Ciência do direito e legitimação: crítica da epistemologia jurídica alemã de Kelsen a Luhmann 9788536271484

Na Univesità degli Studi di Salento há um Centro di Studio sul Rischio, fundado por Niklas Luhmann e Raffaele De Giorgi,

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Ciência do direito e legitimação: crítica da epistemologia jurídica alemã de Kelsen a Luhmann
 9788536271484

Table of contents :
INTRODUÇÃO - CONTINGÊNCIA E LEGITIMAÇÃO, p. 21

1 Filosofia Prática e Verdade Normativa, p. 21
2 Validade e Não Contingência da Norma. O Princípio de Legitimação Interna, p. 23
3 Desagregação e Complexidade. Estrutura de Abstrações e Coesão Formal dos Sistemas Através da Norma Contingente, p. 27
4 O Obstáculo Epistemológico da Contingência Normativa. Ciência e Teoria do Direito, p. 31

Primeira Parte - A CIÊNCIA, p. 37

1 SAVIGNY E A CONVERSÃO METODOLÓGICA, p. 39
1 História, Sistema e Filosofia, p. 39
2 A Conversão Metodológica, p. 46
3 A Construção Lógica do Sistema, p. 48
4 Contingência e Necessidade. A Elisão do Problema Teórico, p. 53

2 A ESPECIFICAÇÃO DA METODOLOGIA E KELSEN, p. 57

1 Puchta, p. 57
1.1 A concepção do direito como igualdade à qual é imanente a desigualdade, p. 57
1.2 A racionalidade do sistema jurídico, a positividade da ciência e a instância material, p. 63

2 Jhering, p. 69
2.1 A emancipação da abstração jurídica e da ciência, p. 69
2.2 História do direito e história da repressão da instância material, p. 76

3 Kelsen, p. 82
3.1 A questão: "como é possível o direito positivo enquanto objeto de conhecimento, enquanto objeto da ciência jurídica", p. 82
3.2 A questão: "como é possível a ciência jurídica", p. 92

Segunda Parte - A TEORIA, p. 97

INTRODUÇÃO À CONVERSÃO TEÓRICA, p. 99

1 O Mal-Estar do Positivismo, p. 99
2 A Jurisprudência da Alienação, a "Nova" Teoria do Direito e o Pluralismo Teórico, p. 102

1 A HERMENÊUTICA JURÍDICA, p. 111
1 Exemplaridade da Hermenêutica Jurídica, p. 111
2 Estratégia Antianalítica, Revisão do Saber Hermenêutico e Teoria do Direito, p. 115
3 Sentido, Texto e Princípio da Mediação, p. 120
4 Hruschka: Das Verstehen von Rechtstexten [A compreensão de textos jurídicos], p. 124
5 O Obstáculo Epistemológico da Hermenêutica, p. 129

2 A TEORIA DO DIREITO COMO REFLEXÃO CRÍTICA, p. 133
1 Tradição Dialética e Pensamento Antipositivista, p. 133
2 A Teoria do Direito como "Reflexão Transcendental", p. 141
3 A Teoria Marxista do Direito como "Crítica do Direito", p. 149
4 Distância do Mundo e Ficção da Filosofia da História. Crítica de Böhler e Paul, p. 159

3 A TEORIA ANALÍTICA DO DIREITO E O CRITICISMO, p. 167
1 Dialética e Criticismo, p. 167
2 A Jurisprudência como Tecnologia Social, p. 172
3 Criticismo e Analiticidade da Ciência, p. 177
4 A Teoria Analítica do Direito em sua Concepção Restrita, p. 181
5 A Teoria Analítica do Direito em sua Versão Liberal, p. 187
6 Aventuras da Epistemologia e Metamorfoses do Direito, p. 191

4 A JURISPRUDÊNCIA REALISTA, p. 199
1 O Realismo Jurídico Alemão, p. 199
2 Essencialismo e Epistemologia, p. 204
3 A Teoria do Direito Segundo o Realismo Jurídico, p. 206
4 Uma nova Perspectiva, p. 213

Terceira Parte - A RACIONALIDADE, p. 215

1 A RACIONALIDADE COMO REPRESSÃO E A TEORIA DO DIREITO DE N. LUHMANN, p. 217
1 Características da Crise da Epistemologia Jurídica, p. 217
2 A Questão do Iluminismo e o Problema da Redução da Complexidade do Mundo. O Sistema Social, p. 221
3 Estabilização Funcional e Racionalidade do Sistema, p. 225
4 Estratégias de Redução da Complexidade. A Estrutura dos Sistemas e a Proteção das Alternativas, p. 229
5 A Generalização das Expectativas, p. 232
6 A Generalização Congruente das Expectativas. O Direito, p. 237
7 O Direito Positivo. A Questão da Contingência Normativa, p. 240
8 A Teoria do Direito e a Consideração Funcional da Ciência, p. 246
9 Contingência e Repressão. Teoria do Direito e Repressão da Instância Material, p. 252

PÓS-ESCRITO (1998), p. 265

REFERÊNCIAS, p. 273

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Ciência do Direito e Legitimação

BIBLIOTECA DE FILOSOFIA, SOCIOLOGIA E TEORIA DO DIREITO COORDENAÇÃO: FERNANDO RISTER DE SOUSA LIMA

CIÊNCIA DO DIREITO E LEGITIMAÇÃO Crítica da Epistemologia Jurídica Alemã de Kelsen a Luhmann

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Raffaele De Giorgi

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CONSELHO EDITORIAL DA BIBLIOTECA DE FILOSOFIA, SOCIOLOGIA E TEORIA DO DIREITO Alberto Febbrajo Artur Stamford da Silva Clarice von Oertzen de Araujo Fabiana Del Padre Tomé Fernando Rister de Sousa Lima Florence Cronemberger Haret Francisco Carlos Duarte Germano Schwartz João Ibaixe Jr.

José Elias de Moura Rocha Laffayette Pozzoli Mara Regina de Oliveira Marcelo Pereira de Mello Marcio Pugliesi Ricardo Tinoco de Góes Tercio Sampaio Ferraz Jr. Vittorio Olgiati Willis Santiago Guerra Filho

Presidente do Conselho Editorial e Coordenador da Coleção: Fernando Rister de Sousa Lima

ISBN: Brasil – Av. Munhoz da Rocha, 143 – Juvevê – Fone: (41) 4009-3900 Fax: (41) 3252-1311 – CEP: 80.030-475 – Curitiba – Paraná – Brasil Europa – Rua General Torres, 1.220 – Lojas 15 e 16 – Fone: (351) 223 710 600 – Centro Comercial D’Ouro – 4400-096 – Vila Nova de Gaia/Porto – Portugal

Editor: José Ernani de Carvalho Pacheco

Visite nossos sites na internet: www.jurua.com.br e www.editorialjurua.com e-mail: [email protected]

Ciência do Direito e Legitimação

Raffaele De Giorgi Pedro Jimenez Cantisano Tradução

CIÊNCIA DO DIREITO E LEGITIMAÇÃO Crítica da Epistemologia Jurídica Alemã de Kelsen a Luhmann

Curitiba Juruá Editora 2016

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Raffaele De Giorgi

Ciência do Direito e Legitimação

APRESENTAÇÃO DA BIBLIOTECA O Brasil, como país periférico no sistema social global, atravessa um período histórico-social conturbado sob o âmago editorial, em que o tecnicismo dogmático de baixa consistência teórica e o pragmatismo imediatista desenfreado assentam-se como principais atores do neocapitalismo, a materializar-se, no contexto do mercado editorial, numa avalanche de publicações cujo intento é simplificar o insimplificável, com obras de repetição em massa, sem outro propósito qualquer do que atender a uma demanda de informação resumida. Sem menoscabo a esse público, a Juruá Editora e o Coordenador desta coleção – o Prof. Fernando Rister de Sousa Lima – saem na contramão dos catálogos a fim de cunhar espaço nesse mercado para trabalhos de verticalidade cognitiva, num diálogo com as disciplinas propedêuticas do Direito. Para tal mister, além de coragem, ousadia e forte sentimento de compromisso social, reclamou-se de guarida de um grupo seleto de intelectuais, que, prontamente, aceitaram formar o Conselho Editorial desta Biblioteca, cada qual, é verdade, com sua característica teórica, porém, todos ligados sob uma só família: “a pesquisa jurídica”!

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Raffaele De Giorgi

BIBLIOTECA DE FILOSOFIA, SOCIOLOGIA E TEORIA DO DIREITO OBRAS JÁ EDITADAS: 1. Introdução ao Ordenamento Jurídico: Um Diálogo entre Norberto Bobbio e a Doutrina Brasileira – 2ª edição – Fernando Rister de Sousa Lima 2. O Reexame Necessário à Luz da Duração Razoável do Processo: uma Análise Baseada na Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy – Rafael Sérgio Lima de Oliveira 3. Compêndio de Ética Jurídica Moderna – Fernando Rister de Sousa Lima / Ricardo Tinoco de Góes / Willis Santiago Guerra Filho 4. Imigração e Fluência Cultural: Dispositivos Cognitivos da Comunicação entre Culturas Legais – Marcelo Pereira de Mello 5. Democracia Deliberativa e Jurisdição: A Legitimidade da Decisão Judicial a Partir e Para Além da Teoria de J. Habermas – Ricardo Tinoco de Góes 6. Constitucionalização Corporativa: Direitos Humanos Fundamentais, Economia e Empresa – Lucas Fucci Amato 7. Ouvidoria de Justiça: Cidadania Participativa no Sistema Judiciário – José Antonio Callegari 8. Judicialização da Política: Desafios Contemporâneos à Teoria da Decisão Judicial – Douglas Henrique Marin dos Santos 9. Teoria da Justiça de John Rawls: Tensão Entre Procedimentalismo Puro (Universalismo) e Procedimentalismo Perfeito (Contextualismo) – Pablo Camarço de Oliveira 10. Sociologia do Direito: Teoria e Práxis – Alberto Febbrajo / Fernando Rister de Sousa Lima / Márcio Pugliesi (coords.) 11. Saúde & Judiciário: a Atuação Judicial – Limites, Excessos e Remédios – Marco Antonio da Costa Sabino 12. Reformas Processuais na Teoria dos Sistemas: Certeza do Direito e as Decisões Judiciais – Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater 13. Retórica e Consistência no Direito: Fundamentos para uma Teoria do Direito de Inspiração Luhmanniana – Pythagoras Lopes de Carvalho Neto 14. Interpretação Jurídica no Estado Regulador: Observações à Luz da Teoria dos Sistemas e da Teoria do Direito – Gabriel Ferreira da Fonseca 15. Sociologia do Constitucionalismo: Constituição e Teoria dos Sistemas – Alberto Febbrajo / Tradução: Sandra Regina Martini

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Para Alessandro

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APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA Passaram-se quase quarenta anos desde que Ciência do direito e legitimação. Crítica da epistemologia jurídica alemã de Kelsen a Luhmann foi publicado pela primeira vez na Itália e na Alemanha: quase meio século. É um tempo breve na história das ideias; mas é um período que, na memória da sociedade, imprimiu traços perturbadores; desenhou horizontes de estabilidades e de interrupções, de transformações e de reviravoltas; um tempo que viu transcorrer uma história de expectativas, de sonhos, de lutas e de repressões, de violência e de massacres, uma história de civilização e de barbárie. “A sociedade repete e esquece”, escrevemos com Luhmann, “e no repetir e esquecer-se da sociedade se produzem grandes transformações estruturais”. Observando este período, nota-se rapidamente que a sociedade experimentou triste solidão do direito. Ela confiou ao Direito a contingência de sua justiça, e esta contingência assumiu os vultos macabros da violência, os vultos grotescos das democracias autoritárias, os vultos sonhadores do estado social de direito. O Direito permaneceu abandonado à própria sorte. E ficou apenas consigo mesmo. Sem garantias externas, sem divindades e sem cosmologias. Com estas experiências de solidão extrema concluiu-se um “século breve” e um milênio longo, enquanto o inobservável presente resvalava em outro século que, frente ao abismo do novo milênio, continua a agarra-se à herança perdida que lhe deixou o século passado. Ao final dos anos setenta do último século, trinta anos depois da segunda guerra mundial, na Europa Ocidental – com algumas brutais exceções – a estrutura do estado de direito era largamente estabilizada, enquanto que em muitos países da América Latina, mas também do Leste, ainda continuava a absurda barbárie de poderes que inibiam o direito e transformavam em farsa grotesca as manifestações residuais da juridicidade tipicamente moderna. Depois, uma década mais tarde, a tragédia latino-americana estaria concluída e seria aberto um percurso que ainda hoje continua a se chamar de “transição”. No Leste seriam consumadas

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as violências dos socialismos do terror e seria inaugurado o mais moderno mercado dos autoritarismos. Aquilo que faz a diferença entre essas experiências e o Direito, a diferença que os mantém juntos e, ao mesmo tempo, lhes diferencia é, paradoxalmente, a contingente determinação de uma originária unidade, de uma forma: a forma da diferenciação entre política e direito. Uma unidade: a unidade de uma diferença. O direito da sociedade moderna é direito que se emancipou da necessidade de ordem do mundo, da proteção de natureza divina, da necessidade das naturezas do homem e se vinculou à universalidade da razão, a qual havia apagado o privilégio e havia tornado possível o acesso de todos à política e ao Direito. Desse modo, o Direito se democratizou, isto é, havia conquistado a competência universal. Também a política se democratizou no mesmo sentido da aquisição de uma competência universal de decidir. Este direito da sociedade moderna é o Direito positivo. É o direito que constrói o mundo através da atribuição de sentido jurídico: é o direito que constrói aquilo que se usa como realidade. Uma política que usa um poder do qual se possa dizer que não viola o direito e que se legitima mobilizando consenso e refletindo-se no espelho das opiniões públicas. É o direito-de-uma-política que se sujeita, também ela, ao direito que ela mesma produz. Quando a unidade da diferença entre política e direito se constitucionaliza, incrementa-se simultaneamente a independência e a dependência entre Direito e Política, aumenta-se o limiar da sensibilidade recíproca e o limite, que marca a diferença, oscila continuamente, desloca-se continuamente, torna-se continuamente um obstáculo a superar, ao qual se dá o nome de garantia. É o paradoxo do limite no qual se reflete a solidão do direito, a sua fragilidade, a possibilidade da sua moderna colonização. Para poder operar, o direito deve construir conceitualmente aquilo que usa como realidade. Constrói, desse modo, a sua autonomia, isto é, a juridicidade das suas operações. O Direito não pode confundir-se com a sua realidade. Daí deriva a necessidade de uma contínua observação do direito do interior do direito. Originariamente, o complexo das descrições, através das quais se realiza esta contínua observação, tinha uma natureza filosófico-dedutiva, partia de suposições sobre o mundo ou sobre a natureza do homem: a moderna invenção da razão liga aquelas descrições à natureza racional da razão, torna possível a construção de um sistema do direito da razão e permite ao sistema do

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direito fechar-se para qualquer determinação externa. O tempo começa com a razão e se projeta em direção ao futuro: esta característica da temporalidade, que é também a característica do dever-ser, torna possível a estabilização das expectativas, isto é, torna possível a ativação de uma tecnologia social de autoconstrução de expectativas, do saber como se comportar em caso de desilusão da expectativa. Conclui-se a história da filosofia prática e a abre-se o horizonte do conhecimento do dever-ser do Direito. Abre-se o horizonte moderno da ciência do direito. Sente-se a exigência de uma construção sistemática da conceitualidade dogmática do Direito; põe-se o problema da unidade e da completude do Direito; põe-se o problema da construção e da derivação dos conceitos; o problema da argumentação especificamente jurídica. Põe-se, em outros termos, a questão do fechamento do Direito. Também a questão dos fundamentos do Direito será reformulada como uma questão interna ao sistema voltada à sua capacidade de justificar formas específicas da argumentação jurídica. O sistema do Direito se torna objeto da ciência jurídica. Manifesta-se, assim, o paradoxo da ciência jurídica: quanto mais o Direito se torna direito positivo, resultado de decisões que permitem tomar decisões, tanto maior será a necessidade de sistematizar a estrutura conceitual do direito, a necessidade de conferir à reflexão do direito sobre o direito a característica de conhecimento do direito. Para Savigny, o sistema do direito era resultado da filosofia e da lógica, mais do que da filologia; P. A. von Feuerbach, ao contrário, dizia que quanto mais o Direito se tornava mutável – nós dizemos: contingente – tanto mais era necessário procurar fundamentos estáveis. E essa busca devia ser efetuada pela ciência do Direito. Esta insuprimível necessidade da reflexão sobre o Direito tinha a sua função. Podemos explicá-la desse modo: o direito positivo moderno è uma estrutura seletiva de significados normativos através dos quais se qualifica o mundo. A seletividade do Direito, como cada seletividade, é a característica de uma tecnologia da inclusão e, assim, da exclusão. Inventar um fundamento para um sistema que é privado de fundamentos permite legitimar um sistema que é privado de legitimação; permite de racionalizar a exclusão e apresentar, mais uma vez, como natural e necessário, aquilo que é artificial e contingente. Ciência do Direito e legitimação segue o percurso do pensamento jurídico alemão da sua emancipação em relação à unidade do agir da filosofia prática até as grandes construções do último século. Termina com as primeiras elaborações da Teoria dos Sistemas de Niklas Luh-

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mann. O trabalho reconstroi a característica da ciência jurídica moderna como técnica da reflexão que tem a função de legitimar um sistema que é privado de legitimidade. O trabalho descreve os modos pelos quais a universalidade da razão opera como instância de repressão daquilo que se encontra na exclusão. Daquilo que é tratado como o outro de si. A tradução brasileira da obra tem a pretensão de responder a uma exigência que surge do panorama atual do pensamento jurídico, da reflexão política e da observação das diferenças na estrutura da sociedade que caracterizam o presente. Trata-se disso: os últimos lampejos das teorias críticas foram completamente apagados; as grandiosas análises foucaultianas do poder se tornaram quase que negócios de ocasião e foram despojadas do seu potencial revolucionário; o pensamento da desconstrução, que poderia ser largamente utilizado, permanece uma experiência de elite filosófica que avança mais para horizontes de natureza messiânica, e não sobre os horizontes da barbárie sem pudor do presente ; a teoria dos sistemas, de um lado, é destinatária de contínuas e irracionalizáveis paixões momentâneas de neófitos de outro lado, é destinatária de melancólicos esforços de superação, transformação, revisão: aquela teoria tem em torno de si um espaço vazio, e nesse espaço vazio coloca-se a resistência contra a complexidade da teoria e, assim, a dificuldade de utilizar o extraordinário patrimônio conceitual da teoria para compreender e descrever o presente. Uma dificuldade que se explica também de outro modo: frente à complexidade do presente, frente à elusiva e obscura complexidade que o mundo apresenta à comunicação, frente à impenetrável dureza daquilo que é, é muito mais fácil aquietar-se no complacente otimismo do dever ser: buscar abrigo na ética e esconder-se nos tranquilizadores vazios semânticos dos princípios. De outra parte se concluem também as grandes narrações da política: elas achavam sua inspiração no iluminismo e os lugares das suas realizações nas construções dialéticas da história e da materialidade do ser determinado: depois das suas consumações, permanece o cego abandono da política à desvatadora razão de mercado e, na ausência de uma opinião pública diferenciada e sensível, resta a exposição da política à busca do consenso nas desérticas reservas de uma esperança prêt-à-porter: as seitas religiosas. Se estas considerações descrevem os recursos intelectuais dos quais dispõe a observação do presente, deve-se reconhecer, então, que o iluminismo moderno se realizou nas suas consequências sem que a reflexão sobre o direito tenha sabido clarear o que se escondia por debaixo

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da razão do iluminismo. Mas ainda há um fato, que deve ser considerado: naquelas regiões do globo, nas quais a diferenciação funcional da sociedade não pode estabilizar-se como forma prevalente da diferenciação, as resistências da estratificação se manifestam com indescritível violência. Nessas regiões resistem formas diferentes da estratificação, que podem incluir diferenças de cor, de religião, de etnia: em outras palavras, a mesma estratificação se estratifica, e esta estratificação das diferenças coexiste, por sua vez, com grandes diferenças entre centro e periferia. Mas essas resistências são as antigas resistências que se opunham ao iluminismo. O qual, todavia, realizou-se nas suas consequências também nessas regiões do globo. As consequências do iluminismo, então, ocultando a estratificação, imunizam a política contra a estratificação da estratificação e legitimam a violência da real exclusão. Assim, legitimam a presença de presentes diferentes. Também o Direito positivo moderno realizou as suas premissas iluministas: no Direito positivo moderno o iluminismo se realizou nas suas consequências. Na sua estrutura dogmática, na conceitualidade através da qual o direito qualifica normativamente o mundo, nos conteúdos de sentido que o direito atribui ao agir – em tudo isso agem as consequências do velho iluminismo. Refletir sobre essas premissas, sobre as suas funções; sobre a estrutura da ciência que oculta aquelas premissas e a sua função; refletir sobre os modos através dos quais a ciência jurídica legitima a violência e a exclusão que o Direito pratica na sua construção da ordem da sociedade; refletir sobre a semântica através da qual o Direito observa a si mesmo – tudo isso pode permitir compreender algo sobre a estrutura do presente precisamente naquelas regiões do globo que são caracterizadas pela presença de diferentes presentes. Esta edição não teria sido possível sem o apoio, a participação e o trabalho de Celso Fernandes Campilongo, sofisticado intelectual e jurista e querido amigo, a quem agradeço. Gostaria de expressar minha gratidão à Editora Juruá e ao Dr. Fernando Rister, diretor da coletânea, que com entusiamo acolheu a obra. Ainda devo um agradecimento a Lucas Amato e a Natasha Pereira Silva, que revisaram a tradução, tiveram a paciência de me consultar continuamente e discutir comigo os problemas conceituais e linguísticos.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................19 1 Filosofia Prática e Verdade Normativa ...............................................19 2 Validade e Não Contingência da Norma. O Princípio de Legitimação Interna ............................................................................21 3 Desagregação e Complexidade. Estrutura de Abstrações e Coesão Formal dos Sistemas Através da Norma Contingente ........................25 4 O Obstáculo Epistemológico da Contingência Normativa. Ciência e Teoria do Direito ................................................................29 Primeira Parte A CIÊNCIA 1

SAVIGNY E A CONVERSÃO METODOLÓGICA ..........................37 1 2 3 4

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História, Sistema e Filosofia ...............................................................37 A Conversão Metodológica ................................................................44 A Construção Lógica do Sistema .......................................................46 Contingência e Necessidade. A Elisão do Problema Teórico .............51

A ESPECIFICAÇÃO DA METODOLOGIA E KELSEN .................55 1 Puchta .................................................................................................55 1.1 A concepção do direito como igualdade à qual é imanente a desigualdade ...............................................................................55 1.2 A racionalidade do sistema jurídico, a positividade da ciência e a instância material......................................................61 2 Jhering ................................................................................................67 2.1 A emancipação da abstração jurídica e da ciência .....................67 2.2 História do direito e história da repressão da instância material ......................................................................................74 3 Kelsen .................................................................................................80

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3.1 A questão: “como é possível o direito positivo enquanto objeto de conhecimento, enquanto objeto da ciência jurídica”......................................................................................80 3.2 A questão: “como é possível a ciência jurídica” ........................90 Segunda Parte A TEORIA INTRODUÇÃO À CONVERSÃO TEÓRICA ...............................................97 1 O Mal-Estar do Positivismo ...............................................................97 2 A Jurisprudência da Alienação, a “Nova” Teoria do Direito e o Pluralismo Teórico ...........................................................................100 1

A HERMENÊUTICA JURÍDICA ......................................................109 1 Exemplaridade da Hermenêutica Jurídica ........................................109 2 Estratégia Antianalítica, Revisão do Saber Hermenêutico e Teoria do Direito ..............................................................................113 3 Sentido, Texto e Princípio da Mediação ...........................................118 4 Hruschka: Das Verstehen von Rechtstexten [A compreensão de textos jurídicos] ................................................................................122 5 O Obstáculo Epistemológico da Hermenêutica ................................127

2

A TEORIA DO DIREITO COMO REFLEXÃO CRÍTICA ............131 1 2 3 4

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A TEORIA ANALÍTICA DO DIREITO E O CRITICISMO..........165 1 2 3 4 5 6

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Tradição Dialética e Pensamento Antipositivista .............................131 A Teoria do Direito como “Reflexão Transcendental” .....................139 A Teoria Marxista do Direito como “Crítica do Direito” .................147 Distância do Mundo e Ficção da Filosofia da História. Crítica de Böhler e Paul ....................................................................................157

Dialética e Criticismo .......................................................................165 A Jurisprudência como Tecnologia Social .......................................170 Criticismo e Analiticidade da Ciência ..............................................175 A Teoria Analítica do Direito em sua Concepção Restrita ...............179 A Teoria Analítica do Direito em sua Versão Liberal ......................185 Aventuras da Epistemologia e Metamorfoses do Direito .................189

A JURISPRUDÊNCIA REALISTA ...................................................197 1 O Realismo Jurídico Alemão ............................................................197

Ciência do Direito e Legitimação

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2 Essencialismo e Epistemologia ........................................................202 3 A Teoria do Direito Segundo o Realismo Jurídico ...........................204 4 Uma nova Perspectiva ......................................................................211 Terceira Parte A RACIONALIDADE 1

A RACIONALIDADE COMO REPRESSÃO E A TEORIA DO DIREITO DE N. LUHMANN .............................................................215 1 Características da Crise da Epistemologia Jurídica ..........................215 2 A Questão do Iluminismo e o Problema da Redução da Complexidade do Mundo. O Sistema Social ....................................219 3 Estabilização Funcional e Racionalidade do Sistema .......................223 4 Estratégias de Redução da Complexidade. A Estrutura dos Sistemas e a Proteção das Alternativas .............................................227 5 A Generalização das Expectativas ....................................................230 6 A Generalização Congruente das Expectativas. O Direito ...............235 7 O Direito Positivo. A Questão da Contingência Normativa .............238 8 A Teoria do Direito e a Consideração Funcional da Ciência............244 9 Contingência e Repressão. Teoria do Direito e Repressão da Instância Material .............................................................................250

Pós-escrito (1998).............................................................................................263 REFERÊNCIAS ..............................................................................................271 ÍNDICE ALFABÉTICO .................................................................................287

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INTRODUÇÃO CONTINGÊNCIA E LEGITIMAÇÃO 1

FILOSOFIA PRÁTICA E VERDADE NORMATIVA

Na idade moderna, os sistemas de filosofia prática conseguiram pensar a unidade da ação. A ação ética, política e jurídica eram descritas por sistemas unitários que possuíam a seguinte propriedade: o dever ser, que se exprimia em diretiva ou norma de ação, era construído a partir de princípios relativos ao ser, isto é, a partir de uma ontologia racional. Essa ontologia era, ao mesmo tempo, certeza para a ação, referência unitária e fundamento último de validade dos sistemas de normas e diretivas1. A ação, pensada a partir da filosofia prática, constitui um universo complexo e articulado, que, todavia, ainda não fora modificado pelos processos de corrosão que futuramente levariam ao isolamento2 e às separações 1

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Da vasta literatura sobre o argumento, ver HENNIS, W. Politik und praktische Philosophie. Schriften zur politischen Theorie. Stuttgart: Klett-Cotta, 1997; MEYRING, D.H. Politische Weltweisheit. Studien zur deutschen politischen Philosophie des 18. Jahrhunderts. Diss. Münster 1965; WIETHÖLTER, R. Rechtswissenschaft. Frankfurt a. M.: Fischer, 1968 [tr. it. de Riegert Amirante, Le formule magiche della scienza giuridica. Laterza, Bari 1975], p. 63 ss.; OELMÜLLER, W. Die unbefriedigte Aufklärung. Beiträge zu einer Theorie der Moderne von Lessing, Kant und Hegel. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1969. p. 113 ss.; RIEDEL, M. Moralität und Recht in der Schulphilosophie des 18. Jahrhunderts. In: BLÜHDORN, J.; RITTER, J. (Orgs.). Recht und Ethik. Zum Problem ihrer Beziehung im 19. Jahrhundert. Frankfurt a. M.: Klostermann, 1970. p. 83-96; RÖD, W. Rationalistisches Naturrecht und praktische Philosophie der Neuzeit. In: RIEDEL, M. (Org.). Rehabilitierung der praktischen Philosophie. Rombach, Freiburg i.B. 1972, v. I, p. 269-95. Cf. WILHELM, W. Zur juristischen Methodenlehre im 19. Jahrhundert. Die Herkunft der Methode Paul Labands aus der Privatrechtswissenschaft. Klostermann: Frankfurt a. M., 1958. p. 7-8 [tr. it. de P. L. Lucchini, Metodologia giuridica nel secolo XIX. Milano: Giuffrè, 1974; LUHMANN, N. Rechtssoziologie, Rowohlt, Reinbek bei Hamburg, 1972. p. 190-9 e 217-26 [tr. it. parcial de

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recíprocas entre as esferas ética, política e jurídica. No âmbito da unidade construída pela filosofia prática, o direito natural era a medida da ação justa3. A ação valorada pelo direito natural não possui “juridicidade”4. Em sentido moderno, atribuímos essa característica à forma de ação isolada e regulada por uma norma cuja validade seja ligada a princípios exclusivamente procedimentais. Mas, no âmbito da complexidade indiferenciada do universo da filosofia prática, uma forma de ação isolada, definida por uma regulação exclusivamente “jurídica”, ou seja, objeto de uma qualificação normativa “destituída de pressupostos”, não tem espaço epistemológico. De fato, as formas da ação não se reconhecem em sua indiferença recíproca, mas na referência comum ao valor fixado pela ontologia racional. Igualmente, o direito natural não se reconhece como objeto de uma ciência “jurídica”, isto é, de uma ciência capaz de refletir a autonomia de seu objeto nos contornos de seu modelo epistemológico, mas se reconhece na estrutura de um sistema filosófico unitário e complexo. Nesse sentido, o direito natural não constitui um problema “jurídico”, mas exclusivamente filosófico. No universo da filosofia prática, ele representa “um problema da unidade entre ética e política; um problema de moral pública, substancial”5. A epistemologia do direito natural, consequentemente, não existe senão como um subsistema da filosofia prática que apresenta a seguinte particularidade: a estrutura normativa sobre a qual ele exercita suas reflexões não é mutável e, ao não ser constituída por decisões, tampouco pode ser transformada por futuras decisões. Essa estrutura não é posta, mas continuamente produzida em um processo analítico de dedução, do qual se desdobra e se esclarece a verdade normativa dos princípios da ontologia racional que constituem as premissas deste sistema. Dessa perspectiva, a epistemologia jurídica é a reflexão relativa às operações de dedução da normatividade implícita nas premissas descritivas do ser. A epistemo-

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5

FEBBRAJO, A. Sociologia del diritto, Laterza, Bari 1977]; Id., Ausdifferenzierung des Rechtssystems, in “Rechtstheorie”, v. 7,1/2, 1976, pp. 121-35. Cf. WIETHÖLTER, Op. cit., p. 65. Cf. RIEDEL, M. Moralität und Recht cit; e a contribuição de DENZER, H. Ethik und Recht im deutschen Naturrecht der zweiten Hälfte des 17. Jahrhunderts. In: Recht und Ethik cit., p. 103-9; LUHMANN, Rechtssoziologie, v I., cit., p. 166-90. Cf. WIETHÖLTER, Op. cit., p. 65: as traduções de todas as passagens de obras estrangeiras são minhas, mesmo que exista uma tradução italiana e a ela se faça referência; o uso de traduções italianas será explicitamente indicado. WIEACKER, F. Privatrechtsgeschichte der Neuzeit. Vandenhoeck und Ruprecht, Göttingen, 1967, p. 267, utiliza o termo “ética social pública”.

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logia é, substancialmente, teoria da construção do sistema, fundada sobre uma doutrina do método: de fato, a derivação da normatividade “jurídica” só pode acontecer em um sistema de explicação das premissas, com base em um método de pesquisa da verdade que fixa as operações oportunas. A epistemologia dispõe de tal método de pesquisa que, a partir dos princípios da ontologia racional6, almeja estabelecer o verdadeiro conforme a medida do justo. A norma produzida pela pesquisa é verdadeira. Sua verdade não é de natureza puramente lógica. A norma vale, com certeza, porque é logicamente verdadeira; mas a verdade que nela se exprime é, ao mesmo tempo, especificação do valor fixado na ontologia da qual derivam suas premissas. A validade da norma, portanto, é imediatamente vinculada ao valor em relação ao qual a norma se apresenta como verdade lógica, necessária.

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VALIDADE E NÃO CONTINGÊNCIA DA NORMA. O PRINCÍPIO DE LEGITIMAÇÃO INTERNA

O critério específico de validade da norma de direito natural que a vincula ao valor, a subtrai ao arbítrio, a torna resistente ao tempo, a imuniza contra escolhas, a protege contra o possível e o diverso. A norma não é contingente7. A norma não contingente nasce por necessidade interna de determinadas premissas que, munidas do caráter de verdade, não são falsificáveis. A norma não é, assim, uma variável; ela se subtrai a processos de decisão e, com isso, adquire uma validade que nasce da identificação de seu processo cognitivo com seu processo produtivo. Tal identificação e a não contingência dela resultante permitem compreender a especificidade da epistemologia jusnaturalista, que tem, no âmbito do objeto, uma posição e uma função que a distinguem claramente da epistemologia do direito positivo: este não constitui um sistema externo ao conjunto de normas, mas um sistema que produz ele mesmo as 6 7

Cf. RÖD, Op. cit., pp. 269 ss. “No plano formal, a contingência é definida como negação da impossibilidade e da necessidade. Contingente é, portanto, tudo aquilo que é possível, mas não é necessário”. “É, no entanto, só a partir de Kant (e, em um plano sociológico, somente a partir da transição à “sociedade burguesa”) que conceitos modais são generalizados de modo relacional, sobretudo em relação ao poder do conhecimento”. Cf. LUHMANN, N. Funktion der Religion. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1977. p. 187; cf. a bibliografia ali citada, assim como aquela apresentada na nota 21 deste texto.

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normas segundo seu modelo e as desloca entre suas tramas conceituais. Para o direito natural, no entanto, a epistemologia torna-se instância de legitimação interna que o complexo normativo traz consigo desde sua constituição. No plano gnoseológico, as normas se legitimam pelo método de pesquisa que as individualiza por meio do conjunto das operações de derivação8 que se realizam dentro de um sistema logicamente fechado. No plano ideológico, a legitimação das normas de direito natural se dá, de um lado, porque a pesquisa se funda em um saber filosófico relativo à natureza e ao homem9 e, de outro, porque, pelo sistema de normas, a pesquisa chega a conhecimentos verdadeiros relativos ao dever ser. O sistema, então, não é apenas o lugar de produção do direito, mas é essencialmente o aparato no interior do qual o direito produzido se legitima como verdade. A conquista epistemológica mais consistente da teoria do direito natural e do seu rigor metodológico é, sem dúvidas, a construção da noção de sistema, formulada, como observa oportunamente Wieacker, pelas contribuições do Vernunftrecht [direito racional] para o direito privado europeu10. A jurisprudência*, caracterizada como ciência da exegese e do comentário de textos – e que continuou assim, mesmo depois do insucesso dos projetos humanistas de sistema –, renova-se no momento em que, 8

9

10

Cf. STEPHANITZ, D. v. Exakte Wissenschaft und Recht. Der Einfluss von Naturwissenschaft und Mathematik auf Rechtsdenken und Rechtwissenschaft in zweieinhalb Jahrtausenden. Ein historischer Grundriss. Berlin: De Gruyter, 1977. p. 55. Cf. WELZEL, H. Naturrecht und materiale Gerechtigkeit, Vandenhoeck um Ruprecht, Göttingen 1962 (4), p. 108 ss. [tr. it. organizada por G. De Stefano, Diritto naturale e giustizia materiale. Milão: Giuffrè, 1965]. Cf. WIEACKER, F. Op. cit., p. 275. Para o conceito de sistema na ciência jurídica, cf. COING, H. Geschichte und Bedeutung des Systemgedankens in der Rechtswissenschaft. Frankfurt a. M.: Klostermann, 1956; ENGISCH, K. Sinn und Tragweite juristischer Systematik, in “Studium Generale”, 10, Heft 3, 1957, pp. 173-90; BULYGIN, E. Zwei Systembegriffe in der rechtsphilosophischen Problematik. In: “Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie”, LIII/3, 1967, p. 32942; LOSANO, M. G. Sistema e struttura nel diritto. Torino: Giappicheli, 1968, v. I; CANARIS, C-W. Systemdenken und Systembegriff in der Jurisprudenz, entwickelt am Beispiel des Deutschen Privatrechts. Berlin: Duncker und Humblot, 1969; SCHMIDT, J. System und Systembildung in der Rechtswissenschaft. In: JAHR, G.; MAIHOFER, W. (Orgs.). Rechtstheorie. Beiträge zur Grundlagendiskussion. Frankfurt a. M.: Klostermann, 1971. p. 384-425; SAVIGNY, E. v. Zur Rolle der deduktivaxiomatischen Methode in der Rechtswissenschaft. In: Rechtstheorie. Beiträge cit., p. 315-51. * A palavra “jurisprudência”, no original giurisprudenza, aqui é usada em referência a um saber sobre o direito; não se trata da indicação sobre decisões judiciais. [Nota do Tradutor – N.T.]

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“com Hobbes e Pufendorf, a demonstração lógica de um sistema fechado torna-se o parâmetro de comparação para a plausibilidade dos seus axiomas metodológicos”11. Demonstração da proposição jurídica, construção sistemática de princípios, passagem de princípios gerais a particulares, aspiração de obtenção de evidências lógicas de modo similar à prova matemática: eis a estima por uma tradição epistemológica que passa por Galileu e Descartes e funda a cientificidade do universo do discurso do direito natural. É desse modo que a jurisprudência se constitui como ciência do direito. Mas, observa Troje, que o sistema jurídico e a cientificidade do direito surgem, desde a antiguidade, como duas metades de um único círculo de problemas. A certitudo jurisprudentiae é pressuposto e consequência, ponto de partida e objetivo da atividade sistemática. A jurisprudência se torna ciência no sistema, e pode se tornar sistema apenas se for possível como ciência. Um belo círculo!12

O problema apontado por Troje pode facilmente ser resolvido se considerarmos que a epistemologia do direito natural dispõe de um método de pesquisa que não tem a finalidade de conferir ordem à normatividade posta, mas tem a tarefa de produzir a normatividade não contingente implícita nas premissas. No sistema da ciência, a norma se produz no processo de busca da verdade, com base em um método que fixa regras para as operações13. Esse método de pesquisa torna científica a jurisprudência. Portanto, à questão levantada por Troje, podemos responder que, para o direito natural, a jurisprudência é possível apenas como ciência, porque é busca da verdade; e a ciência, por sua vez, é possível somente por meio do sistema, porque apenas no sistema o processo de explicação da normatividade implícita nas premissas apresenta-se como busca da verdade. Como tais premissas não são mais que princípios da 11 12

13

Cf. WIEACKER, Op. cit., p. 275-6. Cf. TROJE, H. E. Wissenschaftlichkeit und System in der Jurisprudenz des 16 Jahrhunderts. In: BLÜHDORN, J.; RITTER, J. (Orgs.). Philosophie und Rechtswissenschaft. Zum Problem ihrer Beziehung im 19. Jahrhundert. Frankfurt a. M.: Klostermann, 1969. p. 63, mas também p. 63-88. Cf. GIANQUINTO, A. Critica dell’epistemologia. Padova: Marsilio, 1971. p. 16 ss.; de notável interesse é MITTELSTRASS, J. Neuzeit und Aufklärung. Studien zur Entstehung der neuzeitlichen Wissenschaft und Philosophie. Berlin/New York: De Gruyter, 1970. Mas cf. também COING, H. Naturrecht als wissenschaftliches Problem. Wiesbaden: Steiner, 1965.

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razão, o direito natural pode se apresentar como o direito da razão, como a normatividade implícita no postulado da razão universal14. A ciência do direito natural, portanto, diferentemente daquilo que ocorrerá com a ciência do direito positivo, não assume a tarefa de reconstruir, em seu sistema, a racionalidade do objeto com base em um modelo hipotético de verificação, mas a de produzir o objeto como dado da razão15. A universalidade da razão e a unidade da filosofia que a explicita garantem não apenas a certitudo jurisprudentiae, mas também a validade da construção sistemático-dedutiva que evidencia o verdadeiro e o universal na forma do justo. O amálgama entre razão e direito – podemos concluir – recompõe a atividade teórico-cognitiva e a atividade prática da ciência na função produtiva de normatividade não contingente. O direito natural completa-se dentro da unidade da filosofia prática, que se encontra fixa sobre o fundamento da ontologia racional. Esse amálgama, que se realiza no interior do sistema, tem uma consequência de grande relevância epistemológica: confere à ciência jurídica o papel de instância objetiva de legitimação do direito e, ao sistema, a função de aparato interno de legitimação do direito justo16. O direito natural apresenta-se, assim, como verdade normativa de uma razão universal que é recurso inexaurível no mundo, de uma razão que tem a ação concentrada e unida, que não deixa espaço para a incerteza, para o isolamento e para a dúvida. A razão única e universal compreende o mundo, mas, ao mesmo tempo, o comprime, de modo a manter baixo o potencial de complexidade de um universo da ação que parece não conhecer ameaça, porque se mantém coeso e se reconhece na infinita razão ideológica da verdade. 14

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16

Cf. WIEACKER, Op. cit., p. 312 ss.; WELZEL, Op. cit., p. 108; mas também as interessantes considerações de ELLSCHEID, G. Das Naturrechtsproblem in der Rechtsphilosophie. In: Einführung in Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der Gegenwart, KAUFMANN, A.; HASSEMER, W. Heidelberg/Karlsruhe: Müller, 1977. p. 23-71; são úteis as contribuições encontradas em MAIHOFER, W. (Org.). Naturrecht oder Rechtspositivismus. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1966², e em BÖCKLE, F.; BÖCKENFÖRDE, E. (Orgs.). Naturrecht in der Kritik. Mainz: Grünewald, 1973. Cf. as considerações de H. ALBERT em Rationalität und Wirtschaftsordnung, in Aufklärung und Steuerung. Aufsätze zur Sozialphilosophie und zur Wissenschaftslehre der Sozialwissenschaften. Hamburg: Hoffmann und Campe, 1976. p. 56-90. Cf. LUHMANN, Positivität des Rechts als Voraussetzung einer modernen Gesellschaft, in “Jahrbuch für Rechtssoziologie und Rechtstheorie”, 1970, v. I, p. 182.

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DESAGREGAÇÃO E COMPLEXIDADE. ESTRUTURA DE ABSTRAÇÕES E COESÃO FORMAL DOS SISTEMAS ATRAVÉS DA NORMA CONTINGENTE

A sociedade burguesa, porém, rompe a razão única e universal, despedaça a solidez, decompõe a ação e elimina, assim, os pressupostos materiais e epistemológicos sobre os quais se apoiavam os sistemas da filosofia prática que haviam construído a unidade da razão17. A sociedade burguesa diferencia diversos sistemas de ação. O sistema social alcança uma profunda complexidade que o constrange subitamente a enfrentar o problema da coesão dos subsistemas produzidos. A sociedade burguesa produz indiferença e igualdade, isolamento e estranhamento: “a mútua e geral dependência dos indivíduos reciprocamente indiferentes constitui seu nexo social” – escreve Marx. E continua: O caráter social da atividade, assim como a forma social da mercadoria e a participação do indivíduo na produção, apresentam-se aqui como algo de estranho e objetivo perante os indivíduos; não como sua relação recíproca, mas como sua subordinação a relações que subsistem independentemente deles e nascem do choque entre indivíduos reciprocamente indiferentes18.

Uma vez fragmentadas a ação e a razão universal que sustentavam a unidade, cada sistema de ação se apresentará com uma racionalidade interna própria. Isolados os diversos sistemas, indiferentes um ao outro, a razão se diferencia, rompendo a unidade de sentido constituída em torno da razão universal iluminista. A vida social organiza-se em torno da pluralidade indiferente de indivíduos singulares19, que mostram que a razão não é mais atributo e capacidade de cada um, propriedade igualmente distribuída, recurso no qual todos podem participar. Assim, a sociedade burguesa destrói o iluminismo da razão e o substitui por novas 17

18 19

Cf. WIETHÖLTER, R. Op. cit., p. 65-75; LUHMANN, N. Rechtssoziologie cit., p. 217 ss.; Id., Ausdifferenzierung cit.; WILHELM, Op. cit., p. 97 ss., com referência a Gerber e Savigny (a “Sonderung der Tätigkeiten” [segregação de atividades]). Cf. MARX, K. Lineamenti fondamentali della critica dell’economia politica. Firenze: La Nuova Italia, 1968. v. I, p. 97-8. Cf. K. Marx, La questione ebraica, tr. it. De E. Panzieri, Editori Riuniti, Roma 1969, p. 73; DELLA VOLPE, G. Rousseau e Marx. Roma: Riuniti, 1964 (4), p. 25 ss.; CERRONI, U. Marx e il diritto moderno. Roma: Riuniti, 1962. p. 196 ss.; MERKER, N. Marxismo e storia delle idee. Roma: Riuniti, 1974. p. 152 ss.

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formas de uma racionalidade da qual os indivíduos são excluídos. Essa racionalidade não é um modelo, nem uma ideia, mas é, acima de tudo, a capacidade do sistema social de manter coesa sua estrutura intimamente desagregada. A sociedade burguesa, portanto, caracteriza-se por um processo de desagregação, que aumenta infinitamente a complexidade do sistema social. Essa complexa estrutura de desagregação, que constitui o sistema social, exprime-se na separação entre esfera pública e esfera privada, na distinção entre sociedade civil e Estado, na fragmentação dos sistemas de ação, na expropriação da razão iluminista, na diferenciação das razões dos sistemas sociais, na institucionalização de suas relações de dependência, na separação do concreto, reduzido a assunto privado, e, por fim, na construção de sistemas de produção de sentido abstrato como assunto público, geral. A desagregação real é causa do aumento contínuo da complexidade do sistema social e, portanto, da dificuldade crescente que o sistema encontra para organizar a coexistência das estruturas diferenciadas. A coexistência é possível: ela se realiza somente por meio da coesão formal dos sistemas diferenciados20 em um sistema de abstrações (formas de dominação) no qual se realiza a coexistência de igualdades indiferentes e no qual a racionalidade objetiva das relações sociais de produção – que é a estrutura da desigualdade – é ocultada. O problema iluminista da sociedade burguesa é, assim, manter concretamente a desagregação do sistema e controlar a complexidade. Por tal razão, a sociedade burguesa estrutura um sistema que opera a coesão igualando a diversidade na abstração. Trata-se de um sistema de abstrações21 e de formas que possuem a seguinte propriedade: 20

21

De forma semelhante, Barcellona sustenta que: “Em uma determinada formação social, funcionam diversas formas de mediação, que expressam contradições específicas nos diversos níveis em que se manifestam. Além disso, é possível individualizar formas de mediação fundamentais e secundárias, e definir o modo recíproco de coordenação, que representa e designa a unificação e o funcionamento das diversas relações sociais presentes em um dado contexto, e articuladas globalmente no interior de uma relação social fundamental” (BARCELLONA, P. La Repubblica in trasformazione. Problemi istituzionali del caso italiano. Bari: De Donato, 1978. p. 31). Como constatara Marx em sua Critica alla filosofia hegeliana del diritto pubblico, In: Opere filosofiche giovanili. Tradução de G. Della Volpe. Roma: Riuniti, 1966. p. 15-142. Cf., ainda, GIOVANNI, B. de. Marx e lo Stato. Democrazia e Diritto, 1973, XIII, p. 37-82; BADALONI, N. Per il comunismo. Torino: Einaudi, 1972. e La critica marxiana del teleologismo, la struttura logica del capitale e la dialettica della liberazione, p. 55 e ss. A produção de abstrações como problema da

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uma vez ocultada a racionalidade objetiva das relações sociais de produção das quais nascem22, essas abstrações não se apresentam mais como determinações formais de relações produzidas, desde já abstratas e independentes, objetivas e separadas, mas como seleções normativas operadas no universo do possível e, portanto, como escolhas pelas quais se estrutura um sistema formal autônomo que produz a coesão23 dos sistemas desagregados da sociedade burguesa. O universo dessas abstrações é o direito positivo. Este é um sistema constituído por uma estrutura na qual, por meio de processos regulados, são isoladas e fixadas como válidas determinadas formas de ação. Essas abstrações do agir são válidas apenas

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estrutura do sistema é amplamente tratada por Luhmann em Rechtssoziologie, cit., p. 138 ss., 143-5 e p. 326 ss.; Id., Soziologie als Theorie sozialer Systeme, in Soziologische Aufklärung. Aufsätze zur Theorie sozialer Systeme, v. I, Westdeutscher, Opladen 1974 (4), p. 113-36 (p. 120 ss., p. 133 nota 30); Id., Funktionen und Folgen formaler Organisation. Berlin: Duncker und Hunblot, 1976³; Id., Sinn als Grundbegriff der Soziologie. In: HABERMAS, J.; LUHMANN, N. Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1976². p. 25-100 [tr. it. de CORATO, R. Di. Teoria della società o tecnologia sociale. Milão: Etas Kompass, 1973]. Luhmann também reconhece que o “primado social da economia” constitui um pressuposto para a positivação do Direito, para sua consolidação e segurança. Mas para ele, a economia, como sistema parcial da sociedade, não constitui algo “material”. Aquilo que a distingue é, sobretudo, – esclarece Luhmann, criticando Marx – “a alta complexidade, a liberdade de escolha e a capacidade de aprendizado que esta fornece à experiência e ao comportamento humano”. O primado da economia, portanto, consiste no fato de que esta produz os problemas que permitem à sociedade alcançar uma imensa quantidade de possibilidades de experiência e de comportamento. Dito de outro modo, com o primado da economia, “a política pode alcançar mais poder, a família mais amor e a ciência mais verdade. A esta complexidade se deve adaptar a estrutura da sociedade. No âmbito das expectativas normativas de comportamento, este fenômeno se realiza por meio da positivação do direito” (Positivität des Rechts..., p. 200-1). Mas o que significaria que a produção dos problemas sociais acontece na economia senão que a racionalidade dos sistemas sociais – e, portanto, também do Direito positivo – é a racionalidade da economia, que os “contextos de sentido” no sistema social são aqueles produzidos pela economia, ou, para usar a linguagem de Luhmann, que a solução dos problemas dos sistemas sociais individualizados, enquanto solução dos problemas produzidos na economia, tem a função de estabilizar o sistema “material” da própria economia? Segundo Barcellona: “No interior de uma formação social, as relações sociais fundamentais se articulam em diversos níveis e assumem formas diferentes, como, por exemplo, relações consensuais jurídicas (econômicas), políticas etc. Estas relações se condensam em uma forma específica de unificação-mediação que designa o modo fundamental da coordenação entre os vários níveis, ou melhor, da coordenação entre os mecanismos (de mediação) consensuais e os mecanismos coercitivos” (BARCELLONA, Op. cit., p. 31-2). Do mesmo autor cf. Stato e mercato tra monopolio e democrazia. Bari: De Donato, 1976, em particular o primeiro ensaio.

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porque são produzidas com base em um processo de decisão: enquanto isoladas deste modo, são variáveis, podem ser sempre diversas. A ação real aparece, assim, regulada por um sistema de abstrações que não derivam sua validade de um pressuposto, mas do fato de serem postas como produto de uma seleção, de uma escolha, e, portanto, isoladas por um universo de possibilidades, que, junto com estas, contém infinitas outras. A norma assim produzida depende de tempo, é fruto de uma decisão e, por efeito de outra decisão, pode ser privada de sua validade. A validade nasce de um processo formal que traz existência à norma, mas que pode ser ele mesmo destituído de validade: a norma e o processo que a cria não possuem nenhuma relação com a verdade. Conhecimento e produção da norma, então, separam-se, pois o valor e a verdade foram excluídos da determinação do critério de validade. Agora, a norma é pura subjetividade indiferente ao valor e à verdade, ligada ao possível e ao tempo. Essa norma é contingente24. Contingência é a possibilidade do diferente, contínua potencialidade imanente de transformação, hipótese 24

Contingência é entendida aqui no sentido de positividade definido por Kelsen e Luhmann, Para Kelsen, “o direito positivo com sua validade hipotético-relativa é, essencialmente, um ordenamento mutável ao infinito que pode se adaptar a condições que mudam no espaço e no tempo” (KELSEN, H. Teoria generale del diritto e dello Stato, tr. It. De S. Cotta e G. Treves. Milão: Comunità, 1952. p. 403). E mais: “O sistema normativo do tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de que a norma fundamental pressuposta não contém outra coisa que não a instituição de uma fattispecie produtora de normas, a constituição de uma autoridade legiferante ou, o que dá no mesmo, de uma regra que determina como se deve produzir as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental (...). As normas de um ordenamento jurídico devem ser estatuídas mediante um ato particular de criação. Trata-se de normas estatuídas, isto é, positivas, elementos de um ordenamento positivo” (KELSEN, H. La dottrina pura del diritto, tr. It. de M. G. Losano. Torino: Einaudi, 1966. p. 220-1; 223). Para Luhmann: “É chamado positivo o direito que foi posto e que vale por força de uma decisão” (LUHMANN, Positivität des Retchts..., p. 200). Porém, o autor sublinha que o critério de positividade consiste menos no ato único de pôr o direito (einmalig), do que na atualização da experiência jurídica: “O direito vale positivamente não por conta da produção histórica da experiência jurídica, do ato precedente de positivação do direito, mas porque o direito vive a experiência de validade por força de tal decisão. Trata-se de uma escolha entre possibilidades, que pode sempre variar” (idem, p. 183). Segundo Luhmann, “positividade do direito significa que qualquer conteúdo pode adquirir validade jurídica por força de uma decisão que confere validade ao direito e que, a qualquer momento, pode ser revogada” (idem, p. 180). O mesmo se aplica a Kelsen: “o sistema normativo que se apresenta como ordenamento jurídico tem um caráter essencialmente dinâmico. Uma norma jurídica não está em vigor pelo fato de possuir determinado conteúdo, isto é, pelo fato de que se possa deduzir logicamente tal conteúdo de uma norma fundamental, mas pelo fato de que ela é produzida de certo

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sobre o real, elisão da necessidade. É a incerteza, a dúvida, produto da diferenciação, da separação e da ruptura. O direito positivo é essa contingência alçada ao plano normativo.

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O OBSTÁCULO EPISTEMOLÓGICO DA CONTINGÊNCIA NORMATIVA. CIÊNCIA E TEORIA DO DIREITO

O século XIX assinala para a epistemologia jurídica uma grande ruptura com o passado. A filosofia não é mais contextual ao Direito. O universo do discurso jurídico apresenta-se autônomo e deve ser pensado, a partir de agora, apenas em sua autonomia. Desvinculado da lei da natureza, o Direito gera para epistemologia o problema da natureza da lei, de sua contingência. Agora, o Direito se apresenta somente como forma: certamente não como forma de ação justa, mas como forma de ação positivamente válida. O interesse pela busca da verdade é substituído pelo interesse pela busca de soluções dos problemas conexos à produção dessa forma e à sua legitimação. O problema da verdade não é mais colocado pelo direito positivo: não se trata mais de uma questão científica, mas, agora, ideológica. A verdade não é contingente, e a não contingência entendida como verdade normativa da razão não encontra espaço na epistemologia do direito positivo. A epistemologia jurídica deve se reestruturar. Inicia-se, assim, um processo de reconstrução da sua noção de sistema. Esse processo será modo, que, em última análise, é determinado por uma norma fundamental pressuposta. Por isto – e apenas por isto – tal norma pertence ao ordenamento jurídico fundado sobre esta norma fundamental. Em outras palavras, o direito pode ter qualquer conteúdo” (KELSEN, La dottrina pura del diritto…, p. 222). Contingente é a normatividade que vale porque está posta no interior de um ordenamento jurídico que se funda sobre um princípio de validade formal, relativo aos atos de positivação. Tal normatividade pode ser infinitamente variada porque não deriva da necessidade do postulado da validade sobre o qual se funda o ordenamento. Por outro lado, a contingência é experimentada pelos destinatários como normatividade, como dever ser que pode mudar, como possibilidade, e não como necessidade. Se fosse vinculada ao princípio da necessidade, a normatividade não poderia se apresentar, nem vir a ser experimentada como contingente, mas sim como verdade necessária. Nas palavras de Luhmann, “em sua validade e em seus traços essenciais, o direito vem representado como verdadeiro” (LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 185). Para o problema filosófico da contingência e para sua importância teórico-jurídica cf. idem, p. 31 ss.; Id, Rechtstheorie im interdisziplinären Zusammenhang. In: “Anales de la Catedra Francisco Suarez”, 1972, 12, I, pp. 201-53 (211 ss.); Id., Funktion der Religion..., p. 182 ss.

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longo e alcançará, com dificuldades particulares, sua organização. Vejamos de que modo. O obstáculo é a contingência. A epistemologia pode superá-lo se conseguir construir um modelo no qual a contingência apareça como existência que retira sua validade do fato de ter sido posta, mas, ao mesmo tempo, apresente-se como verdade normativa não contingente da “razão jurídica”. A razão jurídica é o conjunto de sentidos que se realiza no sistema jurídico. É o sentido que guia as seleções normativas operadas sobre a realidade e que é apresentado como fundamento das escolhas praticadas no universo do possível. É, ainda, o sentido que é colocado como subjetividade da regulação jurídica e que oculta a racionalidade objetiva das relações sociais de produção25. Esse conjunto de sentidos, que se legitima por uma referência ideológica externa, depreende-se e explica-se no processo de produção das qualificações normativas. O processo que conduz ao ato de pôr o Direito é, também, processo de institucionalização desse sentido. O Direito apresenta-se como concretização institucionalizada desta unidade de sentido. O Direito é válido, todavia, não porque exprime tal conjunto de sentidos, mas porque é posto. Sua validade torna-se, portanto, contingente: o sistema jurídico é essencialmente contingência normativa. Mas, como concretização da unidade de sentido assumida e expressa no sistema, o Direito é continuamente subtraído da contingência e remetido ao valor definido pela razão jurídica. Essa relação, ainda que estabelecida a partir do sistema, deve ser suposta como não contingente. Desse modo, o Direito pode fazer nascer da contingência normativa não contingência e valor, como relação estabilizada de unidade de sentido. Pode manter, porém, da mesma forma, a validade ligada à positividade, isto é, à contingência. Pode, enfim, afirmar sua autonomia. A autonomia é um requisito puramente formal, mas essencial à positividade do Direito. O sistema jurídico é autônomo no plano 25

Na produção da unidade de sentido, essas relações são separadas e imunizadas. É um processo que se constrói sobre uma inversão real: assim como as relações sociais se isolam em relação dos sujeitos produtores e se tornam abstratas e iguais, de modo a dominá-los como formas objetivas, também a abstração jurídica, determinada por aquelas relações, e constituída pela indiferença objetiva, isola-se, destaca-se do universo que a produz e cria a aparência de sua independência e autonomia. Ela se põe como cristalização de um sentido, como projeto, como razão da organização jurídica da sociedade; como força de valores: liberdade, igualdade, democracia. Uma vez independente, a abstração jurídica reproduz a estranheza e a objetividade das relações sociais. Petrifica-se na forma do domínio. Realiza, assim, a liberdade e a igualdade formais dos sujeitos pelo domínio e controle da instância material, isto é, pela separação do concreto e anulação dos sujeitos na igualdade indiferente de suas projeções jurídicas.

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formal porque contém em seu interior os princípios que regulam sua produção e reprodução, e porque esses princípios também são jurídicos, isto é, postos. Apenas com base em sua autonomia formal, o direito pode apresentar as abstrações jurídicas como seleções normativas operadas no universo do possível e apresentá-las, portanto, como escolhas realizadas pelo conjunto de sentidos estabelecido como razão jurídica. É um círculo; mas é o círculo em razão do qual o direito oculta a racionalidade objetiva das relações sociais de produção, das quais, na realidade, ele nasce. A epistemologia jurídica, dizíamos, pode superar o obstáculo da contingência se conseguir predispor de instrumentos de legitimação da própria contingência nos dois níveis aqui indicados. Por isso, ela constrói dois sistemas separados: o da teoria do direito e o da ciência do direito. O primeiro deve executar essencialmente duas funções: (i) elaborar hipóteses sobre o direito, partindo do fato de que a validade do direito positivo é ligada à contingência, e (ii) legitimar a contingência como relação não contingente de sentido e valor. O segundo, a ciência, deverá, ao invés, construir um sistema de direito positivo no qual se organize a racionalidade interna para a contingência, ou seja, no qual a contingência seja colhida e exposta de maneira a se articular segundo uma estrutura unitária, orgânica, da qual surja a coerência interna do direito positivo. Teoria e ciência do direito seguiram desenvolvimentos diferentes. Em primeiro lugar, organiza-se o sistema da ciência, que se afirmará sobre a conversão metodológica operada por Savigny e aprofundada por Puchta e Jhering. Esta consiste na fundação do sistema sobre a positividade, ao invés de, como anteriormente, sobre a verdade. A ciência pode, assim, transformar-se em pura metodologia e liberar-se do problema teórico da verdade e do valor. A ciência coloca-se diante do sistema jurídico como um aparato externo capaz de regular a disciplina segundo um princípio formal de racionalidade, válido de qualquer forma, neutro em relação à contingência normativa e independente das suposições subjetivas de valor sobre as quais se sustenta a variabilidade das hipóteses normativas. Porém, a conversão metodológica constitui-se com base na ruptura da unidade entre conhecimento e produção da norma, e afasta coerentemente – conforme o postulado da contingência – a teoria como sistema interno de legitimação do direito justo. Não elimina, mas apenas evita o problema da teoria: o conhecimento do direito. A metodologia descarta o problema gnoseológico, gerando a seguinte consequência: não dispondo de uma teoria específica da contingência normativa, não dispõe também de um aparato de legitimação da positividade no plano da con-

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tingência, e, consequentemente, vê arranhados os pressupostos epistemológicos sobre os quais ela mesma é construída. Por isso, não obstante efetue a conversão metodológica, a epistemologia jurídica deverá recorrer a instrumentos de legitimação que, ancorando a contingência em uma necessidade externa ou em princípios ou instâncias normativas, coloquem-se em contradição com a própria conversão metodológica. A ciência jurídica, todavia, construirá seu modelo metodológico com um rigor cada vez mais profundo e uma consciência cada vez mais clara. Entretanto, paralelamente, as dificuldades que derivam da elisão do problema teórico serão cada vez mais evidentes. Enquanto a contingência legitima a conversão metodológica, a ciência não dispõe de um aparato teórico capaz de elaborar hipóteses sobre o direito a partir da contingência. E, portanto, recorrerá à tautologia jusnaturalista de uma concepção de ciência como produtora do direito, de uma ciência capaz de legitimar o direito produzido, atribuindo-lhe o caráter de necessidade. Mas a metodologia não pode produzir senão o que está contido nas premissas, e a necessidade lógica, ou conceitual, não é pressuposto da positividade, se esta é entendida como produto de uma seleção. Somente Kelsen desatará o nó teórico da epistemologia jurídica e construirá uma teoria do direito, um sistema autônomo de hipóteses sobre a contingência jurídica desenvolvido com base no pressuposto da validade como existência da norma. Kelsen resgatará, assim, no plano teórico, a autonomia do sistema jurídico. Porém, guiado pelo preconceito epistemológico da pureza da própria teoria, não compreenderá que a autonomia é uma conquista ideológica do direito, que serve para ocultar, invertendo, o processo real de produção da abstração jurídica. Sua teoria conseguirá legitimar o direito como forma posta, como validade formal, mas não conseguirá legitimar o direito como concretização de sentido da razão jurídica26. Todavia, a conquista epistemológica de Kelsen assinala um ponto decisivo na história do pensamento jurídico. Kelsen esclarece que a atividade científica sobre o direito deve ser voltada para o plano puramente metodológico, como explicação da racionalidade interna ao direito; que o direito como contingência deve ser pensado por uma teoria capaz de pensar a autonomia do sistema jurídico partindo da identificação entre existência e validade. Entretanto, ele para aqui. Sua conquista constituirá 26

Kelsen, assim, não conseguirá enfrentar o problema da estabilização do sistema do direito positivo, que decorre da concepção do ordenamento jurídico como sistema dinâmico.

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o ponto de partida de toda a reflexão posterior sobre o direito. Esta adotará o postulado da contingência, mas se voltará contra Kelsen, pois, ao mesmo tempo, supõe a centralidade da teoria como pensamento legitimante da contingência, fazendo referência à razão jurídica. A consciência da necessidade de uma legitimação teórica do direito surgirá como consequência do desenvolvimento do “lado ruim” da contingência jurídica, na forma da degeneração nazista e fascista do direito. Depois de uma passageira involução metafísica, na qual a reflexão sobre o direito será condicionada pelo medo da positividade – sem dúvida, justificado pelos acontecimentos –, a epistemologia jurídica na Alemanha se reorganizará exclusivamente em torno da reflexão teórica, negligenciando o problema da ciência, já que a conversão metodológica será considerada uma aquisição já estabilizada em sua constituição, dado que as dificuldades iniciais eram de natureza apenas ideológica, não científica. O objetivo deste trabalho é seguir as estratégias da epistemologia jurídica. Estas se dispõem sobre duas grandes vertentes, das quais se depreende um desenho unitário de legitimação do direito positivo: a primeira passa pela conversão metodológica, como se articula de Savigny a Kelsen, e enfoca a afirmação da positividade do direito como contingência normativa. A segunda passa pela conversão teórica, operada na Alemanha, com base na intuição kelseniana da centralidade da teoria, nos últimos dez anos27. De fato, se a necessidade da fundação teórica já havia sido advertida nos anos 1950, a epistemologia jurídica só conseguirá se organizar recentemente e em estreita relação de dependência com a epistemologia das ciências sociais. Sob o influxo desta última – na sombra do profundo debate desenvolvido na Alemanha nos anos 1960 e 1970 – a epistemologia jurídica se libera das complicações da involução metafísica do pós-guerra e consegue realizar seu projeto teórico. Este trabalho não pretende apresentar nem uma reconstrução histórica da epistemologia jurídica, nem uma análise das ideologias do direito positivo. Ele parte da hipótese de que a epistemologia jurídica é estratégia global de legitimação da contingência normativa e pretende verificar historicamente esta hipótese. 27

O autor está se referindo ao final da década de 1960 e aos anos 70. Lembrar que a primeira edição deste livro foi publicada na Itália em 1979 e a versão alemã, com o título Wahrheit und Legitimation im Recht. Ein Beitrag zur Neubegründung der Rechtstheorie [Verdade e legitimação no direito. Uma contribuição para o restabelecimento da teoria do direito], foi publicada em Berlim em 1980. [Nota do Revisor – N.R.].

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Mas, no curso desta verificação, esclarece-se o sentido da própria contingência normativa, o sentido do “projeto jurídico burguês”. Este se revela como sistema de mediação que regula coercitivamente “as formas de intervenção subjetiva sobre a base material”, como “síntese das formas de domínio e exploração”28, isto é, como sistema de repressão da instância material. Nesse sentido, a contingência normativa se revela a si própria como estratégia global, como projeto repressor da sociedade burguesa. Esta operação estratégica dúplice transparece na obra de Kelsen, que conclui o esforço epistemológico iniciado por Savigny e levado adiante por Puchta e Jhering. Por outro lado, a formulação dos novos termos que a estratégia repressiva deve assumir e sua completa reestruturação orgânica são alcançadas por Luhmann, que constrói a teoria do direito como teoria da repressão do direito positivo no sistema social. O debate sobre a epistemologia jurídica que se desenvolve nos anos 1970 na Alemanha é particularmente significativo, porque mostra os esforços que, inutilmente, o pensamento jurídico burguês empregou na tentativa de elaborar um longo percurso no qual a estratégia de legitimação do sistema jurídico pudesse coerentemente se articular. É da falência desses esforços que emerge, com toda sua carga, o empreendimento teórico de Luhmann, e a necessidade de se confrontar com seu pensamento, sem cair, como infelizmente aconteceu com o pensamento de Kelsen, em juízos sumários e apressados, que comportam apenas o risco de enfraquecer os instrumentos críticos e de reprimir a luta política contra o pensamento da repressão. Refletir sobre a epistemologia jurídica é, nesse momento, uma tarefa política inevitável, já que a crítica do direito é possível somente se a crítica da ciência conseguir isolar, no interior do projeto jurídico burguês, o projeto repressor da instância material e revelar a razão jurídica como unidade de sentido na qual se determina a racionalidade objetiva das relações sociais de produção29.

28 29

Cf. BARCELLONA, La Repubblica in transformazione…, p. 15 ss. Cf. idem, p. 32: “A mediação legislativa é o ponto de interseção e convergência de todas as formas de mediação. É a forma condensada das relações sociais de produção, já que por meio dela se manifesta o específico (meio de) funcionamento do modo de produção; a síntese das formas de dominação e de exploração, de produção e de reprodução, de produção e de circulação (das relações inerentes à produção e das relações inerentes à circulação)”.

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Primeira Parte A CIÊNCIA

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1 SAVIGNY E A CONVERSÃO METODOLÓGICA 1

HISTÓRIA, SISTEMA E FILOSOFIA

Segundo Schönfeld, a ciência jurídica moderna começa com Friedrich Carl von Savigny30. Wieacker chama Savigny de “príncipe da ciência”31. O próprio Savigny não hesitava em crer, ainda jovem, ser capaz de realizar, no âmbito da ciência jurídica, a revolução que Kant havia realizado no âmbito da filosofia32. O jovem Marx, ao contrário, em um breve escrito contra Hugo, criticou duramente a escola histórica, que tinha em Savigny sua maior expressão, e a definiu como “o único produto frívolo do século XVIII”33. Segundo Wiethölter, a ciência do direito de Savigny delineou a face do direito burguês moderno34. 30

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SCHÖNFELD, W. Grundlegung der Rechtswissenschaft, Kolhammer, StuttgartKöln 1951 (segunda edição inteiramente revista de Die Geschichte der Rechtswissenschaft im Spiegel der Metaphysik, Stuttgart-Berlin 1943), p. 491 e 431 ss. WIEACKER, Op. cit., p. 383 e 381 ss. Com ampla bibliografia; Id., Gründer und Bewahrer. Rechtslehrer der neueren deutschen Privatrechtsgeschichte, Vandenoeck und Ruprecht, Göttingen 1959. p. 107 ss.; Id., Wandlungen im Bilde der historischen Rechtsschule. Karlsruhe: Müller, 1967. p. 12 ss. Cf. MARINI, G. Savigny e il metodo della scienza giuridica. Milano: Giuffrè, 1965. pp. 133 ss. MARX, K. Il manifesto filosofico della scuola storica del diritto. In: FIRPO, L. (Org.). Scritti politici giovanili. Torino: Einaudi, 1950. p. 157-68 e p. 157; cf. JAEGER, H. Savigny et Marx. In: “Archives de Philosophie du Droit”, 1967, tomo XII, pp. 65-89; R. Guastini, Marx: dalla filosofia del diritto alla scienza della società. Bologna: Il Mulino, 1974. p. 59-70; para uma ampla (e particular) análise da relação Marx-Savigny, cf. PAUL, W. Marxistische Rechtstheorie als Kritik der Rechts. Intention, Aporien und Folgen des Rechtdenkens von Karl Marx – eine kritische Rekonstrution. Frankfurt a. M.: Athenäum, 1974. p. 43-84. WIETHÖLTER, Op. cit., p. 176 e p. 176-81.

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Mesmo que sua concepção do direito estivesse enraizada no “espírito frívolo” do século precedente, sem dúvida Savigny operou uma ruptura com o passado35. Essa ruptura é de natureza puramente epistemológica e consiste na consciência de que a tarefa da ciência é a organização da matéria jurídica dada em um sistema expositivo no qual os princípios do direito positivo36 constituam premissas das quais são derivadas as 35

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Sobre Savigny e a escola histórica ver, além dos trabalhos citados nas notas 1-5, WILHELM, Op. cit., p. 17-69; Id., Savignys überpositive Systematik, Phi losophie und Rechtswissenschaft..., p. 123-36, e a discussão sobre a contribuição de Wilhelm, idem, p. 137-47; GMÜR, R. Savigny und die Entwicklung der deutschen Rechtswissenschaft. In: Schriften der Gesellschaft zur Förde rung der Westfälischen Wilhelm Universität zu Münster, 1962, H. 49; KUNKEL, W. Savignys Bedeutung für die deutsche Rechtswissenschaft und das deutsche Recht. In: Juristenzeitung, 1962. p. 447 ss.; THIEME, H. Savigny und das deutsche Recht. In: Zeitschrift der Savigny-Stiftung für Rechtsgeschichte. Abteilung: Germanistische, 1963. 80, p. 1 ss.; ORESTANO, R. Intro duzione allo studio storico del diritto romano. Torino: Giappichelli, 1963. p. 204 ss.; SOLARI, G. Filosofia del diritto privato, v. I, Storicismo e diritto privato. Torino: Giappichelli, 1971. p. 18 ss.; LARENZ, K. Methodenlehre der Rechtswissenschaft. Berlin-Heidelberg-New York: Springer, 1975. p. 11-9 [tr. it. S. Ventura, Storia del metodo nella scienza giuridica. Milano: Giuffrè, 1960]; DILCHER, G. Der wissenschaftliche Positivismus.Wissenschaftliche Methode, So zialphilosophie, Gesellschaftspolitik. In: Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, 1975, LXI, 4, p. 497-526; FIKENTSCHER, W. Methoden des Rechts in vergleichender Darstellung, v. III, Mitteleuropäischer Rechtskreis. Tübingen: Nohr, 1976. p. 41-77; SCHRÖDER, J. Savignys Spezialistendogma und die «soziologische Jurisprudenz. In: Rechtstheorie, Bd. 7, Heft 1/2, 1976, p. 23-52. Em Savigny, esta expressão tem certa ambigüidade na medida em que pesa sobre ela a duplicidade particular presente em toda concepção jurídica savigniana. Na Juristische Methodenlehre (editada por G. Wesenberg, segundo elaboração de J. Grimm Koehler, Stuttgart 1951), Savigny identifica o direito positivo com a lei e na construção do sistema se mantém fiel, coerentemente, ao postulado da contingência das escolhas normativas isoladas através da lei. Consideremos as seguintes afirmações: “O escopo da ciência do direito, portanto, é o seguinte: expor historicamente a função legislativa de um Estado” (p. 13); “o conteúdo do sistema é a legislação, portanto, as proposições jurídicas” (p. 37). No System des heutigen römischen Rechts, Scientia, Aalen 1973 (reimpressão da edição Berlim 1840), ao contrário, esta identificação parece desaparecer, enquanto Savigny se esforça em esclarecer a diferença entre direito e lei, e em identificar coerentemente o papel do Estado. Aqui, o direito positivo é assim definido: “Pode-se supor que o direito tenha origens muito diversas, do influxo do caso, do arbítrio humano, ou da reflexão e da sabedoria. Mas esta hipótese é imediatamente refutada pelo fato indubitável de que sempre que está em questão uma relação jurídica, e onde esta emerja à consciência, existe já uma regra, de modo que decobri-la agora não é nem necessário e muito menos possível. A esta propriedade do direito geral, com base na qual sempre já há uma existência real como um dado, chamamos direito positivo” (v. I, p. 134). Portanto, positivo é o direito que existe no povo, independentemente de ser ou não expresso mediante uma lei: direito e lei são dois fenômenos não

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abstrações jurídicas singulares. A tarefa da ciência é, portanto, explicar a racionalidade interna do direito positivo. O grande mérito de Savigny é a aquisição dessa consciência. Ele percebe que o objeto da ciência são as escolhas normativas existentes em uma dada sociedade, mediadas pela referência formal ao Estado. Todavia, Savigny não consegue desenvolver com coerência as consequências implícitas na conversão metodológica que ele mesmo impõe à ciência jurídica, nem os pressupostos que, por sua vez, legitimam esta mesma conversão metodológica. E, de fato, se, por um lado, sua intuição o leva a considerar o trabalho científico como pura metodologia da explicação sistemática da racionalidade interna à seleção normativa, por outro, ele não chega a elaborar uma teoria da positividade do direito capaz de legitimar com precisão o direito como contingência normativa. Ou seja, capaz de pensar a categoria da juridicidade a partir do seu fundamento de validade pressuposto pela ciência entendida como metodologia. É forçanecessariamente correlatos. Mais tarde, porém, a lei é definida como “órgão do direito do povo” (idem, p. 39); o legislador como “o verdadeiro representante do espírito do povo” e o Estado como “formação corpórea da comunidade espiritual do povo”, na qual apenas “o povo adquire a verdadeira personalidade, isto é, a capacidade de agir” (idem, p. 23). O Estado, que entre suas tarefas mais nobres tem a de conferir ao direito positivo uma “existência visível externamente”, de formular o direito através da linguagem, e de dar-lhe poder absoluto, tem ele mesmo, como o direito, sua origem em uma “necessidade interna, em uma força construtiva que parte do interior”, de modo que “a produção do Estado é uma espécie de produção do direito, é o grau em absoluto mais alto da produção do direito” (idem, p. 22). Em relação ao direito ‘positivo’, o Estado é, essencialmente, órgão de mediação que confere a ele o caráter da juridicidade sobre o qual se funda a validade do direito ‘positivo’ já existente: “Todo o direito, em absoluto, adquire sua realidade e obtém sua realização apenas no Estado, como direito positivo deste Estado” (idem, p. 380). A consequência que se pode tirar provisoriamente é a seguinte: prejudicada a origem do direito e a referência, no plano genético, a qualquer instância exterior necessitante, a referência formal ao Estado é constitutiva da juridicidade do ‘direito positivo’. Mas esta referência necessária confere às escolhas o caráter da contingência, na medida em que o caráter da juridicidade deriva “do arbítrio do legislador”. Mas é justamente isto que Savigny quer evitar. Ele quer desvincular o direito positivo “do caso e do arbítrio individual”, assim atribui ao direito o caráter da necessidade natural e ao Estado a tarefa de “tornar dominante no mundo visível a ideia de direito” (idem, p. 25). Isto o permite desvincular a normatividade da contingência. Porém, quando tem que construir a categoria da juridicidade, como postulado da ciência jurídica não jusnaturalista, é obrigado a abandonar o pressuposto terreno ‘natural’ e ‘organicistico’ e a assumir, pela referência formal ao Estado, o caráter jurídico, ou seja, contingente, das escolhas normativas, como único epistemologicamente relevante. Aqui, a expressão ‘direito positivo’ é usada apenas no sentido implícito da conversão metodológica operada por Savigny, e não no sentido indiferenciado de escolhas normativas originárias e privadas de mediações presentes em uma dada sociedade.

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do, por isso, a recorrer a uma fundamentação metajurídica do direito, ligada a um processo necessário, externo à própria juridicidade. Savigny termina, assim, por buscar a legitimação da contingência na necessidade. Todavia, esta incapacidade teórica e a contradição que surge a respeito das suposições implícitas nas premissas metodológicas da ciência, mesmo que tornem evidente uma profunda lacuna e manifestem instabilidade e incoerência no seu pensamento, não prejudicam o sentido e a conquista da conversão metodológica operada por Savigny. Esta constitui, para usar uma velha metáfora, o núcleo racional do seu empreendimento. A membrana mística que envolve esse núcleo é, sem dúvidas, como dizia Marx, o “espírito frívolo” do século XVIII. A ciência do direito, para Savigny, consiste na interpretação e construção científica do direito positivo: interpretação e construção científica significa histórico-sistemática. Esta é uma definição particularmente complexa, não obstante a aparente clareza dos termos aos quais recorre. “História” e “sistema”, na concepção de Savigny, têm significados precisos. Sobre a história, Savigny tem um conceito evolucionista, organicista-substancial: “As forças históricas que produzem o direito são das potências espirituais e culturais; das forças criativas do inconsciente e do subconsciente coletivo, principalmente do espírito do povo humanisticamente educado”37. Savigny vê o fluir da história como um contexto orgânico cuja continuação é inevitável, feito da alternância de gerações e épocas entre as quais se desenvolve. Desse contexto orgânico são excluídos tanto um fim quanto um início absolutos. Para o jurista, obter o sentido da história significa compreender aquilo que é próprio de cada forma do direito; e a compreensão das diferentes formas que o direito assume deve ser decisiva38, deve penetrar no espírito do qual surge a continuidade da história. O jurista compreenderá a história como história da nação, como história da vida inteira do povo, como história do “grande todo do mundo”. E, nesse todo, o direito emerge das profundezas, trazendo consigo a característica do todo que o produziu, da consciência do povo do qual nasceu. A historicidade do direito, nesse contexto, adquire um significado preciso, que Savigny formula do seguinte modo: 37

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Cfr. PAUL, Op. cit., p. 53; WIEACKER, Privatrechtsgeschichte..., p. 355 ss.; BÖCKENFÖRDE, E.W. Die historische Rechtsschule und das Problem der Geschichtlichkeit des Rechts. In: Collegium Philosophicum. Studien J. Ritter zum 60. Geburtstag. Basel-Stuttgart: Schwabe, 1965. p. 9-36 e p. 16-9. SAVIGNY, F. C. Vom Beruf unsrer Zeit für Gesetzgebung und Rechtswis senschaft. Heidelberg: Mohr und Zimmer, 1814, cit. da ed. STERN, J. Thibaut und Savigny. Zum 100jährigen Gedechtnis des Kampfes um ein einheitliches bür gerliches Recht für Deutschland. Berlin: Vahlen, 1914. p. 84.

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A escola histórica parte da suposição de que a matéria do direito é dada por todo o passado da nação, mas não do arbítrio, pelo qual aquela matéria poderia ter sido, ao acaso, diferente: ela provém da essência mais íntima da própria nação e prossegue através de sua história39.

Reconhecer a historicidade do direito significa reconhecer que a matéria jurídica é dada como uma necessidade interna, reconhecer que aquela matéria vive, faz-se jovem e mantém-se fresca no presente. O passado, de fato, vive todo no presente, como sua necessidade40: uma época não produz arbitrariamente seu mundo, mas o produz em “comunhão insolúvel com o passado”. Este mundo produzido é necessário, já que não depende de uma escolha livre praticada pelo presente em conflito com o passado. Mas, ao mesmo tempo, é livre, já que não provém de um arbítrio externo qualquer, “mas, sobretudo, emana da mais profunda natureza do povo como um todo que se desenvolve continuamente”. A época presente também é parte deste profundo espírito do povo; ela também “quer e age nele e com ele, assim como aquilo que é dado por aquele todo, pode ser tido como livremente produzido também por essa sua parte”41. Conhecimento do presente é, portanto, conhecimento histórico. A história permite chegar ao verdadeiro conhecimento do presente, já que ancora a necessidade de seu objeto na conexão orgânica do todo e de seu desenvolvimento. Savigny não aplica esse conceito de historicidade apenas ao direito, mas também à reflexão sobre o direito, à ciência jurídica. A ciência do direito, ele diz, é ao mesmo tempo história do direito42. “Todo saber relativo a algo objetivamente dado se diz saber histórico; consequentemente, o caráter da ciência da legislação deve ser inteiramente histórico”43. O direito é um dado objetivo. Objetivo significa necessário, necessariamente dado. 39

40

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SAVIGNY, F.C. von Vermischte Schriften. Berlin: bei Veit und Comp, 1850. V. I, p. 113. SCHIAVONE, Cfr. A. Storiografia giuridica e apologia del diritto moderno, in Democrazia e Diritto, XIII, 2, 1973, p. 65-86, p. 72 ss. SAVIGNY, Vermischte Schriften..., v. I, p. 110-1. Idem, v. V, p. 2. SAVIGNY, Juristische Methodenlehre..., p. 14. Ver as considerações sobre a identificação entre lei e direito na nota 7; cfr. sobre os problemas relativos à posição da Methodenlehre no desenvolvimento do pensamento de Savigny, o trabalho interessante de Marini, op. cit., nota 4.

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Qual é, portanto, a tarefa da ciência histórica do direito? Ela consiste em procurar, em estabelecer, no interior daquilo que é dado, um princípio orgânico; em colocar em evidência, pela interpretação, os princípios fundamentais dominantes44. A historicidade do direito é reconstruída pela ciência jurídica e pensada na sua necessidade interna por meio da atividade filológica. A existência livre e a autonomia da vontade do indivíduo, como também a exclusão do arbítrio da vontade, princípios necessários à mediação jurídica, encontram reconhecimento e expressão pela referência ao Estado. Este dado objetivo e necessário é colhido pelos juízes pela atividade de pura interpretação lógica: “Esse fato, precisa Savigny, está contido na expressão: a jurisprudência é ciência puramente filológica”45. No entanto, a filologia não exaure o momento da historicidade do objeto da ciência. E, de fato, se a ciência jurídica afirma-se como ciência histórica, ou seja, consegue reunir a necessidade que se exprime no direito por sua atividade filológica específica, é apenas devido ao seu caráter sistemático que a ciência consegue ordenar, na conexão orgânica do “todo”, os dados históricos adquiridos pela atividade filológica. Por meio da atividade sistemática, a história não se manifesta como mera coleção de exemplos, mas como um todo, cientificamente reproduzível em sua necessidade, que se exprime na formação jurídica do presente. Mas sistematicidade é, ao mesmo tempo, filosofia. Na reconstrução sistemática, o dado, o objetivo, não se representa na multiplicidade de suas manifestações, como uma simples teia, como “um tranquilo agregado de matérias”: por meio do sistema, produz-se a unidade e a organicidade de suas conexões internas. É em virtude desse processo de reconexão orgânica que “o singular, que na reflexão filosófica é reconhecido como singular, na reflexão sistemática é pensado, ao mesmo tempo, como um todo” e que agora “toda visão sistemática da jurisprudência pode ser decomposta em seus elementos”46. Interpretação e filosofia, exegese e sistema: são estas tarefas que definem a cientificidade da ciência histórica do direito. Descoberta a relevância do sistema para a ciência jurídica, o kantiano Savigny47 abre caminho para a consideração metodológica como 44

45 46 47

SAVIGNY, Vom Beruf unsrer Zeit..., p. 84. “Sentir estes princípios e reconhecer, partindo deles, a conexão interna e as relações entre todos os conceitos e posições jurídicas, tudo isto pertence às difíceis tarefas da nossa ciência; é esta tarefa que confere ao nosso trabalho o caráter científico”. SAVIGNY, Juristische Methodenlehre..., p. 15. Idem, p. 16. Cfr. WILHELM, Savignys überpositive Systematik..., p. 119 ss.; MARINI, Op. cit., p. 117 ss.

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fundamento filosófico da ciência histórica do direito, e fornece um perfil daquilo que entende por metodologia da elaboração sistemática do direito. O sistema é o medium que dá forma àquilo que no direito é dado em sua imediatez. Neste, é elaborado o conteúdo do “todo”, não a imediatez do dado particular. Ao “todo”, a este conteúdo, o sistema fornece mediação lógica, a forma que Savigny, na Methodenlehre, chama de “condição lógica do conhecimento de todos os conteúdos da legislação”48. O sistema é a determinação formal que reconduz o agregado aparente de dados separados à concretização orgânica, que é, para Savigny, substância da história. O sistema, como resultado final de um conjunto de operações cuja cientificidade depende exclusivamente de sua capacidade sistemática, exaure o processo de determinação formal do separado, e de sua tradução lógica, na concretude do “todo”: “A forma é a sistemática”, escreverá Savigny no Prefácio do seu System49, e explicará: Eu coloco a essência do método sistemático no conhecimento e na exposição da conexão interna ou das afinidades mediante as quais os conceitos jurídicos singulares e as regras do direito vêm coligados em uma grande unidade. Essas afinidades, antes de tudo, são muitas vezes escondidas, e sua descoberta enriquece, portanto, nossa compreensão.

De maneira exemplar, Savigny, resume assim a essência do método sistemático em uma fórmula que, com justiça, tornou-se famosa. O conteúdo do sistema, escreve Savigny, é o direito, a legislação: mais propriamente, as proposições jurídicas50. O conhecimento das proposições jurídicas, consideradas singularmente ou em sua conexão interna, realiza-se por meio da forma, que é forma lógica: o conhecimento é possível somente pela mediação lógico-formal e da tradução lógico-formal dos conteúdos originários do direito expressos pelas proposições 48

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SAVIGNY, Juristische Methodenlehre..., p. 37. No System Savigny escreve: “Se nos perguntarmos qual é o conteúdo da lei, perceberemos que este é determinado pela derivação do poder legislativo: o direito do povo é este conteúdo, ou a lei é o órgão do direito do povo” (v. I, p. 39). SAVIGNY, System..., v. I, Vorrede, p. XXXVI. Cfr. a nota 19, da qual resulta claramente a relação entre “direito do povo” e proposição jurídica. A ciência opera, pelo sistema, com as abstrações expressas nas proposições jurídicas. Escreve Wilhelm que a Methodenlehre de Savigny revela-se como teoria “de uma ciência positiva na medida em que considera como seu objeto, como matérica empírica, apena as leis dadas, excluindo todas as proposições do direito natural” (Savignys überpositive Systematik..., p. 125) e precisa (idem, p. 126) que o conceito de sistema elaborado na Methodenlehre é o mesmo que Savigny desenvolverá no seu System.

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jurídicas. A atividade da ciência jurídica consiste na construção lógica do sistema de proposições jurídicas: o conhecimento científico é, portanto, conhecimento das conexões orgânicas, isto é, lógicas, que podem ser estabelecidas dentro do sistema. Tudo aquilo que é formal deve, agora, desenvolver a determinação das proposições jurídicas singulares – em geral, estas se denominam definições ou distinções – ou deve ordenar o vínculo que existe entre muitas proposições e suas conexões. A isso se denomina, em geral, sistema em sentido próprio51.

O sistema como recomposição orgânica, como redução, à unidade lógica, da multiplicidade e do agregado historicamente dado em sua necessidade, como produto acabado da atividade científica que foi iniciada pela filologia, remete a uma unidade, a um todo, a um ideal, sobre o qual se funda. A descoberta desse ideal é obra da filosofia: “Todo sistema leva à filosofia”, conclui Savigny52. A identificação da continuidade e da presença da história no direito, da insuperável necessidade do passado que vive na matéria jurídica, a conexão orgânica dessa matéria operada no sistema, a descoberta da necessidade interna de um ideal subjacente que guia a operação lógica de colheita do material jurídico separado, tudo isso é, substancialmente, resultado de uma atividade filosófica. Uma atividade que informa a própria construção sistemática, que a organiza, orientando seu trabalho. O sistema, então, é, em substância, o resultado de uma atividade filosófica em torno das fontes do direito53, de uma atividade que busca unificar no presente a existência não orgânica, mas necessária, do passado: uma colheita de documentos reduzidos a uma unidade ideal.

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A CONVERSÃO METODOLÓGICA

História e sistema são os instrumentos dos quais a reflexão científica se serve para elevar o direito positivo a um patamar filosófico. A 51 52 53

SAVIGNY, Juristische Methodenlehre..., p. 37. Idem, p. 48. Chamamos de fontes do direito os fundamentos dos quais nasce o direito geral: tanto os institutos jurídicos, quanto as proposições individuais construídas por abstrações a partir deles (SAVIGNY, System..., v. I, p. 11). Das fontes do direito, Savigny exclui o costume, que é “o caráter distintivo do direito positivo, e não o fundamento do qual o direito positivo nasce” (idem, p. 35).

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jurisprudência que Savigny constrói permanece ciência da positividade do direito, e também eleva ao patamar filosófico o agregado sobre o qual trabalha. De fato, esta elevação ao patamar filosófico não passa de uma consequência imanente à relação que se estabelece entre a ciência e a positividade que ela pretende explicar. A positividade é ponto de partida e de chegada da reflexão científica: a pesquisa histórica que fornece a matéria jurídica não é outra coisa que atividade filológica, estudo das fontes, que serve para demonstrar que o presente, enquanto continuação do passado, é necessário, objetivo, como diz Savigny, e não é sujeito nem ao acaso nem ao arbítrio. A operação sistemática na qual se exaure a atividade científica recolhe, ordena e expõe a matéria dada na desagregação originária. Esse fato tem duas consequências importantes. A primeira é a seguinte: já que o direito positivo, pela construção do sistema, recebe “uma nova vida orgânica, que reage construtivamente sobre a própria matéria”54, as operações que levam àquela construção apresentam-se como atividade formadora, como atividade produtora do direito. O direito positivo aparece, assim, também como produto da atividade científica. A outra consequência é a seguinte: a epistemologia se reduz a metodologia da construção do sistema. A filosofia à qual todo sistema leva não tem nenhuma função epistemológica no interior da ciência. Esta legitima apenas as operações científicas que, a partir de uma série de dados separados, alcançam a conexão orgânica do todo. A teoria da ciência não é outra coisa que metodologia. É descrição das operações que permitem unificar a matéria jurídica já existente. A filosofia intervém para legitimar a unidade do sistema – que é unidade lógica, formal – como unidade orgânica. O processo inteiro no qual se resume a ciência histórico-sistemática do direito, portanto, parte da positividade do direito em sua forma diferenciada, o recompõe organicamente em sua forma concreta pelo filtro lógico das proposições jurídicas construídas, até produzir um sistema do direito: esse sistema é, na realidade, apenas a concretização lógica das abstrações que alcança a atividade científica. Ele aparece como conexão orgânica que foi realizada pela filosofia, partindo – como veremos analiticamente nas páginas que seguem – de dados puros da intuição. O misticismo e o caráter “frívolo” da escola histórica – para usar mais uma vez a expressão do jovem Marx – consistem propriamente no seguinte: o ponto de partida, o dado da intuição, não é outra coisa que o positivo já dado, mas tido como ponto de chegada que a construção sistemática deve alcançar e em direção ao qual a filosofia deve orientar a atividade científica. 54

Idem, p. 46.

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Podendo produzir também apenas conexões lógicas, a metodologia recorre à filosofia, que valora estas conexões como conexões ideais orgânicas, e alcança, assim, um ponto de chegada que, na realidade, preexiste à construção sistemática, e também, agora, aparece recuperado somente por meio dessa construção: é o círculo de uma metodologia à qual falta uma teoria do objeto, que elide o problema teórico do direito: o problema da própria positividade. O direito, como concretização lógica produzida no sistema, não pode ser legitimado por uma metodologia que reduz o múltiplo da unidade sistemática. A legitimação pode vir com base em uma fundação teórica da autonomia do múltiplo positivo ou com base em uma fundação filosófica de sua dependência. Savigny segue este último caminho. Essa escolha, todavia, funda-se sobre uma consciência epistemológica falsa e sobre a consequente preferência por uma estratégia de legitimação que é contraditória diante da, diferentemente, clara consciência metodológica adquirida por Savigny. Ele tem consciência de que a validade do direito não é um atributo imanente à matéria jurídica, mas depende da referência das relações materiais ao Estado, como única instância capaz de juridicizar aquelas relações, isto é, de conferir-lhes forma jurídica. E, portanto, tem consciência de que a juridicidade das relações as qualifica como formas postas, contingentes; que a intuição é um processo aparente porque acontece a posteriori no que diz respeito à prioridade lógico-histórica pertinente ao fato de sua positividade; isto é, que a intuição é intuição de uma existência já posta como válida. Vejamos como Savigny constrói o sistema do direito positivo.

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A CONSTRUÇÃO LÓGICA DO SISTEMA

O ponto de partida na construção sistemática do direito é o instituto55. O instituto é um dado da intuição. O instituto jurídico é um complexo unitário, rico em significado e mutável no tempo, de relações humanas consideradas típicas; ele, como tal, não pode mais ser representado de maneira exaustiva mediante a soma das regras jurídicas singulares que a ele se referem. Os institu55

Cfr. COING, H. Rechtsverhältnis und Rechtsinstitution im allgemeinen und internationalen Privatrecht bei Savigny, in Eranion in Honorem G.S.Maridakis, Panepistémion, Nomiké Sholé-Epetéris, Athens 1964, v. III, p. 19-28; WILHELM, Savignys überpositive Systematik..., p. 126- 36; id., Zur juristischen Methodenlehre..., p. 47-53; LARENZ, Op. cit., p. 13-6.

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tos jurídicos não resultam do resumo das regras jurídicas, mas são, antes, as regras jurídicas, que, como observa Savigny, vêm extraídas (p. 16) da “visão total” dos institutos jurídicos (“em sua conexão orgânica”), antes de tudo mediante uma “abstração” (p. 11), mediante um “processo artificial”. As regras, portanto, ao prescindirem de cada transfiguração e elaboração conceitual, conservam “sua base mais profunda na intuição dos institutos jurídicos” (p. 9)56.

O instituto tem uma natureza orgânica e sua essência íntima funda-se na sua conexão orgânica com a essência do homem, à qual é inerente57. A regra do direito, extraída por abstração da “visão total” do instituto, não é outra coisa que um limite posto à vontade na relação de um indivíduo com o outro: a regra determina a relação jurídica como relação entre pessoas. E essa determinação consiste na atribuição, à vontade individual, de um setor no qual a vontade “pode dominar independentemente de todo valor estranho”58. O princípio do domínio, portanto, constitui o pressuposto da relação jurídica e exprime, ao mesmo tempo, sua característica fundamental59. Em toda relação jurídica é possível isolar um elemento material, que é a própria relação, e a determinação jurídica, que é o elemento formal da relação. Assumidas essas considerações de Savigny, coloca-se o problema de quais são as relações jurídicas possíveis, um problema de natureza puramente lógica que ele pode resolver partindo das determinações formais que acabou de fornecer. E, de fato, Savigny procede deste modo: na relação, exprime-se a vontade dos indivíduos; assim, as relações jurídicas possíveis serão determinadas pelas direções segundo as quais a vontade pode ser expressa. E ela pode ser expressa ou em relação às coisas ou em relação às pessoas. As relações jurídicas possíveis, então, serão relações com a natureza “não livre” ou relações com outras pessoas. Não devem ser consideradas, diz Savigny, as relações relativas à própria pessoa, enquanto não prevêem uma regulação ou delimitação da vontade por parte do direito, ou retornam ao âmbito dos setores compreendidos nas outras duas classes de relações. Assim, o primeiro modo possível de exercício da vontade e, portanto, a primeira forma possível de existência do direito, é dado pelo direito sobre uma coisa, sobre uma delimitação espacial da natureza. Esse direito, “em sua forma mais pura e completa, chama-se propriedade”60. 56

57 58 59 60

Larenz: idem, p. 14 (trad. it. cit., p. 9). As páginas citadas por Larenz se referem ao System des heutigen römischen Rechts, I, cit., p. 9, 11 e 16. SAVIGNY, System…, v. I, p. 386. Idem, p. 333. Idem, p. 386. Idem, p. 338.

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A relação com a outra pessoa pode ser de dois tipos. Pode configurar uma ação de domínio sobre uma única ação da pessoa, e essa relação jurídica se chamará obrigação. E a obrigação, pelas características que a aproximam da propriedade – enquanto ambas, propriedade e obrigação, estendem o poder do titular em direção ao exterior ou para além dos confins naturais de sua essência –, constituirá junto desta, na totalidade dos institutos relativos, o direito patrimonial. Ou a relação com outra pessoa pode constituir um complemento desta, entendida como “parte do todo orgânico da humanidade inteira”, através do matrimônio. Vamos nos ater à propriedade. Savigny vê sua essência no fato de que “todo homem tem vocação para o domínio sobre a natureza não livre”. Essa vocação deve ser reconhecida e atribuída a todos os indivíduos. Ela se exprime em uma necessidade, a princípio, indeterminada, que se determina e se satisfaz pela comunidade no Estado, mediante o direito positivo. A determinação jurídica dessa necessidade atesta o domínio sobre a natureza não livre como propriedade privada e como uso privado da natureza. Uma relação com a natureza que não seja de propriedade privada não é pensável, diz Savigny, nem mesmo no plano das relações possíveis, sobre o qual estamos argumentando: “Uma relação de domínio do homem sobre a natureza não livre que não seja relação de propriedade não é pensável”61. O que é pensável é apenas a diversidade possível das determinações do domínio, a extensão do complexo de direitos sobre a coisa, mas não uma diversidade das formas da relação: esta só pode ser uma relação de propriedade. Depois de ter construído o direito de propriedade e o direito de família partindo das duas direções possíveis da vontade, Savigny enfrenta o seguinte problema: se existem relações entre estes dois tipos fundamentais de relações, e de que gênero elas são. Para isso, ele deve recorrer ao elemento material presente em cada relação, em virtude do qual a relação originariamente se qualifica em sua essência específica. As relações entre os homens, diz Savigny62, não se remetem todas, ou não todas do mesmo modo, ao domínio do direito: algumas pertencem totalmente a este domínio, outras em parte, outras são completamente indiferentes à regulação jurídica. A propriedade se encaixa na primeira classe de relações, o matrimônio, ao contrário, na segunda. O matrimônio é caracterizado por uma relação do tipo éticonatural. O caráter dessa relação também deve ser conservado em sua regulamentação jurídica. A matéria dessa relação é “uma relação natural, 61 62

SAVIGNY, System…, v. I, p. 369. Idem, p. 333-4.

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que, enquanto tal, vai além dos confins da natureza humana (jus naturale)”63. Precisamente, a forma do direito não pode suplantar o elemento material da relação, que é uma relação ético-natural. O direito patrimonial, ao contrário, não apresenta no seu elemento material nem o momento da naturalidade, nem aquele da eticidade. Enquanto produto puramente jurídico, nele “se realiza completamente o domínio da lei jurídica, porém sem consideração à moralidade ou imoralidade do exercício do direito”64. Porém, esta diversidade irredutível do elemento material, que distingue os dois tipos de relações, torna-se substancialmente redutível. Direito patrimonial e direito de família encontram-se e tocam-se em diversos pontos, diz Savigny. São criados efeitos específicos que se produzem entre os dois setores do direito, reações recíprocas. A primeira e mais imediata consiste no fato de que institutos relativos ao patrimônio aplicam-se às relações individuais de família. Entretanto, são possíveis apenas se pressupostas as relações de família: “Chamamos sua totalidade de direito de família aplicado, e é propriamente esse aspecto, mais do que qualquer outro, que confere à família seu caráter propriamente jurídico”65. A relação privilegiada entre família e propriedade, se, por um lado, descreve o fundamento da juridicidade de uma relação entre pessoas cuja essência tem origem ético-natural, por outro, torna ética e naturaliza uma relação cuja essência tem origem puramente jurídica. Não é que Savigny parta da diversidade das duas relações fundamentais e, ao fim do processo de construção do sistema, encontre a conexão orgânica na propriedade privada da família. Essa convergência tem lugar, na realidade, somente no direito. É uma abstração puramente jurídica. A Savigny, ao contrário, interessa apresentar a convergência como um fato necessário inerente às relações fundamentais nas quais se exprimem as relações entre indivíduos, e entre indivíduos e natureza não livre. Mas também lhe interessa, ao mesmo tempo, apresentar essa convergência de eticidade, natureza e direito na propriedade privada da família como conexão orgânica, realizada pela ciência por meio da composição lógica dos dados da intuição e do material jurídico separado. A propriedade privada da família é construída, assim, pela ciência, como uma necessidade lógico-histórica. A abstração jurídica coincide com a necessidade natural; elas se encontram. A propriedade privada, que a ciência jurídica constrói como relação puramente jurídica, mas, também, como a única relação possível do indivíduo com a natureza, realiza-se na conexão orgânica da 63 64 65

SAVIGNY, System…, v. I, p. 345-6. Idem, p. 371. Idem, p. 380.

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família, que é uma relação ético-natural. Essa relação ético-natural, por sua vez, só se realiza, se completa, a partir de agora, na conexão orgânica da propriedade privada. Savigny interpreta determinados processos históricos em sua evolução na forma jurídica. Compreende que a positividade do direito comporta a substituição das relações sociais materiais por suas abstrações jurídicas. Essas abstrações são postas, já existem. A ciência apenas pode juntá-las dentro de uma unidade orgânica. Ela as constrói como necessárias, como necessariamente dadas nas relações das quais são formas jurídicas, colocando-as, ao final de seu trabalho científico, como seu produto. Sobre a ciência, então, não se diz que parte do conjunto das abstrações em sua forma separada, mas que parte de um dado da intuição: o instituto. Também não se diz que obtém as mesmas abstrações em sua forma logicamente concreta, mas que obtém a conexão orgânica do conjunto. E se diz que essa sua operação é de natureza filosófica. O primeiro dado, já vimos, é o instituto; ele é um dado da intuição. É um tipo, uma conexão orgânica inerente à essência do homem, que nasce com as relações humanas e torna-se, no direito vivente, reflexo das relações materiais humanas. O instituto é a totalidade vivente de uma classe de relações humanas e, ao mesmo tempo, sua abstração jurídica. Portanto, a ciência histórico-sistemática descreve e constrói a imanência da abstração jurídica às relações sociais materiais como necessidade lógico-histórica – “em cada época, a reflexão deveria ser orientada à penetração desta matéria dada como necessidade interna”66. Porém, esta imanência não é ela mesma um fato natural, apenas nascendo da profunda natureza humana. Savigny, em outros termos, é plenamente consciente de que as abstrações da ciência existem somente na categoria da juridicidade, e que esta categoria possui uma existência positiva pela mediação do Estado. É o Estado que confere à matéria jurídica dada em sua necessidade histórico-natural o caráter de juridicidade. De fato, Savigny escreve: Assim também a propriedade pode obter uma existência real apenas porque foi referida antes de tudo ao Estado, e, portanto, pelas regras formadas no direito positivo do Estado, foi referida aos indivíduos consorciados na comunidade do direito, como proprietários67.

A referência ao Estado é o processo que confere existência real às abstrações jurídicas. É a mediação lógica que permite realizar a expressão jurídica da necessidade histórica dada, atribuindo a esta o caráter 66 67

SAVIGNY, Vermischte Schriften..., v. I, p. 113. SAVIGNY, System…, v. I, p. 380-1.

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de realidade posta. Através dessa mediação, ganha corpo a abstração jurídica sobre a qual a ciência opera a união entre lógica e história no sistema, reatando intuição e material jurídico dado. Necessário, nascido da natureza do homem, expressão da vontade livre é, agora, o “direito positivo do Estado”. Um material que, pela referência formal ao Estado, adquire a forma de realidade jurídica posta. A referência ao Estado confere àquele material que Savigny define como necessário o caráter da positividade, retirando assim o misticismo escondido na pretensa necessidade do material dado e deixando evidente o fato de que aquele material, enquanto posto, é produto de uma escolha, de uma decisão, de uma seleção: que é, em outros termos, contingente. Correlativamente, aquela referência elimina toda incerteza sobre o papel da ciência na elevação deste material a uma dignidade filosófica e, ao mesmo tempo, toda incerteza sobre a função ideológica legitimadora do recurso à filosofia. Portanto, Savigny tem consciência de que a realidade do direito consiste no fato de ser posto, contingente. Sabe, consequentemente, que a única operação científica que se pode praticar sobre ele é metodológica. Porém, não dispondo de uma fundamentação teórica da contingência do objeto, que seria a única capaz de assumir a realidade do direito como realidade posta, é obrigado a imergir a trama metodológica correta em um misticismo filosófico que termina por afastar o potencial de explicação da razão jurídica imanente à conversão metodológica. No direito positivo, a vontade livre exercita-se por meio da propriedade privada do indivíduo. O sistema é a estrutura na qual o positivo é reconstruído como necessidade lógica. É a estrutura que identifica no positivo, já presente na intuição como única forma possível e imaginável das relações sociais, a conexão orgânica dessas relações. A liberdade dos modernos, é esta a conclusão que se pode extrair da ciência jurídica inaugurada por Savigny, é a liberdade que se exprime na propriedade privada, como o setor no qual domina a vontade livre. O sujeito do direito é o proprietário privado assim como o espírito do direito é o espírito da propriedade privada. A positividade do direito garante o domínio da liberdade somente pela liberdade do domínio que se exerce na propriedade privada.

4

CONTINGÊNCIA E NECESSIDADE. A ELISÃO DO PROBLEMA TEÓRICO.

Até aqui, vimos o misticismo filosófico ao qual se rende a atividade da ciência na concepção de Savigny. Trata-se de uma concepção

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repleta de dificuldades que chegam até à contradição, mas que também evidencia os pontos firmes alcançados por Savigny. Destes, o primeiro é certamente constituído pelo princípio da autonomia do direito positivo68, enquanto o segundo, e conseguinte, é dado pela superação do método como busca da verdade, e pela aquisição da perspectiva metodológica na construção do sistema. Contraditória, nesta concepção, é a relação da metodologia com o objeto. Em relação ao objeto, a metodologia é indiferente porque não se coloca o problema gnoseológico. Este problema, na realidade, dissolve-se, enquanto o princípio da verdade é substituído pelo princípio da positividade do direito, que se realiza mediante a referência ao Estado. Ora, se o método como busca da verdade abre um único processo de legitimação que envolve, ao mesmo tempo, o direito produzido e a atividade que o produz, a metodologia, que não aborda problema teórico (o que é direito?) e que também é indiferente à solução dada a este problema, não pode ser instrumento de legitimação do direito, a não ser no sentido tautológico – pressuposto por Savigny – no qual ela legitima a conexão orgânica, isto é, lógica, na qual se apresenta o direito reunido no sistema. Savigny recorrerá precisamente a esta tautologia: ainda que reconhecendo que a atividade científica é pura metodologia, ele atribui a esta última a função prática de sistema capaz de produzir direito. Deste modo, confere caráter de necessidade – e, assim, uma legitimação interna – à contingência normativa que é produzida no sistema jurídico. Para fazer isso, a princípio, apresenta os valores de verdade obtidos no sistema como resultado de operações lógicas, como valores de uma verdade que se exprime no direito na medida em que precisa dele, e que, assim, o produz. Então, pressupõe que a conexão lógica que o sistema alcança já esteja presente no instituto como dado da intuição, de modo que a atividade da ciência não se exaure na organização lógica da matéria jurídica, mas em sua redução à conexão orgânica do todo. A metodologia, corretamente entendida como explicação da racionalidade formal inerente ao objeto, pressuposta pela juridicidade do objeto69, é dominada por uma função legitimadora que não é capaz de exercer e é, assim, invalidada pelos resíduos do antigo problema da verdade. 68

69

O princípio de que a juridicidade da relação constitui-se na referência formal a uma instância, o Estado, que funciona como instância objetiva de qualificação e de que, portanto, a juridicidade é categoria autônoma em relação à eticidade e à natureza. Pelo fato de que finalmente no objeto não se exprime uma razão qualquer ou instância da qual o objeto seja verdade, e de que a busca desta verdade seja condição de possibilidade da ciência.

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A causa destas contradições presentes na concepção de Savigny deve ser buscada na elisão do problema teórico. A partir daqui, nasce uma confusão entre teoria e metodologia da construção sistemática, em total detrimento desta última, obrigada a assumir o ônus de legitimar o objeto que precisa pressupor como pré-existente e apresentar apenas em uma conexão logicamente concreta em relação à forma separada na qual é dado. Delineia-se, assim, o círculo da epistemologia jurídica reduzida a metodologia da construção sistemática e a metodologia da dogmática. O direito positivo aparece como produto da ciência, e busca sua legitimação neste processo aparente, no qual a aparência é, na realidade, pura tautologia, porque, como vimos, a própria metodologia pressupõe a existência específica do direito na mediação da referência ao Estado, como seu fundamento interno de validade, pressupondo, assim, a contingência do direito, sua positividade. Este círculo define o caminho da epistemologia jurídica até Kelsen: um caminho caracterizado por um processo contínuo de clarificação e especificação das tarefas e possibilidades da metodologia, de purificação e neutralização de suas construções sistemáticas. Kelsen resolverá o problema da epistemologia jurídica separando o processo de legitimação da razão jurídica70 do processo de explicação de sua coerência interna, isolando a teoria da metodologia, propondo, em outros termos, a tese da neutralidade da ciência jurídica. Até Kelsen, a epistemologia jurídica permanecerá restrita à operação metodológica como única prática científica possível sobre o direito positivo, e como a única prática através da qual se buscará legitimar a positividade por meio da construção sistemática do direito. A elisão da teoria levará, por um lado, a uma polarização da operação metodológica, e, por outro, no entanto, abordará continuamente o problema teórico dos fundamentos da própria operação metodológica, enquanto que, na base da prática científica, não haverá, até Kelsen, uma fundamentação teórica capaz de resolver o problema do objeto. Explica-se, assim, por exemplo, o fato de que Savigny, perfeitamente consciente da imanência metodológica da ciência para o direito positivo, recorrerá à história para construir a necessidade lógica do próprio direito positivo no sistema. O recurso à história não é outra coisa senão uma tentativa de elaborar um substituto válido para o vazio deixado na epistemologia pela elisão do problema teórico. Sobre esse vazio se construirá a identificação filosófica entre necessidade lógica e necessidade histórica. Mas a contextualidade dessa identificação e da operação metodológica revela imedia70

Cfr. supra a Introdução à Primeira parte.

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tamente o caráter furtivo do recurso a um fundamento extrapositivo do direito, uma vez assumida a positividade como pressuposto da juridicidade. Gradualmente, porém, a epistemologia atentará para este problema, até conseguir encontrar uma solução consistente. Esta dificuldade epistemológica inicial nos impede de isolar a conversão metodológica, em seu efetivo potencial, dos contextos nos quais ela se exprime e se organiza. Todavia, no desenvolvimento da epistemologia, é possível notar a gradualidade do processo que leva à purificação operada por Kelsen, que colocará lucidamente em foco o problema dos fundamentos da ciência jurídica. As dificuldades que apresenta a ciência do direito nesta sua fase inicial derivam substancialmente do fato de que à metodologia é incumbida a tarefa de legitimar a positividade do direito, enquanto ela mesma é privada de uma fundamentação teórica que a justifique no interior de um projeto epistemológico coerente e global. Privada de uma alternativa teórica consistente com a doutrina do método, a ciência jurídica nascente corre o risco de não conter aquela mesma conversão metodológica à qual foi obrigada pela afirmação da juridicidade. Verifica-se, assim, uma discrepância profunda entre o desenvolvimento da pesquisa metodológica e a procura de um fundamento metapositivo do direito, mediante o qual se vincula tautologicamente o direito a instâncias furtivas necessitantes, estéreis no plano epistemológico, que têm como único resultado resgatar de forma contraditória o problema da verdade, suprimido para sempre pelo princípio da contingência do direito, tacitamente assumido, mas continuamente emergente como o único obstáculo epistemológico.

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2 A ESPECIFICAÇÃO DA METODOLOGIA E KELSEN 1

PUCHTA

1.1

A Concepção do Direito como Igualdade à Qual é Imanente a Desigualdade

O princípio do direito, escreve Puchta, é a liberdade141: a liberdade, não a razão, constitui o fundamento do direito. A razão exclui a liberdade, é seu oposto: como universo da necessidade, a razão exclui o princípio do direito. Identificamos a razão com o bem: por necessidade natural, a razão deverá alienar de si o mal como negação, o isolar como 141

G. PUCHTA, Cursus der Institutionen. Leipzig: Breitkopf und Härtel, 1881, v. I, p. 4; cfr. BOHNERT, J. Über die Rechtslehre Georg Friedrich Puchtas (17981846). Karlsruhe: Müller, 1975. p. 157-65. A reflexão sobre a obra de Puchta se ressente de uma vagueza na qual se repete o juízo de Jhering, in Scherz und Ernst in der Jurisprudenz. Leipzig: Breitkopf und Härtel, 1814. p. 253 [tr. it. di G. Lavaggi, Serio e faceto nella giurispru denza. Firenze s.d. ma: Sansoni, 1954], bem diferente do que pode ser lido em: Unsere Aufgabe, in Jahrbücher für die Dogmatik des heutigen römischen und deutschen Privatrechts, editi da C.F. v. Gerber e R. Jhering, Mauke, Jena 1857, v. I, p. 1-52, p. 26. Sobre Puchta, disse com razão Bohnert: “Georg Friedrich Puchta é uma daquelas personagens da história do direito em torno das quais se difundiu a opinião de que foram compreendidas muito bem. Quando o esquema de Jhering lhe abre as portas para o céu dos conceitos jurídicos, Puchta é ridicularizado, e deve responder por todos os erros da escola histórica do direito: abstração, formalismo, jurisprudência dos conceitos, e em medida cada vez maior, quando perante este homem, agora mais clara e venerável, reluzia a luz de Savigny” (Op. cit., Vorwort). Sobre a obra de Puchta cfr. Wieacker, Privatrechtsgeschite..., p. 399-402; WILHELM, Zur juristischen Methodenlehre..., p.70-87; LARENZ, Op. cit., p. 20-6; FIKENTSCHER, Op. cit., p. 88-93, e a ampla bibliografia citada no volume cit. de Bohnert.

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irracional, ela não o compreenderá. A razão, de fato, é necessidade que exclui aquilo que a nega. A liberdade, ao invés, é negação da necessidade, e, assim, é apenas possibilidade de se determinar por qualquer coisa. Liberdade é possibilidade do bem e do mal. É possibilidade de escolha. Como é impossível identificar o princípio do direito no princípio da razão, é impossível passar do fundamento da razão ao fundamento do direito. Do universo da necessidade, limitado por limites fixados ao homem pela natureza, não se pode passar ao universo da liberdade, que, por natureza, não é limitado: quando se parte do conceito de razão, não é possível alcançar o conceito de direito, conclui Puchta. Livre é o indivíduo que pode exprimir vontade, o indivíduo ao qual esta capacidade é reconhecida, isto é, que pode exprimir a capacidade de ter vontade efetuando uma escolha. Na perspectiva do direito, liberdade é esta potencialidade reconhecida de exprimir vontade. O indivíduo, portanto, não é sujeito do direito porque seu comportamento seja delimitado, previsto ou prescrito; nem porque sua vontade seja circunscrita a um setor determinado, no interior do qual apenas esta possa se exercer como vontade livre: sujeito do direito é o indivíduo apenas enquanto é considerado capaz de ter vontade, potencial sujeito de uma escolha. Sua liberdade, então, existe não na determinação de uma escolha específica – como é o caso do significado da liberdade moral, pelo qual dizemos que moralmente livre é o sujeito que se determina pelo bem – mas na própria possibilidade de efetuar uma escolha, de querer qualquer coisa. A consideração da potencialidade da vontade e do seu reconhecimento, à qual somente o direito se limita, permite, assim, distinguir também a liberdade jurídica da liberdade moral. Para a moral, não é relevante o fato de que o sujeito possa efetuar uma escolha, mas o fato de que ele realmente tome uma decisão: é a decisão e sua qualidade que tornam o homem real sujeito da moral. O direito, ao invés, é indiferente no que diz respeito à qualidade da ação que é objeto da previsão jurídica ainda que viole o direito, assim como é indiferente à qualidade moral do indivíduo, que permanece sujeito do direito tanto se é “um bom homem, quanto se é um homem mau”, porque ambos são sujeitos aos quais é reconhecida uma vontade. “Na fundação do direito sobre a possibilidade de ter vontade – continua Puchta – é expresso também o princípio mais próprio do direito: o princípio da igualdade”142. O direito é indiferença à diversidade. Diverso é o múltiplo, o concreto, o homem como sujeito real das escolhas a respeito das quais se determina: a tudo isso, o direito é indiferente. O 142

PUCHTA, Cursus der Institutionen..., p. 7.

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direito é um sistema que “considera unidas as desigualdades”143, é igualdade indiferente de individualidades reunidas por um vínculo de natureza espiritual, que é a abstração das vontades concretas, particulares. “O direito é o reconhecimento da liberdade que convém aos homens em igual medida como sujeitos do poder da vontade”144. O “sentido do direito”145 consiste, então, na produção de igualdade indiferente, na produção de abstrações que “considerem em conjunto as desigualdades”, reduzindo-as em um sistema no qual não são negadas, mas são mantidas e consideradas juntas. E, de fato: “O direito se destina a proteger a igualdade, constringindo as desigualdades individuais e reduzindo-as ao que convém a todos em igual medida: à personalidade, à possibilidade de vontade”146. A personalidade é uma abstração147; mas apenas com base nessa abstração se determina a igualdade como sentido do direito. Todavia, no direito, as desigualdades reais não são negadas: elas constituem a matéria do direito, em torno delas se entrelaçam as relações entre os indivíduos em sua concreta variedade e multiplicidade. O direito, então, organiza uma multiplicidade de gradações, uma pluralidade de igualdades nas quais as diversidades reais são tidas em conjunto. A matéria reage às abstrações do direito e opõe a elas uma resistência contínua: “O direito releva no homem a personalidade, mas reconhece uma diversidade da personalidade”148. O direito fixa uma gradação de abstrações, uma gradação de formas, uma estrutura de igualdades indiferentes. O desenvolvimento do direito, diz Puchta, repousa sobre uma dupla tarefa que o direito deve assumir: por um lado, deve alcançar um conjunto de formas que realizam, através da igualdade, o domínio sobre a diversidade, sobre a diferença das individualidades; por outro, deve dar razão para a própria diferença presente na matéria. Essa matéria, opondo resistência contínua às abstrações iguais, condiciona a estrutura; introduz na estrutura da igualdade uma série de diferenciações, uma série de diferentes igualdades. O direito é, assim, constituído por uma multiplicidade, por uma variedade de formas da igualdade. A construção do direito consiste em uma contínua resistência das relações, do desigual, e na sua contínua superação; desse processo nascem os institutos do direito: as proposições jurídicas sobre a proprie143 144 145 146 147

148

PUCHTA, Cursus der Institutionen..., p. 11. Idem, p. 7. Idem, p. 11. Ibidem. G.F. Puchta, Vorlesungen über das heutige römische Recht, edição póstuma por A.A.F. Rudorff, Leipzig, Tauchnitz, 1862, v. I, p. 56. PUCHTA, Cursus der Institutionen..., p. 21; Id., Vorlesungen..., p. 56.

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dade, as obrigações etc, em sua diversidade, e, assim, em seguida, para baixo, os institutos particulares e as proposições jurídicas das quais são constituídos149.

A diversidade nasce da reação que o desigual, próprio das relações materiais, exerce sobre o princípio da liberdade jurídica, isto é, sobre o princípio da abstração da igualdade: “O direito é aquela igualdade à qual é imanente a desigualdade”150. O direito acaba abstração, forma igual das relações. Nele, os sujeitos figuram apenas como personalidade, na abstração de sua vontade livre, na referência a uma propriedade distribuída em igual medida; mas essas abstrações encontram a resistência contínua oposta pela diversidade da matéria. O direito, então, supera essa resistência produzindo uma estrutura de diferentes igualdades, uma estrutura na qual as diferenças reais são dominadas por uma variedade de formas, nas quais elas não são negadas, mas apenas conservadas e superadas. A multiplicidade das diferenças reais se transforma em multiplicidade interna à estrutura do direito, que realiza, em um sistema de indiferenças iguais, uma pluralidade de funções. Esta pluralidade de funções em torno da qual se organiza a estrutura do direito é condicionada pela diversidade real das relações, ou seja, é necessidade interna à estrutura da abstração, que pode dominar a multiplicidade do real somente se organizando nesse sistema de igualdades diferentes. Assim, conclui Puchta, o direito, enquanto nasce da liberdade, vem condicionado pela necessidade natural de seus objetos, ele é alguma coisa de racional. Suas proposições adquirem uma conexão sistemática porque se condicionam e se pressupõem reciprocamente, porque da existência de uma delas é possível inferir a existência da outra151.

A matéria em relação à qual o direito deve superar as desigualdades e a resistência que ela opõe, a simultânea multiplicidade das abstrações jurídicas, essa necessidade interna natural de uma estrutura de abstrações, é o princípio do sistema152, o princípio racional do direito. Racionalidade e necessidade, disse Puchta: “O direito é alguma coisa de racional” significa que as abstrações jurídicas são conexas em uma estrutura unitária do conjunto de relações de derivação que se subordinam umas às outras com “necessidade interna”153. A racionalidade das 149 150 151 152 153

PUCHTA, Cursus der Institutionen..., p. 21. Ibidem. Ibidem. Idem, p. 56. PUCHTA, Vorlesungen..., p. 41: “Mas todo direito existente já contém no seu interior a semente de sua completude, através dos princípios sobre os quais repousa,

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operações das quais deriva a conexão da estrutura, a necessidade interna de natureza puramente lógica, é o princípio lógico do sistema que se constrói sobre essa estrutura. Assim como o espírito do povo é princípio unitário da liberdade no direito, a necessidade interna, a necessidade lógica sobre a qual se constrói o sistema do direito, é o fundamento da racionalidade no direito. A especificação do princípio da racionalidade no direito constitui, sem dúvidas, uma grande conquista do pensamento de Puchta, que se distancia, assim, tanto do apriorismo jusnaturalista, quanto da confusa epistemologia savigniana. Na concepção de Puchta, esse princípio é a afirmação da autonomia do aparato conceitual do direito positivo. Esse aparato, de fato, constitui um sistema fechado, um organismo cujas partes são ligadas segundo relações reguladas por necessidade interna, isto é, segundo relações de natureza lógica. Na conexão orgânica do sistema, de fato, as proposições jurídicas singulares são conhecidas pela ciência como “reciprocamente condicionantes e como derivadas uma da outra”154. Este sistema de derivações, esta “pirâmide conceitual”, produto da atividade científica sobre o direito, assume como seu fundamento apenas abstrações próprias do direito positivo, conceitos abstratos gerais de igualdades às quais o direito restringe a realidade das relações sociais155. A racionalidade do direito, portanto, é o princípio de sua autonomia conceitual: a ciência estuda o direito em seu isolamento, na estrutura autônoma de seu sistema conceitual: “Objeto da ciência jurídica como ciência particular é o direito exclusivamente como este organismo particular, independentemente de sua propriedade como membro do todo”156. O princípio da racionalidade libera o próprio sistema, como objeto da ciência, de qualquer instância externa necessitante: Puchta nega que o conhecimento sistemático dependa de outras formas de conhecimento das quais o objeto resulte como externamente necessário. A ciência do direito não possui os meios para considerar o direito como membro de um organismo superior157: o conhecimento científico é conhecimento relativo exclusivamente às relações internas ao sistema.

154 155 156 157

e por sua natureza racional, que permite inferir uma proposição da outra, derivada por necessidade interna”. PUCHTA, Cursus der Institutionen..., p 22. PUCHTA, Vorlesungen..., p. 41. PUCHTA, Cursus der Institutionen..., p. 55. Ibid.: “A verdadeira tarefa da filosofia do direito é a de considerar o direito como membro de um organismo superior: uma tarefa que não pode desenvolver a ciência específica, porque lhe faltam os meios”.

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Ademais, do princípio do sistema, da multiplicidade simultânea das abstrações jurídicas, que é o fundamento da racionalidade do direito, não é possível passar ao princípio da igualdade, no qual se exprime o fundamento da liberdade do direito. Isso significa que a racionalidade do direito, objeto da ciência, não diz respeito ao direito como sistema da igualdade no qual se realiza a liberdade; que a liberdade como postulado da igualdade, e como atributo dos sujeitos abstratos, não é objeto da ciência; que, portanto, o sistema do direito positivo é cognoscível como sistema da racionalidade, não da igualdade, isto é, como um sistema de desigualdades, entre as quais existem relações necessárias, e que derivam da resistência oposta pela matéria. Eis a consequência mais relevante de toda a concepção de Puchta: a racionalidade, justamente por ser impermeável ao princípio da liberdade, ou seja, da igualdade, enquanto estrutura gradações diversas de igualdades indiferentes e as organiza segundo a necessidade interna, reintroduz no sistema as desigualdades reais, e liga, assim, as indiferenças recíprocas em um sistema de relações objetivas de dependência lógica, em uma escala de desigualdades. A conclusão de Puchta, como já vimos, é que “o direito é igualdade à qual é imanente a desigualdade”158. Portanto, se, enquanto desenvolvimento do princípio da liberdade, o direito é um sistema de igualdades produzidas a partir da igualdade dos sujeitos pressuposta na abstração de sua personalidade, enquanto sistema da racionalidade, o direito engloba o princípio da igualdade porque, na necessidade interna da estrutura, as abstrações se apresentam como desigualdades que nascem da matéria das relações e da resistência que essa matéria opõe. O sentido do direito159 é, assim, duplo: o sentido da liberdade, que torna iguais as desigualdades individuais e constitui o pressuposto do direito; e o sentido da racionalidade, que reproduz as desigualdades no sistema da necessidade interna e constitui a realidade cognoscível do próprio direito. Puchta consegue isolar esses dois sentidos, excluindo a possibilidade de se estabelecer entre eles uma relação de derivação. Mas isto serve, sobretudo, para liberar a ciência do direito de qualquer peso externo ao sistema da racionalidade, ao sistema das relações que definem com uma necessidade lógica as relações entre as desigualdades internas às construções conceituais. A exclusão deve permitir que se desenvolva a ciência como metodologia da construção sistemática das desigualdades internas ao direito. Porém, na realidade, entre os dois sistemas, as relações se estabilizam na referência unitária ao espírito do povo, no qual se 158 159

PUCHTA, Cursus der Institutionen..., p. 21. Idem, p. 11.

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encontra o princípio do direito como sistema em que se realiza o sentido da racionalidade. Pode-se dizer, portanto, que essa exclusão serve para Puchta aperfeiçoar a complementaridade das funções do direito: a função de sistema que produz igualdade formal e a função de sistema que reproduz desigualdade material.

1.2

A Racionalidade do Sistema Jurídico, a Positividade da Ciência e a Instância Material

Puchta conclui um grande passo adiante em relação a Savigny, não apenas na medida em que desvincula o sistema do direito de instâncias externas de legitimação, mas também na medida em que alcança a total purificação da ciência como metodologia da dogmática e a afirmação de sua autonomia e completude, individualizando como objeto exclusivo da ciência o sistema do direito positivo em seu isolamento, em seu fechamento lógico-conceitual, ou seja, em sua racionalidade. Para Puchta, de fato, o conhecimento científico é conhecimento sistemático do direito: apenas este é “um conhecimento completo”160. Por dois motivos, explica Puchta: um externo e outro interno. De uma perspectiva externa, somente o conhecimento sistemático dá segurança para compreender todas as partes do direito como partes de uma conexão orgânica, e não como elementos de um puro agregado, de forma que a falta de uma dessas se revela como lacuna, e não fica imperceptível à observação. De uma perspectiva interna, porque “o próprio direito é um sistema, já que apenas quem o conhece como tal apreende de maneira completa sua natureza”161. Conhecimento sistemático significa precisamente conhecimento da conexão das proposições jurídicas, de suas relações recíprocas de ligação. Conhecimento que segue “para cima e para baixo a derivação de cada conceito por meio de todos os elementos que fizeram parte de sua formação”162. Conhecimento sistemático significa conhecimento da racionalidade interna ao direito. A racionalidade do sistema jurídico exprime-se na necessidade interna das conexões orgânicas entre as partes do sistema que a ciência ressalta. A natureza lógica dessa necessidade, o caráter dedutivo das operações que levam à construção do sistema, permite identificar uma espécie de “genealogia dos conceitos”, na qual os conceitos não aparecem 160 161 162

PUCHTA, Cursus der Institutionen..., p. 57. Ibidem. Ibidem.

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como instrumentos mortos, mas adquirem uma existência plena de vida, uma existência capaz de produzir. No sistema das derivações conceituais, emerge toda a potencialidade não expressa no direito existente, que se torna visível pelo trabalho de construção da ciência, que, deste modo, torna-se uma ciência produtiva. A ciência produz direito porque traz à luz aquilo que no direito positivo é implícito e dele nasce por necessidade interna. O direito produzido pela ciência é direito válido, do mesmo modo que é válido o direito que nasce do costume ou das proposições do legislador. A ciência, de fato, não faz outra coisa que trazer à evidência, pela análise sistemática da rede de conceitos, proposições que, por estarem presentes no “espírito do direito nacional”, não são mais submetidas à imediata convicção dos membros do povo, não são perceptíveis nos seus comportamentos, nem foram expressas pelo legislador. O direito produzido pela atividade da ciência tem um fundamento tríplice de validade, de natureza puramente lógica, interno ao sistema. Ele repousa “1) sobre a racionalidade do direito existente, 2) sobre a verdade dos princípios que dele derivam e 3) sobre a correção das conclusões que são obtidas por esses princípios”163. Esta fundação da validade do direito produzido pela ciência tem profunda relevância epistemológica e assinala, creio, claramente a diferença entre Puchta e Savigny. Aqui, é pressuposto o postulado da racionalidade do direito existente, não na referência a uma posição metapositiva, mas na referência à multiplicidade das abstrações, ou seja, à matéria e à resistência que a matéria opõe164. Este postulado, portanto, é próprio do direito em sua autonomia e em seu isolamento, do direito como objeto exclusivo da ciência. Os princípios derivados do direito existente165 são pressupostos, por sua vez, como premissas do sistema e, portanto, pressupostos como verdadeiros. A verdade das premissas tem um valor puramente lógico, e, portanto, hipotético, que se legitima pelo trabalho construtivo e de dedu163

164

165

PUCHTA, Vorlesungen..., p. 41. Nel Cursus..., p. 5, Puchta escreve que “o direito é algo racional, e esta é sua parte que é sistema, que forma um organismo de gêneros e espécies”. Cfr. Idem, p. 56-7, onde Puchta indica claramente qual é o princípio do sistema. “O conhecimento sistemático é o conhecimento da conexão interna que liga as partes do direito; ele concebe o singular como membro do todo, o todo como um corpo que se desenvolve em órgãos particulares. A força agente da multiplicidade simultânea do direito, e, portanto, o princípio do sistema, é a matéria, cuja desigualdade o direito deve superar, assim como a resistência que a matéria opõe ao princípio de igualdade do direito”. Cfr. PUCHTA, Vorlesungen..., p. 41: “Mas completar [o direito existente] e produzir, ao mesmo tempo, a consciência é a tarefa da ciência, que pesquisa os princípios do direito existente, e deles infere novas proposições jurídicas que os integram”.

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ção que será efetuado pela ciência a partir das premissas que, de fato, possam ser tidas somente como verdadeiras. Na perspectiva da ciência, Puchta resolve o antigo problema da verdade, do qual Savigny não conseguiu se libertar claramente. O postulado da verdade das premissas interessa aqui apenas para fins de economia lógica do trabalho da ciência: trazer à evidência todos os princípios escondidos naquelas premissas. Desse modo, legitima-se, por um lado, o conhecimento sistemático como conhecimento completo; mas, por outro, também, o sistema do direito como sistema completo: como sistema que é possível fechar a partir de dentro, por efeito deste mecanismo puramente dedutivo, explicativo. A correção das conclusões obtidas por aqueles princípios é pressuposta na correção das operações de inferência que levam a elas, e não implica nenhuma referência extralógica, como plano de verificação, também ideológico, das proposições derivadas. O “todo orgânico” no qual pensa Puchta é somente o sistema das proposições jurídicas internamente fechado; uma construção à qual se chega com os instrumentos de uma lógica conceitual purificada, ou seja, de uma lógica que assume como seu objeto o direito em seu isolamento, sem resíduos, e cujos conceitos valem com base na verdade das premissas e na correção das operações de dedução. Assim, Puchta assinala que o direito da ciência é produzido pela atividade dos juristas, mas não em sua qualidade de “representantes e depositários naturais da consciência jurídica nacional”166: ele nasce sobretudo de uma verdade interna do sistema jurídico, verdade que a atividade da ciência alcança em virtude da correção de suas operações. Os juristas – esclarece Puchta – são portadores da verdade da ciência, expõem e aplicam aquelas proposições jurídicas que se baseiam em fundamentos de natureza exclusivamente interna, e que são dotados de uma autoridade apenas em virtude de sua verdade científica. Aqui, o direito dos juristas é o direito da ciência167.

Este esclarecimento permite a Puchta isolar definitivamente o universo da ciência como universo puramente metodológico, e o direito que é objeto da ciência como sistema racional que se sujeita a uma necessidade interna de natureza lógica. Além disso, precisamente esta aquisição evolutiva de Puchta foi considerada por alguns autores anteriores como involução, como se a tentativa de liberar a metodologia do problema não resolvido da verdade, e de purificá-la, como sistema da 166 167

Idem, p. 42. Ibidem.

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ciência, dos restos de uma fundação metapositiva, constituísse um processo involutivo. O limite de Puchta, ao contrário, parece consistir em uma consciência não clara da fundação contingente da positividade; que emerge justamente de sua concepção de racionalidade, e não na assunção do postulado metodológico da verdade dos conceitos pressupostos como premissas do sistema. Wilhelm, por exemplo, critica Puchta por uma hipostatização dos conceitos do direito assumidos como premissas do sistema: As determinações jurídicas gerais – ele escreve – que são formas conceituais de concentração das instituições jurídicas, e, portanto, também sociais, e que, como representações da realidade, são de natureza puramente secundária, foram elevadas a existência autônoma, a existência lógica, de forma que se tornou possível tratá-las, em grande medida, em si próprias168.

Mas este é justamente o mérito de Puchta: o “culto do elemento lógico” no direito não é uma hipóstase das premissas, mas a condição essencial para o desenvolvimento de uma metodologia que vê na construção sistemática a única atividade da ciência. Como representações da realidade, as determinações jurídicas gerais são de qualquer natureza, menos secundária: Puchta, de fato, ancora a racionalidade das formas da desigualdade exatamente na matéria do direito e na resistência que a diversidade das relações opõe à redução da multiplicidade operada pela abstração igual169. Assim como é verdade que a hipostatização dos conceitos do direito assumidos como premissas do sistema não é uma consequência perigosa de uma atividade metodológica que se desenvolve na correção das operações lógicas, mas um postulado que a positividade do direito impõe à ciência, também é verdade, por outro lado, que a ciência não se livra do perigo de assumir a verdade lógica das premissas como valor não exclusivamente lógico dos conceitos, não se subtrai, por assim dizer, ao processo de valoração desses princípios, fazendo a unidade lógica do sistema se passar por unidade orgânica pressuposta no todo do qual o direito posi168 169

WILHELM, Zur juristischen Methodenlehre..., p. 82-3. Quando confrontada com o que escreveu Puchta em Cursus..., p. 56-7 (cfr. nota 24), a seguinte conclusão de Wilhelm dificilmente se sustenta: “Como fundamento do conhecimento do direito foram colocados os conceitos jurídicos, a partir dos quais é possível inferir, no plano de um desenvolvimento lógico, decisões concretas e princípios dogmáticos. Toda construção jurídica era, substancialmente, desenvolvida a partir dos conceitos” (WILHELM, Zur juristischen Methodenlehre..., p. 82-3).

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tivo seria expressão e adequação170. Puchta evita essa provocação, distingue coerentemente racionalidade e liberdade como princípios do direito e coloca como fundamento da ciência a explicação da pura racionalidade como conexão intrínseca das consequências, uma vez assumidas determinadas abstrações conceituais como premissas. A ciência se livra do risco de efetuar o salto da racionalidade à liberdade, da lógica ao valor. Apenas se assume que o princípio da positividade não é um valor – que ela não conseguiria de qualquer modo tratar em sua necessidade lógica a não ser a custo de difíceis conversões –, mas que o princípio da positividade é a contingência, ou seja, o fato de que o valor dos princípios do direito positivo não pode ser distinguido pela ciência da validade destes. E que, uma vez assumida essa identificação, aquele valor será valor de verdade puramente lógica. A ciência pode afirmar sem dificuldades que “uma decisão jurídica, pois, é direito quando é cientificamente fundada, ou seja, quando é verdadeira”171, somente se a metodologia se pretende totalmente livre de pressupostos, neutra, ou seja, se a verdade lógica produzida no sistema não deve ser, além de internamente fundada, também “conforme o espírito do povo”172. Mas esta é uma das poucas concessões que Puchta faz a respeito do princípio da autonomia da ciência, corajosamente afirmado por ele. Uma concessão cuja fraqueza ele mesmo conhece e que não danifica a validade lógica interna da verdade da ciência. E, de fato, quando, a propósito da lei, ele precisou apresentar o produto da legislação como espírito do povo, Puchta escreveu: Mas, uma vez dada a lei, sua validade certamente não pode depender de uma pesquisa de sua efetiva conformidade à vontade do povo. Tal pesquisa pressuporia um poder superior, que seria então precisamente o legislativo, e para o qual apareceria este problema. Portanto, aquilo que é estabelecido por meio de uma lei, nos modos previstos pela constituição, vale como direito, como vontade comum, não em virtude de seu conteúdo, mas em virtude da forma na qual vem expresso173.

Essa é uma prova do fato de que as concessões ideológicas também se imputam às conquistas da epistemologia, tornando claramente visível a marca de sua origem e o peso de suas contradições. 170

171

172 173

Como, ao contrário, parece crer Larenz, Op. cit., p. 22, sobre o caminho de Wilhelm, Zur juristischen Methodenlehre..., p. 86. G.F. PUCHTA, Das Gewohnheitsrecht, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1965, [Erlangen 1828 e 1837, Primeira e segunda partes], Primeira parte, p. 166; cfr. WILHELM, Zur juristischen Methodenlehre..., p. 77-8. Ibidem. PUCHTA, Cursus der Institutionen..., p. 19-20.

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Puchta constrói o sistema jurídico como desenvolvimento da racionalidade do direito e especifica a racionalidade na multiplicidade das formas de igualdade com as quais a abstração jurídica busca dominar a matéria, e na resistência que a matéria opõe à abstração. A urgência das relações, sua diversidade material, penetra na igualdade formal e o impacto que daí nasce abre o reino da liberdade ao domínio da necessidade: o sistema da liberdade é, então, invadido por formas de uma necessidade racional específica: o direito é qualquer coisa de racional, sustenta Puchta. Somente por isso, é objeto da ciência. Puchta, portanto, constrói um sistema do direito que tem como referência exclusiva a racionalidade das abstrações, ou seja, sua desigualdade, na qual se exprime o condicionamento das relações sociais e sua resistência à igualdade abstrata da forma jurídica. O direito, como objeto da ciência, coloca-se atrás do peso das relações sociais materiais; daquelas relações cuja multiplicidade e diferença deveria ser anulada no postulado da igualdade no qual se exprime o princípio da liberdade. O direito pode ser objeto da ciência justamente porque a necessidade natural, a diversidade da matéria, deixa-se dominar apenas pela racionalidade, pelos limites e confins que a definem racionalmente, que mantêm e consideram unidas as desigualdades reais. Como universo da liberdade, o direito não é objeto da ciência. Nem, por outro lado, à ciência se coloca o problema da liberdade: a ciência procede autonomamente, porque entre os dois universos não há passagem, não há referência: não é possível entender o direito como liberdade quando se parte da razão. A ciência entende o direito apenas como sistema de igualdades às quais é imanente a desigualdade das relações sociais materiais, porque só essa desigualdade é expressa no lado racional da abstração jurídica. O resultado da operação completada por Puchta é, sem dúvida, positivo. Puchta consegue tornar autônomo o direito como objeto da ciência e colocar a autonomia do objeto como condição de possibilidade da ciência. Porém, ele deve pressupor que a abstração jurídica é continuamente condicionada pela oposição da matéria, que, em Savigny, era colhida e superada no ato unificante da intuição do instituto, e que aqui, ao contrário, na concepção de Puchta, fica como referência e condição da atividade científica. Não somente isso: todo o aparato conceitual em torno do qual se desenvolve o sistema é condicionado pela desarticulação da matéria que as abstrações são obrigadas a cobrir: o caráter da necessidade penetra, assim, a fundo nas formas da igualdade, terminando por constituir para estas um obstáculo imanente contínuo, mas inevitável. Substancialmente, portanto, a positividade do resultado alcançado por Puchta é relativa, e é prejudicada pelo problema não resolvido da instância material

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no direito, que é, ao mesmo tempo, condição e pressuposto da racionalidade, mas obstáculo imanente à igualdade, ao direito como sistema de abstrações no qual se exprime o postulado da liberdade. Em outros termos, Puchta identifica o problema da forma jurídica no fato de que ela é ao mesmo tempo igualdade e desigualdade, liberdade formal e necessidade material, valor e fato. Entretanto, ele não consegue controlar cientificamente a bipolaridade desta forma e lhe tolhe um lado. Não por acaso, tolhe justamente o lado que sempre precisara de uma fundação metapositiva, ideológica. O outro lado, ele põe como objeto da ciência. Porém, deste modo, Puchta consegue obter resultados positivos com respeito à autonomia da ciência, mas a um preço extremamente alto: o direito, como objeto da ciência, é imediatamente condicionado pela instância material. É essa instância, a sua presença, sua necessidade imanente, que torna o direito “qualquer coisa de racional”, e, assim, objeto da ciência. Mas esta fundação parcial da racionalidade não pode satisfazer as vontades da ciência que deve assumir o direito como seu objeto na bipolaridade da abstração jurídica. Esta, por sua vez, não resulta da justaposição, nem, muito menos, como no caso de Puchta, do conflito entre os princípios da liberdade e da racionalidade, da igualdade e da desigualdade, ou, em outros termos, da instância material e de sua abstração formal. Puchta, podemos concluir, identifica o problema da instância material e de sua racionalidade como necessidade interna à forma jurídica, mas o deixa não resolvido. Todavia, o percurso seguido por ele oferece grandes vantagens. Como vimos: ele, de fato, consegue legitimar a jurisprudência como metodologia da construção sistemática dos conceitos e se sente satisfeito com uma fundamentação – ainda que parcial – do objeto. Porém, deste nasce sua indiferença em relação ao postulado da liberdade e, ao mesmo tempo, a diferenciação interna das suas formas. Mas o tema elidido da abstração representa continuamente o obstáculo epistemológico da instância material que opõe resistência à fundação de uma ciência do direito igual.

2

JHERING

2.1

A Emancipação da Abstração Jurídica e da Ciência

Jhering era consciente das dificuldades nas quais se encontrou Puchta e consciente de que a jurisprudência somente pode se estabilizar

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como metodologia se seu objeto alcança um nível de autonomia tal para que não se duvide e não aceite mais condicionamentos que, com base nas conquistas de Puchta, manifestamente derivam da instância material e não mais de princípios metafísicos. Jhering, então, historiciza a relação entre matéria e abstração que Puchta havia cultivado em sua rigidez imóvel. Ele admite que a matéria exerce todo o peso de sua determinação sobre a forma jurídica, que a abstração jurídica reproduz a desigualdade das relações sociais materiais sobre as quais se constitui, mas considera essa imanência e imediatez como o primeiro estágio evolutivo da forma jurídica, ao qual segue um processo que leva à total emancipação dessa forma de todo resíduo e condicionamento material e, assim, ao desenvolvimento do princípio da igualdade no direito. Este processo evolutivo da abstração jurídica é, ao mesmo tempo, para Jhering, processo evolutivo da ciência jurídica174 e estritamente entrelaçado com ele: a jurisprudência evolui de um nível inferior a um superior na medida em que, da consideração da proposição jurídica à qual agora é imanente o peso e a imediatez das relações sociais, passa à consideração da forma jurídica emancipada, livre de todo resíduo material, essência exclusivamente jurídica, universo constituído a partir de agora por “matéria puramente espiritual”175. É o próprio processo de purificação da abstração jurídica, portanto, que legitima a conversão metodológica da jurisprudência como ciência que manobra formas jurídicas, das quais finalmente desaparece todo resíduo material. Mas Jhering não é capaz de analisar a contextualidade destes dois processos, porque não é capaz de uma concepção da instância material substancialmente diversa daquela desenvolvida por Puchta. Assim como ele, concebe a instância material, sobretudo, como lugar da desigualdade e da diversidade e, assim, como lugar de produção da racionalidade das abstrações jurídicas. Porém, vai contra Puchta na medida em que estabelece que a forma jurídica sofrera um processo de 174

175

JHERING, R. v. Geist des römischen Rechts auf den verschiedenen Stufen seiner Entwicklung. Aalen: Scientia, 1968 (nova edição, Leipzig 1898), v. II, 2, p. 361: “Esta elevação (Erhebung) da matéria é também elevação da própria jurisprudência”. Sobre Jhering cf. WILHELM, Zur juristischen Methodenlehre..., p. 112-28; LARENZ, Op. cit., p. 26-9; as contribuições coletadas por F. Wieacker e Ch. Wollschläger in Jherings Erbe. Göttinger Symposion zur 150. Wiederkehr des Geburtstags von Rudolph von Jhering. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1970, particularmente a de H.J. Hommes, p. 101-15 e de LOSANO, M. G. p. 142-54; LOSANO, M. G. Sistema e struttura..., v. I, p. 228-50, que contém reflexões acuradas e interessantes sobre a epistemologia de Jhering; FIKENTSCHER, Op. cit., p. 187-235; útil também é WIEACKER, F. Rudolf von Jhering. Stuttgart: Koehler, 1968; COING, H. Der juristische Systembegriff bei Rudolf v. Jhering, in Philosophie und Rechtswissenschaft..., p. 149-71. JHERING, Unsere Aufgabe..., p. 12.

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emancipação, de liberação, de modo que, no tempo presente, ao término do processo, a forma aparece como igualdade objetiva sem ter excluído de si a racionalidade das abstrações. Ou seja, Jhering intui que o sistema das abstrações jurídicas é racional como sistema da desigualdade, mas é, ao mesmo tempo, o lugar da igualdade. Para superar o obstáculo, ele opera a seguinte conversão: apresenta como originalmente contextuais os níveis de desenvolvimento do direito e da ciência jurídica. Toma o processo de emancipação como evolução do sistema do direito e do sistema da ciência, mas apresenta a emancipação do direito, sua evolução para uma forma igual, como um processo de repressão do condicionamento da desigualdade material iniciado e efetuado pela ciência. Prisioneiro da concepção originária de Puchta, para quem a instância material é apenas princípio da desigualdade, Jhering não consegue desenvolver coerentemente os pressupostos implícitos na sua intuição da historicidade da relação entre matéria e abstração e é obrigado a pensar o processo de emancipação, que, na realidade, é um processo conjunto da instância material176 e da abstração na qual ela se exprime, como processo interno da ciência jurídica. Jhering não vê que a emancipação e a aparente contradição da forma jurídica como forma igual na qual se reproduz a desigualdade são reflexos da emancipação e da contradição que definem a própria instância material, e acredita resolver o problema da emancipação desta forma, evitando seu lugar real de produção e detendo-se apenas na consideração do seu reflexo no sistema da ciência. Voltemos à intuição originária de Jhering. Afirmamos que a abstração jurídica transforma evolutivamente sua estrutura; que ela não aparece mais condicionada a uma necessidade imanente, necessidade que Puchta via como pressuposto da racionalidade do direito; que o pressuposto de Jhering é justamente a emancipação daquela necessidade interna, a emancipação da abstração, de produto historicamente condicionado das relações sociais materiais a produto racional de uma construção puramente jurídica. Detenhamo-nos aqui por enquanto e vejamos como Jhering retrata esse processo e quais são as consequências que surgem dele. O direito é um produto inteiramente concluído pela história177, um “organismo objetivo da liberdade humana”178. Como produto natural, 176

177 178

Assim como “o caráter social da atividade e da participação do indivíduo na produção apresentam-se aqui como algo estranho e objetivo em relação aos indivíduos” (MARX, Lineamenti fondamentali..., v. I, p. 97-8). JHERING, Geist des römischen Rechts..., v. I, p. 26. Idem, p. 25.

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deixa-se determinar por meio de suas manifestações, que, da superfície dos fenômenos, permitem remontar até às estruturas íntimas do organismo. As primeiras, e simples, manifestações concretas do direito não são outra coisa que tentativas fracas de representação jurídica das relações sociais materiais. Tentativas limitadas, localizadas, definidas pela imediatez de uma visão discreta, diferenciada, dessas relações, que, somente na fraqueza e limitação que as caracterizam, expressão de um universo social pobremente diferenciado, prevalecem nas formulações que as representam. A essas formulações elementares e originárias, Jhering denomina proposições jurídicas. “As proposições jurídicas são abstratas em consideração às relações sociais e são determinadas para exprimir a natureza interna dessas relações e dar-lhes essa natureza definida”179. Elas não passam de “perfis pobremente polidos”, de figuras modelo do período da infância de um povo180, esboços incompletos, fachos de claridade laterais isolados181, nos quais se exprime a pressão de uma vida social182 e cujas relações não são tão complexas, de modo que mesmo na forma jurídica essas relações mantêm intacta a instância material que as determina183. Esta primeira e rudimentar formulação do direito não depende do caso, assinala Jhering, nem se trata de uma espécie de incompletude na origem do direito: é uma lei do devir histórico184, pela qual “o geral não vem à luz subitamente de forma geral, mas primeiramente em uma forma limitada”185. Mas é, ao mesmo tempo, uma lei do conhecimento, pela qual “o espírito humano, em cada setor do conhecimento, entrevê e apropria-se primeiro do concreto do que do abstrato”186. Também no direito, conclui Jhering, as manifestações concretas, ou seja, as proposições jurídicas relativas às relações jurídicas singulares, historicamente se apresentam desen179 180 181 182 183

184 185 186

JHERING, Geist des römischen Rechts..., v. I, p. 36. Idem, p. 28. Idem, p. 34-30. Idem, p. 26. Idem, p. 34. Nesse sentido, Jhering: “É oportuno considerar que as próprias relações naqueles tempos não eram tão complexas, diferentemente dos contemporâneos, que têm diante dos olhos as relações jurídicas concretas, as proposições jurídicas apareciam em uma luz diferente do que para o observador de uma época posterior: àqueles bastava um esboço incompleto; para estes, reproduz-se a imagem inteira. O observador de uma época anterior, diferentemente, vê apenas esboços ainda grosseiros”. Idem, v. II, 2, p. 340. Idem, p. 342. Idem, p. 338.

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volvidas muito antes das manifestações abstratas. Estas, antes de serem reconhecidas e expressas em sua verdadeira forma, ou seja, na forma geral, da legislação ou da ciência, tiveram que atravessar uma longa pré-história percorrendo diversas fases187.

A instância material, portanto, é apenas uma instância originária na história do direito, que não segue o direito em seu desenvolvimento. A história do direito é história do processo de libertação em relação a essa instância, como instância da diversidade e da desigualdade, de repressão do concreto e de conquista da abstração na sua autonomia e completude formal. Mas, nesse ponto, Jhering converte o processo real que penosamente descrevera em um processo causado pela ciência. Esta não segue mais paralelamente a evolução do concreto ao abstrato, adequando-a, mas a transfere para o seu interior, de modo que a evolução da abstração jurídica como repressão da instância material do desigual no direito (que até então se desenvolvia como reflexo da emancipação e da objetivação próprias das relações sociais) torna-se processo de seleção operado pela ciência e coincide com a evolução da estrutura e do aparato conceitual da própria ciência. O direito passa das manifestações superficiais intrínsecas à instância material para as mais profundas manifestações de sua natureza por um processo de emancipação que é essencialmente obra da ciência188. A ciência, de fato, acompanha e sustenta a forma jurídica neste processo de emancipação pelo qual a abstração jurídica conquista sua autonomia definitiva e alcança sua natureza mais profunda. A história deste processo, escreve Jhering, é de interesse particular, porque nela “se manifesta uma das operações mais importantes da técnica jurídica”189. Essa tarefa consiste na separação, no isolamento, do geral, do abstrato, em relação às manifestações históricas nas quais ele se localiza190. Os instrumentos dos quais a ciência se serve são diversos, não obstante o fim perseguido ser único e determinado: elevar a forma jurídica originária a puro momento lógico de um sistema191 que, por sua vez, deve aparecer como momento final de um desenvolvimento histórico. Aqueles instrumentos e os métodos que os legitimam nas operações conduzidas sob a forma jurídica permeada pela instância material não são de natureza puramente jurídica, na medida em que não permitem que a ciência produza material novo, mas apenas que reformule, reorganize o mate187 188 189 190 191

JHERING, Geist des römischen Rechts..., v. I. Idem, p. 341. Idem, p. 338. Idem, p. 342. Idem, v. I, p. 40.

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rial dado. Mas, são pressuposto necessário ao desenvolvimento posterior. A ciência simplifica quantitativa e qualitativamente o direito, o torna formalmente praticável. Analisa a matéria, isola o que é geral daquilo que é apenas localização particular; concretiza logicamente as abstrações produzidas em abstrações de nível superior: substancialmente, a ciência interpreta o material jurídico, e, por meio dessa interpretação, alcança um estágio superior de agregação da matéria. Aquilo que a ciência produz neste nível de operações “não é nada de especificamente novo: é sempre a substância jurídica originalmente empregada”192. E, assim como esta substância historicamente originária, em que forma e conteúdo do direito se cobrem completamente, é uma manifestação inferior do direito, também a ciência que a interpreta e a reduz aos seus princípios é uma jurisprudência inferior; ela não é uma operação especificamente jurídica e a substância originária não obtém por meio dela “nenhum caráter propriamente jurídico”193. A instância material é um obstáculo; mas um obstáculo do qual se libertam a jurisprudência e o direito na fase evolutiva superior na qual o direito aparece como pura abstração, como agregação sistemática de individualidades lógicas, de essências jurídicas194. A jurisprudência torna-se uma arte livre que constrói, forma, produz o direito, e ciência que, pelo método histórico natural, eleva “a matéria jurídica a um estado superior de agregação”195. Essa jurisprudência superior tem como objeto uma forma superior de manifestação do direito, uma forma livre de todo resíduo material, uma forma na qual existem somente a unidade sistemática196 e seus conceitos. A jurisprudência, como ciência propriamente jurídica, cumpre sua tarefa na construção jurídica do direito, ou seja, na construção de um sistema do direito no qual a instância material foi definitivamente reprimida, anulada. A matéria jurídica originária ganha aqui a forma de “corpos jurídicos”, de objetos produzidos pela ciência: material que é, sem dúvidas, dado, diz Jhering197. Aquilo que fazemos com este material, é criação nossa, “já que não simplesmente damos à matéria uma ordem diversa, mas a especificamos, construímos, a partir dela, corpos especificamente jurídicos”: institutos e conceitos jurídicos que são frutos da matéria originária. Esta matéria é assim volatilizada, dela restam apenas as essências que a ciência torna produtivas: 192

JHERING, Geist des römischen Rechts..., v. II, 2, p. 359. Idem, p. 358-9. 194 Idem, p. 359-60. 195 Idem, p. 361. 196 Idem, vol. I, p. 36. 197 JHERING, Unsere Aufgabe..., p. 10-1. 193

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Por meio de combinações dos diversos elementos, a ciência pode produzir novos conceitos e novas proposições. Os conceitos são produtivos, unem-se e os produzem de novo. As proposições jurídicas enquanto tais não têm essa capacidade de frutificar, são e permanecem apenas elas mesmas, assim não são reduzidas aos seus elementos mais simples e, por meio dessa redução, não entram em relação de parentesco com outras, em linha ascendente ou descendente; ou seja, revelam sua origem em outros conceitos, enquanto elas mesmas, por sua vez, não deixam surgir de si outros198.

Esta jurisprudência superior, que é metodologia da construção jurídica do direito, da produção das abstrações jurídicas implícitas nos agregados superiores de abstrações, nos institutos jurídicos e nos conceitos que os definem, distingue-se da jurisprudência inferior porque, ao caráter receptivo desta, opõe a sua profunda capacidade produtiva, sua capacidade de extrair dos corpos, das essências jurídicas, um novo e mais elevado direito. De extraí-lo das abstrações jurídicas cuja superioridade em relação àquelas originárias deriva do fato de serem produzidas como logicamente necessárias, na medida em que são implícitas às generalizações e abstrações de natureza puramente lógica, operadas sobre as formas originárias de manifestação do direito. As abstrações produzidas pela ciência nem sempre encontram aplicação imediata: devem passar longos períodos antes de serem valorizadas na prática. Pode se passar um século antes que uma dessas emirja à consciência, mas “ainda que não fosse previsível alguma utilidade, aquela proposição jurídica está lá, por si mesma, existe, porque não pode não existir”199. Nesta sua atividade produtiva, a jurisprudência superior, se, por um lado, é vinculada à necessidade lógica, por outro é arte livre criadora de essências jurídicas, de corpos que têm sua vida e sua liberdade, de individualidades que entram em contato recíproco, respeitando a estética e também a lógica. De uma jurisprudência que se apresenta como ciência e como arte, que se funda sobre as prestações unificadas da lógica e da estética, de tal jurisprudência superior, Jhering pode afirmar sem hesitação que “não se deixa mais entrar em dificuldade por causa da história”200. De fato, Jhering consegue emancipar o direito e a jurisprudência da história. Parte do pressuposto de que o direito é abstração das relações sociais materiais, de que essas relações são expressas na forma jurídica, 198 199 200

JHERING, Geist des römischen Rechts..., v. I, p. 40. JHERING, Unsere Aufgabe..., p. 18. Idem, p. 16.

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são fixadas num sistema de abstrações nas quais se objetivam. Mas Jhering também tem consciência de que aquela objetivação das relações tem uma existência separada e autônoma em relação às instâncias materiais que a condicionam. Todavia, não consegue apreender este processo na totalidade de seu desenvolvimento, já que não percebe que abstratas são as próprias relações sociais, que elas são dominadas por formas objetivas nas quais se exprime sua emancipação como indiferença, separação, expropriação. Jhering apreende somente o lado jurídico dessa emancipação e o fixa como processo autônomo do direito e da jurisprudência, e acredita que o desenvolvimento real do direito possa nascer apenas do interior do sistema das abstrações fixadas em suas identidades imóveis, ou seja, do interior do sistema da ciência. Seu projeto epistemológico, tendente a apresentar a evolução do direito a partir de suas formas tornadas eternas na substância das abstrações que nelas se exprimem, é um projeto que visa à conservação das relações das quais são geradas as abstrações201. Mas, por outro lado, é um projeto que leva ao cumprimento do projeto de emancipação real da forma jurídica, que aparece finalmente livre do condicionamento da instância material, puro produto lógico que domina e bloqueia os processos de emancipação real das relações sociais de produção.

2.2

História do Direito e História da Repressão da Instância Material

Jhering conclui a conversão metodológica da ciência jurídica, na medida em que mantém o direito livre de instâncias externas necessitantes e o constrói como um organismo fechado, como um sistema racional cuja racionalidade não depende mais da instância material do múltiplo nele presente, mas depende, de agora em diante, somente do fechamento lógico de um complexo de abstrações tornadas autônomas: “Entre o direito e a vida real, entre a concepção abstratamente jurídica e a concepção ético-natural, há um imenso abismo”202. A lógica expõe a história na jurisprudência, assim como a abstração, que é um produto moderno, expõe a concretude das relações sociais que vivem apenas nas formas separadas nas quais se objetivam. A autonomia da ciência só é possível se a ciência consegue pensar a autonomia de seu objeto. Puchta havia empreendido esta tentativa 201

202

Assim também WILHELM, Zur juristischen Methodenlehre..., p. 123: “Tal ciência jurídica serviria à legitimação e à manutenção do atual estado do direito”. JHERING, Geist des römischen Rechts..., v. II, 1, p. 299.

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com maior coerência que Savigny; mas sua concepção de racionalidade o havia obrigado a se portar conforme o obstáculo da instância material. Suas intuições, todavia, mostraram-se profundamente válidas. Jhering persegue a estrada indicada por Puchta e consegue superar aquele obstáculo, transferindo para a ciência a tarefa de realizar a emancipação do sistema de abstrações jurídicas, produzindo, assim, somente o reflexo de um processo que se desenvolvia na realidade. Mas é justamente a produção desse reflexo, o desenvolvimento do lado lógico de um processo real, que confere à empresa de Jhering, não obstante as numerosas dificuldades internas à sua construção, uma grande conquista epistemológica. Suprimida a história, eliminada a instância material, o direito se apresenta como produção da ciência, como complexo autônomo de abstrações que se reproduzem por si mesmas, internamente. A jurisprudência é pura metodologia, é técnica que organiza o cálculo da reprodução das formas. Anulada a instância material, Jhering inverte a racionalidade objetiva das relações sociais de produção e a apresenta agora como razão apenas jurídica, como objetividade das formas nas quais aquelas relações se expressam. A ciência revela esta objetividade e a enriquece com a explicação das formas implícitas, atribuindo-se o caráter de atividade produtora de novas e superiores abstrações. Mas a superioridade real dessas abstrações consiste, de uma parte, no fato de que sua produção é possível somente quando o sistema inteiro adquire uma objetividade própria – reflexo da objetivação e da separação que já fora realizada no sistema de relações sociais –, e, de outra, no fato de que, enquanto as abstrações jurídicas originalmente exprimiam apenas a cristalização das relações pouco diferenciadas – e, portanto, ainda não plenamente objetivadas –, as abstrações jurídicas modernas tendem a bloquear a emancipação das relações sociais tornadas objetivas na reprodução de si mesmas, a fixá-las pela imobilidade de suas formas originárias. As abstrações da ciência jurídica, então, não são vazias203, ou, pelo menos, o são tanto quanto as abstrações originárias nas 203

Como deveria crer o próprio Jhering, nos anos de maturidade, quando empreenderá uma profunda crítica de seu pensamento e da jurisprudência dos conceitos, no âmbito da qual se identificava seu pensamento. O ‘segundo’ Jhering criticará o vazio, o logicismo abstrato e o conceitualismo de sua própria construção jurídica, e tentará ligar a ciência à realidade e à concretude, preenchendo aqueles pressupostos vazios por uma teleologia e de um sociologismo mais ‘realistas’. O mesmo caminho será seguido pelos expoentes da jurisprudência dos interesses. A autocrítica de Jhering é estéril e epistemologicamente improdutiva, na medida em que se constrói sobre um pressuposto falso: o do vazio das abstrações da ciência. Estas abstrações não são vazias: sua plenitude é a plenitude das relações sociais materiais, que nelas exprimem sua objetividade e sua alienação; de fato, estas relações são abstratas, mas sua

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quais se fixa a forma das relações sociais sobre as quais são produzidas. A ciência organiza e dá vida a formas que são abstrações reais; a formas objetivadas que se separam da vida real dos indivíduos e a dominam somente quando a própria vida real se torna uma abstração, uma abstração que vive na realidade do Estado moderno. Jhering, portanto, pretende a superação do obstáculo constituído pela instância material como repressão, na forma jurídica desenvolvida, da materialidade das relações reais: a história do direito é história de repressão daquela instância. A história é evolução das manifestações originárias com materialidade para as manifestações superiores emancipadas; é evolução da multiplicidade presente, como instância racional, na abstração, para a unidade sistemática produzida pela ciência. Nessa unidade, nesse organismo, a história do direito, ou seja, a história da separação e do isolamento da forma jurídica, aparece, agora, somente como produto racional da ciência, assim como sua necessidade interna é convertida em necessidade lógica, em tautologia. A produtividade da história se converte em produtividade da ciência; mas esta conversão é possível porque, na verdade, a história moderna exprime o processo de expropriação da racionalidade como recurso da multiplicidade, como recurso no qual todos podem participar, como propriedade do indivíduo, e, ao mesmo tempo, o processo de concentração da racionalidade como propriedade do sistema, jurídico, econômico e político. O lado jurídico destes processos é entendido com grande profundidade por Jhering, que escreve que a produtividade da história do direito tem por objeto o desenvolvimento do organismo jurídico” e que “o tempo deve ser reprimido pelo sistema”; este último deve se desenvolver livremente a partir de si mesmo, sem ser limitado pelo tempo, que deve encontrar acesso apenas na medida em que esteja em situação de se dissolver em momento do sistema204.

A repressão do tempo permite a Jhering transferir definitivamente à ciência a capacidade produtora de direito e, assim, completar definitivamente a anulação da instância material na diversidade de suas expressões históricas. No tempo, de fato, exprime-se a resistência e a oposição do diverso, do múltiplo, do concreto à lógica e ao sistema das

204

abstração não é lógica e não é vazia. A adição de um escopo, portanto, não torna concreta a abstração à qual se refere, assim como não dá concretude à ciência, que é obrigada a seguir e a desenvolver aquela abstração originária. Idem, v. I, p. 69-75.

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formas. Reduzido a momento do sistema, o tempo existe apenas pela abstração como tempo presente, porque a abstração jurídica é forma fixada em sua eterna presença. O tempo presente é o tempo da abstração. O concreto pertence ao tempo passado: a instância material era uma necessidade do passado que o presente reprimiu. Savigny, que havia procurado no passado a necessidade do presente, e havia considerado o presente como a verdade do passado, não conseguiu apreender o caráter do tempo presente como tempo da abstração, e terminara por fazer uma apologia ruim do passado na tentativa de legitimar o presente. Jhering, ao contrário, apreende o presente como o tempo da abstração que se emancipou e que se legitima justamente porque é esta emancipação do passado como tempo do concreto, de forma que o presente é uma hipóstase, justamente porque existe, porque sua existência reprimira todo pressuposto. O direito legitima-se como forma do presente, como abstração universal. O presente como tempo do abstrato encontra no direito sua forma universal, sua expressão geral no sentido em que o presente é o tempo do direito, mas também no sentido em que o direito é a forma universal que domina o presente. Somente no tempo presente o direito alcança seu desenvolvimento mais alto e completo, como forma universal que domina o tempo. Apenas agora, o direito é a coesão abstrata dos sistemas desagregados do agir porque é a abstração do agir posta como válida: “Assim, então, o espírito do povo e o espírito do tempo são também o espírito do direito”205. “As proposições jurídicas positivas são os pontos dados pelos quais a construção jurídica deve fazer passar sua linha de construção”, escreve Jhering206 ilustrando a primeira lei da construção jurídica, da atividade especificamente jurídica que caracteriza a jurisprudência superior. Esta lei estabelece que a construção jurídica operada pela jurisprudência deve “cobrir” a matéria positiva no sentido de que, por ser a construção livre para conferir a esta matéria a forma mais idônea, na matéria deve “permanecer a mesma força prática que havia na forma até agora”207. Com base nesse princípio, a jurisprudência é ligada à matéria jurídica positiva, sua liberdade é condicionada pela congruência com ela: a jurisprudência superior “é ligada à lei”, afirma Jhering mais adiante, sem hesitação208. Estes enunciados poderiam nos fazer pensar em uma contrariedade interna à concepção de jurisprudência superior que havíamos expos205 206 207 208

Idem, p. 45. Idem, v. II, 2, p. 371. Idem, p. 373. Idem, p. 374.

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to de início. Eles, na verdade, são pouco coerentes com a imagem desta jurisprudência se não considerarmos que Jhering, um pouco antes, a definira como “ciência que, não obstante o positivo presente em seu objeto, deixa-se caracterizar como ciência natural envolvida por um âmbito espiritual”209. Procuremos desatar o nó. Jhering chegou ao princípio da positividade do direito e de seu fundamento contingente como pressuposto da ciência jurídica reduzida a pura metodologia. Para Jhering, o fundamento contingente está presente com maior clareza do que para Puchta, de forma que emerge da concepção evolutiva da abstração jurídica. Mas este é o ponto: a contingência é legitimada por Jhering sob uma perspectiva organicista evolutiva, no sentido de que a abstração contingente do direito moderno é apresentada como o ponto de chegada e a conclusão da história da forma jurídica. A contingência é apresentada e legitimada como expressão de uma forma, obtida na ciência por generalização e concentração lógica, que assim vem fixada na abstração moderna do direito: esta expressão, então, não aparece mais como contingente, porque é referida imediatamente à forma que foi isolada, a partir dela, pela jurisprudência, como o resultado lógico, a essência do direito. Desse modo, Jhering desloca o discurso da contingência para a forma que não é mais contingente. No sistema do direito, a contingência ligada ao tempo e à história desaparece com eles, anula-se no presente, que não é mais contingente, na medida em que realiza a forma. O tempo presente é o tempo da abstração. O tempo presente é momento do sistema, mas é o momento no qual a processualidade do tempo, que é a história da repressão da instância material, desaparece porque se conclui na forma. A jurisprudência, então, constrói-se na história, e, portanto, é ligada à contingência, que permanece, assim, pressuposto da conversão metodológica da ciência. Seu tema, porém, não é a contingência da abstração, mas a forma que ela apresenta como realizada na abstração do presente, abstração tornada essência, natureza. Jhering, por esta razão, pode dizer que a construção jurídica é ligada à lei e também que a jurisprudência é ciência natural não obstante o positivo presente em seu objeto. A operação feita por Jhering é rica em consequências. Ela afirma o princípio da positividade da ciência. Jhering sustenta que a ciência moderna do direito se distingue por sua produtividade em contraste com a receptividade que a havia caracterizado em todo seu desenvolvimento precedente. Mas, produtiva é a essência do direito, as abstrações que são objeto da jurisprudência superior, os institutos e conceitos para os quais foi cancelada a instância material. Nesses institutos e conceitos, a juris209

Idem, p. 361.

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prudência superior não fez outra coisa que cristalizar a contingência em sua forma presente, fixando-a como produto natural, como produto absoluto no qual se realiza o espírito do direito: este produto, de fato, não é outro senão o resultado lógico da contingência em sua forma presente, para a qual foi reprimida a instância material. A produtividade da ciência apresentada como realização da essência jurídica, como capacidade produtiva do direito a partir dos corpos jurídicos, da forma, não passa de capacidade de produzir incremento contínuo de normas repressivas da instância material do ponto de vista restrito da contingência atualmente produzida e já existente. De modo que, por um lado, obtenha-se o resultado de incrementar a produção de instâncias legitimadoras da contingência jurídica em sua forma presente, ou seja, do direito positivo existente, e, por outro, o sistema desta contingência seja um sistema fechado, perigosamente fechado. Ele encontra em si mesmo, como consequência natural de sua estrutura, a impossibilidade de uma estabilização evolutiva, porque de sua estrutura é excluída a possibilidade de produzir contingência ulterior, que não seja aquela já dada e já legitimada nas premissas do sistema. O desenvolvimento do direito a partir de si mesmo resolve-se, assim, em uma tentativa de estabilização do direito positivo existente, de incremento das instâncias legitimadoras internas. Essa tentativa visa a impedir toda possibilidade evolutiva, no sentido de uma ulterior produção de contingência, na medida em que o direito existente é fixado e legitimado como expressão da essência jurídica. Produtiva, ao contrário, é a jurisprudência, que produz formas ulteriores de repressão da instância material, que dependem do grau de repressão dessa instância obtido pelo direito existente e estritamente condicionado por ele. O desenvolvimento real é um processo que segue a evolução da forma jurídica, não a produção de nova contingência, que seria privada de instâncias legitimadoras. Jhering especifica a conversão metodológica da ciência jurídica como atividade produtora de formas de repressão da instância material, mas esta atividade é abastecida por recursos escassos porque é vinculada à quantidade de repressão originária produzida pela contingência, ao seu determinado grau de complexidade. Não podendo produzir contingência nova e diversa, o sistema é extremamente limitado em seus recursos disponíveis, é limitado à complexidade obtida e expressa no presente, é substancialmente um sistema estático, que pode explicar apenas o que nele já está contido. A grande conquista de Jhering, portanto, consiste em haver identificado, na conversão metodológica da ciência jurídica, a função específica de legitimação da repressividade da abstração jurídica. Seu limite, por outro lado, consiste no fato de que, não dispondo de uma teo-

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ria da produção de contingência, ou seja, de uma teoria dinâmica do ordenamento jurídico, foi obrigado a limitar o universo do discurso científico à quantidade de contingência produzida, e, portanto, a níveis circunscritos de repressividade, na medida em que faltava a ele a matéria prima necessária à produção de novas e mais complexas formas de repressão da instância material. Mas o limite de Jhering é o limite da metodologia. É um obstáculo implícito em uma jurisprudência à qual falta uma teoria da produção de contingência normativa, como instância repressiva originária privada de pressupostos e limites e aberta a possibilidades infinitas210. Kelsen, ao contrário, abrirá o sistema, predispondo-o a possibilidades evolutivas com base em uma teoria que atribui ao direito a propriedade de se reproduzir sem pressupostos. Ele deslocará o discurso do plano da contingência produzida para o próprio problema da produção de contingência.

3

KELSEN

3.1

A Questão: “Como é Possível o Direito Positivo Enquanto Objeto de Conhecimento, Enquanto Objeto da Ciência Jurídica”

O sistema da epistemologia jurídica, como vimos, deve cumprir essencialmente duas funções: elaborar soluções para o problema da contingência e construir a categoria jurídica como instância puramente formal pela qual seja reprimida toda instância material. Positividade e abstração são as características fundamentais do direito moderno. As dificuldades que a epistemologia jurídica encontra em sua constituição, e que opõem diferentes graus de resistência, derivam da incapacidade da ciência de pensar a contingência em sua correlação interna com a autonomia, com a liberalização da abstração jurídica e, portanto, em sua relação necessária com a superação do problema da verdade e da metafísica, ou seja, da ideologia. Elas também derivam da incapacidade de pensar a forma jurídica como forma originariamente separada e, portanto, de eliminar na raiz o peso da instância material, ou seja, de pensar a forma jurídica não como expressão de algo fora de si, como se fosse uma forma que exprime um conteúdo, mas como existência objetiva, como âmbito de significados cuja objetividade deriva de um processo 210

Definíveis apenas no interior da história.

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particular de produção dos próprios significados, e não de uma referência externa. No desenvolvimento da ciência jurídica pode-se observar o seguinte círculo: por um lado, a tentativa de resolver o problema da positividade, não conseguindo tematizar a contingência, absolutizava a forma jurídica como cristalização imóvel de abstrações idênticas a si mesmas, pela qual se desvalorizava o próprio princípio da positividade do direito moderno e se reforçava a tentação jusnaturalista. Por outro lado, a tentativa de pensar a autonomia da forma jurídica, não tendo sido resolvido o problema da positividade, trazia consigo, deixando irresolvido, o processo de repressão da instância material: era condicionada continuamente à própria autonomia da forma, a qual resultava esvaziada, enquanto aparecia assim como forma de um conteúdo preciso. Esse complexo de dificuldades podia ser superado sobretudo com base em uma profunda reavaliação das conquistas da ciência jurídica. A esta atividade volta-se o trabalho de Kelsen, que se coloca no caminho da ciência jurídica aberto por Savigny – que se desenrola, não obstante os obstáculos, como estratégia unitária tendente à afirmação da positividade do direito, até o início deste século – conseguindo fazer convergir em um complexo epistemológico sistemático e unitário os esforços e conquistas da conversão metodológica. Com sua obra, Kelsen conclui o quadro de referência da epistemologia clássica, mas abre, ao mesmo tempo, um novo âmbito de problemas em torno dos quais se desenvolverá a reflexão futura sobre o direito positivo. Ele representa o ponto mais alto da consciência jurídica positivista ligada à afirmação do princípio da positividade do direito e à conquista teórica da autonomia da categoria jurídica, e, ao mesmo tempo, o ponto de partida da reflexão teórica sobre o direito ligada à estabilização do sistema jurídico, como contingência normativa continuamente reproduzível. Kelsen parte do postulado da irredutível separação entre ser e dever ser, entre natureza e sociedade, entre fato e valor. Este postulado lhe permite isolar o universo jurídico como universo do dever ser, como “técnica específica de organização social”211, como universo de sentidos que qualificam objetivamente fatos e eventos do mundo natural. Enquanto sistema de qualificações normativas, o direito pertence ao universo do valor: ele constitui um sistema do valor definido pela objetividade das valorações, dos sentidos atribuídos aos fatos e eventos do mundo natural. A objetividade dessas valorações depende exclusivamente das condições puramente formais de sua produção, de sua validade entendida como 211

KELSEN, H. Teoria generale del diritto e dello Stato..., p. 5.

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existência específica da própria qualificação. A objetividade do sentido, de fato, não é absoluta. Seria apenas se fosse derivada da natureza, se fosse universalmente verdadeira. Ela é hipotético-relativa, tem apenas um significado formal: a validade da qualificação deriva do fato de que esta tem uma existência específica – foi produzida de uma dada maneira ou posta por uma dada pessoa212. O fundamento de validade de todo o sistema de qualificações normativas é constituído por uma norma cuja própria validade não pode ser derivada de outra norma, que não pode ser colocada em discussão, que não é posta já que deve ser aceita como condição de possibilidade da positivação das normas, e que, portanto, é pressuposta e contém somente “a instituição de uma fatispécie produtiva de normas”213. Da norma fundamental, o sistema de normas não deriva o fundamento de seu conteúdo, mas o fundamento de validade, indiferente a este, o qual determina apenas as condições formais da produção de qualificações normativas e constitui o pressuposto lógico-transcendental de interpretação do sentido subjetivo das qualificações normativas como seu sentido objetivo, como normas jurídicas objetivamente válidas. O sistema jurídico apresenta-se, assim, como um universo de qualificações normativas cuja coerência e unidade são estabelecidas pelas relações formais de sua produção, indiferente, como dever ser, em relação às instâncias materiais próprias do ser. Um universo que mantém a separação e deriva sua autonomia do seu interior, das raízes hipotético-relativas sobre as quais se apoia sua estrutura. Esta construção do sistema jurídico permite a Kelsen organizar uma resposta completa para o problema que está na raiz da epistemologia jurídica moderna: “Como é possível o direito positivo enquanto objeto de conhecimento, enquanto objeto da ciência jurídica; e, consequentemente, como é possível uma ciência jurídica?”214. Enfrentemos separadamente os dois aspectos do mesmo problema. “A distinção entre o ‘dever ser’ e o ‘ser’ é fundamental para a definição do direito”215, “o direito positivo como norma é, do ponto de vista imanente, um ‘dever ser’ e portanto um valor, e, dessa forma, põe-se frente à realidade da efetiva conduta humana, que ele julga conforme ou contrária ao direito”216. A juridicidade deste dever ser é relacionada à sua relatividade: esta tem um caráter apenas formal, porque não se refere 212 213 214 215 216

KELSEN, H. Teoria generale del diritto e dello Stato..., p. 401. KELSEN, H. La dottrina pura del diritto..., p. 220. KELSEN, H. Teoria generale del diritto e dello Stato..., p. 445. Idem, p. 37. Idem, p. 400.

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a um conteúdo determinado conhecido ou constatado como objetividade válida com base em propriedades imanentes, como “universalmente bom” ou “justo”. Ser ‘relativo’ – precisa Kelsen – significa aqui que um tipo de conduta prescrito por uma norma jurídica positiva é considerado como o conteúdo deste ‘dever ser’ e é, consequentemente, ‘bom’ e ‘justo’ com base somente em um assunto cuja ‘bondade’ e ‘justiça’ não foram averiguadas217.

A categoria da juridicidade, então, caracteriza-se como categoria separada não apenas em relação à natureza218, que é o universo da causalidade, e, portanto, da objetividade do ser necessário, mas também em relação à moral e à justiça, que descrevem o universo do valor, e, portanto, da liberdade. Mas a categoria da juridicidade é separação e isolamento, não porque seja privada de relações com a natureza e com o valor: ela é, de fato, ao mesmo tempo, natureza e valor, como veremos. É a indiferença em relação à objetividade da natureza, que exprime a causalidade, e em relação à subjetividade do valor, que exprime um princípio de justiça ou de moral. Essa indiferença, na realidade, produz uma relação ambivalente com a natureza e com o valor, relação que devemos analisar. “O valor como dever ser contrapõe-se à realidade como ser; e valor e realidade – assim como dever ser e ser – recaem sobre duas esferas diversas”219. O que se valora é a realidade. A norma prevalece sobre a realidade e mostra-se indiferente frente a ela. A validade da norma não depende da realidade por ela qualificada, a realidade permanece impotente em sua necessidade causal diante da norma: do ser ao dever ser não há passagem. Do fato de que uma coisa é não se pode inferir que essa coisa deva ser220. A norma constrói-se sobre um nexo de imputação regulado por uma escolha arbitrária de valores. A natureza, em suma, não constitui um obstáculo para a norma, porque a norma, como dever ser, é indiferente à realidade. A natureza, de fato, tem para a norma um significado subjetivo. Diante da norma, sua objetividade é irrelevante enquanto tal: o fato, o evento, o ser são limitados pela subjetividade de seu significado, o que não os torna relevantes para a norma: é a norma que qualifica a natureza, conferindo-lhe significados objetivos. O dever ser da norma é insti217 218

219 220

KELSEN, H. Teoria generale del diritto e dello Stato..., p. 400. Cfr. CERRONI, Op. cit., p. 130 ss.; RUSSO, F. Kelsen e il marxismo. Democrazia politica o socialismo. Firenze: La Nuova Italia, 1976. p. 17-34. KELSEN, H. La dottrina pura del diritto..., p. 28-9. Idem, p. 217.

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tuição de significados objetivos, é produção de objetividade: esta objetividade, como vimos, é, por sua vez, o significado de fatispécies que produzem direito com base em um fundamento de validade. Este é fundamento de validade já que estabelece as condições formais da validade das fatispécies que produzem direito e permanece indiferente a respeito do conteúdo das normas válidas. Normas válidas são as que pertencem a um determinado sistema jurídico: “As normas de um ordenamento jurídico devem ser estatuídas mediante um ato particular de criação. Trata-se de normas estatuídas, ou seja, positivas, elementos de um ordenamento jurídico”221. Validade é a existência específica da norma jurídica. O direito pode ter qualquer conteúdo: a categoria da juridicidade é indiferente à subjetividade do fato. A natureza recebe a objetividade, o valor, por meio da qualificação de uma norma válida. O dever ser é um significado objetivo que vale porque foi posto: seu valor é relativo. Mas este valor, justamente pela positividade, ou seja, da sua existência, torna-se objetivo. Sua indiferença em relação à natureza, portanto, é uma indiferença que pesa: ela produz objetividade pelo fato de sua existência. Sua positividade é um vir a ser como significado objetivo que se atribui a fragmentos isolados da natureza. Mas esta atribuição é uma espécie de apropriação da natureza. E, de fato, o significado expresso pela categoria jurídica, seu ser objetivo, surge da positividade: Ao contrário do direito natural, o direito positivo aparece como algo artificial, vale dizer, como algo criado por um ato empírico de vontade que se verifica na esfera do ser, ou seja, na esfera dos eventos efetivos. Aparece, assim, como uma realidade frente à qual está, como valor, o direito natural222.

Se frente ao valor o direito positivo aparece como uma realidade, frente à subjetividade desse valor, ele é a única realidade objetiva do valor: sua qualificação é a real, única existência objetiva do valor. Mas esta existência é real não só diante do valor como subjetividade; ela é real em absoluto porque só põe como objetiva aquela subjetividade da natureza isolada como significado da qualificação: O conteúdo da norma fundamental, ou seja, o fato histórico particular qualificado pela norma fundamental como o primeiro fato produtivo de direito, depende inteiramente do material entendido como direito positivo, da riqueza dos atos dados empiricamente, que subjetivamen221 222

KELSEN, H. La dottrina pura del diritto..., p. 223. KELSEN, Teoria generale del diritto e dello Stato..., p. 400.

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te pretendem ser atos jurídicos. Objetivamente, eles são válidos apenas em virtude de sua ligação com o ato fundamental que, graças à norma fundamental, é pressuposto como o primeiro fato produtivo de direito223.

A norma fundamental, o fundamento da validade de todo o sistema de qualificações normativas válidas, tem, portanto, duas funções: “Reconhecer como direito um material historicamente dado” e “compreendê-lo como um todo coerente”224. Mas a norma fundamental não é posta: ela não é direito positivo; ela é norma hipotética e pressuposta; é condição de possibilidade do direito positivo como sistema normativo válido: “A norma fundamental”, portanto, “não é válida porque foi criada de um certo modo, mas sua validade é pressuposta em virtude de seu conteúdo. Ela é válida, assim, em confronto com uma norma de direito natural, não obstante sua validade puramente hipotética”225. A separação da categoria jurídica significa que a positividade, como processo que leva à existência o dever ser, é um processo privado de mediações entre a subjetividade originária do ser e a objetividade que “o material historicamente dado” adquire em virtude da qualificação normativa: “Este, na verdade, é o problema da positividade do direito: o direito aparece como um ‘dever ser’ e um ‘ser’ ao mesmo tempo, enquanto logicamente estas duas categorias excluem-se mutuamente”226. A categoria jurídica, portanto, é separada porque, como a norma de direito natural, é pura subjetividade: objetivo é aquele material historicamente dado que rompe as correntes de sua subjetividade e se impõe como dever ser: “A norma fundamental significa, portanto, em certo sentido, a transformação do poder em direito”227. Porém, a separação é, ao mesmo tempo, indiferença, porque o fragmento de natureza isolado, e assim tornado objetivo, é indiferente às subjetividades dos valores e, portanto, às subjetividades dos materiais que historicamente se produzem, e que, enquanto fatos, dados naturais, são impotentes diante do dever ser objetivo do direito positivo. Os materiais não adquirem relevância se não são supostos como subjetividade que é objetivada, como fundamento da indiferença. E, de fato, o ser conteúdo da norma fundamental, ou seja, o ser condição de validade do fundamento de validade, não vincula, a não ser no plano puramente formal, a fatispécie que produz direito. O direito positivo é um 223 224 225 226 227

KELSEN, Teoria generale del diritto e dello Stato..., p. 444. Ibidem. Idem, p. 408. Idem, p. 400. Idem, p. 444.

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ordenamento dinâmico justamente porque, diferentemente do direito natural, ordenamento estático, as qualificações normativas da natureza que ele produz são indiferentes a qualquer conteúdo, não possuem nenhuma relação de implicação com o material historicamente dado do qual nasce a fatispécie que produz direito. A própria ambivalência que o direito positivo apresenta na natureza, caracteriza seu ser relativo e hipotético em relação ao valor como princípio da moral ou da justiça. O valor que se exprime na positividade do direito é subjetividade que é fixada como a única realidade objetiva do valor, como valor objetivamente válido. A norma é dever ser, é valor ao qual um processo formal confere validade objetiva: a justiça pode ser objeto de conhecimento apenas como legalidade, porque apenas como legalidade o valor subjetivo de um princípio de justiça pode ser fixado e tornado válido como valor objetivo, universal, único. Ele permanece, todavia, um valor subjetivo, como tal; mas, tornado princípio de qualificação normativa, não pode ser senão valor, separado, isolado, tornado indiferente às subjetividades dos valores excluídos. A objetividade do valor da norma exclui as subjetividades dos valores marginalizados, as reprime por causa da indiferença: aquele valor é o único ao qual foi reconhecida uma realidade objetiva. O valor isolado na qualificação normativa, tornado objeto da seleção que leva ao isolamento de uma subjetividade e que confere existência positiva a essa subjetividade, torna-se realidade diante do dever ser das subjetividades dos valores excluídos, os quais permanecem valores subjetivos que não têm existência objetiva, como dever ser diante da realidade do valor tornado direito positivo. Mas aquele valor tornado realidade exclui a realidade de qualquer outro valor, já que é posto como o único valor, como o único dever ser objetivo e, portanto, cognoscível. O dever ser é valor objetivo somente se é valor de uma existência constituída por meio do ato formal que produz a qualificação normativa. A unicidade dessa existência se exprime também no seguinte: o valor que não seja valor do direito positivo, que seja privado de existência objetiva, possa se colocar diante daquele apenas como valor do direito natural. O valor que não seja isolado como direito vem marginalizado como ideologia. Da construção de Kelsen, a categoria jurídica resulta como uma forma dotada de propriedades particulares: ela se constrói sobre um material historicamente dado, em relação a eventos também historicamente dados, mas é, ao mesmo tempo, existência que não tem história, porque é indiferente à processualidade, à evolução, ao diverso. Ela é existência fixada, é abstração do tempo, mesmo se é produzida no tempo e pode ser reprimida no tempo: é subjetividade do valor, é individualidade de um ser

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– o poder que se torna direito – mas é, ao mesmo tempo, valor objetivo, unidade do dever ser, norma. É um fato da natureza, um fragmento da realidade, mas, ao mesmo tempo, é o valor na sua unidade228, é a realidade exclusiva do valor. Esta categoria é, ao mesmo tempo, ser e dever ser, contingência e necessidade, fato e valor: suas propriedades não são perceptíveis aos sentidos, mesmo que sua existência seja materialmente verificável. E isso, de fato, é o segredo da forma jurídica: ela é algo sensivelmente suprasensível229. Kelsen é o primeiro teórico que, diante dessa duplicidade, dessa ambivalência da forma jurídica, não tenta reprimir um de seus aspectos para privilegiar o outro. Kelsen supõe a forma jurídica assim como ela aparece, como se apresenta: põe seu caráter sensivelmente suprasensível como condição de possibilidade da própria forma jurídica, e a partir daí deriva com coerência lógica todas as metamorfoses dessa forma. Kelsen assume que a instância originária da forma é a instância do ser à qual é inerente a subjetividade do valor. Mas, ao mesmo tempo, que a forma pode se pôr apenas como dever ser objetivo que reprime toda subjetividade, e que já reprimiu toda individualidade do ser. Se a forma jurídica é, originariamente, essa duplicidade, ela é suposta sem pressupostos ulteriores, e se desenrola coerentemente. É esta suposição que permite a Kelsen superar o obstáculo epistemológico da instância material que havia constituído a dificuldade mais consistente diante da qual se encontrava a ciência jurídica de Savigny a Jhering, sem conseguir vislumbrar uma solução capaz de conter a duplicidade implícita na forma jurídica. O problema da instância material é um problema que a forma jurídica já resolveu através de seu ser posta como válida e exclusiva: a forma é repressão da instância material, da subjetividade, porque é subjetividade tornada objetiva, posta como valor único, igualdade na qual se reproduz a desigualdade. Este processo, que, em uma parte, é processo de hipostatização, e, de outra, é processo de repressão da objetividade da instância material, ou seja, de repressão da materialidade como produto histórico, aparece como processo interno à forma, como sua metamorfo228 229

KELSEN, Teoria generale del diritto e dello Stato..., p. 417. Cf. CERRONI, Op. cit., p. 37-40, 129-50; NEGT, O. Zehn Thesen zur marxistischen Rechtstheorie. In: ROTTLEUTHNER, H. (Org.). Probleme der marxistischen Rechtstheorie. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1975, alle p. 10-71, 20 ss., 54-8; ERCKENBRECHT, U. Das Geheimnis dês Fetischismus. Grundmotive der marxschen Erkenntniskritik. Frankfurt a.M.: Europäische Verlagsanstalt, 1976; TUSCHLING, B. Rechtsform und Produktionsverhältnisse. Zur materia listischen Theorie des Rechtsstaates. Frankfurt a.M.: Europäische Verlagsanstalt 1976. p. 94-7.

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se. Aquilo que se conhece é apenas essa metamorfose: o problema da ciência é puramente morfológico. Mas a metamorfose não é outra coisa que o vir a ser, o ser posto da forma como existência jurídica válida. Justamente com este propósito foi dito que o coração e o cérebro do normativismo estão no critério de validade230. O direito positivo, portanto, – essa é a resposta de Kelsen ao problema fundamental da epistemologia jurídica – é possível como objeto de conhecimento somente como forma de valor que cancelou para si todo caráter sensível, natural, como objetividade igual de valor que é inerente a uma existência subjetiva do valor, igualdade abstrata das instâncias materiais reprimidas; sistema de relações abstratamente sociais, ou seja, forma de domínio das relações sociais materiais. A grande aquisição de Kelsen, podemos concluir, consiste no seguinte: ele descreve o direito positivo como coisa sensivelmente suprasensível, por meio da análise da metamorfose da forma de valor, ele identificou o caráter fetichístico do direito burguês. Mas Kelsen não prosseguiu na análise desse caráter fetichístico, não penetrou o “caráter enigmático” desta abstração. Ao contrário, ele desenvolveu apenas o ponto de vista imanente231 da normatividade da abstração jurídica e transpôs a ambivalência do caráter fetichístico do direito a condição lógico-transcendental232 da interpretação científica do direito positivo, com o seguinte resultado: a ciência pode desenvolver apenas o “lado místico”, o momento lógico, e bloqueia-se o lado terreno, o momento material, aquele ponto de vista não imanente à normatividade, porque originariamente reprimido. Mas os pontos de vista têm um sentido. O ponto de vista não imanente à normatividade é aquele que parte da análise das metamorfoses da forma de valor, a fim de esclarecer a normatividade e sua função repressiva da instância material. Este ponto de vista assume a análise daquilo que é reprimido como o pressuposto do conhecimento da instância repressora. Ele descobre que a categoria jurídica se desenvolve como “a forma mais abstrata, mas também a mais geral”233 das relações sociais materiais, somente em uma formação econômico-social que tenha desenvolvido “a forma de valor do produto do trabalho” como “a forma mais abstrata, mas também a mais geral” do seu modo de produção, e que, portanto, a análise da forma jurídica não pode ser separada da análise da forma de mercadoria e de seu “ocultamento”. E, de fato, se 230 231 232 233

CERRONI, op. cit., p. 38. KELSEN, H. Teoria generale del diritto e dello Stato..., p. 400. KELSEN, H. La dottrina pura del diritto..., p. 227. MARX, K. Il capitale. Roma: Riuniti, 1967, v. 1, tr. it. de D. Cantimori, p. 112, nota 32.

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o ocultamento da forma de mercadoria consiste no fato de que tal forma, como um espelho, restitui aos homens a imagem das características sociais de seu próprio trabalho, fazendo-as aparecerem como características objetivas dos produtos desse trabalho, como propriedades sociais naturais daquilo, e, assim, restitui também a imagem da relação social entre produtores e trabalho total, fazendo-a aparecer como uma relação social entre objetos existentes no exterior desses produtores [...]234

– o ocultamento da forma jurídica consiste no fato de que ela restitui aos homens a imagem do caráter material social da subjetividade do valor, fazendo-o aparecer como característica objetiva de uma existência produzida pela abstração e pela repressão da própria instância material, como objetividade da instância jurídica formal, e de que, assim, restitui também a imagem das relações sociais materiais como relações sociais entre formas, como “relações entre normas jurídicas” ou “relações entre fatispécies determinantes de normas jurídicas”235. A ciência jurídica não pode assumir este ponto de vista: assumi-lo e desenvolvê-lo significa penetrar o segredo da forma jurídica e esclarecer o caráter fetichístico. A ciência não pode destruir seu fetiche, sem destruir, ao mesmo tempo, a si própria, “o cérebro e a alma” da estratégia de legitimação. A esta estratégia, Kelsen presta sua lúcida e profunda contribuição. Ele assume o caráter fetichístico como condição lógicotranscendental da interpretação do direito positivo, e desenvolve, assim, o ponto de vista imanente da normatividade. Esta operação tem grande relevância, já que permite a Kelsen legitimar a contingência como normatividade hipotético-relativa. De fato, o caráter hipotético-relativo do valor legitima o caráter contingente da normatividade, enquanto o princípio de validade funda o caráter normativo da contingência, ou seja, da subjetividade tornada objetiva. O princípio de validade, por sua vez, resulta, em 234

235

Idem, p. 104; cfr. BEDESCHI, G. Alienazione e feticismo nel pensiero di Marx. Bari: Laterza, 1968. p. 123-38; COLLETTI, L. Il marxismo e Hegel. Bari: Laterza, 1969. p. 403 ss.; SOHN-RETHEL, A. Warenform und Denkform. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1978; PERLMANN, F. Il feticismo delle merci. Saggio su Marx e la critica dell’economia politica. tr. it. de G. Ascenso. Milano: Lampugnani Nigri, 1972; NAPOLEONI, C. Smith Ricardo Marx. Considerazioni sulla storia del pensiero economico. Torino: Boringhieri, 1973. p. 130-46; REICHELT, H. Zur logischen Struktur des Kapitalbegriffes bei Karl Marx. Frankfurt a. M.: Europäische Ver lagsanstalt, 1973 [tr. it. de COPPELLOTTI, F. La struttura lo gica del concetto di capitale in Marx. Bari: De Donato, 1973]; BRINKMANN, H. Die Ware. Zu Fragen der Logik und Methode im “Kapital”. Giessen: Focus-Verlag, 1975. p. 134-62. KELSEN, La dottrina pura del diritto..., p. 189-192.

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seu fundamento, do fato de que uma contingência posta como normativa – um material histórico dado – seja pressuposta como condição lógico-transcendental de todo o complexo de contingência normativa que constitui o direito positivo. Deste modo, Kelsen responde não apenas o problema “como é possível o direito positivo como objeto de conhecimento?”, mas também o problema consequente: “como é possível a ciência jurídica?”

3.2

A Questão: “Como é Possível a Ciência Jurídica”

A ciência jurídica só é possível como teoria da normatividade da contingência produzida pelo ordenamento jurídico: A teoria pura do direito, como ciência especificamente jurídica, volta sua atenção para as normas jurídicas: não para fatos concretos, ou seja, para aquilo que as normas pretendem ou representam, mas para normas jurídicas entendidas como conteúdos ideais pretendidos ou representados. Ela compreende qualquer fato apenas na medida em que este seja conteúdo de normas jurídicas, isto é, determinado por normas jurídicas. Seu problema é a autonomia específica de um âmbito de significados236.

O problema da teoria não é a qualificação normativa, o significado objetivo que é atribuído a determinados fatos e eventos, mas a autonomia desse complexo de significados, em outras palavras, esses significados como dados objetivos, como existência autônoma, privada de pressupostos, como formas objetivamente válidas. A teoria não se interessa pelos processos que levam à existência tais entidades válidas, nem pelos pressupostos de sua própria produção. Kelsen nega absolutamente à ciência a qualidade de fonte do direito. Tarefa específica da teoria é a “análise estrutural do direito positivo”237: análise conduzida do ponto de vista imanente da normatividade. Isto significa, para a teoria, manter-se pura de contaminações tendentes a prejudicar a consideração do direito como âmbito autônomo de significados, ou seja, a infectar o caráter suprasensível da forma jurídica. A análise estrutural da autonomia da forma jurídica, de fato, é um desenvolvimento coerente da consideração fetichística do direito moderno. Nela coexistem, por um lado, o ponto de vista realista, ou seja, uma teoria positivista do direito (porque a análise é conduzida 236 237

KELSEN, La dottrina pura del diritto..., p. 124. Idem, p. 216: “A teoria do direito torna-se, assim, uma análise estrutural do direito positivo, exata na maior medida possível e liberada de qualquer juízo de valor éticopolítico”.

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como pesquisa estrutural sobre a positividade, sobre o complexo de existências positivamente estatuídas), e, por outro, o ponto de vista metafísico, ou seja, a teoria da normatividade entendida como teoria do caráter suprasensível da forma jurídica, que se manifesta no próprio ato de produção das qualificações como objetividades válidas. Mas o ponto de vista realista é completamente absorvido na consideração normativa, porque a autonomia dos significados existe e é posta apenas em referência a esta consideração. A estrutura do direito positivo não é outra coisa senão a estrutura da normatividade inerente às valorações que compõem seu sistema. O trabalho teórico assim concebido tem o papel de legitimar post festum a contingência normativa produzida no sistema jurídico, considerando apenas sua parte mais nobre: sua normatividade. Deste modo, Kelsen, por um lado, anula a contingência, como objeto da teoria, no atributo da normatividade, e, por outro, impõe à teoria a consideração de toda contingência produzida pelo ordenamento jurídico, porque essa contingência, em seu reflexo normativo, é sempre válida. A autonomia do âmbito de significados, portanto, refere-se imediatamente à autonomia da contingência como produto de seleções, diante das quais a própria teoria é instância de absorção, e, assim, de legitimação, impotente. A neutralidade da teoria significa, ao mesmo tempo, hipertrofia do conceito de validade, porque o direito positivo, como contingência normativa, é sempre direito válido, é sempre normatividade válida. Porém, esta operação tem uma consequência que não pode ser ignorada: esterilizada a intervenção da teoria e individualizado o fundamento de validade na circularidade autolegitimadora da norma fundamental, Kelsen deixa entrar no sistema quantidades incontroláveis de contingência normativa sempre e de qualquer maneira válida. Isto, se, por um lado, resolve o problema de Puchta e Jhering, no sentido de que agora nem mesmo a instância material originariamente reprimida constitui obstáculo à manutenção da autonomia do âmbito de significados jurídicos, já que a contingência é objetividade e, portanto, indiferença normativa, por outro, porém, pode constituir uma ameaça para o sistema, de cuja estabilidade a teoria não faz questão. Este é o nó da epistemologia kelseniana. Kelsen, como vimos, leva a termo os esforços que a ciência jurídica havia empregado na tentativa de enfrentar e resolver a questão da positividade do direito. Consegue construir a positividade do direito como contingência normativa, eliminando definitivamente o problema da verdade, e reconhecendo a fundação empírica do dever ser. A identificação entre validade e existência específica da norma conclui a conversão metodológica da ciência jurídica, enquanto a atestação da teoria sobre o princípio da normatividade supera o obstáculo da instância material, uma

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vez que este princípio manifesta a repressão originária daquela instância como um fato que a normatividade traz impresso em sua constituição hipotético-relativa. A estrutura contingente da positividade abre a estrada para a concepção dinâmica do ordenamento jurídico, entendido como sistema autônomo de produção das qualificações normativas, vinculadas unicamente pelo pressuposto formal de validade, que garante unidade ao sistema e permite, ao mesmo tempo, um alargamento contínuo dos seus confins. As dificuldades e obstáculos encontrados pela ciência jurídica em sua tentativa de legitimar o direito positivo como contingência normativa são superadas, assim, em uma concepção orgânica e unitária do sistema, que não hesita em eliminar todo impedimento à produção de normatividade, sempre protegida pelo manto da validade, explicada no postulado da existência específica da norma. Consequentemente, direito, afirma Kelsen, pode ter qualquer conteúdo. O problema é a autonomia específica de um âmbito de significados. Esta autonomia é garantida e protegida. Mas é justamente esta possibilidade imanente ao sistema de produção de normatividade que se torna perigosa para o próprio sistema, por sua estrutura baseada na contingência. A estabilidade do sistema é imediatamente colocada em perigo pela possibilidade de crescimento descontrolado da contingência normativa. A teoria é impotente frente aos pressupostos dinâmicos que ela mesma deu ao sistema de produção de contingência. O sistema vê crescer de modo indefinido – não definível com segurança pela teoria – sua complexidade interna. Esta complexidade também não dispõe de mecanismos de defesa e proteção, uma vez que o princípio de validade garante apenas a potencialidade interna de crescimento da complexidade do sistema. Nem neste nível pode intervir a metodologia. Por natureza, ela age post festum, quando o sistema já atingiu um certo nível, ou funciona, segundo a concepção antiga, como instrumento de propulsão para o incremento de contingência normativa na produção, a partir das premissas dadas. Ao sistema jurídico, uma vez alcançada a afirmação do princípio da positividade, apresenta-se como solicitação interna a necessidade de uma estratégia de contenção e de controle da contingência normativa. O desenvolvimento de uma tal estratégia é pressuposto de estabilidade do sistema, que, oferecendo garantias de sobrevivência do sistema, oferece proteção à contingência por ele produzida e, ao mesmo tempo, ao seu potencial imanente de produção da própria contingência. Porém, Kelsen também indicou um caminho para essa estratégia. Centrando o interesse epistemológico na construção de uma teoria do direito, ele demonstrou, simultaneamente, os limites internos da conversão metodológica e seu caráter colateral e de apoio em relação à potencialidade da teoria como

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“coração e cérebro” de toda operação de legitimação da positividade do direito e, consequentemente, como fundamento de toda operação de estabilização do sistema dessa positividade. Kelsen, portanto, conclui o capítulo relativo à conversão metodológica da ciência jurídica, mas abre, ao mesmo tempo, um novo capítulo da epistemologia do direito positivo. A conversão operada na ciência jurídica conseguiu sustentar a dificuldade da afirmação do princípio da positividade. Conseguiu sustentar o peso da categoria jurídica e legitimar o sistema de abstração como universo que domina a sociedade burguesa, como universo do isolamento e da separação. Mas diante do crescimento descontrolado da complexidade deste sistema, ela se revela impotente, neutra. Ela deve ser esterilizada para poder concentrar suas forças na repressão originária da instância material. Agora, a epistemologia deve concentrar seus esforços em uma estratégia de estabilização do sistema jurídico. E esta estratégia pode ser projetada somente por uma teoria capaz de enfrentar a questão da positividade de forma a conter e controlar a potencialidade de crescimento da complexidade do sistema. Abre-se o novo capítulo da epistemologia jurídica: o capítulo da conversão teórica, que tem como complemento a conversão metodológica, tida agora como aquisição imprescindível, mas munida de um potencial limitado por seu caráter de sistematização da contingência já produzida e existente no sistema. A história da epistemologia jurídica pós-kelseniana é marcada por esta estratégia, por suas dificuldades, seus fracassos e conquistas.

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Segunda Parte A TEORIA

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INTRODUÇÃO À CONVERSÃO TEÓRICA 1

O MAL-ESTAR DO POSITIVISMO

Após a sistematização kelseniana, inicia-se, para a epistemologia jurídica, um período que pode ser designado como fase de transição: a epistemologia jurídica, reconhecendo a necessidade de uma fundação teórica do direito como superação da imanência metodológica, esforça-se para superar o modelo kelseniano, culpado por reducionismo positivista, culpado, não obstante a separação originária, por ter identificado o dever ser com o ser, por ter feito da existência do direito positivo o critério de sua justiça238. A transição, que se inicia imediatamente depois da Segunda Guerra e dura até o fim dos anos sessenta, configura um período marcado por um forte empenho filosófico, tendente a buscar em uma fundação extrapositiva do direito a superação do lado ruim do positivismo implícito no modelo kelseniano. Ao fim do período de transição, a teoria do direito apresentará uma série de configurações diversas, todas articuladas segundo esquemas precisos e finitos239, que permitirão à ciência jurídica recompor-se eventualmente com base em modelos derivados das ciências sociais. Estes modelos, contestando o complexo monopolístico da epistemologia kelseniana, pretenderão superar o lado ruim do positivismo que 238

239

Cf. KELSEN, Teoria generale del diritto e dello Stato..., p. 14; SCHNEIDER, H. P. Rechtstheorie ohne Recht? Zur Kritik des spekulativen Positivismus in der Jurisprudenz. In: HOLLERBACH, A.; MAIHOFER, W.; WÜRTENBERGER, Th. (Orgs.). Mensch und Recht. Festschrift für Erik Wolf zum 70. Geburtstag. Frankfurt a. M.: Klostermann, 1972. p. 108-36 e 116 ss. Cf. KAUFMANN, A.; HASSEMER, W. Grundprobleme der zeitgenössischen Rechtsphilosophie und Rechtstheorie. Ein Leitfaden. Frankfurt a.M.: Athenäum, 1971; OLLERO, A. Derecho y sociedad. Dos reflexiones en torno a la filo sofia juridica alemana actual. Madrid: Nacional, 1973; KRAWIETZ, W. Juristische Entscheidung und wissenschaftliche Erkenntnis. Eine Untersuchung zum Verhältnis von dogmatischer Rechtswissenschaft und rechtswissenschaft licher Grundlagenforschung. Habil. Schrift, Münster 1974; DREIER, R. Was ist und wozu allgemeine Rechtstheorie? Tübingen: Mohr, 1975; KAUFMANN, A. Tendenzen im Rechtsdenken der Gegenwart. Tübingen: Mohr, 1976.

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a epistemologia havia transformado em valor, e que os eventos históricos haviam tragicamente feito emergir em sua negatividade. A degeneração nazista havia demonstrado que o direito, como ordenamento normativo da sociedade, podia ser instrumento de violência organizada, que o direito do Estado podia ser instrumento de opressão da sociedade, que o princípio da juridicidade podia reprimir todo princípio ético que não derivasse da eticidade mais profunda do Estado, e esta eticidade do Estado se manifestava na identificação entre justiça e direito do Estado, entre justiça e lei. A ipsa res justa havia sido, de fato, convertida pelo positivismo na forma da legalidade e reduzida a essa240. Esta legalidade havia levado à destruição da sociedade, usando, de certa forma, os instrumentos preparados, contrariamente, para realizar o ordenamento daquela sociedade. Diante daqueles eventos, a epistemologia jurídica demonstrouse incapaz de pensar a degeneração do direito positivo. A teoria pura do direito, restrita ao postulado da validade ligada à existência, não oferecia instrumentos para pensar no interior da ciência a possibilidade da própria existência como degeneração. Mas degeneração exprime o modo de ser negativo de algo que em si é um valor positivo: a teoria foi obrigada, portanto, a buscar este valor e resguardá-lo contra a emergência da negatividade. A teoria foi obrigada a abrir o caminho para uma fundação metapositiva do direito, independentemente de sua expressão histórica. Desta fundação metapositiva teria sido possível valorar a adequação da positividade ao princípio fixado. O direito positivo como organização da sociedade era, todavia, o terminus a quo: a positividade como forma do direito moderno não poderia ser colocada em discussão. E nem mesmo os processos de produção, as formas pelas quais a positividade aparecia e aqueles processos que transformavam determinadas subjetividades em objetividades válidas poderiam ser rediscutidos. As categorias nas quais a positividade do direito se estruturava e o pressuposto de que a liberdade dos modernos se concretiza em sua forma jurídica, como também o fato de que no direito se exprime normativamente a separação real entre Estado político e sociedade civil, já que o direito é a forma de suas mediações, não poderiam ser tocadas. O mal-estar, portanto, não nascia do fato da positividade, mas da questão do positivismo. Era um mal-estar filosófico. E foi filosoficamente superado. 240

KAUFMANN, A. Die “ipsa res justa”. Gedanken zu einer hermeneutischen Rechtsontologie. In: PAULUS, G.; DIEDERICHSEN, V.; CANARIS, C.-W. (Orgs.). Festschrift für Karl Larenz zum 70. Geburtstag. München: Beck, 1973. p. 27-40.

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É necessário buscar o fundamento do direito em alguma coisa diferente de sua positividade. O direito não é a lei. O direito é expressão da justiça. A justiça é o sentido do direito. O direito faz-se na história, tem uma história, mas esta história é uma história diversa daquela que materialmente se exprime no ordenamento jurídico. É necessário buscar o sentido do direito e realizá-lo na história como existência material da justiça. A interpretação do direito não deve ser puramente dogmática, exegética: no que se observa, esta torna-se sempre apologia juspositivista. O positivismo havia levado ao eclipse da razão. Na época de transição, era preciso reconstruir esta razão: uma razão que, emergindo, conseguisse legitimar a positividade, isolando seu lado ruim como degeneração. Uma razão filosófica. Uma razão alienada, já que foi obrigada a ser capaz de dar conta do direito como coisa, ao mesmo tempo, histórica e meta-histórica, da positividade como expressão do ser fora de si, do ser outro. O problema epistemológico andava deixado à parte. A ciência deveria conseguir lidar com esta duplicidade imanente ao direito: o princípio, o sentido, a estrutura interna do direito, que não nasce de um fato, de uma existência, mas é um valor; e a existência terrena, histórica desse valor, que é um fato, e que pode degradar e ser um fato negativo. Condição da ciência é, portanto, não mais a existência positiva do direito, mas o fato de que esta existência é a forma alienada de um princípio, de um fundamento. Na época da reconstrução, a ciência tem duas alternativas: ou se funda sobre uma teoria que parte do fato da existência, não se coloca o problema teórico da degeneração e, assim, se afasta dessa existência qualquer relação que não seja de neutralidade e de impotência, e retorna, dessa forma, ao leito positivista do kelsenianismo; ou então se funda sobre uma teoria que parte do fato da existência como forma de alienação, do ser fora de si do direito na história, e faz-se cura desta alienação, projeto do retorno em si do ser alienado. O problema fundamental da ciência, a objetividade do saber, revelava-se como problema de derivação positivística pleno de perigos inevitáveis. A pesquisa voltada ao ser, como único projeto da ciência do direito, havia impedido qualquer investigação relativa à estrutura interna, meta-histórica e meta-empírica do ser, qualquer investigação que permitisse decantar aquilo do qual a existência é forma alienada. Emergia, então, a necessidade de se recuperar, para a ciência, um setor diverso daquele descrito pela existência positiva do direito: necessidade explicada apenas como nascida de uma crise de legitimação interna do direito, que se descarrega toda sobre o pensamento jurídico, sobre as práticas às quais antes era dado o atributo de cientificidade, sobre a concepção analítica da ciência, que havia constituído o ponto de chegada do modelo clássico da

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epistemologia. A crise da ciência, consequência da necessidade desta conversão, – aquele Hin-und Herwandern241 [ir e vir] da ciência entre o postulado adquirido da positividade do direito que permanece sempre seu ponto de partida e a necessidade de uma teoria do direito da qual surja uma fundação metapositiva do direito – este debater-se da jurisprudência entre a incapacidade de ser pensamento imediatamente legitimador e a necessidade de transcender a existência e a história para encontrar um fundamento faz do pensamento jurídico nascido com base na recusa ao kelsenianismo o pensamento da alienação242.

2

A JURISPRUDÊNCIA DA ALIENAÇÃO, A “NOVA” TEORIA DO DIREITO E O PLURALISMO TEÓRICO

A jurisprudência da alienação descreve as consequências do despedaçamento do complexo epistemológico elaborado por Kelsen, e, ao mesmo tempo, como já foi dito, a necessidade de uma refundação teórica unitária do direito e da ciência jurídica. O compromisso do qual vive o pensamento jurídico, o compromisso entre fato e valor, ou história e metafísica – ligadas a uma relação que não foge do dualismo “bem” e “mal” – verga-se diante do peso dilacerante da ruptura da unidade da epistemologia jurídica, de uma recusa genérica da ciência que se cristaliza na recusa do positivismo, da cisão entre teoria, como pensamento do fundamento do direito, e prática científica, como pesquisa sobre a positividade. Com a consequência de que, enquanto a teoria se afasta cada vez mais da forma positiva de existência do direito, a prática científica se polariza cada vez mais com ela, ligando-se à dogmática, a única entre as práticas que se porta claramente segundo o peso da positividade243. E esta vinculação da 241

242

243

ENGISCH, K. Logische Studien zur Gesetzesanwendung. Heidelberg: Winter, 1963. p. 15; KAUFMANN, Die “ipsa res justa”..., p. 39; cfr. ENGISCH, Wahrheit und Richtigkeit im iuristischen Denken. München: Hueber, 1963. A bibliografia sobre este argumento é vastíssima. Lembro ao menos duas coletâneas: Naturrecht oder Rechtspositivismus, organizado por W. MAIHOFER, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt 1962; KAUFMANN, A. (Org.). Die ontologische Begründung des Rechts. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1965, e a bibliografia citada nas p. 580-622 e p. 671-727. Cf. Th. VIEHWEG, Ideologie und Rechtsdogmatik. In: MAIHOFER, W. (Org.). Ideologie und Recht. Frankfurt a.M.: Klostermann, 1969. p. 83-96; WIEACKER, F. Zur praktischen Leistung der Rechtsdogmatik. In: BUBNER, R.; CRAMER, K.; WIEHLE, R. (Orgs.). Hermeneutik und Dialektik. Tübingen: Mohr, 1970, v. II, p. 311-36; Id., Die Ausbildung einer alegemeinen Theorie des positive Rechts in Deutschland im 19. Jahrhundert. In: PAWLOWSKI, H.M.; WIEACKER, F. (Orgs.).

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ciência à dogmática acontece em todo caso, qualquer que seja a resposta que a teoria possa dar à questão do fundamento. De fato, é sempre possível: ou relegar a dogmática ao plano positivista do existente e afirmar que suas práticas são científicas porque estão ligadas ao dogma do positivismo, ou valorizá-la, colocá-la em um plano metapositivo e afirmar que suas práticas são científicas porque interpretam o sentido, ou o valor, ou porque trazem à evidência a falta deste sentido ou valor do direito. Mas há, também, uma outra consequência que deriva do pensamento jurídico da alienação: o despedaçamento do modelo epistemológico construído por Kelsen leva à decomposição do pensamento jurídico e à autonomização de seus setores. A jurisprudência torna-se um sistema complexo dotado de uma profunda fragmentação interna. Cada prática avança sua pretensão de exaurir um modo de ser da positividade. É apenas questão de divisão interna do trabalho, de Sonderung der Tätigkeiten [segregação de atividades], como dizia Savigny. O ponto fixo a ser pressuposto é, de qualquer forma, o seguinte: o problema da recomposição de um saber sobre o direito construído com base na teoria permanece o problema fundamental, não obstante a autonomização das diversas práticas de agora em diante verificadas. É uma situação ambivalente que leva à seguinte consequência: a problemática científica polariza-se, como dizíamos, cada vez mais claramente no plano da dogmática, como a única tentativa de recuperação de uma cientificidade que andava inexoravelmente perdida com a recusa dos pressupostos epistemológicos do modelo positivista. Uma consequência, infelizmente, claramente positivista, que testemunha a incapacidade do pensamento jurídico da alienação de se liberar de seu equívoco interno e que abre caminho para uma série de tentativas orgânicas de recomposição teórica do pensamento jurídico. O debate sobre os fundamentos e sobre as estruturas do direito, desenvolvido na Alemanha após a Segunda Guerra e que durou até o final de quase toda a década de sessenta, é a cristalização filosófica do pensaFestschrift für K. Michaelis. Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1972. p. 354362; DREIER, R. Zur Selbstverständnis der Juris prudenz als Wissenschaft. Rechtstheorie, 2, 1971, p. 37-54; KRAWIETZ, W. Juristische Methodik und ihre rechtstheoretischen Implikationen, Jahrbuch für Rechtssoziologie und Rechtstheorie, v. II, 1972, p. 12-42; MEYER CORDING, U. Kann der Jurist heute noch Dogmatiker sein? Zum Selbst verständnis der Rechtswissenschaft. Tübingen: Mohr, 1973; ESSER, J. Dogmatik zwischen Theorie und Praxis. In: BAUR, F.; ESSER, J.; KÜLER, F.; STEINDORF, E. (Orgs.). Funktionswandel der Privatrechtsinstitutionen. Festschrift für Ludwig Raiser. Tübingen: Mohr, 1974. p. 517-39; LAZZER, D. de. Rechtsdogmatik als Kompromissformular. Dogmatik und Methode. Josef Esser zum 65. Geburt stag. Kronberg/Ts, Scriptor, 1975. p. 85-112.

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mento jurídico como pensamento da alienação244. Mas sobre as categorias do pensamento alienado, assim como sobre a síndrome que deriva do medo do positivismo, não se constrói uma epistemologia jurídica até que o pensamento da alienação não se resolva em um complexo de teorias diversas, em um conjunto de hipóteses unitárias sobre o objeto e sobre as práticas científicas relativas a ele. O pensamento da alienação, de fato, poderia ser superado apenas por uma fundação teórica do direito e da ciência que assumisse o peso de procurar hipóteses abrangentes idôneas para a superação da crise, ou seja, de construir modelos epistemológicos unitários alternativos à hipótese kelseniana, complexos capazes de superar o equívoco epistemológico do pensamento alienado, reconstruindo a unidade entre fundação teórica e prática científica com base em uma estratégia unitária de estabilização do direito positivo. O problema da ciência, portanto, é legitimar uma positividade que superou o obstáculo inicial de sua afirmação. Buscar formas que legitimam o direito não obstante o lado negativo de sua positividade. Substancialmente, trata-se de construir modelos epistemológicos que, por um lado, forneçam instrumentos para viabilizar o processo de estabilização do direito positivo, e, por outro, consigam justificar sua pretensão de descobrir e isolar o lado negativo da positividade, sem danificar os pressupostos internos dessa positividade claramente identificada por Kelsen. Uma empresa como esta, como Kelsen já havia intuído, pode ser levada a termo apenas com uma estratégia epistemológica unitária. O pensamento da alienação é a consciência reprimida desta nova situação e das novas tarefas que a epistemologia jurídica deve resolver. O ônus de construir novas formas de legitimação, de superar a crise do direito no sentido de sua estabilização após o rápido abalo, de elaborar modelos epistemológicos capazes de adequar a complexidade dos problemas de estabilização do sistema jurídico, será assumido expressamente pela nova teoria do direito, que se inicia imediatamente após a fase de transição caracterizada pelo pensamento da alienação. Os caminhos que serão seguidos para realizar uma fundação teórica do direito que busque tais objetivos serão diversos. Eles se entrelaçam com o desenvol244

Vale de exemplo a ontologia do direito de A. Kaufmann, como uma das formas mais lúcidas do dilaceramento interno deste pensamento, como uma das tentativas mais consistentes de costurar ser e dever ser, consciência e realidade. “É, primeiramente, a duplicidade da substância do direito e da existência do direito, do jusnaturalismo e do positivismo, que determina a estrutura ontológica real do direito” (KAUFMANN, A. La struttura ontologica del diritto, Rivista internazionale di Filosofia del Diritto, XXXIX, serie III, fasc. V, 1962, p. 549-82, p. 556).

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vimento da teoria da ciência social245, que deverá enfrentar problemas análogos em relação ao sistema social, igualmente voltado para sua estabilização. Nesse contexto, a teoria do direito não poderá ser mais uma teoria jurídica do direito, como pretendera Kelsen. A fundação teórica do direito entrará no complexo setor da teoria social e seguirá os eventos desta, assim como o processo de estabilização do sistema jurídico entrelaça-se de maneira definitiva ao processo de estabilização do sistema social. A “nova” teoria do direito lança-se, sem demora, ao descobrimento246: a declaração de sua identidade torna-se a própria condição de sua existência. Assistimos, assim, a um processo no qual o antigo princípio monopolista de um modelo epistemológico hegemônico converte-se em um pluralismo de modelos caracterizados pelo princípio da coexistência pacífica de diversas teorias. Paralelamente à afirmação da necessidade de uma fundação teórica do direito e da ciência, delineia-se um novo contexto, definido pelo princípio do pluralismo das teorias. E pluralismo 245

246

Cf. NAUCKE, W. Über die juristische Relevanz der Sozialwissenschaften. Frankfurt a.M.: Metzner, 1972; KNITTEL, E. Sozialwissenschaften und Rechtspraxis in der Juristenausbildung. Marburg: Elwert, 1973; ROTTLEUTHNER, H. Rechtswissenschaft. Frankfurt a.M.: Fischer, 1973; DUBISCHAR, R. Vorstudium zum Rechtswissenschaft. Stuttgart-Berlin: Kohlhammer, 1974; Ch. ZÖPEL, Oekonomie und Recht. Ein wissenschaftshistorischer und wissenschafts theoretischer Beitrag zum Verhältnis von Wirtschafts- und Rechtswissenschaften. Stuttgart: Kohlhammer, 1974; SCHÜNEMANN, H. W. Sozialwissenschaften und Jurisprudenz. Beck München 1976; GRIMM, D. Rechtswissenschaft und Nachbarwissen schaften. Beck, v. I, München, 19762, v. II, 1976; Juristische Dogmatik und Wissenschaftstheorie, a cura di U. Neumann, J. Rahlf, E. v. Savigny, Beck, München 1976. Cf. Th. VIEHWEG, Über den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie und Rechtsdogmatik. In: Estudios juridico-sociales. Homenaje al Profesor Luis Legaz y Lacambra. Santiago: Universidad de Santiago de Compostela, 1960, v. I, p. 20312; ZADIER, E. Zum Verhältnis von Rechtsphilosophie und Rechtstheorie. In: JAHR, G.; MAIHOFER, W. (Orgs.). Rechtstheorie. Beiträge zur Grundlagendiskussion. Frankfurt a.M.: Klostermann, 1971. p. 224-46; e na mesma coleção as contribuições de KLUVER, J.; PRIESTER, J.-M.; SCHMIDT, J.; WOLF, F.O. Rechtstheorie Wissenschaftstheorie des Rechts..., p. 1-10; de MAIHOFER, W. Zum Verhältnis von Rechtssoziologie und Rechtstheorie..., p. 247-302; de JAHR, G. Zum Verhältnis von Rechtstheorie und Rechtsdogmatik..., p. 303-11; cf. também: ELLSCHEID, G. Zur Forschungsidee der Rechtstheorie. In: KAUFMANN, A. (Org.). Rechtstheorie. Ansätze zu einem kritischen Rechtsverständnis. Karlsruhe: München, 1971. p. 5-17; KUNZ, K.-L. Rechtstheorie – regionale allgemeine Wissenschaftstheorie oder Erkenntnistheorie des Rechts?, Idem, p. 19-26; MAIHOFER, W. Rechtstheorie als Basisdisziplin der Jurisprudenz, Jahrbuch für Rechtssoziologie und Rechtstheorie, v. II..., p. 51-78; SCHROTH, U. Was ist und was soll Rechtstheorie, Juristische Arbeitsblätter, 1972, p. 1-6.

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é coexistência, tolerância, recusa da pretensão de possuir a verdade. Pluralismo é imunização do trabalho científico. Pela conversão teórica, a epistemologia jurídica não apenas tenta adequar a complexidade dos problemas relativos à estabilização do sistema jurídico, mas se insere plenamente no âmbito da estratégia mais complexa de reestruturação livre do sistema político, do estado de direito e social. O pluralismo é o princípio hegemônico da democracia liberal reconstruída após a degeneração nazista na Alemanha. Pluralismo político e pluralismo científico andam juntos nessa obra de reestruturação. O pluralismo da teoria do direito é um princípio político que se adéqua à complexidade de seu objeto na medida em que participa de um projeto e de uma estratégia política que fazem deste objeto o ponto forte de sua realização: a conversão que identificamos na epistemologia é consequência de uma conversão política, de um projeto global da sociedade plural tendente a realizar a democracia pela estabilização do sistema de abstrações, por meio da estabilização da forma de domínio expressa no direito. Mas, como havia dito Kelsen com precisão, todo Estado é Estado de direito. A teoria trás consigo o princípio da tolerância em um processo de reestruturação autoritária da sociedade no qual o pluralismo político se afirma como domínio tolerante. Quando o pluralismo como estratégia do domínio das formas é o princípio político e teórico hegemônico, “podemos estar seguros de que todas as opiniões são falsificáveis – e, assim, que aquela que se passa por verdadeira pode ser eliminada”247. O princípio do pluralismo é o fundamento teórico da tolerância repressora. A teoria não pode pretender ser verdadeira, expor a verdade. Muito menos a verdade do positivo. Esta verdade reproduz sempre o medo do positivismo. O desenvolvimento da ciência, escreve Löwenthal, fica decididamente impedido quando uma determinada ideologia adquire uma posição de monopólio institucional ou de fato: “O desenvolvimento completo do progresso científico precisa de um ordenamento político liberal que torne possível e proteja um pluralismo das forças sociais e políticas”248. O pluralismo é o novo princípio de legitimação interna do Estado de direito. Nele, ciência e democracia se encontram e se realizam sobre o mesmo plano: sobre o plano teórico da falibilidade249. “Pluralismo das 247

248 249

BRENTANO, M. v. Wissenschaftspluralismus. Zur Funktionen, Genese und Kritik eines Kampfbegriffs, Das Argument, 66, Heft 6/7, 1971, p. 476-493, p. 492; cf. PREUSS, U.K. Legalität und Pluralismus. Beiträge zum Verfassungsrecht der Bundesrepublik Deutschland. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1973. p. 117-43 e 122 ss. Cit. em Idem, p. 123. Por uma defesa do pluralismo como estratégia epistemológica cf. SPINNER, H. Theoretischer Pluralismus. Prolegomena zu einer kritrischen Methodologie und

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concepções de mundo” significa, nesse contexto, pluralismo de concepções pluralísticas do mundo, uma vez que concepções não pluralísticas – apontadas como ideologias para serem distinguidas em sentido pejorativo – impedem o progresso científico, e, portanto, não deveriam ser toleradas pelo ordenamento político. Se um ordenamento político liberal é condição para o progresso científico, isto é possível apenas na medida em que ele torna possível e protege teorias científicas pluralistas: em síntese, “o pluralismo teórico”250. Os princípios do pluralismo teórico e do pluralismo político são complementares. Eles se pressupõem mutuamente. O conceito de verdade não pode ser monopolizado por uma ciência se esta quer evitar o risco de ser degradada como ideologia e de não ser mais politicamente protegida ou juridicamente garantida, já que o único conceito de verdade politicamente protegido e juridicamente garantido é aquele do pluralismo científico. Este conceito goza de status privilegiado. Exerce o papel de parte e juíz. O pluralismo é um princípio absoluto. E, de fato, quem decide contrapor a este conceito pluralizado do critério de verdade um conceito unitário de verdade é excluído teoricamente do setor ocupado pela ciência251. Nesse contexto, o caminho que se abre à teoria do direito já é marcado pela pluralidade das construções teóricas da ciência social. A pluralidade das teorias do direito nasce de complexos de hipóteses não jurídicas sobre o direito paralelamente ao processo de afirmação política do princípio do

250 251

Theorie des Erkenntnisfortschritts. In: ALBERT, H. (Org.). Soziale Theorie und soziale Praxis. Eduard Baumgarten zum 70. Geburtstag. Meisen heim am Glan, Hain, 1971. p. 17-41; Id., Pluralismus als Erkenntnismodell. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1974, especialmente as p. 237-41, nas quais se encontra uma defesa do falibilismo contra a argumentação coerentemente sustentada por Brentano no artigo citado na nota 10; cf. também RADNITZKY, G. Theorienpluralismus – Theorienmonismus: einer der Faktoren, die den Forschungsprozess beeinflussen und die selbst von Weltbildannahme abhängig sind. In: DIEMER, A. (Org.). Der Methoden- und Theorienpluralismus in den Wissenschaften. Mei senheim am Glan: Hain, 1971. p. 135-84. Ao menos duas obras mais recentes enfrentam um espectro amplo de problemas relativos ao pluralismo: P.P. Müller-Schmid, Emanzipatorische Sozialphilosophie und pluralistisches Ordnungsdenken. Stuttgart: Seewald, 1976 e KREMENDAHL, H. Pluralismustheorie in Deutschland. Entstehung, Kritik, Perspektiven. Leverkusen: Heggen, 1977. De uma perspectiva constitucionalista, PÜTTNER, G. Toleranz als Verfassungsprinzip. Prolegomena zu einer rechtlichen Theorie des pluralistischen Staates. Berlin: Duncker und Humblot, 1977. PREUSS, Op. cit., p. 124. Desta forma, Preuss (Idem, p. 122) afirma que é pura questão de oportunidade política se e quando nos confrontos entre concorrentes desleais se aplicarão as proteções institucionais garantidas no art. 5, 3 da lei fundamental alemã: “Kunst und Wissenschaft, Forschung und Lehre sind frei”.

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pluralismo científico. A teoria do direito participa de uma complexa estratégia política e busca se afirmar como instrumento de estabilização verificado em sua complexidade: a epistemologia jurídica insere-se, assim, plenamente em um contexto global de planificação das ideologias e, portanto, no projeto planificado da coexistência que imuniza as teorias e as torna toleráveis. A nova teoria do direito na Alemanha é incompreensível se não se leva em consideração o quadro das ciências sociais e o espectro esterilizado do pluralismo nos últimos anos252. Devido à sua perda de autonomia, a teoria do direito é só um apêndice do complexo debate sobre as ciências que impregnou a filosofia social alemã contemporânea. Este debate, aberto no início dos anos sessenta pela controvérsia entre Popper e Adorno, envolve a epistemologia moderna, em um arco que se estende da hermenêutica à teoria crítica da sociedade, ao racionalismo crítico, à filosofia analítica e ao funcionalismo estrutural. Uma década passará para que a teoria do direito recepcione aquele debate: é nesse período que a teoria do direito se organiza como imagem reflexa e transferida, como setorização dos modelos epistemológicos produzidos pela ciência social. A data de nascimento da nova teoria do direito pode ser fixada no início dos anos sessenta, período no qual se desenvolve uma grande produção de obras específicas dedicadas à teoria do direito. Em 1970, nasce a revista “Rechtstheorie. Zeitschrift für Logik, Methodenlehre, Kybernetik und Soziologie des Rechts”253. Um ano depois, a coletânea organizada por G. Jahr e W. Maihofer com o título Rechtstheorie. Beiträge zur Grundlagendiskussion. Do mesmo ano, é a coletânea organizada por Arthur Kaufmann, Rechtstheorie. Ansätze zu einem kritischen Rechtsverständnis. Um ano depois, sai o segundo volume do Jahrbuch für Rechtssoziologie und Rechtstheorie, agora com o título Rechtstheorie als Grundlagenwissenschaft der Rechtswissenschaft, organizado por H. Albert, N. Luhmann, W. Maihofer e O. Weinberger254. A partir daqueles anos, a discussão se alarga e se estende em uma multiplicidade de contribuições e intervenções que se tornam sempre mais difícil de dominar e controlar. Configura-se, assim, uma ampla constelação que, todavia, traz cada vez mais claramente impresso o caráter da subordinação e que se deixa facilmente catalogar entre as linhas canônicas nas quais agora se insere o debate sobre as ciências sociais: um debate que em sua fase mais recente se retraiu em formas puramente escolásti252 253 254

Lembrar que a primeira edição deste livro foi publicada na Itália em 1979. Portanto, essa é a referência temporal do autor. [N.R.] Editada por K. Engisch, H. L. A. Hart, H. Kelsen, U. Klug e K. R. Popper. Este e os títulos indicados antes foram citados na nota 9.

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cas, cada vez menos interessantes. Uma imagem clara desta situação e da canonicidade habitual de seu espectro encontra-se na última revisão do atual debate sobre a teoria do direito que ofereceram, ao mesmo tempo, Arthur Kaufmann e W. Hassemer na Einführung in Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der Gegenwart255, organizada por eles. A única voz nova é constituída por Luhmann. Mas, naquele debate, Luhmann constitui, ao mesmo tempo, a única alternativa à falência da estratégia de estabilização em torno da qual se organizava a epistemologia jurídica póskelseniana.

255

Müller, Heidelberg-Karlsruhe 1977.

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1 A HERMENÊUTICA JURÍDICA 1

EXEMPLARIDADE DA HERMENÊUTICA JURÍDICA

É mérito exclusivo de Gadamer se a hermenêutica, e com ela o pensamento autoritário que parece ter consumido, com Heidegger, toda sua força involutiva, readquire, enquanto doutrina filosófica, novo vigor, por volta dos anos sessenta256, terminando por se inserir totalmente no debate mais recente sobre as ciências sociais257. A obra de Gadamer não representa apenas uma fase de retomada da reflexão hermenêutica, parte da tradição teológica, mas a tentativa de colocar o saber hermenêutico como fundamento das ciências sociais, não como método dessas ciências, mas como “experiência da verdade, que vai além do âmbito de controle próprio do método científico”258. Esta experiência da verdade é o compreender. O compreender realiza a mediação entre passado e presente; é o processo que permite ao passado reviver na forma da tradição: de uma 256

257

258

Primeira ed. de Wahrheit und Methode di H.G. Gadamer, Mohr, Tübingen 1975 (4), é de 1960 [tr. it. de G. Vattimo, da II ed. alemã de 1965, Verità e metodo, Fabbri, Milano 1972]. Cf. RADNITZKY, G. Contemporary School of Metascience, v. II: The Metascience of the Human Sciences Based upon the “Hermeneutic-Dialectic” School of Philosophy. Göteborg, Akademiförlaget, 1968. p. 19 ss.; J. Haber mas, Zur Logik der Sozialwissenschaften. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1970, cap. III, 3 [tr. it. de BONAZZI, G. Logica delle scienze sociali. Bologna: Il Mulino, 1970]; PÖGGELER, O. (Org.). Hermeneutische Philosophie. München: Nymphenburger Verlagshandlung, 1972, em particular a introdução de O. Pöggeler, p. 7-71, e as contribuições de Gadamer, Apel e Habermas; Hermeneutik und Dialektik. HansGeorg Gadamer Zum 70. Geburts tag, v. II cit.; Hermeneutik und Ideologiekritik, com contribuições de K.O. Apel, C. v. Bormann, R. Bubner, H.G. Gadamer, H.J. Giegel, J. Habermas, Suhrkamp, Frankfurt a. M. 19732. GADAMER, Wahrheit und Methode..., p. XXVII.

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tradição que se funda sobre o princípio da autoridade e, portanto, sobre o preconceito que se constitui em torno dela. Gadamer serve-se dos instrumentos apresentados pelo idealismo fenomenológico de Husserl, pelo existencialismo e pela ontologia de Heidegger, e, coerentemente, daqueles apresentados pela teologia dogmática, para elaborar uma doutrina filosófica que, rompendo em determinado grau com a tradição hermenêutica clássica, pretende constituir-se como ontologia, colocando o compreender como fundamento da existência humana. Ser é linguagem que vem compreendida, diz Gadamer. Na verdade, esta doutrina filosófica, por trás da vagueza impenetrável de sua linguagem, que serve apenas para transformar – como, com razão, notava Albert259 – lugares comuns em tortuosos filosofemas, constitui uma reorganização do conceito de verdade com base no de autoridade e tradição. Uma tentativa de justificar retoricamente o presente; um esforço de reviver o subjetivismo diante do medo do objetivismo260, que é, na realidade, apenas medo da ciência e do mundo, medo do positivo temido como produto maléfico do positivismo. Um mal-estar que não é novo para a filosofia moderna. Pelas categorias ontológicas de sentido e compreensão, a hermenêutica filosófica também persegue o objetivo de restabelecer a separação entre ciências naturais e ciências espirituais, entre sociedade e natureza. Compreender é, de fato, a categoria específica das ciências do espírito. Explicar, por outro lado, é a categoria das ciências naturais261. Em Wahrheit und Methode [Verdade e Método], Gadamer coloca em particular evidência o significado exemplar que a hermenêutica jurídica tem para a hermenêutica filosófica. Sustenta que a hermenêutica jurídica reúne em si mesma, reassume, o procedimento real das ciências do espírito. Nela, precisa Gadamer, “temos o modelo para a relação entre passado e presente que procuramos”262. A relação entre passado e presente na qual pensa Gadamer não passa de uma relação de dependência na qual o presente se explica e se compreende na medida em que se ilu259

260 261

262

H. Albert, Plädoyer für kritischen Rationalismus, Piper, München 1973, pp. 53 ss [tr. it. de D. Antiseri, Difesa del razionalismo critico, Armando, Roma 1975] e em geral a Kritische Rationalität und politische Theologie. Zur Analyse der deutschen Situation (1969) nas pp. 45-75; cf. R. Bubner, Dialektik und Wissenschaft, Suhrkamp, Frankfurt a. M. 1973, o ensaio Über die wissenschaftliche Rolle der Hermeneutik, pp. 89-111. Cf. Albert, Op. cit. Cf. G. H. v. Wright, Explanation and Understanding, Routledge and Kegan Paul, London 1971. GADAMER, Wahrheit und Methode..., p. 311.

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mina à luz do passado. Uma relação na qual o sentido do presente já é dado na autoridade da tradição, na verdade do passado. Entre presente e passado, desenrola-se precisamente o compreender, que é ligado à tradição como condição que o torna possível. E é aqui que emerge o primeiro aspecto da exemplaridade da hermenêutica jurídica para a hermenêutica filosófica: na interpretação do texto, o intérprete é ligado ao texto, é condicionado a ele, já que o texto é o lugar no qual o passado se transmite, é presente. O intérprete não escolhe seu ponto de vista livremente, mas o encontra já dado. Na hermenêutica jurídica, é possível colher justamente, de maneira exemplar, aquilo que é o elemento comum, verídico, de todas as formas da hermenêutica como doutrina filosófica: “Ou seja, o fato de que o sentido a ser compreendido se concretiza e se cumpre apenas na interpretação, e que, ao mesmo tempo, esta operação interpretativa se faz totalmente ligada ao texto”263. Mas há um segundo aspecto pelo qual a hermenêutica jurídica tem um caráter exemplar para as ciências filosóficas. A hermenêutica jurídica funda-se na “consciência da determinação histórica”. Consciência da determinação histórica significa substancialmente que, no ato de compreender, o horizonte do presente se constrói com o passado, e pelo passado, na medida em que o intérprete realiza, na fusão desses dois horizontes, a superação do novo e do velho em uma totalidade superior. O intérprete se conhece na tradição, está pronto para medir seu preconceito com aquele do outro, para se identificar naquela fusão superior de horizontes na qual velho e novo crescem juntos em uma energia renovada. Nesta operação interpretativa, compreender é, ao mesmo tempo, interpretar e aplicar. A exemplaridade da hermenêutica jurídica exprime-se, portanto, justamente no fato de que nessa, assim como na hermenêutica teológica, é constitutiva a tensão existente entre o texto – que, mais que revelado, é posto – e o sentido que já é aplicado no instante concreto de sua interpretação. Uma lei, diz Gadamer, precisando, “não quer ser compreendida historicamente, mas deve ser concretizada em sua validade jurídica pela interpretação”264. A hermenêutica jurídica, no procedimento pelo qual realiza a aplicação do texto em cada momento de seu fazer hermenêutico, traz consigo a consciência da determinação histórica. Ela, de fato, demonstra de forma exemplar que a applicatio não é, de fato, uma aplicação acidental e união de um princípio geral, que seria antes compreendido em si mesmo, a um ca263 264

GADAMER, Wahrheit und Methode..., p. 315. Idem, p. 293.

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so concreto, mas representa a verdadeira compreensão do próprio universal, daquele universal que, para nós, é o texto que se interpreta. A interpretação revela-se, assim, como uma forma de determinação de efeitos (Wirkung), e como tal se reconhece265.

Aquela determinação histórica de efeitos é a determinação de uma perspectiva, a do passado, como horizonte de leitura do texto, o conhecimento da presença desse horizonte na consciência como forma de determinação da compreensão por meio do preconceito, a disponibilidade para adequá-lo, para adaptá-lo ao preconceito do outro. A fusão desta perspectiva e da tensão em relação ao universal que o sujeito traz consigo realizam-se na aplicação do texto, de modo que esta resulta como uma determinação de efeitos. Ou seja, acaba por ser determinada pela intervenção da consciência do intérprete na tradição, pelo preconceito que ele desenvolveu sobre o sentido do texto, pela tradição que necessariamente vive com o texto e diretamente condiciona o intérprete a ela ligado como ao horizonte do provado, do crido, do verdadeiro. A hermenêutica jurídica reproduz, portanto, ao menos em dois aspectos, de maneira exemplar, o caráter daquela ciência universal que compreende “aquilo que nas ciências do espírito é verdade”. Todavia, não obstante Gadamer, em sua construção do saber hermenêutico, atribua à hermenêutica jurídica um papel tão relevante, quando se fala de pensamento hermenêutico na teoria do direito não se pretende indicar nem as características da hermenêutica jurídica que Gadamer considerava exemplares para a busca do verdadeiro nas ciências do espírito, nem a recepção, na teoria do direito, de um pensamento de origem teológica e dogmática, como o pregado por Gadamer. Larenz, Esser, Kaufmannn, Hassemer ou Hruschka266, entre outros, recorrem à função ontológico265 266

Idem, p. 323 (tr. it. de G. Vattimo..., p. 395). São as expressões mais representativas da tentativa na ciência jurídica de uma fundação hermenêutica da teoria do direito. A literatura é muito vasta e, portanto, limito-me aos trabalhos mais significativos: cf. LARENZ, Methodenlehre der Rechtswissenschaft..., p. 165-231; ESSER, J. Vorver ständnis und Methodenwahl in der Rechtsfindung. Rationalitätsgrundlagen rich – terlicher Entscheidungspraxis. Frankfur t a.M.: Athenäum, 1972; MANN, A. Kauf. Die Geschichtlichkeit des Rechts im Licht der Hermeneutik. In: Rechts theorie. Ansätze zu einem kritischen Rechtsverständnis..., p. 81-102; Id., Die “ipsa res justa” cit.; Id., La struttura ontological del diritto cit.; Id., Perché la filosofia del diritto oggi?, Rivista internazionale di Filosofia del Diritto, 1, 1972, p. 79-99; Id., Rechtsphilosophie, Rechtstheorie, Rechts dogmatik, in AAVV, Einführung in Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der Gegenwart..., p. 1-22 (com bibliografia); Id., Recht und Gerechtigkeit in schematischer Darstellung, Idem, p. 273-302 (con bibliografia); HASSERMER, W. Tatbestand und Typus. Untersuchungen zur

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hermenêutica do direito como estratégia que persegue ao menos três fins nos quais não se respeita a exemplaridade indicada por Gadamer: construir uma alternativa à teoria analítica da ciência jurídica e, portanto, àquilo que os hermeneutas entendem por positivismo; repropor, com base na divisão entre ciências do espírito e ciências da natureza, a problemática metapositiva do sentido do direito; e dar uma solução ao problema não solucionado da relação entre ser e dever ser na ciência jurídica. A hermenêutica jurídica, então, em sua recepção meta-dogmática no contexto da teoria do direito, apesar de ter seu quadro de referência conceitual na ontologia filosófica de Gadamer, não é aquilo que Gadamer indicava como disciplina exemplar para as ciências do espírito. No plano da fundação teórica do direito e da ciência jurídica, o pensamento hermenêutico salva-se pelo menos nas intenções e em sua autoconsciência teórica originária, da acusação de obscurantismo teológico, e insere-se em uma discussão que consegue agora ser atual.

2

ESTRATÉGIA ANTIANALÍTICA, REVISÃO DO SABER HERMENÊUTICO E TEORIA DO DIREITO

Como estratégia antianalítica, tendente a reconstituir a autonomia das ciências do espírito diante das ciências da natureza, a hermenêutica é recebida pela teoria do direito na forma já afirmada por Habermas, contra Albert, no debate sobre o positivismo267. De fato, Habermas já

267

strafrechtlichen Hermeneutik. Köln-Berlin-Bonn-München: Hey mann, 1968; Id., Rechtstheorie, Methodenlehre und Rechtsreform, in AAVV, Rechtstheorie. Ansätze zu einem kritischen Rechtsver standnis..., p. 27-33; HRUSCHKA, J. Das Verstehen von Rechtstexten. Zur hermeneutischen Transpositivität des positiven Rechts. München: Beck, 1972; mas cf. também MÜLLER, F. Normstruktur und Normativität. Zum Verhältnis von Recht und Wirklichkeit in der juristischen Hermeneutik, entwickelt an Fra gen der Verfassungsinterpretation. Berlin: Duncker und Humblot, 1966; KRIELE, M. Theorie der Rechtsgewinnung entwickelt am Problem der Verfassungsinterpretation. Berlin: Duncker und Humblot, 1967. LEICHT, R. Von der Hermeneutik-Rezeption zur Sinnkritik in der Rechts theorie, in AAVV, Rechtstheorie. Ansätze zu einem kritischen Rechtsverständnis..., p. 71-9; SCHROTH, U. Probleme und Resultate der Hermeneutik-Diskussion, in AAVV, Einführung in Rechtsphilosophie und Rechtstheorie..., p. 188-219; Dreier, Op...., e di K.-L. Kunz, Die analytische Rechtstheorie: Eine ‘Rechts’ -theorie ohne Recht? Systematische Darstellung und Kritik. Berlin: Duncker und Humblot, 1977. De interesse particular é o trabalho recente de L. De Ruggiero, Tra consenso e ideologia. Studio di ermeneutica giuridica. Napoli: Jovene, 1977. HABERMAS, J. Epistemologia analitica e dialettica. In: MAUS, H.; FÜRSTENBERG, F. (Orgs.). AAVV, Dialettica e positivismo in sociologia. Dieci

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apresentava a hermenêutica como um saber não dogmático, não fechado às instâncias da razão iluminista e da ciência, mas como um saber definido por um caráter específico antissistemático e antianalítico. Como o saber capaz de recuperar para as ciências histórico-sociais sua autonomia, como ciências que operam com conexões de sentidos, em relação às ciências da natureza, que operam, ao contrário, com hipóteses empíricoanalíticas. Ele via o saber hermenêutico como a forma de compreensão que fundamenta uma teoria dialética da sociedade, e, dessa forma, recuperava este saber dentro de uma meta-teoria da qual a hermenêutica era apenas um pressuposto. Habermas, assim, liberava a hermenêutica da ontologia, reduzia a pretensão universalística à explicitação de sentido no processo de compreensão e ao fato de que esta explicitação é constitutiva da ciência social. Em seguida, Habermas descobriria Freud, e a hermenêutica adquiriria outra pretensão e outra função completamente diferentes; ela seria tornada instrumento terapêutico e revolucionário nas intenções de Habermas. Mas, na polêmica com Albert, sobre o positivismo na ciência social, Habermas introduz o saber hermenêutico como fundamento da ciência social, atribuindo apenas a este a capacidade de penetrar o sentido e explicitá-lo. Esta mediação habermasiana que suspende a hermenêutica e seu juízo no presente, liberando-a da forma teológica do pensamento autoritário ao qual Gadamer a havia ligado, permite à teoria do direito reconstituir-se não com base na “exemplaridade” que Gadamer identificava na hermenêutica jurídica, mas, sobretudo, em torno da problemática derivada, e complementar, do sentido e da compreensão, como fundamento não necessariamente autoritário da ciência social, como diferenciador em relação às ciências da natureza. Nesta delimitação das pretensões universalísticas da hermenêutica, a teoria do direito encontra amplas possibilidades usadas contra desvios naturalísticos operados pelos velhos e novos analíticos e positivistas para afastar os perigos do cientificismo na fundação da ciência268. A hipótese pela qual se sustenta a recuperação da hermenêutica para a teoria do direito é justamente aquela indicada por Habermas, antinaturalística e, assim, antisistemática. No quadro de uma teoria empiricista rigorosa, escrevia Habermas contra os analíticos269, o “conceito de sistema pode apenas indicar,

268 269

interventi nella discussione. tr. it. de A. Marietti Solmi, Einaudi, Torino 1972, p. l5387; Id., Contro il razionalismo dimezzato dei positivisti. Risposta a un pamphlet, Idem, p. 229-59. Sobre isto, KUNZ, Op. cit. HABERMAS, Epistemologia analitica e dialettica..., p. 154-5.

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formalmente, a conexão interdependente de funções que são, por sua vez, interpretadas como relações entre variáveis do comportamento social”. Este conceito de sistema permanece estranho à experiência analisada no mesmo modo e na mesma medida em que o são as proposições que explicam o sistema. Além disso, nos procedimentos empírico-analíticos encontra-se apenas a prescrição de certas regras lógico-formais para a construção do sistema dedutivo das proposições hipotéticas e, paralelamente, a demanda para que as proposições construídas dedutivamente tenham um sentido empírico. A teoria dialética, ao contrário, duvida que “a respeito do mundo produzido pelo homem, a ciência possa proceder com a mesma indiferença com a qual procede, com sucesso, nas ciências exatas da natureza”. O interesse que guia o conhecimento da sociedade não é satisfeito por uma teoria que o permita “dispor tecnicamente de determinadas grandezas sociais”. A estrutura do objeto, o contexto social “negligenciado em favor de uma metodologia geral, condena à irrelevância a teoria na qual não pode penetrar”: é a vingança do objeto, diz, com pathos, Habermas270. Nas ciências sociais, o sujeito do conhecimento não pode permanecer sujeito às coações que provém da esfera que ele quer examinar. Ele deve se liberar, e pode fazê-lo apenas se entende o contexto da vida social como uma totalidade que determina a própria pesquisa. Mas Adorno, sem intenções hermenêuticas precisas, já havia escrito que o ideal cognitivo da explicação coerente, quanto mais simples possível, matematicamente elegante, revela-se inadequado quando a própria coisa, a sociedade, não é coerente, não é simples e nem mesmo neutra, suscetível a qualquer estruturação categorial, mas é diferente daquilo que o sistema de categorias da lógica discursiva espera a priori que sejam seus objetos271.

Por esta razão, a teoria empírico-analítica destina-se à falência: ela não consegue adequar o objeto a seu sistema. O método analítico permite à coisa afirmar-se em seu peso específico, diz Habermas. O método não satisfaz a coisa. A teoria da sociedade pode ser apenas uma teoria dialética, cujas categorias não são estranhas ao objeto, mas são determinadas por este. E isso é possível somente se o intérprete já tem uma pré-compreensão do objeto; se ele “já compreendeu precedentemente alguma coisa” deste. A ciência, portanto, torna acessível um objeto de 270 271

HABERMAS, Epistemologia analitica e dialettica..., p. 156. ADORNO, T.W. Sulla logica delle scienze sociali. In: AAVV, Dialettica e positivismo in sociologia..., p. 125-43, p. 126.

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cuja estrutura o intérprete já tem uma antecipação, um preconceito. Surge nela um círculo, que é condição do conhecimento e que não pode ser rompido por uma relação imediata, empírica ou a priori com o objeto, mas que pode apenas ser feito objeto de reflexão dialética em conexão com a hermenêutica natural da vida social. No lugar da conexão hipotéticodedutiva das proposições, conclui Habermas, entra a explicitação hermenêutica do sentido272.

O próprio objeto, portanto, é impermeável a uma explicação objetivística, já que as conexões de sentido implícitas neste só podem ser explicitadas pela consciência hermenêutica do intérprete, por meio de uma reflexão do contexto da determinação histórica que “sempre liga os sujeitos do conhecimento com seu objeto”273. Penetrar o objeto das ciências sociais significa explicitar o sentido mediado pela superestruturação simbólica de seu objeto. E esta explicitação, por sua vez, só é possível se “a escolha do quadro das categorias e dos predicados teóricos fundamentais corresponde ela mesma a um preconceito com o qual o intérprete se aproxima, quase que por tentativas, ao próprio objeto”274. A intervenção de Habermas na doutrina filosófica de Gadamer, liberando a hermenêutica das pressuposições ontológicas e reintegrando a compreensão e a explicitação do sentido na “hermenêutica natural da vida social”, predispõe a própria hermenêutica a ser recebida pela ciência jurídica e a torna utilizável para uma refundação teórica do direito e da ciência jurídica. A teoria do direito, de fato, não poderia receber a hermenêutica jurídica na forma tida como exemplar por Gadamer, que em si era uma forma de pensamento essencialmente dogmático, não diferente do pensamento teológico e filológico, porque era, de fato, aberto para o risco de um positivismo autoritário: justamente o risco que a conversão teórica da epistemologia devia evitar. A teoria jurídica, ao invés, recebe uma hermenêutica filosófica redimensionada e reduzida a disciplina filosófica que se coloca exclusivamente o problema do sentido e da construção do sentido no processo de compreensão e que permite, assim, uma refundação teórica do direito entendido como texto imbuído de sentido e da ciência jurídica como prática científica tendente a explicitar o sentido no processo de interpretação, compreensão e aplicação do direito. 272

HABERMAS, Epistemologia analitica e dialettica..., p. 156. HABERMAS, Der Universalitätsanspruch der Hermeneutik. Hermeneutik und Dialektik..., v. I, p. 73-103, p. 78-9. 274 Ibidem. 273

In:

AAVV,

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Uma refundação hermenêutica como esta rende diversas prestações à teoria do direito: a autocompreensão da consciência hermenêutica elimina o objetivismo naturalístico; o processo de compreensão permite ao intérprete introduzir na interpretação e na aplicação do direito princípios subjetivos de valores que tornam o sistema mais praticável, já que apresentam a racionalidade objetiva do sistema, que é um fato positivo, como um produto espiritual, que tem um sentido (um sentido que é, pois, a essência do direito lida no texto); e a procura do sentido como atividade teórica fundamental e conclusiva permite, assim, manter a forma positiva da abstração, no entanto, atribuindo à sua existência uma duplicidade imanente, na medida em que a pesquisa científica não se exaure no texto, nem na historicidade do texto, mas na referência do positivo ao sentido, que é sempre algo metapositivo ou meta-histórico. Substancialmente, a operação hermenêutica no plano da teoria do direito pretende instaurar uma relação de adequação recíproca entre realidade e metafísica, ou, em suas reflexões teóricas, entre positivismo jurídico e ontologia, na medida em que esta reconhece no texto, no sistema positivo do direito, a qualidade de estrutura simbólica válida atribuída de sentido, qualidade, portanto, de ser veículo empírico do sentido indispensável. E afirma, porém, que a atividade científica sobre este texto deve trazer à compreensão o sentido que é constitutivo do próprio texto e que preexiste a ele. De fato, o intérprete, junto com o sentido, reconstrói também o texto. Mas, enquanto parte do texto, ele não ignora o positivo: atribui-lhe apenas um valor que transforma o sentido objetivo do texto em sentido de qualquer coisa que está além do texto e que se revela no texto pela consciência do intérprete. Mas o sentido da essência oculta não é outro senão o sentido do texto tornado sagrado pela atividade daquela consciência. A hermenêutica, assim, suspende a teoria em um plano mediano comprimido entre positivo e metapositivo, entre fato e essência, entre empiria e ontologia. E este plano é descrito pela consciência do intérprete, pelo processo de compreensão. A hermenêutica, substancialmente, não precisa se colocar o problema do positivo, já que o positivo não fala mais por si. Para além do positivo, do texto, a hermenêutica sempre descobre algo que é o sentido do positivo e descobre, portanto, que este positivo exprime de qualquer modo, mesmo que parcialmente, aquele sentido. Pressuposta a existência positiva do direito, a operação hermenêutica deveria garantir a estabilização do sistema. Mas, desta forma, o direito positivo torna-se o lugar de uma ambivalência particular: seu sistema é objeto da ciência justamente em virtude desta ambivalência. A jurisprudência é um método cujos escopos cognitivos consistem não na

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sistematização formal de um dado material que é seu objeto, ou na sua reconstrução racional, mas na sua redução a dado da consciência, com a finalidade de estabelecer em que medida o dado empírico realiza e exprime a verdade da qual nasce, aquilo pelo qual ele existe, aquilo que nele se cristaliza. A jurisprudência é método de busca da verdade subjetiva do direito positivo que exprime “o sentido do direito” na história. Na realidade, esta jurisprudência não dispõe de operações diferentes daquelas identificadas pelo positivismo, só que a elas não se atribui como fim a busca da racionalidade do positivo, mas a busca de uma razão metapositiva que o intérprete reconstrói a partir do texto, com a finalidade de estabelecer em que medida a existência material do direito adequa a essência espiritual do justo. A novidade consiste no seguinte: que o depositário da capacidade de descobrir esta essência espiritual do justo, ou sentido do direito, é o intérprete dotado de consciência hermenêutica, sua subjetividade, e que o veículo dessa essência é o texto, o direito positivo.

3

SENTIDO, TEXTO E PRINCÍPIO DA MEDIAÇÃO

A jurisprudência, diz Larenz, é a ciência do direito que se interessa pelo aspecto normativo e, portanto, pelo “sentido” das normas275. Os objetos das proposições da ciência jurídica são a validade normativa e o conteúdo das normas do direito positivo. As proposições da ciência não são relativas a fatos, a eventos que se colocam sob o domínio da observação e da percepção de dados empíricos: elas são relativas ao sentido de determinados procedimentos, ao sentido normativo de certos atos. A jurisprudência se interessa pela “compreensão de expressões linguísticas, do sentido normativo pertinente a elas”276. A jurisprudência é ciência na medida em que problematiza o texto jurídico, o interroga sobre as diversas possibilidades de significado. Mas este problematizar é um procedimento fixado em uma doutrina, que é a doutrina do método da jurisprudência: esta doutrina não descreve apenas o modo pelo qual se procede na pesquisa científica, mas também faz perguntas, questões relativas aos valores, ao possível sucesso de determinados métodos. A capacidade heurística, o sucesso desta atividade metodológica depende da medida na qual ela se adéqua ao escopo cognitivo específico da jurisprudência: O escopo cognitivo da jurisprudência, continua Larenz, é a procura do direito vigente aqui e agora (em sentido normativo), e, em particu275 276

LARENZ, Methodenlehre der Rechtswissenschaft..., p. 171. Idem, p. 181.

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lar, não como um conteúdo normativo simplesmente dado, mas como um conteúdo normativo a ser desenvolvido cada vez mais próximo a partir de um material pré-existente (nas leis e nas decisões judiciais, nos atos administrativos e nos contratos)277.

Na perseguição deste seu escopo cognitivo, a jurisprudência é guiada pela hipótese de trabalho de que é imanente ao material existente, até um certo nível, uma ordem interna, que o material representa a tentativa de dar uma série coerente de respostas ao problema do direito, à justiça. A legitimação dos escopos cognitivos da jurisprudência é dada pela hermenêutica filosófica do direito: a metodologia, diz Larenz, leva, queira-se ou não, à filosofia, e a tarefa da filosofia é a explicitação hermenêutica do sentido. A idoneidade de determinados métodos para favorecer, para realizar os escopos cognitivos e práticos da jurisprudência é fixada, portanto, pela hermenêutica. E por hermenêutica, escreve novamente Larenz, entendo a doutrina das condições de possibilidade e dos modos particulares da “compreensão em sentido estrito”, isto é, da compreensão daquilo que é dotado de significado enquanto tal, em contraposição ao “explicar” os objetos sem consideração de suas relações de significado278.

A hermenêutica geral dá os fundamentos da metodologia jurídica. Ela é o lugar no qual se exercita a autorreflexão da metodologia, no qual se estabelecem as medidas da racionalidade, da justificação fundada em motivos, no qual se exercita a fantasia criativa do intérprete. A metodologia é a “metaciência” da jurisprudência; é a mediação contínua entre hermenêutica e jurisprudência. O saber hermenêutico é o fundamento de todo saber científico sobre o direito. Sobre ele, ergue-se uma metodologia das práticas da jurisprudência cuja validade depende do grau de transcendência que estas reúnem a fim de colher, na direção indicada pela hermenêutica, o sentido que unifica o ordenamento jurídico positivo. A hermenêutica, como havíamos dito, Larenz assinala, é a doutrina da ambivalência do direito, de sua duplicidade. A hipótese sobre a qual esta doutrina se constrói é de que o direito existente, sua forma histórica, não exaure o princípio do direito, mas o exprime parcialmente. Desta expressão parcial, desta concretização histórica do princípio, a ciência remonta ao próprio princípio, àquilo que os hermeneutas chamam de “die Sache Recht”, a coisa direito. 277 278

LARENZ, Methodenlehre der Rechtswissenschaft..., p. 226. Idem, p. 227.

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O problema fundamental da pesquisa hermenêutica, portanto, é estabelecer o lugar no qual a polaridade do direito é comprimida e superada; o lugar no qual a ambivalência, que é sempre mantida, é, ao mesmo tempo, transcendida. As categorias com as quais a hermenêutica opera são definidas por esta contínua e desesperada busca pelo termo médio, pelo terceiro que realize a mediação entre as duas polaridades, do direito positivo e da “coisa direito”. O terceiro deve mediar a dicotomia entre ser e dever ser do direito; entre realidade e metafísica; entre positivismo e ontologia; entre história e consciência: a capacidade epistemológica da teoria hermenêutica é ligada à identificação de um princípio que realize a mediação. Mas a este princípio também é ligada a falência da empresa hermenêutica, na medida em que a sua busca desesperada se conclui ou em uma resolução da consciência, subjetivista, do princípio da mediação, ou se compõe no vício de um procedimento ilógico e circular, pelo qual o princípio da mediação consiste na interpelação do dever ser no ser e, por conversão, na subsunção da empiria em uma metafísica do sentido279. A hermenêutica, de fato, refuta a lógica, assim como a psicologia ou a linguística, não porque contenha uma semiótica, uma psicologia ou uma linguística alternativas – se assim fosse, a hermenêutica estaria solidamente ancorada no plano da ciência –, a sua refutação nasce de seu colocar-se contra a ciência em um plano pré-científico. Justamente por isso, o “princípio da mediação” dificilmente se deixa apreender e definir. Esser280, por exemplo, identifica o princípio da mediação na pré-compreensão (Vorverständnis) que o intérprete tem do direito. Pré-compreensão é a representação que o intérprete tem do direito como ordenamento que pretende adequar a justiça. É o instrumento com o qual o juiz se aproxima da decisão relativa a um fato buscando afirmar o princípio do direito por meio de uma decisão justa. Pré-compreensão é um fato de consciência que, porém, na medida em que é um produto social, não é subjetivo, mas é sobretudo concretização na subjetividade do intérprete das expectativas de justiça que o corpo social tem no direito. Pré-compreensão é medida de racionalidade não apenas da decisão, mas também do direito positivo, na medida em que é aquela concretização parcial de sentido que permite acessar o sentido do todo pela leitura do 279

280

Cf. KAUFMANN, A. Analogie und Natur der Sache ‒ zugleich ein Beitrag zur Lehre vom Typus. Karlsruhe: Müller, 1965. p. 32. ESSER, J. Vorverständnis und Methodenwahl in der Rechtsfindung cit.; cf. para uma crítica da polivalência do conceito de “pré-compreensão” em ESSER, H. Rottleuthner, Hermeneutik und Jurisprudenz. In: KOCH, H. J. (Org.). AAVV, Juristische Methodenlehre und analytische Philosophie, org. por Athenäum, Kronberg/Ts. 1976. p. 7-30.

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texto. Pré-compreensão é também esquema de referência sobre o qual se constrói o sentido possível do texto. É antecipação ordenatória, hipótese que se deixa continuamente corrigir por novas hipóteses explicativas do sentido possível. É o motor que aciona o processo de compreensão, que depois retorna a esta para adequá-la e melhorá-la. Pré-compreensão, na realidade, não é nada diferente de Vorurteil, preconceito. Na artificiosa concepção de Esser, de fato, não obstante a polivalência de valores que a determinam, esta categoria, liberada do misticismo que a circunda, significa apenas que o intérprete tem uma ideia do justo, crê que o direito positivo exprima essa ideia, mesmo que parcialmente, imagina buscar com a sua decisão um sentido que ele, ao invés, traz consigo por tradição, e avança a pretensão de que sobre a sua ideia se estabeleça um consenso racional. Os esforços que Esser emprega para apresentar a categoria do preconceito de modo diverso do vulgar levam a uma concepção vulgar de ciência: a uma involução da reflexão que se aproxima da realidade a partir do ponto de vista subjetivo do intérprete e que, obscurantista que é, recusa fechar-se ao positivo e considerá-lo objeto da ciência e confia a contextos linguísticos cinzentos a tarefa de vender o preconceito comum como racionalidade hermenêutica. Outros teóricos da hermenêutica buscaram fixar o termo da mediação no procedimento circular de compreensão, na tentativa de, assim, eliminar do pensamento jurídico o procedimento lógico de subsunção281. Um bom exemplo é Kaufmann, para quem não se chega à identificação do direito pelo procedimento lógico do silogismo, mas por um “andar tateando, mão a mão, do plano do ser ao plano do dever ser e do plano do dever ser ao plano do ser, reconhecendo a norma nas circunstâncias de fato e as circunstâncias de fato na norma”282. Mas o esteticismo verbal também esconde a incapacidade de identificar o termo da mediação em um procedimento que não seja vicioso, assim como a tentativa de Esser mascarava a incapacidade de dar à compreensão um “sentido” di281

282

ENGISCH, Logische Studien..., p. 15; Id., Einführung in das juristische Denken, Kohlhammer, Stuttgart 1971 (5), p. 206-7, n. 54 [tr. it. de A. Baratta da IV ed. alemã, Introduzione al pensiero giuridico. Milano: Giuffrè, 1971]; cf. KAUFMANN, Analogie und Natur der Sache...,; Über den Zirkel schluss in der Rechtsfindung, in: Festschrift fur W. Gallas zum 70. Geburts tag. LACKNER, K.; LEFERENZ, H.; SCHMIDT, E.; WELP, J.; WOLFT, E. A. Berlin: Gruyter, 1973. p. 7-20; GÖTTNER, H. Logik der Interpretation. München, Fink, 1973. p. 147 ss.; Esser, Vorverständnis und Methodenwahl..., p. 134 ss.; HASSEMER, Tatbestand und Typus..., p. 103 ss.; ROTTLEUTHNER, Hermeneutik und Jurisprudenz..., p. 24-7; cf. também STEGMÜLLER, W. Der sogenannte Zirkel des Verstehens. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1975. KAUFMANN, Analogie und Natur der Sache...

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verso do preconceito como coisa vulgar. O círculo hermenêutico, chamado antes de espiral283, na realidade, é o círculo de um pensamento que pretende soldar ser e dever ser na viciosidade de uma resolução circular da razão interpretativa que parte da subjetividade e a ela retorna, apagada pela visão de uma positividade intacta, na medida em que a razão já se conhece como consciência do preconceito que se põe como sentido do direito. Alienada é, com certeza, a realidade do direito, mas viciosa é a circularidade do pensamento que pretende superar esta alienação substituindo a razão pelo sentimento e prendendo à mão, afetuosamente, ser e dever ser.

4

HRUSCHKA: DAS VERSTEHEN VON RECHTSTEXTEN [A COMPREENSÃO DE TEXTOS JURÍDICOS]

Outros autores, contrariamente, em coerência com a instância originária do pensamento hermenêutico, identificam o termo da mediação no processo global de compreensão, no qual a pré-compreensão e o círculo hermenêutico figuram como momentos de um todo, como partes de uma unidade indivisível que, a partir do texto, chega à verdade. Nessa direção move-se a obra de Joachim Hruschka, Das Verstehen von Rechtstexten284 [A compreensão de textos jurídicos]. Esta obra analisa todo o processo de compreensão e enfrenta todos os obstáculos que se colocam para o intérprete que, partindo do veículo material do sentido, constituído pelo texto, pretende penetrar a profundidade ontológica da “coisa direito”. Em sua organicidade, esta obra constitui uma construção sistemática completa da especulação hermenêutica, e justamente por esta sua característica, pela sistematicidade com a qual organiza as “fantasias transcendentais”285 produzidas pela reflexão hermenêutica, é oportuno nos alongar sobre ela, seguindo suas linhas de fundo. O primeiro problema enfrentado por Hruschka é relativo ao conceito de sentido. Algumas teorias, segundo ele, consideram o sentido como uma qualidade, um atributo do signo no qual ele se exprime. Mas tal perspectiva, afirma Hruschka, é enganosa. Se fosse aceita, seria preci283 284 285

Cf. HASSEMER, Tatbestand und Typus..., p. 107. Cf. citação da nota 34. É o título sugestivo do trabalho de ALBERT, H. Transzendentale Träumereien. Karl-Otto Apels Sprachspiele und sein hermeneutischer Gott. Hamburg, Hoffmann und Campe, 1975.

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so colocar a seguinte pergunta: como o signo ou a conexão de signos obtém aquele sentido e justamente determinado sentido? É necessário repensar e redefinir a categoria “sentido” sob uma perspectiva hermenêutica, já que esta representa a categoria central do processo de compreensão. Palavra e sentido não constituem uma unidade fechada e autossuficiente. “A palavra é um signo que, para além de si mesmo, remete a algo diferente, que, por sua vez, possui um caráter essencialmente extralinguístico”286. O sentido, conclui Hruschka, não é uma qualidade da palavra: “Sentido é a relação de uma palavra com uma coisa (ou seja: com um contexto material ou um contexto de vida)”. E isto vale tanto para a palavra como para o conjunto de palavras que constituem, em seu complexo, um texto. Também no caso de um texto, não se pode falar do sentido como de uma propriedade que o texto possui; mas de uma relação que este tem com um contexto extralinguístico qualquer. A redefinição do sentido como relação é válida para todos os textos, assim como para os jurídicos: As interpretações das decisões jurídicas no direito positivo – sustenta Hruschka – remetem sempre, para além de si mesmas, a contextos extralinguísticos, sejam estes materiais ou contextos de vida; e aquelas decisões devem ser consideradas significantes (be-deutend) apenas deste modo287.

A interpretação do texto é, portanto, sempre interpretação da coisa da qual o texto fala. Mas esta interpretação é possível, por sua vez, somente se o intérprete já possui uma pré-compreensão da coisa, ou uma antecipação do sentido a respeito do texto. Tal antecipação do sentido possui “quem já está em uma relação de vida com a coisa da qual se fala”: ele tem pontos de vista concretos sobre a coisa, opiniões ou pré-opiniões com as quais se aproxima do texto. O intérprete nem sempre está consciente destas pré-opiniões. Apenas o ato de reflexão faz emergir à consciência conteúdos da pré-compreensão, que podem, assim, ser criticados e corrigidos através do texto. A pré-compreensão é uma opinião pré-estruturada, pré-formada pelo que o intérprete traz consigo. Ela é imagem da coisa da qual se fala no texto em sua presença na consciência do intérprete. O texto constitui apenas a mediação linguística entre uma coisa extralinguística e seu conteúdo de consciência, sua pré-configuração. A leitura do texto é o mecanismo que aciona o pressuposto de toda compreensão, isto é, o “recurso às coisas extralinguísticas às quais fora dada uma con286

287

ALBERT, H. Transzendentale Träumereien. Karl-Otto Apels Sprachspiele und sein hermeneutischer Gott. Hamburg, Hoffmann und Campe, 1975. p. 29. Idem, p. 41.

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figuração linguística no texto a ser compreendido”288. A compreensão é o processo que traz à tona a coisa extralinguística que nele é expressa. Hruschka define esta coisa extralinguística, trazida à existência linguística por textos jurídicos, como das Rechtliche, o princípio jurídico. “O Rechtliches, porém, assinala em seguida Hruschka, não se determina autonomamente por meio dos textos positivos do direito. Os textos são, inversamente, uma expressão deste ‘Rechtliches’, que está, por princípio, para além destes”289. Se este “princípio do direito” é aquilo que faz de um texto, de um contexto linguístico, um texto jurídico que no processo de compreensão leva a este seu princípio fora de si, a hermenêutica encontra sua tarefa fundamental na busca e determinação desta coisa extralinguística, deste Rechtliches. Inicialmente, é necessário formular determinações negativas da “coisa direito”. A primeira é a seguinte: A “coisa direito” que é positivada nas interpretações jurídicas a serem compreendidas e naquelas já compreendidas não pode ser ela mesma um texto jurídico, nem pode ser determinada por analogia a textos positivos. Esta é, sobretudo, simplesmente um aliud diante dos textos jurídicos290.

E, de fato, se a “coisa direito” fosse o texto, ou algo similar a este, poderia ser compreendida justamente enquanto tal no texto, que por sua vez representaria o “verdadeiro”, o “único” direito. Cairíamos em um círculo vicioso, diz Hruschka, já que também, para aquele texto, colocar-se-ia o problema da compreensão, e, portanto, a necessidade de sempre identificar uma “coisa” posta para além dele. A segunda determinação negativa da “coisa direito” é a seguinte: à pergunta sobre que coisa seria esta, não se pode responder com uma simples indicação do conteúdo do direito. A “coisa direito” é necessariamente extrapositiva, ela é utópica não no sentido de que seja uma espécie de imagem da fantasia expressa na linguagem, mas no sentido mais radical e mais preciso de que esta não tem, absolutamente, um lugar (topos) na linguagem e que “o princípio do direito por excelência” (das Rechtliche schlechthin) não pode ter, absolutamente, tal lugar291. 288

289 290 291

ALBERT, H. Transzendentale Träumereien. Karl-Otto Apels Sprachspiele und sein hermeneutischer Gott. Hamburg, Hoffmann und Campe, 1975. p. 46-8. Ibidem. Idem, p. 52. Ibidem.

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Entre o texto jurídico positivo e a “coisa direito” extrapositiva existe, sempre, uma dependência hermenêutica. Esta não é unívoca, mas recíproca: nem os textos podem ser compreendidos, e, portanto, serem eficazes, sem consideração da “coisa direito” neles expressa, nem esta tem realidade sem os textos positivos. A extra-positividade do “Rechtliches” completa-se nas positivações que se observam em toda parte, e que se revelam como necessárias; enquanto, assim, seu caráter utópico encontra sua correspondência nas identificações interpretativas (in den auslegenden Erörterungen) pelas quais é sempre procurado, pelo direito, um lugar na linguagem292.

Depois de ter determinado negativamente a “coisa direito”, podemos nos aproximar positivamente desta. Não obstante o fato de que a diversidade existente entre as esferas positiva e extrapositiva do direito impeça uma descrição interpretativa da esfera extra-positiva enquanto tal, diz Hruschka, se levarmos em consideração a relação recíproca existente entre as duas esferas, é possível fornecer determinações formais, estruturas gerais daquilo que é a “coisa direito”, “das Rechtliche”. Para obter estas estruturas, Hruschka se serve de um método que ele chama de redutivo, e consiste, na prática, no seguinte: A “coisa direito” extrapositiva é concebida precisamente como a condição de possibilidade da compreensão de textos jurídicos, justamente como esta nos é apresentada à primeira vista. A partir dos textos jurídicos, é preciso colocar a questão de seus constituintes hermenêuticos293.

Na aplicação deste método, que Hruschka não chamou de redutivo por engano, impõe-se imediatamente uma consideração: os textos 292

293

Idem, p. 53. É extremamente difícil traduzir para o italiano [ou para o português – N.T.] todos os jogos lingüísticos sobre os quais se constrói a hermenêutica jurídica de Hruschka. Vale apenas um exemplo: na página citada se fala de “utopischer Charakter des ‘Rechtlichen’”, dando a “utopisch” o sentido: “que não tem um lugar preciso na linguagem”, imediatamente depois se diz que a atividade hermenêutica é pesquisa deste lugar. Para exprimir este fato Hruschka usa o termo “Er-Oerterung”, que propriamente significa “discussão, exame, consideração”, mas que quando decomposto deve deixar evidente sua derivação de “Ort”, que significa “lugar”. Motivo pelo qual Er-Oerterung deve significar algo como colocação, pesquisa, individualização do lugar. Deste tipo de jogo é perpassada toda obra de Hruschka, na qual a tarefa de sustentar a profundidade das argumentações é confiada à ‘fumosidade’ dos significados – que, junto com sua polivalência, constitui uma peculiaridade do pensamento hermenêutico (cf. ROTTLEUTHNER, Hermeneutik und Jurisprudenz cit.) – e também a uma rica fantasia criativa capaz de penetrar e forçar a própria estrutura das palavras. Idem, p. 56.

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jurídicos existem porque no contexto da vida prática experimentam situações críticas, situações de conflito que requerem uma via de saída. Os objetos dos textos jurídicos são precisamente estas vias de saída, que os textos qualificam mediante juízos de valor positivos ou negativos. A pretensão de validade da proposição jurídica, portanto, não se exaure, como afirma o positivismo jurídico, no fato de que “a proposição jurídica se apresenta como pré-escritura e objetivação de possíveis vias de saída de situações de conflito e como medida para a execução futura”294. Esta pretensão persegue seu escopo na medida em que a proposição jurídica é pré-escritura e objetivação dotada de valor, e, ao mesmo tempo, medida dotada de valor. O sentido da validade nasce da “adequação (Angemessenheit) e da justiça (Gerechtigkeit) da solução pré-escrita do conflito”, e orienta-se para esta. A proposição jurídica, portanto, remete à “coisa direito” em sua extrapositividade; não apenas na medida em que determina possíveis soluções para situações de conflito positivamente objetivadas, mas também na medida em que remete “em absoluto, ao princípio da adequação e da justiça das soluções de conflitos”. Consideremos agora, argumenta Hruschka, conceitos como “contrato”, “representação”, “matrimônio”, “furto”, “homicídio”, etc: com estes conceitos, indicamos “possibilidades juridicamente qualificadas da práxis da vida”. Estas, enquanto tais, são entidades jurídicas independentes do direito positivo. São, para usar a expressão de Reinach e Gerhart Husserl, “fenômenos jurídicos”. Diante dos fenômenos jurídicos, estão os textos, como suas objetivações positivas, como tentativas de prendê-los e fixá-los na linguagem. Para a hermenêutica jurídica, conclui Hruschka, o fenômeno jurídico é “aquela coisa particular que, por meio do texto jurídico recorrentemente interpretado, atrai para si nossa atenção, e, manifestando-se desse modo, torna possível a compreensão do texto”295. O próprio fenômeno enquanto tal é extrapositivo, ele não deixa-se apreender pela linguagem em sua totalidade. A linguagem consegue colher apenas imagens do fenômeno, que, todavia, passa em parte na linguagem, se deixa penetrar por esta. E é justamente esta penetração que torna possível a compreensão. Aquilo que é, contrariamente, por excelência, extrapositivo e utópico, é a “coisa direito” à qual todas as “coisas particulares” remetem, aquele “mesmo princípio supremo da adequação e da justiça das soluções de conflitos, ao qual, por último, remetem todos os textos jurídicos positivos”. O princípio jurídico “é o ponto de referência interna de todo o direito” ao qual todo o direito positivo se remete. 294 295

Idem, p. 64-5. Idem, p. 66.

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A este princípio é possível dar diversos nomes, diz Hruschka. Pode-se chamá-lo de “ideia do direito”, “justiça”, “direito natural”, mas dado que, enquanto princípio, este não é compreensível por meio da linguagem, estes nomes poderiam indicá-lo, mas não ajudariam compreender o que ele fosse. Todo o direito existente, as proposições jurídicas, os projetos de lei, os comentários e críticas, incluídas as proposições do direito natural, são tentativas que procuram constringir este princípio na forma da linguagem: tentativas que, duvidosamente, nem sempre correspondem “às representações e intenções expressas por seus autores, mas de modo que todas estas proposições jurídicas positivas possam ser compreendidas apenas como explicitações do princípio jurídico”296. Ativemos-nos longamente ao texto de Hruschka porque, melhor do que qualquer outro, ele reúne sistematicamente as refinadas fantasias da hermenêutica, e porque nele, mais do que em qualquer outro, a profundidade da especulação deixa transparecer as involuções, a circularidade, a primitividade de um pensamento que observa a positividade do direito com olhos atônitos de quem procura o inefável, o inexprimível, com a ingenuidade de quem crê poder atingi-lo evocando a magia das palavras e, por meio destas, tocar o infinito na vulgaridade da matéria. A sublime profundidade deste texto, a gradualidade da ascensão em direção ao infinito, a sistematicidade orgânica da conquista do absoluto já presente na consciência evidenciam de modo inequívoco que, destruídas a razão e a ciência, restam o mito e a poesia: o mito e a poesia de uma realidade fixada pela força do arcano que encerra em si, e que, por estar constrita a levar uma existência material, permanece para sempre qualquer coisa de sublime.

5

O OBSTÁCULO EPISTEMOLÓGICO DA HERMENÊUTICA

O problema epistemológico que a hermenêutica deveria resolver com a finalidade de se atribuir uma estrutura não aporética era relativo à identificação do termo médio capaz de realizar a união entre ser e dever ser, entre positividade e extrapositividade, entre texto e sentido. Mas justamente nesta tentativa a hermenêutica falha. Seu esforço é inútil: inutilmente, a hermenêutica busca – com a finalidade de escapar da dicotomia e superar a oposição – provar a consistência, a não tautologicidade dos princípios de mediação aos quais recorre; inutilmente, busca demons296

Idem, p. 68-9.

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trar que o processo de compreensão, em sua conclusividade, suportado pelas categorias do preconceito e pela operação pré-lógica do círculo hermenêutico, é diferente de uma “decomposição e restauração filosóficas da empiria presente”297. A operação hermenêutica constringe e força o texto pela subjetividade do intérprete, terminando por transformar sua conexão de sentido, penetrável pela ciência em sua concreta empiricidade, em algo suprasensível, em expressão do inefável. O texto não existe como fato empírico, não tem valor por si. Tem valor somente na medida em que remete a alguma coisa fora de si, empiricamente não perceptível, nem penetrável pela análise científica. Mas justamente a superficialidade negligenciável do fato empírico, diante da qual se põe a profundidade da compreensão hermenêutica, sublima-se pelo do processo de compreensão, que ao final sempre descobre que o modo de dizer do inefável, a materialidade vulgar do texto que é transcendida, é adequado e justo. O inefável não pode ser expresso com palavras: a hermenêutica é uma compreensão tão profunda que, por meio da subjetividade do intérprete, consciente de seu preconceito, constringe o inefável a falar as palavras daqueles textos que o positivismo considerava válidos, mas não necessariamente sacros. Incapaz de mediar a duplicidade que pressupôs no objeto, a hermenêutica resta ela mesma como expressão de uma duplicidade que torna estéril seu esforço de penetrar no direito: “nesta, é latente, como gênero, como potência e como segredo, o positivismo acrítico e o idealismo igualmente privado de crítica” de um pensamento que restaura o direito positivo em sua empiricidade, depois de tê-lo apresentado como realidade alienada, como expressão de algo que já é pressuposto e que pré-existe, de maneira que o direito se apresenta à consciência como manifestação da ideia no momento do ser fora de si. O processo de compreensão não passa de um processo de decomposição filológica do texto, que, porém, torna possível a restauração filosófica do direito, em virtude da mediação da consciência do intérprete. Mascarada como pretensão de adequação de uma realidade dotada de sentido que seria inacessível às ciências empírico-analíticas, a intenção hermenêutica é a destruição do iluminismo, mas também de toda forma de razão. A compreensão, como processo conclusivo do fazer hermenêutico, mais do que a síntese ou a superação da separação originária, é o lugar no qual a impotência epistemológica da hermenêutica torna-se clara. É impotência de um pensamento que não pode se constituir como 297

Cf. MARX, K. Manoscritti economico-filosofici, in Opere filosofiche giovanili..., p. 262.

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teoria, porque não possui hipótese do objeto, porque se sabe como anulação e sublimação contextual do próprio objeto; de um pensamento que exprime o grau mais profundo da involução anti-iluminista da razão restrita a assunto privado e da consciência; é a impotência de um pensamento mitológico que, depois de ter identificado na realidade empírica do direito a forma alienada do espírito, ilude-se, coerentemente, de que pode mediá-la com instrumentos pré-racionais da teologia. O sentido do absoluto, o preconceito, o círculo. Consciente desta incapacidade da hermenêutica para superar o obstáculo da mediação, assim como do deslocamento da hermenêutica a respeito do pensamento científico, Kaufmann a poupa da falência inútil no plano epistemológico dissolvendo-a em uma reflexão de natureza exclusivamente filosófica, não científica, ou seja, dissolvendo-a em uma filosofia do absoluto no ser ontologicamente fora de si. A historicidade como categoria do direito, da linguagem e do homem, diz Kaufmann298, é nada mais que “dialética de autorrealização e autoalienação”. Ainda mais precisamente, repete Kaufmann com Tsatsos, o significado do método que permite superar o dualismo entre ser e dever ser consiste em “reconhecer o instante no qual o dever ser se torna ser e o ser se torna dever ser. É sua peculiaridade reconhecer no ser o dever ser e no dever ser o ser”299. A pretensa mediação agora tornada união entre ser e dever ser resolve-se em uma suspensão da reflexão entre consciência privada e empiricidade, entre preconceito e metafísica. A pretensão hermenêutica originária de adequar o direito como texto dotado de sentido transforma-se em uma série de pressuposições não resolvidas, em um círculo vicioso no qual o positivo encontra seu sentido na metafísica, e a metafísica encontra sua razão de ser nos preconceitos que a consciência constrói para si partindo do positivo. Mas a causa final e conclusiva da impotência epistemológica da hermenêutica jurídica consiste no fato de que, enquanto a hermenêutica consegue ser uma teoria da destruição do iluminismo da razão e da historicidade da categoria jurídica, não consegue reconstruir, a não ser em um plano alegórico, os fragmentos que são produzidos como efeito de sua operação. A hermenêutica revela-se substancialmente como nada mais do que uma mal sucedida apologia do direito positivo, do qual subtrai uma racionalidade objetiva para atribuir uma verdade subjetiva grosseira: nascida do medo do positivismo, a hermenêutica resta prisioneira do sentimento e do preconceito subjetivo. 298 299

Die Geschichtlichkeit des Rechts im Licht der Hermeneutik..., p. 89. Idem, p. 101; cf. Th. TSATSOS, Der Staat als funktionelle Vereinigung von Gesellschaft und Recht. Heidelberg: Winter, 1966. p. 28.

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2 A TEORIA DO DIREITO COMO REFLEXÃO CRÍTICA 1

TRADIÇÃO DIALÉTICA E PENSAMENTO ANTIPOSITIVISTA

A epistemologia crítico-hermenêutica de Habermas300, construída com base na revisão hermenêutica do marxismo, e a antropologia do conhecimento de Apel301, construída com base na convergência entre filosofia transcendental e pragmatismo, constituem o atual ponto de apoio 300

301

Cf. HABERMAS, J. Der Universalitätsansprunch der Hermeneutik. In: AAVV, Hermeneutik und Ideologiekritik..., p. 120-59 (publicado também em AAVV, Hermeneutik und Dialektik, v. I..., pp. 73-103); Id., Vorbereitende Bemerkungen zu einer Theorie der kommunikativen Kom petenz. In: HABERMAS, J.; LUHMANN, N. Theorie der Gesellschaft oder Sozial technologie..., p. 101-41; tr. it. cit.; entre as obras fundamentais de Habermas: Zur Logik der Sozialwissenschaften..., trad. it. cit.; Er kenntnis und Interesse. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1973, com um Poscritto, p. 367-417 [tr. it. de G. E. Rusconi, Conoscenza e interesse. Bari: Laterza, 1970]; a coletânea Theorie und Praxis. Sozialphilosophische Studien. Frankfurt a.M: Suhrkamp, 1974 [tr. it. de A. Gajano, Prassi politica e teoria critica della società, Il Mulino, Bologna 1973], de particular interesse o ensaio Zwischen Philosophie und Wissenschaft: Marxismus als Kritik, p. 228-89. Da ampla bibliografia sobre Habermas, Materialien zu Habermas, “Erkenntnis und Interesse”, org. por W. Dallmayr. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1974, e WILLMS, B. Kritik und Politik. Jürgen Habermas oder das politische Defizit der “kriti schen Theorie”. Frankfut a.M.: Surkamp, 1973; RADNITZKY, G. Contemporary Schools of Metascience, v. II: Continental Schools of Meta science..., p. 19 ss., e CASSANO, F. Autocritica della sociologia contemporanea. Weber Mills Habermas. Bari: De Donato, 1971. p. 151-201. Cf. APEL, K.O. Transformation der Philosophie, v. I: Sprachanalytik, Semiotik, Hermeneutik; v. II: Das Apriori der Kommunikationsgemeinschaft. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1973, em particular os ensaios do segundo volume. Sobre Apel, cf. a já citada análise crítica de Albert, Transzendentale Träumereien cit.

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da tradição dialética e do pensamento antipositivista na Alemanha302. Em torno destas metateorias, que Albert define como expressões típicas da ideologia alemã303, desenvolveu-se uma consistente convergência de interesses filosóficos e políticos. Tal convergência se deve, sem dúvidas, ao fato de que, nestas metateorias, a reação antipositivista não nasce de uma proposta idealista ingênua304, mas de uma profunda instância liberatória: da exigência de uma racionalidade nova, capaz de emancipar a sociedade, liberando aquilo que é reprimido e restituindo ao homem, com a competência comunicativa, a capacidade de interagir com os outros e de projetar o futuro. A pretensão universalista do novo discurso metateórico envolveu também a epistemologia jurídica, à qual forneceu, na realidade, instrumentos mais refinados e novas possibilidades para consolidar suas posições, sem dúvidas fracas e incertas, contra o positivismo das escolas analíticas. A alternativa radical construída por Habermas e Apel contra toda forma de positivismo abriu para a teoria do direito uma perspectiva inicial para superar o complexo de inferioridade provocado por hipóteses epistemológicas impraticáveis e viciosas. Este complexo de inferioridade derivava do fato de que enquanto as ciências sociais de matriz positivista e analítica haviam aperfeiçoado seus instrumentos metodológicos com base nos aportes das ciências naturais, da linguística e da lógica, a teoria do direito permanecia presa nas aporias do pensamento hermenêutico ou naquelas do pensamento ontológico existencial. A epistemologia jurídica, de fato, não conseguia adequar sua estrutura aos níveis alcançados pela epistemologia das ciências sociais. Colocando-se no universo do discurso da metateoria crítico-dialética, a ciência jurídica busca sua emancipação em relação ao complexo do positivismo e, ao mesmo tempo, a possibilidade de participar de um debate do qual estava ameaçada de ser excluída devido à viciosidade dos modelos até o momento construídos. 302

303

304

A bibliografia sobre o argumento é muito vasta. Limito-me a citar os ensaios recolhidos em AAVV, Dialettica e positivismo in sociologia...; HORKHEIMER, M. Traditionelle und kritische Theorie. Vier Aufsätze, Fischer, Frankfurt a.M. 1970; WELLMER, A. Kritische Gesellschaftstheorie und Positivismus. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1969; RUSCONI, G.E. La teoria critica della società. Bologna: Il Mulino, 1970; SCHMIDT, A.; RUSCONI, G.E. La scuola di Franco forte. Origini e significato attuale. Bari: De Donato, 1972; J. Ritsert-C. Rols hausen, Der Konservativismus der kritischen Theorie. Frankfurt a.M.: Europäische Verlagsan stalt, 1971. ALBERT, Plädoyer für kritischen Rationalismus..., p. 53, que contrapõe ao clichê da superficialidade da filosofia anglosaxã o clichê da profundidade alemã em sua derivação idealística pós-kantiana (p. 55). Mas cf. a crítica de Albert em Plädoyer für kritischen Rationalismus..., e a de Ritsert -Rolshausen, op. cit.

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O debate sobre o positivismo havia caracterizado a epistemologia das ciências sociais no início dos anos sessenta. Este debate prossegue até o início do decênio seguinte em uma cena parcialmente mudada, e adquire novos e mais diferenciados tons. Habermas continua a revisão do marxismo já iniciada pela Escola de Frankfurt. O objetivo principal desta revisão era a superação da autocompreensão positivista do marxismo, da redução da dialética a dialética positivista das relações de produção, a integração humanista-emancipatória da análise que Marx havia feito do proletariado e da luta de classes305. A dialética de Marx não dava lugar ao homem e ao seu potencial emancipatório, na medida em que não oferecia nenhum espaço ao poder efetivo da crítica, à capacidade de recuperar criticamente o sentido distorcido e a comunicação destruída pelas relações capitalistas de produção. A dialética “reduzida” de Marx não permitia distinguir a ciência da sociedade da ciência da natureza, motivo pelo qual o materialismo histórico como ciência da sociedade não conseguia adequar seu objeto. Marx não foi capaz de pensar o problema do sentido. Não concebeu o sujeito como “portador de sentido”, nem a sociedade como “conexão de sentidos”. A teoria marxista, assim, era impossibilitada de analisar a distorção de sentido, e, portanto, o novo contexto antropológico criado por efeito desta distorção na sociedade capitalista. O marxismo não conseguiu, por isso, abordar o problema da emancipação na sociedade do capitalismo avançado: em uma sociedade na qual emancipação significa essencialmente recuperação do sentido distorcido do diálogo reprimido, da comunicação interrompida306. A hermenêutica havia reproposto à epistemologia das ciências sociais a centralidade do problema do “sentido” e havia indicado, assim, a única perspectiva da qual seria possível afirmar a autonomia da ciência social em relação à ciência da natureza. Mas a hermenêutica, se, por um 305

306

Cf. HAHN, E. Die theoretischen Grundlagen der Soziologie von Jürgen Habermas. In: AAVV, Die “Frankfurter Schule” im Lichte des Marxismus, organizado por por HEISELER, J.H. v.; STEIGERWALD, R.; SCHLEFSTEIN, J. Berlin: AkademieVerlag, 1971. p. 70-89; SIMON-SCHAEFER, R.; ZIMMERLI, W.Ch. Theorie zwischen Kritik und Praxis. J. Habermas und die Frankfurter Schule. StuttgartBad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 1975; e, em relação não apenas a Habermas, mas a toda revisão crítica operada pela Escola, cf. BEYER, W.R. Die Sünden der Frankfurter Schule. Ein Beitrag zur Kritik der “kritischen Theorie”. Berlin: Akademie-Verlag, 1971; BAUERMANN, R.; RÖTSCHER, H.-J. Dialektik der Anpassung. Die Aussöhnung der “kritischen Theorie” mit den imperia listischen Herrschaftsverhältnissen. Frankfurt a.M.: Verlag Marxistische Blätter, 1972. De Habermas cf. os ensaios recolhidos por C. Donolo em HABERMAS, J. Teoria e prassi nella società tecnologica. Bari: Laterza, 1969; Id., Zwischen Philosophie und Wissenchaft...; Id., Der Universalitätsanspruch der Hermeneutik...

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lado, não conseguiu realmente se liberar do pensamento autoritário e do pensamento da tradição, por outro, em seus êxitos, pôde se apresentar somente como pesquisa sobre sentido conduzida com o pressuposto de uma comunicação que realmente tem lugar307. A hermenêutica não podia resolver, portanto, o problema do sentido em uma sociedade na qual a comunicação é interrompida e o sentido é distorcido. Ela não conseguia resgatar o sentido perdido em uma praxe de vida na qual as relações de produção intervêm como fator que reprime o diálogo. À hermenêutica escapava o aspecto patológico da sociedade capitalista. O problema da recuperação do sentido perdido em uma situação reprimida, em uma comunicação interrompida, era enfrentado pela psicanálise. A terapia psicanalítica é o instrumento hermenêutico que permite ao paciente restabelecer a comunicação que nele fora interrompida. A hermenêutica, portanto, deve alargar seu horizonte para as aquisições do pensamento psicanalítico308. Este alargamento do horizonte hermenêutico só pode existir envolvendo a hermenêutica, como teoria da busca de sentido, no quadro de uma teoria crítica da sociedade, que tenda – por meio da crítica – à recuperação do sentido perdido na interação interrompida entre os homens, no quadro de uma teoria dialética sustentada por uma filosofia da história antecipadora de uma sociedade emancipada, na qual o sentido pedido é reconquistado pela crítica e realizado na competência comunicativa. À estratégia de uma teoria da ciência social assim entendida se dedicam o trabalho de Habermas e a busca transcendental de Apel. Já no ensaio dedicado especificamente à epistemologia analítica e à dialética309, Habermas havia chamado a atenção para o fato de que a teoria dialética da sociedade procede hermeneuticamente, e havia dito, porém, que o pensamento dialético não se restringe à eliminação do dogmatismo da situação vivida, que não se limita a uma hermenêutica subjetiva, mas que é identificação de sentido e crítica, crítica que escapa ao subjetivismo ingênuo de uma consideração ideológica das relações segundo o sentido que se atribuem, e “ao objetivismo pelo qual as relações sociais entre os homens que agem historicamente são analisadas similarmente a rela307

308

309

Cf. sempre de Habermas, Der Universalitätsanspruch der Hermeneutik..., e Vorbereitende Bemerkungen zu einer Theorie der kommunikativen Kompetenz... Cf. Bauermann ‒ Rötscher, Op..., p. 42 ss.; Ritsert ‒ Rolshausen, Op..., p. 80 ss.; Th. MEYER, Zwischen Spekulation und Erfahrung. Einige Bemerkungen zur Wissenschaftstheorie von Jürgen Habermas. Frankfurt a.M.: Makol, 1972; Ch. NICHOLS, Wissenschaft oder Reflexion: Habermas und Freud. In: AAVV, Materialien zu Habermas “Erkenntnis und Interesse”..., p. 401-17. HABERMAS, Epistemologia analitica e dialettica. In: AAVV, Dialettica e positivismo in sociologia...; p. 162.

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ções regulares entre coisas”. Na medida em que o processo laboral é compreendido nas relações de troca, e estas são legadas ao mercado, diz Habermas, as relações entre homens e coisas e as relações dos homens entre eles aparecem dilaceradas. Assim como nos valores de troca desaparece, de um lado, a força-trabalho realmente investida e o possível usufruto do consumidor, nos objetos que restam quando se lhes tira a camada das qualidades axiológicas é colocada na sombra, por outro lado, a multiplicidade das relações da vida social e dos interesses que guiam o conhecimento310.

É tarefa de uma teoria que não quer cair nas armadilhas do positivismo compreender a multiplicidade das relações sociais emancipando-as da reificação que as dilacerou internamente, por meio da crítica da ideologia na qual estas relações são petrificadas. Enquanto o pensamento hermenêutico é vítima da ideologia do subjetivismo e é, portanto, incapaz de identificar o sentido da dilaceração no interior da interação humana, o pensamento positivista e analítico descreve como regularidade as relações reificadas entre os homens, e confunde com conhecimento positivo a exposição neutra desta reificação – que, para este, aparece, assim, como um fato da natureza. A falácia da teoria positivista só pode ser superada por uma teoria dialética capaz de identificar os processos de reificação e de compreender o sentido reprimido nestes processos, desvendando o aparente objetivismo naturalista. A falácia ideológica de uma busca de sentido incapaz de se liberar da ideologia é superada através da crítica da ideologia capaz de recuperar, através do diálogo, a autenticidade do sentido reprimido e de projetar utopias concretas da sociedade emancipada. As categorias da crítica e do interesse na emancipação são fundamentais no pensamento de Habermas311, já que exprimem a convergência entre uma filosofia da história liberta dos limites do positivismo e 310

311

HABERMAS, Epistemologia analitica e dialettica. In: AAVV, Dialettica e positivismo in sociologia..., p. 181. Cf. BEYER, Op...., p. 11-78; HUCH, K.J. Interesse an Emanzipation. Jürgen Habermas und das Problem einer materialistischen Erkenntnistheorie. In: AAVV, Materialien zu Habermas’ Erkenntnis und Interesse..., p. 22-41, e na mesma coleção as contribuições de RUSCONI, G.E. Erkenntnis und Inte resse bei Habermas..., p. 107-34; APEL, K.O. Wissenschaft als Emanzipation? Eine kritische Würdigung der Wissenschaftskonzeption der “kritischen Theorie”, p. 318-48; BÖHLER, D. Zur Geltung des emanzipatorischen Interesses..., p. 34968 e Über das Defizit an Dialektik bei Habermas und Marx..., p. 369-85; BADURA, B. Ein neuer Primat der Interpretation? Zum Problem der Eman zipation bei J. Habermas..., p. 386-400.

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uma concepção dialética da sociedade, que, pelo motor da crítica, restaura o diálogo na comunidade de falantes. Marx, escreve Habermas, omitiu-se em refletir sobre a crítica enquanto tal, ou seja, omitiu-se em justificar, junto aos elementos científicos contra a filosofia, também os elementos que a crítica deve à sua origem filosófica, contra os limites positivistas das ciências312.

É necessário, portanto, andar com Marx contra Marx313, superar Marx onde ele não foi capaz de penetrar as capacidades da crítica como motor da emancipação humana. Apel parte de pressupostos da epistemologia crítico-hermenêutica de Habermas e procura construir uma teoria antropológica do conhecimento. Repete, com Habermas, que a tarefa fundamental da filosofia é fundar criticamente as abstrações das teorias científicas singulares, considerando os interesses humanos do conhecimento, e tornar estas abstrações retroativas, ou seja, capazes de mediar teoria e prática. Para cumprir esta tarefa, a filosofia deve buscar o fundamento último do conhecimento e do pensamento através da reflexão transcendental. Esta é, para Apel, reflexão “sobre o uso da linguagem como condição de possibilidade e validade da ciência e da filosofia”314. Apel, substancialmente, como ele mesmo reconhece, retoma a problemática clássica da filosofia transcendental e a readapta nos “conceitos da linguagem e do uso comunicativo da linguagem”315. O projeto epistemológico de Apel é mais sincrético que o de Habermas. Em sua antropologia do conhecimento, fundada na reflexão transcendental, ele não exclui da possibilidade de uma mediação hemenêutico-dialética aquilo que Habermas chamava de “limites positivistas da ciência”. A antropologia do conhecimento é um projeto epistemológico que nasce da conversão pragmático-linguística da reflexão transcendental e que se realiza na relação dialética das instâncias do cientificismo (Szientistik), da hermenêutica e da crítica da ideologia316. A crítica da 312 313

314

315 316

HABERMAS, Zwischen Philosophie und Wissenschaft: Marxismus als Kritik..., p. 267 (tr. it...., p. 351). Método que Habermas já havia aplicado a Heidegger: cf. HABERMAS, J. Mit Heidegger gegen Heidegger denken. Zur Veröffentli chung von Vorlesungen aus dem Jahre 1935. In: Philosophisch-politische Profile. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1971. p. 67-75. APEL, K. O. Programmatische Bemerkungen zur Idee einer “transzenden talen Sprachpragmatik”. In: Turun Yliopiston julkaisuja. Studia philosophica in honorem Sven Krohn, “Annales Universitatis Turkuensis”, Turku 1973, p 11. Idem, p. 12; Apel, Transformation der Philosophie..., v. I, Einleitung, p. 68-75. Cf. Idem, p. 52 ss.; Apel, Szientistik, Hermeneutik, Ideologiekritik. Ent wurf einer Wissenschaftslehre in erkenntnisanthropologischer Sicht. In: AAVV, Hermeneutik

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ideologia, conduzida segundo o modelo da psicanálise, exprime a mediação dialética da “explicação” própria das ciências sociais e da “compreensão” das tradições de sentido, própria das ciências histórico-hermenêuticas, segundo o princípio regular de uma “superação” do momento irracional da nossa existência317. A ideia desta superação – que é o aspecto mais novo da antropologia do conhecimento fundada na abordagem pragmático-linguística – é realizada por Apel transformando a consciência absoluta como sujeito transcendental de Kant na “comunidade ilimitada da comunicação”. A ideia desta comunidade é um princípio regulador: é “a ideia da realização de uma comunidade ilimitada de interpretação que, qualquer um que argumente, em absoluto (portanto, qualquer um que pense), pressupõe implicitamente como instância ideal de controle”318. Esta ideia que Apel usa contra a hermenêutica tradicional descritivista, ele deriva de Peirce e de Iosiah Royce: ela é o pressuposto transcendental das ciências sociais. O sujeito que argumenta, já no ato de argumentar, põe e reconhece “os pressupostos transcendentais da teoria do conhecimento e da teoria da ciência no sentido do jogo linguístico transcendental de uma ilimitada comunidade crítica de comunicação”319. Sem pressupor a ideia de uma comunidade ilimitada de comunicação não é possível argumentar, não é possível sequer pensar. Esta ideia é, ao mesmo tempo, a condição transcendental da possibilidade do pensar e do falar, e é a instância crítica de controle de todo argumento, tanto das ciências sociais quanto das ciências histórico-hermenêuticas. Todo falante deve pressupor seu pertencimento a esta comunidade universal, e deve fundar esta pressuposição em uma reflexão transcendental: “Sem esta pressuposição transcendental do conhecimento, o próprio conhecimento não poderia se tornar um argumento”320.

317

318

319 320

und Ideologiekritik..., p. 7-44 (também em APEL, Transforma tion der Philosophie..., v. II, p. 96-127); cf. também RADNITZKY, Continental Schools of Metascience..., v. II, p. 34 ss. e 41 ss.; ALBERT, Transzendentale Träumereien..., p. 11-38. APEL, Szientistik, Hermeneutik, Ideologiekritik..., p. 43;. Id., Wissen schaft als Emanzipation?...; cf. ALBERT, Transzendentale Träumereien..., p. 18 ss., e Id., Hermeneutik und Realwissenschaft. Die Sinnproblematik und die Frage der theoretischen Erkenntnis. In: PIädoyer für kritischen Ratio nalismus..., p. 106-49. APEL, Transformation der Philosophie..., v. II, p. 215, e o ensaio Szientismus oder transzendentale Hermeneutik? Zur Frage nach dem Subjekt der Zeicheninterpretation in der Semiotik des Pragmatismus, p. 178-219; analiticamente o tema é desenvolvido em APEL, Die Kommunikationsge meinschaft als transzendentale Voraussetzung der Sozialwissenschaften, p. 220-63. Idem, p. 222. Ibidem.

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Consequentemente, todo o desenvolvimento histórico universal da humanidade se apresenta para Apel como uma realização e afirmação progressiva “do jogo linguístico ideal, sempre já pressuposto no plano transcendental, nas formas de vida dadas e contra as barreiras irracionais interpostas à comunicação nestas formas de vida”321. O desenvolvimento histórico adéqua-se ao escopo de um iluminismo hermenêutico, de uma sociedade emancipada da consciência transcendental do jogo linguístico; de uma sociedade na qual a razão recupera o sentido perdido através da crítica da ideologia que “interroga formas de vida inteiras e seus jogos linguísticos públicos”. Voltemos a considerar Habermas. A crítica é a categoria central de seu pensamento. Ele julga necessário abandonar o terreno originário da economia política para poder desenvolver todas as potencialidades da crítica não reduzida e seduzida pelo positivismo. Mas, abandonado este terreno, uma teoria que pretenda ser crítica da sociedade na qual a comunicação é distorcida e o sentido é perdido se afasta da única possibilidade de observar os processos de destruição da comunicação humana e, assim, da única possibilidade de compreender seu sentido. De observar os modos e lugares de produção da relação dilacerada do homem com a natureza e, portanto, do homem consigo mesmo. A esta teoria falta o terreno para se observar o problema do trabalho abstrato e, portanto, da gênese da estrutura de reificação. Então, a crítica pode ser, de agora em diante, apenas crítica da comunicação e da interação humana distorcida em sua forma linguística. Abandonado o terreno da economia e da política, a sociedade dos indivíduos produtores de mercadorias apresenta-se para a teoria como comunidade dos falantes e a crítica transforma-se em uma espécie de gramática social das regras do jogo linguístico, com a seguinte particularidade: diversamente da gramática, a crítica persegue a ideia da emancipação linguística como liberação nos sujeitos das formas de diálogo reprimidas. No lugar da emancipação política e da emancipação social, a crítica persegue a ideia da emancipação linguística em forma de competência comunicativa. A crítica do trabalho abstrato é, de fato, substituída na teoria pelo estudo dos universos pragmáticos322. Se a crítica, então, é a categoria fundamental do pensamento de Habermas, ela também constitui para este pensamento uma dificuldade profunda: entendida como gramática de um diálogo idealmente atingido, 321 322

Idem, p. 263. Cf. HABERMAS, Vorbereitende Bemerkungen zu einer Theorie der kom munikativen Kompetenz..., p. 109 ss.; Id., Zur Entwicklung der Interaktionskompetenz. Frankfurt a.M.: Gesellschaft zur Förderung der Wissenschaft, 1975.

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a crítica é incapaz de mediar teoria e prática, ou melhor, ela pode mediar apenas uma teoria e uma prática institucionalizadas, na medida em que ela mesma é um processo e uma ideia institucionalizada. Apel, que do pensamento habermasiano desenvolve não tanto a instância originária quanto as aporias, fica envolvido por um cerco de problemas mais complexos. A instância originária que move sua especulação é a de socializar a reflexão transcendental para evitar cair nas dificuldades encontradas pela hermenêutica filosófica, e para não apresentar a emancipação como fato privado da consciência. Apel, então, recompõe seraficamente a sociedade de indivíduos isolados na pressuposição de uma abstração, na ideia de uma comunidade ilimitada de comunicação, e efetua, assim, em um plano puramente transcendental, a socialização necessária. Mas depois, assim como os hermenêuticos, é obrigado a ver a história e o desenvolvimento da humanidade como processo de realização de um princípio regulador, que para aqueles era o sentido, a “coisa direito”, e aqui é a comunidade ideal como condição de possibilidade da fala. E porque os princípios reguladores não se realizam facilmente na história, Apel recorre à psicanálise, que restitui a sociedade à relação interrompida com o supereu: a comunidade ilimitada da comunicação. O problema de fundo, todavia, não obstante os esforços de Apel, permanece imutável. Trata-se do seguinte: a hipótese transcendental da socialização da consciência absoluta por meio da ideia da comunidade ilimitada de comunicação colide com o pressuposto real do solipsismo da sociedade burguesa, que liga, de fato, a consciência ao indivíduo privado que a porta. O protagonista da reflexão transcendental é o indivíduo privado burguês, como entidade isolada tanto no plano da consciência quanto no plano linguístico: a ideia do paciente coletivo vive apenas como refiguração ideal, em uma antropologia da consciência linguística abstrata que resolve linguisticamente os problemas da consciência isolada da pessoa burguesa sozinha.

2

A TEORIA DO DIREITO COMO “REFLEXÃO TRANSCENDENTAL”

Destas duas metateorias, a epistemologia jurídica recebeu as instâncias de fundo, a instância da crítica e a da reflexão transcendental. Privadas do contexto no qual eram produzidas, despojadas do terreno teórico sobre o qual haviam pretendido se legitimar – o terreno de uma filosofia da história que projeta utopias e as designa como concretas en-

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quanto são apenas simulações da realidade –, estas instâncias encontram dificuldades em se fazerem valer do ponto de vista do direito. Estas dificuldades foram enfrentadas, sobretudo, por Dietrich Böhler e Wolf Paul, que elaboraram, nos últimos anos, uma teoria do direito, como reflexão crítica. Diretamente ligado a Apel e já metacrítico de Marx323, Böhler desenvolveu, em particular, a teoria do direito como reflexão transcendental. Sob o seu influxo, mas mais sensível à epistemologia de Habermas, Wolf Paul, ao contrário, tematizou explicitamente o problema da teoria do direito como crítica do direito. Todavia, não obstante estas relações genéticas, as duas teorias seguem desenvolvimentos substancialmente diversos. Dietrich Böhler escreve que a teoria do direito como reflexão crítica tem diante de si cinco tarefas, e deve provar sua capacidade teórica precisamente na solução dos problemas relativos a elas. A teoria do direito como reflexão crítica deve refletir sobre o âmbito objetivo da ciência jurídica, sobre o caráter científico da ciência e sobre o das proposições jurídicas. Deve ser, em outros termos, reflexão de si mesma, e deve refletir a mediação da ciência na prática. E, assim como “a ciência jurídica tem a ver, em geral, com a vida histórico-social – nota Böhler –, ela precisa de uma reflexão geral que elabore os pressupostos gerais irreversíveis daquilo que historicamente se transforma”324. A teoria do direito como reflexão crítica sobre a qual se funda a ciência jurídica deve ser precedida desta reflexão geral que lhe fornece o quadro de referência epistemológica. Por isso, Böhler elabora o sistema conceitual necessário para a abordagem de uma “teoria transcendental da sociedade ou do social”, e tem que se distanciar da teoria crítica na versão de Habermas, que lhe parece prisioneira da herança teórica do materialismo e, portanto, não suficientemente dialética325. Dessa teoria transcendental, tracemos as linhas gerais, observando, todavia, que a linguagem do autor não se deixa traduzir facilmente em prosa, e que Böhler repropõe substancialmente, apesar de tudo, uma representação confusa da metateoria de Apel. Böhler reprovara Kant por não ter conseguido tematizar, na institucionalização da reflexão transcendental como instância antidogmática 323

324

325

BÖHLER, D. Metakritik der marxschen Ideologiekritik. Prolegomenon zu einer reflektierten Ideologiekritik und “Theorie-Praxis-Vermittlung”. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1971. BÖHLER, D. Rechtstheorie als kritische Reflexion. In: AAVV, Rechtstheorie. Beiträge zur Grundlagendiskussion..., p. 62. Cf. também BÖHLER, D. Über das Defizit an Dialektik bei Habermas und Marx. In: AAVV, Materialien zu Habermas’ “Erkenntnis und Interesse”...

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do conhecimento, a distância reflexiva da consciência humana de si e de seu mundo, que é dada na reflexividade326. No processo de conhecimento, diz Böhler, há sempre um fator distanciador que se faz valer como abstração de conteúdos ou como objetivação de uma realidade natural ou social. Este pressuposto de uma “distância transcendental”, Böhler considera como condição de possibilidade da reflexão transcendental. A reflexividade implícita em cada ato de conhecimento, de fato, é possível somente enquanto o conhecimento pressupõe o “eu penso” como pólo oposto e distanciador em relação à realidade. Esta “reflexividade implícita em todo conhecimento” – por um lado, continua Böhler – “funda um interesse emancipatório formal do conhecimento, na medida em que este inclui um ato de autocolocação distanciador do mundo”327. Emancipação é possível para Böhler como autocolocação excêntrica do eu penso, como autocolocação da distância em relação ao mundo, o que o eu realiza no ato de reflexão. A reflexão é emancipatória apenas enquanto é ato distanciador do mundo, apenas enquanto é ato mediante o qual o sujeito pensa a si mesmo como ser da reflexão, com eu penso distante do mundo. As teorias positivistas ou analíticas, mas também a teoria crítica de Habermas, são prisioneiras de um pensamento não dialético e, portanto, não emancipatório, na medida em que não são capazes de observar as condições transcendentais de possibilidade do pensamento que se emancipa na reflexividade distanciadora. A reflexividade, todavia, precisa Böhler, não é só fundamento da emancipação formal – como, no fundo, deveria crer Apel: Em um plano concreto, referido à situação e a si mesmo, a reflexividade excêntrica do homem confirma-se como fator “inovador” no âmbito das ciências e da técnica e como fator “prático-crítico” no âmbito da vida social (família, trabalho, opinião pública) 328.

Porque este plano se apresenta em toda sua concretude, basta que os homens façam experiências. Fazer experiências não significa apenas estender a consistência das próprias informações, mas significa também tomar posição, orientar-se, motivo pelo qual “a autocompreensão e o modo de comportamento” se transformam. Uma vez sucedida uma transformação deste tipo, realizada pela experiência concreta, os homens abordam suas experiências sucessivas de maneira diversa: “A situação existente até o momento constitui-se para eles como nova. Eles ‘veem’ as 326 327 328

BÖHLER, Rechtstheorie als kritische Reflexion..., p. 70. Idem, p. 72. Idem, p. 73.

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‘coisas’ diversamente”329. Todavia, se toda transformação da posição dos homens nos confrontos de sua experiência pressupõe a reflexividade formal e o distanciamento do conteúdo do “eu penso”, o processo de transformação não se limita a isto. A fim de que se verifique um distanciamento concreto de qualquer coisa determinada, é necessária uma identificação vinculada a uma outra possibilidade de orientar a própria ação e a autocompreensão 330.

A reflexividade aparece, agora, concretamente, como o fator inovador, como o instrumento, ao mesmo tempo transcendental e prático-crítico, da emancipação do sujeito reflexivo. A reflexividade é o postulado transcendental da mediação entre teoria e prática. Reformulado desse modo o problema da reflexividade e da distância transcendental, Böhler retoma o tema apeliano da intersubjetividade linguística como instituição das instituições e como relação entre sujeitos distanciados do mundo em sua reflexividade. Portanto, Böhler assume como fundamento de sua epistemologia o sujeito, a pessoa abstrata da sociedade burguesa, distanciada na clausura de seu isolamento, e a apresenta, inicialmente, como forma de consciência apenas privada. Mas na consciência reflexiva distanciada e, por isso, emancipada, é pressuposta e se reconhece também a conexão de sentido e sua mediação que se realiza na intersubjetividade: esta, de fato, é, para Böhler, uma relação linguística dotada de sentido que se realiza entre reflexividades que entram em relação e se reconhecem pela mediação da tradição e do sentido. Assim como, portanto, a emancipação se realiza na consciência reflexiva, na qual um fato prático se transforma e se sublima em fato de consciência, as conexões de sentido também se tornam um fato privado da consciência, e seu caráter transcendental, que não é outra coisa senão sua distância do mundo, constitui o postulado implícito e pressuposto de sua capacidade de mediação prática, também implícita e pressuposta. Recuperada, pela consciência reflexiva, a perspectiva hermenêutica da sociedade como conexão de sentido e como projeção institucionalizada de sentido do ponto de vista do sujeito, Böhler também retoma o tema habermasiano da crítica a Marx, que não teria compreendido a dimensão da “compreensão comunicativa” do sentido e teria caído no materialismo. E que, portanto, teria resolvido as “colisões” históricas em sua dimensão material e não no interior da “dimensão do sentido”331. A pers329 330 331

BÖHLER, Rechtstheorie als kritische Reflexion..., p. 73. Idem, p. 73-4. Idem, p. 84.

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pectiva do sentido permite a Böhler, como antes a Apel, afirmar uma socialização linguística da reflexividade individual e pré-social, enquanto, por conversão, o modelo habermasiano da crítica a Marx lhe dá os instrumentos para atribuir as instituições sociais à consciência reflexiva tornada hermenêutica. As instituições sociais são, assim, institucionalizações de sentido: entre estas e as mediações de sentido intersubjetivas podem acontecer “colisões”, que marcam a diferenciação histórica e, portanto, a dialética do desenvolvimento social. As “colisões históricas” são o campo de tensão da reciprocidade dos homens, e reciprocidade é uma “relação recíproca entre homens perspectivamente interessados e situacionalmente vinculados, que são empiricamente distintos entre si e podem se distanciar tanto entre si quanto de si mesmos”332. À reciprocidade dos sujeitos linguisticamente interagentes são ligadas as institucionalizações de sentido e, assim, a estabilidade e a positividade do sistema social. Mas a reciprocidade é um calcanhar de Aquiles da estabilidade social. E, de fato, escreve em seguida Böhler, “o distanciamento feito na realização da reciprocidade pode ser atualizado em uma autoreflexão situacional e funcionar, assim, como distanciamento crítico do sentido institucionalizado”333. A reciprocidade das reflexividades interagentes realiza a mediação dialética entre estabilidade do sistema e emancipação, ou seja, entre sentido institucionalizado e sentido novo, e também realiza a superação das colisões históricas. O campo de tensão da reciprocidade, escreve Böhler, descarrega-se, então, em processos de colisão e de emancipação mais ou menos dramáticos, súbitos ou graduais, nos quais aparece suprimido o sentido institucionalizado e vem institucionalizado novo sentido, que deve corresponder aos interesses e à autocompreensão que foram violados334.

Esta dialética é decisiva para a vida social: uma redução da comunicação constitui uma ameaça para a sociedade na medida em que reduz o potencial de emancipação – como acontece, por exemplo, nos estratos inferiores da sociedade, que devem seu escasso potencial de emancipação ao fato de que sua linguagem é capaz de um pensamento descritivo, receptivo, não interpretante, reflexivo e analítico –, enquanto a própria estabilidade da sociedade depende da flexibilidade da linguagem comum (Umgangssprache) e da atividade de sentido (Sinnaktivität). 332

333 334

Idem, p. 86. Essa definição perspectiva e situacional de reciprocidade serve para Böhler evitar o risco, que ele mesmo vê, de entender as relações entre a intersubjetividade e a mediação da tradição, que nesta sempre se produz, como “relações lineares, transmissões de notícias de um sujeito ao outro” (Ibid.). Idem, p. 87-8. Idem, p. 88.

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Estes são os fundamentos epistemológicos da teoria transcendental da sociedade, sobre os quais Böhler constrói a teoria do direito como reflexão crítica. O direito, enquanto “modus do agir comunicativo e da reflexão situacional”335, só pode ser analisado do ponto de vista de uma teoria geral da sociedade que desenvolva a concepção transcendental da reflexividade e do agir comunicativo e que supere o funcionalismo e o formalismo irrefletido, que reduziram a teoria do direito a um “analytisches Methodikum” [“método analítico”], diz Böhler. O objetivismo daquelas concepções está mascarado em seu significado ideológico, como ameaça para a sociedade, como redução da comunicação e, portanto, da emancipação. Em seu lugar, é desenvolvida uma reflexão crítica sobre o caráter científico da ciência jurídica e das proposições jurídicas, e uma reflexão crítico-transcendental sobre o status teórico da teoria do direito. A teoria do direito reflete, antes de tudo, sobre o caráter da cientificidade da ciência jurídica. A ciência jurídica é uma ciência histórico-social. Com isto, Böhler entende, com intenção prática emancipatória, que o universo do discurso da ciência é inserido no “contexto de transformações das relações sociais”. Mas, para evitar uma má compreensão cientificista ou materialista da historicidade da ciência, Böhler assinala, em sentido hermenêutico, que o contexto de transformações das relações sociais é dado, por sua vez, pelo “contexto de compreensão de uma situação histórica e de uma tradição”336. E, de fato, a ciência histórica do direito refuta a absolutização da relação sujeito-objeto que caracterizou a tradição teórica ocidental e que é própria do modo analítico de construir a ciência, e penetra na relação de intersubjetividade, na qual o sentido se constitui e na qual se estabelece a relação de compreensão. E a relação de compreensão, como relação intersubjetiva, conota a especificidade do tipo de conhecimento das ciências espirituais e sociais. Trata-se de conhecimento que se produz através da linguagem e, portanto, “é antes comunicação dos viventes e mediação da tradição com as gerações precedentes”337. Recuperado para a ciência o plano da relação de intersubjetividade da compreensão como seu âmbito objetivo, e estabelecida, assim, a autenticidade hermenêutica da ciência jurídica, a teoria do direito cumpre sua primeira tarefa e volta-se para as duas sucessivas e derivadas. A segunda tarefa da teoria do direito, escreve Böhler, é “procurar para a ciên335

336 337

BÖHLER, D. Zu einer historisch-dialektischen Rekonstruktion des bürger lichen Rechts. Probleme einer Rechts- und Sozialphilosophie nach Marx. In: AAVV, Probleme der marxistischen Rechtstheorie..., p. 92-158, 112. BÖHLER, Rechtstheorie als kritische Reflexion..., p 100. Idem, p. 103.

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cia jurídica uma autocompreensão adequada ao sentido da reflexão”. Ou seja, a teoria deve tornar presente para a ciência o fato de esta ser continuamente entrelaçada com a relação de intersubjetividade e, portanto, o fato de que suas operações, como as da dogmática, por exemplo, desenvolvem-se sobre fatos sociais, sobre “fragmentos de situações que já foram compreendidas”. Por isso, esta não pode se subtrair a uma “compreensão engajada da situação” que interpreta. A teoria, então, atribui à ciência uma autocompreensão adequada à colocação da ciência no contexto de transformação das relações sociais: a reflexão sobre a situação específica é sempre reflexão engajada e garante, assim, uma compreensão-valoração crítica do caso que a ciência analisa. A compreensão engajada da situação, por sua vez, torna possível um grau mais alto de justiça. A autocompreensão hermenêutica que a teoria confere à ciência contém em si mesma as condições de possibilidade e de validade das proposições da própria ciência: a compreensão engajada do sentido em processos de interação, em relações intersubjetivas que são interpretadas e valoradas. A terceira e consequente tarefa da teoria do direito é a reflexão sobre as proposições jurídicas: a teoria deve indagar sobre “o caráter científico das proposições jurídicas, de sua produção, prova e sistematização”338. Esta tarefa não pode ser cumprida por uma operação analítico-descritiva sobre o direito, na medida em que tal operação não fornece as condições de possibilidade das proposições jurídicas. Ela só pode ser cumprida por uma ciência do direito para a qual a autocompreensão hermenêutica tenha adquirido o pressuposto da penetração na relação de intersubjetividade como condição de possibilidade para as proposições jurídicas. Coerentemente com esta autocompreensão, a teoria desenvolve esta tarefa servindo-se mais dos instrumentos tradicionais da hermenêutica do que daqueles da reflexão crítica. A condição de possibilidade para a produção de uma proposição é o sentido do direito (Rechtsgefühl), que Böhler define como “pré-compreensão do direito em um caso; précompreensão mediada socialmente, regular (compreensível, orientada para as normas do direito, consistente no sentido de um costume)”, e como “interpretação situacional de um caso, de uma situação políticosocial das necessidades, de uma tradição do direito, etc”339. Para o controle das proposições jurídicas, são condições de possibilidade o sentido do direito (Rechtsgefühl) e a interpretação como processo socialmente 338 339

BÖHLER, Rechtstheorie als kritische Reflexion..., p. 105. Idem, p. 109-10.

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mediado. Finalmente, para a interpretação, além do sentido canônico do direito, entre as condições de possibilidade figuram também a compreensão social da situação e a indicação específica, com base no direito, das proposições jurídicas que dizem respeito ao caso. A quarta tarefa que a teoria do direito deve enfrentar é, sem dúvidas, a mais complexa e mais relevante. Ela, escreve Böhler, deve ter capacidade de dar conta de si, refletindo sobre si mesma. A teoria do direito como reflexão crítica reflete sobre sua racionalidade, sobre seu status epistemológico. Ela é guiada pelo interesse emancipatório, teórico e formal do conhecimento: um conhecimento “amplo, justo, provável, não dogmático”. Este ato de reflexão é a prestação mais profunda e abrangente da teoria do direito. Aqui, a teoria se apresenta como compreensão hermenêutica do sentido cristalizado no direito, e como projeto emancipatório, prático-crítico, de superação do sentido institucionalizado. Esta prestação implica, como já dizia Apel, uma ilimitada comunicação científica, por um lado, e uma ilimitada comunicação social, por outro. Nesta se realizam a dialética crítica do interesse emancipatório do conhecimento e a reflexividade transcendental do conhecimento como antropologia racional. O postulado da comunidade ilimitada de comunicação permite à ciência afirmar e provar sua racionalidade, já que torna efetivo o controle pelo diálogo, esclarece ao intérprete, ao dogmático, seu horizonte, a conexão de sentido na qual ele opera, na medida em que arrasta e implica ele próprio na comunicação ilimitada. Sobre esta comunicação ótima, sobre o diálogo pressuposto, a teoria constrói não apenas o modelo de sua racionalidade reflexiva, mas – e esta é sua última tarefa – também o quadro de referência de uma mediação consciente da ciência jurídica na prática. Esta mediação é o projeto de um direito futuro como direito humano, como antecipação de uma transformação da sociedade. Todas as prestações da teoria, abertas ao diálogo pressuposto de uma ilimitada comunidade de comunicação, convergem na elaboração do projeto de um direito humano que “dê a razão da reflexividade do homem, da comunicação, do auto-envolvimento nas relações com a natureza e com a sociedade, pela primeira vez de maneira não restrita e não funcionalística”340. Na execução deste projeto revolucionário, as hipóteses da teoria tornam-se instrumentos de transformação da prática. A própria ciência vive e se transforma em práxis emancipatória. A reflexividade do homem ganha corpo no diálogo liberatório e iluminante. Na teoria como reflexão crítica, a hermenêutica recupera, assim, também a instân340

BÖHLER, Rechtstheorie als kritische Reflexion..., p. 116.

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cia do iluminismo, e a racionalidade como diálogo pressuposto torna-se a forma teórica da democracia da ciência. No projeto utópico do diálogo conclui-se a teoria do direito como metateoria de uma jurisprudência reflexiva. Uma metateoria na qual Böhler consegue fazer coexistir – com particular esforço de sua reflexão – Apel e Habermas, Heidegger, Gadamer, Kriele e, por úlitmo, Bloch. O princípio da esperança é, de fato, o êxito crítico de uma teoria cujo ponto de partida é a reflexão como distância do mundo. Uma distância à qual a teoria, na realidade, consegue ser fiel, assim como ao seu exaurimento escatológico no a priori de um diálogo honestamente pressuposto apenas como ficção necessária.

3

A TEORIA MARXISTA DO DIREITO COMO “CRÍTICA DO DIREITO”

Todavia, em sua teoria como reflexão crítica, Böhler não aborda o momento da crítica tanto quanto o da reflexão. A tentativa coerente de desenvolver, sem grandes aspirações filosóficas, uma teoria crítica do direito, complementar à de Böhler, foi empregada por Wolf Paul. A complementaridade das duas teorias reside na relação interna que reflexão e crítica têm quando são entendidas como aspectos coessenciais da reação antipositivista contra a ciência, ou seja, quando a reflexividade é entendida em sentido transcendental hermenêutico e a crítica em sentido antimarxista, como conotação específica de uma prática teórica da ficção, tornada método projetante, filosofia da história fundada em um conceito de emancipação do conhecimento, que se distancia do finito e, assim, do mundo, e que assim se refere à consciência, não aos sujeitos que, enquanto portadores materiais da reflexividade, também reduzida, são obrigados a viver no finito. Em outros termos, quando a reflexividade é entendida como propriedade privada de consciências que se socializam por meio do a priori pressuposto da comunidade ilimitada de comunicação, a crítica se transforma de crítica das instituições em método institucionalizado pelo qual se reúnem e se exprimem as ficções dialéticas de uma filosofia da história concebida com intenção emancipatória. Refletindo sobre alguns textos do jovem Marx, Paul aspira reconstruir uma espécie de “autêntica teoria marxista do direito”, para desenvolvê-la em sentido moderno, como órgão crítico do direito, e identificar, assim, as linhas de uma teoria como “crítica do direito”. A reconstrução da teoria marxista do direito feita por Paul, ao menos nas intenções

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do autor, é relevante não apenas do ponto de vista da epistemologia jurídica, mas também do ponto de vista interno ao difícil surgimento da teoria marxista do direito. Esta reconstrução é feita à luz do conceito de crítica desenvolvido por Habermas, do conceito de utopia de Bloch, da metacrítica da crítica da ideologia de Marx feita por Böhler e da interpretação do jovem Marx feita por Maihofer341. A teoria do direito defendida por Savigny, escreve Paul, fora somente uma doutrina do método jurídico, prisioneira do ideal positivista da ciência. Segundo sua tradição histórica, a teoria do direito limitou-se à construção de uma ordem sistemática no direito, ao problema da clareza conceitual e do procedimento racional na aplicação do direito. Contra este entendimento da teoria do direito, foram desenvolvidas críticas já no século dezenove, entre as quais as mais consistentes foram a sociologia do direito, baseada em um procedimento empírico-analítico, e a teoria marxista do direito. Todavia, se a sociologia foi sempre excluída do contexto das ciências jurídicas, e ainda é, a teoria marxista do direito não pôde sequer se organizar e se sistematizar em um complexo unitário de saber, na medida em que seu caráter científico sempre foi contestado. A ciência jurídica deve refundar sua autocompreensão teórica: é necessário retomar o discurso crítico, antidogmático e antipositivista que é próprio da teoria marxista do direito e envolvê-lo em sua consistência científica e sistemática. Penetrar, com este, na hermenêutica jurídica tradicional. Romper a cristalização metodológica do saber teórico sobre o direito. Nessa cristalização se exprime a concepção positivista da teoria 341

Cf. de PAUL, W. Kritische Rechtsdogmatik und Dogmatik-kritik, in Ansätze zu einem kritischen Rechtsverständnis,..., p. 53-70; Id., Die marxistische Rechtstheorie. Ansätze zu einem kritischen Rechtsverständnis..., p. 53-70; Id., Die marxistische Rechtstheorie. Wissenschaft oder Philosophie des Rechts?, In: AAVV, Rechtstheorie. Beiträge zur Grundlagendiskussion..., p. 175-223; Id., Das Programm marxistischer Rechtstheorie. Ein kritischer Rekonstruktionsversuch. In: REICH, N. (Org.). AaVv, Marxistische und sozialistische Rechtstheorie. Frankfurt a.M.: Athenäum, 1972. p. 201-35; Id. Marxistische Rechtstheorie als Kritik des Rechts. Intention, Aporien unFolgen des Rechtsdenkens von Karl Marx. Eine kritische Rekonstruktion..., e, por último, Der aktuelle Begriff marxistischer Rechtstheorie. In: AAVV, Probleme der marxistischen Rechtstheorie..., p. 72-91. Útil para se aproximar da reconstrução da teoria marxista do direito proposta por Paul, além dos textos de Habermas e Böhler já citados, BLOCH, M. Geist der Utopie, reimpressão da segunda edição. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1964 e Id., Naturrecht und menschliche Würde, in Ges. Schriften, vol. VI, Suhrkamp, Frankfurt a. M. 1961; MAIHOFER, W. Demokratie im Sozialismus. Recht und Staat um Denken des jungen Marx. Frankfurt a.M.: Klostermann, 1968. Cf. também o meu Zur Kritik der sogenannten marxistischen Rechtstheorie. Eine Auseinandersetzung mit Wolf Paul, in “Kritische Justiz” IX, 3, 1976, p. 271-7.

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que, segundo Paul, deve ser enfrentada, já que, no seu interior, não deixa nenhum espaço para a crítica. É necessário, por isto, construir uma teoria que seja, ao mesmo tempo, conhecimento crítico e análise transformadora do direito, não explicação lógica de conexões estáticas. A teoria crítica a ser construída sobre o modelo da teoria marxista situa-se, assim, no interior da pesquisa científica sobre o direito, pertence ao tipo de ciência jurídica que, livre da dogmática, procura o contexto de produção e de eficácia do direito, segundo uma perspectiva histórico-social. Esta teoria como crítica do direito tem uma tarefa dupla: Como teoria crítica do direito, ela apreende o conhecimento sistemático do direito historicamente existente na perspectiva de sua transformação, compreendida também a transformação de sua dogmática. Ela é, ao mesmo tempo, teoria do direito e teoria de sua transformação342.

Procedimentos e práticas desta teoria como crítica do direito são procurados, segundo Paul, na própria obra de Marx, onde ele desenvolveu o modelo crítico da teoria. Tal pesquisa interna ao pensamento de Marx é o primeiro grau da construção da teoria como crítica do direito. Ela é momento interno à teoria porque é obra crítica em ato, apreendido em sua realização prática. Marx, diz Paul, nunca enfrentou de maneira consciente o problema da teoria do direito. Todavia, ele mostrou na prática qual é o procedimento e a estrutura de tal teoria. Os textos de Marx considerados por Paul são dois: a crítica de Marx à Escola histórica, endereçada a Hugo, mas direcionada a Savigny, e o longo artigo escrito por Marx sobre a “Rheinische Zeitung” a propósito da discussão da Dieta renana sobre a lei sobre furtos de lenha343. Nestes dois trabalhos de Marx, Paul identifica Status e Verfahren [o estatuto e o procedimento] de uma teoria do direito entendida como crítica do direito. Como fundamento da crítica de Marx à Escola histórica há uma concepção da sociedade como totalidade na qual o direito não constitui um universo fechado e isolável, mas um momento desta totalidade que se produz e se transforma historicamente junto com esta. O direito não tem história, diz Marx e, nesse sentido, ele pretende dizer que a totalidade que compreende também o direito, apenas esta tem história. Marx recupera, assim, um pensamento histórico concreto do direito, segundo uma perspectiva que integra o direito na totalidade social. Se o direito não é – como sustenta a concepção dogmáticopositivista – o conjunto de “dogmas jurídicos”, se não é aquele universo 342 343

PAUL, Das Programm marxistischer Rechtstheorie..., p. 209. MARX, K. Il manifesto filosofico della Scuola storica del diritto. In: Scritti politici giovanili..., p. 157-68; Id., Dibattiti sulla legge contro i furti di legna, em Idem, p. 177-225; cf. também na nota 27 da primeira parte deste trabalho.

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fetichista feito apenas de “categorias” e “princípios” – que, segundo Paul, constituiu o objeto da ciência do direito de Savigny até os nossos dias, com exceção da sociologia jurídica –, e, portanto, se o direito é um fenômeno que encontra suas raízes na realidade social, uma teoria do direito poderá ser apenas uma teoria da sociedade. Esta consciência Marx já havia adquirido nas duas obras de juventude abordadas por Paul. Marx, por isso, realiza uma revolução na pesquisa sobre o direito, mas também realiza uma revolução na própria concepção de pesquisa. Ele, de fato, entende a teoria não como descrição analítico-positivista de seu objeto, da totalidade social, mas como crítica. A teoria é, para Marx, compreensão crítica da totalidade social orientada para sua transformação. O critério da transformação prática do direito é o interesse que guia o conhecimento. Marx tem um interesse ao mesmo tempo político e teórico no conhecimento: “Em seu programa, não figurava apenas a pesquisa científico-social do direito, mas sua transformação prática. Para a realização deste programa, ele concebeu sua ‘crítica do direito’”344. Esta – segundo Paul – é a intenção de Marx, o ponto de partida de sua operação teórica, valorado segundo o interesse guia do conhecimento. Todavia, sustenta Paul, Marx, nas obras sucessivas às que ele explicitamente se refere, não realiza mais sua intenção e acaba vítima do materialismo, que é a degeneração positivista, a petrificação dogmática do ideal crítico do conhecimento. Nas obras escritas de 1843 em diante, segundo Paul, o pensamento de Marx não é mais crítico, é bloqueado no esquematismo materialístico, degenera no economicismo e cai em uma espécie de fatalismo evolucionista. O pensamento marxista é prisioneiro desta degeneração. Por isto, não conseguiu se constituir como pensamento autenticamente crítico e fora incapaz de formular uma teoria do direito que fosse crítica do direito, sem relegar o direito ao universo ideológico das superestruturas. O próprio Marx e o marxismo se negaram as possibilidades do pensamento crítico que foram abertas pelas análises do direito conduzidas pelo jovem Marx nas duas obras supracitadas. Portanto, é necessário recuperar a autenticidade do pensamento marxista como pensamento crítico e liberá-lo do positivismo ao qual o obrigou a crítica da economia e uma concepção mecanicista da necessidade das leis históricas. Desta avaliação do pensamento de Marx, Paul deriva a necessidade de uma reconstrução deste pensamento que o libere dos obstáculos que ele ergueu para si mesmo e desenvolva as possibilidades abertas por sua originária autocompreensão crítica. 344

PAUL, Das Programm marxistischer Rechstheorie..., p. 214.

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O caminho que Paul percorre já havia sido aberto, como vimos, por Bloch, Maihofer, Habermas e Böhler, mas também pelo agora em desuso debate sobre o jovem Marx. O problema é repensar Marx: usar, como dizia Habermas, as possibilidades oferecidas aos posteriores: “Compreender Marx melhor do que ele mesmo se compreendeu”345. O problema, ou seja, é retirar a crítica do quadro de referência materialista que Marx lhe deu e, portanto, liberá-la da Verzerrung [distorção] na qual fora esterilizada como crítica positivista da economia política, primeiro pelo próprio Marx e depois pelo pensamento dogmático produzido nos países socialistas. Assim, é tarefa da crítica pensar “com Marx contra Marx”. Nessa reformulação, a teoria marxista é desenvolvida como “filosofia da história com intenção prática”, como filosofia que concebe a história no sentido de uma dialética aberta da situação histórica. Na perspectiva aberta dessa filosofia da história intervém a crítica. Esta é pensamento da emancipação que se envolve no caminho de uma recuperação do sentido reprimido na história, de uma recuperação que, por sua vez, pressupõe que a história seja produzida por sujeitos conscientes. E, por isto, não existe uma verdade preparada dogmaticamente, uma verdade que possa ser extraída de uma lógica positivista da história. A verdade toda está para ser construída, repete Paul com Merleau-Ponty, “no experimento histórico, na revolução, cujo sucesso, por sua vez, não pode ser garantido, precisa, antes de tudo, construir um sentido da história”346. O objetivismo histórico-filosófico de Marx é superado apenas por um pensamento pós-existencialista que constrói filosoficamente o sentido da história e por um pensamento crítico-hermenêutico que é, ao mesmo tempo, procura do sentido produzido e projeção de novo sentido. Bloch precisara, de forma drástica, explica Paul, que a “concretização da crítica em orientação para a ação não é possível sem um projeto de conteúdos, sem antecipação preventiva do futuro, sem as imagens de uma utopia concreta”347. O escopo da crítica inaugurada por Marx torna-se, assim, alcançável somente com base em uma reflexão filosófico-antropológica que tem a intenção de mediar a prática humana e de extrair normas gerais a partir das tendências da sociedade ricas de conteúdo utópico nas quais se 345

346 347

Idem, p. 215. Sobre o debate desenvolvido sobre o jovem Marx, a bibliografia é muito vasta e uma referência não teria lugar aqui. Há alguma indicação sobre o debate em Guastini, Marx: dalla filosofia del diritto alla scienza della società cit. Uma voz de interesse particular, certamente capaz de retirar o debate de suas sedimentações “clássicas”, é De Giovanni, Marx e lo Stato..., p. 37-82. PAUL, Das Programm marxistischer Rechtstheorie..., p. 217. Idem, p. 220.

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concretiza a tradição cultural. Desse modo, a filosofia da história, repete Paul com Habermas e Merleau-Ponty, não é mais uma questão filosófica: “Esta se torna, ao contrário, o prólogo crítico de uma prática, à qual ela entrega seu próprio logos com a lógica da história em seu conjunto”348. A crítica se situa entre a filosofia e a ciência: entre uma filosofia que antecipa, na utopia concreta do futuro, o sentido reprimido da história, e uma ciência que, livre da ideologia, concebe seu objeto a partir do conceito da situação, conceito que a ciência obtém como negação determinada pelas contradições que caracterizam a própria situação. A crítica é, portanto, escopo e medida (Masstab) do conhecimento orientado para a prática. Nela, filosofia e ciência coexistem e são explicadas como pensamento teórico prático da emancipação e da transformação. A teoria marxista, na fase de seu desenvolvimento que precede a degeneração no positivismo e no materialismo, exprime, para Paul, de forma paradigmática, esta concepção da crítica. Ela a realiza na prática349. Depois de ter reconstruído o conceito de crítica, Paul passa a expor a estrutura e o procedimento da teoria marxista do direito como crítica do direito. O modelo interno da crítica do direito lhe é dado pelo artigo do jovem Marx sobre a lei sobre furtos de lenha. Assim como já fizera Marx a respeito daquela lei, Paul vê no direito moderno uma contradição entre “pretensão” e “realidade” do direito. E esta contradição, e a antecipação utópica de sua negação, são o motor da crítica. O direito como “estrutura quadro” (Rahmenstruktur) da práxis social apresenta uma fratura que é produzida historicamente: ele não organiza totalmente o processo de produção e reprodução social segundo a crítica do domínio, e, portanto, de forma emancipatória, como pretende, mas em termos práticos e com regras segundo uma dogmática do domínio e, assim, segundo formas de privilégio relativas a grupos específicos: formas que são inconciliáveis com suas premissas ideais350.

A argumentação de Paul é a mesma de Marx351: este também criticava a lei sobre furtos de lenha porque esta lei específica violava o 348

349

350 351

Idem, p. 221, cit. da HABERMAS, J. Literaturbericht zur philosophischen Diskussion um Marx und den Marxismus. In: Theorie und Praxis. Sozialphilosophische Studien..., p. 425 (destaque de W. Paul). Idem, p. 222: “A teoria marxista como crítica, segundo sua estrutura, corresponde a uma filosofia revolucionária da história, que se media através do material empírico da história, materiais que as ciências a emprestam; ela remete para além de si mesma a uma prática cujas transformações são indicadas pelas ciências”. Idem, p. 223. Cf. meu artigo Zur Kritik der sogenannten marxistischen Rechtstheo rie cit..

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conceito de direito e de lei, que, dizia Marx, “não é livre do dever universal de dizer a verdade (...). Porém, quando a lei denomina furto uma ação que não é sequer obtenção abusiva de lenha, a lei mente”352. O direito moderno não tem relevância prática, diz Paul, como princípio organizador da liberdade, papel que lhe é historicamente atribuído, mas como princípio organizador do domínio de classe. A instância crítica da teoria do direito nasce justamente desta contradição, de que o direito se tornou uma categoria do domínio: o sistema de normas obrigatórias do direito positivo, ao qual o Estado oferece seu aparato como instrumento para a realização de sua força, é um sistema institucionalizado da ordem, com base no qual se realiza a divisão social do trabalho. Na sociedade moderna, o direito alcançou menos sua pretensão e seu papel histórico. Desnaturou-se, deixou de ser princípio de justiça, de humanidade e igualdade, e tornou-se instrumento de domínio, instrumento ideológico do domínio de uma classe. Este se degenerou em princípio do privilégio, transformou sua natureza emancipatória e liberatória, fechada no sentido humano do justo que deve exprimir, e adquiriu uma natureza falsa, ideológica. O direito, como afirmava Marx por meio da lei sobre furtos de lenha, não diz a verdade. Portanto, esta situação, que Paul define como Denaturierung do direito, rejeita que o direito seja, por natureza, ideológico. A reflexão sobre o direito não pode confundir a aparência, a manifestação histórica do direito na sociedade capitalista, com a essência do direito. Ao contrário, da experiência histórica do direito como fato ideológico, ou como manifestação da negatividade, resulta dialeticamente a possibilidade objetiva de seu desenvolvimento teórico-prático para instância crítica ou forma de negação da negação353.

A tarefa da crítica é decisiva e seu desenvolvimento é o escopo e, ao mesmo tempo, a medida tanto da teoria quanto do conhecimento. A crítica descobre o caráter ideológico que o direito adquiriu em consequência do processo pelo qual se desnaturou. Descobre que este caráter está em contradição com a pretensão do direito, que é dizer a verdade, contradizendo a natureza e a essência do direito. Nesse descobrimento gradual, nessa construção contínua, aproximando-se cada vez mais da essência, a crítica procede dialeticamente: da negação existente, constrói, por sua vez, a negação. Do direito ideológico existente, que é negação da essência do direito, constrói a negação, o direito como instância crítica. 352 353

MARX, Dibattiti sulla legge contro i furti di legna..., p. 182; cf. p. 187 ss. PAUL, Das Programm marxistischer Rechtstheorie..., p. 224.

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A crítica adéqua, assim, dialeticamente, seu objeto. Transfere para este todo seu poder: pela crítica, o direito torna-se, ele mesmo, instância crítica. Torna-se, portanto, instância capaz de transformar a práxis orientando-a para sua emancipação: o direito crítico, assim produzido através da crítica, é forma de emancipação humana, utopia concreta, práxis liberadora: é verdade. Tudo isto faltou a Marx: ele não aproveita as possibilidades da crítica, não desenvolve a crítica em toda sua força, que consiste no fato de que a crítica não se restringe à análise filosófica da contradição, mas a supera, sem dúvidas, mediando-se na práxis, ou seja, concretizando um processo dialético que transforma a própria práxis em instância crítica. Nessa sua função, a crítica realiza, junto com a superação do direito ideológico, a superação das concepções ideológicas do direito, “tanto de origem jusnaturalista, quanto de origem positivista”. O jusnaturalismo, de fato, que se qualificava por sua pretensão de exaurir o dever-ser do direito e sua natureza, afastava, por causa de seu método dedutivo racional, a possibilidade de revelar o caráter ideológico e o desnaturamento do direito na sociedade moderna e não conseguia, assim, construir o dever ser como negação determinada da negatividade do ser. O positivismo, ao contrário, limitado a uma pesquisa metodológica estéril sobre o direito, alcançava menos ainda sua própria pretensão de exaurir a positividade do direito, enquanto, não conseguindo conceber o direito moderno como expressão ideológica, falsificada, de uma verdade, como Denaturierung [desnaturação] do direito verdadeiro, era levado a esconder esta Denaturierung produzida pela sociedade burguesa, pela real essência do direito. A teoria do direito como crítica elimina as dificuldades e os obstáculos dessas concepções não dialéticas do direito; é consciente do caráter ideológico da realidade existente. Sobre essa consciência, busca dialeticamente o dever ser em sua verdade e, enfim, o projeta como instância crítica na práxis que deve ser transformada: a teoria, como crítica, “concilia pretensão e realidade do direito historicamente no caminho da revolução”354. Essa conciliação projeta-se imediatamente na práxis: a emancipação do direito, de instância ideológica para instância crítica, significa emancipação da sociedade no direito. O direito crítico é a realidade de uma sociedade que, pelo direito, enfrentou o véu da ideologia e da repressão, que desmascarou o direito do domínio e abriu-se criticamente ao domínio do direito. Esse desenvolvimento assinala passo a passo o processo geral de emancipação humana: o direito crítico, revelado pela teoria, revela, 354

Ibidem, e também a próxima página.

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por sua vez, as relações de domínio que são impostas na sociedade, as injustiças que governam os homens, as ideologias pelas quais o poder do privilégio se afirmou. Apenas o direito crítico – escreve Paul –, que penetra e desagrega as relações de poder social, econômico e político, ao invés de escondêlas e legitimá-las, que também inverte na prática todas as relações, somente este direito pode ser a verdadeira expressão revelada da verdadeira sociedade humana.

Depois de ter indicado as tarefas e a função da teoria do direito, e depois de ter definido o “direito crítico” como o objeto específico desta teoria, Paul passa a precisar sua identidade epistemológica, como resulta do papel que a teoria deve exercer em relação à filosofia e à ciência e seu lugar no interior da ciência jurídica. A teoria do direito como crítica é, antes de tudo, uma concepção do direito com intenção prática. Ela concebe seu objeto como parte da totalidade social. Portanto, a teoria faz parte de uma filosofia da história que é revolucionária na medida em que entende a sociedade como uma totalidade que se transforma pela recuperação consciente do sentido reprimido pelas instituições de domínio. A filosofia da história é o quadro de referência epistemológica no qual se constrói o projeto de uma “sociedade qualitativa”, no qual o futuro é projetado como a forma utópica do presente recuperado em sua autenticidade. A ciência produz uma análise situacional do presente e, ao mesmo tempo, sua negação determinada. Mas a filosofia é o prólogo da ciência entendida como análise dialética do próprio presente. A teoria é, portanto, conhecimento filosófico-científico do presente, guiado pelo interesse prático de emancipação. Mas a teoria, na medida em que revela as falsificações ideológicas do presente, é ela mesma forma de emancipação. O direito por ela concebido, por ela recolocado em sua autenticidade como direito crítico, é o princípio guia da emancipação moderna. Não obstante o refino dos instrumentos dos quais faz uso, Paul tem um conceito ontológico do direito de cunho puramente jusnaturalista. Ele procede do seguinte modo: a razão humana possui uma ideia do justo, do direito, uma ideia universal, que constitui o princípio regulador da análise e da crítica das manifestações históricas do direito. No presente, a razão crítica revela que este princípio é desnaturado, que sua verdade universal é falsificada. Recuperar a autenticidade originária deste princípio é a tarefa da crítica. E aqui não há o que objetar: dados e pressupostos, a construção é coerente. Mas Paul procede de outra forma. Recuperado pela crítica, esse princípio torna-se “direito crítico”. Enquanto tal se

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insere em um projeto de emancipação social cujo quadro de referência é dado por uma filosofia da história “concebida com intenção emancipatória”. O direito crítico, portanto, torna-se o motor de um processo de emancipação material da sociedade, pensado por esta filosofia. Mas esse processo encontra sua legitimação no fato de que as relações sociais também estão desnaturadas e de que, por isso, sua superação é necessária. E essas relações estão desnaturadas porque na sociedade burguesa o “sentido” é distorcido e a comunicação interrompida. Por meio da crítica da Denaturierung resurge o sentido reprimido e se realiza a transformação revolucionária da sociedade. Essa concepção do “direito” e da “teoria como crítica” desenvolvida por Paul repousa sobre uma ontologia do direito e das relações sociais da qual o autor deriva uma “deontologia racional” dotada de fins emancipatórios. Explica-se, assim, a linguagem que Paul usa: “direito verdadeiro”, “direito crítico”, “Denaturierung” do direito e das relações sociais, “sociedade humana verdadeira”, e assim por diante, e se explica também a ambivalência do conceito de direito, que, entendido como ideia reguladora da razão, torna-se a instância que “também inverte na prática todas as relações”, que “desagrega as relações do poder social”. A esta ambivalência e à metamorfose deontológica do princípio do direito, Paul chama de “dialética” e, indicando suas reflexões como teoria marxista do direito recolocada em sua autenticidade, afirma que esta concepção do direito como conexões de sentido do processo revolucionário da história constitui o conteúdo filosófico da teoria marxista do direito e a determina como filosofia revolucionária da história, ou como teoria social do direito construída com base em uma filosofia da história e dotada de intenção prática. Em outras palavras: por causa de sua intenção de transformar o direito ideológico em direito crítico, e de realizar historicamente a emancipação geral humana, esta é filosofia histórico-dialética da evolução do direito na justiça355.

A teoria do direito como crítica do direito esteve, até o momento, excluída do complexo epistemológico da ciência jurídica devido ao monopólio exercido pelo modelo de ciência elaborado por Savigny. Ela, todavia, deve conquistar para si o posto que lhe cabe como conhecimento filosófico científico com intenção prática de emancipação: a teoria deve penetrar naquele complexo como crítica da dogmática, como crítica do 355

PAUL, Das Programm marxistischer Rechtstheorie..., p. 228.

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caráter metodológico e exegético da dogmática. O contexto epistemológico da ciência jurídica aparece, assim, revolucionado em suas prestações especificamente analítico-positivistas da crítica, que se dirige à ideologia da qual seu objeto é prisioneiro. A teoria crítica do direito, como crítica da dogmática, desmistifica a estrutura dogmática da ciência jurídica com a intenção de transformar os resultados de suas operações sobre o direito e, portanto, especificamente com a intenção de transformar o direito existente em direito crítico. A crítica da dogmática não é, portanto, apenas crítica da ideologia e crítica do direito existente, mas também autoreflexão crítica da ciência dogmática do direito. Reestruturada pelo aporte da teoria como crítica do direito, a ciência jurídica é obrigada a refletir sobre o próprio ideal, sobre o próprio interesse que guia o conhecimento: “O interesse normativo, crítico, emancipatório do conhecimento do direito”356 é o interesse guia de uma ciência que se emancipa apenas se consegue pensar a emancipação de seu objeto.

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DISTÂNCIA DO MUNDO E FICÇÃO DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA. CRÍTICA DE BÖHLER E PAUL

É difícil caracterizar positivamente a teoria dialética, ou crítica, da sociedade e, com esta, consequentemente, a teoria do direito como crítica do direito. A teoria crítica configura, de fato, um modelo epistemológico composto, no qual diversas formações teóricas conseguem coexistir, não porque suas instâncias epistemológicas se pressuponham ou se atraiam estruturalmente e se integrem, mas sobretudo porque são funcionalmente equivalentes, no sentido de que cada uma pode funcionalmente substituir a outra na perseguição de um único escopo que negativamente caracteriza todas, distintamente, e portanto em sua composição. Este escopo é o de atacar a reflexão científica e, com esta, o materialismo, descreditando-a como positivismo, na tentativa de invalidá-la, de fragmentála e eliminá-la. O positivismo é o problema, mas também o drama dessa composição de forças da involução reflexiva que, na medida em que funda sua autocompreensão teórica em um distanciamento do pensamento científico, pode ser oportunamente chamada, com Albert, de “especulação” ou “ideologia”. E, nesse sentido específico, Albert tem razão. A concepção da teoria como reflexão transcendental e a concepção da teoria como crítica colocam-se em torno da conjura antipositivista contra a 356

PAUL, Das Programm marxistischer Rechtstheorie..., p. 233.

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ciência. Seu alvo é a ciência e, assim, o “positivismo” e o materialismo. Nessa conjura, servem-se de uma “dialética” que derivam de uma filosofia da história concebida com intenção emancipatória. A pretensão dialética é a ideia reguladora da emancipação, critério e medida da verdade que se aplica ao presente para medir o grau de sua distorção, e às teorias deste presente, para medir o quanto são “positivistas”. Essa conjura contra a ciência começa direcionando a acusação de positivista a toda epistemologia que não proceda dialeticamente: a toda teoria da ciência que não ponha como princípio o pensamento da totalidade e não proceda a partir deste por negações e superações. Tal mistificação da dialética considera o mundo, o finito, apenas enquanto este é expressão, remete a qualquer coisa fora de si. “Positivismo”, nesse sentido confuso e genérico, é a razão analítica, mas também o criticismo que a nega, o funcionalismo e, em particular, o marxismo, como se desenvolve nas obras do Marx não mais jovem, nas obras em que o pensamento marxista teria se tornado prisioneiro do materialismo e de uma espécie de objetivismo naturalista, perdendo assim todo o potencial crítico que havia obtido antes. Mas tal modelo de positivismo, na realidade, não existe. Ele é só produto do pressuposto metafísico de que uma epistemologia pode ser “pensamento da totalidade social” e, assim, dialética. Só realiza a distância reflexiva do mundo e do finito, ou consegue projetar uma filosofia da história na qual o presente não é outra coisa senão a “finitude ruim” que deve ser negada e superada, de modo que esta finitude em si não constitua, de fato, objeto da reflexão. É especulação a pretensão dialética de uma filosofia da história que se afirma apenas se consegue destruir o pensamento do finito, da ciência: ligada ao finito, à sua materialidade e ao presente, a ciência é olhada com abjeção pelo pensamento especulativo. Delineia-se, assim, para a ideologia, a grande divisão que isola, de uma parte, a profundidade do pensamento especulativo e, de outra, a superficialidade descritiva da ciência. E, de fato, à dialeticidade da especulação, a ideologia opõe a analiticidade da ciência, à intersubjetividade daquela, o solipsismo desta, à hermeneuticidade da primeira, a mera capacidade expositiva desta. Na oposição que a ideologia constrói, é transcrita a dilaceração, interna à sociedade burguesa moderna, entre sua realidade invertida e o pensamento desta realidade, entre explicação científica da realidade e sua autocompreensão ideológica. Uma história na qual se reflete o estranhamento do homem consigo mesmo e com os produtos de seu trabalho, pelo qual sua consciência aparece para ele como um produto estranho, que não lhe

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pertence, como um produto que está fora de si e que a ideologia mantém fechado neste estranhamento, como reflexão da consciência que se compreende por si. A ideologia é, na realidade, a forma que assume a consciência em seu estranhamento na medida em que a consciência só existe nessa forma. Na ideologia exprime-se, portanto, a vingança da consciência alienada que tenta recuperar para si o processo de alienação real, encerrando a totalidade em sua forma estranha, como totalidade do espírito que compreende a si mesmo e ao mundo como processo de sua alienação. Apenas no plano dialético da totalidade, a consciência consegue compreender a si mesma como reflexão e distância do mundo, e ao mundo como produto da consciência refletida. Marx explicou esse processo de alienação, identificou o lugar onde a alienação se produz, descreveu os processos sociais de produção da alienação e isolou a especulação como consciência invertida que se instaura sobre relações sociais de produção. Na tese XI sobre Feuerbach, afirmou a necessidade de superação da especulação e mostrou na especulação e na metafísica a involução ideológica da reflexão, que se produz na alienação real. Afirmou, por isto, ao mesmo tempo, a necessidade de assumir o finito e o mundo e sua transformação como instância da ciência. Por isso o materialismo é ciência – na medida em que explica – e ciência aberta aos olhos da ideologia, que intervém imediatamente contra o materialismo, invertendo a tese XI sobre Feuerbach e descartando como positivista a estratégia epistemológica de Marx. Todavia, a luta com o marxismo é arriscada e decisiva para a ideologia: “A produção das ideias, das representações da consciência, é, em primeiro lugar, diretamente vinculada à atividade material e às relações materiais dos homens, linguagem da vida real”. Mas, também: “Se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem invertidos como em uma câmara escura, este processo deriva do processo histórico de sua vida”357. Portanto, ao marxismo a ideologia alemã atribui um privilégio a respeito das vulgaridades das outras formações positivistas: a instância de fundo do marxismo, a emancipação, é uma instância mantida, assim como a instância da totalidade, da dialética na qual o marxismo se inspira. Mas a dialética marxista, sendo prisioneira de seu materialismo, é uma dialética reduzida, uma dialética para a qual a totalidade não está presente, notavelmente, como uma parte de si mesma, é amputada. E o marxismo efetuou a amputação no sentido. Afastando-se a dimensão do sentido, o marxismo torna-se ele mesmo um pensamento amputado, um pensa357

K. Marx-F. ENGELS, L’ideologia tedesca, tr. it. de F. Codino, Editori Riuniti, Roma 1969, p. 13.

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mento impotente para alcançar para além da linguagem da vida real, que se concretiza nas atividades e nas relações materiais, aquela outra linguagem, da vida espiritual, que é conexão de sentido, que é a linguagem da consciência, a reflexão, a crítica. A ideologia alemã começa imediatamente com a revisão do marxismo. Com Marx contra Marx é o seu lema. A revisão do marxismo permite a neutralização do sentido da estratégia epistemológica do materialismo por meio de simples operações de aumento do poder dialético para uma filosofia da história que projeta o sentido do futuro como negação dialética do sentido distorcido do presente. Desse modo, o materialismo é eliminado: a dialética estende-se à totalidade na medida em que compreende o sentido. Ao marxismo é feita a concessão do reconhecimento de que o sentido do presente é distorcido e de que esta distorção é dialeticamente superada. A ideologia apropria-se do pensamento da emancipação, que não é tão reduzido quanto no marxismo, mas é total, porque compreende também – mas substancialmente apenas – o sentido. A ideologia legitima-se diante do marxismo contra o próprio marxismo, como sua superação interna. Eliminado o materialismo, a especulação atesta-se no sentido. O sentido é o fascínio da ideologia que exorciza o mundo, elevando-se sempre mais alto e verificando, assim, o teorema de Böhler, segundo o qual o distanciamento do mundo é a condição de possibilidade da reflexão. Para manter o fascínio do sentido, a ideologia entrega-se às belas palavras e olha como esquiva a linguagem vulgar privada de sentido da vida material. Mas a eliminação do materialismo é possível porque a ideologia elabora um modelo epistemológico da ficção. Enquanto o materialismo histórico é ciência da história, que explica o movimento histórico a partir da formação econômico-social, a ideologia recorre à filosofia da história, que, segundo Habermas, cria a ficção de que os sujeitos históricos são o sujeito possível da história, supondo que as tendências de desenvolvimento objetivamente equívocas sejam efetivamente enfrentadas com vontade e consciência por homens que se empenham na política, e sejam determinadas por seu bem-estar. É a partir desta ficção que a situação se manifesta em suas ambivalências atacáveis na prática, de forma que uma humanidade agora educada possa também se elevar ao que durante um tempo esta apenas supostamente fora358.

Esta ficção é a instância em torno da qual se articula toda a reflexão da epistemologia crítica, é a condição de possibilidade desta epis358

HABERMAS, Zwischen Philosophie und Praxis: Marxismus als Kritik. In: Theorie und Praxis..., p. 279 (tr. it...., p. 366).

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temologia e, ao mesmo tempo, o princípio que explica as diferentes formas que a teoria pode assumir. A ficção da filosofia da história evita o escândalo do materialismo e do positivismo, na medida em que transforma a ciência social em ciência do espírito, resolve as contradições sociais em “ambivalências atacáveis na prática” e sublima o conflito de classes em um amplo projeto pedagógico. Por meio da simulação produzida pela filosofia da história, a ideologia evita o risco do positivo e da ciência e os perigos do materialismo, porque a teoria que explica o processo de emancipação não é diferente de uma explicitação do sentido implícito na utopia da ficção. O materialismo se dissolve na utopia. Utopia que é concreta porque é projeto de sentido implícito na simulação operada na realidade da filosofia da história, que, por sua vez, é apenas um projeto de sentido operado pela consciência. A ciência, nova e crítica, é a hermenêutica daquela ficção. A ciência não explica mais a lógica e as leis da história ou da sociedade: ela interpreta o sentido que a simulação indica como distorcido e o utiliza no caminho da superação da distorção. Mas é justamente na concepção da crítica que se revela o caráter especulativo da teoria: a crítica não é crítica das instituições; não é crítica do sentido distorcido, não analisa as causas materiais da distorção. Ela parte de uma concepção ontológico-metafísica da realidade: o direito, diz Paul, segundo seu conceito, é verdade, é justiça. Mas este conceito é desnaturado. Aqui está a ficção. O direito não é, para ele, forma de relações sociais materiais, não é a mediação necessária destas relações, como são estruturadas na sociedade burguesa. As instituições não são a expressão das relações sociais materiais sobre as quais se constituem: estas se tornam conexões de sentido amputadas, reduzidas, às quais a filosofia da história substitui, com sua ficção, por um sentido utópico, que é sua verdade, sua essência que, recuperada, as insere no projeto emancipatório como instrumentos da emancipação. Por isto, a instância da crítica é estéril, porque nasce da utopia, da filosofia da história, não da análise do presente e, portanto, da história. As teorias do direito de Böhler e de Paul são expressões modestas, mas significativas, da especulação em sua versão jurídica. São duas formas distintas, mas complementares, do mesmo modelo epistemológico da ficção, sobre o qual se constitui o ataque contra o marxismo como ciência e como teoria. Böhler, segundo o modelo apeliano, recorre à reflexão e às fantasias transcendentais do logos; Paul, segundo o modelo habermasiano, recorre à crítica e às aventuras dialéticas do direito crítico, ambos com o fim de realizar teoricamente a simulação do direito como

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reflexão crítica. Mas, enquanto Habermas é tão sagaz que permite que a filosofia da história elabore uma ficção sobre a realidade, e que a teoria proceda sobre esta ficção e deixe, portanto, prejudicado o caráter alienado da realidade, Böhler e Paul são tão ingênuos que, em sua teoria, a própria realidade se torna realidade crítica. Na teoria de Böhler, o direito é um modo de reflexividade. Mas, o que isto significa? Significa que o direito, o em si do direito, é um produto daquele ideal a priori da comunicação, do diálogo, que Böhler pressupôs como instância crítica e de controle. Essa instância, portanto, não o permite conhecer “reflexivamente” a realidade como ele pretende: permite-lhe apenas hipotetizar a priori um em si, o direito justo, humano, com base na ficção de que o diálogo tenha realmente lugar. Uma vez estabelecido que a existência do direito não realiza de fato o a priori pressuposto, ele atribui a este a priori a tarefa de realizar a transformação daquilo que é naquilo que deve ser. Um círculo vicioso no qual é envolvido não apenas o direito, mas também a teoria. E, de fato, o direito como “reflexão concreta” não é diferente do direito da teoria. A transformação da “realidade humana distorcida” em uma realidade humana “justa” também se realiza, assim, através da teoria, que, construída sobre a reflexão transcendental operada pelo objeto, distanciando-se do mundo, é essencialmente um fato privado, de consciência, efetuado pela pessoa que é “senhora de si”. Porém, tudo isso não satisfaz Böhler: ele pretende que sua teoria tenha o caráter de cientificidade. Mas aqui também basta construir um pressuposto capaz de socializar o solipsismo da consciência privada burguesa e de transformar, assim, a reflexão em “reflexão concreta”. E o pressuposto que Böhler constrói para afirmar a cientificidade de sua teoria é que esta seja hermenêutica do sentido das relações sociais. Não que a teoria compreenda ou analise as relações sociais – esta se preocupa com seu “sentido”. Este, de fato, pode ser posto a priori, e a priori declarado distorcido. Uma operação de natureza ética, que não seria aplicável às relações materiais. A eticidade é do sentido: só o sentido é bom ou mal, autêntico ou desnaturado, não as relações. Com certeza, o logos de Böhler é estéril. E estéreis são os êxitos alcançados por sua reflexão. Esta, tendo como seu objeto apenas o sentido das relações sociais, conseguirá, sem dúvidas, transformá-lo, mas as deixará intactas. Adicionalmente, segundo Böhler, não apenas a teoria do direito é científica. As proposições do direito também devem ser científicas. Sua cientificidade é provada, controlada, mas para isso basta haver certo grau

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de fantasia transcendental, um pouco de sentido: basta o sentido do direito, o Rechtsgefühl, escreve Böhler, o pré-conceito. A ciência jurídica é guiada pelo interesse prático da emancipação. Ela aspira um conhecimento não dogmático, justo (richtig), controlável (überprüfbar), e o controle da capacidade emancipatória da ciência deve ser racional. Mas, para isso, basta hipotetizar uma comunidade ilimitada de comunicação. É uma simples ficção, que, porém, dá a garantia de racionalidade não só para a ciência, mas também para o direito. Refletindo com base nessa ficção, a ciência produz um direito humano, justo, emancipado. A consciência, por meio desta ficção, socializa-se, e o direito, como abstração emancipada, reflexão distanciada, guia o mecanismo de emancipação que a reflexão colocou em movimento. Produzindo o direito emancipado, a ciência se media na práxis, ou seja, faz projetos de transformação da sociedade, realizáveis em um futuro próximo (in absehbarer Zeit). Assim afirma, concluindo, Böhler. Em toda a construção “teórica” de Böhler, há um dado que se destaca e que não se pode omitir: ele continua sempre fiel ao seu teorema segundo o qual o distanciamento do mundo é a condição de possibilidade de todo conhecimento. Sem esse distanciamento, teria sido impossível construir sobre o direito tantas fantasias transcendentais. Paul, ao contrário, é mais modesto e tem menos pretensões filosóficas. Parte da constatação da distância existente entre pretensão e realidade do direito. Segundo sua pretensão, ou seja, segundo seu conceito, o direito é o justo, o humano. O direito é a liberdade e a igualdade. Na sociedade moderna, esse conceito, esse sentido do direito, foi desnaturado. O direito tornou-se expressão do domínio. E aqui Paul também procede dialeticamente. Ao invés de fazer a análise dos processos que desnaturaram o direito, Paul faz a crítica da dogmática e, pela crítica desaa inócua operação metodológica, recupera ao direito o sentido perdido. Feita essa crítica, porém, Paul não consegue se fechar, resolvendo o caso como uma questão interna da ciência jurídica tradicional, como havia feito, por exemplo, com discrição, a jurisprudência dos interesses. Paul recorre imediatamente à ficção. O direito, nascido da crítica à dogmática, tornase direito crítico e dá início ao processo de emancipação da sociedade. Paul não precisa recorrer à ficção transcendental da comunidade ilimitada de comunicação, porque as prestações desta ficção lhe são fornecidas pela outra, mais radical e tautológica, da crítica, que se adapta melhor ao cliché do projeto utópico e da antecipação de sentido. Antecipação que é, assim, pouco utópica para Paul, que ele deriva, como o Marx da crítica à lei sobre furtos de lenha, do conceito de direito. Nesse sentido, contestar Marx lhe foi útil.

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As teorias do direito de Böhler e Paul “compreendem” o direito tão pouco quanto a ficção da filosofia da história compreende o movimento real da sociedade. Movidas pela aversão à ciência, estas são formas pobres da especulação, incapazes, em suas involuções teóricas, de adequar o direito, ou mesmo a ideologia burguesa, muito mais refinada e mais evoluída. Aquilo que se crê filosoficamente refinado – escrevera Bachelard – se revela muito grosseiro no exame dos valores científicos.

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3 A TEORIA ANALÍTICA DO DIREITO E O CRITICISMO 1

DIALÉTICA E CRITICISMO

O debate sobre o positivismo evidencia, já a breve distância de sua afirmação, sinais de uma profunda fadiga: não apenas porque os termos da controvérsia agora começam a se tornar velhos, como notou Lorenzen359, mas também porque as modulações originárias se desgastaram. O desgaste é verificável, sobretudo, entre os “dialéticos”, que buscaram construir o mito da razão total com base no falso pressuposto de que a dialeticidade do real se explicita na afirmação do sentido e de que esta exclui a razão analítico-descritiva. Fora tarefa dos “cientificistas” demonstrar que o bloqueio da razão total contra o positivismo não tinha razão de ser justamente porque aquilo que os “dialéticos” chamam de positivismo conota concepções diversas da ciência que apenas uma particular acrobacia dialética pode unificar. Nesta situação, ao interesse dos “dialéticos” tendente a apresentar o positivismo como uma forma patológica da epistemologia definida exclusivamente pela privação dialética e pela inabilidade de acessar as conexões de sentido, correspondera um interesse mais articulado dos “cientificistas” de colocar em evidência a diversidade de suas construções teóricas e provar, assim, que razão total dialética e razão total analítica são ambas mitos produzidos do ponto de vista da ideologia alemã, com a finalidade – dizia Albert360 – de manter o preconceito da tradição filosófica nascido da destruição da razão iluminista e de sua instância crítica, e idôneo somente “para revalorizar formulações obscuras, vagas e construídas com uma linguagem esotérica, e para protegê-las contra uma pesquisa crítica”. 359

360

LORENZEN, P. Szientismus versus Dialektik. In: AAVV, Hermeneutik und Dialektik..., v. I, p. 57-72. ALBERT, Plädoyer für krtischen Rationalismus..., p. 53.

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Uma vez resolvido o problema do marxismo mediante a restauração hermenêutica e antropológica de suas instâncias críticas, e neutralizado, assim, seu ameaçador “positivismo”, o universo científico é definido pelo modo analítico da teoria da ciência de derivação de Oxford361 e pelo racionalismo crítico, desenvolvido na Alemanha, na linha de Popper, particularmente por Hans Albert362, e tornado, desde já, filosofia oficial da social-democracia alemã363. O criticismo de Albert teve um papel decisivo na controvérsia com os “dialéticos”, mas dera aportes modestos à teoria do direito. O contrário se pode dizer da teoria analítica, que não se inseriu ativamente no debate dos anos sessenta, mas deu contribuições decisivas à teoria do direito. Essa situação se explica, por um lado, se considerarmos que o criticismo desenvolve positivistamente a mesma pretensão que nega à razão dialética, qual seja, a pretensão de compreensão crítica do mundo e, portanto, é diretamente envolvido na disputa relativa à afirmação da forma da razão, e se insere, assim, plenamente, no rastro da tradição filosófica alemã. No universo da teoria jurídica, ao contrário, ele deve conquistar um espaço intermediário entre o modo analítico e o modo dialético da ciência, que parecem exaurir as alternativas epistemológicas da jurisprudência. Por outro lado, aquela situação se explica considerando que, no universo da ciência social alemã, é atribuída uma condição de subordina361

362

363

Cf. STEGMÜLLER, W. Probleme und Resultate der Wissenschafts theorie und analytischen Philosophie, v. I, Wissenschaftliche Erklärung und Begründung. Berlin-Heidelberg-New York: Springer, 1969; e Id., Hauptströmungen der Gegenwartsphilosophie, v. I, Kröner, Stuttgart 19766. p. 429 ss., v. II, 1975, cap. 13; SAVIGNY, E.v. Analytische Philosophie. Frei burg-München: Albert, 1970; ESSLER, W.K. Analitische Philosophie I. Stuttgart: Kröner, 1972; TUGENDHAT, E. Vorlesungen zur Einführung in die sprachanalytische Philosophie. Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1976: estes trabalhos contém indicações bibliográficas amplas. Cf. ALBERT, Plädoyer für kritischen Rationalismus...; Id., Traktat über kritische Vernunft. Tübingen: Mohr, 1969 [tr. it. de RUSCONI, G. E. Per un razionalismo critico. Bologna: Il Mulino, 1973]; Id., Theorien in den Sozial wissenschaften. In: AAVV, Theorie und Realität. Ausgewählte Aufsätze zur Wissenschaftslehre der Sozialwissenschaften, a cura di H. Albert, Mohr, Tübin gen 1972, segunda edição ampliada, p. 3-25; e os ensaios recolhidos em ALBERT, H. Konstruktion und Kritik. Aufsätze zur Philosophie des kritischen Rationali smus. Hamburg: Hoffmann und Campe, 1972, e em ALBERT, H. Aufklärung und Steuerung. Aufsätze zur Sozialphilosophie und zur Wissenschaftslehre der Sozialwissenschaften. Hamburg: Hoffmann und Campe, 1976. Cf. AAVV, Kritischer Rationalismus und Sozialdemokratie, org. por G. Lührs, Th. Sarrazin, F. Spreer, M. Tietzel, com prefácio de H. Schmidt, v. I, Berlin-Bonn-Bad Godesberg: Dietz, 1975; v. II, Diskussion und Kritik, Dietz, Berlin-Bonn-Bad Godesberg 1976.

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ção à teoria analítica. Já em 1969, Abert364 destacava como o influxo das correntes dominantes em ambientes anglo-saxões se fazia sentir também na Alemanha e, entretanto, notava que, da parte da ideologia alemã, tentava-se delimitá-lo de modos diversos, apresentando-o como uma doutrina da ciência concebida como campo de competência de especialistas, que deve desenvolver um papel auxiliar em relação às ciências da natureza, ou procurava embriagá-lo em uma hermenêutica, no âmbito da qual as contribuições de autores ingleses se deixam interpretar como soluções agradáveis de problemas, que, porém, em última instância, são insuficientes por sua escassa profundidade, ou porque negligenciam a dimensão histórica. Problemas que, ao contrário, na tradição filosófica alemã, são há tempos tratados de maneira mais adequada.

No universo da epistemologia jurídica, ao contrário, a teoria analítica se unia à tradição kelseniana e, ao mesmo tempo, delineava os fundamentos teóricos para a recepção das contribuições da análise lógica, da análise linguística e da análise sistemática do direito, às quais, após a ruptura com o kelsenianismo operadas no pós-guerra, faltava uma referência epistemológica unitária e consistente365. Esta se propunha, assim, sem preconceitos, como estratégia alternativa global a respeito da razão crítica, praticável não apenas na pesquisa teórica, mas também na prática do direito, e como modelo suficientemente elástico capaz de organizar em conjunto instâncias diversas, de origens positivista e neopositivista. Em sua intervenção, em resposta a Habermas366 no debate sobre o positivismo, Albert buscara apresentar o mito da razão total como um mito obscurantista, nascido da ruptura com o iluminismo e com o criticismo. À dialética e à hermenêutica, Albert atribuía uma impotência crítica constitutiva, na medida em que a razão total sobre a qual estas se regiam 364 365

366

ALBERT, Plädoyer für kritischen Rationalismus..., p. 53. Cf. os ensaios recolhidos em AAVV, Juristische Methodenlehre und analytische Philosophie, org. H.-J. Koch cit.; HOERSTER, N. Grundthemen analytischer Rechtstheorie. In: Jahrbuch für Rechtssoziologie und Rechtstheorie, v. II..., p. 11532; ECKMANN, H. Rechtspositivismus und analytische Philosophie. Der Begriff des Rechts in der Rechtstheorie H.L.A. Hart. Berlin: Duncker und Humbolt, 1969; RIESER, H. Sprachwissenschaft und Rechtstheorie. In: AAVV, Rechtswissenschaft und Nachbarwissenschaften, v. II..., p. 117-42; KUNZ, Die analytische Rechtstheorie... ALBERT, H. Il mito della ragione totale. Pretese dialettiche alla luce di una critica adialettica. In: AAVV, Dialettica e positivismo in sociologia..., p. 189-227; cf. H. Ley-Th. MÜLLER, Kritische Vernunft und Revolution. Zur Kontroverse zwischen Hans Albert und Jürgen Habermas. Köln: Pahl Rugenstein, 1971.

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pressupunha a incontrolabilidade de si mesma e, portanto, se subtraía a priori a toda crítica. Tal razão, dizia Albert, não pode ser instrumento crítico porque se funda no absolutismo de si mesma e sobre a universalidade e infalibilidade de suas operações. Mas uma razão assim entendida não é, contudo, sequer capaz de conhecer a realidade, porque não pode explicá-la. Ela, de fato, não explica regularidade, mas explica sentido, e a explicação do sentido é possível na medida em que a teoria pressupõe a imanência dialética para a realidade e a história. Portanto, argumentava Albert, a teoria não procede formulando hipóteses sobre a realidade, que são depois colocadas à prova dos fatos empíricos, para os quais a validade das hipóteses depende do fato de estas resistirem ou não à prova e ao controle empírico. O postulado da imanência, como o da incontrolabilidade, é absoluto. A consequência da negação de um poder explicativo para a teoria implica a necessidade de reconhecer para esta um poder normativo; ou seja, a capacidade de prescrever um sentido para a história e a realidade, com base em uma filosofia acrítica da história, e de explicar este sentido por uma leitura da realidade e da história da qual se extraia em que medida o mundo se adéqua ao sentido pressuposto. Ao obscurantismo da teoria dialética, Albert contrapõe a metodologia das ciências reais teóricas, que “visa, sobretudo, a observar leis, conexões regulares, a formular hipóteses informativas sobre a estrutura da realidade e, portanto, sobre aquilo que efetivamente acontece”367. Os controles empíricos servem para mostrar se as conexões que estabelecemos resistem à prova dos fatos, ou se devemos colocar em dúvida nosso saber precedente. E aqui, repetia Albert com Popper, um papel importante desenvolve-se pelo fato de que “nós temos a possibilidade de aprender com nossos erros, expondo as teorias ao risco de falhar na prova dos fatos”. Para a ideologia alemã, que reivindica a coincidência interna e necessária entre teoria dialética e realidade, o sistema empírico e as proposições teóricas que explicam essa realidade no quadro referencial de uma teoria empirista “permanecem externos à esfera empírica analisada. As teorias seriam esquemas ordenadores puros, construídos livremente dentro de uma moldura sintaticamente vinculante”368. A refutação ao esquema teórico que ordena hipoteticamente a realidade serve, segundo Albert, apenas para legitimar o agir prático em nome de um sentido pressuposto da história369, e deriva de uma posição antinaturalista no plano 367 368 369

Idem, p. 197. Idem, p. 195. Idem, p. 207; e ALBERT, Plädoyer für kritischen Rationalismus..., p. 55.

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ontológico e metodológico da qual é prisioneira a concepção dialética do mundo. Esse fundamento da teoria dialética leva seus defensores a uma concepção instrumentalista das ciências naturais, que, paradoxalmente, pareceria característica de um positivismo entendido em sua forma tradicional, uma concepção instrumentalista na qual as ciências sociais são vistas como meros instrumentos para resolver as questões práticas da vida, como instrumentos privados de qualquer valor cognitivo que encontre a solução dessas questões, e, desse modo, são amplamente esterilizadas para a formação de uma imagem do mundo370.

A tentativa da ideologia alemã de desacreditar o saber das ciências naturais e todas as consequências que decorrem dessa tentativa – o recurso a uma filosofia da história e a uma ética que se subtraem à controlabilidade racional, a necessidade de afirmar a explicação hermenêutica do sentido suposto como a única prestação de uma ciência que se subtrai à crítica, a constituição de uma Eintopfwissenschaft [ciência ensopada371] como a ciência social, na qual hermenêutica e dialética coexistem com o pragmatismo e a filosofia transcendental – demonstram, segundo Albert, que a ideologia alemã nasce da refutação à tradição da razão crítica e é incapaz de valorar e conceber os êxitos dessa tradição nas ciências modernas e em sua metodologia. A concepção dialética da razão afasta-se do pensamento científico moderno e de toda sua tradição crítica, que é a tradição do iluminismo. Desacreditando a ciência moderna e rompendo com o pensamento crítico da razão iluminista, “o antinaturalismo do pensamento hermenêutico e do pensamento dialético revela-se um resíduo teológico”372. E, de fato, conclui Albert, “o pensamento teórico, do modo como se forma, sobretudo nas ciências naturais, a explicação do acontecimento fatual, e o iluminismo estão estritamente conectados”. O herdeiro moderno da tradição do iluminismo é o racionalismo crítico, que concebe uma racionalidade científica e crítica alternativa à racionalidade conservadora e obscurantista da razão dialética. O racionalismo crítico é essencialmente uma teoria da falibilidade da razão humana que tem consequências políticas373. O criticismo dessa teoria nasce da 370 371

372 373

ALBERT, Plädoyer für kritischen Rationalismus..., p. 56. Wissenschaft é ciência; Eintopf é um prato alemão no qual vários ingredientes são cozidos no mesmo pote (similarmente ao minestrone italiano, uma sopa de legumes variados com arroz ou macarrão). Portanto, o autor está aludindo metaforicamente a uma elaboração sincrética da ciência social [N.R.]. Idem, p. 68. Idem, p. 70; cf. ALBERT, H. Aufklärung und Steuerung ‒ Gesellschaft, Wis senschaft und Politik in der Perspektive des kritischen Rationalismus. In: AAVV, Kritischer Rationalismus und Sozialdemokratie, v. I..., p. 103-25.

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hipótese de que “assim como nas ciências, também na vida política e social não são possíveis soluções de problemas que sejam perfeitas e não sujeitas a revisão”374. A teoria considera suspeitos os que sustentam possuir concepções totalizantes, dotadas de soluções gerais e válidas, pelas quais o ordenamento da sociedade se liberaria do domínio, dos conflitos, e se tornaria um todo harmônico. Sobre o rastro das ciências naturais, o racionalismo crítico considera as instituições sociais não como conexões de sentido, mas como soluções de problemas sempre passíveis de revisão pela intervenção crítica da razão. É tarefa da teoria formular hipóteses que falsifiquem essas soluções de problemas, de forma que para toda instituição social, como solução pré-existente, surja a exigência de uma transformação, a exigência da busca por uma solução mais adequada. A teoria traz consigo o pressuposto da crítica como prestação prática da razão, como prestação tendente à compreensão da sociedade, mas também à valoração das transformações possíveis, entendidas como soluções mais adequadas para os problemas. O racionalismo crítico é, portanto, também uma teoria política, na medida em que neste se encontram os fundamentos para uma política racional, para uma política, como diz Albert, da razão prática. As conquistas liberais realizadas pela sociedade moderna, de fato, criaram o pressuposto para uma “institucionalização mais eficaz da crítica e do controle do domínio, mantendo a possibilidade de planejar e decidir com sucesso”375. Nessa sociedade, o desenvolvimento e o progresso das instituições dependem do desenvolvimento da ciência, são ligados a este e a seus resultados. O liberalismo e o iluminismo da teoria política dependem da medida em que a política se apropria dos resultados da ciência, da capacidade da crítica de colocar em dúvida as soluções dadas e da capacidade da razão de planejar decisões mais adequadas, de falsificá-las e, assim, de revê-las. A ciência social crítica faz seu o hábito das ciências naturais, ou seja, a disposição para a ação racional, a argumentação crítica e o controle das hipóteses e conexões, liberando-se definitivamente de toda ontologia obscurantista e de todo resíduo teológico.

2

A JURISPRUDÊNCIA COMO TECNOLOGIA SOCIAL

Na ciência jurídica tradicional, o racionalismo crítico identifica duas características que impediram o saber sobre o direito de se adequar 374 375

ALBERT, Plädoyer für kritischen Rationalismus..., p. 70. Idem, p. 72.

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aos resultados obtidos em outros campos do saber, e que impediram também que aquele saber teórico tivesse relevância prática: trata-se do caráter normativo e do caráter dogmático da ciência jurídica. Interesse dogmático e normatividade da teoria impediram a teoria do direito de desenvolver uma tarefa crítica e racional. Ligada a esses vínculos epistemológicos, a teoria não pôde se servir do método que nas outras ciências tornou possível o progresso do saber e, ao mesmo tempo, a mediação efetiva do saber teórico na práxis social. A jurisprudência, assim imunizada diante da crítica, reteve-se em um dogmatismo que tem como único fim legitimar o status quo. Deixou-se guiar pela ideia da fundação última do saber e assumiu, assim, um estilo e um comportamento na solução de problemas cuja insuficiência e inadequação – mas também o perigo dogmático autoritário –, há tempos, já haviam sido demonstradas pelas ciências naturais. “Nessas ciências, a práxis cognitiva, a partir de agora, é orientada, de fato, para o princípio do controle crítico, no qual sua interpretação epistemológica podia suscitar outra impressão”376. A práxis teórica da jurisprudência é inspirada no princípio da autonomia da ciência, fundada em uma separação irredutível entre os setores do conhecimento científico: o resultado negativo dessa separação manifestou-se no afastamento da teoria nas comparações entre determinadas formas do saber científico e na absolutização de determinados métodos. Em consequência desse enrijecimento, a jurisprudência pode pretender uma relevância científica de suas práticas cognitivas apenas se refuta toda forma de conhecimento crítico e racional e se autodefine como dogmática. E, de fato, o fundamento epistemológico de uma jurisprudência assim entendida é dado pelo modelo cognitivo da revelação que deriva imediatamente da teologia. O caráter teológico da jurisprudência emerge não apenas da consideração dos métodos e procedimentos por esta usados para resolver seus problemas, mas também do fato de que esta identificou como seus problemas específicos os problemas teológicos da identificação e da interpretação de determinados esquemas de comunicação, de determinadas mensagens. A questão teórica de fundo para a jurisprudência dogmática, assim como para a teologia, é, de fato, a questão da validade. Mas, não obstante todos os esforços que podem ser feitos para agredir este enrijecimento epistemológico na jurisprudência, parece que 376

ALBERT, H. Erkenntnis und Recht. Die Jurisprudenz im Lichte des Kritizismus, in “Jahrbuch für Rechtssoziologie und Rechtstheorie”, v. II..., p. 80-96 (81); cf. a crítica de SAVINY, E.v. Die Jurisprudenz im Schatten des Empirismus. Polemische Anmerkungen zu Hans Albert: Erkenntnis und Recht, Idem, p. 97-108, e a réplica de ALBERT, H. Normativismus oder Sozialtechnologie? Bemerkungen zu Eike von Savignys Kritik..., p. 109-13.

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esta, se pretende ser um conjunto de práticas teóricas tendentes a ter relevância prática com finalidade de agir, ou seja, tendente a fornecer meios idôneos para chegar a decisões corretas, é destinada a ser uma ciência dogmática com caráter normativo. “O vínculo com o direito vigente parece prejudicar, ao mesmo tempo, o caráter dogmático e normativo e, além destes, – na medida em que a jurisprudência deve se fundar sobre textos – o caráter hermenêutico de seu modelo cognitivo”377. A jurisprudência se legitima, assim, como um complexo de práticas que refutam, como inútil, como inidônea para sua práxis, uma teoria da ciência guiada por um puro interesse no conhecimento. Insatisfatória, já que incapaz de resolver o problema da mediação prática do saber teórico, é também a solução analítico-normativa oferecida à ciência jurídica, que, para buscar a mediação prática, é obrigada a considerar o direito como um universo concluso em si mesmo, afastando-se, assim, a possibilidade de dar conta, em última instância, justamente da eficácia das normas que estuda. Ela crê resolver o problema colocando na base de sua pesquisa sobre o ordenamento conjuntos de regras que justificam as operações de aplicação do direito efetuadas pelo juiz, de modo que a jurisprudência como ciência termina com sua identificação “com o juiz em uma situação de decisão”378. E este pressuposto, certamente, deve ser colocado em dúvida, afirma Albert. A ciência jurídica tradicional e a solução analítica moderna são incapazes de resolver a questão epistemológica da jurisprudência, ou seja, a questão da mediação prática dos conhecimentos teóricos produzidos sobre o direito. A orientação hermenêutica dogmática e a perspectiva analítica, de fato, não livram a teoria do direito da alternativa entre uma consideração teológica da jurisprudência como ciência dogmática – cujo problema epistemológico consiste “na identificação das revelações das instâncias que produzem as normas, em sua adequada interpretação e em sua correspondente aplicação”379 – e uma consideração analítico-normativa do direito, que, resolvendo a existência do direito como fato social, no pressuposto metafísico da validade, é incapaz e inidônea para compreender e explicar as situações sociais que tornam válida a própria previsão normativa, ou seja, não é capaz de oferecer uma análise do direito como ordenamento válido do comportamento social, na medida em que este é parte constituinte de processos sociais em cuja configuração concorre ao lado de outras estruturas sociais. A necessidade da interpretação 377 378 379

ALBERT, Erkenntnis und Recht..., p. 84. Idem, p. 88. Idem, p. 85.

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do texto como momento constitutivo do processo cognitivo do direito transformou-se, assim, em uma sacralização do próprio texto, concluindo a unificação teórica e prática entre teologia e jurisprudência, enquanto, por outro lado, na explicação do dever-ser, como tarefa cognitiva da jurisprudência, identificou-se o direito como um universo de normas válidas, fechado em uma espécie de cosmo autônomo impenetrável em relação aos fatos sociais. O conhecimento do fato normativo foi separado do conhecimento dos fatos normativamente regulados, que constituem a realidade do direito, e foi separado também da consideração das conexões sociais no interior das quais o direito se insere como estrutura constitutiva. O poder cognitivo da teoria jurídica de caráter teológico ou normativo é assim dimensionado e sempre distorcido, na medida em que configura uma estrutura epistemológica à qual falta uma rede de explicações abrangentes, ou seja, capazes de dar conta das conexões sociais organizadas pelo direito, dos efeitos sociais produzidos pelo direito, e do próprio direito como uma “fatispécie da realidade social”. A existência do direito não pode ser explicada sem referência aos fatos sociais nos quais o direito se produz e sobre os quais age. É no contexto desses fatos que o conhecimento das normas do direito existente torna-se relevante não apenas como núcleo da ciência jurídica, mas também como referência necessária para as outras ciências sociais, que têm como objeto o comportamento socialmente relevante e as conexões sociais nas quais esse comportamento se verifica. A eficácia das normas explica não apenas os modos da existência prática do direito, mas permite explicar também o comportamento dos membros da sociedade e, portanto, compreender as outras fatispécies da realidade social, que são objeto da ciência social empírica. A jurisprudência deve ser uma ciência empírica que tem a finalidade de explicar e compreender o direito como uma fatispécie da realidade social, deve ser uma ciência realista que tem a tarefa não apenas de investigar e definir o ordenamento jurídico vigente, mas de participar de sua configuração prática por meio de propostas interpretativas adequadas. Uma tal jurisprudência seria orientada para a práxis social sem, todavia, ter caráter normativo; não seria dogmática, mas operaria com base em hipóteses nas quais os conhecimentos relevantes das ciências sociais seriam, sem dúvidas, valorizados; mas esta também não seria uma ciência hermenêutica, mesmo que usasse, entre outros, procedimentos hermenêuticos380.

Em uma jurisprudência orientada para a prática, as hipóteses interpretativas do texto tornam-se instrumentos auxiliares que servem para 380

ALBERT, Erkenntnis und Recht..., p. 92-3.

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formular hipóteses normativas relativas a determinados contextos espaço-temporais e, portanto, imediatamente referentes às fatispécies da realidade social, delimitáveis e circunscritíveis de um ponto de vista sociocultural, hipóteses normativas cujo efeito não tem apenas consequências no plano lógico-argumentativo, mas é exercido sobre a realidade social do comportamento normativamente regulado. O racionalismo crítico concebe, portanto, a jurisprudência como uma tecnologia que tem o escopo de formular, a partir de determinados pontos de vista hipoteticamente pressupostos, determinadas propostas interpretativas para as proposições normativas reconhecidas no direito vigente, mas naturalmente também propostas pela introdução de novas normas jurídicas no plano legislativo381.

A jurisprudência como tecnologia caracteriza-se não por sua pretensa dogmaticidade ou pela normatividade de seus conhecimentos, mas por sua capacidade de oferecer instrumentos hipotéticos de conhecimento e controle das fatispécies sociais normativamente qualificadas e, portanto, por sua disponibilidade para colocar em dúvida as hipóteses formuladas, substituí-las por outras, deixando que se falsifiquem na prova dos fatos. Assim, ela media suas hipóteses teóricas e interpretativas na práxis social na medida em que essas hipóteses cognitivas são elaboradas com a finalidade de interpretar a realidade social para guiá-la, controlá-la, planejá-la. Os efeitos-guia (Steuerungswirkungen) das interpretações hipotéticas da realidade social definem não apenas o caráter prático dos conhecimentos da ciência jurídica, mas também o realismo de uma teoria do direito que parte da consideração da realidade normativa como fatispécie da realidade social para retornar sobre esta como hipótese teórica planificadora e de controle. As hipóteses da jurisprudência são consistentes não porque sejam válidas, no sentido de serem construídas sobre a pretensa validade de seu pressuposto normativo, mas porque são falsificáveis, no sentido de que, se controladas criticamente, oferecem, por sua vez, instrumentos de controle reforçados, hipóteses melhores, mais adequadas, de soluções dos problemas sociais. Para uma jurisprudência entendida como tecnologia social, como hipótese científica de solução dos problemas sociais, a crítica constitui o fundamento teórico e político de legitimidade. Esta jurisprudência, de fato, planifica as soluções dos problemas sociais com base em uma interpretação crítica das soluções existentes, ou seja, com base na crítica do direito vigente. Esta crítica é, ao mesmo tempo, conhecimento empírico e razão política da teoria: serve-se dos resul381

ALBERT, Erkenntnis und Recht..., p. 93.

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tados colhidos pelas ciências sociais reais com o fim de programar politicamente soluções racionais dos problemas adequadas às questões a serem resolvidas e correspondentes ao nível atual dos conhecimentos científicos. A crítica não desmascara apenas conhecimentos inadequados, mas propõe soluções novas e melhores. A crítica é também a rede na qual se entrelaçam os resultados obtidos pelas ciências sociais servindo-se da metodologia das ciências reais teóricas: essa metodologia permite que as ciências sociais obtenham conhecimentos do mesmo nível dos conhecimentos elaborados pelas ciências reais, na medida em que avalia as soluções para os problemas sociais segundo “ideias relativas a contextos reais”, desenvolvidas pelas próprias ciências reais. O melhoramento das soluções para os problemas sociais, guiado e planificado pelas hipóteses da teoria, não é uma projeção utópica de diferentes formas da realidade, não se liga a uma filosofia da história que está sobre uma totalidade social, mas procede pela falsificação, operada pela crítica, de hipóteses precedentes, demonstradas insuficientes como soluções para os problemas existentes. O direito, substancialmente, como as outras fatispécies da sociedade, ou instituições sociais, nada mais é do que uma hipótese falsificável por meio da crítica, e, portanto, empiricamente controlável, tecnologicamente planificável. Em uma jurisprudência entendida como tecnologia social, na qual a teoria crítica do direito elabora instrumentos de adequação do saber jurídico ao saber das ciências reais, e na qual o tratamento dos problemas jurídicos corresponde ao tratamento dos problemas nas ciências reais, segundo o grau de desenvolvimento obtido por estas, em uma jurisprudência que entende a regulação e sua avaliação normativa em estreita conexão com “os componentes cognitivo-materiais de uma concepção do mundo no âmbito da qual pretendem ser válidas”382, as questões de política do direito também encontram espaço para uma argumentação racional empiricamente controlável e, assim, para um tratamento crítico. A capacidade crítica da razão, que se determina no método das ciências reais, unifica a explicação e o conhecimento da realidade e a projeção de suas formas melhores com base em uma crítica racional da insuficiência das hipóteses já formuladas sobre a própria realidade.

3

CRITICISMO E ANALITICIDADE DA CIÊNCIA

É justamente em torno desta pretensa capacidade crítica da teoria construída sobre uma hipótese falibilística da razão, na qual filosofia e 382

ALBERT, Erkenntnis und Recht..., p. 95.

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teoria se encontram na “valoração” dos resultados da ciência, que se desenvolve o conflito entre teoria analítica da ciência e racionalismo crítico. Ambos aceitam a perspectiva das ciências naturais, ou seja, a perspectiva do controle empírico das proposições da teoria, e reconhecem a validade do método das ciências naturais como método geral e unificante da ciência e, portanto, aceitam a acusação de serem cientificistas e positivistas. Mas os analíticos afirmam a clara distinção entre pesquisa teórica e pesquisa filosófica, reivindicam para a teoria um conhecimento objetivo a ser adquirido unicamente com os instrumentos das ciências empírico-descritivas, extensíveis a todos os setores de pesquisa e, portanto, também às ciências sociais e à ciência jurídica, refutam a hipótese criticista de que a unificação de conhecimento teórico e valoração filosófica introduziria no interior da objetividade empírica o ponto de vista do valor, como elemento de ruptura da objetividade do conhecimento, reivindicam a autonomia do saber teórico pela reflexão filosófica e indicam como suspeitas as misturas que ofuscam o ponto de vista valorativo da filosofia, com o único fim de passar por objetivas formas puramente ideológicas do conhecimento. O conflito entre criticismo e teoria analítica trava-se substancialmente em torno do critério de cientificidade do conhecimento. Para a teoria analítica, as hipóteses da ciência se sujeitam ao critério de verificabilidade, enquanto para o criticismo as hipóteses da ciência se sujeitam ao critério de falseabilidade. A verificabilidade das hipóteses é praticável pela análise: a análise empírica das proposições da ciência é o critério último de validade dos conhecimentos científicos. A falseabilidade das hipóteses, por sua vez, é praticável pela crítica, por meio da valoração empírica da adequação das soluções oferecidas pelas hipóteses da ciência aos problemas em jogo. Para a teoria analítica, a ciência é conhecimento objetivo da realidade em sua forma empírica. Para o racionalismo crítico, a ciência é um conjunto de hipóteses sobre a realidade: hipóteses racionais, sujeitas à crítica e, portanto, melhoráveis. Criticismo e teoria analítica, portanto, enquanto se encontram no reconhecimento da validade do método das ciências naturais, afastam-se na concepção de racionalidade. Às pretensões da razão prática que qualificam a hipótese criticista comparam-se as pretensões da razão teórica, como razão formal, analítica, que qualificam a hipótese empirista da teoria analítica. É esta defesa da teoria como pesquisa formal, não valorativa, que permitiu à teoria analítica afirmar-se dentro da ciência jurídica alemã, que, se nas formulações teóricas conseguiu livrar-se do kelsenianismo, – justamente porque procurou construir-se com base na refuta explícita da metodologia kelseniana – sempre se ressentiu da incapacida-

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de de elaborar um modelo epistemológico da jurisprudência que fosse alternativo àquele modelo e, ao mesmo tempo, praticável. A teoria analítica é praticável porque se legitima com base na distinção das Grundlagenwissenschaften der Rechtswissenschaft [ciências básicas da jurisprudência] por sua neutralidade e indiferença frente a qualquer tomada de posição filosófica no direito, ou seja, pelo fato de não interferir, não se imiscuir, nas questões filosóficas, valorativas, subjetivas e, portanto, ideológicas. Essa neutralidade permite à teoria incluir-se no tronco kelseniano, aperfeiçoando-o, ou seja, imunizando-o de consequências juspositivistas implícitas ou explícitas. A análise como análise linguística não prejudica nenhuma prática não teórica sobre o direito. A análise é uma pesquisa fundamental, mas regional sobre o direito, limitase a dar a medida da racionalidade e a buscar no objeto a forma da racionalidade, é uma prática instrumental, ainda que seja a única prática cognitiva. Sua instrumentalidade é a instrumentalidade da razão formal que elabora conhecimentos do objeto coerentes, polidos, sistematicamente corretos, empiricamente verificáveis, objetivos e, portanto, válidos, ou seja, conhecimentos realmente comunicáveis, consumáveis por qualquer atividade prática e compatíveis com qualquer reflexão filosófica, porque em sua validade objetiva, ou racionalidade formal, são impermeáveis ao valor. A nova pureza da teoria analítica configura-se antes de tudo como neutralidade da análise. A teoria reconhece a necessidade da operação filosófica e valorativa sobre o direito, reconhece que a filosofia do direito é uma prática fundamental da jurisprudência, mas refuta qualquer coparticipação nos interesses perseguidos pela prática filosófica. A teoria analítica, portanto, não exclui a filosofia do complexo das ciências que organizam a jurisprudência: ela declara sua neutralidade diante da filosofia e persegue seu objetivo cognitivo como análise linguística do direito como fato empírico. Ela não toma partido pela filosofia, assim como não toma partido pela política: filosofia e política do direito, entendidas como valorações e projeções das configurações empíricas do direito, coexistem com a teoria analítica do direito, que é neutra diante destas. A praticabilidade da teoria analítica do direito, porém, também se inclui na falsa consciência de uma ciência jurídica na qual a transformação filosófica do direito coexiste com uma prática jurídica cujo empirismo serve para mascarar o positivismo efetivo da jurisprudência. A “ciência” jurídica, de fato, pode proceder positivamente em todas as suas práticas, dogmáticas, sistemáticas, aplicadoras do direito, justamente porque, em um nível superior, empírico, essas práticas apresentam-se como autolegitimadas em sua validade e neutralidade internas. Em outros termos: não obstante os inúteis e ásperos debates, a teoria analítica impõe-se por-

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que carrega o trunfo da neutralidade e da coexistência pacífica. A feliz descoberta das Grundlagenwissenschaften der Rechtswissenschaft, de matriz estritamente – ainda que não explicitamente – analítica, serve de fundamento para a teoria da não violência entre qualquer filosofia, especulação ou reflexão, e a teoria do direito que analisa racionalmente, de maneira não valorativa, seu objeto, legitimando, assim, imediatamente, o positivismo metodológico da jurisprudência. A falsa consciência da ciência jurídica ameniza-se, porque a política da não violência permite o pluralismo, o favorece, autoriza todas as especulações e, assim, as legitima, resolve o direito linguisticamente e, portanto, é uma prática correta do ponto de vista político, agrada e respeita as ideias sobre o direito, pelas quais não se interessa. Por último – e este é o motivo substancial da praticabilidade da teoria analítica – permite à ideologia alemã desenvolver todos os seus exercícios mantendo de pé, estável e consistente o positivismo acrítico nas atividades práticas conduzidas no universo empírico. Os “dialéticos” haviam reaberto o problema da ciência e haviam resolvido a questão dos fundamentos dissolvendo-a no quadro de uma filosofia da história como pensamento da totalidade social no qual o interesse prático do conhecimento se legitimava como interesse emancipatório. Essa dissolução do problema teórico tornava escassamente praticáveis suas propostas, não obstante o recurso hermenêutico pudesse fazer pensar em uma possível utilidade da perspectiva da interpretação e da compreensão hermenêutica no interior da jurisprudência. Mas se o saber hermenêutico encontrava dificuldade em legitimar-se em sua formulação terapêutica, feita por Habermas, encontrava maiores dificuldades em legitimar-se no plano epistemológico em sua formulação dogmático-autoritária diante do refino dos instrumentos linguísticos oferecidos pela teoria analítica. A hipótese dialético-hermenêutica não oferecia nem uma teoria do direito, nem uma teoria da ciência jurídica, mas uma saber autoritário e terapêutico e, de qualquer modo, ontologizante, continuamente na busca pela mediação prática, deixada sempre sem solução. A teoria analítica, ao contrário, que trata o objeto respeitando sua forma empírica, oferece uma mediação prática imediata justamente porque se apresenta como instrumento da mediação, cujos resultados, não prejudicando o objeto, são, sem dúvidas, praticáveis pela ciência – à qual oferecem conhecimentos verificáveis –, pela filosofia – à qual oferecem conhecimentos objetivos neutros –, e pela política – para a qual apresentam o objeto empírico racionalmente articulado, dividido em sua racionalidade formal, disponível, portanto, para qualquer planificação e programação.

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A teoria analítica repropõe o problema do fundamento teórico da ciência retomando a intuição epistemológica kelseniana e tornando-a, por assim dizer, apresentável na mudada contingência da ciência jurídica. Ela atenua o medo do positivismo, tornando o positivismo possível na prática e tolerável pela falsa consciência da ciência jurídica. Esta, portanto, se reorganiza em torno do princípio da coexistência pacífica das Grundlagenwissenschaften der Rechtswissenschaft, no centro das quais se dispõe uma teoria que é, ao mesmo tempo, conhecimento do objeto em sua configuração empírica e, assim, não mais hipótese sobre o objeto, mas conhecimento objetivamente válido do próprio objeto e fundamento unitário de todas as práticas científicas da jurisprudência, às quais fornece uma profunda dignidade racional.

4

A TEORIA ANALÍTICA DO DIREITO EM SUA CONCEPÇÃO RESTRITA

A teoria analítica do direito assumiu, na Alemanha, pelo menos duas versões distintas. A primeira é ligada a uma concepção restrita da teoria, a segunda a uma concepção alargada, mais aberta. A concepção restrita da teoria é construída sobre o rastro do empirismo lógico, do qual retoma também os motivos polêmicos contra a filosofia e o interesse pela questão do sistema. A concepção alargada, ao contrário, retoma diretamente os esquemas da concepção analítica da ciência e da filosofia analítica da linguagem e mantém uma certa distância, nem sempre definida de maneira precisa, em relação ao descritivismo sociológico de Hart383. A concepção restrita da teoria caracteriza-se pela neutralidade do saber teórico, não apenas nos conflitos de outras disciplinas que abordam o objeto, mas também nos conflitos em torno do próprio objeto, e pela não intervenção nas questões que emergem da análise do objeto: prática que, para ela, reduz-se à análise lógica. A teoria concebe, assim, sua autonomia ou neutralidade nessa tríplice referência às diversas disciplinas da ciência jurídica, ao seu objeto e às suas questões. Teoria, na expressão “teoria analítica do direito”, não tem a mesma extensão de “teoria” na expressão “teoria-prática”. Na discussão relativa à relação teoria-prática, entendia-se por teoria um conjunto de conhecimentos do objeto que derivavam sua configuração epistemológica 383

Cf. HOERSTER, Grundthesen analytischer Rechtstheorie...; WEINBERGER, O. Bemerkungen zur Grundlegung der Theorie des juristischen Denkens. In: Jahrbuch für Rechtsoziologie und Rechtsphilosophie, v. II..., p. 134-61.

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da estrutura do próprio objeto, para a qual a teoria jurídica era uma teoria normativa do direito, que copiava sua capacidade de mediação prática de seu caráter normativo: caráter próprio do objeto. Essa concepção, por um lado, levava à exclusão do saber científico de seu objeto produzido segundo o modelo teórico das ciências naturais e, por outro lado, autorizava a formulação de estruturas epistemológicas diversas, e, portanto, de modelos diversos do conhecimento, definidos ou com base em ontologias pressupostas, ou com base nos interesses que guiam o conhecimento. A consequência da exclusão do saber próprio das ciências naturais da área de pesquisa das ciências sociais levava a diversas formas de metafísica e, sempre, rompendo o postulado do empirismo, rompia a unidade da ciência, reforçando o poder da metafísica. Quando nos restringimos ao conceito de teoria como expresso na relação teoria-prática, teoria analítica é apenas uma parte daquilo que ali se entende por teoria, e divide com a filosofia e a sociologia do direito o âmbito alargado desse conceito. Naquela relação, de fato, teoria indicava conhecimento do objeto adquirido no quadro de uma filosofia (da história) que concebia a totalidade. Mas teoria, como não é um conjunto de conhecimentos, não é também um conjunto de hipóteses relativas ao objeto. A formulação de hipóteses requer uma escolha prévia nos debates sobre o direito: escolha que, enquanto endossada por um procedimento que foi demonstrado validamente nas ciências naturais, e, portanto, coerente com o postulado do empirismo, é sempre uma intervenção sobre o objeto que visa a tomar partido de uma configuração ao invés de outra. As hipóteses, de fato, não são neutras. Teoria do direito, diz o analítico Schmidt384, não é “o setor da teoria filosófica no qual são sistematizadas, em forma de uma teoria que não é falsificada, hipóteses sobre o direito justo”. Aquilo que se pretende refutar é o racionalismo crítico, com o qual a análise compartilha o empirismo, mas do qual rejeita a hipótese ética implícita na adoção do método empírico. Em seu Tratado385, de fato, Albert havia escrito que a aceitação de um método, como a do método do racionalismo crítico, implica sempre uma escolha moral, na medida em que a aceitação de um método significa a adoção de uma prática metodológica que tenha sucesso na vida social, prática que é de grande importância não apenas para a construção da teoria, para a formulação, elaboração e controle das teorias, mas também para sua aplicação, e, portanto, também para o papel do conhecimento na vida social. 384

385

SCHMIDT, J. Die Neutralität der Rechtstheorie gegenüber der Rechtsphilo sophie. Zwölf Thesen. In: Rechstheorie, 9, 1971, p. 95-9. ALBERT, Traktat über kritische Vernunft..., p. 40-1.

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Para os analíticos, a moralização da teoria, como praticada pelo racionalismo crítico, é consequência de uma intervenção instrumental da razão prática, tendente a alterar o potencial descritivo da teoria e, portanto, a desacreditar seu empirismo e sua capacidade analítica. Uma intervenção que serve para ofuscar a clareza que o saber teórico analítico conquistou distanciando-se da concepção especulativa da teoria como expressa na relação teoria-prática, e realizando no universo epistemológico o princípio moderno da divisão do trabalho. “Teoria do direito, escreve Schmidt, deve ser entendida como teoria descritiva de uma linguagem na qual ocorram essencialmente juízos de valor jurídicos” e esta linguagem “é essencialmente juízos de valor jurídicos”, é linguagem da ciência jurídica em sentido estrito: da jurisprudência (“dogmática”, “concretização do direito”, “legislação”)386. A empiricidade do direito relevante para a teoria é sua configuração linguística. O caráter normativo do objeto, porém, não prejudica a estrutura da teoria, que permanece descritiva. Descreve uma linguagem normativa, mas é neutra diante do caráter dessa linguagem. A teoria analítica, como disciplina que se coloca ao lado da filosofia do direito, da sociologia do direito e da jurisprudência (Juridik) é concebível apenas com este conteúdo. Na descrição da linguagem do direito exaure-se a capacidade da teoria como instrumento formal de controle da racionalidade do objeto. Descrição da linguagem é controle do grau de racionalidade dessa linguagem: a teoria prova o grau de consistência das proposições contidas no sistema e diz, assim, em que medida aquele sistema de proposições, e as operações do cálculo das quais o sistema se serve, são racionais. A teoria que descreve a linguagem jurídica, como linguagem na qual figuram essencialmente juízos de valor jurídicos, é uma metateoria lógica na qual figuram regras de formação, transformação e cálculo que, quando são respeitadas, o sistema da linguagem normativa prova sua consistência lógica. Schmidt escreve que a teoria do direito controla a independência e a consistência das proposições da linguagem da jurisprudência e identifica as violações destes pressupostos. Ela, todavia, não faz propostas relativas à questão de se e como eliminar as violações constatadas, mas apresenta os resultados obtidos como problemas da metodologia da jurisprudência, que retira, então, suas respostas dos campos da filosofia do direito e da sociologia do direito387.

A teoria não passa de sintaxe lógica da linguagem jurídica. Mantém, no fundo, sua neutralidade, não resolve questões, mas constata e 386 387

ALBERT, Traktat über kritische Vernunft..., p. 95-6. Idem, p. 96.

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descreve violações às regras lógicas. À teoria analítica do direito é inerente constitutivamente uma autonomia, uma separação, uma neutralidade não apenas nos debates sobre qualquer questão filosófica e sociológica, mas essencialmente nos debates sobre qualquer questão jurídica. As regras de sua sintaxe lógica são esquemas universalmente válidos, formais, e, portanto, estranhos à linguagem jurídica. Pertencem à linguagem, não ao fato de esta ser normativa: os juízos de valor que ocorrem nessa linguagem são relevantes enquanto juízos, não enquanto juízos de valor. A teoria analítica do direito é, de fato, “metateoria lógica de todo direito, independentemente de seu conteúdo de justiça”. Ela não pretende que seu ideal, independência e consistência da linguagem, e seus resultados, sejam transferidos e praticados na argumentação da ciência jurídica. A teoria tem, sobretudo, uma modesta função iluminante, que consiste em fazer à ciência do direito a pergunta de se esta, no sistema de sua linguagem, não seguiu leis diferentes daquelas seguidas com sucesso por outras ciências em seus sistemas linguísticos. O papel da teoria e seu potencial descritivo exaurem-se nessa função iluminante e nessa pergunta. A teoria não pode prescrever nenhum comportamento. Apenas no caso em que a ciência do direito queira escutar os estímulos provenientes da filosofia e da sociologia do direito, a teoria adquire para a prática científica uma função terapêutica e, portanto, normativa, na medida em que diz à ciência como deve ser construída a linguagem de um sistema de proposições independentes e consistentes; ou seja, a teoria fornece o paradigma da racionalidade formal que só pode ser preenchido por determinados estímulos extrateóricos, e caso estes se façam valer. A teoria analítica, portanto, como metalógica, não participa da argumentação jurídica, é anterior a esta, e sempre lhe é estranha. Diferentemente de outras teorias para as quais o controle da racionalidade era operado por uma comunidade de falantes, mesmo que apenas pressuposta – e sempre nascia de uma certa competência comunicativa, linguística ou crítica, mas sempre dialógica, que deveria permitir argumentar de certas formas em torno da questão do objeto – a teoria analítica se caracteriza por uma competência sintática, substancialmente solipsista, e pelo fato de que, diante da argumentação da ciência jurídica, suspende seu juízo. O ato de suspensão do juízo é relevante e qualifica a teoria analítica perante outras teorias porque, diferentemente destas, a teoria analítica não conhece seu objeto. Para ela, a suspensão do juízo não é um ato de modéstia, mas um comportamento necessário, inerente a uma prática que permanece sempre estranha ao objeto do qual é teoria. Na base desse ato de suspensão do juízo está a precariedade, o paradoxo e, ao mesmo tempo, a utilidade ideológica da teoria analítica do direito

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nessa sua versão restrita. A teoria deve suspender seu juízo porque é estranha à ciência jurídica cuja linguagem, todavia, descreve. Sua intervenção no complexo da ciência jurídica depende da intenção ou do interesse que manifesta em dar seguimento a estímulos de origem filosófica e sociológica, e, portanto, extra-teórica, e de organizá-los em uma linguagem cujas proposições sejam independentes e consistentes. Se esse interesse e, portanto, essa escolha, não são praticados, a teoria remete um esquema externo estéril a um objeto que não tem o interesse de aplicá-lo. A teoria descreve uma linguagem que pretende seguir regras diferentes daquelas da sintaxe da qual a teoria participa e estabelece metaregras que não serão seguidas. Essa situação de precariedade que define a posição da teoria nos debates da ciência jurídica é conexa à recusa da teoria a conhecer seu objeto. O conhecimento, assim como a valoração do objeto, são tarefas da filosofia: “A filosofia do direito é o horizonte crítico sobre o qual são projetados os juízos jurídicos de valor que ocorrem na linguagem”388. Objeto da filosofia são os juízos de valor jurídicos, entendidos como juízos de valor éticos, seu conhecimento, seu conteúdo de justiça. A filosofia reflete sobre o conteúdo do direito; desse conteúdo organizado e sistematizado de forma linguística, a teoria do direito descreve a linguagem. Para isto, para todas as expressões da filosofia do direito, há uma teoria do direito que tem, justamente, a tarefa de provar se cada expressão filosófico-jurídica, após a construção sistemática, satisfaz os pressupostos sintáticos citados. Mas há uma observação a ser feita. A filosofia do direito não é uma prática que se exerce sobre o direito positivo empiricamente dado: isto pressuporia a teoria do direito e a jurisprudência como práticas propedêuticas em relação à filosofia do direito, que teriam a tarefa de preparar o material empiricamente dado, de predispô-lo de certo modo e de tratá-lo segundo determinados métodos. Na concepção analítica, ao contrário, teoria e jurisprudência se exercem sobre um material cujo conteúdo é apenas a manifestação empírica dos juízos de valor jurídicos alcançados pela reflexão filosófica, que, assim, desenvolve-se independentemente da teoria e da jurisprudência, e sempre antes destas, sobre um material que não é ainda nem um fato positivo, nem um dado empírico. A filosofia do direito conhece o direito em sua forma pré-positiva, préjurídica. A filosofia do direito não conhece o direito em sua vulgar forma empírica e positiva: “conhece o direito justo”. 388

ALBERT, Traktat über kritische Vernunft..., p. 96.

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Essa conclusão, expressa na sexta tese de Schmidt, é compartilhada não apenas pelos analíticos que sustentam uma concepção restrita da teoria do direito, mas por todos os proponentes da divisão do trabalho científico no âmbito da ciência jurídica. E, portanto, também por dialéticos, críticos e realistas, como veremos. Mas com a seguinte diferença: estes atribuem à filosofia a capacidade de refletir sobre o direito positivo, para eles – qualquer que seja a relevância atribuída a um ou outro dos dois tipos de conhecimento e qualquer gradação que se estabeleça entre eles – todo complexo epistemológico dispõe de pelo menos dois tipos de conhecimento do direito. Diferentemente, a concepção analítica, que nega à teoria a tarefa de conhecer seu objeto, mesmo que apenas em sua resolução linguística, dispõe de uma única possibilidade cognitiva do direito: a filosófica. Com este primeiro paradoxo: a filosofia do empirismo conhece apenas o direito justo, ou seja, o direito em sua forma pré-jurídica, pré-histórica. Porém, aqui surge, do paradoxo, um problema, que tem razão de existir independentemente do paradoxo do qual nasce: o problema de se o direito justo, que a filosofia do empirismo conhece, é diferente do direito positivo. Nossa hipótese é de que o direito que a filosofia conhece não é diferente do direito como dado empírico sobre o qual operam a ciência e a teoria. Nossa hipótese encontra plena confirmação na décima primeira tese de Schmidt. Nessa tese, Schmidt teoriza o encontro entre teoria e filosofia do direito na metodologia da jurisprudência. A metodologia jurídica na qual filosofia e teoria são conservadas e superadas realiza, com o processo de decisão judicial, o processo de “conhecimento do direito justo na lei e nas decisões individuais”389. Nesse processo, filosofia e teoria do direito exercem o papel que havíamos descrito, mas finalmente se encontram, fundem-se e, assim, revelam a verdade que se esconde no empirismo, revelam o direito justo na lei e nas decisões individuais. A metodologia da jurisprudência reunifica as várias prestações que derivam da divisão do trabalho científico em um esforço comum de conhecimento da justiça contida na lei e nas decisões individuais. O segundo paradoxo próprio da teoria analítica consiste, portanto, no seguinte: a suspensão do juízo, efetuada para manter o nível metalógico que a teoria se impõe, resolve-se em um processo de eticização no qual a metodologia envolve ao mesmo tempo teoria e filosofia para realizar a revelação da justiça no direito positivo. Revelação que, na medida em que é operada com instrumentos descritivos como aqueles dos quais 389

ALBERT, Traktat über kritische Vernunft..., p. 97.

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dispõe a teoria, autoriza inferir, como conclusão, a identidade escondida entre justiça e empirismo, direito justo e direito positivo, identidade que emerge da descrição da consistência e da independência das proposições da jurisprudência. Para a concepção analítica, a metalógica e o cálculo que definem a verdade formal adéquam a verdade material escondida, já intuída, contudo, pela filosofia. Assim como, em Savigny, método e sistema encontram-se na filosofia, na concepção analítica, teoria e filosofia encontram-se na metodologia para conhecer o “direito justo na lei e nas decisões individuais”. A situação da teoria analítica do direito é particular. Mas é justamente dessa situação particular, na qual a teoria se equilibra entre precariedade e paradoxo, que surge a utilidade ideológica da teoria. Suspendendo o juízo, a teoria legitima-se e prova-se como a racionalidade formal, permeável, porque neutra e porque se recusa a conhecer o objeto, a toda operação que pretenda conhecer metodologicamente o direito justo na lei. Em outros termos, a neutralidade, que a teoria compartilha com toda metodologia jurídica, comporta um preciso comprometimento ideológico e, portanto, moral, para a teoria, de fazer falar ao direito positivo a linguagem da justiça.

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A TEORIA ANALÍTICA DO DIREITO EM SUA VERSÃO LIBERAL

Paralelamente a essa concepção restrita da teoria analítica do direito, desenvolveu-se uma concepção mais abrangente, mais liberal, que considera a teoria do direito como teoria analítica da ciência jurídica. A teoria define, assim, a forma da racionalidade de todas as práticas científicas sobre o direito e é, ao mesmo tempo, saber teórico do objeto e fundamento da ciência. Essa concepção refuta a delimitação do objeto da teoria “àquilo que é científico” (das Wissenschaftliche) no direito. O objeto da teoria é o ordenamento jurídico como sistema teórico, ou seja, o conjunto de todas as proposições relativas a um ordenamento jurídico. Uma formulação da teoria analítica do direito entendida desse modo alargado e liberal foi feita por Priester390. Ele atribui à teoria dois escopos complementares: a teoria deve estimular a ciência jurídica e, 390

PRIESTER, J.-M. Rechtstheorie als analytische Wissenschaftstheorie. In: AAVV, Rechtstheorie. Beiträge zur Grundlagendiskussion..., p. 13-61.

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perseguindo um interesse puramente filosófico, deve estender “o nosso saber sobre o direito, o nosso saber relativo a práticas racionais com juízos de valor”391. Em relação a esses escopos, a teoria do direito significa “ciência pura” do direito e “ciência auxiliar” do direito. O conceito de teoria assim estendido não é mais sujeito à precariedade que caracterizava a concepção restrita. Ele permeia toda construção científica do direito, com a pretensão de garantir e controlar em todas as práticas argumentativas o uso da razão formal analítica. Como ciência pura e ciência auxiliar do direito, a teoria analítica é instrumento de adequação racional, formal, da realidade empírica do direito na totalidade de suas expressões. Como ciência pura, a teoria responde a um interesse puramente filosófico: filosófico não no sentido que se atribui à prática filosófica, entendida como pesquisa das estruturas axiológicas do direito, mas no sentido dado à filosofia como conjunto de práticas que buscam fornecer respostas para problemas que vão além de nossa experiência cotidiana. Trata-se, precisa Priester, do interesse em provar que são privadas de sentido, ou mal colocadas, infrutíferas ou indecidíveis questões relativas à nossa experiência cotidiana. As questões guiadas pelo interesse filosófico da teoria do direito são aquelas relativas ao caráter científico dos juízos de valor, relativas aos métodos de conhecimento seguidos pela jurisprudência, ao tipo de argumentação usado, às conexões estabelecidas entre fatispécies e consequências normativas, ao critério de evidência empírica como critério de verdade, aos problemas da argumentação racional com juízos de valor jurídico, à relação entre o sentido do direito (Rechtsgefühl) e as motivações da sentença, mas também a todas as outras questões que se encontram na experiência do direito e para as quais é necessário dar uma resposta, tomando partido, pela argumentação racional, empiricamente verificável, antimetafísica. Se, como “ciência pura” do direito, a teoria é guiada por um interesse exclusivamente cognitivo, como “ciência auxiliar”, visa a ter um caráter prevalentemente prático no interior da ciência jurídica e a fornecer instrumentos racionais para a decisão de problemas que não seriam decidíveis e que, portanto, não poderiam ser tratados adequadamente com os meios dos quais dispõe o aparato exclusivamente dogmático do direito. Neste seu papel, a teoria do direito esclarece preventivamente os pontos de vista subjacentes a determinadas controvérsias dogmáticas e fornece uma solução racional do conflito, ajudando a discutir racionalmente a 391

PRIESTER, J.-M. Rechtstheorie als analytische Wissenschaftstheorie. In: AAVV, Rechtstheorie. Beiträge zur Grundlagendiskussion..., p. 46-7.

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fundamentação e a consistência das teorias e suas consequências após a decisão do caso. A teoria do direito pode agir também diretamente e imediatamente sobre essas questões dogmáticas, no sentido de que prova que na fatispécie subsiste um problema aparente, ou no sentido de que demonstra a verdade ou falsidade de uma teoria: nesses casos, a teoria expõe de maneira fundamentada “aquilo do que propriamente se trata”392. Por último, a teoria do direito permite resolver diretamente o conflito existente entre duas teorias rivais, na medida em que fornece os critérios para a construção delas mesmas. Priester pode definir, assim, a teoria analítica do direito, indicando, ao mesmo tempo, seu lugar nos debates da jurisprudência, como “uma metaciência da ciência jurídica”, e precisando que em seu caráter mais propriamente filosófico, esta analisa, com base em um interesse geral orientado para a teoria da ciência, o comportamento da ciência jurídica na solução de seus problemas; aqui, ela é ciência dos fundamentos da ciência jurídica. Suas funções auxiliares subordinadas à prática, ela exerce no sentido de esclarecer as controvérsias dogmáticas, provar sua irrelevância, ou decidi-las diretamente. Ela, todavia, não constrói princípios de comportamento para a jurisprudência393.

O conceito alargado de teoria do direito construído por Priester caracteriza-se pelo fato de ser ligado ao objeto de maneira mais orgânica e direta do que aquele conceito restrito apresentado por Schmidt. Priester pretende oferecer um modelo de teoria do direito que, por meio da solução linguística do objeto, o exaure em sua racionalidade, um modelo de teoria não estranha ao direito, indiferente a este como a qualquer outro objeto, mas totalmente apropriada a este e capaz de adequá-lo na forma específica de sua racionalidade. A teoria pretende ser, ao mesmo tempo, o instrumento e a medida da racionalidade das práticas científicas e da racionalidade do objeto ao qual estas se aplicam. O pressuposto da racionalidade do objeto é a condição de possibilidade da teoria analítica como teoria do direito, como aparato capaz de adequar especificamente seu objeto. Portanto, o problema da racionalidade é fundamental, não apenas na medida em que qualifica a teoria, mas também enquanto, pelo papel de mediação do objeto envolvido pela teoria, qualifica o próprio objeto. Trata-se de uma racionalidade que é própria tanto da ciência 392

393

PRIESTER, J.-M. Rechtstheorie als analytische Wissenschaftstheorie. In: AAVV, Rechtstheorie. Beiträge zur Grundlagendiskussion..., p. 51. Idem, p. 56-7.

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quanto de seu objeto. As práticas científicas, de fato, são o instrumento mediante o qual a racionalidade da qual o objeto é capaz, da qual este é portador, vem à luz por sua concretização linguística. A teoria é o fundamento de todas as práticas que tendem a explicitar e estabelecer o potencial de racionalidade contido no objeto e a controlar os desvios aos quais práticas equivocadas podem levar. O filtro da linguagem, sobre o qual a teoria analítica se apóia, é a garantia de que a racionalidade inerente ao objeto é comunicável, empiricamente constatável e, portanto, evidente e objetiva. A teoria analítica é, pois, esta mediação formal pela qual se explicita a racionalidade material interna ao direito, é a mediação formal que garante que essa racionalidade seja expressa também nos resultados da ciência jurídica, nos êxitos de suas práticas. Portanto, a teoria analítica, nessa sua versão alargada e liberal, deve tomar partido pelo objeto. Não pode mais suspender o juízo nos debates sobre o direito, na medida em que não se considera mais como esquema externo de racionalidade formal aplicado a uma manifestação genérica da realidade empírica, não é mais sintaxe. A teoria alargada é a teoria analítica da racionalidade de uma forma específica da realidade empírica. O direito, como sistema racional, não é mais o objeto genérico da teoria, assim como a teoria não é mais um esquema precário nos debates sobre o direito. As precariedades recíprocas, do objeto e do esquema, são superadas na concepção liberal de uma teoria que media a racionalidade específica inerente ao objeto. Essa inerência da racionalidade formal ao “juiz” e à “parte” atribui à teoria uma posição diferente daquela que a teoria conquistara na concepção restrita: agora, a teoria não apenas rejeita qualquer posição precária, mas também foge dos paradoxos nos quais podia incorrer, e parece fazer desaparecer, nessa versão, o caráter do cientificismo que os “dialéticos” reprovavam na epistemologia analítica; ou seja, o fato de que os esquemas da teoria fossem sempre quadros formais externos aplicados ao objeto e, portanto, pretendessem ser garantias formais a priori da racionalidade para um objeto que não poderia ser obrigado a esta racionalidade. Diferentemente, aqui, a racionalidade formal é o princípio que liga a teoria a seu objeto. A teoria reencontra o objeto por meio da descrição ou análise da linguagem, o modelo de sua racionalidade, corrige os desvios desse modelo e unifica, assim, o poder descritivo e prescritivo da razão analítica – prescritivo no sentido de que, onde a razão prática descobre infrações, diz não apenas do que se trata, mas como se deve resolver a questão no plano formal, racional. A teoria analítica é o fundamento da ciência jurídica justamente porque esta é a mediação formal da razão analítica do direito e da ciência jurídica. Se considerarmos a relação dogmática-teoria do direito, temos

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indicações claras sobre o modo como acontece esta mediação. É o caso da tese formulada por Günter Jahr. A dogmática, ele escreve, é “o controle científico, feito com base nas proposições jurídicas vigentes, nas afirmações de validade relativas às proposições jurídicas no interior de um ordenamento jurídico”394. E fazer uma afirmação de validade sobre uma proposição jurídica significa formular uma proposição que exprime que determinados casos, pensados como reais, devem ser decididos no modo expresso na afirmação de validade. Os conceitos dogmáticos formam sistemas axiomáticos segundo critérios de correção válidos para a construção de conceitos dogmáticos ulteriores a partir desses dados. Portanto, a dogmática jurídica, diz Jahr, interessa-se por estabelecer o conteúdo do direito, a teoria do direito, por outro lado, interessa-se pelo problema da racionalidade do direito, ou seja, pelo problema da cientificidade da ciência jurídica em sentido estrito: ou seja, por estabelecer e controlar determinados procedimentos segundo os quais, quando são respeitados, o conteúdo do direito estabelecido pela operação dogmática responde aos princípios de consistência formal exigidos pela própria teoria. Controle da racionalidade significa, portanto, mais propriamente, controle do método da dogmática. “Objeto da teoria do direito, conclui Jahr, é, assim, essencialmente, o método da dogmática jurídica”395. A racionalidade que a teoria deve controlar é a racionalidade do método, a racionalidade das operações que regulam as discussões sobre a correção das afirmações de validade relativas a proposições jurídicas cujos conteúdos a dogmática se interessa em estabelecer, organizar, controlar, operacionalizar. A lógica do método é, portanto, substancialmente a lógica que regula um conjunto de operações capazes de adequar a racionalidade formal e material do direito. O direito, na teoria analítica, é um produto da razão analítica.

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AVENTURAS DA EPISTEMOLOGIA E METAMORFOSES DO DIREITO

É difícil unificar o racionalismo crítico e a teoria analítica da ciência no plano do positivismo, como pretendem os “dialéticos”, cuja pretensão deriva mais da tentativa de desacreditar concepções não dialéticas da ciência e da sociedade do que de uma reflexão com fundamento em ques394

395

JAHR, G. Zum Verhältnis von Rechtstheorie und Rechtsdogmatik. In: AAVV, Rechtstheorie. Beiträge zur Grundlagendiskussion..., p. 303-11, p. 303. Idem, p. 311.

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tões epistemológicas. A invenção dialética, de fato, revela-se em toda sua inconsistência não tanto diante da autocompreensão antipositivista das “epistemologias analíticas”, quanto diante de considerações metateóricas que têm como objeto as teorias como universos epistemológicos no interior dos quais se legitimam determinadas práticas. Se submetermos as epistemologias analíticas, e, com estas, também a epistemologia dialética, a esse tipo de consideração, será possível estabelecer, então, junto com a inconsistência da pretensão dialética, um caminho longo em que as três epistemologias se encontram devido a uma operação comum que exercem sobre o direito. E, portanto, elas são catalogáveis de modo que esse aspecto unitário se destaque. Entretanto, apresentam uma diferença específica que nos leva a distinguir a teoria analítica como epistemologia constitutivamente diversa das teorias criticista e dialética. Não obstante a profunda diversidade dos fundamentos sobre os quais as três epistemologias são construídas, as diversas pretensões que elas desenvolvem, os diversos interesses teóricos que perseguem, todas abrem um certo mal estar nos debates sobre o direito. Aos seus olhos, o direito não pode ser apenas um fato positivo, uma instituição social que se coloca antes do peso das relações das quais se forma, um conjunto de normas, um ordenamento coercitivo do comportamento humano: aos seus olhos, o direito não é apenas isto, ou não é absolutamente isto. É, de qualquer maneira, sempre algo que se coloca antes no plano ontológico, uma qualidade que é própria da teoria, e que se tornando – com base na intervenção da própria teoria – propriedade ou qualidade do direito, o transforma e lhe permite realizar aquele salto epistemológico necessário para que este se torne objeto da teoria. Essa metamorfose teórica, à qual o direito deve se submeter para poder ser inscrito no interior dos diversos complexos epistemológicos, é o elemento que unifica concepções da ciência e da sociedade tão diversas entre si. Essa metamorfose do direito, porém, diminui as distâncias epistemológicas entre as várias concepções e coloca todas em um único plano como tentativas de reforçar e estabilizar o direito, pela legitimação do direito como objeto das teorias, segundo um mecanismo que, com o deslocamento do objeto, cria a ilusão puramente ótica de sua transformação real. A transformação real é, opostamente, apenas uma metamorfose teórica. O direito positivo, o conjunto de normas que compõem o ordenamento jurídico da sociedade, torna-se, portanto, para a teoria dialética, direito crítico, para o racionalismo crítico, hipótese racionalmente falsificável e, para a teoria analítica, fato racional. Por meio dessas metamorfoses teóricas, as epistemologias esforçam-se para legitimar a estabilização do direito existente seguindo, cada qual, sentidos teóricos diferentes que,

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porém, ao final, convergem, não apenas porque todos nascem de operações de transformação do direito fundadas na hipótese de que a realidade se adéque à teoria, e não que a teoria se adéque à realidade, mas que convergem por serem todas destinadas à falência teórica. De fato, o misticismo que subentende a metamorfose do direito, e, com ele, todas as práticas teóricas derivadas, leva à seguinte situação: a teoria transforma o objeto não por explicá-lo ou compreendê-lo, mas por explicar e expor a si mesma como verdadeira através do objeto, não obstante a dureza e resistência que este lhe opõe. Motivo pelo qual, diante da resistência do objeto, a teoria se rompe e revela sua impotência. Se agora considerarmos brevemente os processos pelos quais cada epistemologia realiza a metamorfose necessária do direito, podemos evidenciar, ao mesmo tempo, a linha que elas dividem e a que as separa. A concepção dialética da sociedade entende o direito como instância que participa do projeto utópico da emancipação social. O direito possui essa capacidade não enquanto fato positivo: um fato positivo, na verdade, especialmente se seu “sentido” é deformado ou reprimido, dificilmente pode ser uma instância emancipatória. Essa capacidade, o direito a adquire justamente porque, para a teoria, este não é um fato positivo, materialisticamente entendido, mas é ontologicamente um fato crítico. O direito, diz a teoria, é direito crítico. Como instituição positiva, material, o direito não é objeto da teoria dialética, e nem mesmo como simples “conexão de sentido” consegue se fazer penetrar pela teoria. O direito é teoricamente concebível pela concepção dialética como “modo da reflexividade situacional”396, como direito crítico397. E, de fato, apenas o postulado de que o direito seja crítico verifica a concepção dialética, que coloca a emancipação da sociedade na recuperação do sentido distorcido, na recuperação do autêntico, da coisa para a instância de seu conceito. A metamorfose de um fato real em um postulado crítico permite à teoria reportar a realidade ao conceito emancipatório de si mesma. O direito positivo, transformado em hipótese crítica e liberado do peso material da positividade, ou seja, reconduzido ao conceito de si mesmo predisposto pela teoria, pode ser entendido no interior de uma filosofia emancipatória da história, que realiza, assim, o projeto utópico da emancipação social também por meio do direito, isto é, realiza a emancipação social no direito como forma do abstrato. A hipótese jurídica reforça a capacidade projetante e emancipatória da teoria, que, junto aos pragmáticos universais 396

397

BÖHLER, Zu einer historisch-dialektischen Rekonstruktion des bürgerlichen Rechts..., p. 112. PAUL, Das Programm marxistischer Rechtstheorie..., p. 224.

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do discurso, agora pode consumar criticamente também a “reflexividade situacional”, ou seja, o direito. A teoria dialética, portanto, é uma teoria metajurídica do direito que se rege pela metamorfose crítica do objeto: é uma concepção da sociedade que recupera o direito positivo transfigurado em um projeto universal de emancipação. Ela, por isto, não explica positivamente o fato, mas o reconstrói segundo seu conceito: o direito da concepção dialética é, para usar uma expressão de Habermas, uma ficção da filosofia da história, de uma filosofia da história que, não podendo conceber as instituições no interior das relações sociais materiais, as usa em sua imagem crítica sublimada. De maneira muito diferente procede o racionalismo crítico, que declara abertamente o fato de considerar a positividade do direito como ponto de partida, e de pretender evitar, assim, qualquer transfiguração dialética da sociedade, da qual se aproxima com os instrumentos apresentados pela ciências naturais. O racionalismo crítico autodefine-se como filosofia e teoria da ciência situada entre duas posições teórico-cognitivas extremas, racionalismo e positivismo, e pretende realizar a síntese de ambas. E a síntese é realizada do seguinte modo: a teoria fixa hipóteses cognitivas sobre a realidade empírica, sobre essas hipóteses intervém a razão como instância crítica e falsificante da própria teoria, e, portanto, das hipóteses que a teoria elaborou sobre os fatos. A razão é instância crítica justamente porque é razão, é discernimento do melhor, é vontade política de melhoramento, de transformação, é razão prática, instância moral, censura da teoria. Na epistemologia jurídica, a simples falsificação das hipóteses teóricas sobre o direito, elaboradas pelas diversas práticas jurídicas, assim como a falsificação da teoria que formula as hipóteses, não realiza nenhuma instância crítica da razão que seja capaz de alcançar a instituição jurídica e danificá-la: o direito, como fato positivo, permanece intacto, sólido em sua consistência e impenetrável diante de qualquer falsificação que se limite às hipóteses da teoria. A falsificação das hipóteses sobre o direito, se este permanece uma instituição histórica, uma instituição material construída em processos não teóricos, leva a resultados que não incidem sobre o objeto; leva, no máximo, à necessidade de elaborar novas hipóteses, e à consequente possibilidade de falsificá-las. É neste ponto que se faz necessária a metamorfose: hipotética, e, portanto, falsificável, não é mais apenas a teoria, mas justamente aquela realidade positiva e material sobre a qual a teoria era originariamente construída. Transformado em hipótese, o direito é falsificável exatamente como a teoria que o pensa; a jurisprudência para de operar com dogmas, não criticáveis e não falsificáveis, e começa a operar com hipóteses: hipóteses jurídicas. Desse modo, a jurisprudência se livra do peso teológico da

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dogmática, e torna-se tecnologia social, ou seja, ciência que programa as hipóteses prevendo, ao mesmo tempo, os modos de falsificação, isto é, de transformação. Transformado em hipótese falsificável, limpo da petrificação histórica e material que trazia consigo antes, o direito é consumável no projeto reformista de uma filosofia pragmática da história e da política. Portanto, o racionalismo crítico é uma teoria metajurídica do direito que se rege pela metamorfose do direito positivo em experimento da razão, em experimento reformável da mesma razão pragmática que o melhora no quadro de um projeto que afeta toda a sociedade. Esse projeto tecnológico, legitimado por uma filosofia pragmática da história, usa a hipótese jurídica como instrumento controlável, falsificável, de uma política pragmática e reformista como hipótese realística, planificável pelo modelo socialdemocrata da sociedade burguesa. O racionalismo crítico é a filosofia oficial da socialdemocracia alemã, e é também, no complexo da epistemologia jurídica, a concepção do direito que, rompendo com os dogmas indemonstráveis do jusnaturalismo e do positivismo, tentou legitimar a razão pragmática da socialdemocracia alemã, vencedora politicamente, contra aqueles dogmas, como a razão crítica do iluminismo. A técnica social do pragmatismo socialdemocrata pode, assim, usar o direito, depois de tê-lo legitimado transfigurando-o em hipótese da razão iluminista falsificável pela razão pragmática. Esse método visa a transformar a racionalidade e a crítica em formas de legitimação institucional da democracia formal, por meio da metamorfose da razão iluminista na razão pragmática. Por isso, a filosofia que o usa é uma concepção moralizante do realismo e do empirismo político assim como das escolhas pragmáticas de uma organização política do capitalismo avançado, construída com base no direito como hipótese, na realidade, sempre falsificável. Por último, aquilo que qualifica a teoria analítica em relação às epistemologias que havíamos considerado é sua pretensão de permanecer restrita ao direito positivo, e, portanto, de se apresentar como análise, construção lógica, sistemática, como descrição de sua forma: em outros termos, sua pretensão de ser uma teoria jurídica do direito, que enxerga na positividade empírica do objeto não um obstáculo epistemológico, mas a condição de possibilidade de qualquer reflexão teórica. As reflexões que a teoria analítica do direito desenvolve sobre seu objeto visam a reconstruir este objeto na forma da racionalidade da qual a teoria é modelo. Para efetuar essa reconstrução, porém, não é suficiente resolver linguisticamente o objeto, na medida em que essa resolução tornaria possível apenas uma análise do direito como universo dotado de significado, ou como instrumento da comunicação, mas não permitiria aplicar ao direito

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os esquemas formais da teoria, que servem para estabelecer o grau de racionalidade do sistema de proposições. A operação é possível apenas com base no pressuposto de que ao objeto é inerente a mesma racionalidade formal que porta o modelo da teoria; ou seja, o direito é acessível à teoria não como fato positivo, mesmo se considerado em sua forma pura independentemente de qualquer relevância metajurídica, mas na medida em que é, ao mesmo tempo, racionalidade formal que a teoria ressalta e reconstitui pela análise e descrição. Portanto, para a teoria analítica, a metamorfose do direito, de fato empírico, considerado na pureza de sua forma, para fato racional é, por um lado, o pressuposto epistemológico da “praticabilidade” analítica do objeto e, por outro, é o pressuposto da positividade da teoria, a condição de possibilidade de uma teoria analítica do direito que não abandona a perspectiva empírica, positiva, na consideração formal do direito, em favor de uma perspectiva metajurídica. Essa imanência pura, descritiva, analítica do objeto e a consequente recusa de uma concepção instrumental do direito fazem da teoria analítica a única teoria positiva do direito. Agora se delineia, finalmente, o terreno de convergência da epistemologia que havíamos considerado. O direito moderno devia ser construído teoricamente, tinha necessidade de fundamentos teóricos capazes de pensar e produzir sua consolidação e sua estabilização, pedia que isso acontecesse por um procedimento diverso daquele seguido pela epistemologia jurídica no modelo clássico: ou seja, pedia uma fundação teórica capaz de legitimar sua estabilização. Mas, para as epistemologias das quais falamos, o direito constitui um obstáculo epistemológico não superável, na medida em que nenhuma delas se coloca nem o problema da forma jurídica, nem o problema da abstração jurídica, nem o problema relativo ao lugar de produção dessa forma e dessa abstração. A incapacidade de se colocar esses problemas transforma-se em impotência epistemológica dos sistemas teóricos e no insucesso da tentativa de legitimação. Diante desse obstáculo, essas epistemologias são impotentes: o obstáculo permanece duro e impenetrável em sua solidez material. Portanto, elas elaboram uma estratégia unitária a fim de tornar o objeto teoricamente consumável: atribuem ao objeto qualidades e propriedades que são conotações específicas que as teorias pretendem para si mesmas e que as definem diante das outras teorias. Dessa forma, o direito aparece como portador dessas qualidades extraídas das teorias, não aparece mais como si mesmo, mas como qualidades que se impõem a ele. Na realidade, o direito conserva totalmente intacto o peso material de sua positividade não abalada e não penetrada, e à teoria, que retorna a ele, apresenta aque-

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las qualidades, que esta mesma o atribuíra a fim de, de acordo com o caso, dialetizá-lo, falsificá-lo, controlá-lo descrevendo-o. Desse modo, as teorias sempre verificam a validade ou falsificabilidade das serventias teóricas que estas mesmas reconheceram ao direito. A metamorfose pela qual o direito passa é apenas teórica e serve para legitimar o direito da teoria. Mas, uma vez que o obstáculo epistemológico é apenas velado, pudicamente encoberto, a legitimação não se estende ao direito realmente existente, que permanece impenetrável em relação às teorias. Portanto, nas epistemologias que havíamos considerado, converge uma ideologia que, obrigada a buscar uma legitimação teórica e política, reflete sobre si mesma, criando a ilusão de refletir sobre a realidade. Mas nesse terreno de convergência, no qual se cumpre a operação unitária de metamorfose do direito, delineia-se também o longo caminho no qual se dispõem, de um lado, a concepção dialética e o racionalismo crítico e, de outro, a teoria analítica, como dois universos completamente diferentes da epistemologia jurídica. As duas primeiras concepções qualificam-se por seu interesse projetante, por sua dependência de uma filosofia da história que configura ficções ou hipóteses do direito utópicas ou pragmaticamente realísticas, projetadas para o futuro: sobre a metamorfose do direito, constroem uma deontologia de contornos diversos, mas, de qualquer forma, expressões de um pensamento cujo problema é mais o futuro como lugar de cura do presente do que o presente como existência autônoma. Diferentemente, a teoria analítica qualifica-se por permanecer atrelada ao presente e à sua autonomia, por sua recusa em formular hipóteses ou projetos do direito futuro construídos com base na “ficção” do presente. Pretende exaurir o direito justamente na forma de sua existência empírica. O ponto de apoio momentâneo da teoria do direito é assinalado, portanto, por esta vinculação da teoria a duas posições que, em sua irredutibilidade, configuram a trágica alternativa da epistemologia jurídica alemã contemporânea: ela só consegue refletir sobre o presente se o pressupõe como racional, ou refletir sobre o futuro se o considera uma “ficção” ou uma hipótese pragmática. Presa nessa alternativa, a ideologia jurídica alemã não encontra outras estradas para percorrer. Resta-lhe apenas a possibilidade de recorrer à sua inexaurível força dialética e de tentar mais uma vez uma mediação na qual os termos da alternativa sejam conservados e apresentados em uma unidade superior. Também em relação a esta alternativa, privada de saídas, o pensamento jurídico soube buscar a mediação dialética: buscou recompor em um complexo unitário a análise do presente, a razão formal

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do direito, e o projeto crítico do futuro direito humano, como ficção na qual aquela razão é projetada e realizada. A mediação dialética da filosofia da história como projeto utópico, e da abstração do presente como forma racional, concluem a parábola da teoria alemã do direito. Esse complexo epistemológico ao qual Maihofer, por uma estranha ironia, há alguns anos, deu o nome de “jurisprudência realista” reúne e apresenta de forma dialética e unitária a ciência jurídica alemã contemporânea e conclui a história das tentativas falhas de legitimação teórica do direito burguês na busca, de agora quase trinta anos, por uma epistemologia da estabilização.

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4 A JURISPRUDÊNCIA REALISTA 1

O REALISMO JURÍDICO ALEMÃO

Quando se fala de realismo jurídico, é necessário precisar, desde já, que, além de um realismo norte-americano e de um realismo escandinavo, existe também um realismo alemão398. O primeiro realismo encontrou pouco interesse na Alemanha; o segundo passou quase totalmente inobservado; diferentemente, o realismo nacional, que vive mais do recurso ao passado do que do pensamento do presente, reuniu a herança das epistemologias que o precederam e procurou afirmar-se como mediação dialética da parcialidade de suas concepções e como superação de seus insucessos399. O realismo alemão nasce do pensamento ontológico do direito e afunda suas raízes no debate dos anos cinquenta sobre o direito natural concreto, sobre a natureza da coisa, sobre konkretes Ordnungsdenken [pensamento da ordem concreta], sobre a justiça imanente às estruturas da sociedade humana400: substancialmente, esse realismo nasce com base naquele pensamento que havíamos definido como pensamento da alienação. Mas se diferencia deste. No sentido de que, enquanto aquele pensa398

399

400

MAIHOFER, W. Realistische Jurisprudenz. In: AAVV, Rechstheorie. Beiträge zur Grundlagendiskussion..., p. 427-70. Cf. MAIHOFER, W. Zum Verhältnis von Rechtssoziologie und Rechtstheorie. In: AAVV, Rechtsteorie. Beiträge zur Grundlagendiskussion..., p. 247-302; Id, Rechtstheorie als Basisdiziplin der Jurisprudenz. In: Jahrbuch für Rechtssoziologie und Rechtstheorie, v. II..., p. 51-78. Sobre o ‘realismo’ de Maihofer cf. I. Maus, Die Basis als Überbau oder: ‘Realistische’ Rechtstheorie. In: AAVV, Probleme der marxistischen Rechtstheorie..., p. 484-513. Estes temas retomados por Maihofer em Realistische Jurisprudenz (cit.) foram desenvolvidos por ele antes em vários escritos; cf. Die Natur der Sache. In: AAVV, Die ontologische Begründung des Rechts..., p. 52-86, sobre os quais BARATTA, A. Natur der Sache und Naturrecht, Idem, p. 104-63.

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mento era de natureza essencialmente filosófica, e se exauria na fundação filosófica do direito, o realismo jurídico atribui à filosofia uma tarefa específica e delimitada – a reflexão sobre as estruturas axiológicas do direito – que a define como disciplina jurídica ao lado das outras e fixa, diferentemente, sua atenção e seu interesse principal na teoria do direito. Na epistemologia jurídica contemporânea, o realismo jurídico reconhece uma carência de fundo que deriva do fato de que as diversas teorias desenvolveram suas reflexões sobre o direito limitando-se cada uma a uma dimensão específica do complexo fenômeno jurídico, negligenciando as outras e, assim, privando-se da possibilidade de observar justamente a característica específica do fenômeno jurídico, que é dada pela multiplicidade de suas dimensões. E, de fato, as teorias até então desenvolvidas ou são apenas “teorias do conhecimento” (Erkenntnistheorien) do direito das quais é afastada a consideração dos problemas relativos ao direito futuro a ser agora construído; ou são apenas construções auxiliares em relação à dogmática jurídica, para a qual fornecem instrumentos de análise e de pesquisa, das quais se afasta a possibilidade de desenvolver reflexões teóricas sobre o direito que não sejam destinadas a um uso dogmático; ou, por último, são teorias que projetam o direito futuro sem, todavia, permitir à antecipação do futuro, que teorizam, uma pesquisa relativa às estruturas reais do direito existente. Além disso, na epistemologia jurídica produziu-se um fechamento entre as diversas construções teóricas, um fechamento que impediu que as exigências oportunamente levantadas por um modelo teórico fossem levadas em consideração também por modelos teóricos antagonistas, os quais, assim, movidos por interesses diversos, eram levados, de modo preconceituoso, a negligenciar instâncias oportunas e válidas. A setorização das instâncias teóricas produzida, a exclusividade com a qual se satisfaziam as teorias e o muro criado entre os compartimentos que definem as várias formas do saber jurídico inibiram a capacidade da teoria jurídica de se adequar à totalidade das dimensões de seu objeto. Consideremos, por exemplo, o confronto interminável entre a concepção idealista do direito e a concepção materialista, ou o confronto, até hoje também não resolvido na ciência jurídica, entre jusnaturalismo e positivismo jurídico. Cada uma dessas concepções nascia com base na sedimentação de uma dimensão do direito com a exclusão das outras; a teoria procurava o elemento ideal do direito e excluía de seu raio de incidência a consideração das estruturas materiais que definem um aspecto do fenômeno jurídico do qual não se pode prescindir, ou a teoria fixava seu interesse na positividade do direito, excluindo como não científica a

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consideração da eticidade do fenômeno jurídico, que vai além da positividade e se impõe a ela. O realismo jurídico pretende superar essa setorização do direito, considera o fenômeno jurídico como um complexo fenômeno social inerente à estrutura ontológica do ser social. Esse fenômeno, por sua positividade, exprime o ideal da “coisa direito”: um ideal ao qual o positivo continuamente se esforça para se adequar e que tem seu lugar de produção nas profundas estruturas da realidade social401. O realismo considera esse complexo fenômeno social em sua totalidade, que é, ao mesmo tempo, realidade e idealidade do direito, e descarta como parciais aquelas teorias que se limitam a uma consideração unidimensional do direito, negando-lhe, assim, a característica essencial que é dada justamente por sua multidimensionalidade. Todavia, o escopo do realismo não é apenas o de observar a totalidade das dimensões do fenômeno jurídico, mas também o de integrar as perspectivas desse fenômeno que historicismo e positivismo petrificaram na sedimentação do passado ou do presente. A concepção historicista, que criou os pressupostos para a fundação da ciência jurídica, fez desta, já no momento de seu nascimento, uma ciência do passado, uma Vergangenheitswissenschaft, como diz Maihofer. Para Savigny, o presente é a continuação do passado que vive nele, que o realiza; o direito presente é produzido, mas também criticado à luz deste passado, enquanto o direito válido é controlado na medida do grau de qualidade do direito antigo que nele sobrevive. Diante desta redução da teoria do direito a “ciência das fontes”, o positivismo declara que a teoria é Erkenntniswissenschaft [epistemologia], que ela deve conhecer o direito positivo, ou seja, o existente, válido. O positivismo impõe, assim, uma concepção legalista do direito, vincula a atividade da ciência ao presente e reduz a teoria do direito a mera apologia do existente. Dessa forma, do domínio da teoria do direito é excluída a política do direito, a ciência da legislação, e toda reflexão da jurisprudência se cristaliza e se esteriliza na dogmática jurídica. É tarefa da epistemologia jurídica superar esse impasse no qual se reteve a jurisprudência e no qual o direito, como universo social vivo que continuamente se reproduz, sofre profundas rupturas. O realismo jurídico constitui uma alternativa total em relação à parcialidade das outras concepções: entende a ciência jurídica como ciência social projetada para o futuro, como Zukunftswissenschaft, diz Maihofer402. Diante do 401 402

Cf. MAIHOFER, Realistische Jurisprudenz..., p. 440 ss. Idem, p. 434 ss.

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historicismo e do positivismo, a concepção realista do direito integra o objeto da ciência, considerando não apenas o direito que já é, mas também o direito que ainda não é. O realismo entende o direito como pressuposto (Voraussetzung), como antecipação do futuro do homem, como projeto de relações sociais futuras a serem construídas com base no conhecimento do presente, não como sedimentação da positividade do direito, mas como perspectiva que se realiza apenas na antecipação do futuro. Portanto, o realismo vê seu interesse fundamental na construção científica do universo jurídico positivo e na projeção do direito futuro, não no sentido de uma projeção ideal ou utópica, mas como produto da pesquisa teórica de uma ciência jurídica que entende o direito em sua essência como projeto antecipador de relações sociais. Essa concepção da ciência jurídica também como ciência do futuro, todavia, deve justificar filosoficamente os pressupostos a partir dos quais se move, deve indicar o lugar do qual deriva suas antecipações e o fundamento sobre o qual se constrói cientificamente o direito futuro, o direito que ainda não é, mas que deveria ser. Esses pressupostos devem ser pesquisados, para Maihofer, nas estruturas da realidade humana, nas estruturas ontológicas da objetividade do mundo, pela análise concreta da realidade social e da existência humana: em outras palavras, “na estrutura fundamental ontológico-antropológica das relações de vida que, a partir de Max Weber e Gustav Radbruch, chamamos de ‘natureza da coisa’”403. Ao princípio da “natureza da coisa” o realismo jurídico atribui um significado ao mesmo tempo ontológico e crítico, pelo qual “natureza da coisa” não se identifica com “aquilo que fundamenta” (das Zugrundeliegende) as manifestações do direito. Esse princípio é concebido como o pressuposto (das Vorausgesetzte) de toda manifestação jurídica. Como pressuposto, é portador de uma verdade que só pode ser projetada para o futuro: de uma verdade inerente às estruturas da realidade humana e social, que o direito futuro deve descobrir, fazer emergir e à qual deve se adequar. Com o recurso à “natureza da coisa”, diz Maihofer, pretendemos nos referir “à verdade na realidade” e precisar que à realidade é inerente não uma verdade em sentido retrospectivo, mas uma verdade em sentido antecipador (nicht so etwas wie Wahrheit nach hinten, sondern Wahrheit nach vorne)404; ou seja, não um princípio que verifique na realidade presente a verdade do passado, mas um princípio que, pressuposto nas estruturas da realidade humana, é também, no presente, a verdade à qual o direito futuro deve se adequar. 403 404

MAIHOFER, Realistische Jurisprudenz..., p. 443-4 e 441. Idem, p. 451.

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Dessa forma, Maihofer entende a emancipação do direito futuro como extrapolação dos princípios inerentes às estruturas da realidade humana, como sentido da certeza e verdade do direito futuro enquanto nascido das estruturas ontológicas do ser, como adequação à verdade do ser. O direito futuro, construído cientificamente por uma teoria realista do direito, tende a realizar na dialética entre subjetividade e objetividade, entre crítica do presente e utopia concreta, entre materialidade e idealidade, a justiça imanente à sociedade humana. A perspectiva realista coloca os fundamentos de uma epistemologia do direito que pretende renovar a ciência jurídica sem refutar as contribuições que a esta foram trazidas pelas diversas instâncias presentes nos modelos teóricos já desenvolvidos. Pretende realizar a superação das instâncias parciais expressas e interpretadas pelas diversas formações teóricas, materialista e idealista, positivista e jusnaturalista, analítica e crítica, e identifica o ponto de convergência da parcialidade dessas instâncias na verdade imanente às estruturas reais da sociedade humana como pressuposto da forma positiva do direito e como fundamento da ciência jurídica. Portanto, o realismo é teoria do direito positivo e de suas estruturas ontológico-antropológicas, e teoria de uma ciência jurídica total que coloca os fundamentos epistemológicos para a construção do direito futuro. O realismo jurídico não é uma concepção pré-constituída da ciência jurídica, uma concepção estranha ao objeto que pretenda verificar a capacidade de seus esquemas teóricos de pensar o objeto ao qual se aplicam. A pré-concepção teórica sobre o objeto constituiu o ponto crítico do positivismo, assim como do historicismo e do jusnaturalismo. A jurisprudência realista pretende, ao contrário, adequar-se à pluridimensionalidade do fenômeno jurídico por meio de uma pluriperspectiva da ciência jurídica capaz de satisfazer todas as determinações do fenômeno jurídico405. Essa concepção aberta e total da ciência reconstitui a complexidade deste fenômeno na medida em que considera como sua tarefa específica dar conta não apenas da dimensão da realidade do direito como fato, mas também da dimensão do ideal que se exprime nesse fato. A ciência realista interpreta a ligação entre idealidade e normatividade que se exprime na relação de reciprocidade dialética entre o factual e o normativo, entre ser e dever ser. Superando os estreitos limites definidos pela falsa alternativa entre idealidade e realidade, consciência e efetividade, pensamento e ser, a teoria realista do direito concebe o positivo e o normativo em sua ação recíproca, na dialeticidade da “determinação ideal a partir 405

MAIHOFER, Rechtstheorie als Basisdisziplin der Jurisprudenz..., p. 55 ss.

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da força fatual do normativo, e da determinação real a partir da força normativa do fatual”406.

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ESSENCIALISMO E EPISTEMOLOGIA

A teoria do direito é a disciplina fundamental da ciência jurídica realista. Junto com a teoria, a filosofia e a sociologia do direito constituem as disciplinas de base da ciência jurídica e articulam-se em um sistema que estende sua reflexão às estruturas axiológicas, ontológicas e lógicas do fenômeno jurídico. As três disciplinas, ao mesmo tempo, perguntam sobre a justiça (Richtigkeit) do direito em suas dimensões científicas, humanas e sociais. A ciência jurídica realista é um sistema unitário, teórico e prático, no qual o fenômeno jurídico é estudado em toda sua complexidade e segundo todas as suas perspectivas. A teoria do direito, entendida como fundação científica da ciência jurídica, não se identifica nem com a dogmática, nem com a metodologia da ciência jurídica e nem com a doutrina geral do direito. Seu interesse-guia do conhecimento é o de identificar e estabelecer as formas da cientificidade às quais deve se orientar a atividade prática sobre o direito efetuada pela jurisprudência. Esta é teoria em função de uma práxis que se estende da atividade jurisprudencial à legislação, da dogmática à política do direito, do ser ao dever ser do direito. A teoria é o modelo de cientificidade que permite verificar a dialética contínua entre realidade e idealidade no direito; é a garantia de que o conhecimento da realidade existente e a projeção de suas formas futuras são construídos cientificamente com base na verdade do direito, entendida precisamente como a bipolaridade entre factual e normativo, real e ideal. A teoria, assim, adéqua-se cientificamente ao seu objeto em todas as suas determinações e é, ao mesmo tempo, ciência real e ciência formal, ou, como Maihofer a define, Wirklichkeitswissenschaft e Bewusstseinswissenschaft. Para realizar o programa epistemológico da teoria realista do direito, Maihofer une as competências racionalístico-formais da teoria analítica do direito às crítico-materiais da teoria dialética. A teoria do realismo jurídico, o fundamento epistemológico da jurisprudência entendida como ciência realista total, resulta, portanto, da coexistência entre positivismo e dialética, entre análise formal e projeção utópica. Na teoria analítica do direito, Maihofer identifica o lugar no qual se elabora o conhecimento do direito em sua fatualidade, em sua realidade empírica. Na teoria 406

MAIHOFER, Rechtstheorie als Basisdisziplin der Jurisprudenz..., p. 56.

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crítica, vê o lugar no qual se elabora a projeção do futuro direito humano. Da fusão, ou melhor, da superposição dessas duas “teorias parciais” seria constituída a estrutura da teoria realista do direito. Desse modo, a epistemologia do realismo jurídico reduz-se a um conjunto de diferentes esquemas teóricos: não é mais uma questão científica, mas um complexo composto, resultado de instâncias colocadas juntas porque são respectivamente capazes de explicar e reforçar os pressupostos relativos ao postulado ontológico, do qual partiu Maihofer, em planos que, por seus fundamentos, não podem ser suspeitos de serem metafísicos. Se a ontologia e o essencialismo recorrem à ciência, isso acontece porque têm uma concepção instrumental da ciência, à qual pedem apenas para usar determinadas contribuições, deixando intocada a natureza epistemológica dessas mesmas contribuições. Nesse sentido, a ontologia do realismo alemão vive de ganhos, é parasitária. Todavia, há outra consideração a ser feita: a coexistência das contribuições crítico-analíticas, ainda que não possa ser transformada em dialética, resulta em um fato certamente possível, uma vez admitido o pressuposto ontológico, na medida em que a resolução ontológica do direito se põe e se legitima como positivismo em relação ao ser do direito e como utopia do futuro em relação ao seu dever ser. Por conversão, então, é verdade que as epistemologias analítico-positivista e dialético-crítica reúnem competências e organizam contribuições que se apresentam para serem usadas por uma metafísica essencialista, que consegue, assim, integrá-las e fundi-las, ao menos nesse sentido funcional. Em outros termos, se é verdade que a coexistência das contribuições das duas epistemologias é tornada possível apenas pelo postulado ontológico da reciprocidade entre fatual e normativo, entre real e ideal no direito, é também verdade que apenas a epistemologia positivista e a “dialética” podem oferecer contribuições que, integradas, são consumáveis pelo essencialismo filosófico. Quando o essencialismo fala de fatualidade ou de realidade do direito, pretende dizer: o direito positivo, o direito assim como é. A pressuposição ontológica, porém, já transformou esse fato positivo em uma expressão da verdade inerente às estruturas da realidade humana. A fatualidade do direito, portanto ontologicamente pré-desenhada, é acessível apenas a uma pesquisa positivista, a única capaz de transformar o fato em valor, o fato empírico em verdade do ser. Por outro lado, o dever ser do direito, na medida em que é construído com base na antecipação já pressuposta nas estruturas do ser, não pode assumir outra configuração senão a de uma utopia concreta; de uma utopia cuja concretude deriva do fato de que esta é pura idealidade construída a partir do existente, projeção

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ideal de sua fatualidade vulgar. À reflexão, porém, o direito futuro, crítico, humano, aparece como a projeção ideal da justiça imanente ao positivo. Assim como para a ideologia alemã, para o realismo, o direito futuro nada mais é que a ficção produzida por uma filosofia da história que se passa por dialética na medida em que refuta o positivo no mesmo instante em que reconhece que justamente este positivo, em sua forma, é pressuposto nas estruturas da realidade humana sobre a qual esta constrói seus projetos. A teoria realista do direito, então, é construída pela justaposição entre positivismo e dialética, entendidos, realisticamente, em sua recíproca funcionalidade em relação à resolução ontológica do direito.

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A TEORIA DO DIREITO SEGUNDO O REALISMO JURÍDICO

A teoria analítica, escreve Maihofer, garante “a racionalidade funcional dos termos e das imagens, dos institutos e das normas do direito”407, controla a racionalidade conceitual e sistemática do direito e assegura que na posição do direito não haja contradições e que a argumentação jurídica seja consequente. A teoria analítica controla a racionalidade formal do direito e das práticas da jurisprudência servindo-se da lógica e da intersubjetividade formal fundada na “evidência do pensamento”. Aspira, além disso, “ao esclarecimento e à determinação da estrutura e da função das construções teóricas e conceituais usadas no trabalho prático sobre o direito, em relação à sua racionalidade funcional no contexto conceitual do sistema jurídico”408. Controle da racionalidade formal e controle da racionalidade funcional constituem as tarefas que a teoria analítica assume no âmbito do realismo jurídico. Esta é a penetração (Durchdringung) científico-formal da prática jurídica e do direito. Suas técnicas, seus métodos, seus instrumentos são usados pelo jurista em sua prática cotidiana com o direito e informam todos os aspectos de sua atividade: “Conhecer e pensar, decidir e julgar, agir e motivar”409. Essas contribuições da teoria analítica são o resultado da colaboração de um conjunto de disciplinas específicas que definem seu universo epistemológico: a teoria do conhecimento e a (teoria) lógica, a teoria dos conceitos e a teoria dos sistemas, a teoria da decisão e da informação, a teoria da linguagem e a teoria da argumentação. 407 408 409

Idem, p. 75. Idem, p. 76. Ibidem.

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Diferentemente, a teoria crítica do direito funda a jurisprudência realista como ciência real. Ela garante “a racionalidade material e a intersubjetividade das concretizações e das conclusões da ciência jurídica”, isto é, assegura “a racionalidade emancipatória dos termos e das imagens, dos institutos e das normas da ciência jurídica”. Ela vigia a “racionalidade dos conceitos e a racionalidade do sistema, entendidas como racionalidade de um projeto de sociedade a partir do qual o trabalho prático cotidiano do direito é teoricamente preparado e, na prática, concretizado com métodos científicos”410. A teoria crítica da ciência jurídica penetra na práxis do direito, continua Maihofer, a fim de garantir e assegurar, do ponto de vista da crítica da ideologia e da crítica da sociedade, que a “supraestruturação conceitual das relações materiais”, ou seja, o direito que se ergue na sociedade, seja coerente (stimmig) e sustentável (haltbar). Ela visa, além disso, “ao esclarecimento e à determinação da identidade e da diferença das construções teóricas e conceituais no trabalho prático do direito, tendo em vista sua racionalidade emancipatória no contexto real de um sistema social”411. Esse trabalho crítico e iluminante da teoria crítica do direito é realizado pelo conjunto de disciplinas das quais ela resulta e que Maihofer identifica na teoria do conhecimento como reflexão crítica da situação concreta; na teoria da sociedade como antecipação produtiva de conceitos emancipatórios; na teoria do desenvolvimento como verificação comparativa em relação a uma evolução paralela; e na teoria da ação como estratégia pragmática da realização concreta412. Teoria analítica e teoria crítica do direito, interesse cognitivo orientado para a racionalidade formal e interesse crítico orientado para a racionalidade material do direito, ao mesmo tempo, constituem a ciência total do direito (gesamte Rechtswissenschaft). Essa ciência tem por objeto o direito em sua bipolaridade: “como norma em uma superestrutura da consciência sobre a realidade social” e “como instrumento não apenas da interpretação crítica, mas também da transformação construtiva própria desta base da sociedade: como transformação das atuais relações sociais ruins em futuras relações melhores”413. Maihofer atribui ao direito, como objeto específico da teoria crítica, e, assim, à teoria que o produz, na medida em que se trata de direito futuro antecipado pela reflexão crítica, uma tarefa prática: realizar a 410 411 412 413

MAIHOFER, Rechtstheorie als Basisdisziplin der Jurisprudenz..., p. 76. Idem, p. 76-7. Idem, p. 77. Ibidem.

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transformação de determinados processos materiais. Afasta-se, assim, da pressuposição ontológica que constitui o ponto de partida e o fundamento da epistemologia realista do direito, e, afirmando a pretensão de uma mediação prática da teoria, que não se limita mais a compreender o mundo e sua verdade, mas procede imediatamente à sua transformação, abre o flanco do seu modelo a uma contradição particular. Na construção linear da ciência total do direito feita por Maihofer, na qual tudo é consequente porque é pressuposto, há um ponto que não está claro: Maihofer afirma que o direito deve ser instrumento de transformação das atuais relações sociais ruins em futuras relações melhores, mas em todo o seu modelo, que dispõe de um conjunto tão variado de instâncias teóricas, não há disciplina que possa “conhecer” os defeitos das relações sociais, não há disciplina, de fato, que seja orientada para a compreensão da qualidade do mundo. De modo que se torna difícil afirmar porque as atuais relações sociais são “ruins” (schlecht), e porque devam ser transformadas, e, portanto, torna-se difícil entender o papel do direito futuro e, com este, o da teoria crítica que o antecipa, como instrumento de transformação dessas relações sociais. Nenhuma das disciplinas que constituem a teoria crítica possui instrumentos que as permitam refletir sobre os defeitos das relações sociais existentes. A única entre estas disciplinas que poderia se arrogar a pretensão de criticar o existente, e, assim, de descobrir seus defeitos, – a teoria do conhecimento como reflexão crítica da situação concreta – pode apenas constatar o fato, puramente empírico, de que as relações sociais não se adéquam à sua forma expressa no direito, verdade das estruturas profundas da realidade humana. Mas essa revelação empírica não implica absolutamente nenhum defeito das relações, significa apenas que o existente, não se adequando à essência jurídica que a especulação descobrira nas estruturas da realidade humana, precisa ser trazido a esta. As outras disciplinas que constituem a teoria crítica não avançam a pretensão de conhecer ou de refletir sobre o universo das relações sociais, e, portanto, não se interessam por seus eventuais defeitos, são orientadas imediatamente para o futuro. De defeitos do mundo, por outro lado, não fala nem a premissa positivista da teoria crítica, a teoria analítica. Se fosse este o caso, de fato, seria possível justificar uma teoria crítica que, por não conhecer esta mesma os defeitos do mundo, tivesse a função de termo dialético de superação de um prelúdio ruim do positivo oferecido pela teoria analítica. Pelo contrário, esta não pretende oferecer nenhuma imagem negativa do universo. O celebra, lhe garante a racionalidade formal, ou seja, assegura que no plano formal a justiça imanente às estruturas da realidade humana é garantida pelo direito positivo. E não pode ser diferente, dado que o

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direito, abstração das relações sociais materiais, verdade imanente às suas profundas estruturas, não pode exprimir em sua fatualidade o lado “bom” de relações “ruins”. A hipótese da defeituosidade das relações sociais, portanto, é insustentável e contraditória porque o realismo jurídico não tem instrumentos com base nos quais possa estabelecê-la ou pressupô-la com certa probabilidade de que seja verdadeira. Na economia do discurso epistemológico de Maihofer, manter esta hipótese significa incorrer em uma contradição que invalida toda pretensão dialética da teoria. Se o realismo jurídico se restringe à hipótese da defeituosidade das relações sociais, corre, ao menos, dois riscos. O primeiro diz respeito à relação entre teoria crítica e teoria analítica: a teoria crítica é obrigada a afetar os resultados obtidos pela teoria analítica, que prova a racionalidade interna do direito como congruência profunda entre a abstração jurídica e as estruturas das relações das quais esta é verdade e justiça imanente, mesmo que parcialmente expressa; as competências das duas teorias-mãe das quais resulta o realismo jurídico terminam por ser contraditórias entre si. O segundo risco toca justamente a unidade da concepção do direito. E, de fato, quando por direito se entende o direito presente, positivo, então se diz que nasce com base na verdade do mundo, na qualidade das relações sociais, e que está em perfeita harmonia com o mundo e suas estruturas. Quando, ao invés, por direito se entende aquele futuro, então se diz que este deve emancipar aquelas mesmas relações sociais que, a princípio, eram “boas”, que é sistema dotado de uma racionalidade diversa daquela da qual é dotado o direito existente, e, portanto, que não pode estar em harmonia com as relações presentes, já que deve transformá-las. E na medida em que a teoria não parece dar uma chave unitária de interpretação do desacordo sobre a concepção do direito, deve-se pensar que ou uma ou outra versão é verdadeira, no sentido de excluir a verdade de ambas. Certamente, Maihofer poderia salvar a unidade e a coerência da teoria assumindo uma hipótese epistemológica do tipo daquela formulada pelo racionalismo crítico. Também naquela epistemologia, de fato, existem duas categorias teóricas definidas, uma da analiticidade, outra do criticismo. Mas, uma vez que no racionalismo crítico essas categorias são funcionais a uma estratégia política bem determinada, o sistema teórico correspondente também contém os modos segundo os quais conectá-los: o criticismo é apenas uma instância que falsifica os conhecimentos empiricamente adquiridos, com base em uma pura hipótese falibilística; motivo pelo qual a unidade da teoria não se rompe. O falibilismo é uma estratégia reformista, pragmática, que transforma os conhecimentos empíricos em hipóteses cujo valor de verdade depende dos fins estrategicamente

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perseguidos pela tecnologia social em relação à qual as hipóteses são funcionais. Mas o recurso a tal hipótese, que salvaria a unidade da teoria realista, é afastado pela fundação ontológica do direito, que exclui a possibilidade de considerar pragmaticamente o direito existente como uma hipótese, e exclui, portanto, a possibilidade de que a teoria empírica que analisa o direito existente possa ser falsificada, e, ao mesmo tempo, exclui que possa ser falsificado o direito, porque não pode ser pensado, absolutamente, como hipótese, mas como verdade. A teoria diz o verdadeiro, e a verdade do direito positivo é cristalizada em sua racionalidade formal; apurada por uma teoria que, com certeza, não é privada de seriedade. A questão pode ser resolvida, portanto, apenas quando se abandona a autocompreensão da teoria crítica, como ponto de partida contraditório, e se procura reconstruir a unidade e a coerência da teoria do realismo jurídico, assumindo como ponto de partida o pressuposto ontológico que constitui o fundamento efetivo da epistemologia realista e desenvolvendo as implicações teóricas contidas nele. A fundação ontológica do direito celebra a forma jurídica como verdade. Uma verdade, diz Maihofer, que não é retrospectiva, como pensava Savigny, mas que olha para o futuro, é antecipadora. Maihofer a chama de Wahrheit nach vorne. A forma atual dessa verdade é o direito positivo, ao qual Maihofer atribui, consequentemente, e logicamente, valor de verdade “verdadeiro”. Esse valor de verdade “verdadeiro”, ontologicamente pressuposto, é logicamente construído e demonstrado pela teoria analítica, ou teoria da racionalidade formal do direito positivo. O futuro dessa verdade atual já está escrito no presente. A verdade, de fato, olhada em prospectiva: o futuro não pode ser senão a projeção, a continuação dessa verdade em sua forma presente. A verdade não se permite melhorar, mas apenas manter, continuar. A disciplina central da teoria crítica garante expressamente que os projetos elaborados para o futuro exprimem precisamente a continuação do presente, na forma de sua verdade interna, de sua emancipação. Essa disciplina Maihofer a chama de “teoria da sociedade como antecipação produtiva de conceitos emancipatórios”. Quando se diz “emancipar”, entende-se, em sentido não abstratamente neutro, liberar, redimir-se de vínculos que reprimem, que impedem o desenvolvimento de relações não livres. Portanto, objeto da emancipação são as relações sociais na imanência da instância material, sua resistência à objetivação alienada e tornada independente diante destas na abstração jurídica, que Maihofer chama de verdade na realidade, e que Puchta já havia identificado como igualdade à qual é imanente a desigualdade. Para Maihofer, a redenção só pode acontecer no sentido da

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verdade: as relações sociais se emancipam se redimindo daquilo que nelas não é verdadeiro, daquilo que não é assumido na forma da verdade. A emancipação de que fala Maihofer é, portanto, emancipação das relações sociais materiais em sua forma jurídica. As relações sociais futuras, emancipadas, são as relações sociais materiais que existem, a partir de agora, apenas na forma de sua abstração jurídica. Dessa forma, o projeto de sociedade que Maihofer tem em mente é o projeto de uma sociedade na qual os sujeitos materiais, “os indivíduos, são dominados por abstrações, enquanto que, antes destas, dependiam um do outro. A abstração, ou a ideia, porém, não é outra coisa senão a expressão teórica daquelas relações materiais que a dominam”414. Mas, para a ontologia, essas abstrações aparecem como verdade, como expressões parciais, mas verdadeiras, nas quais se determinam as estruturas da realidade humana, e, assim, apenas a sociedade na qual a abstração é a forma geral de relações sociais nas quais a instância material foi reprimida na objetividade da igualdade jurídica, apenas esta sociedade é emancipada, humana, verdadeira, na medida em que exprime completamente a idealidade e a utopia do direito positivo existente. A “verdadeira sociedade humana” é a sociedade burguesa totalmente realizada. A defeituosidade das relações sociais, portanto, é defeituosidade de sua instância material, é a resistência que esta instância opõe à abstração jurídica: sua emancipação é o processo de liberação desta instância, o processo que redime as relações sociais materiais de sua existência não transformada em abstração jurídica. Ruins são as relações sociais nas quais a instância material ainda não foi completamente reprimida, ruim é a materialidade que se opõe à abstração. Mas a redenção não pode ser operada pelo direito que, sobre estas relações, ergue-se como verdade: a redenção é operada por estas mesmas relações que, no processo de seu desenvolvimento, afirmam sua alienação em relação aos sujeitos e a alienação dos sujeitos em relação a elas mesmas, e afirmam, assim, sua existência como relações, a partir de agora, apenas jurídicas, objetivadas e tornadas independentes e alienadas. No projeto de sociedade futura, que é, na realidade, a sociedade presente que alcança sua total transformação na forma jurídica, o positivismo e a utopia se encontram. O primeiro deve demonstrar que a igualdade e a liberdade dos indivíduos “refletidos em si como sujeitos exclusivos e soberanos”, como indivíduos do comércio, ou seja, sujeitos de direito, “portanto, não são respeitadas apenas no comércio baseado em seus valores de troca, mas o comércio é, antes, a base produtiva, real, de 414

MARX, Lineamenti fondamentali, v. I..., p. 107.

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toda igualdade e liberdade”415. Ou seja, o positivismo deve demonstrar que a existência jurídica dos indivíduos e de suas relações realiza plenamente a forma de sua existência material, adéqua-se às estruturas da realidade humana, realiza a racionalidade objetiva que a especulação chama de verdade na realidade e que nada mais é do que a abstração e a objetivação nas quais a instância material é reprimida. Portanto, o positivismo deve sustentar o ponto de vista da economia política, porque deve ocultar o fato de que esta realização é um produto histórico e não natural, que o “pressuposto do valor de troca que é base objetiva de todo sistema de produção já implica, desde o início, a coerção para o indivíduo”416. Por outro lado, a utopia, que deriva da incapacidade de “compreender a diferença necessária entre configuração real e ideal da sociedade burguesa” – de modo que a especulação, por sua natureza pacífica, as funde e dialetiza –, exprime o desejo, tão louvável quanto tolo, de querer assumir para si a tarefa supérflua de realizar de novo sua expressão ideal, quando esta é, efetivamente, apenas a transformação desta realidade. Portanto, positivismo e crítica se encontram no plano da ontologia: a ontologia restaura a unidade e a coerência estratégica na composição epistemológica do realismo jurídico, supera as dificuldades que surgem de uma autocompreensão contraditória das tarefas das teorias que constituem o fundamento do realismo. A ontologia é ponto de partida do realismo, mas também, ao mesmo tempo, o ponto de chegada, o ponto de apoio no qual se conclui finalmente o trabalho teórico da análise e da utopia do direito moderno. A teoria crítica deve explicitar, garantir a racionalidade material do direito positivo. Isto significa que é tarefa da teoria crítica adequar-se à racionalidade formal provada pela pesquisa analítica e celebrada no direito existente, elevando as relações sociais materiais à sua abstração já presente na forma jurídica. Desse modo, a teoria crítica tem como referência específica a teoria analítica e o ponto de vista do positivismo: ela o projeta para o futuro e salva a coerência teórica do realismo. A teoria, portanto, é crítica da materialidade do mundo ainda não totalmente transformado na forma de sua existência abstrata, na forma de sua existência jurídica; é o instrumento que se reconhece a tarefa revolucionária de eliminar especulativamente o escândalo do mundo, de romper, pela crítica, a materialidade das relações sociais que ainda não aparecem na forma de sua verdade jurídica e opõem resistência à objetividade da abstração. 415 416

MARX, Lineamenti fondamentali, v. I..., p. 214. Idem, p. 219.

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UMA NOVA PERSPECTIVA

O realismo jurídico é a conclusão da teoria do direito. A teoria do direito se impunha no complexo da epistemologia jurídica como hipótese que deveria identificar as formas de estabilização do direito, como hipótese que deveria produzir as novas formas de legitimação das quais o direito precisava em uma sociedade capitalista avançada, que, depois da experiência trágica do passado, buscava se recompor em torno de uma ideia de estado de direito na qual o respeito às regras do jogo democrático fosse garantido. A recomposição teórica da epistemologia jurídica, substancialmente, encontrava-se em torno dessa garantia, em torno do projeto jurídico burguês como garantia formal. Mas o projeto jurídico, assim como a ideia de Estado que se regia por este projeto, inseriam-se em uma estratégia de desenvolvimento capitalista que se reestruturava orientando-se para a gestão e controle total da sociedade por meio da organização centralizada e da planificação. A organização e o funcionamento dos aparatos exprimiam as novas formas de racionalidade, que deveriam ser legitimadas e garantidas pela estabilização do sistema. O projeto jurídico total deveria se encarregar de garantir essa racionalidade formal, ao mesmo tempo planificada e planificadora. Os mecanismos teóricos usados para decantar teoricamente a crise de legitimação do direito revelam-se insuficientes, e, por vezes, realmente decadentes. O problema da teoria não poderia ser resolvido nem recorrendo à celebração filosófica da abstração jurídica, nem invertendo a estrutura real das relações sociais na forma jurídica de sua superestrutura ideológica. O problema não era celebrar a imanência do direito abstrato em relação à sociedade burguesa buscando superar e unificar as contradições materiais na harmonia dialética de sua abstração jurídica. O nó a ser desatado era, sobretudo, o funcionamento e a organização do sistema, e, portanto, a racionalidade do sistema, como estratégia de estabilização de um modelo de desenvolvimento capitalista que se serve da hipótese jurídica como específica contribuição funcional, ou seja, como contribuição capaz de reforçar o processo de estabilização, adequando-se à complexidade dos mecanismos em ato, e não diluindo aquela complexidade real em uma harmonia específica pré-estabelecida. O capitalismo organizado precisava dessa revolução teórica na concepção de direito. A teoria deveria sair da alternativa tradicional na qual o pensamento jurídico se debateu por meio século e pensar as novas funções assumidas pela abstração jurídica. Esta grande empresa teórica será tentada por Niklas Luhmann, espírito grandioso do moderno iluminismo do capital, que descreverá os

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modos pelos quais o capitalismo pode se estabilizar, ou seja, pode reduzir sua complexidade interna servindo-se da forma jurídica como racionalidade formal, planificada, capaz de se adequar à complexidade de um sistema que planeja seu desenvolvimento por meio da estabilização de seus mecanismos repressivos. Se Kelsen realiza e cumpre o complexo epistemológico do direito no período em que a forma jurídica deveria se afirmar em sua positividade, Luhmann, com base na falência de uma epistemologia jurídica incapaz de dar ao direito o fundamento de legitimidade que precisava, com base na miséria de uma metafísica incapaz de compreender que a crise é crise de estabilização e, portanto, de funcionamento do sistema, constrói um modelo epistemológico que compreende e descreve as funções de manutenção e de estabilização do sistema social pela estabilização do sistema jurídico, funções das quais é capaz o direito moderno como sistema de abstração e de repressão da instância material.

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Terceira Parte A RACIONALIDADE

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1 A RACIONALIDADE COMO REPRESSÃO E A TEORIA DO DIREITO DE N. LUHMANN 1

CARACTERÍSTICAS DA CRISE DA EPISTEMOLOGIA JURÍDICA

No início dos anos sessenta, o debate sobre a epistemologia encontrava-se bloqueado por uma disputa não resolvida, resumida pela polaridade entre epistemologia analítica e dialética. Essa polaridade encerrava em si os esforços da epistemologia moderna e, em sua variedade de formulações, exauria, naqueles anos, todo o debate sobre os fundamentos das ciências sociais. Mas, já no início da década seguinte, delineia-se na cena da epistemologia alemã uma situação nova, na qual converge a crise dessa polaridade, e, assim, o enfraquecimento das formas nas quais o debate havia se cristalizado, e o surgimento de um projeto epistemológico ameaçador, capaz de aprofundar a crise em curso e de monopolizar essa cena, enriquecendo-a com novas e consistentes perspectivas, construídas com base em um projeto distinto e corajoso. Para entender a importância da proposta epistemológica de Luhmann, seu papel no contexto da crise e suas capacidades de beneficiar a cena da epistemologia alemã, é necessário procurar primeiro o tipo de crise que havia atingido os velhos modelos e as velhas propostas, e realizar a pesquisa do ponto de vista da epistemologia jurídica, que, desenvolvida em posição subordinada, reflete com serena ingenuidade as contradições do ambiente no qual é produzida. A uma primeira observação superficial, a crise parece ter sido causada por fadiga, por desgaste dos termos com base nos quais era travado o debate, por sua perda gradual do sentido originário de um confronto sério sobre os fundamentos da ciência social. A crise aparece como consequência da incapacidade de seus protagonistas de aprofundar a re-

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flexão sobre a ciência e, portanto, como involução não refletida daquela reflexão originária, como necessidade de se abrir a todos os estímulos que fossem possíveis receber e fundir em um composto qualquer, capaz de se organizar e sobreviver. Mas há um fato que se sobressai imediatamente: a crise não atinge apenas uma teoria, ou uma escola, a crise ataca o debate sobre a ciência e atinge globalmente todas as expressões desenvolvidas em torno dele. A tentativa de Maihofer, mais do que como um projeto de paz social ou de harmonia epistemológica, é considerada uma coalizão de emergência, um esforço comum para sair da crise. Por outro lado, a crise, justamente na forma de cristalização e esterilização da epistemologia alemã na disputa não resolvida entre epistemologia analítica e dialética, exprime e reflete positivamente uma situação real: a profunda rachadura de um universo dilacerado entre a utopia da consciência e a recusa do mundo. Para além dos véus teóricos, a epistemologia alemã reproduz a alienação real de um universo que a havia produzido justamente com a finalidade de apreender e superar teoricamente essa alienação. Na epistemologia jurídica, tal situação é particularmente evidente e a indicamos às vezes como falência da teoria, como sua impotência epistemológica. A epistemologia jurídica, nascida como tentativa de superar, segundo uma perspectiva sistemática, o pensamento da alienação, falha, no sentido de que se bloqueia e se esteriliza justamente na reprodução da alternativa implícita na alienação real. A teoria não consegue construir a integração do direito como forma do abstrato na formação econômico-social capitalista a não ser sob a condição de se refugiar na metafísica fingindo medo e horror diante do mundo ou de se ligar ao mundo como a um fato metafísico, sublimando-o sem penetrá-lo. Desse modo, a epistemologia alemã consegue legitimar sempre apenas um lado da alternativa – fato do qual Maihofer é consciente – mas a um preço: ou transformando o direito em uma ficção construída no âmbito de uma filosofia da história que o legitima como produto da consciência ideológica, negligenciando sua função positiva no interior do sistema; ou transformando a positividade do direito em um fato racional, que legitima a forma empírica da positividade, mas negligencia a questão ideológica do projeto jurídico da sociedade burguesa. Essa situação nos permite fixar dois aspectos da epistemologia jurídica: esta falha na tentativa de fundar teoricamente a estabilização do direito moderno como forma do abstrato, porque não consegue superar a dicotomia e a rachadura implícita na alienação real da sociedade burguesa, mas, pelo contrário, as aprofunda e consolida, desestabilizando a globalidade do projeto jurídico dessa sociedade. E exprime, ao mesmo tempo, a falência da hipótese estratégica com a qual tentou operar: a crise da

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epistemologia jurídica é a crise da estratégia sobre a qual era construída a tentativa pós-kelseniana de uma fundação teórica da estabilização do projeto jurídico burguês. A epistemologia alemã havia orientado sua estratégia a uma operação global de recuperação da pessoa humana do kantismo, da centralidade da razão humana do iluminismo, buscando conter e integrar nesse projeto formas antigas de involução autoritária. Esta estratégia lhe havia permitido deslocar o interesse prático da teoria pelas contradições do sistema social com base em uma das abstrações construídas por este sistema: com base na ficção da pessoa-valor racional. O deslocamento, que se revela processo vital para a teoria, entretanto, obrigava a própria teoria a permanecer ligada para sempre àquela ficção, e a vegetar em sua sufocante prisão. A epistemologia alemã esperava, assim, ordenar, liberar, valorizar o mundo, transferindo com base na ficção da pessoa-valor racional atributos, propriedades, características das quais o universo do capital, há tempo, já havia se apropriado e que eram, a partir de agora, pertinentes, mesmo que contraditoriamente. Mas justamente essa contradição deveria ser enfrentada por uma teoria capaz de legitimar a estabilização daquele universo em sua forma jurídica. A epistemologia alemã, ao contrário, operando com base na recuperação daquela ficção e de sua centralidade, só é capaz de construir projetos harmonizadores, críticos ou analíticos, da sociedade burguesa, mas, de qualquer modo, sem utilidade, porque não funcionais ao projeto capitalista de estabilização do sistema. Disfuncionais na prática, já que incapazes de fornecer ao sistema informações úteis, estrategicamente consumáveis. Também disfuncionais ideologicamente porque destinados a consolidar e, assim, a fazer emergir distintamente a alienação real, ao invés de mantê-la latente e tornar esta latência funcional à estratégia global do sistema. O erro estratégico da epistemologia jurídica alemã consiste, portanto, em ter acreditado que, repetindo essa operação de recuperação da ficção da pessoa-valor racional – revelada frutífera como estratégia legitimadora paleocapitalista, como estratégia com base na qual se afirmava a hipótese, agora antiga, do Estado liberal – conseguiria construir, agora também, formas de legitimação capazes de estabilizar a hipótese jurídica em sua função atual. Mas a hipótese jurídica, ou seja, a generalização de abstrações postas como válidas, operada segundo um programa de decisões cuja racionalidade se compara à relativa capacidade de estabilizar o universo do sistema social, só podia ser legitimada por uma teoria capaz de explicar a função desta hipótese justamente em relação a este novo modo de se colocar da racionalidade.

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A estratégia da epistemologia jurídica alemã falha porque não consegue apreender a função que a hipótese jurídica se destina a assumir no projeto de racionalidade do capitalismo avançado, porque não percebe que a ficção da pessoa-valor racional, que se revelou ideologia prática no período infantil do capitalismo, não é mais praticável em sua fase madura, e que a maturidade do capitalismo na perspectiva da epistemologia consiste no fato de que a racionalidade não é uma propriedade ontológica do sujeito, mas é antes a capacidade que o sistema tem de regular suas próprias transformações, portanto, de realizar sua própria estabilização, de integrar, de envolver, de atrair todos os sistemas parciais da sociedade, e assim também a hipótese jurídica e sua epistemologia, precisamente, na afirmação dessa racionalidade. Luhmann desmistifica tal situação. Ele descreve a esterilidade de uma estratégia epistemológica que tende a ocultar o fato de que o sistema capitalista é uma conexão de funções equivalentes, de operações cuja racionalidade consiste em sua capacidade de realizar a estabilização do sistema. Luhmann coloca-se do ponto de vista da economia política burguesa e afirma que a racionalidade não é uma ficção, e busca as formas nas quais esta pode realmente se implementar. Ele elimina toda pressuposição ontológica e, ao mesmo tempo, todas as ilusões sobre as quais se sustentava a estratégia de recuperação fictícia da pessoa-valor racional. A epistemologia de Luhmann foi a primeira construção que soube descrever o entrelaçamento genético, estrutural e funcional, da ciência com o capital: ela é, por isto, corajosa e moderna, mundana e iluminista. É construção capaz de aprofundar a crise das formas paleocapitalistas de legitimação, de mostrar seu misticismo escondido, de desvendar as operações de ocultações tentadas por estas. É construção capaz de propor uma alternativa epistemológica global através da descrição dos mecanismos que organizam o funcionamento da sociedade capitalista e através da descrição da equivalência entre as funções capazes de estabilizar o sistema. A epistemologia de Luhmann identifica o modo de produção da racionalidade moderna, que é racionalidade do sistema, e elabora a estratégia de integração do sujeito no universo descrito por esta racionalidade. Assim, ela inverte a imagem mística do sujeito racional, do sujeito superior e para além do sistema social, e indica as condições epistemológicas para a realização da compreensão e da redução da complexidade do mundo, ou seja, as condições para que o sujeito, que é agora apenas um equivalente funcional do sistema, participe da racionalidade do capital e se empenhe na realização universal que o guia, o programa que canaliza suas desilusões, que orienta suas ilusões e que as mantém latentes quando poderia incitá-lo a não aceitar o jogo.

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A QUESTÃO DO ILUMINISMO E O PROBLEMA DA REDUÇÃO DA COMPLEXIDADE DO MUNDO. O SISTEMA SOCIAL

Luhmann tem consciência de que o problema da ciência social moderna é o problema do iluminismo. A sociologia deve se perguntar se e em que sentido ela hoje apresenta traços iluministas417. Porém, Luhmann logo reconhece que duas premissas centrais do iluminismo tornaram-se suspeitas para a sociologia moderna: A igual participação de todos os homens em uma razão comum, que estes possuem sem mediação institucional ulterior, e o otimismo, seguro de seu sucesso, em relação à possibilidade de realização de condições sociais justas418.

Essas premissas enquadram-se em uma concepção ingênua, obscurantista, do iluminismo, que deve ser repensada e reformulada. Hoje, a questão do iluminismo se coloca em termos novos e problemáticos. O pensamento sociológico assume a função de pensamento iluminista da sociedade moderna se conseguir estender, aprofundar, “a capacidade humana de compreender e reduzir a complexidade do mundo”. A teoria sociológica que Luhmann constrói caracteriza-se justamente por este interesse iluminista, pelo grande potencial iluminista para compreender e reduzir a complexidade do mundo. A teoria dos sistemas, que se serve do método funcional-estrutural, construído com base na revisão crítica do estruturalismo funcional de Parsons419, é onde o problema da redução da complexidade do 417

418 419

LUHMANN, N. Soziologische Aufklärung. In: Soziologische Aufklärung. Aufsätze zur Theorie sozialer Systeme, v. I..., p. 67 e p. 66-91. Ibidem. Cf. LUHMANN, N. Funktionale Methode und Systemtheorie. In: Soziologische Aufklärung..., p. 31-53; Id., Moderne Systemtheorie als Form gesamtgesellschaftlicher Analyse. In: Habermas-Luhmann, Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie..., p. 7-24; ver também BUBNER, R. Wissenschaftstheorie und Systembegriff. Zur Position von Niklas Luhmann und deren Herkunft. In: Dialektik und Wissenschaft..., p. 112-28, e os primeiros dois capítulos do trabalho de A. Febbrajo, Funzionalismo strutturale e sociologia del diritto nell’opera di Niklas Luhmann. Milano: Giuffrè, 1975. p. 9-59. A obra de Luhmann suscitou vasto eco na literatura alemã recente, que na verdade parece não estar disposta a compreender esta obra, dividida que é entre a aceitação irrefletida de sua epistemologia e a refutação ingênua da complexidade. Indicamos aqui apenas algumas entre as contribuições mais interessantes: MÜNSTERMANN, J. Zur Rechtstheorie Niklas Luhmanns. Kritische Justiz, 4, 1969, p. 325-38; WILLMS, B.

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mundo é elaborado em toda sua importância epistemológica, é assumido como fundamento da teoria. E justamente nessa transformação do problema do iluminismo moderno em teoria sociológica consiste o problema cognitivo da teoria funcional dos sistemas. As análises funcionais, escreve Luhmann420, não se baseiam em fundamentos seguros, em um saber já garantido, ou em entidades dadas, para construir, a partir destas, um saber derivado mais amplo e seguro. Elas se referem, em última instância, a problemas, e procuram indicar soluções para esses problemas. “A alavanca da problematização é dada a estas pelo problema da manutenção da estabilidade dos sistemas de ação – mais abstratamente, se poderia dizer também: pelo problema da conservação da identidade no mundo real”. Por complexidade do mundo, Luhmann entende a totalidade dos eventos possíveis. O mundo é extremamente complexo enquanto a mar-

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Niklas Luhmanns Funktionalismus und das Problem der Demokratietheorie. In: Funktion ‒ Rolle ‒ Institution. Zur politiktheoretischen Kritik soziologischer Kategorien. Düsseldorf: Bertelsmann, 1971. p. 11-40; TJADEN, K. H. Soziales System und sozialer Wandel. Untersuchung zur Geschichte und Bedeutung zweier Begriffe. Stuttgart-München: Enke, 19722 e R. Prewo ‒ J. Ritsert ‒ E. Stracke, Systemtheoretische Ansätze in der Soziologie. Eine kritische Analyse. Reinbek bei Hamburg: Rowohlt, 1973, úteis como contribuições de fôlego amplo para a história e para os problemas da teoria do sistema social; THOME, H. Der Versuch die “Welt” zu begreifen. Fragezeichen zur Systemtheorie von Niklas Luhmann. Frankfurt a.M.: Athenäum, 1973; GRIMM, K. Niklas Luhmanns ‘soziologische Aufklärung’ oder das Elend der aprioristischen Soziologie. Ein Beitrag zur Pathologie der System theorie im Licht der Wissenschaftslehre Max Webers. Hamburg: Hoffmann und Campe, 1974; LINK, J.; MARX, K. Das Problem der Systemtheorie. Der Ansatz von Niklas Luhmann und seine politischen Folgen. Giesen: Focus-Verlag, 1975; GRÜNBERGER, H. Organisation statt Geselschaft. Über den Stellenwert formal organisierter Sozialordnung in der Gesellschaftstheorie Niklas Luhmanns. In: AAVV, Gesellschaft. Beiträge zur marxistischen Theorie, vol. III, org. H. G. Backhaus e altri. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1975. p. 198-235; HEIDTMANN, B. Niklas Luhmann und die Systemtheorie im Lichte der marxschen Hegelkritik. Sozialistische Politik, 32, 1975, p. 5-35; F. Schneider, Systemtheoretische Soziologie und dialektische Sozialphilosophie. Ihre Affini tät und Differenz. Meisenheim am Glan: Hain, 1976; ZIELCKE, A. System und funktionale Methode bei Niklas Luhmann. In: Archiv für Rechtsund Sozial philosophie, LXIII, 1, 1977, p. 105-28. Sobre o debate Habermas-Luhmann ver AAVV, Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie. Beiträge zur HabermasLuhmann Diskussion, a cura di F. Maciejewski. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1973; Neue Beiträge zur Habermas-Luhmann-Diskussion, (org). F. Maciejewski. Frankfurt a. M.: Suhrkarnp, 1974, e o trabalho de GIEGEL, H.-J. System und Krise. Kritik der luhmannschen Gesellschaftstheorie. a. M.: Suhrkamp, 1975, que constitui a terceira contribuição para este debate. LUHMANN, N. Vertrauen. Ein Mechanismus der Reduktion sozialer Komplexität, edição ampliada, Stuttgart: Enke, 1973. p. 2.

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gem de atenção de nossa experiência intencional e de nosso agir é extremamente reduzida421: a superabundância do possível sempre supera aquilo que nós somos capazes de elaborar pela ação ou experiência. O próprio conteúdo da experiência atual sempre remete a infinitas outras possibilidades e implicações que podemos transpor em nossa consciência. Nossa experiência, portanto, é marcada por pretensões excessivas que se exercem em seus conflitos e a tornam incerta, ameaçando sua capacidade de se orientar no mundo com sucesso. Essas pretensões excessivas que a experiência traz consigo (Selbstüberforderung) exprimem-se, por um lado, como superabundância do possível em relação à experiência que ainda não se tornou atual e, por outro, como certeza do risco toda vez que a experiência se torna atual. O universo do possível que pesa sobre a experiência apresenta a dupla estrutura da complexidade422 e da contingência423. Complexidade significa que existem sempre mais possibilidades de experiência e de ação do que, na realidade, podem ser tornadas atuais. Contingência significa que “as possibilidades de experiência e ação ulteriores indicadas no horizonte da experiência atual são apenas possibilidades, e, portanto, podem suceder diversamente do que se esperava”424. Complexidade significa, portanto, na prática, diz Luhmann, obrigação de operar uma seleção, enquanto contingência significa perigo de desilusão, necessidade de ir de encontro a riscos uma vez que a seleção tenha sido efetuada. A função de compreender e reduzir a complexidade do mundo é assumida por sistemas sociais. Estes são “fragmentos de mundo” (Weltausschnitte) e, assim, têm menos complexidade que o mundo425: eles “mediam entre a extrema, indeterminada complexidade do mundo e o escasso potencial de sentido que possuem a experiência e a ação respectivamente atuais”426. Por esta sua função de mediação entre experiência e mundo, por sua capacidade de apresentar o mundo em fragmentos atacáveis pela experiência humana, em fragmentos nos quais a complexidade do mundo já é reduzida, os sistemas sociais são o medium do iluminismo. 421 422

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LUHMANN, Soziologische Aufklärung..., p. 74. Idem, p. 72 ss.; LUHMANN, Vertrauen..., p. 35 ss. e 51 ss.; Id., Rechtssoziologie..., p. 31 ss.; ver também Prewo-Ritsert-Stracke, Op..., p. 29 ss. Cf. LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 31 ss., 209 ss., e as indicações da nota 6 do capítulo I da primeira parte deste trabalho. LUHMANN, Sinn als Grundbegriff der Soziologie. In: HABERMAS-LUHMANN, Theorie der Gesellschaft oder Sozialtechnologie..., p. 25-100, p. 32. LUHMANN, Gesellschaft. In: Soziologische Aufklärung. Aufsätze, v. I..., p. 13753, p. 143. LUHMANN, Soziologische Aufklärung..., p. 76.

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O sistema social é definido por Luhmann como “uma conexão dotada de sentido de ações sociais que se referem entre si e se deixam delimitar por um universo de ações não relativas a esta conexão”427. O sistema se constrói fixando um limite entre interno e externo, entre uma conexão de ações sociais dotada de sentido e o universo. O sistema é o resultado da estabilização da diferença entre interno e externo, ou seja, da estabilização dos limites dentro dos quais é possível manter sem variação certa ordem que apresenta uma complexidade reduzida. Essa ordem interna do sistema, com a qual se apresenta a complexidade reduzida pelo sistema, junto com as condições que realizam a manutenção da ordem, “serve de fundamento para um projeto seletivo do universo, de um projeto simplificado, mas provável (bewährbar), que abre pontos de sustentação para a ação dotada de sentido e praticamente realizável”428. O sistema expõe fragmentos do mundo e orienta a experiência com base nesses fragmentos, deslocando o interesse pela superabundante quantidade do possível para conexões delimitadas de ações sociais. Essas conexões produzem o efeito ilusório, mas necessário para orientar a ação, de que o mundo seja expresso no projeto elaborado pelo sistema, que a complexidade a ser enfrentada, elaborada, seja aquela já reduzida no sistema. No sistema produz-se, de fato, uma especificação da complexidade do mundo. Os problemas são identificados como problemas do sistema, de sua manutenção. A atenção, portanto, desloca-se toda para o interior do sistema e nele se concentra, afastando-se do mundo, onde seria impossível se orientar. No sistema, escreve Luhmann, a complexidade indeterminada do mundo transforma-se em problemas precisamente especificáveis relativos à automanutenção do sistema, a problemática relativa ao mundo desloca-se, por assim dizer, em parte, do exterior para o interior, onde pode ser melhor resolvida com métodos de elaboração das informações, mais exatamente correlatas ao escopo429.

No interior do sistema, a capacidade seletiva do comportamento humano é fortemente potencializada na medida em que o sistema oferece ao comportamento um número reduzido de alternativas dentro das quais se orientar. A construção do sistema, e, portanto, a redução da complexidade possível no seu interior, acontece com base no pressuposto de que, fora do sistema, tenham sido operadas, ou serão futuramente operadas, 427

428 429

LUHMANN, Soziologie als Theorie sozialer Systeme. In: Soziologische Aufklärung. Aufsätze, v. I..., p. 113-36 (115). LUHMANN, Soziologische Aufklärung,..., p. 76. Ibidem.

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escolhas que justificam a redução das alternativas efetuadas pelo próprio sistema. Este pressuposto reforça a estabilização da relação sistemaambiente de que depende o grau de redução da complexidade do qual o sistema é capaz e potencializa, assim, a capacidade seletiva do sistema. Consequentemente, o sistema reduz o coeficiente de risco implícito em cada escolha, acresce capacidade de ação e aumenta a velocidade com a qual se efetuam as escolhas de comportamento. Desse modo, o sistema cria, e mantém, uma profunda ilusão sobre a complexidade do mundo: mantém latente o grau real dessa complexidade e dos problemas que dela surgem. A maior contribuição do sistema consiste justamente nessa sua capacidade de ter latente a complexidade real, de criar uma profunda ilusão sobre a complexidade do mundo, e, portanto, de efetuar reduções e simplificações que permitem ao comportamento humano se orientar. Somente os sistemas, portanto, podem ser medium do iluminismo, daquele iluminismo sociológico que é próprio do mundo moderno e que é profundamente diferente do iluminismo da razão. De fato, somente os sistemas conseguem reduzir a complexidade do mundo a um formato aferível pela escassa margem de atenção de que é capaz a experiência humana. Dessa contribuição é incapaz “o público que discute livremente”, que, segundo a antiga concepção do iluminismo da razão, deveria realizar o princípio do iluminismo. Dado que a redução da complexidade do mundo não é uma capacidade humana inata e não pode ser, assim, pressuposta como “razão” da qual todos participam, para realizar o iluminismo não é suficiente desenvolver livremente a discussão pública. “Aquilo que ilumina – escreve Luhmann –, com certeza, não é a razão que, livre, desenvolve-se em uma comunicação privada de coerções, mas apenas um acréscimo efetivo do potencial humano para a compreensão e a redução da complexidade”430.

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ESTABILIZAÇÃO FUNCIONAL E RACIONALIDADE DO SISTEMA

A redução da complexidade do mundo a um formato acessível à experiência e à ação é guiada pelo sentido: os sistemas sociais são sistemas identificados segundo o sentido. Sentido, escreve Luhmann, é “uma determinada estratégia do comportamento seletivo em condições de alta complexidade”431. A identificação do sentido permite reunir, ter firme e 430 431

LUHMANN, Soziologische Aufklärung,..., p. 77. LUHMANN, Moderne Systemtheorie als Form Analyse..., p. 12.

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presente por certo tempo, certa quantidade de possibilidades de experiência, ou seja, de isolar, dentro da grande quantidade do possível, uma unidade, definida pelo sentido, que neutraliza temporariamente outras possibilidades, sem, porém excluí-las totalmente como possibilidades. O mundo permanece, assim, como o horizonte no interior do qual as outras possibilidades continuam a subsistir e, portanto, como o universo no qual seleções ulteriores sempre podem ser verificadas. Desse modo, é possível ordenar e subordinar uma série de atos de seleção e, assim, reforçar a seletividade de cada conjunto de sentidos, que orientam o comportamento mesmo quando o potencial de atenção é escasso e limitado, e não varia de fato432. Cada sistema deve manter sua identidade, mas identidade não pode ser entendida no sentido da lógica clássica do ser: identidade não é substância, não é exclusão de outras possibilidades do ser, mas inclusão, ordem dessas possibilidades, uma síntese coordenadora, que ordena as referências às outras possibilidades da experiência433. Conservação da identidade significa manutenção da função de ordem, própria do sistema. Os sistemas sociais não são vinculados a determinadas prestações específicas que lhes asseguram a manutenção, com a exclusão definitiva de outras prestações que a ameaçariam. Para a manutenção do sistema contribuem prestações que são substituíveis por outras funcionalmente equivalentes. Solução dos problemas do sistema, de fato, significa orientação para alternativas, seja no pensamento, ou no agir prático. Um problema é dotado de sentido, segundo Luhmann, quando um conflito de alternativas torna possível sua solução434. O método funcional demonstra seu valor cognitivo para a teoria dos sistemas na medida em que satisfaz a necessidade de alternativas, confrontáveis dentro dos sistemas. Ele fixa pontos de referência abstratos, os problemas do sistema, a partir dos quais é possível confrontar diversas possibilidades de comportamento como alternativas funcionalmente equivalentes. “A racionalização do problema por uma construção abstrativa de possibilidades de confronto é o sentido específico do método funcional”435. O escopo cognitivo do método funcional é o controle que este permite exercitar sobre a série de alternativas. Um controle puramente teórico e, no âmbito do possível, diz Luhmann, um controle prático. O método funcional permite, assim, dispor de uma 432 433

434 435

Cf. ibid. e LUHMANN, Soziologische Aufklärung..., p. 77. LUHMANN, Funktion und Kausalität, in Soziologische Aufklärung. Aufsätze, v. I..., p. 9-30 (26). LUHMANN, Funktionale Methode und Systemtheorie..., p. 35. Ibidem.

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série de alternativas, entendidas como possíveis soluções para os problemas do sistema, e torna possíveis previsões e explicações. O problema fundamental de cada sistema é sempre sua estabilidade, ou seja, o reforço e a estabilização dos limites entre sistema e universo. O método funcional libera toda solução para o problema da estabilidade da perspectiva ontológica implícita nos modelos causais, na medida em que considera a estabilização de um sistema como um problema que deve ser resolvido em relação a um universo mutável, que se transforma independentemente do sistema, sem considerá-lo, e torna, por isso, inevitável uma orientação contínua em relação a outras possibilidades. Assim, a estabilidade não deve ser mais concebida como uma substância imutável, mas como uma relação entre sistema e universo, como invariância relativa da estrutura do sistema e dos limites do sistema diante de um universo mutável436.

Nesse sentido, Luhmann pode dizer que o método funcional não apenas é compatível com a liberdade de ação, mas, antes, a pressupõe: ele não vincula a ação a um escopo pré-determinado, tido como justo, nem vincula o agente a uma relação causal com a ação, determinada por leis, mas interpreta a ação de pontos de vista abstratamente escolhidos, e, portanto, intercambiáveis. Motivo pelo qual a própria ação torna-se uma possibilidade entre as tantas apresentadas pela análise funcional. E, com isto, não se pode dizer que o método funcional se recusa a tratar do problema da estabilidade do sistema. O que esse método rejeita é a consideração ontológica da estabilidade: “Todas as análises funcionalistas, precisa Luhmann, são conduzidas, em última instância, em referência aos problemas da estabilização como seu fio condutor”437. A estabilização dos sistemas é a questão central da ciência social. Constitui o ponto de referência funcional de seus temas e teorias na medida em que o problema fundamental da ciência social é a manutenção e o acréscimo do grau de compreensão e de redução da complexidade atingido através do sistema. E isso só é possível se os sistemas são estáveis. A perspectiva da estabilização dos sistemas assim formulada põe em crise aqueles modelos de ciência social construídos com base no pressuposto de que a elaboração ou a verificação de hipóteses relativas a leis sociais pudesse resolver o problema da estabilidade na vida social. A ciência social, diz Luhmann, só pode resolver esse problema 436 437

LUHMANN, Funktionale Methode und Systemtheorie..., p. 39. LUHMANN, Funktion und Kausalität..., p. 27.

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se faz dele, como problema, a perspectiva central à qual se referem suas análises e a partir da qual ela pesquisa as diversas possibilidades funcional-equivalentes da estabilização de expectativas de comportamento438.

A crise desses modelos da ciência é, ao mesmo tempo, crise do modelo de racionalidade sustentado por estes, crise do iluminismo da razão. E, de fato, após a falência da ideia iluminista que concebia a racionalidade em relação à ação como racionalidade do agir, é possível conceber como racional uma experiência ou forma de agir na medida em que esta contribui para a resolução dos problemas do sistema, e, assim, contribui “para a manutenção das estruturas redutoras em um mundo extremamente complexo”439. A racionalidade definida em relação ao problema central da estabilização é racionalidade relativa ao sistema: é racionalidade do sistema, e, assim, é ligada, precisa Luhmann, “historicamente e materialmente às estruturas constituídas pela elaboração da experiência”. A concepção da racionalidade como racionalidade do sistema é o princípio do iluminismo sociológico que afasta o antigo iluminismo da razão. Este orientava seu interesse para a busca das verdades da razão, dos princípios válidos para todos, fundados na certeza intersubjetiva e na evidência. Mas, assim, prejudicava, delimitando-o a priori, seu potencial para a compreensão e redução da complexidade, e precisava ainda constituir uma série de pressuposições ontológicas com a finalidade de ancorar a razão na ação, e, portanto, no sujeito. O iluminismo sociológico inverte o princípio ontológico da razão e instaura o princípio funcional da racionalidade. Luhmann conclui coerentemente que, assim como um iluminismo eficaz só pode ser realizado mediante a construção de sistemas, “a racionalidade no mundo só pode ser levada a diante através da construção e da estabilização de sistemas mais abrangentes, mais complexos”440. Uma vez isolada a racionalidade em relação à ação, liberta de sua dependência causal nos conflitos da ação, como racionalidade do sistema, ela pode ser cientificamente guiada e organizada no plano de sistemas complexos de ação do ponto de vista de sua estabilização. Portanto, racionalidade é capacidade de guiar o sistema facilitando a solução dos problemas relativos à sua relação com o universo, permitindo-o reduzir complexidade e, assim, aumentar seu potencial de estabilização dentro de um mundo que muda. Um sistema de ações é racional, para Luhmann, quando a conste438 439 440

LUHMANN, Funktion und Kausalität..., p. 27. LUHMANN, Soziologische Aufklärung..., p. 79. Idem, p. 80.

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lação dos interesses orientados à sua manutenção e à sua estabilização é tão generalizada que, mesmo nas condições mutáveis que o ambiente apresenta, e às quais o sistema é exposto, sempre existem possibilidades suficientes de satisfação desses interesses. Nesse sentido, escreve Luhmann, a racionalidade do sistema se funda na estabilização funcional, ou seja, no fato de que os problemas que o sistema deve resolver em razão da sua estrutura são utilizáveis como pontos de referência para análises funcionais e para guiar processos de substituição 441.

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ESTRATÉGIAS DE REDUÇÃO DA COMPLEXIDADE. A ESTRUTURA DOS SISTEMAS E A PROTEÇÃO DAS ALTERNATIVAS

Todos os sistemas desenvolvem estratégias apropriadas com a finalidade de reduzir a complexidade. Essas estratégias podem ser construídas e aplicadas segundo certa independência relativa em relação ao ambiente, de acordo com o grau de estabilização do sistema no universo. Os sistemas sociais elaboram duas estratégias diferentes que são particularmente relevantes. A primeira é a estratégia do deslocamento do problema: ela consiste em traduzir a extrema complexidade do mundo em complexidade interna, relativa ao sistema, e, portanto, na redefinição do problema, deslocando-o para o interior442. O deslocamento do problema é um mecanismo redutor que permite identificar o problema como problema do sistema, tornando-o assim solúvel dentro do arco de possibilidades delimitado pelo próprio sistema. O problema, assim tornado atacável, concentra a atenção no interior do sistema e orienta eficazmente a ação. A segunda estratégia é a da dupla seletividade operada pela colocação de estruturas. Porém, Luhmann não entende a estrutura do sistema no sentido da concepção tradicional que se refere à estrutura como a uma constância relativa. Essa concepção, de fato, indica apenas uma propriedade específica da estrutura, que não permite inteiramente responder à questão de fundo: por que é preciso construir estruturas. Ele, ao contrário, confere à estrutura uma definição funcional e indica com o termo estrutura o “reforço da seletividade por meio de um processo que torna possível uma dupla seletividade”443. 441 442 443

LUHMANN, Funktionale Methode und Systemtheorie..., p. 47. LUHMANN, Soziologie als Theorie sozialer Systeme..., p. 117. LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 40.

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Consideremos agora a articulação dessa estratégia da dupla seletividade. Para orientar-se no mundo, é necessário não apenas operar escolhas, seleções, mas referir essas seleções entre si, de modo a construir um processo gradual de seleções que operam em quantidades sempre mais reduzidas de alternativas. Nesse processo, nem todas as seleções podem ser problematizadas, na medida em que não apenas não poderia ter lugar qualquer gradação, mas a própria seletividade seria sempre mais escassa e, o que é ainda mais perigoso, sempre mais incerta. Portanto, é necessário assumir determinadas seleções como pontos de partida que, fixados, têm a tarefa de absorver a incerteza do primeiro grau do processo seletivo, e são capazes, assim, de tornar possíveis e de potencializar processos seletivos ulteriores. Esse isolamento da seleção, transformando-a em premissa de um processo que se desenvolve a partir do fato de que, nessa seleção, foi absorvida uma quantidade de incerteza, permite evitar o controle repetido das alternativas, e, portanto, a problematização contínua das possibilidades de escolha que inicialmente se colocavam em quantidade superabundante. Portanto, as estruturas são justamente estas préseleções que por meio de uma escolha, que, no mais, não se torna consciente enquanto tal, delimitam o âmbito das possibilidades de escolha. Elas escolhem, antes de tudo, aquilo que é possível escolher. Tornam palpável o objeto indiferente de escolha (transformieren das Beliebige ins Fassbare), transformam aquilo que é mais extenso em algo mais reduzido. Aplicando as seleções a si próprias, fazem com que as seleções entrem, por assim dizer, duas vezes em ação e, assim, sejam potencializadas444.

O exemplo que Luhmann traz para esclarecer esse processo da dupla seletividade pela criação de uma estrutura é o da linguagem. A linguagem, de fato, isola uma estrutura operando a pré-seleção de um código de significados possíveis. Essa estrutura permite escolher o discurso apropriado de forma rápida, fluente e sensata. A partir daquela pré-seleção originária, é possível operar processos ulteriores de seleção gradual, aplicando a seleção efetuada a si mesma; ou seja, é possível não apenas falar, orientar-se com sucesso na quantidade de significados possíveis, mas também falar da linguagem, e falar também fixando como objeto do discurso modos de falar da linguagem. Portanto, estrutura é um código de significados fixados como invariáveis com base na elisão de outras possibilidades, significados que 444

LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 40.

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designam o quadro de referência dentro do qual é possível operar concretamente escolhas, movendo-se entre alternativas pré-estruturadas. Desse modo, afirma Luhmann, é possível aumentar imensamente o potencial humano para a complexidade. A estrutura afasta a incerteza que deriva da obrigação de viver em um mundo extremamente complexo; é “um projeto dotado de sentido e apoiado no incerto”445; absorve e reduz o risco que deriva da necessidade de escolher entre infinitas possibilidades na medida em que “define um volume de possibilidades mais restrito adaptado ao horizonte temporal e à capacidade da consciência dos homens”. Para efetuar essa contribuição seletiva, essa redução, a estrutura opera, por assim dizer, uma proteção das alternativas, as oculta, tornando-as latentes. Dessa forma, a estrutura engana a respeito da complexidade real do mundo: fixa um pequeno fragmento do possível, e orienta, dentro desse fragmento, as expectativas. As expectativas, assim, são sempre expostas à frustração na medida em que o possível, as alternativas, foram apenas escondidas, tornadas latentes. A toda estrutura, portanto, é imanente o problema da frustração das expectativas. E este é um problema que sempre deve ser considerado quando se avalia a adequação de determinadas estruturas. Do ponto de vista da frustração de expectativas, pode-se dizer que as estruturas transformam a permanente sobrecarrega de pretensões (Überforderung) que deriva da complexidade do mundo no problema da experiência ocasional de frustração, contra a qual, porém, se pode empreender concretamente qualquer coisa446.

Para a construção das estruturas, exige-se, consequentemente, por um lado, uma certa quantidade de latência funcional, uma operação de proteção nos limites das alternativas elididas, com a qual se evita a contínua reproblematização da estrutura, a emergência contínua da incerteza que a estrutura deve absorver. Por outro lado, é exigido que se coloque em operação mecanismos capazes de lidar com as frustrações que, inevitavelmente, se apresentam com a criação da estrutura. Esses mecanismos servem para canalizar as frustrações que, em se apresentando, poderiam colocar em sério perigo a estrutura. Eles podem ser de diferentes naturezas: podem ser mecanismos para esclarecer o tipo de frustração emergente, e, portanto, serem capazes de desviar a insegurança que a frustração traz consigo, canalizando-a para direções inócuas para a estrutura – que, assim, não é posta em discussão; ou podem ser mecanismos 445 446

LUHMANN, Soziologie als Theorie sozialer Systeme..., p. 120. LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 41.

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que transformam a própria estrutura, adaptando-a à probabilidade de verificação de determinados eventos. Seja qual for o modo de ação desses mecanismos, cada estrutura deve ser capaz de preparar, seja no plano da prevenção ou no plano do controle, mecanismos capazes de resolver, regular, canalizar e manipular as frustrações. A estrutura é essencial para o sistema. A consistência e a estabilidade do sistema dependem da relativa invariabilidade de sua estrutura em relação ao ambiente. A estrutura constitui a medida e o limite da complexidade que pode ser comprimida e reduzida no interior do sistema. Ela indica o grau de complexidade que um sistema pode elaborar e também delimita o limite entre a complexidade interna do sistema e a complexidade do mundo. A questão fundamental que um sistema deve resolver para sua existência e para sua estabilidade é a relativa à sua estrutura. O sistema precisa dispor de uma estrutura estável, consistente, adequada, de uma estrutura capaz de resistir às variações do ambiente e de reagir de maneira apropriada aos eventos que se verificam no interior do sistema; de uma estrutura capaz de controlar as interferências e os desvios, de isolar as frustrações preparando mecanismos que impeçam que estas prevaleçam sobre a certeza e sobre a redução da complexidade reunida pelo sistema. Além disso, a estrutura deve ser capaz de ter sob controle as flutuações do sistema provocadas por eventos internos ou externos a ele, de reagir com indiferença, abstraindo a situação específica: a estrutura deve sobreviver à situação. Os sistemas sociais obtêm uma estrutura capaz de fornecer estas contribuições, e, assim, resolvem seu problema fundamental pela generalização das expectativas de comportamento relativo ao sistema. Consideremos, agora, o que pretende Luhmann especificamente com este processo.

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A GENERALIZAÇÃO DAS EXPECTATIVAS

Generalização das expectativas no interior do sistema significa que, em referência a este sistema, não obstante a transformação de determinadas circunstâncias, é possível ater-se a determinadas expectativas. “Pode-se indicar uma orientação como generalizada”, escreve Luhmann447, “na medida em que esta subsiste independentemente do evento individual, não é atacada por desvios, distúrbios, contradições, e, tam447

LUHMANN, N. Funktionen und Folgen formaler Organisation. Berlin: Duncker und Humblot, 1976³, p. 55.

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bém em situações relevantes, no âmbito de certos limites, sobrevive às oscilações”. Generalizar as expectativas significa imunizá-las contra outras possibilidades que não sejam aquelas selecionadas pela estrutura, significa, para o sistema, permanecer indiferente em relação a diversidades materiais e temporais, significa reunir uma elevada capacidade de abstração e um alto grau de invariabilidade relativa. O processo de generalização permite ao sistema reunir uma indiferença estável contra aquilo que é possível, e, portanto, contra as diversidades, e lhe permite, assim, reunir um elevado grau de simplificação para fins de comportamento, e, portanto, um grau correspondente de redução da complexidade. O sentido da simplificação que o sistema promove, generalizando as expectativas, é assim esclarecido por Luhmann: Pela generalização das expectativas de comportamento é facilitada a concreta sintonização do comportamento social de mais pessoas, na medida em que já é pré-fixado, de maneira típica, aquilo que se pode esperar, e qual comportamento faria aparecer os limites do sistema. A escolha preliminar daquilo que é possível no sistema é operada no plano das expectativas, não no plano dos comportamentos imediatos, porque apenas desse modo é possível transcender a situação concreta efetuando uma antecipação nos conflitos do futuro448.

O processo de generalização das expectativas reforça e consolida o sistema contra eventos e circunstâncias perigosos para sua estrutura. Esse processo também permite que o sistema tenha um alto grau de redução da complexidade, e, portanto, permite a ordem que o sistema confere ao mundo. Assim como as seleções com base nas quais nasce a estrutura do sistema são necessárias à existência do próprio sistema, as generalizações, com as quais o sistema busca segurança, são necessárias à sua estabilização no mundo. As seleções operadas pela estrutura elidem possibilidades produzindo a latência que absorve incerteza: elas “regulam a dúvida”. As generalizações das expectativas de comportamento estabilizam a segurança produzida, imunizam, protegem, são certeza, orientação e simplificação, são abstração e indiferença. São “esqueleto seguro para naturezas indecisas”449. O processo de generalização desenvolve-se segundo três possíveis direções ao longo das quais o sistema organiza os instrumentos e mecanismos que produzem segurança para ele. Na dimensão temporal, a 448 449

LUHMANN, Soziologie als Theorie sozialer Systeme..., p. 121. LUHMANN, Funktionen und Folgen formaler Organisation..., p. 60-1.

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generalização das expectativas busca segurança para o sistema contra os desvios e frustrações individuais; na dimensão material, o processo de generalização é, para o sistema, segurança contra incoerência e contradições; enquanto que, na dimensão social, o sistema generaliza as expectativas de comportamento para se assegurar contra o dissenso450. Na dimensão temporal, as expectativas de comportamento são generalizadas pela normatização. Às expectativas é conferida uma validade protegida no tempo, uma validade que resiste às frustrações e tem, portanto, uma força contrafática451. A expectativa à qual é conferida qualidade normativa é estabilizada na medida em que é tornada capaz de resistir à frustração: Enquanto simples expectativas fáticas regulam-se segundo as possibilidades de realização percebidas, e são repelidas e transformadas quando não se verifica o objeto da expectativa, a qualidade normativa de uma expectativa permite se manter firme a ela, mesmo quando é frustrada452.

O poder estabilizador que a normatização exercita sobre o sistema consiste no seguinte: esta é ordem estável e consistente do mundo na medida em que confere duração às expectativas, independentemente do fato de que as expectativas sejam, de tempos em tempos, frustradas453. Portanto, as normas são expectativas de comportamento generalizadas no plano temporal, estabilizadas independentemente de eventos e casos individuais454. Na dimensão material, a generalização das expectativas de comportamento é operada por meio “da identificação do sentido das expectativas e de seu fundamento, independentemente da situação”455. As possibilidades de realizar a generalização das expectativas segundo esta dimensão são diversas e têm relação com a complexidade do sistema social. O sentido é fixado pela identificação de “pessoas concretamente marcadas, de papéis, de programas de decisão (escopos ou normas condicionais) e de valores abstratos que valem de maneira extremamente 450 451 452 453 454

455

LUHMANN, Funktionen und Folgen formaler Organisation..., p. 56. LUHMANN, Soziologie als Theorie sozialer Systeme..., p. 121. LUHMANN, Funktionen und Folgen formaler Organisation..., p. 56. LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 94. Cf. LUHMANN, Funktionen und Folgen formaler Organisation..., p. 57, e também Id., Normen in soziologischer Perspektive, em “Soziale Welt”, XX, 1969, p. 28-48. LUHMANN, Soziologie als Theorie sozialer Systeme..., p. 121.

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diferente como critérios daquilo que pode ser objeto de expectativa”456. Por meio dessa dimensão da generalização, é assegurada a estabilização de unidades de sentido e de contextos de sentido, independentemente da diversidade material das expectativas. Todavia, esse processo, precisa Luhmann, não garante que o problema da complexidade desapareça sem resíduos. O esforço que tende à compreensão da complexidade pela identificação do sentido leva, por sua vez, à especificação das estruturas de sentido generalizadas. Dessa especificação surgem contradições que o sistema deve enfrentar e resolver – contradições entre pessoas, papéis, programas e valores. Com uma crescente complexidade, explica Luhmann, deve crescer também a tolerância em relação a essas contradições, devem ser institucionalizadas rotinas mais eficazes de solução de conflitos e o sentido fixado deve ser generalizado de modo a ser decidível, ou seja, deve ser generalizado como variável457.

Na dimensão social, as expectativas de comportamento são generalizadas pela institucionalização. Institucionalização das expectativas significa que se pode pressupor o consenso geral sem considerar o fato de que os indivíduos não estão de acordo. O sujeito portador da expectativa pode pressupor o consenso dos outros sem precisar controlar opiniões e motivos individuais: “Em regra, isso poupa a colocação e discussão da questão do consenso e torna possível um rápido acordo sobre temas selecionados da discussão”458. Quem tem opiniões diferentes deve tomar a iniciativa de contradizer, deve se expor e, ao mesmo tempo, enfrentar o risco dessa exposição pessoal, ou seja, o risco de que ao seu comportamento seja imputado o caráter de desvio e que o sistema coloque em movimento mecanismos destinados a imunizar as consequências desestabilizadoras que podem derivar desse comportamento. Mas tudo isso, comenta Luhmann, é tão difícil que essa provocação das instituições não acontece, e a instituição sobrevive ao decréscimo do consenso efetivo. As instituições, de fato, não se regem com base no consenso efetivamente existente no interior do sistema social, ou seja, segundo o consenso que pode ser estabelecido com base nas opiniões expressas pelos destinatários das expectativas. Esse tipo de consenso seria facilmente revogável, extremamente flutuante, na medida em que não seria possível estabilizá-lo no plano temporal. A expectativa vista em sua con456 457 458

Ibid.; cf. LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 94. Idem, p. 121-2. Idem, p. 122.

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cretude, ligada à situação individual, é altamente imprevisível. A instituição só assegura um grau consistente de homogeneidade e de confiabilidade se consegue tornar irrelevante esse plano da concretude, imunizando-o, neutralizando-o. Por isso, é necessário que o consenso dos outros seja fictício, pressuposto, que “os outros” não sejam determinados, mas permaneçam anônimos, não valoráveis, e que não seja possível interrogá-los sobre suas opiniões. Portanto, as instituições regem-se com base em uma supervalorização do consenso efetivamente disponível no sistema social e no sucesso dessa supervalorização. A sobrevivência das instituições, escreve Luhmann, “é garantida quando quase todos pressupõem que quase todos estão de acordo; e, talvez, portanto, quando quase todos pressupõem que quase todos pressupõem que quase todos estão de acordo”459. O grau de compreensão e redução da complexidade alcançado pelo mecanismo da institucionalização em sua forma simples pode ser aumentado em muito com base na reflexividade desse mecanismo, ou seja, institucionalizando o processo de institucionalização. Porém, desse modo também aumenta a complexidade do sistema, motivo pelo qual devem ser acionados mecanismos específicos de diferenciação interna do sistema. O sistema cria, no seu interior, subsistemas, ou seja, isola suas partes que também têm características de sistema, são providas de estruturas definidas por limites, tendem a manter estáveis estes limites e a potencializar sua autonomia em relação ao sistema. Para sistemas complexos, portanto, a diferenciação interna se torna uma estratégia ulterior de compreensão e redução da complexidade: pela diferenciação interna, os sistemas atingem ultraestabilidade460. Eles conseguem isolar determinados influxos disturbadores do ambiente, frear efeitos perigosos que poderiam repercutir sobre todo o sistema, e que, ao contrário, nos subsistemas, podem ser neutralizados. Conseguem, ainda, reforçar as contribuições que asseguram uma maior seletividade do sistema e um processo mais rápido de adaptação interna em relação aos influxos mutáveis do ambiente, permitindo-lhe ganhar tempo em situações críticas para sua existência. A diferenciação interna dos sistemas produz uma situação de ultraestabilidade proporcional à crescente complexidade interna que os sistemas devem enfrentar e permite reagir com maior segurança às necessidades que, continuamente, devem ser satisfeitas de maneira sempre mais articulada e racional. 459 460

LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 71. Cf. LUHMANN, Soziologie als Theorie sozialer Systeme..., p. 123, e Id., Ausdifferenzierung des Rechtssystems, in “Rechtstheorie”, v. VII, 1/2, 1976, p. 121-35.

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A GENERALIZAÇÃO CONGRUENTE DAS EXPECTATIVAS. O DIREITO

O fato de que o conceito de generalização das expectativas de comportamento seja unitário e de que as vantagens que o sistema obtém nas três dimensões do processo de generalização são paralelas não exclui que se criem discrepâncias entre os mecanismos de generalização. Esses mecanismos são heterogêneos, podem generalizar expectativas de comportamento diversas e incompatíveis entre si, criando impedimentos ou interferências e distúrbios entre as dimensões do processo de generalização. Portanto, para os sistemas sociais, uma vez desencadeados os mecanismos de generalização de expectativas, coloca-se o problema de superar as discrepâncias que inevitavelmente surgem entre esses mecanismos e de buscar proteger generalizações de expectativas que sejam congruentes nas três dimensões. Discrepâncias existem, por exemplo, entre as dimensões temporal e social do processo de generalização das expectativas. Pensemos no fato de que na sociedade se operam mais expectativas normativas do que as que podem ser efetivamente institucionalizadas – na sociedade, diz Luhmann461, existe uma superprodução de normas. Esta superprodução de normas é indício da discrepância entre os processos de normatização e de institucionalização, e, entretanto, é condição de evolução dos sistemas sociais, na medida em que comporta a necessidade de desenvolver mecanismos seletivos capazes de reduzir a quantidade de expectativas existentes, ou seja, na medida em que coloca em movimento, ao mesmo tempo, processos que tendem a generalizar a expectativa de maneira congruente. Também existem discrepâncias entre a dimensão material do processo de generalização e as dimensões temporal e social. Aqui, as discrepâncias devem ser buscadas no fato de que “as exigências da construção que identifica o sentido e a indiferença material não correspondem àquelas da estabilização normativa e da institucionalização”462. Como exemplo, Luhmann indica o interesse que se pode encontrar nos sistemas sociais em se deixar valores ou programas na forma de algo que é desejável e, nesse sentido, materialmente já identificado, mas que não constitui expectativa normativa de comportamento e nem sempre é institucionalizável. Pelas discrepâncias que existem entre a dimensão temporal e material da generalização, pensemos, por exemplo, no fato de 461 462

LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 95. Idem, p. 97.

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que as conexões existentes entre violações da norma e sanções não são nada evidentes no plano material, motivo pelo qual ensejam contínuas dificuldades para sua institucionalização. Nem as diversas alternativas que são, historicamente, projetadas para superar essas dificuldades são todas convincentes. Por exemplo, a solução dada pelo princípio de Talião – “olho por olho, dente por dente” – era mais convincente do que soluções que se baseavam em conexões cujos critérios fossem pouco compreensíveis, como no caso do dano e da pena pecuniária. As discrepâncias identificáveis entre os diversos mecanismos de generalização das expectativas são o indício de incongruências que se estabelecem naturalmente entre mecanismos heterogêneos, mas, ao mesmo tempo, atestam a possibilidade de identificar coligações e integrações capazes de produzir conexões congruentes. Essa possibilidade é ligada, por um lado, ao fato de que os mecanismos de generalização que operam em cada dimensão nunca oferecem uma única e exclusiva solução para os problemas, mas sempre diversas soluções funcionalmente equivalentes entre si. Por outro lado, esses mecanismos interagem, e, portanto, requerem certo grau de compatibilidade entre as prestações recíprocas, e essa compatibilidade age seletivamente sobre sua relação. Delineia-se, assim, com base na interação entre os mecanismos de generalização, uma série de limites estruturais para as variações possíveis: são esses limites que asseguram a compatibilidade recíproca entre os vários mecanismos. Porém, tudo isso, precisa Luhmann, não exclui nem expectativas ou comportamentos desviantes, nem projeções normativas, e, portanto, institucionalizações e identificações de contextos de expectativas que também possam ser desviantes: “Constitui apenas uma escolha mais restrita de expectativas de comportamento que são generalizadas, seja no plano temporal, seja no social e material, e que, por isto, gozam de particular proeminência e segurança”463. Direito de um sistema social são as expectativas normativas de comportamento generalizadas de maneira congruente no sentido acima exposto. A concepção do direito à qual chega a análise sociológica de Luhmann entende o direito de maneira seletiva e funcional: o direito é prestação seletiva, é congruência seletiva pela qual se constrói uma estrutura dos sistemas sociais. O direito não é um ordenamento coercitivo, um ordenamento do comportamento humano que tenha a função de manter e fazer respeitar determinados modelos de comportamento; não é regulação de conflitos; nem é uma qualidade originária do dever ser, assim como o 463

LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 99.

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direito não é a sanção, ou seja, um mecanismo puramente fatual que emana do Estado. O direito é uma “facilitação das expectativas”; facilitação que “consiste na disponibilidade de caminhos de expectativas congruentemente generalizadas, ou seja, de indiferença altamente inoculada contra outras possibilidades, que reduz notavelmente o risco da expectativa contrafática”464. Portanto, a função do direito consiste nessa prestação seletiva de sua estrutura, que opera uma escolha de expectativas de comportamento que se deixam generalizar de maneira congruente nas três dimensões – temporal, material e social – com base em mecanismos de generalização altamente compatíveis entre si. Entre os mecanismos capazes de assegurar a consistência das expectativas normativas no tempo, pela canalização da frustração, o direito escolhe a sanção. Em relação a outras formas de canalização da frustração, a sanção apresenta uma vantagem de grande relevância: “Ela pode ser facilmente levada adiante, e, no caso de insucesso, pode ser repetida e reforçada”465. Por essa sua característica, a sanção se afirma como estratégia institucionalmente privilegiada em relação a outras formas de canalização da frustração. Além disso, a sanção concentra sobre si e realiza o interesse exclusivamente temporal na estabilização contrafática das expectativas normativas e impõe-se, assim, como a referência ótima para os outros mecanismos de generalização, e, portanto, para sua congruência. A sanção é o instrumento expressivo da validade do direito e, ao mesmo tempo, configura uma estrutura seletiva de canalização da frustração que produz, no plano temporal, confiança coletiva no direito, congruência e consolidação das expectativas de expectativas. Na dimensão social, a generalização acontece pela “diferenciação de procedimentos particulares nos quais são tomadas decisões que são institucionalizadas como coletivamente vinculantes”466. Os procedimentos são sistemas sociais que absorvem a função específica de elaborar decisões. Por esse motivo, são limitados no tempo, têm uma história própria e são caracterizados pelo fato de que as decisões daqueles que participam do procedimento eliminam bruscamente alternativas, absorvem incerteza e reduzem complexidade, ou “transformam a complexidade indeterminada de todas as possibilidades em uma problemática determi464 465 466

LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 100. Idem, p. 101; cf. p. 114. Ibid.; a este tema N. Luhmann dedicou um de seus trabalhos mais interessantes: Legitimation durch Verfahren, Luchterhand, Darmstadt und Neuwied 1975².

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nada, aferível”467. Assim, os procedimentos permitem uma orientação seletiva do comportamento, mantendo alto o limiar de confiança e certeza. Contudo, envolvendo na própria história todos os participantes e deixando aparecer o resultado incerto e aberto por toda sua duração, os procedimentos permitem supor não apenas um alto grau de consenso fictício, mas também um alto grau de consenso efetivo à decisão. Na dimensão material, desaparecem gradualmente aqueles princípios que haviam tornado possível a identificação dos contextos de expectativas, por efeito de uma seleção que, no curso do desenvolvimento histórico, isola princípios não juridicizáveis porque não compatíveis com a sanção e com o processo. Pessoas, papéis e valores não valem mais como tais princípios na medida em que, em sua função de “regras para uma expectativa consistente, não eram tratáveis no plano processual, nem sancionáveis em sua continuidade”468. Sob a pressão dessas exigências, que derivam da necessidade de dispor de mecanismos altamente compatíveis de generalização congruente, o direito é reduzido a um complexo de programas decisórios.

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O DIREITO POSITIVO. A QUESTÃO DA CONTINGÊNCIA NORMATIVA

O direito não tem história, o direito não se desenvolve. O direito é a estrutura de um sistema social que, na evolução social, se diferencia e se especifica funcionalmente. A “história” ou “evolução” do direito é o gradual isolamento evolutivo dos processos de diferenciação e de especificação funcional pelos quais se fixa e se autonomiza uma estrutura seletiva das expectativas normativas de comportamento, uma estrutura que se estabiliza por mecanismos de generalização congruente. O estágio atual desses processos é definido pela positividade do direito. Positivo é o direito “que foi posto e que vale por força de uma decisão”469. Como norma, o direito estabiliza expectativas de comportamento, tornando-as resistentes à frustração; não disponíveis ao aprendizado, contrafáticas. Nesse sentido, o direito é uma estrutura seletiva que se constitui por força de uma escolha operada entre possibilidades diversas. 467 468 469

Idem, p. 40 LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 102. LUHMANN, N. Posivität des Rechts als Voraussetzung einer modernen Gesellschaft. In: Jahrbuch fur Rechtssoziologie und Rechtstheorie, v. I..., p. 175-202, p. 182; cf. Luhmann, Rechtssoziologie..., p. 207 ss., 217 ss.

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O potencial de redução da complexidade do qual o direito é capaz deriva do fato de que as expectativas de comportamento isoladas são fixadas normativamente e sua estrutura não pode ser problematizada. Problematizar a estrutura significaria, de fato, invalidar a capacidade redutora da própria estrutura. “É alcançada uma fixação normativa: a decisão firme de não aprender – diz Luhmann –, na medida em que aprender significa procurar outras possibilidades”470. Fixada normativamente a estrutura, é então necessário imunizá-la contra frustrações por meio de processos de generalização e de institucionalização. Porém, tudo isso não exclui que, em outras situações, essa estrutura seja problematizada. O que deve ser excluído é apenas que a estrutura seja problematizada nas situações que estrutura. “Em outras situações – outras circunstâncias, papéis, sistemas – a mesma estrutura pode ser tratada como problemática, desde que haja uma suficiente diferenciação”471. Em sistemas altamente diferenciados, é possível, portanto, que a mesma estrutura seja tratada, ao mesmo tempo, como disponível e indisponível ao aprendizado, como resistente às frustrações e capaz de se adaptar, como invariável e variável. A positivação do direito realiza justamente essa situação aparentemente paradoxal na qual estruturas de expectativas de comportamento são institucionalizadas, ao mesmo tempo, como invariáveis e variáveis, como expectativas normativas de comportamento e como expectativas cognitivas de comportamento. De fato, a grande conquista evolutiva da positivação do direito consiste no seguinte: ela estabiliza as estruturas das expectativas normativas paralelamente à legalização de sua transformabilidade; fixa como resistentes às frustrações algumas estruturas de expectativas, e, ao mesmo tempo, mantém constantemente presentes, como possíveis, as outras possibilidades temporariamente excluídas pela seleção operada. A positivação do direito, nesse sentido, realiza a coexistência de certeza e incerteza, permite investir energias destinadas a fazer resistência às frustrações, mas também energias “prontas para aprender”472 diante das transformações da estrutura. A positivação do direito, diz Luhmann, tem a função de efetuar “a construção de estruturas de expectativas que são, em medida crescente, arriscadas, e, no plano evolutivo, improváveis: e isso em conformidade com o desenvolvimento social”473. A positivação do direito, este “tratamento contraditório de estruturas operado com fundamento na diferenciação do sistema”, realiza, assim, simultaneamente, um imenso aumento da complexidade e da con470 471 472 473

LUHMANN, Positivität des Rechts..., p. 185. Ibid.; cf. Luhmann, Ausdifferenzierung des Rechtssystems cit. LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 212. Ibidem.

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tingência do direito, que se adéquam à necessidade do direito de uma sociedade com alto grau de diferenciação. O aumento da complexidade do direito exprime-se, na dimensão temporal, na possibilidade de existir, em tempos diversos, direitos diversos, ou seja, na institucionalização da transformabilidade e da variabilidade do direito. Hoje pode valer direito que ontem não valia, diz Luhmann e que, amanhã, seguramente, provavelmente ou eventualmente, não valerá. Na dimensão material, a complexidade imensamente aumentada exprime-se no número de temas juridificáveis que, agora, não se pode mais controlar e que cresce em relação à velocidade com a qual os tempos de validade podem ser mudados, e, ao mesmo tempo, à crescente diferenciação e especificação dos papéis e dos processos de filtragem pelos quais passam os temas que devem ser juridicizados. Na dimensão social, esse alargamento incontrolável daquilo que pode se tornar direito comporta a necessidade de excluir da participação na produção do direito o maior número possível de pessoas. O direito deve valer sempre para mais pessoas e para pessoas sempre mais diversas; esse efeito pode ser produzido apenas por uma generalização mais forte na dimensão social, ou seja, atingindo o direito um nível mais alto de indiferença e supondo, assim, um grau mais alto de consenso fictício dos terceiros. “Somente quando se minimiza a participação dos indivíduos – precisa Luhmann – é possível institucionalizar uma mudança tão rápida e visível do direito, e sua tão incalculável extensão”474. Com a complexidade do direito, cresce também sua contingência. O direito positivo é uma estrutura seletiva de expectativas normativas de comportamento. Porém, a seleção deixa subsistirem as possibilidades excluídas como possibilidades, e, assim, como sempre presentes e possíveis orientações da escolha. A escolha efetuada poderia, pode, no futuro, ser feita diferentemente de como foi, na realidade, efetuada. O diverso, como possibilidade, como incerteza, existe junto com a realidade, com a certeza isolada pela estrutura. A possibilidade do diverso é antes institucionalizada; e, com ela, a disponibilidade para aprender, ou seja, a incerteza. Como o direito foi posto por força de uma decisão, em virtude da qual adquiriu sua validade, pode ser transformado por força de uma decisão. Só é necessário que o tema que deve ser juridicizado, ou o direito que deve ser transformado, passe por um processo de filtragem que produza seletividade e a isole como direito em relação a outras possibilidades que continuam presentes. 474

LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 212.

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Positividade do direito significa, portanto, decidibilidade e transformabilidade de estruturas que selecionam expectativas normativas de comportamento. O direito positivo é a legalização da transformabilidade do direito. A positividade, na medida em que significa presença contínua do diverso como possível, é contingência. O direito positivo, diz Luhmann, caracteriza-se pela consciência da contingência475. Contingência é incerteza, insegurança; contingência é presença contínua do diverso como possível; contingência é disponibilidade para aprender que este diverso é isolado como real; é não se fechar às suas próprias expectativas. A positividade do direito não elimina a insegurança nas expectativas de comportamento. Ao invés disso, ela cria uma estrutura que se estabiliza com alto grau de incerteza sobre o tipo de expectativas que precisará aprender a sustentar, uma estrutura que torna suportável e aceitável o limiar do medo do diverso, constantemente presente, na medida em que se pode ter certeza de que as expectativas isoladas da quantidade do possível serão tornadas resistentes contra a frustração: “Transformação do direito significa, explica Luhmann, aprender a não aprender”476. A institucionalização do direito como variável, de fato, só é possível se a variação do direito é sobreposta a processos de aprendizado. A construção de uma estrutura de expectativas capaz de reforçar a confiança e a certeza, aumentando e institucionalizando a incerteza, só é possível em uma sociedade altamente diferenciada, na qual possam ser especificados dois procedimentos diversos: um para o aprendizado, outro para a canalização das frustrações. Esses dois procedimentos apresentamse como procedimentos de decisão: de decisões programadoras e de decisões programadas. No primeiro cumpre-se a função de produção do direito, no segundo a de aplicação do direito. O primeiro procedimento desenvolve-se em condições de complexidade indeterminada, extremamente alta, o segundo em condições de complexidade fortemente reduzida. Porém, surge, e é resolvido, o problema da manutenção da identidade do direito nos dois processos, ou seja, da manutenção da identidade do programa normativo de decisão. Na aplicação do direito, o programa torna-se premissa da decisão: é condição para que a decisão seja justa, independentemente do problema de se o próprio programa o é. O programa é exposição de uma complexidade fortemente reduzida de expecta475

476

Idem, p. 209: “Positividade do direito significa contingência, significa que a validade repousa sobre a positivação e que esta poderia ser diferente. A consciência dessa positividade é mantida apenas na medida em que o processo seletivo das decisões não se perde em uma pré-história impenetrável, mas pode ser tornado manifesto e tido como possibilidade continuamente presente”. Idem, p. 238.

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tivas de comportamento que devem resistir à frustração. O programa é direito válido; o juiz não se dispõe a aprender diante da frustração da expectativa; o programa não pode ser problematizado, não pode ser posto em discussão. Na execução do programa, é ainda possível afirmar a racionalidade, no sentido do respeito aos critérios de decisão pré-estabelecidos: isto é, as diversas decisões podem ser altamente coerentes entre si. No plano das decisões programadoras a situação é bem diferente. Aqui, diante da ineficácia da norma, de um alto grau de inobservância, de conflitos de comportamento e, em geral, de disfunções que surgem na estrutura das expectativas normativas, o legislador pode reagir “mostrando sua disponibilidade para corrigir suas expectativas. Ele é o destinatário dos desejos de transformação, é a instância para o aprendizado institucionalizado no direito”477. Para o legislador que fixa o programa, a identidade do programa normativo de decisão é constituída pela solução provisória do problema que ele tem diante de si, ou seja, pelo fato de que ele opera uma seleção privilegiando uma solução em detrimento de outra. A diferenciação entre esses dois procedimentos pelos quais se institucionaliza o aprendizado, a transformabilidade do normativo, comporta, ao menos, duas consequências de grande relevância. A primeira é a seguinte: o direito se diferencia dos outros ordenamentos normativos como estrutura de um sistema social que institucionaliza sua variabilidade. Uma estrutura que, não obstante essa sua função, é mais estável e diferenciada do que outras estruturas normativas na medida em que dispõe do uso da força física como instrumento de coerção, e na medida em que o direito positivo assume a forma de um programa condicional. Em relação aos outros sistemas tendentes a influenciar a observância da norma, a força física apresenta a vantagem de ser aplicada universalmente, de ser independente das estruturas do sistema e de se expor a um risco extremamente pequeno de que o interessado não se renda, dispondo-se a uma luta desesperada, sem saída. O fato de o direito assumir a forma de um programa condicional de decisões, de um programa que “dá as condições nas quais se deve tomar determinadas decisões”478, oferece vantagens de, pelo menos, três pontos de vista: estendem-se as possibilidades de variações dentro do sistema, na medida em que os comportamentos e situações possam ser postos em relação como variáveis; torna-se possível a tecnicização do programa, ou seja, sua automatização, 477 478

LUHMANN, N. Posivität des Rechts..., p. 191. Idem, p. 193; cf. LUHMANN, N. Recht und Automation in der öffentlichen Verwaltung: Eine verwaltungswissenschaftliche Untersuchung. Berlin: Duncker und Humblot, 1966.

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que comporta grandes simplificações para quem deve decidir; e, por último, verifica-se uma economia na comunicação em sentido vertical, na medida em que “o programa pode ser posto em geral e pode ser comunicado sem uma previsão precisa do número e dos detalhes relativos às situações de aplicação”479. A segunda consequência que deriva do processo de positivação do direito deve ser procurada nos novos termos nos quais se coloca a questão do consenso dos destinatários, ou seja, a questão da legitimidade do direito. O direito não se legitima porque realiza valores ou princípios superiores nos quais creem seus destinatários, que estariam, por isso, dispostos a oferecer seu consenso. O direito positivo, de fato, não deve legitimar sua rigidez, entendida como rigidez de seus valores, de seus pontos de vista, mas a transformabilidade destes. Além disso, uma disponibilidade para o consenso que fosse limitada ao simples consenso fatual – tipo de consenso que se presta a valores que se acredita serem realizados no direito – seria um recurso extremamente escasso. O sistema do direito precisa generalizar o consenso de modo a satisfazer os dois requisitos da “necessidade de consenso pressuposto, mais ou menos fictício, e do isolamento social daqueles que se reconhecem abertamente como desviantes”480. O sistema chega a esses resultados envolvendo seus destinatários nos processos de decisão, que ganham a forma de procedimentos, de sistemas sociais que absorvem a função específica de elaborar decisões unívocas e vinculantes. Os procedimentos legitimadores são constituídos pelas eleições, pelos debates parlamentares e pelo processo jurídico. Esses procedimentos, explica Luhmann, têm a mobilidade de sistemas particulares representados caso a caso, com premissas de decisão diversas, relevantes para eles, e envolvem aquele que deles participa pelas implicações de seu papel e de sua autorrepresentação481.

A participação no procedimento precisa ser racional, tolerante. Pressupõe que o resultado, sempre aberto durante o procedimento, será aceito, ou seja, tornar-se-á premissa de expectativas e de comportamento futuro. Requer que sejam constituídos papéis particulares que neutralizam aqueles solitariamente desenvolvidos pelos participantes e que, aqui, são absolvidos segundo as regras do procedimento. Por último, comporta que “a contribuição de comunicação que é realizada com a finalidade de se 479 480 481

LUHMANN, N. Posivität des Rechts..., p. 195. Idem, p. 189. Ibid.; cf. LUHMANN, Legitimation durch Verfahren..., p. 38 ss.

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chegar à decisão seja estilizada como comportamento livremente escolhido, e, portanto, seja imputada pessoalmente àqueles que fazem parte do procedimento”482. Assim estruturados, os procedimentos servem não apenas para produzir decisões, mas também para absorver protestos. A legitimidade que se produz pelos procedimentos é uma “disponibilidade generalizada para aceitar, dentro de certos limites de tolerância, decisões cujo conteúdo seja ainda indeterminado”483. Por meio do procedimento, ou seja, por instituições que produzem representações específicas, independentes das representações de valor institucionalizadas na sociedade, o sistema busca produzir a legitimação de si mesmo e de seu direito. Se o sistema consegue construir tal legitimação, independentemente das representações de valor, conclui Luhmann, é possível, então, “renunciar também à doutrinação de uma ideologia válida para todos os setores da vida”484.

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A TEORIA DO DIREITO E A CONSIDERAÇÃO FUNCIONAL DA CIÊNCIA

A consideração funcional do direito torna necessária uma reestruturação da ciência jurídica. A ciência deve se organizar como um sistema no qual “o trabalho em torno das teorias é uma ação como qualquer outra”485, e, assim, deve se colocar e resolver os problemas relativos à sua estrutura e ao tipo de seleções que esta opera, e, consequentemente, aquelas relativas à sua complexidade interna e aos mecanismos capazes de compreendê-la e reduzi-la. De fato, no plano evolutivo, no sistema social da ciência, verificam-se processos de diferenciação e especificação funcional. Nesses processos exprime-se o aumento da complexidade interna do sistema e, por meio deles, realizam-se as estratégias de seleção que conferem à estrutura do sistema um potencial mais alto de elaboração da complexidade autoproduzida. A ciência é, assim, um sistema altamente complexo e diferenciado no qual se elaboram mecanismos de compreensão e de redução da complexidade. Ela é um sistema que serve para transmitir a complexidade reduzida e para manter alto o grau desta redução, produzindo, assim, orientações seguras para a ação. Portanto, 482 483 484 485

LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 263. LUHMANN, Legitimation durch Verfahren..., p. 28. LUHMANN, Positivitat des Rechts..., p. 189. LUHMANN, Die Praxis der Theorie. In: Id., Soziologische Aufklärung. Auf sätze..., p. 253-67, p. 253; cf. Id., Selbststeuerung der Wissenschaft, Idem, p. 232-52.

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assim como para os outros sistemas, também para a ciência, o problema da redução de complexidade constitui a última referência em relação à qual as várias teorias se deixam interpretar por uma perspectiva extremamente abstrata como equivalentes funcionais e comparáveis, e, portanto, intercambiáveis. Uma teoria do direito reformulada, que pretenda adequar-se à complexidade de uma sociedade altamente diferenciada, deve ser capaz de desenvolver mecanismos apropriados de compreensão e de redução da complexidade de seu universo e de transmitir a complexidade reduzida. A consideração funcional do direito permite que teoria do direito desenvolva seu sistema como sistema social funcionalmente especificado e diferenciado, capaz de elaborar e resolver os problemas de sua complexidade interna e da complexidade externa. De fato, a complexidade interna que a teoria deve elaborar consiste no fato de que uma teoria científica do direito deve ser compatível com todo direito possível. Por isso, a teoria deve considerar seus conceitos como simplificações redutoras; seus conceitos devem realizar e trazer consigo um alto grau de seletividade e, portanto, devem conter um alto grau de abstração. Contudo, justamente do fato de que a teoria do direito deve oferecer soluções de problemas para uma multiplicidade de ordenamentos jurídicos possíveis, ela deve ser capaz de “conter e construir”, no seu interior, as contradições possíveis nos diversos sistemas jurídicos. Diferentemente, a complexidade externa que a teoria deve conceber e reduzir deriva da necessidade de estabelecer relações com outras disciplinas, não obstante a alta complexidade de seus objetos. Apenas uma teoria que compreenda a si mesma como sistema social que torna transmissível certo grau e certa forma de redução da complexidade, e que considera o direito também como sistema social – no qual uma forma específica de redução da complexidade é estruturada de maneira vinculante –, pode colocar-se e resolver de maneira adequada também esses problemas relativos à relação entre a “ciência” e seu “objeto”, ou seja, os problemas relativos à relação entre as estruturas dos sistemas recíprocos. Que o universo da ciência se adéque ao universo do próprio objeto, significa, de fato, que, diante da crescente complexidade do sistema social do direito, o sistema social da ciência reage acionando processos altamente seletivos que estabilizam estruturas capazes de compreender e reduzir a complexidade do universo do direito, e de torná-la, assim, transmissível, não obstante o escasso potencial da atenção humana. Luhmann não enfrentou de maneira orgânica o problema da teoria do direito, motivo pelo qual permanece obscuro o modo no qual se

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constitui a estrutura que organiza e seleciona a práxis teórica em torno do direito, e, consequentemente, permanece obscuro o problema dos problemas da teoria do direito como estrutura autônoma no sistema da ciência jurídica. É certo, de qualquer forma, que à teoria do direito Luhmann atribui um posto particular depois do reservado à sociologia do direito. O tema que, até agora, interessou a Luhmann é, mais do que outros, as relações entre sociologia e teoria do direito, e, de fato, o segundo volume da Rechtssoziologie encerra-se com uma série de perguntas feitas à teoria do direito e com uma série de indicações para uma colaboração entre sociologia e teoria do direito. Colaboração que deve permitir à teoria do direito apropriar-se do ponto de vista funcional-estrutural e de reconstruir seus problemas segundo a perspectiva nele contida. A ciência do direito interessa-se pela realidade simbólica do direito, enquanto a sociologia se interessa pela realidade social do direito. A ciência trata o direito como um contexto simbólico significante. Portanto, ela pode pretender sua autonomia em relação ao saber sociológico, não enquanto é ciência do dever ser, mas enquanto tem por objeto uma “condensação de sentido que contém o direito em um horizonte restrito do possível e o torna interpretável”486. Essa condensação de sentido, sua forma simbólica expressa nas figuras do direito e a redução de complexidade operada pelo direito constituem o que, de maneira tradicional, se diria objeto da ciência. Uma teoria geral do direito, escreve Luhmann, que hoje ainda é nada mais que um postulado, poderia se dedicar às questões conexas à particular função desta condensação simbólica do direito, aos seus modos de redução, às suas formas gerais, ao nível de suas pretensões de consistência e à problemática interna, consequente, que se deve esperar para cada condensação seletiva487.

Entendida como dogmática, a ciência do direito é ciência de decisões. Nesse sentido, ela recebe da sociologia do direito indicações úteis para elaborar as informações necessárias às decisões que deve tomar 488. Entendida, diferentemente, como teoria geral do direito, ela estuda as figuras de pensamento nas quais se fixa aquela condensação de sentido estruturada pelos processos de generalização congruente das expectativas de comportamento. Tanto para a ciência jurídica entendida como dogmá486 487 488

LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 354. Ibidem. Cf. LUHMANN, N. Rechtssystem und Rechtsdogmatik, Kohlhammer, Stuttgart 1974 [tr. it. de FEBBRAJO, A. Sistema giuridico e dogmatica giuridica. Bologna: Il Mulino, 1977].

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tica, quanto para a ciência jurídica entendida como teoria geral do direito, a sociologia, que se apropria da abordagem funcional-estruturalista, oferece um ponto de referência necessário para a reelaboração funcional dos problemas do sistema do direito. Para indicar quais vantagens a teoria do direito pode retirar da sociologia que desenvolve a consideração funcional da ciência, Luhmann examina rapidamente três problemas em torno dos quais se articulou, até o momento, a reflexão da teoria do direito. Acredita que, em relação ao problema da unidade do direito, da relação entre direito e tempo e da relação entre direito e ilícito, a teoria do direito ainda não foi capaz de construir estruturas capazes de se adequar à complexidade do sistema do direito, ou seja, não foi capaz de construir sistemas igualmente complexos capazes de fornecer instrumentos de análise e de guia dos processos de seleção sobre os quais se estabiliza a estrutura das expectativas normativas de comportamento. Consideremos o problema da unidade do direito. Até então, diz Luhmann, a unidade do direito “foi articulada ou por meio de um princípio jurídico, ou pela forma de conexão de diversas normas jurídicas, ou por ambos”489. Como princípio jurídico, foi articulada por meio da forma de conexão fundamental ou da natureza humana, enquanto a conexão entre as diversas normas jurídicas foi regulada pela hierarquia das fontes e das matérias jurídicas. Trata-se de princípios e critérios caracterizados pela invariabilidade e pela rigidez, e, de qualquer forma, de esquemas incapazes de entender os mecanismos de generalização pelos quais se estrutura o sistema do direito, sua complexidade extremamente alta e as relações de interdependência, de compatibilidade e de congruência que os ligam. A ciência do direito, na verdade, fez do problema da unidade do direito o princípio da própria unidade; ou seja, não foi capaz de problematizar suas hipóteses de base, que, diante da crescente complexidade do sistema do direito, revelaram insuficientes-se, pobres de alternativas, escassamente abstratas, construídas com base em poucas hipóteses em torno do mundo. Isso vale não apenas para as teorias que construíram a unidade com base em um princípio estático e invariável, mas também para outras teorias mais complexas. A representação hierárquica do sistema do direito, por exemplo, constitui uma forma suficientemente desenvolvida de compreensão da unidade do direito em relação à complexidade do sistema jurídico: não apenas coloca de maneira bem articulada a questão da positividade, da produção das normas e de seu pertencimento ao sistema, mas também permite enfrentar a questão do não ser, na nega489

LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 355.

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tividade do direito. Mas, uma vez que a solução que ela dá ao problema da positividade não considera que a positividade do direito é, ao mesmo tempo, sua contingência, não é capaz de abordar e problematizar a função positiva do negativo, do não ser, sua função na estrutura contraditória do positivo, cuja normatividade é ligada a atos de decisão. Na realidade, essa construção elide a negatividade e seu problema. Ela coloca o não ser do direito e o ilícito fora do sistema, em um exterior caótico, indiferenciado e absoluto, e reduz toda negação interna ao sistema à forma de uma pura relação marginal, à qual atribui compatibilidade e delimitabilidade490.

Do ponto de vista funcional, esses princípios e critérios devem ser considerados como opções que são problematizadas e analisadas em relação às funções por elas assumidas. Portanto, a unidade do direito não é uma construção teórica estável, não é o indício da solidez que se consegue criar em torno de um princípio mais ou menos abrangente das possibilidades de transformação real do direito. Considerada funcionalmente, a unidade do direito é “a congruência de estruturas de expectativas em diversas dimensões, que se produz sob a condição de que variam segundo a evolução e que se exprime em formas que também variam segundo a evolução”491. A unidade do direito, portanto, é um problema que permite colocar corretamente outros problemas – pensemos naquele relativo ao não ser e à negação do direito – e considerar funcionalmente suas soluções, ou seja, de estabilizar os limites do sistema e a estrutura de suas seleções, mantendo sempre alto o nível de contingência, a margem do risco e do possível no direito. Não são diferentes as dificuldades que se colocam para a teoria do direito quando ela enfrenta o problema da relação direito-tempo, ou seja, o problema da validade do direito. Ela tem um conceito unitário de validade com o qual opera com uma “grandeza simples”. Esse conceito unitário impede que a teoria do direito considere a diferença entre passado, presente e futuro, e reduz a transformabilidade do direito positivo à “representação de uma sequência temporal em relação à qual podem ser precisados os tempos de validade”492. A teoria do direito priva-se de possibilidades cognitivas cuja falta pode colocar em perigo sua prática sobre o direito se ela não esclarece para si mesma a “função da negação na constituição da experiência temporal”. 490 491 492

LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 356. Idem, p. 357. Idem, p. 359; e também as páginas citadas em seguida.

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O que é a normatividade, pergunta-se Luhmann, se não a negação do futuro como horizonte temporal que deixa abertas outras possibilidades? E o que é a positividade do direito, se não a negação do passado como horizonte temporal que elidiu outras possibilidades?

Também nesse caso, que interessa a um tema central da teoria do direito, a sociologia oferece à teoria um ponto de referência problemático a partir do qual esta pode repensar suas construções e renovar seus instrumentos interpretativos. Consideremos, por último, a relação direito-ilícito. Analogamente à possibilidade linguística de transformar, por uma negação, o ser em não ser, a teoria do direito concebeu o ilícito como negação do direito, estabelecendo uma simples relação simétrica entre eles. É uma relação, explica Luhmann, que, do ponto de vista lógico, não é necessária, enquanto que, do ponto de vista sociológico, não é sustentável. A pesquisa sociológica demonstrou que o dever ser não é uma qualidade ontológica simples, intuitiva, e submeteu o dever ser a uma análise funcional pela qual o dever ser emerge como um complexo contingente e estruturado de expectativas de comportamento, estabilizado por meio de um tratamento normativo da frustração, ou seja, um tratamento não disposto ao aprendizado. Uma concepção do ilícito que não queira ser redutora e simplista deve desenvolver sobre a negação do dever ser abordagens que considerem presentes a complexidade e a estrutura das implicações do dever ser. O ilícito também deve ser representado, diz Luhmann, como uma “combinação entre generalização e reflexividade”493. E observa que “generalização significa indiferença, significa que aquilo que é negado não precisa ser especificado, quando eu me dirijo a algo determinado em um horizonte de outras possibilidades”494. Reflexividade significa que a negação pode se referir a si mesma, pode “se cruzar, se corrigir, e permanecer suspensa em uma provisoriedade insuperável”. Uma concepção da relação direito-ilícito que permanecesse ancorada a uma representação puramente simétrica da relação entre o dever ser e sua negação não teria qualquer potencial para compreender a complexidade do universo normativo e seria levada a trocar por propriedades ontológicas os processos sociais altamente desenvolvidos. Dessas rápidas indicações, emerge com suficiente clareza a necessidade de uma estreita colaboração entre a sociologia do direito que 493 494

LUHMANN, Rechtssoziologie..., p. 361-2. Idem, p. 362: “Desse modo [continua Luhmann], a negação implícita funciona no momento de continuidade de toda experiência que pode constituir sentido – indicando outras possibilidades, mas excluindo-as em bloco”.

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usa a abordagem funcional-estruturalista e uma teoria do direito que pretenda rever seus fundamentos, problematizando os modelos com base nos quais havia tradicionalmente construído sua cientificidade. Emerge, em particular, a necessidade de repensar o papel e a função da teoria do direito em relação ao sistema do direito, e, por último, impõe-se a exigência de delinear, em um contexto interdisciplinar refundado com base na perspectiva funcional-estruturalista, as tarefas do saber teórico sobre o direito positivo. Para esses problemas Luhmann voltou-se com insistência495, mas não deu um tratamento orgânico a eles. Consequentemente, ainda não estão claros os termos e os limites da pretensa autonomia relativa do saber teórico em relação a outras formas de saber sobre o direito, nem são claros os termos que devem construir o âmbito problemático da teoria. Todavia, é possível sair desta incerteza e relativa obscuridade e – com base nas recorrentes indicações dadas por Luhmann, mas ainda mais com base nos resultados adquiridos pela análise funcional-estruturalista do direito e da estrutura das teorias – buscar identificar a configuração necessária da teoria do direito, mesmo que esta “hoje nada mais seja que um postulado”.

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CONTINGÊNCIA E REPRESSÃO. TEORIA DO DIREITO E REPRESSÃO DA INSTÂNCIA MATERIAL

As concepções tradicionais da teoria do direito consideraram o direito como um sistema unitário, isolado em relação a processos externos, estável, cristalizado em um complexo cuja unidade derivava de um princípio posto ou pressuposto e cujo fim era o de regular o comportamento humano. Assumida tal concepção do sistema jurídico, a teoria do direito concebia a si mesma como teoria do sistema. Sua tarefa consistia em fixar, ordenar e expor as formas e os princípios da unidade sistemática, distinguindo no interior do sistema uma série de subsistemas, partes do todo, e o equilíbrio e a ordem que fossem indício da coerência do sistema; por último, em indicar as relações de interdependência no interior do sistema. 495

Cf. a última parte, já citada, de Rechtssoziologie: Fragen an die Rechtstheorie, p. 334-62; Id., Systemtheoretische Beiträge zur Rechts theorie, in “Jahrbuch für Rechtssoziologie und Rechtstheorie”, v. II..., p. 255-76; Id., Rechtstheorie im interdisziplinären Zusammenhang, in “Anales de la Catedra Francisco Suarez”, 12, 1, 1972, pp, 201-53; Id., Soziologische Aufklärung..., p. 80-1.

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A análise funcional-estruturalista do direito demonstrou que o sistema do direito não é um ordenamento estático de regularidades previstas do comportamento humano, não é um conjunto construído por partes que, pelo equilíbrio recíproco, regulam e ordenam a vida do sistema, e também não é um conjunto de conhecimentos ordenado segundo um ponto de vista unitário, nem, finalmente, aquele “setor do comportamento fatual no qual são elaboradas questões jurídicas”496. O sistema do direito positivo é a generalização congruente de uma estrutura de expectativas normativas de comportamento. Sua unidade deriva de uma prestação seletiva, enquanto sua positividade deve ser entendida no sentido de que o direito foi posto e vige por força de uma decisão. Portanto, a existência do direito, mas também a relação que seu sistema tem com o tempo, dependem de processos de decisão. Por meio destes processos, efetuam-se seleções dentro do universo de possibilidades, caracterizadas por altos potenciais de compatibilidade e delimitabilidade. Essas seleções constituem a estrutura do sistema. Uma estrutura que, em sua invariabilidade relativa, é e permanece ligada a processos de decisão, a processos de seleção, processos que, como vimos, não excluem, não eliminam o possível, mas o isolam, apenas o protegem, diminuem a luz que refletia viva sobre ele antes que a seleção fosse efetuada. A estrutura do sistema jurídico é produto desta seletividade, definida pelo caráter da contingência497. Portanto, o sistema do direito pode ser definido como seletividade estruturada de um conjunto de processos de decisão. Uma teoria do direito que se limitasse a ser teoria do sistema se privaria da consideração dos processos seletivos sobre os quais o sistema se estrutura e, consequentemente, se privaria da possibilidade de desenvolver mecanismos de guia e regulação do próprio sistema. Seria uma teoria positiva ou dogmática do direito, uma teoria incapaz de compreender e reduzir a complexidade dos processos seletivos que estruturam o direito e, portanto, incapaz de criar instrumentos de controle próprio desta complexidade. Seus conhecimentos seriam limitados à interpretação das proposições jurídicas, à sua identificação, e orientados à construção de um sistema de normas, entendido como sistema de proposições ordenadas com base em determinados critérios. Tal teoria seria obrigada a mascarar o problema da complexidade na medida em que não poderia enfrentá-lo. Apenas uma teoria que seja, ao mesmo tempo, teoria do sistema e teoria da decisão pode ser capaz de compreender e reduzir a complexidade do 496 497

LUHMANN, Systemtheoretische Beiträge zur Rechtstheorie..., p. 257. Cfr LUHMANN, Rechtstheorie im interdisziplinären Zusammenhang..., p. 216 ss. e Id., Ausdifferenzierung des Rechtssystems..., p. 123-5.

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direito e dos processos seletivos que o estruturam, e de elaborar, portanto, instrumentos de autorregulação e guia do sistema jurídico. A seletividade que é produzida pelas decisões e que constitui a estrutura do direito tem a característica da contingência. Contingentes são as escolhas operadas, os fragmentos do possível que são isolados e que adquirem a estrutura normativa, contingente é a própria estrutura. A invariabilidade normativa da estrutura não é ligada a princípios de valor ou a princípios lógicos, ou à natureza humana, é ligada a processos de decisão pelos quais, assim como foi constituída, pode ser transformada, e ao fato de que esta possibilidade é institucionalizada, é legalizada, está, em outros termos, continuamente presente. Portanto, o sistema do direito tem uma estrutura contingente: o problema da estrutura do sistema jurídico é o problema da contingência. E, de fato, tanto a invariabilidade do sistema, ou seja, a existência de uma seletividade estruturada, quanto a variabilidade da estrutura constituída, sua positividade, como legalização de sua transformabilidade, são processos regulados pelo princípio da contingência. Nesse sentido, a teoria do direito como teoria da decisão deve considerar como seu problema principal o da contingência das decisões sobre as quais se constitui a estrutura. O sistema do direito, como todo sistema, tende à estabilização; ou seja, tende a se afirmar e resistir em um universo mutável. Mas, para ele, estabilização significa consolidação de uma estrutura contingente cuja invariabilidade consiste na legalização da variabilidade das escolhas sobre as quais a própria invariabilidade se constitui. A normatividade do direito positivo é ligada à contingência de sua estrutura. Portanto, o sistema do direito não pode alcançar sua estabilização tornando invariável sua estrutura, reforçando seus limites ou bloqueando os processos decisórios que produzem direito. Isso é inconcebível. A única estratégia possível e segura de estabilização que o sistema pode desenvolver deve passar imediatamente pela consideração da contingência. Estabilização do sistema do direito significa estabilização de uma estrutura normativa caracterizada por uma contingência extremamente alta, ou seja, dependente de processos de decisão cujo conteúdo é variável. O problema teórico da estabilização do sistema, que é, depois, o problema da racionalidade do sistema, não pode ser resolvido restringindo e limitando o âmbito objetivo da teoria ao sistema do direito. Esse problema pode ser resolvido por uma teoria que tenha como seu âmbito objetivo específico a contingência da seletividade produzida pelos processos de decisão que constituem o direito. Em outros termos, o sistema do direito deve dispor de mecanismos de regulação da contingência, de mecanismos de guia e de orientação idôneos para a colocação de proble-

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mas cuja solução permita operar seleções dentro de conjuntos funcionalmente equivalentes; seleções cuja consistência dependa unicamente da capacidade que eles têm de estabilizar a estrutura normativa contingente do sistema. Dessa forma, a teoria do direito deve ser teoria capaz de elaborar esses mecanismos de orientação e de guia; deve elaborar regras de transformação dos problemas relativos ao sistema em problemas relativos às decisões pelas quais o sistema se constitui. A teoria do direito deve elaborar as informações necessárias à orientação do sistema pela colocação de problemas cuja solução regule a contingência das seleções com base nas quais se constitui o sistema. O problema dos problemas do direito e, assim, o problema da teoria do direito, é a regulação da contingência das seleções sobre as quais o sistema se estrutura. Transformando os problemas relativos ao sistema em problemas relativos às decisões, elaborando as regras dessa transformação, em outros termos, constituindo níveis de abstração suficientes para colocar em movimento mecanismos de seleção das soluções de problemas capazes de estabilizar o sistema do direito, a teoria do direito torna-se o lugar de produção, de gestão e de controle da racionalidade do sistema jurídico. A teoria do direito ligada a uma concepção do sistema entendido como conjunto constituído de partes, cuja harmonia garante a harmonia do todo, concebia a racionalidade como uma contribuição ordenatória, resultado da aplicação do esquema teórico ao seu âmbito objetivo. Segundo aquela concepção, a racionalidade era uma qualidade imanente à teoria reproduzível no sistema, que, assim, adquiria as características atribuídas a ela pela teoria. Desse modo, o sistema também era transformado em uma entidade objetiva e racional, isolável pelos instrumentos da teoria, e isolada de todos os processos de interação com os outros sistemas, que constituíam seu universo. A teoria não contribuía para a compreensão da complexidade, nem para a redução dessa complexidade. Ela permanecia substancialmente estranha aos problemas do sistema, mesmo que afirmasse sua legitimidade declarando sua derivação a partir da observação do mundo. A teoria, de fato, colocava-se o problema da contingência como problema do universo, não como problema do sistema. Diferentemente, a consideração funcional da teoria trata a teoria como um sistema social de redução da complexidade e de transmissão da complexidade reduzida. A racionalidade da teoria não depende de sua capacidade de reproduzir esquemas objetivos, de sua idoneidade para articular seu âmbito objetivo segundo esses esquemas, mas da sua capacidade de compreender e reduzir a complexidade de seu âmbito objetivo, em outros termos, da sua idoneidade para elaborar soluções para os pro-

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blemas relativos à estabilização do sistema do qual é teoria. Portanto, a teoria é o lugar no qual são elaboradas soluções, funcionalmente equivalentes entre si, para os problemas vitais do sistema. A relação entre sistema como âmbito objetivo da teoria e a própria teoria, portanto, se inverte, e, com isso, inverte-se também a concepção da racionalidade da teoria. A racionalidade da teoria é uma racionalidade funcional, imanente às soluções elaboradas para os problemas postos pelo sistema. O problema fundamental do sistema é constituído pela sua estabilização em um universo durável: racional é a teoria que compreende e reduz a complexidade do sistema, elaborando mecanismos de autorregulação e de guia que orientam o sistema reforçando sua estrutura e consolidando seus limites, ou seja, estabilizando-o. A racionalidade da teoria, então, é imediatamente a racionalidade do sistema. A racionalidade do sistema do direito é a racionalidade das soluções dos problemas postos pela estabilização de sua estrutura normativa contingente. A racionalidade da teoria do direito é a racionalidade de um sistema social que dispõe de mecanismos de autorregulação, de guia e de controle das soluções para os problemas postos pela estrutura normativa contingente do sistema jurídico nos processos de sua estabilização. A teoria é racional se consegue fornecer aos problemas do sistema soluções racionais. E, para o sistema do direito, são racionais as soluções de problemas que estabilizam sua estrutura, protegendo-a de ameaças, reforçando sua segurança498. A racionalidade da teoria não depende do respeito a certo conjunto de regras, assumidas como garantia de objetividade ou de verdade, nem do fato de que um esquema conceitual mais ou menos abstrato de interpretação da realidade consiga reproduzir essa realidade como conjunto privado de contradições, dar a essa realidade uma exposição coerente, empiricamente verificável. Mas também não depende do fato de que a realidade se apresente por meio da teoria, como a exposição de um princípio abstratamente fixado e que dizemos ser imanente a esta realidade. A racionalidade da teoria é sua capacidade de estabilizar o sistema pela regulação da contingência e da redução da complexidade. A teoria do direito que estrutura um sistema no qual devem ser criados instrumentos e mecanismos capazes de oferecer soluções ao problema da contingência só é racional em relação à funcionalidade dessas soluções para a racionalidade do sistema; só é racional se as soluções que elabora são racionais no 498

Cf. entre os trabalhos mais recentes de LUHMANN, N. Interpenetration. Zum Ver hältnis personaler und sozialer Systeme. In: Zeitschrift für Soziologie, VI, 1, 1977, p. 62-76.

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sentido do sistema, só se compreende e reduz a complexidade do sistema, ou seja, se o estabiliza com base na sua contingência. Redução da complexidade do sistema jurídico no plano da contingência significa que as seleções das quais é constituída a estrutura do sistema se estabilizam deixando alto o nível de sua variabilidade. As seleções que constituem a estrutura do direito servem para orientar e facilitar o comportamento humano que age com base em sistemas de expectativas. Porém, essas seleções não devem ser vistas, conscientemente, pelos sujeitos, como seleções, não devem ser vistas como escolhas cuja finalidade é estabilizar o sistema em um universo complexo e mutável. Devem ser aprendidas e vistas pelos sujeitos como fórmulas substitutivas de sua insegurança diante da complexidade do mundo, como orientação segura para o comportamento, que não pode ser posta em discussão, que não pode ser problematizada ou controlada. Os mecanismos de generalização e as estruturas de expectativas absorvem essa função de ilusão sobre a complexidade do mundo e, portanto, de facilitação do comportamento, substituindo a realidade pelas premissas normativas de elaboração da experiência. As estruturas normativas são seleções já efetuadas, são complexidade já reduzida, e, portanto, instrumentos facilmente utilizáveis para orientar e regular as expectativas de comportamento em sujeitos dotados de um escasso potencial de atenção. Essas estruturas generalizadas são vistas como segurança, como certeza; se colocadas em discussão, correriam o risco contínuo de serem enfraquecidas, ou realmente rompidas, enquanto a certeza e a segurança que procuram no mundo seriam postas em perigo. A seletividade das estruturas só aparece para os sujeitos como fórmula substitutiva de sua incerteza, como orientação estável para a ação, se cria e estabiliza nos sujeitos uma profunda ilusão sobre a complexidade do mundo, e esconde dos sujeitos o problema fundamental do sistema, que é o de sua estabilização, e, finalmente, consegue dar para esse problema uma formulação que é possível elaborar no interior do sistema. Mas a seletividade da estrutura significa que a estrutura se constitui substituindo a complexidade da realidade pelo produto da seleção, que são as premissas normativas, ocultando a real complexidade, iludindo a respeito da complexidade do mundo pelas decisões que reprimem os espaços da realidade que não são funcionais ao sistema e à sua estabilidade, e os isolam no mundo do possível. Possível é o espaço da realidade que é reprimido e mantido latente. Portanto, seletividade da estrutura significa produção de latência499. Significa que, por processos seletivos, 499

Ao problema da latência na teoria de Luhmann chamou particularmente a atenção Giegel, Op...., pp. 15 ss.

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são produzidas simplificações para a ação. Significa que é acumulada latência, que espaços reais são reprimidos no possível. A possibilidade, como universo da latência construído por processos seletivos, é repressão. Portanto, redução da complexidade significa repressão. Deslocamento dos problemas do universo para problemas relativos ao sistema significa repressão de determinados espaços reais e seu isolamento no universo da latência com base em processos seletivos funcionais para a estabilização do sistema. Todos os problemas que o sistema deve enfrentar e resolver são, em última instância, relativos à sua estabilização. A produção de latência é, entre esses problemas, o mais perigoso para o sistema, mas, de sua solução racional, o sistema pode esperar vantagens consistentes. Latente deve permanecer tudo aquilo que o sistema não pode aceitar como produto de suas decisões, tudo aquilo que o sistema não pode ter em seu interior na medida em que poderia desestabilizá-lo. Assim como o sistema é indiferente a tudo o que o estabiliza, no sentido de que as decisões funcionais para sua racionalidade, ou seja, para sua estabilização, são funcionalmente equivalentes entre si, ele é altamente sensível a tudo o que, emergindo do estado de latência, possa constituir uma ameaça para sua estabilidade em um universo mutável. A congruência das generalizações de expectativas de comportamento é uma congruência funcional para o sistema e para os problemas de sua estabilização. O sistema realiza generalizações mais congruentes quanto mais consegue produzir abstração e indiferença. Apenas em um alto grau de abstração e indiferença as decisões do sistema podem ser congruentes, altamente compatíveis e delimitáveis entre si, e, dessa forma, funcionalmente equivalentes. Em outras palavras: apenas se o limiar da latência produzida no sistema é mantido constantemente alto, o sistema, dada a escassez de consenso real, consegue criar as condições de produção de consenso fictício indispensável para sua estabilização. O primeiro problema que o sistema deve enfrentar para colocar em movimento os mecanismos de sua estabilização é, portanto, relativo à produção de latência e à manutenção de um limiar constantemente alto da latência produzida. O próprio problema da contingência deriva e é funcional em relação ao da latência. A contingência das seleções operadas pelo sistema significa nada mais que a possibilidade de variação do limiar de latência em sentido funcional para a estabilização do sistema. Mas a funcionalidade da contingência das seleções em relação à latência produzida exprime-se no seguinte: a latência produzida permanece como latência justamente porque as seleções são contingentes. As seleções que produziram a latência, de fato, apenas isolaram no universo do possível aquilo

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que foi reprimido, e mantêm aberta a possibilidade de que, no futuro, o reprimido torne-se objeto de decisão. O mecanismo da contingência, positivamente, portanto, serve para produzir consensos fictícios ulteriores, desfrutando justamente da latência, do reprimido, na medida em que, dada a contingência da decisão com base na qual foi produzido, o reprimido pode sempre se tornar objeto de escolha. A contingência das seleções comporta, assim, uma aceitação do presente, uma cooperação da produção contínua do presente, na medida em que a estrutura sobre a qual este, a cada vez, se constitui é, ao mesmo tempo, repressão e confiança de que os mesmos instrumentos repressores que produziram as ilusões sobre o presente possam, no futuro, liberar o reprimido mantido latente. A positividade do direito realiza, na sociedade moderna, a situação na qual a contingência da estrutura normativa estabiliza o sistema do direito, desfrutando funcionalmente da latência que ele mesmo produziu como efeito das seleções com base nas quais se constituiu. Mas latência é repressão de espaços reais, é repressão de determinadas orientações de ação, é repressão de necessidades que, caso se tornassem reguladoras das seleções, poderiam ameaçar a estabilização do sistema de escolhas já operadas. Justamente por isto, o sistema necessita de mecanismos de generalização que servem para produzir estabilidade aumentando abstração e indiferença. E a indiferença do sistema é inócua, não no sentido de não produzir repressão, violência, mas de que a repressão produzida e a violência usada no real pela indiferença do sistema sejam contingentes, possam ser diferentes. Mas caso também se verificasse essa hipótese da possível coincidência entre interesse repressor e estabilização pela produção de latência, e de satisfação de determinadas necessidades retidas, por exemplo, pelos sujeitos portadores, vitais, a violência consistiria no fato de que essa coincidência, em sua casualidade, seria construída com base na ignorância dos sujeitos portadores das necessidades e do interesse. De fato, a redução da complexidade é uma operação da qual só o sistema é capaz – e não os sujeitos – com base em critérios imanentes e internos de estabilização, mas é, sobretudo, uma operação que se constitui com base na ilusão, na ocultação, na ignorância da complexidade real. Constituído com base na seletividade de uma estrutura variável, ou na possibilidade de operar contínuas seleções entre soluções funcionalmente equivalentes com base em uma profunda ilusão sobre a complexidade do mundo, o direito positivo é mecanismo eficaz de redução da complexidade justamente porque é mecanismo altamente produtor de latência, ou seja, de repressão.

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A relação funcional entre contingência e latência, estabelecida no sistema do direito positivo, constitui uma aquisição altamente produtiva para os fins de estabilização de mecanismos repressores, capazes de assegurar consenso em um universo que dispõe em medida muito escassa desse recurso. O direito, de fato, regulando a produção de suas seleções no plano da contingência, cria segurança aumentando continuamente a insegurança e, ao mesmo tempo, a confiança. O direito substitui a realidade por premissas normativas como indiferença e abstração da própria realidade; identifica e generaliza contextos de sentido que orientam a ação reprimindo como não sentido os contextos de sentido que poderiam ser disfuncionais para a estabilidade do sistema, e mantendo-os latentes. O direito positivo moderno, em suma, estabiliza-se como sistema da repressão dos contextos de sentido que as seleções com base nas quais se constitui a estrutura isolaram como contextos não funcionais para o sistema. A latência produzida pelo direito é o universo daquilo que o direito, constituindo-se como generalização de expectativas, reprimiu. Esse universo marginalizado, todavia, existe não como realidade, mas como possibilidade; ou seja, não existe pelo que efetivamente é, o reprimido, mas por aquilo que pode ser. Potencialidade que o direito se reserva de usar em seu processo de estabilização, ou seja, toda vez que a contingência dos comportamentos se torne tão alta que não seja mais suportável pelo sistema – em outros termos, toda vez que, do universo do reprimido, surja a consciência da repressão ameaçando o sistema. O sistema, então, reage, elaborando seletividades ulteriores, procurando novos instrumentos e mecanismos de regulação da contingência, isto é, produzindo latência em outros setores inócuos para o sistema. Mas não somente. O negativo, o reprimido, o marginalizado, não deve aparecer pelo que é, não deve aparecer como realidade, porque seria expressão notavelmente negativa da seleção, expressão do positivo que está além das simplificações oferecidas pela seleção, expressão daquilo que é sentido e visto como real e realmente expresso. O negativo deve aparecer como possibilidade positiva, como potencialidade de eventuais transformações. Assim, o reprimido adquire uma funcionalidade positiva para a estabilização do sistema. A repressão não é, em outros termos, um processo que se fecha, um processo limitado, de escassa eficácia. A repressão é um mecanismo reflexivo, um mecanismo que, aplicado a si mesmo, potencializa as capacidades da seletividade que estrutura. O mecanismo reflexivo de produção de latência permite, assim, ao sistema do direito, estabilizar-se no plano da contingência. Quando Luhmann afirma que a positividade do direito é pressuposto de uma sociedade moderna, pretende dizer que o mecanismo que estabiliza a socieda-

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de moderna, aquilo que constitui a maior aquisição evolutiva desta sociedade, é o direito positivo, ou seja, o mecanismo de produção de um alto grau de repressividade contingente, de latência, da qual esse mecanismo regula “a proteção” por meio de processos de decisão que os destinatários aceitam sem colocar em discussão, iludidos a respeito da complexidade do mundo, ou seja, sobre sua própria realidade. A generalização das expectativas, a congruência das generalizações, a tridimensionalidade do mecanismo de generalização, a contingência desse mecanismo, assim como a intervenção no sistema de expectativas, e não nos comportamentos, configuram um único processo que serve para produzir um alto grau de repressão e para mantê-lo constantemente suportável. A produção de latência é, assim, essencial à constituição da estrutura jurídica, enquanto o coeficiente de latência produzida é funcional para sua estabilização. O coeficiente de latência permanece, de fato, variável; a produção de latência, ao contrário, constante. Esta assume duas funções que, referidas a si mesmas, criam as condições do desenvolvimento da sociedade moderna pela estabilização do sistema repressor do direito positivo. Por um lado, a latência, como condição positiva, fatual, da estabilização do sistema jurídico no plano da contingência, oferece ao sistema uma margem de praticabilidade, de possibilidades que ele não poderia ter se fosse fossilizado no plano da pura invariabilidade normativa. A contingência estabilizada com base na latência é riqueza de recursos, é disponibilidade de reações imediatas, capacidade de adaptação, segurança de que do que foi reprimido só poderá prevalecer o que o sistema tenha racionalmente selecionado. Por este mecanismo, que é a aquisição mais moderna, que é o mecanismo mais complexo do qual dispõe o direito, o sistema tem a possibilidade de acumular muitos recursos em um universo no qual todos os recursos são limitados: como recurso, a latência produzível é ilimitada. Se os mecanismos de autorregulação interna do sistema desenvolvem altos graus de compatibilidade e de delimitabilidade recíproca, a congruência desses mecanismos pode desenvolver latência em grande quantidade. O grau de repressão que pode ser reunido pelo direito positivo só é limitado pelo interesse do sistema em não correr riscos; e correr riscos comporta, para o sistema, a necessidade de apresentar mecanismos suplementares capazes de compreender e reduzir a complexidade autoproduzida no próprio sistema, pela produção suplementar de latência. Por outro lado, como produto da seleção, isolada no possível, reduzida a puro risco do diverso, a incerteza, dúvida, a latência é universo

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subtraído à elaboração consciente da experiência, é realidade protegida, mascarada. Ela produz confiança nas instituições, segurança nas escolhas operadas por mecanismos de seleção, é obscuridade sobre a qual não deve se acender a luz das escolhas, porque haveria o risco de iluminar o negativo. Entre a obscuridade da latência e o brilho do positivo produzido pela seleção, interpõe-se a vontade que sabe, a vontade que ilumina a decisão dos instrumentos de generalização que servem para eliminar o mal do mundo, para reprimi-lo. O sistema do direito, dizíamos, estabiliza-se produzindo latência e tornando-a suportável, generalizando as estruturas normativas de expectativas e vinculando-as a processos de decisão que mantêm alto seu grau de contingência, estabilizando a variabilidade da invariabilidade produzida, reduzindo a complexidade por atos de seleção e produzindo mecanismos de redução da complexidade autoproduzida no sistema. Mas a estabilização é um processo, seu desenvolvimento põe ao sistema um conjunto crescente de problemas. Elaborar soluções para estes problemas é tarefa da teoria do direito. A teoria do direito é o lugar no qual são produzidas e planejadas, controladas e geridas, soluções racionais para os problemas postos pelo sistema. A teoria do direito é a torre de controle do sistema produtor de latência. A latência é condição funcional para a produção das seleções sobre as quais se constitui o sistema do direito e o controle racional da latência é condição de estabilização do próprio sistema. A teoria do direito elabora as regras de transformação dos problemas do sistema em problemas de decisão. Elabora as abstrações necessárias para estabelecer os índices de indiferença e de instabilidade do sistema exposto ao risco contínuo que deriva da produção de latência. A teoria do direito é teoria racional da repressão. Sua condição de possibilidade é a existência de latência, de repressão, e de não saber sobre o mundo. A existência de dúvida e insegurança, de ilusões sobre a realidade, de um agir inconsciente, manipulado por interesses do sistema, de um agir ao qual é subtraída a dimensão oculta da realidade da repressão isolada no universo do possível. A finalidade da teoria do direito é produzir repressão em quantidade sempre crescente, produzir seleções de sentido funcionais para o sistema, fornecendo ao sistema mecanismos de autorregulação e de guia, ou seja, mecanismos de absorção do não sentido acumulado na ação funcional à estabilização do próprio sistema, produzir abstração e indiferença capazes de valorizar o capital de repressão acumulado, e de torná-lo capaz de reagir imediatamente contra o risco de que o reprimido emirja à consciência.

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A teoria do direito é o sistema de racionalidade que fornece ao sistema do direito os instrumentos e as indicações para a autorregulação e a guia das seleções de soluções capazes de controlar, pela variabilidade do limiar de latência, a estabilização do sistema. Portanto, se é verdade que a racionalidade da teoria é a racionalidade do sistema do direito, é verdadeiro que o direito positivo pode ser racional apenas na medida em que dispõe de uma teoria do direito capaz de elaborar os instrumentos e as indicações-guia para decisões racionais, ou seja, para as decisões que estabilizam o sistema. Como teoria da decisão, a teoria do direito elabora mecanismos de autocontrole e guia do sistema jurídico no sentido de que estabelece o limite de latência do qual o universo jurídico é capaz, ou seja, estabelece o grau de repressão reproduzível no sistema, fixa o grau de não saber sobre o mundo necessário para mascarar a realidade e para permitir aos mecanismos de decisão praticarem sobre a realidade aquela violência que o sistema, estabilizando-se, exibirá como complexidade reduzida.

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PÓS-ESCRITO (1998) REDESCRIÇÃO Ciência do direito e legitimação foi publicado pela primeira vez há vinte anos. Um outro livro, se dirá; um outro autor. Na realidade, é o mesmo livro, assim como the same is different. E é o mesmo autor, assim como tudo começa com já ter começado [alles beginnt mit Schonbegonnenhaben]. Por isso, aceitei republicar este trabalho e reapresentá-lo, especialmente aos estudantes. A eles que conhecem a linguagem da incerteza e vivem a improvável conexão com um futuro que não pode começar. A eles que, no presente, vivem a precariedade de uma razão que não tem mais razão. A eles dedico esta nova edição, totalmente igual à primeira, enquanto creio poder explicar que o direito vale porque pode não valer, que o direito não tem direito a ser direito e que, justamente por isto, a democracia é possível na sociedade moderna. Buscamos por todos os lados o incondicionado, o absoluto [Wir suchen überall das unbedingte], dizia Novalis, e encontramos sempre só coisas [und finden immer nur Dinge]. Atitude não diversa teve a ciência jurídica em relação ao direito e tem, provavelmente, a atual reflexão sobre o direito. 1. Ciência do direito e legitimação é uma história do pensamento da contingência (Kontingenzgedanke) no direito. A história é escrita do ponto de vista da ciência jurídica. E a ciência jurídica condensa a perspectiva a partir da qual o direito observa a si mesmo. Trata-se de uma perspectiva necessária porque por meio dela o direito torna possíveis suas operações. Em outras palavras, o direito reflete sobre si pela ciência jurídica e esta reflexão permite ao direito funcionar como direito. E, de fato, as preocupações teóricas em torno do direito reforçam-se, multiplicam-se, aprofundam-se quando se estabiliza o processo de positivação do direito. O problema do conhecimento do direito, como uma questão diferente das questões ligadas ao aprendizado do material jurídico ou à sua interpretação, como problema do conhecimento, como tema de preocupação teórica, impõe-se em toda sua importância justamente quando não é mais um

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problema teórico. O problema da fundação impõe-se quando não é mais um problema. Feuerbach o havia expressado com muita clareza: nós devemos dar um fundamento estável ao direito, que é mutável, que pode mudar. O problema, então, é: como? Uma ciência jurídica não mais apenas classificatória, não mais apenas ordenatória, desenvolve-se com esta função específica: dar um fundamento a um direito que não tem fundamento porque funda a si mesmo. É o paradoxo constitutivo do direito positivo moderno. É o paradoxo da contingência do direito. Inicialmente, esse paradoxo é temporalizado. Depois, é internalizado. A jurisprudência dos conceitos descreve essa estratégia de internalização do paradoxo constitutivo do direito moderno. O direito é direito porque não dispõe de um fundamento que o legitime como direito, para além do fato, do fato empírico, de que é direito. Em outros termos, o direito implica a si mesmo. O problema real, portanto, não é o fundamento, não é a determinação de um percurso da fundação, mas, sobretudo, a possibilidade de descrever a autoimplicação. O problema não é constituído pela determinação de princípios, mas pela indicação da distinção que se usa para construir e reproduzir a diferença: a diferença entre direito e o que não é direito. A ciência jurídica moderna acompanha o processo de positivação do direito e se especifica, primeiro, como método de legitimação da contingência com base no fundamento. Depois, como técnica de construção de conceitos a partir de conceitos. Depois, como técnica de conhecimento, ou seja, de delimitação do objeto. Neste trabalho da teoria, o observador é o próprio direito. O trabalho da teoria é sempre o trabalho de um observador. Aqui, o observador é o próprio direito, que se observa por meio de suas operações. Para tornar possíveis essas operações, o direito, contudo, deve ocultar de si mesmo seu paradoxo constitutivo. É o paradoxo da autoimplicação, da fundação que é privada de fundamento. Por outro lado, esse paradoxo só pode ser observado a partir do exterior do direito. Do interior não se vê porque não se pode ver. Se fosse tornado manifesto, o direito se bloquearia a si mesmo. Como a moral, que, no fundo, procede do mesmo modo. O trabalho da ciência, assim, torna-se útil e necessário para o direito, não obstante seu escasso potencial para o conhecimento e não obstante se autoapresente como estratégia de conhecimento do direito. Nesse seu trabalho, a ciência jurídica usou todos os recursos que, em cada momento, estavam disponíveis no horizonte da epistemologia, no longo horizonte no qual se desenham as posições de possíveis observadores, ou seja, as posições a partir das quais é possível construir distinções que tornam possível a determinação do objeto de conhecimento.

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Os rótulos nós conhecemos: hermenêutica e direito, teoria crítica e direito, teoria analítica e direito, racionalismo crítico e direito, entre outros. 2. Ciência do direito e legitimação percorre o desenvolvimento da ciência jurídica moderna. Porém, utiliza uma perspectiva de observação particular. Observa o modo com o qual a ciência oculta o paradoxo da autoimplicação do direito. E, às vezes, tenta desvelar essa ocultação mostrando os limites da construção científica e da reflexão sobre a ciência e indicando os êxitos da técnica dessa construção. Dizemos da técnica porque, apesar da diversidade dos programas, a técnica é a mesma. A distinção utilizada é a distinção entre inclusão/exclusão. A técnica da construção do objeto torna invisível essa distinção, que, porém, é a distinção que permite ao direito afirmar-se como estrutura seletiva universal da exclusão pela prática da inclusão universal. Apenas uma estrutura seletiva que se diferencie como estrutura que se autoimplica – esse é o direito moderno e nisto consiste sua modernidade –, apenas uma estrutura assim pode operar a inclusão universal e pode conter, ao mesmo tempo, uma alta variabilidade estrutural. Pode manter-se aberta, ou seja, justamente porque é fechada, porque se condiciona a si mesma. Dispõe de altos níveis de imunização, ou seja, de indiferença seletiva. Indiferença em relação ao ambiente. Essas características da estrutura, essa indiferença, chamamos de abstração. Hegel não era um cão morto, como dizia Marx. E nem Marx. Os pudores deturpam o pensamento e a reflexão escava sem vergonha as tramas das grandes semânticas da modernidade. A abstração, dizia Hegel, também se torna uma determinação da relação recíproca dos homens entre si. Era esta casualidade infinita, die unendliche Zufälligkeit, o mundo, no qual se deve comandar, simplesmente comandar. Como diz Hegel: a razão é presente. Dessa razão, Luhmann disse ser a nova barbárie. A barbárie da exclusão. A este mundo da exclusão chamamos instância material. Era a materialidade da produção de sentido, era o outro, o diverso, o excluído, o resultado indiferente da indiferença e da imunização. Era aquilo que Hegel chamava de das absolut Harte [a absoluta dureza]. Hegel havia visto e descrito a autoconstituição da razão no presente. Mas a havia visto como conclusão. Este é o problema. A sociedade, assim como o direito, não se autoconclui. Não são programas finalísticos. Não realizam fins. Não há nada deles que esteja fora deles. Este é o problema da dialética. É o problema de Marx, que, entretanto, não descreve a autoconclusão da sociedade, ou, pelo menos, não observa a razão no presente. Ele se ocupa da correlação entre a estrutura da sociedade e

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semânticas da autodescrição da sociedade. É notório, escreveu Luhmann, que Marx utiliza para tal fim o conceito de estruturas de classe e constrói uma tipologia dos modos de produção que se transformam e que geram ideologias. Poder-se-ia estender este conceito pela substituição de classes por formas de diferenciação. O que predisporia a sociologia do conhecimento clássica a uma maior complexidade estruturada e nos daria a possibilidade de aplicar o elaborado quadro conceitual da teoria dos sistemas de modo a especificar com maior precisão as formas de diferenciação. Portanto, diferenciação torna-se diferenciação de sistemas, diferenciação de sistemas torna-se reintrodução da formação de sistemas no interior de sistemas, de novos limites no interior de sistemas já delimitados, de formas em formas, de observadores em observadores.

Se a dialética se consuma na autoconclusão da razão e da sociedade, a correlação indicada por Marx exaure-se na determinação externa à estrutura, na heteroreferência. Consuma-se por seu escasso potencial descritivo da complexidade. No primeiro problema, condensam-se os problemas de todas as filosofias da história. No segundo, todos os obstáculos da referência, todos os limites das determinações fatoriais. A alternativa possível é dada pela inclusão da autoimplicação e pelo desenvolvimento do paradoxo: o direito inclui porque exclui; é igual porque pratica desigualdade; é estrutura que torna possível o exercício da liberdade porque põe limites; é técnica das liberdades, porque é técnica da repressão. Podemos chamar de burguês este direito porque é o direito da sociedade burguesa, no sentido de que nessa sociedade, que uma velha tradição do pensamento descreveu pela semântica da individualidade e da particularidade, o direito positivo moderno afirmou-se como sistema social diferenciado e especificado com base em uma única função: produz direito com base em direito. Mas a indicação desse direito como direito burguês constitui uma redução simplificadora, assim como a indicação da sociedade moderna como sociedade burguesa impede ver a complexidade estrutural da forma da diferenciação que caracteriza a sociedade moderna. 3. Em 1980, Ciência do direito e legitimação foi publicado em alemão de forma ampliada com o título: Wahrheit und Legitimation im Recht. Ein Beitrag zur Neubegründung der Rechtstheorie [Verdade e legitimação no direito. Uma contribuição para o restabelecimento da teoria do direito]. Niklas Luhmann recebeu o livro do editor Duncker & Humblot de Berlim e me escreveu que compartilha da análise da contingência no direito, com a seguinte pontuação: que o sistema do direito era

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tratado por mim como um sistema fechado, enquanto ele o tratava como um sistema aberto porque fechado. Naqueles anos, a teoria dos sistemas começava a consolidar sua estrutura semântica, perfilava-se em relação às elaborações das teorias dos sistemas que a haviam precedido nos anos cinquenta e sessenta. A construção de Luhmann diferenciava-se sensivelmente das versões que circulavam. Mas, mais do que destas versões, diferenciava-se daqueles que se imaginava serem seus numerosos críticos. Muitos, na verdade, e demasiado apressados, especialmente na Itália. A teoria estava se construindo. A conceitualidade exprimia-se agora com formulações que lembravam a velha teoria dos sistemas. Toda a arquitetura conceitual existia. O problema era dado, sobretudo, pela necessidade de dispor de uma linguagem que mostrasse plenamente a força rompedora, o poder subversivo da construção. A teoria escreveu a si mesma, disse-se uma vez Luhmann. Era difícil entender plenamente a diferença que Luhmann pretendia pôr em evidência. Era necessário negar o preconceito da crítica, o obstáculo da heteroreferência. Era necessário observar o observador. Apenas isso havia permitido ver que o observador pode ver tudo, mas não a si mesmo. E o primeiro observador é o sistema que observa a si mesmo. Assim, entretanto, tornavam-se claros os limites e contribuições da minha análise e da minha reconstrução. Aquilo que eu chamava de instância material constituía o obstáculo da heteroreferência. O direito positivo moderno determina-se a si próprio, é determinado pela sua estrutura. Nesse sentido, reprime a instância material: as diferenças, o acaso infinito do qual falava Hegel, o universo das necessidades, as singularidades, as precisões. Mas justamente nisso consiste o grande potencial do direito positivo moderno para a complexidade. Justamente nisso consiste sua modernidade. Justamente por isso pode-se observar como o direito torna possível sua operação. A minha crítica exprimia o ponto de vista de um observador. Mas se o observador está na sociedade, então ele mesmo é condicionado, é socialmente condicionado. A ideia da crítica leva ao reconhecimento de uma pluralidade de auto-observações do sistema. Leva a um conjunto que, em virtude dessa pluralidade, oscila continuamente entre observações críticas e observações afirmativas. Somente uma teoria da sociedade, uma teoria que fosse capaz de descrever os modos de produção dos sistemas nos sistemas, ou seja, os processos de diferenciação, foi capaz de fornecer descrições úteis à observação das observações e à observação das distinções que se utilizam nas observações de auto-observações. O problema era o seguinte: como se poderia observar o modo no qual se autocondiciona um sistema que opera com uma pluralidade de autodescrições. Como se autocondiciona um sistema que não pode mais ser subordinado a um princípio unitário?

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Toda questão podia, finalmente, ser reformulada: 1) A crítica é uma observação de segundo grau que observa a distinção, que utiliza um outro observador. Se esse observador é o sistema, a crítica observa como o sistema se diferencia em relação ao ambiente, porque a primeira distinção é a distinção entre sistema e ambiente. Operando essa distinção, o sistema se diferencia em relação ao ambiente e reproduz esta diferença. A crítica é uma observação que usa uma distinção. Mas o próprio sistema usa uma pluralidade de observações e, portanto, uma pluralidade de distinções. 2) O sistema opera com base na ativação de operações recorrentes que se autoimplicam. Nesse nível, o sistema opera com base em autorreferência. Isto é, no fechamento. Esse fechamento é resultado de evolução. A conquista alcançada condensa-se em uma forma específica de diferenciação. O processo de positivação do direito é pressuposto e consequência deste processo. Ele torna possível a adequação da estrutura à complexidade do ambiente. 3) O trabalho em torno da teoria consolida estruturas de autorreflexão do direito pelas quais o direito torna possível sua operação. Essa operação oculta os paradoxos da autoimplicação do próprio sistema. Esses paradoxos podem ser desvelados, mas esta é uma obra que resulta de observações do observador. 4) Por meio da sua operação, de seu funcionamento “normal”, o direito torna-se instável por si. A conquista da positividade do direito predispõe o sistema à contensão de alta variabilidade estrutural. A instabilidade, portanto, é autoproduzida, não depende do ambiente. O crescente reforço da diferença torna o sistema sempre mais instável porque se reforça cada vez mais a determinação de sua estrutura. O direito garante a si mesmo. Essa autoimplicação é repressão da “exterioridade selvagem” (Foucault), mas constitui, ao mesmo tempo, a grande contribuição evolutiva do direito moderno. O exercício da liberdade é possível apenas como negação dos limites. 5) Nessas condições, o direito dispõe de alta complexidade estrutural. Mas somente nessas condições. O sistema expõe-se a si mesmo. Desse modo, torna-se imprevisível por si. O controle do ambiente só é possível como controle do sistema a partir de si. Esse é o único modo possível de co-

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locar o problema da racionalidade do sistema do direito. O direito especifica-se na sociedade moderna como sistema que produz direito. Essa é sua função. O direito absorve incerteza em relação ao futuro na medida em que transforma essa incerteza em incerteza em relação ao direito. 6) O fechamento do sistema realiza-se pela ativação do código binário direito/não direito. O direito, portanto, é um componente de uma distinção. Isso significa que quem produz direito produz também não direito. Muito diferente de simplesmente dizer: era dos direitos!500 7) Validade é o símbolo que une os valores: direito como componente da distinção entre direito e não direito. Isso leva à refutação da unidade entre validade e fundação. 8) Chamamos de redescrição o resultado da observação de observações que havíamos chamado de crítica. Redescrição significa: transformar os fundamentos naturais do direito em fundamentos artificiais e os fundamentos necessários em fundamentos contingentes. Não é essa a tarefa da teoria do direito. A teoria observa o sistema do interior do sistema. Descreve os modos nos quais o objeto, o direito, determina seus limites, os modos nos quais o objeto se autoconstitui. Independentemente das preferências de natureza epistemológica, pode-se produzir uma pluralidade de teorias que permanecem incomunicáveis entre si, mesmo que uma se organize com base na crítica da outra, ou seja, mesmo que a história da teoria seja constituída por um acúmulo de fragmentos. A teoria dos sistemas pode absorver essa tarefa de redescrição. 9) O tema central de Ciência do direito e legitimação, o uso da distinção natural/contingente e o uso da distinção inclusão/exclusão, constitui tema central da redescrição do direito e de suas teorias. 10) Esta redescrição é o futuro de um programa teórico. A teoria dos sistemas fornece o quadro conceitual para este trabalho no qual estamos atualmente empenhados. Masseria Campone, Abril, 1998 500

A referência crítica aqui é à obra de BOBBIO, Norberto. L'età dei diritti (Torino: Einaudi, 1989) [trad. bras. A era dos direitos. 2 ed. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Elsevier, Rio de Janeiro 2004]. [N.R.]

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REFERÊNCIAS

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ÍNDICE ALFABÉTICO

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“Não se conhece completamente uma ciência enquanto não se souber da sua história.” Auguste Comte