Do Mito ao Pensamento Científico [2nd ed.]
 8573797215,  9788573797213

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A Busca da Realidade, de Tales a Einstein

A A theneu

Do Mito ao Pensamento Científico A Busca da Realidade, de Tales a Einstein

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Do Mito ao Pensamento Científico

C arlos A ntomo M ascia G ottschall Livre-docente e Doutor em Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisador e Professor-Pleno de Pós-graduação em Cardiologia da Fundação Universitária de Cardiologia, Porto Alegre, RS. Membro Titular da Academia Sul-riograndense de Medicina.

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EDITORA A THE N E U

São Paulo —

R ua Jesuino Pascoal, 30 Tels.: (11) 3331-9186 • 223-0143 • 222-4199 (R. 25, 28 e 30) Fax: (11) 223-5513 E-m ail: edathe@ lerra. com. br

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Gottschall, Carlos Antonio Mascia Do mito ao pensamento científico: a busca da realidade, de Tales a Einstein/ Carlos Antonio Mascia Gottschall. — São Paulo: Editora Atheneu, 2005. 1. Ciência - História 2. Filosofia - História 3. Filosofia e Ciência 4. Mito L Título.

02-4897

CDD-509 índices para catálogo sistemático: 1. Ciência: História

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GOTTSCHALL, C. A. M D o M ito ao Pensam ento Cientifico — A Busca da Realidade, de Tales a Einstein Co-edição E ditora Atheneu e Fundação Universitária de Cardiologia, 2005.

Epígrafe

Só sei que nada sei. Sócrates

É preciso verificar. N ada nos engana tanto quanto nossa própria opinião. Leonardo da Vinci

A m aioria dos sistem as filosóficos está, em grande parte, correta naquilo que alega ser verdadeiro m as não tanto naquilo que alega não ser. G ottfried L eib n iz

Sinto-m e m ais seguro descrevendo o que acontece para mim do que interpretando o que se p a ssa na cabeça dos outros. C laude B ernard

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Dedicatória

Dedico este livro a todos os que ousaram pensar. O s p e n s a d o r e s , a tr a v é s d o s liv ro s , se m p r e esgrimiram as m ais poderosas arm as p a ra mudar o mundo. Papas, reis, generais e políticos prim eiro se agitaram, depois reagiram e, p o r fim , sucum ­ biram à fo rç a das idéias.

Carlos A . M . GottschaU

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Prólogo

O lixro que vocês esTão prestes a 1er é simplesmente um livro magnífico. Quando Carlos Gottscháll me deu seu manuscrito para 1er, não pensei que iria abandonar toda outra leitura durante um dia e meio fe liz e quase ininterrupto. O primeiro que pensei fo i: “Mais um livro sobre História do pensamento científico!" Mas logo que comecei a transitar com crescente prazer por suas páginas, densas em informações e leves e agradáreis para a leitura, percebi que este livro está muito longe de ser “mais u m ”. E o melhor. Em poucas páginas, admiravelmente bem escritas, Gottscháll conta nada menos que a História do pensamento ocidental filosófico e científico com rigor e espírito crítico. Eu li este livro vorazmente e com verdadeiro prazer e aprendi muito. O texto, excepcionalmente bem ilustrado, nos conduz ao conhecimento de coisas complexas pelos caminhos mais simples e de uma maneira que não parece árdua. Isto se deve a seu estilo claro e conciso, e também à clareza com que o autor expõe cada tema. Só quem os analisou em detalhe pode expressá-los dessa forma. O tratamento de cada linha de pensamento ou escola filosófica é profundo; a capacidade de síntese do autor é que determina sua simplicidade ao abordá-los. E trata-se, nada menos, da História do pensamento filosófico e científico de toda a nossa civilização. Poucas vezes aceito escrever prólogos. Creio que os prólogos em geral não são bons, porque tendem a explicar o conteúdo do livro por antecedência, tirando o gosto do texto real que vem depois. Mas desta vez estou muito contente de ter aceitado o g en til convite de C arlos G ottscháll. A q u i estou sim plesm ente recomendando aos leitores a seguir adiante, sabendo que ao fa zê-lo sentirão verdadeiro prazer e aprenderão muito, como aconteceu comigo. Talvez sirva a seguinte confissão: passei muitas horas da minha vida dedicado a entender a história do pensamento ocidental; nunca aprendi tanto em tão pouco tempo nem percebi os elos e conexões entre as diversas correntes desse pensamento, como ao 1er este magnífico livro. Convido os felizes leitores a compartilhar deste agrado. I v á n Izq u ie r d o Professor da UFRGS Pesquisador e escritor

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Prefácio

A Históna do desenvolvimento do Método Científico é a história da transformação do pensamento mítico no pensamento baseado na lógica encadeada e conseqüente dos fatos. Essa passagem representa o mais longo e perigoso caminho percorrido na História do pensamento humano. Provavelmente devido a uma cômoda inércia mental, as diversas etapas atingidas o foram com intervalos muito distantes. E rematada ingenuidade pensai' que a ciência natural (física, biologia, astronomia, botânica, zoologia, geologia, química) abriu caminho sozinha, sem que seu lastro fosse pavimentado por idéias e fatos sociais encadeados. Todo um clima intelectual e cultural influenciou o desenvolvimento da ciência e por ela foi influenciado, numa cadeia contínua de causa e efeito. Todas as épocas têm interpenetrações, cujas mais absurdas vão se evanescendo mas não desaparecem. Entretanto, no estágio evolutivo cultural da humanidade em que nos encontramos, a história oficial contada ainda é predominantemente política e militar, muitas vezes registrando apenas a crónica de anões humanos - saqueadores do poder - , trocada pela verdadeira Históna da humanidade, em que deveria constar o estudo da evolução do pensamento, única arma capaz de elevai' a condição de vida do homem. Aprendi pelo estudo da Históna que é muito mais difícil romper barreiras que criar idéias: 1) a cada estágio do conhecimento corresponde uma ordem social que também o influencia, numa simbiose contínua de causa e efeito; 2) ao romper-se essa ordem por um novo paradigma cientifico, contrariam-se, em maior ou menor grau. interesses firmados na ordem anterior; portanto, todo novo conhecimento socialmente importante é desestabilizador: isso ocorreu com a afirmação de que a Tena gira em tomo do Sol. com a descoberta da circulação do sangue e do oxigénio, com o darwinismo e a psicanálise, com a pílula anticoncepcional e a internet; 3) todo gênio realmente modificador, em alguma fase de sua vida. é um solitário; depois, surgem os profetas do acontecido, às vezes tomando as glórias para si; o verdadeiro génio é muito mais preocupado com suas idéias que com o eventual reconhecimento pessoal; 4) o desenvolvimento científico nunca é atraumático, e costuma ocorrer em pequenas doses; o considerado progresso de uma época pode ser o crime da ordem anterior, e viceversa. Porém, ao contrário de outras ciências, a História pode ser interpretada mas não mais inventada nem modificada nos seus fatos. XI

Como a modificação dos paradigmas científicos avança por passos muito pequenos, por vezes, a vida inteira de um cientista genial serve para modificar uma vírgula na História. Considerando-se os tão condenados impedimentos históricos ao progresso científico, deve ser lembrado que o comportamento humano é errático'. 1) sistemas de pensamento aprisionam completamente o indivíduo e a sociedade, que passa a negai' ou não aceitai' qualquer evidência contrária; só se percebe o cerceamento quando se sai dele: 2) o complexo de conhecimentos passados sempre foi muito mais inter-relacionado e integrado do que nos parece, criando uma coerência interna, apenas visto de maneira diferente da nossa; 3) infelizmente, hipocrisia ê uma característica de grande parte dos homens: ê provável que muitos atuais inflexíveis acusadores da intolerância, na época e no contexto cultural apresentado, se comportassem da mesma maneira que condenam. Na verdade, os únicos que provaram coragem histórica foram os sofredores de sanções por não abjurarem suas idéias! Mas o que nos mostra a História? Mesmo os supergêmos chegam a um limite de conhecimento, que pode ser enciclopédico, mas contido dentro de seu meio e época, conhecimento passível de ser desmanchado por uma descoberta científica elementar, capaz de eliminar a cultura anterior, criai' novo paradigma e colocar o saber humano em outro patamar. Será que Aristóteles, Galeno. Ptolomeu, Leibniz não trocariam todos os seus conhecimentos considerados imensos respectivamente por saberem que os seres evoluem e são formados por células, que o sangue circula pelo organismo, que a Terra gira em tomo do Sol. que a matéria é constituída de átomos? Quantos gênios extraordinários ocuparam suas vidas com conhecimento sem nenhuma utilidade hoje! Tempo perdido? Não. pilares para a cadeia contínua do desenvolvimento. O avanço da ciência consiste em entender o mundo além do evidente e se afastar gradualmente de pressuposições infundadas. Este caminho foi aberto por hom ens que desafiaram o destino e transform aram um m ítico m onum ento à impossibilidade nas vertentes da ciência moderna. A Revolução Científica começou a esboçar-se no século XVI. efetivou-se no XVII e firmou-se definitivamente no XVIII. O modelo do método científico iniciado nessa época e continuamente aperfeiçoado (observação, hipótese, experimentação, mensuraçâo, análise e conclusão) deu origem a toda a ciência moderna com suas fantásticas realizações. Foi criada através de muito trabalho - alguns anônimos —, sintetizada na astronomia de Copémico, na anatomia de Vesálio, na física de Galileu, na fisiologia de Harvey, na filosofia de Descartes, no empirismo de Boyle, na matemática de Newton, na química de Lavoisier. Manda a justiça que nos coloquemos no lugar dos antigos, sem conhecimento prévio, sem instrumentos e sem método científico. A evolução de milhares de anos, do mito ao pensamento científico, passou pelos pensamentos mágico, idealista, determinista, dedutivo, observaciomsta e sistematizador da filosofia natural com seu finahsmo, absolutista, escolasticista, hermetista. Com o Renascimento e a Reforma, o pensamento tomou-se conseqüente, desembarcando no racionahsmo e no empirismo, que dominam a ciência XII

há quatrocentos anos. Através dessas etapas, veio se delineando uma busca progressiva da coerência nas explicações sobre os fatos naturais, em certas épocas muito menos pelo que representavam por si mesmos do que para justificai' uma subordinação ao pensamento oficial dominante, principalmente religioso. Devido a uma séne de interesses não científicos, as explicações sobre os fatos naturais tinham que subordinar-se à “verdade” estabelecida. O simbolismo do mito apoiou-se em revelações, perfeições, mistérios, segredos, milagres, condenações, penitências, sendo sempre qualitativo e não passando jamais do tipo categórico: sim ou não. certo ou errado, bom ou mau. Arte. religião, filosofia e ciência são territórios separados em que o homem pode mcursionar. A última começa onde as outras terminam. Foi só no século XVI que a ciência ocidental se desvinculou do método socrático e dedutivo e passou a utilizar o alternativo de observação, hipótese, experimentação, análise e conclusão. Foi pela observação que se iniciou toda a ciência. O bservação serve para apreciar comportamentos, mostra o fato mas a explicação costuma estar oculta. Hipótese (qualquer suposição admissível coerente com os dados disponíveis) tem por finalidade salvar as aparências da maneira mais completa possível. Uma teoria científica (doutrina ou sistema acerca de conjunto de princípios fundamentais de um campo do conhecimento, especulação independente de aplicações práticas) deve ter domínio universal, sendo tudo ou nada no que diz respeito à explicação. Experimentação reproduz condições particulares e testa; é a linguagem com que o homem de ciência interpreta a natureza. Matemática demonstra e representa. Análise estabelece significâncias, distribuições e gradações. Conclusão mostra causalidades com graus de certeza, depende do nexo e da coerência do pensamento: quanto mais interconexões, mais abrangência, sendo seu objetivo desembocar numa lei. ou seja. o enunciado de uma relação constante entre um fenómeno e sua causa. Assim, o aspecto mais peculiar da idéia científica é a apreensão da causalidade entre fenómenos. A concepção de que a idéia precede a observação, a observação precede a mensuraçâo, a m ensuraçào precede a experimentação, a experimentação precede a análise, a análise precede a prova, a prova precede a generalização, a generalização precede a universalização decorreu de um longo caminho evolutivo, não sendo uma inspiração instantânea ou pré-formada. A graduação e a hierarquização de valores de uma maneira contínua, quantitativa, numérica, surgiram com a ciência. E como se o pensam ento humano fo sse passando de um para outro compartimento cerebral. Tão longa evolução justifica que o significado presente da palavra ciência só tenha sido usado com o sentido atual no século XIX. A quase totalidade da produção científica que vemos publicada é confirmatória, quantitativa, e não seminal ou qualitativa. A ciência só muda de patamar e progride verdadeiramente quando surge um novo conceito. Embora este livro seja uma tentativa de explicai' como se desenvolveu o pensamento científico, não é cientificista e a filosofia está muito presente, primeiro porque filosofia e ciência têm a mesma origem e, depois, porque, mesmo separadas, o pensamento filosófico XIII

é a voz crítica da ciência e a ela impõe limites. É muito discutível que a ciência seja “licenciada” pela filosofia. Não será a filosofia que se adapta à ciência? Os fatos sempre aconteceram e em todas as épocas foram explicados. A filosofia natural tudo explicava mas não era ciência como a concebemos. Agora a ciência caminha por si e a filosofia assiste. Porém, esta não desapareceu nem pode desaparecer porque, além da ciência, da arte e da religião, representa um território que o homem precisa freqüentar para ter respostas aos questionamentos morais, éticos e lógicos. Não pode existir humanismo sem filosofia. Espero alcançai- o objetivo de demonstrar os caminhos do pensamento mítico até o pensamento científico, suas dificuldades e hesitações na passagem de uma etapa para outra. M ostrar como isso não tem sido fácil, as lições que podemos tirar daí e principalmente avisar sobre a prepotência do homem moderno, que precisa adquirir mais humildade para não pôr a perder tão extraordinárias conquistas. Nós. que nos consideramos cientistas, temos aqui a nossa história. Se mal sabemos de onde saímos, desconhecemos para onde vamos. Espero que cheguemos a um bom lugar. Carlos A.M. Gottschall

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Sumário

Método Científico e Sociedade, 14 A.

A TRAJETÓRIA DO MITO, 19 I. Império das Idéias: Idealismo, 21 1. Idéias Másicas e Pensamento Coerente. 21 O Poder do Mito: Força do Inconsciente, 21 Nascimento da Filosofia: Força da Razão, 24 2. O Despertai- da Filosofia Natural. Metafísica. 28 Os Jónicos: O Mundo Começa a Ser Explicado, 28 Os Pitagóricos: A Ordem Cósmica é Matemática, 31 Os Intelectualis tas: Nasce a Razão, 36 Os Pluralistas: O Mundo Não Tem uma Forma Única, 38 Primeira Cisão entre Filosofia e Ciência: A Ciência Começa pela Medicina, 44 3. A Ética como Disciplina. 4 7 Sócrates e Platão: O Homem Pode Ser Grande, 48 Cinismo, Epicurismo, Estoicismo, Ceticismo: O Homem é Sempre o Mesmo, 53 II. Evidencialismo Finalístico: Teleologismo, 58 4. Aristóteles e Sua Filosofia Natural. 58 5. A Escola de Alexandria. 65 Medicina Pré-Galênica: Evidência Obser\-acionai, 66 Matemática e Astronomia: O Mundo Começa a Ser Medido, 68 Galeno: A Medicina é Eterna. 72 XV

III. Fé sem Razào: Absolutismo, 79 6. O Eclodir do Cristianismo, 79 Cristo e Paulo: A Fé que Arrebatou o Mundo, 79 Pilares de um Absolutismo: Só Há Uma Verdade, 83 Santo Agostinho: A Fé Não Pode Vacilar, 86 Cultura Mediexal: Deus Supre Tudo, 89 Inquisição: Uma Trava na História, 95 TN. Fé com Razào: Escolasticismo, 101 I. O Pensamento Teológico como Base do Conhecimento. 101 Início da Separação entre Fé e Razão: O Homem Pode Pensar, 101 Nascimento das Universidades: O Saber Oficializado, 103 Influência Arabe: Frades Inovadores, 106 A Escolástica Ressuscita Aristóteles: Santo Tomás de Aquino Abre Caminhos, 109 A Filosofia Natural Revivida: Aristóteles Volta à Cena, 111 V. Sementes do Experimentalismo, 116 8. Os Franciscanos e o Empirismo. 116 9. Caminhos Laterais do Conhecimento. 120

B. O CAMINHO DA CIÊNCIA, 131 VI. Experiência como Fonte do Conhecimento, 133 10. Rupturas na Filosofia Natural Anstotélica. 133 Argumento da Autoridade e Ciência: A Força Nada Ensina, 133 Hermetismo, Renascimento e Reforma: Caminhos para o Conhecimento, 135 Fendas na Filosofia Natural: O Aristotelismo Começa a Naufragar, 143 Copérnico, Brahe, Kepler, Bruno: A Terra é Posta de Lado, 145 Modificações na Biologia: Vesálio Nega Galeno e a Biblia; 151 VII. Quantificação como Origem da verdade, 156 II. A Ascensão da Matemática. 156 12. A Revolução Galileana. 162 Galileu Galilei: A Inteligência Acaba Triunfando, 162 MU iam Harvey: O Epitáfio do Gálenismo, 171 Marcelo Malpighi: O Invisível se Torna Aparente, 177 Intolerância: A Mente Humana Não Gosta de Mudar, 180 XV I

M D . Nascimento do Modelo Científico Atual, 186 13. O Despertai- da Filosofia Científica Moderna. 186 René Descartes: O Racionalismo Atinge a Verdade, 187 Thomas Hobbes: O Homem Não é Tão Bom como se Diz, 191 Filosofia Mecanicista: A Explicação Muda de Tom, 193 14. O Experimentalismo, 196 Francis Bacon: O Método Científico Veio para Ficar, 196 John Locke: A Primeira Mente Moderna, 200 Emergência do Método Experimental: O Empirismo Sobe ao Palco, 204 Experimentalismo Inglês e Continental: Duas Visões do Mundo, 206 O Papel das Sociedades Científicas: Nada Progride sem Organização, 209 IX. Revolução Científica, 215 15. A Aceitação da Ciência pelo Mundo. 215 Ascensão da Ciência: Caminhos para a Riqueza, 216 Isaac Newton: A Explicação do Universo, 217 16. A Ciência Impõe-se sobre o Mito. 223 A Verdadeira Constituição da Matéria: A União do Mínimo Faz a Imensidão, 224 Ligação do Homem com a Substância Vital: A Vida Vem do Ar, 227 O Mito Retorna Forte: A Ciência Brinca de Cabra-cega, 229 Antoine Lavoisier: O Exterminador de Mitos, 232 Teoria Atômica Moderna: Dalton Ressuscita Demócrito, 238 X. Nova Visão do Mundo, 245 17. Tudo ê Relativo, 245 A Verdade Científica Surpreende: O Homem se Toma mais Humilde, 245 Começa a Relatividade: Precursores de Einstein, 249 Albert Einstein: O Espaço é Curvo e a Luz a Única Medida, 250 XI. Ciência e Filosofia, 258 18. A Validação do Conhecimento. 258 Inunanuel Kant: A Crítica da Razão Pura, 258 Filosofias Paralelas ao Pensamento Científico: A Contestação do Racionalismo, 261 Limites para a Ciência: A Perda da Certeza ou a Consagração do Empirismo, 274 19. Fundamentos da Bioética. 281 Epílogo, 287 XV II

M ÉTO D O C IE N T IF IC O E SOCIEDADE ciência, cujo objetivo é estabelecer a verdade fatual p o r m eio de um conhecim ento racional ordenado, só surgiu no século X V II, com o advento do M étodo Científico, co m o q u al c o n v iv e m o s c o n s ta n te m e n te . T u d o se re su m e a q u a tro p a la v ra s conseqüentem ente encadeadas: observação, experim entação, análise e conclusão, produto de um a longa evolução de idéias que emergiram a partir do pensam ento m ágico. O M étodo Científico representa a m aior m odificação da p o stu ra racionai em relação ao m undo desde que o homem surgiu na fa c e da Terra, sendo responsável p o r todas as extraordinárias conquistas e m udanças no co m p o rtam en to hum ano dos ú ltim o s q uatro séculos, a p o n to de tra n sfo rm ar eventos im portantíssim os da H istória, com o o R enascim ento e a R eform a, em m eros episódios, se com parados à Revolução Cientifica. Considerando que, provavelm ente, os prim eiros hom inideos surgiram neste planeta há m ais de quatro m ilhões de anos e que o H om o sapiens tem pouco m ais de 40.000 anos (nesse tempo desenvolveu o pensam ento m ágico, expressou-se por m eio da arte, criou a agricultura e agrupouse nas prim eiras cidades há 10.000 anos, com eçou a desenvolver a escrita h á 5000 anos e a filosofia há 2700 anos), quatrocentos anos representam tão som ente 0,0001 ou 1 10.000 do tem po de evolução hum ana sobre a Terra. C olocado esse v alor sobre um a escala de um m etro, representará apenas um décim o de m ilím etro! A ssim , a ciência é o m ais recente p ro d u to do pensam ento hum ano, a irm ã m ais nova da religião, da arte e da filosofia, os outros departam entos concebidos pela m ente hum ana (Figura 1). O hom em moderno parece pensar que as hoje banais descobertas ou utilidades (para citar apenas algumas) - como a imprensa (1446), o telescópio (1609), o jornalismo (1620), o relógio de pêndulo (1656), o m icroscópio (1665), a vacina (1796), a comida enlatada (1S12), a imagem fotográfica (1826), a purificação da água (1829), o telégrafo (1844), a anestesia (1846), a m áquina de costura (1S51), o telefone (1S76), o abridor de latas (1S85), a lâm pada elétrica (1S76), o automóvel (1890), os R X e o cinem a (1S95), o avião (1906), o plástico (1907), o rádio (1920), a televisão e a penicilina (1928), o computador e a bom ba atôm ica (1945), o transistor (1947), a pílula anticoncepcional (1966), a viagem à Lua (1969), a internet (1990), o genom a hum ano (1999) - sempre existiram. Se a vida hoje é completamente diferente de há apenas um século, imagine-se comparada com a época dos gregos, há dois ou três m ilénios atrás. Atualm ente, o hom em parece esquecer-se de que o conhecimento desfrutado e que lhe perm ite repetir um a experiência com plexa ao sim ples apertar do botão do computador não criou a ciência. E, antes, o resultado dela. C ada passo em direção à verdade - que nos tem pos atuais parece sim ples, elem entar - na realidade foi gigantesco e freqüentem ente am eaçou ou tirou a vida do seu executor. Existe enorm e dificuldade p a ra alguém com conhecim ento científico - e a arrogância do hom em m oderno - situar-se despojadam ente e tentar apreciar a im portância de cada etapa lógica do conhecim ento, e quanto m ais lógica mais simples. O M étodo Científico plenam ente desenvolvido baseia-se em etapas concatenadas e conseqüentes, validadas pelos sentidos e pela coerência m ental, que geralm ente obedecem à seguinte ordem : 1) O bservação (natural ou instrum ental); 2) Idéia a ser testada (hipótese); 3) A m ostragem (aleatória ou eletiva); 4) Experim entação (m o d ific a d o ra ou n ã o ); 5) T a b u la ç ã o (re g is tro de d a d o s c a te g ó ric o s o u c o n tín u o s ); 6) A nálise dos dados (in tu itiv a ou m atem ática, estatística); 7) Prova (tese) ou Conclusão (causalidade, coerência entre achados e generalização de conceitos). A generalização dos conceitos pode seguir-se a universalização dos conhecim entos. Q ualquer conhecim ento que

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nào passe p o r essas etapas, com a po ssív el exceção da experim entação, não é científico. E ntretanto, tal consenso univ ersal é extrem am ente recente e representa u m a evolução da racionalidade hum ana que se fez lenta e penosam ente desde que o hom em com eçou a pensar. RAMAPfTW CCUS

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Figura 1- Aparecendo os primeiros hominideos há 4.000.000 de anos, e 0 Homo sapiens há cerca de 40.000 anos (em cima), esta espécie de primatas gigantes dominou a Terra sobre todas as outras espécies animais (embaixo). Surgiram: há 10.000 anos a agricultura e as primeiras cidades, há 5000 anos a escrita, há 2700 anos a racionalidade e há 400 anos a ciência, tempo que representa mínima fração da existência da humanidade. A ciência distingue-se do conhecim ento vulgar em que este decorre apenas da observação rotineira dos fatos, afastado de buscas de interpretação racional e de conexões possíveis. Caracteriza-se por conquistas essencialm ente pragm áticas, m antendo alto com ponente subjetivo, lim itado a im pressões repetidas. N ão que até o século XY II não existisse conhecim ento. Existia, e às vêzes m uito bom , m as não era ciência, porque não obtido pelo m étodo cientifico. Se não havia ciência no sentido com o a concebem os, não h á dúvida de que havia grande núm ero de im portantes conhecim entos práticos aplicáveis - com resultados previsíveis e repetitivos que ainda hoje nos surpreendem -, com o a m etalurgia dos povos da M esopotám ia e da Á sia Menor, a arquitetura egípcia e m inóica, a agricultura e certas técnicas m édicas dos egípcios e dos gregos, a astronom ia dos sum énos e, m ais recentem ente, a arte-ciéncia de navegação dos portugueses. D e certa form a os antigos fizeram “ciência", porque observaram , raciocinaram , eventualm ente

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experimentaram., e concluiram . M as o objetivo principal era a m anutenção do utilizável, e os resultados surgiram m ais pelo m étodo do acerto e erro do que p o r testagem consciente. A lém disso, a explicação dos fenôm enos naturais perm anecia fora da causalidade conseqüente, na esfera do pensam ento filosófico, a cham ada filosofia natural, sem com provação cientifica observe e explique com o pensa que é -, pois o m étodo científico não era conhecido. A filosofia natural era o visível, olhos desarm ados, o evidente, sem experim entação ou prova. A fe iç ã o m ais caracierística da ciência é a busca do entendim ento das relações entre causa e efeito (causalidade conseqüente), e o controle dos p rocessos de obtenção de resultados. A ssim sendo, a ciência não s e dirigiu voluntariam ente, conscientem ente, à situação a tual mas se f e z p o r resultados encadeados - p e io m étodo de acerto e erro -, ocorreu d e m aneira gradual e dependeu da introdução não concom itante da m atem ática e da coerência, esta representada p e la adequação das conclusões em relação aos fa to s observados, conclusões essas comprovadas p o r e v e n to s d e m o n strá v e is r e p e titiv a m e n te , a tra v é s d e q u a n tific a ç õ e s n u m é rica s e/ou experim entos controlados. O cam inho que desem barcou no m étodo cientifico m oderno exigiu não só a descoberta e interpretação d e fa to s naturais, com o coragem p a r a dem olir m itos que se criaram e se m antiveram p o r séculos. P ara nascer, a ciência teve que substituir a cham ada filo so fia natural. A ssim , a H istória da ciência m oderna com eçou no século X V I, época de C opérnico (14731543, astrônom o e m atem ático), V esálio (1514-1564, anatom ista e m édico), G alileu (1564-1642, m atem ático, físico e astrônom o) e H arvey (1 57S-1657, m édico e físiologista), quatro dos m ais im portantes fundadores do m étodo científico atual. Por m term édio de um a nova e revolucionária postura racional, m odificaram um conhecim ento construído durante m ilénios, passando por babilônios, egípcios, gregos, e cristalizado nos ensinam entos dos gregos A ristóteles (384-322 A C, filósofo, biólogo e astrônom o), Ptolom eu (90-168, astrônom o, m atem ático e geógrafo) e G aleno (130-200, m édico), durante dois m il anos, sem contestação. Pela titulação de seus protagonistas, vê-se que os fatos fundam entais capazes de m odificar o conhecim ento e condicionar o aparecim ento da ciência m oderna estiveram quase sem pre ligados ao cosmo, à m atem ática e física e à quím ica e m edicina, nesta principalm ente relacionados com o aparelho cardiovascular. A m ais p u ra racionalidade cientifica m oderna repousa sua origem no pensam ento mágico, na religião, em políticas e sociedades antigas, bem com o na beleza, harmonia, economia e equilíbrio do discurso filo só fico que a precedeu. O s sistem as de filo so fia natural de Aristóteles, m ecanicism o de G alileu e relativism o de E in stein fo ra m respectivam ente sustentados p e la escolástica de Tomás deA quino, racionalism o de R ené D escartes e em pirism o de K a rl Popper. A o longo da história, tem sido uma constante que o conhecim ento em pírico só se manifesta quando licenciado p e la filosofia, religião ou p o d e r dom inante ou quando rom pe essas amarras. P or isso, na H istória do pensam ento cientifico ocidental, a influência da religião, diga-se cristianismo, sobre a ciência adquire feiç ã o absolutam ente determ inante e prim acial. o A q u i se rá contada não a H istó ria da C iên cia m a s a H istó ria do desenvolvim ento do pensam ento científico a p a rtir do mito e das dificuldades encontradas p a r a firm a r-se justam ente o n d e f e z su a h istó ria m a is m a rca n te - na A stro n o m ia e F ísica, B io lo g ia e M ed ic in a e Q uím ica -,as posturas paralelas que a facilitaram ou que a dificultaram , e a influência de sua mãe-filosofia, num a cam inhada de m uitos milênios. N este trabalho, a pala vra m ito será usada com o sinônim o do conhecim ento substituído p e la versão atual da verdade cientifica, não esquecendo que esta p o d erá se r o mito de amanhã.

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R E FER ÊN C IA S BIBLIO G R Á FIC A S GERAIS 1. Bowker J - Para Entender as Religiões. Editora Ática, São Paulo 1997. 2. Bullock A (Ed.) - A História: A Civilização desde as suas Origens. Publicações Europa-América, Lisboa 1964. 3. Bums E - História da Civilização Ocidental (2 volumes). Editora Globo, Porto Alegre 1966. 4. Clark K - Civilização. Livraria Martins Fontes Editora Editora Universidade de Brasilia, São Paulo 19S0. 5. Duns P, Gohau G - Histoire des Sciences de la Vie. Editions Nathan, Paris 1997. 6. Enciclopédia Delta Larousse (20 volumes) - Editora Delta, Rio de Janeiro 2000. 7. Encyclopedia e Diccionario Internacional (20 volumes) - Jackson, Rio de Janeiro, Nova York c. 1930. 8. Gribbin J (Ed.) - Une Brève Histoire des Sciences. Larousse, Paris 1999. 9. Guthrie WC - The Greek Philosophers. Routledge, London 1997. 10. Henry J - A Re\olução Científica e As Origens da Ciência Moderna. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro 1998. 11. Jung C —O Homem e seus Símbolos. Nova Fronteira, Rio de Janeiro 1977. 12. Ronan C - História Ilustrada da Ciência (4 volumes). Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro 1997. 13. Russell B - História do Pensamento Ocidental: A Aventura dos Pré-socráticos a Wittgenstein. Ediouro, Rio de Janeiro 2001. 14. Singer C - A Short History- o f Science to the Xineteentth Century-. Dover, New York 1997. 15. Suplee C - Milestones o f Science - National Geographie Society, Washington 2000. 16. Wilson G - Os Grandes Homens da Ciência. Companhia Editora Nacional, São Paulo 1963.

A. A T R A J E T Ó R IA D O M IT O M ito é u m c o n ceito ou u m a a firm a ç ã o n ã o e m b a s a d a n u m a c a u sa lid a d e e m p íric a c o n seq ü en te. N o início, a m ente h u m a n a n ã o conseguia e sta b e le c e r rela çã o c a u sa l entre fenóm enos. N ão ten d o co n h ecim en to a n te r io r , noção d e que o efeito segue-se à causa, in stru m e n to s de m edida ou m étodo científico, q u a lq u e r m ovim ento d a n a tu re z a e ra atribuído a u m a ativ id a d e v ita l in trín s e c a ou a u m estím ulo divino im e d ia to , su rg in d o assim alm as, esp írito s e v o n tad e s cap azes de e x p lic a r to d o s os fenóm enos, a tra v é s de u m pen sam en to m ágico. In té rp re te s do divino e d e te n to re s d a s explicações, os sa ce rd o te s c o n tro lav a m as c o m u n id a d es com o p o d e r do co n hecim ento. C om S ó crates e P la tã o a m a d u re c e o idealism o h u m an o , tra z e n d o a cren ça na s u p e rio rid a d e do p en sam e n to so b re a experiência, esta sendo in ib id a com o d e m o n stra d o ra d a v e rd a d e fatual, ficando as bases da explicação n a im aginação e não e m e ta p a s co eren tes d e co n hecim ento em pírico. A c h a m a d a filosofia n a tu ra l, que d ep o is o rig in a ria a ciência, com eçou a s u rg ir pela p e rp le x id a d e h u m a n a d ia n te do m u n d o . A s p rim e ira s explicações te ria m n a tu ra lm e n te que dirigir-se p a ra as m ais básicas representações do m undo n a tu ra l perceptível: constituição d a m a té ria e d a e n e rg ia, do m ovim ento dos co rp o s te rre s tre s e dos astro s, do funcionam ento do co rp o h u m a n o e de su a fonte de v id a, com a cria çã o d a d o u trin a dos q u a tr o elem entos (ág u a, a r , te r r a , fogo), esp írito s vitais, m ovim entos perfeitos celestes e im perfeitos te rre stre s, fisiologia h u m a n a , re p re s e n ta d a p o r dois tipos de san g u e se co n su m in d o n a p e rife ria do o rg an ism o , co ração com o ó rg ão m ais q u e n te do corpo e p u lm ã o servindo com o re frig e ra d o r c a rd ía c o . C a u sa e efeito e ra m concebidas p elas e x terio rizaçõ es m ais ób v ias, o q u e fazia seguir-se u m a explicação b a s e a d a na im a g in a ç ã o e não n a e x p e rim e n taç ã o . A s relações estab elecid as e n tre fenóm enos e ra m fin alisticas ou u tilitá ria s e não cientificas, p o r não h a v e r c o n h e cim e n to d a c a u sa lid a d e c o n seq ü e n te, a p e n a s u tiliz a ç ã o de conhecim entos desenvolvidos p o r a c erto e e rro , sem q u e s tio n a r as explicações sa c ra m e n ta d a s. O m ito se fo rm a depois que u m a conclusão “evidente” a c a b a se to rn a n d o inquestionável e d e se m b a rc a em en sin am en to s c o n tro lad o s pelo p o d e r do E sta d o ou religioso, m an ip u lad o p ela classe s a c e rd o ta l ou política, capazes de m a n te r u m a esta b ilid ad e social b a sea d a em revelações, m istério s, tra d içõ e s, textos sa g ra d o s e a u to rid a d e . Q u a n d o o im a g in a tiv o ou o idealista consegue m o n ta r u m a fra se divulga que provou u m fato. A p a la v ra p assa a su b stitu ir a re a lid a d e sem se d a r co n ta de que o m u n d o não pode s e r re tra ta d o p o r ilusões verbais. E m b o ra a in d a m ítica, p o r s e r ap en as fin alística, a filosofia de A ristó teles, q u e se n u tr ia da o b serv ação , re p re s e n ta u m e n o rm e avanço científico em rela çã o à filosofia de P la tã o , que d e sd e n h a v a d a ex p eriência, concluindo tu d o pelo p e n sam e n to . M esm o P to lo m eu e G aleno, que já rep resen tav am algum a negação à A ristóteles, fo ra m m íticos p o rq u e não a b a n d o n ara m o m étodo o rig in a l, ou seja, não c ria ra m novo p a ra d ig m a , ap en as te n ta ra m refo rm á-lo . D epois de p a s s a r p e la fase a b so lu tista do c ristia n ism o , p ela esco lástica e a té pelas p rim e ira s u n iv ersid a d e s, os m itos d a filosofia n a tu r a l co m e ç a ra m a tra n s fo rm a r-se em p en sam e n to c o e re n te q u a n d o s u rg ira m os fra d e s o b serv acio n istas e e x p e rim e n talista s, o co n hecim ento laico p a ra lelo , as dissecções h u m a n a s de Y esálio, c o n tra ria n d o G aleno, e q u a n d o a m a te m á tic a foi p ro m o v id a de m ed id a a re p re s e n ta n te de fenóm enos n a tu ra is , com a a firm a ç ã o de C o p é rn ic o de q u e a T e r r a g ira em to rn o do Sol p o rq u e os núm eros assim o d e m o n stra m .

C A PITU LO I. IM PÉR IO D A S IDEIAS: IDEALISM O De com o, desenvolvendo o pensam ento, o hom em vê nele a fonte de todas as perguntas e de todas as respostas. A idéia passa a governar nào só as explicações m as a própria concepção do m undo, fazendo do idealism o sua base interpretativa. Com Sócrates e Platão, a hum anidade cresce. Como os sentidos refletem apenas um a im agem distorcida do mundo real, a perfeição só pode ser captada pela mente: o platonism o sim boliza esta era. O homem com eça a se aproxim ar da ciência pela m edicina, quando o fato passa a se libertar da idéia, com o m étodo hipocrático, capaz de m ostrar que o em pirism o indutivo produz resultados m ais com pensadores para os pacientes que as adivinhações dos curandeiros. Estado do conhecimento natural: A idéia governa tudo. Ofa to com eça a se libertar da idéia. 1. IDÉLAS M Á G IC A S E PEN SA M EN TO CO ERENTE O P oder do M ito: Força do inconsciente m ito: ou o im aginário sem base dem onstrável, faz parte da realidade psíquica dos hom ens, acom panha-os do nascim ento à m orte, produz efeitos na cultura e na história, é a raiz das religiões. E m vez do poeta credenciado pelos deuses para contar a história passada, a origem dos seres e das coisas, h á 2700 anos os gregos destronaram o m ito como verdade sagrada e substituíram -no pelo logus ou estudo racional, surgindo o filósofo para expor suas verdades. A razào passa a organizar a realidade para dem onstrá-la, e a filosofia, filha da razào, torna-se o veículo das explicações lógicas sobre os fatos da natureza. Porém , porque a verdade geralm ente é crua, o lado ingrato do saber é a exposição sem poesia do m ecanism o de um desconhecido que fascinava. Encam pando o êxtase, o m ito é o cam inho para o absoluto. E inegável que o m ito deleita o espirito e inflam a a alm a das m ultidões. Se não, como explicar o sucesso de tudo que é ilusório? Sendo o hom em um produto de forças cósm icas, o m ito nasce do ponto em que essas dividem o m undo em dia e noite, bem e m al, belo e feio, Deus e diabo, e, dispensando o politicam ente correto, se nutre de extrem os inquestionáveis, desviandose p a ra o épico e grandioso ou p a r a o tétrico e terrífico. Seu caráter de lim ite e de passagem é a base necessária p a ra que o idealistico se transform e em im aginário, seduzindo o pensam ento pela poesia, a prim eira arte. L egitim am -se, assim , m ito e arte, nas fundações de um pensam ento arquetipico que será depois elaborado, ou não, em direção ao racional. Por ser o mito determinado pelo jogo dos desejos inconscientes, o apelo da imortalidade coloca seu caráter limítrofe no ponto de fusão em que o imaginário se transforma em sagrado para eternizar se. E daí que surgem as poesias e os sonhos. Foi daí que nasceu a psicanálise. O m ito é, dessa maneira, um modo peculiar de o hom em enfrentar novos desafios e novos anseios, serve como mote para destruir o inimigo e enfeitar a imaginação com o glorioso, criando forças para sobreporse ao vulgar, pois a sacralizaçào das origens faz parte da história de todos os povos e heróis que se prezam. Se não fosse assim, onde estariam profetas, reis e papas? Como um a reação ao ordenamento cartesiano e à Revolução Cientifica do século XY II, que, segundo os românticos, estavam tornando o mundo msipido, no século XDC a literatura, a antropologia, a filosofia e a psicanálise restituíram ao mito todo seu simbolismo e caráter íundante primordial. Por ser intrínseco à mente humana, o idealismo sepulta os antigos mitos mas cria novos (o m aior desses é a onipotência do hom em moderno) - modificando as funções e fo rm a s dos ultrapassados - à medida que novos contratos sociaisfazem a sociedade “progredir ”. E também p o r isso que mitologia sem História não convence e História sem o mítico ou o poético geralm ente não agrada.

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O idealism o faz das idéias a base m terpretativa do m undo. D esde que o hom em é hom em , procura com preender as etapas e ter o domínio dos processos que o levam a conseguir o utilizável. A ntigam ente, acreditava obter isso pela m agia, depois p ela filosofia natural e hoje o atinge pela ciência. Sentindo a im ensidão do U niverso, absorveu a noção de infinito e de Deus. A incapacidade de a m ente prim itiva entender os m ecanism os das ações naturais elevou-as a um status supranatural, julgando-as associadas a um poder m ágico, espiritual, invisível e arbitrário, próprio das divindades. A m ente prim itiva v ia os seres vivos, o m ovim ento dos ventos e das águas e os terrem otos, qualquer força natural, com o m anifestação vital de deuses ou espíritos escondidos. Surgiram o anim ism o e o vitalism o - um a visão com um de toda a “ciência” da A ntiguidade p ela qual um principio espiritual autóctone, peculiar, m terno ou externo, confere vida aos organism os e à própria natureza, excluindo a possibilidade de m atéria inorgânica estar associada com vida. O vitalism o só foi destruído com o teoria cientifica nos séculos X Y III e X IX , quando substâncias m orgânicas foram encontradas nos organism os vivos e quando substâncias orgânicas foram sintetizadas em laboratório (vide pág. 239). N a era mítica, não havia requerim ento de relação coerente entre fa to s, fund a m en ta d a num conhecim ento básico anterior. O pensamento pré-lógico do hom em primitivo constituiu um estágio de desenvolvimento cerebral em que o processo m ental diferia do nosso, não havendo lugar para o que chamamos de lógica. Provavelmente, devia-se a que as premissas sobre as quais raciocinava divergiam tanto das nossas que eles inevitavelmente chegavam a conclusões erradas para nós, enveredando pelo sobrenatural e pela magia. Porém, mesmo que não queiramos, magia é uma fo rm a prim itiva de aplicar ciência. M esm o que, para explicar os resultados, deuses ou espíritos atuem no processo, suas ações são completadas pela técnica do hom em que manipula as etapas. Causa e efeito seguem-se com repetitiva certeza. O principio da causalidade ensina que, dando-se as mesmas condições antes, surgem idênticos resultados depois. Por isso, m agia intencional é protociéncia, enquanto que o milagre religioso, não, por desdenhar da causalidade. Ciência aplicada baseia-se nas leis da natureza. Enquanto suas etapas não forem desvendadas, também será magia. Pressupor tais intenções é um ato de racionalização. O hom em primitivo percebeu a necessidade da chuva para proporcionar-lhe um a boa colheita, que a chuva acompanhava-se do grito (trovão) e da força (raios) dos deuses. A idéia hoje familiar de “ar ambiente” não existia. A s correntes de ar, os ventos e os tufões - as únicas manifestações palpáveis da presença do ar - eram interpretadas como a emissão, a expiração, de um sopro portal ou qual deus. Tom ou-se fácil estimar que a sobrevivência da espécie dependia do comportamento da natureza, sendo a m agia um m odo legitimo de expressar a síntese do m undo natural e de seu relacionamento com o homem, pois o m undo mágico é um m undo de interdependência de forças personificadas (o pensam ento prim itivo age em função de figuras, metáforas e ordens, o intermediário em função de regulamentos, e o superior em função de conceitos). Diga-se que relações pessoais entre homens, santos e Deus continuam presentes em inúmeras religiões antropomórficas, como o catolicismo. P o r p rim itivo que seja, o pensam ento m ágico reconhece um a relação entre a efetivação de um a ação condicionante e a ocorrência de um resultado, ou seja, causa e efeito (Figura 2). A lg u n s reco n h ecim en to s em p írico s, b aseados em ex p eriên cias acu m u lad as, perm itiram p erc e b e r qual a época m ais co n v en ien te p a ra o p lan tio ou a c o lh e ita , ou o m elh o r u so da erv a curativ a. S u rg iram n a tu ra lm e n te as preces e sa crifício s p a ra que tu d o o co rresse da m elh o r m aneira. Claro que, com o tudo era cheio de deuses, precisava haver conexão entre a intimidade com estes, para que prestassem favores, e o conhecimento dos processos necessários ao bom resultado esperado. Como uma ligação entre o divino e o natural, surgiu a classe dos sacerdotes.

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Figura 2 - É característica do pensamento mágico associar contatos, figuras, gestos, mimetismos e sacrifícios com transferências de poderes e habilidades. O feiticeiro, do qual se originou o sacerdote, foi também o ancestral do mago e do cientista. O fogo, reconhecido como capaz de aquecer, iluminar e transformar substâncias, foi identificado como um ente divino. Rituais passaram a ser o gatilho para a obtenção de favores. A posse de um conhecimento engessado pelas classes sacerdotais (religiosas e políticas) de todos os tempos representou o maior obstáculo ao livre desenvolvimento do conhecimento cientifico. Sendo aceito que um mundo divino, espiritual, operava invisivelmente no mundo palpável da natureza, o sacerdote justificava sua ação: por um lado tinha o conhecimento das necessidades naturais, por outro o acesso aos deuses, o que conseguia com sacrifícios, poções, oferendas e preces. A função do mago era persuadir os espíritos contidos nos animais, nas águas e nos ventos a cooperar com a sociedade. Com er a carne de um animal ou hom em poderia servir para transferir qualidades. Com desenhos, pinturas e estatuetas extraia-lhes poder. “Ciência" e religião eram aspectos interligados, e o método de acerto e erro auxiliava no conhecimento empirico de várias manifestações naturais. Assim, o mago f o i o prim eiro investigador e o ancestral prim itivo do cientista moderno. A medida que o controle sobre o mundo natural se tornou mais eficiente, os espiritos foram sendo marginalizados mas ressurgiam nos m om entos de crise. A magia, rebaixada e humilhada, deu origem à feitiçaria. O in e re n te d e s e jo h u m a n o de p o d e r, c o m o H o b b e s tão b em d e te c to u , e x p lic a a ap ro p riação do co n hecim ento p elas classes sacerd o tais, capazes de se tornarem dom inantes p e lo c o n tro le da n a tu re z a e d a so c ie d a d e , m a n te n d o -se re v e re n c ia d a s no p o d e r. O s sa ce rd o te s, com o na B ab ilô n ia e no E g ito antigo, a d q u iriram p o d er p o r serem guardiães d o s se g re d o s do c o n h e c im e n to c ie n tific o - e n te n d id o aq u i co m o o m e io ra c io n a l de c o rre la c io n a r fa to s o b serv ad o s -, m teiram en te ligado à c u ltu ra ag ríco la e à cura de algum as doenças. T a l co n hecim ento sig n ificav a p o d e r so b re o p o v o - m a n tid o ig n o ra n te e crédulo p o r m eio de regulam entos, habilid a d es e co n tro les. A h istó ria m o stra que o m ag o sem pre se criou a si próprio e que o to lo o con firm o u no papel, com o diria G iordano Bruno. Aspectos

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da ciência m édica e astronôm ica, às vezes, eram segredos de Estado, e a posse de tal ou qual poder sobre um com portam ento natural era sím bolo de status, com o hoje. S o l e fo g o são deuses em quase iodas as culturas primitivas, e a luz continua sendo afirmação universal de verdade e pureza. "Faça-se a luz!”, foi a ordem divina no momento supremo da criação. Sentmdo o hom em que a vida provem do calor e da claridade, frio e escuridão são profundezas onde se esconde a morte. A ascensão aos céus, um modo de vislumbrar-se a imortalidade, é um mito deificante. A reverência pelo inacessível e a sedução pela luminosa imortalidade do infinito tom am o ato de elevar-se um desejo de todos os imperfeitos, o de libertar-se da escuridão terrestre. Voar, ascender aos céus, significa alcançar um novo estado capaz de deixar a prisão imposta pela gravidade aos mortais. A pontar para os astros é o prém io pela passagem do humano para o divino, e o indicador estendido até o extremo do corpo, ou a antena da cápsula espacial, sinalizam a ligação com o começo da eternidade. Deuses que voam, virgens salvas de dragões, santos decapitados caminhando com a cabeça nas m ãos, donzelas e príncipes encantados, heróis vencendo um exército, m ártires recompensados no paraíso, enfim, a vitória do bem sobre o mal, sempre m oveu a humanidade. Sem m iios, a fr ia m aterialidade da m iséria hum ana seria insuportável. Porém , com toda sua fo rça , o m ito deve se r usado p a r a enfeitar, não p a r a bloquear o pensam ento. Desde a pré-história, todas as sociedades têm um núcleo mais ou menos influente que impõe conceitos inquestionáveis, representados p o r idéias, usos e costumes consagrados - cuja ruptura significaria o fim do poder e da ordem vigentes -, mantidos como referenciais de conduta social por um a "classe sacerdotal” originada do mago primitivo, através do exercício de um poder religioso, filosófico ou político. Essa "classe sacerdotal” pode ser vista como formada por feiticeiros, rabinos, padres, mulás, jornalistas, militares, ditadores, enfim, qualquer "grupo policial” da sociedade. Discussão de idéias torna-se um a ameaça às oligarquias imperantes pela força, e aos "sacerdotes” dominantes pelo silêncio. Todo íundamentalismo irredutível é tão pernicioso quanto o fanatismo que representa. Aristóteles já ensmou que a virtude está no m eio, e o vício, nas pontas. Como disse Rousseau, "o hom em nasce livre mas está acorrentado em todos os lugares”. S egundo S p in o za e H egel, a lib erd a d e co n siste n u m a sin to n ia da rea liza çã o com a necessidade. Sem pre que um a conduta ou um conhecim ento do tipo dogm ático for entronizado, surgirá o absolutism o, com o ocorreu na Igreja m edieval, no com unism o, no nazism o, no facism o, ocorre no fundam entalism o islâm ico, e tam bém no im perialism o que a m ídia exerce sobre a sociedade. A ntecedendo a crença está o direito de acreditar, não o direito de im por. Toda m odificação social tem que v ir pela aceitação de um argum ento, não p o r m edo do patíbulo. A liberdade de estar equivocado é a liberdade m ais difícil de defender, mas sagrada em seu princípio, pois em questões de m oral e de fé ninguém deve ter a consciência atada por decisões da m aioria. E inegável que a riqueza e a complexidade da tradição mágica contribuiu p a ra criar condutas empíricas e pragmáticas. M ilênios depois, o cientista atual, baseado em acertos e erros, segue buscando na natureza - de cujo íntimo sabe um pouco m ais que o mago prim itivo - a solução de seus problemas. A diferença é que o cientista atual consegue resultados previsíveis muito m ais exatos, não fa la m ais em “almas " e “vontades " e pratica uma filosofia empírica e mecanicista. N os dois casos, porém , a ciência é apenas explicação depois que os fenôm enos ocorrem. N ascim ento d a Filosofa: F o rç a d a razão A s ciências babilónica e egípcia voltavam-se prim anam ente para a solução de questões práticas, sem m a io re s p re o c u p a ç õ e s filo s ó fic a s ou é tic a s . A v id a d iá ria d o s g re g o s assemelhou-se por m ilhares de anos a de seus antepassados, usando técnicas arquitetômcas, navais e m édicas desenvolvidas m uito antes no vale do Tigre e do Eufrates e no Egito. Inaugurando um a sociedade democrática pós-agricultural, com comércio, cidades e idéias independentes, os gregos passaram a elocubrar pelo prazer de pensar, que consideravam a m ais alta expressão da alma humana, sendo a aplicação prática dos conhecimentos filosófico-científicos m era conseqüéncia.

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D essa forma., surgiram n a periferia do m undo grego - ilhas do M ar E geu; costa da Á sia, Itália e Sicília - os prm cipais sistemas de pensam ento do m undo antigo. Talvez porque, com o hoje, o hom em necessitasse de m tercâm bio e tranqüilidade p a ra elaborar idéias. Foram os prim eiros turistas e colonizadores, ao tornarem a bacia do M editerrâneo sua reserva particular (Figura 3).

Figura 3 - A liberdade de pensamento, o controle do Estado pelos cidadãos, o gosto pelo intercâmbio de idéias, pelas viagens e pelas trocas tornou a bacia do Mediterrâneo propriedade intelectual dos gregos. Esse espaço, chamado de a Grande Grécia, foi o inicio da civilização e da cultura ocidental.

Sendo os gregos cosm opolitas, grandes viajantes, recusavam -se a aceitar acriticam ente as regras que as sociedades m ais antigas lhes transm itiam . A o lado disso, criaram deuses m ais hum anos, menos controladores, que possuíam ligações com m ortais. Assim, os gregos construiram a úm ca civilização desenvolvida até aquela época não dom inada por um a casta sacerdotal que reivindicasse o m onopólio de com unicação com o além. Provavelm ente a ausência de am arras a um a classe sacerdotal oligárquica, excludente e punitiva, com o tiveram antes outros povos e depois a tradição ju d aic o -c n stà - além do extraordinário p e n d o r m ental, não tirem os isso deles -, deu aos gregos m aior liberdade para o "por quê?" e não apenas para o “como?".

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Por meio desse conjunto de atitudes, pelo 7o século a.C. aconteceu um a virada fundam ental na H istória da hum anidade, pois foi nessa época que o hom em com eçou a desenvolver a coerência m ental e a construir o m étodo sistem ático do argum ento para expor idéias, num a tentativa de interpretar racionalm ente o m undo e explicar todos os fenôm enos por causas naturais. O conjunto de ações capazes de sistem atizar o pensam ento e de ordená-lo racionalm ente foi cham ado filosofia (am izade com o saber). E sta nasceu m tuitivam ente, questionando o mundo, interpretando-o e desenvolvendo o saber com base na inteligência e na percepção. “A filosofia com eça com a perplexidade”, disse Platão posteriorm ente. A ssim é que, durante o VI século a.C., enquanto Zoroastro, B uda e Lao-Tzé fundavam grandes religiões na Pérsia, índia e China, os pensadores gregos tentavam desvendar os segredos da natureza, tendo com o base pensam entos abstratos fundados nas idéias de beleza e harm onia. O valor que atribuíam ao corpo e à m ente, que p o r sua vez vinha da reverência à estética e ao equilíbrio, era festejado nos jo g o s olím picos, onde os vencedores receb iam honras de heróis. E m quatrocentos anos descobriram a F ilosofia, a D em ocracia e a História. A os prim eiros filósofos-cientistas foi oferecido o m aior desafio da cultura de todos os tempos: interpretar racionalm ente o m undo, sem te r nenhum conhecim ento prévio acum ulado (teriam que criá-lo) e vendo-se com pletam ente desarm ados (sem m étodo cientifico nem instrum ento algum de observação ou m edida) diante de seu grande laboratório, a natureza. Possuíam , entretanto, ao lado da inteligência, as três m ais poderosas arm as: vontade, seus sentidos e o m undo à disposição p o r descobrir. Percebendo a m ter-relaçào entre vida e fatores visíveis ou sensíveis circundantes, a inteligência lhes perm itiu desenvolver sistemas unitários de pensam ento - usando os m étodos dedutivo e indutivo - p a ra elaborar a concepção de um m undo racional. A ênfase na racionalidade, respeitando leis hum anas, não divinas, e m udando-as quando necessário, distingue os gregos de outros p o v o s seus contem porâneos. Sendo a filosofia grega a própria afirm ação do racional, algum as questões filosóficas situam -se nas fronteiras da ciência, com o os problem as m atem áticos. E m nenhum a outra cultura, a filosofia cam inha tão ao lado da ciência, sendo que a pesquisa científica originou-se da livre especulação filosófica. A busca da investigação científica em determ inado cam po não é a m esm a da filosofia m as um a das fontes de reflexão filosófica está na ciência. O estudo dos cânones do m étodo científico é um estudo filosófico, afirm a B ertrad Russell. A tradição filosófica grega é, em síntese, um m ovim ento de ilustração e liberação, pois tem por finalidade livrar a pessoa das garras do obscurantism o, sendo o seu veículo o logus e sua aspiração a busca do conhecim ento sob a égide do bem . O s filó so fo s gregos inauguraram um método de pensam ento baseado na razão, totalmente novo no d esen v o lvim e n to hum ano. F o ra m o s p r im e ir o s a não tra n s m itir um c o rp o de conhecim ento j á pronto. A o contrário, tentaram entender o m undo sem apelar p a ra a tradição, revelação ou autoridade. E nsinaram os outros a tirar conclusões próprias p e lo raciocínio, o que propiciou um avanço im par no conhecim ento e no entendim ento do hom em sobre si mesmo. Praticaram a m aior teorização possível, usando algum as idéias que hoje parecem absurdamente espúrias, ou até insanas. N o s dias atuais, contudo, torna-se fá c il fa z e r essa afirmação, depois de nos apoiarm os em séculos d e conhecim entos iniciados p o r eles. Cedo a filosofia se dividiu em dois grandes braços: 1) o m etafísico, em brião da ciência atual, pelo qual o hom em tenta explicar a natureza e o U niverso onde vive, o m acrocosm o; 2) o ético ou político, pelo qual estuda a si m esm o, seu com portam ento individual e social, o microcosm o, e que originou as ciências hum anas. A filosofia grega é baseada em dualism os, tendo com o meta final a distinção entre o falso e o verdadeiro, este sendo o objetivo da Lógica, assim com o as separações entre bem e m al, harm onia e discórdia caracterizam o estudo da Ética. A distinção

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entre aparência e realidade liga-se à teoria do conhecim ento ou Epistem ologia, através da qual a dúvida assum e um pap el preponderante no questionam ento e n a resposta à eficiência dos m ecanism os sensonais e intelectivos em interpretar e explicar o m undo. O ntologia é a teoria do ser. D essa m aneira, os sistem as de pensam ento foram surgindo p a ra resp o n d er às novas necessidades e incoerências hum anas (Figura 4).

Figura 4 - Em vez de imposições religiosas, os filósofos gregos, através de um sistema de perguntas e respostas, pelo método do argumento, deduziam e induziam, junto com seus discípulos. Em 400 anos inventaram a Filosofia, a Democracia e a História. Da filosofia natural nasceria a ciência. Tentando interpretar a natureza, desenvolveram o monismo, o pluralismo, o intelectualismo, o atomismo. A doutrina dos quatro elementos duraria até o século XVII. A elaboração mental, quando feita sem conhecimento dos fatos maparentes que estào por trás dos fenóm enos, tende a transform ar a percepção sensorial na últim a causa, encadeando fatos observados - sem concatenação m ais profunda - com o se fossem conseqüentes, por exem plo, o Sol gira ao redor da Terra; o sangue se consom e na periferia do corpo, sem circular; toda m atéria pode ser reduzida aos quatro elem entos (água, ar, terra e fogo). A ssim , p a ra entender-se de form a coerente a evolução das idéias sobre o desenvolvim ento cientifico desde os gregos até os dias atuais, é necessário considerar que todas as teorias sobre o com portam ento da natureza e da v id a n a A n tig u id ad e deviam aju star-se aos p rin cíp io s filo só fico s que as originaram . Era mais ou menos como “ invente primeiro e explique como pensa que é '\ Sem a consideração desses aspectos, torna-se extremamente difícil compreender a evolução do pensamento científico ocidental até os nossos dias. A filosofia, o consentimento mental, era considerada a última e mais

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perfeita form a de saber. D e l a n a s c e r ia a c iê n c ia . Entretanto; os problem as básicos da filosofia se m odificaram pouco desde então, porque, quando os epifenôm enos são interpretados, estes se transform am em ciência, dim inuindo o cam po m argm al da filosofia. E s i e t r a b a lh o n ã o p r e t e n d e r e s u m i r to d a s a s c o r r e n t e s d e p e n s a m e n t o n e m c i t a r to d o s o s a u to r e s m a s a p e n a s s e v a le r d a q u e le s q u e j u l g a m a is in flu e n te s n o d e s e n v o lv im e n to d o p e n s a m e n to q u e le v o u a o c o n h e c im e n to c ie n tific o - o u d a q u e le s q u e s o b r a r a m p a r a i m p u l s i o n a r a e ta p a s e g u in te -, e n tr e ta n to s d e s e n c o n tr o s , e n g a n o s , r e tr o c e s s o s e im p o s tu r a s q u e a H is tó r ia e s q u e c e u . N e m s e m p r e o m a is in flu e n te é o m a is c o r r e to o u o q u e p r o d u z i u m a i s c o n h e c im e n to . G e r a lm e n te , u m g r a n d e n o m e r e p r e s e n ta u m a s ín te s e b a s e a d a n o s a b e r d e a n te r io r e s o u a n ô n i m o s q u e s e p e r d e r a m n o te m p o . F e i t a e s s a c o n s id e r a ç ã o , a p a r t i r d e s t e p o n t o s e r ã o r e l a c i o n a d o s o s a u to r e s e a s id é ia s m a is s ig n ific a tiv o s q u e , n o m e u e n te n d e r , c o n tr ib u ir a m p a r a , o u a tr a p a lh a r a m , a f o r m a ç ã o d o s c o n c e ito s c ie n tífic o s a tu a is .

2. O D ESPER TA R D A FILOSOFLA N A TU R A L. M ETA FÍSICA ontavam os prim itivos gregos que, no com eço, havia C r o n o s - o Tem po -, senhor do U niverso, casado com R é a . Tendo sido avisado de que um de seus filhos, para nascer, iria destroná-lo, decidiu com er todos os seus descendentes. Quando R é a estava para parir, sim ulou o p arto e ofertou a seu m arido, com o alim ento, um a pedra enrolada num cueiro. Escondendo-se num a caverna teve Z e u s . C om o tem po, os filhos elim inaram C r o n o s e partilharam o U niverso através dos dados: Z e u s ganhou os céus, P o s e id o n os m ares e H a d e s , o perdedor, ficou com os mfemos. Do monte Olimpo, a m ontanha mais alta da Grécia, sob o comando supremo de Z e u s , era atribuída a um a fam ília de deuses a criação e o funcionamento de todo o Universo. O s Jó n ic o s: O m u n d o com eça a s e r explicado A p rim e ira te n ta tiv a filo s ó fic a eu ro p é ia de u m a e x p lic aç ã o ra c io n a l do U n iv e rso desconsiderando explicações m ágicas ou teológicas - com eçou nas prósperas cidades da Jónia, na costa da Á sia M enor, no 7o século a.C. C om o disse m ais tarde A ristóteles, fo i o produto de um a época de bem -estar e lazer, sendo sua m otivação a curiosidade. O s expoentes da escola jónica ou m iletiana foram Tales, A naxim andro e A naxim enes. R epresenta a prim eira verdadeira escola de pensam ento, pois seus m em bros são originários da m esm a região, suas épocas se entrecruzam e é reconhecida um a relação de m estre e discípulo entre eles. C om partilhavam a idéia de encontrar, por dedução, a verdade capaz de explicar o m undo real, o que determ inou o inicio da filosofia ocidental. Olhando o mundo permanente, constituído de um a aparente infinita pluralidade de objetos não relacionados, constatando o m ovim ento continuo e instável dos elementos da natureza, e verificando que o crescimento natural decorre de forças invisíveis que depois se decompõem, suas primeiras perguntas foram : “D e que o m undo é feito?”. A o exam inarem os com ponentes do m undo m ovendo-se continuam ente em form ação e decadência - que ao crescer assum iam um a forma previamente determ inada -, pensavam que os elementos compreensíveis e permanentes estavam na m atéria e na forma, sendo estas que deveriam tentar entender para desvendar os mistérios da natureza. Surgiu então a idéia de um a substância úm ca (monismo) como sendo o elemento primordial de toda a natureza. Os que assim pensavam eram chamados de monistas. D os jónicos é que parte a idéia de que o b j e t o s e a ç õ e s d a n a tu r e z a t r a b a lh a m d e a c o r d o c o m c e r t o s p r i n c í p i o s f u n d a m e n t a i s o r d e n a d o s , capazes de serem identificados. E bom lem brar que nenhum grego falou de um deus criando, por sua vontade, um m undo a partir do nada. Para eles,

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a c r ia ç ã o d o m u n d o s e m p r e f o i a im p o s iç ã o d a o r d e m - k o s m o s ( c o s m o ) - n u m a m a té r ia c a ó tic a

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j á e x is te n te . C om a idéia de um a m ente por trás do U niverso - que governa e ordena suas

m odificações surge um a concepção teística m as pelo cam inho de um pensam ento racional, não por m era aquiescência de tradição religiosa. A filosofia iniciou com a fé de que, por trás deste aparente caos, existe um a unidade, u m a substância prim ordial que pode ser encontrada, se não pelos sentidos, pela m ente hum ana. N osso conhecim ento sobre Tales de M ileto (fim do V II ou início do V I século a.C.), que m orreu quase centenário, é obscuro e recebido por tradição oral através de seus discípulos. A filosofia e a ciência gregas, que eram o m esm o, iniciaram com Tales. Cognom m ado de "Pai da Ciência", p o r ser a ele atribuído o mício do estudo racional da natureza, fez m uitas contribuições à m atem ática, geom etria, astronom ia e navegação, além de ter sido um rico m ercador e político. Ensinam entos seus são válidos até hoje: "O que é difícil? Conhecer-se a si m esm o. O que é fácil? D ar conselhos aos o u tro s." C om o v em o s, tam b ém en ten d ia de com portam ento hum ano. Tales foi o prim eiro a dizer que o Sol era m uito m aior do que parecia e a fixar o ano em 365 dias, e tam bém o prim eiro a estabelecer que um a circunferência é bisseccionada pelo seu diâmetro, que os ângulos da base de um triângulo isósceles são iguais - bem com o os ângulos opostos de duas retas que se cortam -, que o ângulo inscrito num a sem icircunferéncia é reto, e que a altura de um a pirâm ide pode ser m edida pelo com prim ento de sua som bra no m om ento em que a extensão da som bra de um hom em for igual à altura do mesmo. Desenvolvendo a Geom etria (m edida da T erra) a p a rtir de ensinam entos de sacerdotes egípcios - que não cultivaram p e n sam e n to s a b stra to s -, p ro p ic io u a cria çã o da c iên cia p e la o b serv ação dos a stro s e, principalm ente, ao e s t a b e l e c e r a á b s v r a ç ã o d e q u e p r i n c í p i o s p o d e m s e r g e n e r a l i z a d o s . Tales de M ileto dizia que o elem ento prim ordial e ra a água, ou um idade. Provavelm ente porque a água m ostra-se aos sentidos nos três estados da m atéria, desde pedra a ar: liquido, sólido e gasoso. Segundo A ristóteles - que o considera o m ais ilustre dos “ sete sábios" da G récia antiga -, a eleição da água com o elem ento prim ordial deve ter surgido da observação de que o alim ento de todas as coisas é úm ido e que o calor se gera p ela um idade e p o r ela é conservado (a conexão entre calor e vida sem pre foi m uito enfatizada pelos gregos), que o sém en de todas as criaturas é úm ido, e a água é a origem da um idade. A lém disso, era visível que a chuva se transform ava (fazia crescer) em plantas. Pensava que a terra flutuava na água e dela provinha, p o is com eça onde fm da o elem ento liquido. H oje isso pode parecer ingênuo m as, num a época em que o conhecim ento estava apenas nascendo, representou a correlação entre um elem ento natural e a v id a trazida de volta p a ra um a terra estéril, depois das inundações do rio N ilo no E gito. E xplicou os terrem otos p o r erupções de água quente nos oceanos, capazes de desestabihzar a terra flutuante. Tão grande observador da n atureza foi Tales que dizem ter predito um eclipse solar em 585 a.C., provavelm ente auxiliado por registros astronôm icos da B abilônia. R econhecendo a m esm a força vital em todo o m undo a sua volta proferiu a frase que ainda ecoa: “Todas as coisas estão cheias de deuses". A d o u tr in a d e T a le s c o n s titu i o p r im e ir o e n s a io d e “f i l o s o f i a n a tu r a l" e e s b o ç o d e u m a c iê n c ia s is te m a iiz a d a d a n a tu r e z a , te n ta n d o d e d u z ir f a t o s , e d is p e n s a n d o e x p lic a ç õ e s m á g ic a s . A r e fle x ã o m o n is ta é o r ig in a l e s u r p r e e n d e n te - e h o je v e r d a d e ir a -, c o n s id e r a n d o q u e o á to m o d e h id r o g ê n io p o d e s e r v is to c o m o a b a s e d e to d o s o s o u tr o s á to m o s o u q u e to d a m a té r ia é e n e rg ia .

Conhece-se m ais sobre seu discípulo A naxim andro de M ileto (611-547 a.C.). Este foi o prim eiro entre os gregos a representar detalhes da Terra por m apas, sugestão que im portou da M esopotâm ia. D a Babilônia, introduziu o relógio de sol, um a vara fixa, indicando a hora pelo com prim ento e posição da som bra. C om isso registrava o m ovim ento do Sol e as datas dos solstícios (o m ais curto e o m ais longo dia) e dos equinócios anuais (as duas ocasiões em que dia e noite são iguais). A naxim andro via o m undo com o o concurso de qualidades opostas, sendo

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quatro prim árias: calor e frio; um idade e secura. A seqüéncia do m undo era cíclica, pois o Sol seca a água e a água apaga o fogo. N a n atureza isso se transform ava nas estações e, em bora um a ou outra prevalecesse ocasionalmente, o resultado fmal era o equilíbrio. Desde que essas qualidades se opunham mutuamente, a substância primária do Universo não podia ser una. Claro, pois se fosse a água não podia haver calor ou fogo, já que a água o destrói, e assim por diante. Im aginou o prim eiro estágio da m atéria com o um a ilim itada m assa indiferenciada, n a qual os elem entos antagonistas estavam presentes num a form a potencial. C ham ou isso de a p e ir o n (infinito). F o i dessa m assa p rim ária sem lim ites e eterna, em m ovim ento incessante, que em ergiram as qualidades opostas. A creditava em inum eráveis m undos, todos divisões de um U niverso infinito ao qual um dia retornariam . E fantástico mas tal sem ente de m undo concebida p o r A naxim andro te m m u i t o a v e r c o m a s n e b u l o s a s c o n h e c i d a s p e l a n o v a A s t r o n o m i a . Gradualm ente, os elem entos frio e m olhado condensaram num a m assa de terra no centro, forrada por nuvem ou névoa ao redor. A parte quente e seca m ostrava-se com o um a esfera de fogo ao red o r do todo. E sta é a explicação p a ra o Sol, L u a e estrelas, cada qual um anel de fogo. Encaixavam -se em anéis opacos, girando ao red o r da Terra, e eram enxergados som ente através de fendas ou tubos nesses anéis. A ssim explicava as fases da Lua e os eclipses. A naxim andro fo i o prim eiro a especular sobre o tam anho e a distância dos corpos celestes e a dar-se conta de que a T erra está solta no espaço, no centro de um U niverso esférico. A Terra era vista por ele com o cilíndrica, com a form a de um tam bor, sendo que as pessoas e animais viviam na parte plana. N ão poderia ficar em cim a de nada, pois, se estivesse suportada p o r algo, o que suportaria esse algo, e assim por diante? Tam bém não caia, porque, estando eqüidistante das bordas do U niverso, não haveria razão p a ra que fosse atraída por um ou outro lado. A pesar dessa descoberta surpreendente, a crença num a T erra totalm ente plana m anteve-se p o r m uito tem po. D urante séculos, as idéias sobre a esfericidade da Terra foram consideradas tão loucas que, quando Cristóvão Colom bo confrontou-se com os sábios da U niversidade de Salam anca, para o sabatm arem a pedido de Isabel, a Católica, sobre sua pretendida viagem às índias, m uitos riram daquele desvairado que im aginava poder cruzar o “M ar T enebroso'', cheio de m onstros apavorantes, no fim do qual cairia num abismo. Pela influência do fogo, partes da T erra secaram e se separaram da água. A poiou sua noção de secura da T erra p ela presença de conchas fossilizadas em ilhas. A v id a surgira no lodo quente e úm ido, a partir de bolhas estouradas pelo calor do Sol. O s prim eiros anim ais daí saídos eram sem elhantes a peixes, a partir dos quais desenvolveram -se todos os outros, inclusive o hom em . Chegou a essa conclusão observando que um a criança é incapaz de v iver sem o auxilio dos pais. Logo, a espécie hum ana deveria ter vindo de outro anim al, capaz de prover a própria existência. J á h á aqui um sopro do evoluciom sm o m uito depois desenvolvido p o r D arw in, no século XIX. Tudo isso ele disse num a época em que as forças da natureza eram atribuídas a ações de deuses antropomórficos, e a origem do Universo provm ha da união do C éu com a Terra. A c o s m o g o n i a d e A n a x i m a n d r o c o n té m v á r i o s e l e m e n t o s q u e a in d a c o n fu n d e m o s c ie n tis ta s . C o m A n a x im a n d r o , c o m e ç o u a n a s c e r a r a z ã o h u m a n a , te n ta n d o e x p l i c a r a o r ig e m d o m u n d o e d a v i d a e m te r m o s p u r a m e n t e n a tu r a is , a p a r t i r d e u m m a t e r i a l p r im itiv o .

Anaxim enes de M ileto (550-4S0 a.C .) não nos apresenta um a nova cosm ogonia m as considera a T erra plana com o a tam pa de um a panela. Form ara-se de um a m assa de ar giratória e nele flutuava. A naxim enes retornou à idéia m om sta de um a prim eira substância, acreditando que tudo era ar, o qual, no seu estado natural, constituía a atm osfera invisível. Conform e se adensava, transform ava-se em vento, depois em névoa, nuvem , água, lam a e pedras. Tornando-se rarefeito ficava quente e se transform ava em fogo. Para ilustrar a conexão entre rarefação e calor e entre condensação e frio, ele assinalava que, se expirarm os com os lábios quase fechados, o ar emergirá

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f n o : enquanto que, se abrirm os a boca, a expiração sairá quente. O Sol e a L u a eram discos de fogo girando em torno da Terra que se tornavam invisíveis quando m uito longe e atrás do seu norte. Por isso, o dia e a noite. Suas idéias sobre o Universo pretendiam explicar a realidade espiritual e m aterial. Afirm ando ser o ar o u p n e u m a a essência de todas as coisas, m ais que a água de T ales, reconhecia que esse a r ligava-se a um a entidade essencial á vida. Cham ou-a de p n e u m a - respiração - e asseverou que dessa m aneira o próprio U niverso tinha vida, respirando: “ Com o nossa alm a, sendo ar, nos sustenta, assim p n e u m a e ar invadem o m undo inteiro”. Provindo do Universo e sendo aprisionado no corpo de cada hom em ou anim al, o a r f o r m a v a s u a s a l m a s . “N ossa alm a”, diziam seus seguidores, “é ar m ais quente que o a r exterior, em bora m uito m ais frio que o ar no Sol”. A firm avam tam bém que a alm a do hom em é um a pequena parte de Deus - este sendo o Universo -, através do qual o hom em m antém -se vivo. N a verdade, tal idéia é um legado do pensam ento pré-racional, um a vez que a concepção m aterial de alm a com o a r ou respiração encontra-se em m uitas culturas antigas, s i g n i f i c a n d o e n t r e o s g r e g o s q u e o m u n d o c o m o u m t o d o e r a u m a c r i a t u r a v i v a . Tão grande é a força desses conceitos que unem o hom em com a natureza que até hoje os m a o ru da N ova Z elândia batem os narizes p a ra se cum prim entarem , acreditando que esse ato representa um a troca de respiração, de força vital, entre as pessoas. O s g r e g o s , a o v e r ific a r e m o i n c e s s a n t e m o v i m e n t o d o m a r o u o d e s l o c a m e n t o d o v e n to , a c r e d ita v a m q u e a e x p lic a ç ã o n a t u r a l d e s s e s m o v im e n to s a u t ô n o m o s s ó p o d e r i a s e r v i d a e te r n a , e a p lic a v a m o n o m e d e u s o u d i v i n o p a r a a s u b s t â n c i a p r i m á r i a . P o r is s o , a e x p r e s s ã o d e T a le s : “T u d o é c h e i o d e d e u s e s ". T a is id é ia s , d i f í c e i s d e s e r e m c a p t a d a s p e l a m e n t a l i d a d e m o d e r n a , s u r g ir a m n u m a é p o c a e m q u e n ã o e m e r g i r a a in d a o d u a l i s m o m a té r ia - m e n te . N e s s e e s t á g i o d o c o n h e c im e n to , n ã o d i s tin g u ia m a m a té r ia d e s u a s q u a l i d a d e s e n ã o a s e p a r a v a m d o e s p ir ito . N ã o e r a m m a t e r i a l i s t a s n o s e n t i d o a tu a i, p o i s s e n d o a m a té r ia a ú n i c a f o n t e d e t o d a e x i s t ê n c i a e r a e l a p r ó p r i a r e c o n h e c i d a c o m o c o n te n d o o e s p i r i t o d a v id a .

M uitos séculos m ais tarde, um dos m aiores filósofos de todos os tem pos, o holandês Baruch Spinoza, reviveu o m om sm o. Substância, p a ra Spinoza, é a realid ad e ú ltim a da m atéria, independente de m ais nada para existir. A rgum entando que, sendo D eus infinito, possui tam bém todas as propriedades das substâncias finitas, logo. D eus não está separado do resto do Universo. Para Spm oza, D eus e a natureza são a m esm a coisa - cada pessoa sendo um a parte de D eus -, e m ente e m atéria diferentes vestim entas sob as quais E le aparece. E m bora determ inista, Spm oza adm ite a liberdade individual, considerando que a ú n ic a m a n e i r a d e s e r l i v r e é a c e i t a r - s e c o m o s e é , explicando que a consciência de que não há casualidade é libertadora, porque livra as pessoas de serem governadas por suas emoções. S e c o m o s j ó n i c o s a s s is te - s e a o n a s c im e n to d o p e n s a m e n t o r a c io n a l p a r a e x p l i c a r a n a tu r e z a , c o m o s p i t a g ó r i c o s n a s c e r á a c o n c e p ç ã o d e u m a o r d e m n a t u r a l e x p r e s s a d a p e l a m a te m á tic a .

Os Pitagóricos: A ordem cósm ica é m atem ática A o contrário dos jónicos, que elocubravam p o r sim ples curiosidade, os pitagóricos form avam um a irm andade religiosa com idéias m ísticas, doutrinas secretas e sem i-divindades. Eram os seguidores de Pitágoras de Samos (nascido em 582 a.C.), que teria fundado um a comunidade em Crótona por volta de 530 a.C. Pitágoras não deixou nada escrito, e o véu de m istério que envolve a si e a seus seguidores por vezes obscurece as origens de m uitas afirm ações. Provavelm ente, o que há de m ais verossím il é que esse grego, filho de p a i fenício, absorveu idéias orientais, teocráticas, aristocráticas e m ísticas - depois de viajar p ela Á sia M enor, E gito e índia - e fundou um a congregação ético-científica que procurou apoderar-se do poder político, especialm ente na Grande G récia, em Crótona. O m istério em torno de sua pessoa e o respeito religioso devotado

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por seus discípulos transform aram -no num a espécie de sem ideus. A s palavras “teoria", “cosm o” e possivelm ente “filosofia” são suas criações. A ristóteles fala dos p i t a g ó r i c o s , seguidores de Pitágoras - que se sucederam p o r séculos cujos m ais fam osos foram Filolau, A rquitas e Alcmeon. Depois de perseguições políticas, os pitagóricos espalharam -se por várias partes da Grécia. Sua m etafísica ensinava a m etem psicose e a purificação da alm a pelo conhecim ento. Com o sua religião era um panteísm o, a respiração ou vida do hom em e do Universo eram essencialm ente as m esm as. O Universo era uno, eterno e divino, e os hom ens m uitos e m ortais. Entretanto, a parte essencial do hom em - sua alm a - era imortal, pois representava um fragm ento da alma divina. Pela m orte do corpo, tornava-se puro espirito, que se reencarnava em outros hom ens e anim ais. Sendo o Universo um a criatura viva e havendo reencarnaçâo, então todos os indivíduos seriam sem elhantes. Por isso, era proibido com er carne, o que traria o risco de digerir a própria avó. O últim o estágio das transm igrações era a perda da individualidade, ao reunir-se com o divino. A idéia de reencarnaçâo foi usada depois por Platão no seu ensinam ento sobre recordação de vidas passadas. N a seita dos pitagóricos havia a regra de não com er favas porque estas, abertas, se assem elhavam com o inicio da vida hum ana. R etiraram essas crenças de outras seitas m ísticas, com o os órfícos (de Orfeu), que tendiam ao ascetism o e ao êxtase intelectual, buscados no culto da verdade e da beleza. C onta a lenda que Pitágoras, certa vez, perseguido por um a m ultidão hostil, deparou-se com um a plantação de feijões e, p o r recusar-se a cruzá-la, enfrentou um a m orte prem atura. A m ais fantástica descoberta de Pitágoras, que exerceu fundam ental influência sobre seu pensam ento, foi no cam po da m úsica. V erificou que os intervalos da escala m usical, chamados consonâncias perfeitas, podem ser expressados com o razão entre 1, 2, 3 e 4. Juntos som am 10, que, num a conjugação de m atem ática e m isticism o, foi batizado de núm ero perfeito. Segundo ele, essa descoberta aponta para um a ordem completa, inerente, u m a o r g a n iz a ç ã o n u m é r ic a n a t u r a l d o s o m , r e v e l a n d o a n a tu r e z a o r d e n a d a e h a r m ô n ic a d o U n iv e r s o . Por isso, a m úsica foi considerada p o r séculos com o um ram o da m atem ática. E provável que as descobertas sobre a m úsica tenham formado a concepção surgida pela prim eira vez de que todas as coisas são números, pelo conhecim ento de cuja estrutura podem os controlar o m undo. E sta é um a concepção m oderna de ciência, que transform a a m atem ática de m era quantificadora em representante do U niverso. O s pitagóricos enfatizavam a form a ou estrutura do objeto com o o próprio objeto em estudo, ju nto com a idéia de lim ite. Inspirando-se no C éu e nas estrelas fixas relacionaram o ilim itado com as trevas e o lim itado com o fogo. Sendo dualistas m orais, colocavam na coluna das coisas boas: luz, unidade, hom em e lim ite; na coluna das coisas m ás: escuridão, pluralidade, m ulher e in fin ito . A s cria tu ra s v iv as fo ra m ch am ad as de o rganism os ( o r g a n o n = ferram en ta ou instrum ento), para indicar que tém suas partes arranjadas e subordinadas ao fim de m anter o todo vivo. A s crenças pitagóricas ensinavam que, se o m undo e ra bom , o era p o r ser lim itado, o que perm itiu o surgim ento da ordem , p o is vida p len a e eficiente depende de organização. Por isso, a regularidade dos dias, das noites, das estações, das estrelas com seu perfeito m ovim ento circular. O m undo foi cham ado p o r Pitágoras de k o s m o s (cosm o), u m a palavra com binando as noções de ordem , ajustam ento e beleza. Sendo nós m esm os organism os (m icrocosm os) que reproduzim os os princípios estruturais do m acrocosm o, podem os desenvolver nossa própria ordem pelo estudo desses princípios. A palavra m a t e m á t i c a . que significava aprendizado, desenvolveu sua especial relação com os núm eros p o r interm édio dos pitagóricos. O m aior m teresse de Pitágoras era a m atem ática, não com o um a brincadeira com núm eros, m as com o um a m aneira de descrever a ordenação do

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m undo e explicar a realidade. Considerava que os núm eros tinham existência real., fora de nossas m entes: e usava a m atem ática para estabelecer um a relação entre o funcionam ento da natureza e nossa com preensão. E ssa filosofia fala da realidade por trás do m undo visível, j u l g a n d o - o d e e s s ê n c ia m a te m á tic a . Tais teorias seriam, conform e a lenda, de origem egípcia. Sem pre obcecados pela forma, os gregos desenvolveram sua linguagem m atem ática através dela, criando a Geometria. Tão grande era a reverência dos pitagóricos pela geometria que se reconheciam por sinais secretos, com o o pentagram a. Foi a partir de figuras geom étricas que Pitágoras introduziu a idéia de quadrado e de cubo de um núm ero à aritm ética. Erigiram um sistem a de geom etria plana no qual form ularam os principais teorem as concernentes a paralelas, triângulos, quadriláteros, polígonos regulares e ângulos (Figura 5). Por ser o prim eiro conhecim ento capaz de ser observado, m edido e deduzido, a geom etria cedo tornou-se o principal elo de ligação entre a m entalização e a representação do mundo. A ssim , foi prom ovida à prim eira ciência. V e n d o u m a f i g u r a g e o m é t r i c a c o m o s o i h o s d a m e n te , e c o m p a r a n d o - a c o m u m d e s e n h o , c r ia r a m a d is t i n ç ã o e n tr e o in t e l i g í v e l e o s e n s ív e l , aquele real, perfeito e eterno, enquanto este últim o ilusório, defeituoso e transitório, concepções que ajudaram a m oldar idéias teológicas e filosóficas fiituras, com o as de Platão. D e Pitágoras vem a noção de harm onia da natureza e da vida. Posteriorm ente, Platão utilizou as figuras geométricas associadas aos elem entos para explicar a transform ação dos m esm os a partir de novas uniões dos triângulos que as form avam , antecipando um ru dim ento das teo rias físicas m odernas de constituição da matéria. O ponto de vista de que tudo pode ser reduzido à geom etria foi explicitado m ais tarde por D escartes e por Einstein. A o considerar os núm eros com o form as, estes não podiam ser som ados, só o conceito de quantidade que representam . O cham ado teorem a de Pitágoras, “o quadrado da hipotenusa é igual à som a dos quadrados dos catetos", é o m ais fam oso da geom etria m as já estava em uso no vale do Tigre-Eufrates em 2000 a.C . M uitas dessas relações eram conhecidas, um a vez que os sacerdotes egípcios e babilónicos aprenderam bastante sobre geom etria antes dos gregos. N ovam ente aqui assiste-se a um renascer da racionalidade, pois os gregos não se contentavam apenas com o conhecim ento mas se preocupavam em dem onstrá-lo, insistiram m ais no “por quê ?” do que no “o qué ?”. E a d e m o n s tr a ç ã o , r a c io n a i, a b s t r a t a e g e n e r a lis ta , q u e o s d is tin g u e s o b r e m a n e ir a . E les não se interessavam por am ostragens. E m vez de se conform arem com a sim ples m edição p a ra aplicar os teorem as, perguntavam -se - e respondiam - com o encontrar conceitos gerais aplicáveis em toda parte e a todos os casos. N um erosos teorem as deduzidos pelos “discípulos m atem áticos" de Pitágoras foram postos em ordem p o r Euclides no 3o século a.C., cuja geom etria se preocupava com dem onstrações m inuciosas. Contudo, Pitágoras nada tem a ver com o neopitagorism o dos séculos III e IV , a não ser a alusão ao seu nome. A o dem onstrarem a m com ensurabilidade da diagonal em relação ao lado do quadrado, descobriram um lim ite in tran sp o n ív el ao u so dos núm eros racionais (núm eros finitos), e inventaram os irracio n ais (núm eros incom pletos). E studaram a e stru tu ra dos núm eros e d e sen v o lv eram a te o ria das p ro p o rçõ es (aritm ética , g eo m étrica, h a rm ó n ica e m usical). D istinguiram quatro sólidos regulares, ou seja, figuras com todos os lados e ângulos iguais (pirâm ide tetraédrica, cubo hexaédrico, S-octaedro, 20-icosaedro), que foram tom ados para representar os quatro elem entos do m undo físico: terra, ar, fogo e água. D epois de descobrirem a m aneira de desenhar o pentágono regular, desenvolveram o sólido 12-dodecaedro, usado para representar o U niverso. Esses cinco corpos regulares ficaram conhecidos posteriorm ente como “corpos platónicos", e, embora tenham alimentado m uitos m itos filosóficos e m atem áticos, foram tom ados p o r K epler no século XY I para sugerir a prim eira teoria unitária m oderna do Universo.

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Figura 5 - Os pitagòricos associavam a ordem universal com os números, por meio de figuras geométricas. Por isso a geometria foi a primeira ciência, aplicável ã astronomia e às mensurações terrestres. O interessante é que a ciência m ais lógica, a m atem ática, já existia nos seus prim órdios no m undo grego mas não foi convocada para prestar seu testem unho da verdade. Provavelm ente porque a cultura m etafísica não propiciava condições de transform ar os problem as em questões m atem áticas. A não ser pelos pitagóricos, a n a i u r e z a e r a c o n s i d e r a d a s e p a r a d a d o s n ú m e r o s . Por seu m atem aticism o sistem ático, os pitagóricos contribuiram para o desenvolvim ento do racionalism o ocidental, que atingiu seu ápice com D escartes no século X V II. e, p o r sua m ística com núm eros, ligaram -se à m agia e à filosofia esotéricas. O s gregos, pelos pitagóricos, estiveram m uito próxim os de perceber a im portância da m atem ática com o instrum ento de validação da verdade científica. Porém , afora essa influência, a m atem ática era vista com o pouco m ais que um a form a de distração com núm eros - não integrada na regularidade da ordem cósm ica e com bm ada com o m isticism o. E m cerca de 2400 a.C ., sum erianos na M esopotâm ia desenvolveram um sistem a num eral cham ado posicionai, no qual colocavam um segundo sím bolo quando a contagem atingia 10 ou 60, sendo que este últim o sistem a tev e m ais aceitação n a Sum éria, B abilônia e Caldéia. Entretanto, não desenvolveram o conceito de zero. N ossos dias ainda m antém vestígios desse sistem a com base 60: hora com 60 m m utos, m inuto com 60 segundos, circulo com 360 graus. Por que os gregos não desenvolveram as leis da probabilidade, o cálculo infinitesim al ou mesmo a álgebra sim ples? C om toda a certeza, porque dependiam de um sistem a de num eração atrasado, baseado em letras de seu alfabeto, assim com o depois os rom anos. D evido a esse sistem a de

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num eração im perfeito, preferiram a geom etria â álgebra. Por exem plo, os rom anos não podiam escrever 32 com o IIIII, porque seria im possível distinguir se isso significava 32, 302, 3020 ou algum a com binação m aior de 3, 2 e 0. O s cálculos baseados em tal sistem a eram inviáveis, im produtivos. Por outra, o sistem a de num eração atualm ente usado só surgiria no ano 500, desenvolvido pelos hindus. Quem concebeu tão m ilagroso invento, e em que circunstâncias, é um m istério. O s árabes, que introduziram esse sistem a num érico no O cidente, só vieram a conhecé-lo depois de 700, quando chegaram à índia e foram além. A lcm eon de C rótona (c. 500 a.C .), u m discípulo de Pitágoras, estendeu a visão cientifica para os seres vivos, com eçando a dissecá-los. D escobriu os nervos cranianos para os olhos, colocou a sede das em oções no sistem a nervoso, e não no fígado ou no coração, com o era pensado, e descobriu as com unicações entre boca e ouvido, redescobertas 2200 anos depois pelo anatom ista italiano E ustáquio, e rebatizadas com este nom e. A lcm eon pensava que esses condutos carregavam p n e u m a . C onsiderando na sua visão m ística que a esfera e o núm ero 10 são perfeitos, os pitagóricos introduziram o conceito de que T erra e C éu são esféricos. E ste é um dos tantos exem plos na história da ciência de um a idéia precedendo a observação prática. E tam bém possível que essa concepção tenha surgido de m aneira m ais inform al, ao verem um barco desaparecendo ou surgindo no horizonte. O astrônom o pitagórico Filolau de T arento (480-400 a.C .) parece ter antecipado que a T erra não é o centro do U niverso e sim um planeta com o os outros, girando com o Sol ao red o r de um fogo central, que o esquentava, invisível a partir do lado da T erra em que habitam os (não considerou o Sol com o sendo o tal fogo). F ilolau fo i o prim eiro a publicar um livro sobre a doutrina pitagórica, que influenciou Platão e depois Copérnico. A lguns duvidam se se deve a Filolau um sistem a heliocêntrico do U niverso ou se astrônom os posteriores, na época da Inquisição, o invocaram para contar com o respaldo da autoridade de um discípulo de Pitágoras. E de F ilolau a afirm ação de que todas as coisas conhecidas possuem um nom e e que nada pode ser concebido ou identificado sem um nom e, o qual representa um a harm onia de opostos, enquanto que as coisas são um a harm onia de nom es. A o dar tam anha im portância para as palavras, alim enta a idéia sofista de que a linguagem é o centro da realidade. A c o n c e p ç ã o p i t a g ó r i c a g e r a l d e l im ite e s te n d e u - s e p a r a a m o r a i e a e s ié tic a . Em bora o som se propague sem lim ite, este é representado pelo sistem a de razões entre notas concordantes, o que só poderia ocorrer segundo um plano inteligente. A s noções de ordem, proporção e m edida ressaltam que corpos representam diferenças quantitativas, já que a m atéria era considerada com um a todos, e a ênfase da diferença individual deslocou-se da m atéria para a forma, expressada num ericam ente em term os de quantidade. A ssim , a idéia de m edida proveniente de Pitágoras trouxe um avanço para a explicação de as coisas perm anecerem as mesmas. O l i m i l e e a o r d e m in flu e n c ia r a m o e s tu d o d a m e d i c i n a , um a vez que o bem -estar do mundo e do hom em dependiam de um a perfeita m istura harm ónica dos com ponentes de que eram feitos ( k r a s is ) . A saúde dependia da m istura harm ônica e proporcional dos opostos: calor e frio, um idade e secura. D oença era devida a um a desarm onia desses elem entos, ou discrasia. E sse conceito foi a p ed ra de toque da m edicm a grega. T ais noções pitagóncas tiveram um a longa história e sobrevivência na filosofia, na literatura e na m edicina. A c o s m o lo g ia p i i a g ó r i c a é u m a f i l o s o f i a d a f o r m a , d ife r i n d o d a j ó n i c a q u e é u m a c o s m o lo g ia d a m a té r ia . P itá g o r a s , q u e f o i o p r i m e i r o p e n s a d o r a j u n t a r f i l o s o f i a c o m m a te m á tic a - c r ia n d o a i d é i a d e q u e a o r d e m n u m é r ic a i m p r e g n a o m u n d o f i s i c o e m t o d a s u a e x te n s ã o e x p r e s s o u u m d o s m a is f r u t í f e r o s p e n s a m e n t o s q u e a lg u é m j á te x e , c h e g a n d o a t é D e s c a r te s , e s te r e la c io n a n d o g e o m e t r i a e n ú m e r o s n u m g r á fic o , e a L e i b n i z e N e w t o n q u e , p o r s u a v e z , c r ia r a m o c á lc u lo . N o s é c u lo X X , E in s t e i n a d m itiu q u e a lg u m tip o d e in te lig ê n c ia o r d e n a d a c o m a n d a o m u n d o .

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Os Intelectualistas: N asce a razão O racionalism o considera que as verdades sobre a realidade só podem ser reveladas pela razão, pelo mtelecTo; e não pelos sentidos: ou seja., é a concepção filosófica segundo a qual as idéias universais não resultam das percepções m as são a p r i o r i , contrariam ente ao que pensam os em píricos. O racionalism o distingue-se do idealism o puro p o r não n eg ar o m undo externo ou m aterial separadam ente das idéias. E s s a s c o r r e n t e s r e p r e s e n t a r a m p o r m i l ê n i o s a s p o s i ç õ e s m a i s in flu e n te s d o p e n s a m e n t o o c id e n ta l.

O ideal pit^górico fo i rejeitado por H eráclito de Efeso (576-4S0 a.C.), que viveu na passagem do 6o para o 5o século a.C. E ra cham ado “O enigm a", pois: prepotente, falava com o um oráculo, em vez de desenvolver um a linha contínua de argum entos. Reconhecia que o aprendizado vem através dos sentidos m as, considerando que estes m ostram um m undo diferente para cada homem, ressaltou o v alor da interpretação, do filtro intelectual, dizendo que “ olhos e ouvidos são más testem unhas se a alm a não entende", ou “a inteligência não pode produzir conhecim entos certos por seus próprios recursos". E sta é a p r i m e i r a m a n i f e s t a ç ã o e x p líc ita d e r e b a ix a m e n to d o s s e n tid o s c o m o g u ia s p a r a a v e rd a d e .

H eráclito defendia sua idéia de unidade (reunião) de opostos, afirm ando que um a garrafa com líquido até a m etade pode ser vista com o m eio cheia ou com o m eio vazia, que o m esm o cam inho p ela m ontanha pode representar um a subida ou um a descida, dependendo da direção do cam inhante, que um indivíduo é o m esm o quando jovem e quando velho. .Assim, a realidade é sem pre u m a co n trad ição , u m a reunião de opostos, in stá v e l, em perm an en te m udança (“tudo flui"). “N ão se passa pelo m esm o n o duas vezes", querendo dizer com isso que tudo está em constante m odificação. E um a idéia m quietante que acaba com a estabilidade de qualquer referencial e com algo confiável em que acreditar, declarando que a m udança é a lei suprem a da natureza. L evando ao extrem o essas idéias, nada poderia ser dito porque antes que algo pudesse ser descrito p o r um a palavra já teria se transform ado em outra coisa. O U niverso, para H eráclito, não foi construído m as sem pre existiu e existirá sob a form a m ítica do fogo, eternam ente vivo e m utável. Para ele, a lei da n atureza é o perm anente conflito, sim bolizado pelo fogo, o que é essencial p a ra a vida e, portanto, bom . Considerou o ideal pitagónco de um m undo pacífico e harm onioso um a idéia de m orte (paz dos cem itérios), dizendo que a guerra é o pai de tudo e que contenda é ju stiça. Com o podem opostos estar em harm onia a não ser pela subm issão, pela ausência de vontade? .Assegurando que a v id a só se m antém pela destruição de algum a coisa, o m undo, dizia H eráclito, tinha o fogo com o prim eira substância. C om o tu d o se o rig in a de u m a contenda e está em flu x o constante, e o fogo perm anece consum m do e renovando seu m aterial, é ele o princípio e arranjo de tudo, já que todas as coisas podem transform ar-se em fogo e este em todas as coisas. R econheceu um a lógica, um equilíbrio cósm ico por trás dessas m udanças e entendeu que sem inverno não há prim avera e sem o m al não existe m edida para o bem , ou seja, sem pre os opostos em com petição. N ão m ais aceitava a sim ples cosm ogonia dos jónicos nem achava possível colocar a vida e o pensam ento somente n a matéria. C olocava no fogo um a inteligência, um a racionalidade, que m ostra como e s ta v a s e to r n a n d o d ific ii e x p lic a r a s c o is a s s e m a v a n ç a r a lé m d a n o ç ã o d o m a te r ia l. Para H eráclito, tão vivo é o fogo que tira seu alim ento de partes sutis do ar, assim com o inalam os a essência divina durante a respiração. E um a adm irável antecipação do papel do oxigénio na com bustão e na respiração. M ais tarde, os sofistas exploraram suas afirm ações para duvidar do conhecim ento hum ano - que se consum iria com o o fogo -, e o panteísm o estóico usou sua idéia do fogo com o princípio de to d a existência e de toda razão. M uito m ais tarde, no século XVII, Robert Boyle m ostrou as analogias entre fogo e vida, e Lavoisier, no próxim o século, verificou que am bos dependem do oxigênio p a ra m anter-se. O m etabolism o dos seres v iv o s pode

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ser considerado, em últim a análise, um a com bustão dependente do fenôm eno quím ico m ais prim itivo, a oxigenação. H e r á c l i i o f o i o p r i m e i r o a a f i r m a r a x i t a i i d a d e t o t a l d a n a tu r e z a , a m u ta b i l i d a d e i n c e s s a n te d e tu d o q u e é in d iv i d u a l e, p o r o u tr a , a e x i s t ê n c i a d e u m a l e i r a c i o n a l a b s o l u t a d e q u e o m u n d o r e a l c o n s i s t e d o a j u s t e e q u ilib r a d o d e te n d ê n c ia s o p o s ta s . D e c e r t a m a n e ir a , s e u p e n s a m e n t o é p ó s - m o d e r n o (d e p o i s d e D e s c a r t e s ) p o r n e l e e s t a r i m p líc ito q u e n ã o p o d e h a v e r c o n h e c im e n to p e r m a n e n te .

A ruptura veio com P a rm ê n id e s de E léia, na prim eira m etade do 5o século a.C ., que tinha idéias opostas às de H eráclito. Parm ênides era determ inista. C riou a visão de um Universo im utável, em que tudo é um , pois com o coisa algum a pode ter vindo do nada, o m undo sem pre existiu. O s e r e x is te e o n ã o - s e r n ã o e x is te , tal é sua proposição fundam ental. Para ele, a realidade não é m ais m ovim ento e m udança m as consiste de um a sim ples, im óvel e perm anente substância, indivisível e infinita. O m ovim ento ocorre apenas dentro de um sistem a fechado e imutável, sendo que o a g o r a é subjetivo, dentro de um a relatividade m aior. E possível que Parm ênides tenha sido aluno do filósofo jó n ic o X en ó fan es de E léia (fim do século VI a.C .), adepto de um a espécie de m onoteísm o, com um D eus verdadeiro acim a de todos os hom ens e deuses (os deuses gregos eram quase hum anos), o criador e a causa de todos os m ovim entos. V ê-se aqui o reconhecim ento da necessidade de u m a i d é i a e x p l i c a t i v a a lé m d o p o d e r h u m a n o d e d e d u ç ã o . X enófanes ensinou tam bém que a T erra e o m ar estiveram m isturados em épocas prim itivas (nebulosa inicial criada por D eus), apoiando essa idéia no achado de conchas m arítim as em áreas m ontanhosas. U m a idéia que os gregos pensavam difícil absorver nesse estágio era o m undo poder ter m ais de um significado. E ssa dificuldade certam ente tinha algo a ver com a proxim idade do estágio m ágico prim itivo, no qual o m undo e seu objeto form avam um a unidade sim ples. Para Parm ênides, o prim eiro a refletir conscientem ente a lógica das palavras - diferenciando entre o existencial e o predicativo -, s e r é e x i s t i r . O s jónicos haviam dito que o m undo e r a um a coisa m as t o r n o u - s e outra. M as, dizia Parm ênides, se o ar t o r n o u - s e água, isso significa tornar-se no que não é, o que é um absurdo (conclusão perfeitam ente lógica para quem ainda não conhecia a teo ria atôm ica). C om o, n aq u ele tem po, dispunham de pouco m ais que o pensam ento e a palavra para investigar e concluir, esse aparente jo g o de palavras era tom ado m uito seriam ente. Foi o prim eiro a negar a transm utação da m atéria, idéia tão inutilm ente perseguida depois pelos alquim istas. A s idéias de Parm ênides sobrevivem em fragm entos de um longo poem a que ele escreveu, no qual argum enta que o s e r (existir) e o p en sar são a m esm a coisa, pois p e n s a r e m a l g o q u e n ã o e x i s i a é im p o s s ív e l. Logo, tudo o que existe pode ter um nom e, e o que não existe, não. N o m esm o poem a argum enta que o tem po é um a ilusão, que passado e futuro não existem , pois só podem ser pensados no presente. N a G récia antiga discutiam interm inavelm ente se o nom e é parte in eren te da pessoa (natureza) ou externa (convenção), arbitrariam ente im posto. Se tudo se m odifica, de onde teria surgido o m undo? Parm ênides então decidiu que o m undo sem pre existiu, porque um nada não poderia se transform ar em algum a coisa. A ssim , t o d a m o d ific a ç ã o e m o v im e n to s ã o ir r e a is , p o r q u e is to s i g n i f i c a r i a o q u e é t o r n a n d o - s e n o q u e n ã o é . O m ovim ento tam bém seria im possível porque, havendo um a única, continua e infinita substância, não pode existir espaço vazio, já que espaço só pode ser descrito com o “onde a coisa verdadeira, que é, não é”. Esse im obilism o im pedia qualquer tipo de evolução. A ssim , o m undo real era um a m assa de substância im óvel e im odifícada eternam ente. Não é necessário dizer que não parece assim , mas tal constatação não intim idava Parm ênides. Afirm ava que tudo que o hom em imagina, pensa, vê, ouve e sente é pura ilusão e que a origem de todas as diferenças aparentes é a escuridão e a luz.

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A im portância dessas idéias reside na introdução do conceito da continuidade essencial do U niverso, com o um a proto-im agem das leis de conservação da m atéria (Lavoisier, século XYIII) e da energia (M ayer, século X I X ) . De um a m aneira geral, o s g r e g o s s e m p r e c o n s id e r a r a m o a b s o l u t i s m o d o p e n s a m e n t o s o b r e to d a s a s o u t r a s m a n i f e s t a ç õ e s s e n s o r i a i s o u m e n ta is . Só a m ente poderia atingir a verdade, proclam ava Parm énides, com a arrogância dos prim eiros pensadores abstratos, como prova de que a realidade sensível é inexplicável e contraditória. E, por isso, o prim eiro racionalista, pois sua realidade é só atingível pelo pensam ento e pela razão. Com o Parm énides foi o prim eiro a exaltar a inteligência acim a do sensível, logo, alguns cham arem -no de m aterialista é um a incongruência. A idéia de chegar a um bom term o da m com ensurabilidade usando um núm ero m uito grande de pequenos valores, com o fizeram os pitagóricos, e ra rejeitada p ela visão de Parm énides. Parm énides teve um am igo e seguidor, Zênon de E léia, com quem visitou Atenas p o r volta de 450 a.C ., que desferiu um ataque devastador à teoria pitagórica do núm ero, criando famosos paradoxos que visavam m ostrar a certeza da filosofia de Parm énides, segundo a qual o Universo é continuo e im utável, e refutar a existência do m ovim ento e dos núm eros irracionais descobertos pelos pitagóricos. Zénon fo i o prim eiro a utilizar sistem aticam ente a argum entação dialética, e suas dem onstrações eram contra a concepção pitagórica da unidade indivisível, estabelecendo as bases para um a teoria da continuidade. O m ais fam oso paradoxo de Zénon - e possivelm ente da filosofia - é o de A q u i l e s e a tartaruga, no qual Zénon "prova” que A q u i l e s não pode atingir a tartaruga, em bora correndo m uito m ais depressa, pois, quando A q u i i e s chega ao ponto de partida da tartaruga, esta j á terá se deslocado, e quando o corredor vencer tal distância a tartaruga progredirá m ais um pouco, e assim p o r diante até o infinito. A solução, descoberta m uito depois, é olhar o fluxo continuo do m ovim ento, e o erro é im aginar os corpos parando interm itentem ente, quando isso não acontece. A partir dos paradoxos de Zénon com eça a surgir a idéia de cálculo de fluxos infinitesim ais. A im p o r tâ n c ia d e P a r m é n id e s é te r c a ta p u lta d o o s g r e g o s a o p a ta m a r d o p e n s a m e n to a b s tr a to , c o lo c a n d o a m e n t e a t r a b a l h a r in d e p e n d e n t e m e n t e d a i n f o r m a ç ã o s e n s o r i a l r e f e r e n t e a f a t o s e x te r n o s , e x a lta n d o s e u s r e s u l t a d o s a c i m a d a q u e l e s d a s e n s o p e r c e p ç ã o . N i s s o o s g r e g o s f o r a m g r a n d e s d is c íp u lo s , d e m o d o q u e a s o m a d e s e u g é n i o p a r a o p e n s a m e n t o a b s t r a t o c o m a n e g lig ê n c ia p a r a c o m f a t o s e x t e r n o s c o l o c o u a c i ê n c i a e u r o p é i a n o c a m in h o e r r a d o p o r m a is d e m i l a n o s . V ê - s e a q u i a s o r i g e n s d o d o g m a tis m o . D ig a - s e , p o r é m , q u e o d o g m a t i s m o g r e g o e r a in te le c tu a l, f i l o s ó f i c o , e n ã o c o n d e n a tó r io , p o l í t i c o o u r e lig io s o , c o m o f o i a p ó s o d a tr a d iç ã o j u d a i c o - c r i s t ã . M u i t o d e p o is , f o r a m r a c i o n a l i s t a s R e n é D e s c a r t e s , B a r u c h S p i n o z a , G o t t f r i e d L e i b n i z e I m m a n u e i K a n t.

Os Pluralistas: O m undo nào tem um a form a única Parm énides m atara o m onism o m aterial dos jónicos, e a idéia de um m undo m últiplo samdo de um a única substância prim itiva não era m ais aceita. Porém , o hom em comum , esse que planta, luta, am a e sente, não decretava com o irreais coisas que via, tocava e cheirava. D esde que isso não podia m ais com binar-se com a crença num a unidade prim itiva, tam bém negava a prem issa de Parm énides de que a realidade é una. Surgiram os pluralistas, representados por Em pédocles, Anaxágoras e D em ócrito. E m p éd ocles da S ic ília (490 495-435 a.C .) c rio u e tra n sm itiu id éia s que atravessaram m ilénios. E ra um a m istura de cam peão olím pico, político dem agogo, m úsico, poeta, m édico, filósofo, m ístico religioso e m ágico, m eio desequilibrado m as tam bém gemal, com binações que a G récia ocidental dos pitagóricos tendia a produzir. Com um a certa fidelidade ao ocultism o, com o era com um na época, expôs quase tudo em rim as. A ntes do uso generalizado da escrita, o

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conhecim ento costum ava ser divulgado em v ersos, m ais fáceis de decorar e de recordar. D e ssa form a, fo i p rese rv ad a m uito da c u ltu ra h e rd a d a oralm ente. E m sua filosofia h á elem entos de Heráclito, Parm ém des e Pitágoras. E no seu poem a S o b r e a N a t u r e z a que Em pédocles enuncia a concepção das ‘'quatro raízes de todas as coisas”, m ais tarde cham adas p o r A ristóteles de os “quatro elem entos”. Em pédocles criou ou talvez buscou em culturas m ais antigas essa noção dos quatro elem entos (usou a palavra r a íz e s ) - terra, ar, água e fogo, representando respectivam ente os conceitos de solidez, volatilidade, liquidez e energia, cada qual conjugado por sua vez com qualidades prim árias, com o calor e frio, um idade e secura - , como as substâncias indivisíveis e prim itivas que sempre existiram e das quais todos os corpos, vivos ou não, eram form ados p ela com binação de proporções diferentes (idéia pitagórica da proporção). Foi a fantástica m tuição de Em pédocles que tornou o ar m aterial. O s pitagóricos associaram um a form a geom étrica a cada um dos quatro elem entos: cubo p a ra a terra, tetraedro para o fogo, octaedro para o ar, icosaedro para a água. A t e o r i a d o s q u a t r o e le m e n to s , a s s im ila d a e t r a n s m itid a p o r A r i s t ó t e l e s , s u b s is tiu a t é B o y le , n o s é c u lo X V I I . Por exem plo, o osso seria form ado de duas partes de terra, duas de água e quatro de fogo. Os elem entos eram vistos n ã o c o m o a s s u b s tâ n c ia s m a s c o m o s u a s c a r a c te r ís tic a s e s s e n c i a i s : assim , um pedaço de m adeira contm ha o elem ento terrestre (é pesado e sólido), o elem ento aquoso (ao ser aquecido libera um idade), o elem ento aéreo (fum ega) e o elem ento fogo (emite cham as ao queim ar). A s proporções dos elem entos constituintes determ inavam as espécies dos corpos. N essa lm ha de pensam ento não havia a necessidade de assum ir a transform ação dos co rp o s. C om o bom p ita g ó ric o , p e n sa v a b a s ta r co m b in ar h arm o n icam en te os elem entos fundam entais para tudo criar. Para ele, o m ovim ento existia, m as não se fazia num espaço vazio, que Parm énides provara não ocorrer. Exem plificava isso pelo deslocam ento de um peixe na água, com a qual ele sem pre contacta, e que se fecha após o m esm o progredir. Depois de Parm énides, a ingénua noção jó n ic a de um a substância a m over-se p o r si como algo vivo e a transform ar-se não m ais parecia possível, tornando-se necessário criar um a causa m otiva separada. Em pédocles inventou duas, o amor e a luta. A luta é a força que dissocia, separa um elem ento do outro, e o amor a força que tende a uni-los para form ar criaturas compostas. Essas forças explicavam com o as coisas podem m udar e o m undo perm anecer o mesmo. Quando o amor é suprem o, o todo form a um a m assa única. Quando a contenda é suprem a, os elem entos existem em camadas concêntricas - por isso o todo é esférico - , com a Terra no centro e o fogo na circunferência. Vencendo ora um ora outro, a evolução dos m undos é sem pre um processo circular. U m m undo com o o nosso existe num estágio intermediário, exibm do grandes m assas de terra com o continentes e de água como oceanos, e grande variedade de anim ais e plantas. N aquele tem po, o único m aterial verdadeiram ente transparente conhecido era o cristal de rocha, um a variedade de quartzo, daí surgindo a idéia de que o Universo era um a esfera de cristal. A s estrelas fixas e os planetas, nas suas respectivas esferas, eram saliências de fogo. A nunciou um novo principio, segundo o qual Sol e L u a não eram corpos sólidos m as reflexões de um fogo central. Em pédocles pensou ser o Sol a im agem de todo o céu diurno refletido pela superfície da Terra, refutando a idéia pitagórica de T erra esférica, em bora a L u a brilhasse por refletir a luz do Sol, conforme já afirmara Parménides. Entretanto, entendeu a origem dos eclipses. Eudóxio, discípulo de A ristóteles, aum entou a idéia de esfera de cristal para um a série de esferas circundantes sobrepostas, capazes de conter os diversos corpos celestes, concepção que chegou até Copérnico, no século XV. Empédocles foi um precursor do danvmismo. N a sua teoria da origem dos seres encontram-se as prim eiras idéias transform istas e de seleção natural. N o seu m undo, não havia D eus criativo

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nem m ente adaptando organism os a um propósito: as criaturas viventes, com o outros corpos naturais, se originaram p o r com binação aleatória de partes corporais previam ente form adas, e evoluiram . N o princípio, isso resultou n a criação de m onstros, dai as histórias sobre eles. E possível que essa idéia tenha vindo do conhecim ento de fósseis pré-históricos pelos antigos gregos, com aspectos não encontrados entre os seres vivos conhecidos. Pés, m ãos, olhos, ouvidos e órgãos m ternos m ostravam -se para ele tão bem adequados às suas funções, que deveriam ter-se desen v o lv id o p o r m e io de u m a seleção orig in ad a n a lu ta p ela existência, co m o desaparecim ento de criaturas m al adaptadas, com o hom ens com cara de touro ou anim ais com m em bros em form a de árvore. Essas transform ações continuavam após a m orte - graças a transm igrações -, oportunizando os m elhores a passar a um estágio superior. Em pédocles acreditava na m etem psicose ou som atose, em que um ser vivo pode conhecer m uitas vidas sucessivas. Ele m esm o se lem brava de ter sido um rapaz, um a rapariga, um arbusto, um pássaro e um peixe. E u m a teoria prim itiva da evolução e seleção natural, tanto que fo i citada por D arw in no prefácio de seu O r i g e m d a s E s p é c i e s . O lado m ístico da filosofia n atu ral de Em pédocles revela-se no caráter psicológico e m oral que deu às propriedades am or e luta, capazes de im pulsionar os diversos corpos. N ote-se que não havia ainda a concepção dessas forças com o dissociadas da m atéria. Em pédocles influenciou profundam ente a Fisiologia e a M edicina. D iscutiu as relações entre luz e visão, crendo que os corpos lum inosos em itiam algo que encontraria raios provenientes do olho, o que significou um passo à frente em relação à crença pitagónca de que a \is ã o era causada por algum a coisa provindo do olho. A firm ava tam bém que a luz viajava pelo espaço. A creditava que a respiração se fazia através dos pulm ões e tam bém de todo o tegum ento, idéia que Galeno m anteve seiscentos anos depois. Para os seus seguidores, o coração era o sítio da vida, concepção que chegou até nós através de A ristóteles. E ra no coração que havia m ais calor, razão pela qual ele e os vasos estão em contínuo m ovim ento. Esse “calor m ato", m tim am ente identificado com a alm a, era distribuído pelo sangue a todas as partes do corpo a partir do coração. Para acalm ar-lhe o fogo da atividade, da ira ou do m edo, os deuses presentearam -lhe os pulmões: o ar inspirado e ra levado ao coração pelas veias pulm onares p a ra esfriá-lo. Provavelm ente observando vasos seccionados de organism os vivos, foi o prim eiro a form ular a teoria do fluxo e refluxo (vai-e-vem ) do sangue. M ais tarde, os quatro elem entos m ais as quatro qualidades form ariam os quatro hum ores do corpo: sangue, flegm a, bile am arela e bile negra. Saúde dependeria do equilíbrio entre esses quatro hum ores, enquanto que a doença seria resultado de um desequilíbrio. Com o um exem plo do m isticism o da época, Em pédocles foi considerado responsável por m uitas m aravilhas, com o m isturar a água de dois rios, assim debelando um a epidem ia, m elhorar o clim a local com a colocação de um quebra-vento num desfiladeiro, dom ar os v en to s do M editerrâneo, prendendo-os em sacos, e até ressuscitar um a m ulher sem respiração e sem pulso há um m és. C ontam que, julgando-se um deus, m ergulhou no vulcão Etna para decifrar seus m istérios e m ostrar que sobreviveria m as se enganou. O vulcão devolveu apenas um a de suas sandálias. A lguns seguidores que o deificaram dizem que ascendeu aos céus, um a form a freqüente de im aginar a im ortalidade na Antiguidade. A l g u m a s id é ia s d e E m p é d o c le s , c o m o a c o n s titu iç ã o d e to d a m a t é r i a a p a r t i r d o s q u a tr o e l e m e n t o s - a r , á g u a , t e r r a e f o g o -, d o f l u x o e r e f l u x o d o s a n g u e e d o c o r a ç ã o c o m o ó r g ã o m a is q u e n te d o c o r p o , s e n d o r e fr ig e r a d o p e l o s p u lm õ e s , a tr a v e s s a r a m s é c u lo s , s ó te n d o s id o d e r r u b a d a s n o s é c u lo X V I I .

Com A n a x á g o ra s de Clazom eno (500-428 a.C.), na m etade do 5o século a.C., h á o r e t o r n o a u m a f i l o s o f i a m o v id a p e l a c u r io s id a d e in te le c tu a l, livre de idéias religiosas. Fundou a prim eira

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Escola de F ilosofia em Atenas, freqüentada por Péricles, Eurípides e até Sócrates. Escreveu um livro, S o b r e a N a tu r e z a , do qual se conserv am fragm entos. Para ele, a teoria dos quatro elem entos de Em pédocles era sim ples dem ais. A o contrário de um c o n tin u u m , supôs que o m undo se com punha de infinitas pequenas partículas sem elhantes, ‘'sem entes" de todos os elem entos ( h o m o e o m e r i a s , “germ es das coisas"), que flutuavam no a r e se agrupavam em diferentes proporções para form ar todos os corpos. “Tudo está em tudo", dizia. Suas partículas são divisíveis ao infinito, sendo “im possível que o s e r deixe de s e f \ Surge pela prim eira vez a concepção de que a m atéria é m finitam ente divisível. Precede Lavoisier, ao afirm ar que “nada nasce, nada m orre, m as as coisas existentes se com binam e depois se separam novam ente". Entretanto, sua teoria adm ite a geração espontânea. A naxágoras pensava que cada um a das partes dos pares de opostos de Em pédocles, quente e frio, seco e úm ido, estavam contidas em proporções diferentes em todas as m inúsculas partículas que im aginava com o constituintes do m undo. Substituiu o am or e o ódio da teoria de Em pédocles pelo n o u s , ou seja, a m teligència que rege todos os processos do U niverso, dando origem ao teísm o filosófico. A ssim , acim a dessa infinita pluralidade da natureza, da dissem inação dos seres, coloca um a unidade soberana - a m teligència divina sim ples e indivisível, o princípio do m ovim ento da m atéria, que a anim a e a ordena. A inteligência tem , segundo ele, dois atributos fundam entais, o c o n h e c im e n to e o m o v i m e n t o , preside a revolução dos astros e a circulação universal, envolve e dom ina o mundo. A naxágoras atribuía o raio, o relâm pago e as estrelas cadentes à queda de algumas partes do é t e r na atm osfera, e explicava os astros com o corpos pétreos na região do fogo - que atingia tam bém o Sol, fazendo-o brilhar, e a L u a por reflexão -, antes arrancados da Terra, p o r efeito das revoluções do Céu, e m antidos nos seus lugares por essa m esm a revolução, o que m uito depois inspiraria K ant e Laplace. O brilho provinha do fogo neles refletido, sendo o Sol o m aior exemplo. A lém de conhecer a causa dos eclipses do Sol e da Lua, foi o prim eiro a lançar a idéia de m uitos m undos habitados. Ensm ou que a topografia da Terra m odifícara-se em eras geológicas anteriores e antecipou-se a Galileu, m sistm do em que há m ontanhas e vales na Lua. D escobriu que os peixes respiram por guelras e que as plantas são criaturas vivas. Por outro lado, pensava que o m enm o era gerado no lado direito e a m enina no lado esquerdo da m ãe e que as doenças agudas deviam -se a m ovim entos da bile para os pulm ões e a pleura. A naxágoras pode ser considerado a p rim eira v ítim a da racionalidade condenada pela intolerância religiosa, pois, para a m aioria, o Sol e a Lua continuavam sendo deuses. Diofeítes, sacerdote ateniense, fizera passar um a lei p a ra “o castigo im ediato de todos aqueles que descriam da religião estabelecida ou sustentavam teorias próprias sobre certas coisas divinas". M esm o protegido por Péricles, Anaxágoras foi acusado de ateísm o e condenado à m orte, tendo que fugir de Atenas, p o r dizer, entre outras coisas, que o Sol não era um coche celeste carregado pelas divindades através do Céu m as somente um a pedra quente "um pouco m aior do que o Peloponeso". O c a r á t e r m o r a i d a f i l o s o f i a d e A n a x á g o r a s r e f i e i e - s e n a c o n te m p la ç ã o d a n a tu r e z a e n u m a r e s ig n a ç ã o s e v e r a à o r d e m d o m u n d o . O q u e r e s s a lta e m A n a x á g o r a s é t e r s i d o o p r i m e i r o a d i s t i n g u i r c la r a m e n te e n t r e m a té r ia e m e n t e e te r c o lo c a d o a d iv in d a d e d i s ta n te e a c i m a d o s o b je to s . P a r a e le , a i n te lig ê n c ia g o v e r n a o m u n d o e p õ e o r d e m n a c o n fu s ã o . E c o n s id e r a d o o f u n d a d o r d o te ís m o f i l o s ó f i c o e p r e c u r s o r d o a to m is m o . M a i s d e d o i s m ilê n io s d e p o is , v e r e m o s m u ito d e A n a x á g o r a s e m D e s c a r te s .

Parm énides h av ia m ostrado que nada pode ter vindo do nada e que o s e r , essência de todas as coisas, não pode alterar-se e transform ar-se no n ã o - s e r ou em outra coisa. A ssim , qualquer explicação da origem do cosm o p ela transform ação de um a substância prim ária se tornava

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inconsistente. A com plicada teoria de A naxágoras fo i substituída p ela teoria atôm ica, não m ais baseada em transform ações m as em com binações a partir de partículas prim itivas. N este ponto, surge um soberbo exem plo de idéia p u ra antecedendo um a dem onstração científica sobre a origem da m atéria, feita 2500 anos depois. O a io m is m o m e r e c e e s p e c ia l in te r e s s e p e la a n te c ip a ç ã o d a te o r ia a tô m ic a m o d e rn a .

A teoria atôm ica ongm al é atribuída a Leucipo e D em ócrito de A bdera (470-400 a.C .) m as o p rim e iro não tem a e x istên cia confirm ada. D em ó crito fo i u m jo v e m co n tem porâneo de A naxágoras. Por p u ra intuição, e respeitando as idéias de que nada pode transform ar-se ou destruir-se (consequentem ente o nascim ento ou desaparecim ento de algo real tem a ver com os ensinam entos de Em pédocles e de A naxágoras), ou seja, de que a form ação de novos corpos provém da co m b in ação de e le m en to s que, so lto s, n em m erecem o nom e de existentes. E sses elem entos, que D em ócrito cham ou de á t o m o s (átom os) - t o m o = divisão, pedaço substâncias concretas invisíveis, incom pressíveis, hom ogêneas e eternas, ju n ta s num espaço vazio - este a prim eira realidade - com punham todos os corpos, v iv o s ou não. A o contrário das partículas de A naxágoras, que são ínfim tam ente divisíveis, os átom os de D em ócrito representam a m enor porção da m atéria, diferindo entre si som ente em tam anho e form a. E ssas propriedades, ju nto com diferenças nas suas posições relativas - devido ao m ovim ento e distâncias um dos outros -: eram suficientes para responder por todas as discrepâncias dos objetos perceptíveis e fo rm a r se re s v iv o s. A d m itia tam b é m a id é ia de g e ra ç ã o e sp o n tâ n e a , c o n s id e ra n d o a predeterm inação um sim ples jo g o de causa e efeito entre os átom os, im possível de ser prevista, de acordo com o que hoje ensm a a teoria do caos ou da incerteza (vide pág. 160). C oisas m oles eram feitas de átom os m uito afastados, o que as tornava com pressiveis. A lim entos am argos eram constituídos por átom os ponteagudos, capazes de escoriar a língua, idéia que foi exatamente repetida no século XY II pelo quím ico francês Nicolas Lémery. O impacto dos átom os no a r e sua transm issão ao ouvido provocava a sensação auditiva. A s cores tam bém foram explicadas pelas várias posições dos átom os nas superfícies dos objetos e sua influência na reflexão da luz. A últim a sensação era sem pre o tato, p o r interm édio do contato m aterial direto. Á tom os de líquidos eram redondos e deslizantes, enquanto que os de sólidos eram duros e adendos. O fogo e a alm a eram com postos por átom os esféricos m uito rápidos. Os átom os m ais finos, m ais perfeitam ente esféricos, m ais voláteis e m óveis form avam a alm a dos anim ais e dos hom ens. Os da alm a representavam um a força vital: tinham a capacidade de gerar calor e de criar m ovim ento. N a m orte, esses átom os deixavam lentam ente o corpo; p o r isso o cabelo e as unhas de um cadáver am da podem crescer. A ssim era o m aterialism o de Demócrito. Criou-se, por conseguinte, um a necessidade im periosa: p r e c i s a v a h a v e r e s p a ç o v a z i o p a r a o s á t o m o s m o v e r e m - s e . C om essa idéia, refutou a negativa de vácuo de Parm énides. A noção do vazio abre cam m ho para um a explicação adequada do m ovim ento, ao contrário do que im aginava Parm énides. H avendo espaço e um núm ero infinito de partículas, estas m oviam -se em todas as direções indistintam ente, o que ocasionava colisões, uniões e com binações, desde que os átom os tinham todas as formas. Formaram-se aglom erações de vários tamanhos, miciandose assim o m undo. Só não disse com o surgiram os átom os. Os atom istas não falavam em causas m otivas, com o as forças atrativas e repulsivas de E m pédocles, ou a m ente de A naxágoras. C riaram a idéia de vácuo com o sendo a prim eira realidade. Q uando um conjunto de átom os se separava, tendiam a gravitar juntos, ocorrendo um vórtice, o que form ava um a capa esférica contendo todo o U niverso. C om o não havia lim ite à extensão do vácuo nem ao núm ero de átom os, é possível que existissem m uitas bolhas esféricas, outros U niversos além do nosso, com diferentes tam anhos e conteúdos - um não tendo sol, outro não tendo anim ais - , que podiam colidir e destruir-se. O movimento dos átomos de Demócrito não cessava, era inerente, um a

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necessidade (hoje energia). É interessante que D em ócrito nâo tenha colocado peso nos átomos. Q uem fez isso foi Epicuro. Q uando E picuro reassum iu e desenvolveu a teo ria atôm ica quase dois séculos depois, im aginou os átom os cam do em linha reta, devido ao seu peso. Para explicar a prim eira colisão, entretanto, contrariou o estrito determ inism o da teoria original de D em ócrito e usou o recurso da ‘V ontade”. N um a fantástica dem onstração da acuidade intelectual helénica, im aginou que todos os corpos sólidos, m esm o átom os com tam anhos diferentes, caiam no vácuo com a m esm a velocidade, um fato só dem onstrado p o r G alileu no século XV II. D essas idéias, evidentem ente não com a visão de hoje, se originou a física atôm ica, que conserva a representação de um a concepção intuitiva profundam ente original (vide pág. 238). A t e o r i a a t ô m i c a d e D e m ó c r i t o - p r o v a v e l m e n t e a v is ã o m a is g e n i a l s o b r e o m u n d o f í s i c o s u r g id a d e u m a e s p e c u la ç ã o m e n ta l p u r a - n u n c a te v e u m f l u x o p e r m a n e n te n a c iê n c ia g reg a . F o i a c e i t a p o r E p i c u r o m a s s e u m a te r i a l i s m o i n e r e n t e n ã o s o b r e v i v e u p o r m u ito te m p o , s e n d o o b s c u r e c i d a p o r t e o r i a s e n v o lv e n d o a l m a s e v o n t a d e s im a te r ia is , c a p a z e s d e e x e r c e r d o m í n i o s o b r e u m a m a t é r i a c o r p o r a l c o n tín u a , n ã o a tô m ic a .

o A fase descrita, que vai do 7o até o 4o século a.C. representa o nascer do pensam ento racional no m undo ocidental e tem com o objetivo a descoberta dos m istérios da n atureza p ela razão. E a época da supremacia total do filósofo, em que o conhecimento global podia ser abarcado por um a pessoa. O s gregos foram fantásticos pensadores, cujas idéias ain d a nos assom bram . Foram os antecessores históricos dos renascentistas, separados por um a longa noite. Elitistas intelectuais por natureza, preocupavam-se com o m undo das idéias e menos com o m undo real. Para eles, verdade era apenas o que pudesse ser demonstrado pela lógica, com origem em axiomas, ou seja, fatos evidentes por si mesmos a partir dos quais novas verdades poderiam ser deduzidas. A in s is tê n c ia n a d e m o n s tr a ç ã o r a c io n a l c o n tr a p ô s - s e à d e m o n s tr a ç ã o e m p ír ic a , q u e ju l g a v a m d e q u a lid a d e in fe r io r . Faltava aos gregos um sistema de numeração que lhes perm itisse calcular em

vez de só registrar o resultado de suas atividades. Consideravam que a perfeição e a ordem só se encontravam nos céus, com os planetas e as estrelas as demonstrando pelas suas regularidades. Perfeição e ordem que serviam apenas para realçar a imperfeição e a desordem terrestre. N esse tem po, a F ilosofia reinava sobre o conhecim ento. Todas as outras form as m ais m undanas de saber, com o A stronom ia, M atem ática, Física, M edicina, A rquitetura, tinham que prestar-lhe contas. E m bora houvesse observação e conhecim ento prático em m uitos aspectos, não havia ciência fundam entada, que dem oraria m uito am da p a ra nascer. M as seu em brião encontrava-se ali situado, no pensam ento filosófico. E preciso adm itir que num estágio tão inicial de conhecim ento científico im punha-se o abuso do pensam ento especulativo, capaz de criar teorias que depois seriam trabalhadas. A ssim , a f i l o s o f i a d a n a t u r e z a o r ig in o u a c iê n c ia a t u a i . O s gregos usaram a observação, praticam ente n a d a de experim entação controlada. P o r q u e , c o m s e u b r il h a n t e in te le c to , n ã o f i z e r a m u s o d e e x p e r i m e n t a ç ã o c o n t r o l a d a é u m a p e r g u n t a d i f í c i l d e r e s p o n d e r . A valorização excessiva da m ente com o fonte de toda verdade,

a tradição aristocrática preconceituosa p a ra com a m anipulação, a im perfeição da representação num érica que dificultava os grandes cálculos, a presença de escravos p a ra tarefas m enos nobres e possivelm ente um a aptidão nâo despertada talvez tenham a ver com a explicação. T a m a n h a ê n f a s e n a m e n te , s e m c o m p r o v a ç ã o e x p e r im e n ta i, p r o d u z i u p o r v e z e s m i s t u r a d e f a t o s c o m f a n t a s i a s . C o n fia n d o ta n t o n o p e n s a m e n t o , o s g r e g o s ti n h a m q u e t e r u m a r e s p o s ta p a r a tu d o , m e s m o q u e f o s s e u m a m e r a c o n j e t u r a . E n t r e t a n t o , s e u g r a n d e l e g a d o s ã o o s e s p a n t o s o s p o d e r e s d e a b s t r a ç ã o e d e d u ç ã o m e n ta is . P o d e r e s tã o f a n t á s t i c o s q u e n ã o d e ix a r a m d e e s t i m u l a r e d e in s p i r a r to d o s o s p e n s a d o r e s q u e l h e s s u c e d e r a m .

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Prim eira Cisão entre Filosofia e Ciência: A ciência com eça pela medicina N o m icio: por serem concepções dependentes de fatos naturais: as fronteiras entre ciência e filosofia se m isturaram na m ente hum ana. E m ú ltim a a n á lis e , f i l o s o f i a é i m a g in a ç ã o e c iê n c ia é c o n s t a t a ç ã o . C o n s id e ra n d o os in te re s s e s e n v o lv id o s , u m a p o d e o b s c u re c e r a o u tra. Ao desenvolver-se crescente complexidade na vida e no conhecimento gregos, iniciou-se um a certa diferenciação entre filosofia e um a incipiente ciência. A ciência começou a nascer pelo crescimento da medicina e da matemática, coincidentemente por dois Hipócrates, de Cós e de Quios. O s prim eiros filósofos-cientistas prê-hipocráticos que praticavam m edicina eram artesãos itinerantes e form ados p o r tradição oral de geração p a ra geração. Pela m etade do 5o século a.C. esses artífices aplicavam m étodos em píricos de diferentes categorias, quando com eçaram a desenvolver-se grupos de ensino ou “ escolas m édicas'’, herdeiras tanto da tradição em pírica quanto dos conhecim entos m etafísicos de filósofos-m édicos, que tam bém usavam se dedicar à astronom ia, astrologia, geom etria, ou seja lá o que for. O intelecto grego não podia, porém, satisfazer-se só com a prática m édica; exigia um a teoria. B aseados em sistem as filosóficos m ais gerais, em ergiram vários sistem as de m edicina fundam entados em correntes filosóficas - por exemplo pitagonsm o e outras -, surgindo visões m édicas com o o dogm atism o, o pneum atism o, o em pirism o, o hipocrático. O pneum atism o opôsse ao dogm atism o, ao em pirism o e ao m etodism o. Ensinava um a idéia estóica de um a força vital provindo do ar. Concepções de doenças abrangiam teorias com plicadas envolvendo relações entre p n e u m a , calor e um idade dentro do corpo. O ecletism o foi um a seita que procurava reunir verdades de outras, num a seleção com pletam ente arbitrária por seus propagadores. A s afirmações de cada um a dessas seitas estenderam -se do 4o século a.C. até longe na era cristã. Querelas hipotéticas e puram ente teóricas, interm ináveis, entre as várias facções fizeram durante séculos com que os professores propusessem , os discípulos discutissem , os práticos disputassem e os pacientes esperassem. A escola hipocrática foi a prim eira a criar um sistema integrado de doutrma. A ntes do advento da escola hipocrática, propagava-se na G récia o culto a A s c l é p i o ( E s c u lá p io para os rom anos) - deus da M edicina -, filho do deus A p o i o com um a plebéia, que aprendera a arte de curar com o centauro O u i r o n i e , e que acabou fulm inado por um raio lançado por Z e u s , por ter-lhe roubado o poder sobre a vida e a m orte. O s tem plos dedicados a A s c l é p i o , dos quais restam várias ruínas - o m ais fam oso e conservado é Epidauro -, provavelm ente m spirados a partir da m edicina egípcia, foram os prim eiros hospitais, um a vez que lá eram recebidos os doentes. E stes seguiam orientações dietéticas e higiénicas gerais, num a espécie de interregno, enquanto os sacerdotes-m édicos recebiam , durante o sono, conselhos do deus da M edicina para serem aplicados em tal ou qual doente. Quando o deus estava surdo, o desgraçado voltava para m orrer em casa. Preponderavam os aspectos psicológicos e as recom endações sobre a prática de um a vida saudável. H avia lim itação ao uso de drogas nos tem plos - eram prescritas por m édicos em outros lugares - e não se realizavam cirurgias. Os favorecidos com as curas ofertavam presentes ao tem plo (e aos sacerdotes). D eve estar ai a origem dos honorários m édicos! N o fim do século V e início do IV a.C ., surgiram as escolas m édicas de Cnido e de Cós, a prim eira m ais dedicada à ginecologia e obstetrícia, e a segunda principalm ente à clím ca m édica. H ipócrates de Cós (460-375 a.C .), filho de m édico, aluno de H eródico de Selimbria, nascido de um a fam ília de sacerdotes-m édicos (dizem ser descendente de A s c l é p i o ), rom peu com o culto estabelecido, não visitou o Oriente nem o E gito (os estágios no exterior da época), tendo praticado sua m edicm a na ilha de Tasos e em cidades da Tessália. M ostrando que quem é bom nasce feito, fo i c o g n o m in ad o o "P a i da M e d ic in a ” e a fig u ra cen tral do que é cham ada a “E sco la

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H ipocrática”, que refugou a visão tem plista do curandeinsm o m ágico e: além dos postulados éticos, com eçou a dar à M edicina um a conotação de corpo integrado p o r disciplinas, indo do diagnóstico ao tratam ento e prognóstico. H ipócrates foi o prim eiro na M edicina que v i u e r a c io c in o u s o b r e o q u e \ i u : dispensando as lendas e buscando a verdade, claro que baseada nos conceitos da época. Instituiu a honestidade na m edicina, dizendo que im pressionar os pacientes é um dolo, recusando-se a u sar tratam entos que ju lg a v a desnecessários (m ensagem ainda atualíssim a). D eixou um corpo de doutrinas - C o r p u s H i p p o c r a t i c u m - de que fazem parte num erosos tratados: sobre as águas, os ares, os lugares, os pulm ões, o coração, o prognóstico, as fraturas, etc. Sua concepção sobre o funcionam ento harm onioso do organism o, e a relação deste com a natureza, foi inovadora. E m bora os hipocráticos utilizassem algum as abordagens não científicas p ela óptica atual, estabeleceram o hábito de exam inar o paciente, anotar os sintomas e achados físicos, fundam entar prognósticos baseados na experiência e tratar seletivam ente os pacientes com princípios naturais, dos quais sobressaíam os rem édios de origem vegetal. Criando, assim , o m étodo indutivo, baseado em resultados (a tão atual m edicina baseada em evidências), H ipócrates estabeleceu a importante m edida de instituir tratam entos precoces, term inando com o hábito egípcio de só agir depois do qum to dia (se o infeliz conseguisse sobreviver). Introduziu cuidados intensivos n a fase aguda da doença - repouso e alim entação adequados - e, em bora recorresse a purgativos, vom itórios, dietas de fome e sangrias, enfatizava a prescrição de banhos, m assagens, cam inhadas, bebidas de cevada, vinho e hidrom el, procurando m itigar a dor e reequilibar o organism o, de m odo que a cura natural pudesse acontecer. Essencialm ente contentava-se em lançar m ão dos recursos do clim a, da água, da dieta e do equilíbrio em ocional, deixando a natureza seguir o seu curso. A restauração do bem -estar m ental do paciente tam bém com petia ao m édico. A pós a cura, vinha o conselho de m oderação e equilíbrio em todas as circunstâncias (Figura 6). H ipócrates repudiou a noção de que as enferm idades eram castigos dos deuses, dizendo serem causadas p o r agentes naturais, com o o calor, o frio, o vento e o sol. Obviam ente, não conhecia os m icroorganism os e outros conceitos m ais recentes de m edicina mas m troduziu visões criticas e racionais num a área antes entregue à m agia e á superstição, sistem atizou a abordagem ao paciente, organizou prontuários com histórias clínicas, registrou sucessos e fracassos de tratam entos. C r ia n d o c o n d iç õ e s d e c o m p a r a r r e s u l t a d o s p a r a m e l h o r a r a e x p e r iê n c ia , j á f a z i a c iê n c ia . Em bora tenha sido o m trodutor dos registros m édicos no Ocidente, seu exemplo foi esquecido, só reaparecendo no século IX , no m undo m uçulm ano, e no século X V I, n a Europa. H ipócrates criou aforism os m édicos baseados na experiência: “A vida é breve, a arte é longa, a oportunidade é fugaz, a experiência é traiçoeira e o julgam ento é difícil”; “ O m édico deve estar pronto não som ente para executar sua m issão, m as tam bém p a ra se assegurar da cooperação do p acien te, dos a te n d e n te s e dos aco m p an h an tes”, e x p ressan d o a im p o rtâ n c ia da relação m édico-paciente. O juram ento de H ipócrates continua sendo a p e d r a d e t o q u e d a É t i c a M é d ic a , t ã o f r e q u e n t e m e n t e a fr o n ta d a .

Provavelmente a obra hipocrática completa é reflexo mais de um a escola que de um hom em isolado. Porém, a o t e r s id o H ip ó c r a te s o p r im e ir o a te s ta r p e l a e x p e r iê n c ia a c o n c e p ç ã o r a c io n a l d o s f iló s o fo s , desenvolvendo o “m étodo hipocrático” - conhecido como indutivo - e validando hipóteses, começou a separar, assim, a M edicm a - e com ela a Ciência - da Filosofia. A escola hipocrática observava os fatos, mantendo-se cética quanto ao inverificável, hesitante em teorizar além do constatável, porém pronta para generalizar a experiência. Ironicamente, contudo, proveio de Políbio, filho adotivo de Hipócrates, a “teoria dos hum ores”, idéia seguida dogmaticamente por m uito tempo.

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Figura 6 - Tal como a matemática com o mundo físico, a medicina de Hipócrates levou a ciência para a biologia. Hipócrates desprezou a hipótese de ser a doença castigo dos deuses, e associou-a a causas naturais, criando, pelo método indutivo, um sistema integrado de diagnóstico, prognóstico e tratamento, baseado em causas e efeitos. O bservando que o corpo hum ano contém vários fluidos, com o sangue, bílis, urina e outros, e que durante m uitas m oléstias aum enta a produção de secreções (corrim ento nasal, expectoração, purulência, vôm itos, diarréias, etc): e conjugando os efeitos dessas alterações sob um a óptica pitagórica, os hipocráticos as interpretavam com o m anifestações da ruptura da harm onia corporal (discrasia). Foram identificados quatro "hum ores corporais'' - sangue, bílis negra, bilis am arela e flegm a ou catarro - aos quais associaram -se as quatro qualidades dos quatro elem entos (secura, um idade, calor e frio). N um a pessoa saudável tudo estava equilibrado. Sendo m al distribuídas pelo corpo, a variação das proporções entre os com ponentes determ inava as doenças orgânicas. A terap êu tica ló g ic a era a drenagem dos excessos. D aí a origem das sangrias, punções, cataplasm as e sanguessugas, usadas até o século XX. D essas terapêuticas, m antém -se a punção para drenagem de abcessos e de derram es internos com pressivos e, em alguns casos, sangria para alívio de policitem ias extrem as. A s sangrias su rg iram da o b se rv a ç ã o de que m u ita s m u lh e res se n tia m -se m ais d isp o sta s d e p o is da m enstruação, cuja tensão pré-m enstrual atribuíam a excesso de sangue im puro, e não a alterações horm onais, que desconheciam . M ais tarde, no século II, Galeno adicionou a essa lista os quatro tem peram entos: sangüíneo (caloroso e agradável), fleum ático (calm o e apático), m elancólico (triste e deprim ido) e colérico (violento e explosivo). A tantos seduziu o núm ero quatro que logo foram enum erados os quatro órgãos principais do corpo: coração, cérebro, fígado e baço.

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C om o j á se reconheciam as quatro estações, prim avera, verão, outono e inverno, a v id a hum ana tam bém fo i fracionada em infância, juventude, m aturidade e velhice. O conceito dos vários “quatro" perm aneceu na m edicina pelo m enos até o século X V II, e m uitos desses term os são usados ainda hoje. O utra idéia hipocrática, ligada ao m etabolism o corporal, ressalta a im portância do calor com o m anifestação de vida, j á que a m orte é fria. Esse calor vai dim inuindo durante a vida: por isso, a febre nas crianças costum a ser m ais alta que nos velhos, estes m ais perto da m orte. Para g erar o calor indispensável à vida, existe um órgão: o coração. A escola hipocrática, fraca em fisiologia, utilizou conceitos m ais antigos sobre essa disciplm a. N a secção sobre o coração do C o r p u s H ip p o c r a tic u m , repetem -se as idéias de Em pédocles de que o coração é a origem do calor anim al, sede de um fogo m ato. O ar inspirado chegava no coração p ela veia pulm onar, onde se aquecia e depois era enviado p a ra todo o corpo pelas “artérias", cheias de a r (para ele, só as veias continham sangue). R econhecem -se as valvas átrio-ventriculares e a presença de sangue escuro e claro nas diferentes cavidades e afirm a-se que o coração é um órgão tão nobre e essencial que não pode adoecer, pois isso é incom patível com a vida. C onfunde veias com artérias e nervos com tendões. N o seu tratado D a R e s p i r a ç ã o im põe a idéia de que a respiração é um a seqüència de inspiração e expiração - ventilação pulm onar - resultante dos m ovim entos torácicos consecutivos aos do coração, para esfriá-lo, um a vez que, quanto m ais o coração se agita, m ais aum enta a ventilação pulmonar. H ipócrates de Q uios (c. 430 a.C .) resolveu o problem a da duplicação do cubo e encam inhou a solução da quadratura do circulo. D escobriu que um sem i-círculo sobre o segm ento de um a circunferência tem a m esm a área que um triângulo form ado p ela corda que une os pontos de intersecçào, e com ápex na ju n ção dos catetos em 90°. A lém de outras contribuições, provou que a área do circulo é igual ao quadrado do seu diâm etro. E ste H ipócrates costum ava u sar o m étodo m atem ático cham ado redução geom étrica, que consiste em reduzir um problem a a um m ais sim ples, resolvê-lo e a seguir estender a solução ao m ais com plexo. N ão se sabe se inventou tal m étodo ou se o aprendeu dos pitagóncos. O m ais im portante é que, p o r sua dedicação exclusiva e organização do raciocínio com o faziam os pitagóricos - m dependentem ente de considerações filosóficas ou religiosas -, é considerado o prim eiro especialista em m atem ática, tendo com pilado e sistem atizado o conhecim ento geom étrico grego de seu tem po, no trabalho E t e m e m o s d e G e o m e tr ia . Esquem a m ais form al e com pleto da G eom etria só surgiria com Euclides, m ais de um século depois. C o n s id e r a n d o o s d o i s H ip ó c r a te s , o m é d i c o e o m a te m á tic o , in te n s ific o u - s e a tr a n s fe r ê n c ia d a s c o n s e q u ê n c ia s d o p e n s a m e n t o in d u tiv o , r a c io n a l, p a r a o c o m p o r ta m e n to p r á tic o , a p lic a tiv o . C o m e le s , o c o n h e c im e n to c o m e ç a v a a d e i x a r d e s e r m á g i c o p a r a s e r te s ta d o , c o e r e n te . M a s a in d a le v a r i a m u ito te m p o p a r a m a te m á tic a e c iê n c ia s e r e m a c e i t a s c o m o a ti v i d a d e s c a p a z e s d e a j u d a r a e l u c i d a r a n a tu r e z a . A e x p lic a ç ã o f i n a i c o n tin u a v a p e r t e n c e n d o à f i l o s o f i a n a tu r a l. Q u a n t o à A s t r o n o m i a , e s t a p e r m a n e c i a r e p o u s a n d o s o b r e o s e n s i n a m e n t o s d e P itá g o r a s , E m p é d o c l e s e A n a x á g o r a s . F i l o l a u f o r a e s q u e c id o .

3. A É T IC A COM O DISCIPLINA lém da pura aplicação do pensam ento para explicar a ordenação do m undo, a crescente com plexidade social n a G récia deslocou o foco das considerações filosóficas p a ra o cam po da análise m tegral do hom em e de sua conduta. A próxim a fase dentro dessa cam inhada intelectual é um a das m ais brilhantes da H istória da hum anidade, pontificada pelos filósofos atenienses, Sócrates, Platão e Aristóteles.

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Sócrates e Platão: O hom em pode ser grande O nom e de Sócrates de Á tica (469-399 a.C.), esse pensador puro que não deixou nada escrito, paradigm a de grandeza hum ana, está associado não com a filosofia natural m as com a fantástica revolução do pensam ento que criou a ética hu m an a com o fonte de conduta e de estudo, transform ando a filosofia num m odo de vida. Suas idéias nos foram transm itidas por seu aluno Platão. A ntes de Sócrates, todos os sistem as filosóficos eram conflitantes, sem nenhum a análise crítica a uni-los, e de pouco m teresse p a ra a conduta hum ana. S ó c r a te s s u r g i u p a r a tr a n s fo r m a r a f i l o s o f i a e m a l g o p a r a u s o h u m a n o . C h e g o u p e rg u n ta n d o : “ O que é b o m ? ” , “O que é bem?”, “O que é certo?”, “O que é justo?”, “O que é coragem?” Quando alguém pensava saber responder um a pergunta, costumava desconcertá-lo com m ais outra, por exemplo: “O que distmgue coragem de teim osia?” Dizia não ter ensinamentos a oferecer, apenas perguntas a fazer. F eio, andava pobrem ente vestido e sem pre descalço, passando os dias discutindo tudo com todos. “T udo o que sei é que n a d a sei”, dizia Sócrates tentando desm oralizar os sofistas. Talvez p o r isso m esm o tenha sido reconhecido com o o hom em m ais sábio de Atenas, apesar de a cidade estar cheia de filósofos sofistas ricam ente vestidos, que cobravam p o r suas lições. A filosofia sofista ensina a arte do discurso, colocando a linguagem no centro da realidade. O objetivo m aior dos sofistas no tem po de Sócrates era ensinar oratória e argum entação, para v en cer discussões, em v e z de rev elar a verdade: devem ter sido os prim eiros advogados! Sócrates não os v ia como filósofos e classificou seus m étodos de artifícios superficiais. Entretanto, m u ito s véem n o s so fis ta s os p rim e iro s p ro fe s s o re s p ro fis s io n a is , n a m e d id a em que dessacralizaram a atividade intelectual. A filosofia grega carecia da noção de pecado, não se defrontou com intransponíveis problemas religiosos. Enquanto para um grego a virtude era a própria recom pensa, m ais tarde, um cristão devia ser virtuoso porque D eus assim determ inara. Para Sócrates, a verdadeira catástrofe pessoal consiste na corrupção da alm a; p o r isso é m uito m ais grave praticar do que sofrer injustiça. C om o nm guém deve praticar um erro conscientem ente, virtude é um a questão de conhecim ento. E o prim eiro a ensm ar a im portância da integridade p a ra com a própria pessoa - É tica H um ana -, não com leis, deuses ou autoridades. A p a rtir de S ócrates o v i n c u l o e n t r e o b e m e o c o n h e c i m e n t o t o r n a - s e u m m a r c o d i s t i n t i v o d o p e n s a m e n t o g r e g o . Sua influência originou m ais tarde as escolas estóica e cínica da filosofia grega, e m oldou toda a ética hum ana (vide pág. 53), de Jesus a Shakespeare. O s ensinam entos de Sócrates - “ conhecim ento é virtude” ou “ ignorância é o único m al” deslocaram a filosofia para valores m orais puros, com o honestidade, despretensão, prazer de v iver intelectualm ente, sendo que o triunfo da revolução socrática e a influência de suas idéias desviaram p o r algum tem po a atenção p a ra com a filosofia natural. Seu m étodo de perguntas e respostas m uitas vezes constrangia principalm ente políticos despreparados para suas funções (com o j á acontecia naquele tem po), os quais Sócrates, em nom e da honestidade intelectual, desm ascarava. Queria obter definições, encontrar a essência, e não apenas descrições para term os com o bem , belo, ju stiç a e sabedoria. Seu objetivo era destruir a farsa de um a educação adquirida sem reflexão, os preconceitos dissim ulados pelos sofism as, e substitui-la por um conhecim ento extraído de dentro do ser hum ano. Seu m étodo de questionam ento c o lo c o u a d i a l é t i c a - b u s c a r a v e r d a d e p o r u m p r o c e s s o d e p e r g u n t a e r e s p o s t a - n o c e n tr o d a f i l o s o f i a . E ssa técnica desde então tem sido usada com o m étodo pedagógico (m étodo socrático) e com o possibilidade de as p e sso a s se reex am in arem . P a ra S ó crates, o c o n h e cim e n to só pode s e r su ste n tad o p ela argum entação, sendo que, na ausência de argum entação aceitável, não h á conhecim ento. A ssim , a n o ç ã o d e p r o v a s u r g e c o m a f i l o s o f i a g r e g a e v e m a t r a v é s d o a r g u m e n t o . O riginada da esfera social, só m ais tarde a noção de lei extrapolou p a ra a ciência.

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A teoria das idéias de Sócrates teve origem n a geom etria pitagórica, considerando que, por m ais p ró x im o do ideal que possam ser traçad o s um triâ n g u lo ou um quadrado, só suas representações m entais e as relações dai surgidas podem ser consideradas perfeitas. Logo, só a m ente pode atingir a perfeição, sendo a representação sensorial hum ana necessariam ente deform ada, u m a cópia apenas aproxim ada da representação m ental. Sócrates coloca as idéias acim a da experiência, pela qual não podem ser contestadas, pois o p e n s a m e n t o é u m a v ir tu d e s u p e r i o r a o s s e n t i d o s . E, assim , um dogm ático. Para os dogm áticos, o pensam ento está acim a e não pode ser contraditado pela observação. Porém , é um dogm atism o discursivo, no terreno das idéias, e não im positivo, com o seria depois o de Platão. E m bora afirm e que nada sabe, considera que o conhecim ento está ao nosso alcance, dai a im portância de fazer perguntas, questionar sempre. O m aior m érito dos filósofos gregos que usaram o m étodo socrático fo i ter percebido com o se faz um a genuína educação, ou seja, não im pondo pretensas verdades ou asfixiando a critica, m as orientando o aluno a descobrir seu próprio caminho. Daí foi um passo para ser acusado de subverter a juventude e adorar falsos deuses, e ser condenado à m orte p o r m eio da ingestão de um a infusão de cicuta, um a planta venenosa. N ão apelou da sentença p a ra não se rebaixar e recusou-se a fugir. E m vez disso, recom endou que a cidade lhe desse um a refeição p o r dia e lhe erguesse um a estátua na praça principal. C om essa atitude, dem onstrou conscientem ente, pelo seu sacrifício, que a dignidade da vida tem valores éticos intrínsecos capazes de sobrepujar a m orte. Para não m orrer devendo dinheiro, pagou sua últim a dívida com um a galinha. N o discurso final, Sócrates lem brou que seus algozes se transform ariam em culpados e que, no fim das contas, o que aconteceu não fora um mal, pelo estím ulo que dava ao aparecim ento da verdade. A final, a m orte ou é um sono sem sonhos ou a v id a em outro m undo, onde se poderá conversar com seres lendários já desaparecidos e onde provavelm ente não m atarão ninguém p o r fazer perguntas (Figura 7). O m é to d o s o c r á t i c o o u g r e g o , e m q u e a s p e s s o a s s ã o le v a d a s a r a c i o c i n a r p o r s i m e s m a s , d is c u tir , d e b a te r , c r i t i c a r - e n ã o a p e n a s r e p e t i r o s e n s i n a m e n t o s -, p r o p i c i o u a m a i o r e x p a n s ã o d o s a b e r e a c e r t e z a d e q u e o c o n h e c i m e n t o p o d e c r e s c e r p o r m e i o d a c r ític a , s u a s u b j e t i v i d a d e m a n te n d o - s e i n a b a lá v e l n o s e i o d a i n t e l e c t u a l i d a d e e u r o p é ia c o m o m e io d e e x p l i c a r a n a tu r e z a , a t é a e m e r g ê n c ia d o o b j e t i v o M é t o d o C ie n tífic o , n o s é c u l o X V I I . D o c o n flito e n t r e S ó c r a t e s e o s f i l ó s o f o s n a t u r a i s e m e r g ir a m a s m a i o r e s v e r t e n t e s d o p e n s a m e n t o g r e g o , c o m s u a m o r r e d o u r a i n f l u ê n c i a a t é a é p o c a a tu a i. S i m b o l i z a n d o e s s a d ic o to m ia , s u r g i r a m d u a s f i g u r a s g ig a n te s c a s n o s é c u l o I V a.C., P la tã o , d i s c í p u l o d e S ó c r a te s , e A r is tó te le s , d is c í p u l o d e P la tã o .

A obra de Platão de A tenas (428-348 a.C .) pode ser considerada um a síntese das principais correntes de pensam ento do m undo helénico, recebendo grande influência das idéias dos jónicos e dos pitagóncos. Platão fundou a A c a d e m i a , que durou novecentos anos, num aprazível lugar próxim o a A tenas - origm ariam ente destinada ao lendário herói A c a d e m u s -, onde lecionou por q u a re n ta anos, p o d e n d o esta ser co n sid e rad a a p rim e ira U n iv e rsid a d e “p ó s-g ra d u a d a''. O term o A cadem ia, hoje significando lugar de aprendizado p a ra adultos jo v en s estudarem , deve seu sentido a Platão, que assim denom inou o lugar onde pessoas m aduras recebiam instrução. Platão m andou escrever sobre a p orta da A cadem ia: “N ão entre aqui ninguém que ignore a M atem ática", denotando sua reverência por Pitágoras. D o m atem ático A rquitas retirou a idéia de que o estudo da m atem ática - ao proporcionar conexão entre razão e conhecim ento é necessário p a ra todos os que aspiram a ser governantes. Platão fo i o prim eiro filósofo ocidental cujas obras escritas sobreviveram no original. Provavelm ente nenhum filósofo exerceu m aior influência que Platão, o que torna seus textos im portantes não só com o obra de filosofia m as tam bém com o os fundam entos da cultura ocidental. V iveu SI anos e publicou cerca de duas dezenas de D iá l o g o s , que estão entre as

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m aiores obras literárias e da filosofia da civilização ocidental. C riou um a diferença completa entre o espiritual e o m aterial, a o v e r o m u n d o r e a l c o m o a s o m b r a im p e r fe ita d e u m m u n d o i n v i s í v e l , cujos arquétipos perfeitos e eternos ( f o r m a s ) perm anecem apenas n a esfera do pensamento. Suas id é ia s são unidades inteligíveis hierarquizadas sob a égide do bem. A verdadeira beleza e a verdadeira coragem são i d é i a s eternas, indestrutíveis. A credita num a a l m a eterna provindo desse m undo ideal. R ejeita a doutrina de que verdade é sim plesm ente saber o que é certo, m as concorda com o m estre Sócrates em que o m aior dano é o dano à alm a, que é m elhor sofrer do que praticar injustiça, e no questionam ento em que nada é certo.

Figura 7 - Morte de Sócrates. Este filósofo-símbolo da grandeza pessoal não deixou nada escrito mas introduziu a noção perene de ética nas relações humanas, a ponto de mostrar por seu sacrifício que a verdade e o bem valem mais que uma vida sem honra. Foi mestre de Platão e inspirador dos estoicos, que tanto influenciaram o cristianismo. O idealismo platónico, que via a realidade como uma cópia imprecisa do mundo das idéias, foi a principal base filosófica do posterior imobilismo cristão diante de uma atitude experimental para compreender o mundo natural. E sse pensam ento sobre a m oral e os valores foi g e n e r a l i z a d o p a r a to d a a r e a l i d a d e , q u e c o n s i d e r a v a c o m o u m a c ó p i a im p e r f e i t a d e a r q u é t i p o s e t e r n o s e p e r f e i t o s . Sob a superfície im perfeita do m undo cotidiano há um a form a e um a ordem p erfeita expressa m atem aticam ente (influência pitagórica), não perceptível aos olhos, m as acessível à inteligência. O m undo do espaço e tem po é o único que nosso aparelho sensorial pode perceber ou apreender, porém , por serem os corpos físicos perecíveis, ‘'tudo está se tornando, nada é:\ A ssim , ao verm os um cavalo, observam os um exemplo im perfeito do cavalo essencial, pois esse cavalo envelhecerá e m orrerá m as, em qualquer fase, a idéia essencial de cavalo se ap licará àquele anim al. D essa m aneira, o m undo perceptível é um a pálida visão da verdadeira realidade - atem poral e im utável só atingível pelo pensam ento. A s alm as são nossas form as perm anentes e constituem a realidade últim a. Com o Pitágoras, adm ite a reencarnação; considera divinas as form as ideais, já que perfeitas. A ssim , em Platão, o ideal se confunde com o divino. Paradoxalm ente, o r e a lis m o p l a t ô n i c o é i n v i s í v e l e sustenta que os term os universais são coisas e vêm antes dos particulares

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que nom eiam , ou seja, as idéias sào m ais reais que os seres individuais e sensíveis, e s te s s e n d o a p e n a s r e fle x o s d e i m a g e n s e i d é i a s p e r f e i i a s .

Os idealistas acreditam que o m undo externo e m aterial é produzido p ela m ente ou pelas idéias, das quais nâo tem existência separada. Com o conseqüència, a r e a l i d a d e c o m e ç a d e n tr o d a m e n t e e n ã o f o r a d e la . O idealism o sem pre acom panhou a história do pensam ento e, com certeza, é a corrente que m ais a influenciou, pois, além de representar m uitas filosofias poderosas, está presente em praticam ente todas as religiões. Surgiu antes de Platão, encontrou neste sua m aior expressão, transm itiu-se a Hipácia, Plotino, B erkeley, Fichte, H egel e a outros filósofos e credos. G eorge B erkeley (16S4-1753), um bispo anglo-irlandés, dizia que só podem os ter certeza de que percebem os as coisas na nossa m ente e que acreditam os que existem fora de nós. Para ele, o m undo exterior constitui-se de puras idéias eternas com origem na inteligência ideal e divina. R efutando a crítica de que as coisas poderiam desaparecer se nâo estivéssem os olhando, disse que Deus percebia tudo e que isso era suficiente para a continuidade da existência. Segundo B erkeley, a idéia geral não pré-existe, é apenas um a com binação de sons associados de m aneira artificial com os atributos com uns a um grupo de objetos. O idealism o de Berkeley reveste-se assim de um subjetivism o absoluto, cu ja ú ltim a conclusão seria a crença só na existência do sujeito. Para ele, só o espírito representa a realidade e é fonte de experiência. A ssim com o Berkeley, o alem ão Johan Fichte (1762-1814) é o com pleto idealista ao reconhecer que, em vez de o conhecim ento ser derivado da realidade em pírica, o m undo em pírico é criação da m ente cognoscente. O tam bém alem ão George Friedrich Hegel, no século X IX , v iu toda a trajetória hum ana com o conseqüència de um determ inism o histórico conduzido p o r um a m ente cósmica, pensam ento que tanto influenciou depois K arl M arx para form ular suas teorias políticas. A ssim , o platonism o seduziu não só os idealistas m as tam bém os m aterialistas (vide pág. 265-6). O argum ento platônico de que o m undo real não proporciona um guia adequado p a ra o aprendizado da “verdadeira” ou “p erfeita” realidade - a qual só pode ser descoberta pelo pensam ento ou pela revelação - tornou-se, posteriorm ente, a pedra fundam ental do pensam ento cristão, a partir de São Paulo. Para Platão, observação e experim entação são i r r e l e v a n t e s e e n g a n o s a s n a b u s c a d o c o n h e c i m e n t o , e as teorias sobre o U niverso devem ser vistas nâo por seu poder de explicar ou predizer a natureza m as p ela capacidade de dem onstrar a perfeição divina. Elegendo a G eom etria com o exem plo de m étodo dedutivo, intelectual, daí decorreu a grande influência por ela exercida na época m edieval, em oposição ao m étodo indutivo, m ais e x p e rim e n ta l, c a p a z de o b se rv a r fen ô m en o s iso la d o s, ag ru p á -lo s e, a p a rtir dai, c ria r generalizações. O m étodo indutivo patm ou n a Idade M édia e só foi reabilitado por G alileu e B acon no século XV II. E m bora visto por m uitos com o o m aior filósofo da A ntiguidade, Platão teve um a linha de pensam ento voltada p a ra as questões políticas, éticas e de filosofia pura, com o seu m estre Sócrates, pouco cultivando a filosofia natural e não tendo acrescentado nenhum novo paradigm a a ela. A dm itia os quatro elem entos de Em pédocles, e suas visões astronôm icas deveram m uito aos pitagóricos, m as nâo a Filolau, pensando que a T erra era o centro im óvel do U niverso, em torno da qual giravam os dem ais corpos celestes. R ejeitava a teoria atôm ica, pois o U niverso, por ser divino - criado p o r um D eus uno e perfeito -, devia ser contínuo, único e dotado de alma. A dm irando a m atem ática, sem pre insistiu que a captação da verdade pelo intelecto era superior à captação pelos sentidos - a grandiosa visão dos gregos de que a pesquisa devia ser um a atividade filosófica, m ais im portante que as atividades m undanas de observar, registrar e experim entar -, um a concepção que, encam pada pelo cristianism o e seus dogm as, m uito retardou a criação da ciência.

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M uito m ais cientista que Platão foi seu aluno Eudóxio de Cnido (408-355 a.C.), m atem ático, m édico, teólogo, astrônom o e político, tam bém discípulo de Em pédocles. Entre outras façanhas, Eudóxio criou o m étodo de apresentar teorem as, cham ado de "euclidiano", dem onstrou que os núm eros irracionais dos pitagóncos são reais, criando relações perm anentes entre geom etria e aritm ética, e, através de seu m étodo de aproxim ação de áreas para determ inar um a superfície, lançou as bases do cálculo integral, desenvolvido dois m il anos depois p o r L eibm z e New ton. Porém , a m ais duradoura concepção de E udóxio foi a teoria das esferas hom ocèntricas e perfeitam ente concêntricas nas quais cada astro se fixa a um anel de esferas cristalinas que giram em eixos e velocidades diferentes (a L u a requeria trés esferas, cada um a inserida no interior da outra) e form am os m ovim entos aparentes dos corpos celestes no Céu. E ste sistem a elegante, cuja idéia foi depois aproveitada por A ristóteles (esferas de cristal), tornou-se o ponto de partida da A stronom ia tradicional, que teve um a duração de dezoito séculos, até ser derrubada por Copérm co, no século XV. Platão considerava que o m telecto devia governar as paixões p o r m eio da vontade, o que dá form a à constituição de sua sociedade. Para penetrar no m undo das idéias, o hom em deve ultrapassar a realidade distorcida e libertar-se de falsos atrativos e seduções. N ão confiava nos desejos e paixões, odiava, com o Sócrates, a busca do dinheiro e considerava o am or carnal e à fam ília subordm ados aos interesses do bem com um . N um dos seus D iá l o g o s , afirm a pela boca do personagem Sócrates que o verdadeiro am or não é físico m as a procura da verdade e do bem por duas pessoas. O "am or platônico:: é, assim , espiritual e não corporal e ju stifica a suprem acia da sociedade, do Estado, sobre o indivíduo, a ponto de sacrificá-lo. Platão, desiludido com a política tradicional que m atou seu m estre, "o hom em m ais sábio, justo e o m elhor entre todos que jam ais conheci", tentou a união entre o ideal político e a ciência autêntica, longe das idéias sofistas. Entre tantas, suas obras m ais fam osas são os D i á l o g o s , por onde nos transm ite m uitos conhecim entos sobre Sócrates, e a R e p ú b l i c a , em que expõe sua visão sobre a organização de um a sociedade ideal, estratificada de acordo com a capacidade das pessoas, em trabalhadores, em soldados e guardiães, e em filósofos, estes sendo os governantes - por serem sábios -, com m enor tendência á irracionalidade. N essa sociedade, onde as crianças seriam separadas dos pais após o nascim ento e educadas longe deles, os governantes arranjariam os casam entos, e a ganância desapareceria ao ser abolida a propriedade privada. C om o todo sistema centralizador de poder, tinha tudo para ser totalitário, estagnante e absolutista. Pioneiram ente, porém , defendia a m esm a educação para hom ens e m ulheres, por v e r em am bos igual potencial intelectual, um a concepção revolucionária para a época. Subjacente a essa proposição de ordenação social está a idéia de m icrocosm o - o pequeno m undo do hom em -, ecoando a m ultiplicidade do m acrocosm o, o m undo perfeito. E m bora nunca concretizado na prática p o r Platão, esse sistem a de idéias deu b a s e é tic a p a r a a h ie r a r q u i z a d a s o c i e d a d e c r i s t ã m e d i e x a l e depois, m diretam ente, p a ra regim es políticos totalitários, com o o m aterialism o m arxista. A elite intelectual da Igreja m edieval aproxim ou-se do ideal platônico, sendo com posta p o r m em bros selecionados por m érito e não por origem (em bora as m ulheres fossem excluídas), treinados dentro de um a filosofia oficial e excludente. O s m em bros dessa corporação não tinham fam ília e supunha-se que suas ações fossem voltadas para a m aior glória do todo e não m ovidas por am bições pessoais. M ais tarde, nos regim es totalitários em todo o m undo, a disciplina favorecendo o Estado (e seus com ensais) predom inou sobre o desenvolvim ento do indivíduo por seus próprios m éritos. O pensam ento de Platão tam bém o torna hostil às artes porque estas seriam a cópia da cópia, por m ais cham ativo que seja seu apelo aos sentidos. A s artes trariam apego a coisas ilusórias deste m undo, afastando-nos da autêntica beleza, que é a contem plação m ental da verdadeira

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realidade atem poral e não sensorial do além . D everiam ser banidas num a sociedade ideal. A s idéias de P latão: por serem produto do pensam ento e não da religião, conquistaram não só cristãos m as até irreligiosos. A pesar de ter sido um a concepção de sociedade nunca aplicada m teiram ente no m undo real, certam ente constituiu um germ e de totalitarism os posteriores. E ssa visão tem servido de justificativa para governos que tentam controlar ou excluir form as de expressão. N ão parece m uito diferente do ideal nunca concretizado das sociedades com unistas do século XX. C o m o o m u n d o r e a l, p a r a P ia iã o , é u m a to s c a c ó p ia d o m u n d o id e a i, a s e x p e r iê n c ia s p r o v i n d a s d a o b s e r v a ç ã o s e r ia m in ú te is . A s s im , o p l a t o n i s m o c o lo c a a i d é i a c o m o b a s e , c o m o fu n d a m e n t o d a r e a lid a d e . P l a t ã o t e v e m a is i n f l u ê n c i a s o b r e o d e s e n v o lv im e n to d o p e n s a m e n t o c r is tã o q u e q u a l q u e r o u tr o f i l ó s o f o n ã o c r is tã o . O g r e g o e r a a l ín g u a d a c u ltu r a n o m u n d o e m q u e J e s u s n a s c e u , e a f i l o s o f i a m a is c o n h e c i d a a d e P la tã o , s e n d o q u e o N o v o T e s ta m e n to f o i e s c r ito em g r e g o . H o u v e u m te m p o e m q u e e r a c o m u m a s p e s s o a s s e r e fe r ir e m a S ó c r a te s e P la tã o c o m o c r is tã o s a n t e s d e C r is to , m u ito s a c r e d i t a n d o q u e a m i s s ã o h i s tó r ic a d e s s e s d o i s p e n s a d o r e s f o i p a v i m e n t a r o c a m in h o p a r a a v in d a d o C r is to . A t r a v e s s a n d o o s te m p o s , o id e a lis m o e s tim u lo u o r a c io n a lis m o c a r te s ia n o .

Poderoso com o era, o platonism o ensejou posteriorm ente o desenvolvim ento de filosofias neoplatônicas - sem pre considerando o m undo m aterial m enos real que o m undo do espirito com o as de Plotino de Licópolis (201 -269) e H ipácia de A lexandria (3 70-415), que acreditavam na união final entre alm a e m ente da pessoa com “ O U no", um espírito universal perfeito, um a luz na escuridão. O neoplatonism o nasceu em A lexandria, com o resultado de um encontro de filosofias religiosas provenientes da Pérsia e da Babilônia, ritos egípcios e judaicos, todos tendo por base a cultura grega. Plotino, discípulo egípcio e não cristão das idéias de Platão, aprofundou o m isticism o do seu m entor e estabeleceu-se em Rom a, onde lecionou a elite. Em bora sem ser punitivo ou excludente, acabou influenciando claram ente o pensam ento de Santo A gostinho e de Santo Tom ás de A quino. Ensinava que, de acordo com as form as ideais de Platão, o que existe no flm é a m ente. Logo, tu d o , p a r a s e r c r ia d o , te m q u e s e r p e n s a d o . Existindo nos ensm am entos de Plotm o três níveis ascendentes de s e r , alm a (hom em ), intelecto (inteligência) e bem (D eus), os cristãos traduziram tal postura com o o m undo tendo sido criado na m ente de Deus, e que os seres hum anos devem buscar unir-se com Deus, o bem perfeito e supremo. O n e o p la to n is m o , s e m s e r p u n i t i v o n a o r ig e m , f o i a b a s e f i l o s ó f i c a d a I g r e j a m e d ie v a l.

C inism o, Epicurism o, Estoicism o, Ceticism o: O hom em é sem pre o mesmo A pós a m orte de Sócrates, por volta de 300 a.C., surgiram novas escolas de pensam ento em Atenas. Todas foram influenciadas pelo ideal socrático de busca do bem , do bom e da verdade. A f e l i c i d a d e p a s s o u a s e r p r o c u r a d a n ã o n o u tilita r is m o m a s n a c o n d u ta h u m a n a . E ntre tantos sistem as de pensam ento, as quatro principais escolas filosóficas surgidas depois da queda de Atenas refletiam a instabilidade e a insegurança de viver num a sociedade se esfacelando e movida por m teresses conflitantes. São o cm ism o, o epicurism o, o estoicism o e o ceticism o. Cinismo: Cínico significava “com o um cão”. H oje significa alguém com a pior opinião sobre as m otivações de outrem. Inspirados que foram pela doutrina socrática, os cínicos revelavam um a clara tendência de afastar-se dos valores m undanos. R epresentavam u m a espécie de anarquistas, desdenhando da autoridade constituída, e rejeitavam todas as convenções sociais. O prim eiro cínico fo i A ntístenes de A tenas (444-365 a.C.) que, na m eia idade, após a m orte de seu m estre Sócrates e da queda de Atenas, trocou um a vida convencional p ela contestação aos valores estabelecidos. O m ais fam oso cínico foi D iógenes de Sm ope (413-327 a.C.), discípulo de Antístenes, que ensinava serem a virtude e a sim plicidade os únicos cam inhos para a felicidade. Diógenes fazia questão de chocar tanto com seus hábitos anti-higiénicos quanto com suas opiniões.

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É fam osa a história de seu encontro com A lexandre, o G rande, que, penalizado pelo estado de pobreza do filósofo - m orando dentro de um tonel perguntou-lhe em que lhe poderia ajudar. “Sim, saia dai, está tapando o Sol”, respondeu-lhe o cim co. D izia-se “cidadão do m undo”, criando o term o “cosm opolita”. A agressividade que os cim cos dem onstravam reflete nenhum a vontade de integrar-se com a sociedade estabelecida. A creditavam que a diferença entre valores verdadeiros e falsos é a ú n ica que conta: todas as dem ais distinções, com o co n v en çõ es, b em público e p rivado, vestim entas, ostentações, nacionalidades, tudo é absurdo. A s a titu d e s d o s c ín ic o s r e p r e s e n ta m a m a is e v id e n te r e je iç ã o a o s v a lo r e s m u n d a n o s q u e f i l ó s o f o s j a m a i s c o n s e g u ir a m e x p r e s s a r . E s tã o n a b a s e d e to d o s o s m o v im e n to s d e c o n te s ta ç ã o so c ia l.

Epicurism o: E p icuro de A tenas (341-270 a.C .) queria libertar as pessoas do m edo criado pela ignorância e superstição. Seu lem a era “O prazer é o m aior bem ”, entendendo-se isso com o ausência de dor: aproveitar as coisas sim ples e descom plicadas da vida, relaxar, ter amigos, livrar-se das tensões e até das paixões. N um a época em que v iver era perigoso (hoje m ais ainda) ensinava às pessoas que felicidade consistia em b u scar o prazer sem preocupações e sem ostentações. Com o Epicuro era atom ista, seus seguidores, os epicuristas, acreditam que a vida depende de um a ju n ção aleatória de átom os que se separam após a m orte, sendo depois redistribuídos. Por essa razão, o epicurism o não tem e a m orte nem acredita em destino, pois enquanto existim os não há m orte e quando há m orte não existim os, m as o que fom os perm anece. Sobre a filosofia física de E picuro, o rom ano Cícero depois perguntava: “O que há na obra de Epicuro que não venha de D em ócrito?”. E fácil responder: a concepção genial de peso e choque dos átomos. Para Epicuro, os deuses estavam m uito distantes, sem se im portar com os hom ens, e “deles nada tem os a esperar e nada a tem er”. Com o Parm énides, Epicuro c o n s id e r a v a a r a z ã o h u m a n a o ú n ic o á r b itr o d a v e r d a d e . Já que a não existência é o nosso destino final, devem os fazer o m elhor na única oportunidade a nós oferecida. Surgiram com unidades p a ra abarcar esses ideais de liberdade, abrigando m ulheres e escravos, o que criou antagonism o p o r parte da sociedade dom inante. Os cristãos os rejeitaram pela sua negação da im ortalidade, da existência de um D eus próxim o e benévolo, e pela negação de valores repressivos. D e R e r u m N a t u r a , de Tito Lucrécio (95-52 a.C.), é um poem a didático, um a obra-prim a que preserva e introduz o epicurismo na cultura romana, em bora ele m esm o tenha se suicidado. Injustam ente, a palavra epicunsta passou a ser difam ada pelos contem porâneos estóicos, que a consideravam m aterialista, n ã o só p e l a s u a t e o r i a a t ô m i c a c o m o ta m b é m p o r a f a s t a r - s e d a r íg i d a r e s p o n s a b i l i d a d e s o c r á t i c a e p l a t ô n i c a . A sim plicidade de v id a pregada por Epicuro fo i depois desvirtuada pelos rom anos, ao

associarem o epicurism o ao hedonism o. T a lv e z p o r s e r e m o b r a d e u m ú n ic o p e n s a d o r , a s id é ia s e p ic u r is ta s tê m s e m a n tid o f i é i s a o o r ig in a l a o lo n g o d o s s é c u lo s . E u m p r e d e c e s s o r d o h u m a n is m o c ie n tific o e lib e r a l d o s é c u lo X X .

Estoicism o: O estoicism o, com seu severo código de conduta m oral, foi fundado por Zênon de Cicio em cerca de 308 a.C., que ensinava de um pórtico ( s t o a , em grego), ressaltando que a virtude leva a um a boa vida. Para ele, v iver virtuosam ente significava elevar-se acim a da paixão, da dor e do sofrim ento - refletindo sobre seus erros -, com o form a de aperfeiçoam ento. Com o para H eráclito, a substância origm al para Z ênon tam bém era o fogo, e a sociedade regida por leis. Com o tudo estava estabelecido, a coragem diante do sofrim ento, a renúncia e a indiferença deviam ser as conseqüências naturais. Para um estóico, o bem suprem o é a virtude porque um tirano pode tirar-lhe tudo, até a vida, m as não lhe pode suprim ir a virtude, o que m ais lhe im porta. A o rejeitar os bens externos, to r n a - s e liv r e p o r q u e s u a v i r t u d e d e i x a d e s o f r e r p r e s s õ e s .

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Foram os estóicos que desenvolveram a teoria das idéias inatas da m ente; evidentes por si m esm as: e ponto de partida de um racionalism o dedutivo que dom inou a filosofia m edieval e inspirou D escartes no século XVII. C onsiderando que a n atureza dera aos hom ens u m a boca e duas orelhas, seria m elhor ouvir do que falar. N este ponto, é bom lem brar que o u v i r é m a i s c i v i l i z a d o q u e f a l a r p o r q u e e x ig e m u ito m a is c o n te n ç ã o . A guardar a vez de falar, m anter a posição no grupo, esperar o interlocutor expor perguntas ou razões é um com portam ento seguido apenas pelas pessoas educadas e disciplinadas. O s estóicos recusam -se a ser governados por seus sentim entos porque, dizem , a s e m o ç õ e s s e to r n a m o b s tá c u lo s a u m b o m j u l g a m e n t o . C om o nada pode exceder a razão, a natureza é como se nos apresenta, abarcando tudo, inclusive o hom em . O espirito de racionalidade que im pregna hom ens e natureza é Deus. Sendo a natureza governada por princípios racionais, a é tic a d e v e s e r u n i v e r s a l . Em bora anunciada por Sócrates ao criar a É tica, o c o n c e i t o d e f r a t e r n i d a d e f o i p r a t i c a d o c o m o d o u tr in a , p e l a p r i m e i r a v e z , p e l o s e s tó ic o s . Não havendo motivo para rebelar-nos contra a natureza, surge um a atitude de serena aceitação, que influenciou m uito o cristianism o. U m a vez que a m orte e a adversidade estão fora do nosso controle, devem os enfrentá-las com resignação. Com o form a de evitar frustrações, decidiam querer só o que podiam ter. N a base dessa atitude existe um a certa im obilidade diante do m undo. O e s to ic is m o é a ú n ic a f i l o s o f a g r e g a c o m u m a n o t a d e r e s ig n a ç ã o . A creditavam que as em oções são juízos, um a form a de cognição. Por exem plo, a cobiça é um juízo falso. Acreditavam tam bém ser racional term inar com a vida num a situação sem saída. Com o a natureza é tudo, não há para onde ir após a m orte, apenas dissolverm o-nos de volta à natureza. A s crianças e sua educação tinham especial importância porque o futuro fazia parte de um plano divino. A o contrário dos rom anos epicuristas, representantes de um a elite decadente, o estoicism o rom ano atingiu todas as classes sociais. Séneca, m agistrado e poeta, m atou-se por não pactuar com os crim es de Nero, de quem era preceptor. Posteriorm ente, o im perador M arco A urélio (120-ISO) encarnou ideais estóicos, através de um a vida virtuosa, colocando os interesses do Im pério acim a dos seus. O estoicism o substituiu gradualm ente o epicurism o nas classes rom anas superiores e perm aneceu um m ovim ento organizado por cerca de quinhentos anos. Com ele e por ele, a civilização ocidental deixou de ser somente grega e tornou-se internacional, porque, pela difusão da cultura grega no Im pério de Alexandre, os prim eiros filósofos estóicos geralmente foram sírios, e os últim os eram quase todos rom anos. Excelentes histórias do estoicism o foram escritas no m undo antigo por Cícero, Diógenes, Laércio e Sexto Empírico. A o valorizarem o lado libertador do sacrifício influenciaram m uito a nascente ética cristã. N otadam ente Cícero discursava que o dom ínio dos im pulsos ilum inaria o espírito das castas dirigentes. Pelo fato de, nos últim os séculos, o m elhor da educação dos países ocidentais influentes ter base latina, várias gerações de europeus bem educados absorveram ensm am entos estóicos, com portam ento que se estendeu para a fam osa “ fleum a" britânica. Estóico, hoje, significa enfrentar adversidades sem se queixar. O s e s tó ic o s , p e l o s e u d o g m a tis m o , f o r a m o s p r i m e i r o s d e te r m in is ta s , n e g a n d o o l i v r e a r b ítr io e a c r e d i t a n d o e m u m a r a z ã o c ó s m i c a f u n c i o n a n d o n o U n iv e r s o , n a d a a c o n t e c e n d o p o r a c a so . V ê -se n o e s to ic is m o u m te r r e n o m u ito f é r t i l p a r a o d e s e n v o lv im e n to d a s id é ia s d e u m c r i s t i a n i s m o n a s c e n te .

C eticism o: A busca da certeza representa um anseio básico do hom em , tem sido o ideal m ais perseguido na H istória, e é a base das religiões. Porém , um certo ceticism o sem pre existiu na filosofia grega. N a últim a m etade do 6o século a.C., Xenófanes já se mostrava um cético, duvidando do conhecimento ao afirmar que opmiòes são criações humanas. X enófanes dizia que.

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em bora possam os aum entar um pouco nosso saber, jam ais poderem os ter certeza de atingir qualquer verdade final. Sócrates ensinava que só sabia que nâo sabia, em bora acreditasse que o conhecim ento era possível. A prim eira pessoa a fazer do ceticism o a base essencial de seu pensam ento fo i Pirro de E lida (365-270 a.C.), que servia com o soldado de A lexandre M agno e viajou por quase todo o m undo conhecido, o que lhe m ostrou a diversidade de indivíduos e opiniões, todas embasadas em argum entos que, para seus expositores, eram absolutam ente confiáveis. Pirro concluiu que tudo o que as pessoas fazem é tom ar as coisas pelo que lhes parecem e que lhes convém , podendo m udar de idéias segundo novas circunstâncias. C om o tudo se repete, M ichel Foucault, no século X X , usou esses m esm os argum entos p a ra m ostrar que a verdade histórica é um a q u e stã o de p o n to de v is ta (v id e pág. 2 6 8 ). O su c e sso r de P irro , A rc e sisla u de P itana (316-241 a.C .), adversário de Zénon, assum iu a A cadem ia de Platão, que perm aneceu sob o dom ínio dos céticos p o r duzentos anos. Sexto Em pírico, um escritor, em torno do ano 200, afirm ou "pelo ceticism o ...chegam os prim eiro â suspensão do juízo, e depois à liberdade do distúrbio”. N o século IY, São G regório denunciou-o, ju nto com Pirro, p o r infectar as pessoas com "a doença vil do ceticism o”, sem saber - ou sabendo, o que é pio r - que essa atitude m oderadam ente assum ida é o início de todo o pensam ento cientifico. D epois de Pirro ter sido denunciado com o anticnsto na Idade M édia, sua filosofia fo i redescoberta nos séculos X Y I e X V II, tendo significativa influência no desenvolvim ento da ciência e do hum anism o modernos. O m ais fam oso representante do ceticism o m oderno é o escocês D avid H um e (vide pág. 275) o qual, entretanto, atenuou-o ao dem onstrar que, para viver, estam os constantem ente tom ando decisões e, ao fazé-lo, julgam os e escolhem os algo acreditável, o que seria im possível se considerássem os todas as opções com igual ceticism o. A ssim , com o tudo, nosso ceticism o é relativo. H um e expressou as m quietantes perguntas e respostas: "D eus quer evitar o m al mas nâo o consegue? Então é im potente”; “ Consegue m as não quer? Então é m alévolo”; “Consegue o que quer? Então por que existe o m al?” Y oltaire tam bém explorou essa seara. O cristianism o responde que D eus dotou as criaturas de livre-arbítrio, com o um a provação para atingirem Sua verdade. H um e duvidava de saber quem somos, p o is sem pre se v iu em processo de sentir algo m utante, com o frio, calor, felicidade ou raiva. C onsiderando que podem os te r certeza racional de p o u c a s c o isa s, co m o a m ate m á tic a e as a firm a ç õ es a u to -e v id e n te s, p a ra e le to d o o conhecim ento ú til sobre o m undo vem do que experim entam os através dos nossos sentidos m ediado por um em pirism o elaborado p ela m ente -, nada nos garantindo que a experiência passada vá se reproduzir no futuro, com o o fato de um corpo pesado sem pre cair. A ssim , as “leis da natureza” s e r ia m a p e n a s e x p e c t a t i v a s in tr o d u z id a s n a s n o s s a s m e n t e s p e l o s s e n t i d o s . O ceticism o tem m uito a v e r com o m undo atual, em que, prm cipalm ente no século X X , a certeza foi banida da filo so fa , ao contrário do que fez supor D escartes até o século X IX . Como toda conclusão com eça necessariam ente com um a prem issa assum ida com o “Se”, tal conclusão só é válida para essa prem issa m as não pode ser generalizada com o verdade. A ssim , to d a “p r o v a ” r e p o u s a s o b r e p r e m i s s a s n ã o p r o v a d a s . Isso é verdadeiro na lógica, na m atem ática, na ciência e na vida diária. N o século X X , Karl Popper traduziu X enófanes e atribuiu a ele a prim azia da idéia de que todo o cham ado conhecim ento científico é m era conjetura, podendo ser sempre substituído p o r algo ainda m ais próxim o da verdade (vide pág. 27S). O c e tic is m o te m d e s e m p e n h a d o i m p o r ta n te p a p e i n a f i l o s o f i a d e s d e q u e s u r g iu , s im p le s m e n te p o r n â o p o d e r m o s t e r c e r t e z a d e o c o n h e c i m e n t o e s t a r c o m p le ta m e n te d is p o n í v e l s o b f o r m a d e a r g u m e n to , d e d e m o n s tr a ç ã o o u d e p r o v a ló g ic a . T o d a a c o n s tr u ç ã o d a c iê n c ia e s t á e r ig id a s o b r e a s u p o s iç ã o d e a e x p e r iê n c ia p e r m i t i r - n o s e n c o n tr a r u m a v e r d a d e c a d a v e z m a is p r e c is a .

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C o m o a c i ê n c i a e s t á in s e r i d a n a c u ltu r a , e s t a é a m a i s i m p o r t a n t e c o n d i c i o n a n t e d a q u e la . E m b o r a o g r u p o c ita d o d e e tic is ta s , e m q u e p o n t i f i c a m S ó c r a te s e P la tã o , n ã o te n h a in flu e n c ia d o s ig n if i c a t i v a m e n t e a f i l o s o f i a n a tu r a l, o d u r a d o u r o p a l c o p o r e l e s c r ia d o s e r v i u c o m o u m m e io a m b i e n t e p a r a d e s e n v o l v e r p a r a d i g m a s s o c i a i s q u e d e te r m in a r ia m c o m p o r t a m e n t o s c a p a z e s d e r e f i e t i r - s e n a s i d é i a s c r i s t ã s e n a s u a v i s ã o s o b r e a f i l o s o f i a n a tu r a l. N a q u e l e te m p o , t o d a a f i l o s o f i a n a t u r a l p o d i a s e r a b a r c a d a p o r u m a m e n t e p r i v i l e g i a d a ( h o je is s o n ã o é p o s s í v e l n e m c o m u m a e s p e c ia lid a d e ). U m in d iv íd u o p o d ia s e r fi l ó s o f o , b ió lo g o , m é d ic o , g e ó g r a fo , m a te m á tic o , a s tr ô n o m o . C h e g a m o s , a s s im , a A r is tó ie le s .

R EFER ÊN CIAS B IB L IO G R Á F IC A S D O CA PÍTU LO I 1. Bernstein P - D e s a fio a o s D e u se s. Editora Campus, Rio de Janeiro 1997. 2. Boorstin D - L e s D é c o ia re u rs. Editions Seghers, Paris 1986. 3. 4. 5. 6.

Bowker J - P a r a E n te n d e r as R e lig iõ e s . Editora Ática, Sào Paulo 1997. Brody D, Brody A - A s S ete M a io res D escoberta s C ientíficas d a H istória. Schwarcz, São Paulo 1999. Brumm C - A fo rism o s d e H ip o c ra te s. Typus, São Paulo 1998. Durant \Y - H is tó r ia d a F ilo so fia . Companhia Editora Nacional, São Paulo 1956.

7. E n c ic lo p é d ia D e lta L a ro u sse (2 0 v o lu m e s) - Editora Delta, Rio de Janeiro 2000. 8. E ncyclopedia e D iccionario In tern a cio n a l (20 vo lu m es) - Jackson, Rio de Janeiro, Nova York c. 1930. 9. Garrison FH - A n Introduction to th e H istory o f M edic ine (4 ed.). W B Saunders, Philadelphia and London 1960. 10. Guthrie WC - T h e G r e e k P h ilo so p h e rs. Routledge, London 1997. 11. Jung C - O H o m e m e s e u s S ím b o lo s. Nova Fronteira, Rio de Janeiro 1977. 12. Lindberg D - T h e B e g g in in g s o f W estern S c ien ce: The E u ro p e a n S c ie n tific T ra d itio n in P h ilo so p h ica l, R e lig io u s a n d In s titu tio n a l C o n text, 6 0 0 B C to A D 1 4 5 0 . University o f Chicago Press, Chicago 1992. 13. Lopes OC - A M e d ic in a n o T em po. Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo 1968. 14. Lyons AS, Petrucelh RJ (Ed.) - Medicine, A n R lustratedH istory. Harr.' N Abrams, New York 1987. 15. Magalhães R - A r te e C iv iliza ç ã o : P ré -H istó ria . Texto Editora, Lisboa 2000. 16. Magee B - H is tó r ia d a F ilo so fia . Edições Loyola, São Paulo 1999. 17. Mendelsohn E - The controversy over the site o f heat production in the body. P r o c A m P h il S o c 1961;105:412-420. 18. Morris R - U m a B re v e H is tó r ia d o In fin ito . Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro 1998. 19. Oliver M - H is tó r ia Ilu s tr a d a d a F ilo so fia . Editora Manole, São Paulo 1998. 20. Porter R ( f á ) - T n e Cam bridge Rlustrated History' o f Medicine. Cambridge University Press 1996. 21. Rosen G - Metabolism: The evolution o f a concept. J A m DietA s s o c 1955;31:861-867. 22. Russell B - H i s t ó r i a d o P e n sa m e n to O cidental: A A v e n tu r a d o s P ré-so crá tico s a W ittgenstein. Ediouro, Rio de Janeiro 2001. 23. Schuller D, Goettems M (Org.) - M ito, O n te m e H o je . Editora da Universidade Federal do Rio Gran­ de do Sul, Porto Alegre 1990. 24. Singer C - A S h o rt H istory' o f S c ie n c e to th e N in e le e n tth C entury \ Dover, New York 1997. 25. Trattner ER - A r q u i t e t o s d e Id é ia s. Editora Globo, Porto Alegre 1957. 26. Vickers B (Ed.) - O c c u lt a n d S c ie n tific M e n ta litie s in th e R e n a issa n c e . Cambridge University Press, Cambridge 1984. 27. Wilson G - O s G ra n d e s H o m e n s d a C iên cia . Companhia Editora Nacional, Sào Paulo 1963.

CA PITU LO II. EY ID EN C IA LISM O FIN A L IST IC O : TELEO LO G ISM O D e como a visào da natureza começa a ser valorizada, nascendo a observação sistemática e a ordenação do conhecim ento pela lógica de A ristóteles. O visível adquire sta tu s de realidade. A organização e sistem atização do saber estim ulam o surgim ento de escolas, cu ja m ais fam osa é a de A lexan d ria. C om o o con h ecim ento da natureza find a pela observação a olho desarm ado, surge a filosofia natural, versão antiga da ciência, que explica o m undo natural pelo visível, com base em “finalidades” (teleologism o). O aristotelism o sim boliza esta era, tendo como derivados o galenism o (Galeno) na medicina e o ptolom aísm o (Ptolom eu) na astronom ia. E stado do conhecim ento natural: Observação, sisíemarízaçào, classificação. E xplicação teleológica. 4. AR ISTÓ TELES E SU A FILO SO FIA N A TU R A L ristóteles de Estagira (3S4-322 a.C.), o m a is in flu e n te f i l ó s o f o - n a t u r a l d a H i s t ó r i a , nas ceu em Estagira, filho de N icôm aco de Estagira, um m édico do m onarca da M acedônia. Indo para A tenas aos dezessete, ficou na A cadem ia de Platão p o r quase vinte anos. C om os pés m ais fincados n a terra e deslum brado p ela natureza, rom peu com o idealism o de Platão, acreditando que tudo o que existe é m atéria e depende da m atéria p a ra existir, sendo a “form a” apenas parte da expressão da realidade. O m undo real está, assim , f o r a d a n o s s a m e n t e ,

A

q u e s e r v e p a r a p e r c e b ê - l o . O m a te r i a l i s m o d e A r i s t ó t e l e s é e x p r e s s ã o d a r e a l i d a d e m a s n ã o é i n a n i m a d o , pois toda a ordem do m undo é assegurada por um “M otor Im óvel”, e as suas

m anifetações de vida dependem de almas e vontades, sem pre evidenciadas p o r um a finalidade. Pupilo de Platão e tutor de Alexandre, O Grande, é considerado o m aior biologista não só da Antiguidade mas por dois mil anos, até a emergência de Lineu e Cuvier no século XV III (Figura S). E m 335 a.C. fin d o u seu L i c e u , num bosque consagrado a. A p o i o L i c e u : cujo sítio arqueológico foi descoberto em 1996. Perm aneceu em Atenas durante m ais doze anos, e A lexandre, O Grande, se não adotou seu antigo m estre por conselheiro, pelo m enos subvencionou-o nos seus estudos, provavelm ente a prim eira subvenção governam ental da história a estudos científicos puros. A pós a m orte de A lexandre, em 323 a.C., o filósofo foi indiciado por im piedade. Lem brandose do destino de Sócrates, fugiu da cidade, alegando que não d a n a a A tenas um a segunda oportunidade de p ecar contra a filosofia. M orreu no e x ílio m eses depois, com 62 anos. D as obras de A ristóteles, o que sobrevive são notas de leitura, escritas pelo próprio ou p o r seus discípulos, equivalentes a cerca de um quinto de sua produção total. M uito influenciou a cultura m uçulm ana prm cipalm ente por m eio de A verróis, e a cultura cristã prm cipalm ente p o r m eio de A lberto M agno e Tom ás de Aquino. N um a época em que alguém podia dom inar vários cam pos do conhecim ento, foi filósofo, físico, m etafísico, psicólogo, político, zoólogo, dram aturgo. C riou ou usou expressões como e n e r g i a , d i n â m i c a , in d u ç ã o , d e m o n s t r a ç ã o , s u b s t â n c i a , a t r i b u t o , e s s ê n c i a , p r o p r i e d a d e , a c id e n te , c a te g o r ia , tó p ic o , p r o p o s iç ã o , u n iv e r s a l. Sistem atizou a lógica, consagrando o método

dedutivo de validação da verdade. O term o grego “m etafísica”, significando "depois da física”, onginou-se de um livro de Aristóteles que, em suas obras completas, vinha depois daquele sobre Física. E sse term o denota o estudo das causas prim eiras e dos fins últimos dos fatos mais básicos da realidade, como tempo, espaço, substância, m ovimento, as chamadas c a te g o r ia s ou géneros mais gerais nos quais se mcluem os objetos que m oldam o pensamento. E de duvidar que qualquer

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outro ser hum ano tenha tid o tanto conhecim ento e tanta influência direta ou indireta n a ciência quanto A ristóteles. Para ele, s ó a e x p e r i ê n c i a ir a z c o n h e c im e n to , q u e d e v e s u r g i r d o e s tu d o d a n a tu r e z a . N esse sentido, é um predecessor dos em piristas do século X V II, com o Platão o foi dos racionalistas. Em pirism o é a doutrina segundo a qual todo conhecim ento tem sua origem na experiência a partir do dom ínio sensonal.

Figura S - Aristóteles - discípulo e depois antagonista de Platão o maior e mais influente filósofo natural da história, professor de Alexandre Magno, criou o método observacional, a lógica e a sistematização de um conhecimento que durou 2000 anos como verdade incontestável. Para Aristóteles, a busca da perfeição pela natureza era explicada pelo fmalismo ou teleologismo. V árias de suas observações são ainda válidas e algum as só foram confirm adas m uitos séculos depois de terem sido por ele descritas. Sua filosofia natural representa um sistem a integrado, u m a e s p é c ie d e s ín te s e d o p e n s a m e n t o c i e n t í f i c o d a A n t i g u i d a d e , em parte herdado e adaptado de pensadores anteriores, em parte elaborado por ele, prm cipalm ente no cam po da Biologia, classificando tudo o que podia. "H á algo de m aravilhoso em todas as coisas naturais", afirmava. Identificou m ais de quinhentas espécies anim ais e sustentava que a m aioria dos insetos nascia de geração espontânea a partir da terra em putrefação ou dos vegetais. Estudando a natureza, convenceu-se de que tudo busca a perfeição, desenvolvendo um a visão teleológica que extrai sua força da ordem dem onstrada pelo m undo natural. T al finalism o perfeccionista de Aristóteles foi a m arca de toda a sua concepção sobre o Universo, o que serviu posteriorm ente para alimentar idéias religiosas glorificando a criação divina. Pensava que o em brião hum ano era form ado só p ela sem ente do m acho e que a fém ea não contribuía para a procriação, a não ser pelo sangue m enstrual, um a sem ente sem alm a. A semente m asculina agia sobre a consistência do sangue m enstrual e desencadeava o desenvolvim ento do embrião. A o rotular a m ulher de “hom em inacabado", p o r não carregar a “sem ente hum ana", considerando-a ser incom pleto, doentia, com m enos dentes, m enores tam anho e força, com eteu, sem intenção, não só um erro biológico m as sociológico, que ajudou a inferiorizar a m ulher por séculos. M ais tarde, essa afirm ação apoiaria a história bíblica da criação de E r a a partir de um a costela de A d ã o .

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Os quatro elementos foram aceitos pela m aioria na Antiguidade e até a época m oderna como a base da constituição de toda a matéria, m a is d o q u e tu d o p e i a d u r a d o u r a in flu ê n c ia d e A r is tó te le s . Ao lado de admitir a formação de toda a m atéria pelos quatro elementos, ajuntou um quinto, o é te r : distm to do ar (qumta-esséncia ou meio em que se movem os corpos celestes). A lém disso, definiu dois pares de propriedades fundamentais opostas: calor e frio, secura e umidade. A cada elemento correspondiam duas dessas propriedades fundamentais, assim: fogo é quente e seco, ar é quente e úmido, água é fria e úmida, terra é fria e seca. Através das modificações das propriedades, criou a idéia de transmutação da matéria, que tanto influenciaria depois os alquimistas. Por exemplo, se fosse retirada a umidade da água por fervura prolongada, esta poderia transformar-se em terra. Tais idéias só foram destruídas por Lavoisier, no século XVIII. E m bora aceitasse a im ortalidade da alm a e a natureza divina dos corpos celestes, ao contrário de Platão, A ristóteles adm itia a existência só de um m undo, este que habitam os, tangível e não arquétipo, de inegável fascínio e deslum bram ento. A ristóteles criticou as f o r m a s de Platão por não explicarem com o as coisas m udam . A creditava que faziam parte da vida, não sendo um m undo separado. Para A ristóteles, a form a confere características à m atéria, transform ando-a num a substância, algo im utável, portador de qualidades, sendo a form a m ais im portante que a m atéria para produzir especificidade. D izer que as form as são substanciais im plica afirm ar que existem m dependentem ente de coisas particulares. Rejeitando o realism o platônico, desenvolveu um nom inalism o que afirm a serem os universais apenas nom es, os particulares vindo antes destes. Sustentou a existência de “ substâncias" diferentes, das quais a realidade é construída. Para A ristóteles, m atéria ou substância é potencialidade (p. ex. m adeira), form a é realidade (p. ex. cadeira), e alm a o que dá form a ou realidade aos seres vivos. Por exem plo, água tem a potencialidade de se transform ar em gelo ou vapor. A s coisas só o são pela sua estrutura: um a casa não é um a pilha de tijolos nem um m onte de sacos de cim ento mas um a estrutura detalhada que pode ser constituída de m adeira ou pedra. U m hom em m uda todos os dias mas ao longo dos anos contm ua sendo o m esm o hom em . A s espécies de anim ais, em bora com suas variantes internas, tém características reconhecíveis de estrutura e form a que as distinguem de todas as outras, apesar de serem feitas todas de carne, sangue e ossos. A ristóteles estabeleceu desde então que algo é o que é em virtude de sua form a. E ste tipo de argum ento de A ristóteles contra a crua idéia de que só a m atéria existe nunca fo i adequadam ente contestado. M as o que é form a? Para a form a assum ir a aparência final são necessárias quatro causas: m a t e r i a l (m árm ore); e fic ie n te (cinzel ) \ f o r m a l (aspecto da estátua ) \ f i n a l (vontade do escultor). Assim, para Aristóteles, o f i n a i i s m o é s e m p r e u m a v o n t a d e . M u d an ça ocorre quando o m aterial de algum a coisa adquire form a que não possuía. E m vez do m undo ideal de Platão, argum entou que a v i r t u d e r e a l c o n s i s t e n a m o d e r a ç ã o . A vida tem que ser equilibrada. A o contrário, a auto-m dulgência e a autoconfiança, com o a inibição, são prejudiciais ao caráter. Surge daí a doutrina do “justo m eio", o ponto interm ediário entre dois vícios. A teoria do justo m eio contem pla ideais de equilíbrio e harm onia herdados dos pitagóricos. Por exem plo, a generosidade é o m eio term o entre a prodigalidade e a m esquinhez; a coragem , entre a audácia e a covardia; o am or-próprio, entre a vaidade e a hum ilhação; a m odéstia, entre a bazófia e a tim idez. Com o conseqüéncia, a m oral de A ristóteles tende para o equilíbrio, não para a repressão. Sua frase “O hom em é por natureza um anim al político" quer dizer que este só encontra felicidade na vida em sociedade e não no isolamento. N essa época não ocorria a ninguém a possibilidade de governo por representação, porém, na política, esses conceitos sugerem que o com ando da sociedade se faça por um a classe m édia, e não p o r um a elite, com o aconselhava Platão, nem pelos “oprim idos", com o querem hoje os que os conduzem -

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tentando form ar um a nova classe de dom inadores criando, dessa m aneira, um equilíbrio d em o crático . A o p e n sa r que o E stado deve ser possibilitador, ou seja, to rn a r po ssív el o desenvolvimento do indivíduo e nâo tutelá-lo, sua visão política não é impositiva com o a de Platão. A a l m a ( p s ic h e em grego ou a n i m a em latim , daí a palavra a n i m a l ) é o principio peculiar que A ristóteles invoca para explicar fenôm enos vitais. E u m a s u b s iâ n c ia im a i e r i a i q u e d á f o r m a a o c o r p o . A credita que a alm a trabalha para um fim e que a e s s e f m a l i s m o e s iã o s u b o r d in a d a s io d a s a s a ç õ e s a n i m a i s . Para ele, t u d o n a n a t u r e z a j á s u r g i u p r o n t o , c o m u m a f i n a l i d a d e b e m d e f i n i d a , nem pensando em evolução. E então vitalista ( y i t a = vida em latim , os fenôm enos vitais estando indissociados da alm a) e teleologista ( t e i o s = fim, objeto, em grego, to d a vida tendo um a finalidade). Por exemplo: “Por que cresce um a sem ente de carvalho? Para pro v er a h u m an id ad e de m a d e ira '’. O tip o de alm a de q u a lq u e r o rg an ism o co rre sp o n d e às suas necessidades, ou seja, na biologia, a função explica o órgão. A ssim , a alm a nâo tem existência separada, no que discorda do seu m estre Platão e do cristianism o prim itivo que, através de Santo A gostinho, copiou m uito de Platão. Para A ristóteles, a alm a tem form as crescentes de v alor, com o v e g e t a t i v a (nu tritiv a e rep ro d u tiv a), a n i m a l (m o to ra e sen sitiv a) e r a c i o n a i (consciente e intelectual, peculiar ao hom em ). A alm a hum ana é im ortal por ser capaz de sobreviver à m orte através do pensam ento e da razão. Sendo vitalista e teleologista, acredita que um S e r suprem o construiu as partes do corpo para m elhor preencher suas funções. Com o, no m undo de A ristóteles, tudo tem um a posição certa, o deslocam ento dos corpos é explicado pela busca do seu próprio lugar pelos quatro elem entos: assim , as coisas m ais pesadas (portanto, com m ais terra) caem m ais rapidam ente; a água se espalha pelo chão com o se tivesse sido derram ada porque seu lugar é a superfície da terra; o vapor sobe porque o lugar do elem ento a r é em torno da terra; as cham as quennam p a ra cim a porque o elem ento fogo fica em um a esfera m uito além das nossas cabeças. A pesquisa incansável sobre o m undo ao seu redor levou-o a desenvolver o p r i m e i r o s i s t e m a d e l ó g i c a d a f i l o s o f i a o c i d e n t a l : tendo-o com o a principal ferram enta p a ra chegar à verdade. A lógica aristotélica é do tipo sujeito-predicado, e, com o resultado da autoridade de A ristóteles, o silogism o perm aneceu p o r dois m il anos como o único argum ento reconhecido pelos lógicos. A plicados na ciência a partir de um axiom a, dispensariam com provação objetiva. A ssim , o c o n h e c i m e n t o c i e n t í f i c o n a tr a d iç ã o a r i s t o t é l i c a b a s e i a - s e e m s i l o g i s m o s a b s o l u t a m e n t e l ó g i c o s , cujas prem issas devem provir de verdades naturais observadas e incontestáveis, evidentes; p o r exem plo, o Sol nasce e se põe, a água m olha, etc. U m silogism o ê um a conclusão irrefutável fundam entada em prem issas, como: "O hom em ê mortal; João ê homem; logo, João ê m ortal". Sintetiza um pensamento que, por falta de alternativas posteriores, dommou prmcipalmente os mundos cristão e m uçulmano por dois m il anos. N a época de A ristóteles, a ú n ic a c i ê n c i a o b j e t i v a e r a a M a te m á tic a , m a i s e s p e c i f i c a m e n t e a G e o m e tr ia , vindo depois a A stronom ia porque a explicação dos m ovim entos dos astros dependia da prim eira. A pesar de várias concepções erradas p ela óptica m oderna, A ristóteles foi um observador - quase nada experim entador - ao contrário de seu m estre Platão, cujos ensm am entos eram m ais m ísticos e m etafísicos. Com o vim os, Platão colocava o raciocínio lógico acim a da observação e da experim entação, sendo um dogm ático na im posição de idéias e princípios. Pode-se dizer que Platão pensava e A ristóteles pensava e observava, m as pouco experim entava e não quantificava. Entretanto, reuniu, ordenou e sistem atizou todo o conhecim ento até o seu tempo. A o criar a observação ju nto com a classificação sistemática, to r n o u - s e o p r i m e i r o c ie n tista , p a s s a n d o d o m ito p a r a a p r o to c iê n c ia .

Começando pelo estudo da Biologia, estendeu sua concepção da natureza de tal m aneira que acabou p o r co nceber um sistem a integrado p a ra explicar o m undo, um a obcessào eterna

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do hom em . Entretanto, as concepções físicas e astronóm icas de A ristóteles não seguiram seu profundo conhecim ento e experiência na biologia, cam po onde ainda sobrevivem alguns ensinam entos seus. Paradoxalm ente, f o r a m e s s a s c o n c e p ç õ e s f í s i c a s e a s tr o n ô m ic a s q u e m a is im o b iliz a r a m a c iv iliz a ç ã o p o r s é c u l o s . Com o Platão, Aristóteles m ostra algum as tendências pitagóricas. Considerava a esfera a figura perfeita - segundo a qual o m undo era m odelado -, m otivo pelo qual concebeu o Universo com o um a série de esferas cristalinas concêntricas rodando ao red o r da Terra. E xplicava que quanto m ais longas, m ais perfeitas eram as esferas. Quanto m ais próxim os da Terra, m enos perfeitos os fenôm enos. Girando em torno da Terra, estava o circulo da atm osfera, sublunar, onde o m ovim ento dos corpos era im perfeito, não esférico. A s sombras defeituosas sobre a L u a (m anchas lunares) não provavam m ais que sua proxim idade terrestre. Por fora, em ordem de densidade, havia exalações da terra, água, ar e fogo. Com o vem os, sem pre os quatro elem entos. A s esferas dos elem entos eram inacessíveis e constituíam o Céu. A lém da esfera do fogo ficava um a região da substância m isteriosa ou é t e r (brilhante, em grego), com posição dos corpos celestiais. A inda além , estavam em sucessão as sete esferas dos cham ados planetas (Lua, Sol, M ercúrio, V énus, M arte, Júpiter, Saturno) e p o r fora a esfera das “estrelas fixas”. Finalm ente, depois de todas, a esfera da “D ivina H arm onia", onde se situava o M o t o r I m ó v e l d o U n iv e r s o , causador da revolução circular de todo o sistem a celestial. Esta fo i a base do sistem a que controlou p o r dois m il anos a visão do hom em sobre o Céu. R essaltam -se com o p ilares do pen sam en to de A ristó te le s: 1) A m a t é r i a é c o n t í n u a . N este ponto, aliou-se a Sócrates e Platão contra os seguidores de D em ócnto e Epicuro. A teoria atôm ica da m atéria, por ser “m aterialista" ficou esquecida p o r m uitos séculos; 2) T o d a s a s c o i s a s d o m u n d o s ã o f e i t a s d o s “q u a t r o e l e m e n t o s " de E m pédocles, terra, ar, fogo e água, as quais contém as “quatro qualidades", calor, frio, secura e um idade, em com binação binária. E a expressão aristotélica da concepção p itag ó n ca de os corpos dividirem -se em estado de amor ou ódio; fogo, p o r exem plo, é oposto à água m as aliado ao ar. A doutrina dos quatro elem entos foi praticam ente inquestionada até o 17! século e durou até o fim do 18° - quando L avoisier a destruiu - porque ajustava-se bem ao pensam ento cristão e m uçulm ano, tornando-se parte da ortodoxia teológica m edieval; 3 ) A T e r r a é e s fé r ic a e im ó v e l , e isso pode ser visto tanto por meio de um navio desaparecendo no horizonte quanto pelo deslocam ento das estrelas quando se ruma do norte para o sul ou quanto pela projeção da som bra da Terra na Lua durante um eclipse. A T erra tm ha que ser o centro do U niverso porque aí ficava a m atéria m ais pesada, fria e escura. R efutou a idéia do giro terrestre com o argum ento de que a força dos ventos form ados criaria instabilidade para os seres sobre sua superfície. Estrelas e planetas m oviam -se em velocidade circular uniform e (surgindo o dia e a noite) nas esferas cristalinas ao redor da Terra, um a vez que não lhe era aceitável um a explicação m atem ática para o m ovim ento astronômico, com o Copérnico, G alileu e N ew ton dem onstraram depois. C ada esfera era sujeita à influência das outras, m ais um a concepção de origem pitagórica. Para m over o Universo havia o “M otor Im óvel", esse sim não explicado pela razão hum ana, resvalando da ciência para a intervenção divina. E ste esquema, com algumas m odificações, durou até o tem po de Kepler, no 17° século. E interessante notar a ju sta objeção de A ristóteles contra o m ovim ento da T erra porque, se esse ocorresse, produziria aparente m ovim ento entre as estrelas fixas. Entretanto, isso não podia ser percebido a olho desarm ado. Só no século X IX foi dem onstrado o m ovim ento interestelar; 4) O C é u é p e r f e i t o e im u tá v e l. A ssim considerando, concedeu que na esfera inferior, abaixo da L u a e próxim o à Terra, ocorriam as irregularidades e imperfeições, com o “estrelas cadentes"ou m eteoros e cometas. N ão p o d e ria m s e r c o rp o s c e le ste s v e rd a d e iro s, p o r serem e fé m ero s e só ex istire m na região sublunar. F aziam parte desse m esm o esquem a, as chuvas, os v en to s e as nuvens.

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O m ovim ento circular, perfeito, representava a eterna ordem imodificada dos céus. Isto contrastava com o m ovim ento retilíneo que predom m a na nossa imperfeita e cambiante Terra. N ova influência pitagórica. A base da concepção é que, enquanto os corpos celestes parecem girar ao nosso redor, os corpos na T erra tendem a cair ou subir. O m ovim ento tinha ‘'causas naturais" (caía devido ao seu peso ou subia devido à sua leveza), “forçadas" (levantar um peso ou lançar um a flecha) ou “voluntárias" (vontade das pessoas). A té N ew ton dem onstrar, no século XY II, os m ovim entos dos corpos celestes e a lei da gravitação universal em term os m atem áticos, as diferenças de com portam ento dos corpos celestes e terrestres perm aneceram paradoxais: 5) O U n iv e r s o é lim ita d o , n a m edida em que está contido dentro de um a esfera exterior. A limitação do U niverso no espaço e no tem po foi necessária para todos os sistemas teológicos na Idade M édia, sem questionam ento até a época de Giordano Bruno, o qual fez retornar a concepção de um Universo infinito no tem po e no espaço, um m arco na história da ciência. Considera-se hoje que pode ter sido criado m as se m odifica, é ilim itado no tem po m as não pode ser destruído como um todo; 6) E x is te m t r a n s m u ta ç ã o d a m a té r ia e g e r a ç ã o e s p o n tâ n e a d e s e r e s , pensam entos que só foram destruídos cientifícam ente por Lavoisier no século X Y III, com a criação da Quím ica m oderna, e por Pasteur no século X IX , com a identificação dos m icroorganism os, e depois de conhecer-se a existência de esperm atozóides e óvulos, e as bases da genética. N a m edicina, A ristóteles adm itia, com o H ipócrates, a existência de um p n e u m a : sopro, calor inato, e participante da alm a se deslocando através das “veias". Segundo ele, coração e veias continham sangue m as as artérias e vasos pulm onares som ente ar, e não pertenciam ao sistem a circulatório. A s aurículas eram vistas com o foles p a ra bom bear o a r dos pulm ões para os ventrículos. D epreendera de suas dissecções que o sistem a arterial era duplicado pelo venoso e, com o H ipócrates, os confundia. Com parava a irrigação do corpo pelo sangue com a irrigação de jardm s por um sistem a de canais que se dispunham em paralelo, sem se encontrar. A ssim , o sangue andava para a frente e se consum ia nos tecidos mas não circulava. D escreveu a prm cipal artéria saindo do coração e a ela deu o nom e de a o r t a m as associava as veias do fígado com o braço direito, e as veias do baço com o braço esquerdo. A s expansões sofridas pelo liquido n u tritiv o e p e lo a r n a s c a v id a d e s e x p lic av a m o ch o q u e do co ração e o p u lso a rte ria l. C om o resultado de suas investigações em em briologia, concluiu que “o coração é o prim eiro a viver e o últim o a m orrer" dos órgãos do corpo, quando cessam seus latidos, nele colocando a sede da alm a, um a concepção que se m anteve até a Idade M édia e foi corrente até o século X Y III. Em bora, no sexto século antes de Cristo, A lcm eon de C ró to n ajá tivesse colocado a sede da inteligência no cérebro, A ristóteles localizou-a no coração e desenvolveu o conceito de Em pédocles de que o coração era a fonte do calor mato e que o cérebro servia só para esfriá-lo, por m eio de um a secreção de flegm a. C onfundia nervos com ligam entos e tendões, para os quais os gregos usavam os m esm os term os. A visão de A ristóteles opunham -se os dem ocritanos, seguidores de D em ócrito, o qual ensinava m tuitivam ente, hipoteticam ente, serem todas as ações dos organism os vivos resultado da interação de átom os. C om o j á visto, essa teoria atôm ica da m atéria dizia que os átom os diferiam um dos outros som ente em form a e tam anho, de m odo que todas as substâncias e seres seriam com posições e arranjos tem porários de átom os que, ao se separarem e se unirem , po d eriam o rig in a r outras substâncias e outros seres com qu alid ad es diferentes, e assim índefím dam ente. Com o, para D em ócrito, a vida era form ada a partir dessas unidades inanimadas, p o d e r i a m e x i s t i r c a u s a s m e c â n i c a s e d e t e r m i n í s t i c a s p a r a e x p l i c a r f e n ô m e n o s n a tu r a is , i n c l u i n d o o r g a n i s m o s v i v o s . A teoria atôm ica de D em ócrito, a ú n ica alternativa à teoria

“elevada" de A ristóteles, fo i ignorada na Idade M édia e vista erradam ente com o m ecam cista e materialista, negadora da existência de Deus, gerando cego combate a ela. O conflito entre essas

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idéias continuou até o século X IX , quando o vitalism o foi sepultado com o teoria científica, por m eio da dem onstração de que substâncias orgânicas podem ser sintetizadas em laboratórios e utilizadas pelos organism os vivos (vide pág. 239). T e o fra sto de Ereso (c. 371 A C), aluno que trabalhou com A ristóteles por m ais de vinte anos, dirigiu o L iceu nos 35 anos seguintes e fo i m estre de Erasístrato, dedicou-se especialm ente â botânica, campo em que produziu m uitos avanços. Questionou a “força m o tn z :: do Universo: Por que uns corpos celestes m ovem -se m ais rapidam ente que outros?; Por que a rotação desses corpos não ocorre na esfera sublunar? Respostas que só foram dadas m uito depois por Copém ico, G alileu, K epler e N ew ton. A hum anidade preferiu as idéias do m estre equivocado às do aluno com razão. A a n a lo g ia f i l o s ó f i c a q u e A r i s t ó t e l e s f a z i a e n t r e a s r e g r a s d o C é u e d a T e r r a - a s p e c to s c e le s te s ( T e r r a n o c e n t r o d o U n iv e r s o e s fé r ic o ) , m o r a i s ( a lm a s c o m v a l o r c r e s c e n te ) e b io ló g ic o s (fin a lis m o o r g â n ic o ) r e la c io n a d o s o r d e n a d a m e n te - r e p r e s e n to u u m a p e lo p a r a a I g r e j a C a tó lic a , q u e v i u s u a f i l o s o f i a n a t u r a l c o m o a ú n i c a v e r d a d e ir a . E m b o r a d e i x a s s e m u i t o s s i s t e m a s im p o r ta n te s d e la d o , q u e d e p o is s e m o s tr a r a m m a is c o e r e n te s , c o m o o d e D e m ó c r ito , f o i o q u e p r e d o m i n o u p o r d o i s m i l a n o s , p o r s e r o r d e n a d o e te le o ló g ic o . A l é m d e m u ita s d e s s a s id é ia s t e r e m v in d o d e f i l ó s o f o s a n te r io r e s , a im o b i l i d a d e d a c iê n c ia p o r ta n t o te m p o n ã o f o i c u lp a d e A r i s t ó t e l e s e s im d a m e n ta lid a d e te o ló g ic a d a é p o c a , q u e v i a o m u n d o p r o n t o e a c a b a d o . U n in d o a s i d é i a s d e A r i s t ó t e l e s c o m v is õ e s r e lig io s a s f a n á t i c a s , f e c h a r a m a q u e s tã o e a p o s s i b i l i d a d e d e q u a l q u e r d is c u s s ã o s o b r e a s m e s m a s . E n tr e ta n to , p o r n ã o s e r d o g m á tic o , c e r t a m e n t e e s s e f a n t á s t i c o p e n s a d o r e s ta r ia p r o n t o a a p r e n d e r n o v a s id é ia s e a r e d i s c u t i r a s a n tig a s . o O c o n h e c im e n to a r is to té lic o é o p o s s í v e l e o c o m p le to n o e s tá g io d e c u ltu r a e m q u e A r is tó te le s v iv e u . Seus ensinam entos foram m antidos vivos pelo m undo árabe, que os trouxe de retorno â

Europa durante a alta Idade M édia. Sua física ruiu com G alileu, sua biologia e sua lógica persistiram até o século X IX , m as alguns aspectos biológicos, sua filosofia política, m oral e sua estética são válidas ainda hoje. A s visões platónica e anstotélica se perenizaram porque, reunidas de m aneira tão coerente quanto possível pelo filósofo alem ão Kant, no século X V III (vide pág. 258), um a enfatiza aspectos que a outra subestima. E m bora A ristóteles tenha sido um grande biologista e racionalista, para um a sociedade d o m in ad a p o r id éia s relig io sa s d o g m áticas - e p o rta n to im ó v e is -, os fu n d am e n to s da racionalidade an sto télica, baseados em "alm as", “vontades", “perfeições" e teleologism o, ajustavam -se perfeitam ente. Foi o suficiente p a ra o p o d er religioso e p o lítico dom inante transform á-la em conhecim ento oficial, pararreligioso. Os outros dois sistemas m ítico-científicos que o acom panharam e praticam ente fecharam não só o conhecim ento, mas a ideologia das ciências naturais da época, foram o ptolom aism o e o galem sm o, am bos m antendo o teleologism o com o base. Claro, c o m o D e u s f a r i a a l g o q u e n ã o f o s s e b e lo , p e r f e i t o , e c o m u m a f i n a l i d a d e ? M ais u m a vez as idéias dos gregos - de ordenam ento a partir do caos prim itivo - estavam na base desse pensam ento. O a r i s t o t e i i s m o c o lo c o u a e x p e r i ê n c i a c o n c r e t a e s e n s í v e l c o m o b a s e d o c o n h e c im e n to . C o m A r is tó te le s , a c i ê n c i a p a s s o u a s e r o b s e r v a ç ã o e s i s te m a tiz a ç ã o , p r a t i c a m e n t e n a d a d e m a te m á tic a , e x p e r i m e n t a ç ã o o u p r o v a . O e n o r m e v a l o r d o p e n s a m e n t o d e A r i s t ó t e l e s é te r e le v a d o a o b s e r v a ç ã o e m p ír ic a d o m u n d o a u m p a t a m a r d e c o n f i a b i l i d a d e n ã o a d m i t i d o p e l o id e a lis m o d e P la tã o . A l ç o u a p e r c e p ç ã o h u m a n a à c o n d iç ã o d e f i l o s o f i a n a t u r a l e a s s im tr o u x e u m fo r m id á v e l a v a n ç o em d ir e ç ã o a o p e n s a m e n to c ie n tífic o - c o n s o lid a n d o o m é to d o

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o b s e r v a c io n a l

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e i n t e r p r e t a n d o - o d e u m a m a n e i r a f i n a l í s t i c a e n ã o i d e a l o u d o g m á tic a .

O d o g m a e a d e d u ç ã o m e n t a l s e m b a s e e m f a t o s f o r a m r e b a i x a d o s p a r a m e r a s h ip ó te s e s .

5. A ESC O LA DE ALEX A N D RIA m 338 a.C., a G récia foi conquistada m ilitarm ente p ela M acedonia do rei Filipe (382336 a.C .), assassinado dois anos depois. S eu filho A lexandre, O Grande (356-323 a.C.), que fora aluno de A ristóteles, subiu ao trono, expandindo extraordinariam ente o Império. A m aioria dos colonizadores que se casavam com m ulheres locais do Im pério de Alexandre eram gregos, criando populações m ultirraciais e m ultilingües. D essa form a, constituiu-se o m undo helenístico, cuja capital - A lexandria, no E gito - sediou a m ais im portante biblioteca que o m undo antigo possuiu. A era helenística durou desde a queda das cidades-estado gregas no século IV a.C. até o surgim ento do Im pério R om ano no século I a.C. N esse cenário de predom ínio cultural do m undo grego é que em ergiram o Im pério R om ano e o cristianism o. Por isso, em bora a Palestina fosse um a colônia rom ana, o N o v o T e s ta m e n to foi escrito em grego. Com a m orte de A lexandre, aos 33 anos, em 323 a.C., seu Im pério dividiu-se em facções políticas conflitantes, porém m antendo a unidade cultural. M ais tarde, os rom anos cultos falariam grego. M esm o destruída com o nação, a G récia triunfava culturalm ente sobre seus conquistadores rom anos que praticam ente não possuiram filosofia própria. Porém , a expansão rom ana perm itiu que grande parte da E uropa contm uasse vivendo com o um a unidade cultural. Próximo ao famoso farol de Alexandria, um a das maravilhas do m undo antigo, o M useu e a Biblioteca Escola de Alexandria, m aior centro cultural da Antiguidade, foram erguidos nos jardins do palácio real de Ptolom eu I Sóter em 2S3 a.C... brilhando por séculos, tendo sido Dem étrio de Falera, aluno de Teofrasto - o grande discípulo de A ristóteles -, seu prim eiro conservador. D izem que chegou a conter cerca de setecentos mil papiros, abarcando praticam ente todo o conhecimento produzido até então. N o M useu (“C asa das M usas”) de Alexandria, filósofos, sábios e poetas m oravam e comiam juntos, sustentados pelo Estado. Alexandria não tardou a suceder A tenas com o sede de liderança intelectual, pontificando nas ciências nom es com o Euclides, Arquimedes, Apolônio, Nicômaco, Eratóstenes, Aristarco, Hiparco, Herófilo e Erasístrato. A luz do farol se apagou mas a da Escola perm anece na consciência da hum anidade (Figura 9). A lexandria acusa u m certo d i v ó r c i o e n t r e c i ê n c i a e f i l o s o f i a . O saber com eçava a se mdependentizar do conhecimento permitido, surgindo a luta entre a intolerância e o progresso. A biblioteca era tão grande que se distribuía por diferentes locais. Vários deles arderam quando C ésar se assenhorou de Alexandria, em 48 a.C. O que sobrou foi reumdo em Serápis, um templo pagão que acabou sendo incendiado em 391 por fanáticos cristãos, baseados num edito do Imperador Teodósio m andando interditar tem plos não cristãos, se não incitados, pelo menos perdoados pelo bispo Cirilo. E m 415, Hipácia, matemática, filósofa e dirigente do museu, foi assassinada brutalmente por m onges, enquanto um a turba inflamada queim ava a biblioteca. Finalmente, em 642, os árabes com pletaram a destruição p o r ordem do califa O m ar, fundador do im perialism o islâm ico. O s argumentos imbecis usados para justificar a destruição foram mais ou menos os mesmos de todos os tempos, inclusive no século X X (a estupidez hum ana é universal e atemporal): “Se os livros dizem o mesmo que as E s c r itu r a s : são inúteis; se dizem o contrário, mentem”. A palavra E s c r itu r a aqui pode servir para qualificar qualquer credo religioso ou político fanático.

E

A E s c o l a d e A l e x a n d r i a r e p r e s e n to u o m a i o r r e p o s itó r io d e c u l t u r a e c i ê n c i a d a A n tig u id a d e . A s s u c e s s iv a s d e s t r u i ç õ e s d e A l e x a n d r i a d e m o n s tr a m a s u p r e m a c ia d a e s tu p id e z h u m a n a s o b r e o s a b e r , e c o n s titu e m

u m a d a s m a is tr á g ic a s c a la m id a d e s d a h is tó r ia d o p e n s a m e n to .

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Figura 9 - A biblioteca e escola de Alexandria abrigou os maiores gênios do passado: que lá desenvolveram seus trabalhos, e reuniu toda a cultura da Antiguidade ocidental, chegando a possuir 700.000 papiros dos quais, devido à estupidez humana, apenas uma ínfima porção chegou até nós. M edicina Pré-G alênica: Evidência observacional E m A lexandria, provavelm ente pela prim eira vez na H istória, a dissecção de corpos humanos para adquirir conhecim ento foi um a prática regular. Por influência de Platão e A ristóteles, que separaram a alm a do corpo, a dissecção hum ana deixou de ser profanação. Praxágoras de Cós (c. 330 a.C .) e seu discípulo H erófilo da C alcedônia (c. 325 a.C .) em cerca de 280 a.C. distm guiram claram ente as artérias das veias. C om o resultado de suas dissecções, H erófilo descreveu e nom eou um grande núm ero de estruturas orgânicas e reconheceu o cérebro com o o centro do sistem a nervoso. V erificou que a parede das artérias é seis vezes m ais espessa que a das veias e que tèm estruturas diferentes. C om o o sangue abandona as artérias após a m orte, am bos pensavam que esses vasos continham ar. O sangram ento em vida era explicado pela saida do ar ou p n e u m a antes, sendo o sangue ‘"puxado" do lado venoso. N ão associou o m ovim ento das artérias ao coração, im aginando ser próprio das m esm as (“vis pulsiflca"). Tam bém cham ado “Pai da A natom ia", foi o prim eiro a praticar dissecção hum ana em público. V erifican d o que, no pulm ão, tanto estrutura dos vasos quanto p ad rão sangüíneo não se assem elhavam a veias e artérias do resto do corpo, cham ou a artéria pulm onar de “veia arteriosa" e a v eia pulm onar de “artéria venosa", term os ainda usados p o r H arvey no século XVII. Expoente da Escola de A lexandria, Erasístrato de C ós (c. 2S0 a.C.), tam bém como Herófilo, praticou sistem aticam ente dissecção hum ana, experiências em animais, e correlacionou anatom ia com função, sendo considerado o "Pai da Fisiologia". H á insinuações de que alguns estudados eram crim inosos ainda vivos. Interessado no sistem a nervoso, dissecou o cérebro e descobriu que os nervos m edulares posteriores são sensitivos e que os anteriores são m otores. Aristóteles

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colocara a sede da inteligência no coração, os hebreus, no fígado. H erófílo e Erasistrato a colocaram corretam ente no cérebro. Erasistrato, ao lado de m uitos m itos, fez várias observações corretas sobre função respiratória e cardíaca. P arece te r sido quem d e s e n v o l v e u o c o n c e ito f u n d a m e n t a i d e q u e a r e s p i r a ç ã o d e p e n d e d a p a s s a g e m d o a r p e l o s p u l m õ e s . L ançou as bases para o estudo do desgaste corporal (m etabolism o), só reativadas p o r Santorio no século XVII, negou que a digestão fosse um a form a de cozim ento ou ferm entação, descreveu os m úsculos do estôm ago, m ostrou que a laringe se fecha durante a deglutição - provando assim que era im possível os líquidos serem aspirados pelos pulm ões e rejeitou a doutrina dos quatro hum ores para explicar as doenças. D izia que estas se deviam a um excesso de sangue m as não praticava sangrias, m andando restringir a m gesta dos pacientes. N um tem po de m ágica e m isticism o, E r a s i s t r a t o t e n t a v a e x p l i c a r f e n ô m e n o s b i o l ó g i c o s p o r c a u s a s n a t u r a i s , aceitando o vácuo de Straton de Lam psaco (c. 300 a.C .) e a teoria atôm ica de D em ócrito e seu determ inism o. Straton, um dos prim eiros peripatéticos, que se opunha ao atom ism o, não reconhecia nada além da necessidade natural e reduziu o m undo à operação de forças naturais p a ra preencher um vácuo. Em bora m aterialista, referia a n atureza a um S e r universal, causa cega de to d a a geração. Identificava a sensação com a alm a. Sendo o vácuo a prim eira realidade, a existência se m anteria com ajuda de peso e m ovim ento, explicando as funções da alm a como m odos de m ovim ento. N essas idéias pode ver-se algo do m ecam cism o de D escartes, 1900 anos depois. A proveitando a idéia do vácuo, Erasistrato criou e fundou a teoria “pneum ática" na fisiologia - b a sea d a em p n e u m a s ou “ e s p írito s " , u m a “e ssê n c ia " - que v em to d a do a r ex terio r. O p n e u m a e r a u m p r i n c í p i o m a t e r i a l c o m u m a c e r t a d e n s i d a d e m a s p e r m a n e c e n d o in v is ív e l.

A creditava que os átom os requeriam p n e u m a do ar inspirado p a ra serem ativados e que eles circulavam p o r artérias sem sangue, puxados pelo vácuo. Ensinava que cada órgão era provido de um sistem a de trés vasos: artérias, veias e nervos ocos, que se ram ificavam além do poder de visão hum ana, form ando a verdadeira textura e substância dos tecidos. Segundo ele, o ar tomado pelos pulm ões ( p n e u m a ou “espírito universal") penetrava p ela traquéia (“artéria áspera"), passava para os pulm ões, dali pelas veias pulm onares para o ventrículo esquerdo, enchendo-o com ar, o qual ai se transform ava em p n e u m a z o t i k o n ou “espírito vital", passando às artérias que o distribuíam para todo o orgam sm o. U m a parte do “espirito vital" seria levado pelas artérias para o cérebro, lá m odificado p a ra p n e u m a p s y c h i k o n ou “espírito anim al", e distribuído pelos nervos, supostam ente ocos, para ativar os m úsculos, intum escê-los e encurtá-los (essa idéia vai até D escartes no século X Y II). Propôs o esquem a de dupla distribuição de sangue e p n e u m a . N o seu sistem a, só o coração direito e as v eias continham sangue, produzido no fígado a partir dos alim entos ingeridos ( p n e u m a p h y s i c o n ou “espirito natural"), e dirigido p a ra o ventrículo direito pela v eia cava, sendo succionado na diástole. R econheceu o bom beam ento cardíaco m as não a circulação: o lado esquerdo bom beava o ar vindo dos pulm ões, e o lado direito, o sangue produzido no fígado. Esses m ovim entos progrediam em “vai-e-vem ", e os produtos bom beados se consum iam na periferia do organismo. Foi talvez o prim eiro a entender que a valva tricúspide perm ite a passagem do sangue em apenas um a direção, indo todo ele p a ra o pulm ão. A diástole do ventrículo esquerdo criava um vácuo para aspirar o p n e u m a dos pulm ões através da veia pulm onar e, com o a tricúspide, a m itral não perm itia o retorno do p n e u m a do ventrículo esquerdo. Estendeu esse conceito para as valvas pulm onar e aórtica, o p n e u m a indo sempre em frente, sem voltar. Explicava o sangramento das artérias, quando cortadas, dizendo que o p n e u m a escapava instantaneam ente através da abertura, criando um vácuo capaz de “puxar" o sangue das veias para as artérias através de conexões invisíveis que ele cham ou de “sinoanastom oses". Tendo, assim , antecipado a existência

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dos capilares e entendido a função das valvas cardíacas, esteve perto de descobrir a circulação, no que foi barrado por não im aginar com o o sangue passaria além dos pulm ões, já que do outro lado haveria só “ar". Estudou tam bém os vasos linfáticos, sendo precursor do italiano Gaspare A selli (1581-1626), m atéria desdenhada posteriorm ente por H arvey. Com o Erasistrato considerava que o p n e u m a circulante no corpo era retirado do ar que vinha do m undo exterior, isso deu um a base fisiológica para a concepção filosófica de que o espirito humano é parte do espirito do mundo, concepção freqüentemente referida mais tarde, o que ajudou a manter fisiologia e filosofia unidas. Conforme lem bra Perkins, a teoria pneumática de Erasistrato combinava os conceitos filosóficos de A naxim enes com o conceito fisiológico de que alguma coisa no ar era necessária para a vida. Por isso, os term os “inspira", “inspiração" ainda têm um a conotação mais a ver com “espírito" que com respiração. U m pouco m odificada por Galeno, essa teoria vingou por quatorze séculos, até começar a ser derrubada por Yesálio e Harvey. H e r ó fú o é c o n s id e r a d o o

“p a i ” d a A n a t o m i a h u m a n a , e E r a s i s t r a t o d a F i s i o l o g i a .

D e p o i s d e E r a s is tr a to , e m c e r c a d e 2 5 0 a .C ., o s e s t u d o s a n a t ô m i c o s e f i s i o l ó g i c o s d e c lin a r a m e m A le x a n d r i a , e a d is s e c ç ã o d o c o r p o h u m a n o f o i in fr e q ü e n t e m e n t e p r a t i c a d a a p a r t i r d o 2 o s é c u l o d a e r a c r is iã , p r o i b i d a p o r r a z õ e s é tic a s e r e l i g i o s a s . O s ú l t i m o s g o v e r n a n t e s n ã o c u id a r a m d e m a n t e r o p r e s t i g i o d a f a m o s a b i b l i o t e c a e m u s e u . C o m a c o n q u is ta p e l o s r o m a n o s e a d e s t r u i ç ã o d a b i b l i o t e c a p e l o f o g o , e m 4 8 , A l e x a n d r i a a t i n g i u s e u p o n t o m a i s b a ix o c o m o g r a n d e c e n t r o m é d ic o e c u ltu r a l.

M atem ática e A stronom ia: O m undo com eça a ser medido O fundador da Escola de M atem ática do m useu de Alexandria foi Euclides de Alexandria, que lá trabalhou entre 320 e 260 a.C., escritor dos E le m e n to s - síntese da Geometria grega -, que até recentemente dominou o ensmo dessa ciência no Ocidente. Os postulados de Euclides representam a reunião das idéias e relações geométricas concebidas pelos gregos. Baseada nesses postulados, desenvolveu-se um a teoria geométrica cujo capitulo mais notável é o que trata das chamadas secções cônicas. A lógica de seus axiomas, teoremas e provas g u ia r a m p o r s é c u lo s o q u e s e e n te n d ia p o r r a c io c ín io e s ó a fe ta r a m m e n o s q u e a B íb lia o p e n s a m e n to m e d ie v a l , pois a Geometria foi dos pouquíssimos conhecimentos herdados dos gregos que passaram pela censura cultural medieval, sem ser considerada herética: era vista com o demonstradora da ordem e da sabedoria divinas, o sentimento clássico da harm onia perfeita. Séculos depois, K epler pensou que a form a das secções cônicas explicava a criação do sistema solar por Deus. Existiram em A lexandria outros extraordinários m atem áticos, com o A polónio de Perga (c. 230 a.C.), que tam bém desenvolveu m étodos originais para estudar curvas cónicas, as quais, com o vim os, tanto influenciaram as definições das órbitas planetárias p o r Kepler, e tam bém os epiciclos dos planetas. Contudo, o m aior m atem ático da A ntiguidade fo i Arquim edes de Siracusa (287-212 a.C .), um dos grandes gênios de todos os tem pos. O que fez fo i quase inacreditável: desenvolveu o cálculo de n pelo m étodo dos perím etros - com aproxim ação tão grande quanto se queira, chegando perto da idéia do cálculo integral -, facilitou a expressão de grandes núm eros no im perfeito sistem a grego de num eração, estudou sólidos gerados p ela revolução das cônicas em torno do seu eixo e esteve perto de descobrir o cálculo infinitesim al. C om finalidade m ais utilitária - o que de certa m aneira desdenhava por ser m atem ático puro -, inventou o parafuso sem fim para retirar água do n o N ilo, e estabeleceu prm cípios e desenvolveu utensílios capazes de m ultiplicar forças, com o a roldana m óvel, rodas dentadas e alavancas. “D éem -m e um ponto de apoio e eu levantarei o m undo", dizia. E stabeleceu as leis fundam entais da E stática dos sólidos e fundou a H idrostática (Figura 10).

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Figura 10 - Arquimedes, o maior matemático da Antiguidade, desenvolveu a mecânica, criou a hidrostática (em cima) e transferiu conhecimentos teóricos para a aplicação prática na vida cotidiana (embaixo). Suspeitando de que a coroa de ouro a ser oferecida aos deuses havia sido adulterada pelo ourives que a fizera, o rei Hieron, de Siracusa, entregou o enigm a a A rquim edes. E ste, enquanto se banhava, verificou que a água deslocada de dentro da banheira era igual ao volum e do seu corpo. Intuiu que, conhecendo o peso volum étrico de um m etal puro, e m ergulhando-o em água, tornava-se fácil detectar qualquer fraude na sua com posição. Encontrando a resposta à pergunta do rei, com a alienação do génio só preocupado com suas idéias, saiu gritando pelado ru a afora “heureka, heureka”, o que significa “encontrei, encontrei”. A ssim foi fundada a ciência da H idrostática, através de seu célebre prm cipio: “T odo corpo m ergulhado num liquido sofre um em puxo vertical de baixo para cim a igual ao peso do volum e do liquido deslocado”. H oje, o term o heurística refere-se ao m étodo para encontrar a solução de problem as. Inventou m áquinas que lançavam dardos e pedras, defendendo p o r três anos sua Siracusa sitiada pelos romanos,

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além de ser diTo que conseguia incendiar navios p o r m eio de um jo g o de lentes e espelhos. A pesar disso; n a tom ada de Siracusa, o conquistador M arcelo ordenou: “Poupem o m atem ático". M as, com o um boçal com força na m ão se locupleta, nào foi atendido pelo soldado rom ano que o m atou enquanto calculava. P arece que A rquim edes expressou desejo de que sua sepultura fosse adornada p ela exem plificação de um a de suas descobertas: um cilindro dentro do qual cabia justam ente um a esfera, e a expressão da relação entre o volum e de ambos, fato confirm ado por Cícero em 75 a.C ., quando visitou o túm ulo de A rquim edes. M ais do que a lem brança, e s s e f a t o p a r e c e u m a m e n s a g e m s o b r e a im p o r t â n c i a d a m a t e m á t i c a p a r a r e p r e s e n t a r o m u n d o .

Tão profunda e duradoura foi a influência de Arquimedes que o engenheiro e matemático flamengo Simon Stevin, ou Sim on de Bruges (154S-1620), dezoito séculos depois, reassumiu seus trabalhos sobre teoria das alavancas e centro de gravidade dos corpos. Descobriu a lei do comportamento dos corpos num plano mclmado, o que constitui o fundamento do chamado "paralelogram a de forças". P r in c íp io s d e H id r o s tá tic a , de sua autoria - com descrições de experiências -, foi o prim eiro livro sistemático sobre esse assunto, desde a época de seu mspirador grego. F icou evidente n a A ntiguidade, ta n t o a t r a x é s d o s p i t a g ó r i c o s q u a n t o d e A r q u i m e d e s e d e o u t r o s g r a n d e s m a te m á tic o s , q u e f o r m u l a ç õ e s n u m é r i c a s l i g a m - s e c o m f a t o s r e a is , p r e v i s í v e i s e r e p e titiv o s . Entretanto, a concepção geral de que a ciência pode expressar-se m atem aticam ente

- e por ela ser não só quantificada m as legitim ada - só foi ficar definitivam ente estabelecida m ais de m il e quinhentos anos depois, com Copérnico. D escobertas recentes indicam que havia um incipiente uso de instrum entos m ecânicos de algum a com plexidade na E scola de A lexandria - até um relógio m ovido a água -, não só para cálculos e m edições científicas com o tam bém para dem onstrações, setor em que ressaltam os nom es de Ctesíbio e Herão. Por influência de idéias já estabelecidas, existiram m uitos progressos científicos, depois esquecidos p o r séculos. O astrônom o M eton, no século V a.C., já estabelecera que dezenove anos solares eram iguais a dezenove anos lunares m ais sete m eses. A ristarco de Sam os (310-230 a.C.) firm ou m étodo geom étrico para determ inar o tam anho da Terra, as distâncias e os tam anhos do Sol e da Lua, desta de m aneira bem aproxim ada. Foi o prim eiro astrônom o a propor um a teoria m tegralm ente heliocêntrica, colocando o Sol, e não um fogo central, no centro do U niverso, a Terra girando sobre si m esm a e ao redor do Sol, e a L u a ao redor da Terra. Por causa dessas idéias fo i acusado de im piedade. E ratósten es de Cirene (284-192 a.C .), astrônom o e m atem ático, conseguiu avaliar de m odo bastante aproxim ado o com prim ento da circunferência da Terra (40.000 quilôm etros), determ m ando - pelo com prim ento das som bras em diferentes latitudes - a am plitude do arco de m eridiano entre Cirene e A lexandria, e em seguida m edindo o com prim ento desse arco. Sem saber-se com o chegou a essa conclusão, Plutarco de Q ueronéia (46 49-125), o m aior narrador da literatura grega, afirm ou que as sombras lunares representavam rios, vales e m ontanhas, sem que a luz do Sol chegasse ao fundo das fissuras. Porém , o grande astrônom o da A ntiguidade foi H iparco de N icéia (190-125 a.C .), em A lex an d ria, n o 2o século a.C . F ez v á ria s co n trib u içõ es especiais. C rio u n o v o s m étodos astronôm icos, inventou o astrolábio plano para ju n ta r com outros instrum entos de m edida, como a esfera arm ilar e o m ostrador circular, utilizou-se de um eclipse para m edir com m ais certeza os diâm etros do Sol e da L ua, p reciso u o p eríodo de revolução lunar, calculou a distância Terra-Lua, m troduziu na G récia a divisão do círculo em 360°, cada um ífacionável em 60 m m utos e 60 segundos, calculou as posições do Sol e da Lua, sendo capaz de predizer eclipses com erro inferior a duas horas, estabeleceu catálogo com grandezas para a lum inosidade das estrelas, surpreendeu o aparecim ento de novas estrelas (então não eram tão “fixas" com o se dizia!) e descobriu a precessão dos equinócios, m antendo, entretanto, todos os postulados fundam entais

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do sis te m a a ris to té lic o . M e d iu a du ração do ano em 365,2467 dias (a m ed id a atual é 365,2422 dias). L o g o ficou c la ro que o s i s i e m a d a s e s f e r a s f i x a s d e A r i s i ó i e l e s n ã o e x p l i c a v a t o d o s o s m o v i m e n t o s o b s e r v a d o s d o s c o r p o s c e l e s t e s . A lg u n s não se m o v iam em círcu lo s perfeitos, com o as e stre la s fixas. F oram cham ados d e p l a n e t a i (p lan etas), o que sig n ificav a errantes, nôm ades, vag ab u n d o s celestes. O astrônom o, m ate m á tic o e g eógrafo C láu d io Ptolom eu (9 0 -1 6 8 ), de A lex an d ria, que sin tetizo u a v ersão final da A stro n o m ia e da g eo g rafia da A ntiguidade, im portou, aperfeiçoou e sistem atizou conhecim entos de astrônom os anteriores, n o tadam ente de H iparco. M a n te v e a T erra im óvel no centro do U n iv erso - co m o g iraria sem c ria r vendavais in su p o rtáv e is ou m arés g ig an te sca s cap azes de frag m en tar o planeta, ou deixar a L u a p a ra trá s? - e eng en d ro u um siste m a p a ra rep re sen ta r outros m ovim entos ap aren tes m enores das rotas p lan e tárias, a p erfeiço an d o o estudo dos cham ados epiciclos, ou círcu lo s a u x iliares e in d iv id u alizad o s p a ra cada caso, m o stran d o com o aq u ele corpo p a rticu la r se deslocava. A fim de p rev e r a p osição dos astros no firm am en to , P tolom eu esta b e le c e u u m a tra je tó ria da L u a que às v ezes a c o lo c a v a duas v ezes m ais p erto da Terra. E m b o ra n ã o ap arecesse co m o duas v ezes m a io r, ain d a assim o siste m a se g u iu aceito. Foi adotado p ela Igreja C atólica com o a im agem do U niverso que correspondia às E s c r i t u r a s , porque ressaltav a T erra e hom em com o centro de um U n iv erso d ivino e garan tia espaço além das estrelas fixas p a ra céu, p u rg ató rio e in fe rn o (F ig u ra 11). O s árabes, que eram aficcionados p o r A stronom ia, continuaram o trabalho dos gregos. O bservações astronôm icas da L u a foram e são m uito im portantes p a ra os m uçulm anos, porque seu calendário religioso segue o ciclo lunar (com o sím bolo do crescente lunar fixaram -se na Europa p o r oitocentos anos). Com pilaram e criaram catálogos de estrelas - m uitos dos nom es com que as batizaram estão em uso ainda hoje -, calcularam tabelas precisas e traduziram a obra de Ptolom eu. O s treze livros do seu A l m a g e s t o , sendo trés consagrados à L u a e aos eclipses, um trabalho original, apresentam em profundidade seu sistem a geocêntrico, com os resultados m ais precisos que os gregos haviam visto. R epresentando um exem plo de clareza, serviu de base para toda a astronom ia m uçulm ana e cristã p o r quatorze séculos, sendo fácil construir tabelas de efem érides a partir desse m odelo, que sintetiza e com pleta teorias anteriores. R everenciando o geocentnsm o, o que alim entava a idéia de T erra e hom em serem o centro do U niverso D ivino, dando à L u a a im portância que os árabes queriam e perm itindo calcular facilm ente as datas religiosas dos cristãos, Ptolom eu logo passou a ser aceito com o confirmando verdades bíblicas e a ser considerado sagrado. C o n t r a r i a r P t o l o m e u e r a c o m o a t a c a r a p r ó p r i a B í b l i a . Com o isso não resolvia o problem a fundam ental, já que não tirava a T erra do centro do U niverso, nem considerava as verdadeiras órbitas planetárias, o núm ero de ciclos e epiciclos foi aum entando no decorrer do tem po, transform ando-se num a enorm e confusão, até a entrada em cena de Copérnico, no século XV. P o r i n te r m é d io d a g e o m e t r i a d e E u c iid e s , d a f í s i c a d e A r q u i m e d e s e d a a s t r o n o m i a d e P to lo m e u , f o i t r a n s m i t i d o p a r a o O c i d e n t e t o d o o c o n h e c i m e n t o m e n s u r á v e l d o m u n d o a n tig o , d o m i n a n d o a c i ê n c i a m e d i e v a l s o b a i n f l u ê n c i a d o a r is to te lis m o . A T e r r a e o h o m e m f o r a m c o n s i d e r a d o s o c e n t r o d o U n iv e r s o . P a r a s i t u a r o e s t a d o d a a s t r o n o m i a n e s s a é p o c a , é i m p o r t a n t e m e n c i o n a r q u e P t o l o m e u t a m b é m n ã o s ó c o n h e c i a a r e f r a ç ã o e a r e f l e x ã o d a luz, c o m o m e d i u s e u s â n g u lo s , c o m im p l i c a ç õ e s n a d e t e r m i n a ç ã o d a p o s i ç ã o d o s c o r p o s c e le s te s , f u n d o u a t r i g o n o m e t r i a p i a n a e e s fé r ic a , c o n s tr u iu r e l ó g i o s d e s o l e o a s t r o l á b i o - o p r i n c i p a l i n s t r u m e n t o a s t r o n ô m i c o d a é p o c a a n t i g a e m e d i e v a l -, e u s o u l a t i t u d e s e l o n g i t u d e s n o s m a p a s q u e fe z . M u ito s d e s s e s c o n h e c im e n to s , p o r s e r e m m a te m á tic o s , s e m a n tê m , e n q u a n to o s b io ló g ic o s , p o r s e r e m m ític o s , r u ír a m .

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Figura 11 - Ptolomeu observa o céu, assessorado pela musa da astronomia. Seu sistema, herdado de culturas mais antigas, e apoiado em instrumentos de medição, explicava o movimento dos corpos celestes ao redor da Terra, só tendo sido derrubado por Copémico mil e trezentos anos depois. G aleno: A m edicina é eterna V oltando à m edicina, após Erasístrato surgiu a figura que a dom inou por m ais tem po na H istória ocidental. C láudio G aleno (130-200), nascido em Pérgam o, exerceu um a influência total até o inicio da Renascença. Estudou filosofia aos 15 anos, logo após m edicm a, tornando-se,

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com 18 anos; m édico de gladiadores em Pérgam o, aperfeiçoando seus estudos de m edicina em Esm irna e Alexandria. D e form ação estóica, em 161 estabeleceu-se em Rom a, fazendo freqüentes dem onstrações públicas de anatom ia e fisiologia. Praticava dissecção e vivissecção em animais, prm cipalm ente m acacos, cães, ursos e porcos. N ão parece ter dissecado cadáveres hum anos. A ristóteles tinha dito que “a natureza não faz nada sem um propósito". G a le n o a x o c a x a - s e o d e s c o b r im e n to d o s p r o p ó s i t o s d a n a tu r e z a . Grande parte do que escreveu foi perdido m as, ainda assim , sua obra D g U s o d a s P a n e s d o C o r p o H u m a n o totaliza dezessete volum es. Postulou o conceito, que se m antém até hoje, de que cada alteração da função de um órgão decorre de um a lesão e que cada lesão im plica um a alteração funcional. C ham ava de “faculdades" os vários processos orgânicos: daí a expressão “ faculdades m entais”. Junto com os quatro hum ores dos antigos gregos, responsáveis pela saúde e doença. Galeno classificou as personalidades em quatro tipos: sangüíneo, fleum ático, m elancólico e colérico, term os usados até hoje para caracterizar disposições. E m bora se opusesse a m uitos ensinam entos de Erasístrato que, 450 anos depois, continuavam a ser ensinados em A lexandria, grande parte de suas idéias foram m spiradas por ele. N a obsessão de criticar Erasístrato, p o r vezes seus escritos não são claros e se contradizem, assum m do posições divergentes conform e a conveniência do m om ento. Para G aleno, a p r i n c i p a l m a n ife s ta ç ã o d e x i d a n o h o m e m e n o s a n im a is e r a o a q u e c im e n to d o c o r p o , sendo esse calor inato com parável ao fogo nos seus requerim entos. O corpo necessitava ar, a m enos que fosse sufocado. Por outra, tam bém necessitava ser resfriado, posto que calor não controlado prejudica o corpo. A ssim , pensava que a prm cipal função da respiração era esfriar o calor m ato, bem com o nutrir o corpo. No referente à circulação e à respiração, a vida tam bém dependia de p n e u m a s , ou “espíritos provedores da v id a”. Para G aleno, tinham im portância crescente o fígado, o coração e o cérebro. Considerava, com o Erasístrato, que o sangue venoso era form ado no fígado (provavelm ente devido à cor e à consistência desse órgão) por cocção da parte útil dos alim entos absorvidos com o “quilo”, a partir do estôm ago e intestinos - vindo pela veia porta ao fígado onde lhe era adicionado o “espirito natural". D epois era levado pelas veias aos m em bros e órgãos num m ovim ento de fluxo e refluxo, um a parte passando dai para o coração direito. R econheceu os átrio s - considerados dilatações das v eias - com o reserv ató rio s e im pulsionadores de sangue para os ventrículos. D o ventrículo direito, a m aior parte do sangue dirigia-se â artéria pulm onar para nutrir os pulm ões, sendo neles consum ida, enquanto porção m enor passava através de poros m terventriculares invisíveis para o ventrículo esquerdo, prm cipal sede do “calor m ato". Com o um era claro (atribuiu isso ã influência do ar!) e o outro escuro, só podiam ser dois tipos diferentes de sangue que nunca se encontravam. Considerava que minúsculas anastom oses perm itiam algum a passagem do sangue da artéria pulm onar para as veias pulmonares, dependendo da expansão e colapso dos pulmões. N o ato da inspiração, já reconhecido com o importante, o ar entrava pela boca, narinas, laringe e traq u éia nos pulm ões, p a ra form ar um reservatório de ar frio circundando o co ração e refrigerá-lo e para alim entar o “sopro interior". Parte desse ar poderia ser suprido diretam ente para o ventrículo esquerdo. Galeno assum ia que os brônquios form avam anastom oses com as veias pulm onares (“artéria venosa"). N a diástole, o coração puxava a r por sucção através dessas anastom oses e através da v eia pulm onar para o ventrículo esquerdo. O pouco sangue venoso vindo do lado direito entrava em contato, no ventrículo esquerdo, com o p n e u m a ou “ espirito universal do a r inspirado" ("a r espirituoso") trazido p ela veia pulm onar, onde sofria um a cocção e se im pregnava do “espírito vital" ai fabricado, originando calor anim al, sinônim o de vida, transform ando-se no sangue arterial, m ais claro. O p n e u m a tam bém entrava nas artérias a partir de finos poros na pele. Com o a valva m itral, ao contrário de Erasístrato, não im pedia

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com pletam ente o retorno do sangue; pela contração sistólica m uito do ar d e s p n e u m a tiz a d o pela “cham a” do coração - constituído de vapores fuliginosos - regurgitava ao longo da v eia pulm onar e e ra expelido através da traq u éia. Por isso ; os an im ais sucum biam em espaço fechado. T am bém , ao contrário de Erasistrato, a valva aórtica não prevenia m teiram ente o retorno de m ateriais da aorta para o ventrículo esquerdo. M anteve a concepção de H erófilo de que, a partir do ventrículo esquerdo em diástole, ondas de dilatação e contração passavam ao longo das paredes da aorta para todas as artérias do corpo, desse m odo produzindo o pulso ( v is p u l s i f i c à ), que tinha por funções distribuir o calor m ato do coração p a ra todo o corpo e nutrir o p n e u m a z o t i c o n ou “ espirito vital”, sendo que um a fração alcançaria o cérebro, onde o sangue era carregado com o p n e u m a p s y c h i c o n ou “espírito anim al”, e distribuído pelos nervos, que Galeno tam bém considerava ocos. M ostrou que, quando o pulso era im pedido p o r um torniquete, o m em bro ficava frio e pálido - pois o calor inato não recebia a nutrição do p n e u m a - m as, ao contrário de Erasistrato, o coração não tinha força m otriz. E sta visão diam etralm ente oposta a Erasistrato assegurava que a dilatação das artérias criava u m a sucção capaz de drenar o sangue das veias p elas finas anastom oses entre as extrem idades de am bas e, por outro lado, aspirava a r do coração e do exterior do corpo por poros na pele. Pela próxim a contração arterial, o regurgitava através das finas anastom oses para as veias e (presum ivelm ente) o ar fluia para fora, tam bém através dos poros na pele. A m aior espessura das artérias e da parede do ventrículo esquerdo as tornavam apropriadas para m anter o p n e u m a em seu interior e ajudava a contrabalançar o peso do sangue no ventrículo direito, enquanto que a finura das túnicas venosas servia para facilitar a distribuição dos nutrientes do sangue para o corpo. A razão de o oposto ocorrer no pulm ão era sua constante expansão e contração p ela parede do tórax. R econheceu que os m ovim entos torácicos resultam da ação dos m úsculos m tercostais, que m ovem os pulm ões, ao in v és de serem m ovidos por eles, com o pensava H erófilo. Chegando à p eriferia do corpo, os dois sangues - escuro e claro sem volta, eram consum idos, sendo a transpiração o resíduo desse efeito. Com o no sistem a de A ristóteles e de G aleno o sangue se perdia no interior dos órgãos, s e r i a il ó g i c o q u e o p u l m ã o f o s s e a t r a v e s s a d o p o r u m s a n g u e n ã o d e s tin a d o a e le . C om parava a respiração de um anim al com a ventilação de um a cabaça perfurada contendo um a cham a dentro m as “ quando a respiração é im pedida num lugar próprio da traquéia, pode ser com parada com um a cabaça im perfurada e com pletam ente fechada”. R e s u m id a m e n te , p o d e s e r d i t o q u e o e s q u e m a f i s i o l ó g i c o b á s ic o d e G a le n o - e d a m e d ic in a m e d i e v a l - c o n s titu ia - s e e m q u e f g a d o e v e i a s a s s e g u r a v a m a n u tr iç ã o a o c o r p o , p u l m õ e s r e fr i g e r a v a m o c o r a ç ã o , v e n tr í c u l o e s q u e r d o e a r t é r i a s d i s t r i b u í a m o p n e u m a e o c a l o r in a to , c é r e b r o e n e r v o s e ra m r e s p o n s á v e is p e la s s e n s a ç õ e s e m o v im e n to m u s c u la r a tr a v é s d e um e s p ir ito p s í q u i c o (Figura 12).

Por m ais estranhos que hoje possam parecer esses conceitos, alguns se m antém , te n d o s u r g id o d e o b s e r v a ç ã o , num a época em que o rudim entar estado da ciência fisiológica não tinha apoio

em outras disciplinas para progredir nas interpretações. N ote-se que, n o s i s t e m a d e G a le n o , h á u m a v a n ç o f e n o m e n a l : a s a r t é r i a s c o n t ê m s a n g u e e n ã o a r . E isso e le dem o n stro u experim entalm ente, através de observação, antecipando um pouco do m étodo cientifico moderno: 1) nas suas vivissecções observou claram ente que as artérias do m esentério de um anim al vivo continham sangue: 2 ) quando, n u m anim al v iv o , artérias ou o v entrículo esquerdo eram s e c c io n a d o s , e s c a p a v a p r im e ir o s a n g u e e n ã o p n e u m a ; 3) ao c o r ta r u m s e g m e n to arterial previam ente ligado em suas extrem idades e depois dissecado de um anim al vivo, saía som ente sangue.

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Figura 12 - As idéias de Galeno sobre medicina e fisiologia - como as de Ptolomeu na astronomia tornaram-se leis sagradas nas culturas cristã, muçulmana e hebraica. Xo esquema, sua concepção sobre o aparelho cardiovascular, sò derrubada por Harvey, mil e quatrocentos anos depois. A famosa idéia dos p o r o s m te r x e n r r ic u ia r e s surgiu de que, desconhecendo a força propulsora dos ventrículos, e constatando que o orifício da valva tricúspide é m aior que o da pulmonar, concluiu que parte do sangue teria que passar para o ventrículo esquerdo através de poros invisíveis no septo. Aplicou o m esm o argumento para o ventrículo esquerdo, desde que os vasos trazendo p n e u m a dos pulmões eram m enores que a aorta que o esvaziava. Por isso, o ventrículo esquerdo não só teria que receber p n e u m a dos pulmões como sangue do ventrículo direito. D isse que A ristóteles estava errado ao colocar a sede das sensações no coração, mostrando que todos os nervos se originam do cérebro e da m edula espinhal e que as cordas tendíneas do coração não são nervos. Verificando o efeito de lesões em gladiadores, e experim entando em anim ais, constatou que secções m edulares em diversos níveis produzem efeitos diferentes, inclusive apnéia. Conhecia origem e função dos nervos írénicos e dos recurrentes laríngeos que, sendo ligados, anulavam os gritos dos animais nas vivissecções (aliás, tratamento um pouco mais

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“hum ano” para os anim ais de experiência e o hom em só surgiu em 1S46: com a invenção da a n e s te s ia p o r é te r p e lo d e n tis ta W illia n M o rto n (1 8 1 9 -1 S 6 S ), de M a s s a c h u s s e ts ). M ostrou que o coração podia continuar batendo separado dos nervos, convencendo-se assim da natureza intrínseca da contração cardíaca. Sugeriu que o som era causado p o r vibrações do ar, além de outros pioneinsm os m édicos. G aleno, em bora não tenha concebido a circulação do sangue, m as conhecendo as valvas cardíacas, antecipando a existência dos capilares - pois falava em fm as e invisíveis ligações entre artérias e veias para trocas de ar e sangue - e admitmdo o cam inho do sangue da artéria para as veias pulm onares, chegou perto de dizer que este poderia passar pelos pulm ões. Entretanto, sua obra conhecida n ã o r e f e r e a p o s s i b i l i d a d e d e p a s s a g e m s a n g ü í n e a d a s v e i a s p u l m o n a r e s p a r a o v e n tr í c u l o e s q u e r d o . G aleno c rio u um a síntese de m ed ic in a basead a em H ip ó crates, P latão e A ristóteles. D e Platão, tirou a idéia de trés sistem as corporais, fígado, coração e cérebro (alm a tripartida, nutritiva, anim al e racional). D e A ristóteles, o interesse em observação prática e lógica científica. D e todos, derivou a idéia de um bom m édico e filósofo, procurando un ir razão com experiência. Seus m étodos diagnósticos incluíam observação do paciente, palpação, auscultação, verificação do pulso e inspeção da urina. N ão deixava perguntas sem respostas, m esm o que fosse preciso inventar (outra trad ição que se m antém !). Seus com piladores e com entadores passaram a tratá-lo com o um deus, fazendo crer que todo conhecim ento m édico provinha dele. M uitas de suas conclusões eram interpretadas à luz de um fm alism o utilitário. Por exem plo, m ostrando que a valva do ventrículo direito tem trés cúspides e a do ventrículo esquerdo duas, via aí a prova de que esta, m ais sim ples, seria destinada a deixar passar os “resíduos fuliginosos” produzidos p ela form ação do p n e u m a v i t a l no coração. E m parte sendo um hom em de seu tem po, Galeno era teleologista com o A ristóteles, intolerante e dogm ático após form ar um a idéia, não tendo deixado discípulos conhecidos. Sendo teleologista, n ã o v e r ific a v a s e u s r e s u lta d o s n e m v i a n e c e s s i d a d e d e b a s e á - l o s e m e x p e r iê n c ia , b e m c o m o a s c o n c l u s õ e s . D epois de sua m orte, em 200, o estudo da A natom ia e da F isiologia cessou por m uito tem po. N o século V I, os textos galénicos foram traduzidos para o siríaco, já que outros povos se nutriam m uito da medicina greco-rom ana. V árias explicações podem ser cham adas para a perm anência de seus ensinam entos por tanto tem po; na verdade, p r a t i c a m e n t e s e m c o n t e s t a ç ã o a t é o s é c u l o X V I : 1) Galeno escrevera sobre quase todos os cam pos da biologia e da m edicina, e, não havendo clim a político nem cultural no Im pério R om ano para esses estudos, pois os rom anos eram m uito m ais conquistadores que filósofos, preferm do as pom pas do p o d er às luzes do pensam ento - o oposto dos gregos -, não surgiu ninguém com iniciativa individual p a ra revivê-los ou m odificá-los; 2) sua habilidade com o m édico e sua retórica lógica, o que influenciou m uito até depois de seu tem po, quando conhecer filosofia am da era m eio cam inho para praticar m edicina; 3) além disso. G aleno foi um fantástico com pilador, sistem atizador e unificador de conceitos, absorvendo e passando às próxim as gerações trabalhos de seus predecessores, incluindo H erófílo e E rasistrato, cujos próprios escritos se perderam ; essas idéias, ju nto com as suas, sintetizam a antiga A natom ia e F isiologia dos gregos; 4) p o r outro lado, é preciso considerar que a m entalidade dos antigos era m uito m enos questionadora que a nossa: os ensinam entos de Galeno passaram a ser considerados definitivos, sem necessidade de contestação, e traduzidos para vários idiom as, com o latim, siríaco, arábico e hebraico; 5) a Idade M édia com eçara e a atividade intelectual e científica estagnara-se, passando m ais tarde para a m ão dos árabes e persas, que tam bém absorveram m uito dos conhecim entos galénicos; 6) sendo P érgam o um lugar de cristianism o nascente, G aleno desenvolveu a concepção m onoteísta de um D eus estóico, o que contribuiu para a aceitação de suas idéias sem m aior resistência nos m undos cristão, m uçulm ano e judeu.

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P o r é m , a g r a n d e r e s p o s ia p a r a a p e r m a n ê n c ia d e G a le n o p o r ta n to te m p o é : G a le n o e r a u m te le o lo g is ta , a c r e d ita n d o q u e tu d o f o r a f e i t o p o r D e u s p a r a u m p a r ti c u l a r e d e te r m in a d o fim .

o E sse eslágio do conhecim ento hum ano - ilustrado prm cipalm ente por A ristóteles, Ptolom eu e G aleno - representou a visão acabada da filosofia natural da A ntiguidade. N a A stronom ia, acreditava-se que a T erra era o centro fixo do U niverso, que este era finito e circular, que os astros giravam em diferentes esferas circulares fixas e concêntricas. N a Física, estabelecera-se que a m atéria era continua, não atóm ica, que o m ovim ento dos corpos era diferente n a T erra e no C éu, e na B iologia dizia-se que podia h av er geração espontânea de vida, que todos os seres vivos eram m ovidos por almas, negando-se a possibilidade de partículas inorgàm cas participarem do ciclo vital. A Q uím ica não existia, porém era julgada possível a transm utação da m atéria a partir dos quatro elem entos. Em bora a G eom etria fosse razoavelm ente desenvolvida, o cálculo m atem ático lutava contra o im perfeito sistem a gráfico de representação num érica, que o em perrava. N a H istória N atural im peravam as visões de A ristóteles e T eoífasto, sendo que o único livro a estim ular o estudo da natureza, durante séculos na e ra cristã, foi o livro de Plínio, O V elho (23-79), um a com pilação de quase quinhentos autores. N a F isiologia e na M edicina, ju lgava-se que o coração era a sede da inteligência e o órgão m ais quente do corpo, p o r isso se agitava, os pulm ões servindo p a ra resfriá-lo, que havia dois tipos diferentes de sangue, um claro, form ado no ventrículo esquerdo, levando o espirito vital para os órgãos, outro escuro, form ado no fígado, conduzindo o alim ento p a ra o corpo, am bos progredindo dentro dos vasos por um m ovim ento de “vai-e-vem ”, puxados pela diástole cardíaca e consum idos na periferia do organism o, enquanto que a sístole servia para expulsar os resíduos tóxicos. A filosofia natural de todos esses génios do passado foi u m a c iê n c ia b a s e a d a e m o b s e r v a ç õ e s s is te m a tiz a d a s , n ã o e m e x p e r i m e n t a ç ã o c o n t r o l a d a n e m e m v a l i d a ç ã o m a t e m á t i c a - às vezes em m atem ática aplicada -, e, n a m aioria das situações, os argum entos careciam de pré-requisitos básicos para dar coerência ordenada e conseqüente às interpretações sobre os fatos observados. O surgim ento da c iên cia m oderna te ria que p a ssa r p ela d estruição do aristotelism o, do ptolom aism o e do galenism o. Entretanto, estes sistem as seriam absorvidos pelo cristianism o p o is re p re se n ta v a m e x p lic a ç õ e s não c o lid e n te s co m os c o n c e ito s b íb lic o s - e d ep o is entrincheirados na força da Igreja Católica, que elegeu suas filosofias naturais com o sustentáculos filosóficos da B íb l i a e de sua doutrina. E m b o r a a filo s o fia n a tu r a l d e A r is tó te le s te n h a s id o c o n s id e r a d a c iê n c ia p o r d o is m il a n o s , n o la d o é tic o o s s i s t e m a s d e S ó c r a te s , P l a t ã o e e s t ó i c o s s e r v i r a m d e b a s e f i l o s ó f i c a p a r a o c r i s t i a n i s m o n a s c e n t e e e s ta b e le c id o q u e , c o m s e u p e n s a m e n t o d o g m á tic o , s e g u r o u o e c lo d ir d a c iê n c ia . S e D e u s c r i a r a o m u n d o e m s e t e d ia s , tu d o j á e s t a v a p r o n t o , p e r f e i t o , a c a b a d o e h ie r a r q u iz a d o , s e m n e c e s s i d a d e d e n o v a s e x p lic a ç õ e s . A s s i m , p a r a c o n h e c e r o h o m e m , e r a p r i m e i r o n e c e s s á r io c o n h e c e r a v o n t a d e d e D e u s , a t i t u d e q u e p o d e r e m o v e r o s f u n d a m e n t o s d a c u r io s id a d e c ie n tífic a . N e s s a é p o c a , c o m e ç a v a a s e d e s e n h a r a a s c e n s ã o d o c r is tia n is m o c o m o r e lig iã o o fic ia i d o m u n d o o c id e n ta l, q u e m o l d a r i a to d a s a s f o r m a s d o c o n h e c i m e n t o p e l o s p r ó x i m o s 1 5 0 0 a n o s .

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CA PITU LO III. FE SEM R A ZA O : A B SO LU T ISM O De como o idealism o platónico ilustra filosoficam ente a desvalorização da inteligência p e la tr a d iç ã o j u d a ic o - c r is t ã a m a lg a m a d a com u m m u n d o b á r b a r o e m e r g e n te . A afirm ação de uma única verdade, excludente, se transform a num anátem a contra o pen­ sam ento livre. O m aniqueísm o que sustenta o uniculturalism o m edieval faz retornar a ci­ ência à fase pré-observacional, em que a crença vale m ais que o raciocínio, pois tudo já está determ inado teleologicam ente por D eus. A figura sím bolo desta época é Santo Agostinho. C om o explicação da natureza, o observacionism o, que cria a evidência, é eclipsado pelo idealism o, que cria o dogm a. A s certezas da fé, as garantias da esperança, os benefícios da caridade asseguram a realização dos anseios do povo medieval. O surgim ento da Inquisição trata de assegurar o cum prim ento da verdade única. Estado do conhecim ento natural: IVegaçào do observacionism o. R etorno do idealismo. 6 . O EC LO D IR D O CRISTIA NISM O C risto e Paulo: A fé que arrebatou o m undo xplicam os com pêndios de filosofia que o m onoteísm o é um progresso sobre o politeísmo, já que, ao proclam ar o unicism o de Deus, anuncia ao m undo que E le ja m a is será divisão, será sem pre harm onia, e, portanto, não-violência. N a prática, essa afirm ação pode ser questionada, pois as três m aiores religiões m onoteistas atuais, o judaísm o, o cristianism o e o islam ism o viveram sem pre se engalfinhando, principalm ente porque cada um a se acha dona da verdade. A m ais antiga das três, o judaísm o, m odificou a face do m undo há cinco m ilênios, revelando que religião ê lei e que lei ê vida. Esse senso de lei consiste em regular a vida pelo plano divino, sem pre superior ao humano. E m cerca de 200 a.C., os hebreus desenvolveram um a doutrina esotérica de ensinam entos sobre D eus e o U niverso, a C a b a la , através de com entários do T a im u à e : a B í b l i a ju d aic a - que influenciou toda a história da filosofia -, segundo a qual o texto da B í b l i a encerra um sentido oculto, além do sentido explicito, revelando-se ao em prestar a cada letra um significado esotérico e divino, que circulou secretam ente até o século X V . Para a C a b a la , o m undo visível contém em si todo um m undo escondido que é preciso aprender a decifrar. A proibição do V e lh o T e s ta m e n to “N ão farás figura algum a do que existe nos Céus nem na T erra" tem o profundo sentido de não personalizar ou particularizar qualquer afirm ação de propósito ético, m a n te n d o o m is t é r i o e t r a n s f o r m a n d o - a e m le i i m p e s s o a l e i n t e m p o r a i , ditada por um D eus invisível, inacessível e, portanto, inquestionável. T ransferida pelos séculos, não é difícil identificar concepções com o m undo real e irreal em idéias de Platão, e depois revelações e m istérios que originaram segredos, m ilagres e penitências no cristianism o. O cristianism o resultou m ais de um m ovim ento histórico-cultural que de um a filosofia sistematizada. Excluindo as circunstâncias históricas que facilitaram sua expansão pelo m undo rom ano decadente, é possível que não passasse hoje de um a obscura seita do judaísm o. A o longo de sua história, os hebreus sem pre alim entaram a idéia de que Jeová enviaria à T erra um M e s s i a s (“o ungido") que os libertaria da opressão estrangeira. E cada vez mais evidente que o judaísm o pelo ano zero não era m onolítico m as um m osaico de seitas - que iam desde o extrem ism o espiritualista dos e s s ê n io s até a política guerrilheira dos z e l o t e s -, com conexões com o m undo helénico e a bacia do M editerrâneo, onde pululavam m ovim entos m essiânicos e políticos de todo tipo. C erca do ano 29, um pregador asceta, João Batista, proclam ava na Judéia (palavra rom ana p a ra J u d d ) que o enviado estava prestes a chegar. Jesus (0-33), seu prim o, assom broso pregador, que havia passado trinta anos de vida num a aldeia

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com o carpinteiro, declarando-se filho ou enviado de Deus, foi recebido com o o M e s s i a s tào esperado pelos hebreus, n ã o p r e g a n d o u m r e i n o d e f o r ç a m a s u m im p é r io d o e s p í r i í o e u m a n o v a v i d a d e j u s t i ç a e d e ig u a ld a d e .

E m b o ra ju d eu , Jesus fo i um reform ista, um taum aturgo e um ex orcista que levantava m ultidões p ela palavra, clam ando contra o im obilism o de sua religião, o excessivo apego a regras escritas, por exem plo a escravidão do sábado, a opressão econôm ica. O que Jesus propôs fo i um a revolução a partir dos fundam entos do ser hum ano, um a m udança p a ra com eçar de novo, havendo m u ita sim ilaridade com os ensinam entos socráticos. Por Jesus, ho m en s e m ulheres, ju d eu s e gentios, puros e im puros são considerados filhos do m esm o Pai e com direitos iguais: a lei não deve ser usada para escravizar m as para libertar as pessoas. Sua religião é a da com paixão, não a do sacrifício pelo sacrifício, nem a do heroísm o im olante, trazendo a idéia de um D eus Pai e não de um D eus Juiz do V e lh o T e s ta m e n to , um Deus da bondade e não da vingança. R essalta m uito m ais o espírito da lei que sua aplicação form al, pregando utopias extrem as. Estende a possibilidade de salvação a todos e não apenas aos judeus. R om pendo com as tradições culturais de sua época, Jesus tra ta as m ulheres de igual para igual aos hom ens. Não obstante aconselhando a respeitar os m andam entos das E s c r i t u r a s judaicas dentro do possível, insiste na m ais inquietante novidade, a de p e r d o a r o s i n im ig o s p a r a a t i n g i r o r e i n o d o s c é u s . A lguns ju d eu s ortodoxos odiavam -no p o r julgarem que pregava contra as leis judaicas e que, p o r su a d o u trin a do p erd ão , e n fra q u e c ia a m o ra l do povo c o n tra os estran g eiro s. R euniram -se facilm ente fatores p a ra que sacerdotes que só reconheciam a lei escrita, cham ados s a d u c e u s : descobrissem um pretexto, não bem claro - provavelm ente suspeito de aspirante ao trono de Israel -, a fim de que os dom inadores rom anos o crucificassem . A doutrm a cristã perm aneceu viva e fo i propagada a partir dos seus doze apóstolos, todos ju d eu s que tentavam c o n c ilia r o ju d a ísm o antigo co m as n o v a s dou trin as do M estre, ho m en s que iniciaram conquistando as m assas sim ples com o eles. E provável que a palavra c r is iâ o s tenha sido cunhada por funcionários rom anos querendo caracterizar um suposto partido político judeu. D esde a leitura de m anuscritos encontrados num a caverna próxim a ao M ar M orto, em 1947, reforça-se a idéia de que o cristianism o deve m uito de sua origem à seita judaica dos e s s ê n io s . Em bora Jesus pareça te r pertencido à seita dos f a r i s e u s ("não façais aos outros o que não quereis que vos façam '’), m uito m ais liberal que a dos e s s ê n i o s ("olho p o r olho, dente p o r dente”), que acreditavam no fim do m undo e seguiam um código m ortificante de conduta pessoal - cujos eleitos eram celibatários -, encontram -se vários pontos de contato do cristianism o prim itivo com esta seita. E ntre esses pontos situam -se o esperado M estre da Justiça, um M e s s i a s salvador de Israel, enviado especial de D eus, que poderia ser Jesus, criticas ao judaísm o oficial, caráter apocalíptico, im inência do fim do m undo e partilha em com um de bens. Segundo o G ê n e s e do V e lh o T e s ta m e n to , D eus fez A d ã o , o prim eiro hom em , à sua imagem, coroando assim a obra da criação, cujo m undo natural já fora construído com o um paraíso perfeito. Posto no paraíso terrestre, A d ã o estava só. Fazendo-o dorm ir profundam ente. Deus deu-lhe depois um a com panheira, criada a partir de um a costela d z A d ã o . que ao vê-la exclamou: “E is aqui agora o osso dos m eus ossos e a carne da m inha carne” . A d ã o deu-lhe o nom e de E v a que significa V id a , pois que ela seria a m ãe de todos os vivos. Situando-os no paraíso, Deus prom eteu-lhes um a vida perfeita de felicidade, com a única condição de não provarem da árvore da ciência do bem e do m al. Porém , tentada p e lo dem ônio, E v a co lh eu o fruto proibido, arrastando A d ã o no seu pecado original. Castigados por D eus p ela desobediência foram expulsos do paraíso e condenados, am bos às agruras do trabalho e às agonias da m orte, e E v a a parir entre lágrimas e a sofrer o predom ínio do hom em . E stendendo aos seus descendentes a solidariedade ao pecado original, Deus prom eteu-lhes um redentor. D ecaídos do estado de inocência, expulsos

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do paraiso; condenados a um a vida de sofrim ento, os pais dos hum anos erraram p ela vida, A d ã o até os 930 anos, E v a não se sabe até quando, tendo os filhos C a im , A b e l , S e t h e m ulheres

cujo nom e a B í b l i a não registra. E sse relato n ã o p o d e s e r m a is e lu c id a tiv o p a r a m o s tr a r a v i s ã o b íb lic a p r i m i t i v a d a tr a je tó r ia d o h o m e m s o b r e a T e r r a . N ele estão contidos: o absoluto poder de D eus, os lim ites do hom em , a falsidade hum ana, a im piedade divina p a ra com as fraquezas hum anas, a continuidade da culpa, a esperança da redenção pela graça divina, a m ulher com o origem prm cipal do pecado (não deixa de ser pertinente associar-se sua condição secundária e oprim ida por séculos, e ainda hoje em culturas prim itivas, a um a punição continuada com o expiação da culpa p o r esse pecado). Presente nas três religiões m onoteístas principais, os rabinos dão a A d ã o características sem elhantes às dos anjos, de grande perfeição de sentidos e de ciência absoluta; alguns pretendem que o prim eiro hom em e a prim eira m u lh er com eçaram reunidos num m esm o organism o. Entre as tradições m aom etanas sobre A d ã o , um a reza que E v a o tentou p o r influência de L u c i f e r (o dem ônio), disfarçado de serpente, p a ra vingar-se de ter sido substituído por ele no paraíso terrestre. Perto de M eca, m ostram um a gruta onde contam que E v a m orreu. Tendo por base o V e lh o e o N o v o T e s ta m e n to , a r e lig iã o c r i s t ã j u s t i f i c a - s e p e l a p a l a v r a s a g r a d a e c o l o c a o p e c a d o o r i g i n a l c o m o a f o n t e p r i m á r i a d e to d o s o s p e c a d o s , pois sem ele A d ã o e E v a continuariam no paraíso e não teriam que u sar suas im perfeições para sobreviver num m undo onde tam bém habita o M al. A o fim e ao cabo, a doutrina cristã em ergiu com o um a síntese da severidade do V e lh o T e s ta m e n to com um m essianism o redentorista, tendo com o ênfase o resgate, a expiação dos pecados - culpas ou ações ofensivas conscientes e voluntárias das leis divinas pelos hom ens, através geralm ente de orgulho, avareza, luxúria, ira, gula, inveja, e preguiça -, pela obra de Jesus Cristo, filho de Deus feito hom em . Seus anseios estão expressados no C redo Cristão, representados pelo louvor ao onipotente D eus Pai todo poderoso, criador do C éu e da Terra, à Santíssim a Trindade (Deus, Filho e Espírito Santo), à exaltação dos m istérios da crucificação de Jesus Cristo, Filho de Deus, à rem issão do pecado original pelo batism o, à purificação dos pecados p ela Eucaristia, à ressurreição da carne, ao julgam ento dos pecados no juízo final, á v id a eterna e à santidade da Igreja. D eclara-se um a religião m onoteísta, consoladora e regeneradora dos hom ens, cultivando a lei do am or ao próxim o, indispensável na realização do am or de D eus e à possibilidade de o hom em salvar-se com a ajuda da G raça Divina. C om o todo pensam ento religioso, é r e v e la d o , d o g m á tic o , a b r a n g e n t e e e x c lu d e n ie . O relato da vida de Jesus, seu nascim ento da V irgem M aria e do Espírito Santo, crucificação, ressurreição, ascensão aos céus, transubstanciação do pão e do vinho na carne e no sangue do Cristo durante a consagração da H óstia na m issa (sacram ento da Eucaristia), provém de tradições orais transform adas em textos do N o v o T e s ta m e n to , que foram escritos entre quarenta e noventa anos depois da m orte do C risto p o r quatro seguidores seus em penhados em divulgar sua d iv in d a d e , c h a m a d o s de e v a n g e lista s ( e v a n g e l h o em g reg o = “b o a n o v a "). D iferen ça fundam ental entre a pregação de Jesus e de outros religiosos é c o l o c a r n o h o m e m a p o s s i b i l i d a d e d a r e m i s s ã o d o s p e c a d o s - e o destino do m undo -, através de um a força interior cham ada fé, em vez de colocar essa possibilidade na onipotência dos deuses. Jesus nunca se m ostrou com o um deus do O lim po, acim a dos hom ens, e sem pre procurou estabelecer um equilíbrio entre o dom ínio da natureza e do m eio am biente e as relações entre as pessoas. Séculos m ais tarde, s u r g i r i a S ã o F r a n c i s c o d e A s s i s , r e p r o d u z i n d o o s i d e a i s d e J e s u s . O cristianism o com eteu a grande loucura de afirm ar a ressurreição da carne, no que só é possível acreditar por um ato de fé, legando ao m undo a convicção de que nem a m orte é irreversível, esta sendo um a passagem para um a v id a m elhor. Só a m océncia das crianças poderia atingir tão grande verdade.

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I n d e p e n d e n te m e n te d a c r e n ç a r e lig io s a , C r is to n o s le g o u a s u b lim e d o u tr in a d a c o m p r e e n s ã o e d a c o m p a ix ã o . N ó s , o s h o m e n s , é q u e a i n d a n ã o a p r e n d e m o s a u s á - l a a d e q u a d a m e n te . E p o u c o p r o v á v e l q u e J e s u s te n h a tid o a i n te n ç ã o d e f u n d a r u m a I g r e j a h ie r a r q u iz a d a .

A Igreja nasceu do agrupam ento pela fé dos prim itivos cristãos, com o um fósforo que m cendeia um a floresta, e da concepção religiosa de São Paulo (10-67), conduzindo o cristianism o além de suas fronteiras judaicas, universalisando-o. A té cerca do ano 300, nos tem pos do cristianism o nascente - configurado pela Igreja dos apóstolos e dos m ártires -, havia um a colossal e comovente congregação hum ana vivendo e sustentando a sua fé proscrita dentro das catacum bas rom anas, v e rd a d e ira s c id a d e s su b te rrâ n e a s, im e n sa s e e sp a lh a d a s, que a té h o je n o s com ovem . H avia cristianism o (doutrina) m as ainda não catolicism o (universalização), term o criado pelo m ártir Inácio no século II. A pesar de P aulo te r estado em Jerusalém n a época de Jesus, é im provável que os dois tenham se encontrado. O catolicism o com eçou a form ar-se quando o fariseu Paulo de Tarso, depois São Paulo, adaptou o cristianism o aos rom anos, pois, sendo ele m esm o um ex-pagão, viu a necessidade de converter os não-crentes, aos quais pregava com m ais sucesso que aos ju d eu s (Figura 13).

Figura 1 3 - 0 cristianismo, fundado por Jesus Cristo - aqui entre Pedro e Paulo - depois declarado Deus, e universalizado por São Paulo, orgamzou-se hierarquicamente como Igreja Católica romana, que manteve férreo domínio religioso, político e cultural sobre o Ocidente através do Papado, até o surgimento da renascença e do protestantismo. A enorm e influência de Paulo na propagação do cristianism o deve-se a seu grande sucesso c o m o m is s io n á r io , s e u s e s c r ito s que in te g ra m o N o v o T e s t a m e n t o e s e u p a p e l no desenvolvim ento da teologia cristã. O apelo à ação p o r suas palavras proferidas na Epístola aos C oríntios é eterno: “A fé precisa de obras. U m a fé sem obras m orrerá em si m esm a, pois então alguém poderá dizer: m ostra-m e tu a fé sem obras e eu te m ostrarei a fé pelas m inhas obras".

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Suas idéias sobre a divindade de Cristo e de justificação exclusiva pela fé vêm sendo considerados princípios cristãos p o r todos os séculos. Tudo isso T r a n s fo r m o u S ã o P a u l o n a s e g u n d a p e s s o a d o c r i s t i a n i s m o . P aulo provocou tal reviravolta no judaico-cristianism o a ponto de alguns estudiosos afirm arem que a Igreja C atólica é m ais aristotélica e helénica, por sua atuação, que ligada ao cristianism o-judaísm o prim itivo do apóstolo Pedro, o sucessor de Jesus. T ratando ap en as de so b re v iv e r com sua fé, n ã o h a v i a e n t r e o s p r i m e i r o s c r i s t ã o s a p r e o c u p a ç ã o d e a p o i á - i a e m s i s t e m a s f i l o s ó f i c o s o u p o l í t i c o s . E ra a fé pura, cuja grandiosidade se consum ia na redenção e na paixão de Cristo. A cusados de conspirar contra o Estado por recusarem -se a participar do culto ao Im perador rom ano - na Igreja prim ordial, o teste de fé era recusar-se a cham ar o Im perador de divino - e sentindo na carne a perseguição da R om a decadente, consideravam política e poder coisas sujas dem ais p a ra se m isturar com o sublim e. T endo conservado m uitas tradições judaicas, com o o sentido trágico da vida e o sentim ento de culpa, porém , para o cristianism o o que define o hom em é a alm a, esta separada do corpo, enquanto que para o judaísm o a alm a está ligada ao corpo. N o ju d aísm o , p o r estarem juntos, o corpo não pode ser reprim ido para libertar a alm a, enquanto que no cristianism o, p o r estarem separados, o corpo necessita ser reprim ido p a ra não escravizar a alm a - a parte essencial das pessoas - às suas paixões. N u m m u n d o d e i n j u s t o s c o n tr a s te s , e m q u e i m p e r a d o r e s d e g e n e r a d o s e r a m d e ific a d o s , a d o u t r i n a n ã o f i l o s ó f i c a m a s p o l í t i c o - r e l i g i o s a d a c o m p a ix ã o , d o r e s p e i t o e d o a m o r a o p r ó x i m o

- e x p lic ita d a p e la p r im e ir a v e z n o m u n d o g r e c o -r o m a n o

q u e le v a n ta v a a s m a s s a s e m d ir e ç ã o

a u m a a l m e j a d a ig u a ld a d e , r e p r e s e n t o u u m a p e l o i r r e s i s t í v e l p a r a a h u m a n id a d e . N a s c i a a i d é i a d e u m a s o c i e d a d e s e m c la s s e s , a i n d a q u e n a o u t r a v id a .

Pilares de um A bsolutism o: Só há um a verdade Só no segundo século depois de Cristo a Igreja começou a hierarquizar-se de modo que posições de poder centradas nos bispos, considerados os sucessores dos apóstolos, adquiriram mais influência que a profecia. Após Constantino, O Grande (274-337), o prim eiro Imperador cristão - convertido depois de um a visão que lhe proporcionou importante vitória m ilitar -, e julgando o cristianismo vital para a unidade do Império, foi aberto o caminho para o reconhecimento oficial do cristianismo pelo Estado. Inevitavelmente os postulados do poder e da cultura necessitaram integrar-se com a religião, num a interdependência mutuamente sustentadora. A c u ltu r a n ã o p o d i a c o n tr a r ia r a re lig iã o , a s s im c o m o e s ta le g itim a v a a p r im e ir a . Estava m aduro o cenário para que entrasse em cena uma filosofia natural - a única ciência da época -, capaz de autenticar os ensinamentos bíblicos e ser por eles legitimada. Não podia haver discordância porque, senão, um dos dois estaria errado, e é claro que não seria a religião. E admitido que a m orte de Constantino, em 337, decreta o fim da Antiguidade clássica e o nascim ento da Idade M édia, que vai até 1453, ano da queda de Constantinopla, selando o fim do Império Rom ano do Oriente. I g r e j a , originalm ente em grego e depois em latim , significa assem bléia, ajuntam ento. Igreja C atólica é um a congregação de fiéis unidos pela m esm a fé religiosa baseada n a doutrina de Jesus Cristo e p ela com unhão dos m esm os sacram entos, sob a direção de pastores que dependem do chefe suprem o, o P apa (do grego p a p p a s , que significa pai), tam bém Pontífice (do latim pontifeX: fazedor de ponte, por ser a ligação m contornável entre D eus e os hom ens), considerado representante de Jesus C risto n a T erra e herdeiro de São Pedro, quem C risto escolheu entre os doze apóstolos para fundar sua Igreja. O s caracteres da Igreja rom ana são unidade, santidade, catolicidade e apostolicidade. Seu desenvolvim ento situou-se sobre um tríplice plano: d o u tr in a i (ap ro fu n d am e n to e fo rm u lação do d o g m a): i n s t i t u c i o n a l (form ação de u m a m o n arq u ia c z n \ t z \ i z 2.à 2 ) \ p a s t o r a l (adaptação no tem po e no espaço). A prim azia do Papa garante a unidade da Igreja no espaço e a sua identidade no tem po, e o dogm a da infalibilidade papal reforça a

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onisciéncia do cristianism o em term os de conduta hum ana, ressaltando o considerado caráter absoluto, indiscutível, do catolicism o diante das dem ais religiões, doutrinas ou filosofias, aliás com o faz todo pensam ento sectário. E óbvio que to d a r e lig iã o m o n o t e í s t a s e v ê c o m o a v e r d a d e ir a , s e n ã o n ã o s e r i a r e l i g i ã o , e, ao ver seu D eus com o único, as dem ais religiões passam a ser vistas com o falsas. B asta ler as am eaças dos respectivos textos sagrados para ver que todas cultivam a idéia do absoluto, do único que tudo abrange, da m orte ao infiel (o term o em m oda hoje é fundam entalism o). D urante m uito tem po no catolicism o, im pôs-se a opção o u c r ê e e s iá s a l v o o u n ã o c r ê e e s iá c o n d e n a d o , com o ainda ocorre no fundam entalism o islâm ico m ais radical. E m sum a, todo pensam ento religioso caracteriza-se p o r um a verdade unilateral, suprem a e redentora, o dogma. Sendo o dogm a um conhecim ento revelado e inegável - ponto fundam ental de um a doutrina por prm cípio, todo sistem a que se apoiar nele será excludente e absolutista. Podendo no máximo ser discutido m as não rejeitado, a a c e i i a ç ã o d e u m d o g m a é a n e g a ç ã o d a c a p a c i d a d e d e a lg u é m f i r m a r u m j u í z o r a c io n a l. O raciocínio é trocado p ela crença, o m erecim ento pela graça e a realização pelo anonim ato. O problem a é que forte crença num a verdade única leva ao fanatism o e, este, ao sacrifício do adversário. A tualm ente, n a prática, por força de pressões históricas, o judaísm o e o catolicism o atenuaram essas posições que, entretanto, continuam a existir com o prm cípios. N o islam ism o, a ortodoxia fundam entalista continua férrea. N o inicio da tem poralização da Igreja, criaram -se os patnarcados orientais, iniciou-se a discussão sobre a prim azia de R om a em relação ao Oriente, por ser R om a o lugar onde o apóstolo Pedro fundou a Igreja. F oi, em parte, a origem das lutas dos patriarcas entre si e do cism a provocado pela doutrina que concedia ao bispo de R om a (Papa) o dom da infalibilidade, um poder absoluto sobre todos os outros. A política passou a preponderar sobre a fé dentro da estrutura dirigente, copiada da estrutura im perial. Em 325, o C oncílio de N icéia v o t o u que Jesus era divino por um a m aioria de 217 a 3 bispos. C om a elevação de Jesus C risto a Deus, pela negação do arianism o (vide pág. 101), o cristianism o rom peu os últim os laços que tinha com o judaísm o e com o paganism o greco-rom ano. Tornando-se autônom a com o credo e com o organização, a Igreja rom ana estava apta a m anter seu poder intacto m esm o depois da queda do Im pério rom ano. V irava-se o jo g o da H istória. E m 392, o im perador Teodósio interditou todos os cultos não-cristãos: os tem plos e as estátuas pagãs foram destruídos. C om T eodósio, o c r i s t i a n i s m o c o m e ç o u a to r n a r - s e u m s i s t e m a r e lig i o s o - p o l í t i c o a b s o l u t i s t a q u e d u r a r i a p o r m a is d e m i l a n o s . Depois da condenação e da proibição de seitas cristãs, cujo exemplo mais marcante

é do a ria n is m o , os p re c e ito s d a fé d e ix a ra m de ser u m a o p ç ã o in d iv id u a l p a ra tornarem-se politicamente inflexíveis. U m ano após ter sido banido o arianismo, Teodósio declarou 0 cristianismo a religião oficial do Estado romano - selando assim o movimento começado com Constantino -, tornando-se um a hierarquizada ortodoxia férrea, com o poder de suprimir rivais. N a verdade, ao longo da história, a Igreja esqueceu que foi um a construção hum ana, não nasceu pronta. A té o século IY , não havia “catolicism o ortodoxo” m as várias form as de seitas cristãs, cada um a disputando com a outra a suprem acia teológica e política. Só quando um a visão particular em ergiu com o “ortodoxia” no Concilio de N icéia, em 325, a s o u tr a s p a s s a r a m a s e r “h e r e s i a s ”. A designação de P apa só passou a existir no fim do século IV , quando Siriaco 1 (384-99) a adotou p o r prim eira vez. A té m eados do século V , a “Igreja rom ana” era um bispado, reconhecidam ente o prim eiro, m as um bispado entre outros. O s bispos e patriarcas de Antióquia, A lexandria e Constantinopla exerciam um a autoridade com parável. A té 1870, a subordinação do Papado a concílios da Igreja podia ser pelo m enos discutida. Sentindo-se am eaçado pelo inexorável avanço da ciência e da liberdade de pensam ento, num a atitude de desespero, o Papado tratou de declarar-se infalível, o que fez p o r interm édio do papa Pio IX , em 1870. M esm o isso,

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foi m ais um a atitude política que sacra, pois o Concílio Vaticano que a votou, de m aneira nenhuma foi unânime. Com o a questão não foi pacífica, houve oposições, abstenções e deserções e, somente num a segunda votação, apenas 535 delegados dos 1084 elegíveis para v otar endossaram a infalibilidade, um a “m aioria” de 49%. A ssim , o P apa foi declarado infalível por direito próprio e “não com o resultado do consentim ento da Igreja”, o que provocou inúm eras m anifestações em contrário, prm cipalm ente por parte de bispos. A infalibilidade papal fornecia antes de tudo um baluarte contra os avanços da ciência e do m odernism o, obras do dem ônio, antecipando-se e excluindo todo argum ento. Servia tam bém para barrar estudos científicos sobre as origens do cristianism o ou da B í b l i a . Em 1907, o m odernism o fo i declarado heresia e todo o m ovim ento oficialm ente banido. A ssim , e m c o m p e n s a ç ã o p e l a p e r d a d o d o m í n i o te m p o r a l, o P a p a d o a d q u i r i u in fa lib ilid a d e , c o m o b a r r e i r a à s i m p o r tu n a ç õ e s s a tâ n ic a s .

A p ó s o cristianism o firm ar-se com o doutrina oficial, com eçaram as preocupações em torná-lo um sistem a m ais abrangente - catolicism o -, num a ligação coerente com a cultura estabelecida. N o que diz respeito à Biologia, à M edicina e à A stronom ia, os sistem as já estavam p ratica m en te p ro n to s: resp e c tiv a m e n te, o a risto telism o , o g alenism o e o pto lo m aism o . A não ser algumas restrições iniciais ao anstotelism o, este, com pequeno polim ento, não oferecia m aiores dificuldades para ser encam pado. Já o sistem a filosófico de base era m ais delicado, por lidar com conceitos transcendentais m uito próxim os aos religiosos. N ão poderia haver nenhum conflito. Quem fez essa união fo i Santo A gostinho, consagrando o platonism o com o a filosofia acom panhante da religião cristã. C om a agonia progressiva do Im pério R om ano do O cidente a partir do século IY e a pulverização da E uropa em pequenos reinos antagônicos p elas invasões bárbaras, estava pronto o cenário p a ra que o espaço preenchido pelo fausto, pela onipotência e pela divindade representada pelos antigos im peradores rom anos fosse ocupado pelos Papas, v e r d a d e i r o s n o v o s im p e r a d o r e s d o O c i d e n t e , até passarem o cetro para Carlos M agno no ano de 800, ainda assim depois de se assegurarem o poder político suprem o, sustentado p o r um a religião que não podia vacilar. O que caracteriza o espirito da filosofia m edieval é o neoplatonism o, buscando a identificação do S e r , isto é, a ordem abstrata que fundam enta um a realidade concreta, o real, ou seja, Deus. O s pensadores m edievais identificavam D eus com o S e r porque não im aginavam a realidade sendo conduzida por forças cegas. A visão neoplatônica m ostra que o D eus-C ausa de Aristóteles, o D eus-U no de Plotino e o D eus-C riador do cristianism o são um só e único Deus. Hierarquizado, o p e n s a m e n to m e d ie v a l c o n s id e r a v a o m u n d o c o m o r e p r e s e n ta n d o u m a g r a n d e o rd em , e l e v a n d o - s e p o r d e g r a u s e m d i r e ç ã o a D e u s . A ordem do m undo seria guiada por outra ordem

superior que busca trazer as coisas a si. D essa form a, devia ser objetivo do hom em dirigir-se a Deus, buscar a perfeição divina. A pesar de m uitas sublim es verdades do cristianism o, u m a visão arraigada do pecado criou as m iragens do apocalipse e do inferno, que até época recente chegaram a sobrepujar os prm cipais ensinam entos relacionados à vida, à bondade e ao altruísm o cristãos. E vidência desta afirmação pode ser encontrada na Inquisição (vide pág. 95) - um m ovim ento dito pela pureza da fé -, instaurada em 1233 pelo papa G regório IX p a ra com bater um a crescente dissidência dentro do catolicism o, que se estendeu principalm ente pela França, Espanha, Portugal e Itália, até sua extinção no século X IX , e que representou um a reação verdadeiram ente paranóica a qualquer progresso, levando os inúm eros condenados, até sem defesa, a perderem seus bens, à prisão perpétua e à fogueira. Seguindo a velha fórm ula de todos os tem pos de despotism o religioso ou político, a Igreja estabelecida, hierarquizada e associada ao poder tem poral p a s s o u a f u n c i o n a r c o m o u m a c o m u n id a d e d e s a c e r d o te s o u o i i g a r c a s e m p e n h a d o s e m m a n t e r o p o d e r p e i o c o n tr o le

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c u ltu r a l, p o l í t i c o e e c o n ô m ic o d a s o c i e d a d e , o que só pode ser possível num regim e de máximo

absolutism o teocrático ou ideológico. A tanto se estendeu a intolerância com as idéias que, em 1515, fo i prom ulgada pelo papa M ediei, L eão X, um a bula obrigando os livros sobre qualquer assunto serem subm etidos a um a censura prévia pela análise de um bispo da Igreja ou de pessoa p o r ele designada, assim como pelo inquisidor local. Im pressores que iniciassem a confecção de um livro sem a devida autorização arriscavam -se à excom unhão, a m ultas ou à queim a dos exem plares. Cinco anos depois fo i prom ulgada outra bula com efeito retroativo especial, na Alem anha, proibindo tam bém todas as obras passadas e futuras de Lutero. A pós sua reorganização, a Inquisição rom ana assum iu a supervisão das im pressões n a Itália e, em 1559, publicou o prim eiro I n d e x d e L i v r o s P r o i b i d o s no m undo. Entre tanto ecum enism o com fogueiras de letras, no século X V I não faltou a queim a de todos os docum entos talm údicos encontrados. M as afinal o que isto tem a ver com a ciência? Tudo, pois a f o r ç a d o o b s c u r a n tis m o r e lig io s o f o i a m a i s p o d e r o s a i n f l u ê n c i a a d i f i c u l t a r e r e t a r d a r a p a s s a g e m d o p e n s a m e n t o m ític o , im a g in á r io , p a r a o c ie n tífic o , p e r c e p t í v e l . O a b s o l u t i s m o r e lig io s o t r o u x e c o n s ig o o in d i s s o c i á v e l a r g u m e n to d a a u t o r i d a d e - b a s e a d o n a “v e r d a d e r e v e l a d a q u e s e e s te n d e u d o s m a n d a m e n t o s r e l i g i o s o s p a r a to d o s o s s e t o r e s d o c o n h e c im e n to , s a c r a l i z a n d o o s a u t o r e s li c e n c i a d o s c o tn o p i l a r e s d e t e o r i a s q u e a p o ia s s e m a f i r m a ç õ e s b í b lic a s - c o m o T e r r a im ó v e l n o c e n t r o d o U n iv e r s o , h o m e m s e n d o a im a g e m d e D e u s , m u l h e r o r i g i n á r i a d e u m a c o s t e l a d e A d ã o , e o u r r a s -, e p o r e l a s f o s s e m a p o ia d o s . A f é , e m v e z d e s e r u m a m a r a v i l h o s a e x p e r i ê n c i a ín tim a d e c o n te m p la ç ã o , d e g r a tific a ç ã o , e a t é u s a d a p a r a p e r s u a s ã o , p a s s o u a s e r e x e r c id a c o m o u m a n tíd o to c o n tr a a r a z ã o , c u jo e x e r c íc io d e s e s t a b i l i z a r i a t o d a a o r d e m h ie r á r q u ic a - r e lig io s a , p o l í t i c a , c u l t u r a l e e c o n ô m ic a - c r ia d a p e l o a b s o l u t i s m o te o c r á tic o .

Santo Agostinho: A fé nào pode vacilar Santo A gostinho (354-430), bispo de H ipona, na atual A rgélia, filho de Santa M óm ca e de um pagão, p ela influência de suas idéias fo i a figura m ais destacada da filosofia por 1600 anos, entre A ristóteles e Tom ás de A quino. N ascido A urelius Augustm us, n a antiga X um idia, periferia do Im pério R om ano, quando este se desintegrava em ocidental e oriental e com eçava a baixa Idade M édia, com toda a sua crueldade bárbara, superstição e fanatism o religioso, seus pais se endividaram p a ra que estudasse em Cartago, a m etróple da Á frica rom ana. Solto no m undo, aos 16 anos iniciou um a v id a de devassidão que só term inou com sua conversão e batism o em 3S7. Porém , a t e o l o g i a a g o s t i n i a n a , c e n t r a d a n a f i l o s o f i a d e P l a t ã o , n a c u l t u r a r o m a n a e n o c r i s t i a n i s m o n a s c e n te , a l i m e n t o u i n t e l e c t u a l m e n t e e s s e m e s m o c r i s t i a n i s m o n o s m i l a n o s s e g u in te s , firm ando-se n a defesa intransigente da fé católica e de um sistem a de crenças coerentes

que o V e lh o T e s ta m e n to não fornecia p o r si só. A gostinho prim eiro adotou o m a n iq u e ís m o do persa M ani, para quem não há m eio term o, o U niverso dividindo-se entre bem e m al, luz e trevas, am igo ou inim igo, sim ou não. Depois tornou-se cético do tipo im perante na A cadem ia de Platão dos últim os tem pos, o que acabou levando-o ao neoplatonism o de Plotino. E m bora m uito m ais intelectualizado, a severidade do ideário de A gostinho foi influenciada tam bém por ensinam entos precedentes - entre os quais de Santo A ntão (251-356), do Egito - que representavam um a continuidade m uito próxim a dos id ea is ju d a ic o -c ris tã o s p rim itiv o s: n e g a ç ã o de b e n s m ate ria is, v a lo riz a ç ã o da po b reza, desvalorização da inteligência, gratificação pela penitência, conform ism o perm anente, vida solitária, enfim m ortificação com o norm a de vida. N um erosas células m onásticas foram depois form adas nesse exem plo. N as suas C o n fis s õ e s - a prim eira autobiografia em sentido moderno -, modelo cristão de introspecção sobre a fraqueza humana, n arra seu retorno ao cristianism o aos

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32 anos de idade, e : na C id a d e d e D e u s : relata a síntese que faz de seus valores com o platonism o, em que cada indivíduo é habitante de duas com unidades diferentes ao m esm o tem po. A lguns de seus escritos sào tratados em torno do dogm a do pecado original e da graça divina, definidos em oposição tão estrita, o que o aproxim a do m am queísm o que combatia. Suas idéias dissolvem -se entre a teologia e a filosofia, justificando a existência de Deus e do cristianism o, com raizes na filosofia platônica. B uscou em Platão o argum ento de que o m undo é constituído por substâncias eternas concedidas pelos deuses, d a n d o p o r é m á a t i v i d a d e d i v i n a u m a b a s e d e a b s o l u t i s m o q u e n ã o s e e n c o n tr a n a d o u t r i n a d e P la tã o . Só D eus e não o filósofo pode abarcar o conhecim ento total, já que é a fonte de todas as experiências e de toda a natureza, tendo-a criado do nada, antes da existência do tem po, este apenas um a propriedade do U niverso criado por Deus. Dissociando o conceito de tem po do de existência, reflete que, em bora o tem po exista para as criaturas, não existe para Deus, que vive num eterno presente, fora da irrealidade forjada pela deficiência de m edida do tem po terrestre, o que perm ite concluir que o fluxo de tem po caracteriza apenas a experiência mas não algo independente dela, num a notável antecipação do pensam ento de Kant. Precedendo Schopenhauer, diz que o presente é o m odo de toda existência, pois o passado é m em ória presente e o futuro um a expectativa do presente, e que nosso intelecto é dom m ado por nossa vontade. C onclui a partir dai que é m ais im portante o que as pessoas fazem para Deus e não o que farão. Veio antes de D escartes (ou foi copiado?), afirmando que o ceticismo não podia existir porque, para duvidar de qualquer coisa, alguém precisa existir, e que pelo m enos disso é im possível duvidar. A gostinho fo i o últim o grande filósofo da A ntiguidade latina, e o prim eiro em que a busca da verdade representou claram ente um a catarse através da investigação de sua vida íntim a, m ais do que um a busca na realidade exterior ou na sociedade. A o enfatizar a análise individual, A g o s t i n h o t o r n a - s e u m p r e c u r s o r d a te o l o g i a i n d iv id u a lis ta p r o t e s t a n t e . Suas reflexões podem servir com o base do conceito protestante de responsabilidade. Sua idéia de que, para obter a salvação, o Estado deve obedecer à Igreja provém do exem plo do Estado Judaico do V e lh o T e s ta m e n to , e influenciou alguns reform adores protestantes. O fato de o cristianism o ser um a crença e não um a filosofia f a c i l i t o u a a s s i m i l a ç ã o d a s i d é i a s d e P l a t ã o n o m u i t o e m q u e n ã o c o n f l i t a v a m . O filho de D eus, Jesus, que veio v iv e r na Terra, m ais precisam ente na Palestina, transm itiu principalm ente ensm am entos m orais, não filosóficos, à diferença de Buda. D ono de agudo refinam ento intelectual, A gostinho preencheu esse vácuo com o platonism o, refletindo aspectos da realidade que a B í b l i a negligenciava. Preservando a auto-revelação de Deus - que devia estar sempre à frente das demais verdades -, a nova interpretação não p o d ia conter heresias. A d o u t r i n a d e q u e o v e r d a d e i r o c o n h e c im e n to e s t á n u m r e i n o d e e n tid a d e s a te m p o r a is , p e r f e i t a s e i m a te r ia is , d e q u e j á e x is te u m a p a r t e n ã o c o r p ó r e a n o s s a n a q u e le r e in o , d e q u e to d o s o s o b j e t o s d o m u n d o s e n s o r i a l s ã o e f ê m e r o s e d e c a d e n te s , c o n s is tin d o d e i l u s õ e s f u g a z e s , s ã o i d é i a s p l a t ô n i c a s q u e n u n c a f o r a m p r o n u n c i a d a s p o r C r is to m a s q u e e s tã o c o m p le ta m e n te in c o r p o r a d a s n o c r is tia n is m o . Expressando o desprezo

pelo m aterial, A gostinho ensinava que ‘'o supérfluo dos ricos é propriedade dos pobres". O s textos de Santo A gostinho situam -se na fronteira entre filosofia e teologia. Sendo o m al o prazer dos cm co sentidos - vontade do corpo -, para ser virtuoso é necessário controlar a vontade do corpo pela vontade da alm a, que é a encarnação da vontade de Deus, a qual determ ina que uns sucum bam às tentações e outros não. E ssa divisão ocorre com o form a de punição pelo pecado original de A d ã o e E v a no paraíso, a doutrina m ais influente no cristianism o p o r quase m il anos. E ntre as heresias que com bateu, está a do m onge inglês Pelágio, que sustentava serem as pessoas livres p a ra escolher o bem ou o m al, sendo que p ela vida correta e pelas boas obras qualquer indivíduo poderia chegar à salvação. E óbvio que tal visão hum anística seria inaceitável

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para um a seita pretendendo estender seu dom ínio sobre todo o m undo: a graça de D eus (claro que com a interm ediação da Igreja) era im prescindível para a salvação. Santo A gostinho criou um a idéia que teve conseqüéncias trágicas - em bora nunca oficializada pela Igreja -, a da predestinação. Segundo a doutrm a da predestinação, Deus dividira os seres em m orais e imorais, uns nascendo para ser bons, outros para ser m aus, estes só podendo ser salvos por interferência divina e não p ela p ró p ria vontade, castigo que v isava p u n ir o pecado de A d ã o e E v a ao sucum birem à tentação no paraíso. A s alm as condenadas seriam aquelas pelas quais D eus não intervém . Para salvar a alm a do castigo eterno, torna-se necessário ser virtuoso e superar a tentação do m al, cuja fonte é o prazer dos sentidos. E ssa doutrm a de punição originou severas práticas m ortificantes dentro do cristianism o e serviu de ju stificativ a para a condenação eterna e p a ra as fogueiras da Inquisição. T al exem plo, à sem elhança de qualquer fanatism o, m ostra com o t e o r i a s f i l o s ó f i c a s p o d e m j u s t i f i c a r a s m a i o r e s a tr o c id a d e s , e o a l c a n c e p r á t i c o q u e p o d e t e r u m a i d é i a a b s t r a t a (Figura 14). Durante a época de Santo A gostinho, o Estado ainda não era absolutista e a Igreja não era tão organizada, m as sua teoria já recom endava que aquele devia seguir os ensinam entos desta, conselho que m ais tarde foi usado com o ju stificativ a para práticas extrem istas. A gostinho acreditava no uso de algum a força contra os dissidentes, depois que a persuasão falhava, o que m otivou parte da atitude da Igreja. A Inquisição espanhola, instituída em 1478 sob os reis católicos Fernando e Isabel, tornou-se poderosa depois da aprovação das leis de 1492 e 1502, exigindo que m uçulm anos e ju d eu s se convertessem ao cristianism o. Outro fato lam entável na H istória fo i a destruição de culturas, com o a dos albigenses ou c á t a r o s - que contestavam o poder dos padres e o significado da m issa -, dos m aias e dos astecas, em nom e da fé. E ra a intolerância não perm itindo outro credo (vide pág. 95). A gostinho não fez observações cientificas de espécie algum a e não escreveu nada em ciência, contudo/b? d e c i s i v o p a r a o d e s e n v o l v i m e n t o d a m e s m a p o r q u e f i x o u d o u t r i n a c a p a z d e m o ld a r o d e s e n v o lv im e n to d o p e n s a m e n t o . D escartou a visão dos gregos e orientais da H istória como processo cíclico, vendo-a m isticam ente com o partindo de um ponto p a ra atingir um fim . A creditando que o hom em tem capacidade de escolher entre o bem e o m al, rejeitou a astrologia. Porém , p a ra fazer a escolha adequada, o hom em necessitava do auxílio divino, o suprem o bem . Por isso colocou a fé acim a de tudo. O conhecim ento que p o d ia lhe m ostrar o m undo natural era válido, pois servia para evidenciar as m aravilhas da criação, m as devia estar subordinado à Teologia, cham ada de “R ainha das Ciências”. E m bora não hostil a um conhecim ento ilustrativo, glorifícante, e s t e d e v i a s e r v i r a p e n a s p a r a e v i d e n c i a r a s a b e d o r i a d i v i n a , n ã o p a r a e n te n d e r r a c i o n a l m e n t e o m u n d o . A ssim , assuntos não religiosos só tinham m teresse com o apoio para um cristão m elhorar a com preensão da B í b l i a . Sua teoria da natureza divina do conhecim ento dom inou o pensam ento ocidental p o r séculos, e apenas no século X III essas idéias com eçariam a ser desafiadas nas U niv ersid ad es de P aris e O xford, à luz dos recen tes redescobertos ensinam entos de A ristóteles. M i l e s e is c e n t o s a n o s d e p o is , a lu ta e n t r e P l a t ã o e A r i s t ó t e l e s a in d a e s t a r i a m o l d a n d o a c i ê n c i a o c id e n ta l! A g o s t i n h o f o i o m a i s in flu e n te d o s “P a i s d a I g r e j a ’’ r o m a n a , s e u s e s c r i t o s e s u a s id é ia s s o b r e p e c a d o o r ig in a i, s e x o e s a lv a ç ã o f o r a m l e i p o r q u a s e m i l a n o s . F o r a d o c a to lic is m o , a in flu ê n c ia a g o s tin ia n a f o i e x e r c id a s o b r e L ú te r o , C a iv in o e J a n s ê n io . A s s im , a p e s a r d e a d o u tr in a a g o s tin ia n a te r r e c u a d o n o s é c u lo X I I I p e r a n te o to m is m o d e S a n to T o m á s d e A q u in o , p o s te r io r m e n te r e v ita liz o u -s e n a In q u is iç ã o c a tó lic a e c o m M o r tin h o L u te r o e s o b r e tu d o com J o ã o C a iv in o e o s j a n s e n i s t a s , l e v a n d o ta m b é m p a r a a R e f o r m a p r o t e s t a n t e s u a a u r a d e i n to le r â n c ia fu n d a m e n t a l i s t a .

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Figura 14 - As idéias maniqueistas de Santo Agostinho anexaram o platonismo ao catolicismo e representaram o império do dogmatismo teológico, classificando como diabólico tudo que não fosse ortodoxia, até o aparecimento de Santo Tomás de Aquino, novecentos anos depois. C ultura M edieval: Deus supre tudo Prm cipalm ente no periodo com preendido entre a queda de R om a e a ascensão de Carlos M agno (400-800), praticam ente desapareceram da Europa o aprendizado, a cultura e a erudição. A Idade M édia - com toda a beleza de seu imaginário e o sublim e de seus propósitos - representou um vácuo no co n h ecim en to em geral. A c u ltu ra e ra ju lg a d a inú til p e lo s s e to re s m ais

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rad ic ais: pois toda verdade já estava nas E s c r itu r a s . Tão forte era a m entalidade anti-secular e anticientifica que, em 391, u m a turba de fanáticos cristãos m cendiou a biblioteca de Alexandria. A s únicas obras de A ristóteles que sobreviveram na idade das trevas foram seus escritos lógicos, traduzidos para o latim por A nício M ânlio Torquato Severino Boécio (475 480-524. 525), erudito, hom em de Estado, poeta da decadência rom ana e um dos m aiores filósofos da Idade M édia, que transm itiu m uito da educação dos antigos rom anos ao m undo ocidental. P latónico e estóico, acusado de traição e condenado à m orte pelo im perador T eo d o n co , O G rande, de quem fora conselheiro, viu a filosofia com o um a ‘‘elevação consoladora” em direção à felicidade divina, escrevendo na prisão o adm irável C o n s o la ç ã o F i l o s ó f i c a . obra considerada como o início da filosofia m edieval, onde estuda a fundo os problem as da presciência divina e da liberdade hum ana e tenta explicar como ilusória a existência do m al num m undo dirigido por Deus. B oêcio é visto como o p r i m e i r o e s c o lá s tic o , o p r i m e i r o d i d a t a d a I d a d e M é d i a , ao ensinar que, para atm gir a sabedoria, ê necessário seguir dois grupos de disciplinas: o q u a d r iv iu m (aritmética, astronomia, geom etria e m úsica) e o tr iv iu m (gram ática, retórica e lógica), batizadas com o as “sete artes liberais”, que form aram a base do m elhor ensm o m edieval. Só no século V II surgiu a prim eira enciclopédia m undial, enriquecida com verbetes sobre essas artes, teologia, história e m edicina, cuja autoria é atribuída a Santo Isidoro de Sevilha. O crescim ento do m onasticism o no Ocidente, inaugurado por B ento da N úrsia, em 529, com a fundação do m osteiro de M onte Cassm o, e o aumento do poder papal tiveram as m aiores conseqüéncias para a filosofia m edieval: as grandes bibliotecas dos m osteiros contribuiram para a preservação da cultura clássica, e a autoridade sagrada dos Papas, im pondo-se sobre reis locais, deu unidade a um a cultura gloriosa herdada dos rom anos, capaz de garantir o com ando da Igreja sobre o O cidente, representando um poder m uito m aior do que aquele que a Igreja do Oriente jam ais adquiriu sobre seus fiéis. Depois das invasões bárbaras, agarrar-se n a tradição clássica era defender a civilização. A s trib o s b árb aras n u n c a passaram além da G rã-B retanha, e m u ito s literato s e eruditos refugiaram -se na Irlanda. N a longínqua Irlanda, sobrevivia o conhecim ento do grego para interpretar os clássicos. A ssim , dos séculos V I a V III, essa ilha foi um repositório isolado de cultura e erudição. O grande e praticam ente único filósofo dessa era, João E scoto Erígena (810-877), neoplatóm co, estava na Irlanda. Considerando que o raciocínio correto não concluiria falsamente, não poderia haver conflito entre razão e revelação. Assim, a s x e r d a d e s d a f é p o d e r ia m s e r r a c io n a liz a d a s . Essas idéias eram perigosas para a época porque podiam dispensar tanto fé quanto revelação. Porém , Erígena dizia que, como Deus não pode ser objeto de conhecim ento, é im possível para ele conhecer-se a si m esm o, entender sua natureza. V ários séculos depois, K ant generalizou essa idéia, afirm ando que entender-se a si m esm o é im possível para qualquer ser consciente. E m 840, convidado pelo rei Carlos, O Calvo, para ser árbitro de um debate teológico na França, Erígena produziu, em decorrência desse fato, a obra S o b r e a P r e d e s tin a ç ã o D iv in a , desafiando a predetermmaçào agostimana, ao afirmar que Deus deu aos hom ens o livre-arbítrio da investigação racional, o prim eiro questionam ento de Santo A gostm ho em quatrocentos anos. Só não foi excom ungado devido à proteção do Rei. Só D eus cria, adm ite. Porém , para Escoto, a razão (verdade de D eus) está acim a da religião (devoção a ele), não devendo serem confundidas. Absorvendo a idéia platónica de um m undo constituído por substâncias universais perfeitas com suas cópias imperfeitas, considera que, nesse ponto da criação, a vontade de Deus situa-se mais distante, um a vez que o ser hum ano vai forjando suas próprias particularidades, pelo uso do livre-arbítrio. Por usar um a série de raciocínios não teológicos para provar a existência de Deus, a obra de João Escoto foi considerada por m uitos de um a “racionalidade quase herética”, pois

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im p u n h a a r a z ã o e n ã o a T e o lo g ia p a r a e x p l i c a r a c r ia ç ã o . R epresentou o único retorno em

direção à racionalidade, num periodo de quatrocentos anos! U m exemplo quase isolado, não de ciência m as de conhecimento aplicado, foi a busca do estabelecimento de calendários para m elhor determinar a época das colheitas e, prmcipalmente, das datas sacras, como a Páscoa. E m 325, o Concílio de N icéia estabelecera que a ressurreição de Cristo seria celebrada no primeiro domingo depois da lua cheia da primavera, começando em 21 de março. Beda, O Venerável (673-735), m onge de Jarrow, norte da Inglaterra, chegou a tabular um ciclo de datas de 532 anos para a Páscoa, tendo sido o prim eiro que usou como m arco micial o nascimento de Cristo, o que inaugurou o hábito entre historiadores de utilizarem a expressão "era cristã" e A n n o D o m i n i (“Ano do Senhor", depois de Cristo). A lém disso, esse erudito meticuloso, hom em de conhecimentos enciclopédicos, versado em aritmética, geometria e astronomia, sem nunca afastarse m ais de oitenta quilômetros do mosteiro, escreveu a referencial H is to r ia E c c le s ia s iic a G e n tis A n g lo r u m , a prim eira grande obra historiográfíca inglesa. A vida medieval foi u m s is te m a e s s e n c ia lm e n te o r d e n a d o . N a baixa Idade M édia, os senhores feudais guerreavam, as mulheres nobres viviam presas nos castelos, os m onges oravam e copiavam, os camponeses cultivavam as terras (os únicos que trabalhavam!), os clérigos discutiam intermináveis questões filosófico-teológicas, a m aioria da população era analfabeta, e a religião o único consolo para todos. A justiça social d e p e n d ia d a v o n ta d e d e D e u s e d a d e c is ã o d o s p o d e r o s o s . Toda a remanescente cultura européia nesse período tam bém estava dentro dos conventos, e os estudiosos eram clérigos. Nesse cenário, a ciénca representava um a m ínima parte de um saber centrado na fé, ensinando a busca da salvação da alma e da glorificação divina - conforme revelavam as E s c r itu r a s -, e não a questionar os detalhes da natureza, já devidamente fixados por Deus. A investigação e o pensamento independente estavam vedados, tanto por censura quanto por despreparo das pessoas para procurá-los. O u seja, o h o m e m n ã o e s ta v a lic e n c ia d o p a r a b u s c a r a v e r d a d e m a s s ó p a r a a c e itá - la . Tão grande era o dogmatismo que se tornava difícil enquadrar os autores e filósofos do passado anterior à era cristã num a categoria que não fosse de pecadores (Figura 15). Paradoxalm ente, repousava nos conventos, prm cipalm ente da Irlanda, o que restou dos tesouros de conhecim ento do m undo antigo. A grande herança da civilização ocidental, dos clássicos greco-rom anos aos trabalhos judaicos e cristãos, teria sido perdida em grande parte não fosse pela ação da m conquistada Irlanda. A li, longe do continente bárbaro, m onges e escribas, laboriosa e pacientem ente, preservaram os preciosos escritos ocidentais. C om o retorno da estabilidade na Europa continental, os estudiosos irlandeses foram instrumento para a transmissão da cultura esquecida. A ntes da invenção da im prensa, a conservação, o conhecim ento e o estudo de um a obra dependiam de cópias feitas a m ão. A t r a v é s d o s m o n g e s m e d i e v a i s é q u e q u a s e to d a a c u l t u r a p r é - c r i s t ã f o i t r a n s m i t i d a a o m u n d o m o d e r n o . Por volta do fim do século IX e século X , com eçou a ser levantado lentam ente o pano negro sobre a atividade intelectual. Pensar, pelo m enos dentro de um a óptica católica, não era m ais tão herético. O s m onges, p o r interm édio de arm azenam ento ou de cópias (“m onges copistas"), recuperaram ou traduziram obras do latim e do árabe, trazendo de volta à civilização ocidental conhecim entos esquecidos. O local onde se faziam as cópias escritas passou a ser cham ado de e s c r itó r io . N o horizonte cultural da Idade M édia, o c o n h e c i m e n t o n ã o d e v i a r e p r e s e n t a r p r a z e r i n te le c tu a l m a s s e r v iç o p a r a a m a i o r g ló r i a d e D e u s . Todo ensino dirigia a cultura essencialmente para a perpetuação de verdades consideradas eternas. N o século X I, a Igreja já era católica (universal) e rom ana no seu m odelo de governo, dona de um a estrutura perm anente. T inha o controle não só da teologia e das cerim ônias religiosas m as tam bém das atividades culturais, educacionais e festivas em todos os centros m ais im portantes da E uropa. Poucos - e

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Figura 15 - Em cima: Antes da invenção da imprensa toda a cultura européia foi mantida pelo trabalho dos monges copistas nos conventos. Os textos sagrados eram a maior e praticamente única fonte de inspiração e de conhecimento, regulando a vida das pessoas, com exclusão dos poderosos que freqüentemente os afrontavam. Embaixo: Numa Europa inculta e sem imprensa, as peregrinações religiosas (Santiago de Compostela, Roma, Jerusalém), com exceção das cruzadas, representaram por muito tempo as mais poderosas fontes de intercâmbio cultural entre populações estranhas. com g ran d e risc o - se av en tu rav am a elo cu b rar sobre q u a lq u e r assunto fo ra dos cam pos d e lim ita d o s p e lo o fic ia lis m o d o m in a n te , d e fin id o p e la s te o ria s de S an to A g o stin h o .

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A s p rin cip ais obras da literatura greco-rom ana não eram lidas, e as exceções tinham sido rem terpretadas para não contradizer a fé perm itida, que buscava sem pre “a verdade” definitiva e integrada, capaz de dar ao m undo seu significado glorioso. A filosofia cristã representou, sem dúvida, o m a i s a b r a n g e n te , a b s o l u t i s t a e d is c i p i i n a d o r s i s t e m a d e p e n s a m e n t o d o m u n d o o c i d e n t a l p o r m i l e q u i n h e n t o s a n o s - atenuando-se progressivam ente a partir do século X Y II -, porém m antendo até hoje m arcante influência, não m ais tão ostensiva, m as, num a síntese hegeliana, presente nas bases do com portam ento ético do m undo ocidental. Prm cipalm ente durante m il anos, após a queda do Im pério R om ano no século Y , civilização foi cristianism o. A filosofia, a cultura e todo o conhecim ento estavam voltados para a busca de Deus. Contudo, isso não im pedia que m esm o os reis declaradam ente cristãos ou católicos violassem o pacto de fidelidade com a Igreja, por m eio das agressões e lutas que com etiam contra os seus representantes m ais titulados, com o bispos e até o Papa. E ó b v i o q u e a I d a d e M é d i a n ã o s e v i a c o m o u m a g r a n d e n o i t e m a s c o m o te n d o u m a v is ã o g lo b a l, e n x e r g a n d o o m u n d o c o m o a g r a n d e o b r a d e D e u s . M e t á f o r a e s i m b o l i s m o p e r m e a v a m to d o s o s s e u s a s p e c to s . A m e s d e r e f e r e n d a r q u a l q u e r i d é i a f i l o s ó f i c a o u p r á t i c a , a I g r e j a c e r tific a v a - s e d e q u e n ã o c o n tr a r ia v a m s e u s e n s in a m e n to s . A s s i m o c o r r ia ta m b é m c o m a f i l o s o f i a a n tig a , c u j o s m a i o r e s p e n s a d o r e s s ó f o r a m a c e i t o s d e p o i s d e d e v id a m e n te i n t e g r a d o s n a é tic a c r i s i ã , s í n t e s e s c u ltu r a is f e i t a s p r i n c i p a l m e n t e p o r S a n to A g o s t i n h o , c o m P la tã o , e p o r S a n to T o m á s d e A q u i n o , c o m A r is tó te le s . E f o r ç o s o r e c o n h e c e r , p o r é m , q u e , m e s m o c o n s id e r a n d o to d o s o s e r r o s in e r e n t e s à c o n d iç ã o h u m a n a e a t r i b u í v e i s a o e s tá g io e v o l u t i v o - c u l t u r a l d a h u m a n i d a d e n a é p o c a , o c r is tia n is m o r e a liz o u a ta r e fa ím p a r d e c o n fe r ir u n id a d e c u ltu r a l e e s p ir itu a l a u m m u n d o b á rb a ro , q u e d e p o i s s e t r a n s f o r m a r i a n o m u n d o e u r o p e u e o c id e n ta l. N ã o d e v e m o s s e r i ã o s e c t á r i o s a p o n t o d e j u l g a r a H i s t ó r i a c o m c r i t é r i o s d e c o n d u t a a tu a l, p o i s c a d a é p o c a te m s u a p r ó p r i a c u ltu r a . E s t e é u m tip o d e p r e p o t ê n c i a q u e c o lo c a s e u s p r a t i c a n t e s n o p a n t e o n d o s d e u s e s a u to - n o m e a d o s .

o O m u n d o e x i s t i a p a r a s e r c o n t e m p l a d o e s e u s e n t i d o p r o f u n d o r e f l e t i d o . Sendo D eus o m estre do m undo, e r a n o s m o n a s t é r i o s q u e s e e n s in a v a m a s p r i m e i r a s liç õ e s . O privilégio de

ler e escrever pertencia aos hom ens da Igreja, aos altos funcionários públicos e a alguns m édicos, advogados, tabeliães ou construtores. A ntes da difusão da leitura e da escrita, a com unicação se fazia p ela palavra, por sons e sím bolos de m arcas, serviços ou produtos. Os m ais velhos retinham pela m em ória atos de venda ou últim as vontades de um m orto. N otários redigiam contratos. Do 4o ao 6o século só existiam escolas nos m onastérios principais ou nas catedrais, lugares de ensino até o século X I, pois os futuros padres eram obrigados a instruir-se para propagar a fé e defender os interesses da Igreja. O s abades acolhiam nas escolas m onásticas, desde os seis anos de idade, m enm os pretendentes à v id a religiosa, filhos de pais cam poneses que queriam proporcionar-lhes ascensão social, e prm cipalm ente os “doados a D eus”, crianças enferm as ou doentias, plebeus ou nobres, que conseguiam sobreviver graças a um "m ilagre”, cuja m aioria se tornava m onge, passando a vida nos conventos. Só no século X II difundiu-se o direito de desistir aos doze anos da vida m onástica, por ausência de vocação. A parte estes e os raros jo v en s dos castelos que tinham um professor para ensinar-lhes a dom icilio, os das vilas aprendiam o catecism o e decoravam preces e salm os em latim na escola presbitenal - sem saber ler -, cujo significado lhes era explicado pelo cura. A lguns m onastérios dispunham de um a segunda escola, externa, onde a instrução era gratuita, reservada aos filhos de nobres ou negociantes, que deixavam o m onastério aos doze anos, e aprendiam a ler a B íb l i a e a cantar os salm os. Do 6o ao 8o século, surgiram escolas episcopais, sob a direção dos bispos. Em 7S9, quando Carlos M agno decidiu organizar a rede de ensino escolar na França, im pôs a criação de escolas em todos os m onastérios, cidades e vilas, onde eram lecionadas leitura, escrita, gram ática latina, filosofia.

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cálculo, geom etria, astronom ia, canto religioso - ensinados pelos m onges, com textos, desenhos e explicações ao vivo, seguindo a escolha dos pais. E ntre os séculos XIII e X Y , aum entaram as escolas nas vilas, e a instrução com eçou a ser paga. A escola era reconhecida por um pergam inho (pele de anim al especialm ente tratada para escrever atrás, inventada na cidade de Pérgam o), fixado na porta de um a casa com um alugada, com o nom e do m estre, custo e duração dos estudos. Os alunos m oravam com o professor e sua fam ília por alguns m eses, a quem retribuíam tam bém com serviços, já que o curso não costum ava durar m ais do que esse tem po. N ão havia program as form ais de ensino. A s lições estendiam -se depois da m issa do alvorecer até às cinco da tarde, para aproveitar a luz do dia, p o is a sala de aula era m al ilum inada e m al aquecida, onde apenas o m estre possuía um a cadeira. Só no fim da Idade M édia, os m ais velhos tinham direito a bancos, num nível abaixo daquele do professor. O s outros sentavam em palha sobre o chão. Tão difundido fo i esse sistem a que em Paris ainda existe a r u e d u F o u a r r e , ou seja, da palha. Porque a sala era pequena, alguns escutavam da porta. O utros m estres ensinavam n a rua. C om o os estudantes em todas as épocas sem pre foram m uito turbulentos, não podiam portar arm as m as, em com pensação, tinham a proteção do Rei da França. O s alunos com eçavam a copiar e m em orizar o alfabeto anotando-o com estiletes pontudos sobre c era endurecida cujos tabletes ju n tav am em caixas - porque não ex istia papel os pergam inhos eram caros, e os livros m anuscritos, tesouros que custavam tanto quanto um a tropa de vacas. U sava-se o m étodo silábico p a ra o aprendizado da leitura, o que e ra feito em latim . C om o os alunos não tinham nem livros nem cadernos, eram obrigados a aprender decorando as lições e a responder m ecanicam ente às perguntas feitas, já que o i m p o r t a n t e e r a a p r e n d e r e n ã o c o m p r e e n d e r . Para a leitura e a tom ada das lições, os professores em prestavam os prim eiros livros, geralm ente a B í b l i a , salm os, livro de horas ou de m issa. O cálculo era ensinado com pequenas contas e sob form a de problem as. Para a m aioria dos que concluíam os estudos, bastava leitura, escrita e cálculo elem entar. A té o fim da Idade M édia, não existia ortografia, cada um escrevendo com o bem entendesse. G eom etria estudava-se n a universidade, e G ram ática latina reservava-se para os futuros padres, advogados, notários e m édicos, na Escola de G ram ática, onde aprendiam p o r m eio de fábulas m oralistas do grego E sopo e de seu im itador latino Fedro, tam bém em vernáculo. M atérias com o H istória e G eografia eram reservadas para jo v en s da alta nobreza, bem com o línguas vivas eram ensinadas para filhos de m ercadores e para viajantes, m as geralm ente o latim servia p a ra todos, com o o inglês hoje. Os professores tinham o direito de aplicar castigos físicos aos alunos relapsos, com o pum ção, e tam bém por terem a convicção de que c a s t i g o s m a r c a m o e s p ir ito e o f o r t a l e c e m . Entretanto, outros anunciavam program as de ensino sem violência, crescentem ente procurados, em bora a m aioria dos m estres exibisse varas de salgueiro entre os sím bolos de sua autoridade. O açoite era perm itido desde que não fizesse sangrar. N o século XIII, o pedagogo que quebrasse um osso do aluno p o d ia ser punido p ela Justiça, e o ensino se tornou progressivam ente m ais benevolente: a pancadaria fo i substituída, em parte, por sustos e horríveis m áscaras dentuças que am eaçavam devorar os alunos. Pais e, às vezes, professores ofereciam recom pensas aos estudantes distm guidos, sendo as m ais cobiçadas livros bem ilustrados. U m terço do ano era preenchido com festas e feriados religiosos para todos, e férias para os estu d an tes, que se esbaldavam nessas ocasiões, e, d eix an d o de lado p rin cíp io s cristãos, exteriorizavam seus recalques usando fantasias, fazendo-se de bobos, ridicularizando professores e figuras da Igreja e até açoitando m estres relapsos. Previam-se férias de verão para os estudantes de origem rural retornarem às suas casas, a fim de ajudar na colheita depois das vendas do outono.

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É a razão porque, ainda hoje, os estudantes se beneficiam de grandes férias durante o verão, até outubro. A lém da escola, existiam preceptores m dependentes, em pregados pelos nobres. E m troca de pagam ento, os notários ensinavam filhos de negociantes ou artesãos, ju n to com seus filhos, a ler e escrever. U m pai podia m andar o filho para um abade e pagar p o r sua educação, sob a responsabilidade de um m onge. A s jo v en s ricas eram ensinadas em casa por um a preceptora de boa origem , estudando, além de religião, leitura, história e filosofia. Toda dam a nobre devia ter livro de contas e entender de impostos, para gerir as propriedades nas longas ausências do marido nas guerras, saber dançar, serv ir à m esa, cam inhar tesa com os olhos baixos, jam ais n r e falar à m eia voz. D evia tam bém orientar e aconselhar os cam poneses da propriedade e seus inúmeros afilhados. Quando o castelo estava m uito sombrio, passeavam com as crianças ao sol. Jogavam xadrez, que serv ia para desenvolver estratégia, civism o, cálculo e, às vezes, encontrar m ando. Sendo um a m inoria que necessitava conservar sua cultura, todas as crianças ju d ia s sabiam ler, as filhas aprendendo em casa, os filhos nas sinagogas dos bairros ju d eu s. E studavam até dezoito, vinte anos, em seqüéncia o T o r á e salm os, m atem ática, astronom ia e m oral, lógica de A ristóteles, física e ciências naturais. O rabm o era responsável p ela sinagoga e o ensino, e a esposa pela m anutenção e apoio. E studavam em seqüéncia de m atérias, breve para os simples, lo n g a p a ra os fu tu ro s rabinos. Todas as casas tinham p e lo m en o s um livro, o T a lm u d e . Possuíam habilidade bilíngüe em alfabeto latino e hebraico, o que servia tam bém p a ra serem intérpretes de cruzados que partiam para Jerusalém . N um a época em que a censura era férrea, a m aioria da população iletrada, o conhecim ento privilégio de um a m inoria - não existia nem im prensa e as com unicações se faziam apenas boca a boca -, u m a c u l t u r a tã o e n g e s s a d a c o m o a m e d i e v a l s ó p o d i a m o v e r - s e p o r i n f l u ê n c i a d a a r t e e d a s p e r a m b u l a ç õ e s . A ssim , nos séculos X I a X III, a arte rom ânica, antes da gótica, fo i a prim eira lm guagem com um européia. D e todas as rotas m edievais aos sagrados pontos da fé, levando os r o m e ir o s a Rom a, os p a l m e i r o s a Jerusalém e os p e r e g r i n o s a Santiago de Compostela, nenhum a atm giu o significado desta últim a em term os de intercâm bio cultural e estabilidade, num a extensão de m ais de m il quilôm etros vencidos a pé por m ultidões durante m ais de mil anos. E afirm ado que a Europa se fez, em grande parte, peregrinando a C om postela (Figura 15). A p e s a r d a s e p id e m ia s , d a s g u e r r a s , d e n e n h u m d o s c o n fo r to s d a a t u a l s o c ie d a d e d e c o n su m o , q u e n ã o c o n h e c ia m e n ã o a lm e ja v a m , a s p e s s o a s n a I d a d e M é d ia n ã o d e ix a v a m d e s e r fe liz e s , p o i s c u ltiv a v a m n o m a is a lto g r a u b e n e fíc io s q u e o s m o d e r n o s p e r d e r a m q u a s e q u e c o m p ie ta m e n te , h a v e n d o p r o p ó s ito s é tic o s e e s p ir itu a is o c u lto s , ilu s tr a n d o c r e n ç a s m e ta fís ic a s e c o lo c a n d o a l m a s à p r o v a . C o m o a te o lo g ia l h e s fo r n e c ia v e r d a d e s d e fin itiv a s e ir r e m o v ív e is , a f é lh e s g a r a n tia a c e r te z a d e u m p r e s e n te s e m te m o r , e a e s p e r a n ç a s e m p r e r e n o v a d a l h e s a s s e g u r a v a o p o r v i r d e u m a b o a v id a fu tu r a , e s s a s a titu d e s r e m o v ia m a in s e g u r a n ç a d e to d o s o s q u e a c r e d ita v a m n a q u e le s is te m a d e v id a c o m o o ú n ic o p o s s ív e l, o u se ja , a m a io r ia d a s p e s s o a s . A c e r te z a g a r a n tid a p e l a f é , a tr a n q u ilid a d e p r o p o r c io n a d a p e i a e s p e r a n ç a , a a c e ita ç ã o a s s e g u r a d a p e l a d e s a m b iç ã o , o s d ir e ito s c o n c e d id o s p e l o p a te r n a lis m o g e r a lm e n te d a v a m a o p o v o m e d ie v a l c o n s o lo s c a p a z e s d e t o r n a r a v id a a g r a d á v e l o u p e l o m e n o s s u p o rtá v e l, p e i a a u s ê n c ia d e m e d o , d e fr u s tr a ç õ e s e d e esrresse. N ó s , o s to à o -p o à e r o s o s d a s o c ie d a d e d e c o n s u m o d a e r a c ie n tífic a , é b o m q u e s e ja m o s c a u te lo s o s , p o i s n ã o s a b e m o s c o m o s e r e m o s v is to s p o r f u t u r a s g e r a ç õ e s .

Inquisição: U m a trava na história N o com eço do século XIII, um grupo cristão predom inando pelo L anguedoc e sul da França, que cultuava antigos ensinam entos m am queistas - segundo os quais o m undo é dividido, de form a equilibrada, entre o criador do Bem e o criador do M al, ou sejam , espírito e m atéria -,

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cham ado de a l b i g e n s e s (com origem na cidade de A lb i), ou c á t a r o s (puros), contestava claram ente dogm as do catolicism o, acreditando na reencarnação, professava um culto direto a Deus, dispensando m issas e padres, desprezava a riqueza, principalm ente da Igreja, cultuando m ortificações e sim plicidade, e atribuía apenas um significado teológico a Jesus. E m m uitos aspectos eram vistos como seriam vistos, depois, os q u a k e r s . Seu perigo residia no arrebatamento das m ultidões, pobres e ricos, p ela “ suave persuasão", sem apelar a intim idações, extorsões, culpas ou am eaças, m étodos co rren tes do c a to lic ism o o ficial da época, até p a ra aplicar sacram entos, isso sem falar dos casos de explicita corrupção sexual e econôm ica. A possibilidade concreta de a crença dos cátaros estender-se a outras plagas, ao lado de um a notável queda de rendas da Igreja, fez com que, em 1207, o papa Inocéncio III exigisse do Rei da França e de nobres a supressão dos hereges de seus dom ínios p o r um a ação m ilitar, no que não lo g ro u m u ito sucesso, a p e sa r das rec o m p en sa s m ate ria is e e sp iritu a is prom etidas. D esentendim entos e o assassinato de um legado papal reforçaram a exigência, pelo Papa, de um a “guerra santa” aos hereges cátaros - descritos com o piores que os infiéis m uçulm anos -, com prom essas de abolição dos pecados e recom pensas eternas aos que o apoiassem . A partir daí, em 1209 iniciava-se a quarta cruzada e a prim eira contra cristãos. N o saque e pilhagem à cidade de Béziers, cuja população incluía grande núm ero de cátaros, ao perguntarem ao legado papal, A m ald-A m aury, com o distm gui-los dos verdadeiros cristãos, este respondeu “M atai todos eles. Deus reconhecerá os Seus”, seguindo-se um a carnificina de quinze m il hom ens, m ulheres e crianças. Tam anho fanatism o naturalm ente só term inaria com a com pleta supressão da últim a resistência albigense organizada, num a sucessão de guerras e fogueiras por cerca de mais cinqüenta anos. A pesar disso, o catarism o sobreviveu n a Itália até o século XY. N o início da questão albigense. D om ingos de G uzm án, padre espanhol m agro e severo como todo asceta, conhecido por seus dons retóricos, concebeu estabelecer um a rede itinerante de m onges descalços, representando a austeridade e o ascetism o dos prim eiros cristãos e dos “Pais da Ig re ja ”, não isolados em m osteiros, m as capazes de vencer os pregadores cátaros em “torneios teológicos”. Dom m gos tornou-se a p r i m e i r a f i g u r a d a I g r e j a a p r i o r i z a r o c o n h e c im e n to e a c u ltu r a c o m o in s tr u m e n to d e p r e g a ç ã o r e lig io s a . não apenas com o apelo retórico ou de ilustração, reforçando a idéia de que fé pode provir da razão. Junto com essas boas intenções, D om ingos, coerente com o absolutism o da época e com a inflexibilidade de seu pensam ento, ligou-se a fanáticos cruzados e convenceu o P apa da necessidade de criar um a ordem m onástica que pelos tem pos afora deveria ocupar-se em vigiar e defender a pureza da fé: assim , a Ordem D om inicana foi form alm ente estabelecida em 1216 pelo pontífice H onóno III. E m tem po: tão a sério levaram os dom inicanos seu papel de guardiães da fé católica que alguns chegaram a ser consumidos pela própria ortodoxia, como é o caso do tam bém asceta dommicano italiano Jerônimo Savonarola (1452-1498) que, depois de tentar estabelecer um a sociedade m onástica, foi queimado em Florença, p o r p edir a cabeça do corrupto papa A lexandre V I (R odrigo B orgia, pai de Cesare e L ucrecia, entre outros filhos). V endo isso, N iccolò M achiavelli (1469-1527) concluiu que neste m undo a força e a hipocrisia valem m ais que a decência, e escreveu O P r ín c ip e , a ju d a n d o a d e s m is tific a r o s p o d r e s d o p o d e r e d a fo r tu n a .

N ascida das cinzas do conflito albigense, sustentada pela irredutibilidade doutrinária e exercida com férrea determ inação evangélica, a o r d e m d o s d o m i n i c a n o s p a s s o u a r e p r e s e n t a r o d o g m a tis m o d a c r e n ç a c a tó lic a . Em 1233, o papa G regóno IX, um am igo de D om ingos, emitiu um a bula atribuindo aos dom inicanos a tarefa específica de erradicar todas as heresias e prosseguiu an u n c ia n d o um trib u n a l perm an en te com posto p o r “ irm ão s d o m inicanos” , inaugurando oficialm ente a I n q u is iç ã o um ano depois, a qual seria reform ulada por Ignacio de L oyola em 1542, tam bém cham ada de T r ib u n a l d o S a n to O fic io , e que iria estender-se com períodos de fúria e calm aria por todo o m undo católico, até ser oficialm ente extinta som ente no século XX.

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Seu órgão substituto cham a-se, desde 1965, de C o n g r e g a ç ã o p a r a a D o u t r i n a d a F é : a m ais im portante do V aticano, continuando a ser dirigida por dom inicanos, respondendo diretam ente ao Papa. A In q u isiçã o rom ana era o ú l t i m o e s t á g i o d e j u l g a m e n t o e o m a i s s e v e r o d e t o d o s . D urante a H istória, funcionaram com o sustentáculos da Inquisição a m ajestade de Rom a, o poder do Papado, a força do Estado católico, a influência dos reis e nobres por ele sustentados, o exército dos ortodoxos. N as suas form alidades de investigação secreta, indiciam ento anónimo, tortura com o persuasão, julgam ento sem defesa, expropriação de bens, execução irrecorrível, a Inquisição foi extrem am ente piedosa. Parecendo haver um a tradição do século IX de que os funcionários da Igreja eram im pedidos de derram ar sangue, porque ferim entos por espada, lança ou adaga, fora da guerra, seriam não cristãos, elegeu-se o fogo com o o suprem o instrumento da ju stiça. Parece que isso proveio de um a tradição do código legal rom ano segundo a qual a m orte pelo fogo era o castigo padronizado para parricídio, heresia, sacrilégio, bruxaria e traição. Tão grande era a atração pelas fogueiras que m uitos hereges, assim julgados postum am ente, foram desenterrados para serem cristâm ente punidos pelo fogo. D isfarçada de piedade cristã, ressu scitav a-se um antigo ritu a l pagão de sacrifício hum ano, iro n icam en te cham ado de "auto de fé”, um a vez que a t o r t u r a m e n t a l e f í s i c a e r a e n c a r a d a c o m o u m r á p id o c a m in h o p a r a a s a lv a ç ã o .

A afirm ação de Santo A gostinho e x t r a E c c i e s i a n u i i a s a l u s ou “ fora da Igreja não há salvação", perm itia especulação sobre qualquer questão, a não ser sobre a n atureza da fé, o que lim itava todo o resto. A ceite a religião da m esm a form a que nós ou fique m udo p a ra sem pre transform ou-se na ordem da Inquisição. M a t a r to d o s o s q u e n ã o p e n s a m c o m o g r u p o s e m p r e f o i a f ó r m u l a d o f a n a t i s m o m á x i m o , com o bem atestam os m onstruosos atos de terrorism o dos fundam entalistas religiosos de todos os tem pos, inclusive hoje em dia, tranqüilos no seus delírios, j á que D eus saberá recom pensar os m ártires e os inocentes. C om o um preito à triste m em ória, dois nom es entre m uitos ressoam nas noites da história: B ernard Gui e Tom ás de Torquem ada, p a ra os q u ais a m ais in sid io sa fo rm a de subversão e ra a to le râ n c ia . N e ssa s p e sso a s, a intransigência hum ana confundiu-se com o absoluto. C atástrofes naturais, fom e, seca, peste, inundação, tudo passou a ser atribuído a poderes dem oníacos, que só a pureza da fé, naturalm ente sob a conduta da Inquisição, poderia com bater. O m esm o se aplicava à loucura, ao erotism o, à raiva, às m anifestações de fem inilidade. C om o vem os hoje em culturas islâm icas ainda estacionadas na Idade M édia, as m ulheres não tin h am d ire ito à se x u alid ad e ou à in stru ção . B ru x as eram v istas e m to d o s os lu g ares, principalm ente pelos m enos instruídos, e convenientem ente condenadas. O dem oníaco podia ser identificado com qualquer m anifestação de desordem ou com o ceticism o em relação a qualquer ato prom ulgado p ela Igreja (Figura 16). N a Inglaterra, com o n a E scandinávia, a Inquisição não atuou porque os códigos legais predom m antes não vieram da lei rom ana m as do direito anglo-saxão. A ssim , a Inglaterra tinha seu próprio sistem a legal que assegurava direitos a todos os hom ens livres do reino, sendo que a culpa era determ m ada pelo processo do ju ri, e a aplicação da ju stiç a não previa m étodos de tortura. A lém do estranham ento da Inglaterra com R om a desde os tem pos de G uilherm e, O Conquistador, não havia instrum entos legais nem eclesiásticos para m anter as atividades da Inquisição. A teologia e a religião organizada são representadas pelo sacerdote, a e x p e r i ê n c i a r e lig io s a é p r o p r i e d a d e d o m ís tic o . N o fundo, este é um a am eaça ao poder com ercial da prim eira porque torna supérfluos o sacerdote e toda a hierarquia eclesiástica. Seja qual fo r a crença, a experiência e s o t é r i c a do m ístico revela um denom inador com um e difere da e x o té r ic a do m inistro religioso.

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R eservando-se um contato intim o com sua crença, o m ístico puro vive sua fé, enquanto que quem faz as guerras sâo representantes de um p o d er am bicioso ou paranóico. Tudo o que contrariar o “M anual" ou o “L ivro" está errado, sendo que o m aior interesse dos dispostos a m atar p ela fé é abafar a voz do conhecim ento. Tanto isso é verdade que m uitos m ísticos famosos, m esm o sem nenhum a pretensão intelectual ou científica, não escaparam das condenações da Inquisição, alguns até reabilitados e canonizados depois.

Figura 16 - Condenado pela Inquisição. Como resultado do absolutismo de idéias, julgamentos por tribunais eclesiásticos eram irrecorriveis, e os crimes mais graves pumdos com tortura e morte pelo fogo. A té a década de 1520, m uitos franciscanos de ten d ên cias m ísticas continuaram a ser condenados p o r heresia. O seguinte exem plo serve p a ra dar um a idéia do tip o de debates e questões que ocupavam as m entes m ais distinguidas naquele tem po: em 1351, um franciscano

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falou do sangue derram ado por C risto durante a crucificação. Segundo e le ; esse sangue caíra no chão e perdera a divindade, devido à separação do corpo de Jesus. Portanto, não ascendera ao C éu ju n to com o M estre. E ssas afirm ações causaram p rofunda indignação no Inquisidor dom inicano de Barcelona, que, aproveitando para atacar a ordem rival, enviou detalhado relatório ao Papa. Este, tam bém indignado, convocou um a conferência, que condenou oficialm ente as afirm ações do franciscano. E m itiram -se instruções a todos os inquisidores de que tais afirm ações deveriam ser proibidas, sob pena de prisão e julgam ento, e o enunciante fo i obrigado a retratar-se. M esm o assim , os franciscanos continuaram a discutir sobre o assunto, discreta e internam ente. Q uase cem anos depois, a polém ica fo i reacesa novam ente no C olégio de Teologia da U niversidade de Paris. A pós alguns anos de debate, os teólogos em itiram , oficial e solenem ente, a conclusão de que não era contrário à doutrina da Igreja acreditar que o sangue de Jesus perm anecera na T erra e não subira aos céus. Por incrível que pareça, em 1462, ao expor tn u n fa listic a m e n te essa te se , outro fra n c isc a n o incorreu, de novo, n a ira do inquisidor dom inicano, havendo a necessidade de o bispo local intervir, retirando a intim ação emitida, m as com o com prom isso de enviar o assunto diretam ente ao Papa. N o interv alo, dom inicanos fulm inavam dos púlpitos a heresia franciscana. Não querendo m elindrar nenhum a das ordens, o Papa convocou outra conferência e tentou postergar a solução. Porém , a questão m ostrou-se progressivam ente m ais espinhosa, e nenhum a facção conseguiu extrair do Novo Testamento qualquer prova sobre a questão em disputa. M ais um ano se passou e, em 1464, o P apa publicou um a bula proibindo toda discussão em caráter oficial até que o tem a fosse decidido por um pronunciam ento da Santa Sé. A contece que esse Papa m orreu oito dias depois, e o novo pontífice deu um jeito de adiar a resposta se o sangue derram ado p o r Jesus subiu ou não ao Céu. A o que se sabe, até hoje não houve solução para tão transcendental questão! P e n a l i z a n d o s e v e r a m e n t e t o d a e s p é c i e d e q u e s tio n a m e n to f o r a d o s d ita m e s d a o r to d o x ia , a I n q u i s i ç ã o r e p r e s e n to u p o r c e r c a d e s e te c e n to s a n o s a m a i o r m o r d a ç a a o c o n h e c im e n to r a c io n a i o r g a n i z a d o n o m u n d o o c id e n ta l.

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CA PITU LO IV . FE CO M R A ZA O : ESC O LA STIC ISM O De com o as am arras do absolutism o teológico com eçam a ser rom pidas pela crença do hom em na razão independente da fé, estim ulada pela cultura árabe entrante na E uropa, o que propicia o surgim ento da escolástica. Representa a escolástica o retorno do aristotelismo que, m oldado pela religião católica, desem barca na criação das universidades. Estas servem apenas para arm azenar e transm itir o saber inquestionável - para m aior glorificação divina e não para criá-lo. A lberto M agno e Santo Tom ás de A quino sim bolizam esta era. Estado do conhecim ento natural: O bservacionism o controlado teologicam ente. 7. O PEN SA M EN TO TEO LÓG ICO CO M O BA SE D O CONHECIM ENTO Início da Separação entre Fé e R azão: O hom em pode pensar as religiões antropom órficas, a figura de Deus Pai costum a ser representada por um velho hom em com barba, m as rijo e robusto - detentor único de todo o p o d er -, visão arquetipica m áxim a da severidade. U m dogm a central do cristianism o é o da Santíssima Trindade, em que D eus Pai, D eus Filho e D eus E spirito Santo são um só. Por esse dogm a, o cristianism o evidencia a unidade de D eus se m anifestando na harm onia da criação e do espirito. O Pai não tem princípio, o Filho é gerado pelo Pai desde toda a eternidade, é o seu verbo, e o Espirito Santo procede do Pai e do Filho, sendo o am or que os une. H ebreus e m aom etanos perm aneceram estritam ente m onoteistas, e nas suas religiões Jesus Cristo figura apenas como um profeta. O m arco distintivo do cristianism o é tê-lo elevado a Deus, depois de aceito pelos p rim e iro s c ris tã o s co m o se n d o o M e s s i a s que os h e b re u s tanto esp erav am . Se M oisés m orreu sem v e r a face de Deus, o cristianism o a revelou aos hom ens, se não a do Pai pelo m enos a do Filho. Se bem que os d eu ses g reg o s já eram sem i-h u m an o s, fecu n d av am hum anas, c o m o

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c r i s t i a n i s m o f o i a p r i m e i r a v e z q u e o D e u s ú n ic o s e m o s t r o u a o s h o m e n s p o r m e io d e s e u f i l h o J e s u s C r is to , dito ter nascido da V irgem M a n a e do Espirito Santo. E sse fato suscitou questões

extrem am ente polém icas m esm o entre seus seguidores, jam ais im agm adas antes, sendo a m ais fam osa a m antida pelo m onge A rius (arianism o) no século IV , insistindo em que D eus Filho tm ha u m s t a t u s inferior ao de D eus Pai: “C om o?" - perguntava A riu s - “C risto sendo igual ao Pai, nunca dissera que era D eus m as enviado p o r Deus, com o D eus poderia ter sofrido na cruz, igual a qualquer m ortal, com o se subm eter ao julgam ento dos hom ens, como ter funções humanas, com o ser filho de um a m ulher com um ?" A ssim , num a visão hum ana, a S a n tís s im a T r in d a d e p o d e s e r c o n s id e r a d a c o m o u m a c o n c e s s ã o a o p o l i t e í s m o . C ontrariando expectativas, o caminho para a confirm ação da divindade total de C risto com o integrante igualitário da Santíssim a Trindade (de acordo com o que pregava depois o ortodoxo Santo A tanásio, tenaz opositor de A rius) não foi pacifico mas gerou um a série de prolongadas lutas e interm ináveis concílios entre facções cristãs, prm cipalm ente no século IV , quando a questão aparentem ente se resolveu por decreto, através do C oncílio de C onstantinopla, em 381, decisão favorecida pelo firm e apoio arm ado do im perador Teodósio, um intransigente cristão anti-ariano. A s diferenças entre as Igrejas cristãs do O cidente (R om a) e do O riente (C onstantinopla) datam do século IV. E m 325, o C oncílio de N icéia estabelecera que o Espírito Santo provinha exclusivam ente de D eus Pai. M ais tarde, no O cidente, tornou-se dogm a que esse Espírito provinha do Pai e do Filho, crença confirm ada novam ente em 587 e 792. O fato de não provir da pessoa do Pai m as da natureza com um de duas pessoas, Pai e Filho, originava um a ordem abstrata, um a lógica hierarquizada dentro da Trindade, e tornava o Espirito Santo um a essência

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em vez de um a brilhante irradiação ligada à pessoa de D eus Pai. E ssa interpretação provocou violenta reação dos bispos bizantinos, que nunca abriram m ão de que D eus o é não p o r ser um a essência m as por ser um a pessoa, culm m ando, em 1054, com o cham ado “ Grande C ism a” entre as Igrejas cristãs do O riente e do O cidente, que se separaram . A partir dai, desenvolveu-se no O riente um a teologia da pessoa, m ais m ística, enquanto que n o O c id e n te c o m e ç o u a d e s a b r o c h a r u m a te o l o g i a r a c io n a i, q u e b u s c a v a , in c lu s iv e , p r o v a s d a e x i s t ê n c i a d e D e u s . Iniciava-se o encontro com as idéias de A ristóteles, seguindo um a interpretação capaz de descobrir D eus a partir do estudo da natureza. O m ovim ento cultural que deu form a a essa nova tendência foi a Escolástica, term o proveniente do latim s c h o i a (escola). A s prim eiras tentativas de conciliar fé e razão se iniciaram em B agdá, no século IX , por teológos m uçulm anos, tentando adaptar os ensm am entos de A ristóteles ao C o r ã o . A pós, os filó so fo s e m éd ico s Ibn R u ch d ou A v erró is (1 1 2 6 -1 19S), islâm ico , e B en M aim o n ou M aim onides (1135-1204), judaico, reafirm aram que fé e razão não são incom patíveis, a prim eira devendo atuar no dom ínio da religião e a segunda no dom ínio do m undo natural. M aim onides dem onstrou um a ordem de coisas escondidas além das definições banais de inteligência e de fé. L ibertando os estudos aristotélicos da influência do neoplatonism o, considerado precursor dos filósofos heréticos no islam ism o e no cristianism o, A verróis foi m ais longe, dizendo que o m undo não podia te r sido criado do nada, e negando, com o A ristóteles, a im ortalidade da alma individual, em bora o n o u s , ou o principio da inteligência cósm ica, fosse im ortal. Tão grande era a reverência desses filósofos por A ristóteles que M aim onides queria integrá-lo ao judaísm o e A verróis o cham ava de "P rofeta”. Se A verróis representa a tendência racional do pensam ento islâm ico, Ibn Siná ou A vieena (980-1037), tam bém m édico e filósofo, representa sua tendência m ística, para quem a sabedoria é u m cam inho capaz de levar à inteligência divina. D e qualquer m aneira, p e lo século X II, com eçava a em ergir, nas trés religiões m onoteístas principais, um a separação entre cren ça e entendim ento, idéias que, com o tem po, abririam cam inho para a Renascença. O s prim eiros pensadores cristãos eram conhecidos com o “Pais da Igreja”, cujas razões m oldaram o cristianism o. Pelo século X I, depois do Grande Cisma, a escolástica representou um pensam ento e ensino filosófico-teológico usado p o r filósofos m edievais para entender e explicar a natureza, adaptando prm cipalm ente a antiga filosofia grega baseada em A ristóteles à doutrina católica, através de discussões abertas ( d i s p u t a t i o ), surgidas de questões polém icas ( q u a e s tio ), tentando conciliar fé e razão. Foi o resultado natural de um a atitude anti-experimental, a f i m d e q u e o o b s e r v a d o e s tiv e s s e d e a c o r d o c o m “v e r d a d e s c r i s t ã s " p r e v i a m e n t e a s s u m id a s

(invente antes, explique com o pensa que é!), e não a doutrina com o observado. A m aior preocupação dos escolásticos era provar racionaim ente a existência de Deus, no que foi campeão o beneditino Santo A nselm o (1033-1109), que chegou a arcebispo de Canterbury. E autor da “prova ontológica” da existência de Deus, depois adotada p o r D escartes no século X V II, ao elaborar a certeza que deu base â sua teoria racionalista: “Tem os a idéia de um ser perfeito; a perfeição im plica a existência, logo o ser perfeito existe”. Partindo da prem issa de que E ste é o m aior objeto do pensam ento, ao afirm ar-se que E le não existe, deve-se im aginar algo ainda m aior, que exista. Santo A nselm o definiu a especulação filosófica com o um a explicação da fé. C om o o p raticam en te único sistem a filo só fico da Idade M édia era o neoplatonism o, a e s c o lá s tic a r e p r e s e n to u , em ú ltim a a n á lis e , u m a r u p tu r a d a d o u tr in a p la tô n ic a . Considera-se-a fundada pelo nom inalista Roscelino (Anselmo de Laon) que ensinou dialética no século XI. Lecionou em Paris e dirigiu a Escola de Laon, tendo escrito um a explicação literal da B íb lia latina. Roscelino alegava serem os universais de Platão m eros sons ou fia tu s v o e is. (Universais são nomes sob os quais a filosofia medieval designava as idéias ou os term os gerais que serviam

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para classificar os seres e os pensamentos, em núm ero de cinco: género, espécie, diferença, próprio e acidente). Tendo exposto um a doutrina ousada mas nâo herética sobre a Trindade, foi obrigado a abjurá-la sem poder explicá-la. Trocou de nome na Inglaterra e depois voltou ao continente - França e Rom a -, onde expôs suas antigas teorias sem problema, criando o nominalismo ou a doutrma segundo a qual qualquer espécie tem apenas existência verbal, batizando o perceptível pela palavra, opondo-se assim à teoria das idéias universais de Platão, em que todo o perceptível é a reprodução imperfeita de arquétipos perfeitos eternos, que considerava apenas produtos da mente, sem conexão com a realidade. Depois, o nominalismo teve em Guilherme de O ccam seu principal defensor, abrindo caminho para o empirismo. M uito depois, no século XX, reagindo contra a lógica formal, W ittgenstein diria que o m undo só pode ser entendido através das palavras, aproximando o mais possível o pensamento da realidade, ou seja, dos fatos e objetos particulares. Pedro A belardo (1079-1142), prim ogénito rico, dispensou a fortuna para ser filósofo, lógico e teólogo. Cham ado de “Sócrates francês” por seus contem porâneos, fo i um a das personalidades m ais célebres da Idade M édia, sendo um dos introdutores da escolástica, aprendida com seus m estres A nselm o de L aon e G uilherm e de C ham peaux. M esm o m onge, não adotou as definições im postas de bem e de m al. A o afirm ar que a fé tem um lim ite racional, sofreu acirrado combate dos ortodoxos. G uilherm e de C ham peaux (m eados séc. X I-1121), antes professor de A belardo e depois seu adversário, aliou-se a São B ernardo de C lairvaux, o m ais virulento dos seus detratores, que, escandalizado pelo m étodo de A belardo, “D a dúvida à pesquisa, da pesquisa à verdade”, dizia ser ele nem clérigo, nem laico, nem m onge, mas um possesso. A correspondência com sua alu n a H eloísa (1101-1164), co m quem tev e um am or p ro ib id o , p erm anece um m onum ento m igualado n a literatura universal. E xem plo da vida intelectual do século XII, sua biografia é um retrato singular de um artista do pensam ento e faz ju stiç a a H eloísa, um a interlocutora privilegiada. Pela m oral individualista, é considerado um dos precursores do racionalism o francês. Perseguido por suas idéias e por sua conduta, fo i em asculado e separado até a m orte da am ada H eloísa, a m ando do tio e preceptor desta, cônego Fulbert. M orreram em conventos separados. Estão enterrados juntos em Paris. Foram desenvolvidas várias teologias escolásticas, sendo a m ais fam osa o t o m i s m o de Santo Tom ás de A quino, o a g o s t i a n i s m o : desenvolvido por Santo A gostinho, o e s c o tis m o de Duns Escoto e o n o m i n a l i s m o de G uilherm e de O ccam (vide págs. S6, 109, 11S). H ouve até um s u a r e z i s m o , do jesu íta espanhol Francisco Suarez que, no século X V I, quando já vinha se d esen h an d o o rac io n alism o cien tífico , tentou fa z e r u m a sín tese das v á ria s escolásticas. Em bora o tom ism o seja considerado o pináculo do escolasticism o, este já pode ser visto na obra de Santo A gostinho através da seguinte m áxim a: “C om preenda só aquilo que vocé pode acreditar; acredite só no que você pode com preender”. Com todo o respeito, é um pensam ento incongruente, pois reduz o dilem a a um círculo fechado. E ntender só o que se acredita não faz avançar nada em direção a um novo conhecim ento. E ntender é desdobrar a crença a conseqüéncias lógicas. U m é análise, outro é síntese. Q u a n d o p a s s a a s e r e n te n d id a , a f é t r a n s f o r m a - s e e m r a z ã o . O e n te n d im e n to d e q u e e x is te r a z ã o a lé m d a f é , p r o p i c i o u o s u r g i m e n t o d e u m a s is te m a f i l o s ó f i c o , a E s c o lá s tic a , q u e p r o c u r a r a c h e g a r a D e u s p o r c a m in h o s ló g ic o s , f i r m a n d o a s b a s e s d o r a c io n a i i s m o a p a r t i r d a í.

N ascim ento das Universidades: O saber oficializado A pesar de já existirem universidades no m undo árabe desde o século X , nessa época, na Europa, com o visto, as abadias e os m o n astén o s eram a única fonte de cultura, m antida pelos clérigos. O exemplo árabe influenciou na fundação da E scola de M edicina de Salerno, Itália, no século XI. A m ais antiga U niversidade no sentido m oderno é a de B olonha (10SS), seguida pelas de M ontpellier (1180), P ádua (1222), N ápoles (1224) e Toulouse (1229).

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E m bora analfabeto, coube a Carlos M agno (742-S14) o m érito de organizar escolas oficiais no Im pério Franco do Ocidente. A partir do século X I, graças a um a certa parada n a m obilização guerreira dos povos, à prosperidade e ao aum ento do intercâm bio internacional, c o m e ç o u a m a n i f e s t a r - s e u m a r e n o v a ç ã o c u l t u r a l . G ente s e q u io sa p o r in stru çã o se a g ru p a v a nos m onastérios, a fim de receber lições de m estres desta ou daquela disciplina. A li, os estudantes e sc o lh ia m as m a té ria s a e stu d a r, os p ro fe s s o re s e até os h o rá rio s, a lu g av am sa la s ou sim plesm ente se agrupavam nos claustros ou nas igrejas. O s livros eram raros e custosos, e m u ito s professores os em prestavam . A s p rin cip ais disciplinas ensinadas eram Teologia, A ritm ética, A stronom ia, G ram ática, M úsica, D ireito e M edicina, e os estudantes procuravam reter na m em ória o aprendizado ou tom avam notas em pergam m hos ou blocos de cera endurecida para discutir a m atéria com os colegas nas tabernas. N o início, os alunos geralm ente pagavam p e la s liç õ e s re c e b id a s. Q u an d o se a b riram as p rim e ira s u n iv e rsid a d e s no sé cu lo XII, ensinava-se a ciência antiga de H ipócrates, A ristóteles, Euclides, Ptolom eu e G aleno, transm itida pelo m undo m uçulm ano. E studos universitários eram caros. E ra necessário alugar alojam entos, p ag ar a com ida no refeitório coletivo, com prar tinta, livros, pergam m ho. Para os estudantes pobres ou de origem rural h av ia colégios criados por benfeitores, geralm ente em honra de santos, e dotados de biblioteca. D entro de um regulam ento severo, acolhiam bolsistas escolhidos p ela sua inteligência entre os cam poneses e dem ais classes sociais. O s prim eiros esperavam ser padres, o que representava um a ascensão social. O s segundos vinham p a ra instruir-se ou obter altos postos na Igreja ou na adm inistração. Os conventos, com biblioteca, acolhiam tam bém os jo v en s que estudavam para serem pregadores da palavra de Deus. B olsistas eram obrigados a participar dos serviços dos conventos e das festas religiosas. M uitos livros eram acorrentados para evitar perdas ou roubos. E m 1179, o C oncílio de L atrão estendeu benefícios especiais aos professores nas escolas episcopais, onde se ensinava prm cipalm ente teologia, o que tornou o ensino gratuito e acessível aos pobres. N o com eço do século XIII, as ordens m endicantes - dom inicanos e franciscanos com eçaram a ensinar. N o m om ento em que um núm ero significativo de alunos se distribuía por várias disciplinas, a escola tornava-se um a U niversidade, entendida com o um a organização com unitária englobando m uitos professores e estudantes. N esse sentido, é possível v er-se o surgim ento da U niversidade de O xford em 1163, e da de Paris em 1215. N o século XIII, em P aris, h av ia cerca de c in q ü en ta colégios, sendo que, em 1253, o co n fesso r de São L uiz (L uiz IX), Robert de Sorbon (1201-1274) fundou seu colégio, depois cham ado de a “Sorbonne", p a ra p e rm itir que d e z e s s e is e stu d a n te s p o b re s e stu d a sse m te o lo g ia . C om o as e sco la s agruparam -se no lado esquerdo do Sena, e o latim era a ú n ica língua u sad a no am biente universitário, o lugar passou a cham ar-se q u a r t i e r i a t i n (Figura 17). A m aioria dos estudantes vestia toga e gorro redondo, beneficiando-se de alguns privilégios: estavam isentos de taxas e de pedágios sobre as pontes, só podiam ser julgados pela ju stiç a do bispo, e o R ei os protegia m esm o de sua policia. Professores e alunos tinham direito à greve e a p a sse a tas de p ro te sto , se fossem m o lestad o s. O s e stu d a n tes tin h am a té u m gram ado extram uros da cidade p a ra divertirem -se e praticarem esportes. A pesar de tantos privilégios, ou por isso m esm o, eram turbulentos e m uitos freqüentavam m ais as tabernas que os cursos. E ram com uns algazarras noturnas, brigas entre eles e com os habitantes da cidade, resultando em feridos e m ortos. Para proteção dos m estres, antes dos exam es finais em alguns cursos, eram obrigados a ju ra r não-vingança caso fossem reprovados.

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Figura 17 - Estudantes medievais (em cima) e lentes da Universidade de Paris (embaixo). Com origens religiosas e uma visào hierárquica, as universidades não visavam a criação do saber mas apenas sua conservação e transmissão, os alunos devendo memorizar e não questionar. Somente no século XIX, na Alemanha, surgiu o modelo atual de ensino universitário. Cem anos depois, as universidades tornaram -se corporações obedecendo diretam ente ao Rei ou ao Papa. N a Península Ibérica, as m ais antigas são Salam anca (1243), na Espanha, e Coim bra (1290), em Portugal. C om o tem po, as universidades com eçaram a ser reconhecidas pelo tipo de ensm o m inistrado: a U niversidade de Paris tornou-se fam osa pelo ensm o da Teologia, restrito a

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hom ens, a de B olonha pelo ensino de Direito, a de Salam anca pelo ensino de M edicina.A partir desse m om ento surgiram universidades por toda a Europa, particularm ente n a Itália (n a época, o lugar m ais culto da E uropa) e na França. E ra grande o prestígio da L iteratura, cultuada pelas canções de gesta dos trovadores e da prosa e verso dos cronistas das cruzadas. G eralm ente os alu n o s com eçavam aos quatorze anos n a F aculdade de A rtes, ten d o antes c u m p rid o os pré-requisitos de leitura, escrita e latim . D epois de geralm ente seis anos de estudo, e licenciado, o estudante podia ensm ar ou continuar e estudar Teologia, D ireito ou M edicina. O s alunos re c e b ia m d ip lo m as n o s g ra u s c re sc e n te s de L i c e n c i a t u r a , B a c h a r e l a d o e D o u t o r a d o . Pelo início do século X Y , quatro m il estudantes viviam em Paris. N o século XIII, as idéias avançadas de escolásticos com o A lberto M agno e R oger Bacon tentaram vencer as barreiras do im obilism o usando a experim entação, porém foram abafadas pelo oficialism o dom inante. A lberto M agno esteve entre os m uito poucos escritores m edievais que realm ente observaram a natureza. M ais que qualquer outro escolástico, r e p r e s e n ta o e s p ir ito c ie n tífic o c o m e ç a n d o a a c o r d a r . Seu pupilo, Santo Tom ás de A quino, reform ulou o pensam ento anstotélico de m odo que atravessasse a Idade M édia. R oger B acon, franciscano enciclopedista, ensinou em Paris e Oxford, sendo feito prisioneiro p ela Igreja p o r quatorze anos. E m bora não experim entador nem m atem ático, sentiu que sem essas posturas a filosofia natural não levaria ao desenvolvim ento das ciências, apesar de am da consideradas por ele fundam entalm ente com o um suporte a serviço da religião. A s u n iv ersid a d e s nasceram e perm aneceram durante séculos com a in cu m b ên cia de a r m a z e n a r e t r a n s m i t i r o s a b e r , n ã o d e c r i á - i o . O lhando-se p o r esse lado, am arraram o conhecim ento m as a filosofia natural viu-se reforçada, pois, p o r estar a serviço da teologia cristã, passou a dom inar o novo ensino. A ristóteles, Ptolom eu e Galeno continuavam im perando. C om o já visto, o ensino era repetitivo e m em orizado, freqüentem ente adm m istrado sob a form a de fábulas, sendo o raciocínio ou a dedução quase nada cultivados, e tentar m udar o saber herdado dos clássicos ou ensinado p ela Igreja era grave heresia. A penas no século X IX surgiu na A lem anha, Prússia, o tip o m oderno de U niversidade, com ênfase no ensino e na pesquisa, isto é, na criação de conhecim ento novo (vide pág. 212). A p e s a r d e a e s c o l á s t i c a s e r u m p e n s a m e n t o s e c tá r io , s ó p e r m i t i n d o c o n c lu s õ e s c o n c o r d a n te s c o m o s e n s in a m e n to s te o ló g ic o s , r e p r e s e n to u u m fu lc r o p a r a q u e id é ia s m a r g in a liz a d a s p u d e s s e m s e r , p e l o m e n o s , d is c u t i d a s e a d a p t a d a s a o o f i c i a l i s m o d o m in a n te . E s s a s id é ia s , d e p o i s c o m f o r ç a p r ó p r i a , a b r ir ia m c a m i n h o p a r a a s u p e r a ç ã o d o m ito . G r a ç a s à lu ta d e in te le c tu a is p r e s t i g i a d o s , a o n a s c i m e n t o d e n o v a s e s c o la s e u n i v e r s i d a d e s e à d i f u s ã o d a c u ltu r a c lá s s ic a p o r in flu ê n c ia á r a b e c o m e ç a v a a n a s c e r a c iv iliz a ç ã o e u r o p é ia e o c id e n ta l, q u e fin a lm e n te s e e m a n c ip o u n a R e n a sc e n ç a .

Influência Árabe: Frades inovadores N o m om ento da m orte de M aom é, em 632, o Islã se espalhara por toda a Arábia. E m 751, ia desde as fronteiras da França com a E spanha até quase a China. Sua influência propiciou grande progresso nas artes, n a m atem ática, n a arquitetura, na m edicina, n a filosofia, na astronom ia, na alquim ia, na cerâm ica e nos têxteis. O contato cultural com o m undo árabe, m ais avançado, prm cipalm ente nos séculos XII e X III, t e v e u m e n o r m e e f e i t o t r a n s f o r m a d o r n a E u r o p a c o m o u m to d o , que nessa época m ostrou o prim eiro real florescim ento da civilização e do pensam ento, desde o fim do Im pério Rom ano. A bom ba do ensino grego original explodiu no século X II na E uropa. Foram trazidos pelos árabes, e traduzidos pelos cham ados “ arabistas" (com piladores e enciclopedistas bizantinos e árabes, que m uitas vezes eram cristãos, persas e judeus) trabalhos originais de álgebra, óptica e c o m e n tá rio s e tra d u ç õ e s de A ris tó te le s , a q u em re v e re n c ia v a m c o m o u m se m id e u s.

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M ais tarde, textos gregos ficaram disponíveis em grego e em latim , por vezes de m aneira ardilosa, pois grande parte dos prim eiros trabalhos foram feitos em Toledo, região da Espanha sob domínio árabe. Rom pendo o m onopólio cultural islâm ico, no século XII, A belard de Bath, futuro tutor do rei H enrique II da Inglaterra, precisou disfarçar-se de árabe e m filtrar-se n a E spanha para fazer cópias e traduções, inclusive um a p a ra o latim dos E l e m e n t o s de Euclides, servindo por séculos com o um texto básico no O cidente. G erard de C rem ona, com cerca de oitenta trabalhos a seu crédito, traduziu o A i m a g e s t o de Ptolom eu. M ichael Scot, astrólogo e feiticeiro, estabeleceuse na Sicília, por onde tam bém entrava o conhecim ento árabe para a cristandade. Scot, tradutor tanto do hebraico com o do árabe, fo i responsável pelas versões latinas dos com entários de A verróis sobre um a série de trabalhos científicos de Aristóteles e de um texto com um a descrição das esferas celestes. A o lado desses, havia um exército de “arabistas" e de copistas introduzindo a cultura num a E uropa sequiosa de conhecim ento. Paris e O xford foram os protótipos de U niversidades m edievais em que o c o n h e c i m e n t o c o m e ç o u a s e r q u e s tio n a d o . Paris tornou-se um grande centro de teologia cristã ocidental e, por volta de 1220, as ordens m endicantes dos dom inicanos e dos franciscanos lá se estabeleceram e com eçaram a ensm ar. Foi a época de A belardo e A lberto M agno, considerado o m aior erudito da Idade M édia, e outros. M uitos franciscanos estabeleceram -se em Oxford, pontificando dois grandes pensadores, Robert G rossetéte e seu aluno R oger B acon, am bos versados nas traduções do arábico, recém introduzidas. R obert G rossetéte (1168 1175-1253 - “cabeça grande", não sei se devido ao tam anho da m esm a ou ao alcance das idéias), nascido em Suffolk, provalvelm ente estudou em Paris de 1209 a 1214, e m ais tarde chegou a bispo de Lincoln, ensinou não só teologia aos franciscanos ingleses m as tam bém línguas, m atem ática e ciências naturais. R econhecendo a im portância da cultura grega que ressurgia, estudou astronom ia, cosm ologia, acústica e particularm ente óptica. Foi além , discutindo as finalidades da ciência, ou seja, explicando as razões para a experiência, identificadas com as causas dos fenóm enos. J á c o m e ç a v a a n a s c e r a f i l o s o f i a d a c iê n c ia . Chegou a esboçar um m étodo cientifico - dizendo que os agentes causais deveriam ser analisados a partir de seus princípios com ponentes -, sugerindo criar um a hipótese de com portam ento, verificá-la ou invalidá-la pela observação. M ostrou que certos conhecim entos eram dependentes dos outros, i n t e r r e l a c i o n a n d o o s a b e r , u m a n o v i d a d e p a r a a é p o c a . A ssim , declarou que a Ó ptica e a A stronom ia eram subordm adas á G eom etria, pois am bas se valiam desta últim a. N os seus estudos, alude a lentes de aumento e de dim inuição, e talvez tenha engendrado um telescópio rudim entar. A s idéias de G rossetéte são um prenúncio de Francis B acon, no século XVII. N ascido em Lanm gen, na Baviera, A lberto M agno (1193-1280) ou A lberto, O G rande, foi considerado o m aior erudito da Idade M édia. Estudou ciências hum anas em P ádua e após tornou-se m onge dom inicano, contra a vontade de seus pais. D epois de ensinar nos Estados G erm ânicos, em 1240 foi para Paris, onde dirigiu a “C adeira para E strangeiros" por sete anos. A seguir, deslocou-se para Colônia, tornando-se superior dos dom inicanos alem ães e bispo de Regensberg. A lberto M agno, que passou toda sua vida pregando e ensm ando, dem onstrou a extraordm ária c o r a g e m d e a j u d a r a i n t r o d u z i r a c i ê n c i a g r e g a e á r a b e n a s u n i v e r s i d a d e s e u r o p é ia s - especialm ente ensinam entos de A ristóteles -, enquanto estava em Paris, num a época em que estes ainda não eram vistos com bons olhos pela Igreja (seus trabalhos foram proscritos em Paris, de 1210 a 1234, m as, devido â oscilação do pêndulo da H istória, foi beatificado em 1652). Não se lim itando só à ciência de A ristóteles, parafraseou suas Lógica, M atem ática, Ética, Política e M etafísica, o que, na visão dos críticos da época, o colocou em igualdade com o próprio e com seus com entaristas árabes, com o A verróis. Por isso, recebeu o titulo de “D outor U niversal" e de hom em m ais erudito da Idade M édia. M ais do que considerar Aristóteles infalível, A lberto o viu com o um guia p a ra praticar a observação e dizia que a c i ê n c i a , m a i s d o q u e

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acrediiar em alguém , consiste em questionar a natureza das coisas. U sou o aristotelism o para a ciência m as nas questões religiosas propriam ente ditas m anteve-se platônico, hábito seguido por outros pensadores m edievais anstotélicos (Figura 18).

Figura 18 - Chamado de o maior erudito medieval, Alberto Magno (à esquerda) buscou na cultura árabe e reintroduziu o estudo de Aristóteles no Ocidente. Seu discípulo Santo Tomás de Aquino (à direita) fez a síntese do aristotelismo com o cristianismo, criando o tomismo, a corrente mais poderosa da escolástica, doutrina que reconhecia a separação entre fé e razão, e a importância desta para explicar o mundo natural dentro de premissas teológicas. Xo inicio refutado pela ortodoxia cristã, devido ao seu aristotelismo. Santo Tomás depois foi chamado de "Doutor Angélico”. O m aior trabalho de A lberto M agno reside na observação da natureza. E studou, com parou e classificou anim ais, vegetais e m inerais, descreveu novas espécies, observou o acasalam ento dos insetos, d isse c o u g rilo s, exam inou alg u n s ó rg ão s rep ro d u tiv o s de an im ais, estudou em briologia, tal com o seu m spirador grego, abrindo ovos de galinha em diferentes estágios de incubação, e foi o prim eiro a dizer da im portância da luz e da tem peratura para o crescim ento das plantas. M ostrando que podiam criar-se novos tipos de plantas por m eio de enxertia, deixou im plícito que a v id a não é estática m as que pode ser m anipulada pelo hom em , um perigoso conhecim ento p a ra a época. A o separar a filosofia natural do dogm a, sentiu-se livre para criticar

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alguns aspecTos da ciência de A ristóteles, com o explicações sobre o m ovim ento dos corpos; especulou que a V ia L áctea era com posta de estrelas e que a Lua não tm ha a superfície lisa. M ais do que isso, não refutou a teoria atôm ica de Dem ócrito, pois não acreditava na transmutação da m atéria, tão buscada pelos alquimistas. N a França do século X III, C hartres, onde se eleva a m ais pura das catedrais góticas, fo i o grande centro de um a ciência nascente. E m bora as artes do t r i v i u m , gram ática, retórica e lógica, continuassem sendo ensinadas, a preferência era pelo estudo das coisas, r e s z que constituíam o objeto do q u a d r i v i u m : aritm ética, geom etria, m úsica e astronom ia. E xplica-se essa m otivação pelo im passe criado n a filosofia m edieval que, nessa altura, esgotara-se e não avançava além do circulo estéril de eternas definições e discussões teológicas, m etáforas e m ais m etáforas. O estudo do q u a d r i v i u m refletia a orientação do “espirito chartriano", espirito de curiosidade, de observação e até de investigação, que alim entou a ciência greco-árabe, resum ida num a fórm ula contundente: “O exílio do hom em é a ignorância; sua pátria é a ciência". Tal curiosidade irritava os tradicionalistas, a ponto de Absalon de Saint-Victor, representando a m aioria, escandalizar-se com considerações sobre a “form a do globo terrestre, a estrutura dos elementos, a localização das estrelas, a natureza dos animais, a violência do vento, a vida das plantas e das raizes", e de Guillaume de Samt-Thierry ter escrito a São Bernardo (professor e depois desafeto de Abelardo) denunciando a existência de gente que explicava a criação do primeiro hom em “não a partir de Deus mas da natureza, dos espíritos e das estrelas". Irado, Guillaume de Conches replicava: “Ignorando as forças da natureza, eles querem que perm aneçam os ligados à sua ignorância, nos recusando o direito de investigação e nos condenando a perm anecer atrelados a um a crença sem inteligência". Por meio desses posicionamentos, percebe-se que já se criava um a ruptura no monolítico idealismo medieval, em direção a atitudes progressivamente criativas. Assim, no século XIII já existia a arquitetura gótica, a universidade, a escolástica e vislumbrava-se o método experimental. Porém, s e a s m e n ta lid a d e s m a is o b s c u r a n tis ta s d e n u n c ia v a m a e s c o lá s tic a c o m o u m a a v a n ç o in a c e itá v e l, im a g in e - s e o q u e v ir ia d e p o is . C o n h e c im e n to s n a t u r a i s e c o n c e p ç õ e s f i l o s ó f i c a s f o r a m r e v i v i d o s p e l o s b r ilh a n t e s in te le c to s d e fr a n c is c a n o s e d o m in ic a n o s a p a r tir d e u m a c u ltu r a o r ig in a lm e n te p a g ã , tr a n s m itid a p e lo s á r a b e s . P a r a a m a i o r i a d o s t e ó l o g o s c r is tã o s . ta is v is õ e s a p r e s e n t a v a m - s e c o m o i n i m i g a s d e u m a r e lig iã o r e v e la d a , a i n d a m a i s q u e c e r t o s e n s i n a m e n t o s a r i s t o t é l i c o s c o n flita v a m c o m a s E s c r i t u r a s , a p o n t o d e t e r e m s i d o c o n d e n a d o s p e l o s t e ó l o g o s d a U n i v e r s i d a d e d e P a r is . C o m o o s a v a n ç o s o b tid o s n a r a c io n a lid a d e s ã o ir r e v e r s ív e is (se m p re o s ã o , p a r a d e s g o s to d o s to ta litá r io s ) , c e r t a m e n t e h a v i a a n e c e s s i d a d e d e u m a s ín te s e a c e i t á v e l d o a r i s t o t e l i s m o c o m o c r is tia n is m o , f u n d i n d o a d o u t r i n a c r i s t ã e o p e n s a m e n t o p a g ã o . A í s u r g i u T o m á s d e A q u in o .

A E scolástica R essuscita A ristóteles: Santo Tom ás de Aquino abre cam inhos A contribuição de Santo T om ás de A quino (1225-1274) foi decisiva, pois s e u s te x to s e n c a ix a m - s e n a r e v o l u ç ã o c u l t u r a l d o s é c u lo X I I I z e sua obra é a fonte prm cipal da teologia católica atual, unindo a filosofia de Aristóteles com a religião cristã. N essa época, as universidades européias já difundiam conhecim ento por interm édio das “sete artes liberais" a um núm ero crescente de estudantes. T al expansão do m undo erudito passou a questionar o excessivo confm am ento e rigidez da doutrina de Santo A gostinho, única aceita até então pela Igreja. Santo Tom ás de A quino, nascido em N ápoles, sétimo filho de um conde, aos cinco anos com eçou a ser educado no elitista m osteiro beneditino de M onte Cassmo. Transferido para a U niversidade de N ápoles, aos 21 anos sua fam ília m andou prendé-lo, para não tornar-se um m onge dom m icano (m em bro da O rdem fundada p o r São D om m gos em 1216), o que significava m endicância para garantir a subsistência. N a prisão, escreveu seu prim eiro tratado sobre teologia e filosofia, centrado na lógica. N ão desistiu da idéia, pois os dom inicanos eram notáveis

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predicantes, professores e m issionários - atraindo-o pelo brilhante intelectualism o empenhado em responder a questões desafiadoras ao cristianism o. A os 30 anos aceitou a C átedra de Teologia na U niversidade de Paris, onde sofreu a influência de eruditos dom inicanos que estudavam A ristóteles, trabalhos de árabes e de rabm os. A m aior influência foi exercida por A lberto M agno, num a época em que Platão era o filósofo m ais im portante e A ristóteles ainda um pouco herético: lem brem os que A ristóteles, com o outros filósofos gregos, não concordava com a im ortalidade da alm a individual nem com a idéia da criação, pensando que o m undo e o hom em sempre existiram. Os antigos acreditavam que a raça hum ana era devolvida periodicam ente aos prim órdios da civilização por interm édio de dilúvios ou outras catástrofes. A lberto M agno, o m aior erudito da Idade M édia, fez a p r i m e i r a e x p o s iç ã o s is i e m á t i c a d o a r i s i o t e i i s m o , iniciando sua adaptação á doutrina cristã. Em teologia, entretanto, seguia m ais o platonism o (Figura 18). Inspirado prmcipalmente p o r A lberto M agno, Aquino leu traduções de textos sobre Aristóteles, cuja filosofia e de outros gregos havia sido conservada pelos árabes. A qum o absorveu a idéia de A ristóteles de almas com valor crescente, e afirm ava que os anjos estão entre os hom ens e Deus. R e to rn a n d o á Itá lia d ep o is de trê s anos, em 1264, e scre v e u su a o b ra m ais im portante, S u m m a c o n t r a G e n tile s , em que m ostrava aos pagãos as vantagens de ser cristão. A o considerar três tipos de verdades: e s t r i t a m e m e t e o l ó g i c a s (conhecidas só p ela revelação); f i l o s ó f i c a s (que não foram reveladas, acessíveis à razão); te o ló g ic a s e f i l o s ó f i c a s (reveladas m as tam bém acessíveis á razão), abriu cam inho para a in v e s tig a ç ã o i n t e l e c t u a l d e s v in c u la d a d a h e r e s i a , o grande tem or da época, pois podia significar prisão ou pena de m orte, geralm ente na fogueira. A quino refutou Santo A nselm o, argum entando que estava além da razão hum ana conhecer a essência de Deus m as que era possível dem onstrar sua existência por meio de evidências que só p o d e ria m p ro v ir D e le , com o: m u d a n ç a s das c o is a s , a c o n te c im e n to s q u e se sucedem , interdependência na natureza, harm onia dos seres e excelência chegando à perfeição. A pesar de antecessores, Santo Tom ás de A qum o é visto como o prim eiro teólogo com um a racionalidade baseada n a observação, unm do a fé com os sentidos! Santo Tom ás s a l v o u A r i s t ó t e l e s p a r a a d o u t r i n a c r is tã , am da que esquecendo alguns dos seus textos originais aos quais a m aior crítica dos ortodoxos era relacionada com o pensam ento considerado averroísta sobre a im ortalidade da alm a. Com o já visto. Santo Agostm ho, no século IV , reinterpretara o conceito de Platão de um m undo de idéias transcendentes ou de formas ideais (essências), transform ando-o em um m undo ordenado por D eus: para ambos, todo o conhecim ento hum ano era derivado desses conceitos gerais cham ados u n iv e r s a is ou arquétipos perfeitos pré-existentes e eternos. Para Aristóteles e Santo Tomás, ao contrário, todo conhecimento derivava de experiências particulares transform áveis nos conceitos abstratos das idéias universais (existência sem essência, presença real de algo). Tom ás viu na essência o potencial para a existência. A essência do m undo feito por D eus precedeu a existência desse m undo m as a essência de Deus não pode ter precedido sua existência; logo, D eus é só existência. A discussão sobre se os universais têm existência separada ou não, e suas gradações, foi o problem a central da filo so fa m edieval, estendendo-se até hoje. Professor e teólogo m uito ativo, fundou várias escolas e congregações em Florença, Paris e N ápoles. Entretanto, suas obras foram desaprovadas pelas U niversidades de Paris e Oxford, só recebendo o devido reconhecim ento cinqüenta anos após a sua m orte. R aciocm ar era ousadia. Para quê justificar a existência de Deus, algo evidente? T entar provar sua existência im plicava em pensar que E le poderia não existir. "Para responder à questão da existência ou não do destino, poderiam os cham ar de destino a ordem criada pela Providência. M as é m elhor não fazer isso, pois destino é um a palavra pagã", escreveu. Com o, durante um longo tem po, a teologia católica só ratificou as idéias aceitas a partir de Santo A gostinho, o grande valor de Tom ás de A qum o foi

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tirar a fé católica desse im passe e afirm ar que nossa com preensão m ais profunda sobre as leis da n atu reza n ã o a m e a ç a a f é b a s e a d a e m q u e D e u s te m o c o n h e c i m e n t o a b s o l u t o , m a s s ó e x a lta S u a ob ra .

Porque a criação deve hom enagear o Criador, Tom ás considera o m undo e o hom em como im agens de Deus. Se o hom em é Sua m ais gloriosa criação, d e s e n v o l v e r a r a z ã o h u m a n a é lo u v a r a G ló r ia D iv in a . Segundo ele, fé e razão cam inham para esse m esm o fim. O “M otor Im óvel" de A ristóteles se harm onizava com a fé dos cristãos no D eus que criou todas as coisas, sem a qual não poderia h av er U niverso: “L evar em bora a causa é levar em bora o efeito". A o contrário de filósofos que descobriram D eus pelo pensam ento, Santo Tom ás de A qum o O encontrou pela contem plação de Sua obra, tal como Aristóteles: a essência é puram ente potencial e a existência é puram ente atual. Com o a existência nos faz rem ontar á essência, é possível ir do hom em a Deus, vista a analogia existente entre Deus, m undo e hom em , estes Sua imagem. Sem serem Deus, participam Dele. Santo Tom ás de A qum o tentou harm onizar as inegáveis verdades em píricas nascentes - que form avam um em brião da ciência futura - com as afirm ações irrem ovíveis do dogm a religioso, o que foi considerado por alguns com o um a ação m ais cultural e política que científica. Após um a visão divina, parou de escrever, dizendo que palavras eram “apenas palha”. Obeso, term m ou seus dias num convento italiano, onde fo i encontrado m orto no lavatório, dizem que envenenado por ordem de Carlos I da Sicília. A pós sua m orte, sua filosofia passou a ser reverenciada pelo catolicism o, levou-o a ser canom zado em 1323 e a ser proclam ado D outor da Igreja em 1567. Em 1879, o papa L eão X III elevou sua filosofia a m odelo de pensam ento cristão. C om sede da O rdem em R om a, tradicionalm ente um frade dom inicano ocupa o posto de conselheiro-chefe do Papa. A pós o C oncílio V aticano II (1962-1964) essa veneração abrandou-se um pouco. A g r a n d e c o n tr ib u iç ã o d e S a n to T o m á s d e A q u i n o f o i s i n t e t i z a r t o d o o p e n s a m e n t o o c id e n ta l a t é s u a é p o c a , m o s tr a n d o s e r c o m p a t í v e l c o m a f é c r is tã , e u s a n d o a t é e le m e n to s d o s p r o s c r i t o s p e n s a m e n t o s is lâ m ic o e j u d a i c o , n u m e m b r i ã o d e e c u m e n is m o . O to m is m o ( filo s o fia d e S a n to T o m e is) c o n s i s t e n u m e x ito s o c a s a m e n to d e u m c r is tia n is m o j á p la t o n i z a d o c o m a f i l o s o f i a d e A r is tó te le s , d i s t i n g u i n d o m u ito b e m o q u e é d o u t r i n a e o q u e é f i l o s o f i a . C o m o A r is tó te le s , r e c o n h e c e q u e to d o o c o n h e c im e n to r a c i o n a i d e s t e m u n d o p e n e t r a n o in te le c to p e l o s s e n tid o s . U s a a e x p r e s s ã o “t a b u l a r a s a ", o u p a p e l e m b r a n c o , p a r a d e s c r e v e r a c a b e ç a d e u m a c r ia n ç a , e x p r e s s ã o q u e d e p o i s f o i c o p ia d a p o r J o h n L o c k e .

A Filosofia N atural Revivida: A ristóteles volta à cena Com o vim os, a filosofia m edieval com eçou oscilando entre os conceitos transcendentais de Platão, com o “bom " e “belo" e acabou optando pelos conceitos m ais ordenados e hierárquicos de A ristóteles. Segundo esses, a realidade é individual e o m undo um a coleção pluralística de indivíduos e particulares. No plano social, essa forte tendência à individualidade deu suporte à rígida estratificação social feudal, já que cada pessoa tinha um a função e posição apropriadas. N o com eço da era m edieval e depois, com o escolasticism o, a F ilosofia tornou-se um a serva da Teologia, pois, por ser o conhecim ento um jogo de cartas m arcadas, em bora a fé transcenda a razão, convm ha que o fiel se fortalecesse ao m áxim o contra a dúvida. E xcluídas contestações isoladas e abafadas, a filosofia natural adotada n a Idade M édia representava um corpo de conhecim ento global e integrado, sem perm itir "rachas" n a sua estrutura, teleológico e excludente, um a vez que e r a a p r ó p r i a r e v e l a ç ã o d o p l a n o d i v i n o p a r a o m u n d o . A i d é i a d e e v o lu ç ã o n ã o e x i s t i a n e m e r a a d m i t i d a . O aristotelism o, que form ava o âm ago da filosofia natural, e o m ais antigo dos três sistem as, estava perfeitam ente entrosado com a astronom ia ptolom aica e a m edicina galêm ca. Esse conhecim ento entrou na era cristã e, de certa m aneira, tornou-se o ficial. F u ndam entando-se n u m a com preensão filo só fica da n atu reza - m eta físic a -, foi

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“renovado'' á lu z dos ensinam entos cristãos p o r Santo Tom ás de A quino no século XIII, sendo considerado um servo da agora rainha das ciências, a Teologia. N a Idade M édia, Teologia era sinônim o de Filosofia, dom inando-a totalm ente. N o início da renovação cultural, A ristóteles ainda não fora deificado - talvez porque o teleologism o não estivesse am eaçado - e podia ser contestado. Tom ás de A quino fez um a rara incursão na ciência ao discutir - e refutar - a idéia de A ristóteles de que o m ovim ento não-natural dos corpos, por exem plo, um a flecha em vôo, requer um a força aplicada constantem ente para não cair ao solo. Sendo a escolástica a base de todo o pensam ento m edieval tardio, o conhecimento do m undo físico e natural a ela estava subordinado. O grande progresso anterior ocorrera na m atem ática, através da introdução dos cham ados núm eros arábicos, quando os árabes, que os haviam buscado dos hm dus, invadiram a península ibérica no século V III. O novo sistema num érico - trazendo a revolucionária inovação do zero - facilitou extraordinariam ente os cálculos, perm itiu trabalhar com grandes núm eros e desenvolveu a álgebra, propiciando até resolver equações de segundo grau. N ão houve nenhum a resistência ao desenvolvim ento da m atem ática, n a m e d id a e m q u e e s ia n ã o a fe ta v a q u a lq u e r c o n c e ito filo s ó fic o - te o ló g ic o , s e r v in d o e x c lu s iv a m e n te p a r a r e p r e s e n ta r q u a n tid a d e s .

N o século X IY , o estado da Biologia, da Física e da A stronom ia continuava o m esm o que A ristóteles, A rquim edes e Ptolom eu deixaram . Em bora a filosofia natural de A rquim edes e Aristóteles, a geometria de Euclides, a álgebra dos árabes e a astronomia de C opém ico representem as bases da Física, esta é m ais recente que a Quím ica, pois nasceu com G alileu e N ew ton no século X V n. O surgim ento da nova A stronom ia - quando C opém ico acabou com os conceitos de Ptolom eu - e a introdução do M étodo Cientifico, por Galileu, abriram caminho para a Revolução Cientifica. Os conhecim entos de física e de quím ica aplicados à B iologia e à M edicm a (iatrofísica e iatroquimica; ia th r o s = doutor) propiciaram que o funcionamento do corpo pudesse ser explicado num a base psicom ecâm ca e psicoquím ica. Até o fim da Idade Média, no século XY, a M edicina era a que Galeno deixara, sem nenhum progresso em qualquer conceito anatômico ou íisiopatológico, até porque nessa época a medicma foi dominada pelos traumatismos das guerras e combates e pelas doenças infecto-contagiosas e suas co n seq ü én cias, as epidem ias, geralm ente aos cuidados de m o n g es, de c u ra n d e iro s e de b a rb e iro s -d e n tista s e b a rb e iro s-c iru rg iõ e s. O e n sin o m é d ic o o rg an izad o d e sa p a re c e ra . Diversos trabalhos remanescentes em anatomia e fisiologia, depois do incêndio de Alexandria, foram salvos pelos compiladores chamados “ arabistas", destacando-se m édicos muçulmanos como Razi, Avicena e Hali Abas nos séculos Y III e IX, os quais adicionaram insignificantes idéias próprias às de Galeno. Por volta do século XI, m uito do conhecimento antigo foi traduzido do árabe para o latim, notadam ente os trabalhos de Hipócrates, Aristóteles e Galeno, retornando à cultura ocidental prmcipalmente pelo M onastério de M onte Cassmo e pela Escola M édica de Salemo. Salerno, cidade costeira vizinha a N ápoles, inspirada no exem plo de universidades árabes, a b rig o u a p r im e ir a e s c o la in d e p e n d e n te de m e d ic in a d a Id a d e M é d ia n a E u ro p a , fundada no século IX , que teve grande sucesso p o r cultivar ensinam entos de salubridade herdados dos rom anos. Foi em Salerno que os m édicos m edievais encararam a M edicina como um ram o isolado e independente de conhecim ento, que se alim entava de trés fontes: grega, bizantina e árabe-espanhola. O prim eiro M anual destinado aos estudantes foi com pilado pelo lom bardo W anm potus ou Gariopontos, m orto em cerca de 1050, o professor m ais fam oso da época, e contém a base da term inologia m édica m oderna. Gariopontos latinizou term os gregos e fixou palavras da fala vulgar, com o c ic a t r i z a r e c a u te r iz a r . E m Salerno, a m aior parte dos conhecim entos eram expostos em versos e seus cursos abertos tam bém a m ulheres. Foi a p r i m e i r a E s c o l a M é d i c a a s e r o f ic ia im e n te r e c o n h e c i d a , em 1224, quando Frederico II, rei de

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N ápoles, decretou que, para alguém exercer m edicina, precisava antes obter a aprovação dos m e s tre s de S a lern o . N o sé cu lo X I, o s p ro fe s s o re s de S a lern o in tro d u z ira m p re c e ito s galeno-arábicos nos seus cursos e a novidade da dissecção de anim ais, prm cipalm ente porcos. O m esm o rei autorizou ali a dissecção hum ana, em 1241. A m edicm a árabe declinou após o século X III m as m uitas de suas doutrmas, já latinizadas, repousavam em universidades medievais, com o Salerno, Bolonha, Pádua, M ontpellier, Ravena, N ápoles, Paris, Oxford, Cam bridge e outras, onde eram ensinadas. N a Idade M édia, a crença na santidade do corpo e de que ele pertencia a D eus e não ao hom em fez a Igreja ver com m aus olhos a prática da dissecção. A passagem da dissecção de corpos de anim ais para hum anos decorreu da provocação dos textos de Galeno recentem ente traduzidos, de um a natural curiosidade, e da redução do tabu de m utilar corpos, já que a Igreja perm itia que os cruzados ou peregrinos m ortos tivessem seus cadáveres cortados e fervidos para os ossos serem transportados de volta á terra natal. A ssim , na Idade M édia, a dissecção ainda era proibida, prm cipalm ente na Europa do norte, em bora a Igreja não tenha sido com pletam ente hostil, pois a a lm a já abandonara o corpo, indo para o céu ou para o inferno (os corpos destes até que podiam ser dissecados). Foi praticada n a E scola de Salerno e depois n a U niversidade de B olonha, na segunda m etade do século XIII, ai tendo sido estim ulada por autópsias realizadas na Faculdade de Direito. U m a dissecção durava habitualm ente quatro dias - no inverno, devido à putrefação do corpo - e nesta ordem : ventre, peito, cabeça e m em bros, um a ou duas vezes por ano, apenas com função didática e não de pesquisa. O professor tinha a exclusiva f i n a l i d a d e d e i l u s t r a r e m e l h o r f a z e r c o m p r e e n d e r o s e n s in a m e n to s d o s a n tig o s , d i g a - s e G a le n o (Figura 19). H avia a tradição m edieval de o professor conduzir o ritual de dissecção sentado em um p ú lp ito elev ad o , n u m a atitu d e sem idivina, lendo a descrição dos achados em um livro (“M agister d ix if’), enquanto um assistente próxim o ao corpo apontava a um auxiliar a parte a ser dissecada. Para um grande professor, era indigno sujar as m ãos com sangue (origm aram -se dai os títulos m odernos de l e c tu r e r ou professor, assistente ou dem onstrador e auxiliar). Entretanto, m ais de sessenta edições de um m esm o livro serviram por duzentos anos com o a principal fonte de ensm o em anatom ia hum ana. Pelo século X IV , a prática da dissecção hum ana com eçou a ser reconhecida em várias universidades. Só em 1537 o papa Clem ente V II aceitou-a sem restrições para o ensino m édico. Tem -se hoje que a função das universidades é o arm azenam ento, a propagação e a criação da cultura, com ênfase m uito grande neste últim o aspecto. Entretanto, na Idade M édia e até boa parte da Idade M oderna, sim plesm ente não existiu criação de nova cultura pelas universidades. C riar qualquer novo conhecim ento que contrariasse as S a g r a d a s E s c r i t u r a s e ra herético, inadm issível e punível. A v e r d a d e j á f o r a e s ta b e le c id a . A balá-la significava subverter todas as bases da sociedade e, logicam ente, representava um a am eaça às hierarquias e aos privilégios estabelecidos. N ão havendo espaço para m udanças, a m aior parte dos sistemas de filosofia natural estavam contidos no âm bito dos ensinam entos de A ristóteles, que dom inavam a Física, a Biologia e a H istória Natural, de Ptolom eu, que dom inavam a A stronom ia e de G aleno, que dom m avam a M edicina. A Geom etria era m ais ou m enos desenvolvida, a M atem ática rudim entar, a F ísica e a Q uím ica praticam ente não existiam . Com o o saber não era um a conquista hum ana m as um presente do Céu, a filosofia natural tendia a sacralizar os seus referenciais. Presentem ente, a Idade M édia pode ser vista com o um período em que houve algum progresso isolado em campos da astronom ia, cosm ologia, óptica, cinem ática, m atem ática, física e m étodo experim ental, g r a ç a s a e s f o r ç o s in d iv id u a is q u e n ã o tiv e r a m f o r ç a p a r a im p o r - s e à c o n s c iê n c ia c o le tiv a .

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Figura 19 - Professor, provavelmente Mondino, ensinando anatomia na Idade Média. Um ensino médico verticalizado já tivera suas verdades incontestáveis definidas por Galeno. Assim, cabia ao professor, do alto da cátedra, ordenar ao apontador (assistente) que mostrasse ao dissecador o que devia ser exposto aos alunos, tudo de acordo com o livro sacralizado. Havendo discrepância, o errado era o cadáver!

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A u n i d a d e m o n o l í t i c a d o s i s t e m a d e f i l o s o f i a n a tu r a l, p e r m i t i n d o a a b o r d a g e m g e r a l d o e s t u d o d a n a tu r e z a - d o m ic r o c o s m o a o m a c r o c o s m o - e r a v i s t a c o m o p r o v a i n a b a l á v e l d a v e r d a d e d e s s a f i l o s o f i a . S e r f i l ó s o f o n a t u r a l - o t í t u l o m a is p o d e r o s o e d is p u ta d o d a é p o c a n o c a m p o d o c o n h e c i m e n t o “c i e n t í f i c o ”, m u ito s u p e r i o r a o d e m a te m á tic o - e r a e s t a r d e p o s s e d a c h a v e p a r a a e x p lic a ç ã o d e to d o o m u n d o f í s i c o , f r e q u e n t a n d o a s c o r t e s e e n s in a n d o o s n o b r e s . S e a f o r ç a d a m a te m á tic a e r a i n f e r i o r à d a f i l o s o f i a n a tu r a l, o o u t r o p i l a r d a c i ê n c i a m o d e r n a , o e x p e r im e n ta lis m o , s i m p l e s m e n t e n ã o e x is tia . T ã o i m p o r t a n t e e r a o t í t u l o d e f i l ó s o f o n a tu r a l q u e a t é h o j e n o s p a í s e s d e l í n g u a in g l e s a - p a r a d o x a l m e n t e o s q u e m a i s c o n tr i b u í r a m p a r a o e s t a b e l e c i m e n t o d o M é t o d o C ie n tífic o - u m d o u t o r a d o e m c i ê n c i a é r e c o m p e n s a d o c o m u m P h .D . ( P h ilo s o p h ic a l D o c to r ) .

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C A PITU LO V . SEM ENTES DO EX PER IM ENTALISM O D e com o a v isã o co n tem p la tiv a e n à o id e a lístic o -p u n itiv a , p r in c ip a lm e n te dos franciscanos, estim ula e faz crescer a observação do m undo natural, arm ando-a com instrum entos rudim entares e criando novas explicações para o U niverso físico a partir de achados em p írico s p elo s cam in h os da m a g ia , da a lq u im ia , da h istó ria n a tu r a l, da m atem ática, das invenções e até da religião, e m odifica lentam ente o conhecim ento, embora ainda sem o desenvolvim ento pleno do M étodo C ientífico. M agos, alquim istas, e frades curiosos sim bolizam esta era. E sta d o d o c o n h e c im e n to n a tu r a l: M o d ific a ç ã o do c o n h e c im e n to b a se a d a n u m observacionism o renovado. S. OS FRA N CISCA N O S E O EM PIRISM O om seu am or alegre e poético a Deus, os hum ildes m onges da O rdem Franciscana, criada p o r São Francisco de A ssis em 1210 - voltados para problem as ecológicos e sociais e exaltação da pobreza -, foram os prim eiros a questionar radicalm ente a ortodoxia erudita estabelecida m il anos antes por Santo A gostm ho. D entro do absolutism o m edieval, os fra n c is c a n o s re p re s e n ta ra m a p rim e ira v á lv u la de e s c a p e p a ra o lo u v o r à n a tu re z a . A os franciscanos interessavam m ais a contem plação e a beleza do que a punição, tão cara aos dom inicanos. S ua visão do m undo previa a m o d i f i c a ç ã o s e m a n á t e m a s , ideal sintetizado neste trecho da m aravilhosa oração de São Francisco: “Senhor, dai-m e forças para m udar o que for possível m udar, dai-m e resignação para aceitar o inevitável m as dai-m e sobretudo sabedoria para distinguir um a coisa da outra'’. Com isso, contribuiram para a criação de novas universidades no século X IY . E ntre m uitos, os m ais fam osos foram R oger B acon, Duns E scoto e Guilherm e de O ccam . A o estabelecerem os lim ites da fé e libertarem a lógica de m oldes m etafísicos e teológicos estim ularam a investigação voltada para a ciência. E claro que tal atitude desagradou os m ais ferrenhos ortodoxos, e m uitos franciscanos sofreram ao longo dos séculos sanções m quisitoriais p o r parte de seus i r m ã o s dom inicanos. Porque am bos respondem diretam ente ao Papa, tém um s ta tu s superior a outras ordens, e as questões entre eles só podem ser arbitradas por este, que, entretanto, sem pre pendeu m ais para os últimos. Com o um reflexo da antiga tradição rom ana, a tradição escolástica sem pre esteve m uito v in cu lad a à le i, en q u an to que n a In g laterra do direito anglo-saxão, m ais individualista, m anteve-se um a base de em pirism o, m esm o no período escolástico. O m glês R oger Bacon (1214-1294), que ensinava em Oxford, discípulo mais importante de Grossetéte - por este iniciado em línguas, matemática, óptica e experimentação -, foi dos primeiros a perceber a importância da observação, da experimentação e do raciocínio abstrato para as possibilidades do que se poderia cham ar de um a atitude cientifica nascente em busca de um a verdade empírica. Representa o nascer da idéia experimentalista na Idade M édia, usando experiências cientificas rudim entares para dem onstrar leis naturais, ao lado de te r praticado astrologia, alquim ia e m agia. N a sua época, essas atividades representavam o protótipo do experim entalism o. Y iu claram ente que, s e m e x p e r i m e n t a ç ã o - o u o q u e e le c o n c e b i a c o m o t a l - e m a te m á tic a , a f i l o s o f i a n a t u r a l e r a a p e n a s p a l a v r ó r i o , o q u e s i g n ific o u u m a c e r t a n e g a ç ã o d a e s c o lá s tic a . A titude corajosa porque, nessa época, qualquer form a de experiência, prm cipalm ente por religiosos, era considerada herética, se não bruxaria. A ntecipou vagam ente o uso de explosivos, a circunavegaçào do globo, o avião e a propulsão m ecânica. E ntendeu a natureza da retração da luz e estudou óptica. Parece ter sido o prim eiro a sugerir o uso de lentes, que depois se transform aram em óculos. E possível até

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que possuísse um telescópio e um m icroscópio - com o foi dito de seu m estre Grossetéte talvez encarando-os com o exem plos de m agia natural (Figura 20).

Figura 2 0 - 0 espirito contemplativo dos seguidores de Sào Francisco (à esquerda) fez dos franciscanos protótipos de empiristas medievais. Separando fé e razão, Roger Bacon (à direita) afirmava que a natureza só pode ser entendida através de observação e de experimentação. Outro franciscano, Guilherme de Occam, ensinava que a realidade é particular e depende da experiência individual. E m teressante n otar que G rossetéte e outros consideravam que a Ó p tic a e r a a c i ê n c i a f í s i c a a luz foi a prim eira form a de elem ento a ser criado, sendo considerada um a substância física que se propagava a partir de sua fonte em um ponto de um a esfera, dando assim origem às três dim ensões do espaço. Pelo fím do século X III ou início do X IY , surgiram óculos na Itália, em seguida elevados a sím bolos de sabedoria e santidade, p o r serem u sad o s geralm ente p o r indivíduos m ais idosos. A lguns ch eg am a considerar os óculos com o a m aior invenção da hum anidade, pelo que trazem de m clusào social. A im portância das lentes para a cultura em geral é m ais que fundam ental, é decisiva, por ser a única m aneira de colocá-la à disposição de pessoas com m ais tem po, m ais experiência, mais conhecim ento e até m ais interesse para desenvolvê-la. Sem óculos, a hum anidade perm aneceria nas trevas. B acon, com o bom esco lástico , co n sid erav a o avanço do co n hecim ento apenas com o im portante suporte religioso. E ntretanto, afirm ava que a s c o n c l u s õ e s p a r a s e r e m v á l i d a s d e v e r ia m p a s s a r p e l o c r i v o d a e x p e r i ê n c i a , o que contrariava a ortodoxia. A pesar de o papa Clem ente IY ter acolhido favoravelm ente a filosofia de B acon, após a m orte desse Papa, Bacon vivendo em querelas constantes com seus superiores, provavelm ente por ter um com portam ento estranho para a época, em 127S foi acusado de ter idéias anti-religiosas e enviado à prisão. L á perm aneceu por quatorze anos, prm cipalm ente por causa de seu “ensm am ento averroista” (A verróis, o nom e do árabe Ibn R uchd n a cristandade), significando que ele via a razão e a filosofia com o superiores à fé e à revelação p a ra explicar o conhecim ento. b á s i c a , pois, de acordo com a B íb l i a - “Faça-se a luz”

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D em ostrando notável capacidade de um cientista crítico. Bacon antecipou q u a t r o o b s tá c u lo s para se atingir a verdade das coisas: 1) autoridade fraca e inepta; 2) hábitos antigos; 3) opinião p o p u lar não fundam entada; 4) encobrim ento da ign o rân cia com a p arên cia de sabedoria. X um a época de inflexível ortodoxia, essas considerações de B acon representaram um a ruptura em d ire ç ão a u m a atitu d e ra c io n a l p a ra com um co n hecim ento b a se a d o no em pirism o. Preservando a experiência m ística interior, considerou que o conhecim ento de causas exteriores podia ser obtido pela observação, pelo auxilio de instrum entos e p ela precisão fornecida através da m atem ática. C onfirm ou a cren ça de seu m estre G rossetéte n a validade da experiência proveniente da observação e da dem onstração, atitude que iria obter total reconhecim ento três séculos depois. A obra do escocês D uns E scoto (1266 1274-13OS) teve pap el fundam ental no debate filosófico-teológico entre os franciscanos sobre as idéias do dom inicano Tom ás de A quino, travado em torno de Platão e A ristóteles. O s franciscanos defendiam a idéia da “essência” universal de Platão, enquanto Escoto afirm ava que to d a s a s c o i s a s id e n tific á v e is tê m s u a e s s ê n c ia p a r t i c u l a r in d e p e n d e n t e d o p e n s a m e n t o , problem a filosófico que até hoje não foi resolvido. Segundo D uns Escoto, o conhecim ento de D eus não é possível através das coisas criadas, as quais nos perm item estudar seu com portam ento m as não chegar à causa prim eira, um poderoso argum ento a favor do em pirism o e de sua própria lim itação. A ntecipando-se a Schopenhauer, D uns sustenta q ue é a v o n t a d e q u e g o v e r n a o i n t e l e c t o p o r q u e , e n q u a n t o a p r i m e i r a d á l i b e r d a d e a o s h o m e n s , o s e g u n d o l im ita - s e a o o b j e t o a o q u a l s e a p lic a . Duns Escoto fundou sua filosofia recusando a visão hierárquica ascendente até Deus, que fa n a deste apenas um Super-H om em . R eagindo contra A ristóteles e A quino, adm itiu que D eus criou o hom em por sua vontade livre, deixando-o depois em liberdade, sendo dois seres com pletam ente diferentes, ligados por tal liberdade. Surge aqui, bem definida n a filosofia m edieval, a doutrina do realism o nào-platôm co ou o sistem a filosófico dos que supõem conhecer o m undo exterior com o expressão da representação fiel e direta da realidade, sem fantasias. D eu brilho a essa doutrm a, m arcando fo rtem en te a in d ep e n d ê n c ia do hom em , e separando razão e fé. E m b o ra acred itasse na im ortalidade da alm a, não v ia m aneira de prová-la racionaim ente, o que fo i exposto através de u m a m eticu lo sa, p rofunda e elegante argum entação. O ad jetiv o inglês d u n c e (estúpido) fo i cunhado por seus detratores após sua m orte. O inglês G u ilh erm e de O ccam (1285 1300-1350) fo i o p e n sa d o r franciscano m ais im portante. Suas afirm ações geraram polém ica, a ponto de te r de buscar proteção ju nto ao Im perador da B avária contra o Papa, proferm do a fam osa frase: “D efenda-m e com a espada e eu vos defenderei com m inha pena” . C om essas palavras expressa a cren ça nascente na suprem acia da razão sobre a força. Sua obra visava aprofundar o pensam ento filosófico, m as já dirigido para um a perspectiva científica rudim entar. A creditar ou não, eis a questão, pois o n d e a r a z ã o p o d e e n f r e n t a r o s f a t o s a r e v e l a ç ã o é r e d u n d a n t e e v ic e - v e r s a . A o separar nitidam ente a filo so fia n atu ral da religião, m ostrando que esta não é c iên cia m as verdade rev elad a dependendo de p rem issas garantidas apenas p ela fé -, sua filosofia é considerada um dos fundam entos do “espirito laico”, desem penhando im portante papel na história das idéias políticas do final da Idade M édia e início da Idade M oderna. E nsinava não existirem form as universais fora da m ente hum ana, só conceitos universais que dão nom e a coisas particularm ente percebidas pela m ente hum ana, percepções que não correspondem necessariam ente a seus conceitos, nom es ou palavras: a r e a l i d a d e é p a r t i c u l a r e d e p e n d e d a e x p e r i ê n c i a in d i v i d u a l . Para ev itar a g e n eralização abusiva, O ccam o p to u p o r u m a e strita separação entre c iên cia e m ística. O desenvolvim ento dessa posição epistem ológica revolucionária aparecerá depois em certas form as de em pirism o e de positivism o, com o de H obbes, B erkeley, Condillac e neopositivistas.

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A o afirm ar que a r e a l i d a d e é i n e r e n t e à s c o i s a s i n d i v i d u a i s e s ó i s s o p o d e l e v a r a o c o n h e c i m e n t o d i r e t o e c e r t o a t r a v é s d e e x p e r iê n c ia s , O ccam é um estrito nom inalista. Y ai além de Duns dizendo que a existência de D eus nâo pode ser revelada p o r m eio de provas lógicas, rejeitando A nselm o e A qum o. N esse sentido é quase um cético. O c c a m , m a is d o q u e n in g u é m , f o i o p r e c u r s o r d o e m p ir is m o b r it â n i c o , depois corporifícado em Locke, B erkeley e Hume. A rgum entou que a L ó g i c a te m u m a s e q u ê n c i a q u e n ã o é a d a n a tu r e z a e n e m r e f l e t e o q u e n e la a c o n t e c e , cujas regularidades ininterruptas sào circunstanciais, o que veda o conhecim ento do m undo pela argum entação ou pelo pensam ento - só podendo ser obtido pela observação e experiência -, sobre cujos resultados devem os raciocinar depois, e nâo explicá-los antes. C om O ccam abre-se um a nova abordagem p a ra o conhecim ento do hom em e da natureza, que j á pode ser considerada cientifica. N um m onum ental tributo à razão, diz que “é inútil u sar m ais para fazer o que se pode fazer com m enos”, “ corte da teoria o que não puder observar" (“navalha de O ccam ”), ou seja, se algo tiv e r duas explicações, a explicação m ais sim ples provavelm ente será a certa. E ste é um princípio científico que m uitos ainda nâo aprenderam , até hoje! A ristóteles dizia: “Ignorar o m ovim ento é ignorar a natureza”. E interessante n otar que o estudo do m ovim ento - a base da filosofia natural aristotélica -, a m anifestação m ais universal da atividade dos corpos físicos e biológicos, por isso m esm o representou a p orta de entrada das novas concepções que se inquietavam diante das idéias físicas aristotélicas. Para o sábio grego, a flecha ou um projétil m antinham -se no ar porque, ao progredir, o ar se fechava atrás e continuava em purrando o corpo p a ra a frente. Esse tip o de problem a, cu ja solução representava um desafio científico, e que, trezentos anos depois, foi solucionado por G alileu, j á preocupava m uitos sábios escolásticos. N o início do século X IY , os m onges franceses Jean B u n d an e depois N icole D 'O resm e lançaram novas concepções que já poderiam ser consideradas protociéncia. Jean B uridan (1300-1358) ajudou a separar a F ilosofia da Teologia, falou abertam ente contra explicações sobrenaturais p a ra fenôm enos naturais e considerou fortem ente o prm cípio de causa e efeito no m undo natural. M ais do que isso, aperfeiçoou a idéia de A lberto M agno sobre o m ovim ento de um projétil, usando o conceito de ím peto com o um a força inerente ao corpo, um a inércia. A plicou essa visão tam bém ao U niverso, sugerindo que D eus, no mício, colocou o ím peto nos planetas. Esse pensam ento representa um avanço em relação à idéia de Aristóteles de que cada planeta era m ovido por um a inteligência que o guiava. Nicole D ‘ Oresm e (1320-1382), depois bispo de Lisieux, alvitrou a possibilidade de existir um a força im pulsora (im pulso) que conduzia o projétil m as era autoconsum ivel, idéia que estava no cam inho certo e representou um progresso m uito grande em relação ao pensam ento físico de Aristóteles. D 'O resm e, que fo i sem pre inim igo da “cren ça errada em m ilag re s”, tam bém aplicou m atem ática ao m ovim ento dos planetas e colocou-se contra a astrologia, com o argum ento de que esta se baseia em determ inações rígidas, enquanto que o com portam ento do U niverso m uitas vezes se fundam enta em núm eros irracionais (com o vim os, núm eros que não podem ser escritos com o um a relação sim ples). N icole D 'O resm e nâo parou aí. Em bora, para ele, ainda houvesse diferença nos m ovim entos dos corpos celestes e terrestres, deixou im plícita a idéia de aceleração, sugerindo que a velocidade da queda dos corpos aum enta em função do tem po de duração da queda, e não da distância que o corpo percorre. Tam bém escreveu sobre os m odos geom étricos e num éricos de analisar o m ovim ento, aplicou o conceito de centro de gravidade aos corpos e falou na possibilidade de existirem outros m undos habitados no espaço. O fato de um b isp o m encionar essa possibilidade dem onstra com o idéias relig io sas e científicas estavam se tornando independentes, em bora fosse obrigatório - p a ra o salvam ento da alm a e da pele de todos os que expressavam visões nâo ortodoxas - ressaltar que tal pensam ento se tratava de especulação, não de descrição da natureza. D 'O resm e, que antecipou conceitos

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depois discutidos p o r G alileu, escreveu a pedido do seu R ei a prim eira obra francesa sobre o dinheiro e a inflação, T r a ia d o d a s M o e d a s , em linguagem vulgar. N ão ser escrito em latim representava, n a Idade M édia, um certo desprezo pelo assunto, com o acontecia com qualquer tem a sobre dinheiro ou juros, pois esses eram considerados usura. O preconceito contra a riqueza surgiu da doutrina m ortificante herdada dos essém os, do preceito bíblico de conquistar o m undo com o suor do rosto e ainda do fato de Cristo ter sido traido por Judas por trin ta d in h e ir o s . E p o s s ív e i v e r - s e n e s s e s p e n s a d o r e s p r im ó r d io s d e id é ia s q u e - e m b o r a in ic ia tiv a s in d iv id u a is , a b a fa d a s p e i o o fic ia iis m o d o m in a n te -

d e p o is d e lo n g a in c u b a ç ã o , se

t r a n s fo r m a r ia m n a s v e r t e n t e s d o p e n s a m e n t o c ie n tific o c o e r e n te . A s t e o r i a s s o b r e o m o v im e n to n a T e r r a e n o C é u ir ia m d e s e m b a r c a r e m G a lile u , D e s c a r t e s e N e w t o n e i m p u l s i o n a r a c r ia ç ã o d a c iê n c ia m o d ern a .

9. C A M IN H O S LA TERA IS D O CO NH ECIM ENTO videntem ente, os lim ites do pensam ento o ficial da época m edieval n ã o p o d e r i a m z o m p o r ta r to d a s a s c o r r e n t e s i d e o l ó g i c a s in d e p e n d e n t e s d a f i l o s o f i a n a tu r a l. Isso se estendia tam bém para atividades práticas. A os não crentes declarados restavam poucos cam inhos: a conversão, a m arginalizaçào, a prisão ou a m orte, se a heresia fosse m uito grave, ou ainda a clandestinidade (não esqueçam os que tal com portam ento totalitário não fo i apanágio da Idade M édia mas repete-se exatam ente nesses term os no século X X , com o com unism o, o nazism o, o facism o e outros ism os). D aí em ergiram as m issas negras e as bruxarias, com seus com ponentes de revolta pelo estrangulam ento social. O s m agos e os alquim istas evidenciavam um segm ento de conhecim ento não explicado pela filosofia natural, pois tudo o q u e o c o r r i a f o r a d e s i l o g i s m o s ló g i c o s e v i s í v e i s s i g n i f i c a v a o c u l t i s m o , seu poder podendo provir do m aligno. C om o não era conhecida a estrutura atôm ica da m atéria, le is da quím ica ou v a lê n c ia dos elem entos, q u a lq u e r re a ç ã o e ra a trib u íd a a propriedades ocultas. E ntretanto, o s p a s s o s e o s r e s u l t a d o s p o d i a m s e r r e p e t i d o s . A ssim , form ou-se, ainda que não entendido em suas bases, um grande corpo de conhecim ento - paralelo à filosofia natural - que em ergiu da m agia, da alquim ia, da m atem ática, e foi estim ulado pela história natural, pelas invenções e até p ela religião. M agia: D e todas as atividades que desem barcaram no experim entalism o científico aquela com raizes m ais antigas sem dúvida foi a m agia, pois seus prim órdios estão situados na noite dos tem pos. H oje, m agia refere-se a processos sobrenaturais m as para os antigos representava efeito s inesperados da m anipulação de objetos. A ssim , na Idade M édia, ao lado de pura m istificação e irracionalism o, m uitas vezes os efeitos de com binações de substâncias eram atribuídos a propriedades naturais porém ocultas da m atéria, o que fez surgir a cham ada m agia natural. E sta foi um a atividade pragm ática, v is ta c o m o a n e c e s s i d a d e d e o b s e r v a r - s e a n a tu r e z a p a r a t i r a r d e l a o p r o v e i t o n e c e s s á r io . O sucesso de um m ago natural dependia de conhecim ento profundo sobre o com portam ento dos corpos um sobre os outros, de modo a ocasionar o resultado em pírico desejado. G randes nom es da H istória, com o Paracelso, B oyle, van H elm ont, N ew ton, utilizaram a m agia. C om o não conheciam as regras das com binações quím icas, apenas Deus, ou o diabo, poderiam produzir efeitos sobrenaturais. A suposição de poderes ocultos de um corpo sobre outro às vezes derivava da form a, representando um a clara herança do pensam ento grego. N ão chegou a noz ser julgada rem édio p a ra o cérebro pelo fato de terem am bos formas sem elhantes, até com circunvoluções? O uso de instrum entos n a Idade M édia e no R enascim ento, principalm ente retortas, lentes e espelhos, associou-se com a m agia p a ra produzir efeitos m aravilhosos. Com o eram atribuídos

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poderes à form a dos recipientes: desenvolveu-se a arte de criá-los, o que tam bém sofisticou sua produção. E m razão dos laços entre m ecânica e m atem ática, o tip o de exploração de fenôm enos naturais nessa base era cham ado de “m agia m atem ática”, o que ajudou m diretam ente a estimular a abordagem m atem ática p a ra a com preensão do m undo físico. A partir da elucidação de sua natureza, a m agia n atu ral fo i desaparecendo e t r a n s f o r m a n d o - s e e m c i ê n c i a , a t r a x é s d o e m p ir is m o . Com o a m agia geralm ente era vista com o um em buste pelos filósofos naturais e pela Igreja, parecia m ais sensato aos filósofos naturais progressistas fixar lim ites ou condenar excessos, para não se com prom eterem , ao m esm o tem po em que extraiam dessa atividade o que ju lg av am útil. O próprio Francis B acon, que criticava a m agia no que esta tinha de irracional, a utilizou ao definir o objetivo da A c a d e m i a F i l o s ó f i c a dizendo: “ O fim da nossa Fundação é o conhecim ento das causas e m ovim ento secretos das coisas e a am pliação do Im pério H um ano à execução de to d as as coisas possíveis”. E xtraiu de fontes m ágicas subsídios a suas obras. O paracelcism o (de Paracelso) e o helm ontism o (de van H elm ont), precursores da quím ica m oderna, tiveram m uito de m agia. Com o o paracelcism o rom pera com A ristóteles e Galeno, era m al visto nas universidades tradicionais, sendo m ais aceito pelas sociedades protestantes e na Inglaterra parlam entar. A tradição m ágica tam bém influenciou pensadores do porte de W illiam Gilbert, Johannes K epler, R obert B oyle e Isaac N ew ton. Sabe-se que a utilização pragm ática da bússola - um a descoberta chinesa - pelos navegadores despertou em W illiam G ilbert (1546-1603) a idéia de que a Terra e ra um corpo vivo, capaz de m over-se tal com o um im ã - exem plo suprem o de objeto m ágico “com um a órbita invisível de virtude” -, que necessitava ter alm a p a ra se deslocar ( D e M a g n e t e - \ 6 0 0 ) . Sugeriu que a alm a m agnética era superior à hum ana por não ser, com o esta, tão iludida pelos sentidos. M ostrando ligação entre m agia e início da ciência, os trabalhos de G ilbert ilu s tr a m t a l v e z o p r i m e i r o liv r o b a s e a d o s ó e m o b s e r v a ç ã o e p r o v a s e x p e r im e n ta is . A o lado d isso, G ilb ert n e g o u a e x istên cia de esferas celestes sólidas que supostam ente transportavam os planetas nos seus m ovim entos orbitais. A ntes de N ew ton, K epler adotou essas idéias recorrendo a forças m agnéticas para explicar o m ovim ento dos planetas em torno do Sol. N ew ton tam bém invocou especulações m ágico-religiosas p a ra explicar o m ovim ento dos astros. H avendo um Sol e seis planetas (conhecidos), considerou o núm ero sete com o m ágico, o que lhe fez colocar m ais duas cores (laranja e azul) no espectro da luz, quando a decom pôs em cinco cores, e relacionou-as com as sete notas da oitava m usical. A crença m ágica nos degraus da criação estim ulou observação e catalogação de m m erais, plantas e anim ais, bem com o a prem issa de que os corpos tém poderes ou qualidades típicas reconhecidas, com o as influências dos planetas, o m agnetism o e a capacidade de plantas e m inerais curarem doenças. N ão havia explicações para esses poderes m as o fato de existirem suscitou interrogações que necessariam ente levariam a um ordenam ento m ental capaz de descobrir, com o está acontecendo até hoje, as cadeias cada vez m ais profundas do processo. P o rtan to , p arece in eg áv el que t r a d i ç õ e s m á g i c a s d e s e m p e n h a r a m i m p o r t a n t e p a p e i n a t r a n s fo r m a ç ã o d a f i l o s o f i a n a t u r a l e s c o l á s t i c a n a f i l o s o f i a n a t u r a l d a R e v o l u ç ã o C i e n tífic a , mais empírica, mais prática e bem perto da ciência moderna. O brilhante napolitano Giambattista delia Porta (1535-1615), j á m uito próxim o de um a visão cien tífica, ao lado de algum as trivialidades em u m livro que publicou, d iz ia que “a m ag ia (n atu ral) n a d a m ais é que o levantam ento de todo o processo da natureza”. M agia e alquim ia nos ensm aram a c o m p r e e n d e r o processo de hum anização em direção ao Renascim ento. Alquim ia: O desenvolvim ento de um a quím ica em pírica resultou da fusão, já no século I em A lexandria, do conhecim ento tecnológico a partir da fabricação de m etais, vidros e tm tas, com as idéias dos filósofos gregos sobre a natureza da matéria. Por esse tem po surgiu a Alquim ia,

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cujos objetivos principais - sem nada que lem brasse o m étodo científico - eram a obtenção do elix ir da longa vida., a transm utação da m atéria em ouro e a pedra filosofal, isto é, o que todos os hom ens buscaram em todas as épocas: riqueza, felicidade e saber. Foram surgm do resultados de experiências em p íricas, que passaram a ser catalo g ad o s e podiam ser reproduzidos. D escobnram -se novas substâncias depois identificadas quim icam ente com o enxofre, ácido súlfúrico, óxido nítrico, fósforo. C oerentes com os objetivos da alquim ia, os árabes, sem pre m ais afeitos aos prazeres da vida que os cristãos, desenvolveram m uito essa atividade, sendo que o prim eiro a registrar seus achados foi Jabir Ibn H ayan, no século IX. C oncebeu os fundam entos da quím ica e inventou o alam bique ou retorta. Foi talvez o prim eiro a utilizar filtração, sublim ação e destilação, e certam ente o prim eiro a exam inar sangue e fezes. Aos quatro elem entos de Em pédocles (terra, ar, fogo e água) com binados com as quatro qualidades de A ristóteles (calor, frio, um idade e secura) - p a ra form ar toda a m atéria -, Jabir adicionou duas qualidades conceituais: m ercúrio e enxofre. M ercúrio era a qualidade inalterável dos m etais que o ouro tinha em grau m áxim o. E nxofre era a im pureza terrestre e a com bustibilidade. Sendo rem ovido dos m etais surgiria ouro (p o r seus vapores nauseantes - “im purezas" -, a substância m uito m ais tarde identificada com o elem ento quím ico recebeu o nom e de enxofre). Porém , A vicena, m édico e alquim ista, negava a possibilidade de transm utação da matéria. O ambiente de trabalho dos alquimistas era in fo r m a i e to ta lm e n te a b e r to à im p r o v is a ç ã o - úmco escape das amarras do conhecimento oficial permitido na é p o c a -, possibilitando-lhes enveredar por novos caminhos. Entretanto, a falta de método cientifico não perm itiu que fossem reconhecidos alguns resultados úteis dessa atividade, além de seus praticantes serem freqüentemente acusados de bruxaria. Grandes nom es da história da ciência, como Alberto M agno, Roger Bacon, Paracelso, Boyle, Newton utilizaram alquimia, tentando obter resultados por intermédio das “qualidades ocultas” da matéria. E dito que a idéia de New ton de forças ocultas de atração e repulsão de partículas da m atéria proveio de sua fam iliaridade com pensam entos alquimicos. Usou tam bém concepções alquimicas para explicar a atividade da luz, e sua capacidade de interagir com a m atéria e lhe conferir atividade. A Quím ica só iria transformar-se realmente em ciência no século XYIII, com Lavoisier. N o século X IX , o barão Justus von Liebig (1803-1873), um dos criadores da Q uím ica O rgânica - a quem devem os os term os g l i c i d i o , lip íd io e p r o i í d i o -, reconhecia que a im portância da alquim ia para o desenvolvim ento da ciência precisava ser apreciada de um ponto de vista histórico, um a vez que perm itiu investigar livrem ente tudo o que estava acessível, e, os que hoje a ridicularizam - considerando os parcos conhecim entos básicos da época e ausência de m étodo científico -, só teriam agido diferentem ente se não fizessem coisa algum a. E certo que, ao b u scar a transm utação da m atéria, os alquim istas visavam resultados im possíveis, por desconhecerem o que poderia fornecer-lhes o terreno sobre o qual trabalhavam - a estrutura da m atéria -, posto que, um a seqüéncia de experiências n a ausência de conhecim entos básicos sobre o objeto da pesquisa, ainda que houvesse m étodo, produziria resultados nulos. Entretanto, partindo de processos aleatórios, os alquim istas tam bém abriram cam inhos para a ciência. Bem ou m al, a a l q u i m i a f o i u m d o s p r i m ó r d i o s d o e x p e r im e n ta lis m o (Figura 21). O s experim entos dos alquim istas naturalm ente com eçaram a se fazer notar entre m édicos, naturalistas e filósofos naturais, que vinham se fam iliarizando com experiências, devido ao desenvolvim ento da M atem ática, da Física, da H istória N atural e da M edicina. N a tradição m é d ic a , a s q u a lid a d e s o c u lta s d a m a té ria e ra m in v o c a d a s m u ito fre q ü e n te m e n te . O desenvolvim ento e o conhecim ento sobre o princípio ativo das substâncias, baseados no desabrochar da H istória N atural e da observação, trouxe m ais com preensão sobre os efeitos dos rem édios e da quím ica, sendo desvendada toda um a gam a de qualidades ocultas, usando-se a idéia de em anações ou eflúvios invisíveis e ou enfatizando-se a atenção para a realidade empírica. A m e d id a q u e n o v o s m e d ic a m e n to s q u ím ic o s to m a v a m lu g a r ao la d o de p la n ta s

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m edicinais na farm acopéia, e seus resultados iam sendo aprovados, o em pirism o obtinha m ais um reconhecim ento. A prm cipal influência foi o paracelcism o, um a filosofia em pírica que exaltava o v alor da quím ica para a com preensão da natureza e para a m edicina, m uitas vezes com vantagens sobre o galem sm o. O grande v alor de Paracelso, um m isto de filósofo, m édico, astrólogo e alquim ista, foi ter rom pido com o passado, através da negação de A ristóteles e G aleno (vide pág. 151). Sua influência estendeu-se dos países protestantes para a França por influência de G ui de la B rosse, fundador do J a r d i n d e P i a m e s de Paris, chegando até Francis B acon e prm cipalm ente até Jean B aptiste van H elm ont, que m anteve u m a postura m ístico-religiosa p o r toda sua vida. A pesar disso, o experim entalism o de van H elm ont o classifica com o o precursor da Quím ica m oderna. Exerceu tam bém m arcante influência sobre R obert B oyle, o m ais im portante dos filósofos experim entais da época, e alquim ista praticante.

Figura 21 - Num ambiente de trabalho informal e aberto à improvisação, livre das amarras do conhecimento oficial permitido, os alquimistas medievais foram os primeiros experimentalistas. Porém, a ausência de uma base de conhecimento coerente e a ignorância do método cientifico não permitiram que entendessem coerentemente alguns resultados muito úteis de suas experiências. M atem ática: O sistem a grego de letras requeria vinte e sete caracteres para num erar de 1 a 900, enquanto que o rom ano requeria sete para o m esm o efeito. A pesar disso, tente m ultiplicar M D C II p o r LX Y I! Para facilitar os cálculos, no m ício da Idade M édia usavam -se dispositivos com linhas, em que as de cim a representavam o m ilhar, em baixo a centena, depois a dezena e finalm ente a unidade, categorias que eram assinaladas por m arcas nas respectivas linhas. A numeração arábica, com sua base dez e a verdadeira notação posicionai - m aior valor à esquerda

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e m enor à direita - e a invenção do zero para m arcar posição de dezena., centena, m ilh ar ou qualquer valor sem unidade, representaram a m a i o r r e v o l u ç ã o d a m a t e m á t i c a d e to d o s o s t e m p o s e u m a d a s m a is im p o r t a n t e s in v e n ç õ e s d a h u m a n i d a d e . P rom ulgado pelo fam oso m atem ático árabe A l K hw arizm i (780-850) - daí o term o algoritm o - o sistem a indiano de notação não alcançou aceitação generalizada na Europa, a não ser pelo século X V . A ssim , é inegável que a introdução do sistem a num eral atual pelos árabes, no século VII, tro u x e u m in co m p a rá v e l d esen v o lv im en to à m a te m á tic a . P o rém , a não ser com o um a rem iniscência do pitagorism o, não havia ainda a representação num érica de fenôm enos naturais. E ste desenvolvim ento fo i lento e posterior, sendo que atividades práticas auxiliaram m uito. Por exem plo, nos estudos de rotas aquáticas dos navios era necessário confrontar cálculos de velocidade de deslocam ento e de posições com as observadas pelos m arinheiros, e m uitas vezes com indicações de m agnetos, desenvolvendo-se naturalm ente correlações. A lém da navegação, do com ércio e das necessidades da colom zaçâo, tam bém a m ineração e a m etalurgia estim ularam o interesse p ela m atem ática e p ela sua capacidade de representar os acontecim entos, nos quais se destacava a reprodutibilidade e, portanto, a previsibilidade dos fenóm enos. A ssim , a r e p r e s e n t a ç ã o m a t e m á t i c a s e r v i a n ã o s ó p a r a r e t r a t a r o m u n d o m a s ta m b é m p a r a to r n á - lo c o m p r e e n s ív e l.

A num erologia influenciou hom ens com o K epler, que tentou explicar o poder que teria o núm ero seis, a ponto de D eus te r criado só seis planetas (o que ele enxergava). Segundo Kepler, isso ocorreu porque Deus escolheu um “arquétipo geom étrico" para separar um planeta do o u tro , e n c a ix a n d o entre e le s os cin co c h am ad o s s ó lid o s p la tô n ic o s, o s ú n ic o s co rp o s tridim ensionais de seu tipo, já que não é possível fazer nenhum outro sólido fechado com todas as faces iguais. Para K epler, os sólidos platônicos não só determ inavam que deveria haver apenas seis planetas - porque nem D eus seria capaz de fazer outro sólido fechado com todas as faces iguais -, com o previam os espaços entre eles. A s órbitas elípticas foram explicadas com base n a harm onia dos tons celestes, gerando variedade de notas, já que órbitas circulares seriam m onótonas. E ra um retorno à tradição pitagónca e neoplatônica de harm onia celeste. Verificando ser possível encaixar círculos e sólidos entre os planetas, K epler acreditou ter descoberto o plano de D eus para criar o cosmo! H istó ria N atu ra l: A e sco lá stica p e rm itira que, ao lad o d a s v e rd a d e s te o ló g ic a s, o conhecim ento adquirisse um a dim ensão capaz de te r explicação racional, ainda que dentro de um a estrita ordem cristã. O aristotelism o, o ptolom aísm o e o galem sm o preencheram esse vácuo por séculos. E ntretanto, o sim ples fato de serem discutidos suscitou questões de aplicabilidade m ais prática. Se, nos tem pos m edievais iniciais, a sim ples prova da existência de D eus era heresia - p o is pro v ar existência im plicava em antes poder suspeitar da não existência -, depois dos séculos X III-X IY to d a n o v i d a d e s e r v i a p a r a e x a l t a r a g r a n d e z a d a o b r a d o C r i a d o r , o que foi cham ado de teologia física ou teologia natural. Surgiram assim as provas teleológicas da existência de D eus, considerando-se que a natureza era o outro livro de D eus e que o estudioso da natureza era sem elhante a um sacerdote. A teologia natural m spirou-se prm cipalm ente na h istória natural. E ssas idéias evoluiram tanto que no século X V II surgiram obras inteiras destinadas a provar a existência de D eus p elas m aravilhas da criação. N ovos instrum entos que am pliavam o poder de observação e prova, com o o m icroscópio, serviram m uito a esse propósito. Todas as filosofias naturais com eçaram a ser adaptadas por seus defensores a novos pilares da religião. A ssim , Pierre G assendi (1597-1655), p a ra tra z er de volta E picuro, o m ais notório ateu da A ntiguidade, teve que conceder ao m ovim ento inerente à m atéria (para os epicuristas) um princípio interno de m ovim ento colocado p o r Deus.

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U m a s p e c to im p o rta n te da o b ra do p rin c ip a l p ro p a g a n d is ta do e x p e rim e n ta lism o , Francis B acon, foi ter codificado e form alizado as bases da autoridade filosófica da H istória N atural, elevando a lógica indutiva acim a da dedutiva em seuJVew O r g a n o n . Diverso aspecto é que a história natural podia ser vista com o um a exaltação da im portância de outros seres, dim inuindo o excessivo antropocentnsm o, e passando a considerar criaturas que pareciam não ter nenhum valor m edicinal, culinário ou comercial. A ssim , o historiador natural - com o botânicos e zoólogos - recebeu m aior crédito intelectual porque lia o livro de Deus, o que o aproxim ava dos teólogos. M ais do que tudo, a s m a r a v i l h a s d a v i d a s e r v ia m p a r a g l o r i f i c a r q u e m a c r io u . Surgiram novas classificações de plantas (O tto Brunfels, Jerom e Bock, Leonhard Fuchs e outros) e de anim ais (P ierre B elon, G uillaum e R ondelet, K onrad G esner, cham ados “naturalistas enciclopédicos"). G uillaum e R ondelet (1507-1566), o m ais contestador, desafiava oargum ento da autoridade em ciência, dizendo que a observação e a experiência eram os verdadeiros guias p a ra a verdade. Para ter m ais liberdade de pensam ento, no fim da v id a converteu-se ao protestantism o. Invenções: Q ualquer ciência além do rudim entar requer m eios para m edir diferentes aspectos da natureza, especialm ente comprimento, peso, distância e tempo. N a Antiguidade, as estimativas correntes provinham geralm ente de com parações com partes do corpo hum ano (braços, pés, polegadas, passos, dias de viagem ). M edidas precisas de peso provavelm ente se ongm aram da necessidade de avaliar pequenas quantidades de m etais preciosos: surgiram balanças bastante exatas. Quinze séculos a.C. várias sociedades já m ediam o tem po com relógios de sol, de areia e de água, estes últim os com a vantagem de não pararem n a sombra! Entretanto, o relógio m ecânico, acionado por peso, só surgiu n a E uropa no século X III, desenvolvido para m dicar os rigorosos horários da vida m onástica. U sando um conhecim ento im portado da C hina, pelo século XIII barcos italianos já estavam equipados com agulhas m agnéticas que indicavam a direção c o rreta m esm o em dias nublados. Cem anos depois, bússolas eram equipam entos indispensáveis nos navios. T odos os tipos de instrum entos usados ao longo dos tem pos produzindo dem onstrações arm adas de evidência - m ultiplicaram extraordinariam ente, e continuam aum entando, a m ais fundam ental etapa da ciência que é a observação. Provavelm ente, n e n h u m a u x i l i a r d a c i ê n c i a t e v e m a i s im p o r t â n c i a n o s e u d e s e n v o l v i m e n t o d o q u e o u s o d e in s tr u m e n to s e s p e c ific a m e n te c o n c e b id o s p a r a d e te r m in a d o f i m .

A novel utilização dos tipos m óveis da im prensa por Hans G ensfleisch ou G utem berg (1398-1468), iniciada em 1446, deu o m aior im pulso ao conhecim ento. A través da reverência p ela h istó ria n a tu ra l, h u m a n ista s do R en ascim en to , com o O tto B ru n fels (14S 9-1534), L eonard Fuchs (1501-1566) e G aspard B auhm (1541-1613) em penharam -se em expandir os levantam entos da flora e da fauna deixados p o r A ristóteles, Teofrasto, Plínio e D iocórides, de m odo a incluir espécies desconhecidas pelos antigos. A m áquina im pressora, ao reforçar o realism o das ilustrações dos novos autores - em confronto com os toscos e sim bólicos desenhos m anuais dos copistas m edievais -, suscitava a representação adequada dos espécim es e m ostrava que a e x p e r iê n c ia p e s s o a l e r a u m g u i a m a is c o n f i á v e l q u e a a u t o r i d a d e , além da m ensagem im plícita de que artesãos com petentes tinham algo a oferecer na busca da com preensão do m undo real. Foi um estim ulo para o s u r g i m e n t o d o t r a b a lh o té c n i c o c o m e x p lic a ç õ e s c l a r a s , em vez do forte sim bolism o obscuro (Figura 22). Junto com o m aior realismo das ilustrações ocorria o dos textos. Grandes enciclopédias de História Natural do Renascimento tratavam não só dos hábitos e da natureza dos animais que discutiam, como de significados simbólicos dos m esm os integrados à história, à religião e a costum es em diferentes épocas. Subjacente a essas visões ficava a mensagem de que todas as criaturas estavam interrelacionadas com outras anim adas ou inanim adas, núm eros, dim ensões ou artefatos.

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A parte im plicações m orais da integração de todos os seres num a grande cadeia do S e r : tais obras passaram a sugerir tam bém que o conhecim ento da história natural era útil no com ércio; na culinária, n a agricultura, na m edicina e em outras áreas que serviam ao bem público. N a esfera celeste e num érica, Johann M üller, astrónom o e m atem ático alem ão, cham ado de Regiom ontanus - que com pletou a obra de Ptolom eu e n ela encontrou im precisões -, no século X Y tornou-se o prim eiro editor de obras astronôm icas e m atem áticas altam ente confiáveis, um a vez que outras publicadas com fins com erciais estavam repletas de erros.

Figura 22 - Ao lado da observação armada possibilitada pela invenção de instrumentos (termômetro, quadrantes, sextantes, microscópio, telescópio), a imprensa baseada nos tipos móveis de Gutenberg teve a importância adicional de universalizar e multiplicar a oferta de conhecimentos, estimulando bases para discussões criticas, fora dos cânones culturais permitidos até então. O im pulso em direção à natureza fo i tam bém um a tônica nos estudos do m icrocosm o com o novo instrum ento científico que m udou a visão da ciência, o m icroscópio, no inicio do século XV II. C om o m icroscópio, Jan Swammerdam (1637-1680) refutou a am orfia dos insetos e sua evolução por m etam orfose segundo A ristóteles, m ostrando que as asas da futura borboleta

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j á estavam presentes na lagarta. A creditava que o estudo de um sim ples piolho revelava o "dedo to d o -p o d e r o s o de D e u s ” . T a m b é m , o p r im e ir o u s u á rio c ie n tif ic o d o m ic ro s c ó p io , A n ton van L eeuw enhoek, descobridor de seres invisíveis, foi im pelido p o r preocupações físico-teológicas. M arcelo M alpighi com pletou a m agna descoberta de H arvey, abrm do cam inhos m ais am plos para a M edicina ao descobrir os capilares através do m icroscópio. Robert Hooke, em 1665, publicou o prim eiro trabalho devotado à m icroscopia, M i c r o g r a p h i a , com trm ta e sete gravuras em que só três não se referiam a “descrições fisiológicas de certos corpos m inúsculos feitas com lentes...” N esse livro, introduz a palavra c é l u l a , em bora se referindo à estrutura m orta da cortiça. Entretanto, sem atinar bem com o sentido da descoberta, em 1692, dizia que só Leeuw enhoek continuava a fazer trabalhos sérios com a m icroscopia, esquecendo M alpighi. Provavelm ente, a razão porque o m icroscópio não penetrou logo na M edicina, com o o telescópio na A stronom ia, foi que este representou um m eio essencial para o avanço da ciência d o s a stro s, co m d e m o n stra ç õ e s e v id e n tes p o r u m c ie n tista c o n sa g ra d o , com o G alileu. A o contrário, o estudo da m icroscopia dos órgãos quase nada acrescentava a um a m edicina basead a no estu d o e tratam en to de sintom as, sem m aio r conhecim ento de h isto lo g ia ou físiopatologia, o que colocou a m icroscopia na m edicina com o um a oferta não entendida em relação à sua potencialidade. A lém disso, L eeuw enhoek era considerado p o r m uitos apenas com o um curioso que trabalhava sozinho, e sua descrição de m icroorganism os não fazia nexo com a rea lid a d e da m ed ic in a da época. C lín ico s em inentes, com o T hom as S yndenham (1624-1689) e John L ocke rejeitaram seu uso. O m icroscópio podia ser usado p o r “diversão e passatem po”, conform e H ooke sugeriu. A grande fase científica da m icroscopia foi no século X IX , depois que se desenvolveram disciplinas essenciais para sua aplicação, com o P atologia e H istologia. E sses aspectos da evolução da m icroscopia exem plificam m uito bem que n ã o s ó é n e c e s s á r io ie r o s m e i o s p a r a d e s e n v o l v e r a c iê n c ia . E p r e c i s o ta m b é m t e r a c u ltu r a .

R eligião: A pesar dos conflitos surgidos entre religião e ciência ao longo da história, mesmo dentro das corporações religiosas católicas e protestantes, sem pre houve visões opostas sobre o papel e o entendim ento do m undo natural, desde u m a concepção absolutista da religião co n sid eran d o que esta d ev ia englobar to d as as açõ es hum anas (geralm en te nas cúpulas dom m antes) -, até a clara separação entre a esfera de D eus (Teologia) e dos hom ens (pensam ento racional). O único inaceitável era a negação de Deus. N ão ocorrendo isso, todas as explicações sobre o m undo eram válidas e, à m edida que se aprofundavam , só exaltavam a glória do Criador. A ssim , n a s q u e r e l a s e n t r e r e lig iã o e c i ê n c i a n u n c a h o u v e u n a n i m i d a d e d e p o s i ç ã o e n t r e a s v á r i a s c o r r e n t e s d e c l é r i g o s , e as ações punitivas sem pre foram propostas p o r um a cúpula m enos com prom etida com o divino que com um a ordem estabelecida na Terra, cujo rom pim ento traria desestabilizaçào na hierarquia, na política e até na econom ia vigentes. M as, m ais do que tudo, a r u p t u r a r e p r e s e n t a r i a a b a lo n u m s i s t e m a c o m p l e t o d e p e n s a m e n t o , s e m o f e r e c e r a lg o ig u a lm e n te a b r a n g e n te e m tr o c a . A ssim , o heliocentrism o de Copém ico, com batido por católicos e protestantes por setenta anos, só foi julgado "form alm ente herético” quando G alileu o tornou m ais conhecido. M esm o o caso G alileu representou um a briga quase pessoal desencadeada pela arrogância deste, transform ando em inim igos grupos de dom inicanos e alguns franciscanos, e virando contra si até o papa U rbano V III, antes seu am igo (vide pág. 162). N a Idade M édia, a não ser pela m agia e a alquim ia, praticam ente todo o conhecim ento sobre a n atureza e o U niverso era privilégio dos hom ens da Igreja. E claro que suas concepções teológicas e s t a v a m n a b a s e d e t u d o o q u e i m a g in a v a m s o b r e o m u n d o . N um a época em que a religião e a teologia dom inavam todos os aspectos da vida oficial, seria im possível qualquer progresso no pensam ento, se este não passasse pelas cabeças devotas. T odos, C opém ico, Paracelso, T ycho Brahe, van H elm ont, G alileu, K epler, B acon, G assendi, D escartes, B oyle,

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N ew ton, L eibniz, Pascal. M ersenne, Steno e Tantos outros eram crentes em D eus. Por isso : a devoção religiosa foi im portante no surgim ento e n a conform ação da ciência m oderna, por m eio de m entes que representaram a transição entre o pensam ento m edieval e o m oderno. O grande G alileu acreditava que poderia localizar o inferno de D ante p ela m atem ática, Tycho conseguiu criar um sistem a alternativo que funcionava igual ao de Copérm co, sem tirar a Terra do centro do sistem a solar, p o r respeito à B í b l i a ; K epler im aginou D eus brm cando com sólidos poliédncos para construir o m undo; M ersenne acreditava que só a m atem ática p o d ia levar-nos m ais p erto de D eus; D escartes, o iniciador da filosofia científica m oderna, criou todo o seu sistema filosófico a partir de certezas provenientes da prova da existência de Deus. N a Inglaterra, Francis B acon descreveu seus planos para a reform a da filosofia natural tendo-os em m ente com o um a preparação p a ra o Sabá depois do juízo final, que, com base num a profecia bíblica, seria m augurado após a am pliação das ciências; R obert B oyle desencadeou grande luta contra o ateísm o, a ponto de instituir um a série de conferências anuais contra esse m al (conferências de B oyle); N ew ton desenvolveu seu conceito de espaço absoluto de acordo com sua noção da grandeza de D eus, e suas brigas com L eibniz decorreram em grande parte de um querer m ostrar-se m ais teísta que o outro. M uito tem po depois, no século X IX , Michael Faraday (1791-1S67), um autodidata inglês, encadernador de livros e filho de um ferreiro pobre, m as perseverante e profundam ente religioso fez um a das descobertas fundam entais desse século X IX , tendo p o r base a m spiração da seita sandem am sta (de R obert Sandem an) à qual pertencia. E ssa seita tinha o círculo com o a figura geom étrica sagrada, já que tudo no Universo retornava ao m esm o ponto, com o a fraternidade e a solidariedade, a m aldade e a injustiça, todas voltando a atingir seus praticantes, num movimento auto-sustentado. Foi a crença nos poderes do movimento circular que lhe perm itiu conceber que o recém descoberto efeito de um a corrente elétrica sobre um im ã próxim o, e vice-versa, pelo dinam arquês Christian Oersted, devia-se ao furacão de linhas circulares invisíveis rodopiando ao seu redor, ao contrário dos físicos de formação clássica que procuravam efeitos lineares e nunca pensaram em campos de ação. A partir daí criou o m otor elétrico e estabeleceu as íntimas relações entre eletricidade e magnetismo, desenvolvendo o conceito de campo energético eletromagnético, e, antecipando que as diversas formas de energia podem mterconectar-se, assim abriu caminho para Helmholtz, M axwell e Einstein. N um a rara associação de grande conferencista mas m odesto e mtrospectivo, Faraday recusou um título de nobreza e a presidência da R o y a l S o c ie iy . U m hom em que se glorificou totalmente pela ciência e não por rótulos! E im portante salientar que to d o s e s s e s p i o n e i r o s v ia m a c i ê n c i a c o m o u m i n s t r u m e n t o a tr a v é s d o q u a l D e u s r e v e la r ia a o p e s q u is a d o r p e r s is te n te o p la n o d iv in o p a r a o m u n d o , e com o um a m aneira de chegar m ais perto do Criador, usando a inteligência que este dera aos hom ens, conform e argum entos tantas vezes utilizados por G alileu nas suas discussões com os inquisidores e o Papa. E stes é que, provavelm ente p o r estratégica precaução, insistiam que o D eus todo-poderoso não se lim itava à lógica hum ana e que todo fato natural, sendo provocado por D eus, excederia nosso lim ite de com preensão. Ó tim a m aneira de travar o desenvolvim ento da ciência que com eçava a am eaçar a teologia oficial! D e um a m aneira geral, p o d e - s e d i z e r q u e a c i ê n c i a c o m e ç o u a s u r g i r e m g r a n d e p a r t e a p a r t i r d e a r g u m e n t o s te o l ó g i c o s e t e l e o i ó g i c o s c a p a z e s d e p r o v a r a e x i s t ê n c i a d e D e u s , focando as m aravilhas, a ordem e a b eleza da criação, o que não deixa de ser um a argum entação buscada em A ristóteles. A lguns filósofos ingleses no século X V II, para defender o atom ism o, chegaram ao ponto absurdo de buscar a origem dessa idéia na tradição judaico-cristà e não nos gregos. N o s é c u lo X V , a s c a b e ç a s p e n s a n te s c o m e ç a v a m a r e c o n h e c e r n ã o m a is s e r p o s s ív e l q u e o a c ú m u lo d o c o n h e c i m e n t o a d q u i r i d o f i c a s s e c o n tid o d e n tr o d a s e x p lic a ç õ e s c lá s s ic a s . T e n d o s e d e s e n v o l v i d o g r a n d e v o l u m e d e conhecim ento p a r a l e l o , a t r a v é s d a m a g ia , d a a l q u i m i a , d a m a t e m á t i c a , d a h is tó r ia n a tu r a l, d e n o v a s i n v e n ç õ e s e a t é d a r e lig iã o , a s c o m p o r t a s n ã o m a is

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r e s is tir a m , o q u e f o r ç o u a im p lo s ã o d a f i l o s o f i a n a t u r a l a r i s t o t é l i c a , d o p t o l o m a í s m o e d o g a l e n i s m o , l e v a n d o d e r o l d ã o c o n c e p ç õ e s n ã o f u n d a m e n t a d a s e m f a t o s d e m o n s tr á v e is .

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B. O C A M IN H O D A C IÊ N C IA N ào ten d o sid o a in d a desenvolvido o M éto d o C ientífico, o co n h ecim en to pré-científico so b re a n a tu re z a e r a explicado com b a se no “e v id e n te " aos olhos e à in te rp re ta ç ã o (veja, s in ta e ex p liq u e com o p en sa q u e é), sem a p e rc e p ç ã o d e c a u sa lid a d e s m ais p ro fu n d a s e n tre os fenóm enos. M is tu ra d a s com concepções m ític a s e teístico-religiosas c ris tã s , a filosofia n a tu r a l a risto té lic a e d e riv a d a s - com o o pto lo m aísm o e o g alenism o - re p re s e n ta v a m um c o rp o de co n h ecim en to p e rfe ita m e n te “ lógico", “ a c a b a d o '’ e “ in to c á v el”, “ ev id ên cias” s u s te n ta d a s p e la teologia e a B í b l i a . A ciência, ou seja, o e sta b e le c im e n to d a v e rd a d e (p e la o b serv ação , e x p e rim e n ta ç ã o e v alid ação m a te m á tic a ) s u s te n ta d a em fatos (v erd a d e f a t u a l ) i n te r r e la c i o n a d o s ( c a u s a li d a d e c o n s e q ü e n te , c o n c lu s ã o ) só s u r g i r i a p e la tra n s fo rm a ç ã o de p a ra d ig m a s sa g ra d o s d e n tro dos te rre n o s d a s leis do m ovim ento dos co rp o s, d a constituição d a m a té ria e da e n e rg ia, d a s explicações so b re fisiologia re s p ira tó ria e c irc u la tó ria h u m a n a s , e dos conceitos d e c e rte z a , q u e estav am alicerçad o s no idealism o e n à o no em p irism o . A ssim , p a ra c h e g a r às leis g a lilean as do m o vim ento, à lei g ra v ita c io n a l n e w to n ia n a e à te o ria re la tiv is ta e in s te n ia n a foi p rec iso d e m o lir a c re n ç a n u m a T e r r a fix a e im óvel, com o Sol g ira n d o ao seu r e d o r , n a s e sferas celestes de c ris ta l, em m o v im en to s p e rfe ito s dos a s tro s no C éu (divinos) e retilín eo s im p e rfe ito s te rre s tre s (h u m a n o s), no ab so lu tism o da g e o m e tria e u c lid ia n a ( p la n a ) . P a r a e v id e n c ia r a c o n s titu iç ã o a tó m ic a d a m a té r ia , m o stra n d o -a com o n à o se n d o c o n tín u a ou e sp o n ta n e a m e n te g e ra d a , fo i n ecessário p r o v a r a existência do vácuo e te rm in a r com a teo ria dos q u a tro elem entos p rim o rd ia is constituintes de to d a m a té ria (á g u a , a r , t e r r a e fogo). P a r a c o m e ç a r a c o m p re e n d e r a fisiologia do h o m e m , p o n to de p a r tid a de seu a u to -e n te n d im e n to , fo i im p e ra tiv o d e s c o b r ir q u e a fin a lid a d e do c o ra ç ã o nào é p r o d u z ir c a lo r o rg â n ic o m as fa z e r o san g u e c ir c u la r pelo c o rp o p a ra t r a n s p o r t a r oxigênio e n u trie n te s às célu las, e q u e a fin a lid a d e do p u lm ã o nào é se m o v im e n ta r p a r a e s fr ia r o c o ra ç ã o m as p a ra c a p ta r o oxigênio do a r e oferecê-lo aos tecidos c o rp o ra is a tra v é s do san g u e, que nào é a sede d a a lm a m as veículo p a ra o tra n s p o rte de n u trie n te s , e q u e a e n e rg ia v ita l nào p ro v ém de esp írito s m as do oxigênio do a r e dos a lim e n to s, s u b s tâ n c ia s c o rp ó re a s r e tira d a s do m eio a m b ie n te . N esse sen tid o , o hom em é u m p ro d u to d a n a tu re z a , se n d o q u e D eus in te rfe re m ais de longe. C o n firm a n d o q u e sem r u p tu r a n à o h á m o d ificação , a ciência, p a r a n a s c e r, precisou m a t a r o a r g u m e n to d a a u t o r i d a d e , t r a n s f o r m a r o e v id e n c ia lis m o f in a lís tic o em e x p e r i m e n t a ç ã o c o e r e n te r e p r o d u t í v e l , e e x p lic a ç õ e s m ític a s e m c a u s a lid a d e s . P a r a im p o r-se , n ecessito u d e s m a s c a ra r conceitos c o n sid e ra d o s im u táv eis, ou se ja , p a s sa r do m ítico p a ra o rac io n al. O p en sam e n to científico e o M éto d o C ientífico, que p ro p ic ia ra m a R ev o lu ção C ien tífica e a R evolução In d u s tria l, só se firm a ria m depois q u e c a d a u m a de s u a s e ta p a s , ou to d a s (o b se rv a ç ã o , h ip ó te s e , e x p e rim e n ta ç ã o , m e n s u ra ç à o , a n á lise e co n clu são ), se m o stra sse m c a p az e s de s u b s titu ir o p e n sa m e n to m ítico pelo conhecim ento b a se a d o e m fatos d e m o n strá v e is. R evolução C ien tífica é u m a ex p ressão u s a d a no sentido de que houve aceitação d essa escolha p ela so cied ad e. A ssim , a ciência e x p lo d iu com o co n seq ü ên cia de to d o u m clim a político e perm issivo p a r a tal. O co n hecim ento q u e m otivou esse fato, e n tre ta n to , n à o “sa lto u ” , v in h a p ro g re d in d o desde o século X III, a tin g in d o no século X V II o lim ia r n e c essá rio p a ra n à o d e ix a r de s e r p e rc e b id o e u tiliz a d o . T ã o á rd u a te m sido a lu ta q u e a ta re fa n à o r e q u e r tem p o p rev isív el p a ra s e r concluída.

CA PITU LO V I. EX PE R IE N C IA CO M O FONTE D O CO NH ECIM ENTO D e com o a in sistên cia do hom em em em an cip ar-se in telectu alm en te da sujeição absolutista cristã reúne forças para trocar o m ilenar argum ento da autoridade pelo do conhecim ento baseado na experiência. A vança não só o m étodo observacional, aperfeiçoado pela idéia de precisão instrum ental nas m edidas, como ressurge a concepção de que a m atem ática é capaz de representar o que acontece no U niverso. Em decorrência disso, a Terra deixa d e ser o centro do U niverso, desm entindo A ristóteles e Ptolom eu, e o estudo da anatom ia hum ana desacredita G aleno. C opérnico e Y esálio sim bolizam esta era. E stado do conhecim ento natural: O observacionism o in stru m e n ta l e a m atem ática rompem com o estabelecido, adequando a realidade ao constatado. 10. RU PTU RAS N A FILO SO FIA N A TU R A L A R ISTO TÉLIC A R enascença, com o pré-requisito: a R eform a protestante e a desm oralização da doutrina do H erm etism o forçaram as condições que já vinham se form ando para que o m undo ingressasse na era cientifica. Para isso, o m undo que term inava precisava renunciar às filosofias naturais do aristotelism o, do ptolom aísm o e do galem sm o, cujas m aiores forças residiam na autoridade m questionada de seus form uladores e não na verdade. Argum ento da A utoridade e Ciência: A força nada ensina Com o já visto, nas sociedades pré-cientificas, a distância entre a classe sacerdotal - detentora do conhecim ento e, portanto, do poder - e o povo tornou-se um fator santifícante daquela aos olhos deste, que term inou por associar o saber com um dom divino. Sendo um dom divino, p a s s o u a r e p r e s e n t a r u m a f o r ç a e m s i m e s m a , d i s p e n s a n d o p r o v a s . D essa form a, consagrou-se o argum ento da autoridade em relação ao saber. E sse argum ento m anteve-se decisivam ente po d ero so a té o século X V , quando co m eçou a ser an u lad o p e lo nascim ento da ciência. N a verdade, a negação de um dogm a estabelecido com eça p ela m udança do estado de crença c e g a n essa idéia p a ra cren ça e sc la re c id a p ela v a lid a ç ã o dos sen tid o s e da in telig ên cia. P o r fidelidade aos conhecim entos co n sid erad o s sagrados, os en sin am en to s d o s antigos, representados especialm ente por A ristóteles, Galeno e Ptolom eu, não poderiam ser questionados. O utras vezes, a validade de um conhecim ento era sua perm anência no tem po. A lgo era dito, copiado, repetido e acabava sendo aceito sim plesm ente porque sem pre fora assim . A creditavam que citações em m ais de um ou dois livros eram verdadeiras. M as uns copiavam dos outros. Im agine-se a quantidade de m itos perpetuados. O pio r é que isso continua ocorrendo hoje! Com o tudo proviera da revelação divina através de seus intérpretes, os sacerdotes, a idéia de evolução - se existisse - seria herética, e a sim ples contestação não tinha lugar, porque contestar equivalia a negar a verdade. T odo o ensm o da Idade M édia foi feito com essas prem issas como base. A inda não fora vislum brada um a força m aior, capaz de im por-se ao saber baseado na tradição. E ssa força, que m udaria o m undo, é a ciência. Sem pre que a religião m isturar-se com ciência predom inará a crença e não o racional, sim plesm ente porque o m ítico está m uito m ais sedim entado na m ente hum ana do que o racional. M esm o depois de racionalizar, todas as nossas atitudes dependem de um a crença m otivadora. O racional - dedutível e indutível - pode não m odificar a crença, pode levar à crença ou pode dem olir a crença, m as a crença que ficar ou for adquirida passará a ser o novo árbitro do conhecim ento. N iilism o é paralizaçào. Todas as ações hum anas são conduzidas por instintos, com o com er ou reproduzir, ou p o r crenças geradas pelo conhecim ento ou pela educação, que

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pode v ir da racionalidade ou da doutrinação. C rença sem questionam ento é religião, enquanto que através do questionam ento e da percepção pode transform ar-se em ciência. A transposição dessa barreira - para criar a atitude m ental científica - foi m uito m ais difícil do que hoje, após séculos de praticá-la, podem os im aginar. O s p i l a r e s d a c i ê n c i a - o b s e r v a ç ã o , e x p e r i m e n t a ç ã o , m e n s u r a ç ã o , a n á l i s e e c o n c l u s ã o - t i v e r a m q u e s e r d e s c o b e r t o s e d e p o i s in c o r p o r a d o s a u m a m e n t e m o ld a d a p o r m ilh õ e s d e a n o s s o m e n t e p a r a s o b r e v i v e r e a c r e d ita r .

A penas para citar com o exem plo o poder do argum ento da autoridade, vejam os o seguinte fato. Em 1366, o papa U rbano V deu instruções categóricas à U niversidade de Paris: os alunos deviam limitar-se a escutar as lições “sentados no chão e não em bancos, por espirito de abnegação e para afastar de sua juventude to d a tentação de orgulho", tradição ainda observada m uito tem po depois. M uito m ais do que isso, evidências provindo de demonstrações visíveis e palpáveis, com o as dissecções de V esálio, as visões telescópicas do céu p o r G alileu, as experiências fisiológicas e m atem áticas de H arvey sobre a circulação do sangue, p o r m ais incontestáveis que fossem , chegaram a ser negadas, dispensadas e desprezadas sim plesm ente porque contrariavam o que vinha sendo ensinado e aceito com o verdade h á m ilênios. Brunfels, quando descreveu novas espécies vegetais no seu livro I l u s t r a ç õ e s V iv a s d a s P l a n t a s , em 1536, desculpou-se por e sta r in troduzin do um co n h ecim en to n o v o , d esco n h ecid o d o s antigos. Por incrível que pareça, Y ocher C oiter (1534-1576) e Jean Fernel (1497-1558) foram os prim eiros autores, respectivam ente, desde A ristóteles e de G aleno, a publicar livros sobre anatom ia com parada e so b re m e d ic in a , in tro d u z in d o a lg u m a s n o v id a d e s , p o ré m se m p re c u id a n d o de não afastar-se m uito dos lim ites perm itidos. E m hom enagem a essa façanha, Fernel foi cham ado de “o Galeno francês". Por vezes, o s a c o n t e c i m e n t o s h i s t ó r i c o s o c o r r e m p o r c a m i n h o s i n s u s p e ita d o s . Com o é freqüente, o rem édio pode piorar o m al e m atar o paciente. E ntre 1095 e 1270 ocorreram as oito cruzadas. Paradoxalm ente, o m ovim ento das cruzadas para “ libertar" o túm ulo de Cristo das m ãos dos infiéis em Jerusalém foi não só religioso m as tam bém político e económ ico, trazendo intercâm bio de idéias, de costum es e desenvolvendo o com ércio. A ssim , ao longo do tempo, com o progressivo esvaziam ento dos cam pos, tanto p o r esses m ovim entos m ilitares quanto pela peste negra (produzida p o r pulgas trazidas p o r ratos da Á sia O riental), que, no século X IY , dizim ou trinta por cento da população européia, aliado às novas idéias, às viagens dos d e s c o b rim e n to s (o s p o rtu g u e s e s F e rn à o de M a g a lh ã e s e Y a sc o d a G am a, o ita lia n o Cristóvão Colom bo, e outros) - abalando o europeísm o -, à ordem de Copérm co que tirou a T erra do centro do U niverso, e prm cipalm ente à introdução da im prensa com tipos m óveis por G utem berg, em 1446, com eçou a form ar-se outro contexto social e cultural - fortalecendo a difusão de idéias, o m ercantilism o, este o afluxo dos campos para as cidades e a liberdade individual -, que foi m inando a estrutura social da Idade M édia e criando as sem entes da próxim a época, a R enascença, quando o argum ento da autoridade em ciência com eçou a ser contestado. John W ycliffe (c. 1320-13 S4), um teólogo inspirador da revolta dos cam poneses liderados por W at T yler, em 1381, na Inglaterra, rebelou-se contra a riqueza dos Papas, associando-a à corrupção, e denunciou a venda de indulgências e a doutrina da transubstanciaçâo, pregando um a vida baseada exclusivam ente na B íb lia . Já se vê aqui um forte germ e de reform a protestante, o que o transform ou num precursor do anglicam sm o. A sociedade cam ponesa tornou-se mais corajosa, por sentir-se necessária para a m ão de obra nos cam pos. Q uando proprietários de terra in g le se s ten ta ra m b a ix a r os sa lá rio s, os cam pónios rea g ira m co m in im ag in á v e l rev o lta an o s antes e p e rg u n ta ra m : “ Q u an d o A d ã o c a v a v a e E v a fiava, quem e ra o S e n h o r?". Perturbações sem elhantes com eçaram a verifícar-se em quase todos os países europeus.

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A própria autoridade da Igreja com eçou a periclitar e, no início do século X IY ; o catolicism o deixou de ser teocrático. Já iam longe os tem pos de 1077, em que o grande papa G regóno VII hum ilhara o im perador H enrique IY da A lem anha, fazendo-o esperar três dias na neve antes de recebê-lo para conceder-lhe perdão. N o início do século X IV , após a época de A lberto M agno, R oger B acon, R oberto G rossetête, Duns Escoto, G uilherm e de O ccam , o Papado enfraquecerase tanto em contendas sobre investiduras de prelados com o rei francês, Felipe, O Belo, a ponto de o papa C lem ente V deixar R om a e sediar-se em A vignon, n a França. D e 1309 a 1415, rem aram em A vignon sete Papas verdadeiros e dois contestados, iniciando-se um equilíbrio entre religião, m onarquia e Estado de ju stiç a e de finanças. C oncom itantem ente, definhava o feudalism o e com eçavam a ser arrecadados im postos, não só para R om a m as para os Estados, surgindo um a concepção laica de adm inistração pública. Por isso, a verdadeira m utação nos séculos X IV e X V foi política, q u a n d o a c r i s t a n d a d e o c i d e n t a l s e d i v i d i u e m E s t a d o s n a c io n a is . A suprem a, incontestável e inabalável autoridade do p o d er religioso c o m e ç a v a a p e r d e r te r r e n o d i a n t e d e u m i n c ip ie n te m a s f i r m e e p r o g r e s s i v o a v a n ç o d o h u m a n is m o . S o m e n t e n o s ú ltim o s q u a t r o c e n t o s a n o s r e lig iã o e c i ê n c i a s e s e p a r a r a m c o m o c a m i n h o s d o c o n h e c i m e n t o . F o i n a R e n a s c e n ç a que o M é to d o C ie n tífic o b a s e a d o em o b serv ação ,

experim entação, prova, contra-prova e expressão m atem ática com eçou a trazer de volta a racionalidade à cultura. D iferentem ente da religião, em que a verdade aceita surge revelada com o um a explosão ou geração espontânea, exposta através de um dogm a - sem necessidade de ser com preendida - a verdade científica é m uito m ais circunstancial e fluida, baseada em conhecim ento acum ulado gradualm ente, com o u m a cadeia de elos seqüenciais, detectada pelos sentidos e aceita pela razão. Esse conhecim ento progride devagar e se cristaliza com o teoria ou fato novo ao atin g ir ''u m lim iar” capaz de ser detectado pelo cérebro m ais sensível à sua influência, alguém capaz de percebé-lo, dem onstrá-lo, interpretá-lo, form ulá-lo, oferecendo-o ao m undo em form a sintética e coerente. E m c iê n c ia , a ú n ic a a u to r id a d e d e v e s e r o M é to d o C ie n tific o . E , a s s im m e s m o , j u l g a d o c o m c r ité r io , c o n s id e r a n d o - s e s u a s lim ita ç õ e s . N a c iê n c ia , to d o s o s n o m e s p r in c i p a i s - à s v e z e s a p e n a s m a is c o n h e c id o s - c o s tu m a m s e r p r e c e d id o s p o r o u tr o s m e n o s f a m o s o s q u e e r g u e r a m o s "a n d a im e s ” p a r a a p r ó x im a c o n stru ç ã o . U m a n o v a d e s c o b e r ta d e p e n d e d e : m o m e n to h istó ric o , ta le n to p e rc e p tiv o , s o r t e d e e s te e s t a r d is p o n ív e l. D a s c o n d iç õ e s n e c e s s á r ia s , s e m d ú v id a a m a is im p o r ta n te é a g e n ia lid a d e d o s e u a u to r , n ã o , p o r é m , a m a is im p o r ta n te p a r a a id é ia p r o p a g a r - s e . P a r a a a c e ita ç ã o d o f a t o n o v o - m a is d o q u e r e p r e s e n ta r a v e r d a d e - tê m s id o e s s e n c ia is a r e c e p tiv id a d e d o m e io e o s in t e r e s s e s p o l í t i c o s , r e l i g i o s o s e e c o n ô m ic o s . F in a lm e n te , u m c o n h e c i m e n t o s e t r a n s f o r m a in e q u iv o c a m e n te e m c iê n c ia q u a n d o p a s s í v e l d e d e m o n s tr a ç ã o o u e x p r e s s ã o m a te m á tic a .

H erm etism o, R enascim ento e Reform a: Cam inhos para o conhecim ento E sses três acontecim entos ao longo da H istória foram decisivos para destruir o argumento da autoridade, julgado até então com o legitim am ente predom inante sobre o conhecim ento construído de m aneira científica. H erm etism o: Pelo século III, surgiu a doutrina do H erm etism o, derivada do deus grego H e r m e s , deus das relações pacíficas, com ércio, viagens, eloqüência, ciências. O s gregos deram o nom e de H e r m e s T r im e g is to (três vezes grande) ao deus lunar dos egípcios, T o th , e sob a influência do neoplatonism o fizeram dele um antigo rei do Egito, que fora o inventor das ciências e deixara escritos do tem po de M oisés. Já lhe atribuíram m ais de trm ta m il livros m as os fragm entos que restam são m uito poucos. E sta pretendida ciência, cultivada durante a Idade M édia, abrange a teoria e a prática de toda a v id a universal e foi, segundo a qualidade de seus adeptos, tam bém batizada de ocultism o, esoterism o, m agia. O m étodo característico do herm etism o é a analogia. A deptos m odernos

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(ainda os há) pretendem que suas aplicações às ciências, às artes e à sociologia perm item lançar novas luzes sobre problem as eternos e aparentem ente insolúveis, um a vez que o herm etism o supõe ordenações e correspondências m isteriosas entre todas as partes do Universo visível e invisível. Contêm m istérios só acessíveis aos iniciados e m agos. Seu Universo é o das esferas aristotélico-ptolom aicas m as guiado p o r seres divinos e dirigido pela m agia, pela astrologia, pela alquim ia e pelo ocultism o. E um gnosticism o e n s in a n d o q u e o h o m e m é c a p a z d e d e s c o b r ir e l e m e n t o s d i v i n o s d e n tr o d e s i ; prom ovendo um a ligação entre o m undo e a hum anidade, e dando ênfase à doutrina do m icrocosm o e do m acrocosm o. Todo o corpo herm ético estim ula tentativas individuais de atingir um conhecim ento intuitivo de Deus e da salvação. N ão foi hostilizado pelo cristianismo, e m esm o aceito, por ser neoplatôm co e porque teólogos da Idade M édia, e até Santo A gostinho - em bora com restrições ao com ponente ídolátnco consideravam H e r m e s o m ais im portante de todos os videntes e profetas pagãos que previram o advento do cristianism o. A pesar da oposição oficial da Igreja à m agia, à alquim ia e ao ocultism o, m uitos prelados pensavam que os textos herm éticos eram santificados em razão da profecia cristã que continham . M esm o um católico tão fiel com o o rei Felipe II da Espanha possuía m ais de duzentos textos herm éticos. C om to d as essas c a racterísticas, o h erm etism o atu o u da Idade M édia à R enascença, representando um poderoso apoio a práticas ocultistas, com o alquim ia, m agia e astrologia, e intenso estím ulo à observação astronôm ica - passando pelas relações m atem áticas, encorajadas pela versão pitagónca do platonism o -, que enfatizam relações geom étricas e num éricas no U niverso. Quatorze textos herm éticos term inaram de ser traduzidos para o latim , em 1471, por M arcílio Ficino, diretor da A cadem ia Platônica de Florença, a pedido de C osim o de M ediei. O herm etism o inspirou A P r i m a v e r a de Sandro Boticelli, afrescos no V aticano, foi reverenciado na Itália e até m esm o no m undo protestante. N o fim do século X V I, quando o herm etism o estava caindo no esquecim ento, tais versões ainda inspirariam hom ens com o K epler e se apresentariam com o os m ais avançados instrum entos p a ra explicar o arranjo dos planetas em torno do Sol. Isaac C asaubon (1559-1614), considerado um dos hom ens m ais eruditos da Europa, em 1614, depois de exaustivos estudos e comparações, concluiu com toda a certeza que os textos herm éticos não datavam da época de M oisés m as haviam sido escritos pelos neoplatôm cos. Suas profecias nada m ais eram do que relatos de acontecim entos já ocorridos. O que se m anifestara ao hom em da R enascença com o um choque sem elhante à descoberta dos m anuscritos essém os do M ar M orto na nossa época não era m ais do que escritos neoplatôm cos. Com o as revelações não tém im pacto im ediato m as precisam ser absorvidas, o herm etism o ainda continuou em voga por algum tem po e, tam bém , com o a hum anidade se com porta ciclicam ente, ultim am ente tém ressurgido m spirações ocultistas. M as o significativo de tudo isso é que reforçou nos espíritos m ais esclarecidos do século X V II a convicção de que a e x p lic a ç ã o d o s f e n ô m e n o s n a tu r a is d e v i a s e r p r o c u r a d a lo g i c a m e n t e , a tr a v é s d e e s tu d o s e p e s q u i s a s b a s e a d o s n a r a c i o n a l i d a d e , e n ã o n o s m is té r io s .

R enascença: A partir de 1400 com eçou n a Itália o m ovim ento cultural e político conhecido com o R enascença, term o significando renascim ento da cultura clássica, u m m o v i m e n t o d e e m a n c i p a ç ã o t a f i r m a t i v o i n d i v i d u a l ) e e x p r e s s ã o ( l i b e r t á r i o h u m a n o ) , c u jo s anúncios precursores são vistos na m onum ental D i v i n a C o m é d i a de D a n te A llig h ie ri (1265-1321), ilustrando um novo estado de espírito em que a m oral vence a m etafísica, não tanto estuda a felicidade divina m as a desfruta, no hum anism o dos poetas F ra n ce sc o P e tr a r c a (1304-1374) e G iovani B occaccio (1313-1375), anunciando o ressurgir de um a cultura herdada da Antiguidade clássica, e nas pinturas de A ngiolotto di Bondone, cham ado G iotto (1266-1336), que introduziu na arte o m ovim ento, a expressão, a paixão e a vida, retratando sentim entos hum anos em perspectiva - integrados na natureza -, ao invés de ícones im passíveis sobre um fundo de quadro sem ceu

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A o hum anizar o m undo em direção à felicidade, Dante pode ser considerado a p r i m e i r a tr a n s iç ã o p a r a a R e n a s c e n ç a . Com o um contestador, confere autonom ia à natureza, que não

fala m ais um a linguagem teológica. Com o os averroistas, vislum bra um m undo eterno, onde não há criação nem liberdade individual m as natureza e consciência coletiva, um m undo que é o espelho da alm a hum ana e não da luz divina, onde é praticam ente im possível para o hom em chegar. A um m undo dom inado pela hierarquia inscrita em tudo, sucede outro no qual o hom em não m ais nele se situa, sendo ele que está no hom em . D ante fo i o prim eiro escritor a transform ar a língua local num instrumento universal, ao passo que o prim eiro filósofo que o fez fo i Descartes, m uito depois. Petrarca foi, ao m esm o tem po, o últim o m edieval e o prim eiro m oderno: tendo sido cristão m ístico e ascético, em ergiu do espiritualism o reconhecendo as belezas da natureza, em passagens que m arcam a evolução da m entalidade européia, e, alim entado por recordações de grandeza rom ana, foi tam bém o prim eiro patriota nacionalista europeu. B occaccio m andou v ir da G récia as prim eiras cópias da I l í a d a e da O d is s é ia de H om ero. Sua obra capital é o D e c a m e r o n . M ais tarde, Erasm o de Rotterdam (1466-1536) no seu E lo g io à L o u c u r a m ostra o hom em divinizado p ela paixão e ilustra bem o espírito da R enascença, procurando livrar-se de todo dissabor. Erasm o, que acreditava na sim plicidade inicial e universal do cristianism o, utilizou seus conhecim entos p a ra desprezar a linguagem obscura dos teólogos anteriores e dar nova vida aos ensinam entos fundam entais de C risto, aproxim ando-o do entendim ento hum ano. Para Erasm o, a sim plicidade é m ais im portante que o refinam ento intelectual. N o E l o g i o à L o u c u r a explica com o os objetos de nossa felicidade são ilusórios. Sua m aior preocupação foi a m elhoria da qualidade da educação e do ensino prom ovido pela Igreja, em bora o acesso aos textos de Erasm o tenha sido proibido durante um certo tem po. O antiintelectualism o de Erasm o e sua valorização da elegância e da eloqüéncia, em detrim ento do aprendizado de fatos, ficou com o base de grande núm ero de escolas do Ocidente porque, sem visar especialistas académicos, os escritos de Erasm o dirigiram -se a um público m uito m ais amplo. L entam ente, o m i s t i c i s m o e o a s c e t i s m o m e d i e v a i s f o r a m d e s p e r t a n d o p a r a v is õ e s m a is m u n d a n a s , i n c l u s i v e i n te le c tu a is , e o hum anism o passou a dom inar a cultura, secularizando atitudes e conceitos de beleza m uito além do sim bolism o religioso. E m 1453, um presente: cristãos fugitivos dos turcos que tom aram C onstantinopla trouxeram para o Ocidente antigos m anuscritos gregos sobreviventes, o que fom entou o estudo direto dos clássicos. Certam ente, c o n tr ib u ír a m p a r a o m o v i m e n t o r e n a s c e n t i s t a : a injeção de cultura trazida pelas invasões árabes, o intercâm bio de idéias proporcionado pelas cruzadas, o crescim ento económ ico na Itália do norte - a R enascença com eçou pela Toscana, forte centro bancário e cultural -, o expansionism o ultram arino português com seu com ércio de especiarias (canela, pim enta do reino e noz m oscada) e a descoberta de novas terras, que m ostraram ser o m undo m aior do que parecia, bem com o o increm ento das relações com erciais internacionais, a introdução do uso do papel, vindo da C hina, e o aperfeiçoam ento da im prensa com tipos m óveis por G utem berg, em 1446. E sta ú ltim a m ultiplicou e barateou os livros, difundiu o hábito da leitura de obras hum anisticas, técnicas e artísticas, e, o m ais im portante, nos diferentes idiomas e não apenas em latim ou grego, com o eram os antigos pergam inhos copiados a m ão, o que significava espalhar o novo pensam ento m uito além dos claustros e das universidades. François Rabelais (1494-1553), na França, e depois M iguel de C ervantes (1547-1616), n a Espanha, em ergem com o os dois génios m ais característicos de suas épocas, pelas atitudes críticas aos id e a is d a Id a d e M é d ia . N a In g la te rra , o m a is in flu e n te h u m a n is ta fo i T h o m as M o re (1478-1535), autor da U t o p i a , m spirada na R e p ú b l i c a de Platão.

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Com a liberação do espírito humano, a n o v a lib e r d a d e p a s s o u a e x a l t a r o s id e a is d e b e le z a c lá s s ic a d o s g r e g o s e d o c o r p o h u m a n o , desfrutes tão reprimidos durante séculos. Como um a ode ao pitagonsmo, assim que algo podia ser enquadrado em números subia a um nível superior de apreciação. A m atem ática foi prom ovida à rainha da nova ciência em ergente, que com eçava a explicar universalmente o esquema do mundo, revigorando-se a concepção núm érica do espaço e da natureza, em que a representação do m undo se faz na m ente do observador, conferindo ao hom em nova fonte de poder sobre o ambiente, começando a nascer a mentalidade moderna. Assim, a r e s s u r r e iç ã o d a c iê n c ia s e b a s e o u p r in c ip a lm e n te n a tr a d iç ã o p i t a g ó r i c a r e n o v a d a n o R e n a s c im e n to (Figura 23).

Figura 23 - Este desenho de Leonardo da Yinci, figura símbolo do movimento artístico e cientifico na Renascença, representa a abrangência libertária do espirito humano, possibilitando o binômio arte-ciência tão presente nessa época. No plano terreno, o homem passou a ser a medida de todas as coisas. O renovado interesse nas ciências e nas artes desem bocou nos próxim os três séculos no m étodo cientifico m oderno, pois a R enascença gradualm ente encam inhou as m elhores cabeças para a investigação da natureza, e a id é ia d e q u e c o n h e c im e n to é p e r c e p ç ã o s e n s o r i a l le v o u à f ó r m u l a d e q u e o h o m e m é a m e d i d a d e to d a s a s c o is a s . O pendor p a ra o naturalism o e o interesse pelas form as do corpo hum ano, representadas por artistas com o Yerrocchio, M antegna, Signorelli, D ürer, M ichelangelo, R afael e sobretudo o m ultiform e génio da R enascença, L eon ard o da Y inci (1452-1519), m isto de pintor, escultor, po eta, arquiteto, naturalista.

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m ate m á tic o , m ú sico , físico , an a to m ista, deram n o v o im p u lso a o s e s tu d o s anatôm icos. T endo sido eleito o m undo natural com o a m aior autoridade, r e p r e s e n t á - l o e i n te r p r e tá - lo s e m a m a r r a s e r a o o b j e t i v o d a c i ê n c i a . E m v e z de usarem as o bservações com o “p ro v a” de determ inada “verdade” assum ida antes, procuraram tirar princípios gerais, aplicáveis a partir da observação do com portam ento de eventos independentes, m uito raram ente provocados, in i c i a n d o - s e o q u e é c h a m a d o d e e m p ir is m o .

Devido à longa estagnação do conhecim ento, com o não h av ia linguagem estabelecida para tantos novos achados e com portam entos, a com unicação passou a se fazer principalm ente através de descrições figurativas. Por isso, n a R e n a s c e n ç a , a r t e e c i ê n c i a e s tiv e r a m m a i s j u n t a s d o q u e e m q u a l q u e r o u t r o p e r í o d o d a H i s t ó r i a h u m a n a . A p a rtir da R enascença, com eçaram as extraordinárias conquistas das Ciências M édicas e B iológicas, da M atem ática, A stronom ia e Física e, um pouco depois, da Química. C o n v ém le m b ra r q u e a re c o rd a ç ã o d o s v a lo re s da A n tig u id a d e n u n c a se p e rd e u com pletam ente no ocidente europeu. A ntes do m ovim ento principal, houve várias pequenas “renascenças (renascim entos)”: a carolíngia, no com eço do século IX , a otom ana, no século X, a das universidades, no século XIII. Tam bém é preciso considerar a distribuição desigual do m ovim ento no continente europeu: a Itália já era renascentista no século X Y . França, Inglaterra e A lem anha só o foram no século X V I, enquanto que na P enínsula Ibérica o m ovim ento renascentista fo i extrem am ente fraco, e na E uropa Oriental praticam ente inexistiu. Reform a: H á m uito era visível o afastam ento da Igreja dos ideais cristãos prim itivos, sendo ostensivo o afrouxam ento m oral e a dissolução dos costum es de grande parte do clero em todos os seus níveis. O surgim ento de idéias hum anisticas e libertárias, prm cipalm ente por efeito da im prensa, com o seria de esperar, trouxe consigo um a fragm entação do cristianism o, que já não conseguia ficar contido nas fortes am arras romanas - subtraindo um a parte da Europa á obediência aos Papas -, e criando o protestantism o. E sse m ovim ento teve origens m ais antigas, com o desejo de m uitos retornarem a um a Igreja purificada, com a reação contra a política m egalóm ana de R om a e com os progressos do hum anismo. João H u s, n a T ch eco slo v áq u ia, T hom as W y clift, n a In g laterra, M artm h o L u tero , na A lem anha, João C alvino, n a Suíça, e outros, sucessivam ente nos séculos X Y e X V I, lançaram idéias de rem terpretação das E s c r i t u r a s e de m odificação da estrutura adm inistrativa da Igreja, que ficara m uito com prom etida por abusos evidentes, com o algumas m anifestações de paganismo e a questão das indulgências, am bas em parte decorrentes do preço a pagar pela conversão de povos bárbaros à fé católica. E m anteriores negociações p a ra a conversão de bárbaros, houve um a certa acom odação de com portam entos e atitudes da Igreja, de m odo que ritos pagãos de fertilidade foram incorporados a festividades religiosas, bem com o o costum e germ ânico de trocar penalidades por pagam entos acabou dando origem á com pra de indulgências para expiação de pecados, generosam ente vendidas por R om a, que precisava financiar suntuosas obras no V aticano. D aí para negociações abertas e abusos de toda ordem fo i um passo. C erta vez, o inquisidor dom inicano João Tetzel prom eteu a uns pobres m ineiros que, se eles com prassem s u fic ie n te s in d u lg ê n c ia s , os m o rro s em v o lta d a c id a d e se tra n s fo rm a ria m em prata. E m d e c o rrê n cia desses fato s, q u a lq u e r p e sso a que so u b e sse ler c o n sta ta ria as gran d es discrepâncias entre os ensinam entos de Jesus e a conduta geral da Igreja Católica. O alvo de grande parte do anticatolicism o que se espalhou n a E uropa era o Papado, c o n s i d e r a d o c o r r u p to e i l e g ítim o p e l o s q u e s e o p u n h a m a o d o m í n i o d a I g r e j a C a tó lic a .

M artinho L utero (1483-1546), um m onge alem ão católico rebelado e o fundador da mais expressiva facção protestante, convenceu-se da relação direta que devia existir entre D eus e o hom em através da B íb l i a e das orações. D ispensou a m ediação sacerdotal e papal, a quem

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cham ava de anticristo, a hierarquia, o celibato dos padres, os votos m onásticos, o culto dos sa n to s, o p u rg ató rio e a m issa , e en co n tro u na E p í s t o l a a o s R o m a n o s de S ão P au lo "M ostra-m e tu a fé sem obras e eu te m ostrarei a fé p elas m inhas obras:: - o que viria ser a teologia, a m oral e a m ística protestantes: a salvação pela fé e pelo trabalho. O ponto básico de toda a doutrina luterana é a convicção de que Jesus m orreu p a ra p erdoar os nossos pecados e nos salvar. A ssim , o j u s t o v i v e r á p e i a f é , n ã o n e c e s s i t a n d o d e p e n i t ê n c i a s o u p r o m e s s a s . Como a salvação só poderia v ir pela fé, a venda de indulgências constituía um escândalo. E m 1517, afixando no v en ta e cinco teses à p o rta da Igreja de W ittenburg, condenou publicam ente a venda de indulgências pela Igreja Católica; em 1520, publicou as obras que expõem a sua doutrina: sacerdócio universal, redução a trés do núm ero de sacram entos (batismo, confirm ação e casam ento), liturgia no vernáculo, abolição do que considerava superstições, com o veneração aos santos, a suas im agens e relíquias, peregrinações e jejuns. O clero luterano foi autorizado a casar, do que o próprio Lutero deu o exem plo casando-se com um a ex-freira. T raduziu a B íb l i a p a ra o alem ão e defendeu corajosam ente, na D ieta de W orm s (1521), suas idéias diante do im perador alem ão Carlos V . Foi excom ungado pelo papa L eão X, e seus escritos p ro ib id o s. O te rm o " p ro te s ta n te :: p ro v é m de u m a p e lo dos p ro p a g a d o re s d a relig iã o reform ada, p r o t e s t a n d o contra a disposição de o Im perador tentar rem troduzir certas regras contrárias ao seu culto, em 1529. Entretanto, o apoio de que L utero gozava na A lem anha era capaz de livrá-lo de qualquer punição nesse pais (Figura 24). N a Idade M édia, p raticam en te não existiam pessoas cultas fo ra da Igreja. T o d o esse m o n o p ó lio d e s a b a r i a c o m a i n v e n ç ã o d a i m p r e n s a , e s t a a o p o s s i b i l i t a r a o f e r t a d a in fo r m a ç ã o , e c o m o p r o t e s t a n t i s m o , e s te a o e s t i m u l a r o j u í z o in d i v i d u a l . A tradução da B íb l i a para o alem ão, por Lutero, e outras que se seguiram , com o a B í b l i a de G enebra e a tradução inglesa do rei Jaim e, pela prim eira vez tornavam as E s c r i t u r a s disponíveis p a ra os leigos, que poderiam apreciá-las sem os filtros de interpretação interpostos pelos sacerdotes católicos. Se antes, para a Inquisição, o diabo estava presente nas bruxarias, agora tam bém m anifestavase pela palavra escrita e p elas m entes questionadoras produzidas p ela inform ação, estim ulando um ju íz o próprio das pessoas. E surpreendente com o fatos fortuitos podem m udar a H istória. Lutero, um rebelde, o mais im portante reform ador protestante, o hom em que alim entou a principal ruptura político-religiosa da história ocidental, fez tudo isso após ter-se tornado m onge católico em cum prim ento a um a p ro m essa de salvam ento, depois de te r sid o a tin g id o p o r um raio n u m a estrada durante um a tem pestade. P hilip Schw arzerd (1497-1560), dito M elanchthon, fundador do dogm atism o luterano, m uito m ais intelectualizado e m ais co n ciliad o r co m o catolicism o que L u tero , abrandou hum am sticam ente a incipiente escolástica luterana. N aquele tem po, o catolicism o era c re r, o b e d e c e r , c a l a r e d iv id ir . O luteranism o propunha p e n s a r , d e c id ir , a g ir , o r d e n a r e m u ltip lic a r . R eflexos dessas atitudes visualizam -se até hoje na pobreza e na atitude anticientifíca e política protecionista de países dito católicos, em contraposição ao desenvolvim ento e progresso de países predom m antem ente protestantes. O s reform adores protestantes, além de quererem m aior autonom ia de decisão em relação à R om a, desejavam utilizar as línguas locais em vez do latim para atingir m ais fiéis, restaurar a ética cristã prim itiva, m enos ostentação e m enos concentração de riqueza. A ssim , a ética protestante em ergente trouxe consigo as idéias de v a lo r iz a ç ã o d o h o m e m c o m o s e r i n t e l e c t u a l e d o t r a b a lh o c o m f o n t e d e r e n d a in d iv id u a l, propiciando

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Figura 24 - Lutero prega suas noventa e cinco teses na porta da Igreja de Wittenburg. O surgimento do protetantismo deu ao homem o direito à fé com consciência e representou o mais profundo golpe na onipotência da Igreja romana, exercida através do Papado. Das guerras religiosas emergiu uma geografia européia claramente identificada com os inícios do mundo moderno. a organização do capitalism o, e estim ulando a pesquisa científica, pois a ciência devia criar a figura ordeira e coerente do Universo para m elhor dem onstrar a obra de Deus. O s cam inhos para atingir esses objetivos deveriam p a s s a r p e l a B íb l i a e p e l a n a tu r e z a , m a i s d o q u e p o r m is té r io s , p e c a d o s , c o n fis s õ e s , p e n i t ê n c i a s , s a n t o s e s a c r a m e n to s . A lém de tudo, por não serem tão fortes

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CARLOS ANTONIO MÂSCIA GOTTSCHALL

com o a Igreja de Rom a, as Igrejas protestantes nacionais perm itiriam um m aior desenvolvim ento cientifico, tam bém porque algo im potentes para controlar o pensam ento dos seus membros. Tal com o os antigos hebreus, Jo à o C alv in o (1509-1564) entendia que os evangelhos deviam ser im postos por lei aos hom ens e, inspirado em Santo A gostinho, tam bém pensava que estes sào predestinados para a salvação ou p a ra a condenação. Persuadindo a cidade de G enebra a adotar sua fé, todos os cidadãos ficaram sob a direção de padres cham ados p a s t o r e s (do rebanho hum ano). Calvino trouxe para a causa protestante a disciplina que lhe faltava e v iu seu sistema de governo da Igreja expandir-se para grande parte da Suíça, algum as cidades francesas e para a E scó cia, onde triu n fo u n este p aís graças aos esforços de John K n o x (1505/1513-1572). Em todos esses locais, o s r e fo r m a d o r e s c a ix in is ta s d e fe n d ia m q u e a p r o s p e r i d a d e c o n q u is ta d a p o r m e io d o t r a b a lh o á r d u o e r a u m s i n a l d a g r a ç a d e C r is to .

A Inglaterra, porém , desenvolveu um tipo peculiar de fé protestante, m uito m ais baseada em antigas rivalidades com R om a e expandida m uito m enos p o r incursões ideológicas do que por desejos pessoais do rei H enrique V III, que queria divorciar-se da feia católica espanhola Catarina de Aragâo para casar-se com a jovem e b ela inglesa A na Bolena. Em 1534, H enrique VIII rom peu com Rom a e fundou a Igreja Anglicana, com dogm as e ritos m uito próxim os dos católicos, desde então chefiada pelo soberano inglês. Por volta de 1600, o anglicanism o era visto com o um interm ediário entre o catolicism o e o protestantism o. Entretanto, alguns protestantes mgleses, que foram cham ados de p u r i t a n o s , quiseram ir m uito m ais longe no rom pim ento com o passado e na adoção das idéias de L utero e prm cipalm ente de Calvino. Para isso, precisavam construir um m undo novo e escolheram a A m érica do N orte, onde criaram a que seria, três séculos depois, a m ais poderosa nação do mundo. A R eform a protestante origm ou naturalm ente u m a contra-R eform a católica. Em 1545, reuniu-se o Concílio de Trento, p o r m eio de um a reação retardada do papa Paulo III, suas sessões prolongando-se por dezoito anos e atravessando o rem ado de cinco Papas. O C oncílio de Trento foi um dos m ais im portantes da história da Igreja, p ela sua repercussão. Iniciado com um a tíbia intenção de reconciliar o protestantism o com a Igreja, logo essa idéia m ostrou-se inviável. Para anular o argum ento protestante de que a verdade só deveria ser buscada nas E s c r i t u r a s , o concílio proclam ou “a igual autoridade da E s c r itu r a e da tradição”. Tam bém foram irreconciliáveis as idéias sobre o pecado origm al e a insistência de Lutero na justificação só pela fé. N os prim eiros séculos, o Papa era apenas o bispo de R om a e o prim eiro entre iguais; nos séculos posteriores seu poder crescera m as não fora centralizado. Sendo o poder papal o alvo da m aioria das críticas, ao invés de corrigi-lo, o C oncilio de Trento s e r v i u p a r a t o r n a r a I g r e j a u m a m o n a r q u i a a b s o lu ta , c o m o é a t é h o j e , c e n t r a l i z a d a n a f i g u r a d o P a p a . D aí em diante, o S anto O fício, versão m odernizada da Inquisição, os jesuítas, e toda a estrutura da cúria rom ana dedicaram -se m ais a m anter a estabilidade papal e o poder da Igreja que a pureza da fé. N os lugares onde amda dom inava, im pôs e tentou restabelecer um pouco de seu antigo m onopólio de conhecim ento, introduzindo um a nova form a de censura, o notório I n d e x dos livros proibidos, ou seja, veto a quase tudo que não fosse catecism o. Com o resultado, o C oncílio de Trento acabou com as divergências dentro do catolicism o reafirm ando seu controle m oral e social sobre o m undo - e fez em ergir um a Igreja mais disciplinada e m ilitante p a ra com bater o protestantism o, com retaliações e crueldades de parte a parte. A contra-R eform a esteve centrada na Espanha, exercida prm cipalm ente pela Com painha de Jesus, fundada em 1540, e organizada com o um a corporação m ilitar com fins religiosos por Santo Ig n ac io d e L oyola (1491-1556). Fortaleceu a Inquisição, que já existia desde a Idade M édia para punir heresias e feitiçarias, atingm do agora m ais que m agos e alquim istas. E m 1551, os jesuítas fundaram em R om a a Pontifícia U niversidade Gregoriana, e oito anos depois foi

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prom ulgado o prim eiro I n d e x M u n d i a l d e L i v r o s P r o i b i d o s pela Inquisição rom ana, só abolido oficialm ente em 1966. A lguns católicos desdenhavam da evangelização pacífica, o que estim ulou a Inquisição a exterminar sem piedade os protestantes espanhóis e a esmagar os livre-pensadores da Itália. Além da expansão para a Am érica Latina, o rei espanhol Felipe II (1556-159S) intentou reconquistar espiritualmente a Europa pela guerra. Desde cerca de 1550 a 1650 a Europa sofreu um a série de guerras. N a França, na Holanda, e mais tarde na Alemanha os dirigentes católicos procuraram destruir os protestantes heréticos. Muitas vezes, a religião serviu apenas para disfarce de ambições políticas. Por outro lado, a luta pela liberdade de culto levou os protestantes a guerrearem pelo domimo de seus Estados. Assim, prmcipalmente como conseqüéncia da Reforma protestante, s u r g iu a d is irib u iç ã o g e o g r á fic a , r e lig io s a e c u ltu r a l d o m u n d o m o d e r n o , c o m p r o fu n d a s r e p e r c u s s õ e s s o b r e o d e s e n v o lv im e n to d o p e n s a m e n to c ie n tífic o . N os maiores redutos anticatóhcos, com o a Inglaterra,

desde então nunca m ais foi coroado um R ei dessa fé. N os Estados U nidos havia um a lei não escrita, até 1960, de que nenhum presidente poderia ser católico. Desafiando o poder papal, a R e fo r m a r e tir o u d a c o m u n id a d e c r is tã a a titu d e c o m p la c e n te p a r a c o m a a u to r id a d e . Havendo um a cisão no cristianismo, depois de lutas iniciais sem vencedor, o cansaço com as guerras religiosas estimulou de certa forma idéias de tolerância e de secularizaçào do Estado, começando-se a pensar em alternativas para a pacificação dos espiritos. Era o pré-Ilummismo. A c iê n c ia m o d e r n a c o m e ç o u a n a s c e r n o m o m e n to e m q u e o in te r e s s e d o h o m e m v o lto u - s e p a r a a n a tu r e z a e a v id a e p a r a a s r e la ç õ e s m a te m á tic a s d o m u n d o , c o m o o c o r r e u n a R e n a s c e n ç a , e n ã o p a r a a le itu r a d o p a s s a d o . A R e fo r m a p r o te s ta n te e a d e s m o r a liz a ç ã o d o H e r m e tis m o a ju d a r a m a m o s tr a r q u e o tr a b a lh o e a f é n ã o p a c tu a m c o m o m ito . L o n g e d a s d is p u ta s r e lig io s a s e p o lític a s , a m e n te h u m a n a m a is e s c la r e c id a c o n tin u a v a tr a b a lh a n d o . N o s é c u lo X V I , j á s e e n c o n tr a v a f o r m a d o o a m b ie n te p a r a q u e e n tr a s s e m e m c e n a o s q u a tr o h o m e n s q u e d e r a m d ir e ta m e n te a s b a s e s d e s u s te n ta ç ã o e c o m e ç a r a m a c r ia r e im p la n ta r o m é to d o c ie n tífic o m o d e r n o : N ic o la u C o p é m ic o