, p. 4). Em Saskatchewan, a participação do ofendido é igualmente direta. Nos chamados “círculos de sentença”, vítima, ofensor, familiares e membros da comunidade reúnem-se com o juiz, advogados, policiais etc. para recomendar ao magistrado o tipo de sentença que entendem que o ofensor merece receber. A ideia é permitir à vítima e à comunidade se expressarem, interpelarem o ofensor e participarem do desenvolvimento e da implementação de um plano para o cumprimento da sentença (ORCHARD, 1998, p. 109). Em outras províncias, sem tanta experiência com círculos restaurativos, a atuação da vítima é substancialmente restringida. Em Ontário, por exemplo, elas se sentam fora do círculo, com função de meras observadoras. Caso ingressem como participantes, estão limitadas à leitura de uma declaração de impacto, previamente preparada e não podem falar espontaneamente (CRCVC, 2011, p. 8). Neste tipo de círculo, infere-se que não há igualdade de participação para autores e vítimas, portanto, procede a crítica feita a esses programas pelos grupos de apoio aos direitos das vítimas de que a perspectiva delas não tem sido devidamente considerada, especialmente se não há a obrigatoriedade do apreço de suas reivindicações pelo sistema de justiça formal destas províncias (CORMIER, 2002, p. 10). No Brasil, apenas a partir de 2008, o Código de Processo Penal passou a ter um capítulo dedicado ao ofendido, com apenas um artigo (art. 201, CPP), dando a entender que se trata de uma faculdade do juiz atendê-lo, mediante o uso de expressões como “se o juiz entender necessário, poderá”, “o ofendido poderá”, “sempre que possível”. O referido dispositivo é um avanço, porém tímido, pois prevê a oitiva da vítima apenas “se possível”. Dessa forma,

ainda há espaço para que persista a antiga e arraigada concepção que dispensa as considerações da vítima, por considerá-las impertinentes ou de ordem “subjetiva”, que nada interessam ou auxiliam no deslinde do processo307. Outra inovação em nosso ordenamento ocorreu em 2012, com a promulgação da lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), que determinou a prioridade no emprego de práticas restaurativas na execução das medidas socioeducativas a que estão sujeitos os adolescentes autores de ato infracional. O art. 35, III, desta Lei (12.594/2012) fez menção expressa à premência de se atender, sempre que possível, às necessidades das vítimas308. Do exame destas duas normas citadas, conclui-se que os ofendidos continuam alijados de uma participação genuína na concretização da justiça brasileira, visto que a sua manifestação processual não é garantida, tampouco a consideração dela no processo penal, permanecendo a sua invisibilidade. Acerca do móvel para as vítimas participarem do processo restaurativo, costuma-se conjecturar que seria a possibilidade de receberem uma indenização. Anota García-Pablos de Molina (2012, p. 449) acerca do que seria a reparação buscada pela vítima: A reparação incluiria não só aspectos materiais ou econômicos, mas também o reconhecimento público do dano causado, assim como desculpas do infrator à sua vítima, tudo isso por meio de procedimentos informais.

Esta ideia é confirmada pelo relato de ofendidos que, após o encontro com ofensor, informaram que conversar sobre o acontecido lhes trouxe mais satisfação do que a restituição em si (COATES; GEHM, 1989, p. 255). Entre os benefícios gerais expressados pelas vítimas após o encontro restaurativo incluem o sentimento de que elas finalmente foram ouvidas; a oportunidade de que puderam ver o ofensor como uma “pessoa”, ao invés de como um “monstro”; a alegria de que sentiam menos medo; o prazer de que se sentiam em paz e a alegria de que não sentiam mais raiva (WOLHUTER; COATES, 1993, p. 571)309. Beristain (2000, p. 120) acrescenta que a meta das vítimas e dos programas restaurativos não é somente a reparação, mas também a reconciliação, a qual exige certos elementos, por exemplo, expressão de

sentimentos (como ira, humilhação, medo), compreensão do sucedido, reconhecimento do delito e de sua culpabilidade pelo autor etc. Quanto aos grupos de apoio aos direitos das vítimas aprovarem o trabalho feito pela justiça restaurativa pelos motivos já elencados, não restringe o objetivo deles em relação à reparação material delas ou à garantia de que elas terão uma maior participação no processo310. Eles reivindicam a prestação de auxílio comunitário em favor delas, a busca de financiamento para serviços de assistência a elas e a promoção dos interesses delas no âmbito mais amplo da política criminal311. As razões que justificam a sua atuação são variadas e muito bem fundamentadas, consoante ressalta Beristain (2000, p. 111): Os escritórios de assistência às vítimas encontram muito boa acolhida porque a todos satisfaz saber que se atende a quem sofre; e também porque se espera que, atendendo às vítimas, diminuirá notavelmente a criminalidade e aumentará o respeito aos direitos humanos. Além disso, por outro lado, a vítima que não recebe o tratamento devido da sociedade pode cair na delinquência.

Do ponto de vista da justiça restaurativa, o seu objetivo concreto é outorgar às vítimas uma maior intervenção; atender à sua carência de informações (acerca do processo, das razões e circunstâncias do delito etc.); permitir-lhes cooperação atuante, uma compensação material ou simbólica e, sobretudo, reaver-lhes a independência e a autonomia que o crime retirou (McCOLD; WACHTEL, 2003, p. 1). A vítima é convidada a assumir o papel de protagonista no procedimento restaurativo. Ela tem os seus interesses reverberados, especialmente pela exigência de sua escuta. O espaço público de escuta e de deliberação da justiça restaurativa oportuniza às vítimas recuperarem seu sentimento de autogoverno e de competência pessoal. Esse fortalecimento é o que as transforma em sobreviventes, ou seja, deixam de ser vítimas dos problemas, tornando-se autoras da própria história (MC COLD; WACHTEL, 2003, p.1). A elas é outorgado o protagonismo no iter processual para planejar, projetar a sanção e reconstruir a realidade social perturbada pelo delito (BERISTAIN, 2000, p. 187). A justiça restaurativa reconhece, portanto, o lado humano do conflito, pressupondo que o dano é feito por humanos e contra estes, primando por potencializar a cura interior dos envolvidos e a aptidão para o perdão312. Ela atende melhor às necessidades reais da vítima (sejam materiais ou morais),

facilita a reparação dos danos (não necessariamente econômica ou pecuniária) e evita a vitimização secundária (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 449). 5.3 O papel da comunidade na justiça restaurativa Uma abordagem restaurativa propicia a inclusão de um maior número de pessoas interessadas — representantes da comunidade e apoiadores da vítima e do ofensor — na busca por uma solução por meio do consenso para as consequências do crime. A justiça restaurativa confere protagonismo a todas elas. Especificamente no tocante à comunidade, ela envolve cidadãos locais na resposta delitiva dialogando sobre o alcance e os efeitos de respostas positivas e até sobre a justiça penal, em geral. A participação comunitária é um recurso estratégico que promove a democratização do sistema penal, reforça os laços entre ofensores, suas famílias e a comunidade, eleva a consciência sobre a importância da participação de cada um no processo, promove o senso de proteção comunitária e propicia a seus membros uma maior sensação de segurança e comando (PASSOS; PENSO, 2009, p. 26). Neste sentido encoraja a Assembleia Geral das Nações Unidas, por meio da sua Resolução 45/110, de 14 de dezembro de 1990, mais conhecida como “Regras de Tóquio”313, a participação comunitária, como forma de reforçar os laços entre ofensor e comunidade: 17. Participação da coletividade 17.1. A participação da coletividade deve ser encorajada, porque constitui um recurso capital e um dos meios mais importantes de reforçar laços entre os delinquentes submetidos a medidas não privativas de liberdade e as suas famílias e a comunidade. Esta participação deve completar os esforços dos serviços encarregados de administrar a justiça penal. 17.2. A participação da coletividade deve ser considerada como uma oportunidade para os seus membros de contribuírem para a proteção da sua sociedade.

A comunidade é considerada pela justiça restaurativa como uma verdadeira Gemeinschaft314, categoria sociológica introduzida pelo sociólogo alemão Ferdinand Tönnies, usada para descrever um tipo normal315 de associação humana em que os indivíduos são orientados a lutar tanto pela associação quanto pelo seu próprio interesse. É caracterizada por relacionamentos pessoais e familiares fortes e por instituições sociais

relativamente simples. As Gemeinschaften são definidas como sendo uma “unidade de vontade” e são reguladas pelos costumes ou crenças comuns sobre o comportamento adequado e pela responsabilidade de seus membros em relação a si e à associação em geral (TÖNNIES, 2001, p. 22-23). As Gemeinschaften constituem, marcadamente, comunidades “de destino” na qual seus membros compartilham da mesma boa ou má-sorte (TÖNNIES, 2001, p. 22). Por isso, a importância de sua deliberação em torno de interesses comuns. A violência local, os índices de criminalidade e a forma de retorno do ofensor à vida comunitária são exemplos destes assuntos que influenciam o destino e a qualidade de vida de uma comunidade. Numa perspectiva de Gemeinschaft, a participação de membros da comunidade no procedimento deliberativo é justificada por eles representarem a unidade e os valores compartilhados por ela. Dessa forma, a comunidade seria empoderada para retomar seu lugar, hoje ocupado abstratamente pelo Estado. Neste sentido, o comentário de Louk Hulsman (2004, p. 63): As respostas tradicionais a fatos criminalizáveis dão excelentes exemplos do que Nils Christie chama de “subtração dos conflitos”, na medida em que, com frequência, inibem a tendência natural dos homens para a união diante de uma crise, impedindo, assim, também, os desenvolvimentos sociais e pessoais que poderiam se produzir em tais casos. Isto significa, a meu juízo, que um dos aspectos importantes do “envolvimento comunitário” - ideia hoje subscrita pela maioria, mas que poucos sabem exatamente o que é - consiste na tentativa de recuperar a possibilidade de as pessoas comuns poderem se envolver diretamente em respostas sociais orientadas pelo ponto de vista da vítima.

Um exemplo de sucesso de assunção do papel comunitário ocorreu mediante uma mudança estrutural ambiciosa no Departamento de Correções de Vermont, Estados Unidos, em 1994. Amparados por uma pesquisa de opinião local — que indicou uma grande insatisfação popular com o sistema de justiça criminal e uma abertura a respostas mais restaurativas e comunitárias a crimes não-violentos —, o Departamento rompeu com o sistema correcional vigente há cem anos no estado que oferecia basicamente duas opções: a prisão e o sursis. O Departamento de Correções identificou que quase metade dos casos de sursis poderiam ser diretamente levados aos Conselhos Comunitários de Sursis Reparatório (Reparative Probation

Community Board), formados por cidadãos voluntários da comunidade, ao invés de passarem pela tradicional supervisão condicional. Geralmente, após o diálogo com o ofensor, o Conselho determina uma sanção restaurativa baseada nas necessidades da comunidade, que inclui a mediação vítimaofensor, a prestação de serviços comunitários ou a frequência a um painel interativo com vítimas de crimes (UMBREIT, 2007, p. 1). Uma indagação que se coloca é qual seria o número de pessoas que atuariam em um processo restaurativo, em nome da Gemeinschaft. Alguns defendem que os principais interessados seriam apenas os mais afetados pelo crime, ou seja, a vítima e o ofensor, olvidando a comunidade (como Nils Christie). Outros, porém, englobam como principais interessados todos aqueles que são tocados pelo delito, incluindo além da vítima e do ofensor, aqueles que se preocupam com seu bem-estar (família, amigos), os que estão preocupados com a execução do acordo da sentença (procuradores, juízes, polícia) e, finalmente, aqueles que podem contribuir para uma solução do problema (grupos de apoio à vítima, os agentes comunitários e conselheiros) (MAXWELL; MORRIS, 2001, p. 32). A prática demonstra que, quanto maior o número de apoiadores convidados para o encontro restaurativo, mais provável o cumprimento do acordo resultante entre as pessoas nele envolvidas, ou seja, responsáveis pelo seu sucesso (BARTON, C. 2013, p. 10)316. Neste ponto há uma vantagem dos círculos restaurativos comparativamente à mediação, já que esta geralmente é feita apenas entre vítima e ofensor. Qualquer que seja a extensão conferida à comunidade, o papel dela é apoiar e facilitar o processo restaurativo e as decisões tomadas pelos interessados. Os membros comunitários não devem tomar partido de uma das partes, tampouco tomar o conflito para si, interferindo na oportunidade de reconciliação e reparação, já que também não estão ligados emocionalmente às vítimas e ofensores (McCOLD; WACHTEL, 2003, p. 1). O controle comunitário propiciado pela justiça restaurativa traz à comunidade, por outro lado, o ônus de responsabilizar-se, juntamente com o poder público, pela construção de repostas adequadas ao delito, pela transformação nas condições sociais que contribuem para o comportamento do ofensor, pela sua inclusão social, reinserindo-o em seu meio e pela proposição de políticas públicas efetivas voltadas para este segmento social (McCOLD; WACHTEL, 2003, p. 1 e PASSOS; PENSO, 2009, p. 13).

Num primeiro momento, o conflito é visto como de cunho interpessoal, entre autor e vítima. Entretanto, há situações que envolvem aspectos sociais e que demandam a interferência da comunidade para a solução do conflito. Para tratá-lo, muitas vezes, é preciso contar com o apoio de uma rede de atendimento comunitária ou de serviços públicos para cuidar das causas subjacentes a conflitos individuais (uso abusivo de álcool, drogas, o desemprego, o abandono escolar, a maternidade precoce etc.). Por vezes se faz necessária também a combinação de programas de política social como, de erradicação da pobreza, de concessão de igualdade de oportunidades, de moradia, infraestrutura, saneamento, segurança, revitalização de bairros urbanos etc (MELO; EDNIR; YAZBEK, 2008, p. 46)317. Um exemplo da assunção destes ônus pela comunidade ocorre nos círculos de pacificação canadenses. Enraizados na experiência e tradição aborígenes, os círculos consideram que a responsabilidade para resolver os problemas relacionados ao crime encontra-se na comunidade e não apenas nas pessoas diretamente afetadas. Os círculos procuram desvendar os problemas subjacentes ao conflito e restaurar o equilíbrio entre as partes, sempre que possível. Neles, as discussões costumam explorar questões mais amplas do que o fato criminoso em si, como as relacionadas à prevenção nas áreas de saúde, habitação, desenvolvimento, economia etc., de forma a observar além dos indivíduos e avaliar as condições sociais em que a violência costuma ocorrer (CRCVC, 2011, p. 6). O sucesso e as vantagens deste tipo de empreendimento são explicados por Louk Hulsman (2004, p. 62) da seguinte forma: Uma resposta mais coletiva e menos fragmentada aos fatos criminalizáveis oferece um enorme potencial aos membros da comunidade para que tomem providências fecundas e reparatórias, tanto para vítimas quanto para criminosos, permitindo superar a antítese vítima-criminoso na relação entre eles.

Além do formato de círculos, a atuação comunitária sobre o crime pode ser fazer por vários canais: por meio das comunidades religiosas que auxiliam ofensores no tratamento do alcoolismo, drogadição e comportamento sexual abusivo ou violento etc.; pelos conselhos consultivos comunitários que opinam e aconselham nos tribunais e nos estabelecimentos penais no momento da execução da pena (o que dispensaria um acompanhamento mais próximo dos ofensores), mediante a participação dos

ofensores em projetos de serviços comunitários valorizados pela comunidade, entre outros. Salienta Hulsman (2004, p. 63) que é importante que todos os órgãos que tenham a ver com a justiça criminal — a polícia, os professores, a acusação pública, os operadores sociais, os tribunais e os pesquisadores acadêmicos — sugiram e esclareçam as possibilidades positivas de respostas a fatos criminalizáveis de modo a estimular um maior envolvimento público. Todas estas instituições integram o conceito de “comunidade” e não apenas os vizinhos de porta, de bairro etc.: Verifica-se que no imaginário dos operadores do direito a comunidade ainda é aquela nostalgicamente considerada como formada de relações próximas de vizinhança, parentesco e localidade, o que, na realidade das grandes cidades e na dinâmica da vida capitalista contemporânea, por certo, perde o sentido. Por outro lado, nesse contexto, ganha importância o papel das instituições que, segundo Costa (2005), funcionam como mediadoras da interação social, uma vez que propagam valores de integração entre homens e mulheres (PASSOS; PENSO, 2009, p. 88).

As autoras destacam ainda a importância do envolvimento comunitário para discussão e para o aprimoramento do próprio sistema penal: [...] da mesma forma, pode constituir-se um importante interlocutor com o Sistema de Justiça para avaliação do sistema penal, discutindo sua eficácia, bem como para sua melhoria, provocando a democratização desse sistema, com sua abertura para a participação comunitária (PASSOS, PENSO, 2009, p. 13).

Dessa forma, a justiça restaurativa pode assegurar não só que algo será feito a respeito do fato, que vítimas e ofensores poderão ser reintegrados às suas comunidades e que medidas preventivas, originadas a partir dessas discussões, podem ser adotadas para coibir novos delitos. Diferentemente dos modelos estrangeiros citados, no Brasil, haveria um afastamento entre Poder Judiciário e comunidade cuja relação318 seria marcada por um elevado grau de burocratização e pela verticalidade. Os operadores do direito são tidos como detentores do saber, o que prejudicaria a condição de partícipe da comunidade. Para se falar em contato cooperativo, seria preciso antes primar pela atuação conjunta entre Judiciário e comunidade mediante maior horizontalização deste processo. Do contrário, haveria um relacionamento “colonizador” que ignora a reciprocidade e a capacidade de conceber o outro como sujeito igualmente capaz (PASSOS; PENSO, 2009, p. 53).

Antonio Beristain (2000, p. 110) aponta como solução para diminuir a atuação do controle formal e para a retomada do protagonismo da comunidade no controle social: A mulher e o homem da rua — queiram ou não queiram — necessitam recobrar seu protagonismo no controle social, também no campo da justiça penal, que têm abandonado, excessivamente, em mãos do Poder Judiciário, com funestos resultados, não somente o de sua lamentável lentidão. Com muita frequência, grande número de sentenças chega tarde, quando o trem já saiu da estação, quando os interessados já faleceram. Os controles sociais formais hoje em uso — polícia, juízes, cárceres — não funcionam como devem. Quando os acudimos, às vezes, é pior o remédio que a doença. Por isso, Marc Ancel propugnou a desjuridização do direito penal. Por isso, muitos abolicionistas (não só L. Hulsmann) pedem o desaparecimento total (melhor dito, quase total) do direito penal.

Faz-se premente, portanto, a construção de um modelo socialmente democrático de resolução de conflitos com um forte envolvimento comunitário, pautado por uma busca de promoção de responsabilidade ativa e cidadã das comunidades (MELO, EDNIR e YAZBEK, 2008, p. 12). Afinal, o delito, que é um fenômeno social que nasce no seio da comunidade, só pode ser controlado pela ação conjunta dela e de todos os interessados (BRASIL, 2002, p. 7). Por meio de novas políticas públicas, como a restaurativa, o Estado pode encorajar a coletividade a participar do processo da justiça penal e, especialmente, do tratamento dos ofensores, bem como desenvolver nestes o sentido de responsabilidade para com a sociedade. 5.3.1 A janela da disciplina social Costumeiramente, identificam-se ao menos dois modelos de controle social do delito, o formal e o informal, conforme a “estratégia” ou “resposta” utilizada (prevenção, repressão, socialização etc.). O controle social informal é exercido por vários órgãos como a família, a igreja, os partidos, as organizações comunitárias etc. e o formal é exercido por alguns meios ou “sistemas normativos” (a religião, o costume, o direito etc.) (PRATT et. al., 2010, p. 61). Os agentes informais de controle, próprios da comunidade, disciplinam o indivíduo de forma sutil, atuando nos núcleos primários (família, escola, profissão, local de trabalho), a fim de interiorizar modelos de conduta que o conformam e o condicionam (processo de socialização). Observa Foucault

(2008, p. 119) que o controle social informal está em funcionamento, desde muito cedo, nos colégios, nas escolas primárias, na organização militar e até no espaço hospitalar. Caso as instâncias informais de controle falhem, são ativadas as instâncias formais que atuam de modo coercitivo, impondo sanções qualitativamente distintas das sociais. O direito penal é o controle formal por excelência, e a prisão, a sua manifestação concreta. O controle social informal é, portanto, a forma de controle que diz respeito à comunidade. McCold e Wachtel319 (2003, p. 1) identificaram que ele age a partir de uma combinação de duas forças sociais distintas: a autoridade (ou controle propriamente dito) e o apoio (compreendido como assistência, cuidado ou encorajamento). Essas forças variam em grau (de menor a maior) e podem ser combinadas vetorialmente no que denominaram de “janela de disciplina social”:

Nesta janela, o vetor “controle” teria por finalidade limitar ou influenciar pessoas. Pode-se identificar um alto controle social, por exemplo, quando há uma delimitação clara de limites de conduta e a imposição de padrões de comportamento. Por outro lado, se o regulamento é permissivo ou mesmo inexistente, há o que se chama de um baixo controle ou baixo exercício de autoridade. O vetor “apoio” é caracterizado por uma assistência ativa e pela preocupação com o bem-estar coletivo, enquanto que um baixo apoio social

corresponderia à falta de encorajamento e de atenção mínima para necessidades físicas e emocionais do outro. A partir da combinação entre os vetores “controle” e “apoio”, em seus diversos níveis (de baixo a alto), os autores identificaram pelo menos quatro abordagens possíveis na janela da disciplina social: punitiva, permissiva, negligente e restaurativa. Uma intervenção retributiva ou punitiva é caracterizada pelo alto controle dos cidadãos e com baixo apoio social, já que confere maior ênfase à violação do padrão de comportamento do que à assistência aos prejudicados. É uma reação “ao” transgressor, punindo-o e reprovando-o. Do lado oposto temos uma abordagem permissiva, com baixo controle social e um alto apoio que tenderia a proteger indiscriminadamente os cidadãos não os envolvendo ou os responsabilizando na reparação das consequências de seus atos. Seria uma resposta “pelo” ofensor, em alusão a tudo que se faz por ele, exigindo dele muito pouco como reparação à ofensa (ou até criando justificativas para as transgressões). Outras combinações possíveis são um baixo controle aliado a um baixo apoio e um alto controle associado a um alto apoio. A primeira (baixo controle e baixo apoio) é uma abordagem que se pode chamar de negligente, caracterizada pela indiferença e pela passividade. É representada pelo pronome “nada”, em que “nada” se faz em resposta a uma transgressão. A segunda intervenção (alto controle e alto apoio) e equivale à restaurativa na qual se reafirma a responsabilização pela prática ofensiva, ao tempo em que integra todos os afetados na resolução do problema de forma colaborativa. É a resposta representada pela preposição “com”, na qual o ofensor encontra-se envolvido “com” os demais prejudicados, em um envolvimento consciente e ativo, em que todos participam diretamente do processo de reparação e de prestação de contas. Portanto, conclui-se que os indivíduos são mais cooperativos, produtivos e propensos a fazerem mudanças positivas em seu comportamento quando o fazem juntamente com a comunidade. Este método seria o restaurador, que é participativo e interativo. Ele combina alto controle e alto apoio e caracteriza-se por realizar objetivos com as pessoas, ao invés de “para elas” ou “por elas”. Ele seria mais eficaz do que não exigir que o ofensor faça algo a respeito (negligente), ou que alguém faça por ele (paternalista) ou quando obrigado a fazer algo (autoritário ou punitivo).

A janela da disciplina social de McCold e Wachtel, portanto, é útil para visualizar a forma como a justiça restaurativa se vale dos meios de controle social informal para mais eficazmente reforçar os vínculos sociais do ofensor e engajá-lo com compromissos, valores e normas da sociedade a fim de desencorajar o desvio. A justiça restaurativa consistiria, portanto, um mecanismo capaz de resolver satisfatoriamente conflitos concretos, com a vantagem, ainda, de produzir um saudável efeito pacificador nas relações sociais, melhorando o “clima social” (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 450). 5.3.2 A vergonha reintegradora John Braithwaite identificou um outro tipo de controle social intrínseco à justiça restaurativa ao qual chamou de “vergonha reintegradora” (“reintegrative shaming”). Braithwaite (2001b, p. 39) define vergonha reintegradora como “todo processo social de expressão de desaprovação que tenha a intenção ou efeito de invocar remorso na pessoa por parte de outros que tomaram conhecimento do fato”. Apesar de a teoria ostentar o vocábulo “vergonha”, o que importa a ela é a desaprovação e o remorso expressados pela condenação do ato praticado e não o que convencionalmente conhecemos por vergonha. Para o autor, a justiça restaurativa permite a expressão de desaprovação comunitária com potencial para invocar o remorso no ofensor (2001b, p. 39). O criminologista acredita que este constrangimento imposto ao ofensor seria capaz de fortalecer o vínculo moral entre ele e a comunidade (2001b, p. 42). Esta tese advoga que a chave para o controle da criminalidade seriam os compromissos culturais do ofensor com a sociedade em que vive. Assim, o constrangimento, imposto como sanção ao ofensor seria suficiente para fortalecer o vínculo moral entre ele e a comunidade, com maiores chances de prevenção de delitos (BRAITHWAITE, 2001b, p. 42). A teoria de Braithwaite tem muito em comum com a teoria criminológica do controle social, vista na seção 4.2.4. Ambas contemplam o apego do ofensor às expectativas de terceiros sobre ele (família, amizades), às instituições e a sua preocupação com a repercussão do seu comportamento nas esferas de relacionamento (profissional, laboral etc.) (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2000, p. 318).

A “vergonha reintegradora” seria, portanto, uma forma de controle social baseada na condenação informal pela comunidade daquilo que é considerado errado, com a garantia de oportunidades de reintegração do ofensor. Braithwaite (2001b, p. 47) afirma que os controles mais efetivos de crimes exigem uma colaboração ativa da comunidade para “envergonhar os ofensores e, após fazê-lo, reintegrá-los de forma participativa”. Segundo o autor, a vergonha eficiente para a sensibilização não é a de juízes, oficiais de polícia ou de jornais, mas a das pessoas com quem o ofensor mais se importa, a dos que lhe inspira respeito e confiança. Isso porque a vergonha seria uma emoção natural das pessoas e, portanto, vital para preservar os laços sociais e afetivos essenciais (BRAITHWAITE, 20--, p. 50). A vergonha reintegradora de Braithwaite se propõe a ser uma alternativa à criticada pela teoria do etiquetamento (labelling approach). Para tanto, o criminologista australiano faz uma distinção entre a vergonha reintegradora e a estigmatizadora: esta arruína a relação entre o ofensor e a sociedade, pois torna as subculturas criminais mais atraentes, produzindo mais criminalidade. Trata-se da reprovação pública, censura ou condenação moral do ofensor que oferece uma imagem degradante deste, submetendo-o a cerimônias de humilhação, incompatíveis com sua dignidade pessoal. Esse tipo de vergonha pode ser destrutiva, visto que pode levar ao ataque de outros, a autoataques ou a fugas. É suscetível de ser eficaz no controle da criminalidade, porque reintegra o ofensor à sociedade como um cidadão cumpridor da lei (BRAITHWAITE, 2001b, p. 49). Para o desenvolvimento da sua teoria, Braithwaite inspirou-se nas práticas asiáticas de policiamento as quais ele julgou eficazes para lidarem com alguns tipos de crimes (como os corporativos, direção sob efeito de álcool, crimes contra a propriedade e violência juvenil) (BRAITHWAITE, 20--, p. 47). A ideia de Braithwaite é aplicada empiricamente na Austrália sob a forma de “conferências restaurativas” e é adotada como política pública pelo governo australiano. Para tais conferências, são convidados vítimas, ofensores e seus respectivos apoiadores (geralmente familiares ou pessoas com as quais tenham relações afetivas fortes e respeitosas que possam oferecer o máximo apoio ao participante, podendo incluir tanto a família nuclear quanto a estendida, mas não se limitando a eles).320

O grupo discute as consequências do delito, com enfoque nos sentimentos dos que se sentiram prejudicados. Em seguida, discutem como o dano pode ser reparado e quais medidas podem ser tomadas para evitar a reincidência. Braithwaite (20--, p. 48) observa que tais conferências têm a finalidade ostensiva de reparação material, mas, subjacente a ela, há um processo nãoverbal e menos visível, que é o de reparação simbólica. Segundo Braithwaite, os processos restaurativos de justiça seriam mais susceptíveis de produzir um efeito dissuasor futuro (desistência de ofender, transgressões menos frequentes ou violações menos graves). Isso porque, enquanto os ofensores experimentam a sanção como legítima, seus laços para os agentes de controle e a comunidade se fortalecem, e eles aceitam a sua vergonha e têm orgulho de permanecer em solidariedade com a comunidade (BRAITHWAITE, 20--, p. 50). Os resultados de um experimento (Reintegrative Shaming Experiments RISE) feito pelo governo australiano e publicado em novembro de 2011 mostrou que 26% dos motoristas flagrados conduzindo veículo após a ingestão de bebida, aleatoriamente processados perante um tribunal, sentiram amargura e raiva depois do processo. Dentre eles, apenas 7% tiveram estes mesmos sentimentos depois de uma conferência321. Braithwaite (20--, p. 49) observa, por outro lado, que, quando se veem tratados de forma justa pelo sistema de justiça criminal, os cidadãos estariam mais propensos a cumprir a lei. Um aspecto curioso que merece ser destacado é quanto à aplicação da justiça restaurativa a crimes nos quais não há uma vítima conhecida e determinada, como no caso citado por Braithwaite. Nesta situação, perguntase com quem se realizaria o encontro restaurativo, já que todas as pessoas são vítimas em potencial. Outra indagação é a de como se daria a reparação do dano nestes casos (já que não há um dano concreto na conduta de dirigir embriagado). Virgínia Domingo (2011, p. 82) ressalta que, a princípio, não há óbice para aplicação da justiça restaurativa nestes casos, como já decidiu a jurisprudência espanhola322. A autora enumera as seguintes possibilidades para estas questões: Um exemplo seria ajudar como voluntário em um centro de recuperação de pessoas acidentadas, por exemplo. O ofensor trabalharia para fazer o futuro melhor e reduzir a reincidência. Isso não funcionaria como um benefício imediato da comunidade ou como

cumprimento de uma sentença imposta pelo juiz, mas como uma prestação voluntária do ofensor, que estaria empenhado por meio de um processo restaurativo, a uma reparação simbólica. Outra possibilidade de reparação seria um compromisso de não beber álcool e se submeter a tratamento de reabilitação, se houver, de forma a restaurar a confiança nas regras e também para reduzir e prevenir a prática de atos e comportamentos similares (a reincidência).

Da mesma forma que Braithwaite, Virgínia Domingo (2011, p. 82) afirma que o nível de cumprimento deste tipo de acordo é maior do que o de uma sentença comum, qualquer que seja. A razão, para ela, seria o fato de que as próprias partes definiram o compromisso de modo totalmente voluntário e não imposto por um estranho a elas. Por fim, deve-se advertir do risco prático da teoria de Braithwaite em distinguir entre estas duas vergonhas — reintegradora e estigmatizadora — e de colocar este ideal em prática. Sobre este assunto, anota García-Pablos de Molina (2012, p. 448): Mas, desde logo, a livre assunção pelo infrator da sua responsabilidade — e a conseguinte e positiva mudança de atitudes que se espera do mesmo — não pode ser acompanhada de inadmissíveis cerimônias degradantes de reprovação, que fariam de tal reconhecimento um sucedâneo anacrônico das históricas penas infames. Porque, em função de uma positiva mudança de atitude ou de motivação, não seria lícito humilhar nem menosprezar o infrator, nem exigir-lhe manifestações autodegradantes. Risco este em que incorrem algumas propostas maximalistas bem intencionadas, mas incompatíveis com a imagem moral que nossa cultura deve professar do homem delinquente.

O receio do autor é justificado pela prática, tendo em vista, por exemplo, que nos locais em que a teoria de Braithwaite é aplicada (especialmente nas conferências restaurativas australianas que envolvem jovens em conflito com a lei), a mediação dos conflitos é feita por agentes de polícia. Na perspectiva dos ofensores, os policiais não são necessariamente facilitadores neutros e, portanto, torna-se complexo manter a distinção entre as duas vergonhas perante o agente público membro da comunidade (BRAITHWAITE, 2001a, p. 250). 5.3.3 Riscos do incremento do controle social pela justiça restaurativa Apesar das vantagens do fortalecimento do controle social informal em detrimento do formal, proposta pela justiça restaurativa, ele não é indene de críticas. Foucault, por exemplo, foi um crítico assaz de toda forma de

controle. Segundo o filósofo francês, por meio dele, o que se pretende reconstruir não é o sujeito jurídico do pacto social, mas formar um sujeito de obediência, corpo dócil, um indivíduo sujeito a hábitos, regras e ordens oriundas de uma autoridade que se exerce continuamente sobre ele e em torno dele, a qual ele deve deixar funcionar automaticamente em si (FOUCAULT, 2008, p. 230). No projeto moderno de controle, diz o filósofo francês, são utilizados processos de treinamento do corpo sob a forma de hábitos no comportamento. Ao invés de supliciado, o corpo é treinado. A disciplina tanto aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) quanto as diminui em termos políticos de obediência (FOUCAULT, 2008, p. 106 a 108). Portanto, para Foucault, qualquer tentativa externa (numa referência à “sociedade”, às “expectativas” ou às “normas”, por exemplo) de compelir um indivíduo a fazer ou deixar de fazer alguma coisa é uma forma de controle. Entretanto, considerando que o controle social é inerente a toda sociedade cujos valores, normas, códigos morais e crenças são internalizados por seus membros para participarem dela, não há como prescindir de toda forma de controle. Isso porque, conforme asseverou Hirschi (2002, p. 124), os processos de socialização e aprendizagem social são inevitáveis, além de serem necessários para viabilizar sua vida em sociedade. Os que não o fazem, apresentam conduta desviante dos demais e correm o risco de serem rechaçados da convivência social (ver seção 4.2.4). Assim, diante da impossibilidade de eliminar-se todas as formas de controle, o mais desejável seria ao menos a diminuição da incidência do controle formal (e da prisão, como consequência). Esta medida se justifica porque o controle formal é a forma mais radical de controle, além de ter um alcance limitado. É seletivo, estigmatizante e, da forma como tem sido aplicado nas prisões hodiernas, pode desencadear outras desviações ou induzir à continuidade delitiva, como acentuado na seção 2.1. Uma forma de evitar a sua emergência seria o fortalecimento do controle informal (família, escola, opinião pública, ética, religião etc.), o que possibilitaria maior eficiência no controle e prevenção da criminalidade. Neste mister, a justiça restaurativa poderia ser de grande auxílio, já que nela as capacidades para o controle informal são fomentadas (como o aprendizado para a resolução de conflito, a educação, o diálogo e a

experiência colaborativa na solução de problemas) e há um incentivo da civilidade, da criação da confiança mútua entre os membros da comunidade e do desejo de intervir em nome do bem comum. As mazelas do sistema penal identificadas na seção 1.6 apontam que o caminho para a prevenção eficaz do delito não se encontra no fortalecimento do controle social formal, mas numa melhor sincronização entre as duas formas de controles sociais — formal e informal — para a qual a justiça restaurativa pode muito contribuir (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, 1988, p. 107). Não obstante, como estratégia de controle social, a proposta restaurativa também apresenta riscos. É necessário cautela para que não se trate ela mesma de um reforço do sistema de controle formal (netwidening)323, já que a justiça restaurativa é uma inovação que permanece atrelada ao sistema de justiça criminal. Eles coexistem neste momento de transição paradigmática em que não há ruptura com o paradigma anterior. Umbreit (2007, p. 1) observa que, neste período de mudança, há o risco de a justiça restaurativa perpetuar as deficiências do sistema retributivo, porém com uma linguagem mais humana e aceitável, sem que isso implique melhora em suas políticas e procedimentos. Destarte, conclui-se que, a despeito de programas restaurativos implementados dentro e fora do sistema penal (como no caso das escolas), eles ainda não conseguiram alterar a configuração do sistema em geral, que continua a ser altamente retributivo e inteiramente dirigido ao ofensor, com pouco envolvimento da vítima e menos ainda da comunidade. A justiça restaurativa, portanto, deve concentrar-se na propositura de alternativas criativas ao sistema tradicional e acautelar-se para não servir de complemento deste, com procedimentos mais sutis e sofisticados, de forma a ampliar o arcabouço punitivo do Estado, fortalecendo o papel simbólico da repressão penal324. Caso atue desta forma, estar-se-ia produzido mais um aparelho de controle formal (com incremento da sua extensão, intensidade, invisibilidade e dispersão), o que seria indesejado (COHEN, 1988, p. 35). Se assim for concebida, Foucault certamente criticaria a justiça restaurativa reputando-a como sendo um novo campo de vigilância e de punibilidade, potencializado pelas forças combinadas do sistema de justiça criminal e da sociedade.

No mesmo sentido, adverte Flores (2009, p. 95): “perigosamente, nas entrelinhas de um discurso dito progressista, se fortaleceria a radicalização do discurso legalista-punitivo e uma visão conservadora de organização social, na qual a vigilância é função primordial de toda a sociedade, de cada um de seus cidadãos”. 239 Faz-se, aqui, a ressalva de que, apesar de se apresentar como um paradigma novo de justiça criminal, os fundamentos e as origens da justiça restaurativa não são novos, mas baseados em preceitos antigos. Observa Gaudreault (2005, p. 1) que este paradigma apresenta um vigoroso contexto histórico e assume um retorno a respostas tradicionais para lidar com o crime, como as práticas indígenas e as tradições de países como Austrália, Estados Unidos, Canadá e África do Sul. Ele foi introduzido formalmente no sistema de justiça destes países após o reconhecimento de que o sistema de justiça era incapaz de encontrar soluções para o crime nas comunidades aborígines e por causa da constatação empírica de que a população indígena (maori, no caso da Nova Zelândia e ameríndios, inuítes e métis, no Canadá) é a maioria nas Cortes criminais e no sistema prisional. 240 A justiça restaurativa não descarta a possibilidade de que uma mesma pessoa seja simultaneamente ofensor e vítima (ou iniciar no papel de ofensor e seguir no de vítima, ou vice-versa). Beristain (2000, p. 84) cita como exemplo desta figura dual de vítima-ofensor os jovens viciados que, para conseguir o dinheiro de que necessitam para comprar drogas, veem-se compelidos a cometer delitos contra a propriedade (BERISTAIN, 2000, p. 84). 241 Um exemplo deste aprendizado para a autonomia na resolução de conflitos e assunção de obrigações positivas ocorreu numa escola em São Caetano do Sul, após um conflito entre alunos, com xingamentos e agressões. Todos os envolvidos participaram do círculo restaurativo e celebraram um acordo. Posteriormente, estes mesmos alunos se envolveram em novo desentendimento, desta vez sem violência, no qual o lanche de um deles, um iogurte, estourou, sujando sua roupa. Os alunos procuraram espontaneamente a conciliadora, informando o ocorrido e já apresentaram, de pronto, um acordo celebrado por eles mesmos: um levaria a roupa do outro para lavar, um terceiro traria um novo iogurte, e todos se entenderam quanto às condutas que deveriam adotar para que novas desavenças não surgissem (MELO, EDNIR e YAZBEK, 2008, p. 48). 242 Frise-se, aqui, que, a despeito da importância desta Resolução para a propagação da cultura restaurativa e para instar os Estados-membros da ONU a introduzirem a justiça restaurativa em seus ordenamentos, ela possui caráter meramente programático, carecendo de força vinculante. 243 A justiça restaurativa emprega métodos variados, como a medição vítima-ofensor, os círculos restaurativos, círculos de paz, círculos de sentença, conferências etc., que variam quanto à técnica empregada e o número de participantes. No programa restaurativo do Núcleo Bandeirante - Distrito Federal, a fórmula escolhida foi a mediação vítima-ofensor e, no Rio Grande do Sul, os círculos de conferência. Do ponto de vista do resultado, independentemente da técnica empregada, o que importa é o respeito aos princípios restaurativos. 244 Como visto, os abolicionistas pregam a abolição do sistema penal e a sua comutação por fórmulas mais participativas, mais democráticas, menos burocráticas e menos profissionalizadas de solução de conflitos, como o direito civil. Criticam que, por meio do direito penal, o Estado os expropria dos seus legítimos interessados, privando-os da oportunidade de avaliarem o grau de culpabilidade da ofensa e os efeitos dela em suas vidas por a resolverem por si próprios. Predicam, portanto, a reapropriação do conflito pelos afetados e seu grupo social mais próximo, a fim de que o solucionem conforme seu senso de justiça (chamada por eles de “justiça de aldeia”), porque a justiça formal encontra-se

atrelada ao cumprimento racional de objetivos e metas organizacionais e afastada das instituições culturais, da experiência humana e dos valores comunitários (CHRISTIE, 1993, p. 148). 245 Um caso em que a justiça restaurativa serviu para estancar uma cadeia de violência e de vingança ocorreu em São Caetano do Sul, por ocasião de um conflito entre meninas numa escola por conta de uma disputa amorosa por um rapaz. A agressora revelou, no curso do círculo, que já havia sido agredida anteriormente pela mesma situação e que a agressão à vítima atual era um modo de, agora, sentir-se superior, superando a baixa-estima decorrente do primeiro conflito. A realização do círculo, com o esclarecimento das necessidades a serem atendidas e dos meios mais adequados para se chegar a tal resultado, permitiu uma maior compreensão das mobilizações internas de cada pessoa envolvida, prevenindo novas situações de violência (MELO, EDNIR e YAZBEK, 2008, p. 74). 246 Sintomático da importância do diálogo para todos os envolvidos num conflito são os depoimentos seguintes, extraídos de participantes de círculos restaurativos na cidade de Porto Alegre: “Eu pensava que era tipo num tribunal, sabe, assim, a pessoas perguntando pra mim e eu respondendo, sabe, e mais ninguém podendo falar, entendeu? e não podendo olhar para as pessoas” (adolescente da Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (FASE)); “Pra mim foi bom porque eu tive a oportunidade de falar o que eu tava sentindo. Pude escutar o que as outras pessoas achavam ... Foi bom pra poder conversar, poder se expressar melhor um pro outro” (adolescente que participou de círculo no âmbito dos processos judiciais); “É diferente, sim, bem diferente. A gente tem oportunidade de falar aquilo que a gente sente, aquilo que a gente pensa, né? Eu acho que isso ajuda bastante” (familiar de adolescente que participou de círculo no âmbito dos processos judiciais); “Foi uma conversa que todos falaram para poder integrar as pessoas, a turma” (aluna de uma escola que participou de círculo restaurativo) (BRANCHER; AGUINSKY, 2007, p. 77 e 85). Todos os depoimentos foram colhidos de forma a preservar a identidade dos informantes de acordo com as exigências da ética na pesquisa social (em pesquisa sob a coordenação da Professora Dra. Beatriz Aguinsky, do Núcleo de Pesquisas e Estudos em Ética e Direitos Humanos (NUPEDH) da Faculdade de Serviço Social da PUCRS). 247 Quanto ao perdão, releva notar que, conquanto ele possa ser adequado para algumas vítimas e surgir naturalmente durante os encontros restaurativos, ele não deve ser o seu objetivo principal. Ressalte-se que, as vítimas não devem ser pressionadas a perdoar seus ofensores, pois o processo em si já lhes é bastante dificultoso. Ademais, se houver qualquer constrangimento para perdoar e, ao final, as vítimas forem incapazes de fazê-lo, isso pode ser interpretado como uma falha do programa (CRCVC, 2011, p. 4). Cabe mencionar ainda que a possibilidade do perdão encontra previsão legal expressa, por exemplo, na Lei de Mediação Penal da Província do Chaco: “Art. 9º - El acuerdo podrá versar además sobre el cumplimiento de determinada conducta, o abstención de determinados actos, prestación de servicios a la comunidad, pedido de disculpas o perdón” (ARGENTINA, 2002a, p. 1). 248 Caso o ambiente não seja respeitoso, não haverá a segurança necessária para aprofundar a discussão e explorar as reais causas e consequências do conflito, bem como os sentimentos e as expectativas relacionados a elas. Sem a discussão profunda sobre estes aspectos, resta frustrada a possibilidade de restauração, que não ocorre em um diálogo superficial. 249 Um exemplo em que o papel de vítima e o de ofensor se confundiram ocorreu no programa de justiça restaurativa do Núcleo Bandeirante - DF. Tratava-se de briga entre cinco rapazes, com idades entre 15 e 23 anos, durante uma festa de passagem de ano (2005), na casa de um familiar de um deles. Todos fizeram uso de bebida alcoólica e se agrediram verbal e fisicamente, de forma que não se sabia precisar quem era autor ou vítima no evento. No dia seguinte aos fatos, a situação se agravou com ameaça de morte feita entre dois dos rapazes. Um deles se mudou da comunidade e o outro ficou em casa, privado de sair por aproximadamente seis meses. O conflito afetou, além dos jovens, suas famílias e a comunidade. Encaminhados ao Projeto Justiça restaurativa, participaram

dos encontros privados e conjuntos, juntamente com seus familiares, chegando a um acordo restaurativo. 250 Segundo Arléne Gaudreault (2005, p. 1), professora de vitimologia da Escola de Criminologia da Universidade de Montréal, o reconhecimento de culpa e a vergonha reintegradora são especialmente difíceis para os ofensores, pois geralmente não estão acostumados a expressar seus níveis de emoção, mesmo com as pessoas mais próximas a eles. 251 O acordo restaurativo final é elaborado de forma conjunta, tanto pelas vítimas quanto pelo ofensor. Segundo a Resolução da UNESCO (2002, nº 3), ele deve atender às necessidades individuais e coletivas das vítimas e da sua comunidade; prever a assunção de responsabilidades pelas partes e possibilitar a reintegração das vítimas e do ofensor em seu meio. Na prática, é formulado um acordo escrito que inclui propostas como: reparação do dano, pagamento de indenização ou prestação de serviço comunitário, pedido de desculpas etc. O acerto deve conter os exatos termos do compromisso, descrevendo, de forma clara e precisa, tudo o que foi decidido acerca da reparação, restauração ou compensação, incluindo o responsável em executá-lo (que pode recair sobre outra pessoa, que não o ofensor, pois não se trata de uma pena, sujeita ao princípio da pessoalidade). O beneficiário pode ser pessoa distinta das vítimas, embora isso seja raro. Na província de Buenos Aires, por exemplo, a indenização às vítimas é priorizada, de forma que, em primeiro lugar, deve-se buscar uma reparação a ela e, apenas quando isto não for possível ou não for suficiente, é que se cogita de uma compensação em prol da comunidade (ARGENTINA, 2005, p. 1). Na experiência restaurativa brasiliense, houve casos em que um pedido de desculpas foi o suficiente para selar o acordo e outros em que a hipótese de indenização pecuniária foi rechaçada pelas vítimas. O ajuste pode incluir, também, a determinação de realização ou de abstenção de determinada conduta e, neste caso, contém orientações claras e precisas do comportamento esperado. Deve-se anotar, não obstante, que o acordo restaurativo tem importância secundária em comparação com o diálogo inicial entre as partes. Isso porque o diálogo expõe as necessidades de informação e as particularidades emocionais das vítimas, o que são centrais para sua recuperação e para o desenvolvimento no ofensor de uma empatia pelas vítimas, fato que pode conduzi-lo a uma diminuição do comportamento criminoso no futuro (UMBREIT, 2007, p. 1). 252 Sobre a diferença entre eles, ver nota de rodapé n. 106. 253 Exemplo de que os encontros são realizados na fase da execução da pena, após a condenação, é o dos “círculos de cura” canadenses, cerimônias destinadas a trazer fim aos conflitos, a permitir que os participantes expressem seus sentimentos e propiciar que ofensor e vítima passem por uma cura pessoal (CRCVC, 2011, p. 7). 254 Em geral, as partes apreciam o convite para uma participação no encontro: “Ela veio aqui, ficou sentada onde tu tá, fez um monte de perguntas e perguntou se eu queria participar e se eu concordava em participar. Tanto eu quanto a Thais ou se pudesse o pai ir junto, né? Aí, eu disse para ela que sim, né? Como eu gosto de participar de tudo que me convidam, participar de grupo é comigo.” (depoimento da mãe de uma vítima que participou de círculo restaurativo no âmbito dos processos judiciais) (BRANCHER; AGUINSKY, 2007, p. 79). Note-se, outrossim que, quando são várias as vítimas, é desejável o consentimento de todas elas para que o caso seja encaminhado à justiça restaurativa. 255 Exemplar desta situação é o caso do adolescente Davi, narrado pela professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, Patrice Schuch: “Essa visão contrasta com a que ouvi de Davi, um adolescente que, aos dezoito anos, praticou um roubo à mão armada e permaneceu nove meses em uma instituição de privação de liberdade. Davi contou-me que aceitou participar das práticas restaurativas porque pensou que sairia mais rapidamente da medida de internação. Ele realizou o círculo restaurativo aos seis meses de medida socioeducativa, mas frustrou-se porque teve que permanecer mais três meses internado. Entretanto, avalia como fundamental a participação no

círculo, não porque tenha se arrependido do que fez apenas no momento do círculo, o que salientou já ter ocorrido anteriormente ao encontro, mas porque percebeu o quanto sua mãe e amigos o amavam e estavam preocupados com seu futuro. O caso de Davi é muito significativo, uma vez que, quando saiu da FASE, percebeu que os acordos feitos no seu encontro restaurativo, tais como o apoio para que conseguisse um emprego e a inserção em uma escola, não estavam sendo cumpridos. Sem pestanejar, voltou ao Juizado da Infância e Juventude reclamando seus direitos. Contou-me que a solução encontrada foi colocá-lo como auxiliar administrativo no projeto Justiça restaurativa, no qual permaneceu por um ano. Acabou por ser capacitado nas práticas restaurativas — e de usuário passou a futuro mediador de práticas — embora até hoje não tenha realizado nenhum círculo restaurativo na posição de coordenador” (SCHUCH, 2009, p. 15). 256 Fonte da informação: Compartilhamento de experiências restaurativas durante a realização do curso para facilitadores em círculos de justiça restaurativa e de construção de paz, com a professora norte-americana Kay Pranis, promovido pelo “Programa Justiça 21”, em Porto Alegre, entre 23 e 26 de outubro de 2012. 257 A maioria dos programas restaurativos emprega um processo de quatro fases: encaminhamento e entrada de casos, preparação para o encontro (na qual o facilitador se reúne separadamente com as partes, para ouvir suas histórias, explicar o programa, convidá-las a participar e prepará-las para o encontro face a face), o encontro restaurativo propriamente dito (no qual um facilitador treinado auxilia o diálogo entre os interessados, para que conversem sobre o impacto do crime em suas vidas, fornecendo informações a respeito do evento para possibilitar a elaboração de um acordo escrito de reparação mutuamente acordado) e a fase de pós-encontro, em que se monitora os acordos restaurativos. Nesta fase, novos encontros podem ser agendados se surgirem eventuais problemas (UMBREIT, 2007, p. 1). 258 A preparação das partes durante o pré-encontro inclui as seguintes providências (PRANIS, 2011, p. 10): “ouvir a história ou a perspectiva daquela pessoa no que se refere à situação; explicar o processo; responder a perguntas a respeito do processo — como funciona, quem estará presente etc.; determinar se a pessoa tem preocupações sobre sua participação, identificar pessoas de apoio para as partes-chave a serem convidadas a participar do círculo; esclarecer a respeito da confidencialidade e exceções; criar um relacionamento de modo que a pessoa confie nos facilitadores no processo; verificar se há disposição para falar sobre os assuntos-chave com todo o círculo; verificar se há disposição para escutar os outros que possam ter pontos de vista diferentes; [...] determinar se há outras pessoas cuja participação poderia ser útil no círculo (por ex.: pessoas que apoiem as partes-chave no conflito, terceiros que sejam respeitados por ambas as partes e que não estejam alinhados com nenhuma das partes-chave nesse assunto, outras que tenham sido afetadas pela situação, etc.); identificar os assuntos-chave que parecem ser importantes e que sejam discutidos no círculo.” 259 Neste sentido, ilustrativo o depoimento de uma co-coordenadora de círculo restaurativo ocorrido em uma escola de Porto Alegre: “Eu acho que é a necessidade que tá ali presente, né? Pra tu fazer esse papel de coordenador e é muito complicado pra gente ficar palpitando [...] e tu não tem que palpitar também, pra tu deixar que venha deles que eles consigam colocar qual é o problema, qual é o fato ou qual é a necessidade e como que vamos resolver isso, né? A gente vai passando na frente, e a gente tem que ter essa espera, essa paciência e ao mesmo tempo deixar eles à vontade pra que eles consigam falar e se colocar” (BRANCHER; AGUINSKY, 2007, p. 77). 260 Caso curioso ocorreu em uma escola em São Caetano do Sul, onde um facilitador do projeto comunitário de justiça restaurativa teve o seu próprio filho envolvido em conflito recorrente com outro garoto mais velho. A princípio, ele pretendia a separação dos meninos que estudavam na mesma escola. Como as ofensas eram recíprocas, ambos respondiam a processos judiciais pelo mesmo conflito, o menor de idade na Vara da Infância e o outro, o maior, no Juizado Especial

Criminal. O mediador receou inicialmente encaminhar seu filho para o círculo restaurativo. Apesar do medo, aceitou a experiência e todos chegaram a um plano de ação. O facilitador agradeceu a oportunidade de poder redescobrir pessoalmente o projeto, ressignificando o processo como algo que lhes pertence também como comunidade, em seu próprio benefício, não se tratando apenas de uma ação que fazem para os outros (MELO, EDNIR e YAZBEK, 2008, p. 66). 261 Kay Pranis é pesquisadora e tutora prática de justiça restaurativa e autora de diversos livros (em inglês e português) sobre o assunto. Atuou como Planejadora de Justiça Restaurativa para o Departamento Correcional de Minnesota de 1994 a 2003 e ministra oficinas para profissionais no Rio Grande do Sul e em São Paulo. 262 Exemplos da atuação prática do facilitador (principalmente por meio da elaboração de perguntas eficientes) são citados pela autora (PRANIS, 2011, p. 17): “Encorajar os participantes a falar de suas próprias experiências vivenciadas (por exemplo: Como você foi afetado? Como foi para você estar envolvido nessa situação? Qual foi a coisa mais difícil para você? De que você precisa para seguir adiante? O que você pode oferecer para ajudar nessa situação?); convidar os participantes a compartilhar histórias de suas vidas (compartilhe uma experiência em que você...); colocar o foco nos sentimento e nos impactos ao invés de nos fatos; convidar ao reconhecimento dos pontos positivos e dos recursos, bem como das dificuldades; fazer a transição dos participantes da discussão de acontecimentos difíceis ou dolorosos para a discussão do que pode ser feito agora para tornar as coisas melhores”. 263 A respeito, vide artigos 24 a 28 da Lei de Mediação da Província de Rio Negro (ARGENTINA, 2008, p. 1). Curioso que a lei criou até uma unidade monetária para o pagamento do mediador. Confira-se: “Artículo 24 - UNIDAD DE PAGO. Créase como unidad de medida de pago de la presente Ley el MED, cuyo valor a la fecha de sanción de la presente será de *pesos veinticinco ($ 25)*. Esta unidad será actualizable por el Superior Tribunal de Justicia de acuerdo a las pautas que se fijen en la reglamentación.” (ARGENTINA, 2008, p. 1). 264 Reservando a função de mediador apenas a advogados, o artigo 28 da Lei de Mediação da Província de Corrientes (ARGENTINA, 2002b, p. 1): “Art. 28- Para actuar como mediador en sede judicial se requerirá: a) Poseer título de abogado con una antigüedad en el ejercicio profesional de tres (3) años. b) Haber aprobado los cursos introductorio y de entrenamiento y las pasantías, que implica la conclusión del nivel básico del Plan de Estudios de la Escuela de Mediadores del Ministerio de Justicia de la Nación, un otro equivalente de Jurisdicción Provincial que cuente con el reconocimiento del Ministerio citado. c) Estar inscripto en el Centro Judicial de Mediación. d) Tener una residencia permanente en la Provincia de Corrientes con una antigüedad mínima de cinco (5) años anteriores a la fecha de su inscripción.” 265 A escolha do facilitador geralmente é feita por eleição das partes ou por sorteio, a depender da legislação local. 266 Note-se que, em Portugal, o Ministério Público assume o papel de principal condutor dos procedimentos restaurativos e não o Poder Judiciário, como acontece. 267 Exemplo disto está na lei portuguesa de mediação penal: “Artigo 8º. Nas sessões de mediação, o arguido e o ofendido devem comparecer pessoalmente, podendo fazer-se acompanhar de advogado ou de advogado estagiário.” (PORTUGAL, 2007, p. 3). Já a lei argentina da Província de Corrientes reserva exclusivamente aos advogados a função de mediadores (ARGENTINA, 2002b, p. 1). 268 Orientações e cursos disponíveis na página do comitê em http://apps.americanbar.org/dch/committee.cfm?com=CR100000. Acesso em: 8 dez. 12. 269 Relevante ressaltar que a maioria destas comissões de mediação a associam à arbitragem, direcionando-a aos conflitos cíveis. Ressalva deve ser feita à comissão gaúcha, intitulada “Comissão de mediação e práticas restaurativas”, destinada, também, à solução de conflitos na seara criminal, por esforço pessoal de seu atual presidente, Ricardo Pires Dornelles. A atuação destas comissões

tem se concentrado precipuamente na oferta de cursos de sensibilização para a mediação e de divulgação da cultura de paz, sendo digno de nota o trabalho da comissão da OAB distrital, coordenado por Fabíola Luciana Teixeira Orlando Souza. 270 Na cidade de São Paulo, a iniciativa “Casa de Mediação” está a cargo da prefeitura local (atrelada à Secretaria Municipal de Segurança Urbana) e compõe um dos serviços da “Rede Municipal de Mediação de Conflitos”. Fonte: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/seguranca_urbana/casas_de_mediacao/index.php ?p=45127. Acesso em: 14 jan. 14. 271 Assim como a vítima, o ofensor possui necessidades que não são visualizadas pelo sistema de justiça, como ilustra o seguinte depoimento colhido com adolescente que participou de círculo familiar quando em cumprimento de medida socioeducativa de internação: “[...] por que eu tinha tudo que eu queria, mas eu queria bastante era atenção. As vezes eu roubava o carro e ficava ficava só passando na frente da minha mãe. Pra minha mãe me ver e ir lá me dar um puxão de orelha sabe, mas ela não fazia isso...então só pegava e vamos conversar, conversar e não fazia o que queria, e até que eu fui, fui... e quando vi acabei lá (FASE) e ela ouviu [...]”. (BRANCHER; AGUINSKY, 2007, p. 76) 272 Sobre o direito penal do inimigo, de Günther Jackobs, ver seção 1.4.2. 273 Sobre este aspecto, duas decisões históricas do Supremo Tribunal do Canadá sobre a justiça restaurativa merecem ser citadas: R v Gladue (1999) e R. v Proulx (2000). Nestas, o tribunal rejeitou a ideia de que uma abordagem restauradora é uma abordagem mais branda para o crime ou de que uma sentença recomendando a justiça restaurativa seria uma decisão mais leve. A Corte afirmou que, na verdade, trata-se de sentenças que respondem às necessidades das vítimas, da comunidade e do ofensor e que restauram a harmonia. Asseverou, também, que a tendência irrefreável aponta para os meios alternativos de resolução de conflitos, como a justiça restaurativa; para uma menor dependência do encarceramento como forma de sanção e para o do uso de princípios de justiça restaurativa nas sentenças. No original: “Restoring harmony involves determining sentences that respond to the needs of the victim, the community, and the offender”. Fonte: R v. Gladue [1999] 2 C.N.L.R. 252 e R. v. Proulx [2000] 1 S.C.R. 61. Disponível em: http://www.duhaime.org/LegalDictionary/R/RestorativeJustice.aspx. Acesso em: 18 fev. 13. 274 Uma amostra do potencial gerador de sentimento de empatia pela justiça restaurativa é o seguinte depoimento de vítima de ofensa que participou de círculo restaurativo no âmbito das escolas: “Poder conversar com o R... No início quando aconteceu, tive muita raiva, aí depois passou para pena, e foi bem interessante, eu não posso dizer se foi exatamente como esperava, porque eu não tinha ideia de como seria.” (BRANCHER; AGUINSKY, 2007, p. 81). 275 Observa Luis Alberto Warat (2001, p. 198) que, na vigência do paradigma moderno, a imagem do outro é fabricada a partir de modelos institucionais idealizados que excluem e catalogam quem não se enquadra em seus arquétipos. As redes de poder-saber definem quem é o outro, o que falta ao outro, do que necessita para integrar-se e os seus modelos de relações. “A divergência destes, tão natural e humana, torna-se malquista e indesejada, própria para ser ajustada por aparatos pedagógicos, assistenciais ou terapêuticos, que visam fazer entrar os loucos no modelo de nossa razão, os filhos em nossa simulada maturidade, os selvagens em nossa cultura, os estrangeiros em nosso país, os criminosos em nosso direito, os deficientes no modelo de nossa normalidade e os marginalizados no modelo de integração” (WARAT, 2001, p. 198). 276 A cultura do medo não é exclusividade brasileira. Enquanto, no Brasil, a ênfase é sobre o temor da violência urbana, nos Estados Unidos, principalmente após o episódio de 11 de Setembro, o enfoque está nos prováveis novos ataques terroristas. Por conta do medo, indivíduos são selecionados e isolados em razão da sua origem, cor de pele, religião e os Estados investem como nunca na indústria bélica e no armamento preventivo. Em que pese que a violência seja peculiar em cada país,

eles têm em comum o apelo midiático no que se refere a ela (PRADO, 2006, p. 61). 277 Veja-se o caso da transmissão ao vivo do sequestro do “ônibus da linha 174”, no Rio de Janeiro, em 2000; do homicídio da estudante Eloá, em Santo André, em 2008; da morte do menino João Hélio, no Rio de Janeiro, em 2007; da menina Isabella Nardoni, em São Paulo, em 2008; do julgamento do “mensalão”, em 2012. Não se olvide, por outro lado, o fato de que os órgãos de imprensa geralmente estão subordinados a grandes grupos econômicos, que elegem, de acordo com sua conveniência, o momento oportuno de divulgação dos crimes de rua ou os de colarinho branco, por exemplo. 278 Deve-se frisar que não se considera aqui que o senso comum seja algo negativo ou malquisto. É que forma como se apresenta, ele oculta as constelações de poder, de direito e de conhecimento. O desejável é um senso comum novo, emancipatório e transformador da praxis penal cotidiana (SOUSA SANTOS, 2000, p. 323). 279 Número de expectadores calculado de acordo com o último senso do IBGE, segundo o qual, 96,9% dos lares brasileiros possuem televisores, o que equivale a 61.292 domicílios em números absolutos; cada domicílio possui em média 3.3 habitantes e a população brasileira em julho de 2012 era de aproximadamente 194 milhões de habitantes. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/sinteseindicso ciais2009/default_tab.shtm. Acesso em: 15 nov. 12. 280 De acordo com o último Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), realizado em 2009 pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil, apesar de ter melhorado em relação ao último levantamento, ainda ficou em 53º colocação (dos 65 países estudados), atingindo 412 pontos no ranking de educação e literatura de seus estudantes (abaixo, entretanto, da média mínima de 500 pontos) (OCDE, 2009, p. 1). De acordo com a OCDE, o Brasil sucumbiu em especial no conhecimento literário no qual “cerca de 98% dos estudantes brasileiros não foram capazes de combinar informações diferentes de um texto para construir uma redação que fizesse sentido, e muitos não conseguiram atingir a meta de encontrar cinco informações simples na leitura de um texto” (REMES, 2010, p. 1). Os estudantes de Xangai, China, alcançaram os melhores resultados. O Brasil ficou atrás de países como Bulgária, Romênia México, Chile e Uruguai e ficou à frente da Colômbia, Argentina, Cazaquistão, Tunísia, Indonésia, Albânia, Catar, Azerbaijão, Panamá, Peru e Quirguistão (OCDE, 2009, p. 1). 281 Fonte: Tabela DEPEN — Departamento Penitenciário Nacional. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D-437A-A5B622166AD2E896%7D&Team=¶ms=itemID=%7BC37B2AE9-4C68-4006-8B1624D28407509C%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D. Acesso em: 15 nov. 12. 282 A esse respeito, lembra Lola Aniyar de Castro (1983, p. 48) que os chamados “crimes do colarinho branco” podem ser considerados mais graves do que os elencados. Seus custos superam, em muitas vezes, o somatório de todos os furtos e roubos do país, pois “altera a qualidade de vida, obriga a frequentes gastos com reparações, limita as entradas de impostos, traz em si a ruína de pequenas empresas, aumenta o custo de vida e implica, além disso, um alto custo moral, tomando-se em conta que os autores desses fatos, geralmente são os líderes da comunidade”. 283 Para Mills (1968, p. 337), haveria uma tendência à mercantilização da política, e a mídia teria a função de manipular e formar a opinião pública no sentido de reforçar o poder das elites dominantes. 284 Exemplo de que as impressões retratadas pela mídia não correspondem necessariamente ao sentimento da população sobre o crime e a punição está em uma pesquisa de opinião pública realizada em Minnesota pela universidade estadual local (PRANIS; UMBREIT, 1992, p. 27). Os resultados da pesquisa, numa amostra de 825 adultos, delineiam um quadro de um público bem menos vingativo do que aquele retratado pela mídia. Os entrevistados, ao invés de priorizarem retribuições de alto custo, como as prisões, demonstraram uma grande preocupação com a

reparação e com as estratégias preventivas que invistam em justiça social. De acordo com eles, por exemplo, responsabilizar um ofensor pessoalmente perante a vítima é mais importante do que a prisão em cadeias. A segurança pública, no entendimento dessas pessoas, estaria mais diretamente ligada ao investimento em educação, cursos profissionalizantes e outros programas comunitários do que ao encarceramento. 285 Como visto na seção 3.3.1, Habermas (1997b, p. 92) concebe a esfera pública como um locus para a troca de informações, discussão, contestação, luta política e organização. Certamente, além das interações face a face da vida cotidiana, isso inclui os novos meios de transmissão e de comunicação, como a internet, como novas esferas públicas de debate e informação. A ascensão da internet expandiu o campo para a participação democrática e para o debate, constituindo uma nova base para a participação política, como demonstrou exemplarmente a “Primavera Árabe.” Novos movimentos sociais e grupos de oposição se utilizam destes meios de comunicação para se organizarem e ampliarem o campo da política democrática. Entretanto, é preciso ter com a internet os mesmos cuidados que se tem com os outros meio de comunicação, para que não se torne um instrumento contra a cultura democrática. Por exemplo, o insulto, a falta de civilidade e o exibicionismo são potencializados neste ambiente pelo anonimato nos blogs e nas redes sociais devido à velocidade com que tudo acontece (SANDEL, 2011, p. 1). 286 Ilustrativos da humanização propiciada pela justiça restaurativa, em especial da figura do ofensor, os seguintes depoimentos: “Antes (outras experiências com a Justiça) quando eles começavam a gritar comigo, parecia que eu era um bicho. A gente viu um meio de eu melhorar, entendeu? Para eu sair dessa vida, entendeu? E tentar mudar um pouco, cuidar as influências que a gente tem, é normal em qualquer lugar, é procurar um tratamento, é procurar um estudo, alguma coisa assim. É se ocupar, como eu falei” (adolescente que participou de círculo no âmbito dos processos judiciais); “(...) tipo assim, elas viram, tipo tem mais confiança, e viram que aquela pessoa que eu sou, que eu não sou aquela pessoa que eles... o juiz pensa ou outras pessoas... que usam distintivo ou uma coisa pensam. Eu sou outra pessoa, longe daquilo que eles podem ver e do que eu era.” (adolescente que participou de círculo no âmbito do Sistema de Atendimento Sócio-Educativo) (BRANCHER; AGUINSKY, 2007, p. 78). 287 Fonte: Why Victims Face the Criminals Who Hurt Them. Pacific Standard, n. 20 dezembro 2010. Disponível em: http://www.psmag.com/legal-affairs/why-victims-face-the-criminals-who-hurt-them25993/. Acesso em: 6 dez. 12. 288 Fonte: Why Victims Face the Criminals Who Hurt Them. Pacific Standard, n. 20 dezembro 2010. Disponível em: http://www.psmag.com/legal-affairs/why-victims-face-the-criminals-who-hurt-them25993/. Acesso em: 6 dez. 12. 289 Idem. Ibidem. 290 No original: “Victims” means persons who, individually or collectively, have suffered harm, including physical or mental injury, emotional suffering, economic loss or substantial impairment of their fundamental rights, through acts or omissions that are in violation of criminal laws operative within Member States, including those laws proscribing criminal abuse of power” (art. 1º). 291 Doutora em psicologia da Universidade Nacional de Córdoba. Em 1986, fundou, nesta província, o primeiro Centro de Atenção à Vítima da América Latina. 292 Um caso do programa de justiça restaurativa do Núcleo Bandeirante é emblemático desta situação: moradores e familiares de um edifício com doze unidades habitacionais se envolveram em pequenos conflitos que tomaram grande proporção, culminando no ajuizamento de ações cíveis e penais recíprocas por crimes contra a honra, que não lhes trazia proveito, mas deterioravam ainda mais a relação cotidiana e acresciam negativamente aos seus antecedentes criminais. Após a realização de vinte e sete encontros privados e um restaurativo (coletivo), foi possível se chegar a um acordo com o qual todos pudessem conviver, sem que tivessem que mudar de residência e sem que tivessem

seus empregos prejudicados. 293 Ezzat Abdel Fattah é um pioneiro no estudo da vitimologia, conhecido por seus estudos nas áreas temáticas de descriminalização das drogas, modernização do direito penal, abolição da pena de morte e das prisões e da luta pelos direitos humanos. É professor-fundador da escola de criminologia da Simon Fraser University. Ele cita, como fonte, um manuscrito de Fattah, intitulado “Victimization as antecedent to offending. The revolving and interchangeable roles of victim and victimizer”, de 4 de novembro de 1992. 294 A vitimização terciária emerge como resultado das vivências e dos processos de atribuição e rotulação, como consequência das vitimações primária e secundária precedentes. A vítima aceita essa nova imagem de si mesma, imposta pelo sistema criminal, pela mídia etc. e decide, por meio desse papel, vingar-se das injustiças sofridas e de seus vitimadores (BERISTAIN, 2000, p. 105). 295 Nordenstal (2008, p. 32) observa que, em que pese o direito penal dividir as sanções ao comportamento humano em grupos como “crimes contra a vida”, “crimes contra a propriedade”e “crimes contra a liberdade sexual”, tendo em vista o bem jurídico tutelado muito embora a ofensa possa ser destinada a um objetivo específico, suas consequências vão muito além do que foi anunciado pela norma penal. O autor menciona a ocorrência comum nas vítimas de delito, do transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), cujos principais sintomas são sensação de cansaço e esgotamento (sem forças físicas para realizar qualquer tarefa), sentimentos de impotência e desamparo (sensação de estar sozinho para enfrentar a adversidade), sentimentos de inadequação, frustração, ansiedade, marginalização, confusão e ansiedade (com isolamento e obstrução para a realização do seu potencial, faltando segurança e espontaneidade), desorganização nas relações familiares (transformação na dinâmica familiar, como mudanças de horários, de rotas e de veículos, mudança de residência, nas recomendações para o uso de telefone e internet, extensíveis a todos os membros da família), ruptura nas relações sociais (abandono de práticas sociais como esporte, artes e apresentações culturais, sedentarismo excessivo, abstenção de contato físico, supervalorização de medidas de segurança (colocação de grades nas portas e janelas, sistemas de alarme e câmeras, identificador de chamadas em telefones, recrutamento de segurança privada, compra de armas, cães de guarda etc.), desorganização nas relações de trabalho (necessidade de tempo para retomar as atividades) (NORDENSTAL, 2008, p. 33). 296 Exemplo inusitado desta sucessão de sentimentos por que passam as vítimas é a situação narrada por Louk Hulsman (notório abolicionista penal) de quando ele próprio foi vítima de furto em sua residência, por algumas vezes, na Holanda: “Anda-se pela casa e, à medida que as cenas vão sendo absorvidas, a pessoa é tomada pela raiva; pelo menos, eu fiquei com muita raiva e senti necessidade de quebrar os ovos na testa de quem provocara aquela destruição, de pegar suas coisas e destruí-las e depois perguntar se tinha gostado da experiência. [...] Como vítima, porém, meus sentimentos eram mais complicados, porque, enquanto vagava pela casa, dizia a mim mesmo: ‘Graças a Deus, não destruíram aquilo!’, com um certo alívio. De fato, tinham destruído muito menos do que poderiam, demonstrando até uma certa moderação. Mais tarde, me senti aliviado, quase contente, por não ter perdido muito mais. Assim, além da raiva, experimentei alívio e mesmo uma certa curiosidade em saber por que tinham feito aquilo, o que significavam os ovos, o monte de charutos e outras coisas bizarras? [...] Ainda que pareça estranho dizer, estávamos nos habituando a estas invasões e até julgávamos poder delinear o perfil dos culpados. Sabíamos que, provavelmente, eram três; eu imaginava o que diria se os encontrasse, acontecimento que esperava ser possível. Obviamente, minha mulher estava especialmente assustada com tal perspectiva. [...] Disseram que tinham recuperado parte de nossos bens e me pediram que fosse identificá-los. Descobri, então, que a polícia tinha muitos objetos, alguns dos quais eu não tinha sequer dado falta; quase tudo foi recuperado, exceto uma faca de que falarei mais adiante. Não é uma faca preciosa, mas muito afiada; eu a obtivera há pouco, na Finlândia, uso-a para cozinhar e, para mim, tem um valor muito

especial. [...] Passaram-se seis meses antes que os rapazes fossem indiciados pelos furtos e outros sete ou oito meses antes do processo. Durante todo esse tempo, nenhum dos vários órgãos dos serviços sociais jamais veio me procurar; por outro lado, eu não fui a eles porque, do ponto de vista da pesquisa, me interessava ver o que aconteceria. [...] Quando as acusações foram formalizadas, nem eu nem minha mulher víamos o que se poderia ganhar com um processo: não nos parecia que uma audiência fizesse sentido” (HULSMAN, 2004, p. 56-61). 297 Um exemplo de necessidade não respondida das vítimas está no seguinte depoimento de um ofendido que participou do círculo restaurativo no programa de Porto Alegre: “Já pensou alguém te dá um tapa e tu não sabe quem foi. Vai embora e tu não vê. Tu vai ficar com aquele negócio de quem te fez alguma coisa” (BRANCHER; AGUINSKY, 2007, p. 76). 298 Exemplos destas regras são a Leis de Talião, o Código de Manu ou o Zend Avesta, as quais, ao tempo em que tentavam enquadrar alguma proporcionalidade para essa forma de “fazer justiça” também a tornavam um atributo do Estado (NORDENSTAL, 2008, p. 23). O autor ressalta que, já durante a Idade Média, foi ocorrendo a diferenciação e a classificação dos crimes, das punições e foi feita a demarcação da área de tratamento entre o público e o privado. Nasce, então, um sistema de compensação por meio de dinheiro, negociado entre ofensor e vítima e suas famílias (NORDENSTAL, 2008, p. 23). 299 Nordenstal (2008, p. 24) afirma que assim ocorreu principalmente em virtude da necessidade dos reis de concentrarem a função judicial na órbita do Estado, símbolo do poder perante os senhores feudais, a fim de assegurar a obediência e a lealdade de seus súditos. A identificação do soberano com a lei deixa clara a equação: Ir contra a lei é ir contra a vontade do soberano. Então, quem ofende a lei, atenta contra o soberano. 300 Ressalve-se que nos casos de violência doméstica, onde a intimação das vítimas é feita por imperativo legal (art. 21 da Lei n. 11.340, de 2006, “Lei Maria da Penha” :“Art. 21. A ofendida deverá ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos pertinentes ao ingresso e à saída da prisão, sem prejuízo da intimação do advogado constituído ou do defensor público. Parágrafo único. A ofendida não poderá entregar intimação ou notificação ao agressor”). 301 Sobre a importância do investimento em formação dos agentes públicos que lidam com as vítimas, a decisão-quadro (2001/220/JAI) do Conselho da União Europeia estabelece que: “É necessário dar formação adequada e correta a todos aqueles que contatem com as vítimas, o que é fundamental tanto para as vítimas como para alcançar os objetivos do processo” (art. 11). 302 No original: “7. Informal mechanisms for the resolution of disputes, including mediation, arbitration and customary justice or indigenous practices, should be utilized where appropriate to facilitate conciliation and redress for victims.”(ONU, 1985, p. 1). 303 Art. 10, da decisão-quadro (2001/220/JAI) do Conselho da União Europeia “(10) É importante a intervenção de serviços especializados e organizações de apoio às vítimas, antes, durante e após o processo penal.” 304 NOVA ZELÂNDIA. Victim of Offences Act, de 17 de outubro de 2002. Disponível em: http://www.legislation.govt.nz/act/public/2002/0039/latest/whole.html. Acesso em: 14 nov. 12. 305 A iniciativa neozelandesa está em consonância com a decisão-quadro (2001/220/JAI) do Conselho da União Europeia que também garante às vítimas a oportunidade de serem ouvidas e a apresentarem provas: “Art. 3º: Audição e apresentação de provas — Cada Estado-Membro garante à vítima a possibilidade de ser ouvida durante o processo e de fornecer elementos de prova. Cada Estado-Membro toma as medidas adequadas para que as suas autoridades apenas interroguem a vítima na medida do necessário para o desenrolar do processo penal.” 306 São exemplos dessas organizações não-governamentais canandenses: “Aboriginal Justice Directorate”, “Canadian Families and Corrections Network”, “The F Word”, “Heartspeak Productions”, “Peace of the Circle”, “Quakers Fostering Justice of Canadian Friends Service

Committee”, “The Sawbonna Project”, “Shannon Moroney, RJ Advocate, Author, Artist, Speaker”, “The Story of Bob”, “Youth Canada Association” (YOUCAN). Fonte: Serviço Correicional do Canadá (“Correctional Service Canada”). Disponível em: http://www.csc-scc.gc.ca/text/rj/crgnational-eng.shtml. Acesso em: 14 nov. 2012. 307 Este artigo foi inserido no Código de Processo Penal pela Lei nº 11.690, de 9 de junho de 2008. Ele estabelece que (grifos não constam do original): “Art. 201. Sempre que possível, o ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas declarações. § 1º Se, intimado para esse fim, deixar de comparecer sem motivo justo, o ofendido poderá ser conduzido à presença da autoridade. § 2º O ofendido será comunicado dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem. § 3º As comunicações ao ofendido deverão ser feitas no endereço por ele indicado, admitindo-se, por opção do ofendido, o uso de meio eletrônico. § 4º Antes do início da audiência e durante a sua realização, será reservado espaço separado para o ofendido. § 5º Se o juiz entender necessário, poderá encaminhar o ofendido para atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde, a expensas do ofensor ou do Estado. § 6º O juiz tomará as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação.” 308 “Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios: [...] III prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas;” 309 A vantagem para as vítimas liberarem-se do medo pode ser ilustrada neste depoimento da mãe de um adolescente que participou de círculo restaurativo no Rio Grande do Sul: “Eu acho que valeu a pena pra vítima, no caso, pra ela não viver com medo dos guris que fizeram o que fizeram pra ela, né? Por que, morando ali, conhecendo os caras que fizeram pra ela, vai viver com medo! Vai pensar que se sair pra rua os caras vão pegar, vão bater, fazer de novo. Por que, quando tu passa por uma coisa dessas, é igual um estupro, uma coisa assim. Tu fica com medo, fica traumatizada. Tu tem medo de sair na rua” (BRANCHER; AGUINSKY, 2007, p. 78) 310 Por exemplo, citamos a opinião do movimento “Victims Support”, do Reino Unido: “Victim Support recognises that restorative justice has benefits for those victims who want it. Many victims have a psychological need for information after a crime that will help them to make sense of their experience, and which only the offender can supply. Victim Support believes that a restorative justice process can help provide this information which in turn can help the victim to recover from the crime and alleviate their fear of future crime. Some victims value the opportunity to tell the offender how the crime affected them. Reparation to the victim can also benefit them.” Disponível em: http://www.victimsupport.org.uk/~/media/Files/Policy%20and%20research/Position%20statements/P PS%20-%20RJ%20revised.ashx. Acesso em: 14 nov. 2012. No mesmo sentido, a opinião da organização norte-americana em favor das vítimas e testemunhas “Witness Justice’s”: “Restorative justice is an umbrella term encompassing a wide range of programs and approaches. In general, restorative justice proponents seek a holistic, integrated sense of justice and healing for victims, as well as personal accountability from offenders. For some, the concept of restorative justice extends to the broader communities affected, the idea being that

healing and justice are interconnected for everyone.”. Disponível em: http://www.witnessjustice.org/justicesystems/restorative_justice.cfm. Acesso em: 14 nov. 2012. 311 A respeito dos direitos das vítimas, a decisão 2001/220/JAI do Conselho da União Europeia estabelece: “É necessário aproximar as regras e práticas relativas ao estatuto e aos principais direitos da vítima, com particular relevo para o direito de ser tratada com respeito pela sua dignidade, o seu direito a informar e a ser informada, o direito a compreender e ser compreendida, o direito a ser protegida nas várias fases do processo e o direito a que seja considerada a desvantagem de residir num Estado-Membro diferente daquele onde o crime foi cometido” (art. 8º). 312 A notícia sobre o desenvolvimento da capacidade de percepção do outro por meio da escuta ativa restaurativa é dada por uma aluna, participante de um encontro restaurativo numa escola do Rio de Janeiro: “Eu comecei a ver de outra forma, agora eu entendo mais as pessoas, como elas são, os problemas delas - que também conflito é gerado por problemas. Então eu comecei a compreender o que as pessoas falam” (CECIP, 2013, p. 76 e 77). 313 Disponível em: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/dhajNOVO-regrastoquio.html. Acesso em: 17 jan. 14. 314 Em contraste a elas, há as Gesellschaft (traduzidas como sociedade, sociedade civil ou simplesmente associação) para descrever as associações cujos interesses jamais teriam precedência sobre o autointeresse do indivíduo. Essas associações não teriam o mesmo nível de costumes compartilhados e seriam mantidas por meio de pessoas agindo em busca de seu próprio interesse racional. Um exemplo de Gesellschaft hoje seria a empresa moderna (TÖNNIES, 2001, p. 24). 315 Tipo normal, conforme cunhado por Tönnies, refere-se a uma ferramenta puramente conceitual muito semelhante ao conceito weberiano de “tipo ideal” (conceito teórico-abstrato que não existe na realidade, mas que pode servir de modelo para a analisar e compreender casos concretos). Fonte: Dicionário de sociologia. Disponível em: http://www.prof2000.pt/users/dicsoc/soc_t.html#tipo-ideal. Acesso em: 7 fev. 13. 316 A importância dos apoiadores para os envolvidos num círculo restaurativo pode ser ilustrada nos depoimentos a seguir: “[...] as pessoas que estavam ali eram as pessoas que mais gosto mesmo. São as pessoas que eu sempre quero que estejam do meu lado.” (adolescente que participou de círculo no âmbito do Sistema de Atendimento Sócio-Educativo”; “Porque, assim, se tivesse só eu e ele, eu ia ficar com um pouco de medo. Daí ficou um monte de gente junto. A minha família comigo” (vítima que participou de círculo restaurativo no âmbito de processos judiciais); “Foi muito emocionante, sabe? o meu avô falando. Eu me emocionei bastante. Foi à pessoa que falou mais que eu me emocionei, porque a minha mãe, eu ficava mais perto. Ela falava, eu não me emocionei tanto no encontro, mas quando o vô falou, foi um choque. Eu não esperava. E a minha esposa também eu não esperava. Foi quando eu percebi que ela gostava bastante de mim... Meu vô falou pouquinho, mas falou bastante, foi o que falou por tudo. Deu a palavra necessária, como se diz, a palavra chave” (BRANCHER; AGUINSKY, 2007, p. 78 e 86). 317 Caso emblemático ocorreu no programa de justiça restaurativa do Núcleo Bandeirante, em que vizinhos de uma comunidade chamada “córrego da onça” litigavam entre si, gerando ações penais mútuas por crimes de dano, ameaça e alteração de limites de propriedades. O estabelecimento de um acordo restaurativo informado e factível só foi possível com a interveniência de órgãos e agências públicas como a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Distrito Federal (SEMARH) e a Agência Reguladora de Águas e Saneamento do Distrito Federal (ADASA), tendo em vista se tratar de área também de interesse ambiental. 318 As autoras ressaltam que, nos moldes atuais, talvez fosse impróprio falar-se em relação entre Judiciário e comunidade, já que esta deve ser percebida de forma dialética, ou seja, naquela em que uns necessitam dos outros para subsistirem. A relação não seria possível entre um só ente, implicando a colaboração de outros (PASSOS; PENSO, 2009, p. 53).

319 Paul McCold é professor do Departamento de Sociologia e Justiça Criminal na Old Dominion University, Norfolk, Virginia e Ted Wachtel é presidente do Instituto Internacional para Práticas Restaurtivas (IIRP), em Bethlehem, Pennsylvania, EUA. 320 As conferências restaurativas ampliam a gama de perspectivas, possibilitando soluções mais criativas e adequadas ao caso, que podem incluir: prestação de serviços comunitários; reparação de danos à vítima; voluntariado para uma organização sem fins lucrativos; participação em acampamentos para a juventude (onde lhe é dado aconselhamento e ensinadas habilidades para a vida); discurso sobre sua experiência em público; frequência a programas sobre uso abusivo de substâncias ou para agressores; presença em programas de reconciliação nos quais vítima e ofensor discutem o crime e suas consequências. Com esta última opção, busca-se fornecer uma oportunidade para as vítimas participarem nas decisões relativas à sanção e receberem reparação. As vítimas são igualmente incentivadas, juntamente com os pais dos adolescentes e a comunidade, a participarem na implementação destas medidas. A comunidade disponibiliza e organiza o uso dos seus serviços pelos jovens, e seus membros fornecem orientação e supervisão do acordo por um curto prazo. 321 Resultado da pesquisa do Australian Institute of Criminology (Australian government) disponível em: http://www.aic.gov.au/criminal_justice_system/rjustice/rise/final.html. Acesso em: 18 fev. 13. 322 STS - Sentencia del Tribunal Supremo, de 6 octubre de 1998: “cuando el actor realiza un actus contrarius de reconocimiento de la norma vulnerada y contribuye activamente al restablecimiento de la confianza en la vigencia de las mismas, en tales casos se dará una reparación simbólica que por regla general debe admitirse en toda clase de delitos” (DOMINGO, 2011, p. 82). 323 A expressão netwidening se refere ao risco de que a justiça restaurativa se estenda sutilmente às redes do controle social, aplicando-se a fatos pouco graves que não seriam alcançadas por elas. 324 Um exemplo prático ocorreu no programa de justiça restaurativa do Núcleo Bandeirante-DF. Foi encaminhado àquele juizado uma notitia criminis a respeito de um caso de “assédio moral” no trabalho, o que não é considerado crime pela legislação. As partes relataram a ocorrência de uma discussão no ambiente de trabalho, quando um colega disse à sua subordinada: “Você é a queridinha do chefe. Tá mandando agora aqui? Você sabe do que eu estou falando.” Nessa contenda, os colegas de trabalho tiveram uma discussão e um deles sugeriu que a colega tinha um caso com o chefe. A vítima registrou ocorrência policial. O conflito atingiu os demais colegas e o ambiente de trabalho ficou tenso, interferindo nas relações laborais. Foram convidados para um encontro as partes envolvidas, o diretor/proprietário da empresa e o gerente de recursos humanos. Nesta oportunidade, ficou acordado que os mediadores profeririam palestras sobre o tema “A Justiça que Restaura” aos empregados da empresa, a convite do seu proprietário. É interessante notar que o encargo ficou sob responsabilidade dos mediadores (e não de supostos ofensores/vítimas) e que o fato serviu, na verdade, como uma oportunidade para divulgação da justiça restaurativa. Visto que não houve crime propriamente dito, nesta situação, estar-se-ia impondo às partes uma obrigação sem fundamento legal, além de ampliar o alcance do direito penal e do controle formal, que é justamente o que se pretende evitar.

PARTE IV A PRÁXIS RESTAURATIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO UMA ESTRANHA NO NINHO?

CAPÍTULO VI

O DILEMA DA JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL: POLÍTICA DE GOVERNO OU POLÍTICA DE ESTADO?

A introdução de programas de justiça restaurativa no Brasil coincidiu com um momento de mudanças no cenário político brasileiro. Em 2003, com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Márcio Thomaz Bastos foi nomeado Ministro da Justiça, cargo que ocupou durante todo o primeiro mandato de Lula e ao longo dos três primeiros meses do segundo mandato. Durante sua gestão, irromperam importantes modificações em todo o sistema de justiça, como a criação da Secretaria da Reforma do Judiciário com a missão de ampliar o acesso à Justiça e modernizar a administração judiciária e a aprovação da Emenda Constitucional 45, conhecida como a Reforma do Poder Judiciário, da qual o citado ministro foi redator. A Emenda Constitucional 45 introduziu alterações relevantes, tais como o reconhecimento da duração razoável do processo como um direito fundamental, a determinação de funcionamento ininterrupto da atividade jurisdicional, a distribuição imediata dos processos em todos os graus de jurisdição, a afirmação da autonomia da Defensoria Pública (o que em certa medida fortalece o acesso de pessoas carentes à justiça) e a criação de órgãos de controle do Ministério Público (CNMP) e da magistratura (CNJ). A este último, por exemplo, coube avaliar o trabalho dos tribunais estaduais bem como lidar com temas sensíveis às estruturas então vigentes, como a proibição do nepotismo e a implantação do processo judicial eletrônico (RIBEIRO, 2008, p. 472). Sobre a importância da criação do CNMP e do CNJ para tornar o sistema judicial mais acessível, democrático e eficiente, o comentário de Rogério Schietti: O surgimento desses órgãos no cenário da República representou verdadeiro marco no relacionamento do Poder Judiciário e do Ministério Público com a sociedade brasileira, mercê de uma atuação mais transparente e sujeita a controles mais eficazes da legalidade e da qualidade dos serviços prestados à população por magistrados e membros do Ministério Público.

Efetivamente, o CNJ e o CNMP têm sido responsáveis por diversas iniciativas voltadas a obter melhores resultados na atuação dos respectivos órgãos de execução pelo Brasil afora, quer por meio de inspeções e fiscalização das atividades de cada Tribunal e de cada Ministério Público, quer por meio de campanhas e projetos, alguns com a parceria do Ministério da Justiça, como a Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp), responsável por articular os órgãos ligados à segurança pública, reunir e coordenar as ações de combate à violência e traçar políticas nacionais na área. Aliás, percebe-se uma maior preocupação do Poder Executivo em desenvolver projetos que permitam tornar o sistema judicial mais acessível, democrático, rápido e eficiente (Conor Foley, 2012: 88) (CRUZ, 2013, p. 40-41).

Neste contexto de reformas e com o objetivo de democratizar o acesso à justiça, a novel Secretaria da Reforma do Judiciário justificou a sua adesão a programas de justiça restaurativa. Segundo o Ministério da Justiça (BRASIL 2013, p. 1), a democratização pretendida não consistiria na simples inclusão de segmentos sociais ao processo judicial, mas em oferecer condições para que os excluídos adquirissem conhecimento e se apropriassem de seus direitos fundamentais e sociais. Para a realização de tão audacioso propósito, a Secretaria celebrou acordo de cooperação técnica com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), denominado “Projeto BRA/05/036 — Fortalecimento da Justiça Brasileira”, para o qual foram destinados R$ 1.196.014,34 (um milhão, cento e noventa e seis mil, catorze reais e trinta e quatro centavos) de recursos públicos, sendo direcionada metade deste valor para programas de justiça restaurativa no país, sem qualquer contrapartida financeira do PNUD (BRASIL, 2010, p. 83)325. Entre as ações pertinentes à justiça restaurativa, incluiu-se o financiamento de três projetos-piloto para a sua implantação: um em Brasília-DF, outro em Porto Alegre - RS e outro em São Caetano do SulSP326. Em Brasília (mais especificamente no Núcleo Bandeirante), o projeto foi instaurado no âmbito do Juizado Especial Criminal local, estendendo-se, posteriormente, para outras circunscrições do DF. Em São Caetano do Sul, iniciou-se na área da infância e juventude, operando nas escolas e em integração com o Judiciário local e, em Porto Alegre, foi implantado na área de Infância e Juventude, porém já em sede judicial, na Vara de Execuções de Medidas Socioeducativas.

Conhecer estes programas, ao mesmo tempo em que se dissemina a informação sobre o que tem sido feito, torna-se possível identificar onde estão as principais lacunas e ausências, visando ao seu aperfeiçoamento (BRASIL, 2005, p. 12). 6.1 A experiência paulista de justiça restaurativa Uma das três experiências-piloto no Brasil, o projeto de justiça restaurativa e comunitária de São Caetano do Sul foi intitulado “Projeto Justiça, Educação, Comunidade: parcerias para a cidadania”. Foi implementado em julho de 2005. Inicialmente, o programa baseou-se na colaboração entre os sistemas judiciário e educacional, para o atendimento de crianças e adolescentes em conflito com a lei. O intuito era evitar que atos infracionais praticados em ambiente escolar fossem formalmente encaminhados ao Judiciário, oportunizando que o conflito fosse tratado na própria escola. Em última instância, seu propósito foi transformar escolas públicas e comunidades em espaços de diálogo e de resolução de conflitos, o que se revelou bastante oportuno, já que constituem locais nos quais os jovens aprendem a conviver e a estabelecer vínculos (MELO; EDNIR; YAZBEK, 2008, p. 6)327. A iniciativa do projeto partiu da constatação, por parte do juiz da Vara da Infância e da Juventude local, de que transgressões escolares, como atos de vandalismo, ameaças ou agressões entre alunos eram tratadas simultaneamente como “infrações disciplinares” e como “atos infracionais”328, tanto pelo sistema judiciário quanto pelo regimento interno escolar. Observou-se, outrossim, a tendência crescente de se encaminhar essas ocorrências ao sistema formal de justiça, tratando-as como “casos de polícia” em vez de remediá-las com medidas disciplinares internas na escola (MELO; EDNIR; YAZBEK, 2008, p. 30) 329. Um dos maiores inconvenientes causados por esta remessa, informa Eduardo Rezende Melo (MELO; EDNIR; YAZBEK, 2008, p. 13), é que os conflitos escolares passam a ser marcados como “infracionais”, gerando a estigmatização dos adolescentes envolvidos, qualificados como “acusados” no ambiente escolar e tratados com rejeição ou reserva por seus colegas e até por seus próprios pais, dificultando ainda mais suas relações na comunidade. Desta forma, situações de indisciplina e comportamentos inadequados são tratadas com mecanismos de controle e exclusão. Assim, a

justiça restaurativa tornou-se uma alternativa aos gestores escolares para resolverem essas questões sem judicializarem os conflitos (CECIP, 2013, p. 117). Em São Caetano do Sul, de início, três escolas (chamadas “pioneiras”) 330 se voluntariaram para o projeto. O primeiro passo foi capacitar educadores, pais, alunos, assistentes sociais e conselheiros tutelares na técnica de comunicação não-violenta331, a fim de torná-los “facilitadores” de práticas restaurativas. Os conselheiros tutelares participam do processo, pois, em geral, os acordos restaurativos firmados requerem ações institucionais para a garantia de direitos dos afetados, como o atendimento por parte dos serviços públicos (médico, odontológico, inscrição em programas assistenciais) aos quais os conselhos encaminham332 (MELO; EDNIR; YAZBEK, 2008, p. 6). O projeto de São Caetano do Sul foi baseado na doutrina de Michael Fullan333 o qual considera que as sociedades de aprendizagem são parte de uma agenda social maior, envolvendo a parceria com agências comunitárias334 (como agentes de segurança, de educação e assistência), já que a permanência e o progresso escolar do aluno seriam favorecidas com o atendimento às necessidades básicas deles e de suas famílias335. Em São Caetano do Sul, por exemplo, parcerias importantes foram firmadas com a Guarda Municipal, com a Polícia Militar e com o Programa de Saúde da Família. A prefeitura, por seu turno, providenciou a confecção de folhetos de divulgação dos círculos restaurativos e o fornecimento de lanches aos facilitadores. 6.1.1 O diferencial em São Caetano do Sul: a estratégia de sensibilização de lideranças e de “mudança de lentes” dos agentes públicos Na experiência paulista, importantes atores ligados ao sistema infantojunvenil foram chamados a participar de reuniões periódicas para sensibilização sobre o programa restaurativo — diretores de escolas, servidores do judiciário, do conselho tutelar, da área de educação, assistência social, saúde e da segurança pública (polícia civil, militar e guarda civil). Devido à sua posição de liderança, esses agentes puderam despertar um maior envolvimento da comunidade no projeto, além de funcionarem como facilitadores da mudança336(MELO; EDNIR; YAZBEK, 2008, p. 163).

Observa Tonche (2010, p. 112) que este tipo de programa requer uma mudança na postura dos agentes públicos, sendo-lhes exigida uma perspectiva profissional diferenciada e, especialmente, mais humana em relação aos outros e a si próprios. Durante uma pesquisa realizada pela socióloga com funcionários envolvidos no projeto, estes afirmaram necessitar amadurecimento profissional e pessoal, a fim de não se abalarem com eventuais comentários jocosos ou com críticas de colegas que pensam de forma diversa, especialmente dos que defendem a aplicação do modelo formal ou mais tradicional de correção. Essas nuances, acrescidas das dificuldades cotidianas e das inerentes a projetos desta envergadura, observa Tonche (2010, p. 113), reclamam o acompanhamento dos profissionais envolvidos no programa, em particular para não se desmotivarem337. Na linguagem de Howard Zehr, a experiência de São Caetano do Sul requer uma “mudança de lentes” dos agentes públicos encarregados do tratamento de adolescentes, pois as práticas restaurativas constituem uma inovação dentro do ambiente escolar, um sistema “repressor” ou “disciplinar” por natureza (para usar a linguagem de Foucault). Nestes locais, diálogo, autonomia e empoderamento dificilmente são praticados, já que os jovens, mais especificamente, são tidos como objetos da ação educativa. O contato deles com professores é geralmente de ordem acadêmica e, muitas vezes, sob a forma de cobrança e repreensão, numa relação verticalizada (CECIP, 2013, p. 107). No encontro restaurativo, por outro turno, os princípios, as percepções e as interações são opostos aos vigentes, pois pressupõem o compartilhamento de poder nas relações e a prática da liberdade e da responsabilidade como forma de educação338. Neste caso, os discentes não são meros participantes, mas sujeitos e protagonistas da mudança. O conflito, que na comunidade e na escola geralmente é visto como algo a ser evitado, eliminado ou punido, é tido como uma oportunidade de mudança, de maior conhecimento de si mesmo (de seus sentimentos e necessidades) e do outro. A justiça restaurativa, portanto, encontra terreno profícuo neste local de aprendizagem que é a escola, ensinando não só a lidar com as diferenças, mas a valorizá-las e a crescer com elas (MELO; EDNIR; YAZBEK, 2008, p. 164)339. 6.1.2 A evolução do projeto e a situação atual

Em dezembro de 2005, em São Caetano do Sul, havia quinze pessoas capacitadas para operarem círculos restaurativos nas escolas, no fórum e no conselho tutelar. Nesse estágio do projeto, as escolas conseguiam atender, pela via restaurativa, apenas os conflitos internos de seus alunos (MELO; EDNIR; YAZBEK, 2008, p. 15). No decorrer do ano de 2006, os bons resultados da etapa inicial estimularam outras nove escolas a participarem do programa. A partir de então, cinquenta facilitadores foram capacitados na técnica da comunicação não-violenta para operarem nos círculos restaurativos. Com o reforço, o projeto alcançou uma nova dimensão e pôde abranger conflitos comunitários, sendo intitulado “Restaurando justiça na família e na vizinhança: Justiça Restaurativa e comunitária no bairro Nova Gerty” (que possui um dos maiores índices de violência em São Caetano do Sul). Esta expansão constituiu uma etapa importante do empreendimento, já que os conflitos pelos quais passam crianças e adolescentes têm forte vinculação familiar e comunitária (como a violência doméstica, a dependência do álcool e de outras drogas). Voluntários locais foram capacitados para facilitar encontros restaurativos nas escolas de forma que a própria comunidade passou à posição de liderança do projeto340, num autêntico exemplo de democracia deliberativa em âmbito local (MELO; EDNIR; YAZBEK, 2008, p. 17). Neste mesmo ano, o projeto expandiu sua atuação, implementando práticas restaurativas em Heliópolis e Guarulhos, articulando órgãos da secretaria da educação e do Judiciário. O trabalho envolveu doze escolas estaduais de ensino médio em São Caetano do Sul e vinte e oito escolas públicas de ensino médio em Guarulhos (CECIP, 2013, p. 108). No ano de 2007, houve interrupção do financiamento da capacitação e apoio técnico aos facilitadores. Escolas, comunidade e Judiciário local continuaram, na medida de suas possibilidades, a desenvolverem as práticas restaurativas aprendidas (MELO; EDNIR; YAZBEK, 2008, p. 18). A partir de então, as informações sobre o prosseguimento do projeto são desencontradas. Desde 2008, a Vara da Infância e da Juventude de São Caetano do Sul não divulga dados sobre o programa (tais como número de facilitadores, de círculos restaurativos realizados, de acordos firmados, de termos efetivamente cumpridos etc.). Juliana Tonche (2010, p. 87) relata que em

2009 o empreendimento contava com apenas seis facilitadores e, destes, apenas três seriam fixos (os demais ajudavam esporadicamente)341. Já o CNJ (2013, p. 1) informa que em 2011, com apoio da Secretaria Especial de Direitos Humanos, a iniciativa teria sido ampliada, passando a abranger crimes graves, premiando-a, em novembro de 2012, com o segundo lugar no “I Prêmio CNJ da Infância e da Juventude”. Relata a socióloga que São Caetano do Sul não foi a primeira opção cogitada para o projeto inicial de justiça restaurativa no Brasil, mas a cidade de São Paulo. Entretanto, o juiz local indicado para liderar o projeto recusou a proposta por várias razões, entre elas “por falta de disponibilidade de tempo” e por ser um programa novo, implicaria “muita responsabilidade”. A pesquisadora identificou que se tratava, na verdade, de uma “resistência velada, que se traduzia na realidade da falta de tempo, falta de pernas e de pessoas comprometidas” (TONCHE, 2010, p. 45 e 73). 6.2 Justiça para o Século XXI em Porto Alegre Em Porto Alegre, o projeto de justiça restaurativa recebeu o nome de “Justiça para o Século 21” e sua atuação se restringiu aos processos em curso na Terceira Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude de Porto Alegre. O chamado “Caso Zero” da justiça restaurativa local se referiu a um delito, ocorrido em 4 de julho de 2002, envolvendo dois adolescentes num roubo com emprego de arma de fogo, invasão de domicílio e retenção das vítimas como reféns no interior da residência, em virtude da imediata chegada da polícia342. Sentenciados à internação, dois adolescentes autores participaram de encontros com as vítimas, utilizando-se técnicas de mediação. Depois de cinco meses recolhidos na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo do Rio Grande do Sul (FASE) (antiga FEBEM), ambos foram liberados para cumprir medidas de meio aberto no final de 2002. Periodicamente monitorados, não houve notícia de reincidência por qualquer deles até o ano de 2007, pelo menos (BRANCHER; AGUINSKY, 2007, p. 16). O projeto gaúcho concentrou-se inicialmente na fase da execução da medida socioeducativa. Esse tipo de intervenção restaurativa posterior é válida, entretanto, apresenta alguns inconvenientes. Aos adolescentes internados na FASE, por exemplo, era oferecida a oportunidade do encontro restaurativo em troca da concessão de benefícios (como saídas temporárias).

Com este incentivo, houve grande adesão ao programa, mas o mesmo interesse não se repetiu no efetivo cumprimento dos acordos firmados, o que ensejou mudanças no programa. Na Nova Zelândia, a experiência restaurativa a posteriori passou por contratempos semelhantes. Segundo informações do próprio projeto neozelandês (TE ARA WHAKATIKA, 2003, p. 2), no fim de março de 2003, houve 780 encaminhamentos ao programa por juízes ou magistrados após a concessão de benefícios. No entanto, apenas 270 deles foram completados. O insucesso no cumprimento nesta fase pode se dar por várias razões: a vítima ou o agressor não estão dispostos a participar, não puderam ser contatados por mudança de endereço ou telefone, não conseguiram dispensa no trabalho ou não puderam se ausentar de compromissos familiares ou por algo parecido (TE ARA WHAKATIKA, 2003, p. 2). Em 13 de agosto de 2004, foi criado, na escola superior da magistratura da AJURIS (Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul), o “núcleo de estudos em justiça restaurativa”. Desde então, 9184 técnicos e estudiosos em justiça restaurativa, de todo o Brasil, buscaram em Porto Alegre atividades de formação nesta prática para replicarem em seus estados343. Por iniciativa da associação dos juízes e com apoio de órgãos financiadores (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), UNESCO — mais especificamente do “Programa Criança Esperança” e da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH)), o projeto transformou-se em programa, ultrapassando a aplicação experimental. Com este reforço, passou a atender, além do Juizado, outros espaços institucionais, como as unidades de privação da liberdade da FASE, unidades de medidas socioeducativas de meio aberto, abrigos e escolas (RIO GRANDE DO SUL, 2013, p. 2). Após a criação do Núcleo de Estudos em Justiça Restaurativa da Escola da AJURIS, outro momento marcante para o programa foi a realização do 3º Fórum Social Mundial, ocorrido em janeiro de 2005, na cidade de Porto Alegre. Um dos destaques foi a presença de Marshall Rosemberg, criador da técnica de comunicação não-violenta, que ministrou cursos de capacitação na capital gaúcha. Sua assistência foi fundamental para o início da execução dos círculos restaurativos no estado, visto que, até então, nenhuma metodologia fora identificada como suficientemente adequada para intervenção em conflitos criminais e que também oferecesse condições de

segurança desejadas para a sua aplicação (BRANCHER; AGUINSKY, 2007, p. 17 e 18). Em meados de 2005, o Tribunal de Justiça gaúcho autorizou o envolvimento do juiz e dos servidores da Terceira Vara do Juizado da Infância e da Juventude no projeto, colocando à disposição deles uma assistente social, uma estagiária de comunicação social, equipamentos e programas de vídeos para treinamento. A Escola da Magistratura complementou a contrapartida, disponibilizando o espaço físico, equipamentos e serviços de apoio para atividades de capacitação e de divulgação (BRANCHER; AGUINSKY, 2007, p. 20). 6.2.1 A evolução do programa gaúcho De acordo com o levantamento de dados realizado pela central de práticas restaurativas (CPR) do Juizado regional da infância e da juventude, no ano de 2009 foram realizados 120 procedimentos restaurativos. Em 2010, este número aumentou para 496, diminuindo para 475 e para 369 em 2011 e 2012, respectivamente (RIO GRANDE DO SUL, 2013, p. 3). A CPR capacita, além de profissionais do Poder Judiciário, os representantes das instituições parceiras que garantem as possibilidades de replicabilidade dos princípios e procedimentos de práticas restaurativas em direção às demais áreas, a saber, profissionais da FASE (instituição responsável pela execução das medidas de privação de liberdade), da Fundação de Assistência Social e Cidadania (FASC) ( instituição responsável pela execução das medidas de meio aberto) além de profissionais vinculados às Secretarias de Educação do Município e do Estado e à Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana (BRANCHER, 2007, p. 4). Funcionários que lidam diretamente com os presos e os adolescentes internados no sistema socioeducativo — desde os diretores dos estabelecimentos prisionais até agentes de segurança — são treinados em técnicas restaurativas para lidarem com conflitos entre internos e integrantes de seus quadros. Em pesquisa de campo realizada em Porto Alegre, entre os dias 23 a 26 de outubro de 2012, pode-se conferir localmente a transformação da cultura carcerária em dois estabelecimentos prisionais visitados: a penitenciária feminina estadual de Guaíba e a penitenciária estadual de Arroio dos ratos.

Estas penitenciárias são novas, inauguradas em 2011 e 2012, respectivamente, com o fim de desafogar a superlotação da penitenciária feminina Madre Pelletier (que chegou a abrigar 700 mulheres nas suas 238 vagas) e do presídio central de Porto Alegre, que recentemente foi notificado344 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA), após o episódio de rebelião e morte de sessenta e três pessoas em no presído de Pedrinhas — MA. A Comissão determinou a adoção de medidas cautelares que garantam a integridade dos seus detentos, como a redução do número de presos no local (são 4.591 internos para uma capacidade de 1.984), a garantia de higiene de tratamento médico aos apenados e a recuperação do controle da segurança no presídio, atualmente entregue a facções criminosas. As penitenciárias visitadas atendem condenados primários, de primeiro ingresso no sistema penal. Elas não refletem a realidade de todo sistema carcerário gaúcho, pois são novas, e, por isso, ainda não enfrentam o problema da superlotação. Entretanto, respresentam uma esperança de reorganização do sistema, já que reúnem condições materiais melhores e seus servidores têm atuação diferenciada, baseada em técnicas de justiça restaurativa (círculos de paz), com apoio constante do “grupo de estudos em justiça restaurativa e mediação de conflitos do sistema prisional gaúcho”. Atualmente, com o apoio da Escola da AJURIS, o Rio Grande do Sul destaca-se por divulgar a técnica restaurativa da CNV e dos círculos restaurativos, na capital e em outros estados, por meio dos multiplicadores já capacitados (BRANCHER, 2007, p. 8). Note-se que a Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul tem sido o grande motor de apoio e de disseminação da justiça restaurativa no estado, não estando seus atores apenas no aguardo das iniciativas estatais. Em junho de 2013, foi publicado no Rio Grande do Sul o Decreto estadual nº 50.431 que cria “procedimentos restaurativos decorrentes da apuração de atos que violem os direitos humanos individuais ou coletivos e institui a Câmara Restaurativa Estadual”345. Segundo o referido Decreto, esse novo espaço institucional terá por escopo apurar Atos que violem os direitos humanos individuais ou coletivos praticados por servidores públicos estaduais civis e militares, vinculados à segurança pública no âmbito do Poder Executivo Estadual, bem como de atos violentos praticados contra os referidos servidores.

Por meio deste decreto, o governo local adota uma nova política de tratamento de situações de conflitos e de denúncias de abusos e violências na área da Segurança Pública, baseada em processos restaurativos, a cargo de uma “Câmara de Justiça Restaurativa” do estado, criada para este fim específico. Trata-se de uma importante semente multiplicativa da cultura da paz, cultivada dentro da própria administração pública e que demonstra a possibilidade de aplicação dos métodos restaurativos em vários contextos. 6.3 Uma justiça para maiores no Distrito Federal Em 4 de junho de 2004, o TJDFT instituiu uma Comissão para o estudo da adaptabilidade da justiça restaurativa à justiça do Distrito Federal e o desenvolvimento de ações para implantação de um projeto piloto. O referido projeto começou a funcionar em 2005, no âmbito dos Juizados Especiais do Fórum do Núcleo Bandeirante, com aplicação nos processos criminais referentes às infrações de menor potencial ofensivo, passíveis de composição civil e de transação penal (TJDFT, 2013a, p. 1). A fim de atender à Resolução nº 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça, que determina aos Tribunais de Justiça que instalem os “Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania”, o TJDFT, por meio da Resolução nº 13, de 6 de agosto de 2012, instituiu o “Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos – NUPECON”, vinculado à Segunda Vice-Presidência do TJDFT. O Núcleo é composto de quatro Centros Judiciários de Solução de Conflitos e de Cidadania, entre eles o do programa de justiça restaurativa (TJDFT, 2013a, p. 1) 346. O programa distrital de justiça restaurativa distingue-se dos demais modelos brasileiros de solução de conflitos por ser voltado para conflitos e processos de natureza criminal que envolvem adultos, no contexto do juizado especial criminal. O programa justifica a sua restrição aos conflitos de menor potencial ofensivo em virtude da natureza pública da ação penal, já que suas práticas ocorrem no espaço legal reservado ao consenso das partes para a resolução do conflito (nos crimes de ação penal privada ou pública condicionada à representação do ofendido). A metodologia utilizada é a mediação vítima-ofensor e não os círculos de paz, como nos outros estados (RS e SP). Entretanto, o procedimento é aberto à participação de outros atores que se apresentem como apoiadores347. Esta é uma demonstração da plasticidade e da flexibilidade da justiça restaurativa, adaptável às

realidades locais. A aplicação dela é paralela ao curso do procedimento criminal, que fica suspenso por alguns meses, até que se ultime a intervenção (TJDFT, 2013a, p. 1). Desde 2005, quando foi implantado, até o final de 2012, o programa de justiça restaurativa do Distrito Federal atendeu a 282 processos que lhe foram encaminhados. Em 182 destes, foi possível se chegar a um acordo restaurativo voluntário. O ano em que houve a maior demanda foi 2011 (67 processos) e o de menor remessa de casos foi 2006 (logo no início do projeto), com 23 casos anuais348. Estes números parecem modestos se comparados aos das demais experiências restaurativas brasileiras, mas podem ser justificados pelo respeito à voluntariedade das partes em participar ou não do processo (já que, neste caso, o encaminhamento restaurativo não é feito, apesar de apresentada esta possibilidade aos implicados). Segundo os responsáveis pelo programa, seria o alto o grau de satisfação das partes que aderem a ele, ainda que não atinjam o consenso. Isso porque o sentimento de promoção da justiça derivaria da valorização das partes no conflito e do protagonismo que lhes é outorgado pelo sistema de justiça criminal e não necessariamente do alcance de um consenso (INSTITUTO INNOVARE, 2007, p. 1). Em junho de 2012, o programa de justiça restaurativa do TJDFT se expandiu, atendendo in loco a população de Planaltina, localizada no Distrito Federal no lado oposto ao da sede do programa (no Núcleo Bandeirante). Durante um ano de atuação, seus mediadores se deslocaram semanalmente àquela cidade para atender quarenta e três casos que lhes foram remetidos349. Consoante o Tribunal, as maiores dificuldades do programa se referem à obtenção de financiamento destinado à capacitação (que deve ser permanente); ao comprometimento dos facilitadores, dado ao fato de que a maioria seria de voluntários; e à limitação na disponibilidade do mediador voluntário capacitado, entre outros. Entre os fatores de sucesso da prática elencam: as instalações físicas, que oferecem neutralidade e segurança; a escolha dos casos, focada na tipologia penal e no relacionamento das partes (trabalho com casos mediáveis); a diversidade profissional, regional e cultural na seleção dos facilitadores, de modo a considerar as diferenças culturais, étnicas e socioeconômicas na construção dos acordos; o

envolvimento das comunidades de referência das pessoas em conflito e a conexão com as redes públicas e comunitárias de assistência social, para quem são feitos os encaminhamentos (INSTITUTO INNOVARE, 2007, p. 1)350. Podemos verificar que, nestes oito anos de implementação, os programas de justiça restaurativa no Brasil têm se remodelado e encontrado sua identidade dentro da própria prática (por exemplo, o programa gaúcho tem se destacado no treinamento em técnicas restaurativas e disseminação dessa cultura). É certo que se trata de um processo de implantação longe de finalização, em que alguns conceitos e procedimentos podem ser aperfeiçoados e ampliados para outros contextos institucionais (escolas, presídios, unidades de internação de adolescentes). Adversidades em processo de mudanças de tal magnitude são esperadas (seja para a compreensão da proposta, como em São Caetano do Sul, seja para a execução, ou de desempenho, como no Distrito Federal), mas são gerenciáveis, desde que contem com financiamento e vontade política, sobretudo de agentes do Executivo e do Judiciário. 325 O acordo internacional vigorou no período de 29/12/2005 a 30/12/2010 e foi auditado em março de 2009 pela Controladoria-Geral da União. Quanto à gestão operacional do instrumento, os auditores concluíram: “O Projeto tem atingido um nível baixo de execução das atividades programadas de acordo com a previsão constante do PRODOC, o que prejudicou o alcance dos resultados esperados” (BRASIL, 2010, p. 84). Até o momento, as contas do acordo ainda não foram definitivamente analisadas pelo Tribunal de Contas da União. 326 Há outros projetos de justiça restaurativa em curso no país, como no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, iniciado em julho de 2011, na Comarca de Belo Horizonte e na cidade de São José de Ribamar, no Maranhão. Entretanto, optou-se pelo corte metodológico para o exame de apenas estas três experiências brasileiras por serem as pioneiras, por possuírem dados consolidados há mais tempo e por serem as incentivadoras das demais. Gestores do projeto maranhense, por exemplo, foram até o Rio Grande do Sul para se capacitarem e trouxeram servidores do Poder Judiciário gaúcho para qualificarem funcionários do Judiciário, da comunidade e das escolas de São José de Ribamar (ORSINI; LARA, 2013, p. 318). 327 Sintomático sobre o distanciamento na relação aluno-professor e sobre a necessidade de maior diálogo nas escolas é o resultado do questionário aplicado pelo CECIP entre os 759 alunos participantes de um programa de justiça restaurativa. De acordo com 74% dos entrevistados, a afirmação “A maioria dos meus professores não conhece como é minha vida fora da escola” é verdadeira, ao passo que quase a mesma porcentagem de educadores (73%) discorda da frase “Os adultos não sabem sobre a vida de seus alunos fora da escola”. Fica, portanto, evidente o escasso reconhecimento mútuo na relação entre professor e aluno (CECIP, 2013, p. 72). 328 Segundo o art. 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente, “considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal”.

329 Consoante noticia a publicação oficial “Justiça restaurativa e comunitária em São Caetano do Sul”, em Campinas, por exemplo, 30% dos processos judiciais são relativos a boletins de ocorrência registrados por iniciativa de pessoas da comunidade escolar (MELO, EDNIR e YAZBEK, 2008, p. 30). 330 As escolas pioneiras foram: E.E. Eda Mantoanelli, E.E. Prof. Edgar Alves da Cunha e E.E. Laura Lopes. Posteriormente, outras escolas de São Caetano do Sul se uniram ao Projeto: E.E. Moura Branco, E.E. Anacleto Campanella, E.E. Bonifácio de Carvalho, E.E. Dona Idalina Macedo Costa Sodré, E.E. Profa. Joana Motta, E.E. Maria Trujilo Torloni, E.E. Profa. Yolanda Ascêncio, E.E. Padre Alexandre Grigoli e a E.E. Alfredo Burkart. 331 O treinamento nesta técnica, criada por Dominic Barter, foi realizado em treze oficinas de oito horas cada, com carga horária total de 104 horas. 332 Pelos pais, é comum o uso da expressão “Vou te entregar pro conselho tutelar” em relação aos filhos quando estes cometem alguma falta. No uso desta expressão é perceptível o equívoco quanto ao entendimento sobre o papel do conselho tutelar, visto como um órgão punitivo e não como uma ferramenta de apoio e encaminhamentos. Relata o órgão que também “os pais têm medo de serem denunciados pela escola ao conselho tutelar, seja por violência doméstica seja por excesso de faltas do aluno, ou pelo não comparecimento à escola quando solicitados” (CECIP, 2013, p. 82). 333 Michael Fullan é professor emérito do Instituto Ontário de Estudos em Educação, da Universidade de Toronto. É reconhecido internacionalmente por seus trabalhos publicados sobre a reforma educacional, traduzidos para várias línguas. 334 No original, em inglês: “In partnership with all community agencies, educators must initiate the creation of learning societies as part of a larger social agenda” (FULLAN, 1993, p. 58). 335 A participação da família no processo educacional é fundamental. Para tanto, é importante que ela seja acolhida e tenha voz no espaço escolar, tornando-se aliada no desenvolvimento dos filhos. Observam gestores do CECIP (2013, p. 81) que, via de regra, o ambiente escolar intimida os pais que não têm boas lembranças da escola, sendo premente mudar essa percepção para garantir o sucesso de seus filhos. 336 Nas reuniões, tais agentes são instados a aprimorar suas competências e habilidades na cooperação profissional, na comunicação e são convidados a refletir sobre a redefinição do seu papel nesta nova forma de atuação. Essa reflexão pode ser ilustrada pelos depoimentos das professoras Flávia Fassi Samel (CECIP, 2013, p. 86) e Simone Petitet (CECIP, 2013, p. 97), respectivamente: “Descobri que não levo as pessoas para nenhum lugar. Eu vou junto” e “Estar com o outro e conhecê-lo, chamá-lo pelo nome, passar o bastão para ele e ouvi-lo era o grande aprendizado comunitário. O círculo me ensinou de forma simples o que era se aproximar, pedir ajuda, abrir mão da onipotência, reconhecer minha ignorância sobre o outro e deixar que ele se expressasse livremente. Os jovens me ensinaram a ser sincera e perceber os meus limites e os deles.” 337 No Rio de Janeiro, com patrocínio da Petrobras, teve início em janeiro de 2011 o projeto “Jovens e seu Potencial Criativo na Resolução de Conflitos”, que visa buscar respostas mais efetivas a situações de conflito e de violência no âmbito das escolas da rede municipal. Em entrevista feita pelo CECIP - Centro de Criação de Imagem Popular (2013, p. 73) com 300 professores participantes deste programa, 90,5% deles se declararam “apaixonados pelo que fazem”, ao passo em que 61,2% se disseram frustrados e não reconhecidos pelo seu trabalho. Neste sentido, ilustrativa a fala das professoras Rafaela Pacola (CECIP, 2013, p. 94) e Simone Petitet (CECIP, 2013, p. 97): “Ficar no mínimo duas horas dentro do ônibus e falar sobre violência com jovens que viviam em um contexto social onde a violência é vista como autodefesa e questão de sobrevivência não parecia uma tarefa fácil. Ainda mais se tratando de assuntos tão complexos e íntimos como os que abordávamos ao falar de conflito”; “Convivi com inúmeros desafios: ver e me sentir impotente diante da depredação da escola; perceber os professores solitários diante do trabalho hercúleo de ensinar quarenta alunos

carentes de atenção, de consciência de valores; pedir concentração a adolescentes dispersos pela inundação de hormônios inerentes à sua fase. Dentre tantos desafios, o que mais me inquietou foi a dificuldade de escuta, de capacidade de transformação, as ideias rígidas e fechadas para a construção do novo, principalmente por parte dos adultos.” Acerca das dificuldades diárias do projeto, o depoimento da professora Flávia Fassi Samel (CECIP, 2013, p. 86): “Descobri a frustração de me sentir pequena diante de certas situações, e com isso aprendi a aceitar que minha ação faz diferença mesmo que seu impacto seja invisível. Descobri que é fácil mudar, difícil é acreditar que é fácil” (CECIP, 2013, p. 86). 338 A respeito da horizontalidade de relações necessária para o sucesso deste tipo de abordagem, os depoimentos das professoras Maria Mostafa (CECIP, 2013, p. 93) e Simone Petitet (CECIP, 2013, p. 97), respectivamente: “Escutar muito foi a única maneira para ensinar a escutar. Ainda bem que os jovens me ensinaram isso” e “Para falar de paz, descobri que temos que entrar em contato com os conflitos que cada parte da escola trava a cada dia dentro de si, na sua casa, na comunidade onde vive e estar disposto a “conhecer” (da origem latina “nascer com o outro”), estar lá junto para poder ouvir sobre a necessidade de maquiagem das meninas para a ida à escola, a letra do funk presente no recreio, a excitação causada pelo cheiro da comida do refeitório, as brigas na porta ou na praça em frente à escola, o olhar alerta do agente educador, a movimentação permanente da direção da escola. Ao me aproximar, revi meus valores e minhas crenças e pude experimentar o desafio de acolher a diferença e conviver com ela.” 339 A participação dos jovens em círculos restaurativos tem se revelado útil para o despertar da sua autonomia, da responsabilização pelos próprios atos e da percepção sobre necessidades do outro pela escuta ativa (tomada de consciência). Em resposta a questionários aplicados, jovens classificaram sua atuação com as seguintes expressões: “Participei, falei e ouvi”, “Contribui com a minha opinião”, “Ajudei a pensar, a fazer e a manter” (CECIP, 2013, p. 75). 340 Neste caso, utilizou-se uma técnica diferente da comunicação não-violenta das empregadas nos círculos restaurativos. Optou-se pelo “modelo zwelethemba”, criado por uma comunidade pobre próxima à Cidade do Cabo, na África do Sul, com este mesmo nome (uma palavra xhosa que significa “um país ou lugar de esperança”). Este modelo enfatiza menos as necessidades e responsabilidades individuais e privilegia a mudança comunitária. Para este método, o cerne dos trabalhos não é “o seu problema” ou “o meu problema”, mas, “temos uma situação de violência como problema”. Outra singularidade desta marca é que o conflito não é focalizado por um processo de “olhar para trás”, que busca equilibrar injustiças com fardos, mas por um olhar para o futuro que busca garantir que os bens morais das partes em conflito sejam respeitados no futuro (SHEARING; FROESTAD, 2005, p. 95). De acordo com os autores, a escolha da técnica restaurativa levou em consideração a melhor adequação a contextos institucionais específicos, bem como a facilidade de aprendizado e de disseminação (MELO, EDNIR e YAZBEK, 2008, p. 17). 341 Segundo a autora, uma das próprias facilitadoras lhe afirmou: “Agora, aqui em São Caetano, se a gente parasse, uma de nós parasse, o projeto acaba! [sic]”. 342 Após o tratamento deste ato infracional de natureza grave, o programa restaurativo gaúcho concentrou-se, sobretudo, em incidentes escolares (como lesões corporais, tráfico de drogas e roubo), abordando casos mais severos apenas ocasionalmente. 343 Os dados são de julho de 2013 e estão no “Relatório da central de práticas restaurativas do Juizado regional da infância e da juventude de Porto Alegre”. Segundo o referido documento, além de formação de operadores da rede de atenção à criança e ao adolescente daquele município e do estado do Rio Grande do Sul, outros estados foram alcançados pelas iniciativas de formação do programa: Distrito Federal, Piauí, Maranhão, Pará, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Amazonas. Disponível em: http://www.justica21.org.br/imagens/dadosj21jij.pdf. Acesso em: 5 nov. 13.

344 A notificação fixou o prazo para atendimento de suas determinações de quinze dias, a contar de sua publicação, no dia 30 de dezembro de 2013. Fonte: Jornal “O Globo”. Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/oea-notifica-estado-brasileiro-para-reduzir-violacoes-no-presidio-centralde-porto-alegre-11202528. Acesso em: 20 jan. 14. 345 Texto do Decreto disponível em http://siabi.trt4.jus.br/biblioteca/direito/legislacao/decreto/estadual/dec_rs_2013_50431.pdf. Acesso em: 6 nov. 13. 346 Constituem os demais Centros Judiciários o Programa Justiça Comunitária, da Central Judicial do Idoso e da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar. 347 A mediação vítima-ofensor também foi a técnica escolhida por Portugal, por exemplo, com a ressalva expressa da possibilidade de convite a outros interessados para o procedimento: Art. 4º, 3 — “Quando se revista de utilidade para a boa resolução do conflito, podem ser chamados a intervir na mediação outros interessados, nomeadamente eventuais responsáveis civis e lesados” (PORTUGAL, 2007, p. 2). 348 Fonte: dados fornecidos em 6 de novembro de 2013, por correio eletrônico, pelo programa de justiça restaurativa do TJDFT. 349 Fonte: Ofício nº 27/2013, de 13 de agosto de 2013, do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e de Cidadania do Programa Justiça Restaurativa do TJDFT. 350 Convém mencionar que alguns projetos de justiça restaurativa sofrem dificuldades específicas, como é o caso do programa de justiça restaurativa da cidade de São José de Ribamar, no Maranhão. Uma das grandes dificuldades do projeto é a alta violência dos casos que acaba por inibir a participação das vítimas nos círculos restaurativos. Por outro lado, a negativa da vítima em participar também é devido ao longo tempo decorrido entre o delito e a indicação para o procedimento restaurativo (ORSINI; LARA, 2013, p. 318). A escassez e a rotatividade de pessoal também não contribuem para a continuidade das práticas. Orsini e Lara (2013, p. 318) relatam, por exemplo, que em junho de 2012, estavam trabalhando no projeto maranhense apenas duas psicólogas e duas assistentes sociais, sendo que a 2ª Vara da comarca estava sem juiz titular. Outra dificuldade destes projetos é a pessoalização deles, que os vincula aos seus idealizadores. A respeito disso, relata Juliana Tonche (2010, p. 138): “Existem, em alguns tribunais, portarias, algum grau de normatização dos programas que conferem alguma segurança, mas esse grau de institucionalização, no meu entender, é bastante frágil ainda, eu vejo uma coisa muito personalizada, você não fala do projeto da 2ª Vara de Execução de Medidas Socioeducativas de Porto Alegre, o projeto é do Dr. ... (nome), eu não falo do projeto da Vara da Infância e Juventude de São Caetano, o nome do projeto: ... (nome), eu não falo do Juizado Especial Cível, eu falo do projeto do ... (nome) e do promotor, cujo nome me escapa agora. Então, o receio, evidentemente, é de que, com a remoção, enfim, com a saída desses juízes desses locais, o projeto não tenha prosseguimento.”

CAPÍTULO VII

EM BUSCA DE UM ESTATUTO LEGAL CONSOLIDANDO A JUSTIÇA RESTAURATIVA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

7.1 O espaço legislativo para a edificação da justiça restaurativa no Brasil Na ausência de uma legislação específica para regulamentá-la, a prática restaurativa brasileira vem encontrando o seu caminho onde há alguma margem legal para a justiça consensuada (como nos juizados especiais criminais nos quais é autorizada uma solução conciliatória para o crime) ou quando o fato não é tecnicamente considerado crime (para atos infracionais praticados por adolescentes, inimputáveis penalmente)e, por isso, não são passíveis tecnicamente de pena ou de persecução penal. 7.1.1 Na infanto-adolescência Diz a Constituição Federal (art. 228) que são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial, no caso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei nº 8.069/90). Este microssistema infanto-juvenil estabelece medidas diferenciadas de responsabilização para o adolescente autor de ato infracional, as chamadas “medidas socioeducativas”. Em que pese não terem sido projetadas para funcionarem como penas em si mesmas (mas supostamente com o cunho educativo), é inegável que as sanções impostas aos adolescentes carregam o componente retributivo, em nítido desvirtuamento da proposta original. Segundo Melo (2006. p. 98), o sistema socioeducativo vigente ora responde à pratica infracional com o rigor e a desumanidade próprias das penas, ora descamba para o assistencialismo e protecionismo, o que igualmente desrespeita a capacidade de aprendizado e de assunção de responsabilidades do adolescente. Neste ponto, a resposta restaurativa se apresenta como uma via intermediária, pois seus objetivos coincidem com a finalidade diferenciada (e mal compreendida) da medida socioeducativa: empodera as partes para a sua emancipação, propicia o crescimento para a responsabilização, preserva

os vínculos familiares e comunitários e informa ao adolescente um sentido para a medida eventualmente a ser cumprida, entre outros benefícios. A seara de responsabilização infanto-juvenil constitui, assim, uma senda natural para o desenvolvimento de iniciativas em justiça restaurativa (MELO, 2006, p. 98). A abertura legislativa para a aplicação de procedimentos restaurativos aos adolescentes autores de ato infracional é bem maior se comparada à dos adultos imputáveis. Enquanto a Lei nº 9.099/95 é restrita aos crimes de menor potencial ofensivo praticados pelos adultos, no terreno infracional não há limitação quanto à gravidade do ato para encaminhamento de adolescentes à justiça restaurativa. Tanto é assim que, dos três modelos pioneiros de justiça restaurativa no país analisados, dois deles surgiram no âmbito da justiça socioeducativa. O espaço legislativo reservado para a inclusão de iniciativas restauradoras nesta esfera é o art. 126 do ECA, que possibilita a exclusão, extinção ou suspensão do processo de apuração de ato infracional mediante a imposição de medidas socioeducativas ou outras condições que se revelem apropriadas àquele conflito ou que melhor atendam às partes envolvidas351. O ECA prevê ainda que o perdão do ato praticado (remissão) pode ser aplicado em qualquer fase do procedimento. Melo (2006. p. 100) observa que esta possibilidade de remissão (perdão) em decorrência do acordo não é encarada como uma graça ou benesse ministerial ou da vítima por ser o ofensor adolescente, mas decorre do reconhecimento de que ele foi capaz de identificar o outro e respeitar seus direitos, revelando a emergência de uma responsabilidade até então não despontada. 7.1.2 Nos juizados especiais criminais Com a edição da Lei nº 9.099, a lei dos juizados especiais, ainda no ano de 1995, o ordenamento jurídico brasileiro passou a prever reações quantitativa e qualitativamente distintas para cada espécie de crime, estabelecendo espaços de conflito e de consenso352. Para o que designou “delitos de menor potencial ofensivo” — atualmente compreendidos aqueles cuja pena privativa de liberdade máxima seja de dois anos — a lei reservou o procedimento e institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95 (espaço de consenso), nos quais é possível autor, vítima e Ministério Público transigirem acerca das consequências para o crime (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 486 e 489).

Sobre as vantagens representadas pela introdução da transação penal e da suspensão condicional do processo pela Lei nº 9.099/95353, o comentário de Rogério Schietti: Ambos os institutos, a par de facilitar o acesso do jurisdicionado (tanto o autor do fato quanto a vítima) à justiça penal, nos casos que engrossavam as estatísticas da criminalidade oculta ou, o que era pior, atolavam as prateleiras e as gavetas de delegacias de polícia e cartórios judiciais, obrigou os profissionais do direito a praticar um novo modelo de justiça, consensual, não litigioso, prioritariamente voltado, na dicção da própria lei, à reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade (art. 62). Demais disso, o mesmo dispositivo legal expressamente orientou a aplicação do novel procedimento aos critérios (ou princípios) da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, o que importou em uma mudança de postura dos profissionais do Direito, máxime dos juizes e promotores de justiça,

tão

enraizados

no

modelo

tradicional,

predominantemente

escrito,

excessivamente formal e irritantemente lento (CRUZ, 2013, p. 42).

Além destas duas medidas despenalizadoras introduzidas pela lei, podemos citar a composição civil entre autor e vítima (reparação dos danos), a qual, por si só, extingue a punibilidade do crime (a própria pretensão punitiva estatal (art. 74, parágrafo único da lei)354, a exigência de representação da vítima nas lesões leves e culposas (art. 88) e outros institutos desencarcerizadores já existentes no Código Penal (substituição da pena privativa de liberdade do art. 44 e suspensão condicional da pena do art. 77). Luiz Flávio Gomes destaca que foi fundamental para esse giro políticocriminal em direção ao consenso, o reconhecimento pelo próprio Estado da insuficiência (ou mesmo da falência) do modelo clássico de justiça criminal, que não reúne condições para fazer frente, com sua atual estrutura e organização, a todas as infrações cometidas e noticiadas (GARCÍAPABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 489 e 497-498). Ainda segundo o criminologista brasileiro, o modelo consensual instituído pela Lei nº 9.099/95 tem por fundamento três princípios: oportunidade regrada (o que não é consenso entre os autores), autonomia da vontade do imputado e desnecessidade da pena de prisão. Isso quer dizer que, para que haja concordância e se possa aplicá-lo, é necessário que cada um dos envolvidos na persecução penal abdique de uma parcela dos seus direitos ou poderes tradicionalmente contemplados no devido processo

legal. Por exemplo, o Ministério Público deve abrir mão da via processual habitual (propositura da ação penal), o acusado deve abrir mão das suas garantias processuais clássicas (contraditório, provas, recursos etc.) em troca de alguns benefícios, como evitar a pena e o processo e o Estado obriga-se a retirar sua forma de reação clássica ao delito que é a prisão de curta duração, pois executá-la pode trazer a consequência nefasta de desencadear a “carreira criminal” do ofensor de menor periculosidade, como visto na seção 2.1 (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 489). Trata-se, em verdade, de um arquétipo que desburocratiza a justiça criminal, já que as contravenções e crimes menores, que antes ocupavam os juízos e tribunais, passaram para os juizados onde vigora a oralidade, celeridade, informalidade, limitações recursais etc. (BOCHENEK, 2004, p. 43) Os operadores do direito (juízes, promotores, advogados etc.) passaram a desempenhar um novo papel — de propulsores da conciliação no âmbito penal — evitando maiores danos ao ofensor decorrentes da condenação. Entretanto, não se pode afirmar que seja um modelo restaurativo (de tratamento do conflito), pois, mesmo que seja um momento de redescoberta da vítima e de início de responsabilização inteligente do ofensor, ainda não os privilegia (BOCHENEK, 2004, p. 46). O jurisdicionado não tem espaço de efetiva manifestação e escuta nessa instância de administração da justiça. A vítima sequer é intimada para a audiência de proposta de transação penal ao autor. Nesta ocasião, a manifestação do ofensor limita-se a aceitar ou não o que foi ofertado pelo Ministério Público, sem possibilidade de discutir suas condições. Ademais, a percepção da população em geral em relação a este sistema não é a de um espaço para o consenso ou conciliação, mas de um lugar de onde se atribui uma solução comum para todos os crimes de menor potencial ofensivo: penas de prestação de serviços ou de pagamento de cestas básicas, sem conexão pedagógica com a ofensa, o que contribui para o descrédito do sistema355 (vide pesquisa de campo realizada na seção 8.4.7). Neste sentido se manifesta a crítica abolicionista, para a qual o sistema de justiça criminal tornou-se um arranjo de extremos, variando entre “prisões infamantes” e penas ineficazes. Sobre a necessidade de criatividade e de ampliação do rol de alternativas, o comentário de Maíra Rocha Machado (2012, p. 1):

A pena de prisão está prevista em quase todos os crimes da legislação brasileira e as possibilidades de aplicação do sistema de alternativas a ela são bastante limitadas. Qualquer um se assustaria com um sistema de saúde que prescrevesse um único remédio para qualquer tipo de doença - da unha encravada ao câncer de pulmão -, mas curiosamente pouca gente se surpreende quando se trata de discutir exatamente o mesmo cenário na construção de políticas penais.

Assim como qualquer outra doença física ou social, o comportamento criminoso não é unitário. Se as opções de tratamento forem limitadas, a probabilidade de sucesso também será (MILLER, 1989, p. 1). Neste ponto, a justiça restaurativa tem muito a oferecer, como soluções mais apropriadas, reparadoras, criativas e estabelecidas pelas próprias partes. 7.2 A compatibilização da justiça restaurativa com a lei brasileira Para se desenvolver e ser amplamente adotada no Brasil, a justiça restaurativa precisa oferecer respostas a dois questionamentos de ordem legal: o primeiro é como compatibilizá-la com alguns direitos e garantias individuais dos acusados, como o princípio da presunção de inocência (ou não-culpabilidade), já que ela tem como pressuposto o reconhecimento e a responsabilização do ofensor pela prática do delito. O segundo óbice estaria no princípio da obrigatoriedade da ação penal pública pelo Ministério Público, quando presentes indícios de autoria e materialidade do crime. Não haverá um espaço para deliberação, consenso e proposta de acordo restaurativo se o Ministério Público está obrigado a ajuizar a ação penal indistintamente, em todos os casos em que estes requisitos se fizerem presentes. Para que a justiça restaurativa tenha chance de florescer, seria necessário que o Ministério Público se despisse do seu poder-dever de denunciar, abrindo chance para que as partes envolvidas no conflito, como protagonistas, alcancem o consenso e decidam a melhor forma de solucionar os seus litígios. São questões que necessitam ser enfrentadas. 7.2.1 O respeito aos direitos fundamentais dos acusados Como se denota, neste tipo de justiça consensuada há uma mitigação voluntária dos direitos e garantias processuais fundamentais do acusado, que deles abdica com a aceitação imediata da sanção sugerida pelo Ministério Público na transação penal. O autor do fato concorda em não discutir sua

culpa (nolo contendere356) e aceita a proposta ministerial (que não pode ser pena privativa de liberdade), encerrando-se o caso imediatamente, sem a necessidade da colheita de provas. Os defensores desta prática argumentam que a renúncia pelo acusado de algumas garantias constitucionais suas é justificada por outras vantagens que igualmente privilegiam direitos fundamentais seus, como a sua dignidade, na medida em que se evitam as “cerimônias degradantes” do processo (audiências, sentença penal, inscrição do nome no rol dos culpados etc.), a reincidência, a estigmatização e facilitam a sua reintegração por vias alternativas distintas da prisão. Uma garantia a ser mencionada é a exigência de proporcionalidade entre o delito e a pena aplicada, já que, de acordo com o artigo 59 do Código Penal, o juiz deve aplicar a pena conforme seja “necessária e suficiente” para reprovação e prevenção do crime. A proporcionalidade da pena deve ser não só quantitativa, mas também qualitativa e, neste aspecto, a justiça restaurativa teria um maior potencial para oferecer este equilíbrio. Dada a amplitude de sanções reparadoras que comporta, a justiça restaurativa favorece soluções menos punitivas e mais conveniente a todos, inclusive à vítima, satisfazendo melhor o senso de justiça dos envolvidos, que são os que deliberam sobre as condições do acordo. Entretanto, em que pese a liberdade vigente na estipulação do acordo restaurativo, algumas legislações estabelecem restrições ao seu conteúdo, como a portuguesa: “Art. 6º, 2 — No acordo não podem incluir-se sanções privativas da liberdade ou deveres que ofendam a dignidade do arguido ou cujo cumprimento se deva prolongar por mais de seis meses” (PORTUGAL, 2007, p. 2). De acordo com Luiz Flávio Gomes, desde 1995 está em vigor um “novo devido processo legal” igualmente cercado de garantias visto que nenhuma medida despenalizadora pode ser aplicada sem o consenso do autor do fato (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 493 e 498). Do ponto de vista restaurativo, deve-se acrescer que, além do acordo final necessariamente depender da sua anuência, a qualquer momento o ofensor pode decidir retirar-se do procedimento restaurativo e sua vontade será respeitada, sendo-lhe assegurado o retorno aos meios convencionais de jurisdição.

Por outro lado, um diferencial notável entre a justiça restaurativa e o microssistema da Lei 9.099/95 é que nesta, ao celebrar a transação penal, o autor não assume culpa pelo evento danoso e tampouco quer discuti-la (nolo contendere). Neste caso, o autor pode consentir com a proposta ministerial porque lhe é mais conveniente não participar dos atos processuais posteriores (seja por questão de tempo, financeira, trabalhista etc.) ou evitar o risco de uma eventual sentença condenatória e seus efeitos negativos. Já a participação do ofensor no acordo restaurativo demanda, em primeiro lugar, o reconhecimento da sua responsabilidade pelo ato. O problema jurídico que se instaura a este respeito é o de que esta exigência pode, aparentemente, contrastar com a garantia da presunção de inocência ou da não-culpabilidade do acusado. Uma forma de temperar este efeito é garantir o sigilo (confidencialidade) do processo restaurativo cujas peças ou documentos não podem ser usados posteriormente em juízo, caso seja infrutífero o acordo. Tampouco o fato de ter concordado em participar do processo restaurativo pode ser encarado como assunção de culpa ou em detrimento do princípio da nãoculpabilidade. Na prática, quando as partes não alcançam um consenso sobre a forma de reparação, ainda que o ofensor tenha reconhecido sua responsabilidade pelo delito, o mediador apenas relata ao juiz a impossibilidade de acordo entre as partes por falta de voluntariedade, sem declinar os motivos ou a quem coube a recusa, a fim de não comprometer a confidencialidade do procedimento. Desta forma, o processo judicial pode prosseguir sem que nenhuma intercorrência do círculo seja mencionada ou considerada para fins condenatórios357. Inclusive, é por esta razão que se deve atentar para a celeridade do procedimento restaurativo, a fim de que este não se delongue a ponto de permitir que os crimes (especialmente os de menor potencial) alcancem a prescrição358, permitindo a apreciação judicial dos fatos. 7.2.2 A obrigatoriedade da ação penal: mitos e verdades Como visto, no procedimento restaurativo, para que os participantes e a comunidade possam decidir o rumo da reparação de uma ofensa criminal, é imperativa a renúncia dos envolvidos a alguns direitos (no caso do ofensor e da vítima) ou a abdicação de poder do promotor (titular da ação penal) e do juiz (aplicador da lei).

Do ponto de vista do “interesse público”, tal exigência parece contrastar com o princípio processual da obrigatoriedade ou indisponibilidade da ação penal, já que a regra da ação penal é ser pública e incondicionada à representação da vítima (art. 100, CP)359. Este princípio recebe várias denominações, como “princípio da legalidade, ou da obrigatoriedade, da oficialidade, da necessidade ou da indisponibilidade e diz respeito à atuação obrigatória dos órgãos persecutórios, desde que concorram as condições exigidas em lei” (SOUZA, 1998, p. 255). Nestes casos, o Ministério Público é o titular da ação penal, o chamado dominis litis, nos termos do art. 129, I da Constituição Federal360. De acordo com este princípio, o Ministério Público estaria obrigado a oferecer a denúncia ao tomar conhecimento de uma conduta típica e antijurídica. Assim, a atuação ministerial seria vinculada, não podendo o Ministério Público optar por não denunciar em tais casos, ainda que por razões de política criminal, tendo em vista a natureza indisponível do interesse público. Essa sistemática de obrigatoriedade não se aplica a todos os tipos de ação penal. Na de iniciativa privada e na condicionada à representação do ofendido, diversamente, incidem os princípios da oportunidade e da disponibilidade da ação penal. Nestas, por razões de economicidade, conveniência e utilidade processual, é possível que haja a renúncia à ação penal de iniciativa privada, o perdão do ofendido e a perempção (arquivamento dos autos, por inércia do autor da ação) (MENDES, 2012, p. 1). Entrementes, a obrigatoriedade da propositura da ação penal pelo Ministério Público não está expressamente prevista em nossa legislação, seja constitucional ou infraconstitucional, diferentemente do que ocorre na italiana cuja Constituição, em seu artigo 112, prevê expressamente que “o Ministério Público tem o dever de exercitar a ação penal”361. No Brasil, a ideia de obrigatoriedade é extraída da leitura do art. 24 do CPP que diz: “nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei o exigir, de requisição do Ministro da Justiça, ou de representação do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo”. Percebe-se, entretanto, que tal artigo (juntamente com o artigos 110, CP; 14, CPP e 129, I, Constituição Federal) apenas estabelecem que o exercício deste tipo de ação compete ao

Ministério Público, assegurando-lhe a exclusividade desta atuação, mas em nenhum momento determinam que este está obrigado a exercê-la, como faz o texto italiano. Sobre este aspecto, a crítica de André Luis Alves de Melo, no sentido de que o problema brasileiro não seria o rito, mas o mito: A questão é que a legislação no Brasil não prevê a obrigatoriedade da ação penal. E nem se pode dizer que decorre do princípio da legalidade, pois se não existe lei obrigando expressamente, não haveria ilegalidade alguma. E mesmo nos países em que se prevê expressamente, como na Itália, a necessidade de se implantar a oportunidade vem aumentando imensamente. Ou seja, no Brasil o problema não é o rito, mas o mito (MELO, 2011, p. 1).

Os dispositivos invocados datam de 1941 (ano da edição do Código de Processo Penal), quando se vigiava um pensamento conservador e individualista que deve ser interpretado atualmente em consonância com a Constituição democrática de 1988 a qual visou, no seu art. 129, proteger a independência do Ministério Público, especialmente contra ingerências externas de natureza política. Gabriel Campos (2012, p. 15) pondera que o pensamento legalista processual (no sentido da estrita obediência ao princípio da legalidade para o exercício processual pelo Ministério Público) deriva também do fato de sermos influenciados pela cultura jurídica romano-germânica, assim como ocorre em Portugal, Espanha, Itália, Alemanha. O princípio da oportunidade é adotado em países de tradição anglo-saxã, como Inglaterra e Estados Unidos. Por conta desta vocação legalista e civilista, Gazoto comenta que o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública tem sido considerado verdadeiro dogma, o que faz com que promotores promovam o arquivamento de procedimentos com base em outras razões, que não as de sua conveniência: No Brasil, o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública é encarado, verdadeiramente, como um dogma processual penal, consistindo em grave heresia a defesa da sua mitigação. No âmbito do Ministério Público brasileiro — a instituição que detém a titularidade da ação penal pública —, será considerado como traidor da causa pública o promotor de justiça ou o procurador da República que promover o arquivamento de um inquérito policial sob outro fundamento que não a ausência de indícios de crime ou a presença de uma causa extintiva de punibilidade (GAZOTO,

2003, p. xiii).

Os defensores da obrigatoriedade da ação penal também a justificam mediante a interpretação sistemática dos arts. 42 e 576 do CPP, respectivamente: “O Ministério Público não poderá desistir da ação penal” e “O Ministério Público não poderá desistir de recurso que haja interposto”. Entretanto, tais artigos apenas determinam que, uma vez interposta a ação penal ou o recurso, o Ministério Público não pode a ele renunciar e não é obrigado a interpô-los. Portanto, a obrigatoriedade da ação penal não resultaria de determinação expressa nem de uma interpretação sistemática, para a qual deveria se considerar, sobretudo, a Constituição Federal. O que esta resguardaria era a exclusividade ao Ministério Público da titularidade da ação penal sem, entretanto, determinar a obrigatoriedade de exercê-la, como faz a Carta italiana. Em reforço a estea argumento estaria o fato de que o Ministério Público não está obrigado nem mesmo a exercer o pedido condenatório nas ações que ajuíza, consoante o art. 385, CPP362. Portanto, com mais razão, ele não estaria obrigado a propor ações penais indistintamente ou mesmo a recorrer. Do contrário, estar-se-ia instituindo a figura do “promotor de acusação” e não do “promotor de justiça” e incentivando a atuação dos membros do Ministério Público “de modo irracional, formalista e acrítica” (MENDES, 2012, p. 1). Esta percepção do promotor de justiça como comprometido com a condenação a todo custo se equipararia à do Ministério Público como “vingador público”, na expressão utilizada por Rogério Schietti. Comenta o autor acerca da superação deste ponto de vista, em favor da visão do Ministério Público como defensor da ordem jurídica justa: [...] a atuação do Ministério Público como parte no processo remonta ao surgimento dessa instituição em sua roupagem moderna, totalmente contrária à vetusta ideia do “vingador público”, o qual era encarregado de, em nome do rei, obter a todo custo a condenação daqueles que fossem apontados como autores de crimes. Hoje, reconhece-se, ao contrário, total liberdade ao Ministério Público para pugnar até mesmo a favor do acusado, como um autêntico “dever de verdade” (obbligo de veritá). Na realidade, não se tem propriamente uma atuação ministerial direcionada a favorecer o réu, porém, à medida que o Ministério Público busca a realização da ordem jurídica justa, faz coincidir com o interesse particular do acusado o interesse público

que representa em nome da sociedade, desempenhando, assim, uma função de justiça (CRUZ, 2002, p. 81 e 82).

A esse respeito, assevera Leonardo Roscoe Bessa (2006, p. 48): “a figura do promotor de justiça estava, invariavelmente, associada à do promotor criminal, especialmente à função de acusador no Tribunal do Júri. O cenário hoje é outro”. Este raciocínio em prol da independência ministeiral seria mais consentâneo com o papel atual conferido ao Ministério Público no sistema jurídico-criminal — notadamente após a conformação constitucional de 1988 — que não incumbe a ele unicamente a função de persecução, cumprindo, também, o papel de garantidor da estrita observância dos direitos e garantias plasmados na Magna Carta (WALTRICK, 2013, p. 88). Acerca da nova conformidade ministerial pós-Constituição, o comentário de Bruno Amaral Machado (2007, p. 22): Esse grande protagonismo do MP brasileiro, a partir de marco legal específico, a CF/88, que consagrou a autonomia da instituição, apresenta vários aspectos a serem considerados. A amplitude das funções atribuídas, associada à independência funcional dos membros e à discricionariedade na interpretação da norma legal, ensejam variadas possibilidades de ação. Além disso, a inexistência de uma estrutura hierárquica rígida faz com que o voluntarismo dos membros seja variável importante na análise organizacional.

Portanto, torna-se interessante observar como outros países tratam a questão da obrigatoriedade da ação penal pelo Ministério Público e a necessidade de se conferir eficiência ao sistema de justiça criminal. 7.2.3 A mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal em outros países Em relação à obrigatoriedade ou não de o Estado exercer o poder punitivo, vários países de cultura jurídica semelhante à nossa já adotaram mecanismos de flexibilização em seus ordenamentos jurídicos. Na Alemanha, o Código de Processo Penal alemão (Strafprozeßordnung - StPO) prevê o princípio da oportunidade da ação penal, permitindo ao Ministério Público “dispensar a acusação”, com a aprovação do tribunal competente, se não verificar interesse público na instauração do processo (§153 StPO). A aprovação do tribunal resta dispensada quando se tratar de pequenos delitos, sem aumento de pena, ou se as consequências decorrentes da ofensa

forem mínimas (§153, (1) StPO). Ainda nessas hipóteses, mesmo que o acusado já tenha sido denunciado, o tribunal pode, com o consentimento do Ministério Público e do denunciado, encerrar o processo na fase em que se encontrar (art. 153, (2) StPO)363. Observa Hassemer (2003, p. 155) que esta foi a forma encontrada pelo direito moderno de reagir à ampliação da capacidade do Direito Penal, pois, sem a introdução do princípio da oportunidade, “certamente não se poderia mais conceber a realização do atual Direito Penal material no processo”. Neste sentido, também autorizam o Código Penal e o Código de Processo Penal portugueses que vêm sofrendo sucessivas reformas (a última delas em 2013) de modo a mitigar o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, como são exemplos os institutos do “arquivamento em caso de dispensa da pena” e da “suspensão provisória do processo” (para crimes de pena máxima de cinco anos de prisão), respectivamente, conforme arts. 280 e 281 do Código de Processo Penal português364. Um dos argumentos para a reforma na legislação lusitana é a “valorização da pena de multa e outras penas não detentivas na punição da pequena e média baixa criminalidade, de modo a optimizar vias de reinserção social do delinquente” (PORTUGAL, 1987, p. 3). Na França, o princípio da oportunidade da ação penal está expressamente previsto nos artigos 40 e 40-1 do Código de Processo Penal (classement sans suite)365. A decisão de arquivamento do promotor não tem caráter definitivo, podendo ser revista a qualquer momento, até que ocorra a prescrição do crime. Ela não exige formalidades e, na prática, basta que o promotor preencha um formulário (formulaire de classement sans suíte) com a indicação dos diferentes motivos para arquivamento, como “prescrição”, “ofensa não suficientemente caracterizada”, “indenização das vítimas” etc. (FRANÇA, 2013, p. 1). Bruno Amaral Machado (2007, p. 43) ressalta a importância e o significado da atribuição do monopólio da ação penal ao Ministério Público e pontifica o prestígio confiado ao Ministério Público nos países que permitem que ele arquive procedimentos: O monopólio da ação penal, normalmente atribuído ao MP, outorga-lhe o poder de definir as condutas que devem ser objeto de julgamento por suposta violação do ordenamento jurídico-penal. A maior ou menor capacidade para conduzir investigações pré-processuais atribui aos membros do MP o poder de selecionar os fatos que devem

ser levados ao conhecimento do Judiciário (BLANKENBURG, SESSAR e STEFFEN, 1978; Di FEDERICO, 1998). O fato de que em alguns modelos instituídos cabe ao MP a última palavra sobre o arquivamento de determinado procedimento (modelo brasileiro) propicia à organização elevado capital jurídico no campo jurídico penal (BOURDIEU, 1994 e 2001).

Rogério Schietti (CRUZ, 2005, p. 150) observa que esta é uma forte tendência dos países europeus, os quais perfilham modelos muito próximos, e que visam, em última análise: a) evitar o exercício da ação penal (com o arquivamento de autos de investigação, com base em critérios geralmente relacionados à ínfima lesão jurídica do crime); b) eliminar o processo criminal clássico (por procedimentos sumários ou abreviados); c) impedir a emissão de sentença condenatória ou a fixação da pena (por meio de condições que, cumpridas durante a suspensão do processo, causam a extinção da punibilidade).

Nos Estados Unidos, país que adota o sistema da common law, Rogério Schietti identificou alguma relação entre a disponibilidade da ação penal pública com o instituto do plea bargain, com as seguintes vantagens e ponderações: Nos EUA, a organização judicial lastreada no modelo paleo-repressivo da law and order despende cerca de cem bilhões de dólares ao ano, gerando o encarceramento de mais de um milhão e quinhentas mil pessoas, além de outras três milhões e seiscentas mil em regime de prova ou livramento condicional, número que não é ainda maior graças ao uso da extremada discricionariedade conferida ao prosecutor. Este, como se sabe, estabelece suas prioridades, avalia os possíveis resultados de suas ações e decide quem deve merecer barganha ou quem deve ser, a todo custo, processado com todos os rigores da lei estadunidense. Abrem-se, no terreno dessa discricionariedade (plea bargaining), possibilidades de negociação quanto à pena a ser imposta, quanto ao crime a ser objeto de confissão (plea guilty), quanto às condições de cumprimento da pena etc., tudo sob a batuta incontrolável do prosecutor, que somente necessita do assentimento do acusado, confirmada diante do juiz (CRUZ, 2005, p. 148-149).

O autor critica o alto nível de discricionariedade conferido ao promotor no sistema estadunidense para o exercício da ação penal, tanto em relação à escolha dos crimes (plea bargain) quanto das penas (plea guilty)366. Segundo o autor, haveria um baixo nível de controle do exercício da ação penal o qual é condicionado ao consentimento do acusado com os termos do acordo, à homologação judicial, e ao que se acrescenta: o controle político, realizado pelos eleitores dos district attorneys367.

A justificativa do plea bargaing são razões de eficiência da atuação estatal, pois contribuiria para a redução da população prisional americana (que atualmente é de mais de dois milhões de presos), com a aplicação de penas menores. Nos Estados Unidos, cerca de noventa por cento dos casos368 não vão a julgamento e ainda assim a população carcerária encontra-se neste patamar. Provavelmente o número de presos seria ainda maior, caso o sistema fosse realmente efetivo em cumprir a sua missão de processar e punir todos os delitos. A proposta de barganha é justificada, sobretudo, por razões utilitaristas e eficientistas do sistema penal, à custa de uma relativa abdicação de direitos e garantias do acusado (CAMPOS, 2012, p. 7). Neste mesmo sentido, a opinião de Bruno Amaral Machado, em comentário ao artigo de autores nicaraguenses sobre o risco da implantação de modelos transplantados de outras tradições jurídicas: A inspiração do novo modelo, sustentam os autores, privilegia visão eficientista do processo penal. A instrumentalidade da reforma (significante político) conformou programas processuais (condicionais) de tradição norte-americana, como o plea bargaining. E o faz, à maneira centro-americana, colocando as partes em condição de extrema desigualdade, onde o acusado sente-se premido pela pressão da negociação ofertada pelo Ministério Público, em um processo com escasso controle judicial. O intuito é rapidez e condenações ao menor custo sistêmico. Porém, alertam, com graves violações às garantias dos acusados (MACHADO, B., 2013, p. 15).

Terán e Córdoba (2013, p. 126 e 127) criticam este sistema, afirmando que se trata de uma “justiça a mil por hora”, uma fast justice, um regateo ou macdonalización de la justicia, com fórmulas rápidas de condenação que excluem o juiz e as partes interessadas do conflito e a coloca nas mãos de pessoas que não são os implicados no conflito (Ministério Público e defensor). As vantagens alegadas em prol do sistema de plea bagaining são, geralmente, de ordem prática, tais como o fato de os réus poderem evitar o tempo e o custo de uma defesa em um julgamento, de o risco de punição mais severa ou evitar a publicidade de um julgamento (LINCH, 2003, p. 24). O Ministério Público, igualmente, pouparia tempo e as despesas de um longo julgamento, aliviaria a sua carga de trabalho, bem como teria assegurada uma condenação, ainda que a custos menores, para apresentar ao seu eleitorado. Afinal, ir a julgamento representa um grande risco tanto para

o acusado quanto para o promotor, porque é impossível prever a decisão dos jurados369. Além disso, os promotores poderiam usar a plea bargaining para reduzir a pena de um acusado em troca, por exemplo, do seu testemunho para obter a condenação do corréu. Dessa forma, teriam garantida a condenação de um ofensor (embora por um “crime menor”), porém maiores chances de alcançar a condenação de outro (LINCH, 2003, p. 26). O sistema judicial, por sua vez, seria aliviado do ônus de ter que realizar um julgamento para todos os crimes, racionalizaria o uso de recursos públicos destinados aos seus serviços judiciários, o que desafogaria as sobrecarregadas pautas de julgamentos e dedicar-se-ia melhor a outros processos que provocam maior clamor social (AMERICAN BAR ASSOCIATION, 2013, p. 1; TERÁN; CÓRDOBA, 2013, p. 128). Diferentemente da transação penal brasileira, em que a proposta é exclusivamente ministerial, o plea bargaining admite negociações sobre a proposta de acordo. É necessário, entretanto, que se obtenha um consenso tanto do acusado, quanto do Ministério Público. As negociações podem dizer respeito à redução do número de acusações feitas, da sua gravidade, da pena aplicada na sentença ou da recomendação de sentença feita pela acusação. Dessa forma, verifica-se que o plea bargaining não implica necessariamente a prisão do acusado, em que pese poder conduzi-lo a ela (AMERICAN BAR ASSOCIATION, 2013, p. 1)370. Na audiência preliminar para avaliação das condições do plea bargaining, o juiz adverte o acusado sobre seus direitos constitucionalmente garantidos e avalia a voluntariedade da sua decisão (para verificar se estaria livre de qualquer coerção) para, então, aceitar sua confissão de culpa371. Salienta Souza (1998, p. 296) os requisitos para a sua homologação judicial: 1. ter o réu feito sua plea of guilty voluntariamente, sem sofrer coação por parte de autoridades; 2. a perfeita compreensão pelo acusado das implicações de sua confissão, da natureza das imputações e da pena; 3. a exatidão da declaração de culpa, que deverá fornecer uma factual basis (base fática) para a condenação. Para verificar o atendimento a tais mandamentos, deverá o juiz dirigir-se pessoalmente ao réu. Além dessas hipóteses, pode ainda o juiz rechaçar o acordo caso entenda que foi

excessivamente benévolo para o acusado ou que o promotor excedeu sua discricionariedade ao fixar a imputação e a pena solicitada. Cabe recurso da decisão que não aceita a transação.

Mesmo com todos estes cuidados, o plea bargaining traz ínsitas algumas questões de fundo que levam ao questionamento da validade jurídica e moral deste instituto (remetemos ao dilema habermasiano sobre a facticidade e a validade do direito, tal como visto na seção 1.1). O plea bargaining é instrumento de discutível constitucionalidade por importar na abdicação de direitos fundamentais do acusado. Afinal, agentes estatais - como os promotores - podem, deliberadamente, utilizar o seu poder para pressionar os acusados de um crime, que se presumem inocentes, a confessarem sua culpa e a renunciarem seu direito a um julgamento formal372. Não se pode ignorar, portanto, o espaço existente no plea bargaining para o uso da coerção373. Por outro lado, questiona-se a sua legitimidade. Nas palavras de Gabriel Campos (2012, p. 6), seria “legítimo que o Estado use seus poderes de acusação e sentenciamento (charging and sentencing powers) para pressionar o acusado a renunciar a seus direitos?”. Note-se que, em um acordo restaurativo, não haveria cabimento para este tipo de indagação, pois as partes se encontram em igualdade de posição e o conflito é tratado diretamente pelos seus “proprietários” originais. Observa Renato Sócrates Gomes Pinto (2007, p. 3), que no plea bargaining, assim como na justiça retributiva, os atores principais são as autoridades (representando o Estado) e profissionais do Direito e na justiça restaurativa os atores principais são as vítimas, os ofensores, as pessoas da comunidade. Já o plea bargaining, lembram Terán e Córdoba (2013, p. 129), expropria as partes de seus papéis e as reduz, na melhor das hipóteses, ao nível de mercadores. Campos destaca como razões contrárias ao plea bargaining, a disparidade de poderes nesta negociação e a sua realização de forma secreta, de modo a negligenciar a participação e as expectativas das vítimas: (a) ela pode pressionar um inocente a confessar culpa para evitar ser condenado por uma acusação mais grave. Por esse argumento, guilty pleas seriam as principais causas de condenações equivocadas; (b) embora o processo de plea bargaining seja normalmente encarado como um “contrato” ou “acordo” entre acusação e defesa, na verdade há uma grande disparidade de poderes nessa negociação; (c) por ocorrer em

um cenário privado, fora do alcance dos olhos do público, reduz-se a confiança da sociedade de que “a Justiça foi feita”; (d) ela permite que o acusado deixe de ser responsabilizado por todos seus atos, recebendo um “desconto” da Justiça, reduzindose o efeito dissuasório da punição; (e) a frustração das expectativas da vítima do crime, que não participam do processo e podem não concordar com a sentença mais favorável ao acusado confesso; e (f) tratamento supostamente desigual entre réus, conforme a jurisdição e sua situação econômica (e capacidade de suportar os ônus de um julgamento regular) (CAMPOS, 2012, p. 6).

Na prática, relatam os autores nicaraguenses, este sistema faz com que polícia, acusação e defesa não se preocupem em produzir provas de qualidade, confiando num acordo posterior sobre os crimes ou suas penas. Faz, também, que os jurisdicionados mais débeis economicamente sejam os mais condenados por essa forma rápida e barata de “fazer justiça”, já que não podem suportar os custos de uma defesa de qualidade por muito tempo (TERÁN; CÓRDOBA, 2013, p. 127 e 129). Além de todos os questionamentos feitos à plea bargaining sobre a sua constitucionalidade e legitimidade, Campos aduz que se trata de uma negociação particular restrita entre acusado e Ministério Público em que não há espaço para a participação e nem é levado ao conhecimento das vítimas. Comenta o autor, comparando-a à transação penal e a sua publicidade: Mencione-se, também, que os mecanismos de consenso no rito procedimental dos Juizados Criminais, no Brasil, têm lugar em audiência judicial, em ato público, realizado ao alcance dos olhos da sociedade, ao passo que a plea bargaining ocorre em ambiente privado, em conversas informais entre a acusação, o réu e seu defensor, o que, segundo alguns, reduz o controle popular sobre a atuação dos acusadores e contribui para a percepção, muitas vezes equivocada, de que “não se fez Justiça”. (CAMPOS, 2012, p. 18).

Normalmente, os detalhes de um acordo judicial só são conhecidos publicamente quando anunciados no tribunal (AMERICAN BAR ASSOCIATION, 2013, p. 1). Este é outro motivo pelo qual este instituto muito difere de uma transação penal e de uma proposta restaurativa. O plea bargain também difere da justiça restaurativa porque nesta as decisões não são propostas (ou impostas) por um terceiro não envolvido no conflito originário. Por força destes argumentos, também se manifestou contrariamente à adoção do plea bargaining no Brasil a comissão temporária de estudo da

reforma do Código Penal, do Senado Federal. A referida comissão analisou o projeto de reforma do Código Penal que, no seu art. 105, pretendia introduzir o plea bargaining no Brasil: Barganha - Art. 105. Recebida definitivamente a denúncia ou a queixa, o advogado ou defensor público, de um lado, e o órgão do Ministério Público ou querelante responsável pela causa, de outro, no exercício da autonomia das suas vontades, poderão celebrar acordo para a aplicação imediata das penas, antes da audiência de instrução e julgamento. § 1º São requisitos do acordo de que trata o caput deste artigo: I — a confissão, total ou parcial, em relação aos fatos imputados na peça acusatória; II — o requerimento de que a pena de prisão seja aplicada no mínimo previsto na cominação legal, independentemente da eventual incidência de circunstâncias agravantes ou causas de aumento da pena, e sem prejuízo do disposto nos §§ 2º a 4º deste artigo; III — a expressa manifestação das partes no sentido de dispensar a produção das provas por elas indicadas. § 2º Aplicar-se-á, quando couber, a substituição da pena de prisão, nos termos do disposto no art. 61 deste Código. § 3º Fica vedado o regime inicial fechado. § 4º Mediante requerimento das partes, a pena prevista no § 1º poderá ser diminuída em até 1/3 (um terço) do mínimo previsto na cominação legal (SENADO FEDERAL, 2012, p. 1)

O parecer da referida comissão rejeitou o plea bargaining no projeto, mesmo considerando que ele só teria lugar após o recebimento da denúncia, além de estar garantida a aplicação da pena de prisão no mínimo legal, com a possibilidade de diminui-la de até um terço aquém deste limite, vedado o regime inicial fechado para os acordos. Os motivos foram os seguintes: O Projeto de Código inovou ao trazer para o texto o instituto da “barganha” (art. 105). Propomos a sua exclusão. Consta da Exposição de Motivos que ‘se seguiu, com adaptações à realidade nacional, o modelo do plea bargain norteamericano, no sentido de conceder larga autonomia às partes para a concertação de termos de avença que possam convir a ambas. Não há meios de compelir as partes ao acordo. Elas transigirão se assim for de seu interesse. Não se desenhou a proposta no sentido de erigir o acordo em direito da acusação ou da defesa, posto que acordo obrigatório não é um acordo, é um oxímoro. Exige-se, todavia, que tenha ocorrido o recebimento da denúncia, indicando a justa causa para o desencadeamento da pretensão punitiva estatal. A partir daí — e antes da audiência de instrução e julgamento — o Ministério

Público e o advogado ou defensor público poderão buscar acordo para a aplicação imediata das penas (SENADO FEDERAL, 2013a, p. 136 e 137).

É interessante ressaltar que, em seu parecer, a referida comissão utilizou como justificativa para a rejeição do plea bargaining a forma como é realizada a transação penal no Brasil: Uma das consequências disso, por exemplo, é a forma como a transação penal é usada em nosso sistema penal. A realidade dos juizados especiais criminais informa que a conciliação tem como principal função não o ressarcimento dos danos, mas, sim, o arquivamento do processo através da renúncia da vítima. A explicação para o alto índice de arquivamentos de processos em alguns Estados estaria na indução por parte do magistrado, na insistência feita à vítima para aceitar o compromisso do agressor de não cometer mais o ato violento. Assim, o espírito conciliatório da lei transforma-se, na realidade, em espírito renunciatório para a vítima. É um desvirtuamento do instituto ocasionado por nossa cultura (SENADO FEDERAL, 2013a, p. 136 e 137).

Segundo a comissão, a conciliação feita nos juizados especiais criminais teria como principal função o arquivamento do processo, feito pela vítima por insistência do juiz, e não o ressarcimento dos seus danos, o que corrobora a distinção entre a transação penal dos juizados e a justiça restaurativa. Percebe-se, outrossim, que há um temor em relação à aplicação imediata da pena pelo rito do plea bargaining, em que pese este possa se revelar útil para a eficiência e a funcionalidade do sistema de justiça criminal, pois atuaria em detrimento das garantias e dos direitos individuais do acusado (CAMPOS, 2012, p. 4). 7.2.4 Limites da capacidade operacional do estado (ou o estado de ineficiência estatal) O debate sobre a possibilidade de reconhecimento de espaços de oportunidade374 para o exercício da ação penal pelo Ministério Público perpassa pela compreensão do que a obediência ao princípio da legalidade processual (ou obrigatoriedade da ação penal pública) significa na prática. Seria ele de aplicação possível, considerando-se a realidade brasileira? José Alberto Sartório de Souza (1998, 306-307) entende que não, pois este é um discurso eficientista e legalista impossível de se cumprir, como demonstra a cifra negra, tratada na seção 1.5. Conforme o autor, a ideia de que todo o delito deve ser “processado” ou “vingado” seria uma hipocrisia: Admitiu-se expressamente a falácia e hipocrisia que representa a ideia de que possa e

deva o Estado punir toda e qualquer infração à lei, ideia esta fundada nas teorias absolutas da pena, no princípio de que todo delito deve ser vingado (...). A chamada cifra negra, composta pelos delitos de ação penal pública não descobertos, não perseguidos e não sancionados, seja devido à inércia dos que poderiam dar a notícia do crime, seja pelo fato de as autoridades deixarem, em certos casos, arbitrária e seletivamente, de cumprirem seus misteres (a polícia não instaura o inquérito, O Ministério Público e o juiz atuam de modo a que se chegue à prescrição, etc.), demonstra a falência de tal princípio. Carece de racionalidade e, consequentemente, de legitimidade, a “legalidade processual penal”, porquanto impossível é sua realização social ou completamente diferente de sua planificação.

Portanto, a defesa intransigente do princípio da obrigatoriedade da ação penal (ou da legalidade processual) careceria de racionalidade e de legitimidade, dada a impossibilidade de seu cumprimento. No mesmo sentido, o comentário de Zaffaroni (1991b, p. 26): A disparidade entre o exercício de poder programado e a capacidade operativa dos órgãos é abissal, mas se por uma circunstância inconcebível este poder fosse incrementado a ponto de chegar a corresponder a todo o exercício programado legislativamente, produzir-se-ia o indesejável efeito de se criminalizar várias vezes toda a população. Se todos os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todas as defraudações, todas as falsidades, todos os subornos, todas as lesões, todas as ameaças, etc. fossem concretamente criminalizadas, praticamente não haveria habitante que não fosse, por diversas vezes, criminalizado.

O autor argentino destaca que o Estado tem capacidade operacional aquém do mínimo necessário para dar cumprimento a este princípio, o que torna a sua atuação arbitrária e seletivamente dirigida aos mais vulneráveis (ZAFFARONI, 1991b, p. 26). Assim, diante da impossibilidade de se denunciar e processar indiscriminadamente todos os casos em que há indícios de crime é que se recomendam alternativas para o enfrentamento destes conflitos, como a justiça restaurativa, quando apropriado. Observa Luís Wanderley Gazoto (2003, p. xv) que o exercício do direito processual não tem sentido se apartado do direito material: Direito penal e direito processual penal, nada obstante as teses autonomistas do direito de ação de Windscheid e Muther, teses predominantes há quase cento e cinquenta anos, são faces de uma mesma moeda, a moeda do jus puniendi, sem a qual o processo não tem razão existencial.

Alerta André Luis Alves de Melo (2011, p. 1) que o exercício deste caro poder, que é o ajuizamento de ações penais, deve ser feito com racionalidade, celeridade e eficiência, sob pena de o promotor criminal se transformar num mero “despachante de inquéritos policiais”, em alusão à sua atuação burocrática: Apesar do alto índice de condenação, o fato é que o ritmo de metralhadora de denúncias permite apenas condenações por crimes simples como furto, roubo e tráfico de pequenas quantidades, pois não há como aprofundar as investigações em crimes mais elaborados [...]. O Ministério Público como titular da ação penal pode, e deve, estabelecer as prioridades para que o Estado processe, e esta prioridade não pode ser definida pela polícia. É claro que esta atividade do Ministério Público deveria ser fundamentada e haveria controle nos termos do artigo 28 do CPP.

No mesmo sentido, a opinião de Gazoto (2003, p. xv), na qual o Ministério Público, como uma engrenagem importante do sistema de justiça criminal, deve colaborar com a eficiência deste: Administrar é gerir escassez de recursos. E isso, quando se é apenas uma engrenagem de um mecanismo, não se faz isoladamente. Logo, quando o promotor da ação está por exercer a sua nobre função de oferecimento de denúncia, não pode deixar de se enxergar como parte de um sistema, o qual nem sempre, ou melhor, quase nunca, é capaz de suportar a persecução de todas as condutas teoricamente tidas como criminosas.

Crítica contundente à falta de racionalidade da aplicação do princípio da obrigatoriedade hodiernamente é feita de igual maneira por José Alberto Sartório de Souza (1998, p. 246-247): A absoluta predominância em nosso direito do princípio da legalidade processual é apontada aqui como uma das principais causas dos males referidos, conquanto elemento imobilizador do Ministério Público, do próprio Judiciário e matriz de modelo judicial excessivamente formalista, comum aos países do sistema continental europeu do direito. Questiono tal princípio não só a partir de sua originalidade teórica, hoje já perdida, mas também de sua racionalidade, legitimidade e verdade social, mormente num mundo em rápido processo de transformação, a exigir o constante esforço estatal no aprimoramento de suas políticas e no gerenciamento de recursos.

Os autores citados defendem, em sintonia, que a não-atuação do Ministério Público deveria se submeter a avaliações sobre o interesse de agir (necessidade/utilidade), em homenagem ao princípio constitucional da

eficiência. Gazoto (2003, p. xiv) expõe as consequências práticas desta ineficiência: Dessa forma, meramente para dar cumprimento à sacrossanta obrigatoriedade ministerial, rotineiramente são instauradas ações penais natimortas, as quais, todos sabem, não se prestarão a atender à razão finalística do processo penal, que, em última instância, é a aplicação legal de uma penalidade pela prática de uma infração criminal ou contravencional, cuja materialidade e autoria se reconhecem. Essa conduta, que poderia parecer apenas uma cega aplicação do princípio da legalidade, constitui, na verdade, grave prejuízo para os fins maiores do Estado, pois o desperdício de tempo e dos recursos da administração judiciária em ações inúteis dará causa tantas vezes à impunidade em outras ações penais relevantes, cujo resultado final, muitas vezes, será tardio e, assim, ineficaz.

Este proceder ministerial se justificaria como exercício efetivo de política criminal pelo Ministério Público. Neste sentido, Souza (1998, p. 312) afirma: Por que não pode o Estado, dentro dos poderes conferidos pela lei, por meio do órgão do Ministério Público, seu representante legítimo, eleger prioridades e gerenciar recursos (requisitos mínimos para o sucesso de qualquer atividade de monta) ou exercer uma política criminal preestabelecida?

Como lembra Campos (2012, p. 2-3), o processo penal constitui importante instrumento de política criminal e ele próprio deve contribuir para a obtenção das finalidades do Direito Penal. Portanto, seria apropriada a introdução no processo penal de mecanismos tendentes à obtenção de sua maior eficácia, partindo-se da compreensão de que, “em um Estado de Direito, também a administração funcional da justiça é relevante valor a ser perseguido”. Haveria outras razões de interesse público que autorizariam o nãoexercício da ação penal por parte do Ministério Público como, por exemplo, a inutilidade da sentença condenatória em razão da prescrição retroativa, o excesso de demanda dos serviços judiciários, a necessidade de eleição de prioridades na formulação das acusações etc (CAMPOS, 2012, p. 17). Outro argumento constitucional para a superação deste princípio é que a imposição da propositura de ações penais pelo Ministério Público se contrapõe ao princípio do direito penal como ultima ratio que informa que o direito penal deve ser utilizado em última instância, subsidiariamente, quando nenhuma forma de controle legal funcionar (MENDES, 2012, p. 1).

Uma justiça criminal consensual nos moldes da justiça restaurativa é um exemplo de orientação político-criminal de intervenção mínima do direito penal e que contribui com a sua eficácia. A defesa da mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal em favor de uma discricionariedade regrada não tem por intento conferir ao Ministério Público um poder ilimitado para eleger o que ou a quem denunciar. Os critérios utilizados pelo Ministério Público para esta decisão estariam sujeitos a controle não só por intermédio do já existente art. 28 do Código de Processo Penal375, mas também por via da edição de uma lei que definiria os limites da sua atuação, indicando quais os tipos de infrações penais em que o encaminhamento à justiça consensual seria adequado, à semelhança do que já ocorre em outros países. Tratar-se-ia, portanto, de discricionariedade regrada. O Ministério Público não poderia se negar a oferecer a possiblidade de tratamento restaurativo para as infrações que a lei determinasse, em que pese que as partes pudessem se negar a ela em respeito à voluntariedade da sua participação no processo. Isso é, presentes os requisitos legais, o Ministério Público teria o dever (poder-dever) de oportunizar à pessoa acusada os benefícios restauradores. Este tipo de solução é defendida por Afrânio Silva Jardim (2007, p. 109): Note-se que não estamos negando que o legislador possa, como na Alemanha, prever um poder discricionário para o Ministério Público exercitar ou não a ação penal em casos específicos, em casos determinados. Em assim ocorrendo, temos o princípio da obrigatoriedade, em toda a sua plenitude, como regra geral, e a adoção expressa do principio da oportunidade, em toda a sua plenitude, para os casos alinhados pelo legislador. Vale dizer, aqui não foi mitigado o princípio da obrigatoriedade, mas permite a sua não incidência para hipóteses menos relevantes. Por outro lado, se a obrigatoriedade da ação penal resulta do dever dos órgãos e autoridades públicas de agir segundo o que determina a lei, pois bem, que a lei autorize o exercício da discricionariedade ao Ministério Público, em todos ou em determinados casos. Aí teremos a convivência harmônica do princípio da legalidade com o da discricionariedade.

É necessário harmonizar eficientismo, funcionalidade e garantismo no sistema penal, como salienta Rogério Schietti: Cada vez mais se consolida a ideia de que uma justiça criminal democrática reclama o

equilíbrio entre, de um lado, os justos anseios da sociedade por um grau maior de eficiência do sistema punitivo, com a diminuição do nível de morosidade dos processos e de impunidade dos autores de condutas criminosas e, de outro, a não menos cara aspiração de que a atividade repressora do Estado jamais se afaste das conquistas civilizatórias que qualificam e condicionam aquela atividade como formal e substancialmente legítima (CRUZ, 2013, p. 55).

Conclui-se, portanto, que é preciso evoluir no sentido da adoção de mecanismos de consenso (como a justiça restaurativa), porém não tão amplos e desiguais como a plea bargaining, equilibrando-a com a perspectiva garantista na busca de maior eficiência do sistema de justiça criminal. Pois como adverte Campos (2012, p. 12), “embora seja dever do Estado de Direito garantir os direitos dos cidadãos, também lhe incumbe a missão de promover o bem da coletividade. Afinal, em um Estado de Direito, também a administração funcional da justiça é revelante valor a ser perseguido”. 7.3 A construção de uma política pública de resolução de conflitos Algumas normas brasileiras já fazem referência à justiça restaurativa: a lei do SINASE e o Programa Nacional de Direitos Humanos. Há ainda Resolução n. 125, do CNJ e o já citado Decreto estadual nº 50.431, do Rio Grande do Sul, que “cria procedimentos restaurativos decorrentes da apuração de atos que violem os direitos humanos individuais ou coletivos e institui a Câmara Restaurativa Estadual”. São inciativas incipentes, mas que merecem ser mencionadas porque constituem um prelúdio no caminho da consolidação da justiça restaurativa no país. 7.3.1 O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) e a lei do SINASE Em 2009, foi aprovado pelo governo federal o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Este programa contemplou expressamente a justiça restaurativa em duas das suas vinte e cinco diretrizes. Uma delas diz respeito ao fortalecimento dos princípios da democracia e dos direitos humanos nos sistemas de educação básica, nas instituições de ensino superior e outras instituições formadoras. Entre as ações programáticas está o desenvolvimento de estratégias de mediação de

conflitos e de justiça restaurativa nas escolas, prevendo, também, a capacitação de docentes para a identificação de violência e abusos contra crianças e adolescentes, para o seu encaminhamento adequado e para a reconstrução das relações no âmbito escolar (diretriz nº 19 do referido programa) (BRASIL, 2009, p. 1). Outra diretriz (a de nº 17) trata da “promoção de sistema de justiça mais acessível, ágil e efetivo, para conhecimento, garantia e defesa dos direitos.” Em um de seus objetivos estratégicos, está a utilização de modelos alternativos de solução de conflitos por meio das seguintes ações programáticas: “fomento das iniciativas de mediação e conciliação, estimulando a resolução de conflitos por meios autocompositivos, voltados à maior pacificação social e menor judicialização; capacitação de lideranças comunitárias sobre instrumentos e técnicas de mediação comunitária, incentivando a resolução de conflitos nas próprias comunidades; e incentivo de projetos pilotos de justiça restaurativa, como forma de analisar seu impacto e sua aplicabilidade no sistema jurídico brasileiro” (BRASIL, 2009, p. 1). Imbuída do mesmo intuito é a lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), promulgada em 2012, que determinou a prioridade no emprego de práticas restaurativas na execução das medidas socioeducativas a que estão sujeitos os adolescentes autores de ato infracional (art. 35, III, da Lei 12594/12376). Em que pese ambos instrumentos legislativos fazerem expressa referência à justiça restaurativa e ao seu uso prioritário, trata-se de iniciativas ainda muito tímidas que não permitem falar em “consolidação” da justiça restaurativa como política pública de resolução de conflitos no Brasil. Parece que ocorre o contrário: desde a vigência dos primeiros institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95, o sistema brasileiro vem retrocedendo no seu emprego, proibindo-a para os crimes militares e também para os crimes cometidos em contexto de violência doméstica (Lei 11.340/00, “Lei Maria da Penha”). 7.3.2 A política pública de tratamento adequado aos conflitos do CNJ No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) assumiu posição de vanguarda ao propor uma política pública de tratamento adequado aos conflitos, com ações de incentivo à autocomposição de litígios e à

pacificação social, por meio da conciliação e da mediação. Tal mudança adveio do reconhecimento expresso do CNJ (2010, p. 1) da efetividade da mediação: A conciliação e a mediação são instrumentos efetivos de pacificação social, solução e prevenção de litígios, e que os programas já implementados no país têm reduzido a judicialização dos conflitos de interesses, a quantidade de recursos e de execução de sentenças.

O CNJ, como órgão que coordena o planejamento e a gestão estratégica do Poder Judiciário, por meio da Emenda nº 1, de 31 de janeiro de 2013 à Resolução nº 125 (de 2010), ordenou que os tribunais criassem, no prazo de 60 (sessenta) dias, “Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos”, que promovessem formação e treinamento adequado de servidores, conciliadores e mediadores377 e que realizassem acompanhamento estatístico específico. Na citada emenda à resolução, o CNJ determinou, ainda, a capacitação de magistrados estaduais e federais em métodos consensuais de solução de conflitos e que suas atividades relacionadas à conciliação e à mediação sejam consideradas nas promoções e remoções pelo critério do merecimento (CNJ, 2010, p. 1). O CNJ reconheceu a importância de se firmar parcerias com entidades públicas e privadas, inclusive universidades e instituições de ensino. A intenção é fomentar, nestas instituições e nas Escolas de Magistratura, a criação de disciplinas que propiciem o surgimento da cultura da solução pacífica dos conflitos (CNJ, 2010, p. 1). Quanto aos programas de justiça restaurativa ou de mediação em matéria penal, em que pese a emenda à Resolução nº 125 prever adrede esta possibilidade, reputamo-la acanhada, ao permitir empreendimentos desta natureza apenas para crimes de menor potencial ofensivo e atos infracionais, nos moldes dos programas já existentes no país378 (talvez pela falta de suporte legislativo, o que reforça a tese de que é necessária uma lei para oferecer segurança jurídica e estimular novos programas). Por outro lado, a menção expressa a eles não deixa de ser um importante reconhecimento da sua contribuição à função jurisdicional, assim como um estímulo à criação de programas semelhantes por outros tribunais. 7.3.3 O Projeto de Lei nº 7006, de 2006

O Projeto de Lei nº 7006 foi apresentado em 2006 a fim de regular o uso facultativo e complementar de procedimentos de justiça restaurativa no sistema de justiça criminal. O projeto apenas se refere ao uso de tais procedimentos em âmbito judicial, não especificando a que “crimes e contravenções penais” a justiça restaurativa seria aplicável. Esta proposta vai contra a tendência de regulamentação da justiça restaurativa em outros países como, por exemplo, na Argentina que restringe a aplicação da justiça restaurativa apenas a delitos cuja pena máxima não exceda a seis anos e proíbe a sua aplicação a vítimas menores de idade, a crimes contra a administração pública (cometidos por funcionários públicos ou crime contra a vida), contra a integridade sexual, contra a ordem constitucional etc379. Por outro lado, o projeto prevê que o encaminhamento à justiça restaurativa se dá por iniciativa do juiz, cabendo ao Ministério Público anuir a este. Quanto à participação policial no procedimento, é prevista a possibilidade de que a autoridade policial sugira o encaminhamento das partes ao procedimento restaurativo. O projeto silencia acerca da possibilidade de o Ministério Público fazê-lo, à semelhança do que acontece em Portugal e na Alemanha. Entende-se, outrossim, que quanto maior o número de órgãos “diversores” do processo criminal (juiz, promotor, policial, assistentes dos núcleos de mediação ou dos gabinetes) e quanto antes se dê a seleção de caso e o seu encaminhamento à justiça restaurativa, melhor, pois gerar-se-á menos estigmatização e mais eficiência. O projeto avança ao prever expressamente o princípio da disponibilidade da ação penal para tais casos, afirmando que “poderá o Ministério Público deixar de propor ação penal enquanto estiver em curso procedimento restaurativo”. Ele ainda acrescenta ao art. 107 Código Penal uma causa extintiva de punibilidade do agente, qual seja, o cumprimento efetivo do acordo restaurativo pelo agente. Em 2009, o parecer da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados (CCJ) concluiu pela rejeição do citado projeto, ao argumento de que ele não é oportuno, pois vai na contramão da criminalização de condutas e agravamento de penas no país, colaborando para o sentimento de impunidade ora vigorante: Se do ponto de vista formal e material nenhuma mácula pode-se atribuir ao Projeto, o

mesmo não se pode afirmar de seu mérito, especialmente, quanto à oportunidade. O País passa por um período de sentimento de impunidade, com grande produção legislativa com o objetivo de criminalizar condutas e agravar penas. Esse projeto, por sua vez, caminha em sentido contrário, despenalizando condutas. Na forma apresentada, não se trata de medida apenas despenalizadora, pois isto o Legislador já o fez ao aprovar a Lei de Juizados Especiais, mas de medida que retira das autoridades envolvidas com a persecução penal a proximidade e o contato direto com o infrator, deixando esta função a representantes da comunidade (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2009, p. 3).

O parecer vai ao encontro da tendência criminalizadora identificada na seção 1.6 deste trabalho, demonstrando a dificuldade, dentro do próprio parlamento, de tramitação de projetos despenalizadores e restaurativos. Como constatado, muitas políticas criminais do nosso tempo são, na verdade, “políticas penais” ou “políticas eleitoreiras”, voltadas para a repressão, agravamento das penas, criação de novos tipos penais, execução penal rígida etc. Tais políticas são preferidas pelos próprios parlamentares e estimuladas por seus eleitores. Entretanto, há uma esperança: em 2011, foi requerido o desarquivamento do projeto de lei pela Comissão de Legislação Participativa e, em agosto de 2013, foi designado um novo relator na CCJ. 7.4 O desafio de um novo papel para o Ministério Público brasileiro A justiça restaurativa, em especial sob a forma de mediação penal, já está incorporada e em vigor no ordenamento jurídico de alguns países europeus e latino-americanos, independentemente do sistema de direito adotado, integrando ousados projetos de modernização da justiça. Mencionaremos, para fins de pesquisa, os países mais tradicionais nas práticas restaurativas ou aqueles em que o Ministério Público desempenha um papel destacado, para fins de confrontação380. Ressaltamos que a menção à legislação de outros países neste trabalho visa somente exemplificar a problemática apresentada e sugerir novas “lentes interpretativas” e não esgotar o seu exame ou análise da aplicação prática. Não se pretende advogar a sua cópia ou assimilação simplista para o ordenamento jurídico brasileiro, pois entendemos, por óbvio, ser necessária a harmonização de qualquer modelo legislativo alienígena com as especificidades culturais e os saberes locais. Do contrário, observa Salo de

Carvalho (2009, p. 335) que “o processo é de importação cultural, de colonização científica ou, nas precisas lições de Sozzo, de mera translação/tradução de ideias”. 7.4.1 A participação ministerial na experiência comparada Em âmbito mundial, a Assembleia Geral das Nações Unidas, por meio da Resolução n º 40/34, de 29 de novembro de 1985 (A/RES/40/34), acordou que os métodos alternativos de resolução de conflitos — no qual se incluem a mediação, a arbitragem, a justiça consuetudinária ou as práticas indígenas — devem ser utilizados quando apropriados para facilitar a conciliação e a reparação pelos danos sofridos pelas vítimas.381 Na Europa, o Conselho da União Europeia, por meio da decisão-quadro 2001/220/JAI, de 15 de março de 2001, determinou que cada EstadoMembro se esforçasse para promover a mediação nos processos penais relativos a infrações que considerarem adequadas e que assegurassem que fossem levados em conta quaisquer acordos entre a vítima e o autor da infração, obtidos por meio da mediação.382 Esta diretiva do Conselho da União Europeia (além das várias recomendações expedidas por ela383) impulsionou a adoção da justiça restaurativa por seus países-membros. Na Espanha, por exemplo, mecanismos de justiça restaurativa estão em andamento em mais de quarenta tribunais384. Semelhantemente ao Brasil, a Lei nº 5, de 2000, que regula a responsabilidade penal de menores naquele país, prevê o instituto da remissão, a cargo do Ministério Público385. Na Alemanha, o Código de Processo Penal prescreve a possibilidade da mediação vítima-ofensor, no (§ 153a, (1), 5 StPO)386, estipulando que o Ministério Público pode oferecer “uma tentativa de chegar a um acordo mediado com o lesado (mediação vítima-ofensor — Täter-Opfer-Ausgleich) tentando, assim, reparar sua ofensa, na íntegra ou de forma predominante, ou esforçar-se para tanto”. Portugal foi um dos últimos países a adotar medidas de índole restaurativa e o fez por meio da Lei nº 21, de 12 de junho de 2007. Também neste país, a remessa de um processo para o acordo restaurativo fica a cargo do Ministério Público. É também o Ministério Público quem designa o mediador para a causa, a partir de uma lista de profissionais cadastrada no Ministério da Justiça387 (PORTUGAL, 2007, p. 1).

Nos Estados Unidos, os programas restaurativos se concentram, majoritariamente, nos estados de Minnesota, Vermont, Wisconsin, Maine, New Mexico, Pennsylvania e Montana (MENKEL-MEADOW, 2007, p. 10.8)388. Em geral, a legislação destes locais determina a responsabilidade de todos os tribunais — de primeira instância e de apelação — pela implementação de políticas que incentivem a resolução pacífica de conflitos. Ela também impõe que os advogados informem seus clientes sobre a existência de meios não-adversariais de resolução de conflitos e suas vantagens (para que decidam sobre o melhor método para resolver seu conflito) e estabelece que, a pedido de qualquer das partes ou do próprio tribunal, um caso pode ser encaminhado a um alternative dispute resolution (ADR) (MENKEL-MEADOW, 2007, p. 10.10). No Canadá, o Código Penal e a lei menorista (“Youth Criminal Justice Act — YCJA”) também foram alterados para incluírem princípios restaurativos389. Em 1996, o Código Penal foi reformado para incentivar, no lugar da prisão, o uso do apoio comunitário e concentrar-se em elementos restauradores, em especial quando se tratar de ofensores de comunidade aborígene. O Código Penal estatui os seguintes objetivos para a sentença criminal: ajudar na reabilitação de ofensores, reconhecer os danos causados às vítimas ou à comunidade e repará-los e promover um senso de responsabilidade nos ofensores390 (CANADÁ, 1985, p. 1). Em 2003, no Canadá, o “Youth Criminal Justice Act” foi aprovado em substituição do “Young Offender’s Act”. A finalidade da nova lei era definir os princípios, regras e procedimentos para as pessoas jovens que entram em conflito com a lei.391 Em 2012, a lei menorista foi novamente alterada, desta vez para incluir ideias restauradoras mais concretas, como a prestação de contas, a responsabilização, a significância das consequências dos crimes para a juventude, o apoio para soluções sustentáveis ou de longo prazo, a promoção de um sistema de justiça juvenil mais flexível e simplificado, e a viabilização de uso de medidas restaurativas fora do processo judicial, de modo a incentivar a responsabilidade e reduzir encarceramento de jovens.392 Convém ressaltar que a prática infracional juvenil e a forma apropriada de lidar com ela não é uma unanimidade no Canadá. O movimento pela justiça restaurativa para a juventude começou com a constatação de que o Canadá possui presos mais jovens do que qualquer outro país ocidental,

incluindo os Estados Unidos. Desde então, iniciou-se um forte apelo em prol da adoção de abordagens restaurativas para lidar com adolescentes. Na experiência canadense, não só o sistema judicial, mas a própria polícia, ao verificar que a instauração de um processo criminal não atende “ao melhor interesse do jovem ou da sociedade, encaminha o adolescente a um programa de “desvio” ou de medidas alternativas ou extrajudiciais, nos quais se determinará uma sanção mais adequada. Em geral, os programas restaurativos para adolescentes canadenses são limitados ao primeiro ato infracional e desde que este não seja violento.393 Na Inglaterra e País de Gales, o estímulo para a inclusão de empreendimentos restaurativos surgiu em 1998, após a publicação do relatório de uma comissão de auditoria intitulado “sem mais desculpas” (“no more excuses”394), que criticou severamente o sistema de justiça juvenil destes países, qualificando-os como ineficazes e caros. O documento escudou a necessidade de uma mudança filosófica na abordagem da criminalidade juvenil, a qual deveria promover uma maior inclusão dos pontos de vista das vítimas e os jovens deveriam ser incentivados a reparar suas ofensas395 (REINO UNIDO DA GRÃ-BRETANHA, 1997, p. 1). O resultado desta análise promoveu a edição do “Crime and Disorder Act 1998” (CDA). Um ano depois, o Governo lançou o “Youth Justice and Criminal Evidence Act 1999” (YJCEA) que introduziu a “referral order”, de aplicação obrigatória em ofensores primários, de dez a dezessete anos, que não tenham cometido uma infração grave. Por meio dela, o jovem é encaminhado, juntamente com seu pai, para um “painel do jovem ofensor” a fim de trabalhar o conteúdo da sentença determinada pelo tribunal que pode durar entre três e doze meses e incluir um acordo de reparação para a vítima. Este painel envolve membros voluntários especialmente treinados, o jovem autor e, em muitos casos, a própria vítima do ato infracional (REINO UNIDO DA GRÃ-BRETANHA, 2012, p. 1). Entre os objetivos declarados do programa estão prevenir a reincidência, garantindo que o jovem está ciente do impacto e das consequências do seu ato; ter em conta os desejos e sentimentos das vítimas do crime e, sempre que possível, assegurar-lhes a palavra, e conceder ao jovem uma segunda chance de um futuro nãocriminoso396 (TAMESIDE YOUTH OFFENDING TEAM, 2013, p. 1).

No âmbito extrajudicial, merece referência a experiência britânica restauradora deixada a cargo da polícia local de Thames-Valley (área metropolitana de Londres). Este projeto foi estudado por um período de três anos (1998-2001) pelo Centro Universitário de Pesquisa Criminológica de Oxford, liderada por Richard Young e Carolyn Hoyle. O relatório final “Proceder com cautela” (“Proceed with caution”) concluiu que as medidas restaurativas representam uma melhora substancial em relação ao sistema tradicional, baseado nos seguintes resultados: que ofensores, vítimas e seus apoiadores geralmente ficam satisfeitos com a equidade dos processos e com os resultados; que as desculpas foram oferecidas às vítimas e, em sua maioria, foram vistas por elas como o resultado de remorso genuíno e que um em cada três ofensores firmaram voluntariamente um acordo, no qual previa algum tipo de reparação (HOYLE; HILL; YOUNG, 2002, p. 2-3). Na Nova Zelândia, o “Children, Young Persons and their Families Act”, de 1989, introduziu uma grande reforma no sistema de justiça juvenil. Esta lei incluiu elementos de práticas tradicionais Maori397, como a presença da família e de membros comunitários na discussão de conflitos nesta seara. Inicialmente, a legislação não mencionava especificamente o termo “justiça restaurativa”, o que só ocorreu após uma nova edição do ato, em 2002. Atualmente, o âmbito dos programas de justiça restaurativa na Nova Zelândia é amplo, abarcando ofensores adultos, juvenis e crimes graves praticados por ambos. O objetivo primeiro foi adaptar o modelo tradicional de julgamento à diversidade cultural e social dos maoris, grupo étnico local. Apesar de representarem a minoria populacional, os maoris compõem a maioria da massa encarcerada. O seu modelo de “fazer justiça” é muito semelhante à proposta restaurativa (por isso a sua adoção naquele país), por ser mais participativo e amplo do que o costumeiro, conclamando as famílias e comunidades das partes envolvidas para discutirem sobre o crime. A justificativa para abranger os crimes graves decorreu da necessidade de lidar eficazmente com ofensores que apresentam risco de seguimento no sistema de justiça criminal. No arranjo para a população adulta, o procedimento neozelandês é, em sua maior parte, informal e centrado na vítima e sua reparação, consoante previsão legal expressa no “Victims´ Act”, de 2002 (NOVA ZELÂNDIA, 2002b). Judicialmente, a tendência é de valorização também dos interesses

do ofensor, como demonstra a previsão expressa no “Sentencing Act”, de 2002 da obrigação de juízes de condenação a considerarem os processos restaurativos como atenuantes da pena398. Na Nova Zelândia, um caso pode ser encaminhado a um programa restaurativo em diversas fases pela polícia, no decorrer do processo judicial (desde que antes da sentença e que haja uma confissão de culpa) e depois da sentença (no momento da liberdade condicional, como forma de reinserção na comunidade). Os procedimentos são variados e incluem conferências, mediação vítima-ofensor e círculos de sentença sendo a primeira a forma muito comum, tanto na Austrália, como na Nova Zelândia (SCLJ, 2013, p. 1). Na Austrália, todas as jurisdições estaduais já introduziram leis que incorporam a conferência restaurativa em suas respostas à ofensa juvenil. O objetivo foi lidar com o problemático incremento do número de jovens envolvidos em atos infracionais, em especial os oriundos das comunidades aborígenes (que compõem a maior parte da população encarcerada daquele país também). A primeira legislação a introduzir experimentos restaurativos é datada de 1993 (“Youth Offenders Act”). A sua maior inovação foi a regulamentação das conferências família-comunidade, geralmente para jovens primários, considerados elegíveis para a metodologia e autores de infrações mais triviais (furto, dano, lesões etc.). A edição desta lei foi importante para a expansão da justiça restaurativa e, em 1998, já havia aproximadamente 1.450 programas instalados apenas no sul da Austrália. Desde então, as outras jurisdições australianas tiveram sua legislação temperada com mecanismos restaurativos (SCLJ, 2013, p. 1). Na Austrália, a justiça restaurativa é vista como mais adequada para lidar com jovens, ao invés de adultos. Em apenas três jurisdições há a previsão de conferência para adultos (Queensland, Austrália Ocidental e Australian Capital Territory) (SCLJ, 2013, p. 1). Assim como em outros países da Comunidade das Nações, à polícia é dado amplo poder de encaminhamento e tratamento dos programas restaurativos. Em que pese tenham sido idealizados para reduzir o encaminhamento de jovens aborígenes ao sistema prisional, os números de “referral orders” destinados a crianças e jovens indígenas ainda são considerados muito baixos em alguns estados. A justificativa para tal é que nem sempre é possível nomear um facilitador aborígene para todos os casos, além do que

esta população não se encontra suficientemente articulada e mobilizada na redução da entrada de crianças aborígenes na justiça juvenil (NSW, 2009, p. 1). Mesmo sem uma determinação equivalente à europeia, oriunda do Conselho da União Europeia que de forma cogente ordena a adoção de procedimentos restaurativos, vários países latino-americanos já avançaram neste sentido. No México, em 2008, procedeu-se a uma reforma constitucional, na qual se permitiu, entre outras medidas, a mediação penal no sistema de justiça criminal399. Esta reforma representou uma mudança paradigmática muito significante, porque estatui, em sede constitucional, que “as leis devem prever meios alternativos de resolução de disputas”, inclusive em matéria penal e que “o Ministério Público pode considerar critérios de oportunidade para o exercício da ação penal”400 (MEXICO, 2008, p. 1). No Chile, a aplicação de procedimentos restaurativos foi possibilitada pela reforma processual penal de 2000, que introduziu as chamadas “alternativas ao processo penal” (ou seja, a suspensão condicional do processo e os acordos reparatórios) e, assim como a legislação mexicana, instituiu o princípio da oportunidade para o promotor401. Na Costa Rica, o Código de Processo Penal (Lei nº 7.594, de 4 de junho de 1996), prevê a possibilidade de acordo entre ofensor e vítima em a matéria penal402 (COSTA RICA, 1996, p. 1). Mesmo a Constituição da República Bolivariana da Venezuela concedeu prestígio constitucional aos meios alternativos de resolução de controvérsias, determinando no seu artigo 258 que “a lei promova a arbitragem, conciliação, mediação e outros meios de resolução alternativa de litígios”403. Curioso notar que, na maioria dos países que já adotam a justiça restaurativa ou a mediação penal em seus sistemas, estes procedimentos são executados fora do Poder Judiciário, estando, geralmente, a cargo do Ministério Público (como no modelo português), das comunidades autônomas, de universidades ou de outras instituições. Há notícia ainda da sua execução dentro da própria Defensoria Pública (como no Uruguai) e de associações de advogados, ONG´s, etc. A Lei nº 13433, de 2005, da Província de Buenos Aires, é exemplar neste sentido. Ela disciplina a mediação penal no âmbito do próprio Ministério Público e atribui a este órgão a responsabilidade de pacificar

conflitos e buscar a reconciliação entre as partes, desde que com respeito às garantias constitucionais e neutralizando os prejuízos derivados do processo penal404 (ARGENTINA, 2005, p. 1). Para este mister, a lei argentina criou um “Gabinete de Resolução Alternativa de Litígios Departamentais” no âmbito do Ministério Público. Cada gabinete possui uma equipe técnica com pelo menos um advogado, um psicólogo e um assistente social, todos especializados em resolução alternativa de litígios405. A mediação se inicia, assim, por requisição do Promotor ou a pedido de qualquer das partes envolvidas, com a ressalva de que, embora seja o Ministério Público o titular da ação penal, é sempre indispensável o consentimento da vítima nos processos mediados por ele406 (ARGENTINA, 2005, p. 1). No mesmo sentido, o Decreto nº 4384/09 que regulamenta o Código de Processo Penal na província argentina de Entre Rios, estatui que o trâmite da mediação se dá no âmbito do Ministério Público407 (ARGENTINA, 2009, p. 1). Entretanto, o Ministério Público brasileiro ainda não assumiu o seu importante protagonismo neste espaço. Bruno Amaral Machado (2011, p. 275) explica que, no campo jurídico (valendo-se da expressão de Pierre Bourdieu), a posição central foi historicamente concedida ao Poder Judiciário. Esclarece o autor que, em alguns locais, a definição de papéis entre este poder e o Ministério Público ainda não resta clara, pois o novo regime constitucional não importou uma mudança imediata nas práticas e hábitos dos atores jurídicos: Na estrutura do campo jurídico, o Judiciário ocupa posição central, já que historicamente lhe foi conferido o poder de “dizer o direito” (poder de nomeação no campo jurídico). O MP surge historicamente como instituição representante dos interesses do rei, como “fiscal” dos interesses monárquicos e, em alguns países, como na Espanha, a vinculação histórica aos interesses reais reflete-se na manutenção da denominação fiscal, para designar os integrantes da carreira. A evolução política propiciou a rearticulação das funções a serem desempenhadas pelas diversas burocracias estatais, inclusive as que integram o assim chamado campo jurídico. A transição ao “Estado Social e Democrático de Direito”, modelo constitucional instituído em parte dos países ocidentais ao longo da segunda metade do século XX, propiciou novas interpretações sobre as funções desempenhadas pelo MP e Judiciário (Flores Prada, 1999; Machado, 2007a; Ribeiro, 2000). A clara definição do papel a ser

desempenhado pelas duas carreiras não se concretizou em alguns países e o Judiciário acumula funções que parte da comunidade dos processualistas (campo processualpenal) identifica como próprias do MP (Machado, 2007b, p. 350-351) (MACHADO, B., 2011, p. 275).

Seffair (2013, p. 7) conjectura que esta omissão se deva, provavelmente, “ao modelo anacrônico adotado, de vinculação das promotorias criminais a um juízo criminal, a reboque de uma estrutura concebida para atender ao Poder Judiciário, privilegiando o cumprimento de metas de acordo com as necessidades de serviço deste Poder”. Como observa o autor, esse hiato distancia o Ministério Público da realidade e as preocupações da população a cujos interesses objetiva proteger. Nas palavras de Seffair (2013, p. 7): Essa concepção ultrapassada tem provocado, principalmente nas grandes cidades, um fenômeno que resolvemos denominar de “medievalização” da atuação criminal do Ministério Público, caracterizado pelo encastelamento da Instituição ao lado do Poder Judiciário no interior dos fóruns de justiça, verdadeiras cidadelas, cada vez mais distantes das comunidades onde estas duas instituições em conjunto ousam pretender pacificar os conflitos decorrentes do fenômeno da violência.

É premente, portanto, que se modernize a legislação brasileira, ao exemplo do observado em vários países, de modo a possibilitar que o Ministério Público contribua qualitativamente para a melhora do sistema de justiça criminal do país e que possa interagir mais intensamente com a comunidade, reforçando sua identidade constitucional (SEFFAIR, 2013, p. 9). A confrontação com a legislação de outros países nos alerta para a importância de previsão legislativa para disciplinar o procedimento restaurativo e a participação ministerial neste. Como se vê nos programas de justiça restaurativa brasileiros, abordados na seção 6, todos se encontram a cargo do Poder Judiciário ou das escolas. O papel ministerial neste processo, portanto, se encontra ofuscado. 7.4.2 A nova identidade do Ministério Público brasileiro pós-88: indutor de política criminal O Ministério Público teve sua atuação ampliada a partir da Constituição Federal de 1988 que lhe atribuiu papel fundamental na concretização de suas promessas de cidadania (WALTRICK, 2013, p. 88). Nesta nova ordem, o Ministério Público deixou de ser somente um órgão que realiza

manifestações processuais em autos, para se tornar um agente articulador e demandante na implementação de políticas públicas (CORRÊA, 2013, p. 125). Esta instituição, que de acordo com a Constituição Federal (art. 127) é essencial à função jurisdicional do Estado, embora tenha se destacado nas últimas duas décadas como protagonista na discussão de políticas sociais na área da saúde e da educação, com algumas exceções, por vezes tem atuado como coadjuvante na esfera penal, operando individualmente nas diversas fases do fluxo de justiça criminal (como ofertar denúncias, arquivar investigações, participar de audiências de instrução etc.) (SEFFAIR, 2013, p. 3). No entanto, a atuação do Ministério Público como indutor de políticas criminais — e da própria justiça restaurativa — se justifica sob vários aspectos. Consoante determina a Constituição Federal, o Ministério Público é essencial à função jurisdicional do Estado. Dessa forma, não se pode conceber um instrumento de avanço, de melhoria e de transformação do direito penal e processual penal, como é a justiça restaurativa, sem a participação ativa do Ministério Público. Ainda segundo a Carta Maior, o Ministério Público tem a atribuição de defesa das instituições, dos direitos e liberdades públicas nas quais se incluem, por óbvio, os direitos fundamentais do acusado, que, por sua vez, compreendem a possibilidade de sua reabilitação e reintegração social, que são favorecidas pela justiça restaurativa. Justifica-se, por conseguinte, também, deste ponto de vista, a atuação ministerial no fomento ao processo restaurativo. Na atuação em defesa da ordem jurídica, que a Constituição lhe incumbiu, é dever do Ministério Público assegurar o cumprimento das finalidades da pena declaradas na lei penal e de execução penal. Uma vez que a justiça restaurativa é uma ferramenta para efetivá-las, a intervenção do parquet para o seu uso é, deste modo, reivindicada. Entre os interesses indisponíveis a que cabe o Ministério Público defender, compreende-se a proteção processual das vítimas, o que o legitima a promover mecanismos para que elas recebam ajuda e assistência eficazes, tal como acontece na justiça restaurativa. Como defensor dos interesses da sociedade, ao Ministério Público também interessa estimular os mecanismos em que ela é coparticipante,

como na justiça restaurativa. Assim, a atuação do Ministério Público como órgão constitucionalmente incumbido da ação penal pública é reclamada, sobretudo, na iniciativa para propostas que, como a justiça restaurativa, visam à democratização, à modernização e ao acesso à justiça. Ao apoiá-la efetivamente, o Ministério Público tem a oportunidade de reassumir seu protagonismo no sistema criminal como “condutor, catalisador, conformador e transformador” da política criminal, elegendo prioridades de atuação e atuando como centro gestor408(WALTRICK, 2013, p. 85 e 96). Sem dúvidas, a justiça restaurativa se afigura imprescindível à eficácia máxima dos direitos fundamentais, sociais e individuais constitucionais e infraconstitucionais descritos na Constituição Federal de 1988, sendo oportuno também ao Ministério Público impulsioná-la (CORRÊA, 2013, p. 125). 7.4.3 Considerações parciais Em virtude de não haver uma legislação específica que regulamente a justiça restaurativa no Brasil, ela encontra o seu caminho onde há alguma margem legal para a justiça consensuada (juizados especiais) ou para hipóteses que não são consideradas tecnicamente como crimes (atos infracionais praticados por adolescentes). Entretanto, para se desenvolver mais amplamente no país e contribuir para o efetivo desencarceramento, é necessário estender o seu rol de aplicação, como por exemplo, para crimes graves. Para tanto, a justiça restaurativa precisa oferecer respostas a dois questionamentos legais: como compatibilizá-la com alguns direitos e garantias individuais dos acusados e com o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública incondicionada pelo Ministério Público. Quanto ao primeiro requisito, verificou-se que a justiça restaurativa privilegia alguns direitos fundamentais do ofensor, como a sua dignidade, por exemplo, na medida em que se evitam as “cerimônias degradantes” do processo (audiências, sentença penal, inscrição do nome no rol dos culpados etc.), a reincidência, a estigmatização e facilitam a sua reintegração por vias alternativas distintas da prisão. Por outro lado, para a garantia da presunção de inocência ou da não culpabilidade do acusado no processo restaurativo, a exigência de que o ofensor reconheça a sua responsabilidade pelo ato praticado é temperada

pelo princípio da confidencialidade da justiça restaurativa, ou seja, princípio segundo o qual a participação do autor no procedimento não pode ser utilizada como prova de admissão de culpa em eventual processo judicial. No tocante à obrigação do Ministério Público em oferecer a ação penal pública incondicionada, não é pacífica a tese de que este princípio encontrase mitigado, mesmo após a edição da Lei nº 9.099/95. Zaffaroni e Hassemer, por exemplo, entendem que a defesa intransigente do princípio legalidade processual careceria de racionalidade e de legitimidade, dada a impossibilidade de seu cumprimento. André Luis Alves de Melo, José Alberto Sartório de Souza e Luís Wanderley Gazoto acrescentam que este entendimento transformaria o promotor criminal num burocrata, com atuação acrítica como “despachante de inquéritos policiais”, o que não se coaduna com a missão ministerial pós-Constituição de 1988. Outro argumento para a superação deste princípio é que a imposição da propositura de ações penais pelo Ministério Público se contrapõe ao princípio do direito penal como ultima ratio que informa que o direito penal deve ser utilizado em última instância, subsidiariamente, quando nenhuma forma de controle legal funcionar. A confrontação com a legislação de outros países mostrou que vários deles — como México, Argentina, Portugal, Alemanha - inclusive de cultura jurídica semelhante à nossa, já adotaram mecanismos de flexibilização das hipóteses de atuação ministerial em seus ordenamentos jurídicos. Eles já incorporam mecanismos restaurativos, como a mediação penal, que integra projetos de modernização da justiça. No Brasil, algumas normas já fazem referência à justiça restaurativa, como a lei do SINASE, o Programa Nacional de Direitos Humanos, a Resolução n. 125, do CNJ e o Decreto estadual nº 50.431, do Rio Grande do Sul. Todavia, trata-se de iniciativas ainda muito tímidas que não permitem falar em “consolidação” da justiça restaurativa como política pública de resolução de conflitos no Brasil. Conclui-se, portanto, que convém também ao Brasil editar uma legislação específica ao seu contexto, que contemple os casos em que o Ministério Público estaria desobrigado de oferecer ação penal pública incondicionada, a fim de viabilizar uma contribuição mais ativa e concreta

do Ministério Público, a qual decorre naturalmente da sua posição de dominus litis. A defesa da mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal em favor de uma discricionariedade regrada não tem por intento conferir ao Ministério Público um poder ilimitado para eleger o que ou a quem denunciar. Também não lhe outorga amplos poderes para transigir no lugar das partes envolvidas no conflito ou em sigilo, como ocorre no plea bargaining americano. Os critérios utilizados pelo Ministério Público para esta decisão estariam sujeitos a controle não só por intermédio do já existente art. 28 do Código de Processo Penal, mas também por meio desta lei que definiria os limites da sua atuação, indicando quais os tipos de infrações penais em que o encaminhamento à justiça consensual seria adequado, à semelhança do que já ocorre em outros países. Dessa forma, seria possível alcançar um desejável equilíbrio entre a garantia dos direitos individuais (de forma regrada) e a busca de maior eficiência do sistema de justiça criminal. Ao mesmo tempo, possibilitaria que o Ministério Público agregasse qualitativamente para a melhora do sistema de justiça criminal do país e que pudesse interagir mais intensamente com a comunidade, reforçando sua identidade constitucional. Uma vez analisados os aspectos legais para a implantação da justiça restaurativa em nosso ordenamento jurídico, avaliaremos no próximo capítulo a aceitação e a aplicabilidade da justiça restaurativa para crimes graves, como no crime de estupro, o que também não é consenso entre a população e os operadores de direito. Para tanto, faremos um estudo comparativo entre dois casos de aplicação da justiça restaurativa no Brasil e no exterior, bem como uma pesquisa de campo com usuários do sistema de justiça criminal a fim de saber se eles têm interesse em medidas restaurativas, para que crimes eles acham-na aplicável, o grau de satisfação e reparação para quem já vivenciou processos restaurativos, entre outras questões. Todos estes aspectos dizem respeito ao objetivo maior proposto para o trabalho que é avaliar as condições — legais, culturais, filosóficas etc. — para o desenvolvimento da justiça restaurativa no Brasil como um novo paradigma de justiça criminal. 351 Diz o Estatuto da Criança e do Adolescente: “Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial

para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional. Parágrafo único. Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo. Art. 127. A remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes, podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semiliberdade e a internação.” 352 Dispõem os artigos 2º e 62, ambos da Lei nº 9.099/95: “O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação”; “O processo perante o Juizado Especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade”. 353 Art. 76, da Lei nº 9.099/95: “Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta.” Art. 89, da Lei nº 9.099/95: “Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).” 354 Art. 74, da Lei nº 9.099/95: “A composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo Juiz mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de título a ser executado no juízo civil competente. Parágrafo único. Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação.” 355 Luigi Ferrajoli (2010, p. 382) se mostra favorável à abolição deste tipo de pena (pecuniária), por considerá-la “aberrante” sob vários pontos de vista, sobretudo porque é uma pena impessoal, saldável por qualquer um, o que a torna duplamente injusta: em relação ao réu, que não a quita e se subtrai à pena e em relação ao terceiro, parente ou amigo, que paga e fica assim submetido a uma pena por um fato alheio. 356 Luiz Flávio Gomes (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA; GOMES, 2012, p. 495) explica que, no “nolo contendere”, o autor não assume culpa e tampouco quer discuti-la e “não quer contender”. Difere do “plea bargaining”, que permite amplo acordo entre acusador e acusado sobre os fatos, a qualificação jurídica e a pena. 357 Assim também em Portugal (Lei de mediação penal): Art. 4º, 2 — “O arguido e o ofendido podem, em qualquer momento, revogar o seu consentimento para a participação na mediação” e Art. 4º, 5 — “O teor das sessões de mediação é confidencial, não podendo ser valorado como prova em processo judicial” (PORTUGAL, 2007, p. 2). 358 O procedimento restaurativo argentino também deve ser bastante célere. O prazo para encerrar-se é de sessenta dias corridos, a partir da primeira reunião realizada. Este período pode ser prorrogado por no máximo trinta dias, mediante acordo entre as partes (art. 19 da Lei nº 13.433/2005 — Lei de Mediação da Província de Buenos Aires) (ARGENTINA, 2005, p. 4) ou sessenta dias, prorrogável uma vez por igual período (art. 16 da Lei nº 4.989/2002 — Lei de Mediação na província do Chaco). Em Portugal, este prazo é mais dilatado (três meses, prorrogável por mais dois) (art. 5º da Lei nº 21/2007) (PORTUGAL, 2007, p. 2). 359 Código Penal, art. 100: “A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara

privativa do ofendido”. Dos aproximadamente duzentos e cinquenta crimes previstos no Código Penal, em apenas sete deles a ação penal é privada e somente em treze há a exigência de representação, além das hipóteses de crimes patrimoniais praticados sem violência contra cônjuges separados, irmãos, tio ou sobrinho, com quem o agente coabita e desde que não sejam idosos (art. 182, CP) e de crimes sexuais, em que a vítima é maior de idade e não seja vulnerável (art. 225, CP). 360 Constituição Federal, art. 129: “São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei.” 361 No original: “Art. 112. Il pubblico ministero ha l’obbligo di esercitare l’azione penale” (ITÁLIA, 1947, p. 1). 362 CPP, art. 385: “Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.” 363 No original: “§ 153 (1) Hat das Verfahren ein Vergehen zum Gegenstand, so kann die Staatsanwaltschaft mit Zustimmung des für die Eröffnung des Hauptverfahrens zuständigen Gerichts von der Verfolgung absehen, wenn die Schuld des Täters als gering anzusehen wäre und kein öffentliches Interesse an der Verfolgung besteht. Der Zustimmung des Gerichtes bedarf es nicht bei einem Vergehen, das nicht mit einer im Mindestmaß erhöhten Strafe bedroht ist und bei dem die durch die Tat verursachten Folgen gering sind. (2) Ist die Klage bereits erhoben, so kann das Gericht in jeder Lage des Verfahrens unter den Voraussetzungen des Absatzes 1 mit Zustimmung der Staatsanwaltschaft und des Angeschuldigten das Verfahren einstellen. Der Zustimmung des Angeschuldigten bedarf es nicht, wenn die Hauptverhandlung aus den in § 205 angeführten Gründen nicht durchgeführt werden kann oder in den Fällen des § 231 Abs. 2 und der §§ 232 und 233 in seiner Abwesenheit durchgeführt wird. Die Entscheidung ergeht durch Beschluß. Der Beschluß ist nicht anfechtbar.” “§ 153a (1) Mit Zustimmung des für die Eröffnung des Hauptverfahrens zuständigen Gerichts und des Beschuldigten kann die Staatsanwaltschaft bei einem Vergehen vorläufig von der Erhebung der öffentlichen Klage absehen und zugleich dem Beschuldigten Auflagen und Weisungen erteilen, wenn diese geeignet sind, das öffentliche Interesse an der Strafverfolgung zu beseitigen, und die Schwere der Schuld nicht entgegensteht. Als Auflagen oder Weisungen kommen insbesondere in Betracht, (…)5. sich ernsthaft zu bemühen, einen Ausgleich mit dem Verletzten zu erreichen (Täter-OpferAusgleich) und dabei seine Tat ganz oder zum überwiegenden Teil wieder gut zu machen oder deren Wiedergutmachung zu erstreben (…)” Fonte: Código de Processo Penal (Strafprozeßordnung). Disponível em: http://www.gesetze-im-internet.de/stpo/index.html. Acesso em: 26 nov. 13. 364 Artigo 280 — Arquivamento em caso de dispensa da pena: 1 - Se o processo for por crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na lei penal a possibilidade de dispensa da pena, o Ministério Público, com a concordância do juiz de instrução, pode decidir-se pelo arquivamento do processo, se se verificarem os pressupostos daquela dispensa. 2 - Se a acusação tiver sido já deduzida, pode o juiz de instrução, enquanto esta decorrer, arquivar o processo com a concordância do Ministério Público e do arguido, se se verificarem os pressupostos da dispensa da pena. 3 - A decisão de arquivamento, em conformidade com o disposto nos números anteriores, não é susceptível de impugnação. Fonte: Código de Processo Penal português. Disponível em: http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=199&tabela=leis. Acesso em: 20 jan. 14. 365 “Article 40 Le procureur de la République reçoit les plaintes et les dénonciations et apprécie la suite à leur donner conformément aux dispositions de l’article 40-1. Toute autorité constituée, tout officier public ou fonctionnaire qui, dans l’exercice de ses fonctions, acquiert la connaissance d’un crime ou d’un délit est tenu d’en donner avis sans délai au procureur de la République et de transmettre à ce magistrat tous les renseignements, procès-verbaux et actes qui y sont relatifs. Article 40-1 Lorsqu’il estime que les faits qui ont été portés à sa connaissance en application des

dispositions de l’article 40 constituent une infraction commise par une personne dont l’identité et le domicile sont connus et pour laquelle aucune disposition légale ne fait obstacle à la mise en mouvement de l’action publique, le procureur de la République territorialement compétent décide s’il est opportun: 1° Soit d’engager des poursuites; 2° Soit de mettre en oeuvre une procédure alternative aux poursuites en application des dispositions des articles 41-1 ou 41-2; 3° Soit de classer sans suite la procédure dès lors que les circonstances particulières liées à la commission des faits le justifient.” Fonte: Code de procédure pénale. Disponível em: http://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do;jsessionid=4125E8370B658A89F2FEA8659BABC6D6. tpdjo04v_3? idSectionTA=LEGISCTA000006167418&cidTexte=LEGITEXT000006071154&dateTexte=2014012 4. Acesso em: 20 jan. 14. 366 Gabriel Campos (2012, p. 3-4) oferece um “passo-a-passo” do procedimento criminal mais comum nos Estados Unidos: “(...) se inicia com a prisão do ofensor, seguida do oferecimento de uma acusação (complaint) que contenha a demonstração de justa causa (probable cause), submetida à apreciação de um magistrado. Posteriormente, é designada uma data para comparecimento do acusado perante o juiz (first appearance ou arraignment on complaint), para que seja cientificado das acusações a ele feitas e advertido de seu direito a ser assistido por um advogado, para que possa tentar ser libertado com o pagamento de fiança. Em seguida, a acusação formalizada contra o ofensor é submetida à análise pelo Grande Júri (grand jury), que ouvirá, em audiência, as provas apresentadas pela acusação e decidirá se há justa causa para que o réu vá a julgamento. Aceitando a acusação, o Grande Júri faz o que, nos Estados Unidos da América, denomina-se “indiciamento” (indictiment), fixando as acusações que serão levadas a julgamento. Superada essa etapa, o réu é chamado a comparecer a uma nova audiência (arraignment on indictment), na qual será indagado como ele se declara, culpado ou inocente (plea of guilty or not guilty), além de advertido sobre as acusações. A corte, então, agendará uma data para julgamento, dentro de padrões constitucionais de rápido julgamento (speedy trial). Passa-se à fase de confronto da prova (discovery), na qual cada parte procura examinar as evidências que seu adversário pretende utilizar no julgamento. Nessa etapa, é bastante frequente que as partes apresentem petições (pretrial motions) sobre uma variedade de temas, tais como a supressão de provas ilicitamente obtidas, dentre outras possíveis nulidades procedimentais. Antes do julgamento, pode ocorrer a chamada plea bargaining, que consiste em um processo de negociação entre a acusação e o réu e seu defensor, podendo culminar na confissão de culpa (guilty plea ou plea of guilty) ou no nolo contendere, através do qual o réu não assume a culpa, mas declara que não quer discuti-la, isto é, não deseja contender” Caso o réu não confesse sua culpa ou não queira discuti-la (nolo contendere), explica Gabriel Campos, “o caso vai a julgamento, que pode dar-se perante um magistrado togado (bench trial) ou perante um júri (jury trial). A 6ª Emenda à Constituição norte-americana prevê o direito ao julgamento pelo júri (right to jury trial) para todas as infrações graves, definidas pela Suprema Corte como aquelas passíveis de punição com prisão superior a 6 (seis) meses. As partes, entretanto, podem optar por levar o caso a um juiz singular, renunciando a seu direito constitucional. Se o acusado for condenado pelo júri, ele será sentenciado pelo juiz togado, normalmente em uma audiência própria para a leitura da sentença (sentencing hearing). Contra a sentença de condenação, o acusado pode apresentar apelação (appeal), incumbindo-lhe provar que não teve um julgamento justo (fair trial) ou que a prova era insuficiente para sustentar o veredicto condenatório do júri. Paralelamente, o réu também pode invocar violações constitucionais através de uma petição de habeas corpus” (CAMPOS, 2012, p. 3-4). 367 Observa Gabriel Campos (2012, p. 22) que as campanhas eleitorais dos district attorneys,

praticamente não discutem os valores e prioridades de política criminal, mas o sucesso estatístico do candidato à reeleição ou as soluções exitosas de casos famosos. 368 Fonte da informação: “Plea Bargain Pros and Cons”. Disponível em: http://criminal.findlaw.com/criminal-procedure/plea-bargain-pros-and-cons.html. Acesso em: 19 jan. 14. 369 Esta suposta vantagem é justificada pelo adágio: “No matter how strong the evidence may be, no case is a foregone conclusion”. 370 Normalmente, o acordo entre as partes envolve a declaração de culpa do acusado sobre uma acusação menos grave ou de apenas uma delas. Neste caso, não há controle judicial sobre a “retirada” de acusações pelo Ministério Público, em troca da declaração de culpa. O controle judicial haveria na hipótese de uma declaração de culpa do acusado com a recomendação ministerial final de clemência na sentença. Neste caso, o juiz não é obrigado a seguir a sugestão ministerial (AMERICAN BAR ASSOCIATION, 2013, p. 1). 371 Explica Gabriel Campos o controle judicial: “Por meio da plea bargaining, o Estado pode oferecer uma redução das acusações ou da sanção a ser aplicada na sentença em troca da confissão de culpa por parte do acusado. Se o acusado decide confessar a culpa (guilty plea), é agendada uma audiência para que ele manifeste sua decisão perante um magistrado. A guilty plea é, ao mesmo tempo, uma admissão de cometimento do delito e uma renúncia aos direitos que o réu teria caso decidisse ir a julgamento. Por isso mesmo, na audiência, o juiz deve advertir o acusado sobre seus direitos à assistência por advogado, à produção de provas, a ir a julgamento e à não-autoincriminação, dentre outros. Também deve ser avaliada a voluntariedade da decisão, bem como a ausência de coerção sobre o acusado. Apenas caso a decisão do réu seja consciente e voluntária é que o juiz aceitará sua confissão de culpa” (CAMPOS, 2012, p. 4). 372 Nos Estados Unidos, a Suprema Corte tem considerado o plea bargaining constitucional, porém fixando requisitos procedimentais para coibir a má conduta da acusação. Precedentes: Bordenkircher v. Hayes, 434 U.S. 357 (1978); Brady v. United States, 397 U.S. 742 (1970); Boykin v. Alabama, 395 U.S. 238 (1969); Henderson v. Morgan, 426 U.S. 637 (1976); Gannet Co. Inc. v. De Pasquale, 443 U.S. 368 (1979) (CAMPOS, 2012, p. 7). 373 Por exemplo, o acusado pode concordar com uma pena de doze anos de prisão, em vez de vinte anos, se a acusação se refere a um crime cuja pena varie entre dez e vinte anos de prisão. O grande problema nestes casos recai sobre o réu inocente, que decide se declarar culpado de uma acusação menor a fim de evitar o risco de ser condenado no julgamento. 374 Observa Gabriel Campos (2012, p. 15) que a oportunidade da atuação estatal atualmente já é esxercido em vários níveis: no da intervenção político-legal do poder político, selecionando o objeto processual (seleção dos crimes) e os procedimentos adequados à sua gravidade; no do momento da intervenção político-administrativa do governo ao conduzir a política criminal, impondo prioridades de tratamento de certas matérias e no da intervenção do titular da ação penal (Ministério Público). 375 Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender. 376 Preceitua o referido artigo: “A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios: I - legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto; II - excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meios de autocomposição de conflitos; III - prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas; (...)”

377 A especialização dos mediadores deve ser feita mediante treinamento contínuo cujas diretrizes e conteúdo programático mínimo são estabelecidos pelo CNJ. Confira-se: “Art. 12, § 2º - Todos os conciliadores, mediadores e outros especialistas em métodos consensuais de solução de conflitos deverão submeter-se a reciclagem permanente e à avaliação do usuário. § 3º - Os cursos de capacitação, treinamento e aperfeiçoamento de mediadores e conciliadores deverão observar o conteúdo programático, com número de exercícios simulados e carga horária mínimos estabelecidos pelo CNJ (Anexo I) e deverão ser seguidos necessariamente de estágio supervisionado” (CNJ, 2010, p. 1). 378 “Art. 7º, § 3º - Nos termos do art. 73 da Lei n° 9.099/95 e dos arts. 112 e 116 da Lei n° 8.069/90, os Núcleos poderão centralizar e estimular programas de mediação penal ou qualquer outro processo restaurativo, desde que respeitados os princípios básicos e processos restaurativos previstos na Resolução n° 2002/12 do Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas e a participação do titular da ação penal em todos os atos” (CNJ, 2010, p. 1). 379 Neste sentido, temos os arts. 6º da Lei 13.443/05, 19 do Decreto 4384/09 e 4º da Lei nº 4989/01, todos de províncias argentinas. 380 Além dos tradicionais Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Nova Zelândia, vale mencionar outros países que adotam práticas restaurativas como África do Sul, Bélgica, França, Finlândia, Noruega, Alemanha, Áustria, Itália, Japão, Peru etc. 381 No original: “7. Informal mechanisms for the resolution of disputes, including mediation, arbitration and customary justice or indigenous practices, should be utilized where appropriate to facilitate conciliation and redress for victims” (ONU, 1985, p.1). 382 “Artigo 10 da referida decisão: “Mediação penal no âmbito do processo penal: 1. Cada EstadoMembro esforça-se por promover a mediação nos processos penais relativos a infracções que considere adequadas para este tipo de medida. 2. Cada Estado-Membro assegura que possam ser tidos em conta quaisquer acordos entre a vítima e o autor da infracção, obtidos através da mediação em processos penais” (CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA, 2001, p. 1). Note-se que, a despeito de as legislações se referirem à mediação penal, os programas restaurativos acomodam todos os tipos de ferramentas e não apenas a mediação. Tanto é assim que a Resolução nº 12/2002 do Conselho Econômico e Social da ONU (2002, nº 2) definiu programa de justiça restaurativa como “qualquer programa que usa um processo restaurador e que busque atingir resultados restaurativos” e, como processo restaurativo, “aquele em que a vítima e o ofensor — e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos afetados por um crime — podem participar ativa e conjuntamente na resolução de questões decorrentes do delito, geralmente com a ajuda de um facilitador” (ONU, 2002, nº 3). O mais lógico para esta decisão-quadro seria recomendar aos Estados a incorporação de programas de justiça restaurativa deixando, em cada caso, que a tradição, a cultura, as circunstâncias e as pessoas decidam por um ou outro instrumento. 383 Recomendação R (85) 11, de 28 de junho de 1985, relativa à posição da vítima no âmbito do direito penal e processual penal; Recomendação R (87) 21, de 17 de setembro de 1987, acerca da assistência às vítimas e prevenção da vitimização; R (87) 20, de 17 setembro de 1987, sobre as reações sociais à delinquência juvenil; Recomendação R (88) 6, de 18 de abril de 1988, alusiva às reações sociais à delinquência juvenil entre os jovens provenientes de famílias migrantes; Recomendação R (95) 12, de 11 de setembro de 1995, atinente à gestão da justiça criminal (todas estas recomendações referem-se explicitamente à mediação penal); Recomendação R (86) 12, de 16 de setembro de 1986, concernente às medidas para prevenir e reduzir a carga de trabalho excessiva nos tribunais; Recomendação R (87) 18, de 17 de setembro de 1987, relativa à simplificação da justiça penal (referência à resolução extrajudicial de litígios em matéria penal); Recomendação R (92) 16, de 19 de outubro de 1992, acerca das regras europeias sobre sanções

comunitárias e medidas (faz referência à cooperação do ofensor); Recomendação R (99) 19, sobre mediação em matéria penal; Recomendação R (2000) 19, de 6 de outubro de 2000, alusiva ao papel do Ministério Público no sistema de justiça criminal e Recomendação R (2006) 8, de 14 de junho de 2006, atinente à assistência às vítimas de crimes. 384 Entre estes, tribunais situados nos seguintes locais: Andaluzia, Aragão, Castilla y León, Catalunha, Extremadura, Madrid, Navarra, Valencia, País Basco e Galiza (FERNÁNDEZ, 2011, p. 1). 385 “Articulo 19: “1. También podrá el Ministerio Fiscal desistir de la continuación del expediente, atendiendo a la gravedad y circunstancias de los hechos y del menor, de modo particular a la falta de violencia o intimidación graves en la comisión de los hechos, y a la circunstancia de que además el menor se haya conciliado con la víctima o haya asumido el compromiso de reparar el daño causado a la víctima o al perjudicado por el delito, o se haya comprometido a cumplir la actividad educativa propuesta por el equipo técnico en su informe”. 386 “§ 153a (1) Mit Zustimmung des für die Eröffnung des Hauptverfahrens zuständigen Gerichts und des Beschuldigten kann die Staatsanwaltschaft bei einem Vergehen vorläufig von der Erhebung der öffentlichen Klage absehen und zugleich dem Beschuldigten Auflagen und Weisungen erteilen, wenn diese geeignet sind, das öffentliche Interesse an der Strafverfolgung zu beseitigen, und die Schwere der Schuld nicht entgegensteht. Als Auflagen oder Weisungen kommen insbesondere in Betracht, (…)5. sich ernsthaft zu bemühen, einen Ausgleich mit dem Verletzten zu erreichen (Täter-OpferAusgleich) und dabei seine Tat ganz oder zum überwiegenden Teil wieder gut zu machen oder deren Wiedergutmachung zu erstreben (…).” 387 “Artigo 3. Remessa do processo para mediação: 1 - Para os efeitos previstos no artigo anterior, o Ministério Público, em qualquer momento do inquérito, se tiverem sido recolhidos indícios de se ter verificado crime e de que o arguido foi o seu agente, e se entender que desse modo se pode responder adequadamente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir, designa um mediador das listas previstas no artigo 11 e remete-lhe a informação que considere essencial sobre o arguido e o ofendido e uma descrição sumária do objecto do processo. 2 - Se o ofendido e o arguido requererem a mediação, nos casos em que esta é admitida ao abrigo da presente lei, o Ministério Público designa um mediador nos termos do número anterior, independentemente da verificação dos requisitos aí previstos” (PORTUGAL, 2007, p. 1). 388 Informa Mark Umbreit (2007, p. 1) que a Secretaria de Justiça Juvenil e Prevenção de Delinquência do Departamento de Justiça dos Estados Unidos instituiu um projeto chamado “Balanced and Restorative Justice” (BARJ), a fim de avaliar iniciativas de justiça restaurativa nas diversas jurisdições regionais e estatais. O estudo concluiu que ao menos quinze estados já delinearam ou introduziram leis que promovam um programa menorista mais balanceado e restaurativo em seus sistemas. O projeto BARJ trabalha mais especificamente com os sistemas de correção de menores de seis regiões: Deschutes e Lane em Oregon; Travis em Texas; Dakota em Minnesota; Allegheny na Pennsylvania; e Palm Beach na Florida. Segundo o autor, estas são as iniciativas envolvidas mais ativamente na implementação de políticas e práticas da justiça restaurativa. 389 Em 1996, o Governo Federal e os Ministros Provinciais e Territoriais responsáveis pela Justiça aprovaram um relatório que denunciava o crescimento da população carcerária da época. Uma das recomendações foi aumentar o uso da justiça restaurativa, e compartilhar informações sobre os resultados dos projetos com base em seus princípios. Em 1997, 1998 e 2000, segundo os relatórios do Procurador-Geral, a maioria das jurisdições canadenses relataram ter introduzido políticas e programas de justiça restaurativa. Este é um exemplo do uso da justiça restaurativa, entre outros objetivos, também para reduzir a população carcerária. O relatório, intitulado “Corrections Population Growth: Report of the Federal/Provincial/Territorial Ministers Responsible for Justice” pode ser acessado em: http://www.publicsafety.gc.ca/cnt/rsrcs/pblctns/crrctns-ppltn-rprt/index-eng.aspx.

390 O artigo 718 do Código Penal Canadense afirma textualmente que “718. The fundamental purpose of sentencing is to contribute, along with crime prevention initiatives, to respect for the law and the maintenance of a just, peaceful and safe society by imposing just sanctions that have one or more of the following objectives: (d) to assist in rehabilitating offenders; (e) to provide reparations for harm done to victims or to the community; and (f) to promote a sense of responsibility in offenders, and acknowledgment of the harm done to victims and to the community. O 718,2 (e), do referido Código aduz que “718.2 A court that imposes a sentence shall also take into consideration the following principles: (…) e all available sanctions other than imprisonment that are reasonable in the circumstances should be considered for all offenders, with particular attention to the circumstances of Aboriginal offenders.” 391 Cabe, aqui, mencionar o registro feito por Gaudreault (2005, p. 1) de que o primeiro programa de mediação entre ofensores e vítimas foi iniciado em Kitchener (Ontário, Canadá), em 1974. Segundo a autora, ainda na década de 1980, mais de uma centena de programas de mediação foi estabelecida por comunidades religiosas e grupos de voluntários. De acordo com o Inventário canadense de programas de justiça restaurativa, hoje estão disponíveis 71 programas naquele país para jovens e adultos, sendo eles: 4 Programas Nacionais, 15 programas em Ontário, 4 em Nova Scotia, 3 em Yukon, 30 em British Columbia, 8 em Alberta, 4 em Quebec, 1 nos Territórios do Noroeste, 1 em Nunavut/Yukon, e 2 em Manitoba/Saskatchewan. Fonte: http://www.csc-scc.gc.ca/text/rj/crgeng.shtml. Acesso em: 6 dez. 12. A maioria destes programas é parte de “medidas de desvio” (diversion measures), instituto semelhante à transação penal brasileira cujo objetivo é evitar a instauração da ação penal e o registro de antecedentes criminais.. 392 Eis o teor do estatuto juvenil canadense: “5. Extrajudicial measures should be designed to (a) provide an effective and timely response to offending behaviour outside the bounds of judicial measures; (b) encourage young persons to acknowledge and repair the harm caused to the victim and the community;(c) encourage families of young persons — including extended families where appropriate — and the community to become involved in the design and implementation of those measures; (d) provide an opportunity for victims to participate in decisions related to the measures selected and to receive reparation; and (e) respect the rights and freedoms of young persons and be proportionate to the seriousness of the offence” (CANADÁ, 2002, p. 4). Caso o jovem não cumpra com o acordo feito durante o processo restaurativo, seu caso pode ser encaminhado de volta à Corte juvenil para ser tratado na forma ordinária. 393 Nos termos do art. 19. (1), do YCJA - “A youth justice court judge, the provincial director, a police officer, a justice of the peace, a prosecutor or a youth worker may convene or cause to be convened a conference for the purpose of making a decision required to be made under this Act.” 394 Relatório oficial disponível em: http://www.nationalarchives.gov.uk/ERORecords/HO/421/2/P2/CPD/JOU/NME.HTM. Acesso em: 20 nov. 13. 395 No original “the Government also sees a need for more fundamental reform to change the culture of the youth court, making it more open and accessible, engaging offenders and their families more closely and giving a greater voice to victims” (REINO UNIDO DA GRÃ-BRETANHA, 1997, p. 1). 396 No original: “The Referral Order aims to prevent re-offending by ensuring that the young person is made aware of the impact and consequences of their criminal activity. Referral Orders take into account the wishes and feelings of the victims of crime, and allow them where possible to have a say in what is agreed in the young persons contract. Referral Orders gives the young person a second chance of a non criminal future, as the sentence is ‘spent ‘ at the end of the order, provided the Panel agree that the young person has kept to the terms of their contract” (TAMESIDE YOUTH OFFENDING TEAM, 2013, p. 1). 397 Na tradição maori, as decisões para os conflitos não devem ser tomadas por profissionais, mas

devem envolver as famílias, que inclui whanau (todos os descendentes de avós comuns), hapu (clã) e iwi (tribo) (NOVA ZELÂNDIA, 2013, p. 1). 398 No original, art. 8º: “Principles of sentencing or otherwise dealing with offenders. In sentencing or otherwise dealing with an offender the court [...] (j) must take into account any outcomes of restorative justice processes that have occurred, or that the court is satisfied are likely to occur, in relation to the particular case (including, without limitation, anything referred to in section 10).” (NOVA ZELÂNDIA, 2002a, p. 8). 399 Encontram-se estágio inicial (fase de implementação) o sistema alternativo de resolução de conflitos em Baja California, Sinaloa, Coahuila, Aguascalientes, Nayarit, Veracruz e Quintana Roo. O arranjo está em discussão nos parlamentos dos seguintes estados: Sonora, Nuevo Leon, San Luis Potosi, Jalisco, Colima, Michoacán, Querétaro, Tamaulipas, Tlaxcala, Tabasco, Guerrero, Campeche e Chiapas. Já aprovaram leis prevendo a mediação de conflitos: Guanajuato, Hidalgo, Puebla e Yucatan. E, finalmente, a lei já está regulamentada e implementada em Chihuahua, Nuevo Leon, no estado do México, Yucatan, Morelos, Durango e Oaxaca (TORT, 2013, p. 1). 400 Prevê a Constituição mexicana, literalmente: “Artículo 17. Las leyes preverán mecanismos alternativos de solución de controversias. En la materia penal regularán su aplicación, asegurarán la reparación del daño y establecerán los casos en los que se requerirá supervisión judicial.” “Artículo 18. Las formas alternativas de justicia deberán observarse en la aplicación de este sistema, siempre que resulte procedente.” “Artículo 21. El Ministerio Público podrá considerar criterios de oportunidad para el ejercicio de la acción penal, enlos supuestos y condiciones que fije la ley” (MEXICO, 2008, p. 1). 401 “Art. 241. Procedencia de los acuerdos reparatorios. El imputado y la víctima podrán convenir acuerdos reparatorios, los que el juez de garantía aprobará, en audiencia a la que citará a los intervinientes para escuchar sus planteamientos, si verificare que los concurrentes al acuerdo hubieren prestado su consentimiento en forma libre y con pleno conocimiento de sus derechos. Los acuerdos reparatorios sólo podrán referirse a hechos investigados que afectaren bienes jurídicos disponibles de carácter patrimonial, consistieren en lesiones menos graves o constituyeren delitos culposos. En consecuencia, de oficio o a petición del ministerio público, el juez negará aprobación a los acuerdos reparatorios convenidos en procedimientos que versaren sobre hechos diversos de los previstos en el inciso que antecede, o si el consentimiento de los que lo hubieren celebrado no apareciere libremente prestado, o si existiere un interés público prevalente en la continuación de la persecución penal. Se entenderá especialmente que concurre este interés si el imputado hubiere incurrido reiteradamente en hechos como los que se investigaren en el caso particular” (CHILE, 2000, p. 1). 402 “Artículo 36 - Conciliación En las faltas o contravenciones, en los delitos de acción privada, de acción pública a instancia privada y los que admitan la suspensión condicional de la pena, procederá la conciliación entre víctima e imputado, en cualquier momento hasta antes de acordarse la apertura a juicio. También procederá en los asuntos por delitos sancionados, exclusivamente, con penas no privativas de libertad, siempre que concurran los demás requisitos exigidos por esta ley. En esos casos, si las partes no lo han propuesto con anterioridad, en el momento procesal oportuno, el tribunal procurará que manifiesten cuales son las condiciones en que aceptarían conciliarse. Para facilitar el acuerdo de las partes, el tribunal podrá solicitar el asesoramiento y el auxilio de personas o entidades especializadas para procurar acuerdos entre las partes en conflicto, o instar a los interesados para que designen un amigable componedor. Los conciliadores deberán guardar secreto sobre lo que conozcan en las deliberaciones y discusiones de las partes. Cuando se produzca la conciliación, el tribunal homologará los acuerdos y declarará extinguida la acción penal. Sin embargo, la extinción de la acción penal tendrá efectos a partir del momento en que el imputado cumpla con todas las obligaciones contraídas. Para talpropósito podrá fijarse un plazo máximo de un año, durante el cual

se suspende la prescripción de la acción penal. Si el imputado no cumpliere, sin justa causa las obligaciones pactadas en la conciliación, el procedimiento continuará como si no se hubiere conciliado. En caso de incumplimiento por causa justificada, las partes podrán prorrogar el plazo hasta por seis meses más. Si la víctima no aceptare prorrogar el plazo, o se extinguiere este sin que el imputado cumpla la obligación aún por justa causa, el proceso continuará su marcha sin que puedan aplicarse de nuevo las normas sobre la conciliación. El tribunal no aprobará la conciliación cuando tenga fundados motivos para estimar que alguno de los que intervengan no esta em condiciones de igualdad para negociar o ha actuado bajo coacción o amenaza. No obstante lo dispuesto antes, en los delitos de carácter sexual, en los cometidos en perjuicio de menores de edad y en las agresiones domésticas, el tribunal no debe procurar la conciliación entre las partes ni debe convocar a una audiencia con ese propósito, salvo cuando lo soliciten en forma expresa la víctima o sus representantes legales. Así reformado por el artículo 15 de la Ley de Reorganización Judicial No. 7728 del 15 de diciembre de 1997” (COSTA RICA, 1996, p. 1). 403 “Artículo 258. [...] La ley promoverá el arbitraje, la conciliación, la mediación y cualesquiera otros medios alternativos para la solución de conflitos” (VENEZUELA, 1999, p. 1). 404 Conforme o art. 2º da citada lei: “El Ministerio Público utilizará dentro de los mecanismos de resolución de conflictos, la mediación y la conciliación a los fines de pacificar el conflicto, procurar la reconciliación entre las partes, posibilitar la reparación voluntaria del daño causado, evitar la revictimación, promover la autocomposición en un marco jurisdiccional y con pleno respeto de las garantías constitucionales, neutralizando a su vez, los prejuicios derivados del proceso penal” (ARGENTINA, 2005, p. 1). 405 “Articulo 4: Organo encargado. El procedimiento estará en la órbita de las Oficinas de Resolución Alternativa de Conflictos Departamentales, dependientes del Ministerio Público”. “Articulo 5: Equipo de las Oficinas de Resolución Alternativa de Conflictos. Cada oficina contará con un equipo técnico conformado, como mínimo, con un abogado, un psicólogo y un trabajador social, todos ellos especializados en métodos alternativos de resolución de conflitos” (ARGENTINA, 2005, p. 1). 406 “Articulo 7: (Texto según Ley 13943) Inicio. El procedimiento de resolución alternativa de conflicto podrá ser requerido por el Agente Fiscal que intervenga en la Investigación Penal Preparatoria, de oficio o a solicitud de cualquiera de las partes o de la víctima ante la Unidad Funcional” (ARGENTINA, 2005, p. 1). 407 “Art. 19º - Dése al trámite de mediación desarrollada en el ámbito del MPF., como criterio de prioridad en las investigaciones y previsto en el artículo 5° de la Ley 9754, el siguiente marco regulatorio, sin perjuicio de las normas que la autoridad de aplicación dicte en el futuro” (ARGENTINA, 2009, p. 1). 408 Seffair (2013, p. 7) descreve a rotina nas promotorias criminais, demonstrando que a prática, muitas vezes, vai na contramão deste protagonismo desejado: “As promotorias criminais geralmente são compostas por profissionais que enfrentam longas e intensas jornadas de trabalho, vinculados a uma extensa pauta de audiências, além da obrigação de manter “filas” de milhares de processos em dia, encontrando-se as funções criminais do Ministério Público assoberbadas por uma enxurrada de demandas que impedem o profissional de raciocinar e discutir situações outras que não digam respeito ao caráter mecanicista de suas atuais funções, travestindo promotores de Justiça em “profissionais-máquinas”, programados para não raciocinar nada mais nada menos que suas obrigações processuais imediatas”.

CAPÍTULO VIII

PESQUISA EMPÍRICA E ENCONTROS RESTAURATIVOS EM DOIS CASOS DRAMÁTICOS A BUSCA DA DIMENSÃO HUMANA EM MEIO A CONFLITOS HEDIONDOS

8.1 A justiça restaurativa em crimes graves Em virtude do seu potencial para promover o desencarceramento e por ser erroneamente encarado como uma forma de os ofensores se beneficiarem ou de evitarem o processo penal, o modelo restaurativo não é imediatamente aceito como uma resposta a todo tipo de crime. Em geral, quanto mais as partes envolvidas percebem os danos de um crime como irreparáveis, menos receptivas elas são com a ideia de uma justiça “restaurativa” e com a possibilidade de encontrarem-se face a face com o ofensor (REEVES, 1989, p. 46). Os fatores identificados por Reeves (1989, p. 48) que tornariam as vítimas menos receptivas a este encontro são a percepção do dano como irreparável, em virtude das suas consequências; o tipo de crime e sua repercussão; o tempo decorrido desde o seu cometimento; a natureza da sua relação com o ofensor; sua percepção acerca da capacidade do ofensor de compreender o alcance do ato cometido e a importância da sua mudança; a crença de que nem todos os ofensores se arrependem por suas ações; o medo de retaliação pelo ofensor ou mesmo de apenas estar na sua presença; a importância de obter ou não respostas para suas perguntas e a necessidade de seguir em frente, entre outros. Em geral, os programas de justiça restaurativa são aplicados em uma minoria de casos se comparados com o volume total de crimes, sendo especialmente utilizados em crimes contra a propriedade, lesões corporais, de jovens em conflito com a lei e em casos em que a vítima e o agressor se conhecem e necessitam manter algum relacionamento (UMBREIT, 2007, p. 1).

Na Argentina, eles têm sido admitidos para crimes cuja pena máxima seja de seis anos de prisão, para todos os delitos culposos e para as contravenções409. Entretanto, algumas leis deste país ressalvam a possibilidade de aplicação da mediação penal em crimes com penas maiores, após a condenação pelo sistema de justiça criminal410. Neste país, independentemente da gravidade da pena, há ressalvas à aplicação da justiça restaurativa para crimes em que as vítimas forem menores de idade, crimes cometidos por funcionários públicos no exercício da função, crimes dolosos contra a vida e contra a integridade sexual ou roubo (ARGENTINA, 2005, p. 1). Em Portugal, a justiça restaurativa (na forma de mediação) tem lugar quando se trata de crime contra as pessoas ou de crime contra o patrimônio, com pena de prisão de até cinco anos. Não podem ser objeto de mediação os crimes contra a liberdade sexual, contra a administração pública, aqueles cujo ofendido seja menor de dezesseis anos ou que seja aplicável processo sumário ou sumaríssimo (PORTUGAL, 2007, p. 1). No Brasil, não há previsão legal para aplicação de processos restaurativos. Entretanto, a sua aplicação é feita em casos em que há margem legal para a justiça consensuada (leia-se: juizados especiais criminais) ou quando o fato não é tecnicamente considerado crime (para atos infracionais praticados por adolescentes, inimputáveis penalmente). Umbreit é um defensor da possibilidade de aplicação de métodos restaurativos para crimes graves, como estupro, tentativa de homicídio, homicídio doloso ou culposo (com a família sobrevivente ou amigos), roubo com arma de fogo e embriaguez no trânsito. Para o pesquisador, tanto vítimas quanto ofensores de crimes graves (estes em menor número) têm solicitado cada vez mais oportunidades de diálogo mediado para expressar o impacto do crime sobre suas vidas, a fim de obterem respostas a perguntas que ainda têm a fazer e conquistar uma sensação de “fechamento de um ciclo” ou “cicatrização para sua dor”, de modo que eles possam seguir adiante em suas vidas (UMBREIT, 2007, p. 1). A justiça restaurativa tem sido, então, aplicada em tais situações, geralmente com um encontro dentro da instituição onde o ofensor cumpre pena, o que exige uma maior preparação dos facilitadores e um processo de mediação mais intenso e longo411.

Um exemplo brasileiro presente na tese de Umbreit pode ser encontrado no caso do comerciante Massataka Ota, pai do menino Yves Yoshiaki Ota, de 8 anos, sequestrado e assassinado em 29 de agosto de 1997. O menino foi morto com dois tiros algumas horas depois do sequestro, por ter reconhecido um de seus sequestradores, um dos policiais militares que trabalhavam como seguranças nas lojas de seu pai. Foi enterrado sob o piso de cimento do quarto de um dos autores, embaixo do berço de sua enteada de 2 anos e meio. Em entrevista à Revista Veja, o empresário relatou a sua rotina antes do encontro com os ofensores do seu filho e o alívio trazido pelo perdão logo após: Revista Veja — Em que o senhor pensava nos dias que se seguiram ao enterro de seu filho? Ota — Eu não pensava em nada. Fiquei feito um doido. À noite, não conseguia dormir. Quando dormia, acordava com pesadelos: o Ives me chamando, pedindo socorro. Aí, eu levantava e via a imagem daquelas três pessoas. De dia, era igual. Não conseguia trabalhar, não conseguia comer. Ficava só pensando coisas horríveis: às vezes, eu tinha vontade de ir buscar os filhos deles. Revista Veja — Para quê? Ota — Para fazer a mesma coisa que fizeram com o meu. Eu estava desesperado. Revista Veja — Quando o senhor achou que conseguiu perdoá-los de verdade? Ota — Foi quando um programa de TV me convidou para um encontro com eles. Aceitei justamente porque queria saber se, de fato, eu conseguiria encará-los sem ódio. Os dois militares não aceitaram o convite do programa. Fui para Avaré, para me encontrar com o terceiro sequestrador, que é civil. Eu estava tremendo. Quando senti que ele já estava no corredor, vindo na minha direção, fiquei com medo. Pensei que fosse ter vontade de esganá-lo. Mas quando ele chegou à minha frente, o nervosismo passou. Aí, comecei a falar, falar e saí de lá muito aliviado. Foi quando tive a certeza de que eu tinha perdoado. Revista Veja — Perdoar ajudou? Ota — Ajudou. Porque o ódio come a gente. Quando você consegue desculpar sinceramente a pessoa que lhe fez mal, você se sente muito melhor. Perdoar não é só bom para quem é perdoado. É bom para quem perdoa também. Revista Veja — O senhor disse que recentemente tentou novamente conversar com os assassinos de seu filho e eles se recusaram. O que ainda gostaria de dizer para eles? Ota — Eu queria que um dia eles me pedissem perdão pelo que fizeram. Revista Veja — Por que o senhor considera isso importante?

Ota — Não sei bem por quê. Mas eu queria. Acho que para poder chegar em casa e dizer para a minha mulher: ‘Olha, hoje fui lá, conversei com eles, e eles pediram perdão’. Acho que ela iria ficar contente412.

Louk Hulsman (2004, p. 44) observa que um grande número de fatos definidos como “crimes graves” no contexto do sistema de justiça criminal permanecem totalmente fora deste sistema (a denominada “cifra negra”). Eles não são resolvidos no sistema de justiça criminal, mas no contexto social em que têm lugar (a família, o sindicato, as associações, o bairro) da mesma forma que se resolvem outros conflitos “não-criminais” 413. A justiça restaurativa seria uma alternativa de dar-lhes tratamento. Na opinião de Mark Umbreit (2007, p. 1), é um tabu a ideia de não aplicação da justiça restaurativa para crimes graves. Afirma que algumas vítimas experimentam um grande alívio em ficar frente a frente com responsável pelo seu crime e poder dividir a sua dor, expressar ao ofensor não apenas as consequências dos seus atos, mas também a continuação e os efeitos persistentes que teve, reconstruir a dinâmica dos fatos e perguntar o motivo da ofensa cujo desconhecimento poderia lhe atormentar por toda a vida414. Verifica-se que, neste tipo de situação, a análise de custo-benefício do encontro para a vítima é determinante para a sua participação. Ela varia, outrossim, a depender da sua personalidade, do seu estado emocional, das suas experiências anteriores e das experiências resultantes da sua vitimização. Deste modo, é fato que nem todas as vítimas desejam participar do processo restaurativo415. Isso não quer dizer, entretanto, que possibilidades de justiça restaurativa desapareceram, mas apenas que elas podem ser inapropriadas para aquele momento. Em todo caso, os sentimentos das vítimas devem ser respeitados (WOLHUTER; COATES, 1993, p. 571). Em casos de crimes sexuais, por exemplo, equipes voluntárias (geralmente em comunidades de fé) se organizam sob a forma de círculos de apoio e formam uma “aliança” com o ofensor sexual liberado após o cumprimento da pena e oferecem o apoio do círculo para ajudá-lo a prosseguir na vida extramuros. O círculo fornece um ambiente de saudável diálogo com o ofensor sobre suas atitudes e comportamentos e media seus interesses com as preocupações da comunidade. Neste caso, a participação da vítima não é necessária416.

A “Unidade de Serviços para Vítimas do Departamento de Justiça Criminal do Texas” é a única agência estatal americana que atualmente oferece esse serviço para qualquer vítima de violência grave. Haveria uma lista de espera de mais de trezentas vítimas de violência grave (na sua maior parte, parentes de pessoas assassinadas) aguardando a oportunidade de diálogo com os ofensores em penitenciárias de segurança máxima (UMBREIT, 2013, p. 4)417. As práticas de justiça restaurativa não costumam ter qualquer efeito direto ou influência sobre a sentença ou o processo em casos de crimes graves418. Por esta razão, a aplicação da justiça restaurativa para crimes graves encontra resistência também por parte dos movimentos garantistas em defesa dos ofensores que argumentam que este tipo de encontro introduz espaço para novos tipos de humilhação e ataques psíquicos aos condenados, o que consubstanciariam, em verdade, uma forma adicional de punição e poderiam deixá-los com uma maior sensação “de dívida” perante a comunidade. Alegam, portanto, que o encontro restaurativo deveria, ao menos, resultar em alguma melhoria em sua sentença, para não ser utilizado simplesmente como uma adição (add-on) de pena pelo sistema de justiça. Como dito anteriormente, a justiça restaurativa não se trata apenas de um pedido de desculpas, especialmente para os fatos que nunca podem ser restaurados ou refeitos, como o falecimento de um ente querido ou a subtração da paz ou inocência de alguém pela violência sexual. Nestes casos, não há o que se fazer para “pagar” a vida ou a inocência perdida, ou mesmo o trauma e o pós-trauma sofridos. Ademais, a justiça restaurativa não significa necessariamente concessão ou pedido de perdão — a menos ou até que as vítimas ou sobreviventes se sintam prontos para oferecê-lo livremente (MC COLD; WACHTEL, 2003, p.1). Ainda assim, por todas as vantagens expostas, entende-se justificável a possibilidade de oferta da justiça restaurativa para os envolvidos em crimes violentos. Evidentemente, seria sobremaneira importante fornecer às vítimas informações sobre o procedimento de prepará-las psicologicamente para o encontro e de permitir que se familiarizem com o processo restaurativo e seus objetivos. Isso evitaria que o encontro lhes causasse uma grande dose de estresse, que lhes fosse prejudicial ou até mesmo fosse interpretado como uma falta de compreensão pelo que passaram.

Uma forma de prevenir adversidades deste processo seria a análise cuidadosa do estado emocional da vítima e do ofensor nos pré-encontros. Pode ocorrer, por exemplo, que, em face do pouco tempo decorrido desde a ofensa, eles ainda não estejam preparados para a intervenção. Isso é bastante comum em programas de diversion, no qual o ofensor é encaminhado o quanto antes para uma audiência com a vítima, pois seu objetivo é evitar a instauração da ação penal e o registro de antecedentes criminais. A imprescindível celeridade para o ofensor pode não ser adequada para o tempo de superação da vítima. Uma alternativa ao encontro com o seu ofensor é facultar à vítima reunirse com outro ofensor, que cometeu crime semelhante. A sub-rogação da vítima ou do ofensor no diálogo pode ser benéfica para ofendidos que queiram experimentar um encontro restaurativo, mas que, por qualquer razão, não podem ou não desejam confrontar o ofensor do seu caso. Ela também é útil para ofensores que desejam participar de um programa deste tipo cuja vítima não pode ou não quer se envolver419. Segundo Umbreit (2007, p. 1), vítimas e ofensores frequentemente classificam sua participação em um encontro restaurativo nestes moldes como uma experiência transformadora que os ajudou no seu processo de recuperação420. 8.2 Estudo comparativo — caso de estupro tratado na justiça restaurativa no DF e no exterior Tão válido quanto o conhecimento teórico — constituído a partir de conceitos gerais, efetuado na primeira parte da pesquisa — é o conhecimento indutivo, obtido a partir da prática, como a reflexão que ora se propõe (FREITAS FILHO; LIMA. 2010, p. 2). Pretende-se realizar uma comparação entre dois casos de estupro, em que foi aplicada a justiça restaurativa: um no Brasil e outro no exterior (o país de ocorrência do crime não foi divulgado pela fonte). Os casos foram selecionados metodologicamente, procurando-se explorar a maior quantidade de variáveis possíveis em cada um deles, a despeito das diferenças de contexto em que ocorreram. Considerou-se o fato de se tratarem de crimes graves, de natureza sexual, cujas vítimas e ofensores possuíam a mesma idade na data dos fatos (treze e dezoito anos, respectivamente) e eram conhecidos entre si (no primeiro caso, irmãos; no

segundo, namorados). Dessa forma, torna-se possível a sua avaliação com profundidade e, ao mesmo tempo, a comparação para a extração de conclusões válidas. Os fatos ocorreram em países diversos, com legislações distintas para este tipo de crime. Nas duas situações, autores e vítimas apresentaram versões divergentes para os fatos (ao menos inicialmente), porém suas escusas para a prática dos crimes foram semelhantes (ambas de cunho cultural, alegando que a conduta não era reprovável). Foi determinante para a escolha destes dois eventos o fato de terem sido minuciosamente relatados, o que é raro neste tipo de intervenções em virtude da regra de confidencialidade do procedimento, o que inviabiliza até mesmo a sua divulgação. O objetivo deste capítulo é, a partir da narrativa e da exposição do problema, obter uma compreensão mais acurada sobre as similaridades e diferenças das intervenções restaurativas relatadas, a despeito das complexidades envolvidas em cada situação. Por tais razões, não se utilizará uma metodologia rígida, com um protocolo fixo e determinado (FREITAS FILHO; LIMA, 2010, p. 2), mas a comparação de aspectos tidos como relevantes e comuns às duas abordagens. 8.2.1 Caso 1 — Estupro de vulnerável por três jovens, um deles menor de idade Este caso foi tratado pelo programa de justiça restaurativa do TJDFT e se refere a um caso de estupro de vulnerável e corrupção de menores, em coautoria (antigo “atentado violento ao pudor”, art. 214, c/c art. 29, ambos do CPB, com a causa de aumento de pena prevista no art. 9º da Lei 8.072/90 e art. 1º da Lei 2.252/54, c/c art. 29, do CPB421). O encontro restaurativo foi oportunizado ainda na fase instrutória do processo e influenciou no seu resultado final. O relato abaixo foi extraído do artigo “A Eficácia da Justiça Restaurativa nas Varas Criminais”, de Helena Maria Costa e Marília Lobão Ribeiro de Moura, psicólogas e mediadoras do TJDFT (COSTA; MOURA, 2010, p. 611-625) e adaptado para este trabalho. Policiais militares flagraram três rapazes durante a prática de atos libidinosos (mais especificamente, coito anal) por um deles com uma adolescente de 13 anos de idade, no interior de um veículo. Dois autores eram penalmente imputáveis e um deles, de menor idade. Autuados em

flagrante, o adolescente foi encaminhado à Vara da Infância e da Juventude do DF e os outros dois rapazes foram presos em flagrante, situação que perdurou por um mês para um deles e por dois meses para o outro. Na audiência de instrução processual, a vítima foi ouvida na companhia de um psicólogo da Secretaria Psicossocial Judiciária do TJDFT (SEPSI). Na ocasião, ainda não vigorava a Recomendação nº 33, de 2010, do CNJ, que orienta os tribunais a criarem serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais (o chamado “depoimento especial”, via vídeo conferência)422. A metodologia para oitiva da vítima em juízo incluiu uma reunião prévia da vítima com o psicólogo, a fim de estabelecer um vínculo de confiança entre ambos e prepará-la para o ato processual. Nesta ocasião, a vítima compareceu acompanhada da mãe que relatou um imenso sofrimento pelo fato ocorrido com sua filha, especialmente porque ela também fora vítima de estupro na adolescência. A situação com a filha reavivava a lembrança da agressão sofrida no passado pela mãe. Ela manifestou, então, aos psicólogos o interesse em dialogar com os rapazes (agressores de sua filha). No dia da audiência, a genitora renovou o seu desejo de conversar com os autores. Além de negado o seu pleito, ela não foi autorizada a ouvir os depoimentos deles em juízo naquela tarde. Percebendo a enorme frustração e sofrimento da mãe, os psicólogos judiciais solicitaram a intervenção do Programa de Justiça Restaurativa daquele tribunal para, conjuntamente, promoverem o encontro da genitora com os rapazes, extensivo aos genitores deles. Os expertos entenderam que, apesar de o programa de Justiça Restaurativa ser voltado para a mediação de conflitos de menor potencial ofensivo, diante das circunstâncias fáticas daquele caso, era possível a realização deste tipo de intervenção em um único encontro (isso porque, mesmo se tratando de dois réus, ambos tinham versões semelhantes para o fato e reconheciam sua participação no evento). O encontro restaurativo extra-processual foi autorizado pela juíza do processo, com anuência do Ministério Público, do defensor dos réus e das próprias partes, sem prejuízo do prosseguimento da ação penal. Os envolvidos e seus familiares foram preparados para a reunião, em visitas domiciliares e em sessões privadas e conjuntas. Nas visitas domiciliares aos réus, os mediadores foram recebidos pela genitora e pela irmã de um deles

(já que seu pai é falecido) e por ambos os pais do outro. Nos dois casos, eles perceberam a disposição de todos para assumirem responsabilidades, esclarecerem dúvidas e um sentimento de pesar e cuidado pela dor da vítima, o que sinalizava possibilidade de êxito para a intervenção. Na residência da vítima, as psicólogas foram recebidas por sua genitora e seu padrasto. Na ocasião, o padrasto comentou sua estranheza com a forma tranquila com que a vítima vinha enfrentando a situação. Disse estar preocupado, porque ela já mentira anteriormente, em duas ocasiões relevantes, com consequências desagradáveis para a família. Após esse relato do padrasto, uma psicóloga saiu da sala onde todos conversavam e procurou a vítima em seu quarto. A psicóloga encontrou a adolescente chorando, pois de lá ela ouvira tudo o que foi dito na sala. A técnica então a convidou para um passeio, em busca de privacidade. No percurso, a psicóloga conduziu uma entrevista com a vítima, baseada no que o seu padrasto havia relatado e, com alguma relutância, a adolescente confirmou que não havia sido obrigada a acompanhar os réus e tampouco forçada a manter relação anal com um deles, o que fez por vontade própria. Em seguida, trabalhou-se com a adolescente o que poderia ser feito em relação a este fato, pois, além da denunciação caluniosa configurar ato infracional, ela pode trazer consequências graves para os acusados, mesmo considerando que, independente do consentimento da vítima, a manutenção pura e simples de relações sexuais com menores de catorze anos já configura crime. Por outro lado, as implicações jurídicas para o outro réu seriam relevantes, uma vez que ele não a obrigou a entrar no carro e tampouco pretendia ter relações sexuais com ela. A vítima se comprometeu a respeito e a psicóloga assegurou sigilo sobre o fato, mesmo em relação a seus pais. Entretanto, ela a advertiu de que aquela inverdade consistia em um ato infracional com consequências futuras para terceiros e que, portanto, o seu código de ética profissional lhe exigia a notificação do fato às autoridades competentes (no caso, a juíza do processo). No dia do círculo restaurativo, reuniram-se todos numa sala preparada para tornar o espaço o mais acolhedor, com água, lanche e cadeiras. Foi lembrada a todos a razão de estarem ali e as regras para manifestação, já explicadas nas reuniões prévias. A fim de induzir uma atmosfera de paz e conciliação no local, foi proposta a escuta de uma oração cristã musicada (oração de São Francisco), que traduz a filosofia restaurativa (note-se que os

mediadores se inteiram nas intervenções preparatórias sobre vários aspectos dos participantes, inclusive sua orientação religiosa). A seguir, a reunião procurou observar o seguinte protocolo: 1. apresentação de todos, com nome e ocupação principal; 2. relato sobre como cada um foi afetado pelo fato criminoso, na seguinte ordem: vítima, seus representantes; ofensores e seus familiares ou apoiadores; 3. declarações e perguntas da vítima e sua família, nessa ordem; 4. respostas às perguntas pelos ofensores; 5. declarações que os ofensores e seus apoiadores desejassem fazer; 6. separação em três grupos (vítima e seus apoiadores e cada ofensor com sua família) para discutirem os seguintes pontos: a quem ofendi e o que devo fazer para reparar o dano e como fazê-lo? (para os ofensores); quem me ofendeu e de que necessito para ser restaurado dessa ofensa? (para a vítima); 7. retorno ao grande grupo para trazer as necessidades e as propostas; 8. elaboração do acordo; 9. encaminhamentos a órgãos públicos, de assistência, de saúde etc.; 10 . Redação de relatório para o juízo (no qual não constam detalhes do encontro, devido ao sigilo, apenas informando se foi possível ou não o acordo); 11.acompanhamento do cumprimento do acordo restaurativo.

Note-se que, neste círculo restaurativo, além dos envolvidos diretos e seus familiares, estavam presentes apoiadores das partes, como a patroa da mãe de um dos acusados e o patrão do outro ofensor. Ainda na primeira fase do círculo (apresentação), a mãe da vítima violou o protocolo, tomando a fala para si para perguntar aos ofensores porque praticaram aquela violência contra sua filha. As facilitadoras compreenderam a angústia e a ansiedade da genitora e lhe explicaram que essa pergunta só poderia ser respondida após o final da etapa seguinte. Explicaram que não seria produtivo — nem para ela, nem para o bom resultado do encontro — que resposta fosse dada naquele momento, solicitando que confiasse na perícia delas. A mãe chorou, replicou e então aquiesceu ao pedido. Após todos comentarem como haviam sido atingidos pela ofensa (passo nº 2), pôde-se notar a solidarização de um com a dor do outro, bem como perceber que havia mais vítimas do fato, além da menor. Em seguida (item 3), a genitora foi autorizada a fazer a pergunta que ansiava fazer. Neste momento, ela estava visivelmente menos sofrida. Com cuidado e adequação, os ofensores lhe responderam que não a haviam violentado, pois ela teria concordado com o ato sexual (fase nº 4 — respostas às perguntas pelos ofensores). Um dos acusados declarou que não teve e tampouco pretendia ter

relações sexuais com a menina, mas apenas levá-la junto com seu amigo para um lugar mais privado, para fazê-lo, utilizando-se do carro de seu pai. Afirmou que a adolescente não demonstrara qualquer sinal de que estava desconfortável com a situação, caso em que ele seria o primeiro a protegêla. O padrasto da vítima tomou a palavra e perguntou aos ofensores se eles não teriam percebido, pelo porte físico da menina, que ela era muito jovem para ter relações sexuais e que aquilo era errado, apesar da sua concordância. Avaliou, ainda, que o fato era ainda mais reprovável diante das justificativas apresentadas, considerando a boa formação que relataram ter recebido de seus pais. Os ofensores foram habilidosos na resposta, declarando arrependimento e ocultando um aspecto cultural vigente na sua comunidade (e que fora discutido com as psicólogas durante as reuniões preparatórias): o fato de não se vislumbrar reprovabilidade na relação sexual consentida entre dois jovens, mesmo um deles sendo menor de idade. No passo seguinte (nº 5 — declarações que os ofensores e seus apoiadores desejassem fazer), a mãe de um dos ofensores declarou que sentia muito por tudo que a vítima e seus familiares passaram e que ela orava por todos diariamente, desde o dia do acontecimento. Declarou que desejara ir à casa da vítima, mas temeu gerar agressividade com o ato. O mesmo foi dito pelos pais dos outros ofensores e da vítima. A mãe dela relatou que também teve vontade de procurá-los e esclarecer que não haveria qualquer desejo de vingança por parte deles. No entanto, os comentários “da rua” davam conta de que os agressores e seus amigos desejariam fazer mal à vitima, o que a fez recuar. Todos informaram a inverdade dessas declarações. Antes do passo 6 (separação em grupos para discutirem sobre a quem ofenderam e o que devem fazer para reparar o dano), o encontro foi interrompido pelos facilitadores, visto que todos estavam emocionalmente cansados, porque estavam reunidos há mais de duas horas. Foi proposto que executassem esta fase em casa. Todos concordaram com a sugestão. Em seguida, um dos acusados levantou-se e abraçou a mãe da vítima, pedindo desculpas pelo ocorrido. A genitora aceitou e retribuiu o ato. Igualmente, o outro ofensor repetiu o gesto do amigo. Ao final, todos se abraçaram, emocionados. O padrasto da vítima declarou que esperava que todos

estivessem sendo sinceros, pois, a partir daquele momento, se encontrasse com um deles na rua, convidá-los-ia para um café em sua casa. Não foi possível a reunião do grupo para um novo círculo, por incompatibilidade de horários de trabalho de todos. Por este motivo, o passo 7 — em que os grupos apresentam sugestões de como reparar o malfeito e declaram como gostariam de ser compensados pelo seu sofrimento — foi feito por meio da mediação indireta dos facilitadores que compareceram à residência de cada um. O primeiro grupo visitado foi o da família de um dos ofensores. Na ocasião, eles comentaram que, por conta da acusação, o autor corria o risco de ser expulso da corporação militar da qual era reservista. Para pagar aos advogados do processo, o seu genitor negociou sua demissão de um emprego no qual estava há quinze anos. O plano era resgatar o FGTS e pagar a despesa. Os familiares refletiram sobre as questões propostas e concluíram que o autor não havia ofendido a ninguém, ao contrário, ele foi prejudicado pela denúncia falsa. Discutiram uma possibilidade de reparação e propuseram que a adolescente fosse à corporação militar contar a verdade. Os facilitadores também se dispuseram a relatar ao órgão castrense o que conheceram sobre o caso como forma de reparação do Estado, o que foi aceito. A segunda visita foi à casa de outro ofensor que, com sua mãe, os aguardava. Eles propuseram um gesto simbólico de reparação e ofereceram um caderno e uma caneta bonitos para que a vítima reescrevesse sua vida, com novos comportamentos e sem mentiras. Os facilitadores perceberam que os proponentes continuavam presos ao valor de sua comunidade, ou seja, à prática de que o ato sexual consentido não seria crime e, portanto, não havia o que reparar. Trabalharam com eles a questão do fato ainda ser considerado típico, pois o autor tinha dezoito anos de idade e a vítima, treze. Após compreenderem, disseram que não sabiam o que fazer, além de pedirem desculpas. Sugeriu-se então que o autor, que tinha emprego, assumisse a responsabilidade pelo pagamento das passagens para a vítima participar do tratamento psicológico ao qual ela seria encaminhada. Ambos concordaram prontamente. A última visita foi à casa da vítima, que, com seus pais, já os aguardavam. Desde o início do atendimento, os responsáveis reconheceram

que sua filha havia faltado com a verdade e concordaram com que ela voltasse ao fórum para refazer seu testemunho, o que também seria uma oportunidade de crescimento pessoal. Aceitaram a proposta de ida à corporação militar de um dos ofensores para contar o acontecido. Foram informados sobre a proposta construída com o segundo ofensor (autor das relações sexuais consentidas) — de pagamento das passagens —, mas declararam que, para se sentirem reparados, necessitavam de que ele prestasse serviço por pelo menos três meses, em uma instituição de amparo a mulheres vítimas de violência doméstica ou numa instituição para mulheres solteiras grávidas. Ponderaram com os pais quanto ao significado das histórias inverídicas que a adolescente criava e que já geraram, por diversas vezes, consequências graves para si e para terceiros. Apontou-se que esse comportamento precisava ser tratado para que cessasse e foi oferecido tratamento psicoterápico na rede pública por um período de doze meses, o que foi prontamente aceito. A equipe retomou o contato com este ofensor para comunica-lo sobre a solicitação de prestação de serviço à comunidade feita pelos pais da vítima, com que ele concordou. O dinheiro das passagens para tratamento da vítima foi depositado na conta bancária dela. Na fase do item 9 — encaminhamentos a órgãos públicos, de assistência, saúde etc. — realizou-se a recomendação, por escrito, da vítima ao Centro de Orientação Médica Psicopedagógica (COMPP), instituição da Secretaria de Saúde do Governo do Distrito Federal. O Projeto Justiça Restaurativa também contatou a Secretaria de Estado do Trabalho e conseguiu uma vaga para um dos ofensores num curso profissionalizante de armador de ferragens, especialização muito procurada pelos construtores no Distrito Federal, com elevados salários. O autor afirmou seu interesse no curso e anotou as orientações para a inscrição. Cumpridos os passos do protocolo, foi comunicado ao Juízo competente sobre o alcance do acordo (item 10). Concluído o procedimento restaurativo, a vítima, apoiada por seus familiares, demonstrou interesse em prestar novas declarações na presença da juíza criminal que relatou a nova versão. Neste caso, a ação penal seguiu o seu curso até a sentença definitiva, com julgamento parcialmente

procedente da denúncia ministerial, que resultou na absolvição de um dos acusados e na condenação do outro. 8.2.2 Caso 2 — Estupro de vulnerável entre irmãos O caso a seguir foi extraído de uma experiência em justiça restaurativa no exterior, oportunizada na fase de execução da sentença condenatória, enquanto o condenado cumpria liberdade condicional pela prática do crime de estupro (CROSLAND; LIEBMANN, 2003, p. 138-142). Shaun — com 18 anos de idade na época do crime — estuprou a sua irmã Daniella, então com 13 anos. Um ano após o fato, ele foi processado e julgado e, durante esse tempo, foi mantido em prisão preventiva. Após a condenação, cumpriu mais dois anos de prisão definitiva e outros dois anos como período de liberdade condicional em um albergue. Já na fase de cumprimento da liberdade condicional, a vítima pediu para encontrar-se com o autor, a fim de dizer-lhe como se sentiu triste com o fato e então poder seguir em frente. A mãe de ambos, Sandra, informou o pedido da filha ao serviço de reinserção social, que, por sua vez, o encaminhou ao diretor da albergaria, que o remeteu para o programa de justiça restaurativa. Assim como a filha, a mãe não manteve qualquer contato com o filho desde o fato. Assistentes sociais e mediadores visitaram Daniella em casa, quando então ela informou que gostaria de estabelecer contato com seu irmão para perguntar por que ele a estuprou, para dizer que ela ainda o considerava como seu irmão, que o amava e, também, para manifestar sua desaprovação com o ato praticado por ele. A vítima disse que esperava ouvi-lo admitir que a estuprara, pois isso era importante para ajudá-la a seguir em frente. Os mediadores puderam perceber que Daniela também sofria por ter informado o abuso, pois o irmão cumpriu pena de prisão por isso. A ela foi informado que a mediação é um processo voluntário e que precisava preparar-se para a hipótese de seu irmão, Shaun, não querer encontrá-la. Ele pode encontrar-se ainda na fase de negação do delito e a ele poderia não ouvir as declarações que deseja ou ouvir coisas que não queira. Reconhecida essa possibilidade pela vítima, os mediadores visitaram Shaun no albergue de liberdade condicional, acompanhado de sua apoiadora local. Ela informou que ele se sentia amargurado em virtude da ofensa e da sentença, mas, ao mesmo tempo, ansioso em ver sua irmã. Ele também apresentou dúvidas sobre a autoria que lhe é imputada e disse que tinha

perguntas a fazer para sua irmã. Ele não negou a prática de relações sexuais com ela, aos 13 anos de idade, mas alegou que as manteve porque era consensual. Apesar de ter se declarado culpado em tribunal para cumprir uma pena menor, ele não aceitava ser culpado de estupro, porque ele sentiu que a vítima instigou a situação e lhe deu os sinais de que queria. Durante a visita, o processo restaurativo foi explicado para ele. Foi informado de que se tratava de um procedimento voluntário e que os mediadores não realizavam julgamento de nenhuma das partes. Ele expressou sua opinião de que o estupro seria um ato violento que ocorre entre estranhos. Ele não imaginava ter sido violento ou desagradável com Daniella, por esta razão, não se considerava um estuprador. O diálogo evoluiu com os mediadores explicando para ele que o estupro não é necessariamente violento. Ao discutirem o conceito de consentimento, ele foi deixado para pensar, a sós, se Daniella realmente tinha consentido no ato. Shaun informou que, na sua opinião, o seu erro estava apenas em ter tido relações sexuais com a irmã. Ele também alegou que Daniella manteria outro relacionamento sexual intrafamiliar. Os mediadores esclareceram que o fato de Daniella ter mantido relações sexuais com outro membro da família não foi relevante para Shaun ter sido acusado de estupro e que assim aconteceu porque Daniella havia informado que a relação entre eles não foi consensual. Observe-se que Daniella não relatou a qualquer dos intervenientes outro relacionamento intrafamiliar. Os facilitadores então transmitiram a Shaun as mensagens de Daniella de que ela ainda o amava e o valorizava como irmão. Noticiaram, também, o recado da mãe de que ela ainda o amava e que apoiaria um encontro com a irmã. Naquele momento, ele pôs-se a chorar e expressou que perdera sua família. Os mediadores fizeram uma pausa na intervenção e ele pediu tempo para pensar sobre todas as questões, porque estava confuso e precisava de tempo para resolver seus sentimentos. A visita terminou com o estabelecimento de arranjos para mais uma visita dos mediadores. Na segunda visita, Shaun expressou que gostaria de que sua família soubesse que ele mudou seu discurso de “não-culpado” para o de “culpado”, porque não queria que passassem por mais dor e sofrimento com comparecimentos ao tribunal. Disse que, se tivesse se declarado inocente, sua irmã teria que ter ido ao tribunal, e ele gostaria de poupá-la, bem como proteger a família.

Ele disse que desejava perguntar a sua mãe por que ela não o visitou na prisão. Ele informou que, durante todo o tempo em que esteve lá, ninguém o visitou. Ele gostaria de expressar-lhe todas as suas perdas, os seus sentimentos desde que foi acusado e a sua experiência de estar sob custódia. Após relatar esses fatos aos mediadores, Shaun pediu para telefonar para sua mãe, pois gostaria de saber como estava sua família. Perguntou ainda aos mediadores se conheceram o seu irmão mais novo. Shaun disse não estar preparado para qualquer encontro com sua irmã, porque estava envergonhado. Gostaria de que a família soubesse que ele os amava e que sentia saudades. Os mediadores identificaram que, mesmo não ansiando encontrar a irmã, ele poderia ver a sua mãe, separadamente, porque eles teriam questões independentes a tratar. À mãe de Shaun, os facilitadores explicaram como ele se sentia. Posteriormente, ela entrou em contato com os mediadores para que eles entregassem um telefone celular para Shaun, a fim de manter contato com ele, mas sem que o restante da família soubesse. Eles repassaram o aparelho ao oficial da condicional que o transferiu a Shaun. O estabelecimento deste canal de comunicação somente foi possível por que os mediadores disseram à mãe dele o quanto ele sofria, que ele ainda a amava, que sentia saudades dela, que chorou e queria saber por que ela não o tinha visitado. Os mediadores concluíram não haver mais razões para intervirem em relação a ele e a mãe, embora incentivassem todos a serem mais abertos, em especial a mãe. Para eles, era muito importante contar a Daniella que ela dera um telefone celular a Shaun para manterem contato. Ela não acatou. Os mediadores anuíram, porque esse era seu desejo. Perceberam que a família tinha uma “tradição de sigilo” sobre tudo o que os cerca. Na visita seguinte a Daniella, os mediadores transmitiram a notícia de que Shaun admitiu que o que ele fez foi errado, mas também que ele tinha dificuldade em aceitar que aquilo era um estupro. Os mediadores esclareceram que faltou bastante congruência nas versões que eles apresentaram sobre o acontecido. Em situações de discordância total sobre os fatos, é completamente inviável uma reunião face a face. Por outro lado, o caso em questão apresenta outras razões pelas quais um encontro era inadequado como, por exemplo, a falta de voluntariedade de Shaun, a impossibilidade de resolução das diferenças apontadas e a incerteza de maiores ganhos com a mediação indireta para todos os envolvidos.

Os mediadores relataram a Daniella quão desgastante é a tentativa de reunião quando uma parte se dispõe a ir e a outra não. Daniella insistia que só desejava perguntar Shaun algumas coisas, de modo que os mediadores indagaram-lhe mais uma vez o que ela gostaria de saber e ela disse que seriam as razões pelas quais Shaun praticou aquele ato. Os mediadores explicaram a ela que Shaun já tinha respondido àquela pergunta. Daniella desejava que Shaun obtivesse algumas fotografias da família e as repassou para os mediadores. As fotos foram entregues no albergue de liberdade condicional, mas a política do serviço de reinserção social não autorizou que Shaun tivesse acesso a nenhuma foto de sua irmã, por ter sido ela a vítima do estupro. Daniella foi informada de que ele as receberia de bom grado, mas que foi impedido pelas regras do sistema. Os mediadores explicaram que os funcionários são responsáveis por proteger as vítimas e que as normas se aplicam a qualquer outra vítima de crimes. Com isso, os mediadores decidiram encerrar a intervenção, porque nada mais que implicasse progresso na reparação do delito foi dito. A esta altura, Shaun tinha se mudado do albergue de liberdade condicional. Os mediadores remeteram a Shaun a mensagem de que Daniella o amava e esperava que ambos pudessem se encontrar após algum tempo. Os mediadores o relembraram de que ele ainda estava em condicional e tinha a responsabilidade de não se aproximar dela, caso se encontrassem na rua. Shaun disse que estava satisfeito com a informação, porque ele gostava de clareza sobre o que ele podia ou não fazer. Ele se mudou e gostaria de que seu novo número de telefone fosse transmitido ao restante da família, para quem ele pudesse ligar. A família estava consciente de que o contato direto entre ele e sua irmã havia sido proibido, mas ainda não tinha conhecimento da ligação telefônica aberta entre Shaun e sua mãe. A sentença de Shaun foi cumprida em 2003, após dois anos de condicional. 8.2.3 Análise dos aspectos relevantes em cada situação A partir dos casos narrados, é possível visualizar as similaridades e as diferenças das intervenções restaurativas no Brasil e no exterior em casos semelhantes e também perceber as vantagens que o tratamento restaurativo oferece. Os seguintes aspectos foram identificados como comuns às duas abordagens e podem ser utilizados como parâmetros comparativos:

a. Iniciativa para o encontro Curioso o fato de que, em ambos os casos, a inciativa para o encontro partiu das vítimas ou de seus familiares (da mãe da vítima, no caso brasileiro e da própria vítima, no estrangeiro). Tal fato demonstra que estes atores possuem demandas não solucionadas ou não abarcadas pelo sistema de justiça ordinário dos dois países, tais como questionamentos a serem feitos aos ofensores (“saber o porquê do crime”), a necessidade de expressão do sofrimento (dizer como afetou) e de cura (“para seguir em frente”). Ao mesmo tempo, é perceptível o potencial da justiça restaurativa para atender as pessoas envolvidas. Esse fato parece contradizer a crença de que as vítimas de crimes graves são refratárias a este tipo de encontro com o seu ofensor, em caso de crimes graves. Note-se que, nas duas situações, houve uma inversão da praxe: em geral, o ofensor é contatado primeiro pelos mediadores, a fim de saber se ele tem interesse em participar do encontro. Assim ocorre para que não se crie expectativas na vítima, em caso de recusa deste. Entendem os especialistas que o ofendido poderia se sentir novamente “controlado” pelo ofensor, caso este se negue a participar da intervenção (COSTA; MOURA, 2010, p. 615) b. Preparação do encontro Nas duas histórias relatadas, percebe-se que os facilitadores realizam diversas intervenções prévias com as partes, seja por contato telefônico, postal ou em visitas domiciliares. Esta fase preparatória é imprescindível para que elas sejam devidamente instruídas sobre as regras do procedimento restaurativo (momento de escuta, de fala, maneira de expressar-se), acerca do seu desenrolar (fase do encontro e póstuma), das suas consequências jurídicas (confidencialidade etc.) e, sobretudo, a fim de que estabeleçam um vínculo de confiança com os facilitadores. Não há um número exato de intervenções prévias necessárias, realizando-se tantas quantas forem suficientes para o alcance destes fins. Por esta razão, um procedimento restaurativo pode se delongar. Para evitar demora, as legislações costumam fixar prazos máximos para a

realização do procedimento que varia de dois a três meses prorrogáveis (ver seção 7.4.1). c. Custos e tempo do procedimento — comprovando o utilitarismo da justiça restaurativa Do relato das tentativas e dos vários contatos estabelecidos entre os mediadores e as partes, nota-se que a justiça restaurativa é uma intervenção dispendiosa (custo de ligações, correios, combustível, motorista, funcionários etc.) e possivelmente demorada (pode levar semanas até que uma parte amadureça a ideia do encontro e se sinta preparada para ele. Além do que, o momento do encontro pode alongarse por horas, superando a duração de uma audiência ordinária). Neste aspecto, não há evidências concretas de que um procedimento restaurativo seja mais demorado e oneroso ou menos célere do que um processo judicial. Na prática brasiliense, os juízes costumam fixar o prazo máximo de três meses para a conclusão da intervenção restaurativa, o que é obedecido (e, por vezes, em menor tempo). Este período não pode ser extenso, pois a prescrição do crime continua a correr, já que não existe qualquer amparo legal para a suspensão do processo criminal ou do prazo prescricional. Assim, em caso de insucesso no acordo restaurativo, as partes ou o Ministério Público contariam com tempo hábil para manejar a respectiva ação penal, se for o caso. Por outro lado, a práxis jurídica também revela que, da data do conhecimento do fato até a sentença final (passando por audiências de conciliação, instrução e julgamento, apresentação de memoriais), o tempo demandado por um processo criminal comum é maior do que os três meses dispensados à intervenção restaurativa. É relevante mencionar a economicidade gerada para as partes e para o próprio Judiciário com a abstenção das partes em ajuizar outros processos cíveis e criminais, decorrentes do mesmo fato (indenização cível por danos materiais e morais, registro de boletins de ocorrência e processos criminais por ameaça recebidas, calúnia ou difamação), todos decorrentes do mesmo conflito.

Por exemplo, no caso brasileiro, os envolvidos moravam na mesma região e o fato tomou grandes proporções na comunidade. Os comentários locais sobre como as pessoas agiriam se o ocorrido fosse contra suas filhas ou irmãs foram tomados como ameaças entre os membros das famílias envolvidas. Esse fenômeno criou um clima de insegurança e belicosidade, facilmente conversível em novos episódios de violência (COSTA; MOURA, 2010, p. 624). O evento brasileiro ilustra bem a possibilidade de se obter ambas as reparações em um só procedimento (indenização de passagens, retratação pública e prestação de serviços comunitários), ou seja, pela via restaurativa. Por outro lado, administrar o conflito na sua gênese previne não só o ajuizamento de futuras ações mútuas, mas também a ocorrência de crimes idênticos aos tratados, dado o aspecto pedagógico da intervenção (a vítima aprende as consequências de mentir, e o ofensor, de relacionar-se com menores de catorze anos etc.). Aduza-se a isso o grau de satisfação dos participantes, bastante explícito na justiça restaurativa, demonstrado no abraço afetuoso trocado por todos ao final e no convite para um café. Com os laços e a dignidade restaurados, os envolvidos podem se encontrar novamente na comunidade, sem receio de agressões mútuas e com altivez pela sua contribuição no trato do problema. d. Momento do encontro Das histórias relatadas, verifica-se que não é determinado um momento específico para que o ocorra o encontro restaurativo, podendo se dar antes, durante ou após um processo judicial. No caso brasileiro, a intervenção restaurativa foi concomitante ao processo judicial, chegando a influenciar no seu resultado após a descoberta de fatos novos que isentaram um autor da responsabilidade penal. No caso estrangeiro, ela foi posterior, já na fase de execução da pena. Neste cenário, mesmo não tendo influenciado na sentença, a intervenção restaurativa pode atuar em aspectos subjacentes ao conflito, não atendidos pelo processo formal criminal. Mesmo sem chegar a um acordo naquela situação, houve algum progresso para as partes, ao se permitir que o ofensor e sua família tivessem algum contato.

e. Voluntariedade e viabilidade do encontro — o respeito aos direitos e garantias fundamentais dos envolvidos No primeiro caso, o círculo foi possível porque todos os envolvidos assim desejaram, além do que os responsáveis assumiram a sua parcela de contribuição para o evento e relatavam versões semelhantes para ele. No segundo, o encontro com a vítima não se mostrou viável porque o autor do fato não consentiu (falta de voluntariedade), bem como as condições não eram favoráveis (viabilidade), pois havia uma discordância completa de difícil resolução sobre os fatos. Interessante notar que a orientação é a mesma, tanto no programa estrangeiro quanto no brasiliense: a de não levar adiante o círculo restaurativo, caso não haja assunção de responsabilidade do ofensor, a fim de se evitar a revitimização do ofendido. Entendem as psicólogas que este proceder confere maior poder à vítima, que controla a participação no procedimento (COSTA; MOURA, 2010, p. 615). Entretanto, há autores como Howard Zehr que consideram que a vítima é quem deve decidir se será ou não terapêutico encontrar-se com o ofensor, mesmo que ele não esteja arrependido de seu ato (COSTA; MOURA, 2010, p. 615). Em casos como esse, uma solução para se atender à necessidade terapêutica da vítima de expressar-se, por exemplo, é oportunizar que escreva uma carta ao ofensor, a ser entregue por um mediador423. Uma alternativa seria facultar à vítima reunir-se com alguém que cometeu um crime semelhante (ou, no caso do ofensor, que este se encontre com outra pessoa que foi igualmente vítima daquele tipo de crime, que não o seu ofendido). É a chamada sub-rogação da vítima ou do ofensor cujos benefícios foram destacados na seção 8.1. f. Combinação de técnicas A justiça restaurativa não comporta uma técnica rígida para intervenção. O círculo restaurativo, a mediação vítima-ofensor e a mediação indireta são técnicas válidas para se alcançar o objetivo de pacificação do conflito424. Na situação brasileira, dada a quantidade de pessoas envolvidas e a presença de apoiadores das partes (patroa da mãe de um dos acusados e

o patrão do outro ofensor), foi recomendado o círculo restaurativo. No segundo caso, a mediação indireta se revelou mais apropriada do que o encontro face a face (mediação vítima-ofensor), já que as visões diferentes da ofensa poderiam interromper o canal de comunicação construído entre eles. g. Confidencialidade — o garantismo penal no processo restaurativo Uma das características da justiça restaurativa — que confere a adesão e a confiança das partes no procedimento — é a garantia de sigilo sobre o que se passa no encontro. Nenhum fato específico ocorrido no círculo é relatado ao juiz do processo, nem mesmo eventual assunção de culpa do ofensor. Dessa forma, assegura-se, também, o respeito às garantias processuais do acusado. Entretanto, situação curiosa é a do surgimento de fatos novos durante os encontros restaurativos, o que não é incomum. Percebe-se que, no primeiro caso, foi descoberto que a adolescente mentira em juízo sobre a dinâmica dos fatos e a participação de um dos acusados425. Neste momento, a psicóloga assegurou-lhe sigilo em relação a seus pais, mas disse-lhe que o seu código de ética profissional lhe exigia a notificação do fato às autoridades competentes. Na segunda situação, o autor informou aos mediadores que a vítima manteve outro relacionamento sexual intrafamiliar, mas estes nada fizeram a respeito. Não ficou claro no relato do caso se a postura dos profissionais se deveu ao fato de que isso não constitui crime, de acordo com a legislação do país (seria, portanto, autorizada a relação sexual com menores de catorze anos, se consentida426) ou se foi porque consideraram que a notícia do fato não lhes foi trazida pela própria vítima. h. Aspectos culturais da conduta Notável o fato de que, em ambos os casos, a despeito de terem ocorridos em países diferentes, os ofensores relutaram em assumir a sua responsabilidade pelo fato devido ao mesmo aspecto, o cultural. A percepção de que a relação sexual com pessoa de menor idade somente é

moralmente errada e grave se ela for obrigada a tanto. Acrescente-se que, nas duas situações, as vítimas contavam com treze anos de idade. No caso estrangeiro, havia a peculiaridade de que a relação sexual foi entre irmãos. Consoante o ofensor, ele estaria errado por ter se relacionado com a irmã, justificando sua conduta com o fato de a vítima ter tido outro relacionamento sexual intrafamiliar. No caso brasileiro, pareceu aceitável na comunidade dos envolvidos o relacionamento sexual com pessoas menores de idade, estando presente na família da própria vítima cuja irmã de dezessete anos de idade iniciou a vida sexual aos quinze e já é mãe, convivendo atualmente com o companheiro, maior de dezoito anos (COSTA; MOURA, 2010, p. 621). i. Respeito à vítima — o reconhecimento intersubjetivo de Honneth aplicado Nas duas ocorrências, as vítimas tiveram a oportunidade de expressar suas dúvidas, sentimentos e reivindicações e obtiveram respostas para elas. Ainda que indiretamente, com interseção dos mediadores, a vítima no segundo caso pôde transmitir seu amor pelo irmão e obteve a resposta para o seu questionamento (a razão do estupro). O caso brasileiro demonstrou a indiferença do processo judicial ordinário com estes aspectos da vítima (seja ela primária, seja secundária)427. De acordo com o relatado, todas as vezes que a mãe da adolescente pediu para ser ouvida e para conversar com os ofensores, isso lhe foi negado. Impediram-na, inclusive, de ouvir os interrogatórios, mesmo sem se vislumbrar, pelo relatado, fundamentação jurídica para tanto428 (ainda que, de certa forma, tal impedimento visasse a sua própria integridade psicológica). A genitora só foi satisfatoriamente atendida em seu anseio com a intervenção restaurativa. Neste caso, a complementação do procedimento ordinário com o restaurativo é que possibilitou satisfazer e respeitar os direitos de todos os envolvidos (autores e vítimas). Este caso é exemplar quanto ao tratamento meramente utilitário que as vítimas têm no processo judicial, pois a ele apenas importa se há algo a testemunhar contra o ofendido.

Ressaltam Helena Maria Costa e Marília Lobão Ribeiro de Moura (2010, p. 612) que em momento algum as vítimas são questionadas quanto às suas necessidades, sobre o que é preciso para superar o sofrimento infligido pelo crime ou se gostariam de receber do ofensor reparação material e emocional. Assim, embora o processo criminal trate de assunto do seu interesse imediato, a vítima é “colocada no papel de figurante da ação, sem voz para expressar suas necessidades, seu desejo quanto ao rumo do processo que deveria lhe dizer respeito do início ao fim”. Nas palavras de Howard Zehr “este é, portanto, o cúmulo da ironia, o cúmulo da tragédia. Àqueles que mais sofreram diretamente negamos participação na resolução da ofensa. De fato, as vítimas não são sequer parte da nossa compreensão do problema” (COSTA; MOURA, 2010, p. 612). j. Relatividade dos papéis de vítima e ofensor Num e noutro acontecimento descrito, pode-se constatar que os papéis de vítima e de ofensor nem sempre são claros. O processo comum assume um papel maniqueísta para os envolvidos no fato criminoso, em que um é o réu e o outro é a vítima, sem espaço para uma construção diferente da estabelecida. Na experiência restaurativa, os indivíduos diretamente envolvidos no conflito são pensados como participantes (partes) e não como “vítimas” e “infrator.” Esta divisão binária entre “vítima/infrator” pode ser vista como excludente e que implica um pré-julgamento. Muitas vezes, o fato típico trazido para exame é apenas uma situação pontual, localizada dentro de uma história de conflito entre as partes. Neste contexto, a parte “infratora” e a parte “prejudicada” podem mudar de lugar (e provavelmente o fazem) com o passar do tempo, de forma que o “infrator” de hoje pode ter sido a “vítima” de ontem (SHEARING; FROESTAD, 2005, p. 93). Já na justiça restaurativa, há a abertura para que cada um dos autores assuma a sua parcela de contribuição para o evento danoso e busque repará-lo. Tanto é assim que, no caso brasileiro, quando se chegou à fase nº 6 do protocolo (separação em grupos para discutirem sobre quem os ofendeu e o que necessitavam para serem restaurados dessa ofensa), foi permitido aos ofensores executá-la, uma vez identificados pelos facilitadores também como vítimas.

Outrossim, os imputados permaneceram presos (um por um mês e, o outro, por dois meses) por conta das declarações inverídicas da vítima. Ao saber que não houve constrangimento para a prática do ato sexual, era provável que o juiz da instrução permitisse que eles respondessem ao processo em liberdade, como é a regra. Mister é indagar também sobre a ambiguidade dos papéis dos responsáveis pela vítima (mãe e padrasto) visto que, embora desconfiados da falsidade das declarações da menina, não procuraram apurar a verdade, mesmo sabendo que os acusados encontravam-se presos (COSTA; MOURA, 2010, p. 620 e 622). k. Empatia e reconhecimento da humanidade no outro — aplicando a filosofia de Lévinas Em ambos os casos, a técnica restaurativa permitiu, por meio da dinâmica relacional de escuta (direta ou indireta), que se reconhecesse a “humanidade” presente no outro, por trás da ofensa perpetrada. No caso estrangeiro, a vítima pôde ouvir os sentimentos do irmão de arrependimento, de vergonha e de saudades e asseverar que ainda o ama e que o considera como irmão. No brasileiro, a mãe da vítima pôde ouvir os ofensores de sua filha fora do estereótipo de violentadores e, inclusive, assimilar que sua filha manteve relações sexuais por livre vontade com um dos ofensores ali presentes. O encontro humanizou os envolvidos também na medida em que eles puderam vivenciar os valores uns dos outros e perceber que compartilhavam alguns deles (religiosos e morais) (COSTA; MOURA, 2010, p. 620 e 624). Igualmente humana e empática, a acolhida dos mediadores da angústia e ansiedade da genitora, quando ela desobedeceu às regras do protocolo para a sua manifestação no círculo, intervindo ainda na fase da apresentação, quando não era permitido. l. Aprendizado — a racionalidade comunicativa habermasiana na prática Em ambos os casos, os autores puderam assimilar a reprovabilidade legal de sua conduta, seja porque se relacionaram com pessoas menores de catorze anos (no caso brasileiro), seja pelo suposto emprego de coerção à vítima (no segundo caso). Aprenderam, portanto, que a prática

sexual nestas condições é crime e, portanto, não adequada (ainda que o costume em suas comunidades lhes informe o contrário). A experiência brasileira foi especialmente construtiva para a vítima que pôde perceber o sofrimento causado pelo seu testemunho mendaz aos ofensores e seus familiares. Neste caso, o reconhecimento da vítima da sua parcela de contribuição para o fato não foi revitimizador, mas um momento de crescimento bastante positivo para sua formação (COSTA; MOURA, 2010, p. 618). m. Alcance da verdade real — isso é possível? Embora este seja um dos objetivos declarados do processo penal, no caso brasileiro, é bastante provável que não se chegasse à situação mais próxima da realidade de outra forma, senão pela intervenção restaurativa. Com efeito, somente após a proximidade com os atores, propiciada pela via restaurativa, é que foi possível extrair deles suas impressões sobre o fato (no caso do padrasto), o histórico de outras inverdades da vítima menor e, então, obter a confiança desta para a confissão e descoberta de um fato grave e vergonhoso. Por óbvio, pretender conhecer “a verdade” sobre o crime, um fato humano por natureza, é um mito, pois é impossível até mesmo para a justiça restaurativa. Por exemplo, no caso estrangeiro, talvez nunca se descubra se os fatos ocorreram na forma como relatada pela vítima ou pelo ofensor. O que se pode aprender da comparação entre os casos — e especialmente da experiência brasileira citada — é que a justiça restaurativa, pela amplitude de técnicas e princípios empregados e pela proximidade que gera com as partes, é a que possibilita mais instrumentos para nos aproximarmos dela. n. Possibilidade de aplicação de procedimentos restaurativos a crimes graves Muito se questiona sobre a capacidade da justiça restaurativa para fazer frente a crimes graves. Associada às ideias de perdão, compaixão e empatia, imagina-se que esta seria mais uma forma de o ofensor livrar-se da sua responsabilidade penal.

Vimos em ambas as situações a aplicação da justiça restaurativa a crimes graves de natureza sexual (em que pese não seja esta a regra nos dois países). Mesmo que não seja adequada a todos os tipos de crimes, ofensores e vítimas, é válida a oferta da abordagem restaurativa a todos os envolvidos caso entendam ser importante e conveniente para a sua cura interior. o. Possibilidade de influir ou não no resultado final do processo Dos relatos, percebe-se que nenhum dos autores foi isentado de sua responsabilidade penal (ambos tiveram suas penas decretadas e cumpridas), exceto pelo acusado que foi absolvido após se descobrir que ele, na verdade, não pretendia estuprar a vítima. Não se trata de caso de impunidade, mas de ausência de crime. Tampouco há notícia de qualquer atenuação das penas dos autores, decorrentes da sua participação no procedimento restaurativo. Pode-se notar que, ao contrário, o autor condenado no caso brasileiro, além de cumprir a pena imposta, obrigou-se a custear as passagens para o tratamento da vítima, comprometeu-se a prestar serviços comunitários por pelo menos três meses e ainda desculpou-se com a adolescente e seus familiares. Poder-se-ia afirmar que ele foi mais severamente “apenado” do que um condenado comum por participar de um processo restaurativo, se não fosse a sua concordância com o que foi estipulado. p. Caráter abrangente da intervenção — oportunidade de participação comunitária As últimas ações do encontro restaurativo (encaminhamento da vítima ao Centro de Orientação Médica Psicopedagógica (COMPP) e inscrição de um ofensor no curso profissionalizante de armador de ferragens) exemplificam o caráter abrangente do Programa de Justiça Restaurativa que também diagnostica as necessidades das partes envolvidas para oferecer soluções que possam melhorar a vida de todos (COSTA; MOURA, 2010, p. 623). q. Justiça restaurativa para crimes graves: atendendo ao alerta da criminologia crítica Em que pese a resistência inicial à aplicação da justiça restaurativa para crimes graves, vista na seção 8.1, com base na teoria criminlógica crítica

estudada (seção 4.4), podemos concluir que, caso a justiça restaurativa não seja disponibilizada a vítimas e ofensores de quaisquer tipos de crimes, estar-se-ia reforçando ainda mais o caráter segregacionista e estigmatizante do sistema de justiça criminal atual, com discriminação dos ofensores deste tipo de crime. Ademais, somente mediante a possibilidade de aplicá-la a crimes mais graves é que se pode cogitar da justiça restaurativa como instrumento útil para auxiliar no desencarceramento e nas mudanças dos números e da realidade prisional. Do contrário, a justiça restaurativa funcionará como reforço deste sistema, já que o número de casos encaminhados a ela e de sanções “alternativas” aplicadas aumentarão, sem que haja necessariamente a diminuição do número de pessoas presas. Os delitos que atualmente são encaminhados à justiça restaurativa — como demonstra a experiência do Núcleo Bandeirante-DF — por estarem restritos ao âmbito da Lei nº 9.099/95 — estão sujeitos a sanções diminutas. Por esta razão, é provável que muitos deles nem resultassem em condenação ao regime semi-aberto ou fechado. Além disso, devido às prioridades investigativas das delegacias de polícia, é provável que muitos deles também não acarretassem condenação, por falta de provas. Por essa razão, entende-se que o maior potencial de contribuição da justiça restaurativa para o alívio do sistema carcerário estaria na sua aplicação para os crimes mais graves. 8.3 A justiça restaurativa para crimes cometidos em contexto de violência doméstica Uma questão que se coloca é se a justiça restaurativa seria capaz de atender às necessidades das pessoas que estão em uma posição de vulnerabilidade, por causa de sua idade, dependência econômica, capacidade mental ou emocional ou pela natureza do delito (como agressão do cônjuge ou nos crimes sexuais), como pode ocorrer nos casos dos crimes em contexto de violência doméstica. A ideia de restauração pode ser suspeita em situações como essas, em que o ofensor detém o poder ou influência sobre a vítima e seus atos diuturnos prejudicam a integridade física, mental ou sexual dela (TJMT, 2008, p. 179).

Nestes casos, vítimas e agressores se conhecem e possuem um relacionamento estável. Todavia, indaga-se em que situações e até que ponto tais relações devem ser preservadas. A crítica que se faz à aplicação da justiça restaurativa nestes casos é saber se ao zelar pela restauração das relações sociais entre as partes em conflito, se ela pode contribuir para a perpetuação do ciclo da violência, ocultando novas ocorrências de crimes. Na prática, quando não se retratam para evitar a condenação do seu ofensor, muitas vítimas se recusam a prosseguir com o processo judicial, a fim de evitar a publicidade do caso e, principalmente, para evitar qualquer forma de aproximação ou contato com o ofensor que poderia incutir um sentimento de violação ou de revitimização429. Essa atitude não as protege e nem trata o conflito. Portanto, como se verifica na experiência do Núcleo Bandeirante, a maioria dos programas de restauração não se destina ao tratamento dos casos de agressão sexual e violência familiar. O espaço para consenso entre as partes, nestes casos, restou diminuído especialmente após o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (ADI 4424) pelo plenário do Supremo Tribunal Federal em 2012. Entendeu-se na ocasião que a ação penal nos casos de lesões corporais cometidas em contexto de violência doméstica seria pública incondicionadal, estando o Ministério Público obrigado a dar início à ação penal sem necessidade de representação da vítima. 8.4 Pesquisa de campo: comparação entre os graus de informação, comunicação e reparação do sistema de justiça criminal e do programa de justiça restaurativa do DF A hipótese central da tese doutoral é que o atual paradigma punitivo está em crise e a resposta para ela é a sua superação rumo a um paradigma de justiça criminal mais humano e democrático, inspirado em valores transmodernos, ou seja, a justiça restaurativa a qual contempla uma nova visão tanto para o crime quanto para o seu tratamento. Na perspectiva desse novo paradigma, o crime é um conflito humano cujas consequências devem ser tratadas pelas pessoas nele implicadas e suas comunidades, de forma deliberativa, com foco na reparação e na reintegração do ofensor. O paradigma vindouro inova em relação ao atual particularmente quanto aos seus pressupostos (crime como ofensa à lei penal X crime como conflito entre pessoas), a seus objetivos (neutralizar,

“ressocializar”, “reeducar” X reintegrar e restaurar), às sanções aplicadas por ele (prisão, penas “alternativas” X reparação ou outras formas que atendam prioritariamente aos prejudicados) e à forma de fazê-lo (imposição verticalizada por um órgão judicante X deliberação entre os interessados). A fim de complementar a pesquisa bibliográfica feita até o momento, entendeu-se relevante confirmar ou refutar a aceitação de propostas do novo paradigma construídas sob a forma de hipóteses, do ponto de vista dos usuários do sistema de justiça criminal, por meio de uma pesquisa de campo. 8.4.1 Aspectos metodológicos da pesquisa de campo 8.4.1.1 Objetivo geral O objetivo geral desta parte do estudo é avaliar a amplitude de informação, comunicação, reparação e satisfação percebida pelos usuários do sistema de justiça criminal e do programa de justiça restaurativa do DF, a fim de compará-las e concluir sobre qual deles oferece a resposta penal mais adequada e satisfatória do ponto de vista dos usuários. 8.4.1.2 Objetivos específicos • Averiguar a percepção dos usuários sobre a informação transmitida a eles a respeito do processo, da possibilidade de expressão de suas opiniões e sentimentos no decorrer deste, da consideração conferida a eles durante o processo, tanto no sistema tradicional de justiça criminal quanto no programa de justiça restaurativa; • Analisar a satisfação das partes com o resultado final do processo, com a solução dada ao problema, com a melhora no relacionamento com a outra parte, com a reparação dos prejuízos emocionais e materiais e com o senso de justiça sobre o resultado, tanto em relação ao sistema de justiça criminal quanto em relação ao programa de justiça restaurativa; • Saber das partes quais os resultados por elas esperados em relação ao processo, a partir dos seguintes critérios: receber respostas a perguntas que gostariam de fazer sobre o fato; dizer à outra parte como o crime a afetou; exigir um pedido de desculpas do ofensor e que ele faça um ressarcimento; querer que as partes recebam algum tipo de tratamento ou aconselhamento; exigir que o ofensor preste serviços à comunidade, pague cestas básicas a uma instituição ou seja preso; • Comparar os resultados do sistema de justiça criminal com o programa de justiça restaurativa por meio do cruzamento dos dados obtidos; • Concluir qual deles oferece a resposta penal mais adequada e satisfatória do ponto de vista dos seus usuários.

8.4.2 Hipóteses testadas na pesquisa de campo 1.As partes têm maior oportunidade de falar com o outro lado sobre o fato na justiça restaurativa do que no sistema de justiça criminal. 2.As partes recebem mais explicações sobre o processo na justiça restaurativa do que no sistema de justiça criminal. 3.As partes têm maior oportunidade de expressar suas opiniões e sentimentos na justiça restaurativa do que no sistema de justiça criminal.

4.As opiniões e os sentimentos das partes são mais considerados na justiça restaurativa do que no sistema de justiça criminal. 5.As partes são tratadas com mais respeito na justiça restaurativa do que no sistema de justiça criminal. 6.As partes acham a justiça restaurativa mais confiável do que o sistema de justiça criminal. 7.As partes ficam mais satisfeitas com o resultado do processo na justiça restaurativa do que no sistema de justiça criminal 8.O problema é considerado resolvido com mais frequência na justiça restaurativa do que no sistema de justiça criminal. 9.O resultado do processo da justiça restaurativa melhora o relacionamento com a outra parte com mais frequência do que no sistema de justiça criminal. 1 0.Os prejuízos emocionais do processo são reparados com mais frequência na justiça restaurativa do que no sistema de justiça criminal. 1 1.Os prejuízos monetários do processo são reparados com mais frequência na justiça restaurativa do que no sistema de justiça criminal. 1 2.O processo da justiça restaurativa produz maior sentimento de justiça do que o sistema de justiça criminal. 1 3.Às partes interessam mais medidas alternativas, tais como receber respostas a perguntas que gostariam de fazer sobre o fato, dizer à outra parte como o crime as afetou, que haja um pedido de desculpas, que haja ressarcimento pelo responsável, que as partes recebam algum tipo de tratamento ou aconselhamento, que, em vez de preso, o ofensor preste serviços à comunidade ou pague cestas básicas a uma instituição. 8.4.3 Sujeitos, locais e instrumento de coleta de dados O instrumento de coleta de dados da pesquisa foi o questionário (anexo), com perguntas fechadas, aplicado a 588 respondentes (431 em Planaltina e 147 no Núcleo Bandeirante). Os respondentes são vítimas, autores, testemunhas ou acompanhantes destes às audiências (chamados apoiadores pela justiça restaurativa) em uma das Varas Criminais — Vara do Juizado Especial Criminal e Vara do Tribunal do Júri — do Fórum de Planaltina-DF.

Foram participantes do programa de justiça restaurativa do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), situado no Núcleo Bandeirante. Eles foram entrevistados entre 14 de maio e 20 de outubro de 2012. A pesquisa observou as regras da nova Resolução nº 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde — versão 2012430, que trata das pesquisas envolvendo seres humanos. Os respondentes foram devidamente informados da voluntariedade da sua participação na pesquisa bem como do objetivo dela. Eles manifestaram consentimento livre e esclarecido em participar. Convém notar que a população entrevistada em Planaltina é quase o triplo da entrevistada no Núcleo Bandeirante (431 x 147, respectivamente). Esta diferença se deve ao fato de que, no período pesquisado, o número de casos enviados para tratamento no programa de justiça restaurativa do Núcleo Bandeirante foi bem menor do que o número de processos atendidos pelas Varas do sistema de justiça criminal ordinário em Planaltina. A pesquisa foi feita por meio de amostragem não probabilística ou por conveniência na qual as partes foram selecionadas de forma aleatória, durante o seu atendimento nos respectivos sistemas. 8.4.4 Metodologia de investigação e análise Os dados foram coletados e anotados em questionários elaborados em papel, distintos, um para os entrevistados do Núcleo Bandeirante e outro para os de Planaltina. Os espelhos dos dados constam nos anexos. Após o término da coleta de dados, o conteúdo dos questionários foi transcrito para meio eletrônico (plataforma “Google Docs”)431. Finda a transcrição, os dados foram exportados para planilha eletrônica, na qual foram realizados procedimentos de conferência e consolidação. As análises estatísticas foram realizadas utilizando-se os softwares “Excel” (da “Microsoft”) e “R” (software livre)432. Para as respostas, foi contado o número de marcações para cada categoria no questionário, e o resumo foi apresentado de forma tabular. Além das frequências absolutas, foi, também, apresentado, nas tabelas, o percentual que cada uma delas representa em relação ao total de respondentes. As perguntas objetivas, cujas respostas mantêm relação de ordem (variável ordinal), foram apresentadas na ordem do valor maior (mais

favorável) ao menor (menos favorável). Nesses casos, além da frequência relativa (percentual) foi também informado o percentual acumulado. Todos os percentuais são apresentados com arredondamento de uma casa decimal, sem ajustes, a fim de facilitar a leitura e interpretação deles. Devido ao procedimento de arredondamento, poderá ocorrer, em alguns casos, pequena discrepância entre a soma das parcelas e o respectivo total, o que não compromete nem a precisão nem a interpretação dos dados. Nas tabelas em que são realizados cruzamentos entre as respostas das várias questões, para mediar o grau de associação ou correlação entre as variáveis, utilizou-se o coeficiente de contingência modificado, como descrito nas notas metodológicas ao final. 8.4.5 Contextualizando a pesquisa 8.4.5.1 Histórico e peculiaridades das cidades pesquisadas Segundo a página da administração regional de Planaltina, a data oficial de sua fundação é 19 de agosto de 1859, “mas há relatos de alguns historiadores que a cidade possua mais de 200 anos” (GDF, 2013c, p. 1). A cidade dista cerca de quarenta quilômetros do centro da capital. Relata o sítio da administração regional na internet sobre as características históricas e belezas naturais da cidade: Planaltina é uma cidade de grande riqueza cultural e histórica. Prova é o Museu Histórico e Artístico da cidade que guarda vivos os registros de uma população que com muito trabalho ajudou a construir a capital do Pais. (...) Planaltina goza de grande beleza natural com seus parques, rios e cachoeiras, sem falar que é um dos mais importante berço cultural. Temos o Vale do Amanhecer, maior comunidade esotérica do país, maior teatro a céu aberto do mundo com a encenação da paixão de Cristo no Morro da Capelinha, Festa do Divino Espírito Santo e Folia de Reis. A agricultura de nossa região abastece grande parte do DF e ainda exportamos para vários outros Estados e Países (GDF, 2013c, p. 1).

Quanto ao Núcleo Bandeirante, o sítio oficial informa que esta também é uma das localidades mais tradicionais do Distrito Federal e sua área constituiu um dos principais núcleos anteriores à inauguração de Brasília, situada a aproximadamente doze quilômetros do Plano Piloto. Acerca da importância histórica da “cidade livre” para a construção da capital, comenta a administração regional: Como parte das obras de infraestrutura necessárias à construção de Brasília, foram abertas pela Novacap, no final de 1956, as principais avenidas do Núcleo Bandeirante,

mais tarde conhecido como Cidade Livre. O local em que foi implantada a cidade, fora do perímetro do Plano Piloto, pertencia às fazendas goianas Bananal, Vicente Pires e Gama. (...) Sua existência estaria limitada ao período da construção de Brasília (19561960). Os lotes foram cedidos em sistema de comodato, isto é, a escritura não era definitiva e deveriam ser devolvidos à Novacap no final de 1959. Para incentivar a vinda de comerciantes para a região a localidade também estava livre do pagamento de impostos. Daí a origem do nome Cidade Livre (GDF, 2013a, p. 1).

De acordo com dados da última Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD, 2013b, p. 26 e 49) realizada em 2013, a população de Planaltina foi estimada em 180.848 habitantes (quase oito vezes maior do que a do Núcleo Bandeirante, que é de 23.714 habitantes). A maior parte da população é constituída por mulheres, 51,62% (proporção muito semelhante à do Núcleo Bandeirante, 54,66%). A renda domiciliar média apurada na pesquisa PDAD foi da ordem de R$ 2.603,71, correspondente a 3,84 salários mínimos (SM) da época, e a renda per capita é de R$ 716,61 (1,06 SM). Esta renda é a metade da renda da população do Núcleo Bandeirante, R$ 4.777,05, correspondente a 7,05 SM, e a renda per capita foi de R$ 1.499,73 (2,21 SM). Quanto à forma de ocupação, em Planaltina, 98,21% das construções são permanentes e do tipo “casa”. Destas, 61,11% estão situadas em assentamentos, invasões e em terrenos não legalizados e 26,37% são imóveis próprios e quitados. Os domicílios alugados representam somente 7,40% (PDAD, 2013b, p. 17). Já no Núcleo Bandeirante, 51,80% dos domicílios são apartamentos, 42,60% são casas e 4,60% quitinetes/estúdios. Quanto à forma de ocupação, 55,20% dos entrevistados pela PDAD declararam que seus domicílios são próprios. Deste percentual, 51,00% são próprios quitados e em aquisição e 48,80% são alugados (PDAD, 2013a, p. 17). No quesito “segurança”, dirigido para toda a população, 92,41% dos habitantes do Núcleo Bandeirante declararam que não sofreram, em 2012, qualquer tipo de violência. Entre os 7,59% que declararam ter sofrido, sofreram roubo (47,22%), furto (34,11%) e “residência roubada” (terminologia utilizada pela PDAD), com 12,17%. Esses foram os três tipos de delito mais observados no Núcleo Bandeirante (PDAD, 2013a, p. 41). Em Planaltina, o quesito “segurança” foi dirigido para a população de 10 anos de idade e mais. 92,64% do total dessa população declarou que não

tem sofrido qualquer tipo de violência. Entre os 7,36% que declararam ter sido vítima de roubo e furto, os dois tipos de delito mais observados, com 61,74% e 27,74%, respectivamente (PDAD, 2013b, p. 41). Note-se que as diferenças do contexto em que as duas populações entrevistadas estão inseridas — como número de habitantes, de renda e condições de moradia — são grandes. É preciso ressaltar, ainda, que a circunscrição judiciária do Núcleo Bandeirante atende também à população do Park Way e da Candangolândia, muito distintas entre si e das demais433. Por outro lado, é curioso notar que a porcentagem da população que disse ter sido vítima de algum crime é muito semelhante nas duas cidades (Núcleo Bandeirante — 92,41% e Planaltina — 92,64% ), bem como os tipos de crime mais sofridos, roubo e furto (delitos patrimoniais). 8.4.5.2 Perfil dos entrevistados Especificamente em relação aos entrevistados na nossa pesquisa, a idade média dos respondentes em Planaltina é de 33,7 anos e, no Núcleo Bandeirante, é de 39,2 anos, segundo gráfico comparativo abaixo: Figura 11 — Distribuição percentual de faixa etária dos atores — comparativo de PL e NB

Os entrevistados de Planaltina e do Núcleo Bandeirante se autodeclararam, em sua maioria, pardos (57% e 46%). Planaltina teve uma porcentagem maior de respondentes autodeclarados pardos, negros e indígenas, ao passo que o Núcleo Bandeirante teve uma porcentagem maior de brancos autodeclarados. Tabela 1 — Distribuição do número de respondentes por cor da pele

Cor da pele

PL

NB

Cor da pele

PL

NB

Parda

251 (57,4%)

69 (45,7%)

Branca

96 (22,0%)

57 (37,7%)

Preta

53 (12,1%)

15 (10,0%)

Amarela/Indígena

37 (8,5%)

10 (6,6%)

TOTAL

437 151 (100,0%) (100,0%)

Valor-p = 0,00226; C* = 0,2196

Quanto ao grau de instrução, em ambas as cidades, a maior parte dos respondentes concluiu até o ensino médio (84,2% em Planaltina e 54% no Núcleo Bandeirante). Planaltina tem uma porcentagem maior de respondentes sem instrução ou apenas com o ensino fundamental (38,7%) e o Núcleo Bandeirante tem entrevistados com nível superior ou com pósgraduação (35,7%). Tabela 2 — Distribuição do número de respondentes por grau de instrução

Educação completa

PL

NB

Sem instrução

13 (3,0%)

3 (2,0%)

Ensino fundamental

156 (35,7%)

17 (11,3%)

Ensino médio

212 (48,5%)

77 (51,0%)

Superior

46 (10,5%)

44 (29,1%)

Pós-graduação

10 (2,3%)

10 (6,6%)

437

151

TOTAL

(100,0%) (100,0%)

Valor-p < 0,0001; C* = 0,4133

O estado civil dos respondentes também difere. Planaltina tem a maior percentagem de entrevistados solteiros e convivendo em união estável (70%). Os entrevistados do Núcleo Bandeirante são, em sua maioria, casados (46%). Tabela 3 — Distribuição do número de respondentes por estado civil

Estado civil

PL

NB

Estado civil

PL

NB

Solteiro(a)

185

41

(43,0%)

(27,3%)

União estável Casado(a) Divorciado(a) Viúvo(a) TOTAL

116

24

(27,0%)

(16,0%)

98

69

(22,8%)

(46,0%)

24

13

(5,6%)

(8,7%)

7

3

(1,6%)

(2,0%)

430

150

(100,0%) (100,0%)

Valor-p < 0,0001; C* = 0,3379

Em que pese o nível de renda entre as populações das duas cidades diferir bastante (como visto na pesquisa PDAD), as condições de emprego dos entrevistados foram semelhantes: a maioria deles, em ambas as cidades, é empregada do setor privado com carteira assinada ou é autônoma (54,2% em Planaltina e 45,4% no Núcleo Bandeirante). Tabela 4 — Distribuição do número de respondentes por condição de emprego

Emprego Empregado no setor privado com carteira assinada Conta própria/Autônomo Do lar Servidor público estatutário ou militar Empregado no setor privado sem carteira assinada Estudante Não trabalha Aposentado

PL

NB

138

38

(31,3%)

(25,0%)

101

31

(22,9%)

(20,4%)

49

18

(11,1%)

(11,8%)

49

36

(11,1%)

(23,7%)

36

3

(8,2%)

(2,0%)

31

9

(7,0%)

(5,9%)

25

4

(5,7%)

(2,6%)

12

13

(2,7%)

(8,6%)

Emprego

PL

NB

TOTAL

441

152

(100,0%) (100,0%)

Valor-p < 0,0001; C* = 0,3218

Em Planaltina, a maioria dos entrevistados, no fórum, estava assistida pela Defensoria Pública (86%). No Núcleo Bandeirante, a maior parte não se fez acompanhar de advogados ou defensores nos encontros restaurativos (83%). Lembre-se de que os entrevistados de Planaltina se destinavam às audiências nas duas Varas Criminais, na Vara do Juizado Especial Criminal e na Vara do Tribunal do Júri do Fórum de Planaltina, onde necessariamente têm que estar assistidos por defensor técnico (advogado ou defensor público). A baixa procura por assistência jurídica pelos usuários do programa de justiça restaurativa indica um elevado grau de confiança destes no programa. Pode refletir ainda o ânimo dos participantes que se dirigem ao encontro restaurativo pré-dispostos ao entendimento (após a preparação na fase do pré-encontro434, consoante seção 5.2.1), o que resulta menor grau de litigiosidade. Ademais, conforme as características vistas na seção 5.1, a justiça restaurativa é não-adversarial, busca o consenso entre as partes e lhes confere protagonismo sem que necessitem dos advogados para se expressarem, posto que estes possam estar presentes para lhes auxiliar (notese que 10% dos entrevistados no Núcleo Bandeirante estavam acompanhados de advogado particular). Como destacou Boaventura Sousa Santos (1996, p. 50), o advogado pode ser agente desta mudança da cultura do litígio para uma cultura de paz, informando, recomendando e acompanhando seus clientes aos encontros restaurativos, consoante esmiuçado na seção 5.2.2. A lei portuguesa de mediação penal estimula essa conduta: “Artigo 8º. Nas sessões de mediação, o arguido e o ofendido devem comparecer pessoalmente, podendo fazer-se acompanhar de advogado ou de advogado estagiário” (PORTUGAL, 2007, p. 3). A lei argentina da Província de Corrientes, por outro lado, reserva exclusivamente aos advogados a função de mediadores (ARGENTINA, 2002b, p. 1). Tabela 5 - Distribuição do número de respondentes por tipo de assistência jurídica

Assistência jurídica Defensor público Nenhuma Advogado particular TOTAL

PL

NB

373

10

(85,9%)

(6,6%)

39

126

(9,0%)

(82,9%)

22

16

(5,1%)

(10,5%)

434

152

(100,0%) (100,0%)

Valor-p < 0,0001; C* = 0,8505

8.4.6 Resultados Testadas as hipóteses levantadas na seção 8.4.2, os resultados são os seguintes: Hipótese 1 As partes têm maior oportunidade de falar com o outro lado sobre o fato na justiça restaurativa do que no sistema de justiça criminal. Confirmada.

Em relação ao grau de comunicação no processo, os dados coletados informam que, em Planaltina, as partes, apesar de aguardarem no corredor do fórum o momento da audiência, não tiveram oportunidade de falar com o outro lado integrante do conflito (58%). Este fato representa a perda de um momento singular das partes para, por exemplo, formularem perguntas ao outro e receberem respostas que gostariam de obter diretamente do outro. Já no Núcleo Bandeirante, 95% dos entrevistados revelam que tiveram essa oportunidade. Tabela 6 — Oportunidade de falar sobre o fato com a outra parte

Você teve a oportunidade de falar com a outra parte sobre o fato?

PL

NB

SIM

176 (42,0%)

146 (95,4%)

NÃO

243 (58,0%)

7 (4,6%)

TOTAL

419 153 (100,0%) (100,0%)

Valor-p < 0,0001; C* = 0,6044

No sistema de justiça criminal, as partes são desestimuladas e mesmo inibidas a dialogar. Na perspectiva restaurativa, o diálogo com o outro é central. Por meio dele, os participantes apresentam e colocam à prova suas pretensões de validade (de sinceridade, de verdade e de retidão), consoante

asseverou Habermas (2012b, p. 124) (v. seção 3.3.4). Ou seja, os interlocutores podem construir uma relação de entendimento, expressar pensamentos, sentimentos e experiências, compreender melhor os fatos, suas causas bem como as consequências das suas ações. Como afirmou Lévinas (2012, p. 99), no momento do diálogo restaurativo, há o “desnudamento da pele exposta à ferida e à ofensa (...) para além de tudo aquilo que pode expor-se à compreensão” (v. seção 3.3.3). O diálogo apresenta, também, o potencial de criar uma atmosfera de entendimento sobre as formas de restauração do “malefício” causado, em substituição do tom de expiação e castigo retributivos, atualmente tidos como ultrapassados e improdutivos, consoante visto na seção 1.2. Note-se, outrossim, que metade dos respondentes de Planaltina (50,5%) tinha algum relacionamento próximo com a outra parte e a outra metade era de conhecidos (28,1%). Já no Núcleo Bandeirante, uma alta porcentagem de entrevistados tinham um relacionamento próximo (84%). Este fato parece confirmar a presunção corrente de adequação do procedimento restaurativo para solução de conflitos em que as partes tenham um relacionamento prévio ou mais estreito, para o fim de restaurá-los, já que necessitarão conviver por bastante tempo. Tabela 7 — Número de respondentes por tipo de relacionamento com a outra parte

Qual sua relação com a outra parte?

PL

NB

RELACIONAMENTO P RÓXIMO

226

130

CONHECIDOS

NENHUMA

TOTAL

(50, 5%) (84,4%)

126

13

(28,1%)

(8,5%)

96

11

(21,4%)

(7,1%)

448

154

(100,0%) (100,0%)

Valor-p < 0,0001; C* = 0,4083

Hipótese 2 As partes recebem mais explicações sobre o processo na justiça restaurativa do que no sistema de justiça criminal. Confirmada. Hipótese 3 As partes têm maior oportunidade de expressar suas opiniões e sentimentos na justiça restaurativa do que no sistema de justiça criminal. Confirmada. Hipótese 4 As opiniões e os sentimentos das partes são mais considerados na justiça restaurativa do que no sistema de justiça criminal. Confirmada.

Hipótese 5 As partes são tratadas com mais respeito na justiça restaurativa do que no sistema de justiça criminal. Confirmada, porém com pequena diferença (ver comentários).

Comparando os entrevistados no programa de justiça restaurativa do Núcleo Bandeirante com os entrevistados no sistema tradicional em Planaltina, percebe-se grande disparidade no grau de explicação do procedimento que receberam (96% X 64%, respectivamente), nas oportunidades de expressão de sentimentos e opiniões (82% X 47%) bem como na sua consideração (84% X 59%), com melhores resultados no programa restaurativo. Confira-se: Tabela 8 — Opinião dos respondentes sobre o grau de explicação do procedimento/processo

O procedimento/processo foi explicado para você?

PL

NB

P OSITIVO

286 (64,4%)

144 (96,0%)

NEGATIVO

158 (35,6%)

6 (4,0%)

444 150 (100,0%) (100,0%)

TOTAL

Valor-p < 0,0001; C* = 0,4096

Tabela 9 — Capacidade de expressar opiniões e sentimentos durante o procedimento/processo

Você foi capaz de expressar suas opiniões e seus sentimentos durante o procedimento/processo?

PL

NB

P OSITIVO

210 (47,7%)

124 (82,7%)

NEGATIVO

230 (52,3%)

26 (17,3%)

440 150 (100,0%) (100,0%)

TOTAL

Valor-p < 0,0001; C* = 0,4101

Tabela 10 — As opiniões foram consideradas durante o procedimento/processo

Suas opiniões foram consideradas durante o procedimento/processo? P OSITIVO

PL 257 (59,2%)

Programa de Justiça restaurativa do Núcleo Bandeirante — DF 126 (84,6%)

Suas opiniões foram consideradas durante o procedimento/processo? NEGATIVO

TOTAL

PL

Programa de Justiça restaurativa do Núcleo Bandeirante — DF

177 (40,8%)

23 (15,4%)

434 (100,0%)

149 (100,0%)

Valor-p < 0,0001; C* = 0,3154

A não consideração dos argumentos das partes contraria a tendência internacional, como visto na seção 5.2.9. Na Europa, o Conselho da União Europeia emitiu a decisão-quadro de 15 de março de 2001 (2001/220/JAI) com força vinculante aos seus Estados impondo-lhes que as necessidades da vítima sejam consideradas e tratadas, de forma articulada, evitando a vitimização secundária. Na Nova Zelândia, o “Victim of Offences Act”, de 2002, incumbe ao promotor de justiça levar ao conhecimento do juiz a “declaração de impacto da vítima” a fim de que seja mencionada na sentença e efetivamente considerada na determinação da penalidade do ofensor. Na Inglaterra e País de Gales, confere-se a oportunidade de expressão às vítimas em audiência, para dizerem o quanto foram afetadas pelo crime. Como visto na seção 3.2.1, informação, transparência e consideração dos argumentos de todos são atributos democráticos essenciais num processo decisório que incrementam o seu teor cognitivo e garantem uma participação emancipatória e empoderadora das partes diretamente interessadas (FISHKIN, 2009, p. 1). Como ressaltou Habermas, os cidadãos devem ser os próprios agentes da construção democrática, já que deles emana a vontade legítima. São considerados “parceiros” do direito e da própria democracia, mediante o exercício do direito de comunicação e direito de participação, de modo a corroborar com a própria legitimidade do processo (HAMEL, 2009, p. 1). Portanto, a fim de se assegurar legitimidade e teor democrático aos processos judiciais, faz-se premente a revisão desta prática judicial. Entretanto, em relação ao tratamento respeitoso, os respondentes da justiça restaurativa se sentiram mais respeitados (86% X 96%). Tabela 11 — Tratamento respeitoso durante as audiências

Você foi tratado(a) com respeito durante a(s) audiência(s)?

PL

NB

P OSITIVO

380 (86,2%)

142 (96,6%)

NEGATIVO

61 (13,8%)

5 (3,4%)

TOTAL

441 147 (100,0%) (100,0%)

Valor-p = 0,0009; C* = 0,1917

Hipótese 6 As partes acham a justiça restaurativa mais confiável do que o sistema de justiça criminal. Confirmada.

Quanto ao sentimento dos atores em relação ao procedimento, parcela significativa (88%) dos entrevistados da justiça restaurativa acharam-no confiável, ao passo que 66% dos entrevistados do sistema de justiça criminal disseram confiar no processo penal. Tabela 12 — Confiabilidade do procedimento/processo

Você achou o procedimento/processo confiável?

PL

NB

P OSITIVO

298 (67,6%)

134 (88,2%)

NEGATIVO

143 (32,4%)

18 (11,8%)

TOTAL

441 152 (100,0%) (100,0%)

Valor-p < 0,0001; C* = 0,2743

Hipótese 7 As partes ficam mais satisfeitas com o resultado do processo na justiça restaurativa do que no sistema de justiça criminal. Não confirmada, em virtude da pequena diferença estatística entre as respostas. Tabela 13 — Satisfação com o resultado do procedimento/processo

Você ficou satisfeito(a) com o resultado? P OSITIVO

NEGATIVO

TOTAL

PL

NB

144

71

(63,4%)

(68,9%)

83

32

(36,6%)

(31,1%)

227

103

(100,0%) (100,0%)

Valor-p = 0,3974; C* = 0,0658

Em valores percentuais, as partes ficam mais satisfeitas com o resultado do processo na justiça restaurativa (69% X 63%), pois seus relacionamentos com a outra parte melhoram (53% X 47%) e o procedimento restaurativo

trouxe maior sentimento de justiça que o comum (68% X 54%) (v. tabelas 15 e 18). Entretanto, estatisticamente, não se pode confirmar esta hipótese, tendo em vista a pequena diferença entre as respostas das duas populações entrevistadas. Segundo a metodologia adotada para a pesquisa, optou-se por um nível de significância equivalente a 5%. Dessa forma, só podemos afirmar que há diferença significativa entre as respostas, de modo a confirmar a hipótese testada, quando o “valor-p” ou “p-value” (probabilidade de significância ou nível descritivo) for menor que 0,05. Portanto, neste caso em que o valor-p é igual a 0,3974, não se pode confirmar a hipótese 7. Hipótese 8 O problema é considerado resolvido com mais frequência na justiça restaurativa do que no sistema de justiça criminal. Não confirmada, em virtude da pequena diferença estatística entre as respostas. Tabela 14 — Solução do problema

Para você, o problema foi resolvido? P OSITIVO

NEGATIVO

TOTAL

PL

NB

153

72

(68,9%)

(70,6%)

69

30

(31,1%)

(29,4%)

222

102

(100,0%) (100,0%)

Valor-p = 0,8626; C* = 0,0136

O percentual de entrevistados que reputou o problema resolvido em ambos é muito próximo (71% X 69%). Como o “valor-p” ou “p-value” (probabilidade de significância ou nível descritivo) é igual a 0,8626, verifica-se que, estatisticamente, não há diferença significativa entre as respostas, de modo a confirmar a hipótese testada. Lembre-se, contudo, de que problema resolvido (terminado ou extinto) não significa necessariamente conflito tratado (debatido). Para que seja tratado, é necessário que haja discussão da sua gênese ou que haja alguma intervenção dinâmica e positiva capaz de neutralizar as suas origens, sem deixar suas causas intactas. No sistema de justiça criminal, a resolução do conflito é feita de modo técnico e formal, muitas vezes estimulada por metas e preocupações estatísticas. Neste paradigma de “solução de conflitos”, os “acordos de paz”

a que se chegam são colocados externamente, em situação de supraordenação, de forma a extinguir processos, mas não necessariamente solucionando conflitos. Ao contrário, muitas vezes, tornam-se uma fonte de conflitos, como asseverou Louk Hulsman (1993, p. 128), já que estes são reprimidos e podem adquirir um caráter mais grave do que o próprio contexto originário (BARATTA, 1987, p. 628) (v. seção 1.4.1). Hipótese 9 O resultado do processo da justiça restaurativa melhora o relacionamento com a outra parte com mais frequência do que no sistema de justiça criminal. Não confirmada, em virtude da pequena diferença estatística entre as respostas. Tabela 15 — Melhoria do relacionamento com a outra parte

O resultado melhorou o seu relacionamento com a outra parte? POSITIVO NEGATIVO TOTAL

PL

NB

87

42

(47,3%)

(52,5%)

97

38

(52,7%)

(47,5%)

184

80

(100,0%) (100,0%)

Valor-p = 0,5187; C* = 0,0561

Esta melhora no relacionamento é um resultado muito importante, especialmente no âmbito restaurativo, uma vez que as partes geralmente possuem relações próximas, consoante demonstra a tabela 7. Por outro lado, ela representa uma maior chance de aceitação e reintegração do ofensor na sua comunidade, que é um dos objetivos da justiça restaurativa. Hipótese 10 Os prejuízos emocionais do processo são reparados com mais frequência na justiça restaurativa do que no sistema de justiça criminal. Não confirmada, em virtude da pequena diferença estatística entre as respostas. Note-se, outrossim, que a maior parte dos prejuízos emocionais não é reparada em ambos os sistemas. Tabela 16 — Reparação dos prejuízos emocionais

Os seus prejuízos emocionais foram reparados com o resultado? P OSITIVO

NEGATIVO

TOTAL

Valor-p = 0,5095; C* = 0,0613

PL

NB

57

25

(33,9%)

(39,5%)

111

38

(66,1%)

(60,3%)

168

63

(100,0%) (100,0%)

A porcentagem de reparação dos prejuízos emocionais do processo na justiça restaurativa e no sistema de justiça criminal são muito próximas (40% X 34%), Portanto, como o “valor-p” ou “p-value” (probabilidade de significância ou nível descritivo) é igual a 0,5095, verifica-se que, estatisticamente, não há diferença significativa entre as respostas, de modo a confirmar a hipótese testada. Curioso notar que em ambos, a maior parte destes não é reparada, a despeito do tratamento restaurativo dispensado (60,3%). Este dado revela o quanto são marcantes e difíceis de serem dissipados os danos emocionais advindos de um conflito criminal, mesmo numa intervenção restaurativa. Eis um dado que merece ser melhor investigado em estudos futuros. Hipótese 11 Os prejuízos monetários do processo são reparados com mais frequência na justiça restaurativa do que no sistema de justiça criminal. Refutada. Tabela 17 — Reparação dos prejuízos monetários

Os seus prejuízos monetários foram reparados com o resultado? P OSITIVO

NEGATIVO

TOTAL

PL

NB

33

10

(30,8%)

(23,8%)

74

32

(69,2%)

(76,2%)

107

42

(100,0%) (100,0%)

Valor-p = 0,5148; C* = 0,0754

Da mesma forma que os emocionais, os prejuízos monetários decorrentes de um conflito criminal são difíceis de recuperar (69% e 76%, não foram reparados, respectivamente). Ao contrário do que inicialmente se supunha, no sistema de justiça criminal comum tem havido maior reparação financeira das partes do que na justiça restaurativa (31% X 24%). Reputamos este fato a dois fatores. Em primeiro lugar, como reiteradamente denunciado pela criminologia crítica, há uma seletividade penal em relação aos crimes patrimoniais, de forma que a atuação dos órgãos do sistema de justiça criminal é prioritariamente dirigida à repressão e persecução destes, fazendo com que o processo e a sanção penal recaia sobre os membros das classes pobres, hipossuficientes economicamente. A situação econômica que já não era favorável, torna-se ainda mais prejudicada com o processo, a prisão do

ofensor etc., de modo que a reparação da vítima, muitas vezes, fica inviabilizada. O segundo fator é que a reparação no sistema comum é feita de forma impositiva (por uma sentença) e não voluntariamente (por meio do consenso), como na justiça restaurativa. Em geral, essa obrigação, que é saldável por qualquer um, recai sobre terceiro (parente ou amigo), que a paga. Talvez esta seja outra razão por que haja maior reparação dos prejuízos monetários no sistema de justiça criminal do que no restaurativo. A esse respeito, vale mencionar a crítica criminológica no sentido de que a pena pecuniária seria “aberrante” em virtude da sua impessoalidade, pois o réu se subtrairia a ela e a transmitiria a outrem, que ficaria submetido a uma pena por fato alheio (FERRAJOLI, 2010, p. 382) (v. seção 7.1.2). Hipótese 12 O processo da justiça restaurativa produz maior sentimento de justiça do que o sistema de justiça criminal. Confirmada. Tabela 18 — Existência de justiça no caso concreto

Depois de sua experiência, você acha que houve justiça no seu caso? P OSITIVO

NEGATIVO

TOTAL

PL

NB

122

65

(53,7%)

(67,7%)

105

31

(46,3%)

(32,3%)

227

96

(100,0%) (100,0%)

Valor-p = 0,0278; C* = 0,1718

Note-se o fato de que 46,3% dos entrevistados de Planaltina, que tiveram conhecimento do resultado do processo, reputaram-no injusto. Isso revela um alto grau de sentimento de “injustiça” no sistema. Hipótese 13 Às partes interessam mais medidas alternativas, tais como receber respostas a perguntas que gostariam de fazer sobre o fato, dizer à outra parte como o crime as afetou, que haja um pedido de desculpas, que haja ressarcimento pelo responsável, que as partes recebam algum tipo de tratamento ou aconselhamento, que, em vez de preso, o ofensor preste serviços à comunidade ou pague cestas básicas a uma instituição. Confirmada.

Em Planaltina, onde as 431 pessoas entrevistadas435 aguardavam no corredor as audiências nas duas Varas Criminais — Vara do Juizado Especial Criminal e Vara do Tribunal do Júri do Fórum local —, a maioria absoluta (82,7%) dos respondentes não desejava a prisão do ofensor. Muitas delas opinaram por medidas de ordem terapêuticas e restaurativas, como

tratamento ou aconselhamento (61,3%) ou por pedido de desculpas (54,2%), conforme tabela abaixo. Tabela 19 — Resumo das expectativas em relação ao processo

Expectativas

Sim

Não

Depende Total

Receber da outra parte respostas a perguntas que você gostaria de fazer sobre o fato

105 290 (26,4%) (72,9%)

3 (0,7%)

398

Dizer à outra parte como o crime te afetou

152 247 (38,0%) (61,8%)

1 (0,2%)

400

Que haja um pedido de desculpas

215 181 (54,2%) (45,6%)

1 (0,2%)

397

Que haja ressarcimento pelo responsável

124 267 (31,7%) (68,3%)

-

391

Que as partes recebam algum tipo de tratamento ou aconselhamento

249 155 (61,3%) (38,2%)

2 (0,5%)

406

Que o ofensor preste serviços à comunidade

136 256 (34,5%) (65,0%)

2 (0,5%)

394

Que o ofensor pague cestas básicas a uma instituição

127 267 (31,8%) (66,9%)

5 (1,3%)

399

Que o ofensor seja preso

65 325 (16,5%) (82,7%)

3 (0,8%)

393

Dos que desejaram a prisão do ofensor, 63,1% são vítimas, 27,7% são outros atores e 9,2% são os próprios ofensores, consoante ilustra a tabela abaixo: Tabela 20 — Que o ofensor seja preso (detalhada)

Tipo de ator CONTAGEM

%

VÍTIMA

41

63,1%

OUTROS ATORES

18

27,7%

6

9,2%

65

100,0%

OFENSOR TOTAL

A pesquisa em Planaltina abrange crimes de toda gravidade (de pequeno potencial ofensivo até os mais graves). Filtramos as respostas a fim de saber o que pensam os usuários a respeito da prisão para os crimes mais graves dentre os pesquisados (selecionamos vinte casos, que incluem roubos (14), tentativa de homicídio (4), estupro (1) e subtração de incapaz (1)). Nesses casos, a prisão do ofensor foi desejada por 58,8% dos entrevistados, ao passo que medidas como ressarcimento, prestação de serviço à comunidade e pagamento de cestas básicas foram rechaçadas pela maioria absoluta destes (64,7%, 72,2% e 66,7%, respectivamente).

É curioso notar ainda que, além da prisão, atitudes restauradoras e terapêuticas nestes crimes graves, como receber pedido de desculpas ou encaminhar o ofensor para tratamento ou aconselhamento foram desejadas por metade dos respondentes (55,6% e 47,4%). As medidas de ordem terapêutica foram desejadas por 66,3% das vítimas, por 20,5% dos ofensores e por 12,4% dos outros atores, conforme ilustra a tabela 22. Tabela 21 — Resumo das expectativas em relação ao processo, considerando somente os vinte crimes graves, desconsiderando as não-respostas

Expectativas

Sim

Não Depende Total

Receber da outra parte respostas a perguntas que você gostaria de fazer sobre o fato

3 13 (17,6%) (76,5%)

1 (5,9%)

17

Dizer à outra parte como o crime te afetou

5 12 (29,4%) (70,6%)

-

17

Que haja um pedido de desculpas

10 8 (55,6%) (44,4%)

-

18

Que haja ressarcimento pelo responsável

6 11 (35,3%) (64,7%)

-

17

Que as partes recebam algum tipo de tratamento ou aconselhamento

9 9 (47,4%) (47,4%)

1 (5,2%)

19

Que o ofensor preste serviços à comunidade

4 13 (22,2%) (72,2%)

1 (5,6%)

18

Que o ofensor pague cestas básicas a uma instituição

4 12 (22,2%) (66,7%)

2 (11,1%)

18

Que o ofensor seja preso

10 6 (58,8%) (35,3%)

1 (5,9%)

17

Tabela 22 — Que as partes recebam algum tipo de tratamento/aconselhamento (detalhada)

Tipo de ator Contagem VÍTIMA 165 OFENSOR 51 OUTROS ATORES 31 VÍTIMA , OFENSOR 2 TOTAL

249

% 66,3% 20,5% 12,4% 0,8% 100,0%

No Núcleo Bandeirante, onde vigora o programa de justiça restaurativa para crimes de menor potencial ofensivo (dos juizados especiais criminais), a prisão do ofensor foi rejeitada por 97,7% dos entrevistados, conforme tabela abaixo. Este resultado era esperado por conta da natureza do crime e em razão da sua pena diminuta que não costuma levar o ofensor à prisão. Tabela 23 — Que o ofensor seja preso

Que o ofensor seja preso SIM

NÃO

TOTAL

PL 65

NB 3

(16,7%)

(2,3%)

325

127

(83,3%)

(97,7%)

390

130

(100,0%) (100,0%)

Valor-p < 0,0001; C* = 0,2476

Esta filtragem demonstra a descrença da população na pena privativa de liberdade também para os crimes mais graves. Afinal, o não-cumprimento dos fins de prevenção, reabilitação e reintegração prescritos pela lei e o seu elevado custo, sem que apresente qualquer vantagem de ordem utilitária, são evidências da sua fragilidade percebidas pela população e que põe em xeque a legitimidade de todo o sistema penal. Como assevera a crítica abolicionista já vista no trabalho (em especial na seção 4.4.5), a justiça criminal aparece mais como um problema público em vez de uma solução para problemas públicos (HULSMAN, 2003, p. 198). A alta rejeição às “penas alternativas”, como a indenização pecuniária, a prestação de serviço à comunidade e o pagamento de cestas básicas (64,7%, 72,2% e 66,7%, respectivamente) também demonstra o descrédito atual delas. A percepção da população, em geral, é que esta é uma solução ineficaz, proposta indistintamente a todos os crimes menores, sem qualquer conexão pedagógica com o delito praticado. Por outro lado, as vítimas não são informadas sobre o acompanhamento ou cumprimento das soluções pelo autor. A falta de informação novamente contribui para o descrédito deste sistema. Também, neste sentido, a crítica abolicionista — vista na seção 4.4.5 —, defende que o sistema de justiça criminal tornou-se um arranjo de extremos, variando entre “prisões infamantes” e penas ineficazes e não abre a possibilidade de outras respostas mais eficientes e particularizadas aos conflitos. Por fim, o fato de metade dos entrevistados (55,6% e 47,4%) se manifestar favoravelmente a atitudes restauradoras e terapêuticas — como receber pedido de desculpas ou se encaminhar o ofensor para tratamento ou aconselhamento — demonstra a pertinência da justiça restaurativa também para crimes graves. Em geral, o modelo restaurativo não é imediatamente aceito pela população como uma resposta para os crimes mais graves em virtude do seu

potencial para promover o desencarceramento e por ser erroneamente visto como uma forma de os ofensores “se beneficiarem” ou evitarem o processo penal. Entretanto, como demonstram os casos de estupro relatados neste estudo, nas intervenções restaurativas realizadas, este não foi o resultado esperado. Como visto na seção 8.1, em geral, as partes são menos receptivas à ideia de uma intervenção restaurativa quanto mais percebem os danos de um crime como irreparáveis, quanto maior a sua repercussão, quanto maior o tempo decorrido desde o seu cometimento ou quanto maior a dependência da natureza da sua relação com o ofensor (REEVES, 1989, p. 46). Frise-se que as alternativas à prisão apresentadas aos entrevistados foram eleitas para tanto por serem as mais comumente oferecidas pelo sistema de justiça criminal. Compreende-se, entretanto, que estas não são as únicas possíveis, afinal, defende-se, neste trabalho, a abertura da construção de soluções mais criativas, apropriadas, reparadoras, sensíveis às suas condições locais e pessoais dos envolvidos e às circunstâncias da ofensa. 8.4.7 Outras considerações relevantes Outras questões relacionadas ao sistema de justiça criminal foram indagadas dos respondentes, apesar de não constituírem diretamente o objetivo da pesquisa, tampouco hipóteses desta. Entendemos, contudo, relevante mencioná-las, por se tratarem de assuntos abordados ao longo da pesquisa, tais como: descriminalização de condutas de menor potencial ofensivo (relacionada à corrente abolicionista), aplicação de programas restaurativos para delitos cometidos em contexto de violência doméstica e a importância da integração em rede de serviços públicos, políticas públicas e de organizações da sociedade civil com os programas restaurativos. 8.4.7.1 Descriminalização de condutas de menor potencial ofensivo O programa de justiça restaurativa do Núcleo Bandeirante-DF é restrito aos crimes de menor potencial ofensivo (pena privativa de liberdade menor que dois anos ou contravenções penais). Em que pese não ser o objetivo da pesquisa, foi indagado aos seus usuários sobre a possibilidade de descriminalização da conduta que os levou até ali. A grande maioria dos entrevistados (93,5%) manifestou o desejo de que a conduta continuasse sendo considerada crime, apesar de sua diminuta pena. Assim, percebe-se que, embora tenham passado por um “processo restaurador”, este não afetou a sua opinião sobre a criminalização dos seus conflitos.

Tabela 24 — Conduta deve continuar sendo crime

Você acha que esta conduta deve continuar sendo crime?

Frequência Percentual

SEM OP INIÃO

144 9 1

93,51% 5,84% 0,65%

TOTAL

154

100,00%

SIM NÃO

8.4.7.2 Aplicação de programas restaurativos para delitos cometidos em contexto de violência doméstica No período pesquisado, o programa de justiça restaurativa do Núcleo Bandeirante atendeu a pouquíssimos casos de violência doméstica, se comparado ao Judiciário de Planaltina (4% x 34%, respectivamente). Isso demonstra que os casos deste tipo de violência não têm sido encaminhados para o programa. Tabela 25 — Número de procedimentos por tipo de crime cometido em contexto de violência doméstica

Crime(s) cometido(s) em contexto de Violência Doméstica?

PL

Programa de Justiça restaurativa do Núcleo Bandeirante — DF

NÃO

292 (65,8%)

147 (95, 5%)

SIM

152 (34,2%)

7 (4,5%)

444 (100,0%)

154 (100,0%)

TOTAL

Valor-p < 0,0001; C* = 0,3933

Embora a pesquisa demonstre que a justiça restaurativa é bastante adequada para solucionar conflitos entre pessoas que possuem um relacionamento próximo, conforme visto na seção 5.2.6, deve-se reconhecer que ainda há alguma resistência ao encaminhamento de crimes ocorridos no contexto de violência doméstica ao programa de justiça restaurativa do Núcleo Bandeirante, hoje limitado aos de menor potencial ofensivo. Note-se que, pouco antes do início da pesquisa de campo, no dia 9 de fevereiro de 2012, o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou procedente a ação direta de inconstitucionalidade (ADI 4424) ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, no sentido da possibilidade de o Ministério Público dar início à ação penal sem necessidade de representação da vítima.

Por outro lado, lembre-se de que a crítica acerca da incompatibilidade entre este tipo de violência e a aplicação da justiça restaurativa poderia contribuir para a perpetuação do ciclo da violência doméstica, porque zela pela restauração da relação das partes em conflito (seção 8.2), fato que está na contramão das atuais campanhas para a denúncia deste tipo de crime. 8.4.7.3 Uso abusivo de álcool ou drogas e a importância da integração da justiça restaurativa com as políticas públicas de saúde e com a comunidade Segundo a tabela abaixo, cerca de 43% das pessoas envolvidas em conflitos criminais estavam sob o efeito de álcool ou de droga no momento do fato em Planaltina e 27%, no Núcleo Bandeirante. Tabela 26 — Número de procedimentos em que alguma das partes estava sob efeito de álcool e/ou droga

Quando do crime, alguma das partes estava sob o efeito de álcool e/ou drogas?

PL

Programa de Justiça restaurativa do Núcleo Bandeirante — DF

NÃO

230 (57,2%)

111 (73,5%)

SIM

172 (42,8%)

40 (26,5%)

402 (100,0%)

151 (100,0%)

TOTAL

Valor-p = 0,00064; C* = 0,203148

Notamos, portanto, que, no contexto da prática destes crimes, é frequente o consumo de álcool ou drogas. A justiça restaurativa proporciona espaço para soluções alternativas e terapêuticas que podem ser mais eficazes para o tratamento do problema e, ao mesmo tempo, menos penosas para as partes, em especial para o ofensor. Este dado demonstra a importância da integração de políticas públicas de saúde envolvendo a comunidade, os alcoólicos anônimos e os grupos de apoio a dependentes químicos das igrejas na resposta ao crime. Afinal, como visto na seção 5.3, todos formam Gemeinschaften, ou seja, comunidades “de destino” na qual seus membros compartilham da mesma boa ou má-sorte (TÖNNIES, 2001, p. 22). Se estes vão bem, a comunidade vai bem. Além disso, a participação comunitária (que não se restringe ao ideal bucólico de pessoas do mesmo bairro, mas integra também as instituições) é um recurso estratégico que reforça os laços entre ofensores, suas famílias e a

comunidade, promove o senso de proteção comunitária e propicia a seus membros uma maior sensação de segurança e comando (PASSOS; PENSO, 2009, p. 26). É, portanto, ônus da comunidade e do poder público a responsabilidade pela construção de repostas adequadas ao delito pela transformação das condições sociais que contribuem para o comportamento do ofensor, pela sua inclusão social, reinserindo-o em seu meio e pela proposição de políticas públicas efetivas voltadas para este segmento social (McCOLD; WACHTEL, 2003, p. 1). 8.4.8 Conclusão Em cumprimento ao objetivo geral da pesquisa de campo estabelecido na seção 8.4.1, após avaliação e comparação do grau de informação, comunicação, reparação e satisfação do sistema de justiça criminal e do programa de justiça restaurativa, conclui-se que, em geral, a justiça restaurativa oferece resposta penal mais adequada e satisfatória do ponto de vista de seus usuários que o sistema de justiça criminal. Das treze hipóteses levantadas que traziam conjecturas de vantagens em favor da justiça restaurativa, uma foi refutada (a de nº 11), e quatro não puderam ser confirmadas (as de nº 7, 8, 9 e 10), sendo todas as demais amplamente favoráveis à justiça restaurativa. A comprovação dos níveis de confiança e de participação dos jurisdicionados na justiça restaurativa em relação ao sistema de justiça criminal constitui um importante argumento em favor deste modelo de justiça, além de diferenciá-lo significativamente da atual prática retributiva. Ressalte-se, por fim, que a presente pesquisa exploratória foi feita por meio de amostragem não probabilística ou por conveniência, o que torna os seus resultados não generalizáveis436. O perfil identificado por meio da confirmação, não confirmação ou refutação das hipóteses se configurou em determinado tempo e local, mas não necessariamente se mantém. Portanto, é necessário ser corroborado por futuras pesquisas sistemáticas e de controle. É a primeira vez que se vai a campo para se investigar o fenômeno justiça restaurativa a fim de compará-lo com o sistema de justiça criminal ordinário no Brasil. Portanto, esta pesquisa não se propõe a ser conclusiva, mas a ser o início de um trabalho que deve ser aprofundado. Eis o ônus do pioneirismo. 8.4.9 Notas metodológicas

O procedimento de arredondamento utiliza os seguintes critérios: • quando o primeiro algarismo a ser abandonado for 0, 1, 2, 3 ou 4, fica inalterado o último algarismo a permanecer; • quando o primeiro algarismo a ser abandonado for 5, 6, 7, 8 ou 9, aumenta-se de uma unidade no último algarismo a permanecer.

Utilizou-se do teste de homogeneidade (ou independência) do Quiquadrado para testar a existência ou não de associação nos dados das tabelas de contingência. Optou-se pelo nível de significância de 5%. Trata-se de um nível de significância bastante rigoroso para o campo das ciências sociais, entretanto, optamos por ele por ser o padrão geralmente utilizado em pesquisas estatísticas. Este tipo de procedimento pode gerar divergência entre a soma das parcelas arredondadas e o total arredondado. Assim, neste trabalho, considere-se a seguinte observação para todas as tabelas: “A diferença entre a soma de parcelas e os respectivos totais são provenientes do critério de arredondamento.” Para dados categorizados, dispostos em tabela de contingência, utilizouse o coeficiente de contingência, definido por , em que χ2 é a estatística Qui-quadrado, k é o menor entre o número de colunas e linhas da tabela de contingência e n é o tamanho da amostra (total geral da tabela). O coeficiente de contingência mede o grau de associação em uma tabela de contingência. C* está sempre entre 0 e 1, e sua interpretação é idêntica à do coeficiente de correlação de Pearson, conforme regra abaixo: Valor de |r| (ou C*)

Interpretação

0,00 a 0,19

... bem fraca

0,20 a 0,39

... fraca

0,40 a 0,69

correlação... ... moderada

0,70 a 0,89

... forte

0,90 a 1,00

... muito forte

Exemplos: Tabela N.1 — Número de respondentes por tipo de parte no processo e sexo - PL

Qual sua parte no processo? Feminino Masculino TOTAL

OFENSOR

213 34

52 92

265 126

TOTAL

247

144

391

VÍTIMA

Valor-p < 0,0001; C* = 0,6441

Tabela N.2 — Situação hipotética (estereotipada)

Qual sua parte no processo? Feminino Masculino TOTAL OFENSOR

247 -

144

247 144

TOTAL

247

144

391

VÍTIMA

Valor-p < 0,0001; C* = 0,99724

Tabela N.3 — Situação hipotética — completo equilíbrio (hipótese nula)

Qual sua parte no processo? Feminino Masculino TOTAL OFENSOR

167 80

98 46

265 126

TOTAL

247

144

391

VÍTIMA

Valor-p = 1; C* = 0

Valor-p, ou p-value, também chamado de probabilidade de significância ou nível descritivo, é a probabilidade de ocorrência de valores da estatística mais extremos do que o observado sob a hipótese nula (de não haver diferença). Os cálculos do coeficiente de contingência foram realizados através do software livre R437, utilizando-se da seguinte função, em que x é a tabela de contingência: contingencia