Introdução ao Pensamento Epistemológico [4 ed.]

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Introdução ao Pensamento Epistemológico [4 ed.]

Table of contents :
Prefácio
Alguns instrumentos conceituais
O que é a epistemologia?
A epistemologia. penética dê J. Piapet
A epistemologia histórica de G. Bachelard
A epistemologia “racionalista-crítica” de K. Popper
A epistemologia “arqueológica” de M. Foucault
A epistemologia “critica” -
Para onde vai a filosofia?
Conclusão: um problema em suspenso
Bibliografia sumária

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Cupa: Ana Maria Silva de Araújo

Impresso no Brasil

Printed in Brazti

FICHA CATALOGRÁFICA (Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte do

pensamento

epistemológico. Rio de Janeiro, F.

“Alve4s, ed, 1986

202p.

ilust,

2lem.

o

e

m

ao

Tapiassu, Hilton Ferréi. ra, 1934 — Introdução

nua

J39i

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)

+ mamar

-.

Bibliografia 1. Teoria do conhecimento. 1. Título.

CDD — 121 CDU — 165

75-0138

LED

1986

Todos os direitos reservados à

LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S.A.

Rua Sete de Setembro, 177 — Centro

20.050 Rio de Janeiro, RJ

a

em

â *

Sumário Prefácio Alguns instrumentos conceituais O que é a epistemologia? A epistemologia. penética dê J. Piapet

A epistemologia histórica de G. Bachelard A epistemologia “racionalista-crítica” de K. Popper A epistemologia “arqueológica” de M. Foucault

A epistemologia “critica”

-

13 91 41 61 83 111 135

Para onde vai a filosofia?

159

Conclusão: um problema em suspenso

185 195

Bibliografia sumária '

Prefácio

Este pequeno livro, como indica seu título, trata do que chamei de “Introdução ao Pensamento Bistemológico”. Meu propósito foi o de explorar alguns dos caminhos que se abrem à epistemologia contemporânea. Os

vários capítulos aqui reunidos não têm outra pretensão

senão a de fornecer um conjunto de Elementos e de Ins.

trumentos de reflexão epistemológica sobre os processos

de gênese, de desenvolvimento, de estruturação e de ar-

ticulação dos conhecimentos científicos. Cada um pode-

rá ser tomado como um todo. Não houve, de minha parte, uma preocupação de sistematizar os vários temas tratados. Nem tampouco de lhes dar uma ordenação lógica

rigorosa.

Tentei descobrir, nos autores analisados, seu

“projeto” fundamental concernente aos problemas epis-

teológicos. Para não sobrecarregar o texto com muitas

citações, remeto 0 leitor à bibliografia, onde poderá 4pcontrar os elementos indispensáveis a um maior aprofundamento. Não pretendi tanto resolver problemas

quanto levantar questões que, uma vez examinadas, po-

9

derão proporcionar outras respostas, eventualmente discordantes, Se isto ocorrer, já está justificado meu esfor-

co de propor à reflexão, de modo simples, mas talvez “polêmico”, tais Elementos e Instrumentos introdutórios ao que hoje se chama de atividade epistemológica, Trata-se,

pois, de uma

reflexão epistemológica

cuja

preocupação fundamental é a de situar os problemas tais como

eles se colocam

ou

se omitem,

se resolvem

ou

de-

sapareçem na prática efetiva' dos cientistas, Todavia, como para situar e formular os problemas torna-se in- . dispensável a presença de certos conceitos, tive a preocupação de fornecer algumas concepções engajando q

tratamento de certos problemas científicos pela epistemologia. Sem dúvida, falar do “objeto” dessa disciplina significa falar de um

problema

a ser colocado para, em

seguida, ser resolvido, Não tive a pretensão de analisar

todos os problemas da epistemologia, Nem tampouco fol minha intenção apresentar um quadro completo de todas as epistemologias atualmente existentes. Uma sintese, certamente, far-me-ia correr o risco de uma exagerada generalidade. Isto não me impediu, porém, de dar atenção a certas epistemologias, por vezes em “conflito”. Assim, quis elucidar algumas “teses” particulares, sem

ter a audácia de fazer com que elas se beneficiassem de uma demonstração completa, O termo “conflito” é aqui utilizado no sentido de certos antagonismos fundamentais na elucidação, por parte das ahordagens epistemológicas analisadas, da atividade cientifica, Cada enfoque epistemológico elucida à atividade cientílica a seu modo. Cada um tem uma concepção particular do que seja a ciência. Evidentemente, as epistemologias aqui expostas não podem ser tomadas por cânones. Cada uma tem um valor de tentativa, e não

de modelo, Foi de propósito que tomei essas modalidades de epistemologia. Todas têm em comum, apesar das desJ0

samelhanças quanto aos seus objetos, às suas perspectivas, 805 seus métodos e às suas influências recíprocas, um caráter deliberadamente não-positivista quanto às

suas concepções da ciência. Rázão pela qual deixei de lado a apresentação desta epistemologia tão desenvolvida e rica, com resultados supreendentes no domínio do conhecimento científico, que é a epistemologia lógica, cujos defensores mais notáveis encontram-se filiados à

corrente

de pensamento

derivada

do empirismo lógico.

Portanto, não se trata de uma negligência. Simplesmente deixei-a de fora, por tratar-se de um dominio epistemológico

já bastante

explorado.

Por

outro lado,

ele se

prende muito mais à elucidação da atividade científica através de uma descrição dos métodos, dos resultados, e sobretudo,

da

linguagem da

“Ciência”

ou

da

“Razão”

nas ciências, do que ao exame propriamente crítico desta atividade, que é o objetivo das epistemologias que levei em

consideração.

Estas,

com

efeito, preocupam-se

história das ciências,

com

com

das ciências e com

a “arqueologia”

a “história”

com

a

da inteligência, ps relações

da

ciência com a sociedade que a produz, interferindo tanto em

sua organização Finalmente,

interna quanto

estou

consciente

em suas aplicações. de

que

falar de epis-

temologia, hóje, já é engajar-se num espaço polêmico ou

conflitante, pois sob este titulo apresentam-se trabalhos que frequentemente se

excluem

explicitamente.

de conciliar, mas,

ordem

nada têm de comum, Não

na medida

e de justificar:

um

se

quando

tratará,

pois,

não aqui,

dao possível, de colocar em

discurso sobre

as ciências é

um discurso em que a teoria se faz estratégia. E é tomando as ciências em sua “historicidade”, que se elabora a crítica epistemológica da ciência. Por outro lado, como

a historicidade não é para a filosofia um simples acidente

exterior,

mas

algo que lhe é essencial, da mesma

forma a história das ciências se liga de muito perto à . Ii

-Tilosofia, pelo menos, através de sua vertente lógica. A história das ciências é um tecido de plícitos sobre O valor dos pensamentos e das tas científicas. O papel da epistemologia é de

epistemojuízos imdescoberexplicitá-

los.

Hilton Japiassu

12

Alguns

instrumentos conceituais

1. Saber, ciência, epistemologia O termo saber tem hoje, por força das coisas e pela

realidade do uso, um sentido bem mais amplo que o termo ciência, a) É considerado saber, hoje em dia, todo um con-

junto de conhecimentos metodicamente adquiridos, mais ou menos sistematicamente organizados e susceptíveis de serem transmitidos por um processo pedagógico de ensi-

no, Neste sentido bastante lato, o conceito de “saber” poderá ser aplicado à aprendizagem (saber fazer,

saber técnico...)

de ordem

e, ao mesmo

prática

tempo, às

determinações de ordem propriamente intelectual e teórica, É nesse último sentido que tornamos o termo '“'saber”,

b) Por ciência, no sentido atual do termo, deve ser considerado q conjunto das aquisições intelectuais, de um

Jado, das matemáticas,

do outro, das disciplinas de

15

investigação do dado natural e empírico, fazendo ou não

uso das matemáticas,

mas

matematização.

tendendo mais

Hoje em dia, podemos

ou menos à

nos servir do termo “saber”

para designar uma série de disciplinas intelectuais mais

ou menos estabelecidas, mas que não podem ser conside-

radês

como

ciências, no sentido

ber “racional”, “crente”

constituido

ou “místico”,

atual

pela

do termo:

filosofia, ou

Entretanto,

entre

Q sa-

o saber

as ciências e

Os saberes especulativos, intercalam-se várias disciplinas

cujo estatuto ainda permanece incerto: discíplinas de erudição, história, disciplinas jurídicas, etc. Um quad ro

poderá ilustrar melhor:

(SABERES “ESPECULATIVOS” (que não são ciências) A. Racional; Filosolia SABER

EM GERAL

B.

Crenta

CIÊNCIAS

ou religioso;

Teologia

(que não são saberes “especulativos” A. Maternáticas

LU B.

c)

Empiricas « positivas

Por epistemologia, no sentido bem amplo do ter.

mo, podemos considerar o estudo metódico e reflexivo do saber, de sua

organização,

de sua formação,

de seu

de-.

senvolvimento, de seu funcionamento e de seus pro dutos intelectuais. Haveria, assim, três tipos da epistemo logia: —

Epistemologia global

(geral), quando se trata do sa-

“ber globalmente considerado, com os problemas

a virtualidad: e

do conjunto de sua organização,

sejam “especulativos”, quer “cientíticos”. —

Epistemologia particular, quando se trata de levar em consideração um campo particular do saber, quer

seja “especulativo”, quer Z6

quer

“científico”,

-— Epistemologia

conta uma

específica, quanda se trata de levar em

disciplina . intelectualmente . constituída

em unidade bem definida do saber, e de estudá-la de

medo próximo,

detalhado

e técnico, mostrando sua

organização, seu funcionamento e as possíveis relações que ela mantém com as demais disciplinas. Fala-se também,

hoje

em

dia, de epistemologia tn.

terna e de epistemologia derivada. A epistemologia interna de uma

ciência consiste na análise crítica que se

faz dos procedimentos de conhecimento que ela utiliza, tendo em vista estabelecer os fundamentos

desta disci-

pitna. Enquanto tenta estabelecer uma teoria dos fundamentos de uma ciência, a epistemologia interna tende a

Integrar seus resultados no domínio da ciência analisadz, A

epistemologia

derivada,

ao contrário,

visa

fazer

ima análise da natureza dos procedimentos de conhecimento

de uma

ciência, não para

fornecerdhe

um

fun-

lamento ou intervir em seu desenvolvimento, mas para saber como esta forma de conhecimento é possível, bem como para determinar a parte que cabe no Sujeito e a

gue cabe go Objeto no modo particular de conhecimento que caracteriza uma ciência. Donde 2 necessidade de Ee fazer apelo às outras

ciências

e às suas epistemoalo-

filas. É a esta epistemologia derivada que chamamos

de

epistemologia gerai, Dizer que esta não tem objeto, seria O mesmo

que admitir que os cientistas estão conscientes

do todos os fatores

sóficos, políticos)

(sociais,

culturais,

ideológicos, filo-

implicados em sua prática efetiva.

IE, Baber e pré-saber

Antes do surgimento de um saber ou de uma disci-

plinn científica, há sempre uma primeira aquisição ainda 17

não científica de estados mentais

já formados de modo

mais ou menos natural ou espontâneo, No nível coletivo, esses estados mentais são constitutivos

de uma

certa

cultura, Eles constituem as “opiniões primeiras” ou pré-

noções, mum

tendo por função reconciliar q pensamento Co-

consigo

mesmo,

propondo

certas

explicações. Po-

demos caracterizar tais pré-noções como um conjunto talsamente sistematizado de. juízos, constituindo. repre-

sentações esquemáticas e sumárias,

formadas pela prá-

tica e para a prática, obtendo sua evidênciae sua:“au-

toridade” das funções sociais que desempenham: Como

já dizia Aristóteles, “toda disciplina susceptível de se aprender, e todo estudo comportando um processo intelectual, constituem-se a partir de um conhecimento já

presente”. . Todo saber

álias,

humano

a epistemologia

| relaciona-se

|

|

a, um - pré. aber

contemporânea

reconhece

este

fato. Por exemplo, Piaget elabora uma epistemologia penética; Bachelard escreve La. formation de Pesprit scientifigue; M. Foucault, em Les mots et les choses, faz toda ' "uma “arqueologia” das ciências. humanas. Assim, corrio

poderíamos caracterizar este pré-saber relativamente. aó saber que se procura ou que já foi encontrado?,

2)

“caracterizações pejorativas:

opinião, b)

-C)

conhecimento

comum ou “vulgar; te

caracterizações “positivas: empíria, experiência, por vezes “artes, válida, ete.

opinião

caracterização técnica em Foucault: “episteme”:

infra-estrutura

cultural das emer-

gências do sabêr propriamente

dito.

O pré-saber, devemos notar, é uma realidade cultura! reiativa go saber ou à ciência: é relativamente ao sa18

her que hã um pré-saber. Trata-se de uma realidade am. bigua, comportando determinações contrárias ao saber (erro, preconceitos, idéias preconcenidas, etc.) e recursos de conhecimento e de atividades mentais indispensáveis ao saber, É em função desta relação do saber ao seu pré-

saber que vemos definir-se na epistemologia atual toda uma série de categorias epistemológicas significativas. Mencionemos as mais correntes: 1. Em face da necessidade intelectual do saber e das tentativas de aproximação deste saber, temos a categoria de obstáculos epistemológicos (analisada por Bachelard em La jormation de Vesprii scientifique): “resistência” ou “inércia” do pensamento ao pensamento, surgindo no momento da constituição de uma ciência como “contra-pensamento”, ou num estádio superior de seu

desenvolvimento 2.

como

“parada

de pensamento”,

Em face da necessidade intelectual de se definir

a atitude científica por oposição à atitude pré-científica, temos a categoria de corte epistemológico

(analisada por

Bachelard em Le rationalisme cppligué, cap. VI): tratase do momento

em

que uma

ciência se constitui

“cor-

tando” com sua pré-história e com seu meio ambiente ideológico: não se trata de uma “quebra” instantânea, trazendo uma novidade absoluta, mas de um processo complexo no decorrer do qual se constitui uma ordem

inédita do saber. 3.

Para mantermos

o progresso reflexivo da atitu-

(de científica, devemos fazer apelo à categoria de vigilêncin

epistemológica

(Rationalisme

appliqué,

cap.

IV):

trata-se de uma atitude reflexiva sobre o método cientiflco, isto é, de uma

atitude que nos leva a apreender

a

lóglea do erro, para construir a lógica da descoberta clentífica como polêmica contra o erro e como esforço para submeter as verdades aproximadas da ciência e os 19

métodos que ela emprega a uma

retificação metódica, a

fim de nos libertarmos das ideologias, das crenças, das opiniões, das certezas imediatas e chegar mos, assim, à

objetividade científica; esta não pode repous ar num fundamento tão incerto quanto a objetividade do cientista (que é sua subjetividade), mas exige 0 est abelecimento

das condições de um

controle intérsubjetivo,

4. Em face da necessidade de explicar o devi r de uma ciência, ligando o conhecimento de seu passado à análise de seu estado presente, e fazendo dep ender este

estado presente de todos os elementos que constituiram sua possibilidade, devemos fazer apelo à cate goria de re-

corrência epistemológica. É este conceito que torna possivel o desenvolvimento de uma história teórica ou de um conhecimento teórico da história das ciências, É ele que nos permite compreender o devir real de uma ciência,

que é o objeto da epistemologia histórica,

20

O que é a. epistemologia?

Devemos dizer, de início, que da epistemologia sabemos muito sobre aquilo que ela não é, e pouco sobre

aquilo que é ou se torna, uma. vez que se trata de uma disciplina recente e cuja construção é, por isso mesmo, lenta. Seu estatuto está longe de poder ser bem defini-

lo, tanto em relação às ciências, entre as quais pretende instalar-se como disciplina autônoma, quanto em rela-

ção à filosofia, de que insiste em separar-se sem se dar conta de que uma de suas razões de ser é postulá-la como

Uma das exigências fundamentais de qualquer olhar crftico e reflexivo sobre as ciências que se vêm erlando e

transformando o mundo cessam

através dos produtos que não

de lançar em nossa cultura. Por isso, definir o

estatuto da epistemologia atual é tarefa delicada, pois os limites do domínio

de investigação

dessa disciplina

são muito flutuantes. Alêm disso, não existe sequer um acordo quanto à natureza dos problemas que ela deve abordar. Seu campo de pesquisa é imenso, supondo grande intimidade com as ciências, cujos princípios e resul23

tados ela deveria estar em

condições

de criticar, Dende

a variedade de conceitos de epistemologia, Comecemos pela noção mais simples,

“Epistemolo-

gia” significa, etimologicamente, discurso (logos) sobre a ciência (episteme). Apesar de parecer um termo antigo, sua criação é recente, pois surgiu a partir do século

XIX no vocabulário filosófico. Daí um primeiro problema:

se aquilo que está por baixo desse termo

(seu con-

teudo) só apareceu no século passado, a que condições novas, na história das ciências e da filosofia, correspon-

de este aparecimento? Será qua este termo surgiu tardlamente para designar uma antiga forma de conhecimen-

to, contemporânea da prática dos primeiros sábios e filó-

sofos? Em outros termos: teria a epistemologia começa-

do com a filosofia clássica (com Platão, por exemplo),

ou somente depois dela?

Colocando

a questão nestes termos, podemos

coónfi-

nar a epistemologia, desde o início, nos limites do discurso filosófico, fazendo dela uma. parte deste discurso,

Foi assim que fizeram todas as epistemologias tradicio-

nais, chamadas

de filosofia das ciências ou de teoria do

conhecimento. Todavia, colocando de outra forma a questão, caracterizaremos a epistemologia como um discurso

sobre q qual o discurso primeiro da ciência deveria ger

refletido. Assim, o estatuto do discurso epistemológico,

como duplo, é ambíguo: discurso sistemático que encon-

traria na filosofia seus principios e na ciência seu objeto.

Seria um discurso dividido entre 'duas formas de discur-

so racional. Por esta dupla pertença ou tiiação, a episte-

mologia teria por função resolver o problema geral das

relações entre. filosofia e ciências. Trata-se de saber se

tal problema é verdadeiro,

vu se a epistemologia

não

deve ir procurar suas funções, seus métodos e seu con-

teúdo fora da perspectiva filosófica, 24

Tradicionalmente,

a

epistemologia

é

considerada

corno uma disciplina especial no interior da filosoiia, Fram os filósofos que faziam as pesquisas em epistemologta, Esta era “para” a ciência ou “sobre” a ciência, mas não era obra dos próprios cientistas. Todas as filo-

pofias desenvolveram espontaneamente uma teoria do conhecimento e uma filosofia das ciências tendo por objetivo quer evidenciar os meios do conhecimento científico, quer elucidar os objetos aos quais tal conhecimento se aplica, quer fundar a validade deste conhecimento, Como

ge pode notar, este programa visa a um

duplo fim:

em

primeiro lugar, descobrir um conhecimento positivo: de que Tala o cientista? Como fala dele? Em segundo lugar, visa a ultrapassar os limites dessas questões, fazendo da prática cientifica o objeto de um juízo: o que é uma verdade científica? Em que condições há verdade? Em que Umites

podemos

falar de verdade

científica?

Esta concepção tradicional de epistemologia está re-

glstrada no Vocabulário de Lalande. Para este, com afeiLo, à epistemologia

é a filosofia

das ciências, mas com

um sentido mais preciso. Ela não é, propriamente falando, o estudo dos métodos científicos, os quais pertencem à metodologia. Também não é uma síntese, cu uma ahtecipação conjetural das leis científicas (à maneira do positivismo ou do evolucionismo). Essencialmente, a epistemologia é o estudo crítico dos princípios, das hipóteses 6 dos resultados das diversas ciências, Semelhante estudo lem por objetivo determinar a origem lógica (não psitológica)

das

ciências,

sen

valor

e seu

alcance

objetivos.

Como. podemos depreender dessa concepção,

a epis-

temologia usaria a ciência como simples pretexto para floscfar. A Filosofia teria com a ciência uma relação puramonte interesseira, explorando-a para seus próprios fins. Isto se torna

manifesto

nas

Btribuídas à filosofia das ciências:

três funções

clássicas

1. Situar o iugar do 23

conhecimento científico dentro do domínio do saber , Esta

atividade, propriamente

tópica

(topos:

lugar), é dupla:

de um lado, ela distingue as funções e os meios que são. apropriados às outras formas de conhecimento; do outro ,

apresenta, o sistema geral de todas essas funções. Donde o paradoxo do discurso filosófico, que se confere a si mes.

mo um lugar específico no interior deste conjunto, mas

permanecendo-lhe estranho, - pois cabe-lhe designar seu esquema global. Daí a questão: por que a filosofia tem

este privilégio de distribuir em torno de si 0s outros dis-

cursos? Não poderia o discurso cientifico descobrir por si mesmo seu próprio lugar? Destas questões, pode mos

deduzir a segunda função da filosofia das ciências. 2. Estabelecer os limites da conhecimento científico: este não

pode tudo conhecer. Tal limitação se exprime num a série

de oposições:

ciência. e sabedoria,

conhecer

e pensar,

o uso de uma

categoria,

compreender e conhecer, etc. Estas duas atividades, de distinção e de limitação, supõem

que é o produto da intervenção filosófica. 3, Buscar a natureza da ciência. Ora, q ciência não existe. Do pont o

de vista da prática dos cientistas, não há ciência em geral, mas sistemas de conhecimentos especificos, em cvo-

lução e apropriados a seus objetos. “A” ciência não passa

de uma ficção.

do buscar a natureza do conhecimento

científico, a

Ilosofia das ciências não se dá por objeto um conhecimento em sua gênese e estruturação progressiva, em vias de se fazer ou em processo, mas um conhecimento “em si”, como faio. Ela se dá um ohjeto ideal, e não esses

objetos reais que são as diversas modalidades nas quais

os cientistas trabalham efetivamente e a partir das quais

eles constroem, ao mesmo tempo, o edifício de suas teorias e esses elos positivos que permitem

seu desenvolvi-

mento. Portanto, trata-se de uma medalidade de epistemoiogia que poderíamos chamar de “metacientifica” , em 26

oposição às epistemologias ditas “científicas”. Ela parte de um postulado: o de que o conhecimento é um fato que pode ser estudado em sua natureza própria e nas condi-

ções prévias de sua existência. As questões colocadas por este tipo de epistemologia referem-se sobretudo à posstbilidade do conhecimento. Ela não se interroga sobre suas condições

ganização,

concretas de elaboração, de gênese, de or-

de estruturação ou

questões fundamentais:

de crescimento,

Daí

as

“como é possível o conhecimen-

to?”, “a que é o conhecimento?”

As razões de tal atitude não devem ser procuradas apenas nas doutrinas dos grandes filósofos, mas também

neo próprio

pensamento

científico, que por

muito

tempo acreditou ter atingido um conjunto de verdades definitivas, embora incompletas, permitindo que se in-

terrogasse sobre “o que & o conhecimento”, Ora, hoje em dia, o conhecimento passou a ser considerado como um

processo e não como um dado adquirido uma vez por todas. Esta noção de conhecimento foi substituída por outra, que o vê. antes de tudo coma um processa, como uma

história que, aos poucos e incessantemente, captar a realidade a ser conhecida. Devemos

fazem-nos falar hoje

de conhecimento-processo e não mais de conhecimentoestado, Se nosso conhecimento se apresenta em devir, só conhecemos realmente quando passamos de um conhecimento menor a um conhecimento maior, A tarefa da

epistemologia consiste em conhecer este devir e em analisar todas as etapas de sua estruturação, chegando sempre a um

conhecimento

provisório,

jamais

acabado

ou

definitivo.

É neste sentido que podemos conceituá-la como essa disciplina cuja função essencial consiste em submeter a prática dos cientistas a uma reflexão que, diferentemente da filosofia clássica do conhecimento, toma por objeto, não mais uma ciência feita, uma ciência verda-

2?

deira de que. deveriamos estabelecer as condições de pos-

sibllidade, de coerência ou os títulos de legitimidade, mas as elências

gênese,

em

vias de se Jazerem,

em

seu processo de

de formação e de estruturação progressiva,

problema

Seu

central, e que define seu estatuto geral, con-

siste em. estabelecer se o conhecimento poderá ger reduzido a um puro registro, pelo Sujeito, dos dados já an-

teriormente mundo

organizados

independentemente. dele

num

exterior (físico ou ideal), ou se 0 Sujeito poderá

“ intervir ativamente no conhecimento dos Objetos. É da tomada de posição relativamente a este problema, que as epistemologias se repartem em duas categorias ou

orientações distintas, Portanto, .de um lado, temos. as epistemologias genéticas, para as quais o acordo entre

- O Sujeito e o Objeto deverá ser estabelecido progressiva-. mente; o conhecimento deve ser analisado de um ponto de vista dinâmico (na sua formação e em seu desenvol-

vimento)

ou

diacrônico,

quer

dizer,

em

sua

estrutura

evolutiva. Por outro lado, temos as epistemologias nãogenéticas, para as quais o acordo entre o Sujeito e o Objeto deve ser feito desde a origem, não sendo aceita a perspectiva histórica ou temporal: o conhecimento é es-

tudado de um ponto de vista estática| ou sincrônico, quer

dizer, em sua. estrutura atual, - É claro que, no interior dessas duas dem

ser distinguidas subclasses, conforme

categorias | poo acordo su-

ponha um primado do Objeto que se impõe ao espírito

(conhecimento tirado do objeto), um primado do Sujeito -

- (conhecimento tirado do sujeito) que antecede ao obje-

to, ou uma interação entre o Sujeito e o Objeto. E as.

epistemologias contemporâneas repartem-se segundo confiram o primado ao Sujeito, ao Objeto ou: à Interação entre ambos. Contudo, as epistemologias atualmente vivas e significativas estão centradas sobre. as interações do Sujeito e do Objeto: a epistemologia fenomenológica, .28.

ustrada por Husserl; a epistemologia construtivista e estruturalista, ilustrada por Piaget; a epistemologia histórica, ilustrada por Bachelard; a epistemologia “arqueológica”, ilustrada por Foucault; a epistemologia “raclonalista-crítica”, lustrada por Popper. É necessário que se compreenda como a epistemologia se situa a si mesma relativamente à filosofia das cién= cias e a outras disciplinas que lhe são mais ou menos

afins. Em

outros termos, a epistemologia se situa na in-

tersecção de preocupações e de disciplinas bastante diversas, tanto por seus objetivos quanto por seus métodos. É muito dificil encontrar uma lista completa e pre-

cisa dessas disciplinas. Limitemo-nos se, de Tato, de uma epistemologia,

a algumas, Trata-

divisão nas maneiras

isto é, de um

conjunto

de abordar

a

de vias de acesso

a esta disciplina, cada uma com seu tipo próprio de intelipgibilidade,

constituindo uma

abordagem

que não

se

|

Impõe às outras.

A, A filosofla das ciências No pano de fundo de toda abordagem epistemológica, encontramos toda uma tradição filosófica. “Todos os grandes filósofos também foram teóricos do conheci-

mento, quer dizer, construíram uma teoria do conhecimento fazendo parte integrante de seu sistema filosófico, Eles se perguntaram como « ciência é possível, Ao vista duas coisas:

se referirem &s ciências, tinham

em

quer ultrapassá-las com métodos

análogos, quer opor-se

a elas determinando seus limites e tentando abrir, com

essa critica, outros caminhos possíveis. As diversas teo-

rlus clássicas do conhecimento eram o produto de uma reflexão sobre as ciências, dizendo respeito aos diversos

29

|

tipos de saber e às suas fontes:

razão, imaginação, ex-

periência, ete, No fundo, a questão como vinha a significar em que condições, Procuravam-se, pois, as condi-' cões ou os princípios logicamente exigidos para que a

ciência se tornasse possivel. Podemos rias do

conhecimento,

partindo

de

chamar essas teouma

reflexão

sobre

as ciências e tentando prolongá-la numa teoria geral do

conhecimento, de epistemologias “metacientíficas”: elas visam a estabelecer a relação que o Sujeito e o Objeto mantém entre si no ato de conhecer, mas tendo em vista

determinar o valor e os limites do próprio conhecimento,

a tim de extrair sua natureza, seu mecanismo geral e seu alcance,

Todas

as formas

clássicas

de epistemologia estive-

ram sempre, de um modo ou de outro, vinculadas ao pro:

gresso das ciências. No passado, houve uma solidarieda-

de da filosofia com

as ciências. Todos os filósofos refle-

tiram sobre aquilo que faziam. E foi assim que se cons-

tituiu a filosofia das clências,

O problema

consiste em

saber como elã ainda pode justificar-se hoje em dia, Atualmente, são os próprios cientistas que se interessam por refletir sobre o que fazem. De uma forma ou de ou-

tra, eles se colocam, mesmo que seja de modo implícito,

questões sobre a razão de ser dos problemas, dos métodos e dós conceitos de suas disciplinas, Aliás, há toda uma téndência a fazer à reflexão sobre a ciência curyarse à disciplina científica: de um lado, fazendo-se apelo à linguagem lógica, do outro, multiplicando-se os contatos com os fatos. Istô não quer dizer que a logia tenha cortado completamente seus laços sofia: em primeiro lugar, porque as grandes logias continuam estreitamente associadas a sofia; em seguida, porque elas a sugerem ou

mam;

epistemocom a fi. epistemouma filoa confir-

finalmente, porque acima das epistemologias “re-

gionais”" ou “internas”, há problemas de epistemologie So

geral que ultrapassam É mesmo

que

a competência dos especialistas,

possamos

colocar

em

dúvida

a validade

ptuzgl de uma epistemologia filosófica, não poderiamos negar a importância de uma teoria da história das ciênclas. Esta teoria, muito solidária da epistemologia, não

perde seu caráter filosófico. Uma

teoria das ciências só

é epistemológica porque a epistemologia é histórica. Assim, a historicidade é essencial ao objeto da ciência sobre o qual

é estabelecida uma

reflexão que podemos

chamar de “filosofia das ciências” cu epistemologia. E

A história das ciências, não sendo ela própria uma elêncla, e não

uma

E.

tendo por isso mesmo

um

objeto

é

científico,

das funções principais da epistemologia.

A história

das

ciências

Esta disciplina conheceu um grande desenvolvimen-

to no início do século XX, O prande problema que se coloca é o do conhecimento -do passado: em que medida podemos descrever uma história das ciências sem Interpretar cs conhecimentos: passados através dos conhecimentos: presentes? Uma história puramente descritiva corre o risco de introduzir juízos de valor inoportunos sobre o que os cientistas “deveriam ter feito”, sobre seus

“prros”, etc; E hoje sabemos que fazer & história das tlências consiste em fazer a história dos conceitos e

das teorias científicas, bem como das hesitações do próprio em

teórico. que

Trata-se

medida

as

de

esforço

um

noções,

as

atitudes

para se elucidar ou

os métodos

ultrapassados foram, em sua época, um ultrapassatempo. Mais profundamente, como nos mostrou Canguilhem, interrogar-se sobre a história das ciências consiste em Interrogar-se ao mesmo

tempo sobre sua finalidade, so3Í

bre seu destino, sobre seu porquê, mas

também

sobre

aquilo peio que ela se interessa, de que ela se Ocupa, em conformidade com aquilo que ela visa, Sen do assim, à

epistemologia não pode deixar de interessar-se pela his-

tória das ciências. É através da epistemologi a que os fi-

lósofos se interessam por ela, na medida em que esta consciência crítica dos métodos atuais de um sabe r ade-

quado a seu objeto vê-se obrigada a celebrar o poder des-

ses métodos, lembrando os embaraços que retard aram sua

conquista. Assim, entre es razões apresentadas por Can-

guilhem para se fazer história das ciências: hist órica (extrínseca à ciência, entendida como discurso verificado sobre determinado setor da experiência), cien tífica (realizada pelos cientistas enquanto são pesqui sadores

e não acadêmicos) e filosófica, esta última é a mais importante, Porque, sem referência à epistemologia, toda

teoria do

conhecimento

seria

uma

vazio. Por outro lado, sem relação

cias, a epistemologia seria uma

meditação

contrariamente

o

à história das ciên.

réplica

cia que toma como objeto de discurso. Portanto,

sobre

Inútil

aos epistemólogos

da ciênque se

reclamam do empirismo lógico, para es quais a história das clências situa-se fora do campo epistemológi co, pois pertenceria às ciências empíricas, ligadas ao conh ecimen-

to dos fatos, sustentamos que a epistemologia é profundamente solidária das ciênçias, devendo alim entar-se amplamente de seus ensinamentos. Na perspect iva positivista, a ciência só é tomada como obje to de estudo na medida em que existe a título de fato, isto é, como ciência presente. Contrariamente a esta posição, deve-

mos dizer que compete à epistemologia fornecer à história das ciências o princípio de um jutzo, pols é ela que lhe ensina a última linguagem falada por tal ciência,

psrmitindo-lhe,

assim,

recuar no tempo

até o momento

em que esta linguagem deixa de ser inteligíve l. É a episSa

Lemologia que nos permite discernir a história dos conhecimentos científicos que já estão superados e a dos que permanecem atuais (ou sancionados), porque atuan-

tes e colocando em marcha 6 processo cientifico, A diferença entre o historiador das clências e o epistemólogo consiste em que o primeiro toma as idéias como fatos, no passo que o segundo toma os fatos como idéias, inserindo-os num contexto de pensamentos. Em outras palavras, O primeiro procede das origens para o presente,

de sorte que a ciência atual já estã sempre anunciada

no passado, ao passo que o segundo procede do presente

para o passado, de sorte que somente uma parte daquilo que ontem era considerado como ciência pode hoje ser jundado e justificado cientificamente, | Resulta que é a epistemologia, enquanto teoria do fundamento da ciência, que faz com que o objeto da história das ciências não se identifique com o objeto da ciência e com que a história das ciências seja uma tomada, de consciência explícita do fato de as ciências se-

rem discursos críticos e progressivos para a determina-

ção daquilo que, na experiência, deve ser tido por real. É ainda ela que faz com que o objeto da história das

ciências seja um objeto não dado, mas um objeto construido, um objeto cujo inacabamento é essencial. Em suma, da história das clências, filosoficamente questionada, surge uma filosofla das ciências que outra coisa não é senão uma das modalidades da epistemologia geral, e que constitui uma das vias de acesso à epistemolo-

gia, próxima às que passam pela psicologia, pela saciologia e pela metodologir dys conhecimentos.

C.

À psicologia das ciências

Esta disciplina ainda está em seu início. Mas seu campo de pesquisa é vasto. Há muitas questões episte33

mológicas que só são resolvidas atr avés de uma psicologla do conhecimento. Por exemplo,

a seguinte

questão: qual é a influência dos processos simbélicos inconscien-

tes sobre & produção do Pensam enta lógico na pesquisa

científica? Estamos hoje em presen ça de todo um trabalho que certamente podemos Cham ar de epistemologia

Psicológica, visando & elucidar com o se articulam as diferen

tes

etapas do conhecimento, desde a infância até a ciência dos adultos, associando estrei

tamente a análise lógica à análise psicológica. São as Pesquisas levadas a efeito por Piaget e sua equipe no Centro Internacional de Psicol

questão O

ogia Genética, em Genebra. Ao partirem da ftndamental do pensamento kan tiano:- “como

conhecimento

é possível?”",

acreditam

esses autores que à psicologia genética foi eriada para, trazer-lhe uma respos

ta, Eles mostram toda a carênc ia da filosofia tradicional para solucionar este problema, bem como as insuficiências, tanto das velhas certezas e respostas do empirismo, qua nto das novas soluções propos tas pelo po-

sitivismo lógico. E pretendem ins taurar, com a psicologia genética, as bases sólidas. de uma

nova

epi

stemologia. Esta não pode mais contentar-se com uma fidelidade às tra dições

anglo-saxônias,

que

permanecem

ori

entadas para um associaciontsmo empirista , o que reduziria todo conhecimento a uma

aquisição exógena, a partir da ex-

periência ou das apresentações ver bais ou audiovisuais dir

igidas pelos adultos. Pbr outro lad o, a epistemologia genética tampouco aceita à soluçã o proposta pelo empi-

rismo lógico que, no processo

dé aquisição dos conheci -

mentos, continua a fazer apelo nos fatores de ineidade e de maiuração interna. A nov a epistemologia precisa ser elaborada a partir de uma con cepção construtivista

da aquisição dos conhecimentos:

sem pré-formação, nen exógena (empirismo) nem endóge na (ineidade), mas por contín

uos ultrapassamentos das. elaboraçõ es sucessivas.



.

Ao partir de sua concepção da psicologia genética, entendida como o estudo do desenvolvimento das funales mentais, Piaget mostra que este desenvolvimento pode fornecer uma explicação ou, pelo menos, um com-

plemento de informação quanto nos mecanismos dessas funções mentais em seu estado acabado. Por outro lado, mostra que podemos utilizar a psicologia genética para encontrar a solução dos problemas psicológicos gerais € doa problemas do conhecimento. Em suma, é a esta epistemologla que devemos

problema

fundamental

a maneira diferente de colocar O

do conhecimento:

ao invés de

perguntar “como o conhecimento é possive!?”, devemos

perguntar “como crescem os conhecimentos?” Donde podermos identificar a epistemologia da psicologia à psiecologia do conhecimento clentífico em geral.

D, A sociologia do conhecimento Tarnbém esta disciplina empreende pesquisas estrei-

tumente ligadas à epistemologia, Assinalemos, por exemplo, o lugar que ocupam Marx, Diúrkheim, M. Weber, Manheim e muitos outros sociólogos do conhecimento. É cridente que as tendências manifestadas por esses au-

tores em seus trabalhos são bem diferentes, Todavia, todos têm em comum uma abordagem global: para eles, os conhecimentos não são considerados como construcôcs autônomas e individuais, mas como atividades so-

clnis, inseridas num determinado contexto sócio-cultural, O

conhecimento

científico

é sempre

tributário

de um

pano de fundo ideológico ou filosófico, Também é tributário da religião,

da economia,

da política e de outros

fatores extracientíficos. Sendo assim, o simples-fato de concebermos

a ciência ou um

conhecimento

científico

como possíveis, já é um pressuposto que tem origens fi33

losóficas ou ideolópicas. Por conseguinte, uma sociolog ia do conhecimento deve ter, entre outras funções, a de estabelecer uma ruptura entre os sabetes comuns é o saber científico, interrogando-se sobre as condições sociais que

tornam

inevitável esta ruptura

com o conhecimento es-

pontâneo e ideológico. Ela tem a missão de evidenci ar

os pressupostos inconscientes das tradições teóricas. Ora,

este fato de encontrar as condições históricas e socia is. em que se realiza a prática sociológica, para ultrapas sálas, Já é um trabalho específico da crítica epistemológica. Nas últimas

décadas,

fala-se também

de sociologia

«da ciência. Distinta da sociologia do conhecimento, que guardou um caráter especulativo para estudar o problema de uma determinação social do conhecimento, a so»

ciologia da ciência dá preferência às Pesquisas concre-

tas do condicionamento social e dos fatores não-clentíticos concernentes às diversas descobertas clentíficas. Ela

se

interessa

sobretudo

pelo

progresso

da

ciência,

mas

tentando levar em conta as relações entre a ciência e a

sociedade: as consequências que decorrem da ciência, de seus progressos e de suas realizações para a vida so-

cial e sua organização. Não se interessa tanto, como a

sociologia do conhecimento, mento

científico, mas

pelos sistemas do conheci.

pelos próprios cientistas, em suas

condições sociais reais de trabalho. | Daquilo que já sabemos sobre a “natureza” da epistemologia, podemos tirar algumas conclusões: 1. O simples fato de ainda hesitarmos entr e duas

denominações;

filosofia

das

ciências

e epistemologia

(aliás, há várias denominações: filosofia das ciências, teoria do conhecimento, lógica das ciências, episte molo-

gia, etc.), já é revelador da Impossibilidade de estabele-

cermos só

um

estatuto preciso e definitivo pera a episte-

"mológia. Ora falamos de epistemologia (termo que tem

a vantapem de apresentar uma conotação mais “séria” à “cientifica”), ora falamos de filosofia das ciências (Lermo que apresenta a desvantagem de estar carregado de

um sentido menos “sério” ou “literário”). No entanto, essas noções são complementares: a epistemologia guar-

da sua autonomia relativamente à filosofia, mas permanecendo

solidária

a ela numa

integração

profunda.

A.

idéia salutar de autonomia não pode degenerar em pre-

conceito isolacionista, nefasto como todo particularismo ou separatismo absolutos, Por outro lado, não devemos enpajar-nos no sentido oposto, substituindo a autonomia por uma heteronomia desprovida de senindispensável tido. É preciso que contiramos à epistemologia: uma estrutura e um desenvolvimento específicos enquanto ramo do saber, sem no entanto prescindirmos daquilo que cla com

tem de comum

outras disciplinas, inclusive com

a

filosofia.

Portanto, o conceito de epistemologia não tem uma significação rigorosa e unívoca, com um conteúdo 2

detinitivo e aceito por todos os que se interrogam

se constituí uma

como

teoria científica. Qual é o papel, na

prática científica, do contexto social e ideológico? Qual

é a gênese

das ciências?

Qual é sua estrutura?

Como

crescem os conhecimentos? Não existe um quadro comum, onde viriam articular-se harmoniosamente todos

os trabalhos dos lógicos, dos psicólogos, dos sociólogos,

etc, Sua colaboração choca-se quase sempre com obstáculos, sendo o primeiro deles 0 de conceituar sua disciplina.

3.

Não é pois inútil que cada especialista se inter-

rogue, antes de tudo, sobre a idéia que ele faz de sua disciplina. A este respeito, várias questões se colocam. ' Por exemplo,

se

queremos

conceituar

a epistemologia,

87

a questão inicial é a seguin te: de que fazemos a epis te mologia? Em seguida, as ou tras Questões: Quem vai fazê-la? Por que se faz epis temologia? Como ela é feita? E isto porque o ôbjeto de uma disciplina não consiste apenas na matéria própria sobre a qual se aplica seu eg. tudo, naquilo pelo ela se ocupa, mas

que ela se interessa ou naquilo de que em sua intenção, seu de sfgnio ou seu

objetivo, quer dizer, em sua finalidade, em sua destinação e em seu porquê, E sa bemos que não encontramo s hoje a unidade de uma di sciplina na direção de seu objeto, pois toda ciência se dá mais ou menos o seu objeto: é a ciênci

a que constitui e constrói seu objeto pela Invenção de um método, &propr iando-se, assim, de seu dor minão,

é

OQ conceito de epistemologia é, pois, empregado | de modo bastante flexível. Segu

ndo os autores, com seus Pressupostos filosóficos ou ideológicos, e em conf ormidade com os países e os cost umes, ele serve para desi gnar, quer uma fesria geral

do conhecimento (de natureza mais ou rienos Ilosófica), quer estudos mais restritos interrogando-se so

bre a gênese e a estrutura das ciências, tentando descobrir as lei s de crescimento dos co nhecimentos, quer uma análise lógica da linguagem cientí fica, quer, enfim, o exame das condições reais de produç ão dos co

nhecimentos científicos, Qu alquer que seja a acepção que dermos ao termo “epistemologia”, n verdade É que ela não

pode e nem pretende vistas, Não pretende ser um si impor dogmas aos cien. stema, a priori, dogmático, ditando auto ritariamente

O que deveria ser o conh ecimento científico. Seu papel é o de estudar a gênese e à estrutura dos co

nhecimentos científicos. Mais precisamente, o de tentar Pesquisar as leis reais de produção desses conhec

imentos, E ela procura es tudar esta produção dos conhecimentos, ta nto do

ponto de vista lógico, quanto dos pontos de vista linguística, sociológico, id eo.

lógico, etc. Daí seu caráter de disciplina interdisciplinar.

E como as ciências nascem e evoluem em elrcunstâncias históricas bem determinadas, cabe à epistemologia perguntar-se

pelas

sociedade, entre

relações existentes

entre

a ciência e a

a ciência e as instituições

científicas,

entre as diversas ciências, etc,

39

A epistemologia genética de J. Piaget

Como

o esforço

da epistemologia

global, reterente

às clências humanas, está em estreita relação com a conrepção que

Jean Piaget

faz da

própria epistemologia,

parece-nos interessante compreender bem qual o sentido co o alcance dessa epistemologia, As idéias essenciais da epistemologia genética, tal como ela é praticada por

binget, estão expostas

em

três

obras:

Introduction à

Pópistêmologie génétigue (3 volumes, PU.F., Paris, 1950), Logique et connaissance scientifique (Encyclopédie de la Pléiade, Gallimard,

Paris, 1967)

tviences

(Gallimard,

de Fhomme

e L'épistémologie des

Paris,

1970;

tradução

portuguesa da Livraria Bertrand). Podemos tensão,

dizer que & epistemologia genética é a ex-

a todo o campo

das

ciências

humanas,

da meto-

dulogia que possibilitou a Piaget a realização de excelen-

tes trabalhos sobre o desenvolvimento da criança: & forninção do número, o desenvolvimento da inteligência, a aquisição da linguagem, a formação do juízo moral, ete.

A csta extensão, Piaget trabalha hã vinte anos, com o £3

Centro Internacional de Epistemologia Genética de Ge-

nebra.

A

epistemologia

pode,

então,

ser definida

| coma

o

“estudo da constituição dos conhecimentos válidos”, Õ termo “constituição” recobre ao mesmo tempo as “con-

dições de acesso”,

isto é, os processos de aquisição dos

conhecimentos, e as “condições propriament: constitu-

tivas”, quer dizer, as condições formais ou experimentais que dizem respeito à validade dos conhecimentos, e as

condições que dizem respeito, quer às contribuições do sujeito, quer às do objeto no processo de estrutur ação do

conhecimento. Portanto, para Piaget, só há ciência quan-

do estiverem reunidos esses três elementos:

1. elabora-

ção de “fatos”; 2, formalização lóglco-matemática: 3, controle experimental, Por conseguinte, ao lado dos mé-

todos de análise direta tentando; por ocasião da crise de um saber implicando a reformulação de certos con-

ceitos, extrair as condições de conhecimento por simPles análise lógica; e ao lado dos métodos de análise Tor-

malizante, tais como os da empirismo lógico, que examinam a coordenação entre a formalização e a experiência, Piaget interessou-se particularmente pelos métodos de análise genética, que procuram compreender os proce ssos do conhecimento científico em função de seu desen - . volvimento e de sua própria formação: quer segu ndo uma “sociogênese” dos conhecimentos, relativa a seu de-

senvolvimento histórico no interior das sociedades e à sua transmissão cultural (métodos histórica-críticos), quer segundo uma “psicogênese” das noções e estru tutas operatórias elementares constituindo-se no decorrer do desenvolvimento dos individuos, É sobre este uso re-

Hexivo da psicogênese que mais se destacou a contr ibuição de Piaget: procurando fundar a construção de uma estrutura de conhecimento ou de ação em interação com .

as atividades do sujeita constituinte, a Dsicogênese culfg

nitna, de fato, em análises genéticas formalizadas e, por

consoguinte, permite a descoberta de um estatuto científico para as principais estruturas operatórias das ciên-

cias humanas. Assim, requer-se sistematicamente a cotpcração interdisciplinar dos lógicos, dos matemáticos, dos psicólogos e dos especialistas das noções

próprias ao saber

da aplicação técnica

em questão.

Desde o início, Piaget recusa uma epistemologia que sejn filosófica e pretenda constituir uma teoria do co-

nhecimento

impondo-se à priori ao

sistema das ciên-

tias. Para ele, a especulação apresenta dois aspectos: a) o primeiro diz respeito à reflexão filosófica. Esta, por naturcza, é apreciativa, interpretativa, valorizadora. E o homem

sempre quer integrar os saberes objetivos numa

visão de. conjunto que lhe indique seu lugar dentro do mundo; b) o segundo aspecto diz respeito ao esforço

prra se criar modelos incertos do existente nos dominios

em que à ciência se cala. Portanto, a filosofia faz apelo

à certas pontes provisórias entre os domínios controla-

dos pela ciência. Por sua vez, a ciência procura substituir essas pontes, tentando aposentar esse segundo tipo do especulação, que ela tenta progressivamente tomar la filosofia. Porque tudo o que devemos dizer do mundo,

quando isto é possivel, deverá ser dito cientificamente,

q não especulativamente. Embora ligados, esses dois as-

pectos da especulação devem

ser diferenciados, pois só

à primeiro pode assegurar à perenidade da filosofia como axlologia. Portanto, Piaget defende a constituição de uma epis-

tomalogia científica, livre de toda teoria filosófica ou de qualquer contaminação ideológica do conhecimento. Por isso, não

é tarefa da epistemologia,

“9 que é o conhecimento”,

da mesma

perguntar-se

sobre

como

à ta-

forma

tefa da geometria não consiste em se perguntar sobre “o que é o espaço”, A epistemologia deve, pois, consti43

tuir-se cientificamente, procuran do situar-se ir medias res, isto é, em presença das ciê ncias que existem efeti.

vamente.

Ora, as ciências estão

num constante desenvolvimento, E é este próprio de senvolvimento que coloca de modo real

a

questão

epistemológica

fundamental: como o conhecimento científico, quando bem delimitado, proced

eu de um estado de menor conh ecimento a um estado considerado de maior conhec imento? Donde a definição complementar da episte mologia: “o estudo da passagem dos

estados de menor conhecimento aos estados de conhecimento mais Cesenvolv ido

s”, E esta definição Já contém a noção do método gen ético: toda ciência está em desenvolvimento progressivo indefinido de estados sucessivos

de conhecimento, isto é, dev e sempre ser considerado, metodologicamente, como relativo a um certo estado anteri

or de menor conhecimento e como SUsceptível de constituir este estado anterior em referência a um co

nhecimento melhor elaborado. Segue-se que o método genético tem por objeti vo estudar os connecimentos em função de sua construçã o real, bem como considerar todo co

nhecimento como relativo a um certo nível do mecanismo desta construçã o (Intr,, vol. 1, pp, 11-13),

Ora, quando praticamos

o método gen

ético, verificamos que é preciso pensar as ciências, não somente de

um ponto de vista Psicológico no sentido estrito, mas também dos pontos de vista análogos aos ds biologia

estudando os seres vivos e o sis tema da vida. A epistemologia, então, outra coisa não é senão esta espécie de anatomia comparada das estrutura s mentais do sujeito cognoscen

te, Assim, o estudo comp arado das estruturas mentais que intervém no dese nvolvimento científico pode

organizar-se no que Piaget ch ama

de o método “histgrico-crítico”, Todavia, da mesma forma que a biologia associa à histór

ia natural da evolução da vida e à descrição da “filogênese” das grande s formas de organiza-

46

ção da vida, uma embriologia que é o estudo da “ontogênese” individual do organismo

vivo, assim também

a

epistemologia genética tem necessidade de acrescentar, uo primeiro método, um segundo, cuja função é q de constituir uma

embriolagia mental, Esta embriologia da

razão pode desempenhar, relativamente a uma epistemologia genética, o mesmo papel que a embriologia do organismo relativamente à anatomia comparada ou às teorias da evolução, E é deste ponto de vista que a psicocientífica

logia

deve

trazer uma

contribuição essencial

A epistemologia. Em última análise, o método completo

da epistemologia genética é constituído por uma íntima histórico-críticos e psicogené-

colaboração dos métodos

Licos. O que esta colaboração nos permite extrair, no que

diz respeito às noções ou

Intelectuais, é uma

lei de

conjuntos

de operações

construção, isto é, o siste-

ma operatório em sua constituição progressiva. Ora, diz Piaget, só o método psicogenético é capaz de fornecer o conhecimento dos estádios elemantares dessa constituição

progressiva,

O método

meiro. o

rém,

superiores,

alcance

o pri-

por sua vez, só Íforhistórico-crítico,

conhecimento

nece

embora nunca

dos

embora

estádios

nunca

intermediários,

atinja o último

po-

(Ibid,,

pp. 16-15). Ao falar deste método psicológico engajado ná epistemologia, Piaget faz questão de precisar que ele deve

ser uma

“psicologia da ação”, muito mais do que uma

“psicologia

da sensação”,

isto

é, um

estudo

da

gênese

das operações do pensamento e de sua estabilização Jógica. É deste modo que a epistemologia e seu método genético poderão tratar do problema que Piaget declara estar no centro dó método próprio à epistemologia penéLica; à saber, o problema da junção entre ó devir mental e a norma permanente, ou entre a exigência de constan47

- te revisão e a necessidade de apoiar-se em

certa estabi-

lidade normativa. Por “norma”, devemos entender, no caso, aquilo que se impõe como verdade científica e que,

a este título, deve reger o consentimento e a afirmação

dos que são formados na ciência, Depois de criticar as concepções puramente contemplativas

das

normas,

apoiadas

numa

verdade

divina,

transcendental ou intuitiva, Piaget afirma que, do ponto de vista da análise genética, « ação precede o pensamen-

to, O pensamento, para ele, consiste numa composição sempre mais rica e coerente das operações que prolongam

as ações, interiorizando-as, Deste ponto de vista, as

normas

de

verdade

eficacia

das

ações

devem

exprimir,

individuais ou

antes

coletivas:

de

tudo,

a

em seguida,

traduzem. a eclicácia das operações; finalmente, expressam a coerência

do pensamento

formal, Desta forma, q

método genético não pode incorrer na censura de ignorar o normativo, pois, desde a ação efetiva até as operações mais formalizadas, ele segue passo a passo a constituição de normas incessantemente renovadas. Estamos,

assim, diante de uma epistemologia genética que poderá ser

considerada,

para

retomarmos

uma

expressão

que

não é de Piaget, como o estudo da ciência e do pensamento enquanto “prática teórica”. Porque, aquilo que este estudo tem em vista, outra coisa não é senão a ação do pensamento, E é como saber da ação (intelectual e pensante) que a epistemologia deve começar a “operar”, No entanto, ao recusar uma epistemologia que seja

“maculada” porta

aberta

pela presença da filosofia, a um

momento

Piaget deixa

da epistemologia

que,

a a

partir de estudos particulares já feitos a propósito das

diversas ciências, conduz a uma epistemologia peral, que ele chama de “derivada”, As epistemologias especificas,

internas e regionais, devem situar-se umas em relação as outras num campo de conjunto de possibilidades da dg

epistemologia, mesmo que, sendo constituída uma pluralidade de ciências, se coloque o problema de encontrar-

mos

uma

“classificação” das disciplinas e de levarmos

em consideração as interconexões existentes entre as vá-

rias ciências, quer dizer, suas relações interdisciplinares. Piaget foi levado a propor

seu próprio sistema das

ciências, tal como suã prática epistemológica o levon a “construí-lo e & compreendê-lo, comparando-o com outras

Sistematizações do passado ou contemporâneas (Pléiade, pp. 1151-1172). A reflexão que ele faz sobre a prática epistemológica, especialmente sobre sua experiência de psicólogo estudando a gênese das noções fundamentais da lógica e das matemáticas, leva-o a reconhecer uma

maneira de interconexão cíclica entre as ciências e a propor um sistema cíclico das ciências (Tbid., pp. 11721224). Eis, em sintese, seu sistema: me

| CIENCIAS

DA 7

|

CIÊNCIAS

DA

1 LOGICA

E CIENCIAS

I1 CIÊNCIAS

MATEMATIÇAS

DA NATUREZA

FÍSICA

IV PSICOLOGIA

A flecha ascendente

temológico":

à direita indica o “círculo epis-

a Fsicologia pressupõe as ciências da vida,

as ciências da natureza,

etc. Contudo,

au fazer-se epis-

temólogo, o psicólogo deve voltar aos próprics fundamentos de toda ciência, a começar pela Lógica e pelas Matemaáticas.

Porque

o circulo é inevitável e natura!,

nada

tendo de vicioso. Ele é, no nível da ctência, a transposição e a realização concreta do círculo do conhecimento, na medida em que o Sujeito só se conhece por intermé49

dio do Objeto, e só conhece o Objeto atravês de sua at.

vidade de Sujeito, Estamos, assim, diante do que chama de um “círculo vivo”, Trata-se de um tipo cuto que comporta desenvolvimento, crescimento gamento indefinidos. Todo o processo poderia ger nado como uma

temologia

|

Piaget de cire alarimagi-

espécie de espiral, Desta forma, a epis-

genética

permanecerá

essencialmente

“aber-

ta”, E são as leis desta construção circular de conjunto que constituem o “limite” geral dos desenvolvimentos particulares estudados pela epistemologia genética. Foram essas considerações que levaram Piaget a dis-

tinguir dois tipos de epistemologia: epistemologia genêtica restrita e epistemologia genética generalizada. A primeira consiste em fazer uma análise psicogenética gu histórico-crítica

sobre os modos

de

erêscimento

dos

conhecimentos, apoiande-se sobre um aistema de referência constituído pelo estado da saber admitido nc momento considerado. A segunda consiste em estudar o sistema de referência, porém situado dentro de um pro cesso genético ou histórico. Esta concepção pode ser precisada com exemplos, Com efeito, Piaget, com os recursos

de

seu saber

psicológico,

estuda,

com

objetivos

cla-

ramente epistemológicos, a gênese da noção de número

na

criança. Ele faz epistemologia

restrito. Michel Foucault,

genética no sentido

ao estudar em Les mots et les

choses um momento do devir das ciências humanas, faz o estudo da relação existente nos séculos XVII e XVIII

entre o estado de base dos conhecimentos da época

e da cultura

e o que se realiza nas ciências humanas.

para compreender

como, a partir dai, as ciências huma-

nas se constituíram

mente.

Seu

crítico

(ele prefere

E isto,

método,

nas formas que elas têm presente-'

não

psicogenético,

chamá-lo

mas histático-

de “arqueológico"),

pode

ser compreendido como um método de epistemologia ge-

nética “generalizada” (no sentido de Piapet). Porque o | 50

que ele toma em consideração

é o modo pelo qual os tex-

tos do século XVII e do século XVIII, referentes à eco

nomia, à linguagem ..., atestam uma certa visão epistemolópica desses diversos domínios do saber e que não é mais a nossa. O objetivo de Piaget, quando faz certo número de considerações histórico-críticas, é a de rein-

serir as epistemlogias regionais e restritas na perspectiva de uma epistemologia “generalizada”. Esta adquire, cada vez mais, um caráter filosófico ou quase-filosófico,

Esta apresentação sintética da epistemo!ogia genêtica possibilita-nos fazer. algumas precisões:

Toda

1. uma

a obra de Piaget visa a constituição de

epistemologia

de fazer

capaz

a transição

entre

a

Psicologia genéticae a Epistemologia geral, que ele espe-

ra enriquecer pela consideração do desenvolvimento. Sua convicção fundamental é a de que os conhecimentos Tesultam

de uma

construção,

Eles

constituem,

pois, uma

eriação contínua de estruturas sempre novas. Podemos

sintetizar o programa e os métodos dessa epistemologia dizendo que ela é comandada por um duplo imperativo: a) de um lado, visa a garantir a colaboração entre psicólogos do desenvolvimento,

lógicos e especialistas das di-

versas disciplinas científicas que se interessam por problemas de ordem epistemológica: ela é essencialmente

interdisciplinar; b) do outro, visa a reduzir esses proble-

mas a formulações que possam ser tratadas pelos méto-

dos da psicologia experimental, Portanto, trata-se de um

“projeto” eminentemente interdisciplinar que deve subs-

tituir todos os tipas de ensinos compartimentados das

ciências. Para que seja realizado tal empreendimento, é necessário que se estabeleça uma estreita união do Ensino e da Pesquisa, especialmente para a solução dos prohlemas

novos.

Alêm

disso,

é indispensável

que

as pes-

quisas sejam feitas por uma “equipe interdisciplinar”, capaz de realizar uma

colaboração entre as disciplinas oi

e entre os setores heterogêneos

de uma

ciência,

de tal

iorma que haja certa reciprocidade nas trocas e Os pesquisadores venham a enriquecer-se mutuamente, Toda-

via, convém que se distinga um enfoque meramente “multidisciplinar”, de que dependem as aproximações

concretas, das pesquisas

propriamente

res.', Estas, segundo Piaget, exigem um

“interdisciplinanível de abstra-

ção muito elevado, pois trata-se de extrair das ciências

humanas, por exemplo, e não somente algumas integração metodológica,

à.

os seus mecanismos comuns, colaborações episódicas e sem |

Não sendo completamente hostil à Íliosofia, pois

compreende sua necessidade como reflexão valorizadora da relação homem-mundo, e não nega sua lepitimidade ou sua importância (“ela é mesmo indispensável a todo homem completo, por mais cientista que ele seja”), Pia-

get

fica surpreso

com

a fraqueza

das

diversas

teorlas

ilosóficas do conhecimento, pois em geral elas se contradizem, sem haver nenhum critério objetivo que nos permita decidir. Elas permanecem especulativas. Trata-

se do refletir sobre a ciência de modo objetivo, com crité-

“vos permitindo um “controle intersubjetivo”. Diferentemente do positivismo, que empreende uma cruzada contra

todo

tipo

de especulação,

é condena

em

bloco

toda filosofia, Piaget acha que o cientista que não passa

pela filosofia permanece portador de uma “doença Incurável”, E é por isso que ele se insurge também contra O positivismo, que se prende única e exclusivamente aos

fatos “observáveis”, Insurge-se,

culação

que

não seja

capaz

de controle e-de verificação,

também,

contra

a espe-

de fornecer instrumentos

Por isso, Plaget concebe a possibilidade de uma passagem da especulação a uma ciência experimental, no domínio da teoria do conhecimento. Entre a reconstituição especulativa e a teoria cientifica, quando se ha

trata de criar um modelo

dos mecanismos

do conhe-

cimento, ele não vê um abismo, como pretende 0 neopo-

sitivismo. Há, isto sim, um limiar a ser transposto, porque a especulação se elabora a partir de dados que são

tomados de empréstimo a outros dominios. O grande mé-

rito de Piaget,

e que marca

seu nome

na história, é q

de ter criado uma base de experimentação própria para

a epistemologia. Ele conseguiu isolar os problemas con-

cernentes à articulação de base do crescimento dos conhecimentos, e a formulá-los numa linguagem possibiHtando o controle experimental. Fazendo isto, conseguiu

- inventar modalidades de experimentação e subtrair à teorla do crescimento dos conhecimentos à reconstitulção meramente histórico-crítica. Assim, sua psicologia

da inteligência, ou da criança, por mais importante que

ela possa parecer, é apenas um aspecto derivado (e ser cundário) de um empreendimento epistemológico. 3. O que Piaget prova experimentalmente, é que há dois tipos de abstração bem diferentês. Em primeiro lugar, há a abstração

de tipo aristotélico, que

leva em

conta certos aspectos da realidade e descarta outros: ela dá origem a um esquema do existente, mas nunca se transforma em operações de pensamento. Em segun-

do lugar, há a abstração réjléchissante, tendo por função extrair

as estruturas

do pensamento,

os esquemas

asstmiladores e seu funcionamento espetífico. Este se-

gundo tipo de abstração, cujo papel é o de coordenar & organização, liga-se aos dados, da mesma forma: que O primeiro tipo. Contudo, ao passo que & abstração do pri-

“meiro

tipo é uma

assimilação dos dados a estruturas

mentais existentes, a abstração réflêchissante é a própria

organização das estruturas mentais tendo em vista sua

icomodação. Uma é assimiladora e representa o aspecto estático do conhecimento;

presenta

seu

aspecto

a outra é acomodadora e Te-

dinâmico,

Nesta última

abstra53

ção, sião”,

o

Objeto quer

desempenha

dizer,

não

se

o papel inscreve

apenas

tal

de “oca-

qual,

com

suas

qualidades fisicas, neste tipo de abstração , pois esta é uma modalidade de organização, de coo rdenação das

abstrações simples. A coordenação

das ações

do Sujeito

é de caráter lógico-matemático. Ela se prolonga em “ope-

radores”

que efetuam

uma

descentração

relativamente

ão sujeito individual, dando origem ao suje ito do conhe-

cimento, o “Sujeito epistêmico” (aquilo que há de comum nos vários sujeitos individuais ou ego cêntricos). & Piaget estabelece que o ponto de partida do co-

nhecimento

é o

conhecimento

sensório-motriz,

Quatro

níveis irão formar a escala de maturação do esquematismo mental: 1, a ausência de diferenciação entre q atlvi-

dade, rea! ou imaginária, exercida sobre o objeto (reunir, dissociar, ordenar, mudar de ordem, etc. ); 2, as ope-

rações

concretas,

com

diferenciação

dos

dois

aspectos

mencionados; 3. as operações formais, com dife renciação tão forte que as coordenações extrapolam e precedem a realidade experimental, de que se liberam por completo; 4. as construções axiomatizadas, que tra nsformam as

coordenações

reais

em

simples

casos

particulares

das

coordenações possíveis. Portanto, a criança adquire seus conhecimentos agindo sobre os objetos. Faz endo isto, ela não organiza apenas os objetos, mas (me ntalmente e de

modo não consciente) sua própria atividade. E esta é a fonte de duas espécies de organização: « prim eira, re-

ferente ao objeto,

& segunda,

«a ela mesma,

O conheci-

mento se realiza pela dialética dessas duas estruturas de transiormação, e são elas que a inteligê ncia elabora

enquanto é um

prolongamento da ação. Por isso, todo

conhecimento comporta um

aspecto de elaboração nova,

E o problema da epistemologia consiste em conciliar ESSAS criações de novidades com a duplo fato: no plano formal,

as novidades são acompanhadas

og

de necessidades previa-

mente elaboradas; no plana real, elas permitem a conquista do real, quer dizer, da objetividade. Portanto, a epistemologia genética visa a remontar às fontes, isto é,

à própria gênese -dos conhecimentos, pois a epistemologia tradicional só conhecia seus estados superiores. O genética consiste em

próprio da epistemologia

procurar

descobrir e extrair as raizes dos diversos conhecimentos,

desde suas formas mais elementares, e seguir seu desen-

volvimento através dos níveis ulteriores, até o pensamento científico inclusive. No fundo, o próprio Plaget confessa que sua epistemologia é “naturalista” sem ser “poa atividade do sujeito sem

que elã evidencia

sitivista”;

ser “idealista”; que ela se apóia sobre o objeto, mas considerando-o como um limite. O importante é que ela deve ver no conhecimento, sobretudo, uma construção continua. 5.

Diferentemente da epistemologia lógica, que utl-

liza métodos

estritamente

estudo da linguagem gras reto

formalizantes,

para fazer um

clentífica e uma pesquisa das re-

lógicas que devem presidir a todo enunciado cor(positivismo anglo-saxônio); e diferentemente da

epistemologia histórica, que privilegia as métodos histórico-críticos para a elucidação da atividade científica a

partir de uma análise, não só da história das ciências e de suas revoluções epistemológicas, mas das próprias démarches

do

Foucault),

espírito

científico

a epistemologia

objetivo central

(Bachelard,

Canguilhem,

genética de Pínpget tem

a elucidação

da

atividade

por

científica &

partir de uma psicologia da inteligência. Esta orientação

epistemológica recebeu por caúção uma enorme quantidade de pesquisas experimentais acumuladas pelos psicólogos há quase um século. Ela encontrou em Piaget e em

seus

colaboradores

meticulosos mas

de Genebra

realmente

intérpretes

competentes.

Qual

não



a ótica

dessa “escola”? Não se trata, de forma alguma, de acei-

5a

tar o fato da linguagem científica ou comum, a fim de se medir sua validade relativamente à sua simplicidade , | à sua coerência, à sua exaustividade ou aceitabi lidade banal. A epistemologia genética não hesita em pergun-

tar-se como a inteligência se constrói, desde os prim eiros agenciamentos práticos e perceptivos da criança “trabalhando” sobre um objeto ou sobre o domínio de suas coordenações corporais, até a elaboração dos conceitos que estão na origem dos conhecimentos da físic a, da matemática, ete,

6.

O que mais poderia ser contestado à epistemolo-

- gla de Piaget é o fato de ela ser, paradoxal mente,

pro-

fundamente kantiana. Kant, com efeito, para justificar & física elaborada por Galileu e Newton, no fim do sé-

culo XVIII, construiu toda uma teoria do conhecimento

procurando evidenciar o fato de que o objeto conhecido

seria ao mesmo

tempo

um

dado

e um

construído.

Na

* perspectiva kantiana, haveria o dado (o irre versível) que somente a experiência podia cernir, sem jama is poder reduzi-lo por completo, Por outro lado, haveria também uma organização prévia, « priori, inconsciente deste dado,

proveniente da natureza mesma

do sujeito cognoscente.

Ora, o estruturalismo genético e construtivis ta de Piaget

parece es.orçar-se por determinar experi mentalmente as

condições reais em que se constról tel sujeito cognoscen-

te, Para

tanto, ele luta

contra

“as sabedorias

e Ilusões

da filosofia”, pois estas se dão arbitrariamente uma conHiguração da relação Sujeito-Objeto afirmada com o eter-

ha, como se ela pertencesse ao mesma tempo R uma ofdem preestahelecida da natureza e do próprio homem,

Por isso, Piaget tenta mostrar como, geração após peração, a filosofia se construiu a partir de uma experiên. cia comum elementar. O exemplo que ele toma é a noção

de causalidade, Ele afirma categoricamente que esta no-

ção não pode ser nem inata, pois não pertence à essência

568.

do espírito huniano,

nem

pode

ser o resultado

ou

cfeito

que a ordem natural impõe a uma consciência autêntiea. À causalidade é o resultado de um longo trabalho operado pela criança, em seus gestos, em suas palavras, em suas coordenações

sensório-motrizes e, posteriormen-

te, psicolingúísticas. E não são pouces

as experiências

invocadas por Piaget para comprovar este fato. O que ele pretende mostrar é que é a inteligência que se monta, que se estrutura a si mesma, na dialética dos ensaios

e dos erros, nas retificações que introduzem as diferenças, nós fracassos que fazem surgir as contradições e nas sinteses que promovem os progressos, E é esta inte-

ligência que está na origem mesma da atividade cienti-

fica. Os conceitos fundamentais da ciência têm por cousa real os movimentos

de exploração da criança. É nesses

movimentos que ela procura reconhecer-se para definirse e poder agir.

7. cias,

Apesar do número impressionante das experiêncada

uma

sendo

convincente,

quando

tomada

de

per st, temos o direito de nos perguntar: afinal de contas, de que se trata? E daí? Piaget responde que se trata

“de mostrar

que

todos

os conceitos

determinantes

das

ciências passadas, presentes e futuras devem inscreverse numa necessidade psicológica, experimentalmente

controlável, contanto que se adotem bons critérios de experimentação e de controle. Sem dúvida, é muito inte-

ressante sabermos como uma criança, hoje em dia, chega a conhecer a noção de causalidade. É até muito útil para aqueles

que

se ocupam

de psicopedapogia

dicam ao ensino. Todavia, podemos

e que

perguntar:

se de-

em que

tudo isso pode esclarecer o funcionamento da ciência ou da nãó-ciência? De que adianta o deslocamento blema para a criança “manipuladora”? Rebaixar blema ao nível da atividade pueril explica tanto eleválo o nível da metalinguagem, quer dizer,

do proO pro- ' quanto pouca 57

coisa. Os homens, em suas atividades sociais racionais, não podem ser considerados como “erianças prandes”, como

as crianças não podem

ser tratadas como

“peque-

nos aduitos”, Eles são produtos sociais. A cultura não se deixa reduzir, nem pela inscrição lógica ou lingiística, nem por sua origem biopsicológica. Tanto à epistemolo- gia lógica quanto a genética deixam sem solução o problema

eo da

essencial do conhecimento

do funcionumento “ordem”,

dentro

do

científico:

o do iugar

das pesquisas cientificas dentro contexto

sócio-cultural

vigente,

em que se situam as sociedades elaboradoras desse conhecimento, Essas pesquisas se integram, de modo dis-

paratado, em todas as formações sociais e em todos os tipos de poder: elas participam ativamente do desenvolvimento das

sócio-político-econômico

lórças produtgras

e formam,

(real

ou

aparente)

assim, o eixo de nossa

modernidade, de nossa racionalidade contemporânea, 3

Embora a epistemologia de Plaget seja uma ten-

tativa de superar o positivismo sob todes as suas formas, não podemos negar que ela se inscreve no prolongamen-

to da tradição positivista que, nó domínio

da teoria do

conhecimento, pretende elaborar uma

"ciência da ciên-

cla" ou uma “ciência” da organização

do trabalho clen-

tífico, batizando com o nome de “epistemologia clentifiça” esta teoria do conhecimento preservada de toda contaminação filosótica. Ela seria interna, porque nas» ceria no próprio interior da atividade científica, Ora, aceltar a “cientificidade!" da epistemologia, é aceitar, conscientemente ou não, a possibilidade de se criar uma “ciência da ciência”, uma metaciência que se situa num nivel superior relativamente à clência que toma por objeto, O pressuposto filosófico, presente no projeto de qualquer “ciência da ciência”, não pode ser dissimulado:

o simples fato de se justificar a utilidade pedagógica e 58

social de uma “epistemologia

científica”,e de procurar-

se definir seu estatuto científico, já é uma

losófica, Talvez possamos quai os próprios empiristas

atividade

fi-

encontrar aqui a razão pela consideram Piaget, ora como

“necmaturacionista”, ora, como “neo-ambientalista”, porque sua epistemologia ignora, sistematicamente, os fatores sócio-culturais na determinação das condutas e considera que

o desenvolvimento

do conhecimento

se pro-

cessa unicamente a partir “do interior” da própria ciência. À esta acusação, Piaget reage dizendo que não é nem uma

coisa

nem

resultam de uma Quanto

processo apenas

às

de

outra,

pois

que

os conhecimentos

erlação continua de estruturas novas.

condições

sócio-culturais

conhecimento,

“ocasião”

acha

de

influenciando

no

Plaget estima que. elas são

funcionamento

dos

conhecimentos,

portanto, de seu desenvolvimento, Para ele, a função pri-

mordial da inteligência é de compreender e“de inventar, isto é, de construir estruturas, estruturando o real. O

problema da inteligência liga-se ao problema fundamental da epistemologia: mostrar que os conhecimentos não constituem

cópias do real

(positivismo),

mas

assimila-

ções do real a estruturas de transformação. É por isso que o conhecimento deriva das ações, quer dizer, de uma

assimilação do real às coordenações necessárias e gerais da ação. Porque conhecer um objeto é agir sobre ele e transformá-lo para se descobrir es mecanismos dessa

transformação, em ligação com as ações transformadoras. Contudo, é um fato que Piaget não fornece elementos para se analisar o papel real desempenhado pela

ciência nas diversas coletividades em que ela se insere, Ele parece considerar a ciência como se pudéssemos ter

dela uma definição “neutra”, Sem dúvida, ela é uma pesquisa metódica do saber. Mas tarnbém é um modo -de se interpretar o mundo. É uma instituição, com suas academias, seus grupos de pressão, seus preconceitos & so

suas recompensas oficiais. Por outro lado, é um métier, exercido em condições do trabalho científico onde apare-

cem problemas sociológicos e políticos. Não há “ciência” autônoma,

pura, absoluta, Há uma racionalidade cientí-

fica. Mes a “razão” científica não é imutável. Suas normas

são

históricas

e condicionadas

e, por

isso

mesmo,

evoluem, O cientista também se serve de sua imaginação, E não está absolutamente

no abrigo de toda conta-

minação ideológica, nem tampouca das pressões sociais, dos desvios passionais

ou das

modas.

As pesquisas

de-

pendem hoje de um ministério, estão intimamente ligadas à indústria, são financiadas por organismos nãoneutros, Não se pode mais fazer ciência com a boa cons-

ciência de um filatelista. Nem tampouco se deve crer que os problemas “morais' da ciência se reduzem & casos bem delimitados. Não se pode negar mais que as pesquisas científicas estão substancialmente integradas à Socledade. Por isso, a questão que se coloca não é mais: “em que pé anda a ciência?”, mas: “onde está a ciência?” Relata-se, demonstra-se, prova-se, no interior de dispo-sitivos já fixas, sendo o critério a alternativa: verdadefalsidade, Q problema parece formulaz-se hoje essim: quem diz? quem demonstra? quem prova? por quê? E para quê? |

bo

À

epistemologia

histórica de G. Bachelard

Para compreendermos o projeto epistemológico de G. Bachelard, é indispensável que situemos seu pensamento dentro do contexto em que se constroem as ciên-

cias hoje em dia. Porque toda a sua obra estã marcada por uma reflexão sobre as ilosofias implicitas nas práti-

cas efetivas dos cientistas. Numa palavra, o projeto de

Bachelard consiste “em dar às ciências a filosofia que elas merecem”. Não podemos negar que vivemos um momen-

to de triunfo da ciência, Por outro lada, assistimos hoje a um

verdadeiro questionamento da ciência, Poderá ela

trazer a felicidade para o homem? Está em condições de vencer o sofrimento? Os benefícios que ela proporciona não estariam em grande parte anulados pelas desgraças que engendra? Afinal, o que vem a ser 4 ciência? Quais são seus métodos? Qual o valor dos resultados que

ela atinge? Não é um fato evidente que ela aliena O homem? Estas e cutras questões entram no campo de investigações da epistemologia. Uma reflexão séria sobre a 63

ciência não pode deixar de constatar que é algo extremamente

fazer ciência

difícil: ela se desenvolve com uma

força explosiva e o homem

atual 4ncontra-se, cotidiana-

mente,

oriundas

diante

de

técnicas

mental”, e que, fundamentalmente,

da ciência

“funda-

ele não comprsende,

Tsta constitui para ele uma causa de profunda humilhação.

O homem

comum

nada

sabe

do que

se passa

no

reino da ciência, a não ser certas “informações” mais ou menos neo-esotéricas que se divulgam em publicações

onde encontramos uma mescla de magia, de pseudociência e de charlatanismo. E é por causa dessa humilhação diante do poder da ciência que o homem comum se entrega a todos cs tipos de compensações mais ou menos douradas

ou

rotuladas

de

científicas.

Por

outro

lado,

tudo iúdica que, diante da ciência objetiva, o homem comum é um estrangeiro. E não são poucas as teorias clentíficas que tentam mostrar que o homem ocupa um lugar apenas infiniteslmal no universo, e que este lugar nem

mesmo

é necessário, mas

apenas casual. Enfim,

po-

demos constatar um kiato crescente entre o conhecimen-

to objetivo de teoria

(clentífico) e toda espécie de sentimentos ou dos valores,

Por definição,

a ciência ignora

os

velores. Portanto, não pode conhecê-los. Nem tampouco | preocupa-se

com

a imaginação

pode

nem

ética,

haver

nem

criadora.

estética

Por isso, não

objetivas.

E como

a ética e a arte são indispensáveis ao homem, são os filósofos e os “literatos” que vão elaborá-las, não os clen-

tistas. Neste nível, os cientistas não conseguem propor soluções objetivas fundadas na ciência. Todavia, todo conhecimento

científico,

embora

não

funde

uma

ética

ou uma arte objetiva, funda-se numa ética, cujo critério

fundamenta! não é o homem, mas o próprio conhecimento objetivo, E foi esta ética, da felicidade Individual e do máximo conforto, que criou a ciência moderna. 64

Donde a importância da atividade epistemológica, cujo papel é o de refletir sobre os métodos, a significação cultural, o lugar, o alcance e os limites do conheci-

mento científico. Diria que uma das funções essenciais da filosofia, hoje em dia, é a de construir uma epistemo-

logia. Temos atualmente várias epistemologias. Em primeiro lugar, hã toda uma corrente epistemológica que poderiamos chamar de lógica: ela visa ao estuda e à construção

da linguagem

científica, bem: como uma in-

vestização sobre as regras lógicas que presidem

a todo

enunciado científico correto (positivismo anglo-saxônio). Em seguida, há toda uma escola que se propõe a elucidar a atividade cientifica a partir de uma psicologia da inteligência: a epistemologia genética, tal como ela é praticada por Piaget, Enfim, hã uma corrente que se propõe muito mais a uma análise da história das ciên-

cias, de suas

revoluções, bem

como

das démarches

do

espirito científico. É nesta última categoria que devemos situar 4 epistemologia de Bachelard, bem como a de G. Canguilhem.

Antes, porém,

de entendermos melhor o projeto de

Bachelard, vejamos o clima intelectual em que ele piu. O próprio Bschelard costumava dizer, em seus sos na Sorbonne, que a epistemologia consistia, no do, na história da ciência como ela deveria ser

surcurfunfeita.

Queria

capaz

dizer, com

isso, que

toda reflexão

efetiva,

de estabelecer o verdadeiro estatuto das ciências formais lógica e matemática) e das ciências empírico-formais (ciências

Íísicas,

biológicas

e sociais), deve

ser necessa-

riamente histórica, Contudo, para que esta história possa fornecer uma real inteligibilidade, é preciso que seja

regressiva. Quer dizer, para compreendermos

uma ciên-

cia do passado, devemos nos situar nos pontos de vista ulteriores. Não querendo construir uma epistemologia a priori, dogmática, impondo autoritariamente dogmas 85

nos cientistas, Bachelard se opôs a A. Comte, sobretudo quando este pretendeu coordenar as diversas ciências é indicar-lhes os caminhos definitivos a seguir. Bachelard

se propôs a construir uma epistemologia visando à pro-

dução

dos conhecimentos

aspectos:

lógico,

ciências nascem

científicos

sob

ideológico, histórico...

todos

Para

os seus

ele, as

e evoluem em circunstâncias históricas

bem determinadas. Por isso, a epistemologia deverá inter-

rogar-se

sobre

as relações

susceptíveis

de existir

entre

a ciência e a sociedade, entre a ciência e as diversas ins-

tituições científicas cu entre as diverses ciências, O que importa é que se descubram a gênese, a estrutura e 0 funcionamento dos conhecimentos científicos. Donde a

relevância des questões: devem as ciências impor-se por

si mesmas? Devem afirmar clara e triunfalmente seus resultados? São elas a verdade das sociedades atuais? Não seria evidente sua virtude? Que necessidade temos

de nos interrogar sobre sua significação?

- Se tais questões são hoje válidas, é porque o positivismo do século XIX as considerava supéríluas. Com efeito, considerava as ciências, tanto em sua forma quan-

to em seu conteúdo, como constituindo a própria verdade. Não poderiam ser julgadas, pois justificavam-se a sl

mesmas, A doutrina positivista, cujo fundador fol A, Comte (1798-1857), teve profunda influência na ciência posterior. Ela é constantemente retomada sob novas Tormas. Pode ser expressa, de um ponto de vista flosófico, pela confiança excessiva que a sociedade industria! depositou na ciência experimental, Embora pretenda negar toda filosofia, ela elabora uma verdadeira filosofia, da

- ciência, cujos princípios poderão ser resumidos nas seguintes afirmações: a) as únicas verdades à que podemos e devemos nos referir são os enunciados das ciências experimentais: trata-se de verdades claras, unívocas

e imutávuis; b) todo e qualquer outro tipo de juízo deve 66

"ser ahandonado como sendo teológico ou filosófico; c) a

função das ciências experimentais não é a de explicar os fenômenos,

mas a de prevê-los,e de prevê-los

para do-

miná-los; o que importa não é saber o “porquê”, mas “como”

das

ciências; d)

boçaria, para

o aparecimento

a humanidade,

um

mundo

0

da ciência csinteiramente

novo, possihititando-o viver na “ordem” e no “progresso”.

Partanto, para Comte, reduzido

a uma

função

o papel da filosofia ficaria

de: síntese

pregação moral, Todavia,

não tardou

vulgarizadora

e de

a serem mostrada:

as insuficiências filosóficas do positivismo, A primeira reação foi a das teorias espiritualistas, que tentaram estabelecer um modus vivendi: a filosofia admitia a validade da atividade científica como conhecimento e como

dominação da natureza. No entanto, ela se reservaria a outra parte, muito mais

“nobre”, que seria a determina-

ção dos fins em função do conhecimento bem mais profundo

que ela pretendia fornecer da natureza

humana

e

da espiritualidade real. E foi assim, dentro deste contexto, que foi construída o que hoje chamemos de “meto-

dologia das ciências” como disciplina universitária:

de

um lado, situava-se uma lógica geral, que procurava atualizar os textos de Aristóteles; do outro, uma explicação passiva da atividade científica. Dai para cá, houve toda uma tentativa de mostrar que a ciência, em seu pro-

jeto unitário de “salvar os fenômenos”, teve êxitos crescentes, mas que ela continuava incapaz, por natureza, de compreender o essencial desses fenômenos. E foi nes-

ta linha que se inscreveu Bachelard. Surgiu, assim, a epistemologia como o produto da ciência criticando-se a si mesma. Para Bachelard, a verdadeira questão diz. respeito à força e aos poderes da ação racionalista. Mas, «o mesmo

tempo,

à força

e Ro poder

da

atividade

cria-

dora e poética.

e

A obra deste filósofo, historiador das ciências e epistemólogo (1884-1962), de. formação

química, tem uma dupla vertente: uma científica, a out ra poética. Embora

não devam ser confundidas, podemos enc ontrar nelas uma uni

dade de inspiração, a partir da idéia de que o

tempo só tem

mento

uma renlidade:

é, por essência,

a do instante. O conheci-

uma obra temporal. Bachel

ard Tetoma a idéia que Bergson se fazia do instante. Este concebia 0 ser como devir, como duraçã o. A duração era a única realidade (substância) ver dadeira, A duração

humana

é continuidade.

Temos dela uma experiênc

ia intima e direta. Assim, somos a cad a instante à conden-

sação da história que vivemos. Não há esq uecimento absoluto. Não há ruptura em nossa vida: O presente é repleto do passado e “prenhe” do futuro. Todas

ças são conservadas,

as lembran-

Para Bachelard, o instante é algo inteiramente di. Terent e. Ele é trágico, pois só pode renascer com a condi-

ção de morrer. O instante já é solidão, que nos Isola de

nós mesmos e dos outros, pois rompe com q nosso passado mais caro. E o tempo é à consciência dessa solidão, Don-

de a coragem impor-se como a necessidade de luta con-

tra a solidão. É assim que temos acesso aos homens Fa

às coisas, Nós somos nossa decisão, Nossos val ores se inscrevem no término de uma ação pela qual nós faze-

mos os instantes que vivemos, quer dizer, nosso tempo. Devemos nos definir pela tendência que tiverm os de

nos ultrapassar e de nos transformar. Dois cam inhos se apresentam: de um lado, a ciência e a técnic a vencem

a solidão criando um prolongamento de nós mesmos e uma sociedade; do outro, & poesia e à imagin ação libertam-nos da servidão da história e das referê ncias da memória, para fazer-nos descobrir homens e coisas, O ho-

mem

é 20 mesmo

tempo Razão

e Imaginação.

Não há

ecletismo, mas dualismo ascético, Por isso, a obra de Ba- 68

chelard

se apresenta

como

uma

dupla pedagogia:

da

Razão e da Imaginação. Não devemos confundir essas pedagogias:

há o homem

diurro da ciência e o homem

o

noturno da poesia.

Da vertente científica da obra de Bachelará, devemos reter que a ciência não é representação, mas ato, A noção de espetáculo precisa ser eliminada. Não é contemplanda,

mas

construindo,

criando,

produzindo,

reti-

ficando, que o espírito chega à verdade. É por retificações continuas, por críticas, por polêmicas, que a Razão descobre e faz a verdade. Fara a clência, o verdadeira é o retificado, aquilo que por ela foi feitó verdadeiro, aquilo que foi constituído segundo um procedimento de au-

toconstituição. É por isso que a racionalidade científica só pode ser regional, e é por um lento processo de integração, pontilhado pelas revoluções científicas, que se constitui o império da Razão. Não-platônica e não-kantiana, à filosofia de Bachelard considera a verdade como nosso produto, que não faz redundância com um modelo absoluto de verdade, mas que se volta para seu animador,

levando-o a perceber seus próprios enunciados como obstáculos à compreensão. Porque os verdadeiros obstáculos

da ciência não são os conhecimentos do “senso comum”, mas

os sistemas

relativamente

coerentes

de pensamen-

tos generalizados abusivamente. Um pensamento cientáfico não é um sistema acabado de dogmas evidentes, mas uma incerteza peneralizada, uma dúvida em despertar,

de tal forma

que

o cientista

é necessariamente

um sujeito. descentrado e dividido, ligado à sua prática mas, ao mesmo tempo, distanciado dela. Assim, o conhecimento, deixando de ser “contemplativo”, torna-se operativo. Ele é uma operação. A ciência cria seus objetos próprios pela destruição dos objetos da percepção comum, dos conhecimentos imediatos. E

é por ser ação

que a ciência é eficaz. Devemos

passar 69

por ela para agirmos sobre o mundo e poderm os trans. formá-lo. E o progresso do espírito clentífico se faz por rupturas com o senso comum, com &s opiniões primeiras ou as pré-noções de nossa filosofia espontânea. A ciên-

cia, como o homem, não é criação da necessid ade, mas do desejo, Por outro lado, ela é intervenciontste , Por isso,

deve ser feita numa comunidade de pesquisas e de criti-

cas, para não se tornar totalitária. E é por isso que Bachelard substitui o Cogito cartesiano por um Cog itamus.

Um homem só, diz ele, é uma péssima companhia, Apr endemos sempre. E o mestre deve sempre fazer-se ajuno.

Eis o princípio que fundou (1938) aquilo que hoje chamambs de Educação permanente: “Uma cultura bloqueada num tempo escolar é a negação mesma da cultura

científica.

Só há

ciência por uma

Escola permanente.

E esta Escola que'a ciência deve fundar. Entã o, os inteTêsses sociais se invertem: a Sociedade será feit a para a

Esco'a, e não mals a Escola para a Sociedade”,

Portanto, a obra de Bachelard é uma dupl a revolução, uma visa a filosofia da descoberta científi ca; a outra, a filosofia da criação artística. Por seu Ensaio sobre

o conhecimento aproximado

(1928), ele funda a episte-

molopia como “eiência” respeitada, através do estudo sistemático do modo coma os conceitos de “verdade” e de “realidade” deveriam receber um sentido novo, Sua

dialética é uma “dialética da não”, A negatividade identifica-se com o movimento de generalização reor ganizadora do saber, pela qual as contradições são superadas como ilusões de oposição, Contudo, o que é ilusão de oposição conceitual,

é um

conflito real na

prática hnis-

tórica dos cientistas. A verdade não é uma qual idade que pertenceria a esta ou'âquela opinião particular, mas o

resuitado da negação mútua das opiniões num” conf lito entre os produtores de idéias. A ciência é obra do homem.

Seus 70

objetos são

“perspectivas

de

idéias”.

Todavia,

a

.

ciência engloba seu próprio produtor c faz dele um meio universal.

O traço mais típico dessa epistemologia consiste em ser ela “polêmica”. E o princípio dessa polêmica deve ser buscado nos transtornos e embaraços por que passa a história das ciências, Seu objetivo central é a “refor-

mulação” do saber científico e a “reforma” das noções

filosóficas. Dando-se por objeto o conhecimento em set! movimento,

em

seu

fieri,

a epistemologia

se

interessa

pela lógica da descoberta. científica da verdade como polêmica

contra o erró e como

esforço para

submeter

as

verdades aproximadas da ciência e os métodos quê ela emprega a uma retificação permanente. Em outros tcrmos: uma disciplina que toma o conhecimento cientítico como objeto de investigação deve levar em conta a histo-

ricidade desse objeto, Melhor ainda: verá aplicar-se, não mais nhecimento,

à ciência

a epistemoiogia de-

à natureza é ao valor do co-

feita,

realizada

e verdadeira,

da

qual se deveria apenas descobrir as condições de possi-

bilidade, de coerência cu os títulos de sua legitimidade, mas às ciêficias em vias de s2 fazerem e em suas condicões reais de crescimento. A filosofia, enquanto comporta uma teoria do conhecimento,

deve definir-se por seu iugar em relação ao

conhecimento científico. Bachelard crítica as filosofias que utilizaram certes conceitos (de realidad, de espaço, dê tempo...) como se as ciências nada houvessem dita

sobte eles. Por outro lado, ele pensa que a filosofia, quan-

do ela toma a ciência por objeto, visa uma ciência ideal,

muito diferente das que existem efetivamente. Ora, diz “ele, a filosofia não tem objeto. Ela tem o objeto dos ou-

tros. E é por isso que ela deve determinar-se por sua distância relativamente ao conhecimento científico. Este desempenha o papel de um eixo das diversas formas de filosofia

(no

alto:

idealismo,

convencionalismo e forma-



lismo;

embaixo:

positivismo,

empirism

o e realismo). A essência da filosofia só pode ser determinada do ponto

de vista do eixo, isto é, de um ponto

de vista não-filosótico. Em outros termos, é o elx o que dá à filosofia um conteúdo e determina

Sua

natureza.

O

que Bachelard . pretende mostrar é que a ciência contemporânea obri. S0U-NOs & renunciar à preten são de um saber universal, O filósofo retoma, de outro mado, o projeto que outror a foi O seu: compreender a relação do homem com seu saber. Esta relação é a Teco rrência reflexiva da histária do verdadeiro. Me

movimento

ditar

próprio,

sobre

também

a ciência

atual,

é compre

sobre seu

ender seus erros do passado. É neste sentido que a verdade só adquire seu pleno sentido no términ o de uma polêmica contra OS eITOs passados. E é por iss o que não há verdade primeira, apenas erros primeiros ,

“Pela introdução da noção de ruptura epistemotógica, Bachel ard se opõe às tradições pos itivas.

que se reconheça

E preciso

que, nos fatos, há ciências coexistindo

com ideologias. Donde a im portância de uma filosofia que, longe de ser uma repr esentante das ideologias jun to às ciências, ideológicos

terá Por missão neutralizar os discursos e impedir, assim, na medi da do possivel, o

aparecimento dos obstáculos, Pelo menos, esta filosofia terá por função distinguir, nos discursos científicos, aquilo que pertence à- prática cie ntífica daquilo que provém

das ideologias, Donde a função de vigilância, atribuída por Bacheiard a esta nova epistemologia. Ao acompanhar os

progressos do pensamento cie ntífico, ela terá a Preocupação constante de isolar, na prática científica, os intere

sses ideológicos e filosóficos.

sustenta todo q “projeto” de Bachelard

E o conceito que &

o de obstáculo epistemológico, que designa os efeitos sobrea prática cientifica das relações que o cie ntista mantém com ela,

O obstáculo

fa

aparece no momento

da constituição do co-

nhecimento sob a forma de um “contrapensamento”: posteriormente, como “parada do pensamento”, isto é,

como uma resistência ou inércia do pensamento ao pensamento.

Certas

filosofias constituíram-se

em

veículo e

em suporte dos obstáculos, polis são elas que estruturam

a relação do cientista com sua práites. Em ontros termos: se o pensamento científico é eminentemente progressivo, e se sua démarche é feita através de suas próprias reorganizações, diremos que o obstáculo epistemológico aparece todas as vezes que uma organização da pensamento preexistente encontra-se ameaçada. Por conseguinte, sendo o conhecimento concebido como uma “produção histórica”, a episterriologia visa um

processo. A filosofia aí está presente. Mas é a epistemologia que tenta descobrir aquilo que as filosofias dos filásotos teimam em recobrir: os valores idenlógicos que in-

tervêm na prática clentífica. Seu papel histórico fundamental consiste em “dar à ciência a filosofia que ela merece”. Todavia trata-se, agora, de uma filosofia aberta e móvel, que renuncia à forma sistemática,

a seu espaço

fechado e ao imobilismo para arriscar-se, ao lado dos cientistas, nos campos

novos do pensamento.

Donde se con-

clui que o objeto da filosofia das ciências tem que ser um objeto histórico. Toda ciência deve produzir, a cada

momento de sua histária, suas próprias normas de verdade e os critérios de sua existência, Isto não significa

que todo conhecimento seja relativo, mas que a ciência se constrói através da descoberta de “verdades” constantemente retificadas e aproximadas. Resulta, então, que a epistemologia é indissociável da história das ciências, quer em seu aspecto “sancionado” (história daquilo que é “cientifico”. na prática científica), quer em seu aspecto “superado” (história do “não-científico” na prática das ciências).

É esta nova epistemologia que. Bachelard pretende fundar. Trata-se de uma filosofia das ciências que, em 73

matéria de teoria do conhecimento, não prop õe mais soluções fi'osóficas para problemas científicos já supe rados. Trata-se de uma filosofia aberia, que não enco ntra

mais em

si mesma

as “verdades primeiras”, nem

tam-

pouco vê na identidade do espírito a certeza que garante um método permanente e definitivo. O que deve ser aban-

donado

é uma filosofia que coloca seus principios como

intangíveis e que afirma suas verdades primeiras como totais e acabadas, O filósofo não pode ser o homem de uma só doutrina: idealista, racionalista ou positivi sta. Porque a ciência moderna não se deixa enquadra r numa

doutrina exclusiva, O filósofo não pode ser menos ousa -

do e corajoso que os cizntistas. O empirismo precisa ger compreendido. Por qutro lado, o racionalismo precisa

ser aplicado. É isto que faz o progresso filosófico relati.

vemente às ciências, Não há nenhuma intenção, em Ba-

chelard,

de humilhar

as filosofias,

Ele quer apenas

acor-

dá-las de seu “sono dogmático”, para nelas susc itar o desejo de revelorizar sua situação em relação às ciências

contemporâneas. Ele quer dar à filosofia a chance de

tornar-se contemporânea das ciências. Porque a determi-

nação específica da filosofia deve definir-se por sua Telação com as ciências. Ela se define nesta e por esta intervenção, tentando descobrir as condições reais e his-

táricas da produção des conhecimentos científi cos.

O que devemos reter da vertente poética da obra de

Bachelard? A poesia, ou melhor, as poesias, porque há formas de poesia que são outras tantas corr espondên-

cias antitéticas das formas do pensamento racional, são outro modo de se vencer a solidão do instante . A liberdade poética enraiza-se na necessidade do “eu” , da mesma forma como a necessidade da “verdade ” científica so pode aparecer naquele gu: tomou uma liberdade, uma distância relativamente ao “eu” sonhador. A ima-

ginação não é uma faculdade entre outras. Ela é O poder TE

constitutivo radical que nos afirma como sujeltos « os fenômenos como objetos. A imaginação é para à poesia o que-o trabalho é para o pensamento: sua infra-estrutura fundamental. Assim como o trabalho de pesquisa gera o pensamento, da mesma forma a imaginação gera o charme poético. Em ambos os casos, a consciência sai da inconsciência através da mediação de uma tematiza“cão do implícito. A consciência de si é nosso retorno finito a nós mesmos pela tematização das imagens simbó-

licas elementares dos objetos da natureza. Ao passo que a consciência exata de objetividade é um caminho infinito que nos liga à natureza das coisas pela tematização dos atos operatórios, pelos quais garantimos seu esta-

tuto. Todo aquele que se esquece

dessa tensão e dessa

dualidade da imaginação em nós, ou se dedica exclusivamente saber

à poesia,

apegando-se

às formas

arcaicas

do

(como os que se ocupam com astrologia ou magia),

ou então se consola com sua própria ignorância cientifica, pretendendo que :a poesia é a mais alta forma de saber.

No entanto, para vencer a solidão do instante, a poesia vai atê mais longe do que a ciência, pois ela aceita o que ele tem, de trágico. Há uma agonia do instante, Agonia que é uma exaltação. Contra o tempo horizontal que corre de modo monótono, Bachelard escolhe o tempo que se verticaliza na descoberta poética. Ao invés de

reter o instante e dizer-lhe; “pára, tu és belo”, a poesia se exalta com sua deteriorização, pois este é o preço da

novidade. Desta análise, surgiu toda a crítica literária moderna,

crítica criadora,

Diferentemente

das

metáfo-

ras, que tém por objetivo transmitir um pensamento interior, um pensamento já feito, a imagem é criadora de pensamentos. Causa, e não efeito, a consciência imaginadora é uma origem. Ao denunciar o objetivismo que reduz a imagem a um retrato em miniatura, Sartre admifo

tiu, no entanto, que ela evoca um ser ou um objeto como

ausentes. Segundo Bachelard, ao contrário, a ima ginação é energética:

ela é anterior à memória. Sob a imagem,

a psicanálise procura a realidade. Todavia, ela se esque -

ce da procura inversa: buscar a positividade da imagem sobre a realidade. Porque a imagem não pode Jembrar antigos arquétipos inconscientes. Ela é umá espécie de

movimento sem matéria que se enraiza na experiênci a

material elementar, Os “elementos”, água, ar, terra, fogo,

desempenham homem

|

um

papel essencial na vida interior do

e, por conseguinte, em sua expressão poética.

k a imaginação que nos faz mergulhar na profundidade das coisas. Ela-nos faz descobrir as forças vivas

da natureza. Ao libertar-nos de tudo o que é convencio-. nal, social, mundano, superficial, ela nós faz penetrar

no interior das coisas. Podemos dizer que ela é o espiri-

to, enquanto voltado para o corpo e misturad o com q mund

o. Daí a razão de ser da pergunta: quando um “sonhador” fala, quem fala, ele ou o mund o? De um lado, temos a cidade dos conceitos, a Socicdade dos cientistas e o internacionalismo da Ciência; do outro , porém, en-

contramos a solidão do artista que revive, em suas ima-

gens & em seus mundos, o drama

do mundo, No entanto,

é o artista que cria mais: a imaginação começa e a razão

recomeça.

Ambas

nos

fazem

aceder

ao universo

do

es-

pírito, quer dizer, a uma realidade superior. Esta pode parecer irreal, mas é porque é negadora da percepção : comum, Na verdade, ela é mais profunda mente sobrereal. O verdadeiro mundo de Bachelard é o da sobre-rea-

lidade. É por isso que ele diz que o homem é este ser que

tem o poder de “despertar as fontes”, É este poder inesgotável que está na, origem tanto do aspecto polêmico

da razão científica, de uma oposição so realismo erapi-

rico, de sua recusa do dado, quanto

da imaginação

poética:

quando

pensar, ela cria um mundo, 76

uma

do aspecto criador

criança começa

a

A sobre-realidade é a própria realidade apreendida em sua malor profundidade: a função do irreal é o dinamismo

do espirito. Não sonhamos com idéias ensinadas.

O mundo

é belo antes de ser verdadeiro.

É admirado

antes de ser verificado. A obscuridade do “eu sinto” deve primar sobre a clareza do “eu vejo”. O homem entreaberto.

Quando

ele

cria,

desata

é um ser

ansiedades.

Criar

é superar uma angústia. O belo não é um simples arranjo. Tem necessidade de uma conquista. O mundo deixa

de ser opaco, quando olhado pelo poeta. Este lhe dá mobilidade. O homem

é um ser que se oferece à vida, deixa-

se possuir por ela, para poder possuií-la, Olha o presente como uma promessa de futuro. Uma de suas forçasé a ingenuidade, que o faz cantar seu próprio futuro. À filosofla não pasce de seu passado, dê outra filosofia, mas de um

olhar novo sobre o mundo,

de se aceder às coisas. O mundo

de uma nova maneira

é a provocação do ho-

mem. Este se revela criador, fonte única, despertador de mundos: o da ciência e o da arte. É o ser que responde a todas as provocações, sobretudo à do instante, pela criação e pela invenção. Vivemos num mundo em estado de sono. Precisamos despertá-lo, graças ao diálogo com as outras pessoas, de um “encontro” que pode ser considerado como a “síntese” do acontecimento e do eterno, Despertar o mundo, eis a coragem da existência. E esta coragem é o trabalho da pesquisa e da invenção. O essencial é que permaneçamos sempre em estado de apetite.

É por isso que Bachelard como que se definia a si mesmo, ao formular sua oração cotidiana: dia nos dai hoje”.

“Fome

nossa de cada

Bachelard continua ainda bastante incompreendido. Continuamos ainda a aplicar-lhe interpretações “redutoras”. É por isso que Canguilhem dá pouca importância às etiquetas que os amadores de classificações procuram

colar sobre o que nãoé o seu sistema. Por exemplo, se 77

os censores de ideologias heterodoxas cha mam-no de idealista, porque ela, cborda à ciência pelos mét odos fisico-matemáticos, devemos responder: idealism o discursivo,

quer dizer, elaborado, construído, e não triunfante, sem. conhecor obstáculos. Por outro lado, se O chamames de

materialista, porque ele valoriza as expe riências de labo-

ratório, devemos responder: materialismo racional, quer dizer, instruído e não ingênuo, operante e não dócil, que

não recebe passivamente sua, matéria, mes que se dá sua

matéria, que a PUF, p. 11).

constrói

(Hommage

à

G.

Bacherlod,

A influência de Bachelard, pela equidade do juízo critico relativamente à criação poética, faz dele um dos autores que mais marcaram o último quar to do século. “Também ele foi um fenomenólogo, Husserl definia a fe-' namenologia

como

um

“retorno

às coisas”. Neste sent

do, Bachelard foi um grande fenomenólogo: de um ladoi,

mostrando que a ciência deveria ser uma “fenomenotécnica”; do outro, conduzindo sua reflexão sobre a imaginação até o ponto de ela poder manifestar seu poder “gntológico”, sua densidade de ser. O homem habita poeti-

camente o mundo, embora seja habitado pelo saber. Esta filosofia do imaginário marcou

também

a lite-

ratura, a ciência ea filósofia. No campo cien tífico, teve

o mérito de mostrar

gênua

não

poderia

£os cientistas que o positivismo in-

ser mais

a filosofia de sua prática,

No campo filosófico, teve o mérito de mostra r aos filéso-

fos que sua ruzão deve ser um

produto da reflexividade

dos atos, pelos quais o homem produz os instrumentos

operatórios que são os conceitos. No campo

o mérito de estar na

origem do

literário, teve

movimento

pelo nome de “nova crítica” literária. À nosso ver, quem

melhor

conhecido

retomou o projeto bache-

lardiano de “dar à ciência 2 filosotia que ela mer ece" foi G. Canguilhem, '&

Com

efeito, ele

contesta

tanto

'as

“allenações” das filosofias idealistas do conhecimento quanto os exageros “objetivantes” das filosofias positivistas. E acredita que, assim como à epistemologia de Bachelard

é histórica, uma

verdadeira

história das ciên-

cias só pode ser epistemológica. E entre as três razões para fazê-la: histórica (extrínseca à ciência: discurso verificado sobre um setor da experiência), cientifica (experimentada pelos cientistas enquanto pesquisadores), é a terceira, a razão propriamente fãosófica, que é a mais verdadeira: “sem referência à epistemologia, uma teoria

do conhecimento seria uma meditação sobre o vazio, e

sem relação

à história das ciências,

uma

epistemologia.

seria uma réplica perfeitamente supérílua da ciência sobre a qual pretenderia discorrer”. Por isso, a história das

ciências de forma alguma pode ser entendida como uma

crônica. Pelo contrário, consiste em tornar sensível e inteligivel, ao mesmo tempo, a edificação difícil, retomada, e retificada do saber. Por outro lado, ela deve eliminar o “virus do precursor”. A rigor, se existisse precursor, a

História das ciências perderia todo o seu sentido, pois a

própria ciência só teria dimensão histórica na aparência. A complacência em procurar e descobrir precursores

é o sintoma mais claro de inaptidão à crítica epistemológica. E isto, porque a ciência deve ter sua temporalidade

especifica e proceder sempre por réorganizações, por rupturas e mutações, ções e de recuos.

passando pela experiência de acelera-

revolucionou à Canguilhem, Bachelard Segunda epistemologia contemporânea, não somente por ter intro-

duzido

os conceitos-chave

de

“Reçorrência”,

“Vigilân-

cia”, “Obstáculo” e “Corte” epistemológicos, mas por ter.

reconhecido que a “a ciência não é é pleonasmo da expe-

riência”: ela se faz contra a experiência, contra a percepção e toda atividade técnica usual, Sendo uma operação especificamente

intelectual, tem uma

história,

mas 79

não tem origens, É a. gênese do Real, embora sua própria gênese não

possa ser narrada, apenas des crita como Tecomeço, pois não é a fru tificação de um pré-saber, E; é para

provar a coerência desta epis temologia que Canguilhem form

ula um corpo de axiomas, cuja duplicação em código de normas intele ctuais revela-nos que sua natureza não

é a de evidências imediatame nte claras, mas a de instruções laboriosam ente recolhidas e comprova-

das. Eis, em sintese, os três axiomas:

1 O primeiro é relativo ag Drimado teórico do erzo. A objetividade de uma idé ia será mais clara e mais distinta, na medida em que aparecer sobre um fundo de erros mais profundos e mais diversos. Em outros termos: para se ressalvar o valor de um “recolocá-la dentro do círculo a idéia objetiva, é preciso das ilusões imediatas. &' preciso errar para se atingir um fim. A verdade só adquitê seu pleno sentido no té rmino de uma, polêmica, Nã o pode haver verdade primeira , Só existem erros primeiro s. Mais lapidarmente, o mesm o axioma se enuncia: “Um verdadeiro sobre um fundo de erros, cis a forma do pensamento científico”, A primei ra e a mais essencial fun-

ção do Sujeito é a de se enganar. Quanto mais complexo for seu erro, ma

is rica será sua experiência. A experiência é precisamente a lembra n-a dos erros retificados. O

Ser puro é um ser “desilud ido”, 2 O segundo é relativo à depr eciação especulativa da

intuição. “As intuições são mu ito úteis: elas servem para ser destruídas.” Este axio ma é convertido em norma

de confirmação, segundo duas fó rmulas: “Em todas 2s circunstâncias, o imediato dev e dar

lugar ao construído”, “Toda. dado deve ser reen contrado como um resultado.”

3. O terceiro é relativo à pos ição do objeto como perspectiva das idéias. “Nós compreendemos o Real na

medida em

ão

que a necessidade O organiza ...

Nossa pen-

samento vai ao Real, não parte dele" (in Hommage à G. Bachelard, Paris, 1957, pp. 3-12), Em outras palavras: “O ponto de vista cria o objeto” (Saussure). Quer dizer:

o real nenca toma a iniciativa, pois só poderá responder

aigo quando nós o interrogarmos. Os dados só poderão responder completa e adequadamente a questões para as

quais e pelas quais eles foram construídos: “os fatos não

lalam”

(Poincaré). A epistemologia de Bachelard contri-

buiu, decididamente, para que se destruísse a crença na “imortalidade científica dos fatos” e em sua “imaculada rorcepção” (Nietzsche).

8t

A epistemologia “racionalista-critica” de K. Popper

Popper elaborou sua epistemologia cu, mais precisamente, sua “filosofia das ciências”, ao mesmo tempo dentro e fora da corrente de pensamento chamada de

empirismo lógico ou de neopositivismo, originada do Circulo de Viena, fundado em 1924 por Schlick e tentando fazer uma sintese entre o empirismo e a logística. Dentro, porque é um de seus primeiros Integrantes e um dos

defensores de suas idélas essenciais; fora, porque apresentou-se desde cedo como um dos mais ardorosos dissidentes da “Escola”, como o mais ilustre representante da “oposição

olicial”, sobretudo no que diz respeito pos

critérios da verificação

experimental

nas ciências, Na

Inglaterra, onde passa 2 ensinar a partir de 1946, Popper

ê considerado como um dos filósofos oficiais da democracia liberal, pois tentou aplicar à política uma das idéias: fundamentais

de sua

filosofia das ciências:

como

qual-

quer outra teoria, a teoria política deve ser testada no contato

quer

com

dizer,

os fatos.

poderido

Contudo,

testada

eventualmente

ser

negativamente,

refutdda

pela



experiência,

e não,

propriamente

falando,

confirmada

por cla. ' Por sua obra, Popper é mais cônhecido como filósofo político do que como filósofo das ciências. Contudo,

é de primeira importância sua contribuição no

campo

da filosofia das ciências. Neste domínio, seu pensamento

se opõe a duas tendências marcantes

da epistemologia

anglo-saxônia: a do positivismo lógico e a da filosofia “da linguagem”. Popper combateu vigorosamente os dois movimentos ilosóficos que inspiraram; de um lado, o neopositivismo lógico e, do outro, a filosofia “Inpúistica”

ou “da linguagem ordinária”. mos,

em

suas grandes

Por isso, convém

linhas, pelo menos

essenciais do empirismo que deu origem

situar-

os postulados

às críticas de

Popper. Em seguida, veremos como ele se opõe às concep-

ções empiristas, sobretudo de R. Carnap.

I.

Princípio do empirismo

O “empirismo lógico”, também chamado de “Movimento para a unidade da ciência”, surgiu num mein

bastante propício

nasceu

à difusão

da conjunção

das

idéias

de duas correntes

empiristas.

Ele

aparentemente

- irreconeiliáveis: de um lado, o empirismo físico e psico-

lógico de E. Mach, que, na qualidade de físico, insistia sobre 0 papel das “experiências mentais” e da economia do pensamento na dedução das leis e, enquanto epist emólogo e psicólogo, buscava reduzir toda experiência a um puro jogo de sensações; do outro lado, a logística,

devendo desempenhar um papel importante na análise dos fundamentos das matemáticas. O mérito de Sehlick

foi o de tentar a conjunção dessas duas correntes, procurando dessolidarizar a logística de seu platonismo an-

tigo, e considerando &b

as estruturas

lógico-matemáticas

como simples linguagem tautológica, cuja função essencial seria a de exprimir adequadamente as verdades da

experiência,

Não vamos analisar aqui o projeto grandioso da Es-

cola de Viena, que foi o de tentar uma unificação do sa:

ber científico e o de elaborar um método científico comum

a todas as ciências, de tal forma que fosse não so-

mente

uma

garantia

contra

o erro, mas

também

uma

garantia contra q acúmulo de conceitos vazios de significação e contra todos os pseudoproblemas que tanto atravancaram as discussões epistemológicas. Limitemos

nosso estudo aos postulados básicos do empirismo lógico, tentando mostrar alguns dé seus limites. O esiorço inicial do empirismo lógico consistiu em delimitar de modo bastante preciso o domínio das linguagens

empíricas e em descrever com

à máximo

Tigor

possível o estatuto metodológico des ciências positivas, Para tanto, precisou determinar não somente os critérios de verdade e de falsidade dos enunciados empíricos, mas os critérios

de

seu

sentido.

A instauração

do sentido inspira-se na própria

dos

prática das

critérios

ciências:

estes desenvolvem um projeto intelectual que é o do em-

pirismo.

A originalidade do empirismo

lógico foi » de

formular de modo claro e de levar adiante esse projeto. à preocupação fundamental do empirismo consistia em reduzir todo o conteúdo do conhecimento a determinações observáveis. Todavia, ao tratar-se de determinar as condições de tal “redução”, constatou-se que não era

possível contentar-se com o simples eritério da verifica-

bilidade direta. Outro critério precisaria ser levado em conta: o das possibilidades introduzidas pelo emprego da linguagem, que vão muito além daquilo que é efetivamente observado. Introduz-se, assim, a idéia de confirmação pela realidade, que tanto pode ser uma sim-

87

ples “confirmabilidade” de princípio ou potencial, quan -

to uma “confirmabilidade” efetiva ou em ato. Esta última estaria fundada sobre procedimentos que pode m

ser empregados concretamente, | Por sua vez, as formas da linguagem

têm o caráter

de poder permitir-nos preceder à experiência. No enta n-

to, elas só têm valor de antecipação a experiên cias pos-

síveis. Se levarmos

em

eunta as ligações lógicas tarnan-

do possível a vinculação de uma, hipótese a outras hipóteses, quer dizer, se-considerarmos

o caráter quase sem-

pre indireto da vinculação com os dados empírico s, so-

mos forçados a admitir, como critério do sentido, o critério da tradutibilidade, ou seja, da ligação dedu tiva. O importante é que, em qualquer hipótese, há semp re uma

referência à experiência. E o conteúdo daquilo que & ex-

Presso na linguagem não chega a ultrapassar aqui lo que se anuncia efetivamente na indicação das démarches práticas tornando possível a simples constatação. Por outro lado, além da linguagem descritiva, também

pademos

'admitir

uma

linguagem

metodológica,

cuja função não é a de exprimir o conteúdo da experiêncla, mas explicar a própria démorche científica , tentan-

do elucidar suas condições e seus critérios, Aliás, são as

possibilidades da linguagem que se prestam mal-entendidos, sobretudo no que diz respeito

a vários aos pra-

blemas filosóficos. Por sua vez, a linguagem meto doló-

gica torna-se, em

fundamental

sey emprego

legítimo, o instrumenta

da filosofia, sobretudo em sua forma váli-

da, isto é, na forma de uma teoria da ciência, Não obatante, a linguagem metodológica não tomporta propo-

sições sintéticas, pois não afirmam

nem negam

algo a

respeito do real, Ela comporta apenas prop osições analíticas e proposições descritivas, Em outros term os, não introduz nenhum conteúdo de conhecimento capaz de

transcender

85

o domínio

do

empiricamente

observável.

Evidentemente, se o único discurso dotado de sentido re-

duz-se ao discurso da ciência e da metodologia cientifica, ou então ao discurso das proposições com referência empírica ou' simplesmente taulológicas, não há nenhuma razão para que tenha validade qualquer discurso de ordem filosófica. O problema consiste em saber se q do-

mínio

do sentido

poderá ser circunscrito a esta única

forma de discurso, À este respeito, podemos nos perguntar: não constitui o postulado empírico um pressuposto

injustificado e injustificável?

Em

outras palavras:

não

haveria um acesso ao sentido que poderia afirmar-se independentemente de todo procedimento de verificação, inclusive de confirmação? No fundo, trata-se de saber se

a interpretação neopositivista do princípio do empirisma está em perfeita adequação com & prática efetiva da ciência, Eis o campo da reficxão de Popper. Antes, poréna, de entrarmos

mas

em

seu pensamento,

facamos

considerações sobre o princípio

ainda

algu-

do empirismo:

1, Este princípio, em seu sentido lato, significa que não podemos dispor de uma experiência que seja inteiramente independente da experiência sensível. Por outro

lado, não podemos

dispor de uma experiência que seja

capaz de nos fornecer um verdadeiro conhecimento, quer

dizer, um conhecimento objetivo e comunicável, podenda fundar um saber racional, Aceitar semelhante posição de forma

alguma significa negar

a possibilidade

de ha-

ver experiências não vinculadas à percepção, nem tampouco que tais- experiências possam fornecernos conhecimentos de outra ordem, mas simplesmente recusar que

seja possível a construção, um

saber susceptível

sobre tais experiências,

de

de responder ou corresponder às

normas clássicas da elência. Em síntese, o postulado empirista não significa outra coisa senão a impossibilidade

de poder existir uma intuição intelectual pura. Se por acaso dispuséssemos de tal intuição, certamente podería89

mos Jundar sobre ela um saber racional puro, quer dizer, uma ciência verdadeira, mas prescindindo por completo da experiência sensível. Ora, não dispondo de tal visão direta, tendo por objetivo a descoberta das idéias ou essências, somos forçados, se quisermos conhecer a realidade, a fazer apelo a este tipo de experiência comunicã-

vel, que é a experiência sensível. 2

A segunda

observação

diz respeito

ao papel

da

experiência, Há duas maneiras de entendermos este pa-

pel: a) Segundo a posição positivista, retomada pelo em-

pirismo

lógico,

aquilo que

podemos atingir,

experiência, é apenas o singular:

através

da

o único conteúdo de

conhecimento de que podemos dispor são, pois, as cons-

tatações sensiveis; b) Todavia, graças às operações inte-

lectuais descritas pela lógica e expressas pela linguagem, torna-se possível evidenciarmos, na massa daquilo que é

constatável, certas regularidades; ademais, podemos estabelecer certas ligações sistemáticas e constituir, assim, progressivamente, um saber de tipo universal, A característica essencial desse saber é que ele pode ser fundado

rigorosamente: de um lado, através do emprego de Operações definidas pela lógica e praticadas por todos do

mesmo modo; do outro, através da utilização dos métodos de verificação remetendo a constatações de tipo elementar e permitindo um acordo prático quanto ag conteúdo da experiência, O papel da lógica é o de colocar em jogo apenas as formas operatórias, Ela não pode for-

necer nenhum

conteúdo real, Mas é graças à interven-

ção dessas formas

uma

ciência.

que podemos

Portanto,

organizar

este modo

o conteúdo de

de conceber

o papel

da experiência sensível constitui o que podemos chamar de posição empirista

no sentido estrito.

3. Outra maneira de concebermos o papel da ex- . periência sensível é através da epistemologia conceitua-

lista. Segundo este modo de ver, há um rstorno à expe90

riência sensivel, O objetivo, porém, dessa volta é a obtenção de conteúdos de conhecimento. Não se fica mais ads-

trito à simples apreensão do singular, O dado perceptivo já engloba

um

conteúdo

de significação. Ele é captado

na própria apreensão do sensível, mediante

uma opera-

ção -intelectuai

de tematização,

Em

outras

uma

intelectual

nos

permite

apreender,

sensíveis,

as formas

atividade

que

através da tessitura dos conteúdos

palavras,



inteligíveis por meio das quais esses conteúdos tornamse acessíveis ao conhecimento e significantes para nós, sendo assim, o domínio dos atos intelectuais não se limita às operações

descritas pela lógica,

mas

comporta

O

domínio da atividade conceitualizada do pensamento, É através do conceito que o pensamento profere o inteligivel que apreende e encontra aquilo que, na experiência sensivel, pode dar-se a conhecer. Quer interpretemos a

relação de conceito com o sensivel mediante uma teoria da abstração, quer mediante uma teoria da reminiscência, trata-se de uma especificação ulterior da posição

conceitualista. 4.

Se não hã intuição intelectual, não podemos fazer a economia da percepção, E se o pensamento concei-

tual nos dá acesso ao inteligível, não é à maneira da idéia pura, pois o conceita comporta uma referência à realidade empírica: através do inteligível, ele visa à sensivel. Portanto, só-pode ser utilizado e, consequentemente, abrir a possibilidade de uma ciência, na medida em que for restituído à coisa mesma que ele tem por função esclarecer, Aliás, a função da proposição consiste em operar tal restituição. Se não temos acesso às essências puras, nosso saber não pode consistir numa simples visão de formas, mas deverá proceder por divisão e por com-

posição: ele instaura um vaivém entre a apreensão sensível e a apreensão

mos

intelectual. E é assim

4 necessidade da verificação. Mas

que percebe-

esta não tem o 9!

mesmo sentido que no empirismo lógico. Evidentemente, devemos comprovar o juízo pela experiência, pois, em si mesmo, ele não comporta a garantia de sua veracidade, Isto seria verdade

se o juizo

fosse

apenas uma

reiação

entre idéias puras, apreendidas por intuição, Neste sen-

tido, o juizo seria apenas expressão da intuição, encontrando nela sua garantia, No entanto, o juízo é recomposição do pensamento

daquilo que dele foi separado:

ele

faz apelo à constatação que irá atestar que a sintese ope-

rada pelo espirito conforma-se com

a situação real. E

isto segundo a ambição do pensamento só passa pelo juízo para

situar

“julgador”, que

o conceito em seu con-

texto concreto e para. permitir-lhe exercer plenamente sua função cognitiva,

0. É neste contexto que se situa a filosofoia das ciências de Karl Popper. No fundo, o que ela coloca em

jogo é o problema clássico da indução. Trata-se de elu-

cidar duas questões: a) como é possível a elaboração de uma teoria científica a partir de observações em núme-

ro sempre finito? b) como é possível o estabelecimento da “verdade”

de uma

teoria

(sua aplicabilidade

s uma

infinidade de casos) apuiando-se apenas em bases observacionais? O primeiro problema faz apelo a uma teoria . da

invenção,

cujo

objetivo

consiste

em

explicar

quais

são os processos psicológicos e lógicos capazes de permi-

"tir a formulação das teorias científicas. O segundo, de ordem mais epistemológica, diz respeito so que se convencionou chamar de “valor” das teorias científicas, quer dizer, ao grau de confiança que podemos lhes conferir, em função dos dados empíricos de que podemos dispor.

O que vai nos interessar na filosofia das ciências de Popper é apenes a elucidação deste último problema, na medida em que sua posição se opõe às do empirismo

co, notadamente às de Carnap, 92

lógi-

2.

Princípio da verificação e da falsificação

À preocupação epistemológica essencial de Popper diz respeito, como vimos, à elucidação do “valor” das teorias clentíflcas, ou seja, ao grau de confiança que podemos depositar nºlas, em função dos dados empíricos de

que podemos dispor. Neste nível, ele deu uma contribuição decisiva para a solução de dóis problemas fundamen-

tais e estreitamente ligados um ao outro: o primeiro problema

é o da demarcação entre ciência e metafísica,

isto é, entre

conhecimentos

científicos

e conhecimentos

de ordem supracientífica, o segundo é o problema da indução e de seu valor para & ciência, Para resolver esses dois problemas, Popper teve que combater veementemente és dois dogmas fundamentais das teorias do co-

nhecimento e das epistemologias empiristas tradicionais. O primeiro dogma se resume ciência deve repousar

numa

na idéia segundo a qual a base observacional mais ou

menos intangível. O segundo dogma está contido na idéia

segundo a qua! à ciência deve utilizar um método indutivo, por oposição ao método ciências e da filosofia.

especulativo

das

pseudo-

O problema filosófico clássico da indução pode ser formulado sob a forma de uma questão: o que pode jusLificar nossa crença na possibilidade de o comportamento dos fenômenos

ser,

no

futuro,

análogo

ao

seu

com-

portamento no passado? Em outras palavras: que tipo de justificação podemos invocar para nossas inferências indutivas em geral? Baseando-se na colocação inicial de Hume, Popper discerne, nessas questões, dois problemas: um lógico, vutro psicológico. O problema lógico da indu-

ção consiste em saber sobre o que podemos nos basear para tirar, de vários casos particulares observados,

con-

ciusões relativas aos casos não observados. Por sua vez, 93

o problema

psicológico consiste em

saber Por que, sem

justificação lógica, os cientistas são levados a erer que

OS

Casos não

observados

poderão conformar-se

com

os

que foram observados. o | Recolocado em sua relação com o conhecimento científico, o problema lógico pode ser formulado

maneira:

será

que podemos

justificar

da seguinte

empiricamente,

quer dizer, segundo a verdade de certos enunciados ob-

servacionais,a afirmação segundo a qual uma teoria ex-

plicativa universal deva ser verdadeira? A esta, ques tão,

Popper responde dizerido que, por maior que seja o nú-

mero de enunciados observacionais

verificados, não te-

mos 6 direito de concluir pela existência da verdade de” uma teoria universal. E a razão que ele dá é a seguinte: uma teoria universal afirma algo que ultrapassa, de mui-

to, aquilo que pode ser expresso numa enorme quantida de de enunciados observacionais. Todavia, se substituirmos o problema da verificação pelo da falsificação, a resposta de Popper é positiva, porque a verdade de certos enunciados observacionais pode eutorizar-nos a de-

cretar a falsidade de uma teoria universal. No sentido técnico da epistemologia de Popper, uma proposiç ão tor-

na-se “falsificável”" desde o momento em que aparece . um enunciado observacional capaz de contradizê-la, isto

é, a partir do momento em que podemos deduzir, desta . proposição, a negação de um enunciado observac ional,

Assim, a proposição universal “todos os cisnes são bran-

cos” não é verificável, mas falsificável. Em

da, à proposição existencial “há corvos

falstficável, mas verificável. Donde

se conclui

|

contraparti-

brancos” não é

que, entre várias teorias em

com-

petição, nossa preferência por uma delas pode justificar-

se por razões empíricas, porque nossos enunciados obser vacionais podem refutar algumas delas, mas não todas. E quando várias teorias rivais se apresentam, devemos preferir aquelas cuja falsidade ainda não está estabele94

-

elda. Popper chega a outra conclusão: todas as leis e teorins científicas são, em sua essência, hipotéticas e con-.

jecturais. Exemplo: nunca houve uma teoria tão bem estnbelecida ou confirmada quanto a de Newton. No entanto, a teoria de Einstein veio mostrar que a teoria

newtoniana não passa de uma hipótese ou conjetura, Ora, se uma teoria é; antes de tudo, uma conjetura, e pe seu valor se mede sobretado por sua falsificabilidade, não há como negar que, entre teorias rivais, é mais interessante aquela que melhor se presta à falsificabilidade

vu que é melhor testável, Esta teoria terá maior conteúdo informativo e maior fecundidade explicativa. Porque, quanto mais ambiciosas e precisas forem as asserções tormuladas

por uma

teoria sobre

a realidade,

mais

ela é

capaz de nos fornecer os meios de testá-la e as ocasiões de falsificá-la. Esta teoria é melhor porque, se é capaz to resistir a todos os testes, pode ser considerada como à melhor

testada. Contudo,

não pode haver uma

confir-

mação positiva de uma teoria pela experiência, Dizer que uma

teoria

é, no momento,

tão bem

estabelscida quanto

possível, é reconhecer que ela resiste possíveis de falsificação. Deste ponto

a todos os testes de vista, Popper

não considera como científica a teoria psicanalítica. Mas não é pelo fato de ela não poder ser suficientemente verilicável ou confirmável, mas porque não podemos inicar,

à priori, nenhuma

experiência c nenhum

fato ca-

pozes de abalar ou de refutar essa teoria. Popper

considera

as teorias

ciantificas

como

livres

criações de nosso espírito, como o resultado de uma ten-

tativa feita para compreendermos intuitivamente as leis da natureza. Contudo, não nos compete impor nossas criações à natureza. Pelo contrário, simplesmente a queslionamos, e procuramos obter, através dela, respostas ne-

gativas quanto à verdade de nossas teorias, Não é nosso objetivo demonstrar ou verificar nossas teorias. O que pretendemos

fazer é testá-las, tentando infirmá-las ou fal95

sificá-les. Em

outras palavras,

a intenção de Popper é

mostrar que, nas ciências, não há indução, consequentemente, não há o problema filosófico do “fundamento” da indução. Em

segundo lugar, nega que haja realmen-

te, nas ciências, procedimento de verificação, porque todos us testes a que são submetidas as teorias não passam de tentativas de refutação. Finalmente, mostra que

uma teoria, que consideramos como confirmada até certo ponto pela experiência, não passa de uma teoria que ain-

da não conseguimos infirmar, apesar dos esforços para consegui-lo,

Esta posição de Poppsr opõe-se diretamente às con.

cepções oriundas do Circulo de Viena. Num certo sentido, fol contra os empiristas lógicos que ele escreveu A lógica da descoberta cientifica (1934). Num primeiro mo-

mento, os neopositivistas admitiram que só seriam dotados de significação os enunciados empíricos (não lógico-matemáticos)

capazes, pelo menos em

princípio,

de

serem verificados completamente por uma evidência de tipo observacional (princípio da verificação). Os enunciados filosóficos, sem nenhum procedimento de verificação empírica, seriam desprovidos de significação e ina-

dequados para a discussão racional. Ora, diz Popper, semelhante posição não somente é fatal para a metafisica, mas para a própria ciência. E a razão que ele dá é a

seguinte:

todas

as

proposições

de

forma

universal,

quzr dizer, exprimindo leis gerais, são proposições que não podem ser validadas inteiramente por nenhum conjunto

finito de enunciados

observacionais.

Os empiristas lógicos viram-se obrigados a mudar

o

critério da verificabilidade no sentido estrito pelo crité-

rio da conjirmabilidade parcial e, eventualmente, indi-.

reta pela evidência observacional, Esta foi a solução proposta per Carnap Todavia, 56

em

Testability ond meaning

(1936).

Carnap não conseguiu desvencilhar-se

da con-

cepção indutivista e da idéia de uma confirmação posttiva, pela experiência, das hipóteses e teorias científicas.

Os partidários da lógica indutiva defendem a seguinte

tese; as teorias científicas nunca são, propriamente falando, verdadeiras; elas são, isto sim, mais cu menos prováveis; o que podemes atribuir-lhes, é um certo grau de confirmação ou certa probabilidade, expressos por um número real entre O e 1, com base muma determinada evidência observacional.

Ora, no dizer de Popper, esta concepção é errônea em seu próprio princípio: “Não creio que seja possível construir um conceito da probabilidade de hipóteses capaz de ser interpretado como exprimíindo um “grau de validade”. da

hipótese, de modo

análogo

ao que se passa

com os conceitos de 'verdadeiro' e de “falso” (e que, além

do mais, esteja estreitamente ligado ao conceito de 'probabilidade objetiva”, isto é, à freqiiência relativa, para justificar o emprego do termo 'probabilidade')” (La logique de la découverte scientifigue, p. 268). Portanto, a

critica feita por Popper à concepção de Carnap pode ser resumida a)

em três observações:

aquilo

que

procuramos

nas

ciências é um

eleva-

do conteúdo de informação e não um alto nível de pro-

babilidade; bh) o que pretendemos

confirmação, mas

alcançar

é um

alto grau de

que esteja apoiada num

elevado con-

teúdo de informação; ec) a busca de uma

probabilidade

elementar impli-

ca a adoção dz: uma regra que, contrariamente a todos cs princípios, favoreça sistematicamente as hipóteses ad hoe (cf, Conjectures and refutattons, p. 287).

Assim, 2 probabilidade lógica de um enunciado é o inverso de seu grau de falsificabilidade: ela aumenta à medida

que

decresce

seu

grau

de falsificabilidade.

As 97

proposições

logicamente verdadeiras

têm

um

grau de

falsificabilidade nulo e uma probabilidade igual à 1: Mas

elas não têm nenhum tonteúdo informativa, nada nos

ensinando sobre o mundo. Assim entendida, a probabili-

dade não pode ser o ideal a que devem prender-se as teorias científicas. Estas devem: ligar-se a proposições dotadas de conteúdo empírico, também chamadas de enunciados observacionais. Uma proposição é dotada de conteúdo

empírico

real

se, e somente

se, seus “falsificado.

res potenciais” pertencerem a uma classe não vazia. O que não é o caso das proposições fllosóflcas. Quanto mais um enunciado excluir eventualidades, mais ele dirá coi-

sas sobre o mundo

da experiência, e mais rico será seu

conteúdo empírico, As leis da natureza, por exemplo, são menos descritivas que proscritivas, pois, ao invés de afir-

marem a existência de certos estados de coisas, elas os

proscrevem. A lei da conservação da energia pode ser formulada do seguinte modo: “Não há máquina que seja

animada

de um

movimento

perpétuo”

(La

logique...,

qualquer estado

do mundo,

p. 67). Resulta disso que os enunciados logicamente ver-

dadeiros, compatíveis mas

com

não tendo fasificadores potenciais, são desprovidos

de conteúdo empírico. Ora, os enunciados menos testãveis são os mais dificilmente falsificáveis: os que têm o mais fraco conteúdo empírico e a maior probabilidade lógica, Em outros termos, ao afirmar que a “preferibilidade” de

uma

hipótese

aumenta

com

o grau

de sua

“improbabilidade”, Popper não quer dizer que a hipóte-

se mais vantajosa seja a que maior chance tiver de ser falsa, mas aquela que, por sua forma lógica, for capaz de nos fornecer as melhores possibilidades de podermos

refutá-la e torná-la falsa,

Segundo Popper, não podemos

séria para nem 95

considerar

que

uma

dispor dz uma razão

teoria seja verdadeira

tampouco que ela possua um elevado grau de pro-

babilidade. Aquilo que o grau de confirmação de uma teorla faz intervir são tentativas de confirmação negatt.

va realizadas num determinado momento histórico, sem fornecer nenhuma

garantia

quanto ao

seu

comporta-

mento futuro, “Por grau de confirmação de uma teoria, escreve Popper, entendo um relatório conciso avaliando o estado (num certo instante t) da discussão crítica de uma teoria, concernente go modo como ela resolve seus problemas; (entendo) seu grau de testabilidade, o rigor

dos testes a que ela foi submetida e « maneira como ela resiste a esses testes”

(Objective

knowledge, p, 18), Isto,

porém, não o impede de admitir que as teorias científicas aproximam-se mais ou menos da verdade, quer dizer, correspondem mais ou menos exatamente aos fatos. Pelo menos em certos casos, devemos fornecer razões pare justificar que uma teoria nova (por exemplo, a teoria einsteiniana) seja considerada melhor que uma teoria antiga (a teoria newtoniana), por estar mais próxima da verdade. A fim de exprimir melhor essa idéia, Popper

introduz

o conceito

Este conceito nada

de verossimilitude

lógica.

tem a ver com os conceitos de

“verossimilhança”, de “probabilidade”

vu de “plausibiti-

dade”. Na verdade, ele combina duas noções: a) a de ger-

dade semântica, concebida como. uma reconstrução formal da noção de verdade, no sentido de “adequação à

realidade”; b) e a de conteúdo de um enunciado: os enunciados

contidos

neste

enunciado.

À

todos

construção

deste. conceito de “verossimilitude” é muito complexa e exige uma elaboração bastante técnica, Contentemonos em-mostrar que Popper divide o conteúdo total de um enunciado em dois subconteúdos:

dade e o conteúdo quemático,

o conteúdo de ver-

de falsidade. De modo

bastante es-

a verossimilitude pode ser concebida como

o

excedente do conteúdo de verdade em relação ao conteú-

do de falsidade (cf, Conjectures and refutations, pp. 39199

397). De fato, somente em certos casos-limites

plo 0 e 1), podem ser medidos com exatid (por exemão O grau de veross imilitude, o conteúdo de verdad e

ou de

falsidade, o grau de confirmação ou, mesmo, de probabilidade ló-

Bica. Muito embora, na teoria, tod os os conteúdos sejam

comparáveis, na prática, devemos limitar-nos aos raros casos favoráveis em que teorias riv ais fornecem soluções diferente s para os mesmos probleinas, Pop per dá q exem-

plo da comparabilidade intuitiva da teoria (E) e da teoria de Newton (N) :



a toda questão à qual N dá uma

de Einstein

resposta, tam-

bém E fornece uma resposta pelo menos tão pre-

*elsa quanto é menor



ou igual ao

dé E;

há questões que E pode respon der, enquanto N não pode; neste caso, q conteú do de N é menor que o de E.

Donde

virtualmente mesmo

a de N, quer dizer, o conteúdo de W

se pode conciuir que a teoria einste iniana é

melhor que a newtoniana.

de poder ser testada, podemos

é verdadeira,

tem

um

poder

Porque, antes

dizer que, se ela

explicativo maior, podendo

fornecer mais informações sobre os fatos. Se quisermos, porém, saber qual de duas teorias rivais (TI e T2) será efetivamente a melhor, num cas o particular, devemos Iecorrer ao seguinte principio geral: Tl tem uma veros-

similitude menor Se, € somente se: 2) seus conteúdos de verdade ou de falsidade são com paráveis: b) 'o conteúdo

de verdade (não o de falsidada) de TI é menor que o de Tê, c) o conteúdo de verdade de TJ não é maior que o

de T2, embora o seja seu conteúdo de falsidade. Juo

3.

Algumas conclusões

1.

que

O

nos

interessou

na

filosofia

das

ciências

de Popper foi, sobretudo, sua posição contrária ao “princípio do empirismo” fundando o “verificacionismo” epis-

temológico das teorias cientificas. O desacordo de Papper

é sobretudo em relação às teses defendidas por Carnap.

Não se trata de um desacordo quanto ao mecanismo da invenção das hipóteses e das teorias científicas, Carnap

que a lógica indutiva poderia explicá-las satis-

achando

fatoriamente, e Fopper negando radicalmente essa possihilidade. A teoria de Popper não visa, em absoluto, explicar como

as hipóteses e as teorias podem

mente” criadas. Também em sua

a teoria de Carnap, expressa

lógica indutiva, não é uma

das hipóteses:

ser “livre-

o que ela permite

teoria da invenção

saber é até que ponto

determinada hipótese pode ser considerada como confirmada pela evidência empírica disponível. Quanto a Popper, ao elaborar sua lógica das ciências, tenta afastar explicitamente a consideração dos ways of discovery,

não para défender os ways of validation, mas para ins-

taurar os ways of refutaiion. Em sua opinião, não deve interessar-nos saber como uma tenrla científica é descoberta pela primeira vez. Esta questão pertence aa do-

mínio pessoal. O que importa saber é como as teorias se verificam. Não há um método lógico para descobrir idéias. Toda descoberta contém, diz Popper, “um elemento irracional”. 9. Um segundo elemento da filosofia das ciências de Popper é o seguinte: apoiando-se na análise lógica

das formulações científicas, defende a idéia de que não podemos

empíricos

passar,

por indução,

às nipóteses

da observação

propriamente

dos dados

científicas.

As

si-

milaridedes sobre as quais se apóia a indução só surgem, 101

no domínio da observação, por referência a um “conje

tural” capaz de antecipá-las:

“as

quadra

teorias cientificas não consistem em su mários de observações, ma s em invenções, isto é, em co njeturas” (Conjectures end rejutations, 1963, PP. 33-39) . E ao reafirmar a demarc ação entre O

discurso cientifico e todos os outros discur-. sos, Popper dá primordial importância à Idéia segundo à quat uma teoria científica só tem valor quando pudermos demonstrar que ela é fal sa. Assim, ele faz da “Fal. sificabilidade” de uma teoria o próprio princípio de demarcaç ão

da

ciência.

Ademais,

ele faz

da “falsificabilidade” a argumentação lógica capaz de levá-lo a preferir a infirmação à confirmação como forma de controle experimental nas ciências.

3. Por outro lado, ao pz rceber que o critério da objetividade das proposiçõe s científicas reside no fat o de elas se prestare

m à “validação intersubjeti va”, Popper apresenta a comprovação in tersubjetiva como um simples caso particular da crític a intersubjetivo, isto é, do “Controle mútuo pela discus são crítica”, Esta posição

estê bem formulada nas teses defendidas por Popper em & lógica das ciências (em La disputa del positivismo en la sociologia demana, Grijal bo, 1973). A tese número onze diz: “E ab

solutamente errôneo conjet urar que a objetividade da ciência depe nda da objetividade do cien. tista. E é totalmente falso Crer que O cientista da natu -

reza seja mais objetiva que O cientista social, O clentis. | ta da natureza é tão pa rtidarista quanto o resto dos homens e, em peral, se nã o pertence ao escasso número daqueles que produzem ldéias novas, é extremam ente

unilateral e partidário no que diz respeito às suas próprias idéias” (p.

109). E a tese número do ze afirma: “O que pode ser qualificado de objetividade cientific a ba-. seia-se única e exclusiv amente na tradição crí tica... nessa tradição que permite cri

ticar um dogma dominan-

102

te, Em outras palavras, a objetividade da ciência não é issunto individual dos diversos clentistas, mas o assun-

to social de sua crítica recíproca... de seu trabalho em equipe e também de seu trabalho por caminhos diferenles,

inclusive

4. uma nus

opostos

uns

aos

outros”

(p.

110).

Entre Popper e o empirismo de Carnap, não há divergência real quanto à natureza da invenção

ciências e quanto

conje-

ao caráter essencialmente

Lural e provisório das teorias e leis científicas. A diverpência situa-se unicamente no que diz respeito à naturega da relação lógica entre os enunciados científicos & 2 evidência empírica utilizada para testa-los. Contudo, não basta admitirmos a assimetria radical entre o problema da verificação e o da falsificação no caso de uma hipótese ou de uma teoria, para termos q problema re-

solvido. Popper retoma a tese já clássica segundo a qual. nunca é uma asserção isoluda que comparece diante do

tribunal da experiência, mas todo um sistema de hipótcses e de ssserções

em presença de uma

teóricas.

E isto, de tal forma

que,

evidência contrária, sempre possa

ser efetuada uma revisão em diferentes pontos do sistema, não podendo nenhum

princípio, 5.

elemento do sistema estar, por

ao abrigo de uma

possivel

revisão.

Diante da dificuldade de saber em que condições

podemos

considerar que uma

riência entram

realmente em

observação ou uma expecontradição

com

determi-

nada teoria, Popper propõe a seguinte solução: não devemos proceder de um modo global, mas passo a passo, para podermos atingir a comprovação de nossas explicações científicas; ademais, grande número de conheci-

mentos cada vez,

tradicionais muito

deve

embora

ser

tomado

nenhum

deles

como

adquirido

possa estar, em

si mesmo, 20 abrigo de. uma crítica, não devendo, pois, ser tomado como certo ou como bem estabelecido. Quap-

to à possibilidade de principio, de se preservar determitos

nada teoria, apesar de um

desmentido

infligido pela cxperiência, através da introdução de hipóteses suplemen-

Lares, a posição de Popper é a seguinte: é absolutamente contrária ao espirito da ciê ncia a tentativa de imuni-

sar as teorias contra

toda espécie de revisã

o, . fazendo-se apelo a “estratagemas conven cionais”. Em sua opinião, O que caracteriza o método cie ntífico & justamente o desejo de expor deliberadame nte as teorias, de todos as modos

possíveis,

curar defendê-las

ao crivo da refutação,

ou

preservá-las

e não

o de pro-

sistematicamente.

6. Do ponta de vista ep istemológico, Popper se considera ao mesmo tempo um racionalista, um empirista e um realisto. Apresentase, assim, como um inimig o declarado de toda espécie de convencionalismo, de pra gmatismo e de subjetivismo. Para ele, o universo da ciéncia faz parte

daquilo que chama de 0 terceiro mundo,

e não do segundo

mundo.

O terceiro mundo

das teorias objetivas, dos pr oblemas

objetivos, “cortado” do mund o lógica (segundo mundo). E co

irracionalistas

de nossa

época,

é q mundo

e dos argumentos

da subjetividade Esicontra todas as tendências

Popper

se

mpre proclameu sua fé no valor do conhec imento racional e sua convicção de que as teorias cie ntificas devem corresponder à realidade. O método empr egado para alcançar esses objetivos consiste essencialm ente na utilização de conjeturas.

audaciosos, bem como em

tentativas

engenhosas para refutá-ios. O método não depende do ideal metodológico, mas da realidade, ?. Ao afirmar claramente que o conhecimento cien-

Lifico não tomeça nem se caracteriza Pelas percepçõe s ou pela observação, nem ta mpouco pela coleta ou FeCO-

leta dos dados ou fatos, mas pela colocação e solução dé problemas, Popper

chega à conclusão de que q método das ciências deve consistir em “tentar possíveis soluções para seus pr oblemas”,

104

As soluções

são

propostas,

mas

criticadas, Se uma solução não for acessível à crítica ob-

jetiva, deve ser excluída coma não-científica. Sé é açessível à crítica, devemos tentar refutá-la. S2 uma solução é refutada pela crítica, precisamos encontrar outra.

Se resiste à crítica, passa a ser aceita provisoriamente, Portanto,

solução

o método

da

ciência

consiste na tentativa

de

de problemas, devendo estar soh o contrale cri-

tico. E a objetividade científica se funda na objetividade do método

crítico:

não há teoria

“liberada” da crítica.

&. A partir de sua'tese sobre o primado do problemea, Popper faz uma crítica ao cientificismo metodológi-

co que tenta impor às ciências sociais o mesmo método das ciências da natureza. Trata-se de um “naturalismo errôneo e equivocado” que tenta impor às ciências sociais

exigências como essas: “comecem com observações e medições, isto é, com levantamentos estatísticos, por exemplo; e avancem indutivamente a possíveis generalizações

e à formação de teorias. Deste modo, chegarão mais perto do ideal de objetividade

científica...

mas

devem

es-

tar plenamente conscientes de que, nas ciências sociais, é muito mais difícil se atingir a objetividade... porque

a objetividade equivale à neutralidade valorativa, c somente em casos extremos o cientista social consegue cmancipar-s:

das

valorações

de

sua

própria

roupagem

social, para ter acesso a certa objetividade e assepsia em relação aos valores”. “Na minha opinião”, continua Popper,. “todas essas afirmações são radicalmente falsas e repousam huma compreensão equivocada do método cientifico-natural;

ademais,

constituem

um

mito, o mito

por demais difundido, infelizmente, e influente do caráter indutivo do método das ciências da natureza e do caráter da objetividade cientifico-natural” (teses 6 e 7, op. cit. pp. 103-105; nas teses seguintes, Popper elabora uma crítica ao “erro naturalista”). 2065

9%,

Em

suma,

a epistemologia de Popp er

pode caracierizar-ss como uma crítica constante às conc epções científicas já ex istentes,

tentando

vas hipóteses ou conjet uras

a

explicação

iprozimada.

científica,

As ciências

sempre

ousadas,

jamais

instaurar no-

a fim

definitiva,

de atingir

mas

sempre

não Procuram jamais resulta-

dos definitivos. As teor ias científicas irrejutá veis pertencem ao domínio do mito. O que deve caracterizar a ciência é a faisificabilidade, pelo menos em princípi o, de suas asserções. As asserções “inabaláveis” q “trrefutáv eis” não são proposições científi cas, mas dogmáticos, Al ias, O prosFesso da ciência se

deve, em Erande parte, «o fato de cla propor soluções espe cíficas para, Problemas específicos, submetendo-gs

incessantemente so cr ivo da critica: esta gera q Progresso, ao passo que as verdad es “irrefutáveis” geram a esta

gnação. O pr

ogresso do conhecimento científico está estrei tamente ligado à coloca ção corveta dos problemas e às tentativas de dar-lhes so luções,

l0, Não foi nossa inte nção expor a obra hist órica, de Pópper, nem tampou co traçar um perfil co mpleto de sua “filosofia das ciên cias”, Pelo contrário, quisemos

simplesmente, de modo. tã o sucinto quanto fiel, cont raPor ao princípio de Viena,

o pr

da verificabilidade, oriu ndo do Círculo

incípio da refutabilidode defendido por Popper, em matéria de metodologia clentífica: do ponto de

vista lógico, diz Popper, um a lei científica ou Os seus enunciados empíricos

podem ser falsificados Ge modo conclusivo, mas não pode m ser verificados do ma do conclusivo; do ponto de vi sta metodológico, porém, é o inVELSO Que ocorre. O que importa é que as teorias clentificas seja m

formuladas do modo

mais aberto

e menos ampossível, a fim. de esta rem sujeitas ao critério da refutabilida

bíguo

de. E quanto mais ousa das forem as tecrias formuladas para resolv er os problemas coloca dos, tanto mais serão fecundas e se tornarão mais capazes de nos 106

tornecer

melhores

informações

verdade. Todavia, Illidades

sobre seus

conteúdos

de

aumenta bastante o risco e as proba-

de serem

faisos

os conteúdos

dessas

teorias,

11. Talvez fosse bastante interessante tentarmos fazer uma aproximação comparativa de certas posições

do Popper, em matéria de epistemologia, com certas poalçõos semelhantes de G. Bechelard. Que eu saiba, um

estudo comparativo ainda está por ser feito. Não pretendo aqui levá-lo a efeito. Gostaria apenas guns pontos de concordância:

de sugerir al-

a) Tanto a filosofia das ciências de Popper quanto à de Bachelard gias críticas

caracterizam-se

e polêmicas,

por

tentando

serem

epistemolo-

“reformular”

os con-

ceitos científicos existentes e “relormar” os conceitos fllosóMicos a respeito da ciência, Ambas as filosofias são “antiempiristas” e racionalistas e defendem a “tese” segundo a qual as ciências devem produzir, a cada momen-

lo de sua histéria, suas próprias normas de verdade; b)

Ambas

as “filosofias das ciências” estão funda-

das no princípio epistemológico de base, segundo o qual à conhecimento científico jamais atinge uma verdade

objetiva, absoluta. A ciência só nos fornece um conhe-

cimento provisório (Popper) e aproximado (Bachelard). Elo

jamais

engioba

fatos

estabelecidos.

Nada

há,

nela,

ide inalterável. À ciência está em constante modificação (Popper) ou em permanente retificação (Bachelard).

Não podemos identificar “ciência” e “verdade”.

Nenhu-

ma teoria científica pode ser encarada como verdade fiHat (Popper) ou como saber definitivo (Bachelard). A objetividade

científica

reside

única

e exclusivamente

irnbalho de critica reciproca dos pesquisadores

q

é o resultado de uma construção, de uma

no

(Popper)

conquista

e do uma retificação dos fatos da experiência pela Raato

(Bachelard).

Uma

teoria científica se coloca perma107

hentemente em estado de sisco (Poppe r), ou, no dizer de Bachelard, “no reino do Pensament o, a imprudência é yum método": c) Segundo Popper, “a crença segundo a qual é possível

principiar

iaçam

com

acompanhar

observações

por algo que

puras,

sem

que elas se

tenha a nature

za de Uma teoria, é uma erença absurd a”. Em outras palaVras, todas as observações já são int erpretações de fatos observados à luz de uma teoria. Segund o Bachelard, toda

Constatação supõe a construção: toda prática científica “ngaja

pressupostos teóricos: a teoria cie ntífica progride Por retificações, isto é, pela integr ação das críticas des. truindo a imagem das primeiras observações: “O vetor epi

stemológico vai da Razão à experiênc ia, e não da exPeriência à Razão”: |

d) Popper admite que, quanto mai s específicos forem os enunciados empíricos, mai s probabilidades eles

terão de se revelarem errôneos, mas também, maiores chances de fornecerem melhores e mai s úteis conteúdos

informativos. Por sue vez, a epistemologia de Bachelard Se

caracteriza pelo esforço de apreender a lógica do erro

Para reconstruir uma lógica do des coberta da verdade como polêmica contra o erro, como “re futação” dos erros, mas também como uma tentativa de submeter as verdedes

aproximadas (jamais inteiramente objetivos) da Ciência e os métodos que ela utiliz a a uma retificação

metódica e permanente. Neste partic ular, Popper não se int

eressa pela Iógica da invenção ou da criação. Talvez Bacheiard venha completar Popper, ao postular a desco-

berta metódica, na ciência, de uma ars inveniendi, em OPosição à ars prebondi do empirismo epistemológico, e levando a um maior aprofundamento a ars refutandi de

Popper. Com efeito, a epistemologia de Bachelard se define por ser uma reflexão crítica sobre a ciência, não en-

quanto

108

“estado”,

mas

enquanto

“processo”,

em

seu vir-

user. E 20 colocar-se no centro cpistemológico das os-

cilações do pensamento científico, quer dizer, entre o po-

der de retificação das teorias

(que é o da experiência)

co poder da rupéura e da criação (ruptura com as antigas teorias e criação de novas), que pertence ao dominio da Razão, Bachelard também postula, como Popper, um

Seu

racionalismo.

racionalismo,

porém,

chama-se

filosofia que se atualiza

aplicado, pois trata-se de uma

na “ação polêmica incessante da Razão”. Trata-se, ainda, de uma filosofia que se recusa ao formalismo e ao fixis-

mo de uma Razão una e indivisível, Ao aceitar como postutado primeiro “o primado teórico do erro”, a epistemo-

logia de Bachelard define o progresso do conhecimento

como retificação incessante. Por sua vez, Popper afirma que o conhecimento

progride

quando

é retiticado pelas

críticas a ele dirigidas. Um conhecimento que se furta à crítica,

consequentemente,

à refutação € à "retificação,

estã fadado à estagnação. Tanto Bachelard quanto Popper

contestam

a

epistemologia

positivista

segundo. a

qual podemos separar a comprovação dos fatos da €/boração teórica de que os fatos científicos exiraem seu sentido. Segundo eles, se todo sistema de enun-

ciados empíricos com pretensões a uma validade científica precisa passar por uma comprovação da reali-

dade

(Bachelard)

ou ser testado por ela (Popper), nem

por isso este imperativo epistemológico deve ser pura €

simplesmente identificado com 6 imperativo tecnológico pretendendo subordinar toda formulação teórica à existência atual de técnicas tornando possivel verificá-la no momento mesmo em que ela se expressa. Nenhum enun-

ciado teórico, em contrapartida, pode ser tido como definitivamente estabelecido: permanece a possibilidade teórica de se descobrir novos meios capazes de questio-

nar as observações validam.

atuais e de rejeitar a teoria que elas

109

.

Obras

de K. POPPER:

— The logic of scientific discovery, Hutchinson and Co., Londres, 1959 (12 edição de 1934), — Misêre de Vhisloricisme (trad, francesa), Plon, Paris ,

1956.



Conjeciures

Londres, —

and

rejutattons,

Routledgc

and

Kegan,.

1963.

Objective knowledge, Clarendon

Press, Londres, 1972.

— La lógica de las ciencias sociales, na obra coletiva traduzida para o espanhol), La disputa del positivismo en lo sociologia alemana, Col, “Teoria y Realidad”, Grijalbo,

Barcelona — México, 1973, — Ver ainda, nesta obra, as discussões em torno das teorias de Popper, por Th. Ador-

no, Sobra ia lógica de las ciencias sociales, pp, 121-146: por J. Habermas, Teorta analítica de la ciencia y dialéctica. Apéndicea la controversia entre Popper y Adorno,

Pp. 147-180; por H. Albert, El mito de la razón total, PP.

181-219; por J. Habermas, Contra un racionalismo menguado de modo positivista, pp. 2921-250, N.B. Em

português,



uma

boa introdução

ao pensa-

mento de Popper, de Bryan Magee, As idéios de Popper, Editora

110

Cultrix, S. Paulo,

1974.

A epistemologia “arqueológica” de Michel Foucault

Não

podemos

compreender

gica representada,

atualmente,

a formação

epistemoló-

pelas ciências humanas,

em busca de um estatuto de positividade ou de cientificidade, sem compreender sua relação com esse conjunto subjacente de conhecimentos e de cultura que pode-

vã ser denominado

“saber pré-científico”, “opinião” ou

“episteme”:

infra-estrutura

mente

À

dito.

esse

trabalho,

cultural

do

entregou-se

saber

propria-

Michel

Fou-

cault; especialmente em suas obra Les mois eí les choses, cujo subtítulo já é sugestivo: “arqueologia das ciências humanas”. O que pretende Foucault é apresentar um certo agenciamento

global das ciências humanas

no in-

terior daquilo que ele chama de “o triedro dos saberes”, e que lhe permite definir uma espécie de espaço epistemológico da constituição das ciências humanas de caráter racional e científico. | 113

1.

O sistema das ciências humanas

O triedro do “saber”, para Foucault, é um espaço epistémológico de três dimensões. Ele se define a partir de

três eiros principais da racionalidade

organizadora

do saber; 1º) O eixo das Matemátic as e Psicomatemáticas, ciências exatas e protótipos da cientificidade; 29) O eixo das Ciências da Vida, da Pro dução e da Linguacem: Biologia, Economia e Ciências da Linguagem (que são ciências humanas): 39) O eixo da Reflexão Filosófica

propriamente

dita,

desenvolvendo-se

como

“Pensamento do Mesmo” ou como “Analítica da Finitude”.

T'omados dois a dois, esses eixos definem três pianos: 19) O plano comum ao eixo das Matemáticas e ao das três Ciências da Vida, da Produç ão e da Linguagem

seria O das Matemáticas Aplicadas; 29) O Plano comum ao eixo das Matemáticas

ria o da Formalização

e ao da Reflexão Fllosóficã

do pensamento,

3º)

se-

O plano co-

mum &ô eixo das Ciências da Vida, da Produção e da Linguagem e ao da Reflexão Filosófi ca seria O das On-

tologias Regionais e das diversas filosofi as da vida, do homem . alienado e das formas simbólica s, Teríamos,

assim, O sºguinte quadro: FeRixio

FLOSÓFICA

As Ciências Humanas

&

Formalização Núcleo

Linghistico

ÚÔniologias Regionais

Núcleo

“re

O

Núctea

Socintágico

——

O Matermátkes a Fisica

Biologia Ecorbmia

Ciências da Linguaçam o

Ciencias ca Vida Produção da Linguagem

114

“ Matemálicas Aplicadas

Quanto às Ciências Humanas, não podem situar-se sobre nenhum dos três eixos, nem tampouco em algum

dos plancs em questão, Elas são pura e simplesmente excluídas do Triedro, pois não podem

ser encontradas

so-

bre nenhuma das dimensões nem na superfície dos planos, Todavia, poderão ser incluidas no triedro epistemológico. De que modo? No interstício desse saber. Mais exatamente: “no volume definido por suas três dimensões". E aí, e somente

aí, que elas encontrarão

seu

Lu-

gar, Formam uma espécie de nuvem de disciplinas representáveis, no interior do triedro, e participando mais vu menos, de modo diversificado, de suas três dimensões.

Elas aparecem, em primeiro lugar, em conexão com as ciências da Vida, da Produção e da Linguagem. A cada

uma

dessas

disciplinas,

correspondem

“mológicas” congregando um com

caracteristicas

comuns

“regiões

episte-

grupo de ciências humanas e eertos modelos

de organi-

zação do saber, À primeira região é a das ciências Psicológicas: tomam de empréstimo à Biologia um modelo que se equilibra em torno dos conceitos de “função” e

de “norma”. tomam

A segunda é a das eclências Soclológicas:

de empréstimo

girando em

torno

dos

à Economia conceitos de

política um

modelo

“conflitos” e de “Te-

gras”. A terceira, é a das ciências Linguísticas e Cultureis: tomam

modela

de empréstimo à ciência da linguagem um

organizado

em

função das idéias de “sentido”

e de “sistema”. E assim se fecha o sistema das ciências humanas nessa triade de regiões epistemológicas,

Esse sistema, porém, não é tão simples assim. Em primeiro lugar, porque essas regiões epistemológicas es-

fts

tão inseridas na História que também é ciência humana, e só poderão ser entendidas numa compreensão da his-

toricidade que é solidária da inteligência contemporãnea da história: não somente q ser do homem “tem” em torno de si “História”, diz Foucault, mas “ele mesmo

é, em sua historicidade própria, aquilo através de que sê esboça uma

história da vida humana,

uma

história da

economia, uma história da linguagem”, Em segundo lugar, cada uma dessas “regiões” aparece como que habitada é abalada por um tipo de prática que desempenha O papel de “contraciência”: “perpétuo princípio de inquietação, de questionamento, de crítica « de contestação daquilo que pôde apresentar-se como adquirido”, 'Tal

é para a região psicológica, a psicanálise; para a região

sociológica, a etnologia; e para a região lingiiística, uma

espécie de forma suprema do pensamento da linguagem,

no limiar da consciência e da criação literária, Assim, as ciências humanas instauram, após a aparência de uma proposição epistemológica positiva, o fenômeno de uma dialética epistemológica que não somente perpassa

mas arruína a imediata e ingênua aparência de solidez

que à constituição das diversas regiões sugeriam ao es-. pírito. E desse modo, termina o sistema de constituição das ciências humanas proposto por M. Foucault,

2.

A episteme ocidental antes da idade moderna

Esse sistema das ciências humanas que, para Foucault, é um resultado, e não um ponto de partida, só será

entendido pela compreensão dos princípios e das justi-

ficativas que ele fornece nos nove primeiros capítulos

116

de Les mois et les choses. São essas análises que constituem o estudo “arqueológico” da episteme ocidental é

constituem a arqueologia das ciências humanas, » descoberta, por assim dizer, de suas raízes e de seus primei-

ros germes epistemológicos no solo da cultura e do saber antes mesmo que elas apareçam, que sejam batizadas com suas atuais denominações, que se digam e sejam ditas “ciências humanas”. O que Foucault pretende analisar é a episteme oci-

dental, A palavra “episteme” é a simples transliteração

No sendo termo grego. que quer dizer saber ou ciência.

tido epistemológico antigo, à “episteme" não passa da No simples “opinião” ou do mero “saber” pré-científico, filosóséculo XVII, já sob a infiuência do cartesianismo

O pensafico e científico, a episteme se apresenta como com tudo mento do homem culto, do “homem honesto”, culturais o que ela comporta de opinião, de aquisições anhos ou anteriores à clência e ao Cogito, de hábitos estr

já irmmcontrários a0s do Cogito e aos da ciência, embora bem pregnados pela emergência do Cogito e das ciência, como

por sua filosofia e pela metodologia

da mathesis,

izar, universalis, Nesse sentido, a episteme vai-se caracter

pela não pela pureza do santuário epistemológico, nem profanidade

daquilo

que

permanece

fora do

santuário,

“mas pela exportação, para fora do santuário, dos valores que ele encerrava, o que implica uma

transgressão dos

onomia da epistegestos puros do santuário. Assim, & fisi

ias clentifime vai depender da estado de suas emergênc

do fala ou precas e racionais cuja linguagem todo mun tende falar.

O intuito de Foucault é estudar os momentos suces-

as etapas de sivos da episteme ocidental. Quer descobrir

res e do sua progressão, em direção ao triedro dos sabe

os agenciamentó das ciências humanas. Nesses moment

iplinas sucessivos, os germes ou os núcleos das três disc 117

.

que se situam

sobre

da Vida, da Produção suagem),

são

tomados

sua investigação. episteme:

o segundo

eixo

do saber

(ciências

e do Trabalho, e ciência da Lincomo

Foucault

centros

descobre

a época da Renascença

clássica da ciência e das Luzes

de

gravidade

de

três momentos

da

(século XVI):

a época

(séculos XVII e XVII!:

e 0 período que se inicia com o século XIX

(1820) e que

vem até nós, Foucault estuda apenas o seg undo periodo:

à idade clássica, de Descartes até 0 século SIX . À episteme do século XVI serve apenas para introduzir o

assunto, À que se segue à Idade clássica & que vem

nós, é antes de tudo

um

segmento

aberto, um

ainda não totalizado durante o qual surgem

até

intervalo

novas di-

ferenças que se instauram e se consolidam, desenvolvem

Suas consequências até o presente estada de coisas, Isso

não quer dizer, porém, que o atual est ado de coisas represente a figura de equilíbrio epistemol ógico de todo q

intervalo. Foucault descobre outras tendências. Posiçõ es

também são tomadas, típicas da filosofia do autor, Nada

disso, porém, pode levar a um quadro epistemológico seguro e definitivo, Fornece-nos apenas um esboço epistemológico ainda sumário, cômodo para fixa r as idéias,

como ponto de partida para o ensino atual sob re a epistemologia das ciências humanas. Contudo, não se pod e

negar a considerável

contribuição que constitui a cone-

xão desse esboço com o olhar investigador proposto por

Foucault sobre

as formações

epistemológicas sucessivas

de que dependem atualmente a emergência e à organi zação das ciências humanas. |

3.

A episteme clássica da representação

“São as formas sucessivas da epistemê clássica que

Foucault estuda iig

de modo

meis completo e pertinente.

Fte utiliza, para » caracterização dessa entidade epistemológica,

o termo

de representação,

Analisando

o uso

desse termo na filosofia de Descartes e de Kant, bem

como a doutrina que sobre ele foi estabelecida por Hegel na Filosofia do Espírito, Foucault chega à conclusão de que é preciso situar e caracterizar a representação, não

somente como um fato mental, mas como um Tegistro epistemológico específico, cuja compreensão é necessária

à atitude científica (ou racional) de todo um período do pensamento e da cultura, Assim, à representação se caracteriza antes de tudo de modo bastante clássico, tal como é proposta por Des-

cartes nas Regulge qd directionem ingentii e como intervém nas formas clássicas de constituição da matemática e da física matematizada

cuja primeira

do século XVII,

grande obra sintética aparece com Newton: naturalis

principio mathemeútica,

o sistema newtoniano

Desse

é constituído

Philosophio

ponto

de vista,

pela doutrina

das

idéias claras e distintas de Descartes, que substitui o jogo das identidadese das diferenças pelo jogo das si-

militudes, no momento em que se trata de compreender

as noções e de constituí-las. Ao se tentar estruturar a compreensão das noções, privilegia-se os esquemas da ordem e da medida como princípios organizadores do conhecimento científico. Este vai buscar seu estímulo, sua animação, seu princípio estruturante e organizador na idéia de uma mathesis universalis que deverá fundarse na prática geral da consideração da ordem € do apelo

à medida. Todavia, não se reduz a isso, a representação

como

forma da episteme clássica, . Para Foucault, a representação deverá

ser entendi-

da a partir da compreensão da função do signo, O esta-

tuto do signo, no período da episteme clássica, é uma das diferenças mais sintomáticas dessa episteme relativamente à época anterior: “No limiar da idade clássica,

ii9

o signo deixa

de ser uma

figura

do mundo;...

ele não

espera silenciosamente aquele que pode reconhecê-lo; jamais se constitui por um ato de conhecimento, servirse de signos não é, coma nos séculos precedentes, tentar descobrir por baixo deles o texto primitivo de um discurso tido e mantido para sempre; é tentar descobrir a linguagem arbitrária que autorizarã a manifestação da nature-

za em seu espaço, os termos últimos de sua análise e as leis de sua composição”

(pp.

72-77). Ao mesmo

tempo,

a lógica do signo muda profundamente. E isso, até nos-

sos dias. À antiga economia do signo erá ao mesmô tempo unitária tintos:

e tríplice, comportando

o que

era

marcado

pelo

três elementos

signo,

o que

dis-

nele

era

marcante e o que permitia ver nisto a marca daquilo, Esse sistema unitário e tríplice desapareceu ao mesma tempo que o “pensamento por semelhança”. Ele foi subs-

tituído por uma um

organização estritamente binária, por

sistema igual ao da representação

por um

quadro:

de um lado, aquilo que é representado; de outro, o quadro representante. Por sua vez, esse quadro representan-

te é investido da representatividade clara e distinta: par significante-significado funcionando indissociavelmente

graças à natureza da representação. E isso, a tal ponto

que “a evidenciação do significado nada mais será senão a reflexão sobre os signos que o indicam (...) e que na

idade

clássica,

discurso

a ciência pura

dos signos vale como

O

imediato

do significado” (pp. 80-81). Em seguida, porém, e levando-se em conta a função mental da imaginação na organização da representação,

desenvolvem-se certos segmentos de normatividade epistemológica que não podem ser ignorados. A ciência clás-

sica (física e matemática) organiza-se como a própria mathesis, lugar de conveniência das “naturezas simples”,

da

álgebra

ou

da análise matemática.

Todavia,

para

além do pensamento da ordem, que é a própria alma da 120

&

mathesis e o princípio distintivo de toda a economia da representação, surgirão no saber dois novos segmentos de organização do conhecimento: o primeiro é o que Foucault chama de taxinomia; o segundo, ulterior, de “análise das pêneses” (estudo da ordem das produções e dos

desenvolvimentos constitutivos no tempo). A taxinomia parece corresponder à mathesis como à disciplina das recomplexas.

presentações

A esse respeito, Foucault traça

o seguinte diagrama;

CIÊNCIAS

GERAIS

DA

ORDEM REPRESENTAÇÕES COMPLEXAS.

NATUREZAS SIMPLES MATHESIS

= TARINOMIA



|

=

ALGEBRA —s

Esse diagrama

corresponde

SIGNOS

apenas aos dois primel-

ros membros do trinômio: mathesis, taxinomia e estudo

das gêneses: “entre a mathesis e n gênese, situa-se & Tegião dos signos — dos signos que atravessam todo 0 do-

mínio da representação empírica, mas não a extrapolam jamais, Margeado pelo cálculo e pela gênese, É O “espaço do quadro”,

espaço

da empiricidade,

diz Foucault,

que

não existiu até o fim da Renascença e que está fadado

a desaparecer a partir

do início

do século

XIX

(PP.

86-07).

4,

A arqueologia das ciências humanas

É justamente no domínio epistemológico constituido por esse “espaço do quadro” situado entre 0 cálculo das igualdades e a gênese das representações, que aparecem os primeiros núcleos desse saber em referência aos quais começam

a se constituir as ciências humanas:

“É

nessa região que se encontra a história natural, ciência 121

dos caracteres que articulam a continuidade da natureza e seu entrelaçamento, Também é nessa região que se

encontra a teoria da moeda e do valor, ciência dos signos que autorizam a troca e permitem estabelecer equivalências entre as necessidades e os desejos dos homens,

Enfim, é aí que se situa a gramática geral, ciência dos signos através dos quais os homens reagrupam a singularidade de suas percepções e rêécortam o movimento con-

tínuo de seus pensamentos” Define-se,

assim,

na

(p, 88). clássica,

episteme

um

lugar

epistemológico onde vão congregar-se (segundo suas afinidades) e assumir a fisionomia especifica de antigos esboços de conhecimento: as histórias naturais da Antigúidade, da Idade Média e da Renascença; os rudimen-

tos da economia; as gramáticas particulares e as primeiras reilexões filosóficas sobre a linguagem. Não se trata ainda dos saberes modernos da Vida, do Trabalho (e da produção), da Linguagem e da Cultura. Trata-se de formações de caráter originale de duração transitória, mas que deixaram vestígios no ternpo, sobretudo nas cbras-

de cultura, Donde, num primeiro sentido, o caráter “arqueológico” desse estudo:

monumentos

volta a certas obras enquanto

de uma época,

mas

que

atestam o clima

geral do pensamento e do saber de um período histórico,

constituindo, por assim dizer, os “arquivos” de uma cultura

e de seu saber. Aparece,

então,

o segundo

sentido

do caráter “arqueológico”: pode-se ler, no estado antigo, melhor do que no novo, o que foram os começos e os prin-

cípios geradores das disciplinas científicas. A volta ao passado esclarece o presente e facilita sua leitura em

profundidade, A arqueologia, ciência das coisas velhas, também é para a ciência, em certa medida, ciência das iniciativas capitais e das inspirações fundamentais, Den-

de a importância de retornar aos estados antigos do saber aparentados com os que hoje chamamos de ciências | t22

humanas,

para interrogar. sua constituição e seu funclo-

namento epistemológicos,

Não vamos entrar aquí no pormenor das análises feitas por Foucault, concernentes às formas clássicas da teorta da linguagem, da história natural e da doutrina das riquezas, Basta-nos ver como essa epistemologia da representação pode servir-nos para compreender

o está-

dio ulterior da episteme, que surgiu com o século XIX e

no qual nos encontramos ainda. Ademais, convém notar que essas três modalidades clássicas do “saber” não são, para Foucault, ciências humanas, nem tampouco “ciências” precursoras de nossas atuais ciências humanas, ÃO

contrário, não passam de núcleos arcaicos dessas disciplinas que situamos no segundo eixo do “triedro dos saberes*”, muito embora

conduzam

o pensamento

à idéia

de “homem”, tal como eia aparece no século das Luzes,

com sua antropologia tentando unificar os diversos saberes concernentes à realidade humana.

5.

O início da era da positividade

A episteme clássica estã hojé encerrada. Seu campo histórico-cultural entra por completo no domínio do estudo epistemológico-arqueclógico. O mesmo não se dá com a episteme que surgiu com o século XIX e que vem

até nós, Pode-se detectar facilmente os ciais de ruptura. O presente é, até certo vel. Todavia, a compreensão de conjunto tural permanece ainda em suspenso, e a ela, bastante problemática, De

qualquer

forma;

a época

da

fenômenos iniponto, descritidessa fase culdoutrina sobre

transição

começa

com a Revolução Francesa. Em 1820, já estamos diante de uma

episteme inteiramente nova. Desmonta-se

o sis-

tema clássico da representação. Novos campos de estudo 123

se instauram. Emerge com muita força a consciência da

História:

o sentido

da

historicidade

do homem,

bem

como de suas obrase de sua cultura. Também emerge a infra-estrutura do trabalho produtivo a título de objeto de saber: E para além da quadro do mundo vivo, constata-se a emergência da realidade da vida organizada, com

sus fisiologia

e sua ecologia

(objetos

da biologia

moderna). Enfim, para além das gramáticas gerais, surgem as realidades flexionais e vocálicas da linguagem. Em

todos esses casos, vemos

aparecer,

por detrás e por

baixo do sistema de representação, uma reslidade de infra-estrutura subjacente, aprofundando cada vez mais

em direção das últimas raízes da positividade empírica. Nesse sentido, a palavra-de-ordem

do novo saber, não é

mais a procura da representação simples e imediata, mas a busca da

última

positividade

do

real,

o esgotamento

fenomenológico da coisa em si, De fato, para as diséiplinas que apareceram situadas

sobre o segundo

wna

transmutação

- clássico:

eixo do “triedro

profunda

dos

saberes”,



do núcleo epistemológico

trata-se do advento, quase científico, de um

novo regime do saber. A história natural transforma-se em blologia (saber da “Vida”, biologia geral e biologia humana). A teoria das riquezas e do valor torna-se conhecimento científico da homem trabalhador, produtor e consumidor de realidades vendáveis. A doutrina da gra- . mátita geral converte-se em ciência da linguagem. Portanto, é em torno desses núcleos, transformados epistemologicamente,

pela passagem

do classicismo

à época

do século XIX e de nossa .contemporaneidade, que vão aparecer

as diversas ciências

humanas

atuais. Desde

o

início, elas pretenderam associar algo da cientificidade das clências matemáticas e físicas, alga da coesão racional dos saberes da Vida, do Trabalho e da Palavra humana, e alga, enfim, da determinação filosófica da 124

|

reflexão e das análises da finitudê humana, Podemos di-

zer que a transformação epistemológica realizada com

a superação desses três núcleos da idade clássica — superação do nível da representação pelos saberes ulterio-

.

res da positividade da Vida, do Trabaião e do Falar hu-

mano — equivale à superação daquilo que G. Bachelard chama de “obstáculo epistemológico” opondo-se, no interior do espírita ainda “pré-científico”, à constituição de ciência verdadeira.

uma

Uma

vez eliminado

o obstáculo

epistemológico de certo desconhecimento da positividaGe na doutrina clássica da representação, as ciências humanas podem constituir-se e aparecer em estado livre no espaço do saber.

Entretanto, isso não se deu sem uma reação exerci-

da sobre os símbolos filosóficos de inauguração (Cogiio cartesiano)

e de recapitulação da episteme clássica. Ve-

jamos a reação sobre o símbolo recapitulativo da filosofia das Luzes que é o Homem. Esse nomem da Iepresentação e das Luzes aparece doravante como

que Tetoma-

do por sua própria positividade, Ele não passava de uma imagem

de sonho.

Estava envolto em

sombras

que

as

“Luzes” vieram dissipar. Vivemos o desfecho da antraopo-

logia, a desintegração do homem, dois fenômenos epistemologicamente conexos à emergência atual de certas disciplinas humanas, que Foucault chama de “contraciências”: a Psicanálise, a Etnologia (de Lévi-Strauss) c um certo saber nos confins da ciência da linguagem e

da prática literária. Nesse sentido, o Homem, o homem

das Luzes, seria o último legado da era da representação

transmitido filosoficamente à época ulterior: “O homem

é uma invenção cuja data recente a arqueologia de nossa

época mostra facilmente. E talvez 0 fim próximo”

(p.

308).

Les mots et les choses são um grande afresco, cativante

e bastante

instrutivo,

da

história

genética das

125

|

ciências humanas;

história

que culmina

num

agencia-

mento global dessas disciplinas, Temos aí, sobretudo no

capítulo. X, um primeiro modelo do estudo da relação

de todo o conjunto das ciências humanas com um pressuposto de saber e de cultura de que elas terminam por

emergir com a fisionomia que se apresentam hoje, “Arqueologia”, espécie de epistemologia à la Piaget, mas transportada do elemento do sujeito individual estudado

em seu devir mental ao elemento do sujeito coletivo re-

presentado por uma população pensante em devir -histórico e por uma espécie de gerações sucessivas interessando mais pelas etapas filogenéticas do que pelas ontogêneses individuais da formação coletiva do saber. Donde sua importância fundamental para todos aqueles que se preocupam com a epistemologia geral das ciências hu-

manas. Essa obra propõe, com efeito, no limiar de tal

epistemologia, um esquema de reflexão talvez mais unificado do que o encontrado na obra também fundamental de G. Gusdorf. Introduction aux sciences humaines —

essai critique sur leurs origines et leur dévelopment

(Paris,

6.

Belles Letres,

1960).

Epistemologia arqueológica Enquanto

epistemologia,

a “arqueologia”

de

Fou-

cault pode colocar-se sob o patrocínio da filosofia do con-

ceito, pois sua teoria da episteme outra coisa não é, como

ele próprio reconhece, senão a teoria de um sisteme. NãO

se trata de uma teoria do método científico, mas de uma

teoria do dispositivo que funda o sistema das ciências,

seu campo epistemológico, sua estrutura e sua história, Ele chega ao conceito de episteme por uma démarche arqueológica: busca das gêneses ideais da época clássica,

Diferentemente

126

das

demais

arqueclogias

(arqueologia x

positiva: que busca a origem do homem e segue o fio de sua história; arqueologia ontológica: que remonta ao buscando

fundamento,

origem;

& origem do homem

no Ser como

que

busca a ori-

arqueologia fenomenológica: e a origem

gem, no homem,

do homem,

na Natureza),

a arqueologia proposta por Foucauit não visa a descoberta da origem do homem, mas o fundamento das ciên-

cias humanas. O campo epistemológico ou o domínio onde els se situa, não é a ciência, mas 0 solo sobre o qual se constrói a ciência. Trata-se de um sistema, não de

códigos de regras relativamente à percepção e à palavra,

mas de ordem

fundamental que deve orientar e reger as

ciências, constituindo para elas um e priori histórico. É essa experiência da ordem ral do saber”,

Também

bem

é elã que

como

que determina o “espaço geas afinidades entre as ciências.

comanda

a experiência

das coisas.

Não são as coisas que constituem problema, Toda a pro-

plemática é determinada pela “disposição epistemológi-

ca” da momento histórico (p. 357). Para a epistemologia, o importante não é o objeto tratado por uma ciéncia, mas

aquela

o lugar que esta ou

ciência ocupa no

espaço do saber. No que diz respeito às ciências huma-

nas, “não é o estatuto metafísico ou a indelével transcendência desse homem de que elas falam, mas a comp'exidade da configuração epistemológica em que elas se encontram situadas” que explica sua dificuldade, suas incertezzs e sua precariedade (p. 559).

7.

Conclusões

a)

Apesar

de seu enorme

interesse e de sua

im-

portância para o estudo da constituição das ciências humanas,

em

que se mostram

insatisfatórias

as análises

l2r

de Foucault?

Em

primeiro lugar, elas são

epistemologicamente,

pelo emprego

comandadas,

de um método e de

tum modo de pensar que também não escapam a essa episteme que ele descreve como sendo a da representação, Toda a sua abordagem visa a propor ao leitor uma, representação, um quadro do saber, atualizados com os meios que são os da episteme da represenção, Evidentemente, ele fala de um “sistema das positividades” que também

é um

um “sistema

“sistema

das

geral do saber”

simultaneidades”

é, enfim,

(p. 77). Foi através dessas

noções que ele fez uma leitura dos textos filosóficos do passado. Talvez possamos ver nelas a expressão da noção de Weltanschauung própria à filosofla da história alemã ou da noção de totalidade cultural própria às an* tropologias que visavam a compreender a solidariedade das instituições e a unidade da cultura. No entanto, F'oucauii tem a pretensão de ser mais rigoroso e mais preci-

so, Mas podemos perguntar se tal rigor não seria devido à fidelidade a uma “concepção”

espacial substituindo o

lugar de uma estrutura topológica. E se-tal precisão não

seria o fruto de uma decisão arbitrária, pois o campo epistemológico fica reduzido ao estudo de três positividades:

vida, trabalho e linguagem.

matemática

não exprimiriam

Será que a fisica é a

também

a exprriência da

order? Será que as mutações ou as descontinuidades da episteme não seriam menos bruscas e mais compreen-

síveis se fossem re-situadas na vida da totalidade culturat? Não seriam essas descontinuidades um empecilho à compreensão do progresso do saber? Recusando po mesmo tempo a história e aquilo que assegura a continuida-

de da história — a permanência mana

estruturada

de uma

natureza hu-

pelo q priori —, a arqueologia e q a

priori histórico de Foucauit parecem condenar a histórta, poís não pertencem a um sujeito histórico, Por que

essas mutações? Por que 0 « priori é histórico? 128

b)

OQ que mais

se poderia contestar a Foucault é

que, para ele, as ciências humanas não falam do homem, Na dimensão própria &o inconsciente, elas analisam normas, regras, conjuntos significantes que revelam à consciência as condições de suas formas e de seus conteúdos.

A psicanálise e a etnologia aí ocupam

um lugar privile-

giado, À primeira sc esforça por fazer falar, através da consciência, O discurso inconsciente que sempre se esquiva, embora esteja sempre presente. Também a segunta não atinge o homem, mas a região situada fora do

homem e a partir da qual se pode saber positivamente aquilo que se dá ou escapa à consciência,

c)

O que se deve entender por “existência” ou “ine-

xistência” do homem? Trata-se apenas de um conceito? Ou da multidão dos homens concretos que encontramos diariamente vivendo, agindo, criando e existindo? Em

sua significação moderna, o “existir” aparece coma uma “palavra”. Foi assim que Rousseau, traduzindo 0 Cogito cartesiano, o “eu penso, logo existo”, afirmou que “o

mais útil e menos avançado de todos os conhecimentos humanos”

residia precisamente no conhecimento

do ho-

mem. E isto, porque os livros científicos nos ensinam apenas a ver ns homens tais como eles se fizeram, Ora, tais

como

elcs

se

fizeram, pela cultura,

“existem”

mais,

o homem

estudado

apenas

os homens

“aparecem”. Por

pela ciência não

passa

não

conseguinte, de um

fenô-

meno humano, fenômeno que se tornou presa de uma linguagem. Como pedéria o homem voltar a existir no interior da cultura? Foi de certa desconfiança em relação ao desenvolvimento da cultura que nasceu o problema da “existência” do homem. Nietzsche foi, sem dúvi-

da, o primeiro filósofo que, ao atacar violentamente a ciência, a moral e a metafísica reinantes de seu tempo, chegou à conclusão de que não somente Deus estava morto, mas de que o homem

estava também

morrendo. 129

E hoje Foucault retoma a mesma assertiva: “O homem ê uma invenção cuja data recente a arqueologia de nosso

pensamenta mostra facilmente. E talvez o fim próximo" (p. 398). No entanto, sempre se falou do homem. Segundo Foucault, uma coisa é certa: o homem não é o mais antigo dos problemas nem tampouco o mais constante que se colocou ao saber humano. Por outro lado, ele não pode ser o acesso à objetividade daquilo que, durante muito

tempo,

esteve entregue

ao domínio

das crenças e

das filosofias. Talvez fosse mais correto dizer que o homem é a onipotência do saber, e que compete à arqueologia determinar suas disposições fundamentais. Este saber do homem está contido no circulo do saber reli-

eioso, filosólico, científico e arqueológico. É neste sentido que se pode compreender o êxito de Foucault: os homens atuais estão esmagados pela culture e por seus re-

sultados. O humanismo atual é uma abstração. Todos os gritos da coração, as reivindicações da pessoa humana e da existência estão, a seu ver, separados

do mundo

científico e técnico, o único mundo real, Para Foucault, o humanismo é um pára-vento por detrás do qual se es-

conde um pensamento reacionário, formado de todo tino de alianças monstruosas, não se sabe em nome de quê, Em

nome

(Quingaine

do homem

littéraire,

é que

não

maio 66).

pode

ser, diz Foucault

Porque

nossa

geração

não reivindica “o homem contra o saber e contra a técnica”, Seu esforço em “mostrar que nosso pensamento, nossa vida, nossa maneira

de ser, até mesmo nossa maneira

de ser mais cotidiana, fazem parte da mesma organização sistemática e, portanto, dependem das mesmas categorias

que regem o mundo científico e técnico. É o “coração humano” que é abstrato, e é nossa pesquisa, que quer

ligar o homem à sua ciência, às suas próprias descobertas, ao seu próprio mundo, 130

que é concreta”.

d)

E o que significa a ciência, de que tanto hoje

nos orgulhamos? Ela mais parece um acervo de conhecimentos acumulados nos livros do que conhecimentos que,

de fato,

possuímos

em

nós

e

que

preender.

A lingiiística e a etnologia

Foucault,

que

estamos

submetidos

possamos

com-

nos ensinam,

a leis que

nos

diz esca-

pam. A psicanálise, por sua vez, mostra-nos que somos aquilo

que

ignoramos

ser.

Presos

entre

a. superlingua-

gem da ciência e a sublinguagem da comunicação de, massa, não sabemos mais o que significa verdadeiramente falar, Aqueles que pretendem saber utilizam um poder anônimo para conduzir-nos, contra nossa vontade, a um

lugar que nos foi como que preestabelecido por um

destino inelutável. Tudo indica que é a civilização cientifico-técnica que elabora, sob medida, as condições “ideais” de nossa existência, OQ esforço do homem reduzse a uma tentativa de adaptação a essas condições. Nesse

sentido, o termo “humanismo” tauração de um

reino de felicidades anunciado e progra-

gramado pelos tecnocratas.

ria desembaraçado Trata-se de ciedade sem é livre para onde ele é

passa a significar a ins-

Neste reino,

o homem

esta-.

deste enfadonho trabalho de pensar.

um reina que corresponde a este Lipo de sovida, de que fala Bachelard, onde o homem fazer tudo, embora nada tenha para fazer; livre para pensar, muito embora nada mais

encontre para pensar, À ciência pensará por ele, saberá | em seu lugar. Quanto

a nós, homens, estamos dormindo,

num verdadeiro estado de sono antropológico, caracterizado pelo que Foucault chama de psicologismo e de sociologismo, |

e)

Na filosofia desse pensador, pois, o homem

passa do conceito de homem, te num

não

de uma figura desvanecen-

sistema temporário de conceitos:

o homem

é, en-

tão, um ser finito que só existe para 9 tempo em que o sistema o reivindica, o funda e lhe confere um lugar pri131

vilegiado. Passado esse tempo de promoção à cxistência ele volta a ser um

epistemológica,

mem que

do

lugar

sistema

ser

do

e que defende seus interesses, o ho-

homem

que tem

um

real, o que se

não considera o homem

saber. Foucault afirma como

algum

em

entre os seres, situado

ser humano,

desejos e que seja

“o pensamento

realiza,

para

ele

O que

importa é saber e mo-

mesmo

dificação daquilo que ele sabe”, Contudo, s2 o pensamento “sai de si mesmo", não é para entrar no mundo e mat-

não há mundo, só há positivi-

cê-lo com sua presença:

dade, às quais O sistema liga o destino do homem. Tedavia, esse homem

é recusado

como inventor

do sistema

e como objeto no sistema. É o sistema, “feixe único de necessidades”

transformam

(“conjunto

de

relações

independentemente

relações relizam”)

que

lidades que chamamos

das

que

mantém,

se

coisas que essas

torna possíveis essas individuade Hobbes ou Berkeley, Hume ou

Condiliac (p. 77). O indivíduo, enquanto tal, só tem opiniões, que não constituera um pensamento, É o psnsamento

imanente

ao campo epistemológico que constitui '

as opiniões. Ag mutações que o animam

são “aconteci-

mentos na ordem do saber”, Impessoais é imprevisíveis. Só tem o direito de falar em primeira. pessoa aquele que

pensa o sistema. Tal sistema é anônimo e sam sujeito. O que ele pensa é a descoberta do “há”: há um “algo” (on) indeterminado, um pensamento anônimo, um saber sem sujeito, teórico, sem identidade; em todas as épocas, & maneira como as pessoas refletem, escrevem, julgam, fa-

lam, experimentam as coisas, todo o seu comportamento é dirigido por uma estrutura teórica, por um sistema que muda com as épocas e as sociedades. f)

Como

podemos

notar, à homem

é rechaçado

ao

mesmo tempo como sujeito e como objeto do sistema, A “filosofia tem algo melhor sobre o que pensar, do que pensar o homem. Aqueles que ainda se obstinam em pen“132

sá-lo, não somente

pensam

mal, mas

são cúmplices

de

uma mistificação. Porque o homem, na perspectiva de Foucault, não é um objeto difícil, por ser simplesmente

um objeto inexistente. Sem dúvida, há seres humanos, mas 0 homem não passa de um mito. As propriedades e os privilégios que os humanistas atribuíram ao homem, a este fantasma, são ilusórios, Uma antropologia digna

deste nome é aquela que visa « compreender q pensamento, e de forma alguma aquela que tenta interrogar-se sobre o homem.

Fazendo

isto, “o pensamento

adormece

de um novo sono” (p. 353) e a ciência se extravia, Quanto às ciências humanas,

elas oscilam entre a ciência em-

pírica, a ciência formal

e a reflexão

filosófica,

Por isso

mesmo, elas são instáveis, perigosas e estão em perigo (p. 359). Torna-se, pois, necessário destruir o mito, E

foi para melhor desembaraçar-se deste mito, que Foucault tentou analisar as condições de aparecimento das ciências humanas, Sua teoria é conhecida: o homem só aparece no campo do saber no limiar do século XIX, e está, hoje, fadado

a um

desaparecimento

próximo.

Sem

dúvida, como já dissemos, é o conceito de homem que cstá em jogo. Foucault fala da imagem tradicional que se tinha do homem

e, por conseguinte, de todo o huma-

nismo clássico que tentou resolver, mas sem conseguir, em termos de moral, de valores e de reconciliação, os problemas das relações do homem com o mundo, os pro-

bleimas da realidade, da criação artística, da felicidade, etc.

g) Situa-se aqui, a nosso ver, a grande ambiguidade da epistemologia de Foucault, se é que ela não pode ser definida como uma filosofia ambígua. Porque na medida

em

que

ela exclui

totalmente

o homem

real,

para

considerá-lo apenas como conceito, não pertencendo mais

a um

grupo ou a uma

zindo-se

a um

elemento

coletividade concreta, mas redude um

sistema,

ela ignora por

133

completo que o homem é um ser de necessidades e o su-

jeito da história. Neste sentido, poderiamos dizer com. Sartre:

“O essencial não é o que se fez do homem, mas

o que ele faz daquilo que fizeram dele”, O que fizeram do homem, continua Sartre, “são as estruturas, Os con-

juntos

significantes

que

as ciências

humanas

estudam.

O que ele faz é a própria história, a superação real dessas estruturas numa prazis totalizadora” (Entrevista a L'are nº 30).

134

A epistemologia “crítica”

Ao lado das três grandes correntes epistemológicas

contemporâneas,

cada uma tentando entender e explicar

a atividade cientifica, através de uma elucidação das re-

lações entre Teoria e Experiência,

entre Razão

e Fatos,

procurando estabelecer o valor e a significação dos Mé-

todos, dos

Resultados

ou da Linguagem

das Ciências:

1. à epistemologia lógica, visando a um estudo acurado da linguagem científica e uma pesquisa metódica das regras lógicas que presidem a todo enunciado correto (empirismo ou positivismo lógicos); 2. a epistemologia genética, tentando elucidar a atividade científica: e partir de uma psicologia da. inteligência, culminando num estruturalismo genético e construtivista (epistemologia de J. Piaget); 3. a epistemologia histórico-crítica, procurando elucidar a produção das teorias e dos conceitos cien-

tíficos a partir de uma análise da própria história das ciências, de suas revoluções e das dêmarches do espírito

científico (Bachelara, Canguilhem, Foucault); ao lado, pois, dessas três maneiras de abordar a ciência em sua 137

atividade, vemos surgir, recentemente,

crítica, fruto

a epistemologia

epistemologia,

um novo tipo de da reflexão

que os próprios cientistas estão fazendo sobre a ciência em si mesma. Trata-se de uma reflexão histórica feita cientistas

pelos

sobre

os pressupostos,

os

resultados,

a

utilização, o lugar, o alcance, os limites e a significação

sócio-culturais da atividade científica. O que eles pretendem mostrar é que as ciências, hoje em dia, não se impõem mais por si mesmas; que seus resultados não po-

derão mais impor-se de modo evidente e triunfante; que

as ciências não poderão mais constituir a verdade das sociedades atuais; que suas virtudes em nada são evldentes; que os pesquisadores precisam interrogar-se 50-

bre a significação da ciência que estão fazendo, que eles

não

mais fazer abstração da maneira como o

poderão

conjunto da pesquisa científica é institucionalizado, organizado, orientado, financiado e utilizado por terceiros; que o próprio trabalho científico está profundamente

afetado pelas novas condições em que elé é realizado na

sociedade industial e tecnicizada; que os pesquisadores devem responsabilizar-se pelas consequências que suas descobertas poderão ter sobre a sociedade; que eles pre-

cisam tomar consciência de que, na vida da ciência, há

duas séries de forças atuantes:

aos objetivos da. sociedade; e as forças in-

correspondem

ternas,

que

as forças externas, que

correspondem

ao

desenvolvimento

natural

da ciência; portanto, precisam tomar consciência de que

a ciência está cada vez mais integrada num processo Social, industrial e político.

A epistemologia crítica, pois, tem por objetivo essencial interrogar-se sobre a responsabilidade social dos cientistas e dos técnicos. Esta interrogação torna-se hoje

uma das questões cruciais de nossa cultura. E foram os

próprios

cientistas que, em

este problema. 138

Há algumas

primeiro décadas

lugar,

colocaram

atrás, nem mesmo

os intelectuais mais extremistas, que contestavam todas

&s instituições existentes, ousavam criticar a ciência. Nem tampouco os niilistas mais ferrenhos, ao atacarem todos os valores reinantes, colocaram em

questão a ciên-

cia,

de que

Ao contrário,

estavam

convencidos

a igno-

rância era a fonte de todos os males, e de que somente a ciência poderia resolver todos os problemas e curar todos os males da sociedade. Todavia, tal otimismo desa-

pareceu. Muitos cientistas inclinam-se a pensar que a própria ciência está na origem de muitos males. Sem dú-

vida, o espírito da filosofia das Luzes continua, bastante viva,



toda uma

mentalidade

mais ou menos

difusa

tendo por fundamento ideológico a fé na ciência e em seus resultados:

o domínio

da natureza,

a riqueza ma-

terial, a organização eficaz da vida social, ete. Contudo, paira cada vez mais uma

suspeita sobre o número cres-

cente de conseqglências do desenvolvimento científico: a degradação das relações individuais nas sociedades industrializadas, a utilização das pesquisas científicas para fins destruidores,

a possibilidade

de manipulação

cres-

cente dos indivíduos, a utilização maciça dos clentistas, de seus métodos e de seus “produtos” para fins repressivos, a obsessão

patológica pelo consumo,

gerando

um

esgotamento irracional dos recursos naturais e uma poluição praticamente

irreversível do meio

ambiente,

etc.

Diante desta situação, que é nova, os cientistas começam a reagir. E é a esta interrogação sobre a signifi-

cação ren! da ciência que podemos chamar de “epistembojogia crítica”, Com efeito, & ciência, para a opinião pública, apresenta-se como um poder onipotente, como um saber mágico, admirado, temido, intervindo em todos os domínios da vida. Podemos dizer que a sociedade atual

parece venerar uma nova Santíssima Trindade: CiênciaTécnica-Indústria. Trata-se de um triunvirato do Saber que não pode mais apresentar-se cómo um conhecimen139

to puro. imaculado ou aristocrático, como uma contemplação amorosa da Verdade, mas como um conhecimen-

to eminentemente tecnicizado, governando de modo qua“se absoluto um gigantesco processo de produção racionalizado e industrializado, Preso no feixe das mil solicita-

. ções do “ter” e das motivações do chamado establiskment, mas termbém submetido às cial sempre mais insídioso, se como que instalado no tecnonatura sempre mais

astúcias de um controle soo homem muderno encontraconforto prometido por uma apericiçoada. Onde ele pode

depositar suas esperanças? Tanto o sonho ingênuo do sécu'o das Luzes, quanto a mitologia científica do século XIX, nido

da

prometendo

ciência,

como

felicidade humana,

ao homem motor

pareceu

um

progresso

essencial

indefi-

e incansável

da

não mais ter razão de ser.

Tudo indica que, hoje em dia, os cientistas tomaram-se objeto- de propaganda. Quem não os vê sendo exibidos em toda parte como vedetes ou campeões? Como se fossem um precioso capital, um alto investimento cuja rentabilidade deve ser garantida:

uma

moeda

de troca, uma

imagem de marca nacional ou ideológica. Num certo sen-

tido, a função do cientista foi teatralizada, Ele é uma espécie de iceberg da saber flutiando sobre o oceano de nossas

ignorâncias

e incertezas,

Toda

a parte

oculta

e

propriamente científica. de seu trabalho parece justificar seu estatuto privilegiado, que ninguém parece contestar. - No entanto, o cientista não pode ser estranho à “sociedade do espetáculo”, Nos últimos tempos, ele saiu de sua ficção neutralista e, com ele, também a ciência.

Tornou-se famosa, no início da última guerra mundial, a afirmação de Oppenheimer:

“Quando

vocês vi-

rem algo de tecnicamente delicioso (sweet), continuem em frente e façam-no, sem se perguntarem sobre o que é: preciso fazer, a não ser depois que vocês tiverem obtido. seu sucesso técnico”. Como podemos notar, esta trantdo

quila

“irresponsabilidade”,

que

faz com

que

a ciência

conserve seu caráter lúdico, não somente degrada o cien-

tista, mas revela à impotência

da própria sociedade em

conceber um projeto que seja capaz de finalizar o pro-

gresso científico, uma vez que ele estaria entregue à anarquia de seu próprio crescimento, Ora, relativamente a este crescimento, é claro que o Estado intervém, sobretudo pela limitação dos créditos. Neste sentido, o

cientista fica submetido a instâncias burocráticas estranhas à atividade propriamente racional, Donde a disputa

que

dos cientistas,

na

se verifica

concorrência

em vista da obtenção de financiamentos. Por outro lado, enquanto a ciência da ciência permanecer, para o clentista,

desejo

um

futurologia

uma

meramente

ou

romântico

vaga, o único modo

a objeto

de

para

que ele tem

reconquistar sua autonomia consiste em vincular-se ao! poder, para que este inspire diretamente uma política da ciência. Todavia, mesmo neste caso, semelhante po-

lítica ainda permanece uma

aliança do possível, do pro-

vével e do desejável: uma mescla de racional e de, irracional. De qualquer forma, ao se aproximarem do poder.

político, os cientistas aumentam

Sen-

sua dependência,

do assim, teria ainda sentido falarmos de neutralidade isolacionista? Se tomarmos, por exemplo, um acontecimento de alcance universal, cuja causa possa ser atribuída à “irresponsabilidade” ou “alienação” dos cientistas, como po-

deriam eles reagir? Há duas possibilidades de tomada de posição: fosse

a) ou eles aceitam

um

estado

esta alienação

de coisas natural,

como

continuando

se ela a esta-

belecer uma distinção nitida entre a responsabilidade da

criação e a da

utilização

do saber;

voltam-se contra ela, mas também produtores

“neutros”

de

ou então,

Ire-

contra seu estado de

informações,

cupar-se com os objetivos

b)

passando

fundamentais

da

a preo-

pesquisa, 141

onde

todo trabalho

ficação

intelectual deve adquirir

final. Segundo

esta hipótese,

os

sua signi-

cientistas deve-

rão modificar sua concepção fundamental da natureza de sua tarefa, Por outro lado, deverão abandonar a idéia segundo a qual a ciência sempre neutra de qualquer contaminação)

é positiva (isenta e para aceitar a idéia

de uma ciência crítica, capaz de analisar as relações que ela mantém

com

a sociedade, bem como

as orientações:

ou utilizações eventuais que esta sociedade poderá impor-lhe. Fazendo isto, os cientistas tomarão consciência de seus descompromissos tradicionais, passando a preocuper-se com as utilizações que podem scr feitas de suas

descobertas e invenções para fins não-humanos. Todavia, segundo a primeira hipótese, os cientistas que adotarem tal atitude continuarão a confinar-se numa estrei-

ta divisão do trahalho e a fugir a toda responsabilidade. O argumento que utilizam, aparentemente irrefutável, concerne à objetividade científica: esta nada tem a ver com os engajamentos pessoais. Dai poderem os cientistas

refugiar-se na idéia segundo a qual, não havendo um trabalho eticamente neutro e livre de toda e qualquer referência a um sistema de valores, a ciência perderia seu

caráter de objetividade, ficando ao sabor das flutuações ideológicas,

Contudo, é um fato que a imagem. da ciência está mudando, As condições materiais e sociais da pesquisa chamada

de

“pura”

(teórica

ram-se substancialmente.

ou

Donde

fundamental)

a questão:

altera-

o que vem

2 ser, hoje, a ciência? E qual é sua verdadeira significa-

cão? Falar da significação da ciência consiste em eluci-dar, de um

lado, o termo

do outro, “ciência”,

o termo

“significação”, Será que ainda podemos falar deq ciência? Não

seria. melhor e mais

correto

empregarmos

0

termo no plural, e dizermos as ciências? Quando dizemos º ciência, não estaríamos adotando, de início, um i42

ponto de vista idealista? Por outro lado, pe!o termo “sig-

nificação”, não estaríamos expressando, em primeiro lugar, que a ciência deve ser considerada como uma prática humana? Com efeito, “significação” quer dizer, antes de tudo, a intenção subjetiva do cientista, Esta intenção se caracteriza pela busca do Conhecimento, muito embora tal conhecimento, desde Descartes, esteja fundamentalmente orientado para o que se convencionou chamar de “dominação da natureza”. Em segundo lugar,

o termo “significação” serve para evocar as intenções Cxplícitas ou

implicitas daqueles

que,

direta

ou indireta-

mente, vrientam ou dirigem a política científica. E esta orientação se faz, hoje mais

do que nunca,

para 0 a%-

tecnológi-

mento da produção e para o desenvolvimento

co. Todavia, O que a epistemologia crítica pretende maostrar é que, uma vez que o conhecimento científico se

torna cada vez mais um poder, é este próprio-poder que irá constituir, nas sociedades industrializadas, a sigmificação real da ciência, Independentemente das motivêções subjetivas dos cientistas, a significação da ciência

deverá ser procurada no poder que o saber hoje em dia confere, Este “poder” da ciência não se situa fora dela, Nem tampouco é de grande utilidade a velha distinção entre ciências fundamentais e ciências aplicadas. Forque é na

experiência de seu próprio poder que a ciência, mesmo teórica ou fundamental, constitui-se como saber. Vejamos, no entarito, os dois pólos em que se situa a ciência: de um lado, o pólo do saber; de outro, o do poder. O saher pelo saber estã na base do desenvolvimento da ciência. Contudo, não se pode negar que, hoje em dia, ela

desempenha

um

papel

tão

importante

no

desenvolvi-

mento das forças produtoras, que há uma preeminência do saber para o poder. Ninguém contesta que a pesquisa científica, sobretudo em

nossos

dias, comanda

cada vez 143

mais. diretamente

todo o desenvolvimento

econômico.

O

lugar que a ciência ocupa na sociedade atual é tão grande e tão

significativo,

que ela se torna uma

importantes atividades humanas,

das mais

a ponto de constituir-

se mesmo numa das formas específicas da existência moderna do homem, E é a partir desse fato que parece completamente

ciência

sem

significação

desinteressada

ser chamado

real

a distinção

(teórica ou pura)

entre

e o que pode

de ciência-técnica ou aplicada. Na realida-

de, todo o processo

científico,

da

pesquisa

fundamental

ao crescimento econômico, passando pela pesquisa aplicada ou de desenvolvimento, está intimamente vinculado ao poder que o saber científico confere. Parafraseando Nietzsche, podemos dizer que não é mais possível ad-

mitirmos

a “imaculada

concepção

muito que ela perdeu sua “inocência”

De há muito

da ciência”. De



ou sua “candura”,

que ela é cúmplices do processo de indus-

trialização. Não só ela contribui, mas continua a organizar tal processo, continua a racionalizar seu funcio-

namento

e a estabelecer sua soberania, De um lado, ela

recebeu esta materialidade

manifesta de um

dizer, esta garantia

poder-fazer;

de um

poder, quer

do outro, foi le-

vada a multiplicar a estatura de seus próprios empreendimentos, o poder de seus instrumentos, a resistência de seus materiais e, por conseguinte, a ampliar o campo de suas investigações: do microcosmo (quimica do ser vivo, física das partículas) ao macrocosmo (exploração do espaço). Com a industrialização, a prática científica mudeu de escala como que da natureza. O tempo da “ciência acadêmica”, autônoma e livre, foi pouco a pouco dando

lugara uma ciência dependente do Estado ou da indústria. E hoje, ela entrou no grande jogo diplomático das políticas nacionais da ciência, A litile science do passado “tado

cedeu lugar à big science atual, Houve uma invasão da

vertigem do quantitativo. A pesquisa foi absorvida na espiral do crescimento, Está sempre à cata de créditos.

Aceita os contratos que lhes são ofertados para subsistir. A corrida armamentista se serve dela. Outrora, promessa de felicidade, a clência torna-se

ameaça

de morte.

Está

hoje subordinada a instâncias burocráticas que são estranhas à atividade “racionalizante”. E as tomadas de decisão não estão mais submetidas a uma regulamenta-

ção propriamente científica, Mas,

afinal, o que vem

a ser a ciência?

Definições,

é o que não falta. Muitas são demasiadamente

amplas,

a ponto de não mais distinguirem entre ciência e especulação. Outras são por demais restritas, a ponto de reduzirem a ciência aa saber fundado em fatos observáveis,

traduzidos numa linguagem formalizada e susceptível de uma verificação experimental em laboratório. Ha uma. maneira “idealista” de se conceber a ciência: ela seria esta procura desinteressada do Conhecimento ou da Verdade.

Por

outro lado,



um

modo

realista,

porém,

in-

gênuo de concebê-la: ela se confundiria com a tecnolocia, com o saber meramente operacionalizáve!, destinado

a produzir industrialmente. Uma coisa é certa: não po-

demos definir de modo a ser “a ciência”.

“neutro” e “objetivo” o que vem

Se, por

um

Jado, ela é uma pesquisa

metódica do saber, por cutro, podemos considerá-la como uma mancira de interpretar o mundo. Na realidade, porêm, podemos considerá-la como uma instituição, com

suas academias, seus grupos de pressão e seu ritual próprio. E seria verdadeiro dizer que ela se torna cada vez

mais um métier. Basta unalisarmos atentamente as condições reais do trabalho científico para percebermos que ele estã impregnado de problemas sociológicos e políticos. Resulta, então, que seria temerário dizer que existe “pjência”

autônoma,

pura

ou

absoluta.

Pelo

contrário,

tds

somos levados a crer que o saber científico não é mais, como

outrora,

eminentemente

racional,

nem

muito

me-

nos o detentor de uma “razão” imutável. As normas da ciência são históricas e, por isso-mesmo, são condicionadas e evoluem. Por outro lado, não podemos afirmar com tranquilidade que os cientistas sejam isentos de preconceitos ou de pariis-pris, Eles se servem de sua imaginação. Não estão aa abrigo das ideologias nem das pressões sociais. Na medida em que a ciência penetrou na indústria, foi profundamente industrializada. Isto não quer dizer que os fins meramente utilitários predominem na orientação da ciência, mas que as normas intelectuais e éticas dos cientistas sofreram os efeitos de novos imperativos, passando cada vez mais a depender das decisões e dos financiamentos externos ao “munda científico”. As escolhas dos cientistas, que a princípio eram

“livres”, tiveram que se dobrar às opções estranhas

ao interesse imanente à ciência. Assim, o que pretende mostrar

a epistemologia eri-

tica, é que a verdadeira significação da ciência não reside mais no sater enquanto tal, mas no poder que ele cictivamente confere, E é na experiência de seu próprio

poder que a ciência se constitui como saber. Isto se aplica, quer aos conceitos, cujo caráter cada vez mais opera-

tório pressupõe sempre uma experimentação (real ou simulada), quer às teorias, pois estas só são reconhecidas como verdadeiras na medida em que são verificadas (fei.-

Las verdadeiras) pela experiência, o que implica uma dupla

operacionalidade:

a primeira,

intrinseca

à

teoria,

tenta resolver equações ou fazer funcionar “operadores”; a segunda, de natureza experimental, tenta construir dispositivos experimentais c efetuar medidas. E é por isso que, na

de saber” iéb

ciência,

não

se distinguem

e a “consciência

mais

de poder”,

a consciência

Porque,

de fato,

conhecer cientificamente, hoje mais do que nunca, consiste em saber que se sabe jazer.

Pur conseguinte, quer no plano teórico, quer no prá:

tico, à ciência se justifica por seu poder. Aliás, este é um

dos argumentos mais utilizados pelos cientistas quéndo se trata de angariar fundos para suas pesquisas: o interesse social ou prático que elas poderão proporcionar. E se não fosse assim, qual seria sua importância social?

Donde se conclui que não há distinção rígida entre “ciência” e “técnica”, pois não se pode considerar a primeira como um “em-si”, independentemente de seu exercicio

concreto, nem

tampouco dissociar o discurso científico

de sua verificação prática, que implica uma técnica. Com

efeito, o método experimental e dedutivo, com quatro sé-

culos de sucessos inegáveis, aumenta dia a dia seu im-

pacto-sobre a vida social e individual, a ponto de quase ninguém,

sua

no

efivácia

“tecnocracia”

domínio

do saber,

tecnológica. que, em

Donde

última

deixar

de

apoiar-se em

à supervalorização

da

quer

no

análise,

consiste,

poder da técnica ou da ciência realizada, quer no poder de certos homens, os “tecnocratas”, E a ideologia que tunda a ciência como poder chama-se cientificismo. Razão pela qual a epistemologia crítica tenta desvendar

sua significação atual,

O cientificismo contemporâneo, através de um processo de “anexação imperialista”, criou uma- ideologia que lhe é própria. Essa ideologia tem todas as características de uma ; verdadeira religião. O grande público

como que venera e presta culto a esta nova divindade do século: a ciência, sobretudo, suas maravilhas Lecnológicas. Não há muita diferença entre Os adeptos da “re-

ligião-ciência” e us partidários das outras religiões. Até

podemos nos perguntar se O cisnticismo não suplantou as demais religiões tradicionais, pelo menos enquanto “religião” assegurando todas as “verdades”, Sua influénId?

cia nas mentalidades e ra educação em todos

os níveis

é tão grande, que suas “verdades” parecem indiscutívels ou assemelham-se a dogmas inquestionáveis. E tudo. Isso,

apesar de q grande público ser quase analfabeto em matéria de

ciência. Neste

ser estarrecedora.

Até

domínio,

mesmo

a ignorância

nos

meios

chega a

universitários,

a ciência quase não é conhecida, pois continua a ser en-

sinada dogmaticamente (como previra e ordenara Comte), quase como se ela fosse uma “verdade revelada”,

E.é por isso que a palavra “ciência” exerce tal fas-

cinação e tal poder na mentalidade

do homem

comum,

que chega até a apresentar-se como se tivesse uma essência quase mística. Evidentemente, isto é profundamente irracional, Mas

nem

por isso a grande

maioria dos ho-

mens deixa de ver na ciência uma espécie de “magia negra”, tão indiscutível e incompreensível & a autoridade de suas “verdades”. E é exatamente nisso que consiste o caráter “religioso” do cientificismo. Enquanto tal, esta dimensão é irracional e emocional em suas motivações. Contudo, por outro lado, em sua prática cotidiana, chega a ser profundamente intolerante. Sem falarmos do

aspecto de que o clentificismo tem a pretensão de ter gu-

perado todas as religiões e todos 05 mitos. Pretende ba-

sear-se única e exclusivamente sobre a Razão. O que nem sempre é verdade. Contudo, aos olhos do grande público, as palavras dos tecnólogos, dos tecnocratas e dos experts (os novos “pontífices” dessa nova “religião”) apresentam-se como a última palavra em matéria de verdade

a ser criada. A língua dessa “religião” é bastante hermética e incompreensivel. Aliás, nem chega a ser uma ln-

gua,

mas

um

conjunto

de

dialetos,

jargão especializado, numa verdadeira onde ninguém

entende ninguém.

cada

148

nesta

linguagem

com

seu

“torre de Babel”

E toda a realidade, in-

clusive a experiência e as relações humanas, exprimir-se

um

cifrada,

como

teriam que se o mutbdo

fosse uma estrutura particuler no seio das matemáticas. Em suma, a ciência e a tecnologia, que dela decorre, resolverão todos os problemas do homem, E somente os experts estão habilitados a tomar decisões, pois só eles sabem e. por conseguinte, somente têm valor seus pare-

ceres, Ora,

o cientificismo

do século passado,

atual,

levando

não se apresenta

ao paroxismo

com

à

dogmas escri-

tos ou explícites, muito embora possa ser ilustrado por certas obras, por exemplo, O acaso e a necessidade, de J. Monod.

Todavia,

podemos

extrair

dele

certos

s:m termos a pretensão de que eles sejam todos cs cientistas. Tais dogmas deiro Credo,

cujas

“verdades”

aceitos por

constituem

estão

dogmas,

um

recobertas

verda-

de mitos

que a epistemologia crítica procura desvendar. Poderia-

mos sintetizar tal Credo nas seguintes “verdades” inconfessadas, implícitas do cientificismo atual. Em primeiro lugar, hã toda uma mentalidade que só admite como

verdadeiro

e real o conhecimento

cientificamente

comprevado, isto é, aquilo que pode ser expresso quantitativamente,

que

pode ser formalizado

ou ser reproduzi-

condições de laboratório. O conhecimento

do em

que

não satisfizer a esses condições, deverá ser tomado como falso,

irreal

ou

simplesmente

verdadeiro é aquele que

subjetivo.

Conhecimento

é universa!, quer dizer, válido

em todos os tempos e lugares, para todas as pessoas, para além das sociedades e das formas de cultura. Às sensações, as experiências do amor, do prazer, da dor, da emoção,

nário

do

da beleza, etc., devem

conhecimento

verdadeiro.

ser abolidas

Porque,

de

do dício-

fato, só

os cientistas conhecem. Só eles sabem, E só é objeto de conhecimento, aquilo que pode ser repetido em condiEm seguida, e em suma, ções de verificação experimental. a verdade se identifica com o conhecimento científico. Toda

realidade, para ser conhecida

de modo

verdadeiro,

149

arecisa ser abordada por um método que empregue uma

concepção

“mecanicista”,

“formalista”

ou

“analítica”.

O que é conhecido de outra forma, é desprovido de signi-

ficação cognitiva, É deste vasto domínio de questões que se ocupa o

que hoje se denomina epistemologia crítica. Certos cientistas começam a compreender a ambigiiidade do papel

que desempsnham ou que são forçados a desempenhar no-seio da sociedade. E desejam construir uma ciência

responsável, não somente consciente .de'seu papel real e

de suas

funções

sociais,

mas

também

preocupada

em

controlar ou, pelo menos, assumir suas próprias ativida-

des dentro quêncies

da sociedade. Eles querem

que podem

turo da humanidade, invenções

científicas.

avaliar as conse-

ter, sobre a sociedade e sobre o fu-

os resultados de suas pesquisas € Diante delas, não

querem

perma-

necer passivos ou nesta atitude de “neutralidade” própria a um colecionador de selos, mas não àqueles que interferem

diretamente,

quer

queiram,

quer

não, nas

transformações sociais. Ao tentarem fazer uma reilexão

para descobrir os pressupostos e os condicionamentos sócio-culturais de sua atividade científica, os cientistas

estão desenvolvendo uma

atividade epistemológica que

nós chamamos de “crítica”. Não se trata, de forma algu-.ma, de negar a especificidade da ciência Trata-se de mostrar que ela não constitui um

mundo

à parte, uma

espécie de reino isolado onde. os cientistas viveriam para o “saber desinleressado”. Evidentemente, eles constroem um saber rigoroso, governado por normas racionais, onde: as teorias são confrontadas com as experiências. Toda- . via, o que a epistemblogia crítica pretende evidenciar é

que, na prática,

as coisas se complicam

e as pesquisas

não têm essa transparência e essa objetividade

que fre-

quentemente lhes atripuímos. O que está em questão é o próprio papel da ciência. Se hã uma “crise da ciên150

cia, é porque há clentistas que se interrogam sobre a de seu trabalho,

significação

cação ou função

penhar

sobre

a verdadeira

signifi-

que a atividade científica deve desem-

na sociedade,

e sobre as responsabilidades que

eles devem assumir diante daquilo que fazem. Por outro lado, se há uma “crise” do meio científico, é porque os

efeitos diretos ou indiretos da ciência sohre todos os setores da vida social suscitam reações de temor, de medo, de frustração, quando não de rejeição, Sem dúvida, decisões precisam ser tomadas. Pena é que não haja um

método objetivo e racional para determiná-las. Este tipo de análise é desenvolvido por um dos mais ilustres membros da “Escola de Frankfurt”, J, Habermes (darzmoes outras ilustrações na bibliografia). Com efeito,

em

Lg

fecnique

eé la science

comme

“idéologie”

(trad. francesa), Habermas faz uma análise bastante pertinente do tema “Ciência e Sociedade”, Em particular,

ele se detém

sobre essas questões essenciais de que Ífa-

lamos acima. E para abordar o problema das relações entre ciência e técnica, por exemp'o, bem como entre prática social e política, ele distingue três modelos: 1.

Segundo o modelo decisionista (que toma de empréstimo a M. Weber), hã uma subordinação dos especialistas

aqueles que decidem politicamente. São estes que formulam as opções fundamentais,

referindo-se de modo

mais

ou mencs “racional” a certos valcres; mas são os especialistas que fornecem os “meios racionais” de ação; 2.

Com o modelo tecrocrático, nã uma inversão nas relações entre o especialista e o político: o político torna-se apenas o órgão executor de uma intelligentsia científica. Ao invés de serem colocados em termos políticos, no sentido clássico do termo, os problemas se transformam

em questões meramente técnicas. Como tais, devem ser resolvidas pelos experts. As questões concernentes à finalidade,

aos objetivos a serem

perseguidos,

são elimi151

nadas. O que se pretende

fazer é depender as decisões

políticas única e exclusivamente da lógica das “coações objetivas”, E é por ver em tudo isso uma ilusão perigosa, que o autor prefere optar por um terceira modelo; 3. O

modelo pragmático deve ser preferido, pois somente ele

implica

um

verdadeiro

diálogo

entre o especialista

e o

político. Sendo assim, o desenvolvimento das técnicas deve ser orientado em função de um “projeto político” que precisa levar em conta as possibilidades técnicas. Somente este modelo pode, um vínculo necessário com

para Habermas, apresentar a democcracia, Atualmente,

porém, este diálogo não somente é difícil, mas quase impossível, pois a teenocracia impera e domina, Dai a urgência em se instaurar as condições de um verdadeiro controle político, de não mais confundirmos questões técnicas (como fazer?) com questões relativas aos fins fquai o tipo de sociedade que queremos?), ão retomar o conceito weberiano de “racionalida-

de”, para caracterizar a forma “capitalista” de atividade econômica

vado e forma

(forma de trocas no nivel do direito priburocrática de dominação),

Habermas

re:

conhece que, hoje em dia, a “racionalização” está profundamente

so

científico

vinculada

e técnico.

à institucionalização

E a “racionalidade”

do progres-

cientifica

atual passa a ser apznas uma escolha entre estratégias, quer dizer, entre os modos de se utilizar adequadamente as tecnologias e de organizar os “sistemas” tendo em vis-

ta finalidades preestabslecidas e fixas em situações dadas. No entanto, na medida em que esta racionalização se apresenta, sob as aparências de reflexão e de reconstrução racional, como um feixe de interesses macroeconômicos, no seio do qual são feitas as opções estratégicas e utilizadas as tecnologias, ela se amplia inevitavel-

mente como 152

ao domínio da manipulação técnica. Isto vai ter

conseguência

um

tipo de atividade

de dominação

sobra a natureza, mas também sobre a sociedade, É neste sentido que a racionalidade, por sua própria estrutura, é O exercício de um contrete, Donde a identidade entre “clência” e “técnica” e, por conseguinte, entre “téenica” e “dominação”. Em virtude de seu próprio método e de seus conceitos, a ciência projetou um mundo no interior do qual a dominação sobre a natureza converteuse também em dominação sobre o próprio homem. E na medida em que a transformação da natureza implica na dominação do homem, o « priori da tecnclogia não deixar

pode

“político”,

de ser

uma

e'a se torna

vez que

a forma universal da produção material, define uma cultura e projeta, assim, um “mundo” inteiramente dife-

rente. E é exatamente

por

isso que a imagem

de

marca

do cientista e de suas atividades está hoje: seriamente comprometida

e desvalorizada.

definição, apresentava-se como de

absoluta,

outras

raclonal

formas

de

A ciência, outrora, a procura de uma

e universal.

conhecimento

Ela

verda-

se distinguia

(artístico,

por

místico,

das

filo-

sófico) pela objetividade de seus teoremas, pela certeza de suas leis e garantia de seus resultados experimentais,

cuidadosamente estabelecidos e verificados. Ora, a ciência é hoje produzida numa sociedade bem determinada, que

condiciona

seus

objetivos,

seus

agentes

e seu modo

de funcionamento. Ela se torna uma prática social entre outras, irremediºvelmente marcada pela sociedade - em que se insere, apresentando todas as marcas dessa sociedade,

refletindo

todas

as suas ambiziidades

e con-

tradições, tanto em sus organização interna quanto em sua aplicação propriamente tecnológica. Assim, O que a epistemologia crítica pretende mostrar é que o poder do conhecimento já se transformou, desde algum tempo, em conhecimento do poder. A, ciência contemporânea, herdeira experimental da religião 153

medieval, realiza

hoje

as mesmas

funções que a teolo-

cia desempenhava na Idade Média. Até parece que seu papel seja o de compensar, com sua inteligência eterna de especialistas, os sentimentos de impotência, de frustração e de ignorância

do homem

moderno.

Na

Tealida-

de, porém, ela é a soma organizada e racional de suas não

para

limitações,

alienações.

suas

dizer, de

O poder

da ciência tornou-se tão espetacular, que ele não encontra mais normas

exteriores a si mesmo. No domínio das

cnamadas ciências exatas, podermos constatar que a significação do conceito de natureza parece consistir na delegação do poder que constitui o processo científicotécnico. O homem moderno delegou sua ciência físicoquímica aos mísseis, mas também, por outro lado, delecou seu saber aos computadores, aos programas, aos

processos de automação e de cibernética social, E, com isso, ele se torna um allenado. No fundo, podemos dizer que ele não “sabe” mais aquilo que confia ao processo Quer

de que é a origem.

pode. Portanto, não

aquilo que

não sabe mais

dizer:

não pode mais aquilo que pode. Porque

é mais ele quem

pode, mas

o próprio poder da ciên-

cia realizada em técnica. E a “racionalidade” científica transforma-se em ideologia, a partir do momento em que pretende impor-se como a única forma de racionalidads possível. Podemos ilustrar isso a partir de uma análise sumária

do

conceito

de

objetividade.

Quais as características da atividade científica atual, a epistemologia

tais

como

Em

primeiro

construção

lugar,

contemporânea

a epistemologia

de objetos susceptíveis

de relações mais

ou menos

as percebe?

atual reconhece &

de compor

fórmalizadas.

um

feixe

Esses objetos

podem ser puramente ideais (lógicos ou matemáticos). E à feixe de relações forma sistemas fechados, regidos por algoritmos definidos à priori. Ou então, este feixe

de releções pode ser constituído 154

por referência a uma

realidade, sendo o papel da axiomatização o de reinterpretar dedutivamente o conjunto dos resultados adquiridos num dominio limitado; ou então, o de servir de instrumento de pesquisa num campo inexplorado onde os

dedos

de observação

não se prestam

diretamente à hi-

pótese experimental. Em segundo lugar, a epistemologia reconhece as operações repetíveis praticadas sobre esses objetos e sobre suas relações. Esta repetibilidade pode

“ser o fato do algoritmo empregado ou o da verificação experimental. É dela que deriva a idéia de “controle cbjetivo” a que deve submeter-se o cientista. Finalmente, 2 epistemologia reconhece a extensão dos conhecimentos (chamada de “progresso”): de um lado, visando a construção de objetos novos, de outro, levando em conta a fragmentação de um dominio do saber, dando- lugar à ramificação de uma, ciência-mã: em várias disciplinas novas,

Dessas características, a epistemologia crítica tira as seguintes consequências: 1. “A” ciência não existe. Só existem “ciências”, Nenhuma delas constitui um sistema definitivo do saber; 2, O valor da objetividade cien-

tífica deve-se ao valor dos objetos construídos, ac poder “dos modelos empregados relativamente aos dados da ex-. periência, e não & uma reprodução fiel da “realidade”; 3. A objetividade científica não está isenta de erros, nem

tâmpouco pode eximir-se de uma escolha; 4, Só podemos falar dc “verdade” científica no sentido de uma conzeniência entre os modelos e as predições que eles podem autorizar e os fatos reaimente pertinentes. Esta conveniência se define, formalmente, por uma não-contradi-

ção, 5 Nas ciências experimentais, a “prova” consiste em mostrar que as respostas da experiência às questões que lhe são colocadas, não contradizem uma hipótese num conjunto com exclusão das demais; 6. A objetivi-

dade

se define, em

última análise, por um

respaito às 155

regras relativas ao objeto construído e, de forma alguma, Por uma vaga adequação da Razão à “realidade”. E é por isso que se pode dizer que a objetividade '*da” ciência e do cientista só pode ser um valor de ordem ideológica que se acrescenta à atividade científica. Ea

é o resultado de uma

dupia obj:tivação:

de um

lado,

a do produto desta atividade, cujo desenvolvimento conseguimos parar a fim de estabelecermos um saber que reproduza “parte” do real; do outro, a do agente detentor do saber, em troca do sua neutralidade e de sua submissão ao real. Portanto, a epistemologia crítica não nega que

a ciência seja objetiva,

quer dizzr, forneça verdades

até certo ponto independentes da história e daqueles que a fazem. Também não ignora que o cientista seja cbjetivo,

quer dizer, seja capaz de descobrir

des. apagando-se,

essas verda-

até certo ponto, diante delas, e fazen-

do abstração de sua subjetividade ou elevando-se acima de suas paixões e preconceitos. O que a epistemologia coJoca em questão é um tipo de objetividade sem suporte ep'stemo'ógico,

que se apresenta

como

uma

racionaliza-

cão das crenças ingênuas ligadas ao prestígio da ciência;

crença na unidade absoluto

e

dos conhecimentos,

a-histórico,

na

em

independência

seu caráter da

realidade

que se pretende conhecer relativamente aos meios do conhecimento. É esta imagem da ciência que fornece o

mode'o de objetividade que dá a ilusão de que podemos nos elevar acima das condições reais de elaboração da ciência. Em tica

outras palavras, O objetivo da epistemologia

é mostrar

dois mitos:

que

de um

riagmente conduz

se deve

distinguir,

ciência

atual,

lado, o mito da Ciência que. necessaao progresso;

cia-Pura e neutra.

na

cri-

do outro, o mito da Ciên-

O primeiro mito foi aceito por muito

tempo como uma espécie de dogma absoluto. E até hoje ele ainda

156

serve

de argumento

âqueles

que pestulam fi-

naneiamentos. Segundo este modo de pensar, a ciência deve ser julgada pelo valor social de seus resultados, O segundo mito, porém, toma a ciênçia como sendo seu próprio fim: ela só deve prestar contas a si mesma. Isto não quer dizer que não possa prestar serviços. O importante, porém, é que a Ciência-Pura seja sempre uma

busca d:sinteressada do Conhecimento. Este é um bem em si mesma, sem nenhuma significação moral ou politica. Ora, é apoiando-se nesse mito que os mam que “a ciência” não é responsável que terceiros possam fazer dela, por suas civas ao homim, Os cientistas se limitam

cientistas pe'o mau aplicações à procura

afiruso nome-

tódica e desinteressada de um saber sempre maior « mais

certo. Q físico ou biólogo não deve preocupar-se com as eventuais utilizações que poderão ser feitas de scus trabalhos ou descobertas. Essas utilizações não podem ser de

do poder político,

da

mas

responsabilidade,

sua

industrial. Aliás,

do sistema

bretudo da. responsabilidade

so-

poderiam prever eventuais utilizações. Eseles nem tas poderão servir para o bem ou para o mal. Contudo, a responsabilidade da utilização não é da alçada do cientisla: este seria “neutro” e “imparcial”. Semelhante argumentação, à primeira vista parece inatacável, Contudo, a epistemologia crítica vem mostrar que a ciência fornece um

saber; que este saber con-

fere meios de ação; e que tais meios, servindo a fins visados, dizem Por outro

aos

respeito

lado, ela vem

que

cientistas

mostrar

que

os

o mito

produzem, da Ciência-

Pura funda, de um lado, a irresponsadilidade social dos e, do

cientistas,

outro,

cação

do apolitismo

pode

negar

abrimos

hoje

os olhos

tancialmente

fornece

ao

Estado

uma

justific.

da pesquisa científica. Ora, não

a dimensão para vermos

integrada

a um

podíco militar particular.

social da

ciência.

que a pesquisa sistema

Enquanto

se

Basta é subs-

sócio-econômico-

indivíduo, o elen157

tista pode ser movido pela curiosidade intelcetua!, pelo desejo de fazer descobertas,

por hoas intenções,

etc, To-

davia, quer ele queira, quer não, a viência tem uma função social crescente no desenvolvimento da sociedade e no progresso tecnológico, E isto não apresenta nada de escandaloso. Pela. contrário, seria preciso muita ingenuidade ou certa candura para se achar que as Instituições financiadoras de “pesquisas puras” gastariam somas

fabulosas

por simples amor

à Ciência-Pura,

por sim-

ples culto ao Sabzr desinteressado. Portanto, o papel da

cpistemologia crítica. consiste em mostrar que os cientistas

precisam

estar

ativamente

conscientes

de todas as

implicações de seus produtos intelectuais. Ela 5º interroga sobre atividade

as “visões do mundo” científica,

pressupostos

tentando

que estão implícitas na descobrir

nela

todos

os

e condicionamentos possiveis.

Contudo, da idéia segundo a qual as teorias cientificas não podem ser deduzidas diretamente dos faios, nem tampouco ser diretamente verificadas por eles, não devemos passar à idéia segundo a qual as ciências são construções arbitrárias. Por outro lado, da idéia segundo a qual o Método não pode ser absoluto c eterno, não podemos coricluir que os métodos não tenham valor. À

epistemologia crítica não pode constituir-se em epistemolvgia hipercrítica, chegando a negar a espeeificidade da ciência, ou a afirmar uma concepção radicalmente relativista e mesmo “irracional” da ciência. Ela contesta as formas ingênuas do cientificismo. Aí se exerce seu papel. E tenta mostrar aos cientistas suas filosofias implicitas. Para usermos uma expressão de Bachelard, ela

tem por função “dar à ciência a filosofia que ela merece”.

158

Para

onde

a filosofia?

val

Há uma questao que hoje em dia intriga muita gente: Por que e para que os filósofos? Em outras palavras: o que eles têm ainda a dizer com seu jargão técnico,

quase sempre totalmente hermético e incompreensível, sem nenhuma operacionalidade? Tem ainda razão de ser esta

categoria

vida

a “pensar'

vencer

de “intelectuais”

os outros

ou

a “ensinar”

que

passam

a pensar,

toda

sua

tentando

con-

de que, se não se vive como

termina-se por pensar

como

se pensa,

se vive?

Quando toda uma “filosofia industrial” se implanta, que necessidade ainda se tem desse profissional do “pensarº? Por que seu saber é reduzido e desacreditado? Ele é um empregado universitário que não chama muita

atenção sabre si. Ou então, um homem considerado perigoso. Porque é sempre suspeito de ser um traidor em

potencial.

Filosoiar consiste

em

fazer

apelo à reflexão

pessoal. E toda sociedade teme a reflexão, Ademais, pensar por si mesmo é um perigo não apenas social, mas

também

individual. Qual o homem

que não está pronto 161

a dedicar horas de trabalho para evitar alguns minutos de reflexão? Em cada um de nós há uma resistência ou oposição latentes à reilexão. E hoje, não parece evidente que nossa cultura queira tomar consciência de si mesma, O pensar filosófico tem um duplo inconveniente: de um lado, ele nos ensina a criticar

(não rejeitar, mas passar ao

crivo, examinar) as opiniões recebidas ou impostas, as tradições transmitidas, as idéias admitidas; de outro, ensina-nos a ultrapassar o conformismo e o não-conformis-

mo em vista de uma coerência sempre maior do pensamento e da ação. Todavia,



uma

questão muita

mais

porque bem mais fundamental e, ao mesmo dical:

Por

que

“utilidade”?

q filosofia? Para

que

angustiante,

ela serve?

tempo, raQual

sua

Como poderá ser utilizada para responder,

não somente aos dramas existenciais, mas aos problemas colocados pela civilização moderna, em vias de uma tecnocratização crescente de seus produtos intelectuais e ce uma robotização progressiva do próprio homem que a constrói? Será que a filosofia não poderia ser consiclerada como um tipo de conhecimento já inteiramente superado

pelos

conhecimentos

científicos,

muito

mais

ob-

jetivos, muito mais capazes, não somente de explicar mas de operar o transformar'*a realidade? A filosofia, outrora onipotente como saber, passou por um processo de

gradativa perda de prestígio social. Um pouco por toda parte, ela se viu expulsa dos centros do saber. Pouco a pouco, viu-se reduzida a um ensino acadêmico abstrato,

idealista ou “espiritualista”. Seu lugar foi tomado pelas ciências, Em primeiro lugar, pelas ciências naturais, Mais recentemente, pelas ciências humanas. Sua situação atual parece ser a seguinte: de um lado, uma filosofia completamente estranha às ciências: humanas, uma filosofia sem

conteúdo,

pretendendo ensinar a sabedoria

e fornecer a imagem do homem sem saber mais 0 que é 162

o homem

real; do outro,

ciências humanas

que fazem

um esforço encrme para se tornarem ciências, mas que

não sabem também

saber.

o que é o homem,

|

e nem

querem

Outrora, à lilosofia controlava a totalidade do saber ,

“Mas ela foi forçada a assistir à constituição sucessiva de

domínios

autônomos de conhecimento que escaparam,

um a um, à sua jurisdição, A matemática, a física, a biologia, a psicologia, a sociologia. .., afirmaram-se fora da

fhosofia, isto é, contra ela, na medida em que cada dis-. ciplina conseguia demonstrar sua ineficácia e sua Inuti-.

lidade. Q dominio da filosofia encurtou-se como uma pele de cabrito. E uma vez esvaziado de todo conteúdo,

ce toda substância,

esse domínio viu-se reduzido a esta

árida paisagem Junar da ontologia dogmática, de

contemplação

passaram

a ocupar-se apenas

cuja

certos pro-

fessores universitários que, para compensar seu senti.

mento

de inferioridade, passaram

do absoluto que

Este

até

hoje

ninguém

refugio na segurança

a gerir o monopólio lhes contesta,

do gueto

universitário

teve por consequência uma revisão geral do próprio con-

ceito de filosofia. E foi assim que se processou uma de-

formação sistemática de sua própria história, Muitos foTam os que se voltaram para o passado da filosofia para

nele descobrir 0 reflexoe a confirmação de suas certe-

- zas presentes.

Consegiientemente, muita coisa foi ne-

gligenciada, tudo o que não se inscrevia num quadro preestabelecido de pensamento. Contudo, essa talsifica-

ção foi muito mais inconscientedo . que o resultado de uma atitude de má-fé, E tudo isso foi agravado pelo caráter um tanto corporativo do ensino da filosofia nas

universidades, Os professores repetiam sempre as mes-

mas

coisas.

Tratavam

sempre dos

mesmos

assuntos.

Abordavam sempre os mesmos livros. Os autores analisados como que se verificavam uns aos outros. Fazia-se

163

.

eca numa espécie de circulo vicioso, E foi assim que à filosofia desinteressou-se pelas ciências humanas. Através

dia epistemologia, manteve-se preocupada, por vezes, com

um deslumbramento injustificado com a física, a mate-

mática e a biologia. Os especialistas das ciências humanas não mereceram a atenção da vertente epistemológi-

ca da

nam

filosofia,

espirito

Continuaram

de aventura,

seus trabalhos

como

que

o aprofundamento de uma

parcela do saber sobre o homem permanecendo quase

sempre num vazio de significação. E o divórcio entre os

dois domínios do saber chegou a tal ponto que, sobre 6 homem, parece que a filosofia nada mais tem a dizer. Nada tem a declarar, pois deixou que, em seu desenvol

vimento,

as ciências mongpolizassem todo o conhecimen-

to concernente ão homem. Não se compreende como a,

filosofia tenha recusado, por princípio, 2 hipótese segun“do a qualas ciências humanas seriam mais essenciais para ela do que a física ou a biologia.

Parece que a profecia de Comte, est abelecendo a carta de fundação do Positivismo, mas tam bém definin-

do o programa

pelo homem,

de um conhecimento pleno do homem

não somente

continua. válida, mas

lança

à iilosofia um desafio: ou ela se torna “positiva ”, no sen-

tida

de refletir a partir dos

conteúdos

fornecidos

pelas

ciências humanas, ou não terá mais razão de ser. “Não

é « priori, diz Comte, em sua natureza, que podemos es-

tudar o espirito humano e' prescrever regras para suas operações; é unicamente a posteriori, a partir de seus

resultados, por

observações sobre

seus fatos, que

são

as tiências. É uniçamente por observações bem feitas sobre a maneira geral de proceder em cada ciência,

sobre as diferentes etapas que seguimos para aceder às descobertas, numa palavra, sobre os métodos, que podemos

164

elevar a regras claras e útels sobre a manei-

ra

de

dirigir nosso

espívito.

Essas

regras,

todos, esses artifícios compõem, em cada

esses

mé-

ciência, aqui-

lo que eu chamo de sua filosofia. Se houvesse observações desse tipo sobre cada uma das ciências reconhecidas como positivas, conservando o que haveria de comum em todos os resultados científicos parciais,

teríamos a filosofia geral de todas as ciências.” Hoie em dia, se o filósofo deixasse de desempenhar o papel de mau aluno na escola das ciências humanas contemporâneas;

se, em

matéria

de

do

teoria

conheci-

mento ou de epistemologia, ele não quisesse mais propor soluções filosóficas para problemas científicos já superados; se fizesse um esforço para sair da caverna filosófica universitária meramente acadêmica; se renunciasse à pretensão de descobrir em si mesmo as “verdades primeiras”,

à identidade

se

abrisse mão

da

certeza

absoluta

quanto

do espirito onde pensa poder encontrar a

garantia de um método fundamental e definitivo; se optasse por fazer uma filosofia aberta onde não haveria mais princípios intangíveis, verdades primeiras totais e acahadas; se acordasse de toda e qualquer sono dogmaáli-

co para tornar a filosofia contemporânea das seu tempo. .., é bem provável que a filosofia ria sua missão essencial: a de fornecer os princípios e os fundamentos de uma ciência

ciências de redescobri. primeiros do homem

roal, Por permanecer indiferente às ciências do homem, a filosofia se vê hostilizada e agredida pelos especialis-

tas dessas disciplinas. Este não-reconhecimento mútuo é profundamente pernicioso aos dois setores de conhecimento:

não somente a filosbfia se perde em seus labirin-.

tos de abstrações sem conteúdo real e sem alcance verdadeiramente

cognitivo,

como

também

os

especialistas

e os técnicos do “humano” correm o risco de tornarem-se 165

cegos aquilo que fazem, a ponto de não saberem

que estão fazendo,

I.

mais q

A interrogação filosófica G. Canguilhem,

ao interrogar-se

sobre

“O que é a

Psicologia?”, afirma que esta questão é muito mais em-

baracosa para O psicólogo do que, para o filósofo, a ques-

tão: “O que é a filosotia9” Porque, para a filosofia, a questão de sua essência e de seu sentido a constitui, mais do que a define uma resposta a ess questão, Da mesma

forma, diz Paul Rieceur, quando

colocamos

a questão:

“Por que a filosofia ?”, não é o filósofo que está em ques-

tão,

mas

aquele

que

a coloca.

Podemos

questão em três níveis de profundidade:

analisar

essa

o da vida-cotl-

diana, o da vida científica e o da vida propri amente

ciocinada. a)

ra-

|

O nível da vida cotidiana nos mostra que q fi-

tósofa deve ser um homem de seu tempo. Deve estar presente ao seu

tempo, O velho Sócrates não fez outra col.

sa, AO deirontar-se com os sofistas . Estes tentaram confinar

a reflexão

tradições sem

dentro de uma

Rada

compreender,

alternativa:

seguir

ou simplesmente

as

ser 9 mais forte e vencer na vida, Sócrates recusou-se a ficar preso den

tro dessa alternativa. Aos tradicionali stas, aos defensores sado,

ma

do status quo, dizia: tudo isso deve ser repen.

refletido,

Criticado,

ser medido

segundo

uma

nor-

de verdade e de bem. Aos cínicos, defensores da lel do mais forte e do maior acúmulo de bens , .respondia: “uma vida que não foi examinada não merece ser vivi-

da”, A todos, ele propunha um instrumento de reflexão,

permitindo abalar os valores existentes, colocar tudo em questão. Através da ironia, levava Seus adversários ao dese spero e ao desconforto. Sua meta era chegar a cons-

166

truir algo. Ele queria elaborar, na probidade e na clare. za, melhores

razões

para se viver.

O que significa essa

ação raciocinada de vida e de valor empreendida por Sócrates? O que ela significa hoje, numa

civilização defi»

nida por suas técnicas de produção, de consumo, que se

propõe como objetivo atingh' o máximo bem-estar? O que quer isso dizer para uma sociedade incerta e insegura de seus próprios objetivos e dos valores que eles implicam? Vivemos numa sociedade cada vez mais racional em

seus meios, em suas técnicas, em sua organização. compensação,

sempre mais

Em

incerta de seus próprios ob-

jetivos. Hã um abismo de não-sentido no cerne de seus conhecimentos

de racionalidade,

Não caberia

à filosofia

colocar em questão os meios propostos pela sociedade que marcha para a abundância crescente? Não seria seu papel propor objetivos ao homem da ciência e da técnica, do poder e do máximo

riam

contrapor-se

consumo”?

ao não-sentido

outro lado e, ao mesmo

cente fragmentação

tempo,

Objetivos

que vi-

e ao desespero?

assistimos

a uma

Por cres-

do trabalho científico. Fragmenta-

cão que leva a uma pulverização, não só da atividade humana, mas do próprio saber científico, a ponto de os

especialistas de

uma

mesma

especialidade

não serem

mais capazes de se entenderem. Neste domínio, qual se-

ria o papel! da filosofia? Evidentemente, não é o de criar uma superciência, Trata-se de uma tarefa de Teflexão. Como? b)

Em primeiro lugar, em face desse modelo de ver-

dade tomado de empréstimo às ciências físico-matemáticas, e que tenta impot-se a todos os domínios do saber,

o papel da reflexão filosófica seria o de compreender sua legitimidade,

Quer dizer:

como

também

o de mostrar

devemos compreender

seus

limites.

aquilo que se presta

à medida, à análise e à teoria formalizada. Contudo, nem 167

tudo se presta ao controle dos instrumentos clentífico s. Nem tudo pode ser tratado como fato observável e sub.

metido

a leis rigorosas.

Não

pretendendo

ser nenhuma

super ou metaciência, a filosofia não pede abdicar de seu

papel

de situar o conhecimento

científico em

dadeiro lugar. É sua função topológica

seu ver.

(topo = lugar):

encontrar o lugar adequado do conhecimento científico .

À filosofia não atinge um super-saber. Ao contrário, ela

cava suas fundações, para descobrir sobre que solo a ciência se constrói. A presença do homem ao mundo é

este solo primitivo sobre o qual se edifica a ciência. Estamos diante de uma volta ao fundamento, de um reto rno às fundações. E é somente depois da ciência, que se pode

voltar antes da ciência. Em outros termos, é no pont o mais avançado de uma ciência que se pode colocar o problema de suas raizes, Quanto à fragmentação

indefinida

do saber, a Tes-

ponsabilidade do filósofo não é, como prop unha a de fazer um

sistema

das

ciências, mas

uma reflexão sobre a linguagem

losofia articular a linguagem

Comte,

a de construir

científica. Caberia à fi-

humana,

Ela deveria com-

preerider como, na palavra e neste poder de falar que é o homem, estão contidas as possibilidades de ramifica-

ções de diferentes linguagens. Salvar a unidade da lin-

guagem

é uma

responsabilidade

da filosofia. Ela deverá

não somente compreender a diversidade da ling uagem, mas situá-las uma em relação às outras,

Quanto à emergência e ao avanço das ciências humanas, a filosofia deveria fundar uma epistemologia da convergência dessas disciplinas. Evidente mente, isto

suporia que O filósofo não as ignorasse, devesse conhecer

ou praticar uma em

ou outra dessas disciplinas, estivesse

contato direto com, pelo menos, uma delas.A rigor,

o filósofo poderia ignorar a física, a matemática ou a biologia. Mas não pode prescindir da psicologia, da so-

ciologia, da psicanálise, etc. que tratam

168

desse homem

que ela pretende conhecer por reflexão. Por conseguinte, o desafio que representam essas ciências relativamento ao conhecimento-de-si feito pelo filúsofo, só pode ser en-

frentada por uma inteligência dessas ciências. E o ponto de junção

consiste em

encontrar esta parte, em

nós, que

não pode ser objeto de ciência. Há, no homem, todo um fundo de existência, um “vivido” que é sujeitoe que faz dele um sujeito não-objetivávei -pelo conhecimento clenLifico.

Ora, o problema de uma reflexão filosófica sobre o homem é justamente este ponto da realidade onde o nãoobjetivável do sujeito religa-se ao objetivável, A tarefa da filosofia não consiste em separar o objetivo do subjetivo, mas em mostrar que o homem dois se encontram e se entrelaçam.

c)

A dupla abordagem

é o lugar onde

precedents,

diana e pela vida científica, leva-nos

os

pela vida coti-

ag nível da vida

raciocinada. 'Toda vida filosófica estã às voltas com questões de fundamento

e de origem, A interrogação filosó-

tica nasceu como o “TZ to on” de Aristóteles: “o que é o ser”, “o que é que é”, No dizer de Heidegger, esta questão foi radicalizada por Leibniz quando a formulou de

um modo

rais dramático:

“Por que há algo (o ser) e

não antes o nada”? Ser filósoio, é ter acesso a este tipo. de questão, ignorado pela vida cotidiana e pela atividade

científica. É este tipo de questão a que leva alguém penetrar

na ordem

da razão e da interrogação Tilosófl-

ca. Qual o alcance dessa questão no mundo râneo?

Sabemos

a

que, depois

contempo-

da Cogito cartesiano,

ela se

- dividiu em duas: de um lado, a questão do ser, da natu-

reza e de Deus, duplo

sentido

do outro, da

filosofia

a questão do homem, posterior,

sempre

Dai o

oscilando

entre esses dois pólos: a questão do ser ou de, Deus, € & questão do homem.

É esta tensão que constitui a carater

dramático da filosofia moderna, Há duas possibilidades de existir, de viver, de o homem se compreender a si mes163

mo e de explicar as coisas: ou reagrupamos tudo em torno do único centro que é o homem, ou em torno de um

pólo mais forte c que seria o fundamento de nossa vida,

Em face desse dilaceramento do campo ontológico, dessa polarização c dessa ruptura na questão do ser, há uma

tarefa nova para a filosofia relativamente ao ensino tran-

quilo e coerente da

filosofia nos tempos

passados,

Ela

deve clarificar, quer dizer, mostrar todas as implicações dessa alternativa, não somente para a questão da vida pessoal, mas para 0 diálogo com as ciências. Há momentos, na história da filosofia, que são críticos, e outros que

são momentos de síntese e de integração, Estamos num

período crítico que deve ser enfrentado com coragem e

lucidez. E a tarefa do filósofo é a de escolher e testemt nhar sua

opção. A filosofia torna-se

testemunho

e não

mais ensino autoritário e dogmático. Quando se teste munha algo, respeita-se e dialoga-se com os que fizeram outra opção. Se o testemunho

comporta um risco à sef

assumido, comporta também um desejo modesto de dar razão aos outros e de se explicar a eles. Ora, como a filosofia não é discurso fechado sobre si mesmo, um dis

curso que o filósofo profere a outros filósofos: e como a

filosofia não pode refletir sobre idéias, mas deve refletir

sobre

realidades,

diremos

que ela não tem

objeto, pois

tem o objeto dos outros, reflete sobre os objetos das om

tras disciplinas. E é por isso que ela é sempre uma refleTão com as ciências. Não uma reflexão sobre ou para as. ciências, mas a partir delas e com elas.

2.

Interrogação

epistemológica

Não pretendemos expor os complexos problemas que

a epistemologia das ciências humanas coloca hoje ao saber filosófico, mas ressaltar algumas razões que poderão 170

levar o filósofo a interessar-se epistemológica suscitada

por

por um esta

tipo de análisa

peripécia

intelectual

de nossa cultura, que é o advento das ciências humanas,

cuja originalidade parece ser constituida de uma

ambi-

giidade: de um lado, há uma exigência de inteligibilidade ou de transcendência, isto é, de um q priori mais ou

menos

velado,

raramente

explícito

ou

declarado;

do

outro, uma exigência de positividade que dificilmente consegue impor sua pretensão de assegurar controles intersubjetivos universais, isto é, uma objetividade fazendo o acórdo generalizado dos “espíritos”. Assim, o problema inicial que deverá presidir às nossas interrogações

serã o binômio: filosofia e ciências humanas. No contexto da epistemologia

geral, cremos

que à filosofia poderá

“estar presente, poderá operar como parte integrante, como personagem ativo e passivo, e não ser colocada entre parênteses e, muito menos ainda, ser previamente

tachada de invalidez epistemológica. Porque as questões de epistemologia não são pura e simplesmente as de 16gica

ou

mesma

de

metodologia,

mas

são

função

da

das coisas que as ciências humanas

realidade

investigam.

Neste sentido, elas têm sempre uma vertente filosófica. Esta só poderia ser eliminada de modo

artificial e arbi-

trário e, em última análise, prejudicial às próprias ciências humanas. Devemos conceber a epistemologia das ciências humanas como esta disciplina que utiliza “grelhas de inter. pretação”, onde aparecem mais ou menos explicitamente

pressupostos filosóficos, ideológicos ou valorativos. Daí ser

ela menos

a descrição

dos

métodos,

dos

resultados

ou da linguagem “da” ciência ou “da Razão” nas ciências, do que esta rejlezão crítica permitindo-nos extrair, em primeiro lugar no sentido de descobrir, em seguida de analisar, os problemas tais como eles se colocam ou 171

deixam de se colocar, são resolvidos ou desaparecem no

Processo de gênese, de estruturação e de desenvolvimen-

tO dos conhecimentos científicos, Quer dizer: à cpistemologia das ciências humanas tem por missão essencial

SUbmeter a prática diferentemente das

dos cientistas a uma reflexão que, teorias clássicas do conhecimento,

àplica-se, não mais à natureza e ao valor do conhecimento; não mais à ciência feita, realizada, à ciência verda-

deira, da qual se deveria apenas descobrir as condições

de possibilidade

(“como o conhecimento é possivel»),

de coerência ou os títulos de sua legitimidade, mas que

Se aplica às ciências em vias de se fazerem Condições reais de realização.

e em suas

Neste sentido, quais os problemas mais importantes

que constituem o objeto de nossa disciplina? Com efeito, AUilo

pelo

que

a epistemologia

das

ciências humanas

S€ Interessa, aquilo de que ela se ocupa, era conformidade com

ÍOrmam,

aquilo que ela visa, consiste em saber como

se

como se desenvolvem, como funcionam ou se

artculam os conhecimentos: a)

tais como eles estão sendo elaborados pelos especialistas, enquanto estes são ao mesmo tempo sujeitos e objetos de conhecimento, enraiza-

dos

b)

num

determinado

contexto sócio-cultural;

na medida em que, por um lado, as ciências hu-

manas

podem

ser reagrupadas

segundo

certa.

. comunidade de objetos, de pontos de vista ou de métodos; e na medida em que, por outro lado, elas

se

distinguem

das

ciências

naturais por

uma maneira própria de atingir a objetividade científica sobre um objeto que, aliás, não é um objeto: o homem.

Portanto, cremos ser de suma importância mostrar

que aquilo que as ciências humanas 172

nos ensinam sobre

o homem

é de natureza a hos informar sobre a gênese

e a estruturação dos conhecimentos. Isto significa responder a duas questões. Em primeiro lugar, o que é que, de fato, elas nos revelam sobre as condutas humanas? Quer dizer: que aspectos do homem podem elas atingir e explicar por seus métodos próprios? A segunda: o que é que, no homem, permanéce reiratário e inacessível a . esses métodos? Assim, a interrogação epistemológica deverá ser feita, não somente sobre os limites de jato que encontram as ciências humanas, mas também sobre. seus limites de direito, o que resultam das modalidades inesmas do conhecer e dos métodos utilizados, O que signifi-

ca o foto da pluralidade de disciplinas? Como não podemos dominar tudo, precisamos da especialização. Contudo, a fragmentação das disciplinas corresponde a uma fragmentação do método. O projeto fundamental é o de um discurso crítico, Mas a instauração de um saber

(discurso crítico) não é o simples reconhecimento de um dado. Supõe uma iniciativa e uma decisão concernentes ao método a ser empregado. Uma decisão de ordem metodológica é necessária, porque a idéia do saber, enquanto conhecimento crítico, engloba qo reconhecimento Go caráter ilusório da experiência imediata: o imediato não

é o verdadeiro, Se é assim, só se atinge o saber por um método que ultrapasse a experiência imediata, E o método, como se sabe, comporta certo corte da realidade, isto é, o emprego de uma abstração adequada, o que leva

a uma “redução” da realidade, a um esquema ideal, mais ou menos simplificado. Em segundo. lugar, comporta certos procedimentos de investigação adaptados à realidade assim “reduzida”. Em tercelro lupar, comporta prôcedimentos de representação, isto é, uma linguagem em-

pírica permitindo exprimir as investigações e seus resul. tados, Enfim, o método comporta. procedimentos de exPplicação, isto é, uma linguagem teórica permitindo re178

encontrar, por via dedutiva, os-dados emp iricos e, assim, explicá-los,

Evidentemente, o objeto a ser estudado deve coman-

dar a escolha do método, embora de modo apenas relativo. Nas ciências da natureza, há-um prande acordo

quanto aos métodos

humanas, porém,

muito

a serem

empregados.

Nas

ciências

a situação metodológica apresenta-se

confusa. Deve-se

recorrer aos métodos “redutoTes”, inspirados nos das ciências naturais, isto é, à construção

de modelos ideais, a métodos de tipo pur amente matemático, ou a métodos “compreensivos" ? Nas ciências humanas, o “objeto” não parece recomendar este

ou aquele método, Métodos diferentes podem ser justifi-

-Cados. A maturação das ciências atuais par ece levar-nos à situação em que a diferenciação das dis ciplinas não

se faz assim em função dos objetos, mas em função dos método s. Em

todo caso, no domínio das ciências hum a-

nas, a dilerenciação é de ordem metodológ ica: de um lado, recorremos à construção de modelos (o que torna possível o emprego de métodos formais); de outro, fazemos apelo à “compreensão” dos ienômenos, isto é, a um método mais hermenêutico, O destino atual da psicológia

Iustra bem esta dualidade metodológica. Esta análise parece-nos sumamente importânte par a com

preendermos que os conhecimentos sob re o homem, fornecidos pelas diversas disciplinas, devem pressupor um

conhecimento

do homem.

Por outro lado, isso nos mes-.

tra a possibilidade de as ciências humanas poderem, cada uma segundo sua abstração metodológica própria, co-.

operar nesta busca de uma nova consciência-de-si para o homem

e constituir, assim, uma

autêntica antropolo-

gia reflexiva, que não seria uma filosofi a sintética das ciências humanas, mas esta disciplina extracientífica cuja função deveria ser procurada na con junção de seus

três papéis: 174

1,

2.

colaborar com as ciências humanas tendo em vista a elaboração dinâmica de um conceito de homem comum às diversas disciplinas em inteTaÇão; fornecer os elementos indispensáveis de crítica e de justificação dos fundamentos

das ciências

humanas;

3.

coordenar e organizar todas as informações concernentes ao homem, tendo em vista respander ao desidéraium de uma

concepção

unitária de

si mesmo,

Para se conseguir isto, torna-se necessário, de um lado, analisar a diversificação das disciplinas a tim de se compreender sua significação; de outro, tentar compreender por que e como se torna imprescindível a re-

corrência a uma démarche interdisciplmar, cujo sentido é o de reconstituir a unidade do objeto que a fragmen-

tação dos métodos esfacela inevitavelmente. Não pode-

mos negar este fato; há um conjunto de conhecimentos parciais, bastante diversificados e que, de um modo ou

de outro, tomam, senão 9 homem, pelo menos os fenômenos humanos como objeto de estudo e de constituição coerente

do saber,

e culminando

em

técnicas

bastante

eficazes. A experiência de devir do conhecimento impõenos o reconhecimento da diversiticação metodológica como um fato, Parece haver contradição entre este fato e a aspiração do projeto do conhecimento, projeto de compreensão que visa. a unidade do saber (ex, a “nia-

thesis universatis"). Contudo, esta aparente contradição indica-nos que devemos renunciar a contentar-nos com

a idéia tradicional de verdade: adequação entre o conhe-

cimento e o conhecido. Correlativamente, o conhecimento é concebido como representação. Na versão racionalista, da epistemologia tradicional, esta representação consistia em “idéias” que forneceriam os equivalentes I7ô

inteligiveis da realidade exterior. Na versão empirista,' ela consís

tia em “dados sensiveis” que fornec eriam imagens instantâneas, no nível dos aparel

hos sensoriais, da . realidade exterior, No fundo, ess as duas formas de.epistemologia se encontram, pois fu ndam-se sobre a Idéia de represent

ação,

, Portanto, diante do fato da Pl uralidade de saberes parciais, o problema que se col oca é o de sua articula-

ção: como eles se agenciam e se integram? Qual é à disciplina que se esforça por totolizar estas diferentes persPectivas? Deve mos aceitar a Posição segundo a qual, no

filosofia,

mas

justamente

enquanto

“sa

bedoria coordenadora dos valores”, pois o ter reno da ação ultrapassa O conhecimento e supõ engajame ntos pessoais? Ou será

que podemos

recusar esta tendência “tecno cratizante” a “ci

constituir uma

ência da ciência”, em nome pre cisa-

mente de uma antropologia. reflex iva que não somente Pode, mes deve

des

envolver-se pum diálogo viv o e constante com as ciências? Por outro lado, precisamos tomar consciência

de que a unidade do saher não pode szr dada a priori, pois não podemos comp arar o obj

eto real a uma máquina que podemos desmontar e remontar à vontade, cumo

ar

se possuíssemos de antemão seu esquema

de construção. Nem tâmpouco pode ser dada q posteriori, pois não basta justapormo s os dados

parciais for

necidos pelas ciências para que, como Por encanto, vejamos surgir o objeto real em sua unidade int rínseca, Portanto, não podemo

s pensar a unidade à maneira de um a síntese, pois não é nem uma lei de constr ução que podemos coNhecer pre viamente,

reconstituição veremos,

da

apenas

empreendida

a unidade

em

nem tampouco o resultado de uma

que

a partir

é anterior

dos dados.

aos Gados,

se apresenta

como

mas

um

Como

na medi.

a exigência, tomo um princípio de unificação, e não como unidade

276

«acabada. E é na reflexão filosófica que se manifesta esta exigência. Se devemos adotar a segunda posição da alternativa anterior, é para que o homem

possa tomar uma

têntica consciência-de-si, verdadeiramente

au-

apta a fazê-lo

superar a alienação em que se encontra em face do tipo de racionalidade científica atual. Com efeito, já se foi o tempao em que uma antropologiã podia constituir-se s0-

bre si mesma, por introspecção ou metodologia transcendental. Hoje em dia, estamos acuados pela pesquisa intergisciplinar, em que cada ciência, partindo de suas ob-

jetividades legítimas, aceita fechar um “círculo estrutural reflexivo”, praticamente um retorno às suas decisões constitutivas para tomar consciência de seus limites de validade. Os sentidos positivos elaborados por cada um dos saberes parciais sobre o homem

só poderão ser uni-

ficados, retomados, situados e tornados coerenies, nO interior de um esforça de compreensão-de-si, isto é, de um

saber

reflexivo

do

homem

sobre

Portanto, é esta vertente

si mesmo.

epistemológica

da filoso-

tia, ou este enfoque filosófico da epistemologia, que deverá levar-nos

a tomar

consciência de que

os processos

de especialização e de diferencinção das ciências huma-

nas são fontes geradoras de distâncias e de ignorâncias recíprocas entre os especialistas: eles engendram o esmigalhamento das disciplinas pela compartimentação das

faculdades

universitárias,

pela

criação

de uma

hie-

rarquização rígida e pela manutenção de uma prudência metodológica que freia a pesquisa das interações en-

tre as disciplinas. Por isso, torna-se urgente realçar os contatos, as trocas € as relações entre as disciplinas, tendo em vista aproximá-las, compará-las, confrontá-las e,

na medida do possível, integrá-las. Tudo indica que é a análise das relações interdisciplinares que irá permitit-nos extrair certo conhecimento 177

comum às diferentes disciptinas. Ela já nos róvelaa pos: / sibilida de de certa unidade do saber sobre o homera. A interdisciplinaridade tem q grande mérito de já ser um.

princípio de organização dos conhecimentos que modifi-

ca os conceitos, os princípios e os pontos de junção das disciplinas, criando assim ums coordenação dos. conhe. -

cimentos que elas fornecem, tendo em vista uma fina lia dude conscientemente perseguida, O que-implica o recu rso a principios normativos ultrapassando, assim,

a con-

cepção meramente empírica das ciências hum anas. O que está em jogo é o agenciamento das disciplinas para uma ariomática comum ou “objetivo:de sistem a global”: pesquisa de valores, de normas ou de uma política interdisciplinar que se situa no nível retrospectiv o, ou seja,

dos sáberes já constituídos. Torna-se imprescin dível, ain-

da aqui, a intervenção da atividade reflexiva, eminente-

mente crítica, tende por função não mais agir diretamente sobre o real a ser construído ou sabre a história a ser

“Orientada, mas refletir sobre o sentido dessa int ervenção, Sabemos que a atividade reflexiva isola, provisori amente, a experiência do saber para determinar sua est rutura e relacioná-la com o ato fundador do sentido. Ela visa à unidade deste objeto do saber, por uma crit ica de suas

diferentes apreensões do real e por uma

reilexão sobre

os conceitos e os métodos utilizados. Assim, a filosofia torna-se

ao mesmo

cpistemologia

e

tempo reflexão sobre a linguagem,

hermenêutica

das

ciências

humanas,

do

do sujeito

procurando desvendar às condições que tornam possivel . & unidade do saber, fornecido por essas disc iplinas, tanto . do lado do objeto

do saber

quanto

lado

que o elabora, Certamente, a filosofia não cons titui o sentido

, mas, o explicitá-lo, ela 0 funda, quer dizer, o desvela e o justifica. Todavia, sem o níve l prospectivo ou da tarefa, a atividade reflexiva estaria fadada à esterilidade e no impasse, Em contrapartida, sem o nível re78

trospectivo ou da reflexividade, a tarefa interdisciplinar estaria fatalmente condenada ao pragmatismo e ao arbítrio.'

O que pretendemos mostrar é que as ciências huma-

nas devem hoje representar, para a filosofia, uma passagem obrigatória, Se o filósofo quiser conhecer a realida-

de do homem, ele terá que decidir-se: ou a não conhecer nada dessa realidade, ou a conhecer, em primeiro lugar, aquilo que dela conhecem os elentistas. Que ele vise ultrapassar o conhecimento científica, ou que tente escla-

recê-lo pela reflexão, tanto melhor,

mas

prescindir

mais, é obstinar-se

dele ou contradizê-lo sem

que pretenda

a construir um sistema sem à pensamento e sem o fenôómeno. Isto quer dizer que todo discurso sobre q real, para

ser válido, deve

começar

por

recolher

as informações

fornecidas pelos cientistas. A filosofia, em sua vertente epistemológica, intervirá como uma segunda leitura dessas

informações,

tentando

constituir um

conjunto

coe-

rente, Pois compete-lhe reagrupar o que podemos saber sobre a estrutura do real, uma vez para guiar a ação, Aliás, & interdisciplinaridade se apresenta como um triplice protesto: a) contra um “saber em migalhas”, pulverizado entre uma multidão de especialidades em que cada uma se fecha como que para fugir ao verdadeiro conhecimento;

b) contra o divórcio crescente entre uma

“universidade cada vez mais compartimentada e a sociedade; mas, simultaneamente, contra essa própria sociedade, na medida em que ela limita o individuo & uma função

estreita e repetitiva,

impedindo-o de desenvolver

todas as suas potencialidades e aspirações

(cf. a unidi-

mensionalização do homem afual), c) contra o contformismo das “idéias recebidas” e q inércia das situações

adquiridos: 178

Neste particular, o papel

da filosofia torna-se fun-

damental. Não se trata de arvorar-se em instância supe-

Tior que viria ditar às ciências as leis de seus méto dos e

de sua fundação. A filosofia não tem o direito de trazer

de jora a pesquisa interdisciplinar, um conjunto de con-

ceitos transdisciplinares já prontos. Aliás, nenhum diktat desta ou daquela filosofia poderá ser aceito pelos cientistas. Trata-se, isto sim, de mostrarmos a importância

que não somente

pode, mas

disciplinar, uma filosofia em

sem

deve ter, na pesquisa intertrabalho, uma filosofia que,

renunciar ao seu método próprio, procure penetrar

no espírito científico a fim de que, justamente

especialistas, e enquanto

estes constroem

com os

criticamente

suas ciências, possam ser elaborados conceitos transdis“