Inquisição e cristãos-novos

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■ Dirigida por ÔSCAR LOP€S

VOLUMES PUBLICADOS

1.

2.

Ôscar Lopes Ler e depois (critica e interpretação li­ terária— I) (2.° edição) António José Saraiva Inquisição e Cristãos-Novos (4.a edição/20000 expl.) Fernando Guimarães Poesia da Presença e o recimento do Neo-Reae antologia) ratando Castro Ensaios sobre Cultura História

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Ôscar Lopes Modo de Ler (crítica e interpretação lite­ rária — II) [XIMOS VOLUM ES

e Ressurreição dos Poesi Tae EugéPoesia rode le vários autores ogia)

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Eduardo Lourenço Poesia e Tempo Neil Miller O Elemento Pastoril Teatro de Gil Vicente

Mário Sacramento Fernando Pessoa— Poeta da «Hora Absurda» (2.° edição) Eduardo Prado Coelho O Reino Flutuante (A Razão e o Discurso) Mário Sacramento Ensaios de Domingo — II Ôscar Lopes Escritores Portugueses Con­ temporâneos (critica e interpretação lite­ rária — III) Mário Sacramento Ensaios de Dom ingo— III

Alexandre Pinheiro Torres O Romance Português Con­ temporâneo através dos “ seus 20 melhores exemplos

Georg Rudolf Und Teoria Poética de Fernando Pessoa

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Armando Castro Estudos de História Sócio-Económica de Portugal

Antologia do Pensamento Político Português — I Liberalismo, Socialismo, Re­ publicanismo — (Selecção, prefácio e notas de Joel Serrão)

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INQUISIÇÃO E CRISTÃOS-NOVOS

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Fernando Guimarães • Lin g u a g e m e . Ideologia . Raul Gomes _ Educação e Humanismo

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A N TÔ N IO J O S É SARAIVA

INQUISIÇÃO i CRISTÃOS-NOVOS

PRIMEIRA EDIÇÃO / FEVEREIRO 1969 SEG UN DA E D IÇ Ã O /M A IO 1969 TERCEIRA ED IÇ ÃO /JU LH O 1969 Q UAR TA EDIÇÃO / DEZEM BRO 1969

C O L E C Ç Â O C IV IL IZ A Ç Ã O P O R T U G U E S A

DIRECÇAO GRÁFICA OE ARMANDO ALVES ©

Editorial laovt Um kadaQ Praça Guilhanna Gotnaa Famandaa, 3 8 -2 .» □ Porto — Portugal

ED ITO R IA L INO VA □ P O R T O

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«... s'ils ont un lien conimun [...] cest quils vivem au sein d une communaute qui les tient pour Juifs.» Jean-Paul Sartre, La Qucsiion Juive

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«O procedimento da Inquisição em lugar de extirpar o Judaísmo o multiplica. ,E Fr. Domingos de Santo Tomás, deputado do Santo Oficio, costumava dizer que assim como na Calcetaria havia uma casa onde se fazia moeda, no Rossio havia outra em que se faziam Judeus.» D. Luís da Cunha, fidalgo português. Instruções Inéditas. (C 1735).

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AO LEITOR < t y

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Geralmente confunde-se «Crfonn-nnvo» e «/udeu».

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Para quase todos os Autores que escreveram sobre Cristãos-novos o problema deles é um problema de Ju­ daísmo. Esta crença era iá a dos Inquisidores, que tizeram tudo para a acreditar, O Autor do presente ensaio pretende contestá-la. Empresa difícil, porque é um desafio, não apenas à inércia das ideias feitas e à susceptibilidade dos mitos, mas ainda à evidência indiscutida de uma documentação que, pela sua enormidade, faz as delícias dos eruditos: a secção inquisitorial da Torre do Tombo* A respeito desta documentação, que aliás ainda só foi explorada pelolmétodo da pesca à linha,limporta lembrar que toda ela é de fabrico inquisitorial e foi elaborada com vista a justificar a existência do Tri­ bunal do Santo Ofício. Os Inquisidores eram juízes e parte, não só de cada processo que moviam, mas ainda da grande causa que se processava no que podemos, sem retórica, chamar aqui o Tribunal da História. Estava no seu papel convencer o público de que a heresia ju­ daica ameaçava subverter a sociedade cristã. Neste as­ pecto, a analogia entre os processos inquisitoriais e os processos de Moscovo na época estaliniana é flagrante. Como veremos, não só á forma como cada processo era 11

conduzido, mas as próprias normas processuais, o sis­ tema de delação, o modo como se efectuavam as ave­ riguações genealógicas, tudo convergia para o mesmo efeito. De tal forma que o historiador escrupuloso que toma à letra os documentos emanados da Inquisição se arrisca a transviar-se num sábio labirinto. Só escapará a isso se tiver sempre presente a intencionalidade que presidiu à formação dos arquivos inquisitoriais, e esta só se lhe tomará clara se conseguir encarar a Inquisição não como uma fonte dc documentos formalmente au­ tênticos, mas como um factor dentro de uma situação histórica. Qual? 0 nosso propósito, nas páginas seguintes, é problematizar a Inquisição, problematizando do mesmo passo o conceito de Cristãos-novos. Na copiosa litera­ tura publicada sobre ambos os temas raramente se ouvem as perguntas: O que é a Inquisição? O que são os Cristãos-novos? Dão-se os problemas como prèviamente resolvidos. Pôr a pergunta e propor uma resposta — tal é a nos­ sa intenção. E que o leitor não se deixe impressionar se o tom das páginas que vai ler lhe parecer demasiado afirmativo ou entusiàsticamente polémico. Ê uma ques­ tão de estilo. Que a pergunta fique, que provoque outros a novas respostas, isso nos basta.

INTRODUÇÃO As inquisições portuguesa e espanhola constituem um caso à parte dentro da história geral da Inquisiy . ção 0 ). Esta_particularidade resulta principalmente da qualidade dos réus que elas perseguiam, os chamados cristãos-novos ou marranos, e também das relações entfe~o Poder estatal e » p/J»r innmsitnrial que na Po' nínsula Ibérica foi singularmente organizado, centralizado e estável. O que há de comum a todas as inquisições, além de r-fT . conhecerem e de punirem os crimes contra a fé e os bons costumes, é, em primeiro lugar, o investigarem e julgarem esses crimes secundo uma forma de processo

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e, em segundo lugar, a possibilidade de fazer executar,! para os ditos crimes, que se consideravam de natureza .! «Tkpiritnal», penas temporais._Desta forma, as inquisi­ ções, desde a sua origem, combinaram dois direitos e

Paris, Junho de 1968. Nota: A redacçSo do presente livro foi concluída no verto ae 1964. Um resumo dele foi publicado na revista Annales. Economles. Sociétis. CMlisatioiu. Maio-Junho de 1967, Paris.

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(t) Nesta introdução seguimos a obra ainda insubstituível de H. Ch. Lea, A History o f the Inquisition o f Spain, 4 volumes, Nova Iorque, 1894/1395. Utilizámos também as obras de J. C Baroja, Newman e L. Poliakof.

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jurisdições que tradicionalmente constituíam duas esferas distintas: o direito eclesiástico, aplicado pelo braço «espiritual», e o aireito civil, aplicado pelo braço «tem-~ poral». Isto foi possível graças a uma álianca entre o Rei e_a . Papa, Antes da instituição dos tribunais inquisitoriais competia aos bispos investigar ou inquirir sobre os crimes contra a Fé dentro das respectivas dioceses. A grande vaga de heresias que grassou no sul da França durante o séc. XII deu lugar a uma conjuntura em que o poder pontifício e o poder régio se uniram não só para a guerra de cruzada contra os Albigenses como também para a eliminação dos vestígios heréticos entre os vencidos. Com este fim, nos primeiros anos do * fr ■ o séc. XIII, nas regiões mais afectadas pelas heresias, o ° aO Papa criou tribunais especiais encarregados de despistar e punir os hereges. 'v Os seus juízes foram pela maior parte recrutados entre os frades da ordem dominicana, recentemente fundada, e que estava na vanguarda da luta contra as novas heresias. Da função de inquirir (investigar) os crimes he­ réticos, veio a estes tribunais especiais o nome de Tri­ bunais do Santo Ofício da Inquisição (ou inquirição). Delegados do Papa (e por isso independentes dos bis­ pos), os Inquisidores contavam com a colaboração das autoridades régias para fazer aplicar penas temporais aos culpados de heresia. Com efeito, sendo uma insti­ tuição eclesiástica, a Inquisição só podia, em princípio, impor penas «espirituais» (excomunhões, penitências, etc.); mas, entregando, ou «relaxando» ao «braço se­ cular», isto é, à justiça civil, os condenados, submetia-os,

implicitamente, à pena de morte e de confiscação de bens, que o direito civil estatuía para certos crimes, entre os quais os de heresia. No entanto, as relações entre os tribunais inquisitoriais^ê a autoridade régia foram muito flutuantes durante a idade Média. O principio da colaboração dos (jois poderes foi mais OU menos anlicadn c o n s o a n te a s conjunturas e os lugares, a variação das relações entre o Rei e o Papa. Antes do estabelecimento da Inquisição iB?rica”nãc houve um estatuto fixo regulando as rela­ ções entre o poder real e o poder inquisitorial, isto é. o conjunto dos tribunais inquisitoriais de cada país, organizados num todo e representados por um órgão supremo. Pode falar-se, como instituição, de uma Inqui­ sição espanhola, de uma Inquisição portuguesa mas não de uma Inquisição francesa ou de uma Inquisição ara­ gonesa. Em princípio, a Inquisição ocupava-se exclusiva­ mente dos súbditos da Igreja, isto é, da gente baptizada que se apartava da Fé professando heresias ou entrando em pactos com o Diabo, cujos poderes sobrenaturais, segundo a crença medieval, estavam na origem da fei­ tiçaria. Em teoria, a Igreja não podia obrigar a conver­ ter-se à Fé cristã os nascidos fora do seu grémio, como Judeus ou Muçulmanos. E, com efeito, não encontramos nas Inquisições medievais perseguições anti-islâmicas ou antijudaicas. Estas últimas, na Europa medieval, desenvolveram-se sempre à margem da Igreja, que nelas não interveio, pelo menos ex officio. Irradiando do sul de França na caça dos Albigenses e dos feiticeiros, os tribunais inquisitoriais propaga­ ram-se às regiões vizinhas, na França, na Itália, na Pe15


Assistência (5n) 166

Ver nota Francisco Rodrigues, História ,la Companhia cir Jesus na cie Portugal, içxno 11, vol. I, 1938, pdg. 338. 1b. pág. 346 e seguintes.

peza de sangue» continuava a não ser lei geral. Os pos­ tulantes pretendiam que o Rei interviesse contra proce­ dimentos, costumes, estatutos particulares que em seu entender obscureciam mas não invalidavam o princípio da iguaTdãde dos súbditos (5I). Esta posição dos Cris­ tãos-novos mantém-se ainda em 1622 com a ressalva dos cargos eclesiásticos, pois nas Cortes desse ano re­ clamam perante o novo Rei (Filipe IV) que eles sejam considerados habilitados para todos os cargos e honras não dependentes da limpeza de sangue, desde que os pais c avós dos interessados não tivessem sido casti­ gados pelo Santo Oficio. Esta ressalva em relação aos cargos e honras dependentes da limpeza de sangue refere-se ao direito canónico, que vedava aos não limpos o provimento em benefícios e certos cargos eclesiásticos, e a excepção dos filhos e netos de, penitenciados ou relaxados era conforme ao direito inquisitorial. Filipe IV responde pela carta régia de 26-7-1627 reconhecendo a idoneidade dos Cristãos-novos (exceptuando os filhos e netos dos culpados) para todos os cargos e honras seculares, isto é, laicos. Desta forma limitava-se a reiterar o princípio geral na medida em que o direito canónico o não amputava (H). -Jty (*&) Ê sobretudo a partir de Filipe II que se multiplicam as leis pontifícias, umas gerais, outras particulares, estabelecendo para os c a rg o s eclesiásticos o principio da «limpeza», exigida especialmente para o provimento em cért?s funções ou sinecuras de .maior interesse pelo (ii) Azevedo, obra cilada, pág. 150. (3=) Id. ib. pág. 184.

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rendimento ou pela influência, como os chamados «be­ nefícios», isto é, o direito dc cobrar determinados ren­ dimentos eclesiásticos. £ o que determina o famoso breve De Puritate, anterior a 1598 e várias vezes reite­ rado posteriormente. Já em 1588 o arquiduque Alberto, regente e Inquisidor de Portugal e legado pontifício, era encarregado de zelar pelo cumprimento desta exclusão. Em 1612 outro breve, de 18 de Janeiro, determina que os sacerdotes Cristãos-novos não possam ser vigários nem curas de almas (u). Criava-se desta forma a curiosa situação de haver uma discriminação entre os pró­ prios membros da Igreja: em teoria, certos sacerdotes podiam, e outros não, ser cónegos, prebendados, curas, bispos, etc. Estes breves pontifícios eram solicitados pelo Rei por proposta dos Inquisidores, e em certos casos por dioceses e outras instituições eclesiásticas, dentro da tendência segregacionista que a Inquisição encorajava. Por exemplo, uma bula de 2-1-1630 confirma os estatutos do arcebispado de Lisboa, segundo os quais era exigida a prova de limpeza de sangue para qualquer benefício ou conezia da diocese (*). A legislação civil encaminhava-se no mesmo sen­ tido, mantendo-se todavia a uma certa distância da eclesiástica. Uma carta régia de 28-2-1604 proíbe o acesso dos Cristãos-novos às ordens militares, limitando-se provàvelmente a tomar lei do Reino o que já então constava dos estatutos especiais das mesmas ordens. E, a pre(") Id. ib. pág. 151/152. (” ) Id. ib. pág. 216.

texto do escândalo causado pelos processos de numerosos professores da Universidade, duas leis, uma de 10-11-1621, nutra Hf» 23-2-1623. estatuem a limpeza de sangue para o. exercício das funções docentes universitárias (M). Notemos que tanto as ordens militares como a Universidade tinham, em Direito, origem espiritual, de modo que as leis que se lhes referem podem ser consideradas como extensão da legislação aplicada em matéria eclesiástica. Na Universidade nomeadamente grande parte dos mes­ tres eram eclesiásticos, usufruindo frequentemente ren­ dimentos da Igreja. Isto confirma que o princípio de limpeza só com dificuldade e por vias desviadas entrava na legislação civil. O próprio Regimento da Inquisição é uma destas vias. A coberto da ficção de que competia ao Santo Tribunal castigar os Réus, o Regimento de 1640 dispõe no seu livro III que o filho ou neto de condenado pelo Santo Ofício não possa ser juiz, meirinho, alcaide, no­ tário, escrivão, procurador, feitor, almoxarife, secretá­ rio, contador, chanceler, tesoureiro, médico, boticário, sangrador, contador de rendas reais, nem ter qualquer ofício público, nem usar insígnia de qualquer dignidade civil ou eclesiástica. Quanto aos próprios condenados não podiam, além disso, ser mestres de navios-nem bombardeiros (artilheiros), nem usar ouro, prata, pe­ draria, vestidos de seda, nem tampouco andar a cavalo. Esta disposições foram reiteradas por decreto do Inqui­ sidor geral, em Maio de 1672 (*% Não se trata, como (»») Id. ib. pág. 179. (si) ld. ib. pág. 293.

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se vê, de Cristãos-novos simples, mas somente de des­ cendentes próximos de condenados. Formalmente, esta­ mos no campo não do Direito geral, mas do Direito penal. Com o tempo, os usos e estatutos múltiplos de limpeza de sangue foram implicitamente reconhecidos como leis régias, embora a ambiguidade não cessasse de todo. Uma carta régia de 1633 manda guardar com rigor, resume Lúcio de Azevedo, os preceitos antigos sobre a exclusão dos Hebreus dos cargos públicos e honras (57). Quais preceitos? Eis o que não parece estar expresso. O ponto extremo atingido pela discriminação de Direito civil, na cristã de uma vaga repressão particularmentc forte, é o decreto de 22-6-1671 que, aten­ dendo às reclamações apresentadas em Cortes, proíbe os Cristãos-novos de instituírem ou herdarem morgadios, de casarem com Cristãos-velhos e frequentarem a Uni­ versidade como alunos. Em carta deste mesmo ano para o Rei de Portugal, o P.e António Vieira pôs em evidência o absurdo e a ilegalidade de tais preceitos, inspirados, aliás, por uma campanha furiosa dos Inquisidores com vista a restaurar o seu poder ameaçado (“ ). Parece haver, pelo que acabamos de expor, uma espécie de contradição, sentida, talvez, mais do que pensada, entre as normas gerais' do Direito implicita­ mente admitidas e a vontade de discriminação que se manifesta nas leis especiais e em certas decisões régias. (s:) Id. ib. pág. 216. (lh) ld. ib. pág. 293; e P.' António Vieira. Obraa Escolhidas, vol. IV, pág. 91.

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A Situação era substancialmente diferente da que exisI S a conversão forçada, em 1497: naquela época a d o m in a ç ã o estava na natureza das coisas, porqpe havla no çadameruc *!Tcorn ^ in tita ç õ e sta p o sta s pela realidade De facto as leis e estatutos discriminatórios nunca foram aplicados^sístemàficamcnte, . e. essa a ranto por que cada vez que se_reuniam as Cortes « ^ oW i d õ d ã sua aplicação. Amcriormcnlc a 1598, por exemplo, o breve De PurM vedava aos Cristãos-novos as prebendas e concitas; todavta cm 27 de Fevereiro dc 1622. o Inquisidor Geral D Miguel de Castro comunicava ao Rei que nos au os -de-fé dos últimos oito anos tinham &gura*>. entre numerosos outros eclesiásticos, sete cónegos ). Os próprios Inquisidores, de resto, serviam de vei­ culo a esta penetração. O Inquisidor Geral D. Funao Martins de Mascarenhas (1616-1628) e acusa °. « curioso documento, de proteger Cristãos-novos me1 ção mesmo ínfima de sangue hebraico. Com efeito, ({'■ muitos membros da nobreza de linhagem casaram, se­ gundo vimos, com cristãs-novas ricas. O exemplo mais ilustre de tais cruzamentos é D. Francisco Manuel ds Melo, escritor clássico nas línguas portuguesa e caste■I i|i (*») Baião, obra citada, vol. I, pág. 316/317, 322, 323, 327. «tf (*°t Alvará de 6-2-1649 reproduzido integraImenle por Azevedo, obra citada. Apêndice 19.

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lhana, por um lado aparentado com a família real, por outro descendente de uma acaudalada família de Cris­ tãos-novos (’')• Tão longe foi nesta zona social a pene­ tração da «gente da nação», que em 1663 se constituiu uma Confraria da Nobreza formada por uma minoria de nobres que a si próprios se consideravam limpos de qualquer parentesco hebraico. Como a Confraria da No­ breza exigia dos seus membros provas rigorosas de limpeza de sangue, o resultado foi que a maior parte das famílias nobres, por não poder apresentá-las, ficou excluída deste clube reservado (“ ). X Apesar disto, são muito raros os nobres processados pela Inquisição ou impedidos de desempenhar as ^ funções reservadas à gente de sangue limpo. Pelo con­ trário a Inquisição tratou de colocar a nobreza do seu lado (ou de colocar-se ao lado da nobreza) utilizando . para isso as possibilidades oferecidas pela instituição \ j 0 de familiatura do Santo Oficio. D. Luís da Cunha pôs~ A a claro penetrantemente este mecanismo. Para fortaj lecer a sua autoridade, diz ele, escrevendo no reinado . de D- João V, a Inquisição tratou de «sugerir à nobreza clue só ela [Inquisição] tinha a faculdade de canonizar ^mPeza óe sangue da sua ascendência e que [a no^ r " breza] não poderia fazer ver o zelo da sua religião

V «tanto se acautelavam os observantes» (m). Ê mais simples c mais lógico supor que não havia tais «obser­ vantes», sobretudo tratando-sc dc uma terra onde as pessoas viviam muito mais soltas c com menos caute­ las do que cm Portugal. O que na realidade sucedia é que não existia ainda uma burguesia brasileira bastante considerável para interessar os Inquisidores. / Houve-a mais tarde^no começo do século XVIII e é então que a Inquisição começa a descobrir judai,J Í A 5} zantes numerosos entre os senhores dc engenho e outros t burgueses brasileiros. De tal modo que o rei de Portu­ gal teve de proibir as confiscações dos «engenhos», especialmente atingidos pelo saque inquisitorial ("*). A este grupo de perseguições pertence António José da Silva e sua família, cujos processos merecem o crédito que vimos noutro capítulo. Mas o problema religioso dos Cristãos-novos não se reduz ao Judaísmo que lhes é imputado pela Inquisi­ ção e pelas pessoas que ela influenciou. Além _da condição de burgueses que lhes inspira uma certa mundi-

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Azevedo, ob. rit. pág. 225.

p»«) Lej dc 1728 menrionada por Sanches, obra diada, pág. 21.

vidência, e provàvelmente uma tendência à incredulidade, há a considerar que a conversão forçada, primei­ ramente, e a perseguição inquisitorial. depois, os colõcaram sob o ponto de vista espiritual numa situação particular. A conversão forçada foi o ponto de partida, como vimos, de uma assimilação progressiva. Mas nas primeiras gerações, que por ela foram directamente atingidas, causou uma ruptura ideológica e psicológica cujas consequências não é fácil medir. Por um lado, uma duplicidade. Houve, certamente, uma minoria que sob a exterioridade do culto cristão sc manteve fiel pelo coração à religião da infância e dos antepassados, mi­ noria que tende a extinguir-se quer pela morte natu­ ral, quer pela emigração. Outros, pelo contrário, em virtude de uma lei psicológica bem conhecida, que deu origem, ao longo da história, a tantos renegados, tor­ naram-se cristãos fanáticos, como para se libertarem violentamente de uma opção vedada. Num e noutro caso, da antiga cultura devem ter subsistido usos e cos­ tumes tradicionais que, justamente por terem perdido o significado religioso, não eram obstáculo aos casa­ mentos entre descendentes de antigos judeus e des­ cendentes de antigos cristãos, e podiam inclusiva­ mente transmitir-se a estes últimos. Ê o que sucede, parece, com certas receitas culinárias que começaram por ser ritualmente hebraicas e acabaram por se tornar tipicamente espanholas: caso do emprego do azeite onde no resto da Europa, como na Espanha antiga, se usa normalmente a gordura animal. P 9ue roais importa, no entanto, é que do trau­ matismo daconversao forçada parece resultar globalmente7 sob o ponto de vista espiritual, uma certa ínsta-

bilidade, uma certa inquietação, ou talvez melhor um certo dinamismo que podiam aliás conduzir a duas conclusões opostas. Estes cristãos, que tinham sido juHêus e portanto tinham conhecido duas formulações diferentes do sentimento religioso, podiam ser levados a depreciar o ritual exterior, precário e mutável, e a procurar, através de uma vivência religiosa intensa, a substância espiritual que ele esconde e degrada. Sob a letra morta ressuscita o espírito. Bataillon chama a atenção para a importância dos Cristãos-novos nos movimentos místicos dos «alumbrados» e dos ««dejados» cm Espanha, cerca de 1525 ("7); e não deixa de ser curioso que Santa Teresa de Ávila pertencesse a uma família de Cristãos-novos, embora de longa data assi­ milada. Mas a atitude oposta, ou seja a incredulidade, era também possível como resultado da duplicidade, do formalismo, do sentimento da precaridade dos ritos. Ê à primeira vista suipreendente ver João de Barros em 1534 polemizar com o «averroísmo», nome pelo qual, vulgarmente se designava a negação da imortalidade da alma e de outra vida além da terrena; mas, segundo parece, ele tinha em vista uma doutrina que tendia a expandir-se entre os antigos Judeus portugueses ("'). ( u :) Bataillon. Erasmo Y Espana, edição Fondo dc Cultura Económica, vol. I, pág. 209/219. (ui) A. J. Saraiva, História da Cultura em Portugal, vol. II, pág. 576/579. Révah. em Le Colloquc Ropica pnefma de João de Barros publicado nos «Mélanges ofíerts à Mareei Bataillon*, sugere que esta refutação do averroísmo tem em vista ideias correntes no meio dos conversos. Notemos que os Saducsus negavam a imortalidade da alma, e neste ponto, como noutros, se opunham aos Fariseus.

224 CH — 15 - 2

225

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(»>*) Baroja, obra citada, vol. U. pág. 234. (lJ0) Léon Poliakof, obra citada, pág. 133.

226

Não há, de momento, elementos para responder a esta pergunta, mas há lugar para propor algumas con­ siderações e para lembrar alguns exemplos que talvez não sejam insignificativos. < ; /• Ribeiro Sanches sugere que as famílias que se sentiam discriminadas e ameaçadas pela Inquisição, quer por contarem judeus entre os seus ascendentes, quer por terem parentes penitenciados ou relaxados, criavam um reflexo dc defesa fechando-sc perante o exterior. Tendiam desta forma a isolar-se, por precau­ ção, das famílias cristãs-velhas ou dc todas aquelas donde poderiam sair eventuais inimigos. Uma vida secreta se constituía assim no interior destas famílias, que, já por isto, já pela pressão externa das leis dis­ criminatórias, tendiam a solidarizar-sc e a aliar-se entre si. O meio particular que por este processo se consti­ tuía era, segundo Ribeiro Sanches, um terreno favo­ rável à difusão da semente judaica, aliás rara. A constância e a densidade destes meios fechados e com tendência para o segredo deve ter variado natu­ ralmente com as circunstâncias geográficas e sociais. Na grande e média burguesia urbana, especialmente em Lisboa, a mobilidade das famílias é maior, as mudan­ ças de fortuna são mais fáceis, os encontros e as alian­ ças chamados mistos mais frequentes. Mudando de condição, dissolvendo-se em meios diferentes, é evidente que o particularismo e o sccretismo gerados na defesa contra a Inquisição não podiam fixar-se em formas per­ duráveis. Pelo contrário, nas aldeias e vilas era difícil, z^.não,'|sèrt_ Assim instalado entre os dois poderes contraditórios.Tnàmovível e, na prática, irresponsável perantcT ambos, o Inquisidor geral nomeava todos os outros O” ) Os documentos relativos ao estatuto e funções dos Inqui­ sidores encontram-se no volume Collectorio das Bulas e Breves Apos­ tólicos. Canas. Alvarás e Provisões Reais, impresso por ordem do Inquisidor Geral D. Francisco de Castro, Lisboa 1634. A Bula de fundaçio datada de 16-7-1546 foi resumida e comentada por Herculano, obra citada. voL III. Servimo-nos também dos Aphorisml Inqulsitorum de Fr. António de Sousa já citados. fin .. j •„ .. , . - ‘j t o j r.;r (l’a) Azevedo, obra citada, pág. 240.

238

Inquisidores, transmitindo-lhes: aautoridade que ele próprio recebia do Papa, e nomeava ígualmente todos OS f u n c io n á r io s e f a m ilia r e s .

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Era assistido por um Conselho Geral de «deputa­ dos» por ele nomeados que funcionava como um tri­ bunal de última instância, julgando recursos ; que orde­ nava diligências fora da alçada das três inquisições, como, verbi gratia, a prisão sem denúncias; e que, por outro lado, com o Inquisidor à frente, representava a Inquisição perante a Coroa e constituía um conselho régio, a que cabia informar o Rei cm matérias respei­ tantes à «Fé e bons costumes». Abaixo deste órgão supremo funcionavam os três tribunais inquisitoriais de Évora, Coimbra e Lisboa, este último tendo alçada sobre o Brasil, a África c a Índia, enquanto não foi criado, para a Índia, o tribunal de Goa, em 1561. Cada um destes tribunais era consti­ tuído por uma «mesa» de três inquisidores, mais um número não fixo de «deputados», que votariam, quando os inquisidores os chamassem, as decisões mais impor­ tantes. As decisões eram tomadas por maioria, havendo pelo menos cinco votantes. Cada tribunal dispunha do seu pessoal burocrático e judicial (notários, oficiais de diligência, promotor, advogados, etc.), e tinha a sua cadeia privativa, com respectivos guardas, alcaides, mei­ rinhos, barbeiros, médicos, capelães, etc. Nos lugares marítimos havia os «visitadores das naus de estrangeiros», com seu escrivão, guarda e intér­ prete, os quais deviam inspeccionar os barcos, impe­ dir os estrangeiros hereges de comunicar em matéria de fé com os naturais do Reino, tomar notá dos nomes e moradas de todas as pessoas entradas. Havia ainda. £39

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nos lugares mais importantes, os «comissários do Santo Ofício», eclesiásticos com poderes para efectuar prisões, receber denúncias, fazer interrogatórios e outras diligên­ cias (m). Não faltava quem fizesse reparo no excessivo número de «ministros» do Santo Ofício. «Notam alguns que são os ministros muitos» — diz Frei António de Sousa, e responde: «Ê contra a razão que sejam os ministros muitos quando os hereges são tantos? [ . . . ] O que convém é pedir ao Senhor que mande mais obrei­ ros. Tantos Judeus tão sagazes hão mister muitos minis­ tros, e em cada lugar um Tribunal» (Ia). 3p) Entre estes «ministros» não se contavam certa­ mente os Familiares, que não são pròpriamente funp.jjV1 cionários, mas auxiliares ^3e um curioso género, uma espécie de «ordem terceira», que sprnnHava r>e jnfy -• D. Luís da Cunha não foi o único contemporâneo da Inquisição a ser impressionado com a instituição dos Familiares. O cavaleiro de Oliveira, no seu Discours Pathétique (1756), chama para eles a atenção, embora caracterizando-os de uma forma aparentemente imprópria: «São um corpo semelhante a um Parlamento, do qual se pode dizer que a Nobreza é a Câmara Alta, sendo a dos Comuns composta apenas pelos burgueses mais ricos». Mas tal «Parlamento» não tinha, segundo Oliveira, voz consultiva nem deliberativa: «Limitam-se a executar as ordens dos inquisidores, quer para pren­ der os culpados, quer para os guardar nos autos-de-fé [.,.] Todo este corpo, que é muito considerável, sustenta fortemente o partido da Inquisição [...] Prestam-lhe juramento de fidelidade e de obediência cega» (“ ). Os historiadores modernos parece não se terem dado conta deste aspecto da Instituição inquisitorial, o que é provàvelmente uma causa de erros de perspectiva (,n). Há que perguntar em que medida o apoio nacional aparentemente unânime de que dispunham os Inquisidores não é o resultado da pressão omnipresente dos Familiares, ou mesmo uma ilusão por estes criada. Há que perguntar também que papel tiveram na sus­ tentação do ódio virulento ao Cristão-novo durante mais de dois séculos.* )( ("*) Oliveira, obra a tid a , pág. 131/132. (***) A palavra «Familiares» nem sequer figura no índice alfa­ bético de matérias da obra de Lilrio *). Que se trata de uma verdadeira soberania mos­ tram-nos certos actos em que o Santo Ofício se arroga prerrogativas que competiam cxclusivamente à Coroa. Assim o Regimento de 1640 que, em princípio, regula­ mentava um tribunal do Reino, é promulgado por au­ toridade do Inquisidor geral e aprovado, não pelo Rei, mas pelo mesmo Inquisidor, sendo que essa aprovação tem o valor de um diploma legislativo. Esse mesmo Regimento proíbe os réus condenados pelo Santo Ofício, seus filhos e netos de exercerem cargos públicos ou de usarem insígnias de qualquer dignidade civil, militar ou eclesiástica. E, como para tomar mais explícita a sua jurisdição sobre esta parte da população, o Inqui­ sidor geral publica em Maio de 1672 um decreto pioibindo todos os castigados por Judaísmo de andarem' de coche, liteira ou a cavalo; de vestirem seda, usarem jóias e objectos de metal precioso; e outrossim — como (**») Rodrigues, obra citada, tomo III, vol. I. pág. 479/483. (>*•) Azevedo, obra citada, pág. 276.

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já tinha sido várias vezes estatuído — , de exercerem cargos públicos, etc. (®); De facto e de direito, era como verdadeiros súbditos seus que a Inquisição tratava não só estes mãe outros súbditos do Rei de Portugal. Esta soberania jurídica, este poder independente, necessitava de apoiar-se sobre uma base económica;, isto é, sobre rendimentos de que a Inquisição pudesse ( ( ^ t dispor por direito próprio. A luta pela livre disposição ^ .y dos bens confiscados aos hereges é uma das formas através das quais ela pretende assegurar a sua indepen­ dência em relação ao Poder régio. Mas a própria origem legal do confisco tornava essa lutadificil 0 a Inquisição especialmente vulnerável neste particular. A pena de confiscações existia já ha legislação medieval para vários crimes considerados especialraente graves, como os de lesa-majestade, heresia e sodomia. Os bens confiscados ficavam propriedade do Rei. Com a criação do tribunal do Santo Ofício, a investigação e o julgamento de alguns dos crimes que acarretavam a confiscação passaram a competir aos juízes inquisitoriais; mas a respectiva execução e produto continua­ vam, em Direito, a caber ao poder civil. Esta doutrina é expressamente lembrada no alvará de 1558 passado pela rainha D. Catarina em nome de D. Sebastião, rela­ tivo à isenção de confiscação das fazendas ou bens dos Cristãos-novos, explicando-se que «as ditas fazendas se haviam, por direito e pelas Ordenações deste reino, de confiscar para mim» (“ ). (u i) (iit) relativos à por Raiin

Id. ib. pág. 293. Este documento, bem como os outros abaixo citados, legislação e ao direito dos confiscos, foram publicados em Estudos sobre a Inquisição Portuguesa, no Boletim da Classe de Letras da Academia de Ciincias de Lisboa, voL XIIL

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Apesar disto, reconhecia-se a autoridade do Papa em matéria de confiscos aplicados a hereges. Por breve de 7 de Junho de 1548, o Papa tinha concedido por dez anos aos Cristãos-novos a isenção do confisco. Mas já no referido diploma régio de 1558 explicava-se que o breve tinha sido pedido por D. João III «cuja tenção e vontade foi favorecer os da dita nação sobre as ditas fazendas, que a ele em tais casos pertenciam». Este diploma, que prolongou por mais dez anos a isenção de 1548, é uma ordem aos Inquisidores. No entanto, «para maior abastança», o Rei declara que mandara su­ plicar ao Papa a confirmação da isenção, e que autoriza os Cristãos-novos a fazerem o mesmo. Coisa do Rei, admitindo a intervenção do poder espiritual, tal é, em resumo, o estatuto, um pouco am­ bíguo, da confiscação de hereges. Foi em 1563 que começou a aplicar-se a pena do confisco não obstante a isenção de 10 anos concedida como vimos, cinco anos antes. Na qualidade de Inqui­ sidor geral, o Cardeal Infante (que nessa data era tam­ bém Regente do reino) ordena, directamente, ao Juiz das Confiscações que sejam sequestradas as fazendas dos relaxados à justiça secular a contar do passado 7 de Julho de 1558, deixando assim de valer, não só para o futuro mas para os cinco atrasados, a isenção conce­ dida. Note-se que esta tinha resultado de um acordo entre o Rei (ou, em seu nome, a Rainha regente D. Catarina) e os Cristãos-novos. Em troca dessa isenção os interessados tinham dado valores e serviços: «havendo respeito aos serviços que me têm feitos, assim para minhas armadas como para outras necessidades da minha fazenda». A In­ quisição teve força bastante para a n u la r este contrato 252

sem indemnizar os Cristãos-novos do que já tinham pago por ele. Era doutrina inquisitorial que o príncipe cristão não é obrigado a honrar os contratos feitos com hereges. A ordem do Cardeal refere-se únicamente aos «relaxados», porque estes se supunham sempre confis­ cados. A pena recaía sobre os herdeiros. Com esta isenção e anulação começa uma longa história cujos figurantes são os Inquisidores, o Rei e os Cristãos-novos e de que encontraremos adiante outros episódios. Embora, de Direito, as fazendas confiscadas per­ tencessem ao Rei, de facto eram únicamentc adminis­ tradas e usufruídas pelos Inquisidores. O primeiro Re­ gimento do Fisco foi aprovado por alvará de 26 dc Julho de 1572 ('"). Na hora em que se prendia um réu, a sua casa era selada e todos os seus bens móveis e imóveis arrolados, inventariados e postos sob a adminis­ tração do Juiz do Fisco. Este funcionário, equiparado a desembargador, era nomeado pelo Inquisidor geral, embora a respectiva carta de nomeação fosse passada por autoridade e com o selo régio. As propriedades de rendimento eram arrematadas a arrendatários em hasta pública; o ouro, prata, jóias e valores preciosos eram dados a guardar ao tesoureiro da Tnquisição. Havendo dívidas nos bens dos réus, os credores poderiam vir reclamá-los. Note-se que a confiscação aplicava-se não só aos* bens que o réu detinha à data da sua prisão, mas a todos aqueles que possuíra desde a data em que praticara o crime (que poderia ser dezenas de anos anterior à prisão). Nesse caso, segundo o Regimento do Fisco, eram anuladas as vendas e outras formas (t>«) Reproduzido integralmente em BaiSo. obra citada.

de alienação, de modo tal que os bens que já tinham passado a outros proprietários também deviam reverter para o fisco inquisitorial. Além disto, se um réu era condenado «em estátua», isto é, ausente ou depois de morto, o sequestro e eventualmente a confiscação exe­ cutavam-se nos bens dos herdeiros. Enquanto o réu estava preso, era a Inquisição que lhe administrava os bens e recebia os rendimentos, atra­ vés do Juiz do Fisco. Se saia absolvido, os bens deviam ser-lhe restituídos depois de descontadas as despesas feitas com o sustento dele e com o seu processo. Se era relaxado, ou condenado a pena de confiscação, os bens imóveis eram vendidos em hasta pública; tratan­ do-se de bens da Igreja hereditários, a Inquisição subs­ tituía-se ao herdeiro do confiscado. Dentro da ficção legal que fazia dos bens confis­ cados propriedade da Coroa, os tesoureiros do Fisco deviam prestar contas, cada ano, ao provedor da respectiva comarca, funcionário régio. Mas nada podia ser alienado ou entregue sem ordem do Juiz do Fisco que. por sua vez, como vimos, recebia os seus poderes e as ordens do Inquisidor Geral. Tal é, em resumo, o estatuído no citado Regimento de 1572, cujas disposições, com algumas alterações so­ bretudo técnicas, se conservam nô Regimento do Juízo das Confiscações pelo Crime de Heresia, datado de 10 de Julho de 1620 e impresso no mesmo ano em Lisboa por Pedro Craesbeck. Ainda dentro da lei geral, deve entender-se que descontadas as despesas da Inquisição (ordenados, via­ gens dos «visitadores», prisões, autos-de-fé, etc.) o sobrante devia ser entregue ao tesouro real. Na prática, 254

o Rei nada chegava a receber do produto das confis­ cações, e, quando o pretendia, deparava com a recusa dos Inquisidores que sempre pretextavam a falta de sobras. Em 1627, por exemplo, Filipe III, alegando as necessi­ dades do Tesouro, mandou inspeccionar os serviços do Fisco; o Inquisidor Geral tentou opor-se com o ar­ gumento de que não só não havia sobras, como a Inquisi­ ção estava cm défice e «os Inquisidores em grandíssimas dificuldades» (M0). No entanto, o produto do Fisco devia atingir somas fabulosas. Basta lembrar que há cerca de 40 000 pro­ cessos no Torre do Tombo, dos quais a maior parte se situam entre 1540 e 1760. Destes processados o maior número — teremos ocasião de voltar a este ponto — são burgueses, entre os quais se contam numerosos nego­ ciantes de grosso trato. Para dar um exemplo só. em 1672 foi preso um negociante de nome Fernão Rodrigues Penso, que morava numa «casa grande» no Rossio, recheada de mobiliário precioso, de madeiras raras e embutidos, quadros, um serviço de mesa de prata, além de mais de 40 pecas de baixela de prata. Possuía em valores um saco de diamantes em bruto, jóias de ouro e pedraria, moedas de ouro, etc. Só o total dos valores preciosos montava acima de nove contos de réis da época. Emprestava dinheiro a particulares e ao Estado e era credor de mais de noventa contos de réis. Tinha além disso- a sua quinta na Palhavã, liteiras, cavalos, etc. (w). Para fazer uma ideia destes valores, lembre(i«») Baião, Episódios, vol. I, pág. 201, Azevedo, obra citada, pág. 290. (i*i) Sobre FernSo Rodrigues Penso, ver Azevedo, Os Processos da Inquisição como documentos da História, no Boletim da Classe de Letras da Academia das Ciências de Lisboa, vol. XII, 1921.

mos que em 1665 o total das despesas da Câmara de Lisboa (200000 habitantes) era aproximadamente de nove contos e seiscentos mil réis (1C). Este Femão Ro­ drigues Penso pertence à categoria do peixe grosso pescado pela Inquisição mas é apenas um entre muitos, e está longe de ser o mais rico dos réus inquisitoriais. De resto, a importância da matéria confiscável infere-se das sucessivas ofertas dos Cristãos-novos em troca da suspensão ou abolição do confisco e da amnis­ tia. Em 1577 ajustavam por 225 000 cruzados, ou seja noventa contos de réis, a isenção dos confiscos por dez anos ('«). Em 1605 compravam a Filipe ITI o perdão geral das culpas de Judaísmo por 1 700 000 cruzados, isto é, 680 contos de réis, soma fabulosa (,44). Em 1649 ofereciam, em troca de abolição dos confiscos, finan­ ciar a Companhia Geral do Comércio do Brasil com 1200 mil cruzados (,w). Em 1673, a troco da amnis­ tia e de alterações nas normas do processo, propuseram o seguinte: apetrecharem e transportarem um exército de 5 000 homens para a Índia, seguindo-se a este o envio de contingentes anuais de 1 200 homens; darem anual­ mente 20 000 cruzados (80 contos) para manter estas tropas; pagarem as viagens dos missionários e as respectivas nomeações; criarem uma companhia de nave­ gação para a Índia. Esta proposta foi recusada, aten­ dendo o Rei ao conselho do bispo de Leiria, que pon­ derava que «se os Cristãos-novos prometiam 500 mil cru­ zados pelo perdão geral, tinha Sua Alteza leis justas H4i) Segundo Mauro, Le Portuga! et rAtlantique pág. 471. 0 ° ) Azevedo, História dos Cristãos-novos. pág. 131. 0*‘) Id. ib. pág. 162.

e .tantas com que por meio do Fisco lograria muito mais» ('*). O bispo insinuava que o Fisco rendia mais que os duzentos contos. y ,j{^ £ fácil perceber porque é que sempre faltava o dinheiro nos cofres inquisitoriais^ Soh o ponto de vista — í ^ Jy :t económico, a Inquisição não era uma empresa comer- ~c r p*f # ciai, mas um processo de distribuir dinheiro e outros bens pelo seu pessoal numeroso — uma forma de pilhagem como a guerra, simplesmente mais burocra° \l) fizada. O exército inquisitorial, cujos membros parti» j r cipavam na mentalidade senhorial e guerreira dos fidal­ gos da Índia, viviam de saquear os bens dos burgueses ricos. Tudo se resumia nisto; e esperar da Inquisição que apurasse dinheiro líquido para o tesouro real era ignorar a natureza das coisas. A distribuição dos bens confiscados fazia-se de várias formas roais ou menos legais. Os Inquisidores, Deputados, Visitadores, Notários, Promotores, Procura­ dores, Familiares, etc. tinham, quer os seus ordenados, quer as suas ajudas de custo, propinas e outras formas de gratificação. Por exemplo, nas listas de despesas dos autos-de-fé figuram, como já sabemos, enormes, quantidades de alimentos e de iguarias — tão enormes que é de supor que uma parte deles, em liigar de ser consumida na ocasião, era transportada paia a despensa dos beneficiários. Mas além disto aparecem, nestas listas, verbas como «tocha e galinhas» ou «jantar e tocha» para o senhor Inquisidor ou .Deputado Fulano. Trata-se provàvehnente de uma importância em di­ nheiro que se convencionava corresponder a um jantar P«> Id. ib. pág. 294/299.

(’ **) Td. ib. Apêndice 19.

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e a uma vela. No auto-de-fé de 20 de Outubro de 1748 em Lisboa, os seis «senhores» do Conselho Geral rece­ beram cada um 15 000 réis para esta «tocha e jantar», importância muito considerável. Só para os «senhores» do Conselho, Inquisidores, Promotor, Secretário, Depu­ tados, Notários, estes «jantares e tochas» importaram em 265 000 réis, o que perfaz mais de um terço da despesa total do auto-de-fé (634 000 réis). O resto era para os ordenados do pessoal menor, dos outros padres, para o velório da cerimónia, panos c alfaiate para os sambenitos, listas impressas das sentenças, retratos, transportes, etc. (147). Quanto ao auto-de-fé dc 18 de Novembro de 1646 em Lisboa, já nosso conhecido, que custou ao todo perto de 230 mil réis, encontramos que cada inquisidor recebia de «galinha c tochas» três mil réis, cada deputado mil réis, fora o jantar e os doces ('**). Mas parece que estas gratificações acres­ ciam às propinas a que os Inquisidores, Deputados, Notários, Promotor, etc. tinham direito, porque as ins­ truções para o auto-de-fc de 14 de Junho dc 1699 decla­ ram que «pelo auto-de-fé tem de propina cada um dos Inquisidores 11 000 réis; çada um dos deputados 3 500 réis; o Promotor, 6 500 réis; cada notário 4 000 réis», etc. ('*). Em resumo, os Inquisidores e o pessoal superior da Inquisição repebiam a vários títulos: ordenados, propinas, «tocha e galinhas», jantar, etc. E da proporção destes proventos no total dos paga­ mentos é talvez significativo o número indicado atrás: (,” ) Id. ib. pág. 180/181.

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dos seus povos, mas, nas matérias espirituais e tocan­ tes à Fé, têm obrigação de acudir e ajudar aos prelados e aos ministros eclesiásticos, quando eles por si sós não podem dar remédio». £ concluía citando o direito canónico: «Entendam e estejam certos os príncipes da tqrra que lhes há-de Deus dar estreita conta do que, por falta sua, houver de quebra na Fé e nos bons costu­ mes quando a brandura da Igreja lião bastar» (145). Palavras a que o Rei e os homens de negócio não atenderam, porque o tempo não estava para isso. Os anos à roda de 1627 são de grandes dificuldades para o tesouro espanhol. Nesse ano (26 de Junho), o Rei decreta edicto de graça para os culpados de Judaísmo, a habili­ tação dos conversos para os cargos e honras seculares. No ano seguinte (11 de Março), decreta a liberdade de matrimónio, e manda aplicar em Portugal as praxes da Inquisição de Castela, ao qtie parece mais equitativas que as de Portugal. Os beneficiados concedem, em troca, um empréstimo à Coroa, garantido por alguns grandes mercadores, entre os quais Nuno Dias Mendes de Brito e João Nunes Saraiva (“•). Neste mesmo ano de 1628 é publicada a carta régia de 27 de Agosto instituindo uma companhia de comércio para a índia Oriental, entre cujos administradores se conta o mencionado Francisco Dias Mendes de Brito, filho de Heitor Mendes, sobri­ nho de Diogo Mendes-Nassi, e sogro do nosso conhe­ cido Duarte Gomes de Solis, o apologista do comércio (l“ ) Sermão já citado no lugar citado, pág. 287/289 e 292. (1M) Baroja, La Sociedade Cripto-Judia, pág. 41; Azevedo, obra citada, pág. 186/187.

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e dos «homens de negócio» (165). Do capítulo X do Regi­ mento da Companhia consta que, em caso de confis­ cação inquisitorial, os bens confiscados permaneceriam na Companhia e voltariam para o herdeiro em terceira geração do condenado. Os subscritores de capital, acima de certa quantia, teriam título de nobreza. No ano se­ guinte, 1629, é restabelecido o direito de saída para os Cristãos-novos, o que vem incrementar a corrente mi­ gratória para Castela. O Rei e os Inquisidores estão à beira do conflito abertcTneste período. £ em 1627 que o Rei manda inspeccionar os serviços do Fisco, resultando desse inqué­ rito a revelação dos factos escandalosos já referidos. E como o Rei quisesse prolongar por mais três meses o edicto de graça desse mesmo ano e mandar suspender a realização de um auto-de-fé, o Inquisidor Geral, D. Fernão Martins de Mascarenhas, invocou a doutrina da Inquisição: «As matérias do Santo Ofício são espiri­ tuais, e portanto não é lícito a Vossa Majestade chamar a si tais causas ou de alguma maneira meter de per­ meio a sua autoridade» (1 O resultado líquido desta campanha inquisitorial foi a intensificação da emigração portuguesa para Cas­ tela. intensificação favorecida pelo decreto real permitindo a livre entrada e saída dos Cristãos-novos. Desta forma, de acordo com o desejo dos dirigentes castelhanos, prosseguiu a entrada em Espanha dos capitais dos homens de negócio portugueses até às vésperas da Restauração da Independência em Portugal. Após o mo­ vimento do l.° de Dezembro, um dos primeiros cuidados da corte espanhola foi defender e tranquilizar os Cris­ tãos-novos portugueses, vítimas da cólera popular que deu lugar a tumultos em algumas cidades onde mora­ vam Portugueses ricos. Atendendo aos bons serviços e procedimentos dos Portugueses, o Rei determinou em 28 de Dezembro que estes seus súbditos sejam tratados como naturais do Reino, proibindo-se que os oprimam ou persigam. Além disto, segundo constou, a corte de Madrid negociava em Janeiro de 1641 um novo acordo com os Cristãos-novos, e contra isto protestava em Roma o novo Rei de Portugal. Mas, este, por sua vez, (!•») A Inquisição opôs-se repetida e firmemente à expulsão dos Cristãos-novos. Ver Azevedo, obra citada, pág. 180/192.

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tratava de se entender à socapa com os mesmos Cristãos-novos. Era pelo menos o que constava em Ma­ drid. Cada um dos reis acusava o outro de sacri­ ficar a fé ao interesse (m). Í / $ $ A atitude de D. João IV é aparentemente ambígua. Um dos temas mais populares da campanha anticasteIhana era justamente a protecção dada por Madrid aos «hereges»; e o novo rei tinha de respeitar o sentimento popular, que nas cortes de Janeiro de 1641 se manifes­ tou insistindo mais uma vez pela aplicação das leis dis­ criminatórias. Mas a realidade da situação obrigava-o a proceder em sentido contrário ao das mostras exte­ riores. Ele encontrava um reino profundamente dife­ rente daquele que tinha sido herdado por Filipe II. Sem tesouro, reduzido em extremo o negócio do Oriente, perdidas para a Nobreza as dádivas e benesses do Rei de Castela, a grande e indispensável fonte de recursos, capaz de financiar a guerra da independência, era, além & ' .-

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