Geografia e Geopolítica: Ensaios e Resenhas

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DADOS DE ODINRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe eLivros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo.

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Geografia e Geopolítica, ensaios e resenhas Editora do Autor 2020    

CONTEÚDO  

Apresentação........................... O projeto epistemológico da Geografia: uma releitura crítica............ Resenha crítica do livro A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra, de Yves Lacoste...................................... Determinismo geográfico revivido? Reflexões a partir do livro Geografia é destino?...................................... Resenha crítica do livro Marxismo e Geografia, de Massimo Quaini............ Resenha crítica do livro Introdução à geografia, de N. Werneck Sodré....... Resenha crítica do livro O Brasil – território e sociedade no início do século XXI, de M. Santos e M. L. Silveira............................................ Resenha crítica do livro As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano............................................. A violência urbana no Brasil: causas, consequências e possíveis soluções...........................

Democracia, federalismo e redivisão territorial......................... O mundo em 2050: um exercício de prognóstico geopolítico...................    

 

Apresentação Os textos aqui reunidos – ensaios e resenhas de livros – foram escritos em datas variadas, um deles de 1993, embora tenha sido ampliado para esta coletânea, e os demais de 2004 em diante. O que os une é a preocupação com a renovação geográfica e/ou com temas geográficospolíticos, ou geopolíticos. Apenas três dos ensaios são inéditos, o restante já foi publicado em revistas ou disponibilizados online no meu site na internet, que existiu durante uns 20 anos e que agora resolvi encerrar por falta de tempo para ficar atualizando os conteúdos e para não mais ter de pagar a cada ano a hospedagem e o domínio, ou seja, o nome do site. O primeiro ensaio, sobre o projeto epistemológico da geografia, é inédito. O penúltimo, sobre violência, urbana, apesar de ter sido escrito em 2006 a pedido de uma editora que pretendia publicar uma série de livros paradidáticos voltados para alunos do ensino básico, acabou nunca sendo publicado porque a editora foi vendida para um grupo empresarial que cortou grande parte dos projetos editoriais existentes. Também o último – um exercício de prognóstico geopolítico sobre o mundo em 2050 – é em grande parte inédito, apesar de ter incorporado um artigo, “a Europa em 2050”, que foi publicado em 2008 no jornal Folha de S. Paulo. Os demais foram ensaios e resenhas de livros que foram publicados em alguma revista ou foram escritos para o conteúdo do referido site que deixou de existir. Ao

encerrar esse site, percebemos que existia uma grande quantidade de textos/artigos a meu ver interessantes para geógrafos, estudantes e eventualmente outros profissionais (historiadores, sociólogos, ou até o público letrado em geral), que iriam dessa forma se perder irremediavelmente. Então resolvemos incorporar alguns deles neste livro feito neste livro para ser disponibilizado na internet, nos formatos epub, mobi e pdf.  

São Paulo, outubro de 2020      

 

O projeto epistemológico da geografia: uma releitura crítica  

Tornou-se

praticamente

consensual

a

afirmativa

segundo a qual a geografia moderna nasceu ou começou a ser construída em meados do século XIX com Karl Ritter e, principalmente, com Alexander von Humboldt. Como qualquer marco no tempo histórico, trata-se de uma interpretação arbitrária, embora – como iremos explicitar mais adiante – plenamente justificável por analogia e associação com o advento da ciência moderna. Sem dúvida que outros marcos, outros autores e momentos poderiam ter sido elegidos no lugar de Humboldt. A história da geografia é bem mais antiga e já tinha praticamente um milênio em meados do século XIX. Alguns chegam até a afirmar que a história do pensamento geográfico remontaria aos primeiros mapas, isto é, há milhares de anos. Segundo Yves Lacoste, por exemplo, a geografia – que para ele é antes de tudo um saber estratégico, uma geopolítica – não apenas teria se iniciado com os primeiros mapas, como o historiador Heródoto, que viveu no século V a.C., teria sido um geógrafo/geopolítico não somente pela elaboração do primeiro mapa-múndi que se tem notícia no Ocidente, mas principalmente por ter efetuado minuciosas descrições de povos e terras de sua época, as quais, na interpretação desse autor, serviriam ao imperialismo ateniense. Segundo outros, essa história teria começado com Erastóstenes (279-194 a.C.), que afinal foi quem engendrou a palavra geografia.

Ademais, existe uma ampla bibliografia que aborda autores e conhecimentos geográficos na Antiguidade, na Idade Média e, principalmente, a partir do Renascimento e da expansão marítimo-comercial europeia. Nomes com o de Estrabão, Ptolomeu, Ibn Khaldun, Bernard Varenius e inúmeros outros são sempre lembrados como geógrafos e/ou autores que ampliaram os conhecimentos geográficos. Mas a perspectiva que a geografia moderna se iniciou no século XIX é tributária da história da ciência. É na verdade um dos inúmeros prolongamentos, numa área específica do conhecimento, da ideia do surgimento da ciência moderna. Esta surgiu nos séculos XVI e, principalmente, no século XVII, tendo se expandido e se diversificado a partir de então. De fato, há praticamente um consenso entre os historiadores e os filósofos da ciência, além dos epistemólogos, a respeito do advento da ciência moderna e suas diferenças ou sua ruptura com a chamada ciência tradicional, isto é, os conhecimentos filosóficos vistos anteriormente como ciência. Nos séculos XVI, XVII e XVIII ocorreu a chamada revolução científica, que lançou os alicerces para a tecnologia moderna e até mesmo para a sociedade moderna. Nomes como Nicolai Copérnico, Tycho Brahe, Jonathan Kepler e, principalmente, Galileu Galilei, mudaram toda uma concepção do conhecimento humano e influenciaram, inclusive, uma nova visão de mundo por parte dos seres humanos, embora inicialmente na Europa. A ciência se tornou independente da filosofia e da religião, e a

própria tecnologia moderna passou a ser vista como aplicação de conhecimentos científicos. Alguns chegam a afirmar que a ciência moderna – ou a “razão instrumental”, intimamente ligada a ela – substituiu o cristianismo como principal parâmetro para os ocidentais entenderem o universo, a vida e a morte, a ideia de felicidade e de uma vida plena. A ciência moderna, portanto, teria se iniciado ou ganho seu maior impulso principalmente no século XVII com Galileu Galilei, em função de uma forte ênfase na indução, na experimentação, na testagem prática (e não meramente dialógica) das teorias que nunca devem ser apenas especulativas tal como ocorria com a ciência tradicional, e ainda hoje ocorre com a filosofia. O método científico, ou métodos, busca explicações que possam ser testadas, e que possam eventualmente servir para se agir sobre a realidade. Ele se preocupa mais com o “porquê” dos fenômenos e não tanto com suas “quatro causas” tal como na metafísica ou notadamente em Aristóteles, o principal nome da chamada ciência tradicional. Sabemos que foi a partir dos exemplos da física e da astronomia, que são inseparáveis na medida em que esta costuma ser uma física aplicada ao estudo do universo, que surgiu esse procedimento e, até os dias de hoje, a física ainda costuma ser vista como a ciência moderna paradigmática, o exemplo maior de cientificidade. Os momentos iniciais e marcantes dessa revolução científica teriam sido representados pela mecânica galileana

– juntamente com o heliocentrismo de Copérnico depois aprimorado por Kepler e, principalmente, pela teoria da gravitação universal de Newton no século XVIII. Com esses notáveis avanços no conhecimento humano sobre a natureza – que, segundo Rene Descartes e outros posteriores, resultariam de um novo método, o método científico – expande-se a ideia de uma nuova scienza, a ciência moderna, diferente dos saberes tradicionais e filosóficos por suas previsões bem sucedidas, e por não se ater essencialmente à teoria no sentido vulgar da palavra, isto é, a ideias não demonstráveis1. Ela seria experimental e sobretudo teria aplicabilidade, conduzindo enfim humanidade a um gradativo domínio sobre a natureza.

a

O notável sucesso da astronomia e notadamente da física com o método experimental iniciado por Galileu, junto com a intensa especialização ou divisão intelectual do trabalho que ocorreu com a expansão da ciência moderna, produziu uma multiplicação de novas ciências tanto no século XVIII como principalmente no século XIX. Já não se tratava mais de filósofos refletindo sobre o universo, o princípio ou a partícula última da matéria, o que é a vida, a política ou as formas de governo, o tempo e o espaço, quais elementos (fogo, água, terra, ar) constituem ou fazem parte de tudo o que existe etc. Agora entram em cena os cientistas, cada vez mais especialistas neste ou naquele tema – e não mais dissertando sobre tudo, como anteriormente. São eles que passam a definir com precisão cada vez maior todos esses e outros problemas, que

passam enfim a perscrutar a realidade em todos os seus aspectos. Mas não apenas perscrutar ou definir o objeto desta ou daquela maneira, de forma tão somente especulativa, mas fundamentalmente

como

ferramentas

teóricas

que

permitem uma ação sobre a realidade estudada. Essa foi a revolução científica, cujos métodos e procedimentos geraram um enorme avanço no conhecimento humano e, ao mesmo tempo, o advento de novas ciências, ou ciências bastante diferentes anteriormente.

dos

saberes

que

existiam

Assim, a química moderna surgiu embrionariamente no final do século XVII com Robert Boyle que a distinguiu da alquimia com a qual até então se confundia, e principalmente no século XVIII com Antoine Lavoisier e o reconhecimento do oxigênio e da lei da conservação da matéria. Também a astronomia, a partir do século XVIII, se aparta da astrologia, com a qual até então ainda por vezes se confundia. A biologia somente adquiriu seu status como ciência moderna no século XIX com Charles Darwin e a teoria da evolução e seleção natural. Antes disso, como afirmou pioneiramente Thomas Huxley, e depois centenas de outros repetiram, a biologia era um conjunto de fatos mnemônicos que não eram interligados e que aparentemente sempre existiram da mesma maneira. Com a descoberta da seleção natural por Darwin, os seres vivos passam a ser vistos como dinâmicos e interligados ou interdependentes,

e

as

mudanças

e

adaptações

dos

organismos (que já haviam sido percebidas por Humboldt) foram objeto de explicações racionais e científicas, ou demonstráveis, e não mais religiosas. E a economia como ciência surgiu apenas no século XVIII com Adam Smith e seu estudo sobre a riqueza das nações, a estrutura geral do mercado e os preços, a lei da oferta e da procura, a divisão do trabalho e o livre comércio, o interesse próprio na troca e os limites da intervenção governamental. Por fim, um último exemplo – deixando-se de lado a geologia, a sociologia, a antropologia e outros saberes que se consolidaram como ciências modernas apenas nos séculos XVIII ou XIX – é o da história, ou história científica como passou a ser conhecida neste último século. No século XIX, iniciando-se na Alemanha com Leopold von Ranke e outros, a história deixa de ser vista como uma narrativa baseada nos testemunhos legados pelas gerações anteriores e estes passam a ser entendidos apenas como “fontes primárias”, documentos que devem ser alvo de críticas e confronto com outras evidências para se estabelecer sua possível veracidade. É evidente que todas essas ciências modernas, além de outras, se expandiram e seus desdobramentos muitas vezes contrariaram certas ideias desses pioneiros; afinal, nem a física parou com Galileu ou com Newton, nem a biologia com Darwin (basta recordarmos da genética, que veio enriquecer a biologia e complementar a seleção natural), nem a economia com Smith e muito menos a história com Ranke, posteriormente criticado como “positivista”. Mas eles

foram

fundamentos

para

a

revolução



ou

reestruturação – iniciada em suas áreas de conhecimento, e os desdobramentos posteriores que mudaram ou alteraram suas teorias, a crítica de muitas de suas proposições, é um processo que faz parte da ciência moderna e não algo que a contrarie. De fato, um traço marcante na ciência moderna é que nela se pode falar numa “evolução” no sentido de aprimoramento dos conhecimentos, de sua constante superação por novas descobertas ou teorias, ao contrário da filosofia, da religião ou da arte, nas quais não faz o menor sentido falar que alguma obra ou ideia tenha superado a anterior. A geografia moderna, ou científica, surgiu nesse bojo, como

parte

desse

processo

de

reestruturação

dos

conhecimentos tradicionais por métodos científicos que demandam comprovações, testagem ou checagem das ideias

ou

teorias

com

a

realidade

estudada.

A

transformação operada por Humboldt, principalmente na geografia física, e por Ritter em especial na geografia escolar, a construção da chamada geografia moderna ou científica enfim, representou uma delimitação (com perda de objetos que antes eram vistos como geográficos) e uma adaptação desta disciplina aos cânones da ciência moderna. Antes desses autores, a geografia era tida como o estudo da Terra em todas suas dimensões, o que com frequência a identificava, ou confundia, com a astronomia, com a geologia, com a história e com a antropologia.

O próprio criador da palavra geografia, Erastóstenes, era mais um matemático ou astrônomo do que o que hoje entendemos como geógrafo. Outro importante geógrafo da Antiguidade, Estrabão, tido como o criador da geografia regional, foi muito mais um viajante que escreveu (numa espécie de romacentrismo) sobre aspectos diversos – história, cultura, religião, vida política, economia, fatos curiosos, animais típicos, vulcões, rios e montanhas, etc. – de áreas que cobrem praticamente toda a Europa até a Índia, incluindo o norte da África e o Oriente Médio. E durante a chamada Idade Média a geografia, tanto no mundo cristão como no islâmico, foi fortemente marcada por influências religiosas: por exemplo, mapas e guias de viagens para Meca ou para Jerusalém que misturavam aspectos da realidade com figuras imaginárias das crenças religiosas. Mas, com a expansão marítimo-comercial europeia dos séculos

XV

e

XVI,

os

conhecimentos

geográficos

se

ampliaram enormemente devido ao mapeamento de terras antes desconhecidas pelos europeus, como também em função da necessidade de melhores mapas para a navegação, de adaptar os mapas e os conhecimentos geográficos à concepção copernicana da Terra girando ao redor do Sol e sua forma e magnitude (e não mais a concepção geocêntrica que prevaleceu por séculos). Uma primeira tarefa colocada a Humboldt e a Ritter foi a de separar a realidade comprovada pela observação ou pela lógica, procedimento típico da ciência moderna, de

fantasias que ainda existiam nas obras geográficas, inclusive na extensa e importante obra Geografia Física de Immanuel Kant, do século XVIII. Este escrito post mortem de Kant – que entre 1756 e 1796 lecionou uma disciplina chamada geografia física na universidade Königsberg –, na verdade, é uma compilação de anotações das aulas de Kant por parte de alunos que as assistiram. Apesar de ter representado um indiscutível avanço frente à obra de Bernhard Varenius, do século XVII, até então considerada a maior referência nessa área de estudos, e de ter expressado ideias novas e instigantes (pois Kant foi um incansável leitor das obras científicas do seu tempo, com especial destaque para Newton), ainda propagava ideias fantasiosas tais como a existência de tribos das mulheres amazonas, ou de países com pessoas de duas cabeças. (Essas ideias, e os evidentes erros de redação e gramática da edição original, apontados por

filologistas

e

gramáticos

alemães,

provavelmente

tenham sido mais mal-entendidos dos alunos, mas existem de fato e não podem ser omitidas nas edições e traduções dessa obra). Apesar disso, Kant, que foi uma referência essencial para Humboldt e Ritter (mesmo tendo estes realizado uma leitura crítica, tal como preconizado pela cientificidade, separando especulações de fatos comprovados), muito contribuiu para a moderna definição da geografia. Ele propôs que as ciências poderiam ser de três tipos principais: as que estudam a natureza ou a dinâmica de algum tipo de objeto específico (como a biologia, a física ou a economia),

as que estudam a realidade numa dimensão temporal (a história) e as que a estudam numa dimensão espacial (a geografia). Em suma, uma concepção da geografia como a compreensão da humanidade enquanto habitante da superfície terrestre, como um estudo dos seres humanos em sua espacialidade, o que implica em espaço natural e espaço social. Uma conceituação bem diferente da que predominou durante séculos (a geografia como o estudo da Terra) e que, mutatis mutandis, predomina até hoje. Kant também dividiu a geografia em várias subdisciplinas, como a geografia física, a matemática, a moral, a política, a comercial e a teológica. Uma subdivisão que nada tem a ver com a realidade atual da geografia, mas que pelo menos evidencia que a geografia é um campo de estudos diversificado, com relativa autonomia de cada subdivisão, e que exige especialização em alguma de suas subdivisões. Humboldt, principalmente, e também Ritter (embora este muito mais voltado para tornar a geografia um ensinamento no qual os temas tivessem coerência e interligação, ao contrário das obras que predominavam até então, que ele criticou como mnemônicas e com um amontoado

de

informações

desconexas),

procuraram

separar o joio do trigo, ou distinguir o que é comprovável do que é fantasia nas obras anteriores, principalmente nas de Varenius e de Kant. Mas Humboldt foi muito além disso: como viajante assíduo e observador arguto, ele foi um dos primeiros – ou o primeiro – a descobrir e analisar a dinamicidade da natureza, o fato de que uma paisagem que

existe hoje não é permanente, como se pensava, mas tem uma história, é algo que evoluiu ou se modificou com o tempo e que ainda continua a se modificar. Como se sabe, ele foi a grande fonte de inspiração de Darwin para suas viagens (especialmente para a ilha de Galápagos) e para a sua percepção da natureza como algo dinâmico, que tem uma história e sofre modificações com o tempo. Uma das principais preocupações de Humboldt, e também, secundariamente, de Ritter, foi procurar superar o dualismo cartesiano entre mente (o humano) e matéria (a natureza), dualismo esse que havia sido aprofundado por Kant ao conceber o reino da natureza, a realidade exterior ao ser humano, como praticamente incognoscível, como algo

que



compreenderíamos

por

sucessivas

aproximações que nunca chegam ao seu âmago, tal como o navegante que se orienta pela estrela Polar e nunca vai poder alcança-la. Com a sua visão de uma natureza como dinâmica e com uma história, inédita em sua época e da qual Humboldt foi um pioneiro e fonte de inspiração para outros que seguiram por essa vereda, ele acreditou ter superado esse dualismo com a ideia que o próprio ser humano – e a mente humana (o cogito cartesiano) – é produto dessa história natural. Humboldt afirmou em sua principal obra, Cosmos2, que por meio desse processo histórico (da natureza), o mundo do pensamento, do sujeito ou da mente humana é parte da dinâmica da natureza. Fortemente

influenciado

pela

pintura

e

pela

poesia,

Humboldt usou a metáfora que o Cosmos seria como uma

imagem que vemos e pintamos, embora também como uma narrativa que ainda está sendo escrita. A maneira como contamos nossa história sobre a natureza constitui quem somos como povo, acreditava Humboldt. Numa época em que se enfatizava cada vez mais o ser humano como separado e acima da natureza, que existiria para servi-lo, Humboldt usa constantemente metáforas do tipo “a mente é penetrada pela grandeza da natureza”; “o mundo físico se reflete no mundo interior da mente”, “em uma misteriosa comunhão com a vida espiritual do homem, o físico influencia o mundo moral”. Humboldt, portanto, contrariava o ideal de ciência de sua época, apesar de ser por ele influenciado: ele reiterou várias vezes a importância da racionalidade e da objetividade, embora não acreditando que qualquer observação pudesse estar separada da subjetividade do observador. Em suas palavras, “A ciência começa onde a mente se apodera da matéria e tenta submeter a massa de experiências a um entendimento racional; é a mente voltada para a natureza”. Mesmo sendo em grande parte influenciado pelo espírito científico de sua época, Humboldt também foi fortemente marcado por um clima intelectual que criticava o racionalismo científico: o romantismo alemão encontrável em Goethe (seu grande amigo), em Fichte, Herder e Hegel. Ele acreditava na “harmonia” entre a humanidade e a natureza, na identificação dos seres humanos com a “terra”, com o seu habitat original. Daí a geografia moderna ter sido marcada pelo paradigma “a Terra e o Homem”, como

se os seres humanos se adaptassem, mesmo que eventualmente mudando este ou aquele aspecto, a uma “terra” ou natureza que seria sua “pátria” ou fonte primeira de inspiração para o seu modo de vida, para seus costumes e mesmo para suas obras. Uma influência romântica associada à preocupação de se adequar aos cânones da ciência moderna: esse paradoxo marcou o nascimento e o desdobramento da geografia científica com Humboldt, especialmente, e com Ritter. Mas Ritter teve outra preocupação: antes de tudo ele foi um professor – e não um naturalista, ou um cientista que ia ao campo fazer observações e tirar conclusões, muitas originais e que influenciaram vários cientistas coetâneos ou posteriores, como foi o caso de Humboldt – e sua contribuição para a sistematização da geografia moderna foi mais na definição da geografia escolar, que na época se institucionalizava

nos

sistemas

de

ensino

que

eram

construídos pelos Estados nacionais. Ritter, no fundo um discípulo do educador Pestalozzi (a única viagem que fez para fora da Alemanha, em toda a sua vida, foi para a vizinha Suíça para conversar com Pestalozzi e conhecer melhor o seu método pedagógico), não se voltou tanto para a geografia física, como Humboldt, mas sim para as ligações da humanidade com o seu meio ambiente, em última instância para ajustar o ensino da geografia com as necessidades de sua época. O método de Ritter não era o de observar e analisar as paisagens in loco, mas sim o de ler uma enorme diversidade

de obras – sobre as Índias, a África, as Américas, etc. – e depois, separando o joio do trigo (isto é, procurando selecionar o que é aceitável do ponto de vista da lógica ou da racionalidade), escrever obras que dessem um sentido, uma

coerência

ou

uma

ideia

de

conjunto

para

as

informações variadas sobre povos, costumes, economia, relevo, rios, montanha, etc. Ele foi autor de inúmeras obras, sendo que a principal, com 21 volumes (e ainda por cima inacabada!), foi intitulada de Erdkunde im Verhältnis zur Natur und zur Geschichte des Menschen oder allgemeine, vergleichende

Geographie,

als

sichere

Grundlage

des

Studiums und Unterricts in Physicalischen und Historischen Wissenschaften [Geografia em relação à natureza e história humana ou geografia geral comparada, como uma base segura para estudar e ensinar ciências físicas e históricas], que como o próprio nome indica, tem uma preocupação com o ensino. Ele também foi autor de dois livros didáticos de geografia, que acabaram por se tornar referência para as obras posteriores. Justamente aí reside o que chamamos de projeto epistemológico

da

geografia

moderna,

ou

seja,

a

preocupação em interligar a sociedade humana com o meio natural, um empreendimento original e destoante do espírito científico moderno por sua pretensão a uma síntese dos conhecimentos das ciências naturais relativos a esse meio natural (clima, vegetação e fauna, relevo, hidrografia etc.) com os conhecimentos das nascentes ciências humanas a respeito da sociedade que ocupa esta ou aquela

terra (sua história, economia, demografia etc.). Uma ciência de síntese, como se costumava afirmar. Esse projeto, todavia, encerra um grande problema: no final das contas a síntese faz parte de qualquer ciência, pois uma análise sempre vai resultar numa síntese a respeito do objeto pesquisado. Análise e síntese, de fato, são inseparáveis no conhecimento humano. Daí a geografia, ao pretender ser a síntese de conhecimentos variados e diversificados que em geral não foram por ela produzidos, sempre teve a sua cientificidade questionada, e isso não apenas pelos de fora – os epistemólogos, os historiadores e filósofos da ciência –, como até mesmo pelos próprios geógrafos que refletiam sobre a especificidade da sua disciplina. Esse problema foi ainda agravado por um traço marcante do desdobramento da revolução científica: a diferença entre o estudo da natureza e o da sociedade humana. Naquele, sem qualquer dúvida, pode-se aplicar o chamado método científico iniciado primeiramente com a física,

no

qual

é

indispensável

a

observação,

a

experimentação, a testagem e até mesmo predições para se verificar a validade das hipóteses. Mas, no estudo da sociedade humana em seus vários aspectos (economia, costumes, relações sociais, política etc.), é extremamente difícil, muitas vezes impossível, realizar algumas etapas ou procedimentos apregoados por esse método científico. O mundo natural, especialmente a realidade física e química – os seres vivos ficam numa posição intermediária – possui

uma

dinâmica

bastante

diferente

do

mundo

histórico-social, no qual não é possível estabelecer “leis” invariáveis e tampouco previsões rigorosas como no estudo do mundo físico. Na física ou na astronomia é possível fazer predições praticamente exatas sobre a trajetória de um cometa, ou sobre o movimento de um objeto submetido a uma força X em condições Y. São objetos inanimados que não possuem vontade própria e muito menos o livre arbítrio dos seres humanos. É por isso que se passou a rotular como “positivistas” os praticantes das ciências humanas que pretendem

reproduzir

fielmente

em

seus

estudos

os

métodos das ciências naturais. Sem dúvida que muitos procedimentos do chamado método (ou métodos) científico são possíveis no estudo da humanidade,

tais

como

a

observação

com

certo

distanciamento crítico, a racionalidade e objetividade3 na busca de explicações, o procedimento crítico em relação aos conhecimentos anteriores, mesmo que estes sejam científicos, a busca de uma medição a mais rigorosa possível, a análise e a síntese, a intersubjetividade do conhecimento no sentido de uma constante checagem crítica por parte dos pares etc. Sem isso sequer poderíamos falar em ciências humanas, mas apenas em discursos opinativos. Porém, o núcleo duro mesmo do método científico das ciências naturais – a experimentação, as predições e a testagem – não é aplicável ao estudo da sociedade humana, com exceção parcial para alguns aspectos – às vezes encontráveis na psicologia ou na demografia – que os seres humanos compartilham com os

demais seres vivos. Também a matematização – isto é, o uso da matemática como linguagem preferencial no lugar das explicações discursivas – não é possível no estudo do mundo histórico-social, com exceção muito parcial para a economia. As tentativas de se proceder dessa forma – por exemplo, na geografia humana e na história quantitativas – sempre resultaram em fracassos, em estudos superficiais que praticamente nada acrescentaram em termos de avanço do conhecimento. Essa inegável diferença entre o mundo natural e a sociedade humana agravou o problema epistemológico da geografia, uma ciência com pretensão de unir numa mesma explicação o meio natural e a sociedade que o habita. Essa diferença, também, produziu a chamada dicotomia entre a geografia física e a geografia humana, que costumam ser superpostas, ou meramente colocadas uma ao lado da outra nos estudos geográficos que possuem essa pretensão de unidade, mas nunca integradas de fato. E a ideia de Humboldt, de superar essa dualidade com a revolucionária compreensão da humanidade como produto da história natural, acabou não produzindo o resultado almejado, pois mesmo com sua enorme popularidade (em dois meses sua obra Cosmos já tinha vendido 80 mil exemplares e recebido elogios de destacados cientistas e intelectuais variados na Europa e nos Estados Unidos!), essa enorme diferenciação entre o estudo da natureza e o da sociedade continuou a se aprofundar na sua época e após.

Sem dúvida que o ser humano é um produto da história da Terra, mas esse fato não elimina a dualidade entre as ciências humanas e as naturais, entre a dinâmica da natureza

(onde



muito

mais

regularidades

e

a

possibilidade de experimentos, com testagens e predições) e a dinâmica da sociedade humana, na qual experimentos com testagem tal como no estudo da natureza é algo eticamente condenável e, mesmo quando é praticado (por exemplo, nos campos de concentração nazistas), produz sempre resultados não confiáveis porque o ser humano, ao contrário

das

aves

e

demais

animais

estudados

no

laboratório ou em cativeiro, muda constantemente seus hábitos conforme o ambiente ou mesmo à medida que sabe que é observado. Ademais, não é sequer possível estudar em laboratório ou cativeiro uma sociedade inteira com a sua dinâmica política e social, sua economia, seus valores e costumes etc. E estudar um pequeno grupo, uma amostra – tal como no estudo de gases, de metais e de outros fenômenos pela química ou pela física –, imaginando que as conclusões refletem toda a realidade, é algo sabidamente equivocado, pois o todo social é diferente de uma parte qualquer, ele tem projetos, atores, conflitos e uma dinâmica que nunca vai se repetir da mesma forma num pequeno grupo de indivíduos isolados para um estudo. Essa dicotomia, portanto, é anterior ao advento da geografia moderna, ao contrário do que imaginam (e escrevem) alguns geógrafos. A diferença entre geografia da sociedade e geografia da natureza apenas reflete uma

dicotomia que já existe desde pelo menos o século XVII com as diferenças nos estudos da natureza e da sociedade humana. E a bem da verdade, essa pretensão ou exigência de unidade entre o natural e o social, que implicou em inúmeras polêmicas na geografia, faz parte mais da geografia escolar do que das pesquisas específicas da ciência geográfica. Os estudos mais antigos da geografia moderna, do século XIX e primórdios do século XX, que procuraram integrar essas duas principais vertentes da disciplina, acabavam colocando a humanidade como um produto do meio ambiente e pouco se referiam às modificações que a ação humana operou na natureza original. Em contrapartida, em estudos mais recentes, aqueles que enfatizam o espaço social e a produção do espaço pela sociedade humana, praticamente se ignora quase totalmente o meio natural, e o espaço geográfico deixa de ser, como pretendiam os fundadores, uma relação humanidade/natureza e passa a ser tão somente um espaço produzido com obras humanas – tais como estradas e campos de cultivo, usinas hidrelétricas, edifícios, ruas e avenidas etc. – e sua localização e apropriação (ou lutas pela posse) por parte deste ou daquele ator ou protagonista. Outro percalço que surgiu no caminho da construção da geografia moderna foi o fato de que as ciências humanas e sociais foram construídas, ou reconstruídas, a partir do século XIX, com uma perspectiva essencialmente histórica. Estas ciências na verdade procuram entender a humanidade

no seu tempo, pouco se preocupando com o espaço, que passa a ser visto como algo inerte e de pouca importância. Essa

ênfase

concomitante espacial,

na

dimensão

com

uma

segundo

temporal,

desvalorização

Michel

Foucault,

na da

história, dimensão

provavelmente

o

primeiro autor a atentar para esta questão, teria se dado no século XIX a partir da enlevação ou glorificação do ideal de revolução social. A partir da Revolução Americana e, principalmente, da Revolução Francesa, uma ideia – ou um projeto – de revolução social se tornou dominante nos estudos sobre a história humana e mesmo sobre a compreensão da humanidade em seus variados aspectos. A perspectiva de revolução ou mudança radical passou a fazer parte do horizonte

de

qualquer

humana,

vista

como

explicação

sobre

inerentemente

a

sociedade

mutável

em

comparação com as demais sociedades animais (como a das abelhas ou a das formigas, por exemplo), que seriam imutáveis

ou

permanentemente

estáveis.

Isso,

evidentemente, tornou ainda mais indubitável a diferença entre o estudo da natureza e o da sociedade humana. E ao mesmo tempo contribuiu para a depreciação da dimensão espacial – na qual se encontrariam apenas diferenças e não as desejadas mutações radicais – em prol da dimensão temporal, que seria mais dinâmica e locus por excelência da “essência” humanidade.

ou

da

compreensão

mais

profunda

da

Foi uma reviravolta frente à compreensão antes predominante da humanidade, vista como indissociável da sua terra, de sua “pátria” original. Os seres humanos agora passam a serem vistos como seres temporais – e não meramente espaciais, ligados à sua terra –, isto é, como agentes de constantes mudanças que revolucionam todo o seu modo de vida, suas relações sociais, seus costumes e valores, seus hábitos cotidianos. Os homens e as mulheres como senhores da natureza, algo já pensado desde o século XVII, agora entendidos também como seres históricos que podem e devem modificar suas instituições, que podem e devem evoluir no tempo no sentido de multiplicar e constantemente

modernizar

suas

obras,

instrumentos,

costumes, hábitos, vestimentas etc. Além da proclamação cartesiana da humanidade se assenhorando da natureza, e do ideal de revolução social, também o mito do progresso contribuiu para essa ênfase nas mudanças temporais em detrimento das diferenças espaciais. Esse mito do progresso, fortíssimo no século XIX, pressupunha um continuum infinito na história humana percebida como realizações sucessivas que vão tornando superadas as condições do passado. É o “mais e mais” ilógico e antiecológico, o mito de um progresso material que sempre produz novas obras e utiliza mais recursos naturais, mais água, mais solos agriculturáveis, maiores conquistas sobre a natureza enfim, como se o espaço natural que os seres humanos ocupam fosse infinito e inesgotável. O

tempo, nessa visão de progresso contínuo e infinito, é a dimensão privilegiada das mudanças. Poderíamos, talvez, acrescentar que também a teoria da evolução também contribuiu, mesmo sem pretender (pelo menos essa nunca foi uma intenção de Darwin4), para essa percepção do tempo – ou melhor, da história – como o lugar por excelência das mudanças e das transformações naturais e mesmo sociais. Todos se recordam da ideia simplista de Marx – por sinal, um obstinado adepto do progresso e com a declarada pretensão de produzir “no reino do social” o mesmo impacto obtido por Darwin “no reino da natureza” – segundo a qual “Só existe uma ciência, a ciência da história”, que poderia ser dividida em história da sociedade e história da natureza . Todo esse clima intelectual do século XIX e de grande parte do XX, predominante em especial nas ciências humanas – o mito do progresso, a leitura equivocada e mecanicista da evolução, a ideia segundo a qual as mudanças radicais (portanto, o “segredo” para se entender a sociedade) ocorrem mesmo no tempo e nunca no espaço, além do apartamento das ciências humanas em relação ao estudo da natureza, sendo esta vista essencialmente como instrumento para as realizações humanas – representou um enorme obstáculo para a edificação e a expansão da geografia moderna. Ela ficou numa espécie de ostracismo nos meios científicos, pois pelo lado das ciências naturais era uma disciplina (vista mais como escolar e não científica de

fato)

sem

um

objeto

específico

e

tão

somente

reproduzindo conhecimentos da geologia, da climatologia, da biologia ou da hidrologia. E do lado das ciências humanas ela era vista como um estudo ultrapassado, que pretendia valorizar o meio ambiente, o espaço ocupado pela humanidade, algo considerado secundário e com escassa importância para se compreender o mundo histórico-social. A concepção essencialmente histórica das ciências sociais no fundo anulou o espaço, que se tornou um simples palco inerte para as ações e os eventos da sociedade humana. Em outras palavras, ele passa a ser um mero quadro

físico,

negligenciável

em

face

de

sua

pouca

relevância, sem de fato implicar em diferenças significativas tanto na natureza quanto, principalmente, nas sociedades; as mudanças ocorreriam essencialmente na história, esta, sim, vista como um campo de alternativas e lutas por poder ou por recursos. Como ironizou Foucault, o tempo seria “dialético”, rico e fecundo, enquanto o espaço seria “conservador”, antirrevolucionário e identificado com o status quo. Mas o projeto unitário da geografia, se por um lado foi pensado a partir de um ideal científico, isto é, de aplicar métodos

ou

procedimentos

expressos

pela

revolução

científica, por outro lado, contudo, foi também influenciado por uma concepção oposta a essa: a noção romântica da natureza e das relações “harmônicas” entre a humanidade e o seu meio ambiente, a terra, que, segundo o romantismo alemão, que se contrapunha à visão iluminista e racionalista

da humanidade como senhora da natureza, enraizaria o “espírito verdadeiro” de um povo. E

foi

um

projeto

unitário,

de

uma

ciência

pretensamente sintética, numa época de especialização cada vez maior das disciplinas científicas, que deveria explicar as relações e interações entre os seres humanos e a natureza circundante. Um projeto, detalhando melhor, que consistia na produção de um conhecimento científico, inspirado no parâmetro empirista da ciência moderna, que se propõe a unir o estudo da humanidade (geografia humana)

com

o

estudo

da

natureza-para-o-Homem

(geografia física) sob um prisma espacial ou territorial, isto é, do meio ambiente (natural e cultural) ou das paisagens formadas pela interação entre a humanidade e a natureza. o

Um projeto que, como vimos, logo se chocou tanto com desenvolvimento das ciências da natureza quanto

também com essa visão essencialmente histórica das ciências sociais. Com as ciências naturais, entre outros motivos, porque estas logo abandonaram a ideia de elaborar um estudo integrado do meio físico (justamente este era o principal objetivo de Humboldt, que pretendeu fundar uma “geografia física”, na verdade, um estudo sintético ou integrado do clima com o relevo, com os solos, com a vegetação, com as águas etc., no qual a própria humanidade entraria como parte integrante desse conjunto cósmico). E com as ciências humanas porque estas eram essencialmente

históricas

e

o

estudo

do

espaço

da

sociedade humana, um mero instrumento, era entendido como algo conservador e démodé. Malgrado conhecimento

sua indiscutível importância para o científico (ele influenciou a biologia, a

geologia e outras ciências, que por sinal não o consideram como geógrafo e sim como naturalista) e sua enorme fama na primeira metade do século XIX (era visto como o paradigma de cientista, tal como Galileu havia sido para o século XVII e Newton para o XVIII, embora depois Darwin tenha ocupado esse lugar), Humboldt, mais para o final de sua vida, elaborou um projeto de geografia física que se apoiou e ao mesmo tempo se chocou com o espírito científico da época. Esse projeto na verdade recuperava o antigo ideal grego para a física, entendida como a “ciência da natureza” (a própria palavra physis, do grego, significa natureza), abandonado ou deixado de lado a partir da mecânica de Galileu – prosseguida com Newton e posteriores –, que passou a estudar somente o mundo físico visto como apartado da química, da biologia, da hidrologia, da oceanografia e de outras ciências da natureza e, principalmente,

da

dinâmica

da

sociedade

humana.

Humboldt pretendeu, num certo sentido, retomar esse projeto – embora pensando mais na natureza-para-oHomem, nas paisagens enfim, nas quais haveria uma harmonia no conjunto formado pelos elementos naturais e com as quais as comunidades humanas viveriam adaptadas ou em simetria.

Mas retomar esse projeto foi uma ideia utópica numa época, em pleno século XIX, em que as ciências da natureza já haviam se compartimentado e se expandiam cada vez mais de forma autônoma, com as novas teorias na biologia, específicas e separáveis da física, com novas proposições na química, na geologia e nas demais ciências da natureza. Um projeto ambicioso e holístico para uma época analítica, na qual separar e analisar as partes em minúcias – mesmo que depois realizando sínteses – se tornou na essência da pesquisa e do conhecimento em praticamente todas as ciências. Um projeto no fundo destinado ao fracasso ou, de forma mais amena, a ser negligenciado e até menosprezado nas ciências naturais. Um projeto visto com desconfiança nas ciências humanas porque incorporava as influências do meio físico, algo considerado reacionário numa época em que

predominava

o

ideal

de

revolução

social

feita

exclusivamente a partir do intelecto humano (mesmo que apoiado

no

desenvolvimento

das

forças

produtivas,

processo no qual a natureza só entra enquanto recurso inerte). Como a geografia, com esse projeto holístico e, ao mesmo

tempo,

utópico

e

romântico,

no

fundo

extemporâneo, conseguiu sobreviver – mesmo que às duras penas5? Acredito que, primeiro, porque já era um saber clássico, de longa tradição – na verdade milhares de anos – e há tempos ensinado pelos preceptores ou pelas raras escolas que existiam até o século XIX (as civis e as militares, devido

à importância estratégica dos conhecimentos geográficos). Recordemos, novamente, que um dos maiores pensadores do século XVIII, Kant, durante várias décadas foi professor de uma disciplina intitulada “geografia física”, sendo que as anotações de suas aulas foram editadas em seis livros e serviram como material de apoio até para Humboldt, apesar da visível falta de trabalho de campo e de dados empíricos originais ou às vezes sequer confiáveis . Depois, e principalmente, porque ela se tornou uma disciplina escolar numa época em que ocorreu uma enorme expansão – na verdade, uma construção ou invenção – dos sistemas nacionais de ensino. A partir do século XIX, os Estados nacionais europeus – e, em seguida, no resto do mundo – precisavam formar um número cada vez maior de professores de geografia e, com isso, houve também a sobrevivência desta ciência na academia, apesar de mal tolerada pelas ciências naturais e até mesmo pelas humanidades. Mesmo que isso horrorize grande parte dos geógrafos, notadamente os que teorizam a história do pensamento geográfico (que quase sempre se inspiram no modelo idealizado da evolução da matemática ou da física ), temos que reafirmar este fato elementar: que a partir do final do século XIX, e durante todo o século XX, a geografia sobreviveu (embora precariamente) em boa parte das universidades principalmente porque havia se tornado uma disciplina obrigatória no sistema escolar. É tão somente uma constatação e não uma depreciação. Cabe, ainda,

deixar claro que esse fato não diminui o valor da geografia para a sociedade e tampouco invalida sua cientificidade, pois esta não consiste num padrão unívoco, mas sim numa pluralidade de conhecimentos racionais, obtidos a partir de métodos

variados



embora

com

aqueles

traços



mencionados em comum –, sobre aspectos do real ou do mundo. Voltemos agora à distinção entre o estudo da natureza e da sociedade humana, que é o motivo da dicotomia entre geografia física e humana. No mundo físico ou químico podem existir teorias e conceitos universais, válidos para qualquer lugar (mesmo a bilhões de anos-luz de distância) e para qualquer época (mesmo a milhões de anos atrás). Por exemplo, o hidrogênio ou os átomos, as reações químicas ou

as

forças

eletromagnética,

físicas nuclear

conhecidas fraca

e

forte),

(gravitacional, todos

esses

fenômenos ou conceitos, além de vários outros, existem tanto hoje aqui e agora como em épocas ou lugares distantes – a única possível exceção, segundo físicos teóricos, seria dentro dos buracos negros que existem no universo, nos quais acredita-se que as leis da natureza percam a sua validade e sequer existem espaço e tempo. Mas, nas ciências humanas (as ciências biológicas ficam numa posição intermediária), não existem de fato conceitos e teorias sistemáticas ou universais, isto é, atemporais e independentes do lugar, de uma sociedade ou uma cultura específica. É por isso que todas as ciências sociais são ou deveriam ser, ao mesmo tempo, históricas e

geográficas. Históricas, pelo fato de terem que levar em conta, necessariamente, a historicidade ou temporalidade dos fenômenos; e geográficas, na medida em que todos os objetos que estudam variam enormemente no espaço, ou seja, são diferentes em função do lugar onde se situam – diferenças que, no fundo, decorrem de sociedades e culturas

distintas,

sem

esquecer,

evidentemente,

que

determinados traços de uma cultura possuem íntimas relações com o meio físico no qual ela se desenvolveu. Dessa forma, não é possível pensar um conceito abstrato de classe social, ou de sistema escolar, de produção econômica, de Estado ou mesmo de poder político, sem estabelecer profundas diferenças entre o que significam esses conceitos nesta e naquela sociedade, neste ou naquele momento da história. Diferenças por vezes incomensuráveis. Tanto que inúmeros autores afirmam que, no fundo, não é possível haver um conceito único de Estado, ou de política, de status social, de educação etc. Foucault, por exemplo, mostrou cabalmente que o que se entendia na antiguidade grega por medicina, por sexualidade ou por educação (poderíamos acrescentar: por geografia, ou por física) são coisas bem diferentes do nosso entendimento atual. Não se trata apenas, como ingenuamente se imagina, que

as

disciplinas

evoluíram,

que

ocorreram

novas

descobertas ou foram criadas novas teorias, mas sim que, muitas vezes, malgrado o nome em comum, tratam-se de objetos completamente distintos e não do aprimoramento ou enriquecimento do mesmo objeto.

Tais diferenças, fatalmente, devem ser levadas em conta pelas ciências humanas. Normalmente, elas são maiores no tempo do que no espaço, ou pelo menos são percebidas dessa forma pela filosofia e pelas humanidades. Daí mais um motivo para a maior valorização da história pelas ciências sociais, com uma ênfase muito maior nas diferenças suscitadas pelo tempo histórico. Na verdade, as ciências

sociais

proclamam

abertamente

a

sua

historicidade: são disciplinas que amiúde e explicitamente dizem ponderar sobre o tempo histórico com as suas transformações. Mas, dificilmente elas apregoam a sua geograficidade: isso parece ser visto como algo inferior ou sem importância. Acreditamos, contudo, que essa situação problemática da geografia, isto é, os constantes questionamentos sobre seu status como disciplina científica e acadêmica (não que esses dois predicados sempre caminhem juntos), esteja nos dias atuais bastante amenizada e talvez até em vias de desaparecer. Isso não apenas pela reabertura de cursos de geografia em universidades onde eles nunca existiram ou tinham sido fechados na segunda metade do século XX. Muito mais importante que isso – e na verdade talvez a principal causa disso6 - foi a mudança operada desde o final do século passado, desde pelo menos os anos 1980, no clima intelectual e científico predominante no mundo em geral. Com a globalização e a crescente interdependência – não

apenas

econômica

e

comercial,

mas

também

ambiental, cultural (no sentido de determinados valores, embora

evidentemente

apenas

alguns,

se

tornarem

universais), de intensas migrações de povos diversos, que originam

sociedades

cada

vez

mais

pluriétnicas

e

pluriculturais –entre todos os povos e países, vários problemas se tornaram globais e não mais apenas locais ou nacionais. Um deles, talvez o mais importante, é a questão ambiental, que envolve a própria sobrevivência do ser humano no planeta. Outra mudança, complementar a essa, foi a do ressurgimento e fortalecimento de uma visão holística na ciência, que agora procura integrar muito mais os

conhecimentos

parcelares,

procura

enfoques

multidisciplinares7 para muitas questões que são abordadas de diferentes maneiras por ciências distintas. Durante o século XIX e grande parte do século XX, cada tema ou questão era visto de forma positivista como um objeto específico para uma única ciência, ao passo que ultimamente, mesmo não se invalidando a especialização (pelo contrário, ela continua importantíssima), existe também uma busca por abordagens multidisciplinares para uma mesma questão, um esforço no sentido de enfoques holísticos, que integrem os conhecimentos particulares de cada especialização. É uma preocupação ainda incipiente? Sim, mas que está se expandindo e cada vez mais ocupando mentes privilegiadas tanto nas ciências naturais como nas ciências humanas. Isso contribui, mesmo que fracamente, para revalorizar a geografia? Acreditamos que sim, pois o projeto epistemológico desta disciplina desde

Humboldt foi o de buscar um enfoque holístico, uma tentativa de integrar conhecimentos a respeito do meio natural e da sociedade humana. Um tipo de proposta ou pretensão antes subestimada, ou até escarnecida, mas hoje cada vez mais revalorizada. Também o espaço ou a abordagem espacial deixou de ser tão depreciado e voltou a ser bem mais considerado nas ciências humanas. Nas ciências da natureza essa desvalorização do espaço nunca ocorreu; pelo contrário, em algumas dessas disciplinas – como a ecologia, a física e a astronomia – a dimensão espacial dos fenômenos é inclusive mais valorizada que a dimensão temporal. Mas o espaço dessas ciências, com exceção parcial da ecologia, não se identifica com o espaço geográfico. Mesmo assim a abordagem da dimensão espacial da humanidade pela geografia nunca foi o motivo de sua desvalorização pelas ciências naturais e sim a sua pretensão de síntese ou de enfoque holístico, além desta não ter um objeto de estudos específico e bem delimitado tal como as ciências analíticas e de se apropriar de conhecimentos de várias ciências. Mas nas ciências humanas essa abordagem espacial era o motivo principal da depreciação da geografia, embora não o único (também as objeções das ciências naturais repercutiam nas humanidades). Esta recente revalorização da dimensão espacial nas ciências humanas (e nos meios intelectuais em geral, fato perceptível se observarmos as notícias e reportagens da mídia voltada para este público) está relacionada com as mudanças históricas ocorridas

desde pelo menos os anos 1980: a crise do marxismo seguida pela crise terminal do mundo socialista, como também, pelo menos para a maioria, da utopia socialista; a globalização, com o surgimento de problemas globais de toda a humanidade, em especial na questão da convivência (ou depredação) dos seres humanos com a natureza que permite a existência da vida no planeta; e a nova ordenação geopolítica mundial, dinâmica e com rápidas mudanças (muito mais que no período da guerra fria), com o final da bipolaridade e o advento de novos focos de tensão e conflitos que não podem mais – a não ser nos discursos superficiais e panfletários – serem explicados por aquela filosofia da história (de Hegel e sua reformulação por Marx) que

alicerçou

grande

parte

das

ciências

humanas,

exatamente aquelas que mais valorizavam o tempo, a história (vista como processo evolutivo teleológico), em detrimento de uma desvalorização da dimensão espacial da sociedade humana. Como historiadores,

afirmaram cientistas

vários

autores

políticos,

recentes

economistas

– e

estrategistas que constroem cenários futuros para tentar prever as mudanças geopolíticas e geoestratégicas no mundo ou em alguma região específica deste –, a geografia cobrou o seu preço, voltou à tona ou mostrou a sua importância para se compreender as mudanças políticas e econômicas, como também de equilíbrio de forças, de conflitos e tensões, que ocorrem no espaço mundial ou em determinada região do planeta.

Mas

o

futuro,

evidentemente,

está

sempre

indeterminado ou em aberto, e essa revalorização do espaço não significa necessariamente que os geógrafos continuem a ser os principais teóricos da dimensão espacial da humanidade ou de sociedades específicas. As pesquisas e

os

conhecimentos

hoje

são

a

cada

dia

mais

multidisciplinares e tornou-se cada vez mais comum vermos economistas

revalorizando

a

economia

espacial,

antropólogos comentando sobre o espaço de alguma comunidade, historiadores e sociólogos ou cientistas políticos dissertando sobre questões geopolíticas ou geoestratégicas. Cabe então aos geógrafos mostrarem que seus conhecimentos e formas de abordagem não servem apenas como ensinamentos para as escolas básicas, tal como havia sugerido em 1948 o reitor da universidade de Harvard em sua fala de que a geografia “não é uma disciplina universitária”, mas que servem antes de tudo para se compreender o mundo em todas as escalas geográficas, para se pensar o espaço para nele agir de forma consciente. Como incentivo ao otimismo, podemos encerrar este ensaio com uma citação de Edgar Morin: O desenvolvimento das ciências da terra e da ecologia revitalizam a geografia, ciência complexa por princípio, uma vez que abrange a física terrestre, a biosfera e as implantações humanas. Marginalizada pelas disciplinas vitoriosas, privada do pensamento organizador [...] a geografia

reencontra

multidimensionais,

suas

complexas

e

perspectivas globalizantes.

Desenvolve

seus

pseudópodes

geopolíticos

e

reassume sua vocação originária.  

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Resenha crítica do livro A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra, de Yves Lacoste (editora Papirus, 1988, tradução de Maria Cecília França).8 Editado originalmente em 1976 na França – e reeditado em

1985

com

algumas

correções

e

acréscimos,

principalmente uma superficial autocrítica – este livro é considerado um clássico da chamada geografia crítica. Esta tradução foi feita a partir da edição de 1985, na qual o Autor manteve as suas ideias fundamentais e ao mesmo tempo procurou esclarecer determinadas dúvidas (ou responde a certas críticas) que a primeira edição havia suscitado. Na verdade, o Autor já tinha desenvolvido sua tese principal – aquela contida no título da obra, ou seja, que a “verdadeira geografia” é a geopolítica, que a geografia sempre serviu principalmente (embora não apenas) para fazer a guerra, para fins estratégicos – num artigo publicado em 19739. Este livro retoma e amplia as reflexões contidas neste artigo. Tornou-se praticamente um consenso a afirmação segundo a qual esta obra de Lacoste – assim como a revista Hérodote, revue de géographie et de géopolitique, por ele idealizada e dirigida, cujo primeiro número também saiu em 1976 – constitui o trabalho seminal da geografia crítica. Porém, não devemos confundir, como muitos fazem, a geografia crítica com a chamada geografia radical. Aquela primeira, inicialmente latina (França primeiramente, depois Itália, Espanha e países latino-americanos), ao passo que a

geografia radical é essencialmente anglo-saxônica e existe desde o final dos anos 1960. Apesar de uma aproximação recente, já neste novo século, quando alguns poucos autores desta última corrente – tais como Tim Unwin, Nicholas Blomley e outros – passaram a falar na transição ou metamorfose de uma geografia radical para uma geografia crítica com base principalmente nos escritos de Habermas e na incorporação de outras correntes críticas além do marxismo (anarquismos, pensamento pósmoderno, feminismo etc.). Em síntese, a geografia crítica desde o seu início, com Lacoste e sua entourage, buscou subsídios não apenas no marxismo (com reticências), mas principalmente no anarquismo e nas ideias de autores pós-estruturalistas ou pós-modernos tais como Foucault, por exemplo. Por outro lado, a geografia radical anglo-saxônica, pelo menos até recentemente, era de uma forma geral dogmaticamente marxista, fortemente marcada pela presença e influência de David Harvey (que colaborou, como autor secundário, no círculo parisiense capitaneado por Louis Althusser no início dos anos 1970, algo que até hoje marca profundamente seus trabalhos), de Neil Smith (um ex-orientando de Harvey) e outros com uma leitura mais ou menos semelhante do marxismo e da renovação geográfica. A nosso ver, neste livro Lacoste procurou mostrar a enorme importância da geografia – um “saber estratégico”, indispensável não apenas para as guerras militares como também para qualquer forma de contestação ou luta no e

com o espaço (greves, passeatas, demandas por melhorias no local, por uma maior qualidade de vida, etc.) – com vistas principalmente a dar uma resposta aos estudantes de 1968 que lhe indagaram “para que serve esta disciplina tão maçante?”. (Ele lecionava geografia para o curso de ciências sociais no campus da Universidade Paris X, em Nanterre, exatamente o epicentro das contestações de maio de 1968). Por sinal,

dois

acontecimentos

marcantes

e

fundamentais para entender as ideias de Lacoste nesta obra foram a guerra do Vietnã (1959-1975) e as rebeliões estudantis do maio de 1968 na França. Estas lhe colocaram um desafio: o para que serve a geografia, qual é a sua utilidade além das “simplórias e entediantes aulas da disciplina no ensino básico”, como o autor ironiza (seria essa a percepção da maioria dos estudantes franceses naquela ocasião) no primeiro capítulo deste livro. E a guerra do Vietnã, o acontecimento internacional mais divulgado pela mídia dos anos 1960 até 1975 – além do grande número de mortos e de “experimentos” como o uso do napalm e de outras armas químicas ou bacteriológicas, da testagem de novos aviões ou helicópteros, etc., havia a percepção que o sudeste asiático seria o local onde se decidia o desfecho da guerra fria –, de acordo com a leitura de Lacoste, seria um exemplo perfeito do indispensável uso da geografia num conflito militar. Lacoste rotulou esse conflito de “guerra geográfica”. Portanto, os estudantes revoltosos lhe forneceram um desafio, um estímulo, e a

guerra do Vietnã lhe forneceu uma resposta, um campo a ser pesquisado e que lhe daria a “chave” para a réplica. Este livro representou não apenas o pontapé inicial da geografia crítica como também o resgate da geopolítica pela geografia e até mesmo pela academia, pelas universidades de uma forma geral. A partir dele, o Autor deixou de lecionar geografia e passou a dirigir (e lecionar em) um curso interdisciplinar, que ele idealizou e montou, de “doutorado em geopolítica” no campus da Universidade Paris VII em Saint-Denis. Uma das ideias centrais do livro é que não existe uma única geopolítica, tal como se pensava de forma hegemônica até então, qual seja, aquela vilipendiada e identificada com o nazifascismo. Existiriam “outras geopolíticas” nas palavras de Lacoste, tanto aquelas dos

Estados

democráticos

(dos

Estados

Unidos,

por

exemplo) como também as das empresas multinacionais ou transnacionais e até mesmo as “dos dominados”, isto é, as estratégias espaciais dos que se revoltam, dos que se opõem ao poder dominante. Outra ideia fundamental do livro é que a “verdadeira” geografia, a “geografia fundamental” ou “dos Estados maiores”, como Lacoste a denomina, seria a geopolítica, que na verdade existiria desde a mais tenra antiguidade (teria se iniciado com os primeiros mapas e o seu patrono seria Heródoto, que nessa leitura

é

visto

como

um

estrategista

a

serviço

do

imperialismo ateniense). A outra seria a “geografia dos professores”, construída no século XIX por Humboldt e Ritter. Esta seria menos importante, seria mais uma espécie

de “cortina de fumaça”, como escreve o Autor, que serviria primordialmente para obnubilar a importância estratégica da “verdadeira geografia”, da geopolítica enfim. Este é um livro de leitura agradável, escrito para o grande público e não como um trabalho acadêmico, na verdade um verdadeiro “manifesto” ou “panfleto” no bom sentido da palavra, tal como o denominou François Châtelet. Por isso mesmo – e também pelas ideias revolucionárias (mesmo que contestáveis) que encerra – ele provocou um verdadeiro terremoto intelectual: teve inúmeras edições ou reedições, foi traduzido para um sem número de idiomas (do inglês ao japonês, passando pelo árabe, português, italiano, espanhol, alemão etc.) e logrou uma cifra imensa (dezenas de milhares) de citações – apologias ou críticas – em livros acadêmicos, em periódicos especializados e até mesmo em jornais e revistas de grande tiragem. Duas contribuições importantíssimas que esta obra trouxe foram as noções de “raciocínio geográfico” e de “espacialidade diferencial”. Raciocínio geográfico segundo Lacoste seria uma habilidade ou competência, fundamental para o ensino da disciplina, que consiste em “saber pensar espacialmente”, aprender a raciocinar em termos de escala geográfica e de localização, enfim ponderar sobre o espaço para nele atuar de forma eficaz. Seria um tributo ou um subsídio – infelizmente, como assinala o Autor, pouco explorado pelos geógrafos e professores de geografia – para a cidadania, para os homens e mulheres aprenderem a se organizar,

a

lutar

ou

reivindicar

de

forma

menos

atabalhoada ou caótica. E espacialidade diferencial seria o entendimento de que um fenômeno tem significados diferentes de acordo com a sua escala, ou seja, que existem diversas ordens de grandeza na análise espacial e que os processos ou acontecimentos diferem em sua percepção de acordo com a ordem ou nível escalar no qual o analisamos. Lacoste ainda argumenta que o público em geral e até mesmo os filósofos e cientistas sociais fazem um uso indiscriminado e acrítico de termos geográficos – tais como região, país, Norte e Sul, Leste e Oeste, centro e periferia, além de outros – que encerram toda uma ideologia, toda uma carga de comprometimento político que é negligenciada. Ele também fustiga os geógrafos por terem impedido ou cerceado as polêmicas e as discussões epistemológicas na geografia, que poderiam ajudar no avanço da ciência (tal como frequentemente ocorre em outras disciplinas), mas que em nosso caso teriam sido propositalmente rebaixadas ou transformadas em “intrigas de caráter pessoal”. E por fim procura revalorizar ou redescobrir a obra o geógrafo-anarquista Élisée Reclus, um dos líderes da Comuna de Paris de 1971 e que, segundo Lacoste, teria já percebido a importância estratégica da geografia e talvez por isso mesmo foi colocado no ostracismo pela geografia acadêmica. Pelo menos uma das ideias essenciais deste livro tem uma visível influência de Foucault: quando Lacoste critica Marx e os marxismos por terem supervalorizado o tempo, a história, em detrimento do espaço, da geografia. Foucault,

em um ensaio publicado no início dos anos 197010, havia detectado uma depreciação do espaço em prol de uma temporalidade supervalorizada desde a Revolução Francesa e em especial no século XIX por praticamente todas as correntes que construíram as ciências humanas – de Hegel até Marx, dos anarquismos até o positivismo. Lacoste retoma e amplia essa ideia afirmando que: É inútil destacar a importância das transformações que o marxismo provocou na história, na economia política e em outras ciências sociais. Ele trouxe não somente uma problemática e um instrumental conceitual, mas também determinou, em larga medida, o desenvolvimento dessa polêmica epistemológica e dessa vigilância quanto ao trabalho (...) Ora, até os anos sessenta os marxistas não haviam ainda se preocupado com a geografia, embora se trate de um saber cujo significado econômico, social e político é considerável. É preciso, de início, constatar o silêncio, o “branco” em relação aos problemas espaciais, que caracteriza a obra de Marx. Quanto mais Marx organiza o seu raciocínio com referência constante ao tempo (e a história foi encontrada, reorganizada), mais ele se mostra indiferente aos problemas do espaço. (...) Enfim, a economia política marxista retomará os esquemas a-espaciais de O Capital, pronta, bem recentemente, a se precipitar sobre metáforas espaciais as mais escorregadias, como “centro” e “periferia”. (Lacoste, p. 139-41).

Até agora nos limitamos a fazer uma espécie de descrição ou explicação sintética (bastante elogiosa, por sinal) do livro. Cabe então mostrar alguns problemas, alguns quiproquós. Já na apresentação que escrevemos em 1988 para a edição deste livro em português11, havíamos assinalado certo fetichismo ou mitificação dos mapas, em especial das cartas feitas pelos Estados maiores, que para Lacoste seriam secretas, nunca destinadas aos cidadãos (especialmente nas sociedades autoritárias e totalitárias; na democracias podiam em alguns casos serem consultadas embora

não

compreendidas)

e

destinadas

fundamentalmente ao exercício do poder, ao controle social pela via da manipulação ou da reorganização dos espaços. Havíamos também mostrado certa simplificação na identificação da geograficidade (termo que Lacoste forjou em analogia com historicidade) com o cartografável, o que implica num empobrecimento dos temas estudáveis pela geografia. Podemos doravante ir um pouco mais longe, denunciando a identificação, a nosso ver espúria, que o Autor faz entre escalas cartográficas e geográficas, algo que contamina as suas ideias (no fundo ótimas) de raciocínio geográfico e de espacialidade diferencial. Lacoste, em nossa opinião

de

geográficas,

forma que

são

equivocada, antes

de

reduziu tudo

as

escalas

qualitativas,

às

cartográficas, que são essencialmente quantitativas. Neste livro ele mencionou uma série de “escalas geográficas” em função de suas ordens de grandeza cartográficas (áreas que se medem em metros seriam uma escala, em centenas de

metros outra, em até dezenas de quilômetros uma terceira, etc.), tendo neste ponto sido fiel à tradição geográfica francesa e provavelmente se inspirando na ordem de grandeza dos geossistemas de George Bertrand. Todavia, as escalas geográficas pressupõem, mas não se confundem, com as cartográficas. Estas servem de ponto de apoio, de base, assim como a cronologia serve de base ou ponto de apoio para o tempo histórico, mas não se identifica com ele – a não ser para os tradicionalistas, para aqueles que pensam que história é apenas uma coleção de datas de guerras ou de reinados. Repetindo: a escala geográfica

é

essencialmente

qualitativa

e

a

escala

cartográfica fundamentalmente quantitativa. Mas é lógico que o qualitativo também incorpora o quantitativo. O quantitativo é fundamental para o qualitativo, que, afinal de contas, precisa avaliar as coisas, comparar, estabelecer semelhanças e diferenças, em suma, dimensionar num certo sentido os fenômenos. Mas ele vai além disso. Vejamos como exemplo o conceito de região, essencial na geografia e que depende de uma série de fatores que vão criar certa identidade regional. E não primordialmente de sua dimensão, isto é, de um determinado nível de grandeza em termos de escala cartográfica. Existem regiões com dimensões extremamente diferentes. O conceito de região, por sinal, é relacional na medida em que também depende das outras áreas (uma região nunca existe sozinha, mas sempre como parte integrante de um todo), principalmente vizinhas ou que partilham do mesmo todo (um espaço

maior),

que

vão

permitir

determinados

contrastes

(e

interações) com essa região. Assim, a escala regional não pode ser definida por uma ordem de grandeza cartográfica ou quantitativa, e sim por uma escala geográfica essencialmente qualitativa. Dessa forma, quando falamos em escalas geográficas não estamos nos referindo – embora isso esteja implícito, tal como a cronologia está implícita no tempo histórico, nos processos de curta, média ou longa duração – às escalas cartográficas, mesmo que estas estejam supostas naquelas. Do local ao global, como se diz atualmente, passando por várias escalas geográficas intermediárias: o município, o estado, a região dentro do país, o Estado nacional, o conjunto regional supranacional do qual nosso país é parte (um mercado continental ou subcontinental, por exemplo; e/ou um grupo identificado por um idioma ou por uma religião etc.). Mas essas dimensões das escalas geográficas – o que é um lugar, por exemplo, ou um território nacional – não são rígidas ou exatas tal como as mencionadas “ordens de

grandeza”

de

Lacoste

baseadas

em

metros

ou

quilômetros, mas sim variáveis ou circunstanciais. Elas dependem muito de cada situação em particular; existe aqui, como vários geógrafos eminentes (como Harshorne, Hettner ou Waibel) já haviam observado, um elemento idiográfico: cada caso é uma realidade específica e particular. Dois outros percalços do livro são a subestimação da “geografia

dos

professores”

e

a

supervalorização

da

geografia (ou melhor, da geopolítica) como “o” instrumento para

a

guerra,

tal

como

aparece

em

especial

na

caracterização da guerra do Vietnã como uma “guerra geográfica”. A “geografia dos professores” é vista neste livro de Lacoste como um subproduto da geopolítica, na verdade como uma “cortina de fumaça” destinada a esconder

a

importância

estratégia

dessa

“geografia

fundamental”. É uma visão simplicadora e antes de tudo deformadora, que ignora toda uma imensa produção – pesquisas que resultaram em teses, estudos de casos ou monografias – que mostra o porquê surgiu, principalmente no século XIX, a geografia escolar: para ressocializar as pessoas,

principalmente

os

jovens,

preparando-os

ou

adaptando-os para a sociedade moderna, mercantil e urbanizada;

para

inculcar

o

nacionalismo

(algo

tão

valorizado pelo típico patriota francês Lacoste, que mesmo sendo um pied-noir tem uma verdadeira ojeriza frente ao “imperialismo norte-americano” e ao mesmo tempo defende de forma intransigente os produtos e obras culturais franceses mesmo quando eles prejudicam os países subdesenvolvidos12); e assim por diante. Mas nunca – a não ser nos devaneios de Lacoste – para esconder ou disfarçar a importância estratégia da geopolítica. Quanto à supervalorização da “geografia fundamental” – ou seja, da geopolítica, por sinal uma identificação problemática na medida em que ignora toda uma história da geopolítica relativamente diferente daquela da geografia, além das acirradas polêmicas entre geógrafos e geopolíticos

especialmente

quando

da

enorme

popularização

da

geopolítica com Haushofer – para os conflitos militares, também há um exagero. Sem dúvida que isso existe, ou seja, que há um uso constante e indispensável da geografia (mais até que da geopolítica, malgrado Lacoste identificar estes dois saberes), para a guerra. Mas também outros saberes ou ciências – desde a matemática e a estatística até a física, a química, a biologia, a antropologia, etc. – servem e são constantemente utilizados para fazer a guerra, para os conflitos militares ou mesmo para controlar uma dada população13. Em suma, todo conhecimento, principalmente toda ciência e não apenas a geografia, serve ou pode servir para o controle e a manipulação da natureza ou da população, serve enfim para a guerra tanto no sentido estrito (militar) como no sentido lato do termo. Com isso não pretendemos denegar o esforço de Lacoste para revalorizar a geografia, algo louvável e no fundo o seu objetivo último, tampouco a sua pertinente análise da importância estratégica dos conhecimentos geográficos. Mas valorizar ou realçar uma disciplina, uma ciência, não deve implicar numa desvalorização

das

demais,

num

exclusivismo

ou

corporativismo que não vê que as ciências no fundo têm objetivos

em

comum,

todas

elas

se

preocupam

em

compreender ou explicar racionalmente a realidade, o mundo, tudo o que existe enfim. E todo conhecimento racional acaba tendo, importância prática.  

direta

ou

indiretamente,

uma

 

 

Determinismo geográfico revivido? Reflexões a partir do livro Geografia é destino? Lições da América Latina, de John Luke GALLUP, Alejandro GAVIRIA e Eduardo LORA (editora Unesp, 2007, tradução de Fernando Santos).14 Publicado originalmente em 2003, em inglês, pelo BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento –, este livro faz parte de uma série de trabalhos encomendados pelas organizações internacionais a partir dos anos 1990 que procuram explicar quais são os entraves para o desenvolvimento em diversas regiões pobres do globo. Neste caso, a América Latina é objeto de um estudo que procura investigar qual seria o papel da geografia no subdesenvolvimento desta parte do continente. Para entendermos melhor o porquê deste trabalho, que na verdade foi realizado a pedido e com financiamento dessa organização internacional sediada em Washington, temos que recordar que a partir das últimas décadas do século XX inúmeras pesquisas demostraram que o desenvolvimento econômico e social, principalmente o sustentável – pensando-se, evidentemente, não apenas em sustentabilidade ambiental, mas também cultural, social, econômica e por aí afora – não se explica tão somente por fatores históricos e principalmente econômicos, os únicos mencionados nas teorias tradicionais fossem elas liberais, neoliberais, marxistas, estruturalistas ou keynesianas. Os fatores ou processos culturais passaram a ser revalorizados, tendo ocorrido uma retomada – embora de forma ampliada

e adaptada às novas condições – do insight weberiano sobre as relações entre a ética calvinista e o espírito do capitalismo. Também determinados traços políticos (estabilidade, boa governança, baixo grau de corrupção, transparência, democracia enfim) e institucionais (bom sistema

judiciário,

com

estabilidade

institucional

que

garanta os contratos; sistema escolar eficiente, que forme uma força de trabalho qualificada e seja uma alavanca para a pesquisa científica e tecnológica; legislação que favoreça a inovação tecnológica e o empreendedorismo; etc.) foram estudados como causas do maior ou menor desenvolvimento deste ou daquele Estado nacional. E também a geografia – ou melhor, as chamadas “condições geográficas” (localização absoluta e principalmente relativa, clima, solos, geodemografia, grau de urbanização, disponibilidade de recursos naturais, etc.) –, antes tão negligenciada, passou novamente a ser considerada como um dos elementos que favorecem ou dificultam o desenvolvimento de uma região ou de um país. Nesse sentido, este trabalho procurou perscrutar o peso das condições geográficas no escasso desenvolvimento latinoamericano (em comparação com a América Anglo-saxônica) e também nas desigualdades regionais dentro da América Latina ou até mesmo no interior de determinados países como o Brasil, o México, a Bolívia, a Colômbia e o Peru, que foram objetos de análises nesta obra. Em primeiro lugar, devemos tecer elogios a este resgate da geografia pelos economistas, com uma

revalorização (depois de inúmeras décadas de ostracismo) das condições geográficas como um dos fatores determinantes do desempenho histórico-econômico de uma sociedade ou de uma região do globo. Um resgate que vem se expandindo desde o final dos anos 1980 – os economistas estão redescobrindo e revalorizando a economia espacial e em particular a geografia econômica – e conta com nomes de peso tais como o prêmio Nobel Paul Krugman, o antigo expoente da “escola de Chicago” (e idealizador do “modelo chileno” de desenvolvimento, além de eterno candidato àquele referido prêmio) Jeffrey Sachs e inúmeros outros15. Os autores deste livro estranhamente deixaram de lado as obras de Krugman (com exceção de um trabalho em coautoria com Fujita e Venables, mencionado na nota 1, mas que não é a sua mais importante contribuição para este tema) e utilizaram bastante as de Sachs (na verdade o grande inspirador deste estudo) e também o volumoso livro de Landes16, um especialista em história e economia política da Universidade de Harvard, que, apesar de sua ênfase na cultura sob a inspiração das ideias de Weber, procurou levar em consideração as condições geográficas para explicar o atraso de algumas nações em comparação com os atuais países desenvolvidos. Entretanto, malgrado as boas intenções este estudo ficou muito limitado pela quase total ausência de uma bibliografia geográfica, de pesquisas de fato geográficas e atuais, para alicerçar as diferenças espaciais entre países e

entre regiões dentro de um mesmo território nacional. Os autores são três economistas que praticamente nada entendem de geografia e que, embora imbuídos de grande dose de boa vontade, utilizaram um material em geral ultrapassado, salvo raras exceções: noções sobre clima dos anos 1950, uma visão extremamente pobre e compartimentada

das

“condições

geográficas”



cada

elemento (localização, clima, solos, disponibilidade de água e de outros recursos naturais, incidência doenças tropicais, condições demográficas, grau de urbanização) é visto e ponderado de forma totalmente isolada como se eles não interagissem, não formassem conjuntos ou sistemas tal como aparecem nos trabalhos dos geógrafos. O único geógrafo importante mencionado foi Jared Diamond com o seu livro Armas, germes e aço, mas o problema é que ele é totalmente inadequado para este tipo de inquérito na medida em que trabalha com uma duração temporal extremamente longa, de milhares de anos, analisando o declínio ou a permanência de civilizações milenares (sempre em função de suas relações com o meio ambiente) e nunca diferenças regionais do nosso presente. Ademais, esse biogeógrafo

norte-americano

realizou

pesquisas

que,

conquanto tenham um enorme valor, enfocaram sociedades tradicionais, pré-industriais e com tecnologia em geral rudimentar, algo bem diferente do Brasil ou do México dos nossos dias. A metodologia deste estudo é comparativa e no fundo simples: cada fator é isolado em sua forma numérica (com

tabelas), gráfica ou cartográfica e visto em comparação com alguns índices de desenvolvimento econômico ou de bem estar. Por exemplo, usa-se um mapa da América Latina dividida em ecozonas (com base em Köppen e Geiger: trópicos úmidos, trópicos de monção, temperado úmido, estepe, deserto, altitudes elevadas etc.) e se sobrepõe a mapas ou gráficos desta mesma região (ou partes dela) de renda per capita, de PIB per capita, de densidade demográfica, de produção agrícola por trabalhador, de incidência de malária e de alguns outros indicadores. Ou então se analisa a correlação entre renda per capita e maior ou menor incidência de malária ou de outras doenças tropicais,

entre

altitude

e

PIB

per

capita

e

assim

sucessivamente. Tudo bem que esse método leve a determinadas conclusões relativamente interessantes, tais como

que

em

geral

(existem

exceções)

as

áreas

temperadas da América Latina são mais desenvolvidas (isto é, possuem índices de renda per capita ou de IDH superiores

à

média

da

região)

que

as

tropicais

e

principalmente que as equatoriais, ou que os países e regiões mais urbanizados têm índices de desenvolvimento econômico superiores aos menos urbanizados. O problema é que tudo isso é algo banal e já conhecido muito antes deste trabalho. Não existe nenhum avanço no conhecimento dos fatos ou das correlações entre fenômenos. Além disso, são constatações que não explicam nada, apenas descrevem correlações simples sem perceber que elas podem ter sido ocasionadas por determinados

processos históricos complexos (nos quais inúmeros fatores tiveram o seu peso relativo) e não por qualquer tipo de imposição da natureza ou das “condições geográficas”. Os avanços da medicina desde pelo menos o século XIX, por exemplo, foram feitos basicamente nas áreas temperadas e deixaram meio de lado (na medida em que a expectativa de lucros é bem inferior) as pesquisas sobre certas doenças tropicais que tanta mortalidade (ou às vezes baixa produtividade do trabalho) ocasionam na África e em outras áreas tropicais e principalmente equatoriais. E o maior

desenvolvimento

comparativo

da

Argentina,

do

Uruguai e do Chile, ou dentro do México da porção de maior altitude (que os autores incluem nos climas temperados) em comparação com as zonas de menor altitude (e climas mais quentes), podem ser e já foram explicados de forma mais apropriada pelas características da colonização: os europeus que vieram para povoar (e não apenas explorar determinadas riquezas com vistas ao mercado europeu) evidentemente que preferiam as áreas menos quentes não porque isso seja uma característica inata ou “natural” do ser humano e sim porque eram europeus e tinham um modo de vida (e uma tecnologia) mais apropriado para as áreas com estações do ano definidas e com invernos mais frios. Quanto à influência do maior grau de urbanização para o crescimento econômico, o livro num certo sentido coloca o carro na frente dos bois, ou seja, toma como causa algo que é consequência, pois é amplamente conhecido, após inúmeras pesquisas que remontam ao século XIX, que é o

desenvolvimento

da

economia,

notadamente

a

industrialização, que ocasiona a urbanização e não o inverso. O seguinte trecho do livro ilustra bem a sua essência: “Fatores geográficos explicam grande porção da diferença de crescimento entre a América Latina e os países industrializados, mas não entre a América Latina e o Leste da Ásia. Os países industrializados contam com fatores geográficos físicos e humanos mais favoráveis, e cada um dos quais explica cerca de um terço da diferença de crescimento. As principais vantagens dos países industrializados derivam do fato de eles estarem localizados em zonas temperadas e terem

índices

mais

elevados

de

urbanização.

A

América Latina e o Leste da Ásia têm características geográficas semelhantes, e apenas uma pequena fração da diferença de crescimento entre as duas regiões pode ser atribuída à geografia. (...) Esse ponto é crucial porque ele reforça o argumento de que geografia não é destino e que políticas e instituições adequadas

conseguem

compensar

seus

efeitos

adversos.” (pg. 79) Acredito que aí está todo o espírito do trabalho, pois resume a sua ideia central. Qual seria ela? A de que as chamadas “condições geográficas” exercem uma influência, às vezes maior (como na América Latina) e por vezes menor (como no Leste da Ásia, isto é, países tropicais ou equatoriais

como

Cingapura

que

se

tornaram

desenvolvidos), mas que em última instância “geografia não é destino”. Sem dúvida que não! Essa afirmativa, embora surrada, é corretíssima. Por sinal, nada é destino: nem a história, nem a economia, nem a cultura e tampouco a biologia. Nenhum

fator

tomado

isoladamente

determina

o

destino de uma sociedade; isso sempre é o resultado do entrecruzamento de inúmeros fatores e onde podem entrar até mesmo o acaso, os acidentes ocasionais. Se a história fosse inexorável, inescapável, Cingapura não seria hoje um país desenvolvido, pois afinal também foi uma colônia de exploração e até os anos 1960 era tido como um dos países com maior grau de corrupção do mundo, além da pobreza de grande parte da população. O inverso também é verdadeiro: a Argentina e o Uruguai já foram tidos no passado (por exemplo, nos anos 1950) como países desenvolvidos. E se a economia fosse destino, a outrora paupérrima China não estaria caminhando para ser a maior economia mundial; e por outro lado, países vistos como ricos e poderosos no passado, como Portugal e Espanha, tornaram-se praticamente subdesenvolvidos, só conseguindo se reerguer devido à unificação europeia – ou seja, em função, principalmente (mas não apenas), de sua localização relativa. Sequer a cultura é destino: países católicos

se

desenvolveram

(França,

Itália,

Espanha)

enquanto que inúmeros protestantes ficaram para trás (Ruanda,

Botswana,

Nigéria,

Suriname,

Guiana,

São

Cristóvão e Nevis e inúmeros outros); e a propalada melhor

adaptação da cultura confucionista para o desenvolvimento capitalista (tese em moda nos anos 1970 devido ao enorme “arranque” da economia japonesa no período) também é algo duvidoso, pois além da atual (desde os anos 1990) e grave crise de estagnação econômica do Japão, que já perdura por duas décadas, a China só conseguiu de fato decolar quando deixou de lado suas tradições e passou a imitar o exemplo – e a tecnologia – dos Estados Unidos e dos países europeus. Quanto à biologia, é desnecessário dar algum exemplo de que não é destino, ou seja, não determina o desenvolvimento de uma sociedade: há tempos que o racismo deixou de ser levado a sério nos meios científicos. Seria este livro determinista? Um colega professor universitário de geografia humana fez essa afirmação peremptória (a de que o livro contém um determinismo rasteiro), mas não vou mencionar seu nome porque foi apenas uma afirmação verbal em um bate papo informal e não uma análise mais aprofundada do livro. Em todo o caso, acredito que não, isto é, que esta obra não é determinista, embora contenha inúmeras ideias banais e até simplistas. Mas para explicar isso é necessário definir precisamente o que estamos entendendo por determinismo, ou melhor, determinismo geográfico ou ambiental. Cabe

distinguir

determinismo

científico

ou

epistemológico dos demais determinismos: o econômico, o geográfico, o histórico, o cultural, o sexual, o biológico e por aí

afora.

Determinismo

científico,

ou

o

princípio

do

determinismo tal como preferem inúmeros autores – dentre os quais Einstein, Popper e Hawking –, é algo irreprochável e fundamental para a ciência moderna. É a tese segundo a qual tudo pode ser explicado racionalmente em termos de causas e consequências. Sem dúvida que as causas podem ser múltiplas e até probabilísticas, e nunca uma só como imagina pensamento unilateral que, levado aos extremos, gera os determinismos particulares. E as consequências ou efeitos podem virar causas e vice-versa17. Mas existem causas e efeitos ou, em outras palavras, relações causais entre fenômenos. Esse é o princípio do determinismo, aceito pelos físicos, químicos, biólogos, teóricos da epistemologia, etc., que fundamenta a ciência moderna desde pelo menos Galileu Galilei no século XVII. Apesar do nome em comum, ele não deve ser identificado com os determinismos particulares. Estes são condenáveis, são interpretações equivocadas, no fundo exageros ou visões unilaterais que só veem uma única causa como determinante de um fenômeno, por via de regra o caráter ou as características de uma sociedade. É o caso, por exemplo, de encarar as chamadas “condições geográficas”, especialmente o clima, como definidor do tipo de sociedade e da sua dinâmica. Este é o determinismo geográfico ou ambiental, tão em voga até pelo menos meados do século XIX e que não deve ser confundido, como boa parte dos geógrafos ainda faz, com uma pretensa “escola determinista” (que nunca existiu, convém realçar) capitaneada por Ratzel18.

Podemos ainda falar num determinismo histórico, muito comum entre certos marxistas, que consiste em enxergar a história como algo inapelável e determinante, que explica e decide o futuro de tudo. Assim como também existe o determinismo sexual (a sexualidade seria o determinante de todo o comportamento humano, comum em certa leitura da psicanálise), ou o econômico (atitude que vê a economia como uma panaceia que determina tudo numa sociedade: a cultura, os mitos, a tecnologia, as relações com a natureza, as relações sociais, a sexualidade e por aí afora) e inúmeros outros, sendo que o mais recente deles é o genético. Este livro não é determinista no sentido estreito do termo, ou seja, não professa um determinismo geográfico na medida em que os autores não endossam a tese que geografia é destino, que as condições geográficas explicam todas ou quase todas as diferenças internacionais e interregionais de desenvolvimento. Eles apenas afirmam que “a geografia importa”, isto é, que ela tem o seu peso, embora maior em certas regiões (sem nunca ser algo inexorável ou inescapável) e menor em outras nas quais as instituições políticas e sociais mais eficientes conseguem vencer as “limitações impostas pelo meio ambiente”. Isso não é determinismo geográfico, é apenas o estudo – embora meio capenga ou limitado – de uma das variáveis que influem nessas desigualdades, ou melhor, de algumas variáveis tais como o clima, a altitude, a disponibilidade de recursos naturais, a urbanização e a maior ou menor incidência de certas doenças ligadas ao meio ambiente. É bom deixar

claro que os autores não afirmam que só a geografia importa, ou que ela importa antes de tudo. E não se pode esquecer que este trabalho foi encomendado para – e, portanto, teve como objetivo – verificar o peso das condições

geográficas,

nessas

desigualdades

de

desenvolvimento, e não a influência da cultura, das instituições, da educação ou de algum outro fator. Acontece que alguns geógrafos, seguidores talvez sem o perceber da tradição geográfica francesa com a sua crítica apressada e mal feita ao “determinismo geográfico” (uma crítica, ou melhor, um xingamento que não conseguiu discernir o princípio do determinismo deste determinismo particular, que não conseguiu enfim entender a diferença entre um estudo que investiga até que ponto as condições geográficas

influenciam

desenvolvimento

de

uma

as

características

comunidade

ou

ou de

o uma

sociedade, algo perfeitamente aceitável do ponto de vista científico, de um apriorismo que vê a natureza como condicionante deste mesmo desenvolvimento) têm uma espécie de paranoia, uma recusa por princípio em sequer ouvir falar numa possível influência do clima, ou da localização relativa, ou da carência de recursos naturais no atraso de algum país ou região. Como assinalou um geógrafo britânico19, isso foi uma espécie de autocensura que muito atravancou as pesquisas geográficas e que, na história da geografia no século XX, contribuiu para manter certo atraso na geografia humana e em especial na econômica.  

   

 

Resenha crítica do livro Marxismo e Geografia, de Massimo Quaini (editora Paz e Terra, 1979, tradução de Liliana Lagana Fernandes).20 Publicado originalmente na Itália em 1974, este livro se insere no debate então em voga sobre a “crise da geografia”. Não podemos esquecer que inúmeros autores, desde pelo menos o final dos anos 1960, procuravam explicar essa crise a partir de diferentes perspectivas e ao mesmo tempo propondo diversos caminhos de renovação para esta disciplina. Apenas para citar alguns poucos exemplos, podemos mencionar as obras já clássicas de David Harvey, Paul Claval e Yves Lacoste21 – por sinal, estes dois últimos são mencionados no primeiro capítulo deste livro de Quaini. Num certo sentido, como mostraremos a seguir, Quaini pretendeu se contrapor à interpretação lacosteana sobre a “crise da geografia” e a necessidade de construir uma geografia crítica alicerçada não apenas no marxismo (que segundo Lacoste supervaloriza o tempo em detrimento do espaço), mas também no anarquismo e em pensadores pósmodernos como por exemplo Foucault. Para o comunista Quaini só o marxismo-leninismo basta, não sendo necessário recorrer e nenhum outro pensamento crítico – se é que ele admite que isso exista. Quaini pretendeu com esta obra dar uma resposta incisiva a essa crise, que, ao mesmo tempo, implicasse num caminho a seguir. Seu argumento, em síntese, é extremamente simples: que essa crise só existe porque a

geografia não incorporou o marxismo; e que nos escritos de Engels e principalmente de Marx podemos encontrar “respostas” ainda atuais e pertinentes, e não superadas, para a atual crise ambiental ou ecológica e para a (re)ordenação

dos

territórios.

O

marxismo

em

suma,

evidentemente que pela leitura ortodoxa e até mecanicista de Quaini, seria o redentor da geografia. Ele denega a crítica que Lacoste fez ao marxismo22 afirmando que existe sim uma geografia, embora não com este rótulo, em Marx e Engels: Nas páginas que se seguem nos propomos demonstrar que no materialismo histórico a dimensão espacial não é de modo algum sacrificada pela dimensão temporal: ambas representam uma componente que não pode ser suprimida do original historicismo de Marx, que nasce da crítica radical da concepção idealista da história e, em particular, do idealismo hegeliano no qual, como vimos, mesmo os fatos geográficos mais “terrestres” vinham trasfigurados no “céu” da Ideia. (Quaini, p.35). O Autor parte de uma concepção epistemológica do seu então camarada de partido, Lucio Colletti23, que afirma que o método marxista (sic!) tem como núcleo vital a união entre teoria e práxis, ou melhor, entre teoria e história. Trata-se, explica Quaini, da afirmativa de Marx segundo a qual “a anatomia do ser humano seria a chave para se compreender a do macaco e não vice-versa”, que o Autor

chama de “método regressivo”, no qual explicaria o passado24. Em suas palavras:

o

presente

“Não faço história do nascimento do capital voltando as costas ao presente para voltar àquele momento em que ele está a ponto de aparecer mas ainda não existe (e, portanto, seguindo simplesmente a série cronológica). Mas faço história do passado partindo do presente como sendo o único real. (...) Portanto, não será possível, em conclusão, história sem teoria, isto é, sem ciência (das disciplinas “morais”) que não proceda do sentido vivo e marcante da diversidade das épocas ou que esqueça, de algum modo, as distinções entre as várias formações histórico-sociais”. (Lucio Colleti, apud Quaini, p.21. Os grifos são do original). É um livro pleno de citações, principalmente de Marx e Engels – e eventualmente de um ou outro marxista –, que perfazem no mínimo uns 70% do texto total. Citações que invariavelmente procuram mostrar uma preocupação dos clássicos do marxismo com o espaço geográfico, com a chamada crise ambiental, com o ordenamento racional do território. Não apenas uma preocupação, mas até mesmo uma aguda percepção avant la lettre dos nossos atuais problemas ambientais ou ecológicos e, mais ainda, de como eles poderiam ser equacionados de forma inapelável. Um escopo pretencioso, sem dúvida, embora facilitado pelo verdadeiro método de Quaini, que é o pinçar aqui ou ali determinados trechos, em várias obras de Marx e de Engels,

que comprovem essa tese. Afinal, usando esse método poderíamos “demonstrar” qualquer ponto de vista num autor com várias obras, ou, mais ainda, numa doutrina com vinúmeros expoentes, principalmente quando dispomos de um sem número de obras diversificadas para fazermos nossa seleção. Poderíamos, com esse método, argumentar que Marx era totalitário avant la lettre como também que ele seria democrático e pluralista. Poderíamos “provar” tanto que ele era um feminista (também avant la lettre) como que foi um típico machista e moralista vitoriano. Não é usando um método semelhante que vários charlatões procuram evidenciar a existência de uma “previsão” da crise financeira de 2008 (ou a de 1929, ou a morte de um papa ou de um aiatolá, e por aí afora) em Nostradamus ou em qualquer outro vidente do passado remoto? Mas sem dúvida que Quaini nada tem de embusteiro. É um acadêmico sério que, pelo menos neste livro, se descortina enquanto geógrafo e marxista convicto, alguém que parece acreditar sincera e dogmaticamente nessa sua questionável tese. O problema é que ele foi longe demais na ortodoxia, na crença nas ideias de Marx e de Engels (como se elas fossem coerentes e invariáveis!) enquanto “verdades reveladas”, como uma doutrina afinal. É um livro religioso no sentido lato do termo, uma obra que no final das contas procura demonstrar que a “salvação” da humanidade (e do planeta Terra; e também a solução para a “crise da geografia”) está contida nos ensinamentos daqueles dois clássicos do século XIX.

É

inegável

que

alguém

poderia,

de

forma

perfeitamente legítima, buscar subsídios em Marx e Engels para todos esses assuntos e mesmo para alguns outros: crises econômicas, desenvolvimento desigual, pobreza e exclusão, etc. Mas encontrar subsídios – que também poderíamos extrair, dependendo do tema, em Keynes, em Weber, em Kropotkin, em Aristóteles ou em Kant, algumas vezes mais apropriados do que em Marx ou Engels – não quer dizer propalar “verdades inquestionáveis” ou uma única interpretação aceitável, tal como faz Quaini. Sinceramente, não sei se ele escreveu este livro mais como geógrafo (isto é, como acadêmico ou cientista preocupado em explicar a “crise da geografia” e ao mesmo tempo os desequilíbrios territoriais e ambientais) ou tipicamente como um militante do partido (ou seja, enquanto um manifesto do PCI que usa a “crise da geografia” como pretexto para desancar outras alternativas – principalmente a neoanarquista de Lacoste – e reafirmar os dogmas da sua doutrina, numa conotação mais política do que acadêmica). Talvez uma mistura das duas coisas, apesar de a segunda alternativa ser bem mais evidente. Mas essa natureza militante no mal sentido do termo (demasiado corporativista e facciosa, por isso mesmo pouco crítica) e até meio panfletária do texto de Quaini não lhe retira certos méritos. Existem alguns bons insights no livro, como também um elogiável esforço para escavar no pensamento marxiano algumas ideias relevantes sobre as relações entre sociedade moderna e natureza.

No que se refere às explicações sobre a “crise da geografia”, suas causas ou fatores explicativos e sua possível resolução, o livro de Quaini – em comparação aos de outros autores desse mesmo período – pode ser considerado como medíocre. Ele não enxerga sequer minimamente as razões dessa crise, os seus verdadeiros motivos.

Ele

nem

mesmo

coloca

as

interrogações

pertinentes sobre esse tema: no que consiste essa crise, por que, quando e como ela se iniciou? Ao invés, ele apenas se refere a uma “insatisfação” dos geógrafos com a sua disciplina, como se a crise se resumisse a isso. Na verdade, sua única preocupação é a de validar ou legitimar (poderíamos até dizer: sacralizar) o marxismo. Suas referências ao que foi essa crise, ao seu contexto histórico real (e não apenas frases estereotipadas sobre o capitalismo em geral, inclusive sem distinguir aquele do século XIX do atual), são precárias. Mas é um bom livro – pelo menos aceitável academicamente (como uma possível dissertação de mestrado, por exemplo) – sobre as ideias marxianas a respeito da natureza e da ação antrópica na sociedade moderna ou capitalista. É visivelmente inferior à famosa tese de doutorado de Alfred Schmidt sobre o conceito de natureza em Marx25, algumas vezes mencionada por Quaini. Mas com a diferença que Schmidt enxerga várias concepções diferentes de natureza em Marx – por exemplo, uma em O Capital, outra na Ideologia alemã; isso sem falar que Engels, na obra Dialética da Natureza, sugere outra compreensão de

natureza diferente das de Marx conforme demonstramos numa obra onde também abordamos este assunto26. Quaini, por sua vez, reduz tudo a uma só leitura, como se existisse uma concepção unívoca de natureza nos clássicos do marxismo. Mas não deixa de ser um estudo bastante aceitável (embora um tanto simplificador na medida em que procura evitar qualquer aporia, qualquer desarmonia de leitura nas obras desses clássicos) como uma monografia sobre as ideias de Marx e Engels a respeito das relações entre sociedade moderna e natureza. O próprio título do livro, Marxismo e Geografia, é de certa maneira inapropriado. Pois um estudo mais efetivo sobre essa vinculação deveria ir além dos clássicos, embora evidentemente os incorporando, partindo deles. Deveria passar pelos marxismos do século XX – desde Gramsci e Lukács até Sartre, Merleau-Ponty e Lefebvre, sem esquecer Rosa Luxemburgo e os pensadores da Teoria Crítica – e não ficar tão somente no século XIX. Por sinal, causa estranheza a quase completa – a não ser numa referência de duas ou três linhas, sem nenhuma importância no livro – omissão de Antonio Gramsci e Henri Lefebvre nesta obra de Quaini. Afinal, Gramsci foi um dos fundadores do PCI e analisou as desigualdades

regionais

na

Itália,

numa

evidente

preocupação com o espaço geográfico. E Lefebvre era na época em que este livro foi escrito, início dos anos 1970, sem a menor dúvida o marxista que mais ênfase dava ao espaço, à “produção do espaço” em sua expressão, na sua análise do capitalismo.

A partir desse título, ele deveria ainda mostrar que existem ou podem ser deduzidos a partir dos marxismos vários caminhos para a geografia, e não um só. E poderiam ser abordados outros assuntos ou tópicos, negligenciados no livro, que seriam interessantíssimos nessa relação entre marxismo e geografia: os desequilíbrios regionais e os regionalismos, a divisão territorial do trabalho as desigualdades inter-regionais e internacionais, o que é o Estado territorial moderno e suas relações com a sociedade e com o espaço geográfico etc. Todavia, não se pode ficar lamentando o que não foi feito, por mais pertinente e importante que seja, e sim falar do que foi. Algumas citações do livro são interessantes para servirem de reflexão. Por exemplo, esta: A resposta de Marx às concepções “ecológicas” que retomam

a

ideia

de

colocar

limites

ao

desenvolvimento – para retomar o já famosíssimo título da proposta do Clube de Roma (...) era já muito clara antes que elas surgissem: para a superação das contradições do capitalismo é “necessário que o pleno desenvolvimento das forças produtivas tenha se tornado uma condição da produção, e não que determinadas condições de produção sejam colocadas como

limites

do

desenvolvimento

das

forças

produtivas”. Está claro, de fato (...) que os limites do desenvolvimento

não

podem

coincidir

com

as

condições capitalistas de produção. (Quaini, p.136, grifos nossos).

Como se percebe, uma veneração ao progresso, ao desenvolvimento das forças produtivas, que, embora aceitável num autor do século XIX, é algo totalmente anacrônico para alguém que escreve no final do século XX e que deveria ter assimilado as inúmeras obras e pesquisas que evidenciam os limites da biosfera, e não apenas do capitalismo, os problemas de certa tecnologia, e não apenas das relações sociais capitalistas. Ou ainda esta outra citação de Marx – um trecho por sinal que Marx reproduziu em pelo menos duas obras (nos Grundrisse e em O Capital), sempre concordando com o seu teor: Lembremos de passagem que Marx, no Capital, recusa também no plano historiográfico esta concepção romântica de natureza [que Quaini afirma existir em Lévi-Strauss e em outros, os quais, segundo ele, mitificam as “comunidades primitivas” com a sua pretensa harmonia com o meio natural] e pronuncia-se a favor de uma relação dialética: “uma natureza por demais pródiga segura o homem pela mão como se segura uma criança em andador, e não faz do desenvolvimento do próprio homem uma necessidade natural” (Quaini, p. 138). É lógico que, após fazer essa citação, Quaini rapidamente tergiversa, mudando de assunto e passando a afrontar os “reacionários” que criticam a técnica que destrói o meio ambiente, não comentando – algo que daria um prato cheio para qualquer geógrafo mais perspicaz! – essa ideia esdrúxula (que ele chama de “dialética”) na qual Marx

sem nenhuma dúvida acreditava, isto é, que uma natureza pródiga (Marx refere-se explicitamente aos trópicos com a sua exuberante vegetação e sua rica fauna) atrapalha o desenvolvimento econômico e social, e que os desafios que a

humanidade

encontrou

na

zona

temperada

foram

fundamentais para o maior desenvolvimento da Europa. Uma ideia central nesta obra, a nosso ver o âmago mesmo da argumentação do Autor, é que o advento do capitalismo, em especial com a Revolução Industrial, rompeu o vínculo entre sociedade e natureza. A crescente urbanização (com todo um acúmulo de problemas nas grandes cidades) e o despovoamento do meio rural, além da tecnologia moderna, teriam provocado uma rapinagem da natureza (semelhante à exploração dos trabalhadores, sugere Quaini), criando uma segunda natureza que seria antes de tudo problemática, grávida dos atuais problemas ambientais na escala planetária. E qual seria, de acordo com o Autor, a solução para esse dilema? Ora, não é nada difícil de deduzir: logicamente que o final do capitalismo e a implantação do socialismo, da economia planificada. Nas suas palavras: Antes de mais nada fica claro que as contradições ecológicas e territoriais devem ser reconduzidas aos mais profundos antagonismos sociais do modo de produção capitalista e que para elas não pode haver superação real a não ser como superação das relações de produção e portanto de toda a organização social e territorial do capitalismo que com a objetividade

implacável de uma monstruosa segunda natureza contradiz tanto a natureza como o homem. É a conclusão a que chega Engels [que afirma que] “A questão da habitação poderá ser resolvida somente após mudanças sociais de tal alcance que permitam enfrentar a eliminação da antítese entre cidade e campo, que foi levada ao auge pela atual sociedade capitalista (...) A solução da questão da habitação não traz consigo a solução da questão social, mas, ao contrário, somente a solução da questão social, isto é, a abolição do modo de produção capitalista, tornará ao mesmo tempo possível a solução do problema da moradia” (Quaini, p.134-5). Como se vê, a velha e desgastada “solução” do tudo ou nada: ou abolimos o capitalismo (e aí, por um passe de mágica, o “socialismo” vai engendrar uma sociedade perfeita, sem desigualdades nem problemas a sério) ou nunca haverá um equacionamento para a escassez de habitação popular, para a poluição, para a situação das mulheres ou dos afrodescendentes, para os dilemas dos indígenas,

para

os

desequilíbrios

regionais,

para

o

aquecimento global ou para qualquer outro contratempo mais grave que surja no futuro. O problema é que essa visão intransigente e no limite totalitária – isto é, o “tudo ou nada”, a crítica radical a qualquer forma de “reformismo”, de conquistas democráticas ou avanços dentro do sistema, a ilusão de uma

mudança

total

implantada

por

um

partido

supostamente

representante

do

proletariado

ou

dos

trabalhadores ao assumir o poder – há tempos, muito antes da publicação do livro de Quaini, já fora desmentida pelos acontecimentos, pela história do século XX. E não deixa de ser intrigante, e preocupante, o absoluto silêncio de Quaini a respeito da enorme degradação do meio ambiente na antiga União Soviética, que ainda existia na época em que publicou seu livro, e nos demais países do socialismo real. Muitos

marxistas



haviam

denunciado

os

enormes

problemas ambientais no socialismo real – além de outros: opressão

das

mulheres,

de

minorias

étnicas

e

de

homossexuais, intransigência frente a qualquer forma de oposição ou de imprensa livre, enorme número de prisioneiros políticos etc. –, mas Quaini, aparentemente tão fiel

ao

malfadado

e



extinto

PCI

(que

conseguiu

desmoralizar a outrora poderosa esquerda na Itália, abrindo o caminho para o neofascismo à la Berlusconi), usa a tática da avestruz, ou seja, ignora completamente essa questão que desafia a sua crença.  

ADENDO – o presente explica o passado? Quaini afirmou ter como ponto de partida o “método marxista” ou “regressivo”, segundo o qual o presente explica o passado e não o oposto. Entrementes podemos duvidar que ele de fato tenha feito uso desse procedimento e, a rigor, esse pretenso método, ao invés de ser uma descoberta genial como pretende Quaini e alguns outros, é apenas uma ideia polêmica baseada numa leitura

empobrecida da teoria da evolução. Longe de ser um procedimento científico pertinente, seja nas ciências naturais seja em especial na história e nas ciências sociais, esse pretenso método é de fato uma especulação ou, no limite, até mesmo uma fanfarronice intelectual típica de alguns autores do século XIX (mas não de Darwin) com a sua pretensão de alçar o evolucionismo a uma receita que explicaria tudo: o social, o econômico, o cultural, a história humana enfim. Sem dúvida que a teoria da evolução representou um enorme avanço nas ciências da natureza, uma verdadeira revolução científica de inegável importância e que até hoje, junto com a genética, constitui o alicerce mais vigoroso no qual se apoiam as ciências da vida. Mas a partir daí falar em “evolução” como algo necessariamente positivo e detectável na história das sociedades humanas – ou nas mudanças temporais de toda a humanidade – vai uma distância enorme. Evolução, a partir do século XIX, tanto no positivismo como no marxismo, se transformou numa noção que praticamente subsumiu a ideologia do progresso. Uma leitura empobrecida do darwinismo porque neste não há uma

teleologia,

ou

seja,

não

existe

uma

finalidade

predeterminada na evolução: ao contrário do que pensavam alguns no século XIX, inclusive Marx, ela não se constitui desde o início para gerar inevitavelmente o ser humano no futuro. Cabe recordar que Darwin sequer gostava da palavra evolução

exatamente

porque

sugeria

um

progresso

contínuo, e várias vezes enfatizou que existe o acaso na

seleção

natural,

que

fatores

fortuitos

sempre

desempenharam o seu papel. Marx, principalmente na obra Contribuição à crítica da economia política, e também em trechos dos Grundrisse, havia comentado que a chave para se compreender a anatomia

do

macaco

(que

supostamente,

pelo

entendimento do darwinismo vulgar do século XIX, seria nosso ancestral direto) estaria na anatomia do homem e não vice-versa. Existe aí, de forma subentendida, uma compreensão equivocada do evolucionismo, como se o macaco fosse nosso ancestral direto, o que não é o caso. Existem ancestrais em comum no processo evolutivo, e os primitivos hominídeos se assemelhavam bastante aos atuais primatas. O que Marx pretendia com essa metáfora era assinalar que o passado era uma espécie de ancestral do presente, ou seja, que as formações sociais mais recentes, como a sociedade moderna e capitalista do século XIX, por serem mais “evoluídas”, seriam a chave para se entender as anteriores e nunca o contrário. Uma ideia ou especulação polêmica, que nenhum biólogo competente vai levar a sério quando estuda a anatomia dos primatas ou dos demais seres vivos. Pois se aprende mais dissecando, observando suas partes e suas interações, seu funcionamento enfim, e não primordialmente comparando com a anatomia humana numa perspectiva falaciosa que esses seres vivos “primitivos” seriam espécies de “embriões” – ou o “passado biológico” – do ser humano. Além disso, há neste assunto –

isto é, numa possível comparação da anatomia de duas espécies biológicas distintas – uma via de mão dupla, pois também se pode aprender algo sobre a anatomia ou a fisiologia do ser humano estudando a dos macacos ou eventualmente a de outros seres vivos. Mas o pior mesmo é trazer esta metáfora para o estudo das sociedades humanas, como se nestas existisse uma evolução semelhante à do mundo biológico (entendida, ademais, de forma mecanicista), algo que resulta numa compreensão inadequada e anacrônica do social-histórico. Com esse procedimento inevitavelmente se incide em explicações teleológicas ou finalísticas, que por sinal existem efetivamente na obra de Marx. Seria como se, a partir do capitalismo, pudéssemos entender de fato a “essência” do passado, por exemplo, da Idade Média ou da Antiguidade clássica, como se estas épocas fossem apenas espécies de “embriões” ou avatares que inexoravelmente estariam

preparando

ou

incubando

o

capitalismo,

a

sociedade moderna. Nenhum historiador sério, nem mesmo sendo ou tendo sido marxista – tais como, por exemplo, Jean-Pierre Vernant ou Moses Finley, estudiosos da Grécia e de Roma da antiguidade, ou Jacques Le Goff, especialista na Idade Média – vai adotar esse viés que, no fundo, tão somente descaracteriza a realidade desses tempos, transformandoos em simples “preparatórios” para o que veio depois. Afinal de contas, não é verdade que o futuro esteja predestinado no presente (ou no passado) como o frango num ovo de

galinha. Uma época sempre contém inúmeras possibilidades ou opções, e nunca uma só. A consecução desta ou daquela alternativa depende de múltiplos fatores (inclusive da indeterminação, isto é, do acaso ou das contingências) – principalmente das ações dos personagens ou dos atores fundamentais, além evidentemente dos chamados “fatores objetivos” (economia, cultura, relações sociais) –, não sendo nunca

algo



predeterminado

por

uma

lógica

inquebrantável qualquer. Com esse “método regressivo” proposto por Colletti e Quaini – que de fato eles encontraram em Marx, não obstante ser também possível extrair desse clássico, lendo outras obras, principalmente O 18 Brumário de Luis Bonaparte, propostas metodológicas bem diferentes – poderíamos afirmar, para mencionar apenas um exemplo, que o idioma português é a chave para entendermos o latim e não o inverso. Um despautério, pois sem dúvida que o oposto é mais apropriado: é mais fácil explicar o português a partir do latim do que o contrário. É

evidente

que

sempre

cabem

comparações

ou

analogias entre épocas ou realidades distintas, que muitas vezes ajudam a compreender seja o passado seja o presente. O historiador Paul VEYNE (Acreditavam os gregos em seus mitos? Editora Brasiliense, 1984), por exemplo, ao tentar responder à questão contida no título de seu livro, fez comparações com o presente: acreditavam sim, e ao mesmo tempo duvidavam (os mais perspicazes ou cultos em geral eram céticos, pois foi exatamente um filósofo

grego da época que proclamou que foram os homens que inventaram Deus, ou as divindades, e não aquele quem criou a humanidade e o mundo), da mesma forma que uma grande parte da população atual acredita (mais ou menos, em geral sem muito fanatismo, pelo menos no que toca à parcela da população letrada e com maior escolaridade que de alguma maneira professa essas crenças) nos nossos mitos: na existência de Jesus com seus milagres, no céu e no inferno, nas revelações pretensamente divinas contidas em livros como a Bíblia ou o Alcorão, no fato de que foi Deus ou algum santo que salvou (ou não) alguns de um naufrágio ou de um desastre aéreo etc. Não

pretendemos

com

essa

menção

resumir

o

excelente livro de Veyne, que contém muitos outros raciocínios relevantes para o tema; apenas mostramos que analogias às vezes ajudam a compreender, embora sempre parcialmente, uma questão complexa. Mas isso não é usar o “método regressivo” e tampouco assegurar, como fez Quaini, que “o único real é o presente”. É apenas o uso de analogias, de um método comparativo (que não implica, necessariamente, em privilegiar o presente; por sinal, nesse estudo de Veyne o importante mesmo era o passado e este não foi enxergado como “embrião” do presente), que sempre foi e continua sendo praticado na história e nas ciências sociais em geral. Só que essas comparações ou analogias nunca esgotam um tema. Elas são apenas um recurso em geral provisório para entender melhor algo que,

no fundo, deve sempre ser explicado com rigor nas suas especificidades, na sua natureza particular e original. Neste livro resenhado, Quaini realmente aplicou esse método anunciado? Acreditamos que não. Mesmo talvez sem o perceber, ele fez o contrário, procurou explicar o presente – a atual crise ecológica, além da crise da geografia – pelo passado, pelas observações de Marx e Engels a respeito das contradições do capitalismo de seu tempo, do século XIX. Ainda bem que procedeu dessa forma, pois seguir à risca essa especulação evolucionista que denominou “método regressivo” seria praticamente o mesmo

que

pretender

explicar

o

latim

a

partir

do

português! Essa profissão de fé no “método regressivo”, que aparece no início do livro, na realidade não indica o procedimento adotado daí em diante por Quaini, que em última instância foi, como já assinalamos, o de apenas pinçar em obras de Marx e de Engels trechos que supostamente explicariam a atual crise ambiental. Quanto à supramencionada proclamação que em tese fundamenta esse método, segundo a qual “faço história do passado partindo do presente como sendo o único real”, trata-se de outra bazófia. Como se o presente (que por definição sempre é um instante provisório e fugidio, que num piscar de olhos se transforma em passado) fosse mais real – Quaini chega a dizer o único real – que o passado para o

investigador.

Uma

fantasia,

uma

quimera

que

se

fundamenta num ideal de cientificidade segundo o qual a teoria sempre parte da observação in loco, como se o

presente histórico fosse algo observável com a mesma objetividade que encontramos nas ciências da natureza. Não por acaso François Châtelet denominou o século XIX de “século do positivismo”, cujos ecos ressoam até hoje nos escritos de marxistas como Massimo Quaini.    

 

Resenha crítica do livro Introdução à geografia, de Nelson Werneck Sodré, Editora Vozes, 197627 Causou certa perplexidade nos meios geográficos a publicação, em 1976, do livro Introdução à Geografia, de Nelson Werneck Sodré. O autor não era visto como um estudioso da geografia, embora fosse conhecido e até admirado – tendo-se em vista que vivíamos em plena ditadura militar – por uma expressiva parcela da comunidade geográfica brasileira como um historiador, marxista e ao mesmo tempo militar da reserva. Apesar de ignorado pela academia, o livro foi bem aceito pela parcela mais crítica dos estudantes de geografia (de graduação e de pós-graduação) e dos professores do ensino fundamental e médio, que viram nele mais um aliado na denúncia do tradicionalismo e principalmente do comprometimento da ciência geográfica dominante na época com a mentalidade tecnocrática e com a denegação dos problemas sociais e ambientais, tidos como “não geográficos”. É exatamente a conjuntura dessa década, tanto no exterior (a guerra fria) como principalmente no Brasil, que ajuda a explicar esse repentino interesse de Werneck Sodré pela geografia. O autor via na ciência antes de tudo uma forma de militância, e escrever sobre a geografia naquele momento, a nosso ver, significou para ele duas frentes de luta: por um lado, a possibilidade de denunciar certo viés tecnicista e até mesmo oportunista, no fundo um arremedo do que ocorria nos Estados Unidos, que predominava em boa parte da geografia brasileira; por outro, sem dúvida que

mais importante para o autor, foi uma maneira que encontrou para criticar, mesmo que de forma disfarçada ou indireta, o pensamento tecnocrático do governo federal e em especial a geopolítica dos militares. Cabe lembrar que de 1974 a 1979, o general Ernesto Geisel era o Presidente da República, assessorado de forma íntima pelo estrategista Golbery de Couto e Silva, famoso por suas publicações de geopolítica. Com essa obra, usando a geografia como pretexto, Werneck Sodré engendrou uma crítica dissimulada à geopolítica de Golbery, que tanta influência exerceu no governo Castelo Branco e depois no governo Geisel (e mais tarde também no governo Figueiredo). Uma crítica indireta, através da geografia, porque a publicação de um livro que desancasse aquele pensamento geopolítico brasileiro nos anos 1970, além do mais escrito por um marxista (e ex-militar!), provavelmente seria censurada e implicaria até mesmo no risco de prisão e tortura. Ademais, nas décadas anteriores, o autor havia mantido certo contato com a geografia de humanistas como Léo Waibel, Pierre Monbeig e outros, que a encaravam como uma disciplina indissociavelmente ligada à história, uma ciência social que estuda a natureza e o espaço onde a humanidade vive e no qual produz modificações. E toda aquela rica herança era ignorada ou até desprezada naqueles fatídicos anos 1970, em especial nas duas principais instituições cariocas de produção geográfica: a UFRJ e o IBGE. Na cidade onde Werneck Sodré morava e na

qual atuava, o Rio de Janeiro, a geografia havia se tornado numa técnica de construção de “modelos” formais (alicerçados na matemática das matrizes) e visivelmente ahistóricos, que nada traziam de novo em relação ao conhecimento da realidade espacial, do espaço geográfico. Havia uma expansão, nas universidades brasileiras (com raras exceções), de uma geografia denominada quantitativa e capitaneada principalmente pela Universidade de Chicago, na qual vários geógrafos do IBGE e da UFRJ foram assistir a cursos de especialização ou de pós-graduação. Em grande parte das universidades brasileiras, os departamentos de geografia saíram das faculdades de filosofia, onde nasceram, e procuraram se integrar nas chamadas “geociências”, numa patética tentativa de assumir um viés pragmático – e tecnocrático – “mais respeitável”, mais voltado para um (pretenso) “mercado de trabalho não tradicional”. A palavra de ordem nos cursos superiores de Geografia era a de preparar “técnicos” para o planejamento (regional, urbano, setorial), desvalorizando completamente a formação de professores, de intelectuais críticos e do próprio ensino em geral, que afinal de contas foram os grandes impulsionadores da expansão dos cursos de geografia nas universidades europeias – e por extensão no resto do mundo – no século XIX e na primeira metade do XX. Quando a profissão de geógrafo foi reconhecida no Brasil, exatamente nesses anos 1970, ela foi sintomaticamente abrigada na instituição CREA, junto com os engenheiros, arquitetos e agrônomos!

Desnecessário enfatizar que tudo isso implicava numa enorme perda de criticidade, numa omissão dos problemas sociais e ambientais, num abandono de toda uma tradição epistemológica (em especial kantiana) que sempre havia enfatizado a contextualização (principalmente histórica) e até mesmo a discussão sobre o contingente e o livre arbítrio humano. Logo no prefácio desse livro, Werneck Sodré evidencia a sua aversão pela geografia brasileira hegemônica nos anos 70: A Geografia no Brasil, na realidade, apresenta uns poucos valores individuais, na maior parte remanescentes ainda daquele período melhor [isto é, o período dos “grandes mestres” como Waibel e Monbeig, que o autor havia elogiado anteriormente]”. Ele complementa essa crítica com o seguinte: “O praticismo empresarial pode oferecer resultados parciais apreciáveis, mas oculta a essência dos fenômenos e processos, além de importar, quase sempre, na exploração predatória dos recursos naturais(...) Uma Geografia econômica meramente descritiva e rica em dados estatísticos pode, na realidade, esconder mais do que revela. Pode, sem a menor dúvida, nada ensinar. (SODRÉ, 1976, pp. 9-11). Werneck Sodré deixa de lado a Geografia Física, vista por ele como plena de “inovações técnicas, mas anárquica” (p.9), principalmente porque ela não teria incorporado a dialética e dessa forma, a seu ver, “não seria científica”

(sic!). Ele se concentra na Geografia Humana, em especial no que chama de “falsidades ideológicas” (pp.119-29), fazendo breve um percurso pela história da geografia, pelo “determinismo geográfico” e principalmente pela geopolítica. No capítulo sobre “a formação de Geografia” (pp.1336), Sodré advoga a questionável tese febvriana (originária de Lucien Febvre na obra La Terre et l’evolution humaine, de 1922) segundo a qual a geografia teria surgido como – e sempre teria sido – uma espécie de “auxiliar da história”. Mas agora – isto é, nos anos 1960 e 70 –, argumenta Sodré, ela estaria fazendo o oposto, estaria ajudando a “retardar ou impedir o desenvolvimento da história” (p.30). E no capítulo sobre o “determinismo geográfico” (pp.37-53), o autor cita uma série de afirmativas, todas descontextualizadas,

de

autores

que

teriam

sido

deterministas: Bodin, Montesquieu, Tocqueville, Michelet, Buckle, Silvio Romero e, logicamente, Ratzel. Aqui, ele se fundamentou principalmente em Plékhanov (“As questões fundamentais do Marxismo”) e em Lucien Febvre, um amigo e ex-aluno de Vidal de La Blache e que, na realidade, nessa sua obra de 1922 foi o criador desse mito sobre a existência de

uma

“escola

geográfica

determinista

alemã

ou

ratzeliana” em contraponto à “escola possibilista francesa ou lablacheana”28. No capítulo sobre “A Geopolítica” (pp.54-71), o mais importante do livro, Werneck Sodré é impiedoso:

Se

o

determinismo

é

um

dos

traços

mais

característicos da Geografia da época do Imperialismo, a Geopolítica assinala a deformação levada à monstruosidade - é a Geografia do Fascismo. Desde que Ratzel lançara as bases do determinismo, abre-se à Geografia dois caminhos: o científico e o ideológico. A Geopolítica representa a culminância da trilha ideológica. (p.54)). Reproduzindo trechos de alguns autores geopolíticos clássicos – Rudolf Kjellén, Otto Maul, Arthur Dix, Halford MacKinder

e

Karl

Haushofer,

todos

eles

amplamente

utilizados pela geopolítica brasileira e por Golbery do Couto e Silva (que, no entanto, apesar de ser o principal alvo visado, nunca é citado neste livro) –, Sodré procura mostrar que suas ideias nada mais seriam que um subproduto do “determinismo geográfico” de Ratzel, a partir daí chegando à seguinte conclusão: É como a definiu Pierre George: “A pior das caricaturas da Geografia aplicada na primeira metade do século XX foi a Geopolítica, justificando autoritariamente qualquer reivindicação territorial, qualquer pilhagem, por pseudo-argumentos científicos”. (p.70). Nesse seguinte trecho da obra, podemos perceber qual é de fato o alvo que o autor quer atingir com essa apreciação da Geopolítica: A Geopolítica, que passara por um transitório eclipse com a derrota nazifascista, ganhou corpo novamente com a chamada ‘Guerra Fria’, definindo claramente

seu conteúdo ideológico. Pela sua natureza e pelos seus propósitos, deveria acolher-se particularmente nos Estados Unidos e, em proporções mais reduzidas, nos países dependentes dos Estados Unidos. Trata-se, nesta nova fantasia carnavalesca, de estabelecer a naturalidade e até a necessidade da hegemonia mundial de uma grande potência, capaz de dar segurança aos povos seus tutelados e servidores, e de assegurar neles a vigência ou a continuidade de regimes políticos autoritários, apresentados como preservadores da ‘civilização ocidental e cristã’. (...) Trata-se, como se vê, de pessoas com as melhores intenções, tal como os atuais futurólogos, profetas de catástrofes e juízes de países que condenam à servidão perpétua, gordos, pretensiosos e ignorantes. (p.66-7). Nessa longa citação podemos perceber a intenção de desancar dois autores importantes para o regime militar da época: o general Golbery do Couto e Silva e o futurólogo Herman Khan, embora nenhum deles seja explicitamente citado. Golbery, cujo livro Geopolítica do Brasil (Editora José Olympio, 1967) era uma referência sobre o assunto no Brasil (e uma das obras máximas dos intelectuais orgânicos do regime militar), entre outras coisas advogava que o Brasil deveria se alinhar à “civilização Ocidental e Cristã”, liderado pelos Estados Unidos, contra o “mundo comunista” capitaneado pela então União Soviética. E Herman Kahn, que se vangloriava publicamente pelo seu elevado QI (145,

como ele dizia) e pela sua obesidade (165 kg), estava muito em voga na época por ter publicado um estudo sobre O mundo em 2000 (em coautoria com A. J. Wiener, Edições Melhoramentos,

1967),

onde

entre

outras

previsões,

especulava que os países desenvolvidos como os Estados Unidos iriam crescer até o final do século em média mais do que os países “em desenvolvimento”, como o Brasil, a Índia ou a China29, além do instituto Hudson, para o qual Kahn trabalhava (ou melhor, dirigia), ter elaborado mirabolantes planos para a Amazônia, que evidentemente ficaram somente no papel embora tenham irritado profundamente a intelectualidade brasileira da época, tanto a de esquerda como a de direita. No último capítulo do livro, “as falsidades ideológicas” (pp.119-29), Werneck Sodré polemiza com determinadas ideologias que seriam constantemente reproduzidas pela geografia: o racismo, o determinismo novamente (desta vez en passant) e principalmente a “explosão demográfica”. Ao repudiar o racismo, Sodré cita frases ou ideias de dois intelectuais brasileiros – estranhamente, nenhum deles geógrafo – que teriam propagado ideologias racistas: Euclides da Cunha e Paulo Prado. O principal argumento que ele usa para envolver a geografia nessa trama é o seguinte: “Ora, se a Geografia não impugnou tal falsidade - ou por acolhê-la ou por colocar-se em omissão - está contribuindo para endossá-la. E isso em detrimento, evidentemente, dos interesses populares” (p.121).

Com isso constatamos mais uma vez que na verdade Sodré escreveu um livro de polêmica, de confronto ideológico, procurando se contrapor a algumas noções bem vistas pelo regime militar, usando a geografia no título de sua obra mais como uma forma de evitar uma possível censura, como uma espécie de dissimulação de sua real intenção, que na época era vista como subversiva. Ipso facto, este não é um livro sobre a geografia, ou mesmo de debates dentro da geografia, como o título poderia sugerir. É, antes de tudo, um livro de polêmica ideológica a respeito de

alguns

temas

constantemente

abordados

(ou

negligenciados) pela imprensa brasileira nos anos 1970. Vejamos um outro trecho do livro. Ao abordar a “explosão demográfica”, tema em moda naqueles anos 1960 e 70, Sodré afirma que: A mais recente das falsidades ideológicas que utilizam a

geografia

como

veículo

está

relacionada

ao

problema da população(...) No arsenal ideológico, para explicar e justificar o atraso em que eram mantidas vastas extensões do globo - suas populações - pela expansão

colonial

e

pelo

Imperialismo,

foram

mobilizadas sucessiva ou simultaneamente várias teses: tais populações eram racialmente inferiores (...); eram condenadas pelo clima das regiões que habitavam; eram vítimas de ‘doenças tropicais’. A última no tempo, que tratamos agora, está formulada mais ou menos assim: tais populações são atrasadas e miseráveis porque são numerosas; daí a solução fácil:

controlar a natalidade, visando reduzir o número de indivíduos(...) A miséria não resultaria da exploração – a imperialista como a de classe –, mas da ‘explosão demográfica’. (pp.122-3). Em suma, esse é um livro datado e voltado para a polêmica das ideias, para uma crítica enviesada da ditadura militar e de sua dependência frente ao “imperialismo norteamericano”, no qual a geografia serviu mais como uma espécie de “porta de entrada acadêmica” para Werneck Sodré abordar temas candentes na época, políticos e, por isso, tidos então como insidiosos: a geopolítica dos militares brasileiros, em primeiro lugar, e também algumas noções constantemente veiculadas (ou então omitidas) pela mídia no início dos anos 1970, tais como aquelas do futurólogo Kahn, as visões da natureza (clima) ou da “explosão demográfica” como causas do subdesenvolvimento, o exame do papel hegemônico dos Estados Unidos na América Latina e em outras partes do mundo (basta lembrar da guerra do Vietnã, uma ferida ainda não cicatrizada em 1976, relembrada com frequência pelos diversos intérpretes e pela mídia). Não é o caso de ler essa obra – com base unicamente no seu título – com o ingênuo propósito de aprender algo sobre o que é a geografia, nem mesmo aquela hegemônica no Brasil nos anos 1960 e 70. Afinal, não foi esse de fato o objetivo do autor, que, de forma proposital, procurou escrever um trabalho militante, uma espécie de panfleto (no bom sentido da palavra) direcionado à esquerda brasileira

do período – e provavelmente também aos professores de história e geografia, com vistas a acrescentar novas polêmicas nas suas aulas –, e com isso intervir em algumas questões candentes que Werneck Sodré acreditava estarem sendo abordadas inadequadamente ou então excluídas do incipiente debate político nacional dos anos 1970.    

 

Resenha crítica do livro O Brasil – território e sociedade no início do século XXI, de Milton Santos e Maria Laura Silveira (editora Record, 2001).30 Esta obra é praticamente uma publicação póstuma, pois o importante geógrafo brasileiro Milton Santos faleceu exatamente em 2001. Foi o resultado de uma coautoria com Silveira, uma ex-orientanda de doutorado de Santos, e contou com a ajuda de inúmeros estagiários, que receberam bolsas de iniciação científica durante anos e fizeram levantamentos bibliográfico e de dados, além de resenhas de livros e teses, sendo que boa parte desse material foi incorporada no livro. Seu objetivo, como o próprio título sugere, é o de compreender geograficamente – isto é, por uma ótica espacial – o Brasil no início deste novo século. É o mais ambicioso de todos os trabalhos da espaciologia (nome que Santos sugeriu em seu livro Por uma Geografia Nova como substituto para geografia por delimitar com precisão seu objeto de estudos): os autores sugerem na introdução que ele já nasceu como um clássico comparável às obras de Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Florestan Fernandes (sic!). Todavia, esta obra ilustra com perfeição a incapacidade da espaciologia em produzir qualquer trabalho importante ou mesmo criativo. Existe nas 473 páginas do livro um amontoado de dados estatísticos, cartogramas e informações descritivas, que podem ser facilmente obtidos por qualquer pessoa em almanaques ou anuários especializados (inclusive na internet) – sobre a rede bancária no Brasil e sua localização no território, os

aeroportos, as redes de transportes, as refinarias de petróleo e os dutos, os shopping-centers, os telefones e computadores etc. –, mas nenhuma tese ou ideia nova a respeito do significado disso tudo, apenas a constante repetição,

em

cada

capítulo,

de

clichês

ou

frases

estereotipadas do seguinte tipo: “alguns espaços mandam” (o Sudeste, especialmente São Paulo) e outros “obedecem”, “o território é desigualmente apropriado”, “o lugar é continuamente extorquido” etc. Não existe qualquer análise dos sujeitos, dos atores ou protagonistas com seus projetos ou demandas, nem mesmo qualquer referência às lutas e conflitos ou aos projetos que se voltam para a (re)construção do espaço ou do território. É uma obra que lembra muito aqueles longos artigos tradicionais do IBGE, editados na Revista Brasileira de Geografia nos anos 1950, 60 e parte dos 70, sobre a atividade industrial, as cidades grandes e médias, os estabelecimentos agropecuários etc., nos quais nunca havia uma explicação geográfico-científica e sim um acúmulo de informações e dados estatísticos, sempre acompanhados de cartogramas que mostravam a distribuição do objeto estudado no território nacional. A única diferença é que este livro procurou “sintetizar”, ou melhor abordar na mesma obra todos aqueles temas – e alguns outros – que as publicações do IBGE enfocavam separadamente. Mas no fundo eles não estão integrados no livro e sim divididos em capítulos distintos nos quais sempre é repetida ad nauseam a retórica pseudocrítica de que o “território é apropriado

desigualmente”, que a “guerra fiscal é uma guerra de lugares” (e não de sujeitos sociais) e que existem “áreas que mandam” “subordinadas”.

(ou

exploram)

e

outras

que

são

Antes que alguma má-interpretação leve à conclusão que estamos negando que o território é “desigualmente apropriado” ou que existem regiões mais desenvolvidas e outras menos – pensando-se não somente em termos de localização de indústrias ou de shopping-centers e sim de padrão de vida dos habitantes (algo meio negligenciado no livro) –, gostaria de lembrar que essa é uma velha discussão das ciências sociais (desde pelo menos Marx e já abordada por geógrafos do passado, como Kropotkin, Reclus e outros) e que o pensamento crítico, em todas as suas vertentes, sempre reprochou essa interpretação conservadora de que uma região (ou lugar, ou mesmo país) explora outras. Isso porque essa ideia implica num fetiche do espaço, que passa a ser visto como um sujeito. Ela omite as relações sociais de dominação e faz o jogo dos dominantes ao espacializar ou reificar uma atividade inter-humana. O próprio Marx, autor que teoricamente serve de alicerce para esse tipo de raciocínio panfletário, citado várias vezes na obra (sempre com frases descontextualizadas), já afirmava que a exploração é essencialmente social e nunca espacial31. É lógico que ela se manifesta, se concretiza no espaço, mas é produto de relações sociais. Não é por acaso que as elites ou as oligarquias regionais dessas áreas consideradas atrasadas

se identificam plenamente com esse discurso pseudocrítico – do tipo, por exemplo, deste raciocínio simplista encontrável dezenas de vezes com ligeiras alterações no livro: “Se São Paulo, que é apenas um estado, possui 30 aeroportos – ou shopping-centers ou universidades –, por que o Piauí, que também é um estado, só possui dois?”. Existe aí uma entidade mitificada, o território dos estados,

que

acaba

sendo

mais

importante

que

a

quantidade de cidadãos. Em nenhum momento do livro se mostra que São Paulo tem cerca de 23% da população nacional e o Piauí apenas 1,5%, Roraima 0,2% e Tocantins 1,6%. Mas a todo momento se repete que São Paulo tem 61 shopping-centers (em 1999), o Rio de Janeiro 23 e em contrapartida

nos

estados

nordestinos

e

nortistas

os

shopping-centers são restritos a algumas capitais ou áreas metropolitanas32. Ou que na “região concentrada”33 existe 72% da rede bancária do país e uma agência bancária para cada 142,4 quilômetros quadrados, algo 126 vezes maior do que essa mesma densidade na região Norte34. Um disparate, pois qualquer estudante de ensino médio um pouco perspicaz poderá verificar facilmente na internet que essa “região concentrada” (o Sul mais o Sudeste), nessa mesma época dos dados dos autores, acumulava cerca de 65% da população e exatamente 76% do PIB brasileiro, o que evidencia que essas disparidades regionais (ou uma região “mandando” ou “explorando” as demais, como querem os autores) não eram tão pronunciadas quanto o livro sugere. Pode-se ainda constatar facilmente que, nesse

mesmo ano, a região Norte – ou “da Amazônia”, como preferem os autores – tinha somente 3,5% população nacional e uma extensão territorial gigantesca, o que torna óbvia essa densidade bem menor de agências bancárias por quilômetro quadrado. Existem sim desigualdades regionais – por sinal, perceptíveis e importantes – no Brasil, mas esse tipo de discurso que nivela todos os Estados como se fossem entidades (ou cidadãos) iguais e com os mesmos direitos (ou seja, se um deles tem 20 aeroportos, ou 60 shopping centers, os outros também deveriam ter), que substitui a análise

das

desigualdades

sociais

por

comparações

simplistas entre unidades da Federação, que em essência fetichiza os territórios estaduais e as regiões – as quais no fundo são uma ficção, uma construção dos políticos ou do investigador – nada revela de novo (pelo contrário, esconde muita coisa) e nada tem de crítico. Esse tipo de raciocínio é tão somente ideológico e no fundo

encobre

normalmente

a

dominação

acompanha

social

qualquer

autoritária

(que

situação

de

subdesenvolvimento) e cria um “inimigo” a ser combatido por todos (isto é, a “região mais desenvolvida”), igualando dominantes e dominados, as elites regionais e a imensa maioria da população. Não por acaso esse tipo de discurso conta com a total adesão das oligarquias regionais na medida

em

que

implica

na

reivindicação

de

mais

investimentos para a “região explorada”, mais verbas que no final das contas vão ser apropriadas por essa elite.

Observe-se ainda que existe um sujeito implícito nesse tipo de discurso – o Estado, naturalmente –, que seria o ator encarregado de corrigir, de cima para baixo, os desequilíbrios territoriais através de uma realocação dos seus gastos (que logicamente originam-se nos impostos pagos em especial pelos cidadãos das áreas mais ricas e populosas, os quais nunca são consultados ou sequer auscultados nesse raciocínio autoritário). Estes comentários que fazemos sobre a obra póstuma de Milton Santos demandam uma discussão mais detalhada sobre o que alguns geógrafos denominam fetiche do espaço35. Ou seja, o espaço visto não apenas como condição e expressão material das relações sociais, mas como um sujeito, um ator nos processos históricos. Trata-se de uma interpretação oriunda do marxismo-leninismo – acredito que a sua origem remonta ao livro de Lênin, Imperialismo, etapa superior do capitalismo, de 1917, que já examinamos criticamente num escrito anterior36. Cabe apenas recordar que esse livreto de Lênin foi escrito basicamente como contraponto à socialdemocracia de Kautsky e com o nítido propósito de legitimar a “tomada do poder” por um partido supostamente marxista e revolucionário num país considerado atrasado, a Rússia, que para Marx não era ainda, devido ao fraco desenvolvimento de suas forças produtivas – e, consequentemente, à reduzida proporção do proletariado na população total – um candidato a transitar do capitalismo ao socialismo.

Nesse livro, Lênin, mesmo sem o dizer explicitamente, contrariou as ideias de Marx – alguns marxista-leninistas dogmáticos dizem que “superou” ou “enriqueceu”, como se um intelectual no máximo mediano como Lênin pudesse ombrear com um pensador tão sagaz como Marx – sobre a exploração social. Ele indicou uma pretensa exploração entre Estados nacionais, ou seja, entre territórios nacionais diferenciados – os países desenvolvidos ou exploradores (na época potências coloniais) e os países periféricos ou explorados. A ideia de nações oprimidas (e não apenas classes exploradas) é forte nessa obra, bem como a crença – já ultrapassada pelos fatos – na impossibilidade do capitalismo prosseguir para além dessa fase, isto é, a fase do imperialismo. Num trecho do livro, Lênin assinala: Os

monopólios,

dominação

em

a

oligarquia,

detrimento

a da

tendência

à

liberdade,

a

exploração de um número cada vez maior de nações pequenas ou débeis por um punhado de nações mais ricas ou mais fortes: tudo isso deu origem a essas características distintivas do imperialismo, o que

nos

obriga

a

qualificá-lo

de

capitalismo

parasitário ou em estado de decomposição.37 Essa perspectiva contraria frontalmente os escritos de Marx, que afinal foi o forjador da ideia de exploração social alicerçada no trabalho vivo não pago, isto é, na mais-valia. Só existe exploração ou transferência de mais-valia entre pessoas, entre o trabalho e o capital, afirmou com clareza

Marx, e nunca entre regiões ou entre países. Em suas palavras: Já vimos que a taxa da mais-valia depende, em primeiro lugar, do grau de exploração da força de trabalho.

(...)

Outro

fator

importante

para

a

acumulação é o grau de produtividade do trabalho social. [Assim] um fiandeiro inglês e um chinês podem trabalhar o mesmo número de horas com a mesma intensidade. Apesar dessa igualdade, há uma enorme diferença entre o valor do produto semanal do inglês, que

trabalhou

com

uma

poderosa

máquina

automática, e o do chinês que trabalha com uma roda de fiar. No mesmo espaço de tempo em que um chinês fia uma libra-peso de algodão, o inglês consegue fiar várias centenas de libra-peso.”38 Fica implícito nessa citação que a Inglaterra era mais desenvolvida do que a China não devido a alguma transferência de riquezas da China para a Inglaterra, mas sim porque esta tinha maior produtividade do trabalho, resultante de uma tecnologia mais avançada – o que, para Marx, significava maior quantidade de mais-valia relativa e, portanto, uma maior exploração do trabalhador inglês em comparação com o chinês – e não o inverso. Para Marx, a Inglaterra era mais rica porque produzia internamente mais riquezas e também mais-valia – e isso mesmo com os operários ingleses trabalhando a mesma quantidade de horas por semana que os chineses, ou até mesmo com estes

últimos

trabalhando

bem

mais;



que

eles

produziriam menos valor devido ao menor desenvolvimento tecnológico, à menor produtividade do trabalho. Assim, para Marx a exploração do trabalho é um processo inter-humano, uma relação social e nunca uma relação inter-regional ou internacional. As pessoas, na verdade as classes – e não os espaços – é que são os sujeitos dos processos sociais e das relações no mundo do trabalho. É exatamente por esse motivo que a “revolução social”, para esse clássico, deveria necessariamente ocorrer primeiro

nas

regiões

mais

desenvolvidas

pela

ótica

capitalista (ou seja, com maior acumulação de capital, com tecnologia mais evoluída e, portanto, com maior exploração do trabalho). Afinal, de onde Santos retirou essa sua noção que algumas regiões “mandam” e outras “obedecem” ou que as primeiras exploram as segundas? Indiretamente foi de Lênin,

do

marxismo-leninismo

pela

via

de

autores

posteriores ao líder bolchevique. Como se sabe, Santos retornou ao Brasil no final dos anos 1970, após um exílio voluntário no exterior, e trouxe com ele, através de inúmeras publicações e cursos ou orientações de alunos, uma visão estruturalista influenciada pelo marxismo althusseriano (ou seja, de Louis Althusser e discípulos, tão em moda na Paris dos anos 1960 e primeira metade dos anos 1970). Sem dúvida que no Brasil, nos círculos mais enfronhados com as discussões marxistas ou pós-marxistas, já se havia superado essa leitura empobrecida do marxismo. Alguns intelectuais brasileiros tinham escrito ácidas críticas

ao althusserianismo (Giannotti, por exemplo, que era tido nos meios uspianos como o “mais proeminente marxista brasileiro”; hoje ele afirma ter superado essa sua fase da vida39); também o importante texto do historiador inglês Thompson, que evidenciou o stalinismo insidioso que existe na leitura althusseriana do marxismo, era já amplamente conhecido40. Mais ainda, nessa época já trabalhávamos na geografia brasileira

com

outros

autores,

críticos

embora

não

marxistas: Foucault, principalmente, como também com pós-marxistas como Lefort, Castoriadis, Habermas e outros, que Santos nunca admitiu no seu esquematismo teórico, provavelmente porque isso implicaria numa “implosão” do seu edifício conceitual fechado e alicerçado na crença de uma totalidade. Do althusserianismo, Santos incorporou a noção de totalidade enquanto formação socioespacial e o espaço como uma “instância” dessa sociedade total. Outra grande influência que sofreu e assimilou na sua obra foi da fase neomarxista de Henri Lefèbvre, por sinal um crítico de Althusser e um dos poucos marxistas (depois de Gramsci) que valorizou o espaço na análise do capitalismo. Lefèbvre, nos seus trabalhos a partir do final dos anos 1960, não mais admitia uma “totalidade fechada” e esquematizada, mas isso não impediu que Santos pinçasse algumas ideias de suas obras para construir uma espaciologia fundamentada na formação socioespacial e na percepção do espaço como um sujeito. Enfim, Santos aproveitou uma ou outra coisa desse autor – como o conceito de “produção do espaço” e

principalmente a “luta de lugares”, de contradições “do espaço” e não apenas “no espaço” –, mas sempre encaixando todas essas noções no seu edifício estrutural, na sua leitura althusseriana de “instâncias” e de “formação socioespacial”. Uma leitura frágil e equivocada. Não porque denuncia as desigualdades regionais ou territoriais, algo trivial e teorizado com mais propriedade pelos filósofos e cientistas sociais desde pelo menos o século XIX. (E mesmo pelos economistas brasileiros, que desde no mínimo os anos 1950 já tinham feito diagnósticos das desigualdades regionais do país muito mais ricos e operacionais que o amontoado de informações díspares coletadas por Santos. Basta lembrar da obra de Celso Furtado de 1959, A operação Nordeste). Mas sim porque amiúde cai num discurso meramente prolixo e vazio, inclusive panfletário. Nem tem a sofisticação do marxismo, no qual supostamente se apoia, porque não consegue teorizar a transferência interespacial de valor, base da exploração. Fica apenas no que Marx denominava aparências:

tantos

aeroportos,

agências

bancárias

ou

shopping-centers aqui nesta região, outros tantos ali na outra

região,

um

número

menor

que,

dessa

forma,

“comprova uma apropriação desigual do espaço”, logo uma exploração. Simplista, não é? Mas infelizmente é isso mesmo. Enfim, um quiproquó sobre a hipotética exploração de alguns lugares sobre outros. Mas exploração é uma categoria social, inter-humana, que não pode existir entre

coisas, entre espaços. É por isso que grande parte dos pensadores marxistas ou neomarxistas, desde as últimas décadas, deixou de lado a noção leninista de “nações exploradas” – ou mesmo de classes exploradas para os casos dos desempregados, dos sem-teto, dos sem-terra etc. Pois para haver exploração, na perspectiva marxista, é necessário existir trabalho não pago, ou seja, geração de mais-valia. Ninguém é explorado porque não tem emprego, terra ou capital. Tampouco porque na sua localidade não tem um aeroporto ou um shopping-center. Por isso, a noção de excluídos tornou-se mais usada para se referir a essa situação – social, regional ou internacional – de pobreza ou de carência. A categoria exploração pressupõe trabalho, atividade produtiva, extração de riquezas, mais-valia enfim, enquanto a noção de exclusão significa apenas não estar incluído, estar à margem de alguma coisa – seja do trabalho, do acesso à escola ou à saúde gratuitas e/ou de boa qualidade, do acesso à moradia ou à terra etc. Essa percepção teórica mais sofisticada, porém, é algo que falta a Santos. Mas no fundo ele nunca se preocupou com isso, pois aparentemente o que objetivava era gerar impacto, ser promovido na mídia e na academia, publicar dezenas de livros em pouco tempo e ter uma trupe ao seu redor ajudando na sua promoção.    

 

Resenha crítica do livro As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano (editora Paz e Terra, 1994, 36ª edição)41 Publicado inicialmente em 1971, em espanhol, e tendo obtido um sucesso imediato (e tradução para inúmeros idiomas, inclusive o português), este livro do escritor uruguaio Galeano pretende, ao menos na aparência, fazer uma história da América Latina com ênfase na sua constante “exploração” pelas potências imperialistas. Na aparência porquê não se trata de fato de uma história: não existe qualquer seriedade acadêmica ou científica, qualquer preocupação com as fontes, sua checagem e o confronto com outras sobre o mesmo tópico, nem mesmo qualquer preocupação em dialogar (seja reproduzindo, adaptando, criticando ou modificando) com as ideias dos clássicos que teorizaram a respeito da exploração dos trabalhadores (Marx) ou das “nações oprimidas” (Lênin), e sequer a de ter uma interlocução a sério (sem meramente citar uma ou outra frase descontextualizada) com a ampla e boa bibliografia sobre a história da América Latina que já existia antes da redação desta obra, tais como os trabalhos de Manoel Bomfim, Celso Furtado, Raúl Prebish ou Tulio H. Donghi, para mencionar apenas alguns exemplos. É um livro mais de ficção, embora com frequência mencione – quase sempre numa leitura enviesada – determinados episódios verídicos e sempre escolhidos a dedo para comprovar a ideia central do livro. Mas é uma boa ficção jornalística, bem escrita e de leitura agradável,

acessível ao público letrado em geral (até mesmo a alunos do ensino básico, daí advindo boa parte da sua enorme popularidade, pois pode ser usada como leitura complementar nas disciplinas história e geografia quando se aborda a América Latina) e no fundo contendo humor ou episódios engraçados (ou melhor, que o autor torna engraçados pela sua experiência anterior como chargista e jornalista). A ideia central do livro surge logo nas primeiras linhas: Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que alguns países especializam-se em ganhar, e outro em que se especializaram em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta. Passaram os séculos, e a América Latina aperfeiçoou suas funções. (...) Mas a região continua trabalhando como um serviçal. Continua existindo a serviço de necessidades alheias, como fonte e reserva de petróleo e ferro, cobre e carne, frutas e café, matérias-primas e alimentos, destinados aos países ricos que ganham, consumindoos, muito mais do que a América Latina ganha produzindo-os. (...) É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento até nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano (...)

Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar têm sido sucessivamente determinados, de fora, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo. e a cadeia das dependências sucessivas torna-se infinita, tendo muito mais de dois elos, e por certo também incluindo, dentro da América Latina, a opressão dos países pequenos por seus vizinhos maiores e, dentro das fronteiras de cada país, a exploração que as grandes cidades e os portos exercem sobre suas fontes internas de víveres e mão-de-obra. (Galeano, pp. 5-6, grifos nossos). Essa longa citação foi necessária porque resume toda a essência, toda a argumentação do livro. O restante da obra é constituído tão somente por exemplificações variadas dessa ideia central: que a América Latina desde que foi “ocupada” (seria mais apropriado dizer construída, mas esta percepção é complexa demais para o raciocínio simplista de Galeano) pelos europeus no século XVI, sempre foi e continua sendo uma “vítima” da “exploração internacional”, da potência capitalista dominante neste ou naquele momento da história. Mais ainda: como uma reprodução mimética, devido às “elites” internas (nossa classe dominante e ao mesmo tempo dirigente) em conluio com os interesses externos, existiria também aqui uma exploração

das regiões mais pobres e baseadas em atividades primárias pelas mais ricas e industrializadas ou que têm por base atividades mercantis. Ou que até mesmo existiria, como o texto afirma explicitamente, uma exploração dos Estados-nações menores pelos maiores (o autor pensa aqui na “exploração” da Bolívia ou do Paraguai pelo Brasil ou pela Argentina). Sem dúvida que o leitor minimamente informado e culto logo deve ter percebido que se trata de uma simplificação grotesca e mecanicista de algumas proposições de Caio Prado Júnior, André Gunder Frank, Rodolfo Stavenhagen e alguns outros pensadores clássicos desta região do globo, que escreveram sobre o “sentido da colonização” (mas sem a menor pretensão que isso fosse algo

inexorável

e

válido

até

o

presente),

sobre

o

“desenvolvimento do subdesenvolvimento” (isto é, que o desenvolvimento dos países ou regiões ricas se faz, necessariamente, à custa da crescente pobreza nos países ou regiões pobres, um argumento inicialmente de Gunder Frank que ele próprio, após algum tempo, considerou superado ou inadequado) ou sobre o “colonialismo interno” (uma antiga tese, típica dos anos 1960, de R. Stavenhagen e Pablo G. Casanova, ambos do México, segundo a qual existiriam regiões exploradoras e exploradas dentro dos países subdesenvolvidos). A partir dessa ideia central, no fundo uma caricatura de algumas obras de pensadores críticos dos anos 1950 ou 60 – os quais, cabe realçar, em muitos casos reviram

posteriormente suas teses em confronto com uma nova bibliografia e principalmente com as mudanças na realidade –, Galeano prossegue nas duzentas e tantas páginas do seu livro com ilustrações ou exemplificações que comprovariam essa tese: citações descontextualizadas deste ou daquele autor, deste ou daquele político ou empresário, longas descrições de certos acontecimentos que, dependendo de como são contados, podem ser encaixados no seu ponto de vista etc. Em suma, essa ideia central é reproduzida ad nauseam no restante do livro de mil maneiras, através de pretensos exemplos históricos, de trechos da fala de políticos ou empresários

até

mesmo

norte-americanos

(dando

a

impressão que eles admitem estarem “explorando” a América Latina), de relatos de massacres perpetrados contra grupos indígenas ou contra toda a população paraguaia (numa reprodução do famoso mito que o Paraguai de Solano López era uma democracia cuja economia crescia enormemente a cada ano de forma independente das potências imperialistas e que estas incentivaram o Brasil, junto com a Argentina e o Uruguai, a arrasar essa “experiência de desenvolvimento autônomo”, exterminando de propósito a maior parte da população daquele país). Um amontoado de despautérios, mesmo que alguns episódios propalados no livro tenham de fato ocorrido – como, por exemplo, o extermínio de inúmeras sociedades indígenas –, embora sempre vistos de forma desvirtuada pela leitura de Galeano.

Essa interpretação maniqueísta da guerra do Paraguai, por exemplo, é totalmente simplória e até mesmo rasteira. Na verdade, segundo uma historiografia mais recente e crítica, essa guerra teve motivos e características bem diferentes dessa versão panfletária. O militar e ditador Francisco Solano López, que governava o Paraguai na época, está longe de ter sido um democrata ou mesmo um “herói

latino-americano”

como

quer

Galeano.

Ele

foi

nomeado presidente vitalício do Paraguai pelo seu pai, também presidente vitalício antes dele. Era um aliado declarado da França de Napoleão III (também uma potência imperialista, que inclusive tentou recolonizar o México impondo ao país um imperador títere, Maximiliano da Áustria), a quem tinha como modelo, e que inclusive lhe forneceu armas para a guerra. E na verdade foi López quem iniciou o conflito – pois antes dos embates tinha um exército mais numeroso e bem armado do que aqueles três países juntos – com vistas a anexar em seu território partes do sul do Brasil e do nordeste da Argentina. Uma boa parte da população paraguaia de fato morreu no conflito? Infelizmente sim, embora o seu número exato seja polêmico e sem nenhuma dúvida sensivelmente inferior ao anunciado por certa bibliografia jornalística e panfletária (no estilo de Júlio J. Chiavenato), cujas exageradas cifras – que chegam até a 97% de toda a população masculina do país! – Galeano menciona. Essa alta mortandade, pelo menos em parte, foi uma decorrência da obrigatoriedade, imposta por López, de crianças e adolescentes do sexo

masculino servirem às forças armadas por ocasião da guerra, sendo que os que se recusavam ou que recuavam quando estavam perdendo alguma batalha eram sumariamente fuzilados pelos próprios soldados paraguaios a mando do ditador42. Um conceituado historiador que reviu as causas dessa guerra assinalou que ela não foi instigada pela Inglaterra, como alguns – que Galeano repetiu, como sempre de forma caricatural – argumentaram, mas sim por contradições internas dos Estados sul-americanos envolvidos. Ela teria sido, na interpretação desse historiador43, uma guerra na qual não existiram “bandidos” nem “mocinhos” e cuja razão última foi a consolidação dos Estados nacionais na região platina, além de Solano López ter tido a pretensão de obter pela força das armas uma saída para o mar. Mas a idealização de López por Galeano chega ao ponto de ele, na pg. 134, censurar o poeta chileno Pablo Neruda, que escreveu o Canto General, uma homenagem aos povos latino-americanos, por não ter destacado Solano López como um dos eternos heróis desta região do globo! No final de contas essa tese simplista que constitui a essência do livro de Galeno tem como alicerce a seguinte lógica:

que

um

país

ou

uma

região

desenvolvida

(industrializada, com tecnologia moderna, com elevado padrão

ou

qualidade

de

vida,

com

boas

escolas

e

universidades, com um bom e acessível sistema de saúde etc.) sempre conseguiu esse feito graças não à produção interna, ao sobretrabalho como diria Marx, e sim à

exploração de outros países ou regiões, que por esse motivo são cada vez mais pobres e miseráveis. É a teoria da soma zero, de que numa transação ou numa interação qualquer sempre que alguém ganha ou obtém algum benefício é porque outro perdeu (ou vice-versa); em outras palavras, é a imagem de um hipotético bolo – toda a riqueza mundial ou global – que teria sempre um tamanho único e fixo e, dessa forma, se alguém está comendo um pedaço grande é porque os outros vão ter que sobreviver com migalhas. Galeano leva essa imagem equivocada aos extremos, afirmando que toda a história do século XX comprova que “as desigualdades internacionais crescem a cada ano” (p. 8), como também as regionais dentro dos países latinoamericanos, ou seja, que os países (ou regiões) pobres ficam

a

cada

ano

mais

pobres

enquanto

que

os

desenvolvidos ficam cada vez mais ricos. Está aqui, juntamente com a clareza do texto e a pretensão de ser uma história de fato (isto é, um estudo objetivo e racional, mesmo que não neutro), a explicação para a o enorme sucesso deste livro em especial entre certa parcela da intelectualidade latino-americana (e também, secundariamente, entre um ou outro “esquerdista” mais panfletário da Europa ou dos Estados Unidos). Afinal, ele consola

aqueles

que

se

sentem

subjugados

ou

inferiorizados, ele lhes explica que no fundo eles são “vítimas” e a culpa é sempre dos “outros”, daqueles que estão numa situação melhor. Tanto Freud como Nietzsche já haviam teorizado a respeito dessa “transferência da culpa”,

oriunda de “ressentimento” e de um “sentimento de inferioridade”. Galeano também fornece um caminho, ou melhor, uma fuga, que no fundo é comodista: a revolta pura e simples, a militância numa organização ou num partido “anti-imperialista”, como se o simples rompimento com os “outros”,

com

o

capitalismo

e

com

as

“potências

dominantes”, fosse a garantia para um futuro melhor. Em suma, o futuro nacional desejável, o desenvolvimento econômico-social sustentável não virá do esforço (educação e estudos, investimento em tecnologia, qualificação da força de trabalho), mas sim de uma simples atitude de rebeldia (que os adolescentes tanto adoram!), de um rompimento com os Estados Unidos e com o capitalismo, tal como teria ocorrido em Cuba, que é idealizada neste livro como o grande farol para a América Latina. É fácil perceber porque esta obra fez tanto sucesso nos anos 1970. Foi a principal década das ditaduras militares no Brasil, no Chile, na Argentina, no Uruguai e em alguns outros países da região. Ditaduras muitas vezes sangrentas, que contavam com o apoio no mínimo tácito dos Estados Unidos em função da guerra fria e do fato de elas supostamente estarem “combatendo o avanço do comunismo”. Ditaduras que reprimiam qualquer forma de pensamento crítico e propalavam um maniqueísmo que no fundo ajudou a promover ideias como essa de Galeano, também maniqueístas, mas com o sinal invertido. Era de fato uma época de maniqueísmos, em grande parte suscitados pela realidade da guerra fria e a pretensa

oposição dual e radical entre o capitalismo norte-americano versus o comunismo soviético. Confesso que nessa década cheguei a usar trechos deste livro de Galeano nas minhas aulas de geografia no ensino básico. Como boa parte dos jovens universitários na época, era um fiel simpatizante do governo Allende no Chile (quase tive um ataque cardíaco quando ouvi no rádio sobre o golpe militar de 1973!) e também um simpatizante (embora não tão fiel assim: já tinha as minhas dúvidas) do regime castrista em Cuba. Mas o mundo mudou, o clima intelectual também, novas e arejadas ideias e informações acabaram por se impor. E outras ainda surgirão no futuro, embora de maneira alguma, como apregoam alguns, a mera repetição do passado, das crenças infantis dos anos 1970. Afinal, as pessoas evoluem e todos, em algum (ou alguns) momento da

vida,

cometem

sérios

equívocos.

O

trabalho

do

intelectual é se manter atualizado, pesquisar, ser honesto e crescer intelectualmente, sem nunca fincar o pé numa posição apriorística e doutrinária, a qual em última instância é uma atitude intransigente e até mesmo comodista. Se é fácil entender o porquê do enorme sucesso deste livro nos anos 1970, em contrapartida é difícil compreender a razão pela qual isso perdura até hoje, quando toda a história dos anos 1980 em diante mostrou a sua natureza errônea. Sem dúvida que ideia central de Galeano tornou-se insustentável frente às evidências empíricas: a diminuição – e não o aumento – das desigualdades internacionais de uma forma geral (salvo exceções de alguns poucos países da

África subsaariana ou do sul da Ásia) nas últimas décadas, algo facilmente detectável pela análise de qualquer série anual de dados estatísticos confiáveis sobre PIB, renda per capita, expectativa de vida ou principalmente o IDH dos diversos países do mundo44; o enorme fracasso do “modelo cubano”, por um lado, e pelo outro o inegável sucesso de países que se desenvolveram não cortando os laços e sim se integrando mais no mercado mundial – o Japão, em primeiro

lugar,

depois

os

“tigres

asiáticos”

e

mais

recentemente a China e a Índia. Por sinal, todos os países que conheceram uma real melhoria no padrão de vida de suas populações nas últimas décadas foram economias que se integraram cada vez mais no mercado mundial, em outras palavras no capitalismo global, inclusive abrindo as portas para os investimentos estrangeiros e incrementando (e não diminuindo) suas relações

comerciais

com

“as

potências

capitalistas”,

notadamente com os Estados Unidos. Mas Galeano realmente não se importa com as evidências empíricas, ele apenas

seleciona

cuidadosamente

citações

que

aparentemente comprovam a sua ideia básica. Há uma visível escassez e insatisfação generalizadas em Cuba? Galeano não consegue ignorar esse contratempo e acaba “explicando” isso com a afirmação de que é exatamente porque no socialismo todos podem consumir de tudo que faltam produtos! É lógico que ele também culpa o “bloqueio” norte-americano a Cuba como sendo a principal causa dos problemas na ilha (Galeano, pp.51-5). Isso não

poderia faltar no seu livro. Mas não deixa de ser curioso o fato de que há uma enorme contradição nessa desculpa. Ou seja, quando os Estados Unidos estabelecem relações comerciais e financeiras com um país o estão “explorando”, mas quando eles cortam essas relações, deixando de investir capitais ou de comprar açúcar, como ocorreu com Cuba, isso passa a ser um “bloqueio” e a principal razão dos problemas dessa nação! Não é uma incoerência? A bem da verdade, esse famoso “bloqueio” (ou melhor, embargo) nada mais é que uma legislação norte-americana de 1962 que proíbe às firmas daquele país, e apenas a elas como é óbvio – já que nenhuma legislação nacional em todo o mundo poderia dizer o que as firmas de outros países podem ou não fazer nas suas relações com terceiros –, de terem relações com Cuba ou de investirem capitais na ilha (algo que há tempos, desde pelo menos os anos 1980, vem sendo driblado pela formação de joint ventures nas quais capitais norte-americanos se associam a grupos de outros países para estabelecerem negócios em Cuba ou aí construírem hotéis cinco estrelas, em algumas das melhores praias do país que, com o consentimento do governo de Fidel Castro, se tornam particulares e interditadas aos cubanos comuns; oficialmente, a origem do capital não é norte-americana). Em outras palavras, não é e nunca foi um bloqueio tal como o pretendido em 1806 por Napoleão Bonaparte, por exemplo, isto é, obstar os navios de circular num trecho do oceano ou de descarregar em tais ou quais portos. Isso quer

dizer que nunca houve qualquer impedimento – nem poderia haver, pois isso seria uma declaração de guerra a todos os demais Estados – para o comércio de Cuba com o restante do mundo. Não apenas com o “bloco soviético”, que durante algumas décadas sustentou o país, mas até mesmo com o Canadá, Espanha, França, México, e alguns poucos outros países capitalistas ou com economias de mercado, que nunca deixaram de manter relações comerciais com Cuba nem mesmo no auge da guerra fria, nos anos 1960 ou 70. Esse comércio não era e ainda não é muito intenso devido não a uma pretensa imposição desse “bloqueio”, mas sim pela fraqueza da economia cubana, que pouco tinha e ainda tem a oferecer (basicamente açúcar, charutos e rum), além de sua escassez em divisas para adquirir produtos desses países. A popularidade do livro de Galeano, mesmo não sendo mais tão intensa como nos anos 1970, ainda se mantém devido ao crescimento dos regimes autoritários e populistas na América Latina, que em muitos casos fazem uso de uma retórica anti-imperialista para se legitimarem e/ou se perpetuarem no poder. O ditador venezuelano Hugo Chávez, por exemplo, ajudou a promover o livro em janeiro de 2009, ao dar um exemplar do mesmo como presente ao recémempossado presidente norte-americano Barak Obama. Por sinal, foi por esse motivo que escrevi esta resenha crítica: vários jornalistas, ex-alunos e professores de geografia me mandaram e-mails solicitando meu parecer sobre o livro.

Sem isso não teria sequer relido esta obra que já considerava ultrapassada e até retrógrada. Situação paradoxal, pois este livro logrou um enorme sucesso em oposição às ditaduras dos anos 1970 e agora ele volta a adquirir uma renovada popularidade devido às novas ditaduras, que em alguns casos (como principalmente na Venezuela) são até mais repressivas que as que existiram naquela década! Galeano deveria abençoar as ditaduras por, de forma direta ou indireta, alçar o seu livro à categoria de best-seller, por sinal um dos maiores da América Latina durante várias décadas. Mas na verdade Chávez tem razão ao promover Galeano: este livro com a sua retórica pseudoradical infantil e panfletária (que até Chávez consegue entender!) lhe forneceu subsídios para implantar uma ditadura que se apresenta

como

revolucionária,

como

uma

oposição

intransigente ao imperialismo norte-americano visto como o grande culpado pelos males da América Latina. O livro de Galeano – embora não só ele, pois é parte de um enorme conjunto

de

jornalísticos

obras,

panfletos,

pretensamente

discursos

esquerdistas,

e

escritos

alguns

até

propagados por políticos corruptos que hoje compõem a elite econômica (digamos, os 0,01% mais ricos) da região, por pelegos de sindicatos ou por oligarcas de regiões atrasadas que veem nestas ideias uma forma de desviar a atenção do seu mandonismo, além de outros semelhantes –, mesmo sem talvez o pretender, contribui para manter o atraso na América Latina. Não é um livro que soma, que

incita

à

melhoria

empreendedorismo



(aos por

sinal,

estudos, algo

pesquisas,

repudiado

como

demoníaco no livro –, maior incentivo à produção e à geração

de

tecnologia,

e

por



afora,

fatores

que

indubitavelmente foram e são essenciais no arranque de países como China, Coréia do Sul, Cingapura e outros, que até os anos 1970 eram mais atrasados econômica e socialmente que o México, a Venezuela, o Brasil ou a Argentina), mas, pelo contrário, é uma obra que gera ressentimentos, que transmite uma mensagem segundo a qual

a

“solução”

para

todos

os

problemas

sociais,

econômicos, culturais ou espaciais está na luta, na ferrenha oposição ao capitalismo e aos Estados Unidos. Uma ilusão. Mas uma ilusão perigosa, que mais atrapalha do que ajuda na busca de alternativas para o futuro por parte das nações latino-americanas.  

 

Violência urbana no Brasil: causas, consequências e possíveis soluções45  

A violência urbana no Brasil – e também, mutatis mutandis, em grande parte da América Latina – vem se expandindo enormemente nas últimas décadas. Ela inclusive se tornou num dos principais agentes de redefinições espaciais nas grandes e médias cidades. No caso das migrações intraurbanas, por exemplo, a busca de emprego ou de melhores salários sempre foi a principal causa, mas ultimamente a procura por segurança vem assumindo uma importância cada vez maior na escolha do lugar de moradia. Isso sem falar na redefinição da organização das cidades e dos bairros, do trânsito e da própria vida cotidiana das pessoas, elementos cada vez mais influenciados pela violência e, consequentemente, pela busca de segurança. Desde o final dos anos 1970 que a violência urbana cresce no Brasil, inicialmente nas metrópoles (cidades com mais de 1 milhão de habitantes, segundo definição do IBGE), depois nas cidades grandes (com mais de 300 mil habitantes) e, mais recentemente, até mesmo nas cidades médias (entre 50 a 300 mil habitantes) e, em alguns casos, nas cidades pequenas – especialmente naquelas que ficam em zonas fronteiriças ou recebem grande número de turistas (estrangeiros ou domésticos) nas férias, nos fins de semana e nos feriados. Vamos exemplificar com uma das modalidades da violência urbana, os homicídios ou assassinatos. Calcula-se

que as taxas de homicídios dobrem no Brasil a cada 10 anos e esse tipo de crime já representa nos dias de hoje a principal causa da mortalidade de jovens de 16 a 24 anos de idade no país. As vítimas mais frequentes são jovens do sexo masculino, negros e pobres. Na cidade de São Paulo, por exemplo, havia em meados dos anos 1960 uma taxa de homicídios de 6 ocorrências por 100 mil habitantes, ao passo que no ano de 2005 esse índice já havia subido para 39 vítimas para cada grupo de 100 mil habitantes. No Rio de Janeiro essa taxa de homicídios situou-se na faixa dos 37,5 por 100 mil habitantes nesse mesmo ano. E as maiores taxas foram registradas nas cidades de Recife e Maceió, onde elas atingiram os 60 homicídios por 100 mil habitantes. No Brasil como um todo – isto é, a média nacional – essa taxa de homicídios situa-se na casa dos 23 por cada grupo de 100 mil habitantes, segundo dados de 2005. É uma média elevada, pois os países desenvolvidos via de regra assinalam por ano menos do que 1 homicídio por 100 mil habitantes (a única exceção nesse grupo são os Estados Unidos – uma nação com um verdadeiro culto ao individualismo violento e onde armas de fogo costumam ser vendidas à vontade para qualquer pessoa maior de idade com documentos – , que registram cerca de 4 homicídios por 100 mil habitantes). Essa taxa brasileira, de 23 por 100 mil, é uma das maiores taxas de homicídio do mundo, e a segunda da América Latina, só perdendo para a Colômbia. Um outro tipo de violência urbana na qual o Brasil se destaca no plano internacional são os sequestros em

geral. Durante o período de 1991 a 2005, o Brasil ficou em terceiro lugar no mundo quando ao número total de sequestros de pessoas, atrás somente da Colômbia e do México. Vejamos agora os furtos e roubos (de pessoas, residências, automóveis etc.). Considera-se como furto quando o assaltante (ou assaltantes) não faz uso da força física para levar os objetos furtados, e o roubo ocorre quando há o uso da força física (armas, ameaças, agressões). Em 2003 foram registrados 2.125.000 furtos e 856.000 roubos em todo o Brasil. Apesar de gigantesco, esse é um número ainda subestimado, bem inferior à realidade, pois considera apenas as ocorrências registradas em delegacias de polícia; e todos sabemos que na maior parte dos casos as firmas e principalmente as pessoas não registram o roubo e tampouco o furto: existe uma enorme descrença na eficiência policial, algo que por sinal não é gratuito. Em geral, nessas delegacias predomina um atendimento precário, um verdadeiro descaso para o público em geral – exceto para uma minoria (autoridades, pessoas famosas e/ou extremamente ricas, parentes e amigos dos delegados ou dos escrivães etc.) –, e as estatísticas a respeito dessas ocorrências registradas mostram que em geral somente 15% dos furtos e roubos que ocorrem no país são averiguados. Mas cabe esclarecer que averiguados ou investigados não significa necessariamente resolvidos ou equacionados; e em

metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, essa percentagem de ocorrências averiguadas cai para menos de 3% do total. Portanto, isso quer dizer que o número real de roubos e furtos no país é bem maior do que esse total de quase 3 milhões de ocorrências registradas somente no ano de 2003. Mesmo assim é um número impressionante, muito acima da média mundial e que cria uma péssima imagem do Brasil no exterior. Ele mostra que mais de 5% da população nacional foi furtada ou roubada num único ano: uma pessoa em cada 20, ou uma família em cada 4, admitindo-se uma média de 5 membros por família. Do ponto de vista espacial, os maiores cinturões de violência no Brasil localizam-se nas grandes cidades – principalmente

as

regiões

metropolitanas

–,

na

faixa

litorânea em geral (onde há uma maior concentração demográfica) e também em algumas zonas de fronteiras. Não tanto nos municípios mais pobres – concentrados no Norte e Nordeste –, como muitas vezes se imagina, mas principalmente em áreas de grande concentração demográfica (e de veículos, propriedades, renda) e também nas áreas fronteiriças com a Colômbia, com a Bolívia e com o Paraguai. E do ponto de vista social os maiores prejudicados são populações pobres – em alguns bairros periféricos, nas favelas ou habitações subnormais, e nas áreas centrais das metrópoles e grandes cidades. Isso porque o policiamento nessas áreas é bem mais precário do que em bairros ricos Nestes, a polícia se concentra mais, tem mais interesse em

proteger, além de muitas vezes contarem também com a presença de seguranças particulares pagos pela própria população local – seguranças que amiúde são integrados por policiais em seus dias ou períodos de folga. Ademais, nesses bairros ricos muitas vezes residem autoridades que mandam na polícia, além de maior pressão da mídia, dos meios de comunicações, que vão “cobrar” ações contra a criminalidade nesses bairros ou condomínios, noticiando com estardalhaço qualquer ocorrência policial que aí ocorra, ao contrário do que fazem com as zonas urbanas mais pobres, nas quais de forma preconceituosa consideram como “natural” esse tipo de ocorrência. Mas isso não significa que as taxas de violência sejam baixas nesses bairros ricos; pelo contrário, elas também são elevadas pelos padrões internacionais – embora em geral bem menores que as dos bairros populares – e muitas vezes são até mesmo escondidas ou omitidas pelo receio dos próprios moradores em divulgar uma imagem negativa do bairro ou do condomínio.   VIOLÊNCIA NO MUNDO em 2005: ALGUNS PAÍSES SELECIONADOS

QUADRO

COMPARATIVO

ENTRE

País

Taxa de homicídios por 100 mil habitantes

No total de presidiários

No de presidiários por 100 mil habitantes

Carros furtados/roubados por 100 mil veículos

Brasil

25

255.000

167

1.900

Colômbia

63

55.000

137

2.400

África do Sul

51

181.000

422

1.600

Rússia

19

845.000

575

s/d

México

14

175.000

178

1.060

Estados Unidos

4

2.078.580

737

490

Japão

0,1

70.000

55

390

Países Baixos

0,9

18.300

114

460

Noruega

0,7

2.950

73

165

  Fonte: Elaborada a partir de dados de Natiomaster.com. Disponível in: http://www.nationmaster.com/, acesso em 10 nov. 2006.    

Razões da violência urbana Por que o Brasil é considerado como um país violento?

E

por

que

essa

violência

urbana

vem

se

expandindo nas últimas décadas, pelo menos desde o final dos anos 1970? Um importante dado a se levar em consideração é que o Brasil se urbanizou de forma acelerada nas últimas décadas. A população urbana do país passou de 45% do total nacional em 1960 para 81,2% em 2000. E nesse período as grandes e médias cidades, em geral, cresceram a taxas bem maiores do que as pequenas. Foi uma urbanização frenética e desordenada, na qual alguns autores

visualizam

uma

“espoliação

urbana”

com

a

multiplicação de problemas urbanos, em especial a carência de moradias populares, a ocupação desordenada do solo (inclusive em áreas de riscos de desastres ambientais), a grave insuficiência de rede sanitária, de água encanada, de transporte coletivo, etc. Isso ocorreu especialmente nas regiões metropolitanas, que se expandiram e se

multiplicaram (isto é, novas destas regiões surgiram), como também nas grandes cidades e, aos poucos, começou também a se espalhar pelas médias e eventualmente algumas pequenas cidades do país. Além dos problemas urbanos já mencionados – escassez de moradias populares, de transportes coletivos, de rede de esgotos e água tratada e encanada, de policiamento – também podemos lembrar do trânsito cada vez mais congestionado e até caótico, que ocasiona a violência no trânsito, a necessidade de um número

cada

vez

maior

(e

sempre

insuficiente)

de

policiamento, a precariedade das escolas e dos hospitais e centros de saúde, salvo exceções destinadas a populações de elevadas rendas, a coleta e tratamento de resíduos sempre sofríveis e parciais etc. Isso tudo sem dúvida contribuiu para a expansão da violência urbana, mas a relação entre urbanização e violência não é simples. Existem sociedades que têm uma urbanização igual ou maior que o Brasil e nem por isso possuem os mesmos índices elevados de violência urbana. Singapura mesmo é um caso exemplar: 100% da sua população vive no meio urbano, numa imensa região metropolitana, mas lá as taxas de homicídios, furtos e roubos, acidentes de trânsito com vítimas etc., são das mais baixas do mundo. Também países como o Reino Unido, Suécia, Alemanha, Japão e outros, nos quais a imensa maioria de suas populações concentra-se no meio urbano, inclusive com a presença de enormes regiões metropolitanas, registram baixíssimos índices de violência

urbana. Mas nesses países não houve o tipo específico de urbanização (acelerada, “caótica” ou com uma lógica alicerçada na especulação imobiliária, com enorme carência de moradias populares e de infraestrutura em geral) que ocorreu no Brasil e em outros países latino-americanos. Por esse motivo, pode-se afirmar que este tipo de urbanização sem dúvida que contribuiu, mesmo não tendo sido a única causa e nem a principal, para a expansão recente (a partir, principalmente, do final dos anos 1970) da violência urbana no país. Há várias outras explicações para a violência em geral e para a violência urbana no Brasil e, sem nenhuma dúvida, esse problema é complexo e ocasionado por inúmeros fatores interligados. Cada uma das explicações, que resumiremos a seguir, possui algum elemento de verdade; na realidade, elas se complementam e nenhuma delas isoladamente consegue dar conta de todo o problema. Uma vertente explicativa afirma que a violência é algo que sempre acompanhou a nossa história desde a colonização com o uso da força de trabalho escrava. As pessoas humildes e trabalhadoras, principalmente escravos até o final do século XIX, não eram consideradas seres humanos plenos e os seus proprietários dispunham até mesmo do direito sobre as suas vidas. Mesmo os homens livres humildes eram frequentemente vítimas de violência e apropriação de suas pequenas propriedades. A vida humana – exceto a de uns poucos, a elite dominante – tinha pouco valor e com frequência as desavenças, inclusive entre a

população livre ou não escrava, eram resolvidas com o crime. Os mais ricos – que em geral eram grandes proprietários de terras – dispunham de jagunços ou pistoleiros para se proteger e para eliminar os seus desafetos. Esta explicação tem um fundo de verdade, mas é parcial e insuficiente para o nosso problema da crescente violência urbana na atualidade. Ela ajuda a entender o porquê a sociedade brasileira sempre foi marcada pela violência desde a colonização, principalmente no meio rural, mas não ajuda muito na compreensão da violência urbana e a sua expansão recente. Ela não explica o fato dessa violência urbana ter sido relativamente baixa até por volta de meados dos anos 1970 e somente a partir daí ter iniciado a escalada que temos assistido. Mas tem a sua validade principalmente por esclarecer determinados valores e comportamentos que ainda estão arraigados na sociedade brasileira e que também contribuem para a escalada da violência urbana: o preconceito étnico contra afrodescendentes e indígenas e seus descendentes, o machismo

e

os

estereótipos

sobre

a

mulher,

a

desvalorização dos trabalhadores em geral, especialmente os que recebem baixas remunerações, que portanto não seriam cidadãos com plenos direitos, uma mentalidade de sempre desconfiar das autoridades e se possível realizar linchamentos sumários para acusados de estupros, furtos ou roubos (os linchamentos em bairros periféricos de cidades brasileiras acontecem com frequência)

e uma

mentalidade patrimonialista por parte dos funcionários

públicos de altos escalões, o que – junto com a impunidade para crimes de colarinho branco – ajuda a explicar os elevados índices de corrupção, que muito colaboram para a violência e a criminalidade. Uma outra explicação enfatiza a nossa péssima distribuição

social

da

renda,

com

uma

minoria

extremamente rica e uma imensa maioria com baixíssimos rendimentos. Não há dúvida que existe algo de verdadeiro nessa proposição: a distribuição social da renda no Brasil que gradativamente piorou – ou seja, os ricos ficaram mais ricos e os pobres mais pobres – desde o final dos anos 1960 até pelo menos 1994, o que coincide mais ou menos com a expansão da violência urbana no país. Os 10% mais ricos da população

brasileira

dispunham

de

39,6%

da

Renda

Nacional em 1960 e já abocanhavam 47,6% desse total em 2000; e, pelo lado inverso, os 60% mais pobres da população dispunham de 23,4% dessa Renda Nacional em 1960 e apenas 18% em 2000. Apesar de alguma melhora a partir de 1994, o Brasil ainda tem uma das piores distribuições sociais da renda de todo o mundo. Nos países desenvolvidos, por exemplo, como também em alguns considerados emergentes como o Brasil (Índia, China, Taiwan, Malásia e outros), os 10% mais ricos da população dispõem de no máximo 28% da Renda Nacional, sendo que em geral os 60% mais pobres da população dispõem de 30% (no mínimo) até por volta de 43 ou 45% desse total (como na Hungria, Noruega, Japão e Belarus).

Os países com melhor distribuição social da renda via de regra têm baixos índices de criminalidade e, por outro lado, a gritante injustiça social que existe no Brasil gera um sentimento de revolta em muitas pessoas, que não conseguem aceitar essa enorme e visível desigualdade entre as pessoas. Visível porque se expressa até nas paisagens e no cotidiano das pessoas, na convivência lado a lado do luxuoso com o paupérrimo e nas telenovelas onde muitas vezes se mostra um modo de vida que a grande maioria da população pode almejar, mas em geral nunca terá condições de desfrutar. Esse, aliás, é um dos motivos pelos quais em sociedades ou povoados onde todos são relativamente pobres quase não há violência nem roubos ou furtos. A convivência com a injustiça é que gera um sentimento de revolta e não simplesmente a pobreza em si ou a má distribuição social da renda, desde que esta não seja gritante no cotidiano das pessoas. Em todo o caso, a relação entre injustiça social e violência urbana também não é simples e direta. Existem países com uma péssima distribuição social da renda e níveis de criminalidade em geral, inclusive a violência urbana, considerados baixos ou pelo menos sensivelmente inferiores aos do Brasil: Hong Kong, Chile, Costa do Marfim, Papua Nova Guiné e outros. Além disso, a relativa melhora nessa distribuição social da renda a partir de 1994, com uma pequena desconcentração, não implicou numa similar diminuição

dos

índices

de

violência

contrário, continuaram a aumentar.

urbana

que,

ao

Outros fatores explicativos da violência urbana amiúde apontados são a pobreza e principalmente o desemprego. Existem enormes “bolsões de pobreza” no Brasil,

localizados

notadamente

nas

periferias

das

metrópoles, em primeiro lugar, e no interior do Nordeste, em segundo lugar. São áreas onde em geral as populações dispõem de baixíssimos rendimentos, muitas vezes bem menor que um salário mínimo por família, algo que impossibilita uma vida digna e decente. E as taxas de desemprego subiram bastante no Brasil nos anos 1980 e 1990, e também no transcorrer do século XXI. Existem nos dias

atuais

mais

de

uma

dezena

de

milhões

de

desempregados no Brasil, concentrados principalmente nas grandes cidades e em especial nas metrópoles. Há uma correlação estatística entre aumento do desemprego e expansão da violência urbana, mas as relações causais entre esses dois fenômenos não são diretas ou mecânicas. Ou

seja,

outros

consideração:

a

fatores

têm

qualidade

e

que o

ser

alcance

levados do

em

seguro-

desemprego, da assistência social às famílias mais pobres, da justiça, do policiamento, do acesso à saúde ou à educação, etc. Muitos países com taxas de desemprego bastante superiores à brasileira – tais como Geórgia, Armênia, Espanha, Bahamas, Grécia, Chile e vários outros – possuem baixos índices de violência urbana, ou pelo menos bem inferiores aos do Brasil. E também países com uma percentagem bem maior de populações pobres – como em

grande parte da África, no Bangladesh, na Mongólia, na Índia etc. – registram taxas de criminalidade e de violência urbana sensivelmente menores que as do Brasil. Como já mencionamos, a pobreza e em especial o desemprego são fatores que indiretamente levam à violência – afinal de contas as pessoas têm que sobreviver de uma forma ou de outra –, mas isso depende muito de inúmeros outros fatores: os valores culturais da população, o seu grau de religiosidade (e o tipo de mensagem que a religião propaga, ou as religiões predominantes, que pode ser mais pacifista ou às vezes até belicista), a intensidade do segurodesemprego e da assistência social por parte do poder público (ou de algumas instituições ou ONGs privadas), etc. Costuma-se também mencionar, como explicações para as altas taxas de criminalidade e de violência urbana no Brasil, a corrupção em geral, a lentidão e a ineficiência da justiça, as péssimas prisões e a má qualidade do nosso sistema

policial.

Infelizmente,

todos

esses

fatores

mencionados são verídicos e de uma forma ou de outra cada

um

deles

contribui

para

os

altos

índices

de

criminalidade e de violência urbana. Vamos examiná-los. O Brasil é um país com alto grau de corrupção na vida política em geral (em todas as esferas: federal, estadual e municipal; e tanto no executivo como no legislativo), no sistema judiciário, nas forças policiais, nos órgãos de fiscalização, nas empresas em geral, etc. Esse alto grau de corrupção, é bom deixar claro, refere-se a uma comparação internacional, um índice de percepção da

corrupção nas instituições públicas e nas privadas por parte dos cidadãos em geral. Portanto, isso não quer dizer que a corrupção seja a regra geral, mas sim que ela é elevada pelos

padrões

internacionais.

A

organização

não

governamental Transparência Internacional, que todos os anos realiza um estudo comparativo entre centenas de países sobre como as pessoas vêm a corrupção na sua sociedade



necessidade

de

pagar

propina

para

se

conseguir ou agilizar algum serviço público que deveria ser gratuito, superfaturamento em obras públicas com o desvio de recursos para contas bancárias privadas, corrupção na polícia, no judiciário, na fiscalização de obras ou firmas, etc. – nos últimos anos deu a pontuação 35 para o Brasil, que ocupa a 106ª posição num ranking que abrange 180 países. Essa pontuação vai 0 a de 100, onde este número mais alto seria uma sociedade sem corrupção, e zero seria uma corrupção absoluta, em praticamente tudo; mas é claro que nenhum Estado atinge esses dois extremos. Em geral as sociedades

mais

democráticas

e

menos

corruptas



Finlândia, Dinamarca, Singapura, Nova Zelândia, Noruega, Suécia, etc. – possuem notas superiores a 8, embora nunca 10; e os países com maior grau de corrupção em todo o mundo – Somália, Síria, Venezuela, Sudão, Iraque, Chade e outros – possuem notas entre 9 e 20. Como a corrupção afeta a violência urbana? Em primeiro lugar pelo desvio de vultuosos recursos que poderiam ser gastos na prevenção do crime, na segurança das pessoas, na assistência social para famílias carentes ou

com o chefe ou principal provedor na prisão, etc. Em segundo lugar – e principalmente – pelo exemplo, que mostra às pessoas que as regras legais são relativas, elas valem para alguns, para a maioria, mas não para todos, pois sempre se dá um jeitinho para escapar das penalidades ou para

obter

vantagens

particulares

de

alguma

função

pública. Dessa forma, se uma boa parte daqueles que deveriam zelar pelo patrimônio público ou pela lei e a ordem – os políticos, os policiais, os juízes de diversas instâncias, os fiscais, etc. –, muitas vezes agem ilegalmente tirando proveito de seus cargos, beneficiando alguns e prejudicando a maioria sem recursos, então por que uma pessoa

comum,

principalmente

se

a

família

estiver

passando carências, deveria ser honesto? Esse é o recado, mesmo que implícito ou subentendido, que uma elevada taxa de corrupção transmite para a população em geral e em particular para os que se sentem injustiçados. Portanto, não há dúvida que um elevado e visível nível de corrupção, como o que efetivamente existe no Brasil (basta atentar para as notícias diárias nos jornais, na televisão ou nos bons sites noticiários da net), favorece a criminalidade. Os países com elevadíssimos índices de corrupção – Síria, Iraque, Nigéria, Bangladesh, Haiti, Angola, Quênia e outros semelhantes – são quase todos países com altas taxas de homicídio, de feminicídio, de roubos e furtos, de violência doméstica, etc. Só que, cabe repetir, embora importante esse não é o único fator a ser levado em conta. Até mesmo porque algumas raríssimas sociedades bastante

corruptas registram índices de criminalidade e violência relativamente baixos, embora com sérios prejuízos para a democracia e os direitos dos cidadãos: existe nelas um autoritarismo absoluto com o império de uma “lei do terror” – pena de morte para os criminosos, cortar a mão dos ladrões,

chicotear

pequenos

transgressores

em

praça

pública, julgamento sumário das pessoas sem um mínimo direito de defesa, etc. É evidente que esse não é o caminho ideal para se combater a violência; afinal ele também é violento e antes de tudo arbitrário, já que os pequenos ladrões e criminosos – além de inúmeros inocentes julgados apressadamente – é

que são penalizados e nunca os

grandes, aqueles que desviam milhões ou bilhões de dólares dos recursos públicos e com isso se tornam indiretamente responsáveis pela situação de pobreza, fome, subnutrição, ignorância etc., de uma boa parcela da sociedade. A excessiva lentidão e a má qualidade de nosso sistema judicial também possuem a sua parcela de responsabilidade (por sinal, importante) pelas altas taxas de criminalidade e de violência urbana. Os transgressores em geral se sentem mais confiantes quando a justiça é tardia e extremamente deficiente, quando impera um sentimento de impunidade, que poucos serão punidos pelos seus crimes, em geral apenas os mais humildes. Existe no país, sem dúvida, certa impunidade para a violência em geral e notadamente para as delitos praticadas por pessoas com recursos, que podem contratar um bom advogado que irá conseguir a sua libertação provisória e adiará o julgamento por vários anos, fazendo com que o crime caia no esquecimento, prescreva ou até que as evidências “se percam”, o que no final das contas resultará na impunidade,

isto é, na não punição. Sem contar que o noticiário do dia a dia nos mostra que ontem um juiz de um tribunal superior mandou soltar um conhecido e poderoso (com muitos recursos financeiros) traficante, mesmo com ele já tendo sido condenado ou com fortes evidências de criminalidade; hoje um diretor de presídio foi flagrado viajando junto com um presidiário poderoso com um helicóptero (ou jatinho particular) de propriedade deste; amanhã os congressistas ou os membros do STF vão novamente discutir a prisão em segunda instância (isto é, somente após o suspeito ter sido condenado primeiro por um tribunal e depois por um tribunal superior, o que no Brasil leva anos para ocorrer), sendo que a mídia informa que a maioria quer acabar com esse procedimento adiando a prisão mais ainda, para uma terceira ou quarta instâncias. E isso sabendo que que na quase totalidade dos países do mundo, inclusive nos mais democráticos e onde se procura resguardar ao máximo os direitos humanos, um condenado vai para a prisão logo a condenação em segunda instância ou até na primeira instância em alguns desses países. Mesmo assim boa parte dos congressistas ou de juízes do tribunal superior pensa que um acusado – na realidade, alguém com condições de ter um bom advogado e não todas as pessoas, principalmente aqueles sem recursos, que na verdade vão para a prisão às vezes antes mesmo da condenação na primeira instância – só deve ir para a prisão após se esgotarem todos os recursos, uma terceira ou quarta instâncias, o que na prática, na lentidão do sistema judiciário brasileiro, significa nunca. Outro agravante é que o sistema prisional em geral – os

presídios, as cadeias, e as unidades onde os menores de idade são encarcerados ou “reeducados” –, que na teoria deveria contribuir para recuperar os infratores, prepará-los para uma vida digna após o cumprimento da pena, na realidade, faz o oposto: esses locais são verdadeiras escolas

de criminalidade, nos quais ficam misturados pequenos delinquentes

com criminosos de alta periculosidade. São

instituições onde impera a violência e a corrupção, além do tratamento desigual (alguns poucos têm privilégios, com celas com ar condicionado e aparelho de TV, acesso a telefones celulares, eventualmente até podendo dar festas periódicas com prostitutas ou “convidadas”, etc.). Isso sem esquecer da violência dos guardas ou carcereiros, dos presos entre si e das organizações criminosas – tais como o CV (Comando Vermelho, que atua mais no Rio de Janeiro) ou o PCC (Primeiro Comando da Capital, que atua mais em São Paulo), além de várias outras semelhantes nas diversas partes do país –, que em geral nasceram nos presídios e neles não apenas agem, organizam e aliciam outros presos e funcionários, como muitas vezes têm na penitenciária o seu quartel general, sendo que daí eles controlam ações criminosas que ocorrem fora das prisões. O sistema prisional,

em

síntese,

fabrica

mais

criminosos

e

os

aperfeiçoa, sendo que como regra geral, ao invés de ser um obstáculo, ele é de fato um instrumento para o crime organizado. Além disso, devido à morosidade da justiça, existem milhares de prisioneiros cujas penas já foram cumpridas, muitas vezes há vários anos, e que mesmo assim continuam nas prisões; são indivíduos humildes e sem recursos para pagar um advogado e que já deveriam estar soltos, mas que não o foram devido a uma alegada falta de tempo de algum juiz, que pela lei deveria checar o processo e ordenar

a soltura. Isso tudo cria um sentimento de revolta – não apenas dos presos, mas também dos familiares e amigos – e contribui para que dificilmente um ex-presidiário volte a ter uma vida normal, inclusive porque, além de ter aprendido uma série de “macetes” na prisão (e de ter travado contato com organizações criminosas, nas quais muitas vezes se viu obrigado a entrar para ter uma permanência menos atormentada no cárcere ou em troca de proteção para sua família), ele vai sofrer toda uma carga de preconceitos dos empregadores em geral, que evitam a qualquer custo contratar um ex-detento. A estrutura e a forma de atuação das polícias também contribui para os elevados índices de criminalidade e violência urbana no Brasil. Além da corrupção – que leva à conivência de uma parte da polícia com o crime organizado, aos frequentes “sumiços” de drogas ou armas apreendidas em alguma batida, que mais tarde serão novamente encontrados nas mãos de criminosos, às “fugas” cada vez mais comuns de delinquentes que subornaram algum delegado ou carcereiro etc. –, existe a arbitrariedade policial e, principalmente, uma forma de atuação policial em geral obsoleta. Duas são as principais organizações policiais do país: a polícia

civil

diferenciadas

e

a

(no

militar; comando,

elas no

são

excessivamente

recrutamento

e

no

treinamento do pessoal, nas regras etc.) e no final das contas competem entre si e não têm qualquer tipo de cooperação séria e permanente. Na prática, elas disputam

com intensa rivalidade o mesmo espaço para cuidar da criminalidade, o que acaba prejudicando a eficiência. Em geral, elas também não utilizam princípios modernos de gestão e organização e possuem sérias deficiências técnicas na investigação e no policiamento preventivo. O que predomina é uma atuação tradicional e despótica, que é visivelmente

inadequada

para

enfrentar

a

crescente

violência urbana: trata-se em síntese de uma reação – e não prevenção – frente ao crime, ou melhor alguns poucos crimes selecionados, buscando-se o(s) suspeito(s), muitas vezes sob a influência de preconceitos – que atinge os afrodescendentes e os pobres em geral, sempre vistos não como vítimas e sim como possíveis infratores. E depois são utilizados métodos rudes e ilegítimos de interrogatório (espancamento,

tortura,

ameaças,

intimidação)

para

conseguir uma confissão de culpa. Não bastasse tudo isso, há ainda os crimes praticados pela polícia, principalmente os homicídios: todos os anos milhares de pessoas morrem em batidas policiais, em tiroteios – ou supostos tiroteios, pois às vezes armas são “plantadas” nas mãos dos executados para simular uma troca de tiros – entre a polícia e quadrilhas ou indivíduos, além da existência dos “justiceiros” (geralmente policiais) pagos por comerciantes para eliminar pessoas consideradas “indesejáveis” num determinado bairro. Por fim, cabe discutir qual seria a importância, para os altos índices de criminalidade e de violência urbana no Brasil, do tráfico de drogas, do chamado “crime

organizado” e da própria mídia (isto é, os meios de comunicações, em especial a televisão). Vamos começar pelo último fator apontado: o papel da mídia na expansão da violência urbana. Em primeiro lugar é evidente que, no geral, ela mais retrata o problema do que o incentiva. Em segundo lugar existem vários meios de comunicações bastante diferentes entre si não apenas pela sua natureza – jornais, revistas, televisão, rádio,

além

dos

novos

meios

possibilitados

pelos

smartphones ou pela internet –, mas também em função do público ao qual se destinam. Via de regra, é o público com baixíssimo nível de escolaridade que ouve ou assiste aqueles

programas

aterrorizantes

de

rádio

ou

principalmente de TV que se limitam a divulgar com teatralidade os atos criminosos de cada dia.

O problema,

contudo, talvez esteja mais nos fatos em si e também no baixo nível de escolaridade da maioria da população, do que na mídia, que no fundo está apenas interessada em audiência e patrocínio. Mas uma parte desta mídia, com vistas a esses objetivos, repercute e inclusive amplia as ações criminosas, mostrando (às vezes até os inventando) atos

cruéis

ou

roubos

espetaculares,

e

com

isso

transformando a violência urbana em algo “natural” e inexorável. Por outro lado, cabe ressaltar, existe também um importante papel de cobrança e fiscalização que a mídia – ou

pelo

menos

uma

parte

dela



exerce

no

país,

investigando determinados crimes “de colarinho branco”

(em geral corrupção) com muito mais competência do que a polícia e pressionando para que seus praticantes sejam responsabilizados. Não é nenhum exagero afirmar que grande parte dos crimes de corrupção no Brasil dos últimos anos e décadas, aqueles que levaram a prisões de pessoas poderosas (deputados, juízes, governadores, prefeitos e vereadores, policiais, grandes empresários etc.), somente foram seriamente investigados porque a imprensa se interessou por eles e os divulgou com destaque. Portanto, se por um lado uma parte dos meios de comunicações indiretamente contribui para a expansão da criminalidade e da violência – quando transforma esse problema em rotina do dia a dia, sugerindo que é sempre assim e que a punição quase não existe; e quando chega ao ponto de transformar em heróis alguns bandidos que têm boa aparência ou que vão garantir uma maior audiência para o programa etc. –, não há dúvida que uma outra parte bastante significativa exerce um papel oposto, ajudando com as suas denúncias e investigações na resolução de vários crimes e também contribuindo para uma maior consciência da população de que nenhum tipo de delito deve ser tolerado, seja ele praticado por quem for. Quanto ao chamado crime organizado, costuma-se incluir nesse rótulo determinadas quadrilhas especializadas que controlam uma área ou um setor (ou parte dele) durante anos ou décadas: o narcotráfico, os roubos de veículos

e

em

especial

de

caminhões

e

de

cargas

(eletrodomésticos, remédios e outros produtos de alto valor,

que serão vendidos a certas lojas ou farmácias, que no fundo

são

parceiras

do

crime),

a

adulteração

de

combustíveis no atacado, a falsificação de aposentadorias, os sequestros relâmpagos, o contrabando, os roubos a bancos, a carros-fortes, a caixas eletrônicos, etc. Mas no final das contas este tipo de crime organizado só existe porque há a cumplicidade com setores da polícia, da vida política e até do judiciário, ou seja, ele está ligado à corrupção e à degradação das instituições públicas. Sempre que se captura importantes membros de alguma dessas quadrilhas, logo se percebe que há policiais envolvidos – além de eventualmente políticos, juízes, advogados e empresários –, que protegem ou dão cobertura aos delinquentes, além de lhes fornecer armas e informações valiosas. O narcotráfico merece um comentário à parte. Ele é um dos principais responsáveis pela escalada da violência nas grandes e médias cidades do Brasil nos últimos anos, com destaque para o Rio de Janeiro e São Paulo. Considerase como narcotráfico a produção, o transporte e a comercialização de narcóticos ou drogas ilícitos (maconha, cocaína, crack, heroína, etc.), algo que movimenta no país dezenas de bilhões de reais a cada ano, envolve milhares de pessoas (sem considerar os consumidores) e direta ou indiretamente produz e agrava a violência e a criminalidade, seja na disputa entre quadrilhas de traficantes rivais, seja nos choques destas com a polícia ou seja nos crimes praticados por indivíduos sob o efeito dos narcóticos, que

agem sobre o sistema nervoso central das pessoas, afetando a sua percepção e muitas vezes gerando uma sensação de viver num mundo irreal ou cinematográfico. Até

por

volta

dos

anos

1980

o

Brasil

era,

principalmente, um corredor ou ponto de passagem das drogas (com exceção da maconha, a menos letal e também a única que em geral não vem do exterior), com destaque para a cocaína, proveniente da Colômbia, Bolívia e Peru. Essas drogas passavam pelos portos de Santos, Rio de Janeiro,

Belém

internacionais

e –

Paranaguá e

iam



ou

pelos

aeroportos

para

os

grandes

centros

consumidores: os Estados Unidos e a Europa Ocidental. Isso ainda ocorre, inclusive com maior intensidade, mas desde aquela citada década o Brasil também passou a ser um grande consumidor mundial de narcóticos. As quadrilhas nacionais – muitas vezes associadas a cartéis e máfias internacionais – passaram a recrutar milhares de pessoas para vender as drogas não apenas em alguns pontos tradicionais específicos, que existem há muito tempo, mas também nas redondezas das escolas, ao às vezes até dentro delas, em casas noturnas, em bailes e festas etc. Portanto, o consumo de drogas pesadas – cocaína

e

crack,

principalmente,

embora

mais

recentemente também a heroína, embora em quantidade bem menor devido ao seu elevado custo – passou a se expandir no Brasil desde os anos 1980, algo que contribuiu enormemente para agravar os índices de criminalidade e de violência urbana.

O narcotráfico produz o que alguns autores chamam de “Estado paralelo”, que seria o controle de uma área da cidade (uma favela ou um bairro pobre) por uma quadrilha, que aí manda mais do que o poder público. Recentemente a imprensa noticiou que até ministros e outras autoridades (além de estrangeiros, como no caso de comerciais feitos para a televisão ou para o lançamento de algum álbum musical)

tiveram

que

pedir

permissão

para

alguma

quadrilha de traficantes quando foram visitar ou realizar filmagens em determinadas favelas do Rio de Janeiro. As quadrilhas possuem todo esse poderio não apenas devido ao uso da violência contra os moradores, algo que evidentemente também realizam, mas principalmente pela miséria associada à falta de assistência por parte do Estado. Elas empregam milhares de pessoas, inclusive menores de idade, pagando mais do que o salário mínimo: são os “olheiros” (crianças ou adolescentes, ou às vezes adultos, que avisam quando alguma viatura policial – ou alguma quadrilha rival – começa a entrar na favela ou bairro, geralmente com a explosão de rojões ou com manobras nas pipas que empinam), os “soldados” (pessoas armadas que fazem a segurança, muitas vezes portando metralhadoras ou

submetralhadoras

modernas),

os

“vapores”

(que

atendem os clientes no local), os “aviões” (que levam as drogas para serem vendidas em locais distantes), os “gerentes” (que gerenciam uma parte do negócio), etc. Além

disso,

os

traficantes

promovem

obras

de

assistência social nesses bairros periféricos ou favelas que

controlam: pagamento do enterro para os mortos do local (exceto para os considerados traidores), realização de festas e bailes com entrada gratuita (muitas vezes com a presença de algum cantor famoso), ajuda na ligação clandestina de eletricidade, telefonia, gás, água encanada etc. É lógico que as empresas prestadoras desses serviços sabem disso, e os fiscais mais ainda, mas se omitem em função do poderio das quadrilhas que controlam esses lugares. Recentemente foi noticiado que uma organização criminosa no Rio de Janeiro chegou a cortar os cabos de TV por assinatura e os dutos de gás encanado de um bairro inteiro porque só admite que esses serviços somente cheguem a quem paga a essa organização (que realiza ligações clandestinas) e não para os que pagam às companhias que de fato e legalmente são responsáveis por esses serviços. Algumas vezes os traficantes roubam algum caminhão com alimentos e os distribuem gratuitamente nesses locais onde controlam. Em suma, bem ou mal eles ocupam e controlam um espaço que deveria ser protegido pelo poder público e, o que é mais importante, possuem quase que o monopólio da violência nesse

lugar,

podendo

assim

decretar

feriados

ou

o

fechamento de todo o comércio (quando morre algum traficante

importante),

expulsar

ou

eliminar

alguém

considerado indesejado, quando necessário se esconder na residência de qualquer morador do local etc. Consequências da violência urbana

A expansão da violência urbana tem produzido inúmeros efeitos sociais, econômicos e territoriais no Brasil. Em primeiro lugar ela custa rios de dinheiro, ela absorve muitos recursos que poderiam ser aplicados em setores mais produtivos ou mais úteis para o desenvolvimento econômico e social do país, como educação, saúde, aprimoramento profissional e infraestrutura (transportes, energia, água tratada e encanada, rede de esgotos etc.). Em 2003, por exemplo, um ex-governador do Estado do Rio de Janeiro declarou que quase 70% dos recursos financeiros dessa unidade da Federação são gastos com a segurança. Estimativas de 2005, feitas por pesquisadores do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostraram que as perdas do Brasil com a violência chegam anualmente a 6% do PIB. O valor é equivalente ao investido em educação. Esse montante foi calculado com base em diversas pesquisas sobre impactos econômicos diversos: o maior impacto são os custos intangíveis com homicídios, que chegam a 2,5% do PIB; os gastos com segurança privada e seguros chegam a 1,7% da riqueza nacional, enquanto gastos públicos com segurança e sistema prisional chegam, somados, a 1,6% do PIB.46 Nos países desenvolvidos, com exceção dos Estados Unidos, ou até em muitos países em desenvolvimento, esses gastos, normalmente são bem menores: 1,7% do PIB na Suíça, 2% na Áustria, no Japão e no Canadá, menos de 3% no Chile e na Argentina, 3,5% na China e na Itália, etc. E

o pior é que esse enorme dispêndio com a violência e a segurança pública produz pífios resultados, bem inferiores aos menores gastos por PIB ou por habitante despendidos por países com ótimos sistemas de segurança pública e baixíssimos índices de violência e criminalidade. Isso sem contar os prejuízos econômicos indiretos, pois a violência e a criminalidade em geral retraem os investimentos estrangeiros na economia nacional, reprimem também o turismo, uma importantíssima fonte internacional de rendimentos nos dias de hoje.

Calcula-se que o Brasil

deixe de receber de 8 a 10 milhões de turistas estrangeiros a cada ano devido ao receio da violência urbana. Essa quantidade de turistas poderia deixar cerca de 10 a 12 bilhões de dólares por ano na nossa economia. Basta lembrar que nos anos 1990 praticamente todos os países da América Latina – e também de outras partes do mundo, pois tem havido uma multiplicação do turismo internacional com a globalização – receberam a cada ano uma quantidade bem maior de turistas estrangeiros, sendo que somente a Colômbia e o Brasil foram exceções exatamente devido à multiplicação da violência. De 1991 a 2004 algumas cidades sozinhas conseguiram atrai mais turistas estrangeiros do que todo o Brasil: Paris, Londres, Roma, Nova York, Pequim, cidade do México e várias outras.

O Brasil hoje participa

com apenas 0,1% do total mundial de recebimento de turistas estrangeiros, algo muito distante do nosso potencial levando-se em conta o imenso território com a existência de belíssimas praias e paisagens, de biodiversidade (para o

turismo ecológico), de nossa moeda em geral pouco valorizada, de um povo em geral acolhedor e que não tem preconceitos contra os estrangeiros etc. Um dos custos mais evidentes da violência urbana é a manutenção das prisões e dos prisioneiros, com todos os seus gastos com pessoal, eletricidade, água potável, equipamentos, comida, remédios, etc. Segundo dados do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), existiam em 2003 cerca de 285 mil presos espalhados por centenas de presídios. Pouco menos de 13 mil desses presidiários eram do sexo feminino (4,5% do total). O número total de vagas no sistema carcerário nacional é de 110 mil, mas há décadas que vem ocorrendo uma superlotação na maioria dos presídios, algo que gera promiscuidade, multiplicação de doenças (inclusive a aids, que contamina hoje cerca de 10 a 15% dos prisioneiros em todo o país) e logicamente mais violência. Em algumas ocasiões em que ocorreram rebeliões em presídios – contra os maus-tratos aos presos e às suas visitas (familiares, amigos), contra a corrupção, contra as péssimas condições higiênicas e sanitárias –, os amotinados mataram inúmeros colegas com o argumento de que haveria um insuportável “excesso de gente”. Pode-se mencionar ainda o alto custo da manutenção dos presos, algo que é pago pelo contribuinte, isto é, por toda a sociedade. Cálculos de 2003 mostraram que, em média (pois isso varia conforme a unidade da Federação e conforme o presídio), o poder público gasta mensalmente cerca de R$ 700,00 para cada preso, o que significa

muitíssimo mais do que o salário mínimo (R$ 240,00 reais nesse mesmo ano) ou do que o Estado despende com cada estudante em escolas públicas de nível básico. E o mais grave é que muitas vezes são gastos desnecessários, pois uma boa parte dos encarcerados, aqueles que cometeram delitos leves, poderia estar cumprindo a sua sentença com penas alternativas (prestação de serviços à comunidade, por exemplo). No setor de blindagem de carros o Brasil já ocupa a segunda posição no mundo inteiro, só perdendo para os Estados Unidos e vindo a Colômbia em terceiro lugar. É uma tentativa de alguns poucos (ricos) se protegerem no trânsito, algo que, ironicamente, algumas vezes acaba tendo um efeito contrário, pois os carros blindados exercem uma atração sobre os ladrões ou quadrilhas especializadas em sequestros,

que esperam o momento oportuno para

agir – quando há a necessidade de sair do carro ou o momento de nele entrar, ou quando o veículo está cercado e não há como escapar. Até mesmo as paisagens e a organização do espaço urbano se alteram em função da violência. Primeiro, temos os já referidos bairros ou comunidades controlados por grupos criminosos, que se constituem em Estados paralelos ao praticamente monopolizarem o exercício da violência nesses locais, ao estabelecerem territórios com limites tangíveis onde só entra ou só vive quem esse grupo quer.

Pesquisadores

que

foram

a

alguns

conjuntos

habitacionais periféricos construídos pelo poder público

descobriram que em muitos casos grupos criminosos se apropriaram de habitações e expulsaram seus moradores – e isso há vários anos, sem que nesse período nada tenha acontecido ao grupo. Por outro lado, também surgem e se expandem

os

condomínios

horizontais,

geralmente

localizados nos subúrbios, onde a proteção dos moradores é o item fundamental: altos muros cercando o local e portaria com inúmeros guardas, seguranças de motocicleta ou carros que circulam pelas vias do condomínio 24 horas por dia. Também se multiplicaram os condomínios verticais (prédios ou conjuntos de prédios) com a mesma função, ou seja, oferecer principalmente segurança aos moradores (além de eventualmente conforto e outros serviços como comércio e restaurantes), com inúmeros guardas e toda uma parafernália de alarmes e câmeras que vigiam permanentemente

quase

todos

os

lugares.



que

ultimamente têm surgido quadrilhas especializadas em roubar esses tipos de condomínio, que já não garantem mais uma efetiva proteção aos moradores e às suas residências. Também os shopping centers vêm se multiplicando nas grandes e nas médias cidades do Brasil, em grande parte devido ao sentimento de insegurança nas praças e ruas comerciais, embora também pela facilidade de estacionar o carro, pelo ar condicionado (fundamental nos locais de clima mais quente), pela maior proximidade ou concentração das lojas, restaurantes, cinemas ou centros de serviços. Em inúmeros casos eles contribuíram para

esvaziar os tradicionais centros urbanos de comércio, mudando radicalmente as paisagens da cidade e inclusive tornando esses centros históricos pouco atrativos para os turistas ou mesmo para os citadinos em geral. Os turistas em especial querem circular à vontade pelas belas e típicas ruas e praças centrais de cada cidade – tal como ocorre em Paris, Londres, Nova York, Roma, Milão, São Francisco, Berlim, Pequim, etc., além das pequenas e médias cidades europeias, norte-americanas ou asiáticas de uma forma geral –, e não por um shopping center que no fundo é semelhante a todos os outros no mundo inteiro, muitas vezes até com as mesmas lojas. Cabe lembrar que esses centros

históricos

via

de

regra

são

os

lugares

que

concentram os principais atrativos turísticos – ou os monumentos dignos de preservação – da cidade: teatros, a catedral, local onde a cidade nasceu, igrejas antigas, os melhores exemplos de arquitetura colonial ou com maior significado histórico, etc. Por

fim,

pode-se

mencionar

as

consequências

psicológicas nas pessoas, especialmente naquelas que foram em algum momento vítimas de violência, de estrupo, sequestro relâmpago, roubo, invasão da moradia, etc. Essas pessoas, cujo número no Brasil chegam a milhões, ficam traumatizadas e receosas de se expor, de saírem às ruas, principalmente nas áreas centrais da cidade ou em outros locais considerados perigosos. Isso repercute no sistema de saúde



pelos

gastos

com

terapias,

com

remédios

antidepressivos, pelos problemas físicos (a somatização)

decorrentes dos traumas, etc. Isso significa, no final das contas, que a violência urbana limita a vida plena de milhões de pessoas, limita o seu direito à felicidade e a uma vida sem constrangimentos. Possíveis soluções para a violência urbana Inúmeras soluções foram e ainda são propostas para se equacionar ou minimizar a violência urbana no Brasil. Alguns são setoriais – prevenções e/ou combates à violência doméstica (por exemplo, sobre as crianças ou sobre os idosos), à violência no trânsito, ao tráfico de drogas, à violência sobre a mulher, sobre os afrodescendentes ou os homossexuais – e outros são gerais, visando a prevenção e/ou o combate à violência urbana em todas as suas modalidades. Eles se complementam, pois a prevenção e o combate aos diversos tipos específicos ou particulares de violência

também

é,

numa

certa

dimensão,

um

enfrentamento da violência urbana. E como a violência urbana é um fenômeno complexo e multidimensional, também o seu enfrentamento deve ser multivariado. Existem

soluções

ou

propostas

extremamente

diversificadas, às vezes até antagônicas. Algumas podem de fato produzir bons resultados – em certos casos, isso já foi comprovado em países ou cidades que as adotaram –, enquanto outras são duvidosas (ou seja, sem suficientes dados confiáveis sobre a sua eficácia nos lugares que as implementaram), ou meramente paliativas ou às vezes até panaceias ou pseudosoluções que no fundo decorrem de

preconceitos ou estereótipos e não produzem qualquer resultado positivo. Entre estas últimas pode-se lembrar das propostas de ensino religioso nas escolas, da ampla liberação da posse e porte das armas de fogo, numa imitação do exemplo dos Estados Unidos, da militarização do combate à violência urbana e também de apenas aumentar os salários e os equipamentos em geral (viaturas, armas mais modernas e com maior poder de fogo, etc.) das forças policiais. A primeira é pura e simplesmente um disparate, uma sugestão que nada tem a ver com a diminuição da criminalidade e sim com interesses de grupos religiosos; é algo que inclusive contraria o regime democrático, no qual o Estado deve ser laico e qualquer pessoa deve dispor do direito de ter ou não alguma religião, e de poder escolher livremente no caso de adotar alguma(s) delas. Além disso, a experiência do dia a dia mostra que valores religiosos não impedem a criminalidade: muitos criminosos são religiosos, alguns até praticam homicídios, estupros e feminicídios em nome de Deus e, inversamente, a imensa maioria dos ateus são pessoas com comportamentos extremamente éticos (por sinal, a ética nasceu ou foi sistematizada na Grécia antiga com pensadores ateus ou pagãos, mesmo que posteriormente algumas religiões tenham se apropriado de parte desses valores; ensinamentos mais antigos, como no antigo testamento e em outros livros considerados sagrados e anteriores aos séculos V a.C, embora também em alguns posteriores,

estão

impregnados

de

valores

homicidas,

machistas, racistas e até genocidas) e a quantidade de corruptos entre pastores evangélicos é enorme, assim como também existem muitos pedófilos entre os padres. As outras três são panaceias que no máximo podem produzir resultados imediatos e momentâneos, mas que – como já foi comprovado em lugares onde foram praticadas – nos médio e longo prazos nada mudam, os índices de violência urbana vão continuar elevados e em ascensão. Vamos examina-las a seguir. Quanto às armas de fogo, não há comprovação que a sua liberação diminua a violência e a criminalidade, e o caso dos Estados Unidos é particular e tem razões históricas: a origem do direito dos cidadãos de adquirirem e portarem armas, que está legalizado na Constituição Federal em vigor desde 1791, foi a guerra de independência do país, na qual os moradores em geral pegaram em armas para participar do conflito – e, posteriormente, armas nas mãos da população foram importantes para a expansão territorial que se fez às custas das nações indígenas (vistas como perigosas e agressivas, quando na realidade eram vítimas de invasão de suas terras, matanças e até extermínio) e do México.

O

historiador

norte-americano

David

Landes

argumenta que o livre porte de armas pela população também contribuiu para a democracia e até para o crescimento econômico do país. Com as enormes disponibilidades de terras a oeste, que existiam no século XIX (disponibilidade do ponto de vista dos americanos, é claro, mas não na perspectiva dos indígenas), que em tese

seriam de propriedade federal, centenas de milhares de colonos delas se apossaram e com fuzis em punho se contrapunham a qualquer agente que tentasse impedir isso; essa pressão armada da população teria sido, inclusive, alicerce para as legislações que acabaram por conceder a propriedade da terra aos posseiros, legislações essas que contrariaram

poderosos

interesses

econômicos,

que

pressionavam o governo federal para que este removesse os posseiros e vendesse as terras. Como se sabe, o predomínio de propriedades familiares no meio rural dos Estados Unidos foi uma das condições para a consolidação da democracia e principalmente para o desenvolvimento econômico. Mas esse foi um processo histórico único e irrepetível. E com o transcorrer do tempo, a partir da segunda metade do século XX, juntamente com a expansão dos direitos civis nos Estados Unidos, direitos e ações afirmativas para afrodescendentes, mulheres e outros grupos, surgiram legislações estaduais – afinal o país é uma federação

e

não

uma

república

centralizada



que

modificaram e dificultaram (embora nunca anulando) esse direito à posse e principalmente ao porte de armas, com exigências de comprovação de idoneidade (verificação de antecedentes criminais

e proibição para quem já foi

condenado a um crime com pena superior a um ano), proibição da compra por/para pessoas com problemas mentais, proibição da venda de fuzis de assalto e outras. E várias pesquisas realizadas nesse país com vistas a correlacionar legislações mais duras ou mais brandas com

os índices de criminalidade nunca comprovaram nenhuma interdependência entre essas duas variáveis: existem tanto Estados norte-americanos com legislações brandas (onde pode-se comprar e portar armas à vontade, inclusive fuzis semiautomáticos) que têm elevados índices de violência e criminalidade (em comparação à média nacional), como também o oposto às vezes ocorre, com alguns desses Estados com legislações mais brandas apresentando baixos índices; em contrapartida, há Estados com legislações duras (várias restrições ao porte de armas) e índices elevados (em alguns casos) ou baixos (em outros casos). Isso mostra que essa correlação praticamente não existe, e que são outras as variáveis que explicam os índices maiores ou menores de violência e criminalidade. Quanto à militarização do combate à violência e à criminalidade, experiências realizadas no México e até na cidade do Rio de Janeiro, com tropas do exército sendo convocadas para o policiamento e a repressão ao tráfico de drogas e à criminalidade em geral, produziram apenas resultados momentâneos e não sustentáveis, além de (principalmente no México) violência indiscriminada contra a população civil. Os militares não têm treinamento para o policiamento (essa não é sua função), principalmente o preventivo, e com o transcorrer do tempo, quando os traficantes começam a identificar os oficiais e os soldados, bem como onde moram suas famílias, torna-se frequente certa

conivência

dos

militares

com

as

organizações

criminosas, que dispõem de poder não apenas econômico

(para propinas ou mesmo para tornar alguém muito importante

“sócio”

em

algum

empreendimento),

mas

também poder de repressão, de sequestros, assassinatos e torturas

de

militares

e

familiares.

Essa

militarização,

portanto, pode ser uma resposta apenas provisória, isto é, uma medida paliativa e tão somente para casos gravíssimos (de uma quase guerra civil, de retomada de uma área onde a polícia não tem condições de entrar, de uma escalada absurda dos sequestros e assassinatos, etc.), mas nunca uma solução permanente. E pura e simplesmente aumentar a quantidade e o salário

dos

policiais,

bem

como

seus

equipamentos,

principalmente seu poder de fogo, também é uma medida de duvidosa eficácia no combate à violência urbana. Alguém que não seja extremamente ingênuo acredita sinceramente que apenas elevando salários de policiais corruptos vai-se acabar com a ineficácia e a corrupção que existe nessas instituições? O problema é que, por mais que os salários sejam elevados, as propinas que os traficantes ou as organizações criminosas organizadas podem pagar são sempre maiores. E uma vez tendo aceitado propinas ou acordos com traficantes, não tem mais sentido começar a agir dentro das regras legais devido a um eventual sensível aumento salarial: essa pessoa já está irremediavelmente atada às organizações criminosas, que vão cobrar o seu preço. Por sinal, quem é corrupto não o é porque ganha pouco e sim por má-índole, por incorporar determinados valores de levar vantagem à custa dos outros e das regras

legais ou da ética, de cada um por si não importando os meios para se dar bem, etc. Daí que, mais importante que a elevação dos salários, é a redução da corrupção nas forças policiais, estabelecendo recrutamento, para o

padrões mais rígidos para o treinamento e, notadamente,

realizando uma grande “limpeza” no sentido de expurgar membros corruptos. Sem dúvida que também a elevação salarial pode e deve ocorrer, mas desde que existam recursos e que isso não ocasione desequilíbrios e flagrantes injustiças frente a outras categorias profissionais do setor público, como os da saúde e da educação, que mesmo tendo em média nível educacional mais elevado, além de também desempenharem funções essenciais à sociedade, vão receber menos. Experiências internacionais com reformas na força policial – desde o recrutamento até o treinamento – foram muito mais bem sucedidas que o simples aumento salarial ou que o aumento do efetivo e de armamentos. Essas experiências incluem a exigência de um maior nível educacional para os candidatos a policiais (com a enorme expansão do ensino superior no Brasil e no mundo em geral, não é mais um despropósito a exigência de um curso universitário), um treinamento mais longo e com ênfase na prevenção e na cooperação com as comunidades, com as populações dos locais onde vão atuar. No caso do Brasil existe ainda a necessidade de unificar, ou no mínimo coordenar de forma permanente e inteligente, as ações da política civil e da militar – e também destas com a polícia

federal. E de unificar e/ou coordenar de forma sólida e permanente os cadastros com banco de dados criminais e as ações das diversas forças policiais de cada unidade da Federação. Também a tecnologia tem um importante papel a desempenhar no treinamento e na atividade cotidiana das polícias: desde a implantação de um sistema de inteligência de segurança pública em todos os Estados com a troca ágil de informações sobre atividades de indivíduos e grupos criminosos – troca de informações também com os países fronteiriços – até o estabelecimento de sistemas de informática com modernos equipamentos e softwares específicos. Sistemas de georreferenciamento e de análise de dados criminais e sociais ajudam a identificar perfis criminais, padrões e tendências, pontos ou locais críticos e evidências de atuação de grupos criminosos. Um estudo de cinco países latino-americanos, patrocinado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, descobriu que metade de todos os crimes ocorre em apenas 3% a 8% dos quarteirões das cidades. Ao alocar recursos com base nos padrões geográficos de homicídios o de roubos, a polícia pode ter maior probabilidade de impedi-los. Um estudo na Colômbia descobriu que quando as unidades de patrulha usavam informações sobre quando e onde os crimes ocorreram com mais frequência, os homicídios caíram 22%. Dar prioridade à integração dos policiais com a comunidade a que servem, convém repetir, sempre produz resultados. Os moradores podem ajudar no policiamento com

vistas

à

prevenção

dos

crimes



o

chamado

policiamento comunitário. Experiências desse tipo realizadas na Nicarágua, por exemplo, renderam bons frutos: a população passou a ter mais confiança na polícia e as taxas de homicídios, roubos e furtos caíram bastante.

Oferecer perspectivas aos jovens das favelas e de bairros periféricos pobres é outra medida produtiva. Pesquisas mostraram que há uma correlação entre concentração de jovens e violência. Em algumas das cidades mais violentas do mundo, 75% da população tem menos de 30 anos de idade. A idade média de lugares como Cabul (Afeganistão), Kampala (Uganda) e Mogadíscio (Somália), cidades bastante violentas, é de cerca de 16 anos. Em contraste, a idade média dos moradores de Berlim, Tóquio, Lisboa ou Viena, cidades onde os índices de violência são baixos, é de 45 anos. Também há uma correlação entre escolaridade e violência.

Entre

a

população

carcerária

brasileira,

a

porcentagem dos que não têm sequer o ensino fundamental completo é de 53%, maior que a média nacional de 40%. Investir na educação e em outras atividades como esportes para

os

jovens,

portanto,

é

uma

medida

que

indiscutivelmente contribui para reduzir a criminalidade, embora não no curto prazo. Isso significa construir nesses bairros pobres e com grande concentração de jovens boas escolas em período integral e inúmeras quadras ou centros para a prática de esportes. Algumas experiências que tiveram resultados curto prazo foram a chamada “tolerância zero”, popularizada pela estratégia adotada em Nova Iorque, juntamente com a “teoria das janelas quebradas”, que foi elaborada na Universidade de Chicago e complementa a estratégia anterior. A ideia básica da tolerância zero é dar exemplos, não permitindo ou punindo (de acordo com o grau de

gravidade) qualquer tipo de delito, desde uma pichação de paredes, uma transgressão de trânsito, os pedintes não cadastrados (por sinal, a imensa maioria, salvo raríssimas exceções, são pessoas que abusam da boa vontade das pessoas, chegando ao ponto de alugar bebês ou crianças pequenas para ficarem em esquinas ou semáforos sob um calor intenso pedindo esmolas), os flanelinhas e “lavadores de

carros”

nos

semáforos,

além

de

algum

tipo

de

penalidade até para quem fura uma fila, ou principalmente para as empresas que cobram serviços que não foram solicitados, como operadoras de celular. E a teoria da janela quebrada tem como base o fato de que num determinado lugar, após uma primeira depredação (por exemplo, uma janela

quebrada),



uma

comprovada

tendência

à

deterioração progressiva, pois existe uma percepção social de descaso. Isso significa que não se deve deixar a decadência e a deterioração tomarem conta de praças, ruas e avenidas, ou edifícios, tal como ocorre em algumas áreas das cidades, que não por coincidência acabam virando locais de narcotráfico, violência e criminalidade crescente. Também a maioridade penal estabelecida apenas aos 18 anos é um incentivo para que menores entre os 15 e 18 anos sejam usados por organizações criminosas para a prática de alguns crimes. E mesmo sem estar a serviço dessas

organizações,

menores

com

tendência

à

delinquência sentem-se impunes para a prática de furtos, roubos, homicídios e latrocínios. É óbvio que a redução da maioridade penal não resolve toda a violência urbana (e

nenhuma medida isolada vai fazer isso), mas sem dúvida que contribui para a sua diminuição. Em grande parte dos países com baixas taxas de criminalidade, embora não em todos, a maioridade penal começa aos 16 anos; em alguns casos, como no Japão ou principalmente nos Estados Unidos,

até

pessoas

com

12

anos

podem

ser

responsabilizadas como adultos dependendo da gravidade de seus crimes. E a bem da verdade é um contrassenso permitir que jovens de 16 anos votem e dirijam veículos automotivos, duas atividades que exigem maturidade, e paradoxalmente não os considerar adultos. A reforma do judiciário e das leis referentes à definição e punição para crimes variados também é uma medida imprescindível para se reduzir a violência urbana de forma sustentável. O judiciário brasileiro, como é sobejamente conhecido, é extremamente lento e de má qualidade, além de representar um elevado custo (em termos comparativos com outros países, inclusive os desenvolvidos) para a sociedade. Inúmeras leis devem ser revistas, tais como endurecimento

para

o

porte

ilegal

de

armas

ou

principalmente assalto a mão armada, que deveriam levar a vários anos de reclusão sem direito de diminuição das penas ou de regime semiaberto, ou dos indultos em ocasiões como o natal, que libertam milhares de criminosos que em muitos casos não voltam para a prisão. Leis para crimes de corrupção ativa ou passiva também devem ser endurecidas e a prisão em segunda instância deve ser obrigatória e imediata, e não mais sujeita a uma decisão

monocrática de algum juiz de instância superior que possa libertar pessoas importantes e poderosas tal como ocorre constantemente no país. Economistas

que

pesquisaram

o

motivo

da

criminalidade ter diminuído em algumas cidades norteamericanas nos anos 1980, chegaram à surpreendente conclusão que isso se deveu, em boa parte, a medidas adotadas nos anos 1960, de permitir o aborto para as mulheres que o desejassem, especialmente mães solteiras e mulheres envolvidas com drogas, e de distribuir fartamente pílulas anticoncepcionais. O motivo para essas providências terem contribuído para diminuir a criminalidade, apesar de ninguém imaginar isso nos anos 1960, é que grande parte dos criminosos foram crianças rejeitadas, ou de famílias em precárias situações (consumo de drogas, mães que não queriam filhos e não cuidam direito deles, etc.), e essas ações dos anos 1960 estancaram no nascedouro boa parte dos futuros delinquentes. Portanto, legalizar o aborto ou deixar as mulheres disporem do seu corpo com liberdade, além da ampla distribuição de anticoncepcionais para mulheres sem condições para sustentarem e cuidarem de filhos, é uma medida que comprovadamente vai reduzir a criminalidade no médio prazo. Além disso, é importante diminuir sensivelmente toda burocracia que existe para adoção, visando incentivar as famílias com condições para adotarem crianças carentes, órfãs ou com famílias desestruturadas e sem as mínimas condições de as sustentar e educar.

Os presídios devem ser objeto de reinvenção. A começar pelos custos arcados pela sociedade. Nos Estados Unidos as famílias com posses pagam para manter seus familiares que estão na prisão e, quando a família não tem condições para tal, o presidiário tem que trabalhar – seja em marcenaria na prisão, no artesanato, em pedreiras ou minas, etc. – para custear o seu sustento na penitenciária. Depois pela organização e rígida disciplina, visando evitar que organizações criminosas controlem os presídios, como ocorre hoje no Brasil, que usem à vontade telefones celulares para dirigir ações criminosas do lado de fora (existe tecnologia para barrar qualquer sinal de celular em presídios, mas não se sabe por que motivo nunca foi efetivamente adotada no país), que aliciem com ameaças presos comuns ou até funcionários para ingressar na organização, etc. E crimes de pequena periculosidade, que são a maioria, devem ser penalizados com outros meios – prestação de serviços à comunidade, por exemplo – e não com a reclusão junto com os de alta periculosidade. E mais uma vez o judiciário tem que se reformar para que presos que já cumpriram suas penas saiam imediatamente das prisões. Também seria interessante estabelecer incentivos fiscais

para

as

empresas

contratarem

ex-presidiários,

medida que pode ajudar para que estes não voltem à criminalidade pela falta de opção, pela falta de emprego.  

Bibliografia consultada

ADORNO, S. Exclusão socioeconômica e violência urbana. In: Sociologias. No 8, Porto Alegre Jul/Dez. 2002. BARCELLOS, C. Abusado, o dono do morro Dona Marta. RJ, Record, 2003. BRICEÑO-LEÓN, R. La nueva violencia urbana de América Latina. In: Sociologias. No 8, Porto Alegre Jul/Dez. 2002. DUBNER, S. e LEVITT, S. Freakonomics, o lado oculto e inesperado de tudo. RJ, Campus, 2005. GREGORY, D. e PRED, A. (org.). Violent Geographies. New York, Routledge, 2005. GULLO, Álvaro de Aquino e Silva. Violência urbana: um problema social. In: Tempo Social. Revista de Sociologia, SP, USP, n.10, maio de 1998, p.105-119. LABROUSSE, A. Geopolítica das drogas. SP, Desatino, 2005. LANDES, D. Riqueza e pobreza das nações. RJ, Campus, 1998. MISSE, Michel. Crime e violência no Brasil contemporâneo: estudos de sociologia do crime e da violência urbana. SP, Lumen Juris, 2005. LEAL, C. B. e PIEDADE JR, H. A Violência Multifacetada Estudos Sobre a Violência e a Segurança Pública. SP, Del Rey, 2002. O’BOYLE, B. Repressão aos homicídios: o que funciona e o que não funciona. In: Americas Quartely. Disponível em: https://americasquarterly.org/fulltextarticle/repressao-aoshomicidios-o-que-funciona-e-o-que-nao-funciona/ OLIVEIRA, N. V. (Org.). (In)segurança Pública - Reflexões sobre A criminalidade e A violência urbana. SP, Nova Alexandria, 2002.

PINHEIRO, P. S. e ALMEIDA, G. A. Violência Urbana. SP, Publifolha, 2005. RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. SAFFIOTI, H. I. B. Gênero, Patriarcado, Violência. SP, Expressão Popular, 2004. SOARES, G. A. D. e SAPORI, L. F. Por que cresce a violência no Brasil? Editora PUC Minas, 2005.        ZALUAR, Alba. Da revolta ao crime S.A. SP, Moderna, 1996. ______. Integração Perversa: Pobreza e Tráfico de Drogas. RJ, FGV, 2004.  

Democracia, federalismo e redivisão territorial47 No início de abril deste ano [1993], tramitavam no Congresso Nacional dez projetos de lei propondo a realização de plebiscitos com vistas à criação de novos estados no território brasileiro. Muitos já foram derrotados, mas podem retomar sob a forma de novos projetos de lei, mudando se somente o nome sugerido para o novo estado, alguns detalhes da localização ou mesmo o deputado proponente, com chances de serem viabilizados, mais cedo ou mais tarde, devido à tradição do "toma cá e dá lá", de troca de favores pessoais enfim, típica de grande parte de nossos parlamentares. São projetos diferentes, com distintas motivações – pelo menos na aparência. Mas quase todos, com as possíveis exceções do Iguaçu a do Triângulo Mineiro48, não possuem qualquer difusão no meio das populações locais, que em sua quase totalidade sequer tomaram conhecimento dessa engenharia política. E via de regra nem mesmo sólidos interesses econômicos, de classes produtoras locais, desempenham algum papel nessas propostas. Elas são basicamente ideias oriundas de políticos que almejam se tomarem governadores ou senadores, além de toda uma soma de interesses relacionados a edificações e cargos que teriam que ser criados com a criação de um novo Estado: no mínimo oito deputados federais, dezenas de deputados estaduais, grande número de novos funcionários públicos, eventualmente a construção de uma nova capital estadual ou pelo menos a de suntuosas sedes

(dos três poderes) para o novo poder estadual, e por aí afora. Em sua maioria, as áreas delimitadas para constituírem novos estados nada mais são que "currais eleitorais" de um ou alguns deputados, que almejam cargos mais altos desde que seu projeto seja aprovado. O descaramento nessa delimitação territorial é tamanho que com frequência áreas de distintos projetos se sobrepõem. O hipotético novo estado de Carajás (ou Mato Grosso do Norte, em outra proposta), por exemplo, além de apresentado por dois deputados com áreas quase idênticas e nomes diferentes, acaba "invadindo" (ou "sendo invadido") uma parte das áreas proposta para os estados de Tapajós a Aripuanã. Independentemente do fato de serem aprovados agora ou não, o absurdo desse procedimento de se estabelecer divisões político-territoriais de gabinete, sem real demanda das populações locais, merece uma reflexão crítica. Inclusive porquê é comum que propostas hoje derrotadas retomem amanhã a acabem vingando pelo cansaço, pela troca de favores entre parlamentares ou por uma conjuntura favorável. Esse procedimento, ademais, conta com o apoio ou a cumplicidade de organizações como a Frente Parlamentar pela Redivisão Territorial (sic!) a até mesmo de um ou outro economista ou cientista social (incluindo geógrafos), que de tempos em tempos escreve algum artigo com "propostas científicas" de redivisão político-territorial administrativa do país sem nenhum tipo de auscultação das pessoas que vivem nessas áreas em questão.

Sem dúvida que a exigência constitucional da realização obrigatória de plebiscitos com as populações locais, que devem se posicionar a favor ou contra esses projetos após eles serem aprovados na Câmara, já constitui um avanço. Pois até 1988 novas unidades da Federação eram criadas ou redefinidas somente de cima para baixo, por motivos estratégicos ou político-eleitorais combinados com interesses mesquinhos de facções das elites ou oligarquias regionais. Mas o plebiscito, apesar de necessário, é insuficiente. Em primeiro lugar porque é algo que não resultou de demandas populares, e normalmente essa população a ser afetada pela mudança sequer sabe muito bem do que se trata, ela apenas vai votar por obrigação, pela propaganda eleitoral (via de regra fantasiosa e plena de falsas informações) ou às vezes por voto de cabresto. Em segundo lugar, não se consulta os demais cidadãos interessados, ou que sofrerão de alguma forma os impactos da eventual criação de novos estados, aqueles de outras áreas e unidades federativas, que afinal de contas vão arcar com as despesas, pois grande parte dos recursos a serem despendidos sairão dos impostos que pagam. E no contexto de populações sem identidade regional forte, sem tradições coletivas, sem constituírem qualquer forma de verdadeira opinião pública, como é a regra geral nessas áreas pouco povoadas envolvidas, é evidente que o plebiscito é um jogo de cartas marcadas com apenas dois protagonistas: o governo estadual, que normalmente não quer perder parte

da arrecadação de impostos, e os políticos interessados na possibilidade de uma nova máquina administrativa e nos cargos garantidos pelo novo estado (o que inclui potenciais candidatos a cargos eletivos ou não, potenciais fornecedores ou empreiteiros para os edifícios a serem construídos na eventual a nova sede de poder estadual etc.). Ganha quem dispor de maior poder econômico ou "esperteza" para divulgar sua posição, para manipular as engrenagens eleitorais meio suspeitas, e os eleitores em geral (não é adequado escrever cidadãos) só entram no jogo com figurantes passivos. Frente a isso, quais seriam os critérios verdadeiramente democráticos que deveriam nortear a possibilidade de redivisão territorial do país? Pensamos que tal gênero de reforma, em alguns raros casos necessária, deve ter como referência básica o reforço da cidadania e do federalismo no Brasil. Devemos lembrar que as unidades políticas se referem a populações, a homens a mulheres enquanto cidadãos, a não à dimensão territorial como ingenuamente se pensa quando se propõe a divisão de imensos territórios, como os do Amazonas, do Pará ou do Mato Grosso, com vistas à criação de novos estados. Muito mais importante que o tamanho do território é o número de eleitores, a identidade regional dessas populações, sua tradição histórica e em especial a sua viabilidade econômica como unidade autônoma. No atual contexto político-territorial do Brasil, seria muito mais viável e democrático pensar numa redivisão de estados mais

populosos como São Paulo, Minas Gerais ou Paraná, por exemplo, do que dos "grandes estados territoriais" da Amazônia ou do Centro-Oeste. Redividir as atuais unidades do Brasil central ou da Amazônia, como quer a maioria das propostas separatistas a

nível

estadual,

significaria

agravar

as



enormes

disparidades de representatividade político-territorial. Cada novo estado implica em três senadores e no mínimo oito deputados

federais,

e

isso

levaria

a

uma

maior

desvalorização na representatividade do eleitor dos estados mais populosos. Seria mais um golpe na já frágil e incompleta cidadania e mais um obstáculo no caminho da construção de uma verdadeira democracia no país. E devemos lembrar ainda que tais unidades na maior parte das vezes com escassa população e atividades econômicas, com pouca geração de impostos afinal, vão ser dependentes economicamente do governo federal, e como entidades artificiais política e economicamente, via de regra terão um posicionamento político claramente contrário a uma verdadeira federação com descentralização a relativa autonomia estadual a municipal, pois afinal de contas elas só sobrevivem às custas da centralização do poder econômico a nível federal e da distribuição que este faz dos recursos públicos, normalmente gerados nos estados mais populosos, para os estados vistos como carentes. Isso sem contar que, neste momento de Globalização e de Terceira Revolução Industrial (ou quarta, segundo alguns), existem novos e prementes desafios ao poder

público, com novas áreas de atuação e a necessidade de uma redefinição do papel do Estado no país. Existe sem dúvida a necessidade de um "enxugamento" por um lado, diminuindo drasticamente a burocracia e os impostos com vistas a tornar a economia mais dinâmica e competitiva internacionalmente, e por outro lado uma maior e mais eficaz atuação nas áreas de educação, saúde e tecnologia. Neste contexto, a criação de novos estados em áreas pouco populosas e com escassa atividade econômica, que vão depender da transferência de recursos por parte do poder central, significa o oposto de enxugamento com vistas à maior eficácia, significa uma maior hipertrofia da máquina estatal, o que pode inclusive levar a novos aumentos de impostos

sem

ocorrer

nenhuma

modernização

ou

redefinição do poder público. Trata se em suma de atender a interesses pessoais de alguns políticos e empresários às custas dos reais interesses da maioria da população brasileira. Uma comparação com os Estados Unidos Pela Constituição de 1988, o número mínimo de deputados federais por estado é de oito, e o máximo de setenta. E o número de senadores é igual para todas as unidades: três. Existe, portanto, uma desproporcionalidade na representação política, isto é, uma deformação do princípio democrático segundo o qual a cada cidadão corresponde um voto e o voto de cada um deve ter valor idêntico ao voto dos outros. Existem assim estados super-

representados

(principalmente

Roraima,

Amapá,

Acre,

Tocantins, Sergipe a Rondônia), nos quais o voto de um eleitor vale bem mais, e estados sub-representados (São Paulo, notadamente, mas também Minas Gerais, Rio de Janeiro, Paraná Santa Catarina e Rio Grande do Sul), nos quais o voto de um eleitor tem um peso bem menor que no grupo anterior. Para exemplificar, podemos lembrar o fato de que um deputado federal no Amapá ou em Roraima representa, em média, de 10 a 15 mil habitantes, enquanto que um deputado federal em São Paulo representa, em média, cerca de 300 mil moradores do estado. Para se corrigir essa desproporção, que encerra uma injustiça na perspectiva democrática,

alguns

estados

deveriam

ganhar

mais

representantes (São Paulo, por exemplo, deveria ter no mínimo 120) a outros deveriam perder (Roraima ou Amapá, por

exemplo,

deveriam

somente

um

cada).

Essa

desproporção foi originada na ditadura militar –, pois os representantes dos estados menos populosos em geral eram mais fiéis ao regime a havia mais opositores nos estados com maiores populações – e acabou "ficando", mesmo com a (relativa) redemocratização devido aos interesses já consolidados, inclusive porquê para mudar isso,

ampliando o número de representantes de alguns

estados a diminuendo o de outros, seria necessário passar pelo Congresso onde a imensa maioria dos membros pertence aos estados do Nordeste, do Centro-Oeste ou da região

Norte,

justamente

as

regiões

que

perderiam

representantes

nessa

eventual

e

necessária

mudança

democrática. Em tese, o Brasil seria uma república federativa tal como os Estados Unidos, o grande exemplo de Estado federativo – foi lá, por exemplo, que se criou após a independência o moderno conceito de senado, que só existe em repúblicas federativas e nunca naquelas unitárias ou centralizadas, que têm um sistema unicameral e não bicameral. País com dimensão continental, tal como o Brasil, formado por 50 estados (embora nenhum deles viva às custas de transferências de recursos por parte do governo federal)

e

considerado

de

forma

consensual

como

democrático, os Estados Unidos de fato serviu de exemplo, pelo menos na retórica, para a definição do federalismo no Brasil – tanto que, desde a proclamação da República até 1967, nosso nome oficial era “Estados Unidos do Brasil”. Mas como funciona na prática o federalismo desse país, que teria sido a grande fonte de inspiração para o nosso? O número de senadores por estado naquele país é de apenas 2. Isso porque o papel do senado – que só existe em sistemas federativos - é o de equilibrar o poder entre os estados mais e os menos populosos, pois estes últimos devem ter um número bem maior de deputados na medida em que nesta casa do congresso vale o princípio de um voto igual para qualquer cidadão do país. E para garantir a independência dos senadores de pressões políticas de curto prazo, os constituintes que elaboraram a Constituição em vigor desde 1791, estabeleceram um mandato de seis anos

no senado, maior que o mandato dos deputados federais, que foi fixado em dois anos. Isso visou combinar os princípios de continuidade e de rotação no cargo: um terço dos mandatos dos senadores expiraria a cada dois anos, deixando

dois

terços

dos

membros

no

cargo.

Aparentemente tudo certo na cópia que o Brasil fez do sistema bicameral norte-americano, com a diferença que, apesar de nossa menor população total, estranhamente aqui se acordou o número de três senadores (e não dois) para cada estado da Federação, numa visível preocupação em atender a interesses pessoais de políticos, de um maior número de cargos, e não a qualquer necessidade da vida política ou da democracia. Mas na câmera dos deputados a diferença entre a nosso federalismo e o deles é enorme: nos Estados Unidos o número mínimo de deputados federais por estado é de apenas um, e não oito como no Brasil. E não há um número máximo destes representantes nos estados mais populosos. Existem 435 deputados federais nos Estados Unidos (no Brasil, menos populoso e com menos estados, são 513), e enquanto o número de deputados federais de estados com menores populações, como New Hampshire, Maine ou Rhode Island, é de apenas 3 cada, o estado mais populoso, Califórnia, dispõe de 55. Esse número, reiterando, depende do total de cidadãos de cada estado: a cada dez anos, em média,

realiza-se

o

Censo

demográfico

nacional

e,

automaticamente e sem grande burocracia ou ações com vistas a tentar barrar política ou judicialmente a mudança,

há estados que ganham e outros que perdem em número de

deputados

federais

devido

ao

maior

ou

menor

crescimento demográfico em cada unidade federativa. Bem diferente do Brasil e de fato respeitando os princípios da democracia e do federalismo.  

A questão da criação de novos municípios A criação de novos municípios, ou seja, a redivisão territorial na escala local (e não mais regional, como no caso dos estados), também é um problema para a democracia e, mais ainda, um estorvo para a economia na medida em que atravanca o seu crescimento. A Constituição de 1988 facilitou muito o processo de criação de novos municípios ao transferir do legislativo estadual para o municipal, com a realização de um plebiscito apenas entre os moradores da localidade onde se planeja criar um novo município – e isso, mais uma vez, sem levar em conta que impactos econômicos

serão

sentidos

por

moradores

de

outros

municípios, que vão arcar com as despesas. E deu um enorme

incentivo

a

isso

ao

aumentar

os

repasses

obrigatórios do governo federal aos municípios, o fundo de participação dos municípios (FPM), com o qual qualquer município sem viabilidade pode receber recursos que não foram neles gerados. Espertalhões logo se aproveitaram da oportunidade e houve uma multiplicação de municípios no país: eram 3.991 em 1980 e passaram a 4.491 em 1990 e 5.565 em 2005. O que significa que em apenas 15 anos foram criados mais de mil novos municípios, cada um com um prefeito, dezenas de

vereadores e os enorme quantidade de novos funcionários públicos contratados para trabalhar no executivo e no legislativo municipais. Uma enorme somatória de despesas que no fundo nada acarreta de positivo nem para os moradores locais, muito menos para a democracia e tampouco para o desenvolvimento econômico e social do país. Como enfatizou um editorial do jornal Folha de S. Paulo, de 12/04/225, tal explosão se explica menos por ganhos de racionalidade e eficiência na gestão do gasto público e mais pela facilidade que elites dos rincões mais pobres do país encontraram para criar uma fonte fácil de obtenção de recursos em suas respectivas redes de poder local. Em outras palavras, clientelismo e sinecuras receberam novo combustível para avançar. Daí que o poder legislativo no Brasil, como realçou num artigo Eduardo Gianetti da Fonseca (Folha de S. Paulo, 19/11/1998), reforçado por dezenas de milhares de novos vereadores, já empregue mais gente do que todo o nosso setor automotivo junto! Todo esse pessoal está prestando serviços de fato à população de suas localidades? Isso é extremamente duvidoso, pois em sua imensa maioria estão de fato se apropriando de recursos que deveriam ser investidos na educação, saúde e saneamento, ao ponto de em grande parte desses municípios sem viabilidade econômica a maior parte dos recursos disponíveis (oriundos do FPM) ser gasto mais com os proventos desses prefeitos e vereadores

do

que

com

aqueles

serviços

municipais

básicos. Basta lermos as constantes notícias na mídia que neste ou naquele pequeno município o lixo se acumula nas ruas ou não há recursos para manter o posto de saúde local, e ao mesmo tempo prefeitos e vereadores estão se concedendo substanciais aumentos de remunerações! Estatísticas de 2015 indicam que cerca de 90% dos municípios brasileiros, sempre os com menores populações, só sobrevivem à custa do FPM. Em 1.252 pequenos municípios,

com

menos

de

20

mil

habitantes,

as

arrecadações de impostos municipais (ISS, IPTU e ITBI) não chega a representar sequer 10% da receita. Em outros 3600 municípios, todos com no máximo 50 mil habitantes, essas arrecadações locais vão de 11 a 90% dos recursos que gastam a cada ano, o que significa que em boa parte eles também dependem das transferências de receitas geradas em outros locais e transferidas a eles pelo governo federal. Tal como no exemplo do separatismo estadual, também aqui se coloca a necessidade, antes de tudo, de viabilidade econômica, da exigência de uma autonomia de fato da localidade que pretende formar um novo município. E seria o caso também de se pensar, não mais em criar novos municípios (a não ser em casos excepcionais e de comprovada viabilidade), mas sim em juntar municípios vizinhos para formar uma unidade que de fato possa se sustentar sozinha. Isso se torna ainda mais premente com a tendência, detectada pelo IBGE, de esses municípios menores perderem efetivos demográficos a cada novo

recenseamento geral do país, ou seja, estão diminuindo de tamanho populacional. E também seria o caso, se quisermos de fato reforçar a democracia e aumentar a eficiência do poder público no Brasil, de abolir a obrigatoriedade constitucional de haver um prefeito e no mínimo 9 vereadores em todo e qualquer município, mesmo que este tenha apenas 800 habitantes. Nos Estados Unidos, por exemplo, obrigatoriedade e em centenas ou

não existe essa até milhares de

pequenos municípios (cities, towns, villages), aqueles com até 50 mil habitantes, pura e simplesmente não há nem prefeitos nem vereadores, e a própria população se reúne uma vez por semana para deliberar sobre impostos e taxas, eleição do xerife (delegado de polícia), eventual contratação de funcionários ou de uma empresa para recolhimento do lixo, etc.  

 

O mundo em 2050 – um exercício de prognóstico geopolítico49  

A história é plena de surpresas e reviravoltas. Basta lembrar da rápida e inesperada crise terminal do mundo socialista entre 1989 e 1991, que ninguém previu com um mínimo de exatidão. Por esse motivo, todo prognóstico para um prazo como este – isto é, para 2050 –, corre o risco de ser desmentido pelo desenrolar dos acontecimentos na medida em que nestes não há somente uma lógica (as determinações), mas também o contingente, o indeterminado. Apesar de haver praticamente uma certeza que muitas das suposições não vão ocorrer, pelo menos não da forma imaginada, não se pode deixar de realizar conjecturas ou prognósticos, construindo cenários possíveis. Mesmo com a consciência que eles sempre são provisórios e devem ser constantemente reavaliados em função de novos acontecimentos, de novas informações e reflexões. Isso posto, vamos tentar construir um cenário para o mundo geopolítico – isto é, as grandes potências mundiais, os principais atores no cenário internacional e suas atuações, além da provável situação relativa de cada grande região do globo – em 2050. Para isso faremos uso – embora da nossa maneira, interpretando de uma forma peculiar – de estudos e/ou projeções estatísticas da ONU, do FMI e do Banco Mundial, da PriceWaterhouseCoopers e de livros ou artigos acadêmicos diversos.

Determinados fatores são fundamentais para se avaliar e comparar o poderio geopolítico dos países ou regiões: população, economia, território, poderio militar, instituições e influência cultural – o softpower na acepção de Joseph Nye – além, logicamente, de um bom uso e equilíbrio de todos esses fatores. É lógico que cada um desses fatores deve ser visto sempre de forma qualitativa e relativa, isto é, em comparação com os outros atores e eventuais competidores. A população, por exemplo, não conta apenas pelo seu efetivo total, mas sim em função de sua escolaridade, de seu poder aquisitivo interno e comparado a outros países, de sua distribuição social da renda, de suas liberdades democráticas (o autoritarismo é sempre perigoso e instável, sujeito à súbita eclosão de sérios conflitos étnicos e/ou sociais, a separatismos e, consequentemente, a mudanças repentinas) e a de sua coesão em termos de nacionalidade. O território não deve ser avaliado tão-somente pela sua dimensão, mas também pelo seu formato, sua localização relativa (seus vizinhos, tanto em termos de potenciais adversários como aliados, sua maior ou menor proximidade com o mar – e de qual mar ou oceano se trata etc.), suas condições naturais (relevo, clima, biodiversidade, hidrografia) e sua maior ou menor riqueza em recursos naturais (água potável, fontes de energia, minérios, solos agriculturáveis etc.). A economia, em função de seu poder geopolítico, não consiste pura e simplesmente no valor bruto do PIB ou da renda per capita e sim em aspectos

qualitativos: sua competitividade internacional, sua maior ou menor dependência deste ou daquele recurso ou alimento, sua capacidade de inovação e geração de tecnologia, seus setores de ponta, a modernização de seu parque industrial, a capacitação de sua força de trabalho, a eficiência do Estado e das empresas etc. O poderio militar, da mesma forma, não conta apenas pelos seus números absolutos (de soldados, de reservistas, de tanques ou aviões de combate), mas principalmente pela qualidade (coesão, modernização, eficiência, determinação) das forças armadas, pelas estratégias adequadas, pelos armamentos modernos e “inteligentes” (no sentido de usarem chips, softwares, GPS, enfim técnicas de precisão) etc. Clausewitz já havia assinalado, no século XIX, que a guerra não consiste somente num confronto entre forças armadas, nas batalhas militares, mas principalmente num confronto entre duas vontades nacionais, entre duas sociedades. O exemplo de Israel nesse ponto é paradigmático, pois com um número bem menor de soldados – e também de tanques e aviões militares – que os seus vizinhos árabes em conjunto, ele venceu inúmeras guerras pela maior coesão e determinação, por estratégias mais eficazes, pelos armamentos mais modernos juntamente com soldados ou pilotos mais bem treinados. As instituições eficientes – um sistema político estável, não corrupto e pouco influenciado por interesses corporativistas e/ou meramente localistas ou regionalistas; um aparato judiciário-policial que funcione e garanta as

regras e os contratos, que garanta a lei e a ordem, que combata todas as formas de criminalidade; uma diplomacia empenhada na defesa dos interesses nacionais e com voz ativa nas instituições internacionais; sistemas de educação e de saúde que incluam a todos e tenham qualidade – ampliam enormemente o poderio internacional de um Estado. E isso não apenas na paz, nas relações diplomáticas e comerciais, mas até mesmo na guerra que opõe duas (ou mais) sociedades nacionais diferentes. Além disso tudo tem ainda o softpower, a influência cultural ou, mais precisamente, a capacidade de atrair, de influenciar os outros com as suas ideias, seus valores e o seu modo de vida. As projeções para a população mundial em 2050 indicam cenários de cerca de 9,4 até 9,8 bilhões de pessoas. Esse enorme efetivo demográfico, juntamente com a elevação na expectativa média de vida dos seres humanos no planeta, e do provável aumento no consumo médio de alimentos, de água potável, eletricidade, eletrodomésticos, número de veículos automotivos por habitante etc., em praticamente todos os países (basta comparar os índices de IDH atuais com aqueles de 10 ou 15 anos atrás para comprovarmos essa tendência), vai representar um impacto intenso sobre os recursos naturais. Como

estes

recursos

são

finitos

e

desigualmente

distribuídos na superfície terrestre, os conflitos pela sua posse (por água potável, por exemplo) serão mais frequentes. Isso sem contar com os desastres naturais, cujo

número e intensidade vêm aumentando a cada ano – prolongadas secas em algumas regiões, chuvas abundantes e enchentes em outras, desertificação em certas áreas, terremotos e tsunamis, erupções vulcânicas, mudanças climáticas que prejudicam certas áreas bastante povoadas e beneficiam outras em geral menos povoadas etc. –, e os sociais (eventuais acidentes em usinas nucleares, atos terroristas de grandes proporções, eventuais guerras entre países em especial na África, no Oriente Médio e no sul e leste da Ásia, etc.), que probabilidade de ocorrerem.

também

possuem

certa

Existe ainda a possibilidade da ocorrência de um inesperado evento “cisne negro" que possa perturbar seriamente a ordem mundial: uma epidemia ou pandemia que reduza drasticamente a população mundial, uma guerra atômica envolvendo a Coreia do Norte ou a Índia e o Paquistão, ou (embora menos provável) até mesmo a China. A própria mudança climática com o aquecimento global poderá trazer mudanças inesperadas, com dezenas ou até centenas de milhões de refugiados de desastres climáticos. Alguns cientistas asseguram que em 2050 boa parte do gelo que cobre a região ártica terá sido derretido pelo aquecimento global, e se isso ocorrer (como já está ocorrendo), o oceano Glacial Ártico vai se tornar numa das principais rotas marítimas do mundo. E como existem na região ártica grandes reservas de petróleo, gás natural e diversos minérios, alguns raros, a disputa pela hegemonia regional vai ser intensa entre os países com águas costeiras

do Ártico – Estados Unidos, Rússia, Canadá, Noruega, Dinamarca, Finlândia, Islândia e provavelmente até a China, que, mesmo não tendo fronteira com o Ártico, segundo as palavras recentes do presidente Xi Jinping, “planeja se tornar uma potência ártica”. Essa região ártica, que conta com apenas cerca de 4 milhões de moradores atualmente, deverá contar com no mínimo 100 milhões até 2050. Com a elevação da temperatura média da superfície terrestre, Rússia e Canadá serão favorecidos, passando a dispor de maiores quantidades de solos agriculturáveis em climas propícios ao cultivo de trigo e outros grãos, o que significa que se tornarão grandes exportadores mundiais desses produtos. O gelo do planalto tibetano também poderá derreter em grande parte (ele já vem derretendo, embora numa proporção ainda não alarmante), o que suscitará inundações e mudanças nos ecossistemas das cabeceiras de alguns dos maiores rios da Ásia. Em 2050, mais da metade da população mundial enfrentará escassez de água potável devido à seca e outros fatores (sobreconsumo, poluição de rios, lagos e lençóis subterrâneos). Essa escassez será particularmente grave em grande parte da África subsaariana, na Austrália e na China, que poderá se tornar numa grande importadora de água, exceto se novos, mais potentes

e

bem

mais

econômicos

métodos

de

dessalinização da água do mar forem inventados. A China também provavelmente vai desviar o fluxo de rios asiáticos,

prejudicando

países

vizinhos

e

acirrando

os

conflitos

regionais. As mudanças tecnológicas, como não podia deixar de ocorrer, vão suscitar profundos impactos na definição de grande potência e no equilíbrio entre elas, na dinamicidade das economias, na medicina, na segurança, na governança, no ensino e no mercado de trabalho. A expansão da revolução técnico-científica, agora denominada Quarta Revolução inteligência

Industrial



com

artificial

e

na

os

rápidos

robótica,

na

avanços

na

genética,

na

miniaturização e nas impressoras 3D – deverão produzir fábricas praticamente automatizadas, sem operários humanos, o que significa que o setor secundário vai empregar menos mão de obra até mesmo que o setor primário da economia. Mas a substituição de força de trabalho humano por robôs ou por computadores de nova geração, que possuem a capacidade de aprender e realizar tarefas que requerem inteligência humana, deverá também atingir – embora em menor proporção – o setor terciário, com a obsolescência de grande quantidade de policiais (por exemplo,

no

trânsito),

de

entregadores

e

carteiros,

telefonistas e operadores de telemarketing, agentes de viagem, caixas de supermercados, corretores, digitadores e programadores, analistas

de

motoristas pesquisas

de e

táxis de

e

de

mercado,

aplicativos, revisores,

empregados da contabilidade, recepcionistas, boa parte dos médicos e dos advogados etc. Até mesmo juízes podem ser substituídos pela inteligência artificial, sem perda (pelo

contrário, com ganho) de rapidez e mesmo da qualidade dos julgamentos e avaliações, mas neste caso, como em alguns outros, poderosos interesses corporativistas vão se opor veementemente a essa troca. E além de interesses corporativos, no caso dos juízes, há um outro forte elemento para deixar o julgamento final a cargo de humanos, especialmente para certos tipos de crimes: a possibilidade de diferenciação da pena (ou a não punição) conforme a posição da pessoa na hierarquia social. Como essas novas mudanças tecnológicas suscitam forte oposição – especialmente na genética (a clonagem de órgãos

ou

de

organismos

inteligência artificial (pelo categorias profissionais) –

inteiros)

e

na

robótica

e

desemprego em inúmeras alguns países estarão na

dianteira e outros ficarão para trás. Não há dúvida que países asiáticos estarão na vanguarda, especialmente a China, onde esses obstáculos – a preocupação com o desemprego e os interesses corporativos de certos cargos ou profissões – em geral têm pouca repercussão nos tomadores de decisões. E outros países – os Estados Unidos e a Europa em geral, salvo algumas exceções, como também a América Latina – ficarão para trás devido à preocupação com o desemprego (na verdade com votos) e principalmente à forte pressão contrária exercida por certos profissionais ou ocupantes de cargos na máquina estatal. Enfim, o futuro vai exigir Estados resilientes, que possam se adaptar bem à velocidade das mudanças tecnológicas e

também às mudanças geopolíticas e às consequências do aquecimento global. Algumas

evidências

atuais

mostram

que

países

asiáticos, notadamente a China, estão saindo na dianteira dessa corrida tecnológica. O governo chinês, nos últimos anos, vem gastando 200 vezes mais que o governo dos Estados Unidos com pesquisas em inteligência artificial, e existe um plano chinês para se tornar o líder mundial nessa área até 2030, ao passo que os EUA vem reduzindo seu financiamento para a ciência. O sistema autoritário da China e a propriedade estatal das três principais empresas de telecomunicações do país permitiram que ela expandisse muito a cobertura sem fio 5G, que é pelo menos 20 vezes mais rápida do que a 4G, permitindo melhor conectividade entre todos os tipos de dispositivos, de carros sem motorista a aparelhos inteligentes. Empresas chinesas como a Huawei e a Xiaomi já possuem tecnologia mais avançada que as norte-americanas

e,

apesar

das

pressões

dos

EUA,

começam a ganhar concorrências realizadas em vários países para a implantação do sistema 5G. Este século será de fato asiático e em 2050 as duas maiores economias do mundo serão desse continente: a China e a índia, vindo dos Estados Unidos em terceiro lugar. Mas a Ásia, com pouco mais da metade do PIB mundial, contará ainda com outros países entre as 20 maiores economias do globo: Indonésia (provável 4º lugar), Japão (7º), Rússia (8º, com a ressalva de ser também um país europeu), Arábia Saudita (12º), Turquia (14º), Paquistão

(15º), Coreia do Sul (17º) e Filipinas (20º). Mas assim como o século XIX foi europeu e o século XX europeu (até 1945) e principalmente norte-americano, com as duas guerras mundiais tendo sido iniciadas na Europa, o século XXI asiático encerra perspectivas ou tendências de conflitos regionais virarem mundiais, em especial envolvendo a China com a índia (ou com Taiwan, ou com o Japão), a Índia com o Paquistão, e as duas Coreias entre si (e por tabela envolvendo a China, a Rússia e os Estados Unidos). Com a provável continuação da contração internacional estadunidense, que tende a voltar para o isolacionismo e deixar

de

lado

sua

preponderância

geopolítica

especialmente na Ásia e na África, a China vai se expandir (econômica e geopoliticamente) ainda mais, e ocupar o vazio deixado pela presença cada vez menor dos Estados Unidos. Há alguns anos que a China se fortalece nos oceanos Pacífico e Índico, reivindicando uma ampla área no encontro desses oceanos, no mar da China Meridional, a leste do Vietnã, a oeste das Filipinas e ao norte da Malásia. A China reclama uma zona marítima que vai muito além das 200 milhas reconhecidas internacionalmente, alegando que, segundo mapas chineses antigos, toda essa zona, com suas inúmeras ilhas, pertencia ao império chinês. Também vem construindo várias ilhas artificiais nessa zona marítima, como forma de expandir suas 200 milhas territoriais e também como bases de apoio para suas frotas. E protestou veementemente quando a Índia, a pedido do Vietnã, começou a fazer prospecções de petróleo próximo ao litoral

vietnamita. Embora essa área litorânea se situe dentro das 200 milhas territoriais do Vietnã, a China alega que lhe pertence, e há anos vem militarizando esse mar com navios de guerra cada vez mais numerosos, circulando diariamente na tentativa de intimidar esses países e controlar essa zona marítima. Há uma crescente disputa geopolítica no oceano Índico. A expansão econômica e geopolítica da China, que vem aumentando sua presença econômica e militar nesse oceano, tem preocupado a Índia, que sempre se considerou a potência regional nessa zona marítima ao sul do seu território. A China vem realizando projetos de construção no Paquistão, rival da Índia, e seus navios de guerra navegam constantemente pelo oceano Índico. A recente expansão naval chinesa se deve à pretensão de hegemonia na Ásia, e também na África, além do fato de o oceano Índico ser a principal rota marítima do comércio internacional de petróleo, pois a China hoje é a maior importadora mundial – e a Índia vem em terceiro lugar (após os Estados Unidos), o Japão em quarto e a Coreia do Sul em quinto. A China, portanto, está na corrida para se tornar uma superpotência, aproveitando o vácuo criado na região pelo declínio do poder dos Estados Unidos, que pouco a pouco se retraem e parecem dispostos a negligenciar os acordos de defesa assinados após a Segunda Guerra Mundial ou a Guerra da Coreia, como os de garantir a segurança do Japão, das Filipinas e da Coreia do Sul. Esse retraimento da presença estadunidense na região vem contribuindo para impulsionar a expansão chinesa. Em 2013, a China ampliou sua zona marítima de defesa, sobrepondo-a à zona japonesa. Além disso, anunciou novos regulamentos de pesca e a necessidade de autorização chinesa para navios estrangeiros operarem em mais da metade do mar da China, que banha China, Japão, Taiwan e

Coreia do Sul. Com os Estados Unidos preocupados com as intermináveis crises no Oriente Médio, com o seu entorno mais imediato (México e Canadá, além da América Central) e, notadamente, com seus problemas internos, potências regionais como Índia, Japão e Austrália (no Pacífico Sul) começam a investir mais no setor militar e a se unir para confrontar a China. Esses três países assinaram pactos de defesa e têm realizado exercícios militares conjuntos. Em dezembro de 2013, pela primeira vez a Marinha japonesa realizou um exercício marítimo no oceano Índico, em conjunto com a Marinha indiana. Esses três países estão se aliando para suprir a possibilidade de os Estados Unidos deixarem de equilibrar o crescente poder da China nessa região do Índico, da parte asiática do Pacífico e do sul desse oceano. Mas toda essa tendência de expansão da China, bem como os intermináveis problemas fronteiriços entre Índia e Paquistão, ou entre Índia e China, mostra que conflitos militares intensos, talvez até mundiais, não serão mais deflagrados na Europa e sim na Ásia. Em busca de maior protagonismo mundial,

especialmente na Ásia, África e até na Europa, a China em 2013 lançou o programa OBOR (One Belt One Road, isto é, um cinturão e uma estrada), também chamado de nova rota da seda, que consiste numa série de investimentos chineses e conjuntos com pelo menos 60 países europeus, asiáticos e africanos,

sobretudo

infraestrutura.

Esses

nas

áreas

investimentos

de

transportes

deverão

ser

e

tanto

terrestres (o cinturão), conectando a Europa, o Oriente Médio, a Ásia central e a África — regiões de extrema importância geopolítica — quanto marítimos (a rota), passando pelos oceanos Índico e Pacífico e também pelos mares Mediterrâneo e Vermelho. O projeto deve se conectar com as obras chinesas que já estão sendo feitas na África e

na Ásia central. Tal programa tem ideias arrojadas, como a de um corredor de gasodutos e oleodutos vindos da Ásia central, riquíssima em gás natural e petróleo, ou uma infraestrutura de redes de telefonia, internet, rodovias e ferrovias cortando desde a Europa até a Ásia. Mas essa nova rota da seda não é pensada como um arranjo multilateral, negociado entre os diversos países ao mesmo tempo, mas sim como acordos bilaterais da China com cada país em particular. Quanto à África, investimentos chineses estão sendo ampliados desde 2007, ocasião em que foi lançado o CADFund, o Fundo de Desenvolvimento China-África. Os investimentos

estão

concentrados

em

infraestrutura

(rodovias, ferrovias, portos), agricultura, mineração e indústrias. O interesse chinês na África se deve à rica abundância

em

matérias-primas:

estima-se

que

esse

continente disponha de 90% de todo o estoque mundial de platina

e cobalto, 75% de todo o cobalto, metade do

suprimento mundial de ouro, dois terços do manganês mundial e 35% do urânio mundial. Além disso há a possibilidade de tornar alguns países africanos – como Angola, por exemplo, onde a China vem investindo na expansão da agricultura de grãos, inclusive usando a tecnologia brasileira (feita pela Embrapa) de cultivo de soja e trigo em solos tropicais – como supridores de alimentos (grãos e até carnes) para a China, que atualmente importa de países sul-americanos e da Austrália, regiões que por identidades cultural e política mais próximas aos Estados

Unidos, não são considerados parceiros completamente confiáveis. Mas os investimentos chineses na África – como também os europeus e estadunidenses – vem contribuindo para o melhor desempenho da economia do continente (pelo menos de grande parte dos países) neste século. Todavia, o que mais salta à vista hoje na África é a continuidade de um rápido crescimento demográfico por ter, em média, os países de maiores taxas de natalidade do mundo. Esse continente, com a população de todos os países e territórios em conjunto, tinha apenas 480 milhões de habitantes em 1980 (10% da população mundial), 795 milhões em 2000 (13,1%) e projeções para 2050 indicam que terá mais de 2,5 bilhões, ou 25,8% da população mundial. (No início do próximo século, se as atuais tendências

prosseguirem,

o

continente

africano

irá

ultrapassar a Ásia e se tornar no mais populoso). Mas também a economia africana, como já referido, vem tendo um bom desempenho, apesar de alguns países retardatários ou até em recessão devido a guerras internas ou regimes políticos extremamente autoritários e ineficientes – ou mesmo pela presença de alguns Estados falidos. Mas o PIB africano como um todo, que era de 273 bilhões de dólares em 1980 (2,5% da economia mundial), e 2,6 trilhões de dólares em 2019 (2,8%), se mantidas as atuais taxas de crescimento (4,1% ao ano, em média, no período de 2010 a 2019, maior que a média mundial de 3,8% e bem superior à média latino-americana de apenas 2%), deverá ser de 9,250 trilhões em 2050, ou 3,2% da economia mundial. Ou seja,

quase alcançando o PIB dos países da América Latina em conjunto, com projeção para 10,6 trilhões de dólares em 2050. Mas a renda per capita do africano deve continuar a ser a mais baixa de todas as grandes regiões do globo: apenas 3 750 dólares em 2050, bem inferior à da América Latina (U$ 15 500) ou à média da população mundial nesse ano (U$ 22.200). Dois países africanos provavelmente estarão entre as 20 maiores economias do mundo: a Nigéria (14º lugar) e o Egito (15º), exatamente um da África subsaariana e o outro da África setentrional ou a parte africana do grande Oriente Médio50. A África do Sul, que já foi de longe a maior economia africana, em 2050 estará apenas na 27ª posição nesse ranking, bem abaixo da Nigéria e do Egito. Outra mudança significativa que o mundo conhecerá em 2050 é que a atual rápida urbanização vai resultar em cerca de 68% da população mundial vivendo em cidades. Pela primeira vez na história da humanidade, 2 de cada três habitantes do planeta serão citadinos e não mais moradores do meio rural. Existirão gigantescas áreas metropolitanas com mais de 30, 40 ou até 50 milhões de habitantes. As chamadas megacidades – cidades com mais de 10 milhões de habitantes – vão se multiplicar: eram 33 em 2018 e serão cerca de 120 em 2050. Essa intensa urbanização coloca uma série de desafios e possui aspectos tanto positivos como negativos. Por um lado, a urbanização em geral significa crescimento econômico e aumento da renda per capita: existe uma ampla gama de estudos que mostra

a relação entre desenvolvimento e urbanização, pois na cidade há alta densidade de atividades econômicas, maior divisão do trabalho, ligações comerciais mais curtas, maior e mais bem alocada utilização da força de trabalho, infraestrutura compartilhada etc. E sem dúvida que também implica no aumento no IDH dos países, pois a concentração populacional nas cidades facilita o acesso à eletricidade, água tratada e encanada, rede de esgotos, campanhas de vacinação, escolas e hospitais etc. Mas, por outro lado a urbanização

intensa,

especialmente

com

a

projetada

multiplicação de grandes cidades (existirão quase 2 mil cidades com pelo menos 1 milhão de habitantes) e das megacidades, implica numa série de problemas: a poluição do ar e das águas que cortam o meio urbano, a questão dos resíduos (esgotos e lixo), o alto consumo de energia e até mesmo a expansão da violência urbana, dos problemas de trânsito, de transportes intraurbanos, de habitação popular etc. São imensos desafios no sentido de tornar as cidades sustentáveis (ambiental e socialmente), que serão bem enfrentados em alguns países e tratados com medidas paliativas em inúmeros outros, inclusive na América Latina em geral. Nestes últimos casos, a ocupação desordenada do solo vai continuar a gerar edificações irregulares em áreas de risco sujeitas a inundações e/ou desabamentos, ou ainda de riscos à saúde produzidos por resíduos tóxicos. Uma boa notícia para 2050 é que nesse ano, provavelmente,

cerca

de

30%

ou

mais

da

energia

consumida pelos seres humanos no planeta será gerada por

fontes renováveis – solar, eólica, hidráulica, das marés e outras. Os carros e caminhões elétricos deverão já serem quase a metade dos veículos automotivos, e em vários países, especialmente na Europa, não mais existirão veículos movidos a óleo diesel ou a gasolina. E os que ainda circularem pelos demais países vão consumir muito menos óleo ou gasolina por quilômetro rodado – e emitirem menos gases tóxicos – devido a novas tecnologias de eficiência no uso da energia nos motores automotivos. Mas as fontes fósseis e extremamente poluidoras – carvão mineral, gás natural e petróleo – ainda vão predominar na matriz energética global, devido principalmente a investimentos que estão sendo realizados (ou projetados) com vistas à extração e comercialização desses recursos – e também devido a novas descobertas de reservas de petróleo e gás natural em várias partes do mundo, especialmente na Ásia central e na África, além dos métodos para rápida extração de óleo das imensas reservas de xisto betuminoso. Os Estados Unidos ainda serão uma grande potência econômica e geopolítica, mas com muito menos vocação para agir militarmente em todos os recantos do globo. A transição da supremacia global norte-americana para a chinesa provavelmente será pacífica, ocorrendo apenas conflitos diplomáticos e comerciais e não conflitos militares. Como um regime democrático (ainda que com ressalvas) e federativo,

e

com

uma

população

cada

vez

mais

diversificada em termos étnicos – o país recebe por volta de um milhão de imigrantes (legais ou ilegais) a cada ano e a

taxa de crescimento demográfico das populações latina, católica e de afrodescendente é superior à dos WASP (White, Anglo-Saxon and Protestant, isto é, os brancos, anglo-saxônicos e protestantes) –, os Estados Unidos cada vez mais são uma nação dividida como ficou evidente nas últimas eleições presidenciais e também nos recentes e massivos

protestos

dos

afrodescendentes

contra

o

tratamento violento e preconceituoso que recebem das forças policiais. Existem aqueles xenófobos e que sentem aversão pelos imigrantes mais recentes, pelos latinos e pelos afrodescendentes, e que pensam que o país deveria ser autossuficiente e pouco se preocupar com o restante do mundo. E existem os grupos minoritários, embora em número e proporção cada vez maior na sociedade norteamericana, que clamam por direitos e igualdade de oportunidades (em empregos, no tratamento pela polícia, na alocação dos recursos públicos) com os que se consideram genuinamente brancos. Existem os interesses de empresas que investem no exterior, mesmo à custa do aumento do desemprego no país, em busca de menores custos de produção e maiores lucros, e os interesses de políticos que procuram impedir isso (ou clamam pela volta das empresas) com vistas a ganhar mais votos. Isso tudo somado às pífias atuações das tropas estadunidenses no Iraque e no Afeganistão, além dos reclamos de familiares contras mortes e mutilações de soldados, contribui para a crescente falta de aptidão dos Estados Unidos em continuar a desempenhar o papel de xerife do mundo, que teve o seu

auge e momento único com a guerra do Golfo e o final da União Soviética, em 1991, quando alguns autores, de forma apressada,

chamaram

esse

país

de

“superpotência

solitária”. Como o elevado padrão médio de vida vai prosseguir

neste

século,

mesmo

com

a

crescente

desigualdade social e o aumento no número dos que vivem abaixo da linha nacional da pobreza, e como o argumento de promover a democracia no restante do mundo já não tem muitos adeptos, os Estados Unidos tendem a reagir passivamente ao expansionismo chinês (ou russo, no seu entorno) mesmo com a eventual futura anexação de Taiwan (através de um governo títere, ou de eleições manipuladas), que será tão somente objeto de protestos diplomáticos e talvez algum boicote comercial isolado, mas no fundo nenhuma ação efetiva contra uma violação da soberania de um aliado. Uma prévia disso já ocorreu com a anexação pela Rússia de uma parte do território ucraniano – a Criméia e Sevastopol –, em 2014, quando os países europeus e os Estados Unidos se limitaram a protestos diplomáticos. Quanto à Europa, ela será em 2050 um continente com uma população cada vez mais reduzida e envelhecida. As projeções para esse ano indicam que o continente europeu contará com cerca de 660 milhões de pessoas, ou menos de 7% da população mundial, algo bem distante dos 21,6% que detinha

em

1950.

Além

de

ter

uma

população

proporcionalmente bem menor frente ao resto do mundo, a Europa também estará mais envelhecida. A idade média (não confundir com expectativa de vida) de um europeu

hoje é de 39 anos, sendo que em 2050 já será de 50 anos. A idade média no mundo hoje é de 28 anos e em 2050 será de 32. A Europa atual já conta com 20,6% de sua população com 60 anos ou mais de idade, e em 2050 essa proporção chegará

a

35%,

enfim

uma

das

populações

mais

envelhecidas do mundo junto com a Rússia e com o Japão. Sem dúvida que a escolaridade média da população europeia é uma das maiores do mundo, algo fundamental numa época em que o que mais conta são os recursos humanos ou o “poder cerebral” na expressão de Lesler Thurow. Isso é essencial para a produtividade do trabalho e para o poder brando, o softpower – isto é, para influenciar os outros através de ideias, livros, softwares, invenções, exposição na mídia e em redes sociais, filmes e séries de TV,

sites

na

internet,

boas

universidades,

etc.

Mas

provavelmente nesse quesito a Europa em 2050 já terá sido superada (ou em vias de) pelo maior avanço da China e até da Índia, recuando para a quarta potência cultural atrás dos Estados Unidos e desses dois países asiáticos. Vejamos agora o poderio econômico. Em 2019, a União Europeia com 27 Estados membros (isto é, ainda sem contar a saída do Reino Unido) possui um dos maiores PIBs do mundo, na casa dos 18,4 trilhões de dólares contra 21,3 dos Estados Unidos, 14,4 da China e 5,0 do Japão. O PIB europeu deverá ser, se mantidas as tendências das últimas décadas, de 24,2 trilhões de dólares, ou apenas 10,8% do total mundial, bem menor que os 18,5% que detinha em 1960. Mas continuará a ser um continente rico e com

elevada renda média por habitante, e também pela presença de alguns dos maiores IDHs nacionais do mundo. Projeções para 2050 indicam que a China terá o maior PIB do globo (61 trilhões de dólares, ou mais de 27% do total), seguida pela Índia (42,2) e pelos Estados Unidos (41,3). Cada um desses três países sozinho terá uma produção econômica anual maior do que todo o continente europeu somado, mesmo incluindo a Rússia (que será a maior economia da Europa em 2050) e a Turquia (a quinta após a Rússia, a Alemanha, o Reino Unido e a França, embora já quase ultrapassando esta). Especulando um pouco, podemos imaginar que, em seu declarado propósito de alargamento, a União Europeia de 2050 abrangerá a Geórgia e a Turquia (desde que haja uma mudança no seu atual regime fortemente islâmico e antiocidental), além de outros Estados do leste europeu, e talvez Ucrânia, a Rússia (desde que haja uma mudança na orientação do atual governo que pretende recriar a extinta superpotência soviética) e outros países da parte ocidental da antiga União Soviética. Essa é inclusive uma condição para o bloco continuar sendo uma das quatro potências econômicas e militares do globo. Com isso, o equilíbrio de poder na organização penderia para o leste, com uma maior importância relativa dos países da atual Europa Oriental (incluindo a Turquia) e logicamente da Rússia, se ela aderir ao bloco. Haverá um maior equilíbrio entre o leste e o oeste do continente ao invés da atual supremacia inquestionável da parte ocidental.

A União Europeia tende a ganhar bastante em termos de território e recursos naturais com a inclusão da Turquia, Ucrânia e principalmente Rússia. E esta tende a ganhar em termos econômicos e até geopolíticos (pois sem dúvida deverá se tornar num dos líderes do bloco) com a sua

associação

à

UE.

Esta

ganharia

uma

maior

autossuficiência em água potável, petróleo e gás natural, além de minérios e solos agriculturáveis, apesar dos inevitáveis atritos sobre cotas e subsídios agrícolas entre as “novas nações” da UE e as atuais líderes (especialmente França). Também o poderio militar vai se enormemente com a entrada da Rússia no bloco. Como a Rússia desde Pedro, o Grande, na virada do século XVII para o XVIII, optou por ser um Estado europeu e ocidental – e deixando de lado a ilusão de

excepcionalidade

representada

pela

experiência

totalitária de 1917 a 1991 –, é bastante provável que se componha com a França e a Alemanha, líderes políticas da UE, e organize um outro pacto militar alternativo à OTAN. Mas esta organização militar poderá até prosseguir, pois uma eventual Rússia mais ocidentalizada compartilhará certos interesses com os Estados Unidos, Canadá e a Europa contra possíveis ameaças representadas pelo radicalismo islâmico, que inclusive tem forte influência em certas regiões dentro da própria Rússia. Mas para isso os Estados Unidos deverão aceitar um papel mais modesto, que por sinal já vinha sendo anunciado desde 2008 pelos candidatos à presidência: não mais o líder incontestável do mundo ocidental e sim um parceiro da nova Europa unificada e de

uma Rússia que reafirme o ideal de Pedro, o Grande. Por sinal, essa já era a recomendação de Huntington – uma união dos Estados Unidos com a Europa face aos “outros” – desde que anunciou a sua (questionável) tese sobre os “choques de civilizações”. A Europa alargada de 2050 será ainda mais heterogênea que a atual. Ela não mais será basicamente anglo-saxônica, germânica e latina, mas sim em grande parte

africana,

eslava

e

turca.

Ela

não

mais

será

predominantemente cristã e sim em grande parte islâmica. E a liderança da França respaldada pela Alemanha será contrabalançada por um maior poderio do Leste Europeu, da Rússia, principalmente, e da Turquia, caso estas ingressem na UE, o que seria um reflexo do provável deslocamento do eixo econômico (e demográfico) do continente do oeste para leste. O grande desafio da Europa será compatibilizar essas diferenças culturais. Ela será uma espécie de laboratório do resto do mundo, da necessidade de se construir

uma

democracia

global

multiétnica

e

multicivilizacional. É a região do globo onde há com maior intensidade a tensão entre uma visão ocidental e cristã e outra islâmica. É a região onde nasceram as ideias democráticas modernas com seus valores ou princípios – os direitos humanos com sua concepção de indivíduo ou cidadão independentemente da família, estamento ou casta, a liberdade de opinião e de imprensa, a separação entre religião e vida pública, a igualdade de todos perante a

lei sem levar em conta o gênero, a orientação sexual, a idade, a religião ou a cor da pele, etc. –, que neste novo século estão sendo colocados em xeque pela convivência no mesmo espaço político de culturas bastante diferentes. Esse é o grande dilema da Europa, hoje e mais ainda em 2050. Muitos percalços existem no caminho da construção dessa nova democracia multiétnica e multicultural. Conflitos já ocorrem e ocorrerão com maior intensidade. Mas se esse feito for alcançado, com certeza indicará um norte para o resto do mundo.

Frente a tudo isso, acreditamos que a

Europa ainda será um dos centros mundiais de poder, enfim uma grande potência mundial. Mas de forma alguma com países isolados – Alemanha, França, Reino Unido ou mesmo Rússia –, pois nenhum deles terá qualquer chance em comparação com China, Estados Unidos ou Índia. Só unida a Europa permanece como um dos polos de poder em 2050, embora provavelmente apenas numa posição de terceiro ou o quarto lugar num mundo cada vez mais multipolar.        À título de conclusão, mesmo que provisória, cabe reafirmar que o futuro sempre está indeterminado e que muitos dos prognósticos – sobre crescimento demográfico e urbanização, por exemplo – têm grande probabilidade de ocorrerem de fato, enquanto que outros – por exemplo, as projeções sobre o crescimento de cada economia nacional ou mesmo de toda a economia global – são apenas tendências baseadas nos atuais (desta última década) ritmos de crescimento, algo que nunca é constante e sempre

está

sujeito

a

alterações

inesperadas.

As

representações sobre avanços tecnológicos e seus impactos têm ótimas chances de se concretizarem, ao passo que as conjecturas sobre o futuro da União Europeia com a eventual entrada da Rússia e da Turquia são apenas especulações, embora possam eventualmente se realizar. E fatores imprevisíveis – como enormes catástrofes naturais ou de saúde pública (pandemias ainda mais graves que a covid-19), guerras com armamentos atômicos e outros com enormes impactos nos países, na economia e na correlação de forças na escala mundial – podem ocorrer e mudar todo o cenário projetado (ou com algum grau de probabilidade de se efetivar) para 2050. Cabe ainda esclarecer que este é apenas um ensaio feito em poucas semanas, e não um estudo

exaustivo

com

a

pretensão

de

analisar

as

possibilidade de todas as regiões do globo. Sem dúvida que faltaram referências à Oceania, particularmente ao provável papel da Austrália, à América Latina, especialmente em relação ao Brasil, ao Oriente Médio, notadamente na questão entre Israel e os vizinhos árabes, ou dos atuais enigmas da Síria e do Irã, como também explicitar melhor a eventual atuação da Índia como uma grande potência, além de várias outras questões, mas isso tudo demandaria um texto bem mais longo, praticamente um novo livro, algo que não pretendíamos (nem poderíamos) realizar nestes meses de isolamento social devido à pandemia do coronavírus. São Paulo, novembro de 2020.    

Bibliografia consultada

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SCHWAB, K. A Quarta Revolução Industrial. SP, Edipro, 2019. UK MINISTRY OF DEFENSE. Global Strategic Trends. The Future Starts Today. Sixth Edition. Disponivel in: www.gov.uk/development-concepts-and-doctrine-centre. Acesso em 09 set. 2020. UNITED NATIONS. World Population Prospects.The 2017 Revision. Disponível in: https://population.un.org/wpp/Publications/Files/WPP2017_KeyFindings.pdf.

Acesso em 03 out. 2020.

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Notas

[←1] Cabe fazer uma distinção entre o uso comum da palavra teoria e seu significado científico. No senso comum, teoria significa um conhecimento especulativo, uma fantasia ou hipótese que não tem qualquer comprovação prática. Mas na ciência moderna teoria é um conjunto de regras ou leis que se aplicam a um objeto específico e que nada têm de especulativo ou de conjectural, pois sempre é uma hipótese já amplamente comprovada por experimentos ou predições. Por isso fala-se em teoria da evolução e seleção natural, em teoria da relatividade ou em teoria da eletricidade. Não são especulações distantes da realidade e sim conjunto de regras ou leis já corroboradas por suas aplicações práticas.

[←2] Ao recuperar a antiga palavra Cosmos, considerada superada em sua época (desde pelo menos o século XVI já se usava o conceito de universo), Humboldt pretendeu exatamente retomar a ideia grega de harmonia entre o humano e o natural. Ele definiu Cosmos como “um todo harmoniosamente ordenado". E afirmou, nessa sua última obra, que a ciência do Cosmos visa mostrar ao habitante da Terra que o seu horizonte é muito mais amplo do que qualquer nação ou região, e abrangeria o conjunto de todas as coisas que preenchem o espaço, desde as mais remotas nebulosas (galáxias) até a distribuição climática das coberturas vegetais e mesmo os minúsculos organismos. Ele assinalou que nenhuma outra palavra existente (Humboldt havia pensado em Gaia, em Sistema Físico da Terra, em Mundo e outros títulos antes de se decidir por Cosmos, palavra originada com Pitágoras e utilizada por Aristóteles) captou o alcance das harmonias observadas desde os céus até a terra sob nossos pés. Cosmos, assim, seria a reunião de todas as coisas no céu e na terra, o conjunto de fenômenos interligados que constituem o mundo perceptível.

[←3] É fato que certo marxismo vulgar critica a objetividade (que confunde com neutralidade) e o distanciamento crítico, chamando de “positivistas” a todos que os apregoam. Segundo esse marxismo, o estudo do social moderno deve ser “engajado” no sentido de, por princípio, ser anticapitalista e com assunção de uma perspectiva “proletária” ou “socialista”. Mas esse posicionamento – que foi bastante significativo no século XIX e em grande parte do século XX, mas hoje em dia cada vez mais raro – sempre produziu estudos meramente panfletários e com o objetivo (implícito ou escamoteado) de tomada do poder por parte de certa camada burocrática, que, sempre que alcançou esse objetivo produziu uma férrea ditadura que limitou mais ainda as liberdades e dos direitos humanos do que o regime anterior que combatia.

[←4] Darwin nunca entendeu a evolução e a seleção natural como um processo inexorável que, necessariamente, teria que produzir o ser humano. Pelo contrário, ele destacou constantemente o papel do acaso, da indeterminação na seleção natural e chegou a afirmar que o ser humano surgiu ou se destacou mais por acidente ou caso furtuito, nessa história natural, do que por uma férrea determinação. Mas a leitura vulgar da evolução (palavra que, por sinal, Darwin não gostava de utilizar), inclusive a marxista, entendia que existiram etapas ou fases obrigatórias e inescapáveis tanto na história natural como até mesmo na história humana.

[←5] Para se ter uma noção de como a geografia foi meio colocada no ostracismo durante boa parte do século XX, podemos lembrar que a prestigiosa universidade de Harvard, considerada em muitos rankings como a melhor do mundo, fechou o seu curso de geografia em 1948, com a afirmativa de que a geografia "não é uma disciplina universitária". A partir daí, como numa bola de neve, várias outras universidades norteamericanas e algumas no restante do mundo também fecharam seus cursos de geografia. Isso seria impensável para a física, a química, a geologia, a economia ou mesmo para a história. O fato de esse curso em Harvard – e em outras universidades – ter sido reaberto já em pleno século XXI (falaremos sobre os motivos disso mais adiante) não elimina esse difícil período para a ciência geográfica.

[←6] Outro motivo para essa reabertura de cursos de geografia em universidades, principalmente nos Estados Unidos, foi a revalorização da geografia escolar, que durante grande parte do século XX foi considerada uma disciplina secundária: em muitos países ela foi juntada com a história e a sociologia na disciplina ciências sociais, ou estudos sociais no Brasil dos anos 1960, 70 e 80. A partir do final dos anos 1980 essa disciplina escolar nascida nos Estados Unidos, que agregava história, sociologia e geografia, foi deixando de existir e a geografia passou novamente a ser uma disciplina autônoma nos sistemas de ensino. Mas isso também está ligado à mudança no clima intelectual, com a percepção que a educação de jovens não dever ser apenas instrumental e sim integral no sentido de aprender a pensar por conta própria (o que pressupõe criticidade), a agir, a conviver com os outros, a pesquisar etc.

[←7] Alguns falam em transdisciplinares, como se denotasse algo mais forte ou acima de multidisciplinar. Considero esse discurso apenas retórico e vazio de conteúdo. O prefixo latino “trans” pode significar “através de” (como em transafricano ou transatlântico) ou “além de” (como em transportar), podendo ainda ter um sentido de negação como em “transcurar” (= não cuidar). Como as ciências específicas não desapareceram nem estão em vias de se extinguir (muito pelo contrário), e como elas sem dúvida servem de base para os conhecimentos holísticos desde que estes sejam científicos (e não meramente místicos, como em alguns casos), não tem qualquer sentido falar em transdisciplinar como algo além das ciências e muito menos com sentido negativo ou oposto em relação às disciplinas científicas. E se o significado for “através de”, a palavra transdisciplinar nada acrescenta de novo em relação a multidisciplinar. Por sinal, o mesmo ocorre com a noção de empresas transnacionais, que, ou é o mesmo que firmas multinacionais ou apenas uma verborragia vazia de concretitude.

[←8] Resenha elaborada em setembro de 2009 e publicada inicialmente online.

[←9] LACOSTE, Y. A Geografia, in CHÂTELET, F. A filosofia das ciências sociais. Rio de Janeiro, Zahar, 1974, volume 7 da obra História da Filosofia, pp. 221274. A edição original desta obra foi feita em 1973 pela Librairie Hachette de Paris.

[←10] FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979, p. 212. Este livro na verdade é uma antologia de textos variados que Foucault publicou em diversas revistas (na Itália, na França, nos Estados Unidos) desde 1971.

[←11] VESENTINI, J. W. Apresentação, in LACOSTE, Y. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar para fazer a guerra, Campinas, Papirus, 1988, pp. 7-13.

[←12] Veja-se sobre isso o texto de LACOSTE, Y. Liquidar a geografia... Liquidar a ideia nacional? In: VESENTINI, J. W. (Org.), Geografia e Ensino – Textos Críticos, Campinas, Papirus, 1989, pp. 13- 82.

[←13] Basta lembrar o estudo de Ruth Benedict (O crisântemo e a espada, editora Perspectiva, SP, 1972), na verdade uma pesquisa antropológica feita durante a Segunda Guerra Mundial com japoneses a pedido do governo norte-americano para entender a cultura nipônica – no fundo, para saber interrogar os prisioneiros com vistas a obter informações vitais – durante o conflito, porque, segundo as palavras da Autora, “Os japoneses foram os inimigos mais hostis jamais enfrentados pelos Estados Unidos numa guerra total”. (p. 9). Basta lembrar ainda do uso da psicologia na guerra do Vietnã – até mesmo nas cores e desenhos dos helicópteros norte-americanos –, do uso da física para fazer armamentos atômicos (e na verdade todos os outros que demandam tecnologia), do uso da química para armamentos químicos ou do uso da informática e da internet nos conflitos atuais. Sem dúvida que também os conhecimentos geográficos – e os mapas – são fundamentais para a guerra, mas não apenas ou primordialmente como advoga Lacoste.

[←14] Resenha de outubro de 2006 publicada originalmente online.

[←15] Ver a esse respeito as obras de KRUGMAN, P. Development, Geography, and Economic Theory. Massachussets, MIT Press, 1997; KRUGMAN, P. Geography and Trade. Massachussets, MIT Press, 1993; KRUGMAN, P. “Increasing returns and economic geography”, in Journal of Political Economy. Agosto de 1991, n.99, pp. 483–99; KRUGMAN, P., FUJITA M. e VENABLES, A. Economia espacial. São Paulo, Futura, 2002; SACHS, J. O fim da pobreza. São Paulo, São Paulo, Cia. das Letras, 2006; e SACHS, J. “Notes on a new sociology of economic development”, in HUNTINGTON, S. (Org.). Culture matters. Nova York, Basic Books, 2000.

[←16] LANDES, David S. Riqueza e a pobreza das Nações. Rio de Janeiro, Campus, 1998.

[←17] Sobre este item, cf. as análises percucientes de MORIN, Edgar. Introduction à La pensée complexe. Paris, Seuil, 2005.

[←18] Esse mito na verdade foi construído por franceses (La Blache, Durkheim e principalmente Lucien Fèbre) no início do século passado e teve motivações corporativistas (sociólogos e historiadores, num viés positivista, acusavam Ratzel, especialmente na sua geografia política, de estar “invadindo o seu objeto de estudos”) e também patrióticas (havia na época um intenso clima de rivalidade entre a Alemanha e a França, em especial um rancor dos franceses pelas derrotas que sofreram nas guerras napoleônicas e na guerra franco-prussiana de 1870-71). Mas sem dúvida que existiram pensadores adeptos de um determinismo geográfico, mesmo sem usar essa identificação, pelo menos até meados do século XIX. A partir daí esse viés foi declinando em função dos avanços tecnológicos com a Revolução Industrial e o crescente poderio das sociedades modernas sobre o seu meio ambiente. Por sinal, as condições naturais têm sim um peso significativo nas sociedades tradicionais, embora evidentemente não seja o fator determinante, que em geral não existe, pelo menos não no socialhistórico, no qual uma dada realidade sempre é complexa e resultado de inúmeros fatores interligados, às vezes até num número indeterminado. Por esse motivo é absurda a acusação de determinista que alguns geógrafos fazem a Jared Diamond. Mas não foi o caso de Ratzel, que no fundo buscou perscrutar e sistematizar a dimensão espacial ou geográfica da sociedade humana, em especial da política (estudando territórios, fronteiras, ordem mundial, as relações do Estado com o seu território, etc.), mas nunca afirmou explicitamente que essa dimensão determinaria de forma unívoca a sociedade ou a atividade política. A respeito da construção desse mito da “escola determinista” na geografia germânica, veja-se nosso artigo in http://confins.revues.org/index1162.html.  

[←19] UNWIN, Tim. The place of Geography. London, Longman Group, 1992, p.262.

[←20] Resenha elaborada em 2004 e disponibilizada inicialmente online.

[←21] HARVEY, D. Explanation in Geography, London, Edward Arnold, 1969; CLAVAL, P. La pensée géographique, Paris, 1972; e LACOSTE, Y. La géographie, in CHÂTELET, F. (Org.), La philosophie des sciences sociales, Paris, 1973, artigo que posteriormente seria ampliado no célebre livro La géographie, ça sert, d’abord, à faire la guerre, Paris, 1976.

[←22] Nesse supra referido ensaio de 1973, Lacoste adota a interpretação de Foucault segundo a qual a partir da Revolução Francesa e principalmente no transcorrer do século XIX – seja com Hegel, com Marx , com os anarquismos ou mesmo com o positivismo –, a categoria tempo passou a ser supervalorizada (a “revolução”, as transformações históricas que produzem mudanças radicais na sociedade e no seu meio ambiente), sendo que concomitantemente o espaço tornou-se algo desvalorizado, visto até mesmo como “conservador” ou “partidário do status quo”.

[←23] Engraçado é que esse ex-teórico do Partido Comunista Italiano (PCI) virou neoliberal a partir do final dos anos 1980, tendo inclusive se tornado num defensor do governo direitista de Silvio Berlusconi. Sobre a reviravolta no posicionamento intelectual de Colletti, cf. as menções irônicas de BOVERO, Michelangelo. Contra o governo dos piores. Uma gramática da democracia. Editora Campus, 2002, pp. 160-2.

[←24] Para evitar uma longa digressão, no final desta resenha há um Adendo no qual esmiuçamos melhor este pretenso “método marxista” ou “regressivo”.

[←25] SCHMIDT, A. El concepto de naturaleza en Marx, México, Siglo Veintiuno, 1976. Integrante da Escola de Frankfurt, Schmidt defendeu este trabalho, nos anos 1960, como tese de doutorado em filosofia.

[←26] VESENTINI, J. W. Geografia, Natureza e Sociedade, São Paulo, Contexto, 1989, pp. 41-50.

[←27] Resenha elaborada em 2005 e publicada in SILVA, Marcos (Org.), Dicionário Crítico Nelson Werneck Sodré, Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2008, p. 214218. Contudo, na edição desse dicionário coletivo, à revelia do organizador, foram cortados alguns trechos desta resenha que agora aparece na íntegra.

[←28] Para um aprofundamento nessa temática de como os franceses no início do século XX criaram o mito de uma “escola determinista” capitaneada por Ratzel veja-se o nosso ensaio Controvérsias Geográficas. Epistemologia e Política, disponível na revista Confins on-line: http://confins.revues.org/document1162.html

[←29] Previsão essa totalmente equivocada, como podemos constatar hoje, nesta primeira década do século XXI. É interessante notar que o nacionalismo do ex-general impediu que ele adotasse a atitude de outros marxistas da época, principalmente alguns propagadores da teoria da dependência, que usaram essas previsões de Khan e outras semelhantes, concordando implicitamente com elas, para divulgar a ideia de que somente rompendo com o capitalismo – isto é, implantando o socialismo e a economia planificada – é que os países dependentes, como o Brasil, conheceriam um real crescimento econômico. (Outro disparate desmentido pelo tempo histórico, pela crise terminal da planificação da economia no final dos anos 1980 e pelo acelerado crescimento com base na economia de mercado dos “tigres asiáticos” – e posteriormente da China e da Índia –, além de outras economias que no final dos anos 1960 eram tidas como subdesenvolvidas e estagnadas).

[←30] Resenha elaborada em 2004 e inicialmente disponibilizada online.

[←31] Para evitar uma enorme digressão aqui, deixamos para o final desta resenha a discussão mais detalhada dessa questão do sujeito nas relações de exploração e dominação – se regiões ou classes/grupos sociais.

[←32] Cf. SANTOS, M. e SILVEIRA, M. L. O Brasil. Território e Sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro, Record, 2001, pp.151-2.

[←33] Os autores propõem uma nova regionalização do Brasil: regiões CentroOeste, da Amazônia, Nordeste e Concentrada, sendo esta última uma junção das atuais regiões Sul e Sudeste do IBGE. Uma proposta que, em tese, teria por base o “meio técnico-científico-informacional” (embora isso não fique, de forma alguma, convenientemente explicado, isto é, como esse “meio” diferenciaria essa compartimentação regional no território brasileiro), mas que na realidade pouco destoa da divisão do IBGE e é bem inferior, na compreensão das disparidades regionais, do que a divisão em três regiões geoeconômicas.

[←34] Idem, p.188.

[←35] Cf. VILLENEUVE, P. Y. Classes sociais, regiões e acumulação do capital. In: Seleção de Textos n. 8, AGB-SP, 1981, pp.1-20. NOTA POSTERIOR (2020): esta expressão já se tornou consagrada na geografia: por exemplo, em A Dictionary of Human Geography, de autoria de Rogers, Castree e Kitchin, publicado pela Oxford University Press, 2013, aparece o verbete “Spatial fetichism”, definido como: Atribuição de poder causal ao espaço per se na determinação da ação humana. Em outras palavras, o espaço é visto como explicação para as relações sociais e econômicas. Os exemplos incluem as proposições de que “a forma urbana molda a natureza de uma comunidade” e “o centro explora a periferia”.

[←36] Cf. VESENTINI, J. W. Nova Ordem, Imperialismo e Geopolítica Global. Campinas, Papirus, 2003.

[←37] LÊNIN. El Imperialismo, Etapa Superior del Capitalismo, Buenos Aires, Anteo, 1971, p. 153.

[←38] MARX, K. O Capital. Livro 1, volume 2. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975, pp.696-704, passim.

[←39] GIANNOTTI, J. A. Contra Althusser. In: Teoria e Prática n.3, São Paulo, 1968; e Certa herança marxista, São Paulo, Companhia das Letras, 2000. No primeiro texto o então filósofo marxista reprocha Althusser por fazer uma leitura cientificista e anti-historicista de Marx centrada na oposição (que seria estranha para o criador do materialismo histórico) entre objeto de conhecimento e objeto real. Já no recente livro, o pensador pós-marxista e em tese pluralista afirma que Marx é apenas um clássico como outro qualquer e que sua leitura do real cometeu o equívoco de confundir contradição com contrariedade.

[←40] THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.

[←41] Resenha elaborada em 2009 e publicada inicialmente online.

[←42] Cf. CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II. São Paulo, Cia das Letras, 2007, pp. 106-125. O Autor menciona depoimentos de prisioneiros paraguaios durante a guerra, quando num gesto magnânimo (e também, provavelmente, com vistas a mostrar disposição para o diálogo e o término do conflito) D. Pedro II mandou soltar, que suplicaram para continuarem prisioneiros até o final da guerra, pois com certeza seriam fuzilados por ordem do energúmeno ditador, que não admitia que algum militar paraguaio fosse aprisionado sem resistir até a morte.

[←43] Cf. DORATIOTO, F. Maldita guerra. SP, Cia das Letras, 2002, pp. 95-6.

[←44] Sobre esse assunto ver nossa análise in VESENTINI, J. W. Nova Ordem, Imperialismo e Geopolítica Global, Campinas, Papirus, 2003, especialmente pp. 107-134.

[←45] Texto elaborado em 2006 para fazer parte de um livro paradidático sobre violência urbana, encomendado por uma grande editora e voltado para estudantes do ensino médio e fundamental II. Contudo, essa editora – que passou por sucessivas transferências de diretoria e de editores, com a venda de suas ações para um grupo empresarial, depois para outro etc. – desistiu da publicação deste livro e de outros já encomendados, o que significa que somente agora ele está disponível para os leitores. Mas esse livro paradidático, se publicado, teria fotos, gráficos e mapas coloridos, além de questões para os alunos refletirem, pesquisarem e debaterem, que foram deixados de lado nesta edição. Cabe esclarecer que, grosso modo, as ideias aqui apresentadas continuam atuais e, infelizmente, houve uma grande expansão do crime organizado no país.

[←46] Uma organização internacional que se dedica a pesquisar os custos da violência em geral nos vários países – o Institute for economics and peace –afirmou que no Brasil eles chegam a 7,1% do PIB. Cf. The economic cost of violence containment, disponível para download no site dessa organização: https://www.economicsandpeace.org/.

[←47] Texto elaborado a pedido da revista Visão, e publicado em 07/04/1993 com cortes para caber na página.

[←48] Outra possível exceção seria o sul da Bahia, a denominada zona cacaueira, que estranhamente neste momento não deu origem a um projeto de separação do restante do Estado apesar de uma relativa penetração popular da ideia, pelo menos a nível da classe média e dos grandes plantadores.

[←49] Ensaio publicado – com alguns cortes para economizar espaço – com o título de “Europa em 2050” no caderno Mais, da Folha de S. Paulo, 21/9/2008. Nesta coletânea, ampliamos o texto para incluirmos o restando do mundo ao invés de analisar apenas o continente europeu.

[←50] Esses países da África setentrional – Egito, Argélia, Marrocos, Líbia e Tunísia –, são classificados pelas organizações internacionais como parte do chamado MENA (sigla, em inglês, para Middle East and North Africa), ou seja, norte da África e Oriente Médio, que chamamos aqui de grande Oriente Médio. Mas as estatísticas que apresentamos da África incluem esses cinco países do norte do continente.