Investigações Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana
 9724408809, 5213158753

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Título original: Philosophische Untersuchungen über das Wesen der Menschlichen Freiheit und die Zusammenhangenden Gegenstande

© desta tradução, Edições 70 e Carlos Morujão Tradução e Prefácio de Carlos Morujão Capa de Edições 70 Revisão tipográfica dos serviços de Edições 70 Depósito legal n," 62 906/93 ISBN 972-44-0880-9 Todos os direitos reservados para língua portuguesa por Edições 70, Lda.• Lisboa - PORTUGAL EDIÇÕES 70, BRASIL. LDA. - Av. da Liberdade. 258. r - 1200 LISBOA Telefs.: 315 87 5213158753/3158755/3158765 Fax: 315 84 29 BRASIL: EDIÇÕES 70. BRASIL. LTDA. - Rua São Francisco Xavier. 224-A. Loja 2 (TIJUCA) CEP 20550 RIO DE JANEIRO. RJ Telef. e Fax: 2842942/ Telex: 40385 AMU B Esta obra está protegida pela Lei. Não pode ser reproduzida. no todo ou em parte. qualquer que seja o modo utilizado. incluindo fotocópia e xerocópia. sem prévia autorização do Editor. Qualquer transgressão à Lei dos Direitos de Autor será passível de procedimento judicial.

SCHELLING

Investigações filosóficas SOBKt: A t:SStNCIA DA LIBt:RDADt: UUMANA

e os Assuntos com ela Relacionados

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PREFACIO DO TRADUTOR

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A obra que o leitor tem nas suas mãos, intitulada no original Philosophische Untersuchungen über das Wesen der menschlichen Freiheit und die zusammenhãngenden Gegenstãnde, conhecida abreviadamente por Freiheitsschrift, foi escrita por Schelling em 1809 e destinada ao primeiro volume dos seus Escritos Filosóficos, a cuja publicação completa acabará por renunciar. Será preciso esperar pela morte do autor; em 1854, para que uma edição completa das suas obras veja a luz do dia. A tradução que aqui apresentamos julgamos ser a primeira, em Portugal, de um texto de Schelling. As dificuldades da tarefa eram imensas. O alemão de Schelling (de grande beleza formal e com um ritmo muito próprio, que esperamos não ter traído em demasia) pode ser de uma clareza e simplicidade desarmantes, ou de uma obscuridade quase impenetrável. Não estando, além disso, fixados em português, por uma investigação séria e por uma tradição de trabalho de tradução filosófica, os equivalentes para os principais termos deste tratado (Grund, Wesen, Basis, Dasein, etc), pouco tinhamos onde nos apoiar. 9

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Sentimos , além disso, a necessidade de situar esta , . obra no contexto da produção do autor e das polemLcas filosóficas da época, cuja grandeza e importância hoje a custo pressentimos. Foi desta necessidade que nasceu o texto que se segue. Não pretende ser uma explicação da obra, nem sequer dos seus aspectos principais, mas, tão só, uma introdução à sua leitura, colocando-a no contexto do movimento de ideias que a viu nascer e de que Schelling foi, sem dúvida, um dos principais protagonistas. É vastíssima a bibliografia sobre Schelling e também sobre esta obra. Refira-se somente, a título de curiosidade, que, só em França, o Freiheitsschrift conheceu já quatro traduções (de valor bastante desigual), acompanhadas, por vezes, de comenuirios e notas que excedem, em muito, o tamanho do texto que s~ propõem comentar. Ainda assim, arriscamos, no final, a apresentação de uma bibliografia selecta que permita ao leitor interessado' aprofundar os seus c~­ nhecimentos sobre este autor, ainda tão mal conhecido entre nós. Para esta tradução servimo-nos do texto publicado nas Schellings Werke, editadas por Manfred Schrõter, München, Verlag C.H. Beck, 1927. Trata-se de uma edição que procede a uma nova arrumação das obras do filósofo, tendo por base o texto publicado na~ Sãmtliche Werke de Schelling, editadas por seu [ilho, Stuttgart-Augsburg, Cotta Verlag, 1856-61 (onde Das Wesen der mensch1ichen Freiheit aparece no volume VII), mas cujos critérios nem sempre se percebem e são, por vezes, compÜ!.ta:ner:te a~bitr~­ rios. Conserva, felizmente, a referéncia a pagmaçao daquela edição, que é a normalmente referida pelos comentadores de Schelling e figura, habitualmente, em margem das várias traduções: E esta paginação que decidimos igualmente conservar em margem, para facilitar ao leitor interessado, quer o confronto com 10

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o texto original, quer com outras traduções que tenha ao seu dispôr.: A explicação detalhada de cada uma das nossa opções de tradução obrigaria a longas notas que sobrecarregariam um texto já de si bastante denso e difícil. E, por fim, boa parte delas talvez se revelasse inútil: o leitor que desconhece a língua alemã quase que pode prescindir delas e quem acompanha a leitura da nossa tradução com o texto original saberá, certamente, refazer o nosso percurso e, deseiamo-lo corrigir-nos sempre que tal se revelar necessario, Es~ peramos sinceramente que as ocasiões em que isso venha a acontecer não acabem por se tornar demasiado numerosas. Esta decisão, no entanto, não nos impediu de proceder, neste prefácio, a uma ou outra explicação mais pormenorizada de termos particularmente difíceis ou controversos. Uma última observação: Schelling não dividiu este seu texto em capítulos, embora ele comporte, como é evidente, várias partes e se desenvolva segundo uma articulação extremamente rigorosa. Por este motivo, resolvemos mantê-lo tal como o autor o quis apresentar, na medida em. que qualquer intervenção relevaria, em nosso entender, do trabalho de interpretação e não do de tradução. Todavia, não queremos deixar de remeter• o leitor para a obra de Martin Heideaeer bb ,

Schelhngs Abhandlung über das Wesen der menschlichen Freiheit, Tübingen, Verlag Max Niemeyer, 1971, onde poderá encontrar uma análise bem fundamentada das várias partes em que este texto se divide. I Esta obra, que marca praticamente o fim da actividade pública de Schelling como escritor (publicará somente, até à data da sua morte, mais três curtos 11 .Lv

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textos), embora não o fim da sua activi~ade.filosófi~a (ensinará, em diver~os lo..cai~, por m~zs !rm~~ e oito anos), nem da sua influência no meto (t~osoftco ,alemão - e mesmo francês -, esta obra, diziamos, e em grande medida um ponto de viragem:. S~~lling esforçar-se-â por ligá-la à sua produção [ilosâfica anterior, a chamada filosofia da identidade - que, segundo c:nova perspectiva, constituiria apenas o desenvoluimento, forçosamente unilateral, de uma das partes do seu sistema total de filosofia -, afirmando que a filosofia da liberdade é a co,:clusão nece~sária que tal sistema exigia (a sua parte ideal que, ate. ao momento~ não fora ainda plenamente desenuoloida) e que so agora a sua filosofia deverá ser ju~gada no s~u todo. Simultaneamente, com este escrito, Schelling leva ao seu ponto culminante um debate filosófico mais vasto, que atravessa todo o século X,VIII n~ i}~ema­ nha e que se mantém ainda bem vwo no tnicto do século XIX; o que nele está em litígio é saber quem -tem razão, Espinosa ou .Leibniz. Trata-se da querela em torno do panteísmo, do necessitarismo e do ateísm? (os três associados, por muita gente, ao nome de Espznosa), na qual tomaram parte, .entr~ muitos outros antes de Schelling, Kant, Jacobi e Fichte. Do ponto de vista em que se coloca neste. trata.do, é essencial para Schelling o debate com a filosofia de Espinosa e o esclarecimento das suas re~ações com o panteísmo. O leitor notará que Schelling, embora marcando as suas distâncias, não critica neste último a afirmação da presença de todas as coisas em Deus, ou de Deus em todas as coisas; pelo contrário, não se cansará de afirmar o acordo entre esta tese e aquilo que a filosofia procura explicar, a religião defende e os místicos experimentam. Notar-se-ti ainda a sua preocupação em denunciar as interpretações grosseiras da filosofia de Espinosa, como, por exemplo, a afirmação, contraditória em si mesma, de que cada 12

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coisa é um Deus derivado ou modificado. Não é também,a afirmação central desta filosofia, ordo et connexio idearum idem est ac ordo et connexio rerum (cf. Etica, II, Prop. 7), que está em causa, mas o modo como Espinosa entendeu a connexio rerum modo mecânico e morto e não dinâmico e vivo, que t:ansformou tal filosofia num necessitarismo onde a liberdade não pode ter lugar. . ~igamos, e,ntão, a análise schellinguiana da propostçao «Deus e todas as coisas» e procuremos ver o que, na sua perspectiva, ela contém de verdadeiro. Schelling interroga-se pelo sentido da cópula, do é. Substituamos a referida proposição pela expressão A = B, que formalmente lhe é idêntica. Em que condições é possível fazer-se tal afirmação? Se houver, em A e em B, um x onde se exprima a unidade originária dos dois e também a possibilidade da sua originária cisão. Assim, naquela igualdade exprime-se, simultaneamente, uma identidade e uma diferença'; Para Schelling é esta a única interpretação possível do princípio de identidade, que ultrapassa o seu alcance meramente lógico e se eleva à dimensão especulativa onde se manifesta a verdade da coisa mesma. Aquela proposição «Deus é todas as coisas», que representa o núcleo racional e verdadeiro do panteísmo, é expressão do devir de todas as coisas em Deus e de Deus como princípio activo de produção. Especulativamente interpretada, a cópula torna-se o ponto em que a questão teológica e a questão ontológica inevitavelmente se interligam. (Que Schelling, no entanto não se limite a repetir o projecto metafísico de uma ~nto­ -teologia, no sentido que Martin Heidegger atribui a esta expressão, é o que procuraremos mostrar mais adiante.) 1 É n~sto que a proposição A = B se distingue da proposição A = A. que exprune a mera identidade consigo mesma da substância absoluta.

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Na questão que Schelling coloca no início deste tratado - como é possível um sistema completo de I filosofia? (e após Kant toda a filosofia aspira a se: sistemática, ou seja, a fazer derivar todos os conhecimentos da razão e, portanto, toda a realidade, de um único princípio) - encontramos não apenas um reflexo, mas, talvez, a expressão mais aguda de todas aquelas questões que a expressão «debate em torno do panteísmo» (Pantheismusstreit) condensa. Com Kant, mas, sobretudo, após Kant, com o chamado idealismo alemão, o problema do sistema tornara-se um problema central da filosofia. Já na Crítica da Razão Pura o filósofo de K6nigsberg.distinguira entre três possíveis sentidos do termo: unidade orgânica, rapsódia e unidade técnica. Ora, um sistema de filosofia não pode ser uma estrutura exterior ,à ~oisa ?rdenada, mas expressão da ordem da propria coisa que, desta forma, é elevada ao nív~l superior d? saber': Num sistema (ou, como Kant diz, numa arquitectónica) o saber das coisas e as coisas sabidas identificam-se, embora uma tal unidade, em Kant, n~o se torne nunca plenamente efectiva, dado que aquilo a que chama ideias da razão, expressão das aspirações da razão à unidade sistemática, não têm, para ele, carácter ostensivo. Quer dizer, para Kant as ideias não fornecem nenhum fundamento para aquilo que representam, mas permanecem com tarefas que a razão, no decurso do seu exercício, coloca a si mesma, sem nunca as conseguir resolver plenamente. E no quadro destas preocupações que devemos entender a pergunta de Schelling. Se respondermos que um tal sistema é possível, a ligação necessária entre as suas partes, na qual se ii

exprimirá a ligação necessária entre todos os elementos do real, será a prova da impossibilidade da liberdade. E se a liberdade existe, como o parecem demonstrar todos aqueles que possuem o mais vivo . d ela, 1 sentimerüo parece que com ela se arruina a própria possibilidade do sistema. Mas estará a razão prisioneira desta alternativa? II

o modo como Kant aborda o problema da liberdade. na Crítica da Razão Pura é determinante para a evoluç~o posterior do problema. Resumidamente, poder-se-ia expor a tese de Kant da seguinte forma: de um ponto de vista cosmológico, a liberdade é incompatível com a existência de uma causalidade na natureza; mesmo a liberdade psicológica, quer dizer, o sentimento que cada um de nós possui de ser o autor de uma .a.cção, deverá ser negada - e, neste ponto, Kant utiliza uma argumentação muito semelhante a que já fora usada por Espinosa -, pois pode ser uma ilusão resultante do desconhecimento de uma causalidade escondida, quer devido à nossa própria ignorância, quer devido à complexidade das causas. Kant, no entanto, introduzirá uma distinção entre a causalidade empírica, submetida ao tempo, e uma outra causalidade que releva do domínio prático e que, embor~ faça sentir os seus efeitos no tempo, não é um [enomeno da natureza, mas uma livre e insondável causalidade da vontade, que Schelling tenta distinguir da indiferença do livre-arbítrio. Para salvar a

1 Elevação (Erhebung), elevar (erheben), são termos que aparecerão repetidas vezes nas páginas deste t::.atado. O leitor notará ~ s~a frequência e a sua importância em função do contexto, que aqui nao podemos mais do que assinalar.

_ 1 ~ara Schelling, tal ,como para ~ant, há um facto da liberdade que nao e totalmente possível de explicar, na medida em que já está pressuposto em todas as explicações que dele se tentam. Kant, na Funda"!entaçào da Metafísica dos Costumes chamara à liberdade a «~aravl1ha no rnundr, dos fenómenos». E a possibilidade desta rnaravilha que Schelling tenta compreender.

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liberdade Kant não tem outra solução senão a de admitir uma causa que não foi causada, o que Schopenhauer, mais tarde, classificará ~omo contradictio in adjecto e último recurso do kantismo para salva~ o deus da metafísica tradicional. Kant, portanto, remtrodúzo' dualismo. Por isso, a sua filosofia comporta duas partes distintas: uma metafísica da natu:eza e uma metafísica dos costumes e a tarefa de um sistema da razão consiste, para ele, na unificação das duas. Mas esta não será a última palavra de Kant sobre o assunto. No § 76 da Crítica da Faculdade de Julgar, Kant falará da natureza em termos complet?mer: te difàentes, já não como encadeamento de ~enomenos, mas como mecanismo de produção de [enômenos, como fundo inesgotável de que depende a legalidade da natureza, tal como a representava a física-matemática, do seu tempo, mas que a ela não se poderia reduzir. E aqui que Kant se aproxima decisivamente da noçã.o shellinguiana de um sistema da liberdade, tanto mais quanto é também aqu~ que Kan.t procurará re~olver a oposição entre necessidade e liberdade, considerada expressamente por Schelling como o problema centrai com que se defronta qualquer verdadeira filosofia. E esta passagem do ponto de vista mecânico para o ponto de vista dinâmico (que a filosofia kantiana procura, mas que nunca saberá encontrar) que pe~mitirá ultrapassar a oposição tradicional entre o racional e o que se considera privado de razão e restituir à natureza toda a sua dimensão espiritual. Schelling, no entanto, abordará o problema da construção de um sistema de filosofia de forma completamente diferente. Não esqueçamos que as ideias que Kant desenvolve no referido § 76 não têm um carácter determinante, quer dizer, não podem ser consideradas como constitutivas do objecto enquanto objecto de conhecimento para uma razão humana fin~ta, mas estão condenadas a permanecer meros conceitos

de reflexão. Daí que a origem da' diferença se situe na possibilidade, que Schelling admite, de conferir a tais ideias uma realidade objectiva que em Kant não poderiam ter. Por outras palavras, Schelling admite a possibilidade de uma intuição intelectual, ou seja, a faculdade de poder ver, de ter presente - sem ser por intermédio da intuição sensível, o único tipo de intuição admitido por Kant - a unidade do universal e do particular, do infinito e do finito, da identidade e da diferença, ou seja, aquilo que, na filosofia pós-kantiana, é designado por absoluto. Explicar o que é e como é possível a intuição intelectual (sem voltar a cair no dogmatismo) será uma das preocupações de Schelling a partir de 1800, embora já em 1795 as Cartas sobre o dogmatismo e o criticismo a ela façam referência. Ainda em 1804 dedicará a este assunto a parte inicial de um escrito polémico intitulado Philosophie und Religion. Fichte fora o primeiro, após Kant, a falar dele, mostrando como o saber não é somente um saber de coisas, mas, por meio de um retorno reflexivo sobre si mesmo, saber do saber, saber do que é sabido no saber das coisas e, por isso mesmo, produção das próprias coisas como coisas sabidas', Schelling, entretanto, não se limita a retomar-esta problemática fichteana, mas dará à intuição intelectual, como intuição do absoluto na sua simplicidade e identidade perfeitas, como acto de liberdade de um sujeito que se liberta do poder constrangedor dos objectos, um sentido que ela não podia comportar para Fichte e que estará, como veremos, na origem da ruptura entre os dois filósofos. No entanto, nos começos da sua actividade filosófica, Schelling não se encontrava muito afastado da 1 Em que medida esta posição se poderia apoiar na autoridade de Kant e numa certa leitura do § 16 da 2" edição da Critica da Razão Pura, é questão que não podemos abordar nestas páginas,

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posição fichteana relativamente á intuição intelectual. Nas já ciladas Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo afirmava que ela acontece sempre que deixamos de ser objectopara nós mesmos e quando, ao regressar a si mesma, a ipseidade que intui é idêntica ao objecto intuído. Com mais força ainda, dizia que não se deve considerar a intuição de si mesmo como intuição de um mundo supra-sensível que transcenda o Eu. Devemos registar, portanto, uma primeira evolução de Schelling no que respeita a este assunto. Mas note-se que o absoluto que Schelling considera como possível de ser intuído (e que é agora entendido numa acepção mais próxima do sentido originário da palavra, do latim absolutus, entendido como unidade onde se dissolvem as particularidades do que está cindido), não é, ainda assim, um absoluto exterior ao saber - se o fosse Schelling teria caído no dogmatismo pré-kantiano - pois trata-se de um saber do absoluto que é, ao mesmo tempo, um saber no absoluto, porque este, sendo de facto aquilo que é de acordo com o seu conceito, não pode ficar fora do saber. A intuição intelectual não é, por isso, uma visão estranha a que uma natureza mediativa se sentisse particularmente inclinada, para empregarmos uma expressão de Jacobi, nas suas Cartas sobre a doutrina de Espinosa. Pelo contrário, ela aparece-nos mais como o oposto da disseminação no mundo de objectos, ela sim verdadeiramente dispersiva e aniquiladora da identidade do Eu, idêntica àquela uneigentlichkeit que Martin Heidegger tematizará nas páginas célebres de Sein und Zeit.

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. Hõheres und Tieferes in seiner Lehre suchte, als ich doch in der That findeti Konnte» (S.W., VII, p. 23). Em 1809 não era mais o tempo de procurar em Fichte esse algo de mais elevado e mais profundo que Schelling, um dia, pensara lá poder encontrar, mas os reflexos dessa polémica são ainda visíveis neste escrito, embora talvez não sejam totalmente perceptíveis para um leitor desprevenido. Curiosamente, ela rebentou num momento em que a filosofia fichteana sofria uma inflexão decisiva, mas que Schelling não chegará a conhecer, uma vez que Fichte não tornara públicas as reelaborações a que irá submetendo a sua Doutrina da Ciência, contentando-se em expô-las diante de alunos ou de círculos restritos de amigos. É por isso do maior interesse o estudo da sua correspondência com Schelling, dos anos 1800-1801, onde assistimos ao progressivo afastamento entre os dois. É provável que a distância tenha igualmente contribuído para acentuar os equívocos e favorecer os mal-entendidos: Fichte encou'raoa-se por esta altura em Berlim, onde se refugiara após ter sido acusado de ateísmo, e Schelling era professor na universidade de Jena, onde se manterá até 1803. Ressa lta da leitura destes textos as reservas de Fichte diante do desenvolvimento, por Schelling, de uma filosofia da natureza que, ao parecer admitir (na perspectiva fichteana) um ser independente do saber, punha em causa as aquisições da perspectiva transcendental inaugurada por Kant. Fichte, em carta de 27 de Novembro de 1800, tenta resumir as diferenças entretanto surgidas e, ao mesmo tempo, encontrar uma plataforma de entendimento: a natureza', argumenta ele, considerada como real-ideal (expressão que

Vários anos após ter rompido as suas relações com Fichte, Schelling dirá: «Ee war die Zeit, wo ich etwas

1 O termo é empregue, obviamente, no sentido da natura naturans de Espinosa, identificada com Deus entendido como «quod in se est et per se concipitur».

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é do agrado de Schelling) pode ser totalmente deduzida do Eu, não, bem entendido, se a considerarmos como fenómeno ou conjunto de fenómenos, mas do ponto de vista do que nela há de inteligível. A posição schellinguiana que motiva esta resposta de Fichte (mas que irá evoluir e o Tratado de 1809 é um dos momentos centrais dessa evolução) poderá resumir-se nos seguintes termos: sendo auto-produção e auto-desenvolvimento, a natureza é a verdadeira identidade sujeito-objecto e a sua manifestação na consciência e como consciência é apenas um grau superior dessa subjectividade-objectividade natural. É por isso que, se a virmos como consciência, aquela identidade sujeito-objecto aparece-nos elevada à sua potência' superior (ou seja, torna-se uma subjectividade-objectividade subjectiva), pressupondo, no entanto, aquela identidade objectiva como sua condição de possibilidade, ou potência inferior, quer dizer, como passado transcendental a que o presente da consciência devolve toda a riqueza e profundidade espirituais. Por outras palavras: a consciência só é uma potência da natureza porque existe nela como potencial. Porém, como aquela unidade não está imediatamente dada e como o entendimento não a reconhece

como tal, a tarefa da filosofia (que constitui, ao mesmo tempo, a sua profunda necessidade) consiste em proceder ao seu restabelecimento e, dessa forma, em ultrapassar o ponto de vista da reflexão que, ao negá-la, revela o seu verdadeiro carácter de doença do espírito humano. É esta posição que Fichte procura integrar na sua, dando-lhe uma formulação mais adequada aos princípios da Doutrina da Ciência: a noção schellinguiana do Eu como potência superior poderá ser conservada, sob a condição de distinguirmos entre o que é fenómeno e o que é inteligível na natureza e de considerarmos o indivíduo em geral como potência inferior desse inteligível. Na verdade, ao longo de toda esta polémica, cada um dos dois filósofos parece servir-se dos termos do outro para expor ideias bem diversas e daí a sensação de equívoco que resulta de uma leitura atenta de todos estes textos. Assim, em carta de 31 de Maio de 1801 (mas enviada somente a sete de Agosto'), as diferenças parecem agudizar-se, embora Fichte comece por manifestar a alegria e a esperança que lhe despertou a recepção da última carta de Schelling, ao mostrar-lhe que este se mantinha no caminho da ciência (leia-se: continuava a seguir o caminho aberto por

1 Potência (Potenz) é um termo schellinguiano difícil de explicar em poucas palavras. Significa, aproximadamente, a acção pela qual algo se põe a si mesmo e, nesse pôr, se manifesta como unificação e concreção dos seus elementos constituintes previamente dispersos. Trata-se, portanto, de um nível de realidade em que se reproduzem, num plano superior, os momentos anteriores. Nos anos em que procede à elaboração da filosofia da identidade (altura em que se situa a polémica com Fichte, que vimos referindo), Schelling utiliza preferencialmente o termo potência para designar os modos de exteriorização da identidade absoluta, que se manifesta como diferença quantitativa entre subjectividade e objectividade. Não sendo objecto de uma tematização explícita no Tratado de 1809, ainda assim o leitor poderá encontrar aí sinais evidentes da reelaboração a que Schelling submeterá esta noção, vindo a consagrá-la, nos seus últimos trabalhos filosóficos. como designação dos momentos em que se cinde interiormente a vida divina, no seu processo de auto-manifestação.

1 Esta carta é fundamental para a compreensão da relação entre os dois filósofos e recomendamos vivamente a sua leitura. Pode encontrar-se na Gesamtausgabe de Fichte (org. de Reinhard Lauth), Stuttgart/Bad-Cannstadt, Verlag Friedrich Frommann, vol. III, 5. pp. 43-53. Esta troca de correspondência azedou a relação entre os dois filósofos, que interromperam a partir de então qualquer contacto pessoal, não mais se voltando a ver até à morte de Fichte em 1814. Em vida. Fichte referir-se-á sempre depreciativamente ao rumo seguido por Schelling após a separação entre ambos; o mesmo acontecerá com Schelling em relação a Fichte. Em 1806, numa obra intitulada Exposição da verdadeira relação entre a filosofia da natureza e a doutrina de Fichte melhorada, popularmente conhecida como o Anti-Fichte), Schelling retomará as suas críticas anteriores, acusando Fichte de ver a natureza como simples meio de que o Eu se serve para se realizar como ser moral.

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Fichte com a sua Wissenschaftslehre de 1794, cujos princípios fundamentais mais uma vez reafirma). Mas o conteúdo desta carta parece confirmar a acusação que Schelling lhe lançara de ser incapaz de reconhecer a identidade sujeito-objecto sem ser pelo lado da consciência, opinião que, como se sabe, será também a de Hegel no Differenzschrift de 1801. Fichte reduz a natureza a uma pequena região da consciência: na intersecção entre a consciência universal (ou seja, a totalidade da vida espiritual) e a consciência individual determinada (o X impenetrável à ciência, mas atravessado pela vida do espírito), aí onde o indivíduo aparece como ponto de vista sobre a totalidade do sistema, é que a razão finita pode proceder a uma dedução da natureza. Fichte quer manter-se no campo do idealismo e acusa Schelling de cair no realismo. Para ele, a filosofia não pode partir de um ser, mas de um ver (dado que o primeiro só existe uma vez referido ao segundo), ou seja, da evidência simultânea de si mesmo e do saber que penetra todas as coisas, evitando, igualmente, quer uma perspectiva empírica sobre elas, quer o ponto de vista do Eu singular. Só o puro ver tem as características de permanência, solidez e imutabilidade que a filosofia dogmática atribui ao ser. O dogmático é aquele que põe o ser antes das coisas, quer dizer, antes da vida, hipostaeiando-o como causa. No fundo, para Fichte que afirma seguir o caminho delineado por Kant - a intuição intelectual não é intuição de um ser (seja ele o absoluto, como em Schelling), mas somente de um agir, a saber, o agir da consciência que se põe a si mesma, a exemplo do que acontecia em Kant à consciência do imperativo categórico. Na já referida carta, Fichte afirma ainda que a vida espiritual, para a qual a natureza mais não é do que o mundo da experiência, que se opõe ao Eu e sobre o qual ele exerce a sua actividade, é o quadrado racional de uma raiz 22

irracional, ou seja, da luz imanente ou Deus, de que a natureza é apenas uma manifestação. Desta polémica, as duas primeiras dezenas de páginas do Tratado de 1809 são ainda um claro reflexo. Por isso, convirá ao leitor conhecer, ainda que sucintamente, a resposta de Schelling. Ela consistirá em acusar Fichte de retirar à ideia de natureza todo o seu carácter especulativo: a natureza cai fora do absoluto, torna-se num nada que só será possível recuperar de um ponto de vista prático, considerando-a como campo da acção moral do homem. A natureza fichteana, conclui Schelling, tem um significado meramente teleológico, é despida da sua vida própria e não é mais um reflexo da eternidade. Inconsequentemente (do ponto de vista de Schelling), Fichte afirma que a natureza tem o seu fundamento em Deus, mas, uma vez que se recusa a compreender a sua profundidade religiosa, enquanto auto-manifestação do absoluto, só a pode considerar do seu próprio ponto de vista moralista, que reintroduz o dualismo.

IV Sublinhámos, de início, o carácter de transição deste escrito. Ele torna-se evidente se notarmos que quase todos os temas que marcam o anterior percurso filosófico de Schelling, embora de forma alguma tenham sido abandonados, se encontram particularmente atenuados. Desapareceram as referências explícitas à intuição intelectual, embora a afirmação da existência de um sistema, «pelo menos na mente divina», associada à afirmação de que «o semelhante pode conhecer o semelhante» (isto é, o divino pode ser conhecido através do que há de divino no homem), continuem a apontar nesse sentido. A posição que . sobrevaloriza a unidade, a identidade e a indiferença 23

não é totalmente abandonada, mas o finito, a cisão, a separação e o Mal, readquirem, com a nova perspectiva, o seu papel positivo. Este é, sem dúvida, um dos temas mais fortes do Tratado de 1809, que o liga indissoluvelmente à situação espiritual do seu tempo e à conjuntura política e social da Alemanha, derrotada pelos exércitos napoleónicos; mas Schelling não tem a intenção de introduzir aquilo que o idealismo alemão (em polémica com Kant, cuja sombra, porém, paira sobre cada uma destas páginas) designava como perspectiva do entendimento, que cinde, calcula e separa, mas quer mostrar que a razão deve levar a sério o carácter finito das coisas singulares e os conflitos que as despedaçam do seu próprio interior, fazendo-o embora na perspectiva da inserção da sua vida finita na vida infinita do todo. Trata-se daquilo que Hegel designará como «idealidade do finito», a sua não fixação em cada um dos momentos singulares em que o entendimento o descobre (forçosamente em oposição uns com os outros) e que constitui um dos . temas centrais do idealismo alemão. Em Schelling, todavia, estas questões revestem, ao mesmo tempo, um carácter acentuadamente ético; para ele, o finito não é apenas derivado, não é um «menos» em comparação com um «mais», mas pode tornar-se mau. Por isso, Schelling define a liberdade como uma faculdade do Bem e do Mal, quer dizer, como poder, ou de unir o que está cindido, ou de consumar a cisão e a separação. O homem é capaz de ambas as coisas, ou melhor, é o único ser capaz de ambas as coisas e é por isso que, sendo diferente de Deus (embora de origem e destinação divinas), há nele um abismo que o separa da mera animalidade. É àquele poder que se refere o e da expressão «Bem e Mal». O leitor notará, certamente, que, no que diz respeito a este problema, o interlecutor privilegiado de Schelling já não é Espinosa, mas Leibniz e a sua tentativa 24

de teodiceia. A seu modo, Schelling retoma as pretensões sistemáticas de Leibniz em conciliar a liberdade humana com a ordem da natureza, tentando embora conservar o carácter positivo dessa liberdade, cujos efeitos já não podem simplesmente inscrever-se numa ordem superior que os «totaliza» e, finalmente, os nega na sua singularidade irredutível. O presente tratado procura esclarecer a essência da liberdade humana. Não nos esqueçamos que Schelling utiliza o termo essência com um sentido fortemente activo, mais como verbo do que como substantivo: a essência não é o universal comum a um conjunto de singulares, mas o que torna possível que esses singulares se manifestam como aquilo que eão', É por este motivo que o título do tratado inclui uma referência aos «assuntos com ela relacionados», aos quais será dedicada, aliás, a maior parte das suas páginas. Não é por acaso que, na economia desta obra, assim deveria acontecer. Aquilo que torna possível a liberdade humana não deve ser procurado do lado da decisão individual. Tentando esboçar uma figura não antropológica da liberdade, Schelling insiste no facto de que ela não é uma propriedade do homem, nem sequer a mais importante, pese embora o sentimento de ser livre, que cada um pode experimentar, e o facto de que ao homem, como criatura racional finita, pode ser imputada cada uma das suas acções. Pelo contrário, é o homem que dever ser considerado uma propriedade da liberdade . Esta expressão significa: a liberdade é a ordem mesma do Ser e existe no homem porque ele lhe pertence e a manifesta de determinada forma. 1 Não é, obviamente, o único sentido que o termo possui nesta obra e daí algumas dificuldades de tradução com que nos defrontámos. Frequentemente, Wesen é empregue como equivalente de Seiend, que foi normalmente traduzido por «ente» ou, em alguns casos. por «ser» (sempre com minúscula inicial).

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Na medida em que se trata da liberdade humana, pode ver-se' como o tratado 'de 1809 se afasta decisivamente das posições que Schelling defendera no início da sua actividade filosófica, marcado pela influência de Fichte. Em 1794-5 Schelling afirma o Eu como auto-posição e como posição da realidade; o Eu é princípio de liberdade e a consciência empírica, para a qual essa liberdade é entravada pela presença de uma realidade que se lhe opõe, é negação do mundo dos objectos e esforços da coincidência com o absoluto. Pondo-se a si mesma, a ipseidade deve negar-se para coincidir com o todo, procurando preservar, no fluxo de alterações que a vida no mundo de objectos lhe acarreta, aquela identidade, imutabilidade e permanência que são apenas atributos do absoluto. Vê-se, assim, como o jovem Schelling se debate com duas posições que não são absolutamente coincidentes: primado do Eu que se afirma a si mesmo e põe o mundo e auto-dissolução do Eu na vida infinita do todo. Fichte, que só podia interpretar este todo como mundo de objectos que o Eu deve negar para se afirmar a si mesmo (é o que está implícito na célebre frase: «a filosofia que se escolhe depende do tipo de homem que se é») só poderia interpretar esta posição como recaída no dogmatismo. Mas agora, para Schelling, já não se trata de negar a ipseidade para afirmar o todo, mas de afirmar que a vida fora do todo, ou seja, fora de Deus, corresponde à manifestação, no homem, de um princípio existente em Deus. Schelling denomina-o a natureza de Deus e contrapõe-no à sua existência, estando embora indissoluvelmente ligado a ela. A unidade destes dois princípios constitui a vida divina. Aquela natureza, como fundo obscuro' ou abismo

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insondável, existe também no homem, embora - dado que o homem é criatura - se possa dissociar do princípio luminoso (o entendimento) e, submetendo-o, estar na origem do Mal. Pelo contrário, quando se verifica a unidade entre aqueles dois princípios, o homem torna-se espírito e participante da vida divina. Deste modo, Schelling pode afirmar simultanemente que o mal tem, no homem, uma raiz independente de Deus e que, no entanto, nada pode existir fora de Deus. Assim, se a teodiceia significa a dissolução da positividade do mal, fazendo-o resultar da inacapacidade do nosso entendimento em totalizar os efeitos da criação e integrá-los na perspectiva que os explica, o sistema da liberdade recupera essa positividade, sem o iludir, colocando-o no ente no seu todo e ligando-o ao que, em Deus, ainda não é Deus.

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o leitor familiarizado

com a mística alemão do final da Idade Média e do Renascimento, ou com alguns dos temas favoritos da Cabala e da Teosofia, poderá encontrar nas páginas que se seguem algo mais do que uma mera coincidência de termos e de expressões. Termos como Base, Centro, Periferia, Temperamento, etc, revelam em Schelling o leitor atento de Jacob Bõhme, autor que se tornara bastante popular nos meios românticos de Jena, no, final do século XVIII, que Schelling frequentava. E natural que na época da elaboração do Freiheitsschrift o contacto com Franz Baader (autor que Schelling refere

1 Este Grund que é, igualmente, um Abgrund, foi traduzido por «fundo» e não por «fundamento», para não ser entendido como sinónimo de causa ou motivo, na dependência, portanto, do princípio de

razão suficiente, que é precisamente aquilo que Schelling pretende aqui pôr em causa. O Grund não é razão, mas o «sem-razão» ou «irracional» com que toda a existência se confronta.

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por diversas vezes e cujos trabalhos então apreciava) tenha reavivado o interesse por aquelas leituras. Como o que mais nos importa é o movimento vivo das ideias e não a história das influências, não abordaremos aqui este problema. Interessa muito mais mostrar o modo como Schelling atribui o mais alto valor especulativo à noção cristã de Deus como «Deus de vivos e não de mortos» e como a utiliza para fundamentar ontologicamente a possibilidade do Mal e o seu aparecimento ôntico através da liberdade humana. Gostaríamos ainda de fazer notar que a obra de' Schelling, neste momento decisivo em que se anuncia uma viragem em face das suas preocupações iniciais, procura responder antecipadamente a um dos desafios que, segundo Martin Heidegger, se coloca nos nossos dias ao pensamento: a ultrapassagem da estrutura onto-teolôgica da metafísica. Sabe-se que o que este autor designa com o auxilio da referida expressão não é a intromissão indevida de uma determinada teologia no pensamento filosófico, contaminando-lhe os temas e a sua marcha independente, mas a necessidade de toda a metafísica se apoiar num ser subsistente por si mesmo (alreus»), para garantir conceptualmente a subsistência do real. Ora o Deus de Schelling não é mais o ipsum esse subsistens dos medievais e, por isso, embora o tratado de 1809 pertença de pleno direito à tradição metafísica ocidental, a que nunca quis deixar de pertencer, parece-nos ser também um dos momentos mais significativos em que se esboça uma ruptura com ela. CARLOS MORUJÃO

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INDICAÇAO BIBLIOGRAFICA 1) Obras gerais

M. Franck, Der unendliche Mangel an Sein, Frankfurt-am-Maia, 1975. W. Schulz, Die Vollendung des deutschen Idealismus in der Sãtphilosophie Schellings, Stuttgart, 1953. X. Tilliete, Schelling. Une philosophie en devenir, Paris, 1970, 2 vol, 2) Obras sobre o sistema da liberdade

M. Heidegger, Schellings Abhandlung über das Wesen der menschlichen Freiheit, Tübingen, 1971. M. Richer, Schelling et l'utopie métaphysique (editado como comentário à sua tradução do Freiheitsschrift, Recherches Philosophiques sur l'essence de la liberté humaine), Paris, 1977. W. Marx. Schelling: Geschichte, System, Freiheit, Freiburg-München, 1977. W. Schulz, «Oetinger Beitrag zur schellingschen Freiheitslehre», in Zeitschrift [úr Theologie und Kirsche, 1 (1957) 213-225. 29

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I NOTA PRÉVIA1 Acerca do tratado que se segue, o autor tem pouco a dizer. Pelo facto de se atribuir ao ser da natureza espiritual, em primeiro lugar, a razão, o pensar e o co- . nhecer, a oposição entre natureza e espírito foi, desde logo, considerada de acordo com esta perspectiva. A simples crença numa razão simplesmente humana, a convicção da total subjectividade de todo o conhecer e de todo o pensar e da total ausência de razão e de pensamento na natureza, juntamente com o modo mecanicista de representar, dominante em toda a parte (na medida em que também a dinâmica, ressuscitada por Kant, se transformou, unicamente, numa mecânica de nível superior, sem ser de forma alguma reconhecida a sua identidade com o espiritual), justificam o curso seguido pelo modo de considerar esta questão. Mas aquela raiz da oposição foi agora arrancada e a posse de um ponto de vista 1 Originalmente, esta nota constituia uma parte do prefácio ao primeiro volume das Obras filosóficas de Schelling, Landshut, 1809, onde este tratado foi pela primeira vez publicado.

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Embora o autor não se tenha até aqui explicado, em parte alguma, acerca dos pontos principais que se exprimem neste tratado, a liberdade da vontade, o Bem e o Mal, a personalidade, etc (com a única excepção do escrito Philosophie und Religion), isto não impediu que lhe atribuissem opiniões totalmente despropositadas acerca destes assuntos, segundo a fantasia de cada um, apesar do conteúdo daquele escrito - ao qual, segundo parece, quase se não prestou atenção. Assim, pretensos discípulos, sem qualquer autoridade, puderam aduzir uma grande quantidade de disparates a partir de supostos prin-

cípios do autor, tanto sobre estes assuntos, como sobre outros. Na verdade, um seguidor em sentido estrito deveria, segundo parece, poder estar na posse de um sistema fixo e fechado. O autor, até hoje, ainda não estabeleceu um tal sistema, mas indicou, somente, algumas partes dele (e mesmo isto, muitas vezes, numa perspectiva particular, por exemplo, polémica); por isso, declara que os seus escritos são elementos de um todo e que, para vislumbrar a conexão entre esses elementos, seria necessário um mais subtil dom de percepção do que o dos seguidores impertinentes e uma boa vontade superior à que se pode encontrar entre os adversários. A única exposição científica do seu sistema, porque ele não estava ainda completo, não foi sequer entendida por ninguém, de acordo com a sua tendência própria. Após a publicação deste fragmento começou, por um lado, a calúnia e a falsificação e, por outro, o comentário, a adaptação e a tradução, em que a utilização de uma linguagem pretensamente mais genial (porque, num tempo como aquele, um delírio poético imparável apoderou-se das mentes) foi do pior género. Agora, parece que um tempo mais saudável quer, de novo, surgir. A fidelidade, a aplicação, a intimidade são, de novo, procuradas. Começa-se a conhecer, em geral, por aquilo que vale, a vacuidade daqueles que se pavoneiam com as fórmulas da nova filosofia, como heróis de dramas franceses, ou tomando atitudes de saltimbancos; ao mesmo tempo, os outros, os que anunciam o novo em todos os mercados, como tocadores de realejo, suscitam, finalmente, uma tão grande repugnância que, em breve, não conseguirão encontrar público; sobretudo se, a propósito de cada rapsódia insensata,onde se encontram algumas expressões de um qualquer conhecido escritor, se deixa de ouvir dizer a juízes, de

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mais rigoroso pode tranquilamente ser confiada ao progresso geral em direcção a um melhor conhecimento. É tempo de se pôr em evidência a mais alta, ou melhor, a autêntica oposição, a oposição entre necessidade e liberdade, com a qual, somente, se pode tomar em consideração o ponto central mais íntimo da filosofia. Uma vez que o autor, após a primeira exposição geral do seu sistema (Zeitschrift [ür Spehulatioe Physik), cujo progresso, infelizmente, foi interrompido por circunstâncias exteriores, se limitou, unicamente, a investigações de filosofia natural, e uma vez que o ponto de partida, no escrito Philosophie und Religion, permaneceu obscuro, certamente por culpa da própria exposição, o presente tratado é o primeiro no qual o autor apresenta, com uma determinação completa, o seu conceito da parte ideal da filosofia; por isso, na medida em que aquela primeira exposição pode ter tido alguma importância, deve o autor completá-la, desde logo, com este tratado, que, de acordo com a natureza do seu objecto, deve conter esclarecimentos mais profundos sobre a totalidade do sistema, do que todas as exposições mais parciais.

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resto sem má intenção, que tais rapsódias foram feitas a partir de princípios do autor. Tomem, antes, cada um desses autores como um autor original, o que cada um deles quer ser e o que, no fundo, muitos deles sem dúvida são. Possa então este tratado servir, por um lado, para destruir muitos preconceitos e, por outro, muito palavreado inútil e fútil. Finalmente, quereriamos que aqueles que atacaram o autor destas páginas, aberta ou veladamente, pudessem expôr agora, também, o seu pensamento, tal como o fazemos aqui. Se o perfeito domínio do objecto torna possível a sua livre e fecunda elaboração, então as piruetas artísticas da polémica não poderão ser a forma da filosofia. Por isso, mais ainda desejamos que se estabeleça o espírito do esforço conjunto e que o espírito de seita, que tantas vezes dominou os alemães, não iniba a aquisição de um conhecimento e de uma perspectiva cuja completa elaboração desde sempre parece estar destinada aos alemães e que deles talvez nunca como agora tenha estado tão perto. Munique, 31 de Março de 1809

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Investigações filosóficas sobre a essência da liberdade humana podem, em parte, dizer respeito ao conceito verdadeiro de liberdade, na medida em que o facto da liberdade (por muito imediatamente que o sentimento dela esteja entranhado em cada um de nós) de forma alguma é tão superficial que, também para o exprimir somente por palavras, não se exija mais do que a pureza e a profundidade habituais dos sentidos; de outra parte, podem também tais investigações dizer respeito à conexão entre este conceito e a totalidade de uma visão científica do mundo. Todavia, dado que nenhum conceito pode ser determinado isoladamente e dado que somente a demonstração da sua conexão com o todo lhe dá a derradeira perfeição científica (o que deve ser o caso, especialmente, do conceito de liberdade, o qual, se tem, em geral, realidade, não pode ser um conceito subordinado ou acessório, mas um dos pontos centrais e dominantes do sistema), assim, ambas as partes da investigação coincidem aqui, como em qualquer outro caso, numa só. De acordo com uma opinião antiga, mas de forma alguma desaparecida, o conceito de liberdade deve, de facto, ser incompatível com o de sistema e qualquer filosofia que reivindique a 35

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unidade e a totalidade deve ser a negação da liberdade. Contra afirmações universais deste género não é fácil combater; porque sabe-se que tipo de representações limitadoras se ligaram já à palavra sistema, de modo que a afirmação diz, de facto, qualquer coisa de muito verdadeiro, mas também de muito trivial. Se se quer dizer que o conceito de liberdade se opõe ao conceito de sistema, tomado em geral e em si mesmo, então é estranho que, dado que a liberdade individual se relaciona, de uma forma qualquer, com a totalidade do mundo (seja ela pensada de modo realista ou idealista), possa existir um qualquer sistema, pelo menos no entendimento divino, com o qual a liberdade se possa conciliar. A afirmação geral segundo a qual este sistema nem sequer pode ser atingido pelo entendimento humano significa, uma vez mais, nada dizer; uma vez que esta afirmação pode ser verdadeira ou falsa, de acordo com o modo como for entendida. Tudo depende da definição do princípio com o qual o homem, em geral, conhece; e seria aplicável à aceitação da hipótese de um tal conhecimento o que Sexto Empírico diz a propósito de Empédocles: o gramático e o ignorante podem pensar que resulta do orgulho e da pretensão de se elevar acima dos outros homens, sentimentos a que devem ser alheios aqueles que têm nem que seja um só pequeno treino de filosofia; mas quem parte da teoria física e sabe que há uma doutrina muito antiga, de acordo com a qual o semelhante é conhecido pelo semelhante (o que, segundo parece, tem a sua origem em Pitágoras, mas que se encontra em Platão, tendo já sido expressa antes dele por Empédoc1es) compreenderá que o filósofo afirma a existência de um tal conhecimento (divino), porque só ele, mantendo puro o entendimento e não obscurecido pela maldade, concebe, com o

'Deus que tem em si, o Deus que se encontra fora de Silo . Simplesmente aqueles que estão pouco inclinados para a ciência pensam habitualmente que este é um conhecimento que, tal como a geometria vulgar, é totalmente abstracto e sem vida. Seria mais rápido ou mais decisivo negar a existência do sistema na vontade ou no entendimento do Ser originário e dizer que, em geral, há apenas vontades particulares, cada uma das quais constitui para si própria um ponto central, ou então que, segundo a expressão de Fichte, o eu de cada um é a substância absoluta. A razão, todavia, que tende para a unidade, tal como o sentimento que assenta na liberdade e na personalidade, apenas podem ser repelidos por uma decisão, que se mantém por um momento para, finalmente, desaparecer. Mesmo assim, a doutrina fichteana devia testemunhar o seu reconhecimento da unidade (mesmo que na figura mesquinha de uma ordem moral do mundo), pelo qual. imediatamente, se emaranhou em contradições e posições insustentáveis. Por isso, parece que, também, independentemente do que se possa alegar de um ponto de vista meramente histórico, ou seta, a partir dos sistemas passados pois não encontramos em parte alguma que o fosse com argumentos tirados da essência da razão ou do fundamento do próprio conhecimento - a conexão entre o conceito de liberdade e a totalidade da visão do mundo permanece uma tarefa necessária, sem cuja solução vacilaria o próprio conceito de liberdade e a filosofia ficaria completamente sem valor. Porque é unicamente esta grande tarefa que é o motor inconsciente e imperceptível de todo o esforço do conhecimento, desde o menos importante ao

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1 Sextus Empiricius, Adv. Grammaticos, L. 1, c. 13, edição Fabric, p.283.

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1 São conhecidas as mais antigas afirmações deste tipo. Se a afirmação de Fr. SchlegeI, na sua obra Uber dis Spache und Weisheit des Indies (Sobre a linguagem e a sabedoria dos indianos) p. 141, «o panteísmo é o sistema da razão pura», pode ter outro sentido, deixemo-lo em suspenso.

esta teoria. Mas é, precisamente, o sentido que marca aqui toda a diferença. É inegável que o sentido fatalista deixa-se ligar a esta perspectiva; que não deve estar essencialmente ligado a ela é o que se deduz do facto de tanta gente se encontrar ligada a esta perspectiva através do mais vivo sentimento da liberdade. A maioria, se fossem sinceros, confessariam que, do modo como as suas representações estão constituídas, a liberdade individual parece-lhes estar em contradição com todas as propriedades de um Ser Supremo, como por exemplo, ele ser todo-poderoso. Com a liberdade é afirmado um poder incondionado, de acordo com o seu princípio, fora e ao lado do divino, o que, de acordo com os conceitos referidos, é impensável. Tal como o Sol ultrapassa toda a luz existente no firmamento, também o poder infinito ultrapassa o finito, muito mais ainda do que o Sol. A causalidade absoluta num único ser permite a todos os outros, somente, uma passividade mcondicionada. A isto, soma-se a dependência de todos os seres mundanos em relação a Deus e o facto de a própria duração desses seres ser, somente, uma criação continuamente renovada, na qual o ser finito é produzido, não como um universal indeterminado, mas como este singular determinado, com tais e tais pensamentos, esforços e acções, e não outros. Dizer que Deus retém o seu poder para que o homem possa agir, ou dizer que ele consente a liberdade, não esclarece nada; se Deus retirasse o seu poder por um instante, o homem deixaria imediatamente de existir. Haverá outra saída para esta argumentação senão salvar o homem, com a sua própria liberdade, no interior da própria essência divina (dado que essa liberdade é impensável em oposição ao todo-poderoso), sustentando que o homem não está fora de Deus e que a sua própria actividade pertence à vida divina? Foi precisamente a partir deste ponto que místi-

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mais elevado; sem a contradição entre necessidade e liberdade sucumbiria não somente a filosofia, mas também todo o mais alto querer do espírito, o que acontece nas ciências, em que esta contradição não tem lugar. Encontrar uma solução através da renúncia à razão parece mais uma fuga do que uma vitória. Com o mesmo direito, outro poderia voltar as costas à liberdade, para se lançar nos braços da razão e da necessidade, sem se encontrar, nem de um lado, nem do outro, uma razão para se cantar vitória. A mesma opinião poderia ser expressa, de um modo mais determinado, através da seguinte aproximação: o único sistema possível da razão é o panteiamo, mas este é, inevitavelmente, um fatalismo". E incontestável que se trata de uma admirável descoberta ter encontrado tais nomes gerais, com os quais se podem designar, de uma só vez, a totalidade de um ponto de vista. Se alguma vez se tivesse encontrado o nome correcto para um sistema, tudo o resto viria por si mesmo e libertar-nos-iamos do trabalho de procurar com mais exactidão as suas peculiaridades. Mesmo os ignorantes podem emitir juízos acerca dos pensamentos mais profundos com a ajuda de tais nomes, desde que eles lhes sejam indicados. No entanto, no que respeita a uma afirmação tão extraordinária, tudo depende de uma mais rigorosa determinação do conceito. Porque não se deve negar que, se o panteísmo mais não significasse do que a imanência das coisas em Deus, qualquer perspectiva racional deveria, num certo sentido, ter em conta

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cos e religiosos de todo os tempos chegaram à crença na unidade do homem com Deus, que parece responder ao sentimento mais íntimo, tanto, ou mais ainda, quanto responder à razão e á especulação. De facto, é precisamente na consciência da liberdade que as próprias Escrituras encontram a marca e a garantia de que nós vivemos e somos em Deus. Mas como pode, então, entrar necessariamente em conflito com a liberdade, a teoria que tantos defendem em relação ao homem, justamente para salvaguardar a liberdade? Uma outra explicação do panteísmo que, habitualmente, se pensa ser mais pertinente, é, certamente, aquela que consiste numa total identificação de Deus com as coisas, numa mistura da criatura com o criador, a partir da qual derivaram uma quantidade de outras posições, mais grosseiras e insustentáveis. Simplesmente, dificilmente se pode pensar numa distinção mais completa entre as coisas e Deus do que a que se encontra em Espinosa, que é considerado o representante clássico da teoria. Deus é aquilo que existe em si mesmo e que somente se pode pensar a partir de si mesmo; mas o finito é aquilo que, necessariamente, existe num outro e só a partir desse outro pode ser concebido. Certamente que as coisas, de acordo com esta distinção, não são distintas de Deus simplesmente segundo uma diferença de grau, ou em função das suas limitações, como poderia deduzir-se de uma análise superficial da doutrina dos modos, mas toto genere. Qualquer que possa ser, de resto, a relação das coisas com Deus, elas estão absolutamente separadas dele, na medida em que somente podem ser em e a partir de um outro (a saber, Deus), de modo que o seu conceito é apenas um conceito derivado que, sem o conceito de Deus, não seria sequer possível; porque, ao contrário destas, Deus é o único que é

autónomo e originário, o único que se afirma por si mesmo e em relação ao qual tudo o resto só se pode comportar como tendo sido afirmado, como simples consequência diante do fundamento. Somente na base destes pressupostos têm valor todas as outras propriedades das coisas, como por exemplo, a sua eternidade. De acordo com a sua natureza, Deus é eterno; as coisas somente o são graças a ele e em consequência da sua existência, quer dizer, de um modo derivado. Precisamente por causa desta distinção, todas as coisas isoladas, tomadas em conjunto, não podem, como habitualmente se pretende, constituir Deus, na medida em que aquilo que, de acordo com a sua natureza, é derivado, não se poderá transformar naquilo que, por natureza, é originário, sej a qual for o seu modo de reunião, tal como os pontos isolados de um círculo não podem constituí-lo se forem tomados em conjunto, dado que este, de acordo com o seu conceito, precede-os necessariamente como um todo. Ainda mais banal é concluir que, segundo Espinosa, até mesmo uma coisa isolada deveria ser igual a Deus. Porque, mesmo que se encontrasse em Espinosa a expressão vigorosa de que cada coisa é-um Deus modificado, os elementos do conceito são tão contraditórios que ele se desagregaria imediatamente após ter sido formado. Um Deus modificado, quer dizer, derivado, não é um Deus no sentido autêntico e eminente da palavra; em virtude deste único aditamento, a coisa regressa à posição que é a sua e pela qual se encontra eternamente separada de Deus. O fundamento de tais interpretações incorrectas, de que foram também vítimas, em larga medida, outros sistemas, reside na universal má compreensão do princípio de identidade, ou do sentido da cópula no juízo. E ainda que se possa fazer compreender a uma criança que em nenhuma proposição possível que, em consequência

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da referida explicação, exprima a identidade do sujeito e do predicado, se exprime uma unidade ou, sequer, uma conexão não mediatizada entre ambos - na medida em que, por exemplo, a proposição «este corpo é azul», não significa que o corpo seja também azul naquilo em que e por meio de que ele é corpo, mas apenas que o mesmo que é este corpo também é, embora não do mesmo ponto de vista, azul- todavia, este pressuposto, que mostra uma completa ignorância acerca da essência da cópula, continua em vigor nos nossos dias, tratando-se do mais alto emprego do princípio de identidade. Seja, por exemplo, esta proposição: «o perfeito e o imperfeito»; o seu sentido é o seguinte: o imperfeito não existe por causa daquilo pelo que ou naquilo em que é imperfeito, mas através do perfeito que nele existe. Mas, nos nossos dias, esta proposição tem o seguinte sentido: o perfeito e o imperfeito são um só, tudo é idêntico, o pior e o melhor, a loucura e a sabedoria. Ou então, a proposição: «o Bem é o Mal», que quer apenas dizer que o . mal não tem o poder de existir por si mesmo e que o que há nele de existente é o bem (considerado em e por si mesmo), é interpretada de modo a que a eterna distinção entre o que está bem e o que está mal, entre o valor e o vício, é ignorada, como se ambos fossem logicamente o mesmo. Ou quando se diz, num outro contexto, que o necessário e o livre são um só . - o que significa: o mesmo que (em última instância) é a essência do mundo moral e também a essência da natureza -, esta afirmação é interpretada do seguinte modo: o livre não é senão força da natureza que, como todas as outras forças, está sujeita ao mecanismo. O mesmo acontece com a proposição segundo a qual a alma está unida ao corpo, que é interpretada do seguinte modo: a alma é matéria, ar, éter, composta por nervos, etc; e o inverso é deliberadamente posto de lado, a saber, a afirmação de que o corpo é

alma ou, como na proposição anterior, o aparentemente necessário é em si mesmo livre - conclusão que deve ser também retirada. Com tais incompreensões que, mesmo quando não são intencionais, pressupõem um grau de menoridade dialéctica que a filosofia grega, nos seus primeiros passos, tinha já ultrapassado, torna-se um dever recomendar um estudo fundamentado de lógica. A antiga lógica, que tinha atingido um elevado grau de profundidade, distinguira já sujeito e predicado como antecedente e consequente (antecedens e consequens) e, com isso, exprimiu o sentido real do princípio de identidade. Mesmo na proposição tautológica (se ela não deve ser qualquer coisa desprovida de sentido) esta relação permanece. Quem afirma que um corpo é um corpo pensa, seguramente, com o sujeito da proposição, algo de diferente do que com o predicado; ou seja, através daquele pensa a unidade, com este, as propriedades individuais que o conceito de corpo contém, relacionando-se os dois entre si como o antecedens com o consequens. É precisamente este o sentido de uma outra explicação antiga, segundo a qual o sujeito e o predicado se opõem como o que está recolhido e o que está desdobrado (implicitum et explicitumy, --

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agravada .em vez de ser diminuída. Mesmo se se "aceitar que este segundo ser foi originariamente concebido como bom e decaiu, por culpa própria, do ser originário, continua a permanecer não esclarecido, em todos os sistemas existentes até agora, o primeiro poder de realizar um acto oposto a Deus. Por isso, mesmo que, finalmente, se suprima não somente a identidade, mas qualquer tipo de conexão dos seres mundanos com Deus, mesmo que se queira ver a totalidade da sua existência presente e, com isso, a do mundo, como um afastamento em relação a Deus, a dificuldade seria apenas ligeiramente deslocada, mas não seria suprimida. Porque, para poderem sair de Deus seria preciso que as coisas já existissem de uma certa maneira e, por isso, a teoria da emanação pode tanto menos opôr-se ao panteísmo quanto pressupõe uma existência originária das coisas em Deus e assim pressupõe claramente esse mesmo panteísmo. Mas, para esclarecer aquele afastamento, poder-sé-ia aceitar a hipótese seguinte: . ou essa saída é involuntária da parte das coisas, mas não da parte de Deus, e elas são, então, repelidas por Deus para o estado de infelicidade e de maldade e Deus, portanto, é o causador desse estado; ou ela é involuntária de ambos os lados, causada, de facto, pela superabundância do ser, como alguns o afirmam, tratando-se de uma representação totalmente inaceitável; ou ela é voluntária da parte das coisas, é um arrancar-se a Deus, a consequência de um pecado, portanto, a que se segue uma queda cada vez mais profunda; então, este primeiro pecado é, ele próprio, já o Mal e assim não se fornece nenhum esclarecimento sobre a sua origem. Mas sem este expediente que, se esclarece a presença do Mal no mundo, pelo contrário apaga totalmente o Bem e, em vez de conduzir ao penteísmo, conduz ao pandemonismo, desaparece por completo, no sistema da

emanação, aquela autêntica oposição entre o Bem e Mal; o primeiro desaparece no meio de infinitos estádios intermédios, através de sucessivos abrandamentos, naquilo que já não tem nenhuma aparência de Bem, aproximadamente como Plotino' descreve, subtilmente, mas de forma insuficiente, a passagem do Bem originário para a matéria e para o Mal: através de uma contínua subordinação e afastamento surge um último estádio para além do qual nada mais pode acontecer e é precisamente este (o que é incapaz de produção ulterior) que é o Mal. Ou então, se há qualquer coisa depois do primeiro, deve também haver no último, que já não tem em si mesmo mais nada do primeiro: é isto a matéria e a necessidade do Mal, Em consequência destas considerações não parece ser razoável atribuir todo o peso destas dificuldades unicamente a um sistema, em particular quando aquele pretensamente mais elevado, que lhe é oposto, é tão insuficiente. As generalidade do idealismo também não podem oferecer aqui qualquer tipo de ajuda. Com tais conceitos abstractos de Deu.. como o de actus purissimus, tal como a antiga filosofia estabelecera, oucomo aqueles que a nova filosofia continuamente produz a partir da preocupação de afastar Deus, correctamente, de toda a natureza, não se consegue, de um modo geral, chegar a nada. Deus é qualquer coisa de muito mais real do que uma mera ordem moral do mundo e tem em si mesmo forças de transformação totalmente diferentes e muito mais vivas do que aquelas que lhe são atribuidas pelas subtilezas mesquinhas dos idealistas abstractos. O horror diante de todo o real, que procura manter puro o espiritual impedindo qualquer con-

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Ennéadas, I, VIII, c. 8.

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tacto com ele , deve naturalmente tornar-nos cegos para a visão da origem do Mal. O idealismo, quando não conserva na base um realismo vivo, torna-se um sistema vazio a abstracto, tal como o leibniziano, o espinosista ou qualquer outro sistema dogmático. Toda a filosofia europeia moderna, desde o seu início (com Descartes), tem esta falta generalizada que consiste no facto de que, para ela, a natureza não está presente e escapa-lhe um fundamento vivo. O realismo de Espinosa é tão abstracto como o idealismo de Leibniz. O idealismo é a alma da filosofia; o realismo é o corpo; só os dois reunidos constituem uma totalidade viva. Este último não pode produzir o princípio, mas deve ser o fundamento e o meio no qual aquele se efectiva, toma carne e sangue. Falta uma filosofia daquele fundamento vivo (o que é habitualmente uma indicação de que, também nela, o princípio ideal era apenas debilmente efectivo) e ela perde-se naqueles sistemas cujos conceitos abstractos de aseidade, modificação, etc., se encontram na mais manifesta contradição com a força da vida e a plenitude da efectividade. Mas onde o princípio ideal age efectivamente no mais alto grau, sem poder encontrar a base conciliante e mediadora, produz-se um entusiasmo turvo e selvagem, que irrompe sob a forma de auto-dilaceração, ou em auto-emasculação (como nos sacerdotes da deusa frígia), entusiasmo esse que, em filosofia, se consuma em abandono da razão e da ciência. Parece-nos necessário começar este tratado com a retificação de conceitos essenciais que, desde há muito, mas, em particular, nos tempos mais recentes, foram confundidos. As observações feitas até agora devem, por isso, ser consideradas como mera introdução à nossa verdadeira investigação. Já esclarecemos que somente a partir dos princípios de uma verdadeira filosofia da natureza se pode 60

desenvolver uma perspectiva que possa satisfazer completamente a tarefa que é aqui empreendida. Não negamos, com isto, o facto de esta perspectiva correcta se encontrar, já há muito tempo, em espíritos isolados. Mas, precisamente, estes for~ também aqueles que procuraram o fundamento VIVO da natureza, sem recear aquelas invectivas (como materialismo panteísmo, etc.) que foram empreQUes desde há muito tempo, contra toda a filosofia ;eal 'e que, ao contrário dos dogmáticos e ,do.s idealistas abstractos, que os rejeitavam como místicos, foram filósofos da natureza (em ambos os sentidos). A filosofia da natureza do nosso tempo expôs, pela primeira vez na ciência, a diferença entre o ser na medida em que existe, e esse mesmo ser, na medida em que é fundamento da ex~stê~cia. Est~ diferença é tão antiga como a sua primeira exposição científica 1. Embora seja este o ponto no qua.l ela se afasta de forma mais determinada, do cammho seguido ~or Espinosa, pôde-se, todavia, d~fe?~er na Alemanha, até esta altura, que os seus prmcipios metafísicos eram idênticos aos de Espinosa; e apesar de aquela distinção ser a que nos fornece, ao mesmo tempo, a mais clara distinção entre a nature~a e Deus isso não impediu que fosse acusada de misturar Deus com a natureza. Dado que é nesta distinção que ela primeiramente se fundamenta, deve di~er-se ainda mais qualquer coisa para o seu esclarecimento. Porque nada existe diante ou fora de Deu~, e~e deve ter em si mesmo o fundamento da sua própria existência. É o que dizem todas as filosofias; mas 1 Ver, sobre este assunto, Zeitsch. [ür specul. Physik, Bd. II. fase. 2. -4 ,no t a (IV ,P. 146)'" e mais adiante ' nota 1 ao § § :) . 93 e os esclarecimentos p. 114 (p. 203)

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falam deste fundamento como de um puro conceito, sem o tornar qualquer coisa de real ou de efectivo. Este fundamento da sua existência, que Deus tem em si mesmo, não é Deus considerado absolutamente, quer dizer, na medida em que existe; porque se trata somente do fundamento da sua existência, esse fundamento é a natureza em Deus; um ser que dele é inseparável, mas que é, todavia, diferente. Esta relação pode ser esclarecida analogicamente, pela relação que existe na natureza entre a gravidade e a luz. A gravidade precede a luz como seu fundamento eterno e obscuro, que não é, ele próprio, actu, e que se perde na noite à medida que a luz (aquilo que existe) se propaga. A própria luz não se desembaraça completamente daquilo que a encerra'. Precisamente por isso, a gravidade não é nem a pura essência nem o ser actual da identidade absoluta, mas apenas uma consequência da sua naturezaf; ou então é-o, mas considerada numa potência determinada; isto porque, por outro lado, o que, em relação à gravidade, aparece como existente, pertence em si mesmo ao fundamento, de modo que a natureza em geral é, portanto, tudo aquilo que se encontra para além do ser absoluto da identidade absoluta'', No que, acima de tudo, diz respeito à procedência, não se deve pensar nela nem como procedência segundo o tempo, nem como prioridade da essência. No círculo a partir do qual tudo devém, não há nenhuma contradição em que aquilo pelo que uma coisa é produzida seja, ele próprio, engendrado por ela,. Aqui, não há, nem um primeiro, nem um último, porque tudo se pressupõe reciprocamente, um não é idêntico ao outro e, todavia, nenhum pode ser 358

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Ibidem, pp. 59, 60 (p, 163). Ibidem p. 41 (p. 146). Ibidem, p. 114 (p. 203).

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sem o outro. Deus tem, em si mesmo, o fundamento interno da sua existência, que o precede na medida em que existe; mas, da mesma forma, Deus é, de novo, o Prius do fundamento, na medida em que este, enquanto tal, não poderia ser se Deus não existisse actuo A perspectiva que parte das coisas conduz à mesma distinção. Para começar, deve ser completamente posto de lado o conceito de imanência, na medida em que, através dele, se exprime um ser-concebido morto das coisas em Deus. Reconhecemos, antes, que o conceito de devir é o único apropriado à natureza das coisas. Mas elas não podem devir em Deus considerado de modo absoluto, na medida em que são toto genere ou, dito mais exactamente, infinitamente diferentes dele. Para existirem separadas de Deus devem estar em devir num fundamento diferente dele. Mas porque, no entanto, nada pode existir fora de Deus, esta contradição só pode ser resolvida se as coisas tiverem o seu fundamento naquilo que, em Deus, não é Ele Mesmo", quer dizer, naquilo que é o fundamento da sua existência. Se quisermos aproximar do homem esta essência, podemos dizer que ela é a nostalgia que sente o Uno eterno de se produzir a si mesmo. Ela não é o Uno eterno, mas é eternamente idêntica a ele. Quer produzir Deus, quer dizer, a unidade infundável, mas, nessa medida, não é ainda em si mesma a unidade. Por isso, considerada por si mesma, é também von1 Este é o único dualismo legítimo, a saber, aquele que. ao mesmo tempo, admite uma unidade. Em cima, falou-se de dualismo modificado, de acordo com o qual o princípio do Mal não é equivalente (beigeordnet), mas está subordinado a ele. Não se deve recear que alguém equipare a relação aqui exposta àquele dualismo, no qual o que está subordinado é sempre um princípio essencialmente mau e. precisamente por isso, permanece absolutamente incompreendido na sua proveniência divina.

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tade; mas uma vontade na qual não há nenhum entendimento, e que, por isso, não é uma vontade autónoma e perfeita, na medida em que o entendimento é, autenticamente, a vontade na vontade. Todavia, é uma vontade de entendimento, a saber, nostalgia e desejo de entendimento; uma vontade não consciente, mas que pressente e cujo pressentimento é o entendimento. Falamos da essência da nostalgia considerada em si mesma; é ela que deve ser perfeitamente concebida, embora tenha sido expulsa, há muito tempo, por uma instância superior que se eleva acima dela e não a possamos conceber de modo sensível, mas apenas com o espírito e o pensamento. Após o facto eterno da auto-manifestação, o mundo encontra-se tal como agora o vemos: tudo é regra, ordem e forma; mas permanece sempre no fundo aquilo que não tem regra, como se pudesse uma vez mais irromper; e em parte alguma se vê que a ordem e a forma fossem o originário, mas, pelo contrário, que um originário sem regra é que foi trazido à ordem. Este originário é, nas coisas, a base incompreensível da realidade, o resto que nunca se consome, o que não pode ser reconduzido ao entendimento nem com o maior dos esforços, mas permanece eternamente no fundo. O entendimento, em sentido próprio, nasceu daquilo que está privado de enten-dimento. Sem esta obscuridade prévia não há qualquer realidade da criatura; as trevas são a parte que necessariamente lhe cabe. Só Deus - o próprio existente - habita na pura luz, porque somente Ele existe por si mesmo. A presunção própria do homem opõe-se a esta origem a partir do fundo e procura até opor-se-lhe por razões de ordem moral. Todavia, não conhecemos nada que melhor pudesse impelir o homem a dirigir-se para a luz, com toda as suas forças, do que a consciência da noite profunda a partir da qual se eleva à existência. Os lamentos piegas que se

fazem ouvir porque, deste modo, aquilo que não tem entendimento é transformado em raiz do entendimento e a noite é transformada em começo da luz, residem em parte, na verdade, numa incompreensão do que está em causa (na medida em que não se compreende de que modo, com esta perspectiva, a prioridade do entendimento e da essência pode, todavia, ser conceptualmente mantida); mas tais lamentos exprimem o verdadeiro sistema dos filósofos contemporâneos que querem fazer, de bom grado, fumum ex fulgore, facto para o qual não é suficiente a mais violenta precipitação ficheteana. Todo o nascimento é nascimento da escuridão para a luz; o grão deve desaparecer na terra e morrer na escuridão para que uma mais bela figura luminosa se erga e se manifeste à luz do Sol. O homem é formado no útero materno; e é somente da escuridão daquilo que não tem entendimento (do sentimento, da nostalgia, essa matriz soberana do conhecimento) que desperta o pensamento luminoso. Por isso, é assim que nos devemos representar a nostalgia originária, tal como, de facto, ela se dirige para o entendimento que ainda não conhece (da mesma forma que nós, na saudade, ansiamos por um bem desconhecido e sem nome) e se agita num pressentimento, tal como um mar poderoso e ondulante, semelhante à matéria de Platão, que procura uma lei obscura e inconsciente, incapaz de construir por si própria qualquer coisa de duradouro. Mas, correspondendo à nostalgia que, como fundo ainda obscuro, é a primeira emoção da existência divina, produz-se no próprio Deus uma representação interna reflexiva, pela qual (dado que ela não pode ter outro objecto que não Deus) Deus se percebe a si mesmo numa imagem. Esta representação é a primeira em que Deus, considerado de modo absoluto, se realiza efectivamente, independentemente do facto de o fazer

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~" causa da materialidade do pecado e atribuir apenas' à limitação originária da criatura o seu aspecto formal. Procura então esclarecer esta relação através do conceito de força de inércia da matéria, estabelecido por Képler. Diz ser tal conceito a imagem perfeita de uma limitação originária (anterior a todo oagir) da criatura. Quando, através de um impulso, dois corpos distintos, com massa diferente, se põem em movimento a velocidades diferentes, o fundamento da lentidão do movimento de um deles não reside no impulso, mas na tendência natural e peculiar da matéria para a inércia, quer dizer, na limitação interna ou na imperfeição da matêria''. Mas deve aqui notar-se que a própria inércia não pode 1

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ser pensada como se fosse uma mera privação, mas é, acima de tudo.ralgo de positivo, a saber, expressão da ipseidade interna do corpo, da força pela qual ele procura afirmar-se na sua autonomia. Não ignoramos que a finitude metafisica pode ser concebida desta forma, mas negamos que a finitude seja, por si mesma, o·MaII . Este modo de explicação resulta, em geral, de um conceito sem-vida do positivo, de acordo com o qual só a privação se lhe pode opor. Simplesmente, há ainda um conceito intermédio, que forma um oposto real dele e que se afasta consideravelmente da mera negação. Este conceito resulta de uma relação do todo com o singular, da unidade com a multiplicidade, ou como se queira dizer. O positivo é sempre o todo ou a unidade; o que se lhe opõe é a dilaceração do todo, desarmonia, ataxia das forças. No todo dilacerado encontram-se os mesmos elementos que estavam no todo unificado; o elemento material nos dois é o mesmo (por este lado, o Mal não é mais limitado nem pior do que o Bem), mas o elemento formal nos dois é completamente diferente; mas este elemento formal provém, justamente, da essência, ou do próprio positivo. Por isso, deve existir necessariamente uma essência, tanto no Mal como no Bem, mas que no Mal se opõe ao Bem e transferma o temperamente nele contido em não-temperamento. A filosofia dogmática não é suficiente para reconhecer esta essência, pois não possui qualquer conceito de personalidade, quer dizer, da ipseidade elevada à espiritualidade, mas apenas os conceitos vazios de finito e de infinito. Se alguém quisesse responder

1 Pelos mesmos motivos, deve considerar-se insuficiente qualquer outra explicação da finitude, por exemplo, a partir do conceito de relação, para a explicação do Mal. O Mal não resulta da finitude em si mesma, mas da finitude elevada ao ser-si-mesmo.

Tentam. Theod., p. 242. Ibidem, Parte I § 30.

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que a desarmonia já é uma privação, nomeadamente . uma' privação da unidade, o conceito em si mesmo se-' ria todavia insuficiente, mesmo que no conceito geral de privação estivesse contido o de superação ou de dissolução da unidade. Porque a desarmonia não é a dissolução das forças em si mesma, mas a sua falsa unidade, que só se pode chamar dissolução por comparação coma verdadeira unidade. Se a unidade for totalmente suprimida, então será também suprimida a oposição. A doença é suprimida pela morte e nenhum som isolado constitui por si mesmo uma desarmonia. Mas mesmo para esclarecer aquela falsa unidade é necessário algo de positivo, que, por conseguinte, deve ser admitido no Mal, mas que permanecerá por esclarecer enquanto não for reconhecida uma raiz da liberdade no fundo independente da natureza. Quanto ao ponto de vista' platónico, na medida em que podemos avaliá-lo, será melhor falar dele a propósito da efectividade do Mal. As nossas representações modernas acerca desta questão, totalmen-: te inconsistentes e que impelem o filantropismo a negar a existência do Mal, não têm a mais pequena relação com tais ideias: é na sensibilidade, ou na animalidade, ou no princípio terrestre, que reside o único fundamento do Mal, dado que não opõem ao céu tal como se deve fazer, o inferno, mas a terra. Esta representação é uma consequência natural da teoria segundo a qual a liberdade consiste no puro domínio do princípio inteligente sobre os desejos e aspirações sensíveis e o Bem tem origem na pura razão; de onde se conclui, do ponto de vista conceptual, que não há nenhuma liberdade para o Mal (na medida em que aqui dominam as inclinações sensíveis); mas, para falar ainda mais correctamente, o Bem é completamente suprimido. Porque a fraqueza ou a efectividade do princípio do entendimento pode ser o motivo da falta de um agir bom e

virtuoso, mas não o fundamento de um agir positivamente maléfico e contrário aos valores. Mas, admitindo que a sensibilidade ou o comportamento passivo em face das pressões exteriores produzisse acções más de um modo necessário, o próprio homem seria nestas apenas passivo, quer dizer, o Mal visto na sua perspectiva, logo, subjectivamente, não teria nenhum sentido, não poderia ser objectivamente mau, nem teria nenhum significado. Mas dizer-se que o princípio racional é inactivo no Mal também não é, em si mesmo, fornecer qualquer fundamento. Por que motivo então esse princípio não exerce aqui o seu poder? Se ele quer permanecer inactivo, então, o fundamento do Mal consiste neste querer e não na sensibilidade. Ou então não pode, de forma alguma, ultrapassar o poder de resistência desta última e há aqui, simplesmente, fraqueza ou falta, mas de modo algum o Mal. Por conseguinte, de acordo com esta explicação há apenas uma única vontade (se é que assim pode ser chamada) e não uma dupla vontade e, nesta perspectiva, poder-se-ia aplicar aos seus defensores a designação de monoteletas, pedida de empréstimo à história da igreja, mas tomada, todavia, num outro sentido (depois de o nome de «arianos», entre outros, já ter sido aplicado, com alguma felicidade, na crítica filosófica). Mas como não é, de forma alguma, o princípio inteligente, ou o princípio da luz, que age no Bem, mas o princípio que está ligado à ipseidade, ou seja, que ascendeu ao espírito, do mesmo modo o Mal não resulta do princípio da finitude em si mesmo, mas do princípio obscuro ou egoísta (selbstichen), trazido à intimidade com o centro; e tal como há um entusiasmo pelo Bem, há também um arrebatamento pelo Mal. Nos animais, como em todos os outros seres naturais, aquele obscuro princípio é também efectivo, mas neles este princípio ainda não atingiu a luz, tal como no homem, ou

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seja, não é espírito e entendimento, mas procura cega e desejo. Em resumo: onde ainda não há unidade absoluta ou pessoal não é possível nenhuma queda, ou separação dos princípios. Inconsciência e consciência estão unidas no instinto animal de um modo tão cego e determinado que, por esse mesmo facto, é inalterável. É precisamente por isso, por serem uma expressão relativa da unidade, que lhe estão submetidos e que a força que actua no fundo mantém sempre na mesma relação a unidade dos princípios que lhes é própria. O animal nunca pode sair da unidade, ao passo que o homem pode dilacerar livremente a ligação eterna das forças. Por isso Fr. Baader diz correctamente que seria de desejar que a perversidade do homem se pudesse transformar somente em animalidade; mas que, infelizmente, o homem só pode estar por baixo, ou acima, dos animais'. Procuramos deduzir dos primeiros princípios o conceito e a possibilidade do Mal e desvendar o fundamento universal desta doutrina, que consiste em distinguir entre o existente e o que é fundamento da existêncía'', Mas a possibilidade não inclui ainda a efectividade e esta é que é, verdadeiramente, o nosso maior problema. De facto, aquilo que deve realmente ser explicado não é a forma como o Mal se torna efectivo nos indivíduos singulares, mas a sua actividade universal, ou a forma como pode irromper na criação No tratado acima citado, Morgenblatt, 1807, p. 786. Santo Agostinho afirma, contra a doutrina da emanação, que nada pode resultar da substância divina senão Deus; por isso, a criatura foi criada a partir do nada, de onde resulta a sua corruptibilidade e imperfeição (De libero arb., L. T, C.2). Aquele nada é, desde há muito, uma cruz para o entendimento. Uma solução é dada pela expressão das Escrituras: o homem é criado h: ,cõv Jli] (),;(J)v, a partir daquilo que não é; tal como pelo célebre Jl~ dos antigos que, tal como a criação a partir do nada, recebeu da distinção referida, pela primeira vez, um sentido positivo.

como princípio universalmente evidente que, por toda a parte, está em luta com o Bem. Porque ele é indesmentivelmente efectivo, pelo menos como opositor universal, não pode subsistir qualquer dúvida que foi necessário para a manifestação de Deus; também isto resulta do que foi dito anteriormente. Porque se Deus, como espírito, é a unidade indissolúvel de ambos os princípios e se essa mesma unidade só se torna efectiva no espírito do homem, então, se neste último eles fossem tão indissociáveis como são em Deus, o homem não seria distinguível de Deus; o homem desapareceria em Deus e não haveria revelação nem mobilidade do amor. Pois cada ser só se pode manifestar no seu contrário: o amor através do ódio, a unidade através do conflito. Se não existisse nenhuma separação dos princípios a unidade não poderia demonstrar todo o seu poder; não havendo discórdia, o amor não se tornaria efectivo. O homem está posto num tal ponto culminante que tem em si mesmo, em iguais condições, a origem do auto-movimento para o Bem e para o Mal; nele, a unidade dos princípios não é uma união necessária, mas livre. Ele está no ponto de separação: o que escolhe torna-se uma acção sua, mas não pode permanecer na indecisão, porque Deus deve necessariamente revelar-se e porque na criação em geral não pode permanecer nada de ambíguo. Por isso, vê-se que ele também não poderia sair da sua indecisão, precisamente porque é indecisão. Por este motivo, deve haver um fundamento universal para a solicitação e a tentação pelo Mal, nem que seja apenas para tornar vivos nele os dois princípios, quer dizer, para o tornar consciente deles. Ora a solicitação para o próprio Mal parece apenas poder provir de um fundo-essencial mau e a aceitação de um tal fundo parece ser, todavia, inevitável e corresponder, de forma totalmente correcta, àquela interpre-

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tação platónica da matéria segundo a qual ela é algo que se opõeoriginariamente a Deus e é, por isso, em si mesma uma substância má. Enquanto esta parte da doutrina platónica permanecer na escuridão em que se encontra até ao momento", torna-se de facto, impossível emitir um juízo definitivo sobre a referida questão. Todavia, é evidente a partir das considerações anteriores em que medida é que se pode dizer do princípio racional que ele contraria o entendimento ou a unidade e a ordem, sem o tornar, por isso mesmo, um fundo-essencial mau. Assim, pode-se perfeitamente perceber a expressão platónica segundo a qual o Mal provém da antiga natureza; porque todo o Mal deseja regressar ao Caos, quer dizer, àquela situação (Zustaná) em que o centro originário não estava ainda subordinado à luz; é um borbulhar do centro da nostalgia, privada ainda de entendimento. Simplesmente, demonstramos de uma vez por todas que o Mal, enquanto Mal, só pode ter origem na criatura, na medida em que só nesta a luz e a obscuridade, ou seja, ambos os princípios, podem ser unificados. O fundo-essencial originário não pode nunca ser em si mesmo mau, pois não há nele nenhuma dualidade dos princípios. Mas também não podemos pressupor um espírito criado que, tendo ele próprio decaído, solicitasse o homem para a queda, porque a questão aqui é a de se saber como é que o Mal apareceu, pela primeira vez, numa criatura. Por isso, para se esclarecer o que é Mal nada mais nos é dado, também, para além dos dois princípios em Deus. Deus como espírito ( a eterna união dos dois) é o amor mais Possa um dia esclarecer-nos sobre este ponto o excelente cornentador de Platão que é Bockh, que já nos deu as maiores esperanças com as suas notas sobre a harmonia platónica, por si exposta. e com o anúncio da sua edição do Timeu- .

puro, mas no amor não pode existir uma vontade para o Mal; muito menos, também, no princípio ideal. Mas o próprio Deus, para poder ser, necessita de um fundamento, simplesmente tal fundamento não' se encontra no seu exterior, mas nele, e tem em si uma natureza que, embora pertencendo-lhe, é diferente dele. A vontade do amor e a vontade do fundo são duas vontades distintas, que existem cada uma para si mesma; mas a vontade do amor não pode resistir à vontade do fundo, nem superá-la, porque senão teria de se opor a si mesma. Ora o fundo deve agir para o amor poder existir, mas deve agir independentemente dele para que o amor exista realmente. Se agora o amor quisesse quebrar a vontade do fundo, deveria lutar consigo mesmo, não estar unido a si mesmo e então já não seria o amor. Este deixar agir o fundo é o único conceito pensável de autorização que, referido habitualmente ao homem, é totalmente inadmissível. Assim, a vontade do fundo não pile, certamente, destruir o amor, nem sequer o pretende fazer, embora muitas vezes o pareça; porque, afastando-se do amor, deve tornar-se vontade própria e particular, para que o amor, mesmo se a atravessa do mesmo modo que a luz atravessa a obscuridade, apareça em todo o seu poder. O fundo é apenas uma vontade de manifestação, mas, precisamente para o ser, deve procurar a particularidade e a oposição. A vontade do amor e a do fundo fundem-se numa só justamente porque estão separadas e porque, desde o começo, cada uma age por si própria. Por esse motivo, a vontade do fundo agita-se igualmente na primeira criação da vontade própria da criatura, para que o espírito, ao surgir agora como vontade do amor, encontre um opositor onde se possa tornar efectivo. A visão da totalidade da natureza convence-nos do anteceder desta agitação, pela qual, somente.

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qualquer vida atinge o último grau de acuidade e de determinidade. O irracional e o ocasional, que se mostram ligados ao necessário na formação do ser, em particular do ser orgânico, são a comprovação que não é unicamente uma necessidade geométrica que entrou aqui em acção, mas que estiverem em jogo, conjuntamente, a liberdade, o espírito e a vontade própria. De facto, por todo o lado onde se encontra prazer e desejo, existe já, em si mesma, uma forma de liberdade e ninguém acreditará que os desejos, que constituem o fundamento de cada vida natural particular, tal como o instinto de conservação, não apenas em geral, mas em cada existência determinada, tenham sido somente introduzidos na criatura já criada; pelo contrário, eles mesmo são o próprio elemento criador. Também o conceito de base, encontrado empiricamente e que virá a assumir um papel significativo na totalidade das ciências da natureza, deve, se for suficientemente apreciado, conduzir ao conceito de ipseidade e de egoidade. Mas há na natureza determinações ocasionais que só se podem esclarecer se admitirmos uma agitação do princípio irracional ou obscuro, que acontece imediatamente na primeira criação de uma ipseidade posta em acção (aktivierter). Daí existirem na natureza, ao lado dos comportamentos éticos pré-formados, inegáveis sinais precursores do Mal, mesmo se o poder do Mal somente entra em acção através do homem; daí, também, fenómenos que, mesmo sem ter em conta o perigo que representam para o homem, provocam um horror natural universal". O facto de todos os seres orgâni-

cos se oporem à dissolução não pode aparecer como uma necessidade inteiramente originária; a ligação que constitui a vida poderia, de acordo com a sua natureza, ser indissociável e se qualquer coisa está destinada a ser perpetuum mobile só pode ser uma criatura, que produza, pelas suas próprias forças, aquilo que lhe vem a faltar. Entretanto, o Mal só se manifesta na natureza através da sua própria acção; ele próprio, na sua manifestação imediata, só pode irromper quando a natureza atinge o seu objectivo. Na mesma medida em que, na criação orginária (que não é outra coisa senão o nascimento da luz) o princípio obscuro se devia encontrar como fundamento, para que a luz pudesse sair para o exterior - como de mera potência a actus -, deve também haver um outro fundamento para o nascimento do espírito e, portanto, um segundo princípio da obscuridade, que deve ser tanto mais elevado quanto o espírito é elevado em relação à luz. Este princípio é, justamente, o princípio do Mal, desperto da criação pela agitação do fundo obscuro da natureza, quer dizer, é a cisão da luz e da obscuridade, em relação à qual o espírito do amor opõe agora um ideal mais elevado, tal como opunha anteriormente a luz ao movimento desordenado da natureza. Porque, tal como a ipseidade no Mal se apropriou da luz ou do Verbo e, por isso, aparece como fundamento da obscuridade, do mesmo modo deverá o Verbo pronunciado no mundo (em oposição ao Mal) tomar a forma de humanidade ou ipseidade e tornar-se ele

1 Por isso, a associação que a imaginação de todos os povos em particular as fábulas e as religiões do oriente, fez entre a serpente e o Ma~ :r:ão é, de forma alguma, gratuita. A perfeita formação dos órgãos aUXIlIares que culmina no homem indica já a independência da von-

tade em relação ao desejo, ou uma relação do centro com a periferia que é a única verdadeiramente sã, na qual o primeiro se retirou na sua liberdade e circunspecção e se separou do carácter meramente instrumentaI (periférico). Onde, pelo contrário, os órgãos auxiliares não estão formados ou faltam completamente, o centro desloca-se para a periferia, ou é o círculo sem ponto central, como diz Fr. Baader na obra citada mais acima (em nota).

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próprio pessoa. Isto somente acontece através da revelação, no sentido mais rigoroso da palavra, que deve ter os mesmos graus que a primeira manifestação na natureza, de modo que, também aqui, o ponto culminante da revelação seja o homem, mas o homem numa figura paradigmática e divina, que no início estava em Deus, no qual todas as coisas (e o próprio homem) foram criadas. O nascimento do espírito é o reino da história, tal como o nascimento da luz é o reino da natureza. Os mesmo períodos da criação que se encontram nesta, encontram-se igualmente naquela e uma é a imagem e a explicação da outra. O mesmo princípio que estava presente na primeira criação, como fundo, está também aqui (simplesmente numa figura mais elevada) como gérmen e semente a partir dos quais se desenvolverá um mundo superior. Ora o Mal mais não é do que o fundo originário da existência e, na medida em que luta por se actualizar num ser engendrado, não é senão, mas num grau mais elavado, a potência do fundo que está em acção na natureza. Mas como ele é, apenas, eternamente um fundo, sem nunca ser um si-mesmo, o Mal não se pode efectivar, servindo meramente de fundo para que o Bem, configurando-se a partir dele com as sua próprias forças, seja, graças ao seu fundo, algo de independente e de separado de Deus (onde Deus se possui e se conhece a si mesmo) e para que Deus esteja nele como algo de independente. Mas como o poder indiviso do fundo originário somente se torna conhecido no homem como intimidade (base ou centro) de um indivíduo singular, da mesma forma, na história, o Mal permanece escondido no início e uma época de inocência e de ausência de consciência do pecado precede uma época de culpa e de pecado. Exactamente do mesmo modo como o fundo originário da natureza agia talvez há já muito tempo e, com o

auxílio das forças divinas nele contidas, procurava por si mesmo uma criação que constantemente (porque faltava o elemento do amor) voltava a cair no caos (o que as séries de raças desaparecidas, num tempo anterior à criação presente, e que nunca voltaram a surgir, nos dão possivelmente a entender), até que surgiu o Verbo do amor e com ele teve início a criação verdadeira, assim também, na história, o espírito do amor não se revelou imediatamente; mas, como Deus sentiu a vontade do fundo como vontade da sua própria revelação e reconheceu, pela sua providência, que deveria existir independente de si mesmo como espírito um fundo para a sua própria existência, deixou que o fundo agisse na sua independência ou, para dizê-lo de outro modo, que ele próprio se movesse de acordo com a sua natureza e não de acordo com o seu coração ou com o amor. Na medida em que o fundo contém igualmente em si a totalidade do ser divino, mas não como unidade, só poderiam ser seres divinos singulares a dominar neste agir-para-si mesmo do fundo. Por isso, este tempo primordial começou com a Idade de Ouro, da qual para a espécie humana dos nossos dias apenas resta uma débil recordação nas lendas; era um tempo de uma feliz indecisão, onde não havia nem Bem nem Mal. Seguiu-se, depois, o tempo dos deuses dominadores e dos heróis, ou do poder universal da natureza, em que o fundo mostrava aquilo que podia fazer por si mesmo e o entendimento ou a sabedoria somente vinha até ao homem das profundezas: o poder dos oráculos saídos da terra dirigia e formava a vida; todos os poderes divinos do fundo dominavam a terra e tinham assento em tronos firmes, como príncipes poderosos. Apareceu o tempo da mais elevada glorificação da natureza na beleza visível dos deuses e em todo o esplendor da arte e de uma ciência plena de sentido, até que, por fim, o princípio

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actuante no fundo se revelou como princípio conquistador do mundo, para tudo submeter a si e fundar um domínio do mundo firme e duradouro. Mas como a essência do fundo não pode produzir por si mesma a verdadeira e perfeita unidade, vem o tempo em que se dissolve todo este poderio e como que através de uma terrível doença se desmorona o belo corpo do mundo até então existente e o Caos, finalmente, aparece de novo. Já antes, primeiro que a dissolução total tivesse chegado, as potências (Meichte) que dominam aquele todo adoptaram a natureza de espíritos maus, tal como as mencionadas forças (que eram, na época da saúde, espíritos bené· ficos e protectores da vida) adquirem, quando a dissolução se aproxima, uma natureza maléfica e venenosa: a fé nos deuses esmorece e uma falsa magia procura fazer regressar os espíritos fugitivos com o auxílio de súplicas e de fórmulas teúrgicas, para apaziguar os espíritos maus. A atracção pelo fundo mostra-se cada vez mais determinada e, seno' tindo antecipadamente a luz, retira todas as forças de indecisão, para a enfrentar em pleno antagonismo. Tal como a tempestade é estimulada mediatamente pelo Sol e imediatamente através de uma força terrestre agindo em sentido contrário, assim também o espírito do Mal (cuja natureza meteórica, já explicámos anteriormente) é estimulado pela aproximação do Bem, não por meio de uma comunicação, mas por uma distribuição das forças. Por isso, só com o aparecimento decisivo do Bem o Mal se decide também a aparecer como tal (não como se só agora aparecesse, mas porque só agora é dado o oposto no qual, somente, ele se pode manifestar completamente e enquanto tal); assim como, por outro lado, é precisamente o momento em que, pela segunda vez, a terra se torna deserta e vazia, que é o momento do nascimento da luz superior do espíri-

to, luz que desde o início estava presente no mundo, mas não compreendida pela obscuridade que agia por si mesma e restringida a uma revelação restrita e limitada; e, de facto, ela aparece para se opor ao Mal pessoal e espiritual, tomando igualmente uma figura pessoal e humana como mediadora, para produzir novamente a relação da criação com Deus, num nível superior. Porque só o que é pessoal pode salvar o que é pessoal e Deus deve tornar-se homem para que o homem possa regressar de novo a Deus. É somente por meio do restabelecimento da relação do fundo com Deus que é restituída a possibilidade da cura (da salvação). O seu começo é um estado de clarividência (hellsehens), que acontece a alguns homens (como instrumentos escolhidos para essa finalidade) por uma eleição divina; é uma época de sinais e de milagres, na qual as forças divinas se opõem às demoníacas que se evidenciam por todo o lado e em que a unidade apaziguadora se opõe à repartição das forças. Finalmente, sucede a crise na turba gentium, que submerge o fundo do mundo antigo - tal como outrora as águas do início recobriram as criações do tempo originário - para assim tornar possível uma segunda criação: uma nova separação dos povos e das línguas, um novo império, no qual o Verbo vivo intervém como um centro fixo e permanente na luta contra o caos e começa uma luta declarada entre o Bem e o Mal, até ao final dos tempos presentes, no qual Deus se manifesta efectivamente como espírito, quer dizer, como actu': Há aqui um mal universal desperto, senão originariamente, pelo menos desde o começo da revelação de Deus, por reacção do fundo, mal esse que, de

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1 Compare-se todo este parágrafo com as lições do autor acerca do Método dos estudos académicos, Lição VII, «Sobre a construção histórica do cristianismo».

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facto, nunca chega à efectivação, mas luta permanentemente por isso. Somente pelo conhecimento do Mal universal é possível compreender também o Bem e o Mal no homem. Se o Mal foi já excitado na primeira criação e se desenvolveu, por fim, como princípio universal, graças ao agir-para-si-mesmo do fundo, então parece ser totalmente compreensível uma inclinação natural do homem para o Mal, porque a desordem das forças que se iniciou pela primeira vez pelo despertar da vontade própria da criatura, acompanhava-o já desde o nascimento. Simplesmente, o fundo continua a agir ininterrupta. mente em cada indivíduo e excita o ser-próprio e a vontade particular, para que assim, em oposição a ele, possa surgir a vontade do amor. A vontade de Deus é tudo universalizar, tudo elevar à unidade com a luz, ou tudo aí conservar; mas a vontade do fundo consiste em tudo particularizar ou tornar criatura. Ele só quer a desigualdade para que a igualdade se torne sensível e a sinta. Por isso, reage. necessariamente à liberdade como algo de supra-criatural e desperta a paixão que é própria de uma criatura, tal como quem, tomado de vertigens num cume elevado e íngreme, parece ouvir, ao mesmo tempo, um apelo misterioso para se precipitar ou, tal como, segundo as antigas fábulas, um canto irresistível de sereias soava das profundezas, para que os navegantes fossem atraídos para o redemoinho. Em si mesma, a ligação da vontade universal com uma vontade particular no homem parece já ser uma contradição, cuja união parece ser difícil, senão mesmo impossível. A própria angústia da existência afasta o homem do centro onde foi concebido; porque o centro, como essência mais pura da vontade, é, para cada vontade particular, um fogo abrasador. Para nele poder viver, o homem deve eliminar todo o ser-próprio (Eigenheit), pelo que é uma tentação

quase necessária afastar-se dele em direcção à periferia, para aí procurar um repouso para a sua ipseidade. Daí a universal necessidade. do pecado e da morte com eliminação efectiva do ser-próprio, pela qual toda a vontade humana deve passar, como por um fogo, para ser purificada. Apesar desta necessidade universal, o Mal permanece sempre uma escolha própria do homem; o fundo enquanto tal não pode praticar o Mal e cada criatura cai por sua própria culpa. Mas qual o modo, precisamente, como agora, nos indivíduos singulares, se processa a decisão pelo Mal, eis o que permanece ainda totalmente obscuro e parece exigir uma investigação particular. Até ao momento, tivemos menos em atenção, em geral, a essência formal da liberdade, embora uma perspectiva sobre ela não pareça conter menos dificuldade do que a explicação do seu conceito real. O conceito habitual de liberdade, segundo o qual ela é posta como uma faculdade totalmente indeterminada de escolher entre dois objectos contraditórios, sem um fundamento determinado para se querer um ou outro, senão simplesmente, o facto de ele ser querido, pode invocar, sem dúvida, a indecisão originária- do ser humano na sua ideia, mas conduz, aplicado a acções isoladas, aos maiores disparates. Poder decidir, sem qualquer fundamento determinante, por A ou por não-A, seria, para dizer a verdade, um agir completamente irracional e equivaleria a não distinguir entre o homem e o conhecido animal de Buridan que, segundo as opiniões dos partidários deste conceito de livre-arbítrio, estaria condenado a morrer de fome diante de dois montes de palha situados à mesma distância, do mesmo tamanho e com as mesmas características, por não possuir aquele princípio do livre-arbítrio. A única demonstração deste conceito reside no apelo ao fac-

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to de, por exemplo, cada um ter em seu poder a possibilidade de contrair ou estender o seu braço, sem qualquer outro motivo. Pois se alguém disser que o estende somente para provar a sua liberdade, responde-se. que também o poderia fazer contraindo-o; o interesse em demonstrá-lo apenas o pode determinar a fazer uma ou outra coisa, portanto o equilíbrio é aqui evidente, etc. Trata-se de um tipo de demonstração totalmente inadequado, porque conclui, da ignorância do fundamento determinante, a inexistência de fundamento, demonstração que se poderia aplicar aqui em sentido contrário: pois é justamente onde entra a ignorância que se encontra de modo mais certo a determinação. O aspecto principal é que este conceito leva a admitir o carácter totalmente ocasional das acções isoladas e, nesta perspectiva, tornou-se possível compará-lo com as variações ocasionais dos átomos, que Epicuro imaginou na sua Física, com a mesma intenção de fugir ao {atum. Mas o acaso é impossível, porque se opõe à razão e à necessária unidade do todo; e se a liberdade não se pode salvaguardar senão como contingência da acção no meio do todo, então não vale a pena salvaguardá-la. A este sistema do equilíbrio do livre-arbítrio opõe-se, com inteira razão, o determinismo (ou segundo Kant, o pré-determinismo), na medida em que afirma a necessidade empírica de todas as acções, porque cada uma delas é determinada por representações' ou por outras causas, que pertencem ao passado e que, no momento da própria acção, já não se encontram em nosso poder. Ambos os sistemas reflectem o mesmo ponto de vista; só que, se não houvesse um ponto de vista superior, o segundo mereceria inegavelmente a preferência. Aquela necessidade superior, que está por igual afastada do acaso e da coacção (ou do ser determinado por algo de exterior), que é antes uma necessidade inter-

na que se origina na essência do próprio agente, é ignorada tanto por um como pelo outro. Mas todo o tipo de melhoramento que se queira fazer ao determinismo, por exemplo, o leibniziano, segundo o qual as causas que movem a vontade apenas inclinam, mas não determinam, não são nenhum auxílio para o problema. Em geral somente o idealismo elevou a doutrina da liberdade àquela única região em que ela pode ser compreensível. A essência inteligível de cada coisa e, principalmente, do homem, é, segundo ele, exterior a qualquer conexão causal, encontrando-se fora e para além do tempo; por isso, não pode ser nunca determinada por qualquer coisa que a preceda, na medida em que é ela, pelo contrário, que precede qualquer outra coisa que esteja ou aconteça nela; e fá-lo, não tanto temporalmente, como conceptualmente, como unidade absoluta, que já lá se deve encontrar inteira e perfeita, para que uma acção ou determinação isolada seja possível nela. Exprimimos o conceito kantiano, não exactamente com as suas próprias palavras, mas do modo como ele, em nossa opinião, deveria ser expresso para se tornar compreensível. Mas, se aceitarmos este conceito, então parece poder concluir-se correctamente o seguinte: a acção livre segue-se imediatamente do inteligível no homem. Mas ela é necessariamente uma acção determinada, por exemplo, boa ou má. Mas do absolutamente indeterminado para o determinado não há nenhuma transição. Porque, se se devesse determinar o ser inteligível a partir da indeterminidade mais pura, sem qualquer outro tipo de fundamento, tal posição reconduzir-nos-ia ao sistema referido mais acima da indiferença do livre-arbítrio. Para se poder determinar a si mesmo, tal ser deveria já estar em si mesmo determinado, não, certamente, do exterior, o que é contrário à sua natu-

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reza, nem do interior, por-meio de uma necessidade contingente ou empírica, na medida em que tudo isso (quer dizer, tanto o psicológico, como o físico) lhe está subordinado; mas é ele mesmo, a sua essência, ou seja, a sua natureza própria, que deve ser uma determinação para .si mesmo. Não se trata, certamente, de um universal indeterminado, mas do que determina a essência inteligível de cada indivíduo; em relação a uma tal determinidade, a afirmação Determinatio est negatio não tem qualquer valor, na medida em que se identifica (eins ...ist) com a posição e o conceito de essência e é, portanto, no fundo, a essência da essência. Por isso, o ser inteligível, .agindo certamente de modo totalmente livre e absoluto, age também de acordo com a sua natureza interna; ou ainda, a acção só pode resultar do seu íntimo acordo com o princípio de identidade e segundo uma necessidade absoluta que é, também absoluta liberdade: porque só é livre aquilo que age segundo as leis da sua própria essência e não é determinado por mais nada, nem nele, nem fora dele. Com este modo de representar a questão ganhou-se pelo menos uma coisa: afastou-se a posição absurda que introduz o acaso nas acções particulares. Uma coisa deve permanecer, mesmo em qualquer ponto de vista mais elevado, a saber, a acção particular resulta de uma necessidade interna do ser livre e, por conseguinte, realiza-se necessariamente; simplesmente, tal necessidade não deve ser confundida, como muitas vezes acontece, com a empírica, que consiste numa obrigação (mas que mais não é do que uma contingência disfarçada). Mas qual é então aquela necessidade interna da própria essência? É neste pondo que necessidade e liberdade se devem reunir, se é que são, em geral, unificáveis. Se aquela essência fosse um ser morto e, em relação ao homem, algo que lhe tivesse sido meramente dado, acontece-

ria que a acção exterior só poderia resultar dela necessariamente e seria suprimida a responsabilidade e toda a liberdade. Mas, justamente, aquela necessidade interna é, ela própria, a liberdade; a essência do homem é essencialmente o seu próprio agir; necessidade e liberdade interpenetram-se como um ser único que, somente se for considerado em perspectivas diferentes, pode aparecer como uma coisa ou a outra, mas que é em si mesmo liberdade, embora, formalmente considerado, seja necessidade. O Eu diz Fichte, é o seu próprio agir; a consciência é posição de si mesma, mas o Eu não se distingue dela, mas é justamente o próprio pôr-se a si mesmo. Mas esta consciência, na medida em que é pensada com mera auto-compreensão ou conhecimento do Eu, não é primeira, mas pressupõe já, como qualquer conhecimento, o seu autêntico. Mas este ser, que se presume ser anterior ao conhecimento, não é nenhum ser, nem igualmente, nenhum conhecer: é uma auto-posição real,é uma vontade originária e fun-· dante, que se faz a si mesma e é fundo e base de toda a essencialidade. Mas aquelas verdades, relacionadas imediatamente com o homem, adquirem um sentido muito mais determinado do que este sentido geral. Tal como se mostrou, o homem, na criação originária, é um ser indeciso (o que pode ser exposto, de forma mítica, como um estado de inocência e de felicidade inicial que precede esta vida) e só ele próprio se pode decidir. Mas esta decisão não pode acontecer no tempo; ela surge fora de qualquer tempo e é, portanto, contemporânea da primeira criação, embora não seja um acto distinto dela. O homem, mesmo tendo nascido no tempo, foi, todavia, concebido no início da criação (no centro). O acto pelo qual a sua vida é determinada no tempo não pertence, ele próprio, ao tempo, mas à eternidade: também não é

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I É o que Lutero afirma correctamente no tratado De servo arbitrio, mesmo se não concebe adequadamente a união entre uma tal necessidade infalível e a liberdade da acção.

constitui-a: todavia, não se trata de um agir de que não permanecesse no homem nenhuma consciência . ' pOIS aquele que se desculpa de uma acção incorrecta e diz: «então, é assim que eu sou», tem perfeita consciência de ser assim por sua própria culpa, embora tenha também razão em dizer que não lhe seria possível agir de outra maneira. É assim que muitas vezes acontece que um homem, desde a infância, altura em que, considerado empiricamente, quase não podemos esperar dele liberdade e reflexão, mostre uma propensão para o Mal que se pode prever que não cederá a nenhuma educação ou ensinamento e que, no seguimento, amadureça os frutos malignos que tínhamos previsto na semente; e certamente ninguém duvida da sua responsabilidade e todos estão convencidos da culpa deste homem, como se tivesse em seu poder cada uma das suas acções isoladas. Esta convicção universal da existência de um impulso para o Mal, totalmente inconsciente desde o início e, portanto, irresistível enquanto actus da liberdade, indica uma acção e, consequentemente, uma vida anterior a esta vida; simplesmente, tal vida não deve ser pensada como anterior na ordem do tempo, na medida em que o inteligível é exterior ao tempo. Dado que na criação existe a suprema consonância e nada está tão separado e sucessivo como somos obrigados a representá-lo, mas no anterior o que virá depois já se encontra em acção e tudo acontece simultaneamente como que por um golpe de magia, também o homem, que se encontra aqui decidido e determinado, se concebeu a si mesmo na primeira criação numa figura determinada e nasce como aquilo que é desde a eternidade, na medida em que, através daquela acção, são determinados até mesmo o modo e a natureza da sua corporização. Desde sempre, a relação entre a pretensa contigência do agir humano e a

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segundo o tempo que é anterior à vida, mas precede-a através do tempo, sem ser aprisionado por ele, como um acto que, segundo a natureza, fosse eterno. Através dele, a vida do homem estende-se até ao começo da 'criação; portanto, através dele, o homem é também um livre e eterno começo de si mesmo, elevando-se acima do que foi criado. Tão dificil de entender quanto esta ideia possa ser para o modo habitual de pensar, há, em cada homem, um sentimento que concorda com ela, segundo o qual é de toda a eternidade que ele é (como é de facto) aquilo que é e de não ter sido no tempo que se tornou assim. Daí, independentemente da inegável necessidade de todo o agir e embora cada indivíduo, quando presta atenção a si mesmo, dever confessar que de forma alguma é bom ou mau ocasionalmente ou por livre vontade (willkürlich), o facto de o indivíduo não aparecer a si mesmo como coagido (porque a coacção só se pode encontrar no devir e não no ser ), mas executar as suas acções voluntariamente e não contra a sua vontade. Que Judas tenha traído Cristo, eis o que não poderia ser alterado, nem por ele próprio, nem por nenhuma criatura e, no entanto, não traiu Cristo coagido, mas voluntariamente e em plena liberdade'. O mesmo se passa com o indivíduo bom, ou seja, não é bom ocasional ou voluntariamente e, no entanto, é tão pouco coagido que nenhuma coacção, nem mesmo as portas do inferno, estão em condições de se opôr á sua resolução. Na consciência, na medida em que é mera auto-apreensão e apenas de forma ideal, aquele livre agir que se transforma em necessidade não pode certamente aparecer, pois precede-a, tal como precede a essência e

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unidade da totalidade do mun...do, projectada antecipadamente no entendimento divino, foi o maior escolho da doutrina da liberdade. Uma vez que nem a presciência divina, nem a autêntica providência, podiam ser postas de lado, adoptou-se a teoria da predestinação. Os criadores dessa teoria sentiam que as acções do homem deveriam estar determinadas desde a eternidade, mas não procuraram essa determinação no agir eterno, contemporâneo da criação, que constitui a essência do próprio homem, mas num decreto absoluto (quer dizer, destituido de fundamento) de Deus, pelo qual alguns eram pré-determinados a ser condenados, outros a ser salvos; mas, assim, suprimiram a raiz da liberdade. Também nós afirmamos a existência de uma predestinação, mas num sentido completamente diferente: tal como o homem age aqui, assim também agiu de toda a eternidade e, desde logo, no começo da criação. O seu agir não se modifica, tal como ele, enquanto ser moral, não se modifica,'. mas é eterno por natureza. Por isso, também não é necessário colocar aquela questão desagradável, muitas vezes ouvida: por que é que certo indivíduo é determinado a agir como mau e perverso e outro, pelo contrário, como piedoso e justo? Pois tal questão pressupõe que o homem, originariamente, não é acção e actividade (Handlung und That) e que, como ser espiritual, possui um ser anterior e independente da sua vontade, o que, como se mostrou, é impossível. Desde que na criação, por uma acção do fundo sobre a revelação, o Mal foi universalmente posto em acção, o homem apreendeu-se a si mesmo, desde toda a eternidade, no ser-próprio e no egoísmo e todos os que nasceram nasceram prisioneiros do princípio obscuro do Mal, mesmo se este Mal somente acedeu à consciência-de-si pela intervenção de 98

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uma oposição. Tal como o homem é agora, é unicamente a partir deste princípio obscuro que o Bem, por meio de uma transmutação divina, se pode transfigurar em luz. Este mal originário no homem, cuja existência somente poderão negar aqueles que conhecem superficialmente o homem que têm em si e o que existe fora de si, é, porém, na sua origem, um agir próprio (embora totalmente independente da liberdade, em relação à vida empírica actual) e, por isso mesmo, um pecado original, o que não se pode dizer daquela desordem das forças inegável, sem dúvida - que se desenvolveu por contágio, depois da desordem se ter iniciado. Não são as paixões em si mesmas que são o Mal, nem temos somente de lutar com a carne e o sangue, mas com um Mal que existe em nós e fora de nós, que é espírito. Só aquele Mal resultante de uma acção própria, mas contraído desde o nascimento, pode ser chamado Mal radical e é digno de nota o modo como Kant (que não se conseguiu elevar, de um ponto de vista teórico, à consideração de um agir transcendental determinante de todo o ser do homem), através da mera observação minuciosa do fenómeno do juízo moral, foi conduzido, nas suas últimas investigações, ao reconhecimento de um fundamento do agir humano anterior a qualquer acção relativa aos sentidos - embora, como ele próprio diz, de carácter subjectivo - e que, por conseguinte, só pode ser considerado um acto de liberdade; enquanto Fichte, que concebeu especulativamente o conceito de uma tal acção, se fechou, na sua teoria moral, no filant ropismo dominante e apenas quis encontrar aquele Mal que precede todo o agir empírico, na preguiça da natureza humana. Parece agora haver um único motivo que pode ser avançado contra esta perspectiva, a saber, o facto de ela impedir, pelo menos nesta vida, qualquer conver99

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pL são do Mal para o Bem, ou do Bem para o Mal. Simplesmente, se houver uma ajuda humana ou divina (e o homem necessita sempre de uma ajuda) que determine a sua conversão ao Bem, o facto de se permitir ao espírito bom aquela operação, o facto de não se fechar positivamente a ele, é já igualmente resultado daquele agir originário, pelo qual o homem é uma certa coisa e não outra completamente diferente. Por isso, num indivíduo em que aquela transmutação ainda não aconteceu, mas no qual o princípio bom ainda não se extinguiu completamente, a voz mais íntima da sua essência própria (ou mais perfeita, se o compararmos com aquilo que ele agora é), nunca deixa de lhe exigir isso, tal como ele só através de uma viragem efectiva e decisiva encontra a paz no seu próprio íntimo e - como se só agora estivesse à altura da sua idea origináriase reconcilia com o seu espírito protector. É verdade que, no sentido mais rigoroso, de acordo com o modo como o homem está concebido, não é ele que age, .:. mas o espírito bom ou o espírito mau que nele existe; e no entanto, isto não causa qualquer obstáculo à liberdade. Porque o deixar-agir-em-si-mesmo o bom ou o mau princípio é, precisamente, a consequência daquela actividade inteligível que determina a sua essência e a sua vida. Depois de termos mostrado a origem e o desenvolvimento do Mal, até se tornar efectivo num indivíduo singular, não parece faltar senão descrever a sua manifestação no homem. Como se mostrou, a possibilidade universal do Mal reside no facto de o homem, em vez de utilizar a sua ipseidade como base ou instrumento, a elevar à posição dominante e a vontade geral e transformar em meio o espiritual que existe em si mesmo. Se no homem o princípio obscuro da ipseidade e a vontade própria forem totalmente penetradas pela luz e fize100

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rem unidade com ela, então é Deus como amor eterno, ou como existente efectivo, que é nele a unidade das forças. Mas se ambos os princípios se encontram em conflito, então lança-se um outro espírito no lugar que deveria ser o de Deus, a saber, o espírito invertido: aquele ser que é suscitado a actualizar-se pela revelação de Deus e nunca pode chegar a acto, a partir da potência; na verdade, ele nunca é, mas quer sempre ser; por isso, tal como a matéria dos antigos, não pode ser concebido (actualizado) como efectivo pelo perfeito entendimento, mas so1 mente através da falsa imaginação (Âoytç}lCÕ, vóSro, ) , que é o pecado; é por isso que, adquirindo essa aparência do ser verdadeiro (ele que não existe), procura através de representações especulares (Spiegelhafte) - da mesma forma que uma serpente vai buscar as cores à luz - conduzir o homem para a insensatez, pois só pela insensatez pode ser apreendido e concebido por ele. Por isso, esse ser é representado, com razão, não somente como um inimigo de todas as criaturas (dado que estas só permanecem por meio da união do amor) e, principalmente do homem, mas também como sedutor deste último, atraindo-o a falsos prazeres e a captar pela imaginação o que não existe; nisto, esse ser é apoiado pela própria tendência má que existe no homem, cujos olhos, incapazes de se deter a fixar o brilho do divino e da verdade, se voltam sempre para a contemplação do que não existe. Porque o início do pecado é de tal ordem que o homem transita do ser autêntico para o não-ser, da verdade para a mentira, da luz para a escuridão, para se tornar ele próprio um fundo criador e para, com o poder do centro que tem em si próprio,

Como Platão se exprime no Timeu, Zwebr, Ausg., vol, IX, p. 349, e anteriormente em Tim. Loc. de ano mundi, Ibidem. p. 5. 1

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dominar todas as coisas. Por isso, para aquele que se retira do centro, permanece continuamente a sensação de ser todas as coisas, em Deus e com Deus; por esse motivo, ambiciona constantemente voltar a esse estado, mas por si mesmo e não onde poderia sê-lo, ou seja, em Deus. Daqui resulta o apetite do egoísmo, que se torna cada vez mais mesquinho e empobrecido, mas, por isso mesmo, mais desejoso, faminto e envenenado à medida que se afasta do todo e da unidade. No Mal existe uma contradição que se consome e se nega a si mesma constantemente, na medida em que aspira a ser criatura enquanto nega a união que é própria do ser-criatura e em que, na arrogância de ser tudo, cai no não-ser. Acima de tudo, o pecado manifesto não nos enche de pena, como a fraqueza ou a incapacidade, mas de susto e de horror, um sentimento que só se explica pelo facto de ambicionar despedaçar o Verbo, atentar contra o fundo da criação e profanar o mistério. Simplesmente, também isto se devia tornar manifes- . to, porque é somente no contrário do pecado que se manifesta aquela mais íntima ligação de dependência das coisas com a essência de Deus, que é como que anterior à existência (ainda não suavizada por ela) e, por isso, terrível. Porque o próprio Deus disfarça este princípio na criatura e reveste-o com o amor, na medida em que faz dele um fundamento e uma espécie de suporte da essência. Para aquele que o provoca, por uso deficiente da vontade própria, erigida em ser-próprio, para ele e contra ele esse princípio torna-se actual. Todavia, na medida em que Deus, na sua existência, não pode ser perturbado, nem, muito menos, suprimido, assim, de acordo com a necessária correspondência que existe entre Deus e a sua base, aquele raio luminoso de vida que se encontra na profundeza da escuridão e também em cada indivíduo isolado, inflama-se e torna-se pa102

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ra o pecador um fogo destruidor, tal como no organismo vivo o membro isolado ou o sistema, na medida em que se desprende do todo, sente como fogo (= febre) a unidade e a própria conjugação a que se opôs e inflama-se de um ardor interior. Vimos como, através de uma falsa imaginação e de um conhecimento dirigido ao não-existente, o espírito do homem se abre ao espírito da mentira e da falsidade e, depressa fascinado por ele, é abandonado pela liberdade inicial. Daqui resulta que, em oposição a isto, o verdadeiro Bem só pode ser posto em acção através de uma magia divina, ou seja, através do presente imediato do existente na consciência e no conhecimento. Um Bem arbitrário é tão impossível como um Mal arbitrário. A verdadeira liberdade está em consonância com uma liberdade sagrada, semelhante à que encontramos no conhecimento essencial, quando o espírito e o coração, unidos de acordo somente com a sua própria lei, afirmam de livre vontade aquilo que é necessário. Se o Mal consiste na discórdia entre ambos os princípios, o Bem só pode consistir na perfeita concórdia entre eles e o elemento que os une deve ser um elemento divino, na medida em que não são condicionalmente um só, mas são-no de uma forma perfeita e incondicionada. A relação entre ambos não se pode, por isso, representar como uma moralidade resultante da vontade, ou como uma moralidade produzida por auto-determinação. Este último conceito, pressupõe que, em si mesmos, estes dois princípios não são um só; mas como podem vir a ser um se já não o forem? Além disso, faz-nos regressar ao absurdo sistema da indiferença da vontade. A relação entre ambos os princípios é a única possibilidade de ligação do princípio obscuro (da ipseidade) com a luz. Seja-nos permitido exprimir isto pelo termo religiosidade, de acordo com o significado originá-

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rio da palavra. Não entendemos por isto aquilo que é assim chamado por uma época doentia: uma meditação ociosa, um pressentimento devoto, ou de uma vontade de sentir o divino. Porque Deus é em nós o claro conhecimento ou a própria luz espiritual, na qual, somente, tudo o resto se torna claro; o que está muito afastado da opinião segundo a qual se trata de um conhecimento pouco claro; este tipo de conhecimento não deixa que aquele em que se encontra seja preguiçoso ou esteja descansado. Onde se encontra é algo de muito mais substancial do que aquilo que pensam os nossos filósofos do sentimento. Entendemos o termo religiosidade no seu sentido originário e prático. Ele é a consciência escrupulosa, quer dizer, significa que se age como se sabe e que não se contradiz, na acção, a luz do conhecimento. Chama-se religioso, ou consciencioso no mais alto sentido da palavra, a um homem para quem fazer isto não é impossível, não de um modo humano, físico ou psicológico, mas de um modo divino. Não é consciencioso aquele que, nas ocasiões que se lhe deparam, ainda se deve interrogar sobre a regra do dever (das Pflichtgebot vorhalten muss), p~a, por respeito por ela, poder agir correctamente. E já de acordo com o significado da palavra que o termo religiosidade não permite nenhuma escolha entre opostos, nenhum aequilibrium arbitrii (o flagelo de toda a moral), mas só a mais elevada decisão pelo que é justo, sem qualquer escolha. A consciência escrupulosa não aparece, por isso mesmo, necessariamente e sempre, com o entusiasmo e exaltação fora do vulgar acima de si mesmo, pelos quais a poderia fazer passar, uma vez abatida a moralidade voluntária e petulante, uma outra forma muito mais perniciosa do espírito de orgulho. Essa consciência pode aparecer, de modo puramente formal, como rigoroso cumprimento do dever, em que até mesmo se mistu104

ra um carácter de dureza e aspereza, como na alma de Catão, à qual um antigo atribuia aquela necessidade de agir interior e quase divina, ao dizer dele que se tinha tornado o mais parecido possível com a virtude, pois não agia correctamente para agir correctamente (por respeito para com o mandamento), mas porque não podia agir de outra forma. Este rigor do carácter, tal como o rigor da vida na natureza, é a única semente a partir da qual aparece, como flor, a verdadeira graciosidade e divindade; mas aquela supostamente distinta moralidade, que acredita poder desenvolver esta semente, é igual a uma flor estéril que não produz qualquer fruto", O mais elevado, precisamente por ser o mais elevado, nem sempre é universalmente válido; e quem conhece a espécie dos libertinos espirituais, para os quais o que há de mais elevado na ciência, bem como no sentimento, serve perfeitamente para o divertimento espiritual e para o elevar-se acima da chamada conformidade vulgar com o dever, deverá tornar-se consciente que é desse modo que aquele mais elevado deve ser expresso. Pode-se já prever que, no caminho em que cada um prefere ser uma bela alma a ser uma alma racional e prefere que lhe chamem nobre a que lhe chamem justo, a doutrina moral haverá ainda de reduzir-se ao conceito geral de gosto, segundo o qual o vício consistirá apenas num mau gosto ou num gosto despravado''. Quando, na cons1 A já várias vezes referida recensão de Fr. Schlegel, nos Heidelb. Jahrbüchern; p. 154, contem observações muito justas acerca deste espírito moral (moralische Genialitãt) do nosso tempo. 2 Um jovem que, presumivelmente, como agora muitos outros, é demasiado altivo para modificar o honrado caminho de Kant e, sendo incapaz de qualquer coisa de realmente melhor, exprime desvarios estéticos, afirmou ter pronta uma tal fundamentação da moral pela estética. Com tais progressos, poderá vir a tomar-se ainda a sério a brincadeira de Kant, segundo a qual Euclides é uma introdução um pouco pesada à arte do desenho.

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ciência moral honesta, transparece o princípio divino dela, a virtude aparece como um entusiasmo; como heroísmo (em luta com o Mal), como a bela e livre coragem do homem para agir tal como Deus lhe ensina e não se desviar, ao agir, do que reconhece no saber; ou como fé, não no sentido de uma crença considerada como qualquer coisa de meritório, mas a que falta algo para ser uma certeza - no sentido que esta palavra adquiriu ao ser utilizada por coisas vulgares -, mas no seu sentido originário de confiança, esperança no divino, que exclui qualquer escolha. Quando, finalmente, na mais inviolável seriedade da consciência, que, no entanto, está sempre pressuposta, penetra um raio do amor divino, resulta a mais elevada transfiguração da vida moral, em graça e beleza divinas. Procurámos investigar, tanto quanto foi possível, o desenvolvimento da oposição entre o Bem e o Mal e o modo como ambos agem um através do outro na criação, mas ficou para trás a suprema questão de toda esta investigação. Até ao momento, Deus foi simplesmente considerado como um ser que se manifesta a si mesmo. Mas como é que ele se relaciona com esta revelação, enquanto ser moral? Trata-se de uma acção que se efectiva com uma necessidade cega e inconsciente, ou é uma actividade livre e consciente? E se for isso, como é que Deus se comporta (como ser moral) relativamente ao Mal, cuja possibilidade e efectividade dependem da auto-revelação? Quando se quis revelar, Deus terá também querido o Mal? E como é que se pode conciliar esta vontade com a santidade e a elevada perfeição que nele existe, ou, numa expressão mais vulgar, como é .que Deus pode ser justificado diante do Mal? A questão provisória sobre a liberdade de Deus na auto-revelação parece estar, de facto, decidida com o que foi dito. Se Deus fosse para nós uma mera 106

abstracção lógica, tudo deveria resultar dele com uma necessidade igualmente lógica; ele próprio seria como que a lei suprema da qual tudo emana, mas sem personalidade nem consciência disso. Simplesmente, explicámos Deus como unidade viva das forças; e se, de acordo com a nossa explicação anterior, a personalidade consiste na ligação entre algo que subsiste por si mesmo e uma base independente dele, de tal modo que ambos se interpenetram totalmente e são apenas um único ser, então Deus é a personalidade suprema, por meio da ligação do princípio ideal que nele existe com o fundo independente (relativo àquele princípio), dado que a base e o existente que há nele se unem necessariamente numa existência única absoluta; assim também, se a unidade viva dos dois é espírito, então Deus, como união absoluta de ambos, é espírito num sentido eminente e absoluto. É tão certo ser somente através da união de Deus com a natureza que se funda-· menta a personalidade que nele existe, que, pelo contrário, o Deus do puro idealismo, tal como o do puro realismo, é necessariamente um ser impessoal, o que o conceito fichteano e espinosista comprovam da forma mais clara, Simplesmente, porque em Deus há um fundo independente da realidade e, por isso, dois começos igualmente eternos de auto-revelação, Deus deve ser considerado em relação aos dois, de acordo com a sua liberdade. O primeiro começo da criação é a nostalgia do Uno de se dar à luz a si mesmo, pela qual o Verbo é pronunciado na natureza e pela qual, somente, Deus se constitui a si mesmo como pessoa. Por isso, a vontade do fundo não pode ser livre, no sentido em que a vontade do amor é livre. Ela não é uma vontade consciente ou ligada à reflexão, embora também não seja totalmente inconsciente, movendo-se a si mesma por necessicade cega e mecânica, mas é natureza intermédia - como 107

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o desejo ou o prazer - e comparável, com mais facilidade, ao .belo impulso de uma natureza em devir, que luta por se desenvolver e cujos movimentos mais íntimos não são voluntários (quer dizer, não podem deixar de ser feitos), sem que, todavia, ela se sinta forçada a eles. Muito mais livre e consciente é a vontade do amor, precisamente por ser do amor; a revelação que dele sai é acção e actividade. Toda a natureza nos diz que não é, de modo nenhum, graças a uma necessidade meramente geométrica; nela não existe uma razão pura e sem mistura, mas personalidade e espírito (tal como diferenciamos um autor racional de outro cheio de espírito); senão, o entendimento geométrico, que durante tanto tempo dominou, tê-Ia-ia há muito penetrado e o seu ídolo - as leis da natureza, universais e eternas - teria recebido melhor comprovação do que a teve até ao momento, dado que, pelo contrário, deve cada vez mais reconhecer a relação irracional da natureza consigo. A criação não é um dado, mas uma actividade. Não há acontecimentos que resultem de leis universais , mas Deus, quer dizer, a pessoa divina, é a lei, universal e tudo o que acontece, acontece graças a personalidade de Deus e não segundo uma necessidade abstracta, que não poderiamos admitir numa acção, muito menos em Deus. Na filosofia leibniziana, dominada demasiadas vezes pelo espírito da abstracção, um dos aspectos mais admiráveis é o reconhecimento das leis da natureza como leis que dependem de uma necessidade moral e não geométrica e, menos ainda, da arbitrariedade. «Estabeleci» diz Leibniz, «que as leis que se podem efectivamente demonstrar na natureza, não são absolutamente demonstráveis, o que também não é necessário. De facto, elas podem ser provadas de diversos. modos: mas deve sempre pressupor-se qualquer coisa que é necessário de um modo que não é, em absoluto, geo108

métrico. Por isso, estas leis são a prova da existência de um ser superior, inteligente e livre, contra o sistema da necessidade absoluta. Elas não são, nem totalmente necessárias (em sentido abstracto), nem totalmente arbitrárias, mas encontram-se numa posição intermédia, como leis que derivam de uma sabedoria perfeita e superior a qualquer outra coisa.»! O esforço supremo do modo dinâmico de explicação não é senão esta redução das leis da natureza à alma (Gemuth), ao espírito e à vontade. Todavia para determinar a relação de Deus, como ser moral, com o mundo, não é suficiente um conhecimento geral da liberdade na criação; pergunta-se ainda, acima de tudo, se a actividade de auto-revelação foi livre no sentido de que todas as suas consequências foram previstas por Deus. Ora, também isto se deve necessariamente afirmar; porque a própria vontade de revelação não seria uma vontade livre se uma outra vontade, que remonta ao Íntimo da essência, não se lhe c.vrsesae. Mas deste deter-se-em-si-mesmo resulta uma imagem reflexiva de tudo aquilo que está contido implicite na essência, na qual Deus se efectiva idealmente ou, o que é o mesmo, se reconhece a si mesmo, pela primeira vez, no seu devir efectivo. Portante. porque existe em Deus uma tendência que age em sentido contrário ao da vontade de revelação, o amor, ou a bondade, ou o communicativum sui, devem preponderar, para poder haver uma revelação; e esta preponderância a decisão - realiza somente o conceito de revelação como actividade consciente e moralmente livre. Apesar deste conceito e se bem que a acção da revelação de Deus seja apenas necessária de um ponto de vista moral, ou em relação ao Bem e ao

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Tentam. Theod., Opp. T.I, pp. 365·366.

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amor, a representação de uma deliberação de Deus consigo mesmo, ou de uma escolha entre vários mundos possíveis, continua sendo uma representação infundada e insustentável. Pelo contrário, logo que é acrescentada a determinação mais precisa de uma necessidade moral, a proposição seguinte é totalmente incontestável: da natureza divina tudo resulta de acordo com uma necessidade absoluta; o que não é efectivo deve ser moralmente impossível. Não é de forma alguma por ter admitido a existência, em Deus, de uma necessidade inviolável, que o espinosismo falha, mas porque toma tal necessidade de um modo morto e impessoal. Porque este sistema apenas concebe, em geral, uma parte do absoluto - a saber, a sua parte real, na medida em que Deus apenas age no fundo -, aquelas proposições conduzem somente a uma necessidade cega e privada de entendimento. Mas se Deus é essencialmente amor e bondade, então aquilo que nele é moralmente necessário segue-se também de uma verdadeira necessidade metafisica. Se para a perfeição da liberdade divina se exigisse a capacidade de escolha no sentido verdadeiro do termo, dever-se-ia, nesse caso, ir ainda mais longe. Porque uma perfeita liberdade de escolha somente poderia estar presente se Deus também tivesse podido criar um mundo menos perfeito do que o que era possível, de acordo com todas as condições. Uma vez que não há nada de tão disparatado que não possa alguma vez ter sido apresentado, esta opinião foi, de facto, apresentada por alguns com toda a seriedade e não apenas no sentido do rei Afonso de Castela, cuja conhecida expressão se referia ao sistema ptolomaico, então dominante, ao afirmar que Deus, se quisesse, teria podido criar um mundo melhor do que este. As razões que são apresentadas contra a unidade da possibilidade e da efectividade em Deus são, assim, tiradas de um conceito de pos-

sibilidade totalmente formal, segundo o qual é possível tudo aquilo que não se contradiz; como, por exemplo, na conhecida objecção segundo a qual todos os romances racionalmente inventados deveriam ser dados reais. O próprio Espinosa não possui um tal conceito puramente formal; para ele, qualquer possibilidade apenas fazia sentido por referência à perfeição divina e Leibniz limitou-se a aproveitar este conceito para afirmar a existência de uma escolha em Deus e, assim, afastar-se o mais possível de Espinosa. «Deus» diz ele, «escolhe entre possibilidades e, por isso, escolhe livremente, sem necessidade; pois não haveria escolha nem liberdade se uma única coisa fosse possível.» Se é apenas uma tal possibilidade vazia que faz falta para haver liberdade, então poder-sé-ia admitir que, de um ponto de vista formal e sem se considerar a substancialidade (Wesenheit) divina, o infinito foi possível e ainda o é; simplesmente, isto significa querer limitar a liberdade divina por meio de um conceito que é, em si mesmo, falso e que é somente possível no nosso entendimento, mas não em Deus, que não podemos pensar que se abstrai da sua essência ou das suas perfeições. No que diz respeito à pluralidade de mundos possíveis, parece que, em si mesmo, o que não tem regra (semelhante ao que, segundo a nossa explicação, é o movimento originário do fundo) e a matéria que não está ainda formada e pode receber todas as formas possíveis, oferecem uma infinidade de possibilidades; mas se, de facto, fosse nisso que devessemos fundamentar a possibilidade de outros mundos, dever-se-ia apenas notar que uma tal possibilidade não pode resultar de Deus, uma vez que o fundo não deve ser chamado Deus e Deus, de acordo com a sua perfeição, apenas pode querer uma única coisa. Simplesmente, aquela ausência de regra também não deve, de forma alguma, ser pensada como se

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no fundo não estivesse contido o arquétipo do único mundo possível segundo a essência de Deus, mundo esse que só se elevou de potência a acto na criação efectiva, por meio da separação e da regulação das forças e por exclusão do que não tem regra, que o inibe e obscurece. Mas no próprio entendimento divino, como sabedoria originária, onde Deus se efectiva idealmente ou sob a forma da imagem originária, há um único mundo possível, tal como só há um único Deus. Há um sistema no entendimento divino, mas Deus não é nenhum sistema, mas vida, e é aqui que se encontra a resposta à pergunta em função da qual se avançou tudo isto, relativamente à possibilidade do Mal em relação a Deus. Qualquer existência exige uma condição para se tornar existência efectiva, ou seja, pessoal. Também a existência de Deus não poderia ser pessoal sem uma tal condição, só que Deus tem esta condição em si mesmo e não fora de si mesmo. Deus não pode suprimir a condição, senão teria de se suprimir a si mesmo; pode apenas dominá-la pelo amor e subordiná-la para sua glorificação. Existiria também em Deus um fundo de obscuridade se ele não fizesse sua a condição, se não se unisse a ela como uma só coisa, para ser uma personalidade absoluta. Em relação ao homem a condição não se encontra em seu poder, embora seja isso que procura no Mal; ela é qualquer coisa que lhe é apenas concedida, mas que é independente dele; por isso, a sua personalidade e ipseidade nunca se podem elevar a acto perfeito. Esta é a tristeza inerente a toda a vida finita e se também em Deus existe uma condição independente, pelo menos relativamente, há então nele uma origem da tristeza, que nunca se efectiva, mas que serve apenas a eterna alegria da superação. Daí, o véu de melancolia que se estende por cima de toda a natureza, a profunda e indestrutível melan112

colia de toda a vida. A alegria deve ter dor, a dor deve ser iluminada pela alegria. Por isso, aquilo que provém da mera condição, ou do fundo, não vem de Deus, embora seja necessário para a sua existência. Mas também não se pode dizer que o Mal vem do fundo, ou que a vontade do fundo seja o seu criador. Porque o Mal só pode continuamente desenvolver-se na vontade mais íntima do próprio coração e nunca se realiza sem uma actividade própria. A solicitação do fundo, ou a reacção contra o que supera o estado de criatura, desperta apenas a paixão do que é criatura, ou a vontade própria, mas somente a desperta para que aí apareça um fundo independente do Bem e para ser dominada e penetrada pelo Bem. Porque não é a ipseidade excitada que é em si mesma o Mal, mas somente o é quando se desprendeu totalmente do seu oposto, a luz ou a vontade universal. Mas é precisamente esta renúncia ao Bem que é, em primeiro lugar, o Mal. A ipseidade activada é necessária ao rigor da vida; sem ela, a morte seria completa, haveria um adormecimento do Bem, pois onde não há luta não há vida. O despertar da vida, portanto, é simplesmente a vontade do fundo e não, imediatamente e em si mesmo, o Mal. Se a vontade do homem englobar no amor a ipseidade excitada e a subordinar à luz como vontade universal, resulta daí, somente, o Bem actual, que se tornou sensível, somente, pelo rigor que nele se encontra. No Bem, portanto, a reacção do fundo é uma acção que se dirige ao Bem, no Mal, uma acção que se dirige ao Mal, tal como dizem as Escrituras: com os piedosos és piedoso, com os ímpios és ímpio. Um Bem sem ipseidade efectiva é, ele próprio, um Bem sem efectividade. O que, por meio da vontade da criatura, se torna Mal (ao arrancar-se totalmente para ser por si mesmo) é, em si mesmo, o Bem, enquanto for absorvido pelo Bem e nele permanecer.

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Só a ipseidade suprimida, que retrocedeu da actividade à potencialidade, é o Bem, e mantém-se sempre aí, segundo a sua potência, como dominada por ele. Se não existisse nos corpos uma raiz do frio, o calor não se poderia sentir. Pensar uma força atractiva e uma força repulsiva independentes uma da outra, é impossível, pois através de que é que o repulsivo deve agir se o que atrai não constituir um objecto para ele? E através de que é que o atractivo age se não tiver em si mesmo o que repele? Por isso, é de forma absolutamente correcta que se diz que o Bem o e Mal são o mesmo, vistos unicamente de lados diferentes, ou então, que o Mal é, em si mesmo, o Bem, quer dizer, considerado na raiz da sua identidade, tal como o Bem, considerado na sua divisão ou na sua não-identidade, é o Mal. Por este motivo é também totalmente correcta aquela afirmação segundo a qual quem não tem em si mesmo, nem estofo, nem forças, para o Mal, é também incapaz do Bem, do que observamos, nos nossos dias, exemplos em número suficiente. As paixões que a nossa moral negativa combate são forçadas e cada uma delas tem em si uma raiz que é comum à virtude que lhe corresponde. A alma de todo o ódio é amor e na cólera mais violenta mostra-se apenas a tranquilidade atacada e provocada no centro mais íntimo. Na medida em que lhes é própria e em equilíbrio orgânico, essas forças são o vigor da própria virtude e o seu instrumento imediato. «Se as paixões são um elemento da desonra» - diz o excelente J. G. Hamann - «deixam, por isso mesmo, de ser as armas da virilidade? Será que percebem com mais inteligência a letra da razão do que aquele tesoureiro alegórico da igreja de Alexandria, que se castrou para merecer o reino dos céus, compreendeu a letra das Escrituras? - O príncipe deste Aeon escolheu os seus favoritos entre os que eram piores para si mesmos. - Os seus (do diabo) 114

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bobos são os mais encarniçados inimigos da bela natureza, que tem certamente Coribantes e gauleses como sacerdotes, mas tem espíritos fortes como verdadeiros adoradorese'. Possam então aqueles cuja filosofia é feita mais para o gineceu do que para a Academia ou para a palestra do Liceu abster-se de apresentar aquelas proposições dialécticas diante de um público que, não as compreendendo, tal como não se compreende a si próprio, vê nelas uma supressão de toda a diferença entre o certo e o errado, o Bem e o Mal e para o qual elas são tão pouco feitas como, de facto, as proposições dos antigos dialécticos (de Zenão e dos outros eleatas) o são para os belos espíritos superficiais. A excitação da vontade própria acontece somente para que no homem o amor encontre uma matéria ou uma oposição, para que se possa aí efectivar. Na medida em que a ipseidade é, na sua separação, o princípio do Mal, o fundo excita, sem dúvida, o princípio possível do Mal, mas não o próprio Mal, nem em direcção a ele. Mas esta excitação também não acontece segundo a livre vontade de Deus que, no fundo, não se movimenta de acordo com ela ou com o seu coração, mas apenas segundo as suas propriedades. Por isso, quem afirmasse que o próprio Deus teria querido o Mal, deveria procurar a razão desta afirmação na actividade da auto-revelação como criação, tal como outrora muitas vezes pensaram aqueles que afirmaram que aquele que quis o mundo também deve ter querido o Mal. Simplesmente, porque Deus deu ordem à desordem originária do caos e exprimiu na natureza a sua unidade eterna, agiu, antes, em sentido contrário à obscuridade e opôs

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Kleeblatt hellenistischer Briefe, II, p. 196.

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ao movimento sem regra do princípio privado de entendimento, o Verbo, como centro permanente e eterna luz. Portanto, a vontade de criação era apenas, imediatamente, uma vontade de fazer nascer a luz e, com ela, o Bem; mas, nesta vontade, o Mal não entra em consideração, nem como meio, nem sequer, como Leibniz afirma, como conditio sine qua non da mais alta perfeição possível do mundo. Ele não foi, nem objecto de um decreto divino, nem, muito menos, de um consentimento. Mas a questão de saber por que motivo Deus, dado que necessariamente prevê que o Mal se seguiria da auto-revelação (pelo menos sob a forma de acompanhante), não preferiu em geral não se revelar, não necessita sequer de resposta. Pois isto seria o mesmo que dizer que, para não haver um oposto do amor, o amor não deveria existir, quer dizer, o absolutamente positivo deve sacrificar-se àquilo que só tem uma existência como oposto, 'e o eterno, ao meramente temporal. Já explicámos qual o motivo porque a auto-revelação em Deus deve ser considerada, não como incondicionalmente arbitrária, mas como uma actividade moralmente necessária, na qual o amor e a bondade ultrapassam (überwunden) a absoluta interioridade. Portanto, se Deus, por causa do Mal, não se revelasse, o Mal teria triunfado sobre o Bem e sobre o amor. O conceito leibniziano de Mal como conditio sine qua non pode apenas ser empregue em relação ao fundo, na medida em que este excita a vontade de criatura - o princípio possível do Mal- como condição sob a qual, somente, a vontade do amor pode ser activada. Do mesmo modo, já indicámos por que motivo Deus não combate ou não suprime a vontade do fundo. Isto seria como se Deus suprimisse as condições da sua existência, quer dizer, a sua própria personalidade. Portanto, para que o Mal não existisse, Deus deveria não existir.

Uma outra objecção, que não diz simplesmente respeito a esta perspectiva, mas a qualquer metafisica, é a seguinte: mesmo que Deus não tenha querido o Mal, continuou, no entanto, a agir no pecador e deu-lhe força para realizar o mal. Isto pode ser totalmente admitido, com as distinções necessárias. O fundo originário da existência também continua a agir no Mal, tal como na doença a saúde ainda se encontra em acção e também a vida mais desorganizada e falseada ainda permanece e se move em Deus, na medida em que Deus é o fundo da existência. Mas ela sente o Mal como ira destruidora e é posta, pela atracção do próprio fundo, em oposição cada vez maior com a unidade, até à auto-negação e à crise final. Depois de tudo isto permanece ainda a questão de saber se o Mal acaba e como acaba. Terá a criação, em geral, uma finalidade? E se tem, porque é que ela não é imediatamente acessível e porque é que o perfeito não existe logo desde o início? Para isto, não há nenhuma resposta senão a que já foi dada: porque Deus é uma vida e não meramente um ser. Mas toda a vida tem um destino e está submetida ao sofrimento e ao devir. Portanto, Deus também está certamente sujeito a isto, dado que, para se tornar pessoa, cindiu o mundo da luz e o mundo das trevas. O Ser só se toma sensível a si mesmo no devir. Sem dúvida que no Ser não há nenhum devir; mas neste, pelo contrário, ele próprio é posto de novo como eternidade. Ora, na efectivação através de um oposto há necessariamente um devir. Sem o conceito de um Deus humano e sofredor, que é comum a todos os mistérios e religiões espirituais da antiguidade, toda a história permanece incompreensível; as Escrituras também distinguem períodos da revelação e colocam num futuro longíquo o tempo em que Deus será tudo em todos, quer dizer, em que ele se efectivará plena-

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mente. O primeiro período da criação, como já foi indicado, é o nascimento da luz. A luz, ou princípio ideal, é (como eterno contrário do princípio obscuro) o Verbo criador, que liberta do não-ser a vida oculta no fundo e eleva-a de potência a acto. Acima do Verbo abre-se o espírito e o espírito é a primeira essência que une o mundo das trevas e o mundo da luz e subordina ambos os princípios para se efectivar e tornar pessoa. Todavia, o fundo reage a esta unidade e afirma a dualidade originária, mas apenas para a intensificar cada vez mais e para a separação final do Bem e do Mal. A vontade do fundo deve permanecer livre, até que tudo esteja realizado e se tenha tornado efectivo. Se ela se tivesse submetido mais cedo, o Bem teria permanecido escondido nela, juntamente com o Mal. Mas o BePJ, deve ser elevado à actualidade a partir da obscuridade, para viver eternamente com Deus; mas o Mal deve ser separado do Bem, para ser eternamente repudiado no não-ser. Porque o objectivo final da criação é "; que aquilo que não pode ser por si mesmo, na medida em que é elevado à existência, venha a ser por si mesmo, a partir da obscuridade, como de um fundo independente de Deus. Deus abandona as ideias, que nele se encontram sem uma vida autónoma, à ipseidade e ao não-ser, para que, chamadas à vida a partir deste útlimo, a ele regressem como existentes independentes", O fundo produz a cisão e a decisão (KPt(j1,Ç) em inteira liberdade e, precisamente desse modo, a perfeita actualização de Deus. Por isso o Mal, quando está totalmente separado do Bem, também já não existe mais como Mal. Ele só pode agir através do Bem (mal utilizado), que se encontrava nele inconsciente para si mesmo, Na vida, gozava 404

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Philosophie und Religion, Tübingen, 1804, p. 73. Werke, Bd. IV,

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ainda das forças da natureza exterior, com as quais procurava criar, e participava ainda, indirectamente, da bondade divina. Mas na morte separou-se de todo o Bem e subsiste, de facto, como desejo, como fome eterna e aspiração à efectividade, mas sem poder sair do estado de potência. O seu estado é, por isso, um estado de não-ser, um estado de permanente definhamento da actividade, ou daquilo que nele luta por ser activo. Por isso, também não é de modo algum necessário, para a realização da ideia de uma perfeição finita universal, um restabelecimento do Mal em Bem (a restituição de todas as coisas); pois o Mal somente é mau na medida em que excede a potencialidade, mas, reduzido ao não-ser, ao estado de potência, é aquilo que sempre deveria ser: base, sujeição e, enquanto tal, não mais se encontrando em contradição com a santidade e com o amor de Deus. Assim, a finalidade da revelação é expulsar o Mal do Bem e explicá-lo como total irrealidade. Em compensação, o Bem que se eleva acima do fun- . damento liga-se ao Bem originário, tendo em vista a unidade eterna; os que nasceram da obscuridade para a luz ligam-se ao princípio ideal como membros do seu corpo, no qual cada um se actualiza completamente e é agora uma essência totalmente pessoal. Enquanto durava a dualidade originária, o Verbo criador exercia o seu poder no fundo e este período da criação atravessa todos os outros períodos até ao fim. Mas quando a dualidade é aniquilada pela cisão,. o Verbo, ou princípio ideal, subordina-se ao espírito e subordina-lhe, ao mesmo tempo, o real que se tornou um consigo e este, como consciência divina, vive da mesma forma nos dois princípios. Como as Escrituras dizem de Cristo: deve dominar até que tenha todos os seus inimigos sob os seus pés. O último inimigo que deve ser suprimido é a morte (porque a morte somente era necessária para a ci119

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são; o Bem deve morrer para se separar do Mal~~ÓY.i\ Mal para se separar do Bem). Mas quando tudolheJ), estiver subordinado, então também o Filho estará subordinado àquele que tudo lhe subordinou, para que Deus seja tudo em todos. Porque o espírito ainda não é, também, o mais elevado; é somente espírito, ou seja, sopro do amor. Mas o mais elevado é e t amor. Ele é o que já existia antes do fundo e antes d o ! existente (como separados) existirem, mas não existia ainda como amor, mas como... Como é que deveremos chamar? Encontramos aqui o ponto mais elevado de toda' á ! investigação. Desde há muito que ouviamos a 'se~' -: .. f guinte questão: para que deve então servir aquela' i primeira distinção entre a essência enquanto fundo 1 e a essência enquanto existente? Porque, ou não há para ambos nenhum centro que seja comum e então devemos declarar-nos a favor do dualismo absoluto; ou então há e, deste último ponto de vista, voltam ambos a identificar-se. Temos, assim, uma única essência para todos os opostos, uma identidade absoluta de luz e obscuridade, Bem e Mal e todas as I consequências disparatadas em que deve cair qualquer sistema da razão e que também já foram, desde já muito, apresentadas pelo nosso. Já explicámos aquilo que aceitamos no primeiro termo da alternativa: deve haver uma essência antes de qualquer fundo e antes de qualquer existente, portanto, em geral, antes de qualquer dualidade; como poderemos designá-la, senão como fundo originário, ou melhor, como não-fundo (Ungruná)? Pelo facto de preceder todos os contrários, estes não se podem distinguir dela, nem estar presentes seja de que forma for. Não pode ser indicada como identidade, mas apenas como absoluta indiferença. A maioria das pessoas, quando chegam ao momento em que devem reconhecer um desaparecimento dos

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opostos, esquecem que eles, agora, desapareceram realmente e predicam-nos novamente, enquanto tais, da indiferença que, todavia, lhes aparecera justamente através da total supressão deles. A indiferença não é um produto dos opostos, nem eles estão contidos nela implicite, mas é uma essência própria distinta de todos os opostos, na qual todos eles se quebram; ela não é senão, precisamente, o não-ser deles, e, por isso, não tem nenhum predicado senão a impredicabilidade, sem ser, devido a isso, um nada ou uma não-coisa (Unding). Portanto, ou colocam a indiferença, efectivamente, no não-fundo que precede todo o fundo e então ela não é boa nem má - o facto de ser, em geral, inadmissível, elevar a oposição entre Bem e Mal até este ponto de vista, deixámo-lo, por enquanto, em suspenso - e não podem predicar dela, nem uma coisa, nem a outra, nem ambas ao mesmo tempo; ou então, põem o Bem e o Mal e,. desta forma, põem ao mesmo tempo a dualidadee já não o não-fundo ou a indiferença. Para explicar esta última afirmação, diga-se o seguinte: o real ou o ideal, a obscuridade ou a luz, ou como queiramos designar ambos os princípios, nunca podem, enquanto opostos, ser atribuídos, como predicados, ao não-fundo. Mas nada impede que sejam predicados dele como não-opostos, quer dizer, em disjunção e cada um por si mesmo, com o que, justamente, é posta a dualidade (a duplicidade efectiva dos princípios). No próprio não-fundo não há nada que impeça isto. Porque, na medida em que se relaciona com os dois como total indiferença, é indiferente em relação aos dois. Se fosse a identidade absoluta de ambos, só poderia ser os dois ao mesmo tempo, quer dizer, ambos deveriam ser-lhe atribuídos como opostos e, assim, voltariam a ser, eles próprios, de novo, um só. Do «nem... nem... » ou da indiferença irrompe imediatamente a dualidade 121

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(que é uma coisa totalmente diferente da 'oposição, mesmo se, até ao momento, tivemos de utilizar ambos os termos como se tivessem o mesmo significado, dado que ainda não tinhamos chegado a este ponto da investigação) e sem indiferença, quer dizer, sem um não-fundo, não haveria nenhuma dualidade dos princípios. Portanto, em vez de isto voltar a suprimir a diferenciação, como se pensou, põe-na e afirma-a. A distinção entre o fundo e o existente, longe de ser puramente lógica, ou de ser invocada simplesmente como auxiliar para, no fim, ser reconhecida como imprópria, mostra-se, pelo contrário, como uma distinção muito real, que somente a partir do ponto de vista mais elevado pode ser correctamente comprovada e plenamente compreendida. Depois desta discussão dialéctica, podemos explicar-nos, de modo totalmente determinado, da maneira seguinte: a essência do fundo, tal como a do existente, só pode ser aquilo que precede qualquer fundo, portanto, o Absoluto puramente considerado, o não-fundo. Este, como já foi demonstrado não poder ser senão na medida em que se separa em dois começos eternos idênticos; não que ele seja os dois simultaneamente, mas na medida em que está, em cada um deles, da mesma forma, como todo ou essência própria. Mas o não-fundo só se cinde em dois começos igualmente eternos para que os dois (que nele, como não-fundo, não podem existir simultaneamente ou como um só) se tornem num só através do amor, quer dizer, cinde-se somente para que a vida e o amor sej am e surj am como existência pessoal. Porque o amor não existe nem na Indiferença nem onde os opostos, porque necessitam de unificação para ser, estão unidos, mas - para repetir uma expressão que já foi utilizada - e é este o mistério do amor, ele une aquele que poderia existir por si mesmo e que todavia não existe, nem pode existir, sem o 122

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outro", Daí que, logo que a dualidade tenha aparecido no não-fundo, apareça também o amor, que liga o existente (ideal) com o fundo da existência. Mas o fundo permanece livre e independente do Verbo, até à cisão final e total. Em seguida desfaz-se, tal como no homem (quando transita para a claridade e se funda a si próprio como essência permanente) se dissolve a nostalgia originária, enquanto todo o verdadeiro e o bom que nela existe é elevado à consciência luminosa; mas tudo o resto, a saber, o falso e o impuro, é encerrado eternamente na obscuridade, para que, como fundo eternamente obscuro da ipseidade, retroceda como caput mortuum de um processo vital e como potência que nunca pode passar a acto. Então, tudo será submetido ao espírito. No espírito, o existente e o fundo da existência são um só; nele, os dois existem efectivamente ao mesmo tempo, ele é a identidade absoluta de ambos. Mas acima do espírito está o não-fundo originário, que já não é mais indiferenç» e, todavia, não é identidade absoluta dos dois princípios, mas unidade universal, idêntica a tudo e, no entanto, não concebida por nada, quer dizer, um bem-fazer que é livre em relação a tudo e que..! portanto, tudo atravessa pelo seu agir: numa palavra, o amor, que é tudo em todos. Portanto, quem, como há pouco, quisesse dizer: neste sistema há um princípio para tudo, é uma e a mesma essência que domina no fundo obscuro da natureza e na eterna claridade; é uma e a mesma essência que efectua a dureza e a segmentação das coisas, bem como a unidade e a doçura; é o mesmo que, no Bem, domina com a vontade do amor e no Mal com a vontade da cólera; quem quisesse dizer

Aphorismen über die Naturphilosophie, in Jahrbüchern der Medicin ais Wissenschaft, VoI. 1°, Fase. 1°, Aforismo, 162 e 163. 1

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isto e mesmo que dissesse tudo o resto correctamente, teria de não esquecer o seguinte: que essa essência única, nos seus modos de agir, cinde-se a si mesma, efectivamente, em duas essências, na medida em que numa só é mero fundo da existência, na outra é mera essência (e, por isso, é somente ideal); além disso, não deveria esquecer que apenas Deus como espírito é a identidade absoluta dos dois princípios, mas só o é porque, enquanto e na medida em que ambos se encontram subordinados à sua personalidade. Mas quem encontrasse uma absoluta identidade do Bem e do Mal no ponto de vista superior que constitui esta perspectiva, demonstraria a sua total ignorância, na medida em que o Mal e o Bem de modo nenhum configuram uma oposição originária e muito menos uma dualidade. Há dualidade onde duas essencias se opõem efectivamente. O Mal, porém, .não é uma essência, mas uma não-essência, que só em oposição se toma uma realidade, não em si mesmo. Também, justamente, a identidade absoluta, o espírito do amor, é anterior ao Mal, pois este somente em oposição a ele se pode manifestar. Por isso, também não pode ser concebido a partir da identidade absoluta, mas está, de toda a eternidade, fechado a ela e excluído dela'. Por isso, quem, finalmente, queira chamar panteísmo a este sistema, porque, por referência com o absoluto puramente considerado, todas as oposições se desvanecem, que tal lhe seja igualmente permitido''. Deixamos a cada um, de boa vontade, o 1 Resulta daqui que é espantoso que se exija que a oposição do Bem e do Mal seja também explicada a partir dos primeiros princípios. Só pode falar assim, certamente, quem tem o Bem e o Mal por uma dualidade efectiva e o dualismo por um sistema perfeito. 2 Ninguém mais do que o autor pode juntar a sua voz ao desejo, expresso pelo Sr. Fr. Schlegel, no Heidelb. Jahrb., Fase. 2°, p. 242, de que possa acabar, na Alemanha, a efeminada vertigem panteísta,

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modo de compreender o tempo e o que está nele. O nome nada faz, porque não diz respeito à própria coisa. A vaidade de uma polémica travada com conceitos gerais de um sistema filosófico, contra um sistema determinado que pode perfeitamente ter com ele muitos pontos de contacto e que, por isso, já foi confundido também com todos eles, mas que tem as suas determinações peculiares em cada ponto singular, uma tal vaidade já a encontramos na introdução a este tratado. Poderia, por isso, dizer-se apressadamente que um sistema ensina a imanência das coisas em Deus e todavia, com isso, nada se teria dito, por exemplo, em relação a nós, mesmo que isso não se possa considerar totalmente falso. Pois mostrámos suficientemente que todos os seres naturais tanto mais que o Sr. Schlegellhe acrescentou o devaneio estético e a imaginação, e na medida em que, ao mesmo tempo, devemos atribuir àquela moda a opinião da racionalidade exclusiva do espinosismo. Na Alemanha, onde um sistema filosófico se toma objecto da indústria literária e onde muitos, para os quais a própria natureza negou a compreensão dos assuntos quotidianos, acreditam ter sido chamados a ocupar-se de filosofia, é muito fácil excitar uma falsa opinião, ou até mesmo uma extravagância. Pelo menos, pode tranquilizar-nos a consciência o facto de nunca a termos pessoalmente favorecido ou despertado por meio de uma'ajuda própria e de poder dizer com Erasmo (por pouco que, por outro lado, se possa ter em comum com ele): semper solus esse uolui nihilque pejus odi quam juratos et factiosos. O autor nunca quis retirar a ninguém e muito menos a si mesmo, com a fundação de uma seita, a liberdade de investigação, na qual sempre se explicou e sempre se continuará a explicar. Ele quer permanecer, de futuro, no movimento que seguiu no presente tratado, onde, apesar de faltar a forma exterior do diálogo, tudo se desenvolve como se fosse dessa forma. Muitos assuntos poderiam ser definidos aqui com mais rigor e tomados com menor negligência, ou muito mais expressamente preservados de má interpretação. O autor deixou-os, em parte intencionalmente, ficar assim. Quem assim dele os não quiser ou puder tomar, que nada tome dele e procure outras fontes. Mas, talvez, por parte dos seguidores sem autoridade e dos opositores, seja dada a mesma atenção que deram ao escrito anterior e aparentado. Filosofia e Religião, ao ignorá-lo completamente, para o que os primeiros foram movidos menos, certamente, pelas palavras de ameaça do prefácio, ou pelo modo de exposição, do que pelo conteúdo.

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possuem um mero ser no fundo ou na nostalgia originária, que ainda não atingiu a unidade com o entendimento, de modo que, em relação a Deus, são meras essências periféricas. Só o homem está em Deus e é justamente através deste estar-em Deus que é capaz de liberdade. Somente ele é uma essência central e, por isso, deve também permanecer no centro. Nele, todas as coisas são concebidas, tal como também é somente através do homem que Deus recebe a natureza e se liga a si mesmo. A natureza é o primeiro ou antigo testamento, porque as coisas estão ainda fora do centro e, por isso, submetidas à lei. O homem é o começo da nova aliança e é por seu intermédio, como mediador - dado que ele próprio está unido a Deus - que também Deus (após a última cisão) toma a natureza e se apropria dela. O homem é, portanto, o redentor da natureza e para ele apontam todas as suas pré-figurações. O Verbo que se realiza no homem está na natureza como Verbo obscuro e profético (ainda não totalmente expresso). Daí os presságios que, nela mesma, não recebem qualquer explicação e que são explicados unicamente através do homem. Daí a finalidade universal das causas, que somente deste ponto de vista se torna compreensível. Agora, quem omitir ou deixar escapar estas determinações mediadoras, facilmente nos poderá refutar. Isto é, de facto, uma questão muito cómoda para uma mera crítica histórica. Não é preciso acrescentar a isso nada que venha do nosso próprio poder e podemos observar perfeitamente o Caute, per Deos! incede, latet ignis sub cinere doloso. Mas aí, são inevitáveis pressupostos arbitrários e não provados. Assim, para demonstrar que há apenas dois modos de demonstrar o Mal - o dualista, de acordo com o qual se aceita um fundo-essencial mau, não importa com que modificações, sob ou ao lado da essência boa, e o cabalista,

segundo o qual o Mal se explica por emanação e afastamento - e que, por esse motivo, qualquer sistema deveria suprimir a distinção entre o Bem e o Mal, para o demonstrar, diziamos, seria necessário nada menos que todo o poder de uma filosofia profundamente meditada e fundamentadamente constituída. No sistema, cada conceito tem um determinado lugar, no qual, somente, tem validade e que determina tanto o seu sentido como o seu limite. Mas quem não penetra até ao íntimo e extrai do conjunto apenas os conceitos gerais, como poderá avaliar correctamente o todo? Por isso, mostrámos aquele ponto determinado do sistema onde o conceito de indiferença é, sem dúvida, o único conceito possível do absoluto. Se agora for tomado universalmente, o todo ficará desfigurado e daqui resultará que este sistema também suprime a personalidade tPereonalitãti do ser supremo. Até agora calámo-nos acerca desta censura, muitas vezes escutada, tal como acerca de muitas outras, mas pensamos ter exposto, neste tratado, o primeiro conceito compreensível desta personalidade. Sem dúvida que no não-fundo ou indiferença não há nenhuma personalidade (Persõnlichheity; mas será que então o ponto de partida é o todo? Agora, exigimos que aqueles que fizeram esta censura com tanta ligeireza nos forneçam, em contrapartida, de acordo com a sua perspectiva, a mais pequena coisa que seja compreensível acerca deste conceito. Acima de tudo, pensamos que tomam a personalidade de Deus por qualquer coisa de inconcebível e de forma alguma possível de se compreender, no que procedem correctamente, na medida em que consideram que aqueles sistemas abstractos, em que a personalidade é, em geral, impossível, são os únicos que estão de acordo com a razão, sendo este presumivelmente o motivo porque atribuem a mesma racionalidade aos que

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desprezam a ciência e a razão. Nós, pelo contrário, somos de opinião que deve ser possível uma clara perspectiva racional acerca dos conceitos mais elevados, na medida em que só assim eles podem efectivamente ser nossos, ser aceites por nós e ser eternamente fundamentados. De facto, vamos ainda mais longe e consideramos, com Lessing, ser absolutamente necessária a elaboração das verdades sob a forma de verdades racionais, se isso for de algum auxílio para a espécie humanal. Estamos igualmente convencidos que para verificar cada possível erro (em assuntos propriamente espirituais) a razão é perfeitamente suficiente e que para avaliar os sistemas filosóficos são totalmente de afastar os semblantes inquiaitor iais''. Transportado para a história, um dualismo absoluto entre o Bem e o Mal, de acordo com o qual em todos os fenómenos e obras, ou um ou o outro princípio domina o espírito humano e segundo o qual há apenas dois sistemas ou duas religiões, uma absolutamente boa e outra absolutamente má; e mais ainda, a opinião de que tudo começou pelo puro e sem mácula e todos os desenvolvimentos posteriores (que foram, de facto, necessários para revelar perfeitamente os aspectos parciais contidos na primeira unidade e, através deles, a própria unidade) foram corrupção e falsificação; toda esta perspectiva serve, de facto, na crítica, como uma poderosa espada de Alexandre para, acima de tudo, cortar sem fadiga o nó górdio, mas introduz na história um ponto de vista totalmente não liberal e altamente limitador. Houve um tempo que precedeu aquela separação e uma Erziehung des Menschengesclechtes, § 76. Em particular quando, no outro lado, se quer falar somente de perspectivas, onde se deveria falar das únicas verdade que trazem a salvação (allenseligmachenden).

visão do mundo e uma religião que, embora se opusessem à visão do mundo e á religião absolutas, resultaram todavia de um fundamento próprio e não de um falsificação delas. O domínio do sagrado, de um ponto de vista histórico, é tão originário como o cristianismo e, contudo, embora seja somente o fundo e a base de algo mais elevado, não deriva de nenhuma outra coisa. Estas considerações reconduzem-nos ao nosso ponto de partida. Um sistema que contradiz o sentimento do divino, a alma (gemüth) e a consciência moral, não pode, pelo menos a este título, ser chamado um sistema da razão, mas da não-razão. Pelo contrário, um sistema em que a razão se conhecesse efectivamente a si mesma, deveria unificar as exigências do espírito e do coração, do sentimento moral e do entendimento mais rigoroso. A polémica contra a razão e a ciência permite, de facto, uma certa generalidade superior, que contorna os conceitos rigorosos, de tal modo que podemos descobrir mais facilmente a sua intenção do que o seu sentido determinado. Entretanto, receamos não deparar com nada de extraordinário, mesmo se também lhe encontramos um fundamento. Porque, por mais alto que coloquem a razão, não acreditamos que alguém, por exemplo, possa ser virtuoso, ou herói, ou em geral um grande homem, devido à pura razão; e nem sequer que, segundo a expressão corrente, o género humano se perpetue através dela. Mas é somente o entendimento que dá forma ao que está oculto neste fundo e nele contido como mera potencialidade, e o eleva a acto. Isto só pode acontecer por meio de uma cisão, portanto, através da ciência e da dialéctica, acerca das quais estamos persuadidos que serão somente as únicas a fixar e trazer ao conhecimento, do ponto de vista da eternidade, aquele sistema que já esteve diante de nós mais ve-

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zes do que se pensa, mas que sempre nos escapou, e que já foi por todos pensado, mas n~o fo~ ainda concebido por ninguém. Tal como na vida so confiamos verdadeiramente num entendimento poderoso e, sobretudo naqueles que expõem sempre o seu sentimento sentimos a falta de verdadeira delicadeza, tambêm, onde se trata da verdade e do conhecimento, a ipseidade que não ultrapassa o sen.timento, não nos merece nenhuma confiança. O sentlmento e poderoso quando permanece no fundo, mas não quando aparece à luz do dia, se transforma num ser e quer dominar. Mesmo que, de acordo com a excelente observação de Franz Baader, a pulsão do conhecimento tenha a maior analogia com o instinto de reprodução', há também no conhecimento qualquer coisa de análogo à decência e ao pudor e tambem, em oposição a isso, à falta de decência e de pudor, uma espécie de prazer fáunico, que nos impele para tudo sem a seriedade ou o desejo de construir ou configurar qualquer coisa. O vínculo que un~fica_a nossa personalidade é o amor e se somente a hgaçao produtiva de ambos os princípios pode se~ criad?ra. e produtora, então, é o entusiasmo no sentido próprio do termo que é o princípio activo daquela arte ou ciência que cria e produz. Cada entusiasmo exterioriza-se de uma determinada forma; e assim, há um entusiasmo propriamente cientifíco. Por isso, há também uma filosofia dialéctica que, como ciência, está separada, por exemplo, da poesia e da religião e, sendo por si mesma algo de totalment; consistente, não é idêntica a todas as outras POSSIveis na série, como o afirmam aqueles que, nos nossos dias, se esforçam, em tantos escritos, em

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Ver o estudo supra-citado, in Jahrbuchern [ür Medicin, Bd. III, Fase. 12 , p. 113. 1

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misturar tudo com tudo. Diz-se que a reflexão é inimiga da ideia; mas é sem dúvida o supremo triunfo da verdade o facto de ela se apresentar, todavia, plenamente vitoriosa a partir da mais elevada cisão e separação. A razão é, no homem, aquilo que, segundo os místicos, é o Primum, passivum em Deus, ou sabedoria originária, na qual todas as coisas estão unidas e, no entanto, separadas, são uma só e, todavia, cada uma delas é a seu modo livre. Ela não é actividade, como o espírito, não é identidade absoluta de ambos os princípios do conhecimento, mas indiferença; é a medida e, ao mesmo tempo, o lugar universal da verdade, o lugar tranquilo onde a sabedoria originária é concebida, de acordo com a qual o entendimento, considerando-a como modelo, deve construir. A filosofia, por um lado, recebe o seu nome do amor, como princípio universal do entusiasmo, por outro, desta sabedoria, que é nela o fim autêntico. Quando é retirado à filosofia o princípio dialéctico, quer dizer, o entendimento que cinde, mas que, por isso, ordena e configura organicamente e, ao mesmo tempo, o modelo a que esse entendimento se dirige, de taLforma que, em si mesma, não tem medida nem regra, então não lhe resta outra coisa senão procurar orientar-se historicamente e tomar como origem e exemplo a tradição, para a qual já fora anteriormente remetida com um resultado idêntico. Veio o tempo de procurar para a filosofia uma norma e uma base históricas, tal como, entre nós, se procurou fundamentar a poesia através do conhecimento dos poetas das outras nações. Temos o maior respeito pelo sentido profundo da investigação histórica e pensamos ter mostrado que não compartilhamos a opinião quase universalmente aceite de que o homem só gradualmente se distanciou da apatia dos instintos animais em direcção à razão. Pen1 ~1

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samos, no entanto, que é de nós que a verdade está mais perto e que, em relação aos problemas que se colocam no nosso tempo, deve-se procurar a solução, em primeiro lugar, em nós próprios e a partir do nosso próprio solo, antes de caminharmos à procura de fontes tão afastadas. Passou o tempo de uma fé meramente histórica, quando é dadaa possibilidade de um conhecimento imediato. Possuimos uma revelação mais antiga do que a revelação escrita, a saber, a natureza. Esta contém modelos que ainda nenhum homem interpretou, enquanto os da revelação escrita há muito tiveram a sua explicação e interpretação. O único e verdadeiro sistema de religião e de ciência, se estivesse aberta a compreensão daquela revelação não escrita, apareceria não no estado indiferente de reunião de alguns conceitos filosóficos e críticos, mas, ao mesmo tempo, no plehê> esplendor da verdade e da natureza. Não é a altura de despertar novamente antigas oposições, mas de procurar o que repousa (das Liegende) fora e acima de todas as oposições. O presente tratado será seguido por uma série de outros, nos quais a totalidade da parte ideal da filosofia será exposta progressivamente.

FIM

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INDICE Prefácio do Tradutor .........................................................

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Indicação Bibliográfica .....................................................

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Nota Prévia .......................................................................

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Investigação Filosófica sobre a Essência da Liberdade Humana...... ...........................................

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