Imaginação e morte:Estudos sobre a representação da finitude 9788523011277

Neste livro, propomos-nos a trabalhar com um aspecto da multidisciplinaridade da morte: sua representação literária. Há

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Imaginação e morte:Estudos sobre a representação da finitude
 9788523011277

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Table of contents :
APRESENTAÇÃO ...............................................................9
PRIMEIRA PARTE: GASTON BACHELARD,
ADONIAS FILHO E TRAMA IMAGÉTICA
DA FINITUDE ....................................................................13
1. Poética da Razão e as razões da poética segundo
Gaston Bachelard......................................................15
1.1 A razão experimental na física moderna e
circunscrição do mito de logos...............................17
1.2 Tempo e compreensão – o circuito ontogenético
do tempo ........................................................... 24
1.3 Imaginação material e dinâmica..........................27
2. O cênico e o dramático – o romance dramático de Adonias Filho............................................................45 2.1 Leitura da trama imagética do tríptico adoniano....53
3. Dupla fenomenologia da imaginação em Gaston Bachelard .................................................................. 93
3.1 A fenomenologia da finitude em
Adonias Filho .....................................................98
3.2 A raiz do complementar e a dramatização da
estrutura da criatividade .....................................99
Referências .....................................................................101
SEGUNDA PARTE: ANÁLISES DE
REPRESENTAÇÕES DA FINITUDE..............................107
4. A epopeia de Gilgamesh ............................................109
5. O livro egípcio dos mortos .........................................115
6. A tragédia grega: Antígona, de Sófocles, e Medeia,
de Eurípides............................................................119
7. Amor e morte em Os sermões do Mandato, de Pe.
A. Vieira..................................................................123
8. Pedro Páramo, de Juan Rulfo ...................................131
9. Cantigas de esponsais e A causa secreta, de
Machado de Assis....................................................135
10. Impressões do crepúsculo, de Fernando Pessoa ............ 141
11. O Imaginário Agônico em Léguas da promissão,
de Adonias Filho .....................................................147
TERCEIRA PARTE: DESDOBRAMENTOS CONCEPTUAIS ................................................................157
12. A Teoria dos Obstáculos Epistemológicos:
Bachelard entre a Epistemologia e a Hermenêutica..159
13. Corpo, ritmo e ‘performance’: por uma leitura integrativa de Gaston Bachelard..............................171
14. Bachelard,interpretação,subjetividade:ainteração entre leitor e texto e o paradigma performativo nos estudos do imaginário .......................................... 191
15. Espaço onírico e espaço cênico: elementos para uma teoria dramática do conhecimento ..........................199
16. O vazio historiográfico em torno de Gaston Bachelard...209
17. O logos do mito em Eudoro de Sousa.....................215
18. Cronotopia mitopoética em História e mito,
de Eudoro de Sousa.................................................223
19. O diferencial da diferença: a Alethopoiesis,
de Ronaldes de Melo e Souza ..................................229
20. Descontinuidade machadiana e o fim da unidade orgânica: a metafísica das ruas nas crônicas..............239
21 Bakhtin/Vygotsky: fundamentos da tradição do horizonte compreensivo da linguagem.....................251

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MARCUS MOTA

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MARCUS MOTA

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Marcus Polo Rocha Duarte Fernanda Gomes e Lizandra Deusdará (Njobs Comunicação) Jonatas Bonach (Njobs Comunicação) Copyright © 2014 by Editora Universidade de Brasília Direitos exclusivos para esta edição: Editora Universidade de Brasília SCS, quadra 2, bloco C, nº 78, edifício OK, 2º andar, CEP 70302-907, Brasília, DF Telefone: (61) 3035-4200 Fax (61) 3035-4230 Site: www.editora.unb.br E mail: [email protected] Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorização por escrito da Editora.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília M917i

Mota, Marcus. Imaginação e morte : estudos sobre a representação da finitude / Marcus Frota. _ Brasília : Editora Universidade de Brasília, 2014. 260 p. ; 22 cm. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-230-1127- 7 1. Morte. 2. Finitude. 3. Adonias Filho, 1915-. 4. Bachelard, Gaston, 1884-1962. 5. Imaginação. 6. Hermenêutica. 7. Teoria da literature. I. Título. CDU 82.09

“Os mortais são os homens. Porque eles podem morrer é que eles se chamam os mortais. Morrer quer dizer ser capaz da morte enquanto morte. Só o homem morre.” Martin Heidegger “L’home est l’être entr’ouvert.” Gaston Bachelard “É sempre a escavação da existência nas trevas o que se realiza pela ficção que ausculta o ser em obscura presença”. Adonias Filho

Sumário APRESENTAÇÃO ...............................................................9 PRIMEIRA PARTE: GASTON BACHELARD, ADONIAS FILHO E TRAMA IMAGÉTICA DA FINITUDE ....................................................................13 1.

Poética da Razão e as razões da poética segundo Gaston Bachelard ......................................................15 1.1 A razão experimental na física moderna e circunscrição do mito de logos...............................17 1.2 Tempo e compreensão – o circuito ontogenético do tempo ........................................................... 24 1.3 Imaginação material e dinâmica ..........................27

2.

O cênico e o dramático – o romance dramático de Adonias Filho ............................................................45 2.1 Leitura da trama imagética do tríptico adoniano ....53

3.

Dupla fenomenologia da imaginação em Gaston Bachelard ..................................................................93 3.1 A fenomenologia da finitude em Adonias Filho .....................................................98 3.2 A raiz do complementar e a dramatização da estrutura da criatividade .....................................99

Referências .....................................................................101

SEGUNDA PARTE: ANÁLISES DE REPRESENTAÇÕES DA FINITUDE...............................107 4. A epopeia de Gilgamesh.............................................109 5. O livro egípcio dos mortos..........................................115 6. A tragédia grega: Antígona, de Sófocles, e Medeia, de Eurípides.............................................................119 7. Amor e morte em Os sermões do Mandato, de Pe. A. Vieira...................................................................123 8. Pedro Páramo, de Juan Rulfo....................................131 9. Cantigas de esponsais e A causa secreta, de Machado de Assis.....................................................135 10. Impressões do crepúsculo, de Fernando Pessoa.............141 11. O Imaginário Agônico em Léguas da promissão, de Adonias Filho......................................................147 TERCEIRA PARTE: DESDOBRAMENTOS CONCEPTUAIS.................................................................157 12. A Teoria dos Obstáculos Epistemológicos: Bachelard entre a Epistemologia e a Hermenêutica...159 13. Corpo, ritmo e ‘performance’: por uma leitura integrativa de Gaston Bachelard...............................171 14. Bachelard, interpretação, subjetividade: a interação entre leitor e texto e o paradigma performativo nos estudos do imaginário........................................... 191 15. Espaço onírico e espaço cênico: elementos para uma teoria dramática do conhecimento...........................199 16. O vazio historiográfico em torno de Gaston Bachelard....209 17. O logos do mito em Eudoro de Sousa......................215 18. Cronotopia mitopoética em História e mito, de Eudoro de Sousa..................................................223 19. O diferencial da diferença: a Alethopoiesis, de Ronaldes de Melo e Souza...................................229 20. Descontinuidade machadiana e o fim da unidade orgânica: a metafísica das ruas nas crônicas...............239 21 Bakhtin/Vygotsky: fundamentos da tradição do horizonte compreensivo da linguagem......................251

APRESENTAÇÃO A problematização da morte, a morte como questão, tem produzido um vasto conjunto de pesquisas e publicações nos mais diversos campos de saber. Procurando superar a prerrogativa religiosa como instância privilegiada de acesso ao destino e à finitude, tal racionalização da situação terminal humana manifesta-se, entre outros, na filosofia existencialista de Martin Heidegger, na historiografia de Philippe Àries, na psiquiatria de Elisabeth Kübler-Ross, na bioantropologia de Edgard Morin e na teoria da ficção de Frank Kermode.1 Diante dessa heterogeneidade de abordagens, multiplicamse os conceitos e propostas: abundam variações de uma possível ciência da morte, ou Tanatologia, como se pode ver nos neologismos Antropotanatologia, Biotanatologia, Psicotanatologia.2 Sob o horizonte da morte, vislumbra-se uma ampla redefinição do conceito da vida e existência, com suas implicações físicas e culturais. Neste livro, propomos-nos a trabalhar com um aspecto da multidisciplinaridade da morte: sua representação literária. Há um paradoxo fundamental ao se investigar a finitude: o sujeito que a estuda não a pode conhecer senão por seus efeitos. Grande parte daquilo que determina o objeto-morte efetiva-se em presságios, sonhos, crenças – material difuso e exploratório, apropriado e transformado em obras ficcionais. Assim, a constituição de uma ciência da morte, ou do ato de conhecer 1 Cito destes autores: HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1989; ÀRIES, P. O homem perante a morte I e I. Lisboa: Publicações Europa-América,1988; KÜBLE-ROSS, E. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fontes, 1994; MORIN, E. O homem e a morte. Rio de Janeiro: Imago, 1997; e KERMODE F. The sense of an ending. Studies in the theory of fiction. Oxford: Oxford University Press, 2000. 2 Consultar o livro de CARSE, J. Muerte y existência. Uma historia conceptual de la mortalidad humana. México: Fondo de Cultura Económica, 1987; e THOMAS, Louis-Vicent. Antropologia de la muerte. México: Fondo de Cultura Econômica, 1983.

APRESENTAÇÃO

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a morte, defronta-se com a necessidade de uma metodologia da atividade imaginante. Para esta metodologia, valemo-nos das investigações de Gaston Bachelard (1884-1962). Bachelard, epistemólogo e hermeneuta francês, desdobrou sua carreira entre a renovação do pensamento provocada por padrões mais complexos da matéria e as ricas experiências expressivas de escritores como Poe, Baudelaire e Claudel. As investigações bachelardianas impulsionaram o trabalho de pensadores como Pierre Bourdieu3 e Gilbert Durand,4 entre outros, promovendo um intenso debate sobre a inteligibilidade de eventos que se valem de elaborações ficcionais. A contribuição decisiva de Gaston Bachelard para a explicitação da atividade imaginante será articulada com detalhada análise de um conjunto de obras ficcionais que exploram a atualização dos efeitos da finitude. Entre elas, destaca-se a trilogia inteira composta a partir da representação da morte: Os servos da morte, Memórias de Lázaro e Corpo vivo, do escritor baiano Adonias Filho (1915-1990). O diálogo entre a teoria da imaginação de Bachelard e a trama imagética da finitude em Adonias Filho constitui a primeira parte deste livro, a saber “Gaston Bachelard, Adonias Filho e a Trama Imagética da Finitude”. Nesta primeira grande sequência de investigações, o questionamento da morte como representação efetiva-se a partir de organizações narrativas de imagens violentas, assassinas. Ao se dissecar a atividade imaginante que permeia o tríptico adoniano, interroga-se uma imaginação em torno da morte. Com isso, finitude e imaginação interpenetram-se, difundindo, em sua complementaridade, o esclarecimento das imagens da morte como conhecimento da representação de situações3 O livro A profissão do Sociólogo (Petrópolis: Vozes, 2002), de Pierre Bourdieu, é uma metodologia para a Sociologia desenvolvida a partir da epistemologia construtivista de Bachelard. 4 Como se observa em seu projeto de As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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IMAGINAÇÃO E MORTE: ESTUDOS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FINITUDE

-limite. O paradoxo da compreensão da morte aponta para a íntima correlação entre finitude e ficção: se o morrer é apreensível apenas em sua representação, obras que se aplicam em representar a morte são teorias da finitude, são imaginários cognitivos.5 Após a mútua implicação entre a fenomenologia da atividade imaginante em Gaston Bachelard e a dramaturgia narrativa da morte em Adonias Filho, passamos para a segunda parte deste livro – “Análises de representações da finitude”. Nela discutimos as relações entre finitude e representação em outras obras e autores, como A epopeia de Gilgamesh, O livro egípcio dos mortos, Antígona, de Sófocles, Medéia, de Eurípedes, Os sermões do Mandato, de Pe. Antônio Vieira, Cantiga de esponsais, de Machado de Assis, e Pedro Páramo, de Juan Rulfo. A análise desses imaginários possibilita-nos rever e ampliar estratégias interpretativas desenvolvidas na primeira parte deste livro. Trata-se de uma aproximação à longa história de representação da finitude, aqui interrogada pelo estudo de alguns de seus documentos. Em seguida, na terceira e última parte deste livro, “Desdobramentos Teóricos”, oferecemos discussão mais pontual de alguns tópicos que fundamentaram as precedentes análises e discussões, como mitopoética e linguagem, ampliando conceitos e reflexões previamente efetivadas. Os textos aqui apresentados disponibilizam questões fundamentais que determinaram a criação do Laboratório de Dramaturgia e Imaginação Dramática (LADI), no Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília.6 A partir das pesquisas ali desenvolvidas, aprimoraram procedimentos 5 Retomo a concepção de “ficção exploratória”, segundo W. Iser, em seu artigo What is Literary Anthropology? The Difference Between Explanatory and Exploratory Fictions. In: CLARK, Michael (Ed.). Revenge of the Aesthetic: the place of literature em theory today. Berkeley: University of California Press, 2000, p. 157-179. 6 Fundado em 1997, o LADI desde então diversificou suas atividades: de orientação para aulas e projetos de pesquisa no Departamento de Artes Cênicas para ações e interdepartamentais e interartíscas, como cursos de extensão, organização de seminário, traduções, elaboração de textos teatrais e montagens de óperas. Em 2008 e 2009, na Florida State University (FL, EUA) foram ministrados cursos de Playwriting (dramaturgia) a partir das pesquisas realizadas no LADI.

APRESENTAÇÃO

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de análise e discussão de ficções complexas (textos teatrais, filmes, dramas musicais), os quais foram veiculados em artigos acadêmicos e obras artísticas. Tais procedimentos de análise não somente buscam a inteligibilidade de atos imaginativos, como também proporcionam estímulos para a realização estética. O desdobramento e complementariedade entre uma teoria que explica e um ato que configura é exercitado a partir da ampla correlação entre arte e conhecimento. Ao mesmo tempo, pode-se acompanhar, na sucessão dos textos, o empenho de se elaborar uma escrita que, em meio à interdisciplinaridade de seu objeto de investigação, luta para encontrar uma expressão que coordene diferentes perspectivas e questões deste objeto. Em razão disso, há uma interação, em vários momentos, entre a racionalidade do intérprete e a expressividade das obras analisadas, explicitando um espaço de mútuo esclarecimento por meio do qual a experiência da leitura movimenta-se em trajetórias oblíquas, descontínuas e acumulativas. Dessa maneira, este livro, ao mesmo tempo em que apresenta resultados de uma extensa pesquisa sobre a representação da finitude, ele mesmo exibe-se, nos limites de sua elaboração, como exercício intelectual de uma série ainda aberta de tentativas de se decifrar as implicações do enigma-morte. Durante o transcurso dessas tentativas, muitas pessoas, em diferentes momentos, contribuíram com orientações e sugestões. Entre eles, agradeço a Ronaldes de Melo e Souza sua decisiva presença na elaboração da primeira parte deste livro; a Henryk Siewierski e ao saudoso Fernando Bastos, a leitura atenta também desta primeira parte; a Fontele Júnior e Flávio Luiz Rabello Gonçalves, a digitação do texto; e a Marcelo Américo, Robson André, Maurício Lemos, companheiros de uma aventura acadêmica e existencial tão rica quanto marcante.

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IMAGINAÇÃO E MORTE: ESTUDOS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FINITUDE

PRIMEIRA PARTE: GASTON BACHELARD, ADONIAS FILHO E A TRAMA IMAGÉTICA DA FINITUDE

1. A POÉTICA DA RAZÃO E AS RAZÕES DA POÉTICA SEGUNDO GASTON BACHELARD Adonias Filho e Gaston Bachelard comparticipam de um diálogo no qual a linguagem das imagens traduz-se enquanto teoria do conhecimento, a partir da finitude. A trama imagética acerca da morte, em sua abertura específica, questiona a modalização da experiência de constituição do saber. Conhecer a morte por suas imagens e revelar a compreensão em seus limites e limiares são momentos integrantes de uma teoria dramática do conhecimento.1 Em outras palavras, procurar tornar inteligível a atividade imaginante, como o faz Bachelard, e representar situações-limites, como o realiza Adonias Filho, são atos que mutuamente se esclarecem e se complementam. O amplo esforço de Bachelard em descrever a complexidade de uma atividade representacional melhor se compreende quando a análise de um imaginário intricado de imagens extremas é efetivada. Para tanto, neste primeiro momento, vamos nos concentrar na apresentação dos eixos temáticos da obra de Bachelard. Veremos que seu estudo da atividade imaginante articula-se a uma ampla consideração da racionalidade, de uma desconstrução dos esquemas ‘apriorísticos’ presentes na tradição cartesiana francesa. Na consideração ampla da racionalidade, três tarefas, três eixos temáticos se interpenetram. Inicialmente, rediscutir a razão ocidental, circunscrevendo-se ao campo de suas possibilidades. Aqui se trata de não só limitar a racionalidade, mas também de fundamentar a heurística observacional na finitude 1 Expressão tomada de Eudoro de Sousa (SOUSA, 1975).

PRIMEIRA PARTE A POÉTICA DA RAZÃO E AS RAZÕES DA POÉTICA SEGUNDO GASTON BACHELARD

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da compreensão que dá coerência à sua estrutura pressupositiva. Bachelard, frente à atividade racionalista da física relativista e quântica,2 procura descrever uma dialética limite-liminar por meio da qual compreensão se efetiva. É o que será discutido no tópico 1.1. Repensando a instância teórica consignada em seus limites e em seu campo de efetivação, Bachelard interroga-se pela temporalidade inerente aos atos envolvidos na constante reformulação dos procedimentos investigativos. Eis o segundo eixo temático (1.2): ao se instalar a razão experimental na atividade questionante da física contemporânea, é preciso julgar os valores epistemológicos de acordo com seus valores de construção. A ciência não corresponde a um mundo a construir, juger des valeurs épistémologiques d’après leurs valeurs de construction. La science ne correspond pas a un monde a décrire. Elle corespond a un monde a construire. (ARPC, 46).3 Assim, invertendo o eixo de referenciação de um sistema produtivo, subverte-se a planificação do saber em prol de sua especificidade no tempo de sua construção. Como veremos, a temporalidade hierarquiza a estrutura da compreensão, repondo o influxo da criatividade que a motiva. A compreensão, no horizonte de sua abertura, está no instante de sua diversificação e

2 De acordo com Niels Bohr (1985, p. 352) “recentes estudos teóricos e experimentais do fenômeno físico revelaram uma limitação em nossos conceitos ordinários da filosofia natural com respeito à descrição do comportamento de simples átomos. Esta limitação é uma imediata consequência da descoberta do quantum de ação elementar, que exclui a mera distinção entre o fenômeno atômico e a observação, já que qualquer observação necessariamente envolve em finita mudança no curso dos fenômenos. Esta circunstância obsta uma pictural descrição do fenômeno atômico e nos permite aplicar conceitos físicos somente em conexão com considerações probabilísticas”. Ver também Folse (1985), que acompanha a gênese do conceito de complementaridade e seus desenvolvimentos na economia do pensamento de Niels Bohr, e Bohr (1985) a respeito desta gênese. 3 As siglas como abreviações dos títulos das obras de Gaston Bachelard estão explicitadas na bibliografia desta primeira parte.

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IMAGINAÇÃO E MORTE: ESTUDOS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FINITUDE

existencialismo. É na experiência de sua perspectivação temporal que o sentido se constrói. Preconizando o tempo da criatividade sobre o espaço constante da repetição, Bachelard aprofunda seu projeto investigativo no terceiro e último eixo temático (1.3): interpretação do funcionamento da imaginação em seus fundamentos hermenêuticos, colocando-a como determinante na efetivação de atos cognitivos. A imaginação, em seus movimentos superpostos, descontínuos, ambivalentes e tautegóricos, dramatiza, expressa a franja de indeterminação, o horizonte não absoluto que move a compreensão. Disto, imaginar é uma propedêutica ao conhecer. A constituição de um imaginário, na isomorfia das imagens em seu intercâmbio ritmanalítico, exibe a compreensão na estrutura de sua criatividade. 1.1 A razão experimental na física moderna e a circunscrição do mito do logos Para Bachelard, “pensar cientificamente é colocar-se no campo epistemológico intermediário entre teoria e prática, penser scientifiquement c’est se placer dans le champ épistemologique intermédiaire entre théorie et pratique” (PN, p. 5), promovendo a reinterpretação do nexo entre sujeito e objeto para além das aporias realistas e racionalistas da epistemologia clássica. “Acima do sujeito, além do objeto imediato, a ciência moderna se funda sobre o projeto, audessus du sujet, au-delà de l’objet immédiat, la science moderne se fonde sur la projet” (NES, p. 11). Com isso, a ideação e o empirismo inerentes à heurística observacional se hierarquizam na razão de sua interdependência. Ocorre “a constituição do sujeito pela construção do objeto, la constituition du sujet par la construction de l’objet” (ET, p. 9). O que se conhece é o que se reconhece no questionamento PRIMEIRA PARTE A POÉTICA DA RAZÃO E AS RAZÕES DA POÉTICA SEGUNDO GASTON BACHELARD

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de sua modalidade de efetivação. A partir da caracterização de sua situação de conhecer, o intérprete confere sentido ao que empreende descobrir. A tematização de um saber se faz por sua circunscrição a um horizonte prévio.4 A ciência, antes de observar a natureza, deve interrogar-se quanto à natureza da observação.5 Para tanto, adota-se o seguinte emblema hermenêutico: “pensa-se antes de realizar para realizar, on pense avant de réaliser pour réaliser” (RA, p. 168). O particular é caso do possível 4 A respeito do conceito de horizonte, reorientamos o contexto fenomenológico de sua explicitação (V. HUSSERL, 1949: § 27-28, § 44-47, § 63-69, § 82-89) para a experiência temporal de sua efetividade na existência (HEIDEGGER, 1989:v. I 45, 90-128 e v. II 149-169), na “espessura existencial do conceito de horizonte” (SOUSA, 1975, p. 9). Coforme Husserl, na apreensão intencional, que se suspende as impressões naturalísticas, em sua atualidade, estão copresentes o percebido e sua franja que se arrasta na indeterminalidade infinita (§ 27). O campo “visual” da percepção interage com o horizonte de sua inconcludência. O apreendido se percebe no limite de sua ausência virtual correspondente, marcando-se, por seu espectro descontínuo, como sistema de variações perspectivadas (§ 41). E é em função dessa indeterminalidade, dessa zona obscura que circunscreve a experiência, que os percebidos podem ser determinados. É o horizonte da possibilidade antes da tematização do acontecido. Enquanto marco prévio da experiência, o possível se oferece como limite e abertura para a compreensão. O horizonte, pois, não é um, não é só marco final, mas cifra a verticalidade nas aparências descontínuas. (V. também BASTOS, 1990:60-89). 5 Esta foi a preocupação de Niels Bohr e da escola de Copenhague. Os paradoxos quânticos ensinariam lições epistemológicas relativas à descrição da natureza (FOLSE, 1985:5). Diante do aspecto energético e mutante da matéria, em que as descrições desta não são abrangentes, tanto do ponto de vista corpuscular como ondulatório, a heurística observacional reformula suas noções de objetividade, causalidade e método. Negando o usual visualismo que predispõe a experimentação da natureza à aplicação de generalidades não impressas em sua fenomenalidade, Niels Bohr advoga a operacionalização da complementaridade em diversos níveis observacionais (BOHR, 1968:108; BOHR, 1963:89). Primeiro, a correlação entre observador e observado, rompendo com o determinismo pictural, limita a instância teórica aos desdobramentos deste nexo. Distinguem-se instrumentos de medição e objetos sob investigação (BOHR, 1963:3), para que se ressalve o controle racional da objetividade em construção. Requer-se, pois, a atividade cognoscente relativa à efetivação dos fenômenos, na inseparabilidade do conhecimento e de suas possibilidades investigativas (BOHR, 1963:12). Ocorre, também, a interação entre os objetos sob investigação e os instrumentos de observação, como expressão da complementaridade entre um cógito no cogitatum de seu horizonte e de uma natureza no constante limite de sua facticidade (BOHR 1958:7, 68-71). Enfim, a complementaridade, mostrando a franja de indeterminação em nosso conhecimento dos objetos, transparece-se complementar de complementares, posto que, nesta razão experimental da física moderna, o observador e observado se encontram em seus limites e em rigorosas condições de atualidade, bem como entregues ao devir que se ilumina na abertura desta finitude.

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IMAGINAÇÃO E MORTE: ESTUDOS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FINITUDE

(NES, p. 55); os referentes encontram-se no processo mesmo de referenciação. Só possibilita o que se possibilita. Assumindo a finitude da compreensão e o seu decorrente campo de probabilidades, ascende-se à capacitação dos fenômenos enquanto emergências de significação. O pensamento, pois, é um programa de experiência a realizar. Em torno das condições de produção do saber, nesta verdadeira estética da inteligência (FES, 10), “todo conhecimento é resposta a uma questão” (FES, 14), desenvolve-se em uma problemática específica: “a pesquisa científica reclama [...] a constituição de uma problemática. Ela parte, realmente, de um problema” (RA, 53). Com isto, o estatuto epistemológico da subjetividade e da objetividade é questionado. A ingênua pressuposição de uma realidade absoluta e desconhecida acoplada à neutralidade de um sujeito observador é refutada. A objetividade se processa em uma série de atos retificadores que não passam da racionalização de sua operatividade mesma. A experiência de compreensão dos objetos “dispõe-se em uma série de realidade crescente ou, sobretudo, de realização crescente; o mais real seria o mais retificado, o mais distante de noções primeiras. O concreto se revela como uma promoção do abstrato, pois é o abstrato que fornece os eixos mais sólidos de concretização, elle se dispose en série de réalité croissante ou plutôt de réalisation croissante; le plus réel étant de plus rectifié, le plus éloigné des notions premiéres. Le concret se révèle comme une promotion de l’abstrait, puis que c’est l’abstrait que fournit les exes le plus solides de la concrétisation” (ET, 91). Se o real depende de sua instância teórica, do método experimental que lhe dá existência, a subjetividade se coordena a essa objetividade laboratorial. Nada de formalização recorrente do pensar imposto pela quádrupla redução metafísica: uma razão que “não importa quem estuda, não importa o quê, não importa onde, não importa quando, n’importe qui étudiant, PRIMEIRA PARTE A POÉTICA DA RAZÃO E AS RAZÕES DA POÉTICA SEGUNDO GASTON BACHELARD

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n’importe quoi, n’importe où, n’importe quand” (ER, 31). O sujeito se inscreve no que descreve, delimita-se de acordo com sua instância teórica. Prolonga-se em uma atividade de diferenciação, de autoquestionamento. Só ratifica quando se retifica (MELO E SOUZA, 1987:58). Logo, “o sujeito, meditando o objetivo, elimina não só os traços irregulares no objeto, mas as atividades irregulares de seu próprio comportamento intelectual, le sujet, en méditant l’élimine non seulement les traits irréguliers dans l’objet, mais des attitudes irréguliers dans son propre comportament intellectuel” (ET, 92). Bachelard inaugura, com esta fenomenologia da razão, o ritmo oscilatório de objetivação e subjetivação (ET, 88), que fundamenta o conhecimento. A complementaridade radical, avistada neste ritmo de construtividade descontínua do saber, é o que a Física contemporânea exercita.6 Com a nova Física, em sua básica atividade de revisão dos pressupostos e das práticas generalistas do século XIX, entra-se em um Novo Espírito Científico. Ao invés da modelização da compreensão, requer-se a sua modalização: o que se experimenta ao compreender não é a unidade abstrata de um a priori, mas a própria experiência se diferenciando, enriquecendo-nos. Daí ser a nova Física uma “reflexão sobre a reflexão, réflexion sur la réflexion” (FES, 250). Na Física contemporânea, segundo Bachelard ocorre “o acoplamento entre o racionalismo aplicado e o materialismo técnico, la couplage du rationalisme appliqué et du matérialisme technique” (ARPC, 3). Produzindo fenômenos e não simplesmente descrevendo relações gerais (ET, 24), municia-se o objeto na aplicação com rigor progressivo de medidas. A realidade é extensiva a operações intelectuais bem definidas, 6 As expressões “Física contemporânea” e “nova Física” neste livro dizem respeito ao contexto de Gaston Bachelard: primeiras décadas do século XX.

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resultante de uma fenomenotécnica (RA, 2-3), e os instrumentos que a manipulam não passam de teoremas reificados (RA, 103). Dentro deste intercâmbio tensivo, a energia transparece como transmutação dos valores racionais e substanciais: “é a energia que se torna a noção ontológica fundamental de toda doutrina moderna da substância. [...] Seria preciso decidir se o real tem uma estrutura em função de suas qualidades ou se libera fenômenos dinâmicos em razão de sua estrutura, c’est l’énergie qui devient la notion ontologique fondamentale de toute doctrine moderne de la substance. [...] Il faudra décider si le réel a une structure en fonction de ses qualité ou s’il livre des phénomènes dynamiques en raison de sa estructure” (ARPC, 135). Em seu processo de objetivação, “os corpúsculos da física contemporânea são, com efeito, mais exatamente centros de forças que centros de ser. [...] Eles se caracterizam como estágios em uma transformação dinâmica sempre possível. Nós tornamos sem cessar a um aspecto essencialmente dinâmico do real, les corpuscules de la physique contemporaine sont, en fait, plus exactement les centres de forces que des centre d’être. [...] Ils se caractérisent comme des états da une transformation dynamique toujours possible. Nous revons sans cesser à une aspect essentiellèment dynamique du réel” (ARPC, 129). Ao se pensar no tônus energético da matéria, reconsi-deram-se as causalidades formais/finais de um sistema produtivo. Trata-se da inversão valorativa que não mais privilegia a forma em detrimento da matéria: “a forma não é mais que um instante de deformação, la forme n’est qu`un instant de déformation” (MR, 62). É “a matéria que restitui uma forma, a matéria que manifesta, certamente, as suas potências de deformação, la matière qui redonne une forme, la matière manifeste certement ses puissances de déformation” (MR, 16). A matéria materializa as relações dinâmicas da configuração atômica, fazendo que se possa

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“viver e reviver o instante da objetividade, estar sem cessar no estado nascente da objetivação, vivre et revivre l’instant d’objectivité, être sans cesse à l’état naissant de l’objectivation” (FES, 248). A cisão da matéria é a ficção de suas possibilidades. Assim, nega-se a abstração superficial e imediata que formula “a ideia da substância totalmente fundamentada na separação absoluta do espaço e do tempo, l’idée de substance, tout entière fondée seu la séparation absolue de l’espace et du temps” (ET, 74). Deste modo, “por seu desenvolvimento energético, o átomo é tanto devir, quanto ser, ele é movimento e coisa. Ele é elemento do devir-se esquematizando do espaço tempo, par son développement énergétique, l’atome est devenir autant qu’être, il est mouvement autant qui close, il est l’élément du devenir-être schématisé dans l’espace-temps” (NES, 68). O energetismo da matéria denuncia a dinâmica do pensamento (IA, 25). A polimorfia da matéria ajusta-se à politropia da razão (FES, 41). Se o objeto investigado “ganha em nós duas dimensões de representação: consciência do método objetivo e consciência de exata aplicação, prens en nous ses deux dimensions de representation: conscience de méthode objetive et conscience d’exacte aplication” (RA, 63), seu correlato subjetivo é cindido. O sujeito questiona porque se questiona, prepara o domínio da definição antes de se definir. A razão é polêmica (ER, 34), marcada pela intencionalidade de uma questão específica. Trata-se do ‘surracionalismo’ dialético,7 instaurado entre a construção/desconstrução de sua instância teórica (ER, 7-12). Em contínua organização e reorganização de seu corpo de noções funcionais (FN, 32), “a razão trabalha contra ela mesma, la raison travaille contre elle-meme” (RA, 15). Destacam-se o caráter aproximativo do que se descobre e a 7 Jogo de palavra entre surrealismo e racionalismo, mostrando a copertinência entre as experiências cognitivas na arte e na ciência.

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retificação do que se conhece (ECA, 72). O ‘surracionalismo’ dialético medita a abertura essencial que delineia a efetividade do saber que não se compraz na fatuidade de imposições absolutas. “O pensamento é realmente contemporâneo da deformação de um corpo, la pensé est en réalité plutôt contemporaine de la déformation d’un corps” (IA, 25). Movimenta-se na superação de suas determinações por orientar-se nas prerrogativas de suas virtualidades. É no seu ‘entrevelamento’8 que revela a produção de sentido enquanto vela pela possibilidade de constituí-lo que o ‘surracionalismo’ se prefigura. Esse negativismo criador do homem e do mundo, através do qual “uma doutrina da ciência é doravante, uma doutrina da cultura e do trabalho, uma doutrina da transformação correlativa do homem e das coisas, une doctrine de la science est désormais une doctrine de la culture et du travail, une doctrine de la tranformation corrélative de l’homme et des choses” (ARPC, 3), impõe que “realidade e pensamento soçobrem conjuntamente no mesmo nada, no mesmo Érebo metafísico, filho do Caos e da Noite, réalité et pensée sombrent ensemble dans le même néant, dans le même Érébe métaphyseque, fils du Chaos et de na Nuit” (ECA, 257). À generalidade formal da unidade substância e causalidade do discurso metafísico tradicional contrapõe-se a transmutação dos itens racionais e realistas imediatos. O único absoluto é o da facticidade da compreensão, que se experimenta na reversa harmonia dos contrários como maneira de integrar a imanência e a transcendência do conhecer. Para operacionalizar este ato nadificador original e originante, segundo Bachelard, é preciso “uma sorte de pedagogia da ambiguidade, [...] a ideia de que os caracteres complementares devem ser inscritos na essência do ser, em ruptura com esta tácita crença de que o ser é sempre o signo 8 Neologismo para aproximar este ritmo de ambivalentes movimentos na experiência racional da física descrita por Gaston Bachelard, que se aproxima da Alétheia helênica.

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da unidade. [...] Seria conveniente, estão, fundar uma ontologia do complementar, une sorte pédagogie de l’ambiguité, [...] l’idée que les caractéres complémentaires doivent être inscrits dans l’essence de l’être, en rupture avec cette tacite croyance que l’être est toujaurs le signe de l’unité. [...] Il conviendrait donc de fonder une ontologie du complémentaire” (UNE, 15-16). Se, como a física moderna observou, o corpúsculo não possui qualidades substanciais, existindo não mais que nos limites de espaço no qual ele age, não se podendo, assim, atribuir-lhe forma determinada ou lugar preciso (ARPC, 7478), e se o cógito que isto exprime recria este existencialismo na nulificação, expressando-se na cintilância proteiforme de sua afirmação, é sob o horizonte de tempo dessa descontinuidade fundamental que se deve encontrar o questionamento do nexo tensivo entre homem e mundo. As contradições assinaladas no ritmo oscilatório de objetivação e subjetivação, que a fenomenologia da razão desvenda, prenunciam a temporalidade da compreensão em sua finitude. A poética da razão poematiza-se nos ritmos do conhecer. 1.2 Tempo e compreensão – o circuito ontogenético do tempo Para Bachelard, a compreensão é “uma obra temporal, une ouvre temporelle” (II, 19). Como obra, o tempo não se perfaz em uma linearidade constante. Consolida-se em superposições significativas. “O tempo tem várias dimensões. [...] o tempo tem uma espessura, le temps a plusieurs dimensions. [...] Le temps a une épaisseur” (DD, 92). O existencialismo do tempo consiste em assegurar uma pluralidade, ao comportar-se como pluralidade. “Só uma pluralidade pode durar, seule une pluralité peut durer” (DD, 123). Assim, a duração do tempo é uma metáfora que expressa um “complexo de ordenações múltiplas que se asseguram em sua 24

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reciprocidade, complexe des ordinations multiples quis’assurent l’une sur outre” (DD, 51). Estas dimensões multívocas preparam uma doutrina pluralista do tempo, préparent une doctrine pluraliste du temps” (DD, 61). A doutrina pluralista do tempo constata o fundamento descontínuo de sua efetividade. O tempo é oscilação, é hesitação. Sua finitude é o reenvio constante à sua flexibilidade. Nesta dinamogenia, constata-se o caráter alternante do tempo que esta descontinuidade produz: “neste instante, nada se passa, ou melhor, neste instante acontece qualquer coisa. O tempo é, então, contínuo como possibilidade, como nada. Ele é descontínuo como ser. Noutros termos, nós partimos de uma dualidade temporal, não de uma unidade, une cet instant, il ne se passe rien, ou bien en cet instant, il se passe quelque close. Le temps est alors comme possibilité: comme néant. Il est discontinu come être. Autrement dit, nous partons d’une dualité temporelle, non d’une unité” (DD, 25). A dialética temporal, desenvolvendo a dialética ontológica, cifra-se na complementaridade dos contrários que se harmonizam, demonstrando sua operatividade histórica. O tempo possibilita a abertura do ser em incessante desdobramento criador. É impossível preencher o vazio no seio da alteridade. O tempo modaliza a alteridade em sua epifania, a ‘deveniência’ constituinte e constituidora dessa hesitação ontológica. Tempo é presença, projeção das tensões reversíveis do nada em sua atuação: “O tempo não tem uma realidade a não ser a do instante. Dito de outro modo, o tempo é uma realidade limitada sobre o instante e suspensa entre dois nadas, le temps n’a que’une réalité, celle de l’instant, autrement dit, le temps est une réalité resserrés sur l’instant et suspensue entre deus néants” (II, 13). Existe na fulguração instantânea de uma ofuscação labiríntica. Promove, em sua bifacialidade originária, a abertura como sua geneologia e escatologia: o tempo vem do nada e parte para o nada. Por isso, de tudo é mediação. PRIMEIRA PARTE A POÉTICA DA RAZÃO E AS RAZÕES DA POÉTICA SEGUNDO GASTON BACHELARD

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A dualidade radical do tempo, que incorpora o vazio à sua configuração, concretiza-se no ritmo. O ritmo é a “noção temporal fundamental, notion temporelle fondamentalle” (DD, ix). Para recusar referências a uma duração absoluta e abstrata, é necessário aceitar francamente o apoio recíproco dos ritmos, d’accepter franchement l’appui réciproque des rythmes” (DD, 123). Os instantes rítmicos operacionalizam a imanência cambiante do tempo em seu constante transcender. O devir se traduz na linguagem descontínua do tempo. Representando, pois, a atividade de superação das determinações e normalidades gerais em prol da dramatização da estrutura da criatividade que comanda a estrutura da compreensão, o tempo se verticaliza (DD, 98), nega a horizontalidade superficial do mesmo, repondo a alteridade como condutora do diferencial nexo que doa a plenitude da existência. Trata-se do ‘circuito ontogenético do tempo’, que, na raiz da complementaridade, radicaliza a compreensão como evento construído, articulado em seus atos diversos. Neste circuito, tematiza-se o saber no horizonte de suas possibilidades. É uma viagem às avessas, na qual se vai “do mesmo ao mesmo, passando pelo outro, du même au même en passant par l’autre” (DD, 91). O circuito ontogenético do tempo, revelando a cisão essencial inscrustrada na operatividade histórica, reorienta o questionamento da relação entre tempo e compreensão. Se a temporalidade sustenta a compreensão e a compreensão se efetiva temporalmente, ambas se consagram a indicar a facticidade da existência. O ato de se completarem na contiguidade dos opostos encena a alteridade se desdobrando: “o tempo de pensar marca profundamente o pensamento. Não se pensa talvez na mesma coisa, mas se pensa ao mesmo tempo em alguma coisa, le temps de penser marque profondément la pensée. On ne pense peut-être pas la même close, mais on pense en

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même temps à quelque close” (DD, 105). Superpõem-se tempo e compreensão pela dramatização do possível no seio do finito. Esta ritmanálise do finito e do infinito, através da qual a compreensão é uma obra temporal, e a compreensão é a atividade descontínua do tempo, amplifica-se na poesia: “ser poeta é multiplicar a dialética temporal, é recusar a continuidade fácil da sensação e da dedução, etre poéte, c’est multiplier la dialectique temporelle, c’est refuser la continuité facile de la sensation et de la déduction” (DD, 125). Na poematização da existência, que faz irromper o nada no limite de sua efetividade, vê-se a compreensão “pontuada por instantes criadores, ponctueé par instants créateurs” (DD, 18). 1.3 Imaginação material e dinâmica O movimento para a ficção, para o poético, que se encontra no percurso crítico de Bachelard, revela a amplitude do projeto de sua obra: o desvelamento da estrutura da compreensão indissociada da estrutura da criatividade. A subjetividade reorientada por um nexo tensivo, e a temporalidade envolvida nos processos heurísticos, fundamentando-se no nada, confirmam a adoção de um silêncio criador que medita as suas possibilidades de configuração como interpretante e horizonte de ambos momentos do conhecer. Os cindidos temporalmente superpostos fornecem a abertura para a emergência do proteico. O que se enuncia e se constitui suspende-se no limite de si para patentear sua enunciação, sua constituição. Ao propor tais questionamentos do sujeito e da temporalidade, Bachelard procede à superação do realismo ingênuo de um cógito monovalente, incapaz de problemtizar e sustentar o que representa. Contra tal generalidade, que obstrói a experiência porque se abstrai nas essências, circunscreve-se o

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mito do logos à temporalidade de sua facticidade. Reduzida não é somente a postura naturalística e cartesiana de uma natureza simples e absoluta (NES, 148), mas, e principalmente, o sujeito desta representação. É o desdobramento desse sujeito impresso na atividade mesma de pensar que apresenta o argumento maior contra sua monovalência. O cógito, nesta atividade, difunde a poematização de suas virtualidades. Pois é “através da ficção considerada em seu aspecto funcional que se toca no elemento de divisão do sujeito. Porquê, bem entendido, é por meio da ficção que o sujeito, em sua tarefa de instrução, avança contra si, vivendo intimamente a dialética da suposição e do controle. Eu digo que eu penso, logo eu não penso o que digo – eu não sou o que eu digo que sou – eu não estou inteiramente nem no ato de meu pensamento nem no ato de minha fala. O sujeito que se exprime é processo de divisão de si, par la fiction considérée dans son aspect fonctionnel, on touche um élément de division du sujet. Car, bien entendu, il s’agit de fiction que le sujet dans sa tâche d’instruction avance contre soi, vivante intimement la dialectique de la supposition et do contrôle. Je dis que je pense donc je ne pense pas ce que je dis – je ne suis pas ce que je dis que je suis – je ne suis tout entier ni dans l’acte de ma pensée, ni dans l’acte de ma parole. Le sujet s’expriment est processus de division de soi” (RA, 67). Com isso, “o ato de conhecimento não é um ato pleno” posto que “desenvolve-se sobre um plano irreal, l’acte de connaissance n’est pas un acte plein [...] se développe sur um plan irréal” (ECA, 13). A divisão no sujeito configura o enquadramento do possível no finito. Encontra-se na raiz mesma da expressão. Um fundamento multívoco do sentido só se efetiva por meio da reconsideração dos mecanismos expressivos e referenciais. A imaginação, o irreal, a ficção comparecem como meios privilegiados para atualizar a pré-disposição orientativa da compreensão, na qual a possibilidade de afirmar algo se faz na virtualidade do expressável. 28

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O enunciado aponta para sua enunciação. A imaginação material e dinâmica de Gaston Bachelard, tomando por base a dupla fenomenologia do imaginário que a consubstancia, confere o acesso a este espaço discursivo hierarquizador da estrutura da compreensão, espaço em que o sentido a constituir está no tempo de sua constituição. A crítica da esterilidade abstracionista da Razão ocidental que impregna o Novo Espírito Científico, por meio da temporalidade descontínua da compreensão, prepara o advento do horizonte aberto pela teoria da imaginação de Gaston Bachelard. A questão que inicia a proposta Bachelardiana relativa ao onirismo criativo baseia-se na autonomia do imaginário. Essa revolução copernicana da imaginação, ao mesmo tempo que instaura a especificidade da imaginação, situa-a como fundamento dos atos cognitivos. O diferencial do onirismo enriquece a interpretação dos processos envolvidos na compreensão. Sendo finito, o ato de conhecer se hierarquiza. Segundo sua autonomia, nota-se que “entre conceito e imagem não há síntese. [...] Os conceitos e as imagens se desenvolvem sobre duas linhas divergentes da vida espiritual, entre concept et image, pas de synthese.[...] Les concepts et les images se développent sur deux lignes divergentes de la vie spiritualle” (PR,45). O que se pede ao analista é que ele assuma as diferenças, que não conceptualize as imagens ou abasteça a razão com simples imagens. Mas é no modo como os termos contraditórios são pensados, é no diálogo todo/parte que se iluminam tais diferenças. Segundo Bachelard, há “a diferença entre as dialéticas da razão, que justapõem as contradições para cobrir todo o campo do possível, e as dialéticas da imaginação que [...] encontram mais realidade no que se esconde do que no que se mostra. O movimento é inverso das dialéticas de justaposição para as de superposição. Nas primeiras, a síntese se oferece para PRIMEIRA PARTE A POÉTICA DA RAZÃO E AS RAZÕES DA POÉTICA SEGUNDO GASTON BACHELARD

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conciliar duas aparências contrárias. A síntese é última tentativa. Ao contrário, na apercepção imaginária total (forma e matéria) a síntese é primeira: a imagem que toma toda a matéria divide-se na dialética do profundo e do aparente, la différence entre les dialecitques de la raison qui juxtapose les contradictions pour couvrir le champ du possible et les dialectiques de l’imaginations qui [...] trouve plus réalité à ce quise cache qu’à ce qui se montre. Le mouvement est inverse des dialectiques de juxtaposition aux dialectiques de superposition. Dans les premières, la synthèse s’offre pour concilier deux apparences contraires. La syntèse est ultime démarche. Au contraire, dans l’aperception imaginaire totale (forme et matière) la synthèse est première: l’image qui prend toute la matière se divise dans la dialectique du profond et de l’apparent” (TRR, 25-26). Pela apercepção imaginária, o ritmo oscilatório de dessubjetivação/objetivação e desobjetivação/subjetivação da heurística observacional encontra seu limite de aplicabilidade. A razão por si mesma é insuficiente para conferir significação ao que investiga. Falta o projeto, a pré-disposição orientativa que convalida a constutividade de sua instância teórica. A imaginação doa a estrutura da criatividade em suas tensões ambivalentes. Pelo onirismo, aquém e além da instrumentalidade do saber, a compreensão se efetiva, porque se pluraliza. Na prévia dialética do profundo e do aparente, a imaginação ensina que a latência do que se revela redunda na patência do que se vela. Ao contrário, pela razão somente, o conhecimento se formaliza por meio da abstração privativa do todo ou das partes. As distinções que produzem diferenças – o ganho do processo criador – são normalizadas como funções reguladoras que atualizam absolutos. As partes não têm verdade alguma, senão a de exemplificar uma abstração. Com o onirismo, a dualidade é pressuposta em seu dinamismo heterogêneo, enformador de toda abertura de significação. Os polos são complementares,

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porque a estrutura da criatividade é descontínua: trata-se de uma dramatização totalizante que trabalha com a dialética limite/liminar em seus fundamentos. Para testemunhar a eficácia da autonomia do imaginário como aprofundamento da imaginação material e dinâmica em marcha de formação, Bachelard pensa o fracasso da crítica contemporânea em suas tentativas de apreender a atividade poética do Surrealismo.9 Conceptualizando a imagem, esta crítica intelectualista se satisfaz com imediatas evidências de suas observações (DD, 148), contentando-se em dar mais atenção “à palavra que à frase – à locução mais que à página. Eles praticam um julgamento essencialmente atômico e estático, au mot qu’à la phrase – à la locution plus qu’à la page. Ils pratiquent un jugement essentiellment atomique et statique” (DR, 181). Desconhecendo, pois, a especificidade dos processos imaginativos, os conceptualizadores da imagem selecionam elementos como dados e apoios a suas generalizações avaliadoras. Separam as coisas de sua expressão (TRR, 48), preocupam-se mais com os produtos do que com a produção destes. Constituem os referentes do poético através de arcabouço metodológico ou conjunto de observações sobre o fenômeno onírico de modo a instituir uma imagem geral do observado. O que aparece na obra de arte transparece como reflexo de um a priori crítico. Em Bachelard, tal comportamento analítico, que pressupõe a filiação à organicidade da obra de arte, impondo a esta a redutora atividade de representar um esquema absoluto de inteligibilidade, é completamente afastado. Repõe-se a experiência da atividade imaginante na concretude de sua efetiva compreensão. O uso do específico contrapõe-se ao abuso do artifício. 9 Novamente, é preciso ter em mente as primeiras décadas do século XX, e a recepção à Nova Física e ao Surrealismo.

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Em sua autonomia, a imaginação amplia-se na seguinte fórmula tautegórica: a imagem pela imagem (AS, 210). Avessos a este diverso emblema metodológico, os críticos não compreendem a dinâmica do Novo Espírito Literário, que o Surrealismo exemplificou. “É precisamente próprio do novo espírito literário, tão característico da literatura contemporânea, mudar as imagens, subir e descer ao longo de um eixo que vai, nos dois sentidos, do orgânico ao espiritual, sem jamais se satisfazer com um só plano da realidade, c’est précisèment le propre du nouvel espírit littéraire, si caractheristique de la littérature contemporaine, de changer d’images, de monter ou descendre le long d’un axe qui va, dans les deux sens, de l’organique au sprirituel, sans jamai se satisfaire d’un seul plan de réalité” (TRR, 176). Esta reversibilidade ontológica do orgânico e do aórgico, que a especificidade do imaginário expressa, modaliza seu próprio existencialismo e facticidade ao negar quaisquer categorizações unitárias, substancialistas e casualistas. O onirismo dramatiza o duplo, porque se dramatiza como duplo. A imagem pela imagem assinala, ao mesmo tempo, a operatividade histórica de sua descontinuidade fundamental e a teleologia às avessas de seu movimento por meio da dialética limite (imagem) – liminar (pela imagem). Enquanto linguagem deste duplo, “as imagens não são conceitos. Elas não se isolam em sua significação. Precisamente, elas tendem a ultrapassar sua significação, les images ne sont pas des concepts. Précisément elles tendent à dépasser leur signification” (TRR, 3). A construção do sentido na imaginação não se faz pela atomização de seus constituintes que, isolados, guardariam constância e unidade semântica. Ao contrário, em vez de centralizar, ramifica-se a significação. Na imaginação, “as palavras não são simples termos. Elas não terminam o pensamento; têm o devir da imagem. A poesia faz ramificar o sentido da palavra, envolvendo-a numa atmosfera de imagens,

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les mots ne sont plus de simples termes. Ils ne terminant pas des pensée; ils ont l’avenir de l’image. La poésie a fait ramifier le sens du mot en l’entourent d’une atmosphere d’images” (TRV, 7). O sentido se experimenta em estado sempre nascente, fazendo que os referentes do poético sejam atribuídos à atividade mesma de sua constituição (AS, 306). A vocação de encenar o contraditório, a entreabertura mediadora dos contrários não se situa somente ao nível linguístico. A ação sobre a linguagem faz que se repensem os próprios meios de expressão. Negando a esfera da continuidade dos hábitos unificantes, o plural funciona como prática de uma verdade consciente de sua finitude e de sua historicidade. Adicionar contrários é pensar no que contraria a observação imediata. Na etimologia mesma da palavra imaginação isto se dá. Ultrapassa-se a tradição filológico-metafísica para se concentrar na hermenêutica da linguagem. A imaginação não é a faculdade de formar imagens, mas sim de deformá-las. O “vocábulo fundamental que corresponde à imaginação é o imaginário, vocable fundamental qui correspond à l’imagination est l’imaginaire” (AS, 7). O orismo não prima pelo isolamento do dado feérico na correlação com o Ilusionismo de seu substancialismo visual. As imagens não têm dimensões unívocas, posto que estão dispostas em uma rede redistribuidora de relações e tensões dramáticas, que só se avistam neste jogo inerente à sua efetivação. Ao invés de se encarar o processo imaginativo como mera soma e acumulação de imagens isoladas, Bachelard preconiza que se pense o onirismo como imaginário. Neste espaço onírico, o que importa “é, no entanto, a transformação, as transformações que fazem do espaço onírico o lugar mesmo dos movimentos imaginados, c’est cependant la transformation, les transformations qui font de l’espace onirique le lieu même des moviments imaginées” (DR, 195). De modo algum cultiva-se a imaginação da forma PRIMEIRA PARTE A POÉTICA DA RAZÃO E AS RAZÕES DA POÉTICA SEGUNDO GASTON BACHELARD

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(AAS, 198) e sua decorrente esterilidade descritivista e aporética. Contra a geometrização da imagem, a autonomia da imaginação advoga uma filosofia da produção dinâmica (AS, 313), que visa à mudança, à alteridade no seio do mesmo. Sob o signo da mutabilidade, a troca de dimensões, a adimencionalidade do imaginário é um postulado da imaginação: “as coisas sonhadas não guardam nunca suas dimensões, elas não se estabilizam em nenhuma dimensão, les closes rêvées ne gardent jamais leurs dimensions, elles ne se stabilisent dans aucune dimension” (TRR, 13). Esta instabilidade da adimensionalidade do imaginário se perfaz num jogo de inversões que amplificam ou diminuem as formas representadas. A imagem, em sua dinâmica variacional (PE, 3), vai sem cessar do cosmo ao macrocosmo, projetando alternadamente o grande sobre o pequeno (AAS, 152). Por seu irrealismo, neste entre-estar-sem-substância, o onirismo fixa tanto o homem como o mundo no “jogo mesmo de inversão que constitui a dinâmica da imaginação, jeu même d’inversion qui constitue la dynamique de l’imagination” (TRR, 198-9). A imaginação efetiva-se como nexo das contexturas do homem e do mundo. A imaginação, desta maneira, em sua autonomia, contrariando a horizontalidade contextual mediana e imediata (TRR, 81), problematiza-se ao se temporalizar. Sua conduta de heterogeneidade e ruptura sublinha os tempos superpostos experimentados na verticalização. Na verticalização pelas imagens e pelas imagens verticais, instala-se “um tempo que não segue a medida, um tempo que nomearemos vertical para distinguir do tempo comum, un temps que ne suit pas de mesur, d’um temps que nour appelerons vertical pour de distinguer du temps commum” (TDR, 225). No eixo do tempo, a imagem diagrama o devir do homem na constante negação de suas determinações. O tempo da imaginação, radicalizando a reversa harmonia dos contrários que supera a unidade comprometida em 34

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generalizações metafísicas, compreende-se na lei da isomorfia das imagens. Num imaginário, os mais diversos e opostos traços oníricos, na comunhão de sua diferença revelada, atestam a compertinência de uma ausência virtual que vela por toda pluralidade. Cada imagem presente restitui a ausente. Encena-se a construtividade do imaginário em sua nadificação. A imagem suspende-se no seu limite, que é a sua includência. Delimita-se na abertura que promove sua finitude. São seus momentos isomorfos: a finitude e o horizonte inaugural de sentido em sua complemetaridade onírica. Aprofundando-se pela imaginação, o homem encontra-se na intimidade com suas potencialidades criadoras, ao agenciar a efetividade temporal descontínua do onirismo. Assim, “sonhando a profundidade, nós sonhamos nossa profundidade. Sonhamos com a virtude secreta das substâncias, nós sonhamos com nosso ser secreto, en rêvant la profondeur, nous rêvons notre profondeur. En rêvant a la vertu secrète des substances nous rêvons à notre être secret” (TRR, 51). Como técnica de articulação de um imaginário, a isomorfia das imagens contradiz a dominância unilateral da imagem manifesta sobre a dissimulada, invertendo o acento valorativo e, com isto, estimulando o intérprete a observar os processos oníricos, e não a paráfrase formal dos produtos. Convergem os díspares na afirmação do vário. Mas “esta correspondência pode parecer mal designada pela palavra isomorfia, posto que é feita no instante através do qual as imagens isomorfas perdem sua forma. Mas esta perda da forma tem ainda a forma, ela explica a forma”. Deve-se [...] “considerar sistematicamente sob as formas as matérias imaginadas, cette correspondance peut paraître mal designée par le mort isomorphie, puis qui elle se fait dans le instant nême où les images isomorphes perdent leur forme. Mais cette perte de forme tient à la forme, elle explique la forme”. [...] “considerer systematiquement sous les formes des matières imaginèes” (TRR, 173-174). Este mesmo (isos) sob diferentes PRIMEIRA PARTE A POÉTICA DA RAZÃO E AS RAZÕES DA POÉTICA SEGUNDO GASTON BACHELARD

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formas (morphe) é a epifania da diferença pela diferença, na qual o limite da forma informa o limiar das tensões materializadas na constituição de seu sentido. É a consciência da transformação que está em cena a partir de sua própria experiência. No seio do finito, a revelação da possibilidade – eis a isomorfia das imagens que, na motivação hermenêutica de sua técnica, correlaciona imaginação e homem, na verdade de que “o aprofundamento de uma imagem nos conduz ao engajamento com a profundeza do ser, l’approfondissement d’une image nous conduit à engager la profondeur de l’être” (TRR, 28). Convergindo pela encenação das movimentações divergentes em correspondências, as imagens isomórficas se condensam em “uma imagem fundamental, uma imagem que reage em nós como princípio de mobilidade, une image fondamentale, une image qui réagit en nous comme principe de mobilité” (TRR, 58). Trata-se da imagem-princeps, que interrelaciona homem e mundo representados nos planos de suas oposições complementares. Funciona como uma metáfora axiomática: nada a explica, porém, a tudo ela explica (AS, 18). A doação de uma imagem fundamental é a razão de seu fundamento. Como intersecção geneaescatológica do imaginário, assinala as variações de um tema antropológico básico, dramatizado pelas diversas imagens em suas atuações heteromórficas. Confirma a lógica da imaginação, inscrita no jogo da alteridade que se perfaz pelo ritmo ontológico do mesmo e do outro. Somente uma Estética Concreta consegue adentrar nos processos tautegóricos referenciadores de um imaginário em autonomização, “uma estética que não seria trabalhada por polêmicas de filósofos, uma estética que não seria racionalizada por ideias gerais, une esthétique que ne serait travaillée par des polémiques de philosophe; une esthétique que ne serait pas rationalisée par des faciles idées générales” (FC, 5). Preocupada com as relações intrínsecas à atividade imaginante, a estética concreta traduz as 36

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transformações oníricas de um imaginário, apontando para uma poesia projetiva estas transformações. Na concretude de relações, “as imagens poéticas se projetam umas sobre as outras, le images poétiques se projetent les unes sur les autres” (LA, 54), rompendo assim com a causalidade formal, conceptualizadora da imagem. O projetivo, esteticamente materializado em um imaginário, não é a imposição de um modelo ideal de sua unificação semântica, mas um diagrama de forças (FPF, 216), que encena as ambivalências, as dualidades, as heterogeneidades do ficto como fatores constituintes de sua diferenciação. O método para se apresentar estes jogos da alteridade é o da ritmanálise. Para se sorver a motivação dinâmica estruturante de um imaginário, é preciso “viver uma ritmanálise que sabe restituir duas tentações contrárias em uma situação na qual o ser equívoco se exprime como o ser de dupla expressão, vivre une Rythmanalyse que sait restitur deux tentations contraires dans une situation oú l’être équivoque s’exprime comme l’être à la duple expression” (TRR, 84). O método ritmanalítico se encaminha para a superposição temporal complexa, que distende o imaginário em configurações multívocas e complementares. Dinamiza-se por isomorfia à multiplicidade da atividade imaginante. Aplica-se à temporalidade do fenômeno oníroco. A abertura de sentido apresentada pela ritmanálise explora a referencialidade do imaginário em sua autonomia. As superposições descontínuas que a ritmanálise divisa no onirismo assimilam a finitude radical que perpassa a diferença ontológica em sua espessura temporal. Imaginar é finitizar-se sob o eixo do tempo. O mobile onírico dramatiza o virtual em sua aparição. A autonomia do imaginário facultada pela imaginação material e dinâmica apresenta-se como questionamento das modalidades de compreensão humanas. Os processos recursivos e paralelísticos da atividade imaginante remetem-se à hermeneutização do entendimento, demonstrando PRIMEIRA PARTE A POÉTICA DA RAZÃO E AS RAZÕES DA POÉTICA SEGUNDO GASTON BACHELARD

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a sua dialética limite-liminar de base. Evocando, por meio destes processos, a potência configuradora que o possibilita, as imagens, na variedade de seus registros, apresentam a atualidade de sua abertura. Poematizam o possível, no presente sempre atuante de um velamento recorrente. A imaginação material e dinâmica rompe com a emolduração abstracionalista do logos ocidental, repondo a consideração dos tempos específicos que sobredeterminam a compreensão. Na concretude de suas relações, atualizando a entreabertura mediadora dos contrários, a imaginação material e dinâmica deixa-se valorizar em desenvolvimento e profundidade de seu horizonte finito (AAS, 9-10), efetivando “uma ultrapassagem do ser imediato, um aprofundamento do ser superficial, un dépassement de l’être immédiat, um aprofondissement de l’être superficiel” (TRV, 5). Transformando toda ontologia em dinamogenia, a atividade imaginante se materializa na construtividade do imaginário, e a construtividade do imaginário ensina como se processa a atividade imaginante. O mundo, imaginado em sua adimensionalidade característica, repõe o ritmo fragmentário e ambivalente em que o onirismo se fundamenta: na cripta das imagens, o monumento transfinito do homem. O mundo é cifra do mistério deste. A plasticidade das imagens preconiza a plasticidade da imaginação. Na imaginação material e dinâmica, que é material, porque dinâmica, e dinâmica, porque é material, ocorre a medeação entre possibilidades de expressão e a expressão das possibilidades, uma e outra interrelacionadas, pois só se pode efetuar o que se reafirma em sua efetividade. A finitude comanda a estrutura da criatividade. Com isto, a autonomia do imaginário, em suas propriedades imanentes, amplifica-se em sua transcendência. Ao consolidar a transcendência (PF, 34), a imaginação hermeneutiza a compreensão. O que se experimenta na imaginação é a alteridade 38

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que fundamenta a compreensão. O ganho a mais que se observa e se recebe no irreal é o efeito da ultrapassagem dos condicionamentos e hábitos estabilizadores do real e de sua inércia. Professando a estrutura da criatividade em sua ocasião dialética, a transcendência imaginativa iluminia-se como transfert onírico. A partir deste, “transportando o sonhador em um outro mundo, faz do sonhador um outro de si mesmo e, no entanto, este outro é ele mesmo ainda, en transportant le rêveur dans autre monde fait de rêveur en autre que lui-même et cepedant cet autre est encore lui même” (PR, 69). A ritmanálise do duplo fundamental, impressa nos processos variacionais imaginativos, dramatiza a cisão inerente ao ser, que se desobra temporalmente no conúbio com o não ser. A alteridade professa a verdade do ser, verdade também do nada. Nesta concruz dos contrários em seu intercâmbio dialógico, o duplo se poematiza no seguinte paradoxo: “o duplo de um ser desdobrado, le double est double d’un être double” (PR, 69). O vário precipita-se na emergência de sua polivalência. O ser é alteridade, no movimento cisionário de sua efetivação. A transcendência é possibilidade da finitude em seus ritmos oníricos. O transfert onírico repensa os liames do homem com o real e o irreal. Trata-se de uma inversão na tradição do logos ocidental. Agora, “o real é absorvido pelo imaginário, le réel est absorbée par le imaginaire” (PR, 12). A realidade da imaginação desabsolutiza o real, ficcionalizando-o. Conduz o pensamento para que se detenha na virtualidade de suas condições produtivas, ao invés de se debruçar sobre uma osmose mimético-reprodutiva. O real é que é explicado pelo imaginário (AS, 105). O verdadeiro trajeto gnoseológico do homem é uma atividade de ultrapassagem de um suposto real, e não de uma dependência à normalidade

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de um círculo reativo estímulo-resposta.10 Somente assim entende-se a “continuidade da realidade e do sonho, descontinuidade do sonho à realidade, continuité de la réalité et du rêve, discontinuité du rêve à la réalite” (TRV, 303). Por meio da imaginação, em sua primordialidade, ocorre a ruptura com os modos de referenciação naturalística. A compreensão humana não se reduz a um prolongamento dos dados sensitivos nem ao desenvolvimento de julgamento já consolidado. Mas é em função de um projeto onírico que o saber se constrói, temporalizando-se. Compreensão e imaginário se correspondem. A imaginação é conhecimento, e o conhecimento se faz imaginativamente. Nesta reciprocidade, “a imaginação vem a sonhar e compreender, sonhar para melhor compreender, compreender para melhor sonhar, l’imagination veut toujours à la fois rêver et comprendre, rêver pour mieux comprendre, comprendre pour mieux rever” (TRR, 291). A hermenêutica da imaginação é o horizonte da compreensão: “É preciso que a imaginação tome demasiado para que o pensamento tenha o suficiente, que a vontade imagine demasiado para realizar bastante” (AS, 312). Na esfera deste ‘pensamento do antes’, deste pensar situado na prioridade de sua abertura, nega-se a geometria que contorna os objetos e conforma os sujeitos. Questiona-se o cógito racionalista metafísico. No domínio hermenêutico de sua fundamentação, o onirismo ultrapassa a correlação sujeito-objeto em sua constância formal, ao perscrutar um tempo coalescente em que “não nos dividimos mais em observador e observado, ne nous sous divisons plus en observateur et observée” (PR, 39). Os simulacros subjetivos 10 A anterioridade do onirismo é tão radical que, para Bachelard, antes da representação, antes de todo estatuto representacional tradicionalmente válido, a adimensionalidade e a plasticidade do imaginário se colocam. O conhecimento razoável dos objetos é posterior ao conhecimento poético do mundo. O mundo é admirado antes de ser comprovado. O percurso das atividades de expressão se hierarquiza: primeiro, o devaneio onírico; depois, a contemplação e, enfim, a representação, a formalização do imaginado (AS, 210).

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do estatuto representacional clássico são superados. Ao contrário, é o intervalo mesmo que é proposto. O que se experimenta na imaginação é o dinamismo mesmo que a comanda. Seu cógito é o da “consciência do claro-obscuro da consciência, conscience du clair-obscur de la conscience” (FC, 7). É consciência contra qualquer consciência de unidade, contra qualquer processo de unificação de sentido ao impor um sentido a priori, desconectado de seu contexto produtivo. É, pois, na apreensão do múltiplo, compreendida no tempo de seu desdobramento, que a imaginação encontra seu cógito. Comprometido com a atividade imaginante em sua efetividade, a consciência contra consciência no tempo de sua abertura patenteia a “consciência do ‘infra-eu’ – modalidade de cógito do subterrâneo, de um subsolo em nós, o fundo do sem fundo, conscience de l’infra-moi-sorte de cógito du subterraine, d’un sous-sol em nous, le fond du sans fond” (TRR, 260). Na imaginação, experimenta-se, pela potência nadificadora do onirismo, a própria nadificação da subjetividade. Imaginação e compreensão iluminam a correlação sistêmica do imaginante e do imaginado (TRV, 5), através da qual o a priori essencial é substituído pelo a priori existencial. Em sua irrealidade e descontinuidade criadoras, a imaginação dramatiza o conhecimento ao conduzi-lo ao tempo de sua finitude. A dialética tensiva do imaginário reconcria os movimentos da estrutura da criatividade que comanda a compreensão. Imaginante e imaginado adimensionalizam-se na plasticidade prévia que os intermedeia. Na isomorfia das imagens, os existenciais humanos. Como afirma Bachelard, “nós somos isomorfos às grandes imagens da profundidade, nous sommes isomorphes aux grands images de la profondeur” (TRR, 260). Pela primordialidade da atividade imaginante, ao se relacionar com a compreensão em sua facticidade, coloca-se

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a seguinte questão: será que “meditar sobre uma origem não é o mesmo que sonhar? E sonhar uma eterna origem não é ultrapassá-la? méditer sur une origine, c’est pas rêver? Et sur une eternal origine n’est-ce pas la dépasser?” (PR, 94). A entreabertura mediadora que a imaginação atualiza é o pensamento prévio das possibilidades de pensar que imagens dramatizam. A imaginação interroga este prévio, interpelando-o em sua configuração hermenêutica. Pela tautegoria imaginativa, apensa ao seu próprio movimento cisionário, surpreendem-se os constituintes limites e liminares da compreensão em sua construtividade. A matriz axial da imaginação é pensar sua primordialidade. A imaginação da origem é a origem de todo imaginar. Antes, uma criação deve imaginar-se (AS, 280). A linguagem poética, na concretude de suas imagens, situa-se na origem do ser falante, na origem da expressão (PR, 5). Interrrogando-se pela origem, o onirismo trabalha com o arquétipo. Este é causa sem causa (PF, 80). Não se trata de um esquema geral, pré-referenciador do poético. É preciso ver “a atualidade dos arquéticos, l’actualité des arquétypes” (PE, 172). Seu tempo é o de sua atuação num imaginário. Prescreve-se enquanto se inscreve na autonomia da atividade imaginante. Dentro da reversibilidade e transformação dos percursos imagéticos, o arquético proporciona uma temporalidade à imaginação: a contínua ritualização da origem no originado. Infunde um passado atuante na multiplicação de suas ambivalências e na sua sincronia inauguradora de sentido. Assim, “cada arquétipo é uma abertura ao mundo, chaque archétype est un overture au monde” (PR, 107), um convite a construí-la. Isto se observa no arquétipo da infância imemorial, na ontologia da infância (PR, 18). Sendo discente da criatividade, a criança indica a heurística do saber. Para ela, a descoberta do mundo está no tempo de sua efetivação. Comparticipa da virtualidade de conhecer pelo horizonte do inventar. “Antes 42

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do homo faber, o puer lusor possui o Mundo para seu jogo, avant l’homo faber, le puer lusor possède le Monde par son jouet” (ET, 28). Encenar por si mesma os desdobramentos da estrutura da criatividade, eis o núcleo da infância (PR, 85). Em seus jogos de aprendizagem, de incessante reorientação dos nexos referenciais, a verdade da infância é a verdade da imaginação. No limite de si, a criança, como a imagem, transpõe-se cindida para revelar a imanência da alteridade: “Toda infância é para se reimaginar, toute notre enfance est à réimagine” (PR, 85), assim como toda imaginação deve puerilizar-se. Ambas doam a propedêutica do múltiplo, pela refutação do residual comportamento que se restringe ao reconhecer o já conhecido. Pela infância, em sua potência fundadora, revela-se “um ser anterior ao nosso ser, toda uma perspectiva de antecedente de ser, un être préable à notre être, toute une perspectiva d’antécédente d’être” (PR, 93). Como a imaginação, o menino em seus joguetes com o mundo desrealiza-se. Situa-se na primordialidade em que a finitude se processa e se operacionaliza. Antecedente ao ser uno-único-unificante, detém um saber que profere o desconhecer, o nada. Como o puer lusor, “é preciso reencontrar nosso ser desconhecido, soma de todo o incognoscível que é a alma de uma criança, il faut retrouver notre être inconnu, comme de tout l’inconnaisable qu’est une d’enfant” (PR, 99). Imaginação e infância, em sua perspectiva de antecedência e primordialidade, ascendem ao espaço discursivo que hermeneutiza a compreensão, ao questionarem a temporalidade envolvida nos eventos e em sua configuração. O puer lusor confirma a apoteose do projeto bachelardiano: ao apresentar a especificidade do processo imaginativo e hierarquizar a estrutura da compreensão em função da abertura que o onirismo possibilita, Bachelard se prepara para um Novo Humanismo, a ser definido pelo conjunto de tendências que impulsionam o homem a ultrapassar suas determinações gerais e PRIMEIRA PARTE A POÉTICA DA RAZÃO E AS RAZÕES DA POÉTICA SEGUNDO GASTON BACHELARD

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absolutas. Neste Novo Humanismo, “o homem é um ser a imaginar [...]. O que conheceríamos do outro se não o imaginássemos?, l’homme est un être à imaginer [...]. Que connaîtrions-nous d’autre si nous ne l’imaginons pas?” (PR, 70). O homem que imagina, na verdade se temporaliza. Experimenta o outro que coexiste consigo. Imagina-se, ficcionalizando sua subjetividade. O homem é o lugar-tenente do nada. Enfim, atualizando a criatividade em sua determinante apreensão, depreende-se o horizonte em que se tematiza o desvelamento do sentido impetrado na descoberta. A experiência de imaginar articula o tempo deste desvelamento. O sentido constituído e a constituição de sentido não se opõem, não são intervalos estanques, formalizados a priori. Em seu dinamismo mediador, a imaginação apresenta-se em sua plenitude ao fornecer a situação hermenêutica da comprensão mesma. Na imaginação questiona-se o compreender. Compreender a imaginação é questionar os fundamentos do saber. Imaginar e compreender intercambiam-se. Na imaginação, em sua especificidade, dramatizam-se as possibilidades de compreender. O telos da compreensão é a sua tautegoria imaginativa. Por isso, o poético se configura como metalinguagem da criação. Enquanto teoria dramática do conhecimento, a imaginação se amplifica como possibilidade de compreender, instância da estrutura do conhecimento na qual a compreensão fala da compreensão. Circunscrito à sua dialética limite-limitar, o saber se compraz em imaginar, em recriar constantemente seu projeto heurístico. A leitura de um imaginário cognitivo, como o da trilogia de Adonias Filho, vai nos possibilitar o enfrentamento do horizonte aberto pela teoria da imaginação de Gaston Bachelard. Se a produção de saber se articula na liminaridade que o onirismo efetiva, a representação da finitude é um campo de observação para as relações entre arte e conhecimento.

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2. O CÊNICO E O DRAMÁTICO – O ROMANCE DRAMÁTICO DE ADONIAS FILHO As imagens, em sua atividade de autonomia e referenciação tautegórica, manisfestam-se como trama em que se processa sua ambivalência. A trama imagética de efabulação corresponde a operações ritmanalísticas do imaginário que ativam a compreensão em seus fundamentos. As movimentações imagéticas asssinaladas por Gaston Bachelard estão presentes no romance dramático de Adonias Filho. O romancista evoca a interpretação do pensador. O poeta pensante do primeiro tangencia a poética onírica do segundo. Para Adonias Filho, imaginar é fazer irromper a dramatização da finitude. Encenar a morte e imaginar a facticidade interpenetram-se em seu romance dramático. O que se narra em Os servos da morte, Memórias de Lázaro e Corpo vivo é a transmutação da morte em fenômeno de sentido primordial por meio da ambivalência das imagens. O percurso das imagens é o transcurso hermenêutico da finitude. A multiplicidade dos eventos narrativos se encontra na dramatização da finitude. O limite da narração se demonstra na representação da morte. Narrar o drama da morte configura a trama imagética de efabulação de Adonias Filho. As imagens são o palco em que a finitude se possibilita. Como as imagens dramatizam a finitude? Na própria instância de suas movimentações oníricas. No jogo tensivo de suas isomorfias, o imaginário rompe com a monorientação representativa da metafísica. Imagens e contraimagens subsistem somente na alternância temporal que as justapõe em sua

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processualidade (REINHARDT, 1972:98). Sempre se está no limite do outro. O que se presencia somente se presencia, porque aponta para seu extremo. O que se fenomenaliza não se liga ao que em si aparece, mas, sim, à estrutura do seu acontecer, ao que remete. No extremo da imagem, o outro que ela divisa. A imagem só existe em função desta alteridade. O imaginário, em sua nadificação incessante, fornece o diagrama da criatividade, encena a atualidade do desdobramento do outro no seio do mesmo. Do limite em sua abertura, da finitude em seu horizonte. Em Adonias Filho, a transformação das imagens ilumina a transmutação da finitude, convergindo para a temporalidade em que imaginação e morte se interpenetram. Na atualidade do fenômeno dramático, em que “o outro começa a se manifestar, l’autre commece à se manifester” (REINHARDT, 1972:100). O suporte para as imagens da morte no romance adoniano se faz no aporte dramático. O drama é a difusão do duplo e a imagem é sua operacionalização. O horizonte da finitude pela própria finitude é o que se encena. A trama imagética coloca o problema do cênico e do dramático. A representação da morte é explorada por sua dramatização narrativa. Vamos nos concentrar mais neste ponto, antes de proceder à análise das obras da trilogia adoniana. Os servos da morte, Memórias de Lázaro e Corpo vivo desenvolvem-se sob o primado cênico da narrativa. O conteúdo dramático transmitido é isomorfo à forma dramática que o efetiva. Como num palco, “o drama é representado diante de nós que assistimos ao seu movimento” (LUBBOCK, 1976:116). É por meio deste movimento de autoformação, de constituição de seus referentes no momento atual de sua representação, que a narrativa é produzida. Há a ruptura com o “tronco antigo da narrativa organizada em uma seriação pacífica de episódios, de representação direta e objetiva” (ADONIAS FILHO, 1958:20). Não se trabalha com causalidade de enredo que substanciaria o narrado em virtude 46

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de motivações exteriores ao evento de sentido que está sendo configurado. O objeto de representação da narrativa cênica é sua encenação mesma: “a história narra a si mesma; a história fala para si mesma, the story tells itself; the story speaks for itself ” (BEACH, 1932:15). Esta ruptura em prol do cênico e de sua autonomia atinge o estatuto do narrador e do personagem – o “escritor, como narrador dos fatos objetivos desaparece quase que completamente; quase tudo o que é dito aparece como reflexo da consciência dos personagens no romance” (AEURBACH, 1971:469). Inibem-se, pois, os resíduos realísticos identificadores que impediriam a construtividade que se narra. A personagem inscreve-se na estrutura arquitetônica da obra através da refletorização narrativa. Por meio desta técnica ocorre “o reflexo dos acontecimentos no espelho da consciência receptiva de alguém” (LUBBOCK, 1976:50). A cena é o fluxo imagético mediado na personagem. Esta se despersonaliza para que a eclosão da cena se possibilite. Assim, “um personagem é introduzido por outro, one character is introduced by another” (BEACH, 1932:184), ficcionalizando o sujeito, pois “não se trata de apenas um sujeito, cujas impressões são reproduzidas, mas de muitos sujeitos amiúde cambiantes” (AEURBACH, 1971:483). A trama de relações de sentido que se quer efetivar em um imaginário se acopla à multiplicidade proporcionada pelo uso destas técnicas narrativas. A trama imagética de efabulação se diversifica na diversidade conquistada pelo perspectivismo cênico. Em sua orientação cênica, qual a situação narrativa que predominará na trilogia adoniana? Trata-se da situação narrativa sita personativa (figural). Conforme F. Stanzel, esta situação caracteriza-se pela “retirada do narrador; predominância da apresentação cênica; o centro de orientação do leitor fixado na ação em cena; e a possibilidade de dar ao pretérito épico o valor imaginativo de presente, whithdrawal of the author, predominance PRIMEIRA PARTE O CÊNICO E O DRAMÁTICO – O ROMANCE DRAMÁTICO DE ADONIAS FILHO

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of scenic presentation: the reader’s center of orientation fixed in the scene of the action; and the possibility of giving the epic preterite the imaginative value of present” (STANZEL, 1971:92). Com isto, a atualidade dramática é reforçada, e a cena, em sua construtividade, por suas intrínsecas relações de sentido, é o que se narra. Por tal situação personativa, a narrativa é cênica, ganhando sua autenticidade na representação mesma de suas virtualidades teatrais. Com isto, a imagem narrada modela-se de acordo com este palco imaginário, inscrita, concretamente, “na totalidade do tempo e do espaço que ocupa” (LUBBOCK, 1976:104). O perspectivismo cênico dramatiza a imagem e a imagem remete a este trágico em sua efetivação. Mas que trágico é este que é narrado no romance dramático de Adonias Filho, em suas imagens sobre a morte? Pode-se ver “a poética da tragédia como a essência do trágico, the poetics of tragedy as to essence of the tragic” (GADAMER, 1979:114). Em sua matriz axial, a tragédia se concebe como “celebração em louvor de Dioniso” (ARISTÓTELES, 1990:103), celebração através da qual “se encena a dionisíaca essência” (NIETZSCHE, 1993:103). A essência da tragédia se ilumina na decifração da trama imagética que envolve Dionisio. Este, o deus-menino, é “o espírito da dupla natureza e do paradoxo, the spirit of a dual natue and paradoxe” (OTTO, 1981:73). Fruto do conúbio de um Deus e uma mortal, Zeus e Semele, seu nascimento já denuncia a conjunção disjuntiva e a disjunção conjuntiva de duas realidades complementares: vida e morte. Desde já, “a mortalidade da mãe deve ter sido um dos elementos essenciais do mito de Dioniso” (OTTO, 1981:70). O ponto de partida é a facticidade radical da existência, explanada e figurada na plasticidade que aproxima o feminino e a morte. No culto mesmo de Dioniso, as mulheres exercem papel fundamental, perspectivando a cisão originária que ele 48

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representa: “no culto de Dioniso, em geral, o maior papel é desempenhado pelas mulheres, porque, no mito, elas são as inseparáveis companheiras do deus” (OTTO, 1981:44). Tais companheiras atualizam a epifania dionisíaca, sofrendo seu deus, refletorizando-o em sua alteridade, num ritmo de possessão que é como “uma torrente de vida que a tudo traga” (OTTO, 1981:95). Nesta corrente, percebe-se a “plenitude da vida na violência da morte” (OTTO, 1981:141). Tal êxtase totalizante indica o acontecimento de sentido dionisíaco marcado pela transmutação radical das limitações, e, disto, na problematização da finitude mesma. Dionisio quer “o homem inteiro, arrasta-o para o horror de seu culto, e, pelo êxtase, eleva-o acima de todos os mistérios do mundo” (LESKY, 1971:61). Por meio de Dioniso, encena-se a experiência do homem em seu destino de excessividade, integralização de todos os aspectos imanentes e transcedentes envolvidos na dramatização de sua finitude radical. O que se avista por esta experiência é “o mistério da vida que gera por si própria, que se cria por si mesma” (OTTO, 1981:136). Neste movimento especulativo da vida, integrando o limite, a morte reabilita a morte, dando a si uma positividade fundadora. Assim, “a morte não é para ser esquadrinhada no fim da vida, mas no começo, quanto ao que diz respeito às criações de toda vida” (OTTO, 1981:139). Por meio do dionisíaco, por meio da condição dionisíaca, o homem descortina a estrutura da criatividade que comanda sua existência. Esta criatividade é marcada pela finitude. O acontecer da criação é a originária experiência com os limites. Na máscara dionisíaca, este criar criando-se se inscreve. O infinito paradoxo do deus que não cessa de viver porque não cessa de morrrer é representado pela máscara. Por meio dela se avistam deus e homem correfletidos no vigor de sua processualidade vigente e ressurgente. Dialogam o ilimitado e o limitado na interdependência que os existencializa. O homem, ao viver a paixão do deus Dioniso, PRIMEIRA PARTE O CÊNICO E O DRAMÁTICO – O ROMANCE DRAMÁTICO DE ADONIAS FILHO

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em si mesmo concretiza a abertura dessa paixão na mediação dos contrários. A um deus que vive por sua morte acopla-se um homem que se redefine por esta vida. Deste modo, em homem e deus cojogados na finitude de sua criatividade, há “a revelação da origem no originado” (SOUSA, 1973:172). A condição humana é a mesma do deus, do pathos que ele assume em seu culto. Porém, se o drama é de Diosino, impondo “a contradição no seio do próprio mundo” (NIETZSCHE, 1993:64), por que entram em cena Zeus e o mito heroico? É pela figura de Prometeu que este “desnível de roteiro” se entende. Prometeu medita acerca da singularidade olímpica de Zeus e seus seguidores. Prometeu é o único que sabe o segredo de Zeus; compreende o deus que tudo sabe. Zeus configura-se como potencialidade cósmica extrema, agente maior da diacosmese. Desvendando tal horizonte ilimitado e caoticamente indeterminado, o poder negador de todo e qualquer limite, Prometeu interpretará a efetividade da morte. Fora Prometeu que ajudara Zeus a assegurar sua potência (ÉSQUILO, V/I, 1949:vs. 436-438). Contudo, encontra-se, agora, suspenso entre Ásia e Europa. Nesta distensão, representa-se como “ser fronteiriço” (BACHELARD FPF: 107), mediador entre o finito e o infinito. Ultrapassando a monodia aparentemente consagradora do poder da magnitude, Prometeu expressa-se como insuflador do poder inventivo aos mortais: “eu livrei os homens da obsessão da morte e presenteei o fogo a eles” (ÉSQUILO, v. I, 1949: v. 452). A obsessão pelo limite próximo converte-se na elucidação do próximo liminar. A finitude é reabilitada em sua fundamentalidade heurística. Com isto, ao homem cabe o contínuo ritualizar das possibilidades de criar ao invés de reafirmar a ordem residual das coisas. Cabe-lhe ter um horizonte. Zeus, em sua cosmicidade finalística, arrebatadora, incita os homens a permanecerem demasiadamente humanos, avessos a uma indiferenciação sem medida. Sua magnitude 50

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é incompreensível porque inquestionada. Mas Prometeu sabe colocar a questão. O trono de Zeus se sustenta no pacto com Moira, com as parcas. Em razão de seu pacto, “Zeus não saberia escapar de seu destino” (ÉSQUILO, v. I, 1949:v. 516). Zeus é mais um limiar fosforescente do drama que o efetivou. O consentido patente denuncia-se e inflexiona o pleno sentido latente: “O excessivo solicita a única força capaz de o mostrar e demonstrar como excessividade” (MELO E SOUZA, 1990b). E a excessividade anterior a qualquer plasmação está “na potência do destino que antecede e excede a essência do divino” (MELO E SOUZA, 1987:7). Zeus é absoluto como confirmação da primordialidade do finito. Prometeu, interpretando Zeus, integra as modalidades da facticidade no movimento ritmanalítico que a constitui. Medeando o limite no possível e o ilimitado em sua circunscrição, Prometeu anuncia a processualidade trágica como forma de conhecimento privilegiado. Os absolutos se concretizam na virtualidade de sua facticidade. E as parcialidades integram-se na perspectivação de seu tempo fragmentário e diversificador. Superara-se a atomização e a mera formalização do saber. Dentro desta processualidade, a “atividade poética exercida sobre o mito tradicional” (ARISTÓTELES, 1990:89), presente na tragédia, transforma-se numa teoria dramática do conhecimento, através da qual o adensamento multiperspectivador da fábula é isomorfo ao aprofundamento do homem em sua facticidade. É a compreensão mesma que é o alvo da representação. A cena dramática encerra, pois, a interpretação das potencialidades hermenêuticas em sua real abertura pela finitude. O drama é de conhecimento, e não de caracteres. Esta teoria dramática do conhecimento que o trágico reivindica na construtividade das peças exemplifica-se em Ésquilo. Ésquilo “encontrou na trilogia a forma apropriada que lhe permitiu ultrapassar o segmento singular do acontecimento” PRIMEIRA PARTE O CÊNICO E O DRAMÁTICO – O ROMANCE DRAMÁTICO DE ADONIAS FILHO

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(LESKY, 1971:97). Entregue à estrutura de seu acontecer, “cada momento da peça se constitui como que em um porto de irradiação luminosa que esclarece o todo, para trás e para frente” (SOUSA, 1978a:5). Com isto, rompeu-se com a linearidade da representação, com a unidade do acontecimento individual. A cena é disposta na superposição de relações de sentido concomitantes, temporalmente verticais e interdependentes umas das outras. O drama encenado é, pois, “drama de intensificação” (KITTO, 1954:88). A intensificação permite a interpenetração dos contrários efetivada na configuração mesma da obra. Em A Oresteia “é notável ver esta tensão interna de cada peça combinada em geral conexão com as outras” (ROMILLY, 1968:14). Observa-se a doação de um saber contemporâneo de sua construção, uma verdade no tempo de seu conflito fundador. Obrando no tempo, vê-se no cênico, “o tempo ensinando lições, the time teaching lesons” (ROMILLY, 1968:144). A lei desta lição se encontra expressa em Páthei Máthos (ÉSQUILO, v. II, 1949:v. 176). O “saber pelo sofrer” é o conhecimento encenado pela tragédia. “O que um homem tem de aprender através do sofrimento não é essa ou aquela coisa particular, mas o conhecimento das limitações da humanidade, da absoluta barreira que o separa do divino. [...]. Esta experiência é a experiênica da humana finitude” (GADAMER, 1979:320). Modalizando este saber, observa-se que “os mortos afligem os vivos” (ÉSQUILO, v. II, 1949:v. 886). A morte transmuta-se em sua paixão. A vida prescreve a ausência fundante da morte como circunvelante da existência. O que se desvela na revelação da verdade trágica é a meditação acerca da natureza do limite. O homem encontra-se sobredeterminado em função de sua finitude radical. O apoteótico final de A Oresteia consagra a primordialidade da morte enquanto saber que revela as potencialidades humanas. Encena-se um complexo satyricon, em que as 52

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criaturas indiferenciam-se na dramaturgia da criação: “Lançai o choro ritual em resposta ao nosso canto” (ÉSQUILO, v. II, 1949:vs. 1043 e 1047). A alegria da vida se faz na presença de clamor à morte. O jogo de redistribuições encenado quer representar a verdade que o dramático concretiza. Trata-se de ver na figuração do drama a “mímesis concriativa da patência simultaneamente desveladora e veladora da latência ontológica e não mera imitação conservadora dos entes circunstantes e instantes” (MELO E SOUZA, 1988:37). A teoria dramática do conhecimento encena a primordialidade do limite por meio do limite mesmo em seu processo. Trata-se de elaborar a finitude através da estrutura da criatividade que a comanda. Se o tempo de pensar marca o pensamento, a encenação da facticidade determina a própria encenação. A poética do trágico é a poética da finitude: “a verdade da poesia é a poesia da verdade” (MELO E SOUZA, 1988:76). 2.1 Leitura da trama imagética do tríptico adoniano Proposta a definição dramática da narrativa de Adonias Filho e a mitopoética que lhe organiza, partimos agora para uma detida análise da trágica trilogia que representa e pensa a morte como conhecimento. Servos da morte é, simultaneamente, a proposição e o abrenúncio da trilogia. Propõe a morte como questão fundamental para o homem, ao mesmo tempo que anuncia a modalidade mistérica que cerca esta questão. A finitude como fundamento da compreensão humana se revela como não pertencendo ao horizonte comum: ela ama esconder-se.1 É dentro deste desdobramento tensivo que Servos da morte se efetiva. A morte aparece como fascinação excelsa, redistribuída 1 Referência ao fragmento 123 de Heráclito, apud Sousa (1978b:21).

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em vários assassinatos e violências. Os agentes dramáticos se deformam, a natureza se contorce, o ritmo agônico é introduzido e se dissemina no romance, criando uma atmosfera cuja densidade é a de sua coerência tanática. No entanto, a constelação dos atos executados e a panorâmica dos cenários representados se interpretram em virtude de um mistério que os sustenta: por mais que se vejam os efeitos da morte, a finitude não se mostra em sua totalidade. Falar da morte é um dizer inexaurível. Este não dizer se escuta na negação feita por Paulino Duarte, primeiro portador dos efeitos da finitude. Ao ser questionado por seu filho, Quincas, quanto a trazer uma nova mulher para casa – pois “só houve uma mulher aqui em casa, pai: – e foi minha mãe” (p. 4)2 –, Paulino responde “Ela está morta, e é preciso não lembrar os mortos” (p. 4). A invocação de uma mulher viva se entretece à evocação de uma mulher morta: ambas correspondem-se e solicitam-se reciprocamente na representação. É o ritmo oscilatório de presenças e ausências que perpassa o tríptico e aqui se abrenuncia: mundo originado dá testemunho do originário modo de sua atualização. É pelo vigor de uma ausência fundante que exsurge o que ora se apresenta. A negação de Paulino Duarte transmuta-se na afirmação desta verdade ritmanalística em que a morte negada só incita para que ela mesma transpareça em seu vigor. Coagem, nesta afirmação, a necessidade de elaboração do sentido que a finitude possibilita enquanto evento primordial. Quem era Paulino Duarte para negar a morte? Há nele o “desejo bruto de dominar criaturas” (49). Mediando a potência tanática, ele agride vizinhos (15), esposa (8), filhos (27), empregados (10), pedestres (22). É um veículo da finitude, é ação representada da morte na ofuscação de sua excessividade 2 Em razão da alta ocorrência de citações dos três livros de Adonias Filho nesta parte do livro, citamos apenas a página do livro que, na sequência, está sendo analisado.

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primeva: violência e brutalidade como ausências de fala frente ao inesgotável.3 A operosidade demoníaca de Paulino Duarte converterá Elisa à verdade da finitude. Ela interpretará a excessividade caótica impetrada: torna-se a maternidade da morte. Se o esposo instaura somente destruição, ela partejará a brutalidade: “como se fosse uma condição interminável, o sangue de Paulino Duarte destruía nos seus filhos a presença do seu sangue. Certificava-se, em ideia doentia e trágica, de que a força de Paulino atuava no seu próprio ser, agia no seu ventre com uma impetuosidade infame” (27), resultando, nesta atuação, “aqueles meninos robustos, indomáveis, brutos como o pai” (8). Elisa divide-se na contraditoridade que a maternidade da morte propicia: dar luz aos signos da finitude e aprofundar-se na gestação da latência da morte. Ao sofrer na carne a violência de Paulino Duarte, Elisa acolhe a osfuscação da morte. Perspectiva o mistério desta ao elaborar um projeto para sua existência. Seu objetivo inicial é dominar Paulino Duarte, dominando sua potência embrutecedora, “encontrá-lo eventualmente pelos caminhos, despertar-lhe desejos pelo seu corpo, criar-lhe uma paixão nos sentidos virgens” (p. 22). Quer, pois, interromper o ciclo destrutivo, antes de sua cosmicidade, canalizando-o para si. Para ela, “Paulino Duarte, irresistível em sua força física, destituído do conhecimento das coisas, devia ser um inocente na sua brutalidade de fera, uma criança submersa em selvagem violência” (17). Assim, tudo o que se falava dele e de sua sina “era um mito, uma história como tantas outras” (18). Domesticá-lo-ia, pois “a natureza do cão é bem isso. Mas com ternura, vê-lo-ei sacudir a cauda e lamber-me as mãos” (26). 3 Com relação à brutalidade e à violência, pergunta-se se “a violência da morte não corresponde à violência do ato genesíaco original?” (SOBRAL, 1978:7). Os signos da finitude, em seus envoltórios excessivos, traduzem a primordialidade da morte como fundamento de tudo o que aparece no mundo. O excessivo solicita de si mesmo as forças de sua efetividade (SOUSA, 1974:123). A finitude é, em sua radicalidade, nadificação. A morte excede e comparece na entreabertura de seus desdobramentos diferenciais.

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Contudo, Paulino Duarte transbordará em sua proeminência. Falido o projeto de Elisa? Não. É no conflito e na interação entre as modalidades de finitude que o percurso de Elisa se situa, em busca da integração entre a aparência e essência da morte. Para ela, “assim como a densidade das águas protege a beleza de certos peixes, também assim o corpo ridículo protege seu espírito, livra-o dos olhos indiscretos” (35). Elisa distende os signos da finitude veiculados por Paulino Duarte através do aprofundamento de seu horizonte. Configura-se como intensificadora do ritmo agônico instaurado por Paulino Duarte. Esta interpretação da verticalidade da finitude por meio de seu adensamento se amplifica imageticamente no capote usado que a reveste (5). Recebendo a roupa de seu marido, ela acolhe sua violência, transfigurando-a. No capote usado, Elisa, agora como progenitora da morte, dinamiza a intimidade da morte. Demonstra que o ímpeto mortificante que a finitude realiza ecoa a potência nadificadora que possibilita tal vertigem. Deste modo, Servos da morte, nos conúbios que se narram em torno da morte, fornece a genealogia da finitude. Em seus primórdios, a finitude é o originário dom que instaura o possível nexo mantenedor entre os mortais: a mediação do possível no finito expressa no limiar de seu limitante. A narrativa continua na experimentação desta hermenêutica. Elisa delira, e este delírio reimagina a possessão tanática na profundidade que ela inaugura: “Elisa fechou os olhos [...]. Quando os abriu, horrorizada, percebeu que o leito se estreitava, a enorme figura de Paulino Duarte desaparecia. Os próprios ruídos noturnos pararam bruscamente, ela vendose deitada sobre tábuas duras, tábuas duras apertavam os seus ombros. Sobre a cabeça, os peitos, as pernas, uma tampa reta, de forro branco. Afastou as mãos, estarrecida, forçando as tábuas, e sentiu que as unhas arranhavam, que o ar era abafado e cheirava a flores. Tentou separar os pés, percebeu que o espaço era curto. 56

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Então, sabendo-se viva, olhos abertos nas trevas do caixão, gritou angustiada” (37). Ao fechar e abrir os olhos, Elisa se dispõe circunscrita e adstrita à plenitude de morte em seus processos fundadores. O espaço se despontencializa e ela dimensiona-se na tensão de sua sensibilidade aberta à linguagem muda da finitude. Morta em vida e vivendo por esta morte, Elisa, com “os olhos abertos nas trevas do caixão” penetra na verdade trágica que a revelação da morte possibilita: a ‘in-diferença’ dos contrários, com a morte metamorfoseada em vida. Em meio a este êxtase delirante, em que Elisa se vê possuída pela destinação da finitude, o que se revela é a morte como potência plástica que excede as configurações realizadas por ceder matéria às deformações que mantêm os construtos. A possessão delirante como intermerdiário cênico, que apresenta a destinação da finitude por meio de Elisa, ilumina-se na vingança por ela imaginada. A vingança aqui ‘pré-sentida’ é o vingar do mistério da morte. A genealogia da morte terá de atualizar as correlações virtuais de seu gamós. Invertem-se os papéis a fim de que brotem mais diferenças. A distensão das relações dramáticas entre Paulino Duarte e Elisa facultam ao imaginário narrado a densidade agônica de sua trama imagética de efabulação. Os representados estão em isomorfia a sua faculdade de verticalização, de aprofundamento do sentido por recolocação deste mesmo sentido. A vingança, deste modo considerada, constitui-se na proliferação de imagens e atos simbólicos redistribuidores da finitude em sua potenciação. A ascendência de Elisa e a decadência de seu esposo são movimentos complementares, preparatórios para novas diferenças a se efetivarem ao mesmo tempo que reafirmam os percursos até agora trilhados. A antecipação da vingança se faz na estranha figura de Emílio. Seu caráter exógeno já se observa no fato de que viera PRIMEIRA PARTE O CÊNICO E O DRAMÁTICO – O ROMANCE DRAMÁTICO DE ADONIAS FILHO

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fugido para a Baluarte, fazenda de Paulino Duarte, vivendo “ilhado em suas alucinações” (32). Não podia ultrapassar os limites da fazenda (30). Sintetiza os contrários polos da morte, sendo seu mensageiro. Variava, expressando-se em uma discursividade arrítmica e ilógica ao narrar histórias tão fantásticas quanto ele mesmo. Para Elisa, Emílio era “um múltiplo de criaturas” (31), “escondia no corpo uma grande alma, o corpo escondia a alma como a palha esconde o fruto de milho” (35). Ele funciona como intérprete da irrupção tanática de Elisa. Como vidente diabólico, traduz o sentido do delírio de Elisa. Elisa não morrerá ainda, “viverá para vingar-se” (41). A morte de Elisa só se consumará na de Paulino Duarte, ao se concretizarem as virtualidades que equacionam o conúbio em sua genealogia da morte. A finitude deve acontecer em ambos enquanto totalização de sua verdade. Emílio aduz esta revelação na heterogeneidade de sua forma. Seu oráculo é o diagrama da destinação trágica de Elisa. Inicia-se a queda de Paulino Duarte. Pensando na vingança terrível que sua esposa lhe prepara, “sentiu medo, o velho medo que corroía como uma doença incurável” (49-50). É o pavor da morte: “Por quê? Verificou que não podia explicar, ele não as explicaria,4 ficariam ignoradas no seu mistério” (5). A catábase de Paulino Duarte prorrompe no mistério que cerca a finitude. Seu questionamento é abertura de sentido inerente ao desvelamento da morte. “Morremos e por que morremos?” (50) torna-se a pergunta fundamental que brota do fundo da radicalização de todo o ritmo persecutório por ele instaurado, e que agora cessa sua aparência terrificante para concentrar-se na intimidade de sua originalidade. Esta interrogação é a resposta à anterior negação por ele feita. Sua clausura é contrapolar à antiga brutalidade excessiva. 4 Paulino Duarte não explicaria as palavras oculares de Emílio.

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Revelando-se de modos complementares e igualmente dramáticos, a finitude vai-se constituindo como origem incessante e continuamente presente na trama imagética que Os servos da morte encena. A morte de Elisa durante o parto colocará uma nova interpretação da genealogia aqui narrada. Os vínculos se diversificam, prenhes de significações. Antes de morrer, Elisa “adivinhava, numa visão sobre-humana, que retornaria à vida no corpo do filho. Ela estaria nele, em outra vida, mas estaria nele para se vingar e sentir os últimos momentos de Paulino Duarte, vê-lo morrer como um cão danado e faminto” (59). Elisa, já totalmente possuída, despersonalizada em função da intimidade da morte que ela assumiu, quer unir os dois reinos, o da vida e o da morte, através de seu filho. A morte aprofundada requer a reversa harmonia dos dissemelhantes. Na raiz da complementaridade, a finitude é transfinitude. Por um filho, na sagração do vigor da morte, Elisa se consagraria, desdobrando ainda a “sina da Baluarte” (62), a sorte de sua destinação trágica. O filho radicalizaria a genealogia de Os servos da morte. Ainda por cima se ele for bastardo. Escolhe Anselmo, o vizinho próximo aos limites da Baluarte, “dono dos belos cães” (59) para disseminar o agente da morte em sua plenitude. A morte, após sua verticalização, uniria as portas do céu e do inferno, da intimidade humana e da cosmicidade mundana. O filho bastardo veicula a finitude para além dos limites da Baluarte, é o horizonte iluminador do ritmo persecutório da morte, ilumina a razão mesma destes limites como limites imanentes à compreensão da finitude. O que vai nascer, Ângelo (angelus), é o anjo da destruição: consumação apoteótica do abrenúncio do sentido da finitude de Os servos da morte. Morre Elisa de olhos abertos (64), olhos dispostos na abertura de significação que seu filho traria. Ela mesma de olhos abertos é isomorfa a esta abertura: uma vida indissociada PRIMEIRA PARTE O CÊNICO E O DRAMÁTICO – O ROMANCE DRAMÁTICO DE ADONIAS FILHO

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da morte. Elisa, a morta que vê, e somente vê a morte em sua totalidade, e Ângelo, o vivo que vê a morte e vive por adorá-la, complementam-se em radicalizar as polaridades da morte, demonstrando-a como origem de tudo o que é ou existe. Morre Elisa e nasce Ângelo. Segundo Paulino Duarte já brilha nos olhos da criança “uma luz forte, cintilante, mesma luz que tantas vezes odiara nos olhos de Elisa. [...] A morta havia deixado no filho um sinal diabólico. [...] o ódio de Elisa estava presente e vivo nos olhos daquela criança” (73). O mistério da morte pelo sortilégio da morta acompanha Ângelo. Identificado à paixão de sua mãe, o menino cresce e parte a concretizar sua vocação. Explora a casa (84) em busca da verdade de sua genealogia. Simultaneamente, Paulino Duarte penetra em sua escuridão, retorna às origens de sua potência. Perde a visão aos poucos. Logo terá olhos como a morta – na indiferença do seio do complementar. Vive de imagens pretéritas: “o mundo passado se renovava, adquiria na memória uma expressão quase física de realidade [...] encontrava ali a existência desaparecida, as criaturas mortas” (78). Este retorno é a projeção da presença do passado na atualidade dos mortos em seu vigor. É a mesma e diversa maneira pela qual Ângelo, no seu advento, significa a presença da morte. Por correspondências e justaposições verticalizantes, a trama imagética se processa. A finitude é perspectivada através da tematização de seu horizonte, e seu horizonte é contemporâneo do desvelamento copertinente a um velamento. Ângelo acontece enquanto interpretação da ausência de sua mãe, e Paulino Duarte se ausenta para a potenciação de seu filho. A genealogia repercute na tautegoria de sua processualidade. Como mediador do advento de Ângelo, há a figura de Augusto Padeiro. Era um pedinte “em viagem sem destino” (23), périplo hermenêutico indiviso. Elisa o alimentava enquanto Paulino o “enxotava como a um cão doente” (22). Augusto Padeiro situa-se liminarmente entre a maternidade e a violência 60

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da morte. Na eminência da revelação de Ângelo, Augusto Padeiro encontra-se “nas fronteiras-norte da Baluarte” (79), em meio a um fogo crepitante, fora de si, no limite de sua vida. Neste desvario, imprecando maldições, ele grita: “que o filho apodreça no ventre! Pestes! Mas logo calava-se, adquiria expressão de brandura, apenas quando Ângelo se aproximava [...] estendendo a mão, como fazia antes, pedia: Mata a fome de Augusto, Iaiá” (81). O pedinte reencena a paixão de Elisa, identificando em Ângelo as faces complementares da potência tanática: a excessividade dilacerante e a intimidade em expansão – viver a latência da morte. Após um delírio, Ângelo inicia-se no ritmo mortificante da maldição que cerca seu génos. Representa-se num movimento pendular entre essência e aparência da morte, entre os polos que aprofundam a verticalidade da finitude como maneira de abranger as contraditoridades de sua destinação tanática. Emoldura, pois, o tema e o horizonte desta elaboração prévia da questão da finitude. Esta bidimensionalidade se visualiza melhor na oscilação entre duas mulheres, com as quais Ângelo se sensibiliza. Elisa, a mãe morta, o fundamento de sua iniciação; e Celita, esposa de seu irmão, possível limiar para a sina da Baluarte (108-109). A oscilação conduz a interpretar a genealogia presente em Os servos da morte. Dota-o com a capacidade de irromper enquanto revelação do duplo fundamental subjacente à finitude. Sua entreabertura medeia a compreensão rumo ao acesso à “realidade original dos mortos [...]” que só “os espíritos feridos pelos espinhos da vida podiam sentir” (54). É somente marcado pela finitude radical que se pode compreender a efetividade da morte. Em busca de questionar esta realidade original, Ângelo angustia-se, despedaça-se, devide-se, sente na carne os signos da finitude: “Ângelo chorava oculto pelas trevas, o coração despedaçado pela angústia de ser incompleto” (157). No âmago de sua sensibilidade, abre-se para revelar a morte em seu limiar de significação. Sabia que “havia alguma coisa se desgregando PRIMEIRA PARTE O CÊNICO E O DRAMÁTICO – O ROMANCE DRAMÁTICO DE ADONIAS FILHO

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no fundo dos seus ossos – o ser, sim, era o ser que se anulava gradualmente” (161). Descendo ao minimum de si, Ângelo prepara a aparição da potência da finitude. Esta nadificação que ele assume corresponde a assumir a própria nadificação que transparece na morte. A divisão entre as duas mulheres – seguir a paixão de sua mãe, e apaixonar-se pela mulher de seu irmão, invejando “o homem ligado ao destino comum, submerso na banalidade dos sentimentos coletivos” (198), na “aproximação do verdadeiro ser” (186) – quer representar a totalização que o homem imerso nos signos da finitude possui. Ângelo cerca-se dos polos em conflito que o delimitam, converte-se na tarefa de transmutá-lo, configurando-os como codificações dependentes de um projeto de sentido fundamental que abranjaria os contraditórios, na razão que permeia e sustenta estas diferenças. É na esfera da facticidade dessa limitação mesma que a totalização se faz possível. É a função dramática de Ângelo. O verdadeiro ser, por Celita, ou a verdade pela morte, em Elisa, interpenetram-se na difusão do vigor desvelante do caráter descontínuo que preside à essência variacional da morte. E esta variabilidade do mesmo promulga um saber primordial, que é saber do homem mortal. A partir deste saber, Ângelo inaugura seu ritmo persicutório-destrutivo. Através de um diálogo com seu irmão, logo após ter torturado seu pai até a morte, Ângelo consuma-se ao consumar sua vingança. Rodrigo, o irmão doente, já morto em vida (181), é um autêntico interloucutor para este diálogo entre figuras marcadas pela genelogia da morte. É em busca da compreensão dessa finitude que as palavras são pronunciadas. Ângelo “preferia o suplício danado, a maldição dos conflitos, a debilidade física, as doenças constantes, preferia tudo, todas as desgraças, a não ter uma missão na terra” (119). E todo o sofrimento era em prol de revelar o sentido dessa missão. Ângelo

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pergunta ao irmão: “o que somos?” (190), qual a razão dessa existência excessiva? A morte, pela boca de Rodrigo, responde: “somos os servos da morte” (191). Estáticos, sofrem a morte na lei do páthei máthos. Estão comissionados à destinação tanática. Coroando esta dignidade fatal, conjugam-se a morte da filhinha de Celita, de mesmo nome da mãe de Ângelo, e a solidão deste na Baluarte. A filha de Celita, Elisinha, é abertura dessa genealogia rumo a novo processo cosmoantropogônico. Elisinha atualiza o mito da eterna infância, na criança que brinca descobrindo o mundo. Mas os arquéticos são movidos, comovidos segundo as especifidades de um imaginário efetivo. Aqui, a criança é o sacrifício necessário para a consumação da apoteose de Ângelo. É a oferta que redistribui os aspectos velados da genealogia. Fecha o círculo ao ir-se para a realidade original dos mortos. Elisinha morta reúne-se com Elisa, esta também morta na cópula da maternidade da morte e na infância imemorial da finitude como modalizações da potência criadora que a facticidade da morte garante. Em suma, a maior revelação em que Ângelo acontece é demonstrar que a nadificação realizada na morte, em razão da aparência de seus atos destrutivos, não passa de efeitos das virtudes configuradoras na base da finitude. Ângelo, vivo para a morta e assassinando a criancinha, medeia a irrupção do sacro velamento que a finitude propõe enquanto saber que apreende a estrutura da criatividade que comanda a compreensão dos homens. Finalmente, após esterilizar toda a terra com as sementes de sua possessão demoníaca, Ângelo confronta-se consigo mesmo. Neste ponto, convergem as incessantes variações e metamorfoses do livro inteiro. É para este limite que as imagens se encaminham. Em Os servos da morte, a imaginação da morte se processa na proliferação destes vários eventos relacionados ao limite continuamente proposto. Não há preenchimento exclusivo nesta

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seriação. É a inconclusão mesma que se narra. A trama é de imagens que se diversificam à medida que intensificam a mortandade. É, pois, como abertura para a finitude que a imaginação representa a morte. Esta abertura para a finitude depreende-se na agonia do corpo de Ângelo, sozinho, no limite de si, a última cena do livro. Não há nota alguma de transcendência. Ângelo se situa “abaixo das estrelas” (247), caído sobre o chão. Dimensiona-se adstrito ao restrito. É tão radical este momento da finitude que ele nem reconhece o corpo: “não, aquele corpo não era o seu, não eram suas aquelas mãos” (247). No limite máximo da morte, vê-se a indiferença que integra o horizonte do finito. O desconhecimento de Ângelo é o conhecimento da liminaridade do limite. A finitude é horizonte de si. Toda a variedade tensiva de Os servos da morte conduz à tautologia da finitude, na complementaridade entre limite e limiar, e na inexaurível verdade que dela se recebe e quando entendida em sua potência nadificadora. Esta é a genealogia da morte: o limite como fenômeno original porque originário para o homem. Daí viemos. Mas para onde iremos? É Corpo vivo, a terceira obra da trilogia adoniana, que narrará a escatologia da finitude. A suspensão provocada pela solidão de Ângelo corresponde à redenção inscrita na gesta de Cajango. O seu percurso é aprendizagem do prius que a trilogia busca.5 Cajango tem seu génos atingido, assassinado (6). Na terra, possui agora um destino, uma missão (35): reencontrar-se com sua origem. É em busca desta origem que se envereda Cajango. A sua força, o que o sustenta são seus mortos (11). Cajango trilha uma destinação que se ilumina em suscitar a sua origem morta, a morte enquanto origem. O sentido de sua viagem é a visagem da “realidade original dos mortos”. 5 Note-se o procedimento de leitura: saltamos do primeiro para o último membro da trilogia como forma de enfatizar a poética da morte ali efetivada.

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Instala-se nos princípios do mundo, a selva denominada Camacã (18). Aquela mata fechada, como um ventre (27), propicia a intimidade com a morte, a aprendizagem dos limites: “o Camacã é isso por dentro: é preciso saber pisar e onde meter o corpo” (45). Mediador deste drama cognoscente, aparece Inuri, “o mais esperto dos homens” (18). Ele “ao menino ensinava o que parecia ser vida” (19). É no despertar das potencialidades de Cajango que Inuri se legitima. Tal lição se visualiza na cena da armadilha da onça e do veado. Após prender e atiçar a fome de uma onça, Inuri, em companhia de Cajango, atira na armadilha um “filhote de veado” (43): “o menino fitava o fosso quando o atirei e em menos de um minuto era uma pasta de carne, o sangue espirrando, vermelhas as mandíbulas da fera. Em Cajango, [...] um músculo não se moveu. Acabara de comprovar que tinha o coração duro” (44). A lição de Inuri é da finitude que se desdobra numa vida tragada pela morte. A violência da morte seria o efeito de uma verdade mais ampla. O que importa é a lição apreendida e dramaticamente captada em suas tensões. No limite dessas tensões é que se revela o “coração duro”, possuído por esse saber inaudito. O conhecimento que Cajango recebe do mais esperto dos homens é o da plenitude do sparagmós como ritual alethopoiético.6 Agora Cajango é “a fera pior que fera” (36). Nele transparece a sobredeterminação oriunda do saber pela morte. Irreconhecível, “torna-se difícil saber o que nele é humano além do corpo” (39). A pureza de sua corporalidade, na dignificação na finitude que ele assume, consuma-se no emblema trágico 6 Quanto ao sparagmós, v. Sousa (1978c, 1974). Quanto à alethopoiesis, v. Melo e Souza (1988). O sparagmós, despedaçamento ritual de uma entidade fundadora, através do qual a morte do deus dá vida ao mundo, traduz imageticamente a verdade da finitude assumida em sua potência nadificadora. Destruir construindo, instaurar circunscrevendo. A verdade destas imagens é a verdade da poesia, alethópoiesis, que em suas ambivalências interpenetra, como a imagem do despedaçamento, morte e devir, na bifacialidade de sua forma e de sua expressão.

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que ele comunica: Cajango, “sendo o mesmo é outro” (35). O iniciado nas virtudes da morte converte-se no palco em que as diferenças afluem. Esta despersonalização infude um saber primordial que, no ritmo ontológico do mesmo e do outro, quer ensinar o seguinte: o que se diferencia é a própria diferença na raiz da complementaridade. Cajango se transfinitiza na proporção que se finitiza. A alteridade promovida em seu ritual iniciatório revela a copertinência dos contrários na processualidade da finitude, em que é a finitude mesma que se ‘contra-diz’ e se promove como facticidade e força originante. Com isto, depreende-se a ‘des-humanidade’ de Cajango, ‘des-humanidade’ de bandoleiro e de menino (35). O homem se apodera, porque o menino possibilita, com o sangue de seus mortos pelo corpo (108). Os olhos ‘verdes’ e os cabelos ‘ruivos’ (35) são de alguém, com horizonte (verde) em meio à sanguinolência generalizada (ruivo). Cajango arregimenta as variedades da finitude para que ela mesma aconteça em seu vigor. Ele tem o páthei máthos. Os que o seguem e os que o perseguem não conseguem adentrar na dimensão inaugurada por Cajango: “todos são feras que se alimentam de sangue” (74). E aqueles que o perseguem “são homens como os de Cajango, escórias das matas, gente imunda que não vale o cipó da forca” (130). Inexoravelmente presos à ofuscação caótica da finitude, eles possuem “os olhos que brilham como vidro ao sol” (17). São momentos parciais da gesta de Cajango. Habitando este cenário em que só a mortandade irrompe, há a ambivalente figura de Hebe. Extraordinária em sua aparição, arrastando os longos cabelos brancos sobre a terra (27), Hebe profetiza o fim do ciclo persicutório. Seu vaticínio transmuta a purgação do ‘mal-dito’, representado no assassinato dos meninos pelo Sangrador (17), em ‘bem-aventurança’, na plenitude de um novo início com a vinda de uma mulher (99). Hebe é “a primeira mulher branca a endoidecer no fungo da 66

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selva” (17). Por esta ruptura, condensa o ritmo inseminador da alteridade ao incorporar a imanência (terra) e transcendência (cabelos brancos), rumando para a transfinitude que seu verbo revela. O dictum de Hebe é o tradictum desse processo ritmanalítico que instaura a trama imagética em Corpo vivo: a gesta de Cajango como gestação da liminaridade da finitude. Hebe intermedeia a abertura de sentido percurso de Cajango. Há, pois, “a mulher a ferir as entranhas da fera” (55), há o Outro a desvelar novas virtualidades significativas à destinação de Cajango. Contudo, esta diversa iniciação requer ritual diverso. Para desposar a mulher, Malva, ele terá de negar Inuri, superando-o ao ‘com-preendê-lo’. O conúbio Cajango-Malva, como dramatização da abertura essencial promovida pela finitude, mediante a efetivação da alteridade, é dinamicamente representado na cena da casa de Malva com a porta entreaberta. É a partir de uma cisão no seio deste que se desdobra a constituição deste imaginário narrado. Malva, como as malvas do campo, “pequenas touceiras que pediam sol, folhas que saravam as perebas, cortavam as dores, traziam a sorte” (83-84), espera Cajango. Ela trará o sol para seu amado, curará sua sina sinistra, apontando-lhe as virtualidades da finitude. A porta aberta reconcilia, à sua presença, a ausência do amado. O pedido para fechar a porta, por parte de jagunço Chico das Bonecas – o sangue em sua imediata manifestação mortal –, atende ao fechamento vivido pelo Cajango na difusão do ciclo da mortante. É uma iluminação parcial do pretérito de seu amado. Mas a porta é clausura e passagem. É ‘entreabertura’ mantenedora do tempo se diferenciado para significar, no limite de sua formação.7 A porta é uma testemunha. Abriu quando nasceu Malva, abrirá para o (re)nascimento de Cajango. 7 A respeito da porta como mediação, v. Bachelard PE, 200. Segundo esta passagem de Bachelard, “a porta é todo um cosmo do entreaberto, la porte, c’est tout un cosme de l’entr’ouvert”.

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Mais ainda: aberta ou fechada, a casa envelopa e abriga, agora, Cajango e Malva na intimidade de Tâmatos e Eros. Na casa, como amplexo da consciêcia de origem,8 “paredes os isolam do mundo, a porta fechada, o fogo mostrando um ao outro o homem e a mulher” (95). Delimitados no seio de alteridade, dialogam a respeito da verdade do limite e do nexo entre ele. O diálogo parteja a interdependência do mesmo e do outro. Os dois amantes entram na solicitação de selarem seus destinos, consolidando a experiência metamorfoseante em direção à transfinitude. “Que será de nós?” (96), pergunta a mulher, realçando a copertinência. Atualizando o seu génos assassinado, Cajango responde: “não podemos ficar juntos” (98). Sua resposta não abarca a amplitude de copertinência interrogante da mulher, que não quer uma réplica, mas uma disposição à abertura que ambos inaugurarão. É uma indecisão presente à cisão que Cajango assumirá pela mulher. Logo ele diz: “Na hora, quando a hora chegar saberemos morrer juntos” (98), avistando a radicalidade do saber proposto em sua união com Malva: um conascimento produzido no ato fundamental de “a mulher abrigar-se no corpo de um homem” (98) em que os limites primam na sua ‘in-diferença’, redimensionados como plasticidade de uma existência que não cessará de viver, porque muito se finitiza. No momento do diálogo, a mesma ambivalência e abertura está presente no fluxo e refluxo da fogueira que acompanha a cena, concretizando a intimidade anímica em distensão. O conúbio culmina quando os amantes decidem que “é preciso fazer o fogo” (98), é preciso exercitarem-se na excitação da estrutura velante-desvelante da alteridade. Porém, todo este encaminhamento interpretativo para a primordialidade da origem é filtrada na nova lição que Cajango terá de aprender, expressa na seguinte sentença: apreender que, em Malva, “é de palha a aspereza dos 8 V. novamente Bachelard PE, 28.

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cabelos” (95). Malva, indício de sua redenção, é áspera de se sorver. É somente pela experiência que sensibiliza a própria finitude que a compreensão de sua gesta se alcança. Correlativamente ao conúbio, ocorre um assassinato primordial. Os laços que prendem Cajango ao ventre da selva devem ser desatados para que a gesta se vislumbre em sua complexidade. Duelam Inuri e Cajango. O duelo é só pretexto para que se apresente o duplo elo que Corpo vivo dramatiza como transfinitude que a trilogia reivindica.9 A morte de Inuri dará a Cajango vida pela mulher. Inuri morrendo concede vida a Cajango. Inuri mesmo é vida e morte. Ao mesmo tempo que se revela sua obstinação à mulher, pois “ela começa nos separando” (105), esta oposição e a própria morte sua animam e afirmam a gesta de Cajango. Tanto se anuncia que fora ele, Inuri, quem mandara o Sangrador, um dos jagunços de Cajango, assassinar as criancinhas, causando a loucura e os vaticínios de Hebe (101-102), quanto o mesmo “mais sábio dos homens” aponta para o caminho da libertação de Cajango: “se eu morrer [...] procure a serra” (111-112). No ‘du-elo’, manifesta-se a dualidade que destina Cajango a apresentar a complementaridade dos opostos como forma de consumar seu percurso à transfinitude, à transformação de seu ciclo de mortes na redenção de seu génos pela mulher. Esta dualidade sempre presente, não só ensinada por Inuri e Hebe, e redimensionada em Malva, encontra-se também em Negro Setembro. Amigo e companheiro de infância, morto por jagunços inimigos de Cajango, perpetua-se na cruz de arame torcido que está no peito deste (26). A cruz reativa a infância de Cajango e o génos assassinado, pois os assassinos “quebraram a cruz e retiram os corpos. Queimaram os corpos [...] quebraram a cruz quando 9 A aproximação entre duelo e duo-elo. Duelo vem do latim Duellum, derivado de Bellum: guerra, batalha. Duellum é uma luta entre duas pessoas.

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souberam que Cajango estava vivo” (17). A cruz de arame no peito de Cajango atualiza a origem e sua relação escatológica com a morte. Estando no peito, no íntimo de Cajango, e sendo de arame e retorcida, ela assinala o périplo e o prélio da morte em sua dignidade verticalizante, que direciona a transviagem de sua gesta. Com a morte de Inuri, Cajango enlaça-se à mulher: “ele ficará com ela para a vida e para a morte” (110). Selando o conúbio, transfere a cruz, de seu peito, aos seios de Malva (101), consagrando a comunhão nos fluxos e refluxos do metal e da finitude. Eles partem para serra. Esta “se mostra como uma tromba gigantesca a chupar o céu” (64), medeando os eixos do céu e da terra. Andam rumo à “montanha estúpida, que sobe torcendo e se retorcendo” (131), configurando os movimentos da cruz que Malva tem no peito e que não passa do movimento mesmo da finitude se possibilitando enquanto limiar de si mesma. Na linguagem muda de sua deformação primitiva e originante, a montanha acena para a estrutura da criatividade imageticamente condensada na tensão que sustenta. A montanha se encontra no limite de sua forma, e, por este limite, dá forma a sua significação. Equilibra-se entre a conformação cosmicizante e a deformação negadora, mas o fascínio de sua tensão intempestiva advém de um vigor uterino. Promove a imagem do incessante desvelamento do universo por muito velar, por incessantemente deformar e nadificar. É para este lugar que Cajango e a mulher se dirigem. Estão “na terra enrodilhada subindo como a ferir o céu” (2) e esse céu só testemunha o poder da terra. Cajango com a mulher, cindido para que alteridade nele se revele e desvele este horizonte tensivo, “é o primeiro homem a viver” (2), numa vida total, porque concretiza o incessante pulsar das origens. Com a mulher, “estão como no princípio do mundo” (131-132). São como o casal edênico, que em seu percurso ao Gênesis oferecem a gênese do percurso fundamental. 70

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No abrenúncio da transfinitude conquistada, o que se vislumbra é criatividade na tensão de sua abertura. Ao se situarem na dimensão das origens, Cajango e Malva fornecem o momento escatológico da genealogia do tríptico adoniano: a busca do infinito se converte dramatização da finitude. Enquanto o casal atinge o êxtase na circulatura de sua transvisagem – pois agora, no limiar da montanha, cotidianamente “descobrirão as cavernas, examinarão os fossos, encontrarão o ninho” (134), reencontrarão o velante sempre outro – João Caio, um mateiro que acompanhara os desfechos da gesta de Cajango, permanece ao pé da serra, João Caio acompanhou toda a gesta de Cajango para encontrar a sua destinação mesma. Ao se despedirem Cajango e ele, o primeiro diz: “ensinarei o caminho. Você pode continuar a vida [...] deixarei você no caminho” (116). Ocorre, pois, uma estratégica bifurcação de percursos narrativos em Corpo vivo. Esta bifurcação, e a consequente suspensão da narrativa, só se compreendem no imaginário da morte que a trilogia encena. Sob o signo da complementaridade, estes momentos narrativos adensam a trama imagética aqui configurada. Enquanto o par fundamental se abriga na montanha, distancia-se de João Caio, refletor de toda a gesta de Cajango. Encena-se uma divisão nesse jogo de imagens de presenças e ausências. É a diferença e a produtividade representacional e dramática entre a história de Cajango e a iniciação de João Caio. Contudo, ambos os momentos narrativos estão em mútua interdependência. A potenciação máxima do destino de Cajango depende da trilha que João Caio ora inicia. Embaixo, a corda que era para enforcar Cajango (132) pulsa na mente de João Caio. Para cima, seus olhos convergem em direção da montanha em ebulição, isomorfa a nova vida do casal. O olhar de João Caio penetra na mensagem do horizonte que preside à verdade de Cajango: os caminhos são encruzilhadas que infundem a conquista PRIMEIRA PARTE O CÊNICO E O DRAMÁTICO – O ROMANCE DRAMÁTICO DE ADONIAS FILHO

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dos contrários. Tanto Cajango quanto João Caio se iniciam no incessante revigoramento das origens que não se exaurem na aporia de suas limitações, mas que se sobredeterminam na radicalidade de sua ‘de-limitação’. Seria de se esperar que o drama proposto em Os servos da morte encontrasse em Corpo vivo uma resposta final. Mas o livro mesmo se suspende em uma visão estática quase que abrupta. Não fecha a genealogia aberta anteriormente. Sua escatologia reconduz à indeterminação do génos. No fim, um começo, um limiar, o útero anunciado. Apesar dos maiores apelos à transcendência, Corpo vivo não a realiza senão justapondo-a à imanência. Em vez impor o encerramento da morte, propõe-se a reposição da finitude. A seriação da trilogia entra em contato com uma dissonância cognitiva que parece marcar este livro. Corpo vivo só faz confirmar a vocação não linear do tríptico adoniano. Ao abrenúncio inscrito em Os servos da morte corresponde não a uma abertura redentora, mas a um ‘pós-núncio’ que se inscreve na inexauribilidade inicial. Os novos elementos introduzidos no drama confirmam o pensamento que subage na imaginação da morte presente nos três livros: a unidade aqui configurada é a de uma experiência em torno da essência variadicional da morte e não experiência de uma esquematização prévia das imagens. A pergunta pela morte, que perpassa a trilogia inteira, refere-se à efetividade da finitude enquanto possível hermenêutico, e não à mera tematização de um processo unificador a priori. Os servos da morte, Memórias de Lázaro e Corpo vivo se integram como situação hermenêutica à questão da finitude. O objeto e o processo de representação se intercambiam. Dentro deste contexto situa-se Memórias de Lazaro. Como memórias da morte, Memórias de Lázaro dramatiza um passado atuante em termos de incessante origem. A lembrança da morte é a afirmação de um saber que se compraz em demorar-se com a finitude. É a articulação do Páthei Máthos abrenunciada em 72

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Os servos da morte e metamorfoseada e amplificada em Corpo vivo. A lembrança não é proposta em razão de um esquecimento, mas imposta pela experiência temporal que se apreende na morte. Em sua imperiosa aparição, é o Vale de Ouro que se torna o docente desta temporalidade da morte. O vale se diversifica na consecução dos domínios da finitude. Noite e dia circunavega-se na atmosfera mortal que ele desenvolve. De noite, um “céu sem estrelas, aflitivo como uma noite de chumbo” (10); de dia, “o sol do vale que [...] queima, seca, sufoca, mas sua luz não tem brilho” (59). Os aspectos do mundo se conformam em torno de uma ausência mortificante. Essa indeterminação se concretiza ainda mais na imagem da estrada que corta o vale, mas que não vai a lugar algum: é o superlativo da delimitação que ele mesmo ensina. Percorrendo-a, “onde começa, ninguém sabe. Onde termina, ninguém sabe também” (3). E, formando o envoltório vital do vale, existe o vento. Este vento “torturando a planície dia e noite, existindo quase como um demônio vivo” (4), dispersando e isolando as criaturas, insufla em todos a atmosfera mortal do vale, que está em cada parte, e as partes se revertem para ele. Desde modo, o vale envolve seus habitantes, circunscreve-os, envolvendo-os, sendo “uma coberta de ferro” (69), uma mortalha sinistra. Perpetuando o isolacionismo, a parcialidade, os seus habitantes se caracterizam por uma ‘des-humanidade’ (58): “Aqui, no vale, os homens são piores que as feras. Humanos, no vale, são os cavalos selvagens” (10). Toda esta desumanidade e seu incremento pela aproximação à inferioridade animal levam tais homens ao convívio com os limites, no que se refere a efeitos destes por meio da brutalidade, a violência da excessividade que acompanha a contenção e estreiteza de horizontes. Jerônimo e sua caverna amplificam a intimidade com a finitude a Alexandre. Por meio de Jerônimo, Alexandre se informa de seus pais e de como sobreviver no vale. Criando PRIMEIRA PARTE O CÊNICO E O DRAMÁTICO – O ROMANCE DRAMÁTICO DE ADONIAS FILHO

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Alexandre, Jerônimo se recria ao explicar sua origem mesma: o pai de Alexandre, Abílio, fora quem formara Jerônimo – “Foi Abílio quem me criou o cérebro, eu juro. Aprendi a proteger-me e, somente depois dele, foi que percebi a solidão em que vivia” (21). A aprendizagem sempre é em direção ao limite e de suas atividades congêneres, numa proximidade quase que por contato e rude, que condiz com o que se comunica. Jerônimo ensina as palavras de Abílio que interpretara o vale através de sua migração: “uma zona esquecida, ele ensinava, onde os homens são mais humanos porque não temem a dor, o medo e nem ocultam a cólera” (21). A consciência da finitude estava em Abílio na verdade presente aos que sofrem e apreendem seus limites. Abílio é o homem para o mundo que o vale representa. Por isso, “no vale, todos se pareciam com Abílio” (21). Ele não teme a dor por assumir uma dor mais profunda, por apreender a profundidade de seu páthos. Essa dor se expressa ao sentir o peso incomensurável da finitude e conviver com o dilaceramente ela implica: “o que sei, Alexandre, é que Abílio sempre fugiu de si mesmo, e ainda fugia de si mesmo” (65). Descentrado, extático, Abílio encena a cisão na carne como demonstração de uma plenitude na alteridade. A migração para o vale o dignifica à transviagem ao coração de sua verdade. A viagem ao vale é a visagem do vale de sua humanidade. Ambas vertigens transformam uma série destinal em uma catábase inaugural. O homem dos avessos doado nesta cisão primordial é o homem que compreende os limites transpostos como limites incorporados. A verdade de Abílio é a verdade do vale. Este deve ser assinalado como real dimensão para que se consigne sua revelação. A compreensão do caminho de Abílio possibilita a transfinitude que a experiência dos limites ratifica. Ele e os seus habitantes estão “à porta do mundo” (32). Imersos no vale, 74

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predispõem-se ao saber que os dignificaria. Só por Abílio, o que não era e agora irrompe em desvelamentos, a iminência se processa. E esta é a mensagem da catábase de Abílio: o caminho do vale deve tornar-se horizonte comum. A ‘transcendentização’ do horizonte próximo inaugurada por Abílio e sua vertiginosa viagem estavam inscritas nele como vertigem frente ao abismático mundo que o cerca.10 Abílio “viveu no fundo de um delírio sem consolação [...] tão fantástico no seu abismo quanto este vale dentro do mundo. Abílio jamais ocupou o seu corpo inteiro. Havia, dentro dele, um lugar para outro” (65). Ele mesmo é viagem de si próprio, presente na sua incessante ultrapassagem. Com isto, em Abílio, tem-se a experiência do que a finitude em sua radicalidade acena. O pai de Alexandre, no abandono de si, está em demanda ao fundamento que o mantém. A divisão que ele advoca para iniciar-se nos mistérios da morte dramatiza a instância interrogante mesma. Abílio é outro de si, limite e horizonte para que se revele sua verdade original. A abertura que Abílio representa possibilita a radicalidade relativa ao seu questionamento. Trata-se de apor o finito ao finito, Abílio consigo mesmo. O que mantém Abílio é a experiência de finitização revelada como capacidade criativa. A pergunta pela finitude é o questionamento e a possibilitação da finitude em sua efetividade. Jerônimo também ensina o Vale a Alexandre através da imagem do leproso Gemar Quinto. Fundem-se Gemar e os pais de Alexandre, pois “Abílio era um retirado como Gemar Quinto” (19), e sua mãe, Paula, era “repulsiva para quem quer que a conhecesse, repulsiva talvez para o próprio Gemar Quinto” (23). Justapondo suas origens com o leproso – a morte que se arrasta em vida –, Alexandre entra em contato com uma existência marcada pela morte. A figura de Gemar Quinto exerce o papel de filtro perceptivo 10 Expressão em Sousa (1973:28).

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para Alexandre. É o mecanismo de coesão que, na potenciação da verdade assumida por Abílio e expressa por Jerônimo, dá coerência ao aprendizado deste: uma vida em que a morte atua. Gemar amava os cães (66) e por eles assinalava sua presença no Vale (67). Os cães, a perpetuarem sua espécie, repunham a estirpe do leproso. Gemar é um caçador, mas “o que caçava ninguém jamais soube” (66). Em sua inconcludente destinação,“Gemar Quinto dentro do seu olhar, já era um foragido” (67). A doença, “a lepra conservava a vida de Gemar Quinto” (67). A danação na carne fortificava o seu corpo. Gemar é a encenação da morte que se prolonga, que se aprofunda ao recolher a vida. À aparência de desvitalização contrapõe-se o vigor preponderante da ausência fundante. Vivendo a liminaridade da morte, na mediação das tensões da finitude, recriando em si próprio o existencialismo dinâmico dos limites, Gemar cosmiciza-se ao condensar o Vale de Ouro, sendo “invencível como o vale” (67). O leproso apresenta a lição que o Vale dá sobre a vida e a morte. O que morre “para o vale é menos que uma árvore, menos ainda que uma pedra” (13). O que nasce “não desperta alegria: abandonada a criança no chão, ao lado dos cães. Cresce correndo contra o vento, a fisionomia já agressiva, o olhar atormentado refletindo o céu sombrio” (154). Não importam os polos opostos, mas sim os complementares: vida com morte, morte com vida, eis a mesangem do Vale cifrada no leproso, o morto-vivo, o duplo fundamental. Alexandre convive com este percurso de imagens como transcurso de sua vocação à transfinitude. Casa-se com Rosália, uma das filhas do Vale e constrói sua casa, imergindo, pois, na cotidianidade daquela região. Em conjunto, estes atos modelam a opção destinal de Alexandre: interpretar suas origens, refazendo as trilhas de seu pai, assumir o Vale. Rosália, a mulher que nunca será sua, é a “menina do vale” (57). É a descoberta de como o Vale se efetiva. Uma mulher que 76

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nunca pertencerá a Alexandre – horizonte impalpável para o qual o Vale se dirige. Este se descobre como horizonte na mulher. Desde o primeiro encontro entre Rosália e Alexandre, a ‘im-pertinência’ deles é vislumbrada: “quando eu vi pela primeira vez [...] corria [...]. Não vendo sequer que eu obstruía seu caminho, deteve-se ao sentir que se batia contra mim, ferindo a sua testa e sangrando os meus lábios. Olhou-me, sem susto, sem pronunciar uma palavra, e continuou a correr” (29). Preservam-se os corpos, as imanências, a percepção dos limites. A ‘não pertinência’ consagra o devir do fático. Rosália, no livre correr de seu lúdico exercício do corpo, ensina a Alexandre a primordialidade do limite. O limite é condição para que o Vale não seja obstruído. É preciso sofrer os dramas da finitude para experimentar a rigorosa dimensão da transfinitude. Rosália amava somente os cavalos (103). Ela era capaz até de sofrer por eles (99). No Vale, os cavalos tinham “claros e belos olhos” (63). “Humanos, no vale, são os cavalos selvagens” (10) e amá-los era comparticipar da iluminação do humano do Vale: “eram eles indomáveis filhos do vale [...] pressentindo nas orelhas e nas crinas a violência dos homens” (62). Catalisadores da finitude, condensam-na e a transmitem-na. Rosália deles herda o Vale na excessividade de sua aparição. Esta excessividade acontece em Rosália. Antes de morrer, ela atrai o leproso para seu quarto, querendo “a sua lepra para dar a Alexandre, a Jerônimo, queria ver o Vale terminar assim, inchado, podre aos pedaços” (101). O entrelaçamento do que pode gerar vida e do que pode causar a morte fornece um conúbio que só parteja contradições insolúveis, as quais se movimentam em sua própria contraditoridade e irresolução. Tais atos projetam o Vale ao abarcá-lo em toda a sua força: o tensionamento inclusive dos exclusivos. O filho deste casamento, Rosália reconhece, “é pior que o leproso” (68). O filho é a morte em sua máxima potenciação. O parto do Vale é a finitude em sua abertura e soberania. PRIMEIRA PARTE O CÊNICO E O DRAMÁTICO – O ROMANCE DRAMÁTICO DE ADONIAS FILHO

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Morta a mulher, Alexandre entra em sua catábase: enterra-a em sua casa, sepultando-a dentro de si (73). Em Alexandre “se fundia a sua morte” (74). Ele assume a morte de Rosália como ritual iniciatório de sua transviagem. Delira (75), rompe com tudo para cindir-se, sentindo em seu próprio corpo a putrefação do corpo de Rosália. Jerônimo traduz a metamorfose de Alexandre: “um homem morre em vida, Alexandre” (75). O filho de Abílio transpõe os umbrais da morte em vida: “quando descobri você, Alexandre, você estava vivo – mas morto, um homem morto em vida, Alexandre [...]. Você, quando despertou, era outro” (76). Convergem, na catábase, a alteridade e a morte, o fazer-se outro pela morte. Através de sua metamorfose, Alexandre nega o Vale: “que o vale se dane!” (79). Esta negação é a afirmação dos domínios da morte que o Vale representa, ao mesmo tempo que se divisa a abertura de seu sentido: compreender a irrupção do aspecto nadificador da finitude, aprofundar os mistérios da morte. Alexandre tem “a morte o guiando” (106-107). Ir além do Vale, não se reduzir à forca que seus habitantes lhe preparam. Não se circunscrever à morte enquanto mero limite limitante. Alexandre tem um destino: superar os limites do Vale, ir “além de sua montanha” (112). Na montanha, Alexandre alcança uma zona intermediária, fronteira talvez de outro universo (113), deserta e árida, habitada somente pelo círculo de imagens pretéritas: um entre-lugar no qual os mortos vivem no delírio de Alexandre. Este é o horizonte do Vale – o limite como mediação. O caminho de Alexandre, a sua catábase frente à morte, consagra a entreabertura que se acena na finitude. A morte continuamente potenciada se adensa em limite reiteradamente proposto. O conhecimento de Alexandre patenteia o reconhecimento da finitude como modalização de sua experiência. No fim do Vale, há a planície. Para Alexandre, a planície é visagem para onde toda a mortandade passada converge. 78

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Deve encontrá-la, sofrê-la, incorporá-la. Para isso, “arrastava-se, rastejando, ferido, sedento, com fome – sem saber mesmo tivesse um fim a planície de pedra. Alcançada, talvez, a porta do inferno” (113-114). A abertura é um céu às avessas, mostrando que a transcendência da morte está na reiteração dela mesma. A catábase que proporciona o aprofundamento da finitude conduz, pois, a uma abertura que é constitutiva de tal aprofundamento. Essas são as Memórias de Lázaro: a temporalidade efetiva da facticidade na dotação de um horizonte que problematiza o limite. Às portas do inferno, saindo do inferno, Alexandre promove o percurso do mesmo ao mesmo passando pelo outro. A morte fala da morte, criando as condições para que dela se fale com profundo saber. No extremo de sua catábase, ao se situar entre um Vale que foi e um mundo a vir, Alexandre é absorvido numa “paisagem turva” (114). Os habitantes do Vale, os mortos apenas, dialogam incompreensíveis (115). Vida e morte se indiferenciam na primordialidade de sua mútua copertinência. É a verdade da finitude, de um destino “imposto como o corpo” (115). A Alexandre cabia sofrer a finitude humana como único modo de existir. Ao homem está consignado que tenha mundo, que tome seu corpo. A correlação homem/mundo, homem/corpo se sustenta no intervalo ontológico que, para além de meras transcendências vazias, coloca a questão da facticidade como veículo doador de sentido e como sentido mesmo da existência. O que os mortos dialogam é a fratura que a facticidade concede para se afirmar. É o discurso do corpo que se cosmifica ao prolongar-se enquanto diferença limitante. A finitude possibilita porque se possibilita. Após o delírio, deitado ao chão, Alexandre vive sua morte. “Empunha-se o silêncio, enquanto vazio incomensurável. A tudo envolvia, sem forma e sem cor. Sensibilidade ausente; imóvel, o coração” (116). Alexandre restringe-se à possessão dos limites, na intimidade com a morte, que é consciência contemporânea da experiência de abertura por ela imposta. Está na origem da PRIMEIRA PARTE O CÊNICO E O DRAMÁTICO – O ROMANCE DRAMÁTICO DE ADONIAS FILHO

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facticidade como fenômeno primordial do homem: o informe, o insensível, o incomensurável, enfim a possibilidade antes do possibilitado. Assim, a morte é o fenômeno radical do homem posto que revela as virtualidades hermenêuticas deste. A morte enquanto hermenêutica é a experiência com o limiar do limite. Paradoxalmente, Alexandre energe ressurrecto. Ao sentir o sangue correr, sente “mais que o reencontro físico de mim mesmo” (117). Há sempre um ganho na revelação da finitude, um além que a compreensão mesma da facticidade. Alexandre morre no limite extremo do Vale para ressuscitar como o próprio Vale do Ouro, “em toda a sua extensão e nos mínimos detalhes [...]. Vivo monstruosamente vivo” (117). O Vale e Alexandre, homem e mundo cojogados por um projeto tanático fundamental. Este mútuo reenvio, esta tautegoria e circularidade, coloca a conquista da efetiva dimensão do finito em sua dialética limite-liminar. Através desta verdade, Alexandre mediará sua vivência futura. O limite, tematizado como limiar, torna-se o pressuposto para sua aprendizagem. Ao aprender a morte, ratifica a finitude que caracteriza a compreensão. Apreende que a compreensão como ato finito impõe que se interprete a radicalidade deste limite. Só se vislumbra o saber ao se propugnar o acontecer trágico. Após a ressurreição, que totaliza a imanência e a transcendência da facticidade como processo, há o dilaceramento de Alexandre: “já não sou o mesmo, entre os dois, o que se despediu de Jerônimo na fronteira do vale e o que agora despertava, havia mais que um intervalo no tempo. Havia a morte, eu sabia” (127-128). É a morte que medeia as duas metades da vida de Alexandre. Esta divisão ecoa a duplicidade que a própria morte ativa. As metades remanejadas indicam a apreensão de uma experiência mais complexa adquirida na catábase. A divisão permite a condição temporal que oferece ao ser cindido a possibilidade de difundir a realidade da finitude pela tensão do duplo. Os mundos divisos são acenos de novas correlações homem/mundo que perpetuam a 80

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processualidade do finito. O dilaceramento é a abertura do finito no finito. De posse desta constelação de sentido a respeito da facticidade, Alexandre depara-se com vivências diferentes. Ele terá, agora no além-vale, de testar o que aprendeu. Simultaneamente, o Vale equilibra-se no imponderável “de sua impossibilidade” (139), sobredeterminando o comportamento de Alexandre. A dificuldade que encontra no trato com o diverso – incorporar-se à aldeia, sua nova vida – coaduna-se à fidelidade aos pressupostos de sua transviagem. Quem ou o que se opuser à verdade de Alexandre – por exemplo, o ferreiro Rodolfo – só fortalecerá o Vale e sua lição de morte (140). É o que se depreende do encontro de Alexandre com Natanael. Ao se deparar com um mundo que ainda não é seu, Alexandre reafirma o conflito mesmo que o possibilitou ascender à circularidade que a morte proporciona. Para a trama imagética, a finitude transportada em seus limites melhor se compreende nos limites de sua representação. A morte enquanto diferença da diferença se ilumina em suas oposições. O devir só realça a cisão, o conflituoso que a finitude encena. Natanael é o maior vetor de transcendência do livro e da trilogia. É um “homem alto, muito alto” (146). Possuía “em toda a fisionomia o reflexo de uma bondade extraordinária [...]. Conhecia sem dúvida a condição do homem” (147). Em suas prédicas de bondade, facultava a Alexandre “uma educação que podia me transfigurar” (150). Contudo, a transfiguração de Alexandre reforça sua catábase. Alexandre tem nos olhos o Vale, que é o modalizador de sua experiência. Mesmo Natanael, na vizinhança com o ilimitado, comparticipa da finitude humana. O “seu grande coração pode parar [...]. Ele tem o coração de vidro” (148). Natanael equilibra-se no instável instante de sua sobrevida. A fragilidade do idoso é o originário tempo do limite. Para ele, “morte é que permitia a vida” (149). A anterioridade da PRIMEIRA PARTE O CÊNICO E O DRAMÁTICO – O ROMANCE DRAMÁTICO DE ADONIAS FILHO

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finitude promove um saber que, ao afirmar a condição humana através do limite, possibilita a efetividade do que se compreende. Homem e compreensão finitas dialogam a abertura de sentido inerente a suas autênticas dimensões. Diante de Natanael, Alexandre o compara “com Jerônimo” (150), contrastando a ordem do Vale e a nova ordem. Natanael e Jerônimo são isomorfos. Emolduram a catábase de Alexandre. O a mais que se avista é previsto no que dista: Vale e além-Vale aprofundam e totalizam os vetores da finitude, transformando, deste modo, a condição humana em situação hermenêutica para as possibilidade de sentido da facticidade. O que receber dos ensinamentos de Natanael? Seu ensinamento se concretiza em sua estirpe. A neta a nascer coroaria seu génos, ao mesmo tempo que, para Alexandre, seria “uma força capaz de concluir em mim mesmo a grande reforma interior” (155). A criança dignificaria a finitude em aspectos mais dramatizados, bem como robusteceria o Vale de Alexandre. O que nasce tanto se aplica ao mundo além-Vale quanto às memórias de Alexandre. A criança nasce sob o sortilégio da morte. No presente de seu nascimento, com a lembrança de Jerônimo fazendo um parto (156), o que vem à luz dos olhos é um monstro disforme, “uma massa horripilante, a boca um talho enorme, curvada a testa, faltando os braços, sem dedos dos pés, os olhos cegos” (156). A contextura informe nascida é o que a morte parteja. Como o conúbio Rosália e Gemar Quinto, a neta de Natanael é a morte em sua virtualidade de plasmação. Ao invés de ser simples morte, a criatura natimorta, no extraordinário de sua aparição, é um ocaso originário, que une as pontas da vida e da morte, um ocaso de onde o sol bebe as forças da noturnidade configuradora. Ao ver a criança nascida, Alexandre se encontra “já deslumbrado pela visão do vale, indomável, áspero que me esperava” (157). O Vale, pulsante no maravilhoso caminho do 82

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pai, Abílio (161), descortina-se em sua irresistível vertigem. A arquiviagem de Abílio encontra aqui a sua interpretação. A plenitude do Vale corresponde à plenitude do caminho de Abílio. Unindo as pontas, genealogia e escatologia da finitude, está o canal de lodo. No canal, “o vale de ouro tem aqui seu fim. Foi ali, no canal que Abílio, seu pai, encontrou a morte” (18). E é ali, no mesmo lugar, que Alexandre realiza sua catábase. O apogeu não é rival de seu perigeu. Mesmos são os caminhos que sobem e descem. O que importa é o diagrama de forças e conflitos que dramatizam os momentos trágicos da morte em sua doação de sentido. No canal de lodo, Alexandre sofre sua nadificação, está presente à abertura de si próprio. Anula-se gradualmente: “o meu pobre coração já não enxerga, inúteis as minhas mãos – não mais doem, no meu corpo as feridas. O cérebro não interroga, a língua não fala” (161). Alexandre destina-se a encontrar os mortos que povoaram sua vida: “chegarei a eles em breves minutos” (162). Este plano liminar, ao qual ele converge, é coetâneo de uma clausura, pois “tudo vai se fechando, aos poucos, em serenidade e imensa tranquilidade” (116). Para a mesma morte, a absorção do limite mesmo. O que Alexandre inaugura, com a reelaboração da paixão de seu pai, é circularidade que a finitude produz. Origens e fins últimos se interpenetram na ontogenia diferencial de sua efetividade. A morte ganha significações através da morte mesma. O limite é condição de sua própria anunciação: ele delimita, porque circunscreve um campo de possibilidades. Neste ponto, entende-se a posição estratégica de Memórias de Lázaro dentro da trilogia adoniana. Os polares complementares representados por Os servos da morte e Corpo vivo estão no tempo de sua manifestação fundadora. A imanência da morte prenunciada em sua suspensão e a transcendência velante pós-enunciada se integram na transmanência que Alexandre encena. A liminaridade da morte torna-se a catagenia do complementar. Em Memórias de Lázaro, o tempo dá lições. E a PRIMEIRA PARTE O CÊNICO E O DRAMÁTICO – O ROMANCE DRAMÁTICO DE ADONIAS FILHO

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finitude encontra-se em sua tensão constitutiva no momento de dramatização do processo de sua verdade. É na correspondência entre a catábase de Alexandre e o aporético caminho do Vale de Ouro que tal dramatização se ilumina. A avessa viagem de Alexandre, ao transformar a estrada do Vale em maravilhoso percurso de Abílio, instaura a verticalidade, que justapõe os contrários, como princípio sobredeterminante da espiral ao finito. O Vale não é só a ‘comum-unidade’ da morte, mas é a fenda que descerra o limiar no limite. Por isso, contraditoriamente, é de ouro, é imageticamente configurado no signo metálico da imortalidade:11 indica um mais além no aprofundamento de sua aparência agônica. Cifra, como concruz de caminhos, o enigma da finitude por conduzir à raiz do complementar. As mutações de Alexandre, na trama imagética que seu percurso iniciatório trilha, concentram a razão que os opostos cojogados aduzem: revelar o movimento mesmo de encenação, a estrutura da criatividade inerente a sua presença. A circularidade da obra é a exposição do ciclo que, por referendar o limite da finitude no limiar de sua facticidade, representa a própria imaginação se habilitando para representar efetivamente a morte. Chega-se, assim, ao projeto geral da trilogia adoniana. Ao interpenetrar imaginação e finitude, ambos são problematizados. A imaginação do limite e o limite da imaginação se copertencem pela abertura variacional das potências expressivas e criadoras que Adonias Filho vê no destino do homem mortal. É realizando esta facticidade, concretizando a sua vocação dramática, que o homem de si se apodera. A trilogia revela o homem finito em toda parte, porque somente assim ele se religa às origens e cria sua existência. E revela isto pela fenomenologia da finitude que suas imagens constróem. 11 Conf. Sousa (1973:208).

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A imaginação da morte em Adonias Filho se amplifica em uma fenomenologia da finitude. Fiel ao estatuto trágico de seu discurso, a trilogia desempenha a compreensão da finitude em sua específica dimensão. A trama imagética, ao enunciar a questão do limite, representa-se no perspectivismo cênico como inteligibilidade desta questão. O discurso da morte é escrito no decurso de sua apresentação dramática. Assumindo a verdade do limite, a trilogia reveste-se na forma de seu conteúdo, dilatando no plano da enunciação o que se registra no plano do enunciado. A representação da morte se faz no processo de seu questionamento. A fenomenologia da finitude se transfigura na dramatização mesma deste limite. Senão, vejamos. Os servos da morte pratica o perspectivismo cênico em correspondência ao anúncio emblemático da facticidade. A técnica dominante é a multirrefletorização: vários personagens são utilizados como suportes narrativos, aos quais se reporta o fluxo imagético encenado. Dissolvida a unicidade representativa da personagem individual, o refletor narrativo converte-se em personagem metáfora (DOURADO, 1976:81, 187), respondendo às exigências da arquitetura romanesca que o apreende. O absoluto da consciência individual é negado em função da intersubjetividade de um sentido inscrito no processo mesmo de constituição deste sentido. Deste modo, Paulino Duarte, Elisa e Ângelo despersonalizam-se para fornecer a dimensão interpretante da morte. Sofrem e comunicam a finitude. Como condutores da morte que são, eles possibilitam a sua irrupção. A multirrefletorização, pelo seu aspecto plural e descontínuo, configura a atmosfera de constante rapto e possessão em que a morte se manifesta em Os servos da morte.12 Os atores narrativos projetam este fascínio e arrebatação. Mas, mesmo proliferando 12 Cf. Deveny (1980:322) comenta o efeito de “aguda desorientação temporal no leitor”.

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ações e atores, a totalidade do representado não abarca a morte. A linguagem da finitude se compraz em se espraiar na torrencialidade das imagens. A multirrefletorização medeia este aspecto do imaginário da morte, repondo a indeterminação que a cerca, desabsolutizando a personagem. O incontido arremesso à caoticidade ofuscante do finito só reitera a dinamogenia de seu velamento. O endereçamento desvelante se adensa na visão veladora. E os refletores, em sua parcial interpretação e metafórica encenação dos percursos destinais narrados, projetam a includência de Os servos da morte. Até mesmo a macroestrutura do livro é assimétrica, repondo esta interrupção e limitação do representado: • 1º ato: prólogo (3-5)13; cenas 1 (6-37); 2 (38-74); 3 (75-100) • 2º ato: prólogo (103-110); cenas 1 (11-114); 2 (145-179); 3 (180-204) • 3º ato: prólogo (207-212); cenas 1 (213-230); 2 (231-247); 3 (----) Como se observa na descrição da macroestrutura, uma ideia de continuidade é negada em prol de um ritmo assimétrico. Falta a última cena do último ato do livro, justamente quando Ângelo também interrompe a série de atos possíveis na Baluarte. Os servos da morte é a anunciação de um imaginário sobre o limite, e delimita-se na contigência mesma dessa anunciação. Os servos da morte dinamiza o limite em sua efetividade. Esta consiste em ausência fundante. É em direção desta ausência que Memórias de Lázaro se encaminha. Notório é o esforço de representação antecipada no último livro da trilogia. O presente se fundamenta no ‘entre-cruzamento’ de momentos 13 Os números entre parêntesis referem-se ao número das páginas.

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pretéritos. Os eventos marcam-se por essa bilateralidade, através dos quais “os simultâneos aspectos são tranpostos para apresentação consecutiva, the simultaneuos aspectos are transposed to consecutive presentation” (STANZEL, 1971:114). Ocorre, pois, a coexistência de modalidades temporais diferentes como forma de se apresentar no aqui e agora da narração os efeitos da ausência fundante. O presente narrativo se converte na concretização desse pretérito original. A macroestrutura do livro adensa esta perspectiva dobrada: Prólogo Geral (3-5) • 1º ato: prólogo (9-14); cena 1 (17-47) • 2º ato: prólogo (51-53); cena 1 (57-87) • 3º ato: prólogo (91-93); cena 1 (97-119) • 4º ato: prólogo (123-124); cena 1 (127-158); 2 (161-162)=Epílogo. Como se pode observar, há um prólogo geral do livro e quatro atos dramáticos, cada qual com um prólogo e uma cena. Excetua-se o último ato, com duas cenas, sendo esta segunda cena o epílogo que se une ao prólogo geral. A macroestrutura assim distribuída figura um constante movimento (a um ato, uma cena), que surpreende a descontinuidade em uma continuidade tautegórica. Ao se diferenciar em diversas cenas e atos ao mesmo tempo que se movimenta nesta configuração rígida, a macroestrutura convida para que se repense a natureza do períplo de sua circularidade, movido e comovido entre o uno e o vário. A seriação de atos e cenas na difusão do mesmo esquema dinamiza o próprio esquema, fazendo-o delimitante, suspenso entre a diferença da diferença. Daí a motivação da circularidade do livro: ir do mesmo ao mesmo passando pelo outro.

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Entre o prólogo geral e o epílogo do livro, a narrativa se processa em um prólogo para cada cena. Nestes prólogos dos atos, Alexandre reencontra-se com o Vale, na casa que ele construiu e agora está em ruínas. Paralelamente às ruínas da casa, mostram-se as imagens pretéritas. Na meditação atual do que ele foi, Alexandre interpreta-se. Por meio dessa dualidade, as memórias e a casa em ruínas fundem-se como casa a refazer e passado a revivenciar. É na tensão mesma desse intervalo, que dura no entrevelamento do duplo, que se desenvolve o curso da narrativa. Construir e destruir transparecem como verbos do percurso existencial de Alexandre. Nele o limite incorpora a estrutura da criatividade que o insufla. Este ritmo interno da narrativa também se processa nos seus extremos estruturais, através do encaixe entre o prólogo geral e o epílogo. O discurso do Vale, estampado no início do livro, traduz-se na catábase final de Alexandre no canal do lodo. A abertura de sentido que o prólogo anuncia se confirma no sentido dessa abertura que o epílogo direciona: a morte, em sua dialética-limite liminar, fundamenta-se em sacrossanto velamento que patenteia sua virtualidade plasmadora. Dando linguagem a este velante nadificador em sua deformação geradora, o estatuto do narrador se encontra na concomitância de uma falsa 1ª pessoa, que algumas vezes comanda o relato, e uma falsa 3ª pessoa que também descreve os agentes narrativos. Na situação personativa do romance, o recurso à variação dos pronomes, corrigindo-os de sua autonomia formal, visa conectar a linguagem ao tempo de sua dramatização. Solidarizam-se o questionamento da linguagem e a atualidade do dramático. A narrativa adquire uma moldura teatral ao mesmo tempo que a intelibilidade dessa moldura é realizada. O tempo desta interpenetração de ferências e molduras é o do pretérito imperfeito, um pretérito não reificado, mas atuante. Proporcionando uma dinâmica de aproximação e afastamento de cena (DOURADO, 1976:24), verdadeira síntese do sincrônico 88

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e do retrospectivo (USPENSKY, 1973:73), essa temporalidade complexa, esse presente fractal singulariza a enunciação dramática. Coloca-a no momento de sua cisão mediadora, imagem do limite a ser superado e da finitização da abertura conquistada. A linguagem distende-se para interpretar essa tensão constitutiva da finitude. Na atualidade de uma entreabertura dialógica, concretiza-se a transfinitude avistada em Memórias de Lazáro, em seu aprofundamento das mútuas relações entre imaginação e morte. Ainda, na microestrutura da obra, a profundidade encontrada na macroestrutura é representada por meio da regularidade intercalar da frase em Memórias de Lázaro. Esta se desmembra em três segmentos, recriando o fluxo dramático-narrativo que preside obras como a tragédia, em seus trímetros iâmbicos. Desde o primeiro parágrafo isto se verifica: “Infinita é a estrada com suas curvas, suas colinas e suas árvores. Não é uma estrada como outra qualquer, com pássaros e ladeada de grama, mas uma linda sinuosa no chão avermelhado e seco” (3). A intercalaridade da linguagem em sua cadência ternária, no abrir-fechar da imagem narrada, configura as movimentações do limite em sua atividade radicalizada. O limite é infinito como a estrada que se delimita, respondendo, pois, em função de seu campo de possibilidades, ao viajor. E só se manifesta em virtude da dialética limite-liminar que o caracteriza. A finitude é o percurso de sua própria compreensão. Se a verdade abrenunciada em Os servos da morte encontra seu aprofundamento em Memórias de Lázaro, de que falará Corpo vivo? É na emergência de suas técnicas narrativas que a questão se ilumina. Novamente, o perspectivismo cênico se demonstra na macroestrutura. A mesma sistemática de prólogos dramáticos e cenas, presentes em Memórias de Lázaro, é manipulada. Contudo, esta arquitetônica se resolve convergindo para um refletor privilegiado: João Caio. Co-ocorrem a visão PRIMEIRA PARTE O CÊNICO E O DRAMÁTICO – O ROMANCE DRAMÁTICO DE ADONIAS FILHO

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retrospectiva da gesta de Cajango com o êxtase suspensivo dos prólogos diante da montanha em ebulição. É nesta tensão entre os prólogos e as cenas que a modalidade da finitude em Corpo vivo é apreendida. A tensão do refletor privilegiado se revela numa distensão estratégica. Trata-se de, ao interromper a enunciação das ações em torno de Cajango, agora com Malva, postular a abertura mesma que a narrativa instaura ao não se completar. Tecnicamente, o entrecruzamento entre a série destinal de Cajango e a de João Caio representa a distribuição de um conjunto de ausências e presenças que torna complementar o ritmo de suas movimentações. Ambos se coordenam na projeção do palco em que se encenam: o limite de sua função, a abertura de novas possibilidades. Isolados, não têm sentido. Cajango e João Caio são complementares porque só existem pela inconclusão que os define. Ao se dividir, entre o êxtase e sua autonomia, o refletor privilegiado assinala em cada prólogo a indiferenciação de Cajango e a orientação de João Caio no maravilhoso caminho daquele. Presença na ausência e presente para a ausência, a arquitetônica de Corpo vivo interpreta a bidimensionalidade da morte: a operacionalização do duplo. A retropescção que alimenta João Caio confirma o seu destino no destino de Cajango. Aquele que atualizou em si as contraditoridades de uma vida na morte, em sua ausência, revela-se pela presença de João Caio. Enquanto palco de uma vida que não é a sua e no êxtase de um percurso interrompido, o refletor privilegiado divide-se para representar a divisibilidade, a cisão mesma interior à finitude. É neste ponto que a técnica utilizada se entende. De que falará Corpo vivo? Desta rotura na trilogia que a faz fechar dentro de si em busca de seu sentido. O discurso interrompido de Corpo vivo é o reenvio para a liminaridade de Memórias de Lázaro. Apontado para a cisão, Corpo vivo nega a horizontalidade do tríptico e repõe 90

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um limite para que se fale do limite. A pós-liminaridade que ele prevê é a antevisão da facticidade se especificando. E, deste modo, o tríptico reorienta-se, não se determinando em abstrata sequência linear. Os extremos infudem a abertura para a mediação – as simetrias em sua dissemetria, o construto para a sua falta. Incidem em um silêncio. O “rigor na aplicação dos elementos, na reconsideração das perspectivas, no emprego dos suportes, na abertura do roteiro, [...] no equilíbrio, na proporção, em todo o sistemasimétrico para a seleção das partes” (ADONIAS FILHO, 1958:23) só renova o vigor de uma ausência como fundamento de existência dessas delimitações. Na segurança máxima dos planos, a deformação é projetada. Os silêncios finais de Os servos da morte e Corpo vivo assim procedem: indicam o nada. Ângelo só, no limite de si, avista o informe e o indiferenciado que nele próprio já se realiza. João Caio vê e Cajango experimenta a montanha na dinâmica de sua latência intempestiva. Ambas as narrativas interrompem-se no vazio daquilo que apresentam. São como os marcos da trilogia: partem-se do nada para o nada. A fusão desses vazios inicial e final se dá na circularidade de Memórias de Lázaro. A arquiviagem em busca do sentido da morte, de suas origens e fins últimos desemboca na mediação dos extremos. Alexandre partiu sem sair do lugar; Alexandre partiu-se e coexistiu no mundo. O finito disseminou sua facticidade. A circularidade de Memórias de Lázaro interpreta a figuração do finito em sua verticalização. Deste modo, a potenciação nadificadora se expressa por uma estrutura dual, na qual o revelado sempre se remonta à ausência fundadora. Mas é isso mesmo que este livro encena como forma de enunciar a questão que os extremos da trilogia deixaram interrompido: no limite do possível, na suspensão antirrítmica “é a representação em si mesma que aparece, la représentation en elle même qui apparaisse” (HÖLDERLIN, 1977:952). Ao imaginar a morte, PRIMEIRA PARTE O CÊNICO E O DRAMÁTICO – O ROMANCE DRAMÁTICO DE ADONIAS FILHO

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ao representá-la, Adonias Filho coloca-a enquanto fenômeno de sentido. A trama imagética em sua descontinuidade e o perspectivismo cênico demonstram que a facticidade é o nada, o mesmo nada a que a morte sempre aponta na trilogia. Genealógica e escatologicamente, o horizonte entrevisto pela tematização da morte é o surpreender-se em uma mediação em que seu acontecer de sentido está simultaneamente presente ao próprio sentido deste acontecer. A fenomenologia da finitude encontrada na tripartição das imagens da morte por Adonias Filho recoloca a estrutura do evento de sentido-morte como maneira de explicitar sua inteligibilidade. Ao se representar a morte, é preciso configurá-la, dar-lhe uma forma, pois é da matéria variacional da vida que se encontra as linhas e os movimentos da finitude. É somente divisando o finito em sua possibilidade que se pode questionar suas significações. Os servos da morte, Mémorias de Lázaro e Corpo vivo colocam a morte como questão, pois, através do modo como se constróem. O ficto marca o físsil. O tríptico exprime-se na hipóstase dos fundamentos do conhecer.

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3. DUPLA FENOMENOLOGIA DA IMAGINAÇÃO EM GASTON BACHELARD Para concluir esta nossa primeira investigação sobre a imaginação da morte, retomamos Gaston Bachelard. O horizonte hermenêutico aberto pela teoria da imaginação de Gaston Bachelard se inscreve na dupla fenomenologia praticada. V. Therrien (THERRIEN, 1970:317-341) descreve a dupla fenomenologia da imaginação em Gaston Bachelard por meio de sua bidimensionalidade, configurando-a na intersecção de duas retas em um sistema de coordenadas. O tráfico espacial quer representar a temporalidade plural que insufla o imaginário. É na dialética entre o profundo e o aparente que o onirismo ganha sua atualidade. Esta imagem geométrica melhor se traduz na interpretação que Ferdinand Gonseth faz do princípio de complementaridade na física moderna. Na construtividade de sua instância teórica, o analista detém-se com “dois horizontes sucessivos de realidade, um horizonte aparente e um horizonte profundo. [...]. Enquanto não se nos depare qualquer fenômeno que transgrida a ordem natural em que progressivamente se organizaram as experiências e noções dadas no horizonte aparente, nenhum motivo nos leva a suspeitar da existência de um horizonte profundo. Mas seja qual for o acontecimento que uma vez se atribua ao horizonte profundo, jamais viremos a conhecê-lo senão pelos vestígios da sua emergência no horizonte aparente” (apud SOUSA, 1959:495). Em face da ruptura com o horizonte comum da experiência humana, situa-se o intérprete em contínua divisão de seu saber, na perspectivação e descontinuidade de sua apreensão intelectual. Dentro e a partir desta integratividade, as contradições da aparência PRIMEIRA PARTE DUPLA FENOMENOLOGIA DA IMAGINAÇÃO EM GASTON BACHELARD

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se compreendem e se intensificam na abertura de sentido de seu fundamento dialético de base. Estas noções dialéticas de base se corroboram no desdobramento emergencial que aparece na liminaridade dos fenômenos. Com isto, através da modificação das estratégias de interpretação de problemáticas fenomênicas, a linearidade do imediato senso comum para a complementaridade entre aparência e latência revela-se uma operação filosófica fundamental (SOUSA, 1953:496). A passagem do horizonte aparente ao horizonte profundo questiona a decorrente reconversão da latência em função de uma projeção desdobrada da realidade, negando a mono-orientação recursiva da compreensão humana. A compreensão se equilibra enquanto circunvelante (JASPERS, 1953:26; BASTOS, 1990:69-70), assumindo sua facticidade e sua inexauribilidade. Percorre a circularidade de sua específica estruturação, mediando a descoberta pela reposição do tempo que a origina. Diante disso, recusando o conceito de evidência que, imposto pela unidade de composição, sustenta o ideal clássico de representação, esta dupla fenomenologia reivindica uma experiência mais efetiva da atividade imaginante. Se pelas imagens ocorre o transfert onírico, é preciso uma linguagem desdobrada, temporalmente descontínua para falar da alteridade. Em sua unidade do orgânico e do ‘aórgico’, unidade na diversidade, a dupla fenomenologia encena esta cisão originária. Pelo ideal clássico de representação, a obra artística possui unidade orgânica e se expressa por meio desta pretensa homogenização. A unidade orgânica consiste “na concordância das partes de uma obra com outras partes e com o todo, in the agreement of the parts of a work with each other and with the whole” (ORSINI, 1975:21). A coesão interna dos níveis é tão sistemática que “uma alteração da parte, quando por acréscimo ou supressão, envolve a alteração do todo, an alteration of a part, whether by addtion or removal, involves the alteration of the whole” 94

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(ORSINI, 1975:35). O uno-único-unificante, presumido e posto em circulação na unidade orgânica, não é, exclusivamente, um princípio de composição artística. Em sua motivação epistêmica, espelha “o conceito de atividade sintética da mente, the concept of the synthetic activity of the mind” (ORSINI, 1975:97). A representação inteiriça e monotemática apenas denuncia o alcance e a natureza das faculdades cognitivas humanas. Ao homem caberia modelizar suas estratégias de conhecimento em categorias gerais e abstratas posto que estas são as mesmas e constantes, imutáveis e absolutas. Com isto, o que se procura é a unidade da representação na representação dessa própria unidade. O julgamento sobre os fenômenos, segundo tal pressuposição, deve restringir-se ao que foi dado de antemão. Antes de investigar o construto em seu processo, atenta-se somente aos produtos em sua teleologia finalística, residual. Aquilo que se representa reduz-se na expressão do esquema prévio de sua inteligibilidade. O que se apreende no fenômeno é o que se depreende de um modelo categorizador. Diante de tal operação cognitiva, torna-se evidente o que se experimenta. Com sentido assim constituído, o que se vê é o já visto, o que se percebe é o já percebido, o que se conhece é já conhecido. A obra ganha coerência, unidade de significação, ao resolver-se em uma questão já proposta. Esta evidência procede de uma miopia interpretativa que se refugia na imediata aparição das coisas ao invés de se ater ao que aparece em conjunto com sua emergência – a estrutura de seu acontecer. Trata-se de confundir a manifestação com o que se manifesta (MOURA, 1989: 91-97). Assim pensando, o fenômeno visado se mostra enquanto produto, não como produção. A temporalidade é abstraída em função de uma exemplaridade artificial e estática. Para Bachelard, explorar o sentido de um fenômeno é também envolver-se no fenômeno de sentido que o acompanha. PRIMEIRA PARTE DUPLA FENOMENOLOGIA DA IMAGINAÇÃO EM GASTON BACHELARD

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Ao descrever e apresentar dada problemática, problematiza-se, concomitantemente, o modo através do qual as estratégias de compreensão são construídas. Substitui-se a teleogia da corretividade do logos, adequada à unidade objetiva pré-dada, pela facticidade temporal da experiência interpretativa em sua descontinuidade. Fora de sua modalização temporal, as significações de um fenômeno ganham referenciação ao se adequarem à unidade objetiva de sua perfeita apreciação racional (GADAMER, 1979:366-373). O que se observa só se verifica, se ratifica a plenitude orgânica da atividade sintética da mente. O que se conhece é um objeto inteiriço e correto, como correto e inteiriço é o cógito que o projeta. A verdade do que se discorre incorre na adequação entre a objetividade de fenômeno imposta pela pressuposição subjetiva de um cógito racional e exato. Reduzem-se as aparências ambivalentes e contraditórias do observado, para que ele revele como puro signo de um sistema racional. Conhecer torna-se abstração que “concebe o sistema de verdade como um pré-dado sistema de possibilidade de ser, através do qual os signos dispõem-se significando a subjetividade a que estão associados” (GADAMER, 1979:377). Retirando-se da espacialização metafísica do conhecimento, Bachelard dinamiza a compreensão, diversificando-a em sua alteridade fundamental. Agindo na horizontalidade do fenômeno. Bachelard organiza-o, descerrando suas conexões sintagmáticas. As peculiaridades significativas vão sendo conquistadas à luz do ritmo de sua estrutura. A estrutura imagética materializada nestes movimentos de constituição aponta para o sentido mesmo das operações que se efetuaram. O que aparece na patência de sua economia relacional transparece não só como contextura estruturante do fenômeno, mas na confirmação dos seus processos latentes. As correlações sintagmáticas, em seus jogos de ausências e presenças, na reversibilidade de suas emergências variacionais, exemplificam a modalidade intrínseca e vertical que as efetiva. 96

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A dupla fenomenologia é a revelação do duplo inerente ao fenômeno da imaginação. A orientação onírica das imagens em contínua diferenciação, das imagens em seu intercâmbio ritmanalítico, só reenvia para o fluxo nadificador que a imaginação encena. A horizontalidade do vário, reivindicando a verticalidade da ausência fundante, irmana-se à temporalidade específica destes apoios rítmicos recíprocos. Por meio da trama das imagens ambivalentes, aquilo que aparece sendo mais do que parece, mas indissoluvelmente ligado à sua aparição, é a mediação do finito em sua abertura, é a raiz da complementaridade que fundamenta a estrutura da criatividade em sua atualidade hermenêutica. A dupla fenomenologia do imaginário, longe de ser mero espelhismo analítico – em que os contrários justapõem-se na indefinição geral de suas diferenças –, ilumina a culminância ritmanalística da imaginação material e dinâmica. O imaginário exposto no equilíbrio de sua precariedade temporal instaura a modalização dos atos inaugurais e originários da compreensão, sempre comprometidos com a reposição da facticidade e da nadificação que os afirma. Dentro desta dupla fenomenologia, a imagem encontrase no limite de si ao ser limiar de outra imagem. Ela mesma é outra de si, pois prevê sua desrealização. Suspendida entre um destino de alteridade e uma procedência dessubstancializada, a imagem é vazio circunscrito por sua virtualidade. É a figuração da finitude se desdobrando. Limitado pelo nada, a imagem faz o nada irromper em seus limites. Cindida, a imagem narra a dramatização da finitude em sua temporalidade específica, a finitude enquanto possível hermenêutico. O imaginário é uma iniciação para a morte. As movimentações imagéticas performam o existencialismo da compreensão.

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3.1 A fenomenologia da finitude em Adonias Filho Se as imagens em sua autonomia e especificidade desrealizam-se, esvaziam-se, nulificam, revelando a finitude no âmago do imaginário, o que enunciará um imaginário que primordialmente encena a morte? Em Adonias Filho, o que se compreende na morte da morte, a finitude para consigo mesma? Sendo recurso e também transcurso na trama imagética de efabulação, a morte imaginada repercute-se em uma fenomenologia da finitude que, na ambivalência do onirismo, apresenta-se descontínua em sua constituição temporal. Vazada na ritmanálise das imagens, a finitude de si mesma solicita que se dramatize, que se desdobre e se diversifique, assinalando um vazio, uma abertura. Só assim concretiza-se nas imagens, no fluxo alternante do imaginário. Reconfigurada a finitude por sua interpenetração com o tempo de sua abertura, representa-se o horizonte da finitude. É o que a trilogia busca, ao sempre recolocar a questão da morte, repropondo a estrutura de seu acontecer. E em todos os percursos cênicos ocorre a suspensão antirrítmica: no limite do representado a interrupção das simetrias e o silenciar-se diante de uma ausência primordial. O movimento das imagens se objetiva em uma reticência (REINHARDT, 1972:46). Vinga nos frisos e vincos de seu aprofundamento. Imerso e estático nesta verticalização, “o espírito fica detido e suspenso acima do desejo e da repulsa” (JOYCE, 1980:192). Acontecendo nos ritmos de sua verticalização, qual é a verdade da morte no tempo de seu aprofundamento? O que a finitude dramatiza ao se dramatizar? Qual é a alteridade da morte? Toda a trama imagética presente na trilogia, intensificando o limiar suspenso das imagens da morte, desemboca em uma catástrofe. A finitude, ao desdobrar-se, excede-se, dilata-se 98

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ao nível mais denso possível, na indiferença do sem medida. Interrompe a dicção para que se ritualize o dionasíaco. A morte no horizonte de sua configuração é pulsão do duplo, é potenciação de sua alteridade nadificadora e plasmadora. O outro da finitude é o nada. A hermenêutica da imaginação de Adonias Filho, ao narrar a fenomenologia da finitude que subage por sua trama imagética de efabulação, apreende a raiz da complementaridade, o contexto inteligível da representação da morte como horizonte de uma teoria não metafísica, mas dramática do conhecimento. 3.2 A raiz do complementar e a dramatização da estrutura da criatividade Neste ponto, reinterpreta-se o nexo entre Gaston Bachelard e Adonias Filho. O encontro-diálogo dos dois pensadores só torna complexa uma hermenêutica da imaginação em ambos. A imaginação apresenta-se em sua faciticidade e temporalidade específicas, determina-se como meio de acesso aos fundamentos da compreensão humana e veículo de expressão destes. A própria imaginação realiza em si estes fundamentos na concretude de suas relações e dinâmicas representacionais. A intelibilidade onirismo é a imaginação do conhecimento. A interpretação do que se conhece pelas imagens possibilita que se imagine o conhecimento em sua amplitude. Negando um comportamento monológico, restrito a matrizes paradigmáticas do saber, a imaginação, em seus tempos de superposições, promove o duplo, na contingência do finito e do infinito. Ao invés de momentos isolados de um processo impresso na atomização dos seus constituintes, em virtude da generalização metafísica de seus pressupostos, a imaginação preconiza a dialética dos complementares, a reversa harmonia do mesmo e do outro, a reversibilidade ontológica do ser e do nada PRIMEIRA PARTE DUPLA FENOMENOLOGIA DA IMAGINAÇÃO EM GASTON BACHELARD

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para traduzir a linguagem que doa o horizonte da compreensão na finitude radical assumida. As ambivalênicas, as variações, o movimento cisionário das imagens perfazem a reorientação da compreensão em uma estrutura da criatividade que a hierarquiza, contra um influxo generalista e absoluto que a imobiliza. É no tempo de sua diversidade, de sua abertura que a compreensão se efetiva, e não na recompilação do mesmo-sempre-já-conhecido. E o tempo deste múltiplo é o da imaginação. Se a imaginação for interpretada, a estrutura da criatividade será compreendida. Para isto, é preciso aprofundar o ritmo alternante do imaginário e depreender o que o tempo concretiza em suas superposições. Nas reversas harmonias, o que se harmoniza em suas diferenças? Em que a imaginação se fundamenta, e com isto a criatividade da compreensão? Na raiz da complementaridade, temos a facticidade humana em seu horizonte. Ser para a morte é ser para a morte enquanto possibilidade (HEIDEGGER, 1987:15-51), no tempo desta pendência que se equilibra em sua destinação e vigor. A morte se possibilita como morte, como reconciliação com sua abrangência e flexibilidade. A morte resguarda, resguardando-se, envolve, ocultando-se em sua dissimulação. Ficcionaliza-se, circunscrevese nas frinchas, franjas e dobras de sua tensão temporal. A morte é nada e a tudo sobredetermina. No trama da morte, Kháos encena e entoa seu Satyricon.

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IMAGINAÇÃO E MORTE: ESTUDOS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FINITUDE

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IMAGINAÇÃO E MORTE: ESTUDOS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FINITUDE

SEGUNDA PARTE: ANÁLISES DE REPRESENTAÇÕES DA FINITUDE

4. A EPOPEIA DE GILGAMESH1 Entre os fragmentos que podem marcar o início da narração da transviagem de Gilgamesh em busca da imortalidade da alma, temos aqueles relativos aos preparativos do percurso. Como em um prólogo, o protagonista da gesta (sagesse) é-nos apresentado como que aparentado aos deuses “dois terços o fizeram deus e um terço, humano”. Tal excessiva componente divina de sua formação – manifesta no corpo e disposições de ânimo – insufla a ultrapassagem das determinações usuais dos mortais. Mas, mais que as propriedades físicas e as aptidões para a grande jornada, o diferencial da diferença que o distinguia de todos os outros habitantes da terra era o saber: “Foi ele o homem de quem todas as coisas foram conhecidas... ele era sábio, viu os mistérios e conheceu as coisas secretas”. Corroborando os atributos de sua destinação singular, Gilgamesh construiu as muralhas da cidade arquetípica Uruk e o templo para os deuses. Entre os mortais e os imortais, edifica-se o encontro, a possibilidade de mútuo envio da cidade cercada e dos altares disponíveis. Dessa forma, ele mesmo, sobejando nas duas partes divinas e ampliando a parte humana, configura-se como diagrama de forças, que atualiza a copertinência do impulso mítico e do engendrar cultural. Este é Gilgamesh: a dramatização que medeia a meditação entre o saber e o fazer. Por isso pode empreender sua viagem. Por isso pode efetuar, transcendendo os limites que o percurso proporcionará. Como guardião da grande cidade e dos ritos, transmuta-se em legenda, que apreende as fronteiras do natural com o sobrenatural. Para viajar, é preciso 1 Seguimos o texto Gilgamesh: rei de Uruk. Tradução de N. K. Sandars. São Paulo: Ars Poética, 1990.

SEGUNDA PARTE A EPOPEIA DE GILGAMESH

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iniciar-se no teatro da liminaridade, que fica na encruzilhada do desconhecido com o conhecido, nas interrogações e socilitações dos atos fundadores, na origem. Após tal abertura, que enaltece e esclarece a seiva cosmoantropogônica de Gilgamesh, diversifica-se e amplia-se sua ambivalência e tensão variacional na soberba que o impulsiona a violentar os mortais e no antagonismo-aliança com Enkidu. Andando por terras estrangeiras, submetendo tudo e tudo ao irresistível apelo de seus braços, Gilgamesh intensifica sua vocação de ultrapassagem, ao mesmo tempo que circunscreve os homens a seus limites limitantes. Operando numa “arrogância que não tinha limites”, subjulga, ao império de seu pathos, os homens de Uruk. À soberba de Gilgamesh relaciona-se agora o brado dos mortais aos divinos. A desumanidade feroz de Gilgamesh precisava ser respondida. Excedendo-se em sua própria força, o homem-que-sabia-todas-as-coisas domina cativo um percurso que só atualizava o ímpeto destrutivo e avassalador que, em sua potência, despontencializa. Bate nele mais forte o coração selvagem, que esquece o erigir da cidade e o prorromper dos altares. As prerrogativas dos mortais são escutadas e respondidas. Da lamentação os deuses tomam matéria para criar o nobre Enkidu. A deusa da criação, Aruru, segue, em seu partejamento, as ordenanças dos imortais: “cria agora o seu igual (símile a Gilgamesh)...que este seja semelhante a ele como o seu próprio reflexo, como um outro ele, coração de tempestade para coração de tempestade. Eles que briguem um com o outro e deixem Uruk em paz”. O ímpeto de Gilgamesh acompla-se a seu duplo. Seu rival é ele mesmo, figurado como contraparte primitiva de sua persona: “o seu corpo era rude [...] o seu corpo era coberto de pêlo... ignorava a humanidade; nada sabia da terra cultivada [...] comia erva nas colinas...escondia-se com os animais bravios”. 110

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Dessa forma, avista, no embate que se aproxima, uma estranha representação do conflito. Os oponentes não se avistam como defensores de rígidos contextos polares, mas apontam para situações complementares. O adversário exsurge no próprio seio do lutador. Duela-se num drama de diferença e de identidade. Os rivais assumem uma dinâmica representacional que consagra suas ‘performances’ à difusão de algo mais intenso e profundo que a emergência imediata dos golpes, da lógica do vencedor e do vencido: representa-se o conflito mesmo, pois cada oponente já possui seu duplo, seu inimigo. Além das motivações maniqueístas, de um direito espúrio que expurga o conflitivo do combate, assistimos ao desdobramento do acontecer-embate. Na luta, vence não o lutador, mas vinga a integração dos rivais como reverência ao horizonte que os conjuga. Momentos narrativos correlativos dessa problematização do conflito por meio de sua preparação imagética são as cenas da cortesã e dos sonhos de Gilgamesh. Na cena da cortesã, transformase a pura instintividade de Enkidu na iniciação nos mistérios da feminilidade, da paixão. Tomando a mulher vinda da cidade por ordens de Gilgamesh, Enkidu passa de homem selvagem a homem humano, sabedor dos domínios e das vontades do pathos. Pelo eros, conquista mais uma dimensão à sua sensibilidade. Mais completo, mais perto estava do rival Gilgamesh. Enkidu toma a mulher, aproxima-se do rei de Uruk, “que como um touro selvagem reina sobre os homens”, e afasta das feras do campo que lhe fogem (23). Segundo afirma a cortesã “tu és sábio, Enkidu, e agora tornaste semelhante a um deus. Por que queres tu ser selvagem como os animais da colina?”. A fala da mulher, com a qual Enkidu deitara seis dias e sete noites, número dos sábios que assentaram as fundações da cidade de Uruk, induz o recém-adentrado no mundo dos humanos a aspirar “por um companheiro, por alguém que compreende seu coração”. Pelo conúbio com a mulher, ganha a possibilidade do confronto; por afeiçoar-se ao seu rival, duelará SEGUNDA PARTE A EPOPEIA DE GILGAMESH

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mais tarde. Os fatos e os feitos encontram-se desconectados das intenções imediatas de seus contextos produtivos. Entretecese série de laços recíprocos entre ações e ocasiões consideradas contraditórias. A guerra comparece em conjunto com o amor, o desafio para uma luta atroz aparece no abrir do coração a uma amizade sem limite. Mas antes das lutas, há o momento onírico de Gilgamesh, que complementa o pesado sono de Enkidu em sua primitividade. Antes de enfrentar aquele que é “um homem diferente de qualquer outro, que desce das colinas” [...] que é “o mais forte do mundo, ele é como um imortal dos céus”. Tal princípio de não localidade aplicado à montagem e disposição desses momentos narrativos prévios da gesta maior da epopeia amplia-se ainda mais na reversibilidade dos rivais, no espelhismo entre Enkidu e Gilgamesh. Temos Enkidu habitando o inconsciente da primitividade e Gilgamesh sonhando; o affair de Enkidu e as bodas de Gilgamesh. Estreitam-se os destinos dos dois homens que ultrapassam os limites dos mortais, rumando para o inevitável entrechoque de ambos. Entretanto, como se observa no curso da epopeia, os eventos não se representam senão após preparação, que serve de incorporação de uma contraparte que interdita qualquer tentativa de se submeter o narrado a modelos lineares de apresentação. Antes da esquematização prévia dos fatos, habita-se este ‘estar-antes’, no qual se processa a construtividade dos atos pela trama imagética de sua elaboração. Antes de lutarem, aproximam-se gradativamente os adversários. Enkidu incorpora mais e mais a cidade de Uruk, chegando a tornar-se homem e noivo (26); ao passo que Gilgamesh está em seu noivado. Bodas e conflito fundem-se no limite extremo mais próximo da luta. Patenteando essa ambivalência, temos a fala “a noiva espera o noivo” (28), que ultrapassa o localismo de sua referência 112

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para se consubstanciar na dramatização de algo que ultrapassa seu sentido imediato. Gilgamesh amara, pelos sonhos, Enkidu como uma mulher. É uma mulher que inicia Enkidu em sua ‘hominização’, atividade preparatória para o posterior conflito; e, antes do embate, Gilgamesh casa-se. Veja-se que a estrutura do relato converge para dois movimentos formadores e constituidores fundamentais: um, o movimento antecipatório que distende a ação representada, direcionando-a para o seu não cumprimento finalístisco; outro, a correspondente contraparte, que aponta para as contradições que coexistem neste existencialismo dos díspares. Antecipação e paroxismo formam aspectos complementares do jogo de ambivalências que configuram o texto. A conclusão inconclusa desse primeiro momento da gesta de Gilgamesh – o embate com Enkidu – confirma tais conclusões: debatem-se os dois filhos dos deuses. Cai Enkidu, louvando a força de Gilgamesh. Gilgamesh suspende a luta com abraço no qual sela-se a amizade entre ambos (29). O ‘duo-elo’ se confina com o amar. Na verdade, não temos aqui uma antecipação que determina os fatos acontecidos a se repetir de acordo com o anteriormente dado, nem um contraditório que emerge de uma falha representacional, de um vazio de estrutura que dimensiona o relato. Tudo o que se apresenta é variação de um tema antropológico fundante que é a apreensão mesma da “origem”2. Cada evento repercute um jogo de identidade e diferença que atualiza cenas dispostas em sua abertura, em sua tensão variacional. O limiar e o limite interpenetram-se; no limite da possibilidade, possibilita-se. Explicitada a dimensão mítica da morte, esta se encaminha para a sua codificação dramática. Como se vê, a seguir. 2 Para a questão da origem, v. textos da terceira parte deste livro.

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5. O LIVRO EGÍPCIO DOS MORTOS1 O livro egípcio dos mortos se constitui em recolha de hinos e fórmulas sacras todas relacionadas com o contexto religioso de preparação dos mortos para sua vida além-tumba. Estabelece-se aqui uma contradição fundamental e fundadora, pois diante do morto são os serviços fúnebres dos vivos que estão presentes. Por detrás dos ritos religiosos pulsa um imaginário da morte que sobredetermina o ato fúnebre. Para cultuar é preciso imaginar. Ao situar-se na experiência de antecipação, os limites do real são ultrapassados, e a possibilidade do que não é passa a ser, efetiva-se. Note-se bem o contexto dramático que abarca a situação religiosa: encena-se diante da tumba um palco no qual se representa mais do que se apresenta. Dos signos da finitude veem-se os cultuantes mais próximos que nunca. Junto ao corpo do morto reúnem os vivos. Mas o centro não é estático momento da ordenação do espetáculo: diríamos que tudo converge para morto assim como ele irradia para os raios circunferentes que formam a audiência às imagens da morte antes de sua consumação. De modo nenhum reverencia-se o cadáver, e sim as expectativas que na sensibilidade se traduzem. Nota-se, desde logo, o movimento de inclusão de níveis que se forma dentro desse acontecimento que se pluraliza. Como fato, temos um morto que agora é absorvido por uma cultura da morte. Ele não morre no isolacionismo coisificante e individualista de sua instância imediata: o morto é interpretado 1 Seguimos texto em O livro egípcio dos mortos. Trad. de E. A. Wallis Budge. São Paulo: Pensamento, 1988.

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e assimilado dentro de filtros de sentido que procuram integrar os eventos dentro de um acontecimento maior. A razão mítica doa aos participantes da cultura as prerrogativas de um saber que se diz inerente aos fatos. Desde aí, já começa a transcendência, a vida após a morte. Culturalmente, seguindo atos mediadores dos significados e dos contextos, aquele que deixa de existir encarna-se como matéria-prima para os que permanecem. E transcender é imaginar, é refigurar, é rearranjar o destino dos vivos projetando uma vida outra ao morto. Constrói-se este culto na correlação entre imaginante e imaginado, na qual se constitui participação empática com a figura de Osíris. A morte e a vida deste será a de seus seguidores. Estabelece-se uma estrutura arquetípica que emoldura a vivência do celebrante no trajeto mítico e transfigurador de seu modelo e guia. Osíris é concretizador de ambivalências. Nele cifra-se o humano e o divino, encontro originário das diferenças. Após seu despedaçamento ritual (sparagmós), o deus é ressuscitado do inferno por palavras mágicas. Tais sequências de sua gesta às avessas o transmutam em sua metamorfose mesma como iniciador dos mistérios da finitude. E essa metamorfose prefigurada em Osíris é o teatro para o qual aponta O livro egípcio dos mortos. Trata-se de sair à luz, passar da escuridão do túmulo para o esplendor da vida eterna, dirigir-se do desconhecido da morte para sua transfiguração compreensiva. Trava-se aqui um drama do saber. Morte aqui é transformação que se situa nos limites e nas possibilidades da razão, que para fazer-se questionadora e cognoscente precisa mediar o desconhecido em conhecido, o ausente em presente. Deste modo, morrer não é extinguir o conflito: adensa a fatalidade na diversidade de cenas e atos-limite que compõem seu existencialismo. O outro mundo é um outro eu, administrado e gerenciado por pulsões e desejos terrenos. O além demonstra-se 116

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pelo aquém. Neste jogo de distâncias e proximidades, arquiteta-se o céu com as matérias telúricas. Osíris, o que foi na frente e abre o caminho, é encruzilhada e não solução. A morte recupera as contradições, pois não há nada mais contraditório do mundo que uma morte viva avançando por sobre as trevas, avançando, pois, sobre si mesma. A treva agora é luz que ilumina o horizonte compreensivo de seu ser. Morto Osíris, e ressurrecto, quem caminha é a própria morte. Osíris não vence a fatalidade – ressuscita pela finitude, que ganha de seu corpo a virtualidade de se cifrar oniricamente.

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6. A TRAGÉDIA GREGA: ANTÍGONA, DE SÓFOCLES, E MEDÉIA, DE EURÍPIDES1 Diversa dimensão de representação da morte configura-se no dramático. O caminho para o palco, para o teatral, justifica-se na lógica específica que determina o pensar-sentir acerca da finitude. Ao mesmo tempo, na experiência da dramaturgia encontram-se também entretecidos os signos que apontam para a crise mesma da representação da morte, expressa na tanatofobia ocidental que, em suas estratégias de uniformização e eufemização de sentido, veiculam um modelo de supressão dos fatores variacionais e contraditórios do que expressa. Dessa maneira, o dramático se articula como encruzilhada: tanto retoma a tradição mítica que cifrou a originária relação do homem com os fins últimos e horizontes primeiros, quanto fornece momentos para a desvitalização da morte. No palco, outro drama se representa, além de ser inerente ao que se visualiza: a agonia e morte das personagens concretizam a facticidade de Tânatos. Uma comparação entre a tragicidade de Antígona e Medéia, tendo como termo comparante e mediador a complexidade deste momento diverso da representação da finitude, possibilita o acesso a tal encruzilhada histórica. Ambas as peças, tomando mulheres como interpretantes de conflitos de ordens, encenam a participação da cultura em sua reverência à morte. Seja morrendo, seja matando, realiza-se a finitude como totalização dos percursos imagéticos representados. 1 Para Antígona, v. tradução de Maria Helena Rocha Pereira (UnB, 1997). Para Medéia, v. tradução de Flavio Ribeiro de Oliveira (Odysseus, 2006).

SEGUNDA PARTE A TRAGÉDIA GREGA: ANTÍGONA, DE SÓFOCLES, E MEDÉIA, DE EURÍPIDES

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Antes de “lógica das ações”, a morte não é algo que se recebe ou que se aplica. Na aflição ou infligindo, ultrapassase o circuito de sujeito-objeto que comandaria a execução e realização do fenômeno. A morte é aqui algo em que se acredita, expressa e vivenciada antes do ato. A morte acontece na estrutura antecipatória que a concretiza nos eventos. A morte aqui é ausência atuante. Constrói-se uma ordem, uma apresentação de momentos cênicos que dramatizam o conflito entre orientações divergentes e excludentes. Forma-se uma ilusão de sequência, que já se denuncia como descontínua ao conjugar materiais heterodoxos. Cada instante representado não pode se reduzir ao tempo de sua exposição. O elemento presente mantém-se pelo embate com o elemento ausente. O ritmo construtivo do que se expõe sustenta-se na eficácia do que se contrapõe. Segue-se o intensificar e diferenciar do que se encena. E esse ritmo de representação culmina em morte. Deve-se notar que o acontecimento-morte não é a suspensão ou resolução da trama oferecida ao público. Não se morre ou se mata no final como libertação do sortilégio da finitude. Morrer não é transcendência vazia, recompensa de um sofrimento dilatado, nem cega imanência da confirmação de um destino premeditado. Morre Antígona e Medéia mata, no diferencial das mortes que elas dramatizam. Não morrem nem matam como versões complementares de uma linearidade narrativa, que posiciona a figura em sua moldura, os agentes narrativos na consecução performática perfeita de seu contexto de ação. O dramático transparece como nova codificação da finitude humana. O paradoxo maior da existência de se defrontar com a vida da morte faz-se presente. Da imagem-ato dos cultos antiquíssimos, desdobra-se a palavra-cena do teatro, que assume a doação de um logos à morte. O mito é assumido como força vital da personagem, que nele acredita e por ele 120

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age. Ao invés de um distanciamento arrefecedor, não se cultua apenas mais o sagrado: morre-se por ele. Do templo ao teatro, observa-se a proximidade e a intimidade com a componente simbólica da cultura. Antígona acredita no culto aos mortos, na ancestralidade do mito. Seu trajeto é a rigorosa confirmação da plenitude e do vigor da morte. Avança e aprofunda os signos da finitude em sua agonia. É vigília contra a eliminação da morte no mundo. Desgraça e ruína não são marcas de seu trajeto – estes ficam com o rei. Morrer não é perder. A morte de Antígona não é a de um mártir, no sacrifício sentimental do herói inocente. O acontecimento-morte de Antígona é a doação de um saber sobre a finitude, impresso na fidelidade ao mito e participação no desconhecido que este saber possibilita. Por isso o canto do coro de Antígona louva a estranheza que é o ser humano, ultrapassando sempre seus limites, assinalando a vocação não somente transgressiva mais intensiva de lidar sempre com limites, com termos. Já Medéia não morre, mas mata. Se Antígona morre para assegurar o mito, Medéia mata o sangue, atenta contra o mito. Ela é fiel aos seus desígnos. Tudo é tão formalmente calculado e apresentado na coercitiva disposição dos eventos, que irreversivelmente se encaminham para o assassinato dos meninos. Mas tudo se movimenta entre as fronteiras da morte. Contra ou a favor do mito, dentro dele ficamos. A solidão de Medéia, a ausência dos deuses, a exibição espetacular dos fatos (como no fim da peça), o pathos exageradamente emotivo e individual de uma dor que começa e termina na pessoa – ou seja, toda essa experimentação euridipiana colhe e recolhe sua intenção e sua justificativa ainda no sagrado. A racionalização dos conteúdos de representação e a planificação do modo de apresentação destes, ao excluir as contradições e ao tornar rígidos e demarcados os conflitos e os conflitantes, são operadores cognitivos de nova relação com SEGUNDA PARTE A TRAGÉDIA GREGA: ANTÍGONA, DE SÓFOCLES, E MEDÉIA, DE EURÍPIDES

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a cena e com o mito, procedimentos que posteriormente serão utilizados pela tradição que negará a morte e a imaginação. Eurípides, ao conformar o contexto humano à situação do indivíduo, substitui um mito por outro. Temos aqui a aurora do “mito do homem”, da humanidade, como momento do percurso ocidental em explicitar os nexos interindividuais frente ao decaimento do simbólico, tornando instituição e controle. Medéia mata os meninos contra a morte alegórica dos mitos. Mas o cuidado com os mitos possibilita também o seu descrédito. A proteção aos mitos, seja pela preservação dos mistérios, seja pela explicitação logográfica, provoca mediações que se interpõem contra a intimidade da morte como sentir e pensar concretizado na existência. Entre o determinado da dimensão “racionalista” dos mitos, extenuada em Eurípides e desenvolvida pela tradição posterior, e o indeterminado assente nos cultos e nos ritos, patenteia-se a necessidade de um espaço-tempo de encontro dessas esferas da morte, entregues ao mútuo esclarecimento e intercâmbio de sua lógica de claro-escuro.

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IMAGINAÇÃO E MORTE: ESTUDOS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FINITUDE

7. AMOR E MORTE EM OS SERMÕES DO MANDATO, DE PE. A. VIEIRA Há, nos Sermões de Pe. A. Viera, vários ciclos de pregações. Em nosso caso, temos a série “Sermões do Mandato”. Trata-se de seis sermões tematizando uma só epígrafe.1 Por meio deste ciclo, mostraremos a estruturação tensiva do estilo de Antônio Vieira, destacando a exploração da representação da finitude em seu discurso Barroco. Com isso, pretende-se que a poética do Barroco possibilite o descortinamento de uma poética da compreensão. “Os Sermões do Mandato” apresentam uma fenomenologia do amor, da simpatia, aspecto complementar de uma fenomenologia da faticidade humana. Reza a epígrafe: “Sabendo Jesus que era chegada a hora de passar deste mundo para o Pai, como havia amado os seus, que eram do mundo, amou-os até ao fim” (João 13:1). O texto bíblico, que fornecerá o paralelo intertextual para Vieira, concretiza as relações de sentido que se configuram imageticamente no Cenáculo. Neste, o culto de Cristo, com seus ritos e mito, será instituído. No cenáculo Cristo fundamenta a sua atividade mitopoética pelo sacramento. Encena-se o drama da encarnação, aproximando potência divina e potência humana. Eis o “mistério ou enigma grande do amor” (V, 1). O amor e a religatio são expandidas significativamente nos sermões do Mandato. No primeiro, procura-se mostrar que o amor 1 A epígrafe reproduz um contexto dramático – o da celebração da santa ceia. Observa-se a contextura imagética do percurso mitopoético de Cristo. A variação presente no 3º sermão (IV, 355-390) – “Et vos debetis alter alterius lavare pedes” João XIII, 5 – não invalida a presença atuante da epígrafe; antes, ratifica a perspectivação discursiva praticada por Antônio Vieira. As citações em parêntesis neste capítulo informam, respectivamente, o volume e página da edição de Sermões, de P. Vieira (Lisboa: Lello, 1959).

SEGUNDA PARTE AMOR E MORTE EM OS SERMÕES DO MANDATO, DE PE. A. VIEIRA

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de Cristo não tem igual com algum outro. Efetua-se o tratamento inicial da tópica. A temática da empatia transforma-se em problemática do pathos. Rompe-se com as imediatas cronotopias, provando-se que o amor de Cristo supera as causalidades espaciais e temporais. À geometrização do tempo e do espaço contrapõe-se a dinâmica das tensões: “Porque o amor que não é intenso não é amor” (IV, 311). O amor de Cristo é amor sem remédio e não falta para os remédios do amor (IV, 287-289). Composto nestes termos, observa-se o hiperbólico no estilo de Vieira. Fratura-se a ordem normal do signo, numa engenhosidade que faz irromper o excessivo em meio à cerrada argumentação.2 Por esta anamorfose,3 os referentes do discurso de Vieira são modelados em função da ruptura na ordem do real. E é em direção ao hiperbólico, por meio do qual o limite é perspectivado, tematizado em seu horizonte, que convergem os planos divinos e humanos – movimento fundamental que perpassa o ciclo. É o arquétipo da unidade no amor entre deuses e homens (IV, 319). O segundo sermão do Mandato retoma a cronotopia diferenciada, proposta pelo hiperbolismo do sermão anterior. Verdadeiramente, no amor de Cristo, experimenta-se “grande excesso de amor” (IV, 330). Vê-se que foi “amor sobre amor” (IV, 340). Esta potenciação do duplo, por sua dupla potenciação, dignifica-se na qualidade diversa de seu pathos. Segundo Vieira, a diferença deste amor, que supera os demais e os incorpora, é que Cristo “amou sabendo” (IV, 325). A ciência de amar foi o que promoveu a eficiência de tudo superar. Cristo amou sabendo, num sentir-pensar integrado à própria diferença desse amor. Seu amor com pensar doa as razões do afeto sem igual. 2 A. Saraiva. O discurso engenhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980. p. 31-53. 3 S. Sarduy. Barroco. Lisboa: Veja, 1988. p. 52.

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IMAGINAÇÃO E MORTE: ESTUDOS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FINITUDE

Ultrapassou os limites da sensibilidade porque conheceu a prodisposição orientativa, o projeto de sua empatia. O conhecimento deste “amar sabendo” se encontra em preconizar a diferença no seio de seu processo de efetivação, captando as tensões de uma teleologia às avessas, na qual o fim se une ao princípio – amor de amor. O que é compreendido neste conhecimento inaudito? Compreende-se a própria experiência do amar. Segundo Vieira, “não é amante quem morre porque amou, será quem amou para morrer” (IV, 342). Por meio desta agudeza engenhosa, modifica-se a normal apreciação da paixão de Cristo. Torna-se preciso entender que “conheceu verdadeiramente o sol divino o seu ocaso” (IV, 343). Amor e morte mutuamente estão implicados. Mas não um amor comum para uma imediata morte. Este amor para a morte é trabalhado no terceiro sermão do Mandato. Estabelecido na dinâmica hiperbólica e na esfera do conhecimento, o amor de Cristo revela-se em sua fenomenalidade. Trata-se do ritmo alethopoiético de seu existencialismo.4 Nas frinchas e dobras de suas possibilidades, enquanto evento primordial de sentido, “maior fineza foi em Cristo o ausentar-se que o morrer” (IV, 358), infundindo um pathos que, é “a dor da ausência” (IV, 359). O discurso barroco de Vieira, captando a fenomenalidade da empatia, a traduz na efetividade de seus feitos, nos quais o próprio efeito é causa de si mesmo. Nada de uma ordenação absoluta, referenciadora de um pré-dado desconectado da pulsão cisionária e efusiva do que apreende. A não localidade deste evento de sentido recupera-o como símbolo e como arquétipo por meio dos quais se desdobra a sensibilidade humana projetada na simpatia. 4 A respeito do ritmo alethopoiético, v. capítulo “Alethopoiésis” da tese de doutoramento A hemernêutica da concriatividade (UFRJ, 1988), por Ronaldes de Melo e Souza. Na terceira parte deste livro, discutimos alguns aspectos desta pesquisa.

SEGUNDA PARTE AMOR E MORTE EM OS SERMÕES DO MANDATO, DE PE. A. VIEIRA

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Amor maior na ausência: presença intensa no que mais vela posto que revela suas possibilidades nesta modalização radical de sua experiência. Amor este, na ronda da circulatura de seu sentido (amor de amor), que tem “as raízes no imenso e o tronco no infinito” (385). Sua modalização, e não modelização, concretiza vínculos e nexos de sentido. Sendo assim, “o ausentar-se é maior que o morrer” (363). Sobrevive no encobrimento de seu culto, no sacramento: “encobrindo-se pois Cristo no Sacramento, ainda que está presente com os homens, a quem ama, está presente sem os ver; e a presença sem ser vista é maior pena que a ausência” (IV, 364). A “presença sem ser vista” é alethéia – mútua implicação dos díspares na consagração do que escapa ao horizonte comum da experiência humana. Encena-se a perpetuidade de uma morte que não se consome em morrer, pois quanto mais se finitiza, mais cria, mais cosmiciza-se, mais significa. O ritmo alethopoiético do amor tonifica o duplo e promove discussão da alteridade, ampliando o sentido inerente ao mandato. Neste passo, “amor e correspondência são dous atos recíprocos” (IV, 384). Pois “o mandato compõe-se de dois amores: o amor de Cristo conosco, e o amor dos homens entre si” (IV, 387). Tal é o mandato, mandato do amor. A partir desta abertura de significação, o quarto sermão tematizará seu discurso. Revela-se a encarnação em seu mistério. O amor de Cristo conjuga homem e divina instância posto que é em si mesmo “união dobrada, um modo de estar recíproco” (IV, 417). Na união estão cojogados os duplos. No amor, dramatiza-se alteridade impressa nos homens e em Deus mesmo. Todo o percurso de Cristo, da manjedoura ao Gólgota, entre o cenáculo e o horto, projeta variações de um tema fundamental: a indissociabilidade dos contrários para que estes mesmos, em sua tensão, apresentem como se efetiva o sentido em sua facticidade. O mito narra a si mesmo como metalinguagem da criação. A totalidade da paixão de Cristo transmuta-se em 126

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visagem da irreversibilidade da simpatia no processo cisionário de sua efetivação. Chega-se, então, à teleologia invertida da encarnação: o aproximar Deus do homem serviu para dignificar o mesmo homem, recuperá-lo, despertá-lo para sua vocação de alteridade. Diz Vieira: “encarnaste para estar conosco” (IV, 415), demonstrando a nossa máxima humanidade na sagração dos excessos da finitude, por um Deus que morre. Mas toda esta aproximação, no extremo de seu rigor, só faz vigorar o extremo, o intervalo. A maior simpatia não suprime as diferenças, antes as repõe, agora reorientadas, não submetidas aos vínculos de referenciações absolutas. O amor só fundamenta o diferencial da diferença. É o que se encontra no quinto sermão do Mandato. Utilizando paradoxos que rompem com o nível imediato das significações, Vieira postula que, para Cristo, “era mais forte no seu coração o amor dos homens que o amor ao Padre” (VI, 457). Com estes e por estes teve de plasmar e plasmar-se, existindo na maleabilidade de sua destinação impessoal e dramática. Cristo aprende com os homens a ser Deus e a ser mais divino posto que compreende e assimila o limite como fator sobredeterminante à fundação das coisas, à criação. A sua máxima humanidade dignifica seu poder. Pratica a alteridade inerente a sua existência originante. O amor de Cristo pelos homens revela o intervalo que sustenta a origem: para ser original é preciso ser originário, efetivar a finitude na possibilidade e a circunscrição do possível. Recebe-se, com isto, uma experiência de sentido da simpatia que não está relacionada com a exclusividade de seu nível elementar, nem com a generalidade de sua vocação totalitária. O diferencial da diferença que, medeado pelo amor, prolifera em mais humanidade para os homens e em mais divindade para Cristo, configura-se neste emblema significante: “o amor na ausência do que ama, alonga-se” (IV, 462). Amar por amar, amar sem objeto, amar sem objetivo senão o de amar, amar para SEGUNDA PARTE AMOR E MORTE EM OS SERMÕES DO MANDATO, DE PE. A. VIEIRA

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revelar diferenças na medida em que o processo mesmo presente na variação e na multiplicidade é dramatizado. O amor de Cristo, o mandato, é o horizonte originário da alteridade, criando, da fratura, na finitude, abrindo-se para proporcionar diferenças. O sexto sermão é o epílogo do ciclo. Difunde o intervalo que o amor infunde. Inicia-se com uma pergunta e uma constatação: “este é aquele mistério ou enigma grande do amor [...] Mas se nos ama, como se parte, se nos ama como se aparta de nós?” (V, 1). Neste verdadeiro Leitmotif, que transpassa o ciclo inteiro, “o amor do que se ama prova-se pelo amor do que deixa” (V, 8). Ou seja, “o maior extremo do amor de Cristo para conosco foi o ausentar-se” (V, 2) – a empatia encontra em sua finitude a ausência, e, na ausência, sua específica facticidade. O amor doa o intervalo. Neste deixar-se-conosco-em-ausência (V, 12), o amor imageticamente depõe sua simbólica cronotopia. Chocam-se as ordens do real e do símbolo: “o amor naturalmente une, mas se é excessivo, divide” (V, 4). A ausência é a eclosão da excessividade. Na ruptura com a imediata atadura, a irrupção dos despojos coalescentes. Daí “o apartar-se de nós foi amor sobre amor” (V, 15). Dignificando a alteridade, o possível sobre o possibilitado, este amor de Cristo remove, do exílio e da tanatofobia, a morte. Este é o excessivo que Cristo aponta – o possível no finito, o divino no homem. Tal ausência foi um arrancar-se, encenando, nesta dor, nesta violência, os signos da finitude – “tão violentamente se apartava Cristo dos homens que o apartar-se deles era arrancarse” (V, 16). Cristo se consagra por seu amor em revalorizar o aspecto finito do homem. Seu hiperbólico amor é um poema que assim reza: “nem morreu como o homem morre, nem se ausentou como os homens se ausentam porque não amou como os homens amam” (V, 1). Superou, com isto, “pelo amor a morte” (V, 21). Eros e Tânatos entretecem o mito e os ritos do 128

IMAGINAÇÃO E MORTE: ESTUDOS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FINITUDE

culto à primordialidade, à origem de tudo o que é ou existe – potência criativa da finitude. Este é o mandato do amor: representar, por meio da fenomenologia da empatia, a estrutura da criatividade que insufla o sensível. O culto instituído redistribui-se no mito construído. O ritmo alethopoiético em que se desdobra o ciclo dos sermões do Mandato, ao ser captado pela processualidade dramática do discurso de Vieira, configura-se como obra de conhecimento, por apreender as operações hermenêuticas envolvidas em seu evento de sentido. Somente um discurso comprometido com a verdade que almeja aprofundar pode fornecer o horizonte de sua tematização. Eis o duplo movimento do discurso de Vieira: complementarmente dispõe-se a problematização do representado e a problematização da representação mesma. Entre eles, medeando-os, o nexo tensivo da metaliguagem a respeito das disponibilidades de significar o que se apreende e o que compreende. Falar sobre alguma coisa só se torna possível na medida em que ambas, as palavras e as coisas, são sustentadas pela abertura fornecida pela atuação da criatividade, da origem no originado. Assim, temos uma poética da compreensão, não porque fala do entendimento, mas porque o discurso mesmo é a concretização de como, efetivamente, se conhece. Enfim, nesta estratégica operação constituidora de seus referentes, o discurso de Vieira não tematiza um saber prévio, mas discute a possibilidade mesma de algo ser compreendido, ao desenvolver a abertura e a finitude como meios de articulação de seu dizer. Em Vieira, o dizer não é nomear as coisas, na imediata conjunção do ser e do significar. O dizer é recuperar a primordialidade da expressão enquanto celebração e comemoração do sagrado.

SEGUNDA PARTE AMOR E MORTE EM OS SERMÕES DO MANDATO, DE PE. A. VIEIRA

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8. PEDRO PÁRAMO, DE JUAN RULFO1 A imaginação da morte nutre uma tradição criativa que, entre o espaço-tempo da antiguidade e o da modernidade, diversifica-se sem perder seu vigor. Pois, em realidade, o único existencialismo da finitude é o de sua possibilitação, de seu onirismo. O fenômeno-morte diversifica-se em razão de sua natureza fundante necessitar da dinâmica variacional que a sobredetermina. Entre os momentos dessa tradição criativa encontramse o contexto mexicano e a obra Pedro Páramo, de Juan Rulfo. A morte concretizou-se diferentemente no México – estranheza de apreensão para quem se esquece e não rememora o complexo satyricon, entrelaçamento de prantos rituais e cantos orgiásticos nos cultos imemoriais. No México, em dia de finados, a morte é comemorada com festa. Conjugam-se os díspares, rumando para uma integração de elementos considerados excludentes. As crianças, signo da eterna infância, da renascente vitalidade, brincam com caveirinhas de açúcar. Devora-se o termo terrível pela garganta que, escancarada, transmuta o engolido em risadas. Desfaz-se a amarga fatalidade nas doces imagens que se impregnam nos dentes e nos sorrisos. A rigidez e unidade da morte, frutos de nossa tanatofobia, são ultrapassados pelo agora alimento e índice de vida. Tragar a morte antes que ela nos trague, ou melhor, dispor-se à abertura que a finitude ratifica – eis as cifras desses costumes, que, ao desautomatizarem a imediata 1 Para o texto de Pedro Páramo, sigo tradução de Eliane Zagury (Paz e Terra, 1992). Ainda, sobre a cultura mexicana v. O labirinto da solidão, de Octávio Paz (Paz e Terra, 1984).

SEGUNDA PARTE PEDRO PÁRAMO, DE JUAN RULFO

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resposta frente ao limite maior de todos os limites, inauguram horizonte compreensivo para o mistério da finitude. Fiel a este emblema interpretativo que não vê na finitude um interdito ao sentir-pensar, é que se desenvolve a narrativa de Pedro Páramo. O livro não usa a morte como tema: entre o plano da enunciação e o plano do enunciado, entre o representado e o modo de sua representação não se encontra um filtro interpretativo, uma instância prévia hierarquizadora dos fatos narrados como se estes fossem alegorias de ditames morais e metafísicas. Antes, fala-se da morte, e esta fala é construída em correlação com o que se expressa. Molda-se, configura-se o fenômeno da finitude no limite das possibilidades da linguagem. Escreve-se, inscreve-se no seio da facticidade. Na verdade, habita-se a morte. Pedro Páramo concretiza a linguagem da finitude. Não se trata de metalinguagem, de suspensões do representado em prol de outro drama em outro palco – o de ideias e opiniões. Efetiva-se a finitude na linguagem de sua concretização. Atacando desde já tal efetivação, note-se como se estrutura o texto de Juan Rulfo. Ocorre a radicalização da descontinuidade narrativa que, avessa à linearidade do enredo – disposta em modelos causais de proposição dos eventos –, enfatiza cortes, montagens, sobreposições de cenas. A descontinuidade narrativa opera nos níveis mais diversos do livro. Os trechos do relato dispõem-se em fragmentos que vão construindo uma memória ritualmente despedaçada. A cada momento, presentificam-se instantes-processos de uma gesta, de uma destinação que sucumbe frente à atualidade de um passado que ocupa a maior parte da narrativa. Desdobra-se o relato na distensão de seu representado, difundindo uma história subterrânea que exsurge por sobre o narrado. A destinação é para a personagem só nomeada após Juan Preciado: ele deve ir em busca de seu pai, em Comala. Por ordem 132

IMAGINAÇÃO E MORTE: ESTUDOS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FINITUDE

de sua mãe, ordem dada por entre as suas mãos já mortas (9), irá ele atrás de Pedro Páramo. Conjugam-se a gesta, a recuperação de seu génos, com o espaço a ser enfrentado. O caminho faz-se no percurso, no espaço-tempo de sua revelação. Instala-se uma geografia mítica contemporânea à transviagem. Reverbera o sol, transluzindo o horizonte cinzento que o emoldura. É tempo da canícula de Agosto. O calor intensifica-se do mesmo modo como diversificam-se as trilhas e intercruzam-se os caminhos. Anda-se “sobre as brasas da terra, na própria boca do inferno” (11). Crescem as montanhas do ventre da terra, delineando “a mais remota lonjura” (10). Segue o caminhante tendo nos olhos as imagens presentes de sua catábase, que entram em contradição com as lembranças de sua mãe, ainda prenhes de uma região paradisíaca. “O caminho subia e descia” (10), eixos de orientação complementares para quem ruma além do horizonte comum da experiência humana. No povoado Los encuentros depara-se com um arrieiro que o acompanha no percurso, estranhamente também filho de Pedro Páramo. Guiando-o, o arrieiro informa que “Pedro Páramo já morreu há muitos anos” (12). Adensa a destinação do quase anônimo viajante nessa ordenança de uma morta para que se encontre um morto. O itinerário constrói-se por meio dos signos da finitude que, continuamente, efetivam a tautologia progressiva e diferenciadora da morte. À míngua, na lógica do menos, opera-se a coerência e a coesão de um imaginário da facticidade. Actancialmente, a narrativa, frente à morte do pai, culminaria seu processo investida do limite limitante do enredo. Contudo, já finada a genealogia, direciona-se o telos dessa transviagem na ratificação e diferenciação do que se assumiu na origem. A finitude é início, meio e fim de tudo. Fundamenta a trajetória do representado. SEGUNDA PARTE PEDRO PÁRAMO, DE JUAN RULFO

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Por isso, ao invés de voltar, o viajante aprofunda-se no desconhecido e bizarro de um caminhar sem razão ou porquê, aberto e disponível à gratuidade de uma outra destinação – a dramaturgia da finitude. Chega a Comala, “procurando alguém que não existe” (13), numa cidade povoada de mortos-vivos. As casas e as ruas vazias são expectadores dos passos ocos do viajante caindo nas calçadas: apenas se escutava o silêncio pesado e abafado como o ar dos que já não respiram. Entra na casa de Eduviges Dyada, habitante daquele entrelugar. A casa espraiava-se “em longa série de quartos escuros, que pareciam devastados” (14), crescendo diante da escuridão indevassável que nutria o lugar. Eduviges fora amiga da mãe do viajante. Ela recolhe-o no ventre do seu lar na primeira noite dele em Comala. Sua fala, que era como de “uma mulher louca” (15), assinala a consciência dos mortos e da própria morte. Cifra, em seu redemoinho de sons e imagens, que “tudo consiste em morrer, deus mediante, quando se quiser não quando ele dispuser”. Estreitam-se os laços entre a amiga falecida (nomeada agora como Doloritas) e a hospedeira ainda viva nessa consciência e receptividade à finitude ao afirmar, para o viajante que vai “alcançar sua mãe em algum dos caminhos da eternidade” (15), como também ao revelar seu desvelo por ele, considerando-o “como um filho” (15). Interrompe-se a narrativa em um conjunto de lembranças sem referência a que pertençam. São cenas formativas e constitutivas de uma infância, do momento auroral de uma vida, como se alguém estivesse nascendo por entre a parábola destinal do viajante. À imersão e agonia deste no universo mortal que o assimila comparece a vertigem inaugural e ascensional na atualidade de uma memória impressa em amores, chuvas, enterro e penitência. Volta a narrativa para seu instante pontual, para o diálogo entre a hospedeira. E assim vai a narrativa, em sua lógica de sobreposições, retomadas, cambaleante e sempre precisa. 134

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9. CANTIGAS DE ESPONSAIS E A CAUSA SECRETA, DE MACHADO DE ASSIS1 O conto Cantiga de esponsais tematiza a irreversibilidade na existência humana. Fragmentada a ordenação olímpica do que aparece e se expõe, resta-nos superar o ilusionismo do imediato em direção à complexidade do que possibilita a efetivação do evento. Um acontecer de sentido se pluraliza na compreensão do sentido de seu acontecer. Sob o eixo do tempo, tal diferença originária e originante, intervalo entre projeto e realização, é fundamentalmente intrínseca – nossa fatalidade no descontínuo. Romão Pires convive com a anábase enformadora e ruína daquilo que erigiu. Mestre Romão é músico. Excedia-se em vitalidade diante do público: “frente à orquestra, então a vida derramava-se: era outro” (387). Porém a questão do músico não estava no clarão intenso da breve aparição. O que se desvela não condiz com a singularidade do que se vela. Ele “rege música com o mesmo amor que empregaria se a missa fosse sua” (idem). Sobrevive no condicional e na simulação, experimenta a descontinuidade entre o querer saber e o efetivar. “Ah! Se mestre Romão pudesse seria um grande compositor”, o narrador nos informa. A plástica exterior choca-se com a arena vazia interior – casa sombria e nua. Revolvia-se na intimidade de Romão Pires a plasticidade originante das formas: “tinha a vocação íntima da música, trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais que não alcançava exprimir e pôr no papel” (387). 1 Para os textos de M. Assis, sigo Edição Nova Agullar, 1992, 3 vols. No caso aqui, os números em parêntesis informam página do volume II, dedicado aos contos.

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Anverso do possível é a melancolia – “olhos no chão, riso triste” (387). Perpassa mestre Romão sentimento de religação com a origem, com a proposição de um limiar para sua experiência interior. “A causa da melancolia de mestre Romão era não poder compor, não possuir o meio de traduzir o que sentia” (387). Imerso no ninho úmido das formas, na pura vivência do inexaurível, este o consumia. Em uma semiose indefinida, exteriorizava a ausência do horizonte. A sensibilidade indefiniuse no extremo de sua aporia. Faltava ao músico linguagem – medear a imanência do querer fazer no saber fazer: facticidade. Do idear ao conformar há o intervalo da experiência trágica da irrupção das diferenças. O canto esponsálico idealizado e não composto ajusta-se à melancolia de mestre Romão. Canto para a mulher, depoimento da empatia pelo outro, de sua possibilidade de se ‘ex-por’. A agonia da expressão é imageticamente traduzida por Machado de Assis nos movimentos do pássaro buscando transpor a gaiola (388). Na clausura do fiat não se dispõe da abertura modelizadora das origens – mestre Romão é liminaridade entre além-outro e descoberta da construtividade do ser. Não transcende porque não articula o existencialismo da experiência. A tentativa de rematar a obra, de tentar fixar no papel a “felicidade extinta” só confirma a tensão que o músico dramatiza – o irreversível tempo da vivência humana. A lúdica consagração ao acontecer no mundo preconiza a transcendência pela linguagem como forma de apreensão do diferencial das diferenças conquistadas neste processo mesmo de revelação. A desigualdade de situações e contextos assinala a irrupção do possível no seio do mundo. Contudo, a mesma pluralidade que exorta o perder ao diferido conclama a anuência da compreensão. O drama de mestre Romão é o da iniciação no insuflamento de valores criativos na existência, no qual o querer do querer recai na fatalidade abissal do excedente limitante de seu ser. 136

IMAGINAÇÃO E MORTE: ESTUDOS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FINITUDE

O remate da obra inacabada se duplica na “ilusão dos casadinhos” (389). Marca da irreversibilidade é este inacabamento sobredeterminante de todo projeto heurístico como encenação do conúbio dele com a mulher já morta. A ilusão só ratifica a fatalidade inerente à existência de João Romão: uma cantiga nunca composta, um outro nunca reencontrado e, medeando o fragmentar do mundo, o dispor-se na indisposição, a melancolia. Por fim, a própria morte. O objeto de desejo transmuta-se em prévia instância cisionário do ser, tempo de origens – visagem da diferenciação. A canção que não se compõe propõe sua eterna retomada e insucesso. A vida mesma se fecunda dessa tensão ambivalente na qual João Romão experimenta a desconstrutividade de seu querer. A cadência interrompida se avoluma mais na adequação ao amplexo de sua finitização. Não será este o drama da criação – a intransitividade da expressão como revelação do possível? Eis o sentido do acontecer em sua irreversibilidade: a impossibilidade, no seio do virtual, da unificação e repetição não enriquecedora. A irreversibilidade é a diferença em sua dramatização, impossibilidade última que limita o impossível. Na experiência estética do escrever, soçobra autor e difunde-se a obra. Morto João Romão, como a consorte, viva está a cantiga de esponsais na ilusão dos casadinhos. Na experiência criadora, desdobra-se o diferir na dialética do mesmo e outro, descontinuidade fática de todo projeto heurístico. O possível nos possibilita o impossível. A Causa secreta narra uma revelação, uma descoberta. Busca-se compreender “o coração como um poço de mistérios” (513). O que transparece é o mistério mesmo dessa revelação, o incompreensível acontecer do mais profundo da sensibilidade. O coração humano explica-se em sua excessiva demonstração ambivalente de afetos. O fundamento da sensibilidade é o inexaurível diferenciar-se frente ao próprio limite que SEGUNDA PARTE CANTIGAS DE ESPONSAIS E A CAUSA SECRETA, DE MACHADO DE ASSIS10

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consigna, no mais profundo do homem, a razão converter-se em ruína. Personagem desse teatro das paixões é Fortunato. Olhos rígidos e frios (514), na possessão incessante de um frêmito decifrador, ele era “um singular homem” (514). A marca da singularidade lança-o como símbolo, vazio sobredeterminador do que aparece sendo mais do que é. Projetado na ortogonalidade do indimensionável, é Fortunato quem pode e possibilita a irrupção do mistério. Miragem no enigma e cifragem da vertigem se acoplam na destinação (fortuna) rumo ao desconhecido. De seu específico destino, sua atribuição: “possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar nas camadas morais até apalpar o segredo de um organismo” (514). Com isso, Fortunato une a vontade de saber e a razão de querer num amplexo metagenético – catábase em que racionalidade e sensibilidade se correlacionam em uma instância superior, um pensar-sentir comprometido com o desvelamento do sentido do homem. Tal saber de saber, conhecimento inaudito é acompanhado de um pathos. O incremento da atividade investigativa, expressa na cadência entranhada de ações escrutinadoras, traduz-se na amplitude simpática do sentir. Cessa, pois, Fortunato de curar. Seu objetivo é ir ao extremo dessa arquiviagem rumo aos limites do ser, ultrapassando o misterioso para usufruir do indecifrável. Passou a estudar as enfermidades, adentrar na câmara laboratorial do que insufla a origem de tudo. Imagem-cênica disto é o despedaçamento ritual do rato, torturado até a morte. O vagar da pulsão aniquiladora é digerido no sorriso de Fortunato, que expressava no rosto “a delícia íntima das sensações supremas” (516). O rato, mais morto

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que vivo, encena a oblação ao absoluto, limiar do mais oculto. O sabor desse saber vertiginoso inaugura a incorporação do voraz. A razão transmuta-se em pathos, patologia, e busca o seu vigor. Empreender a procura do horizonte explicativo das coisas transmuta-se em desmesurada experimentação do caos. O querer construir o sentido é acompanhado da aleatoriedade intrínseca a seu projeto. A sensação de prazer que Fortunato encontra em seu ofício questionante é a causa secreta, é o segredo do homem que só a dor alheia pode dar. Imenso prazer na profunda dor do outro – plano intersubjetivo da recepção acausal do dilacerante. Passagem. Metamorfose. A tortura consiste em extrema agonia, ir ao limite do suportável. Dilatar o horizonte do sensível no realce a sua possibilidade de sorver o máximo de seu contrário. O frágil equilibra-se na precariedade de sua disponibilidade. Encontro de viés. Maria Luísa, a esposa (lux in tenebris) amplia ainda mais o teatro das paixões que é a destinação trágica de Fortunato. Como cônjuge e antípoda, ela consuma a distensão trágica do projeto do esposo. O casal é a potenciação do duplo, já avistada na reversibilidade dos contrários que a consorte preconiza. Não há a fisiognomia dilacerante da violenta atividade de Fortunato sem a questão da alteridade. Ele precisa do não eu, do além-outro para cumprir seu projeto percurso rumo ao coração humano em sua profundidade. A dor que não é sua e o o prazer que lhe pertence emolduram o drama do diferir no seio da alteridade. A intensidade que os contrários proporcionam em sua diversificação e abrangência só se efetiva na coexistência do mesmo e do outro – vazio dimensionante. Como antípoda, Maria Luísa, “esbelta, airosa, olhos meigos e submissa...criatura nervosa e frágil” (514-515), é experiência de amor e de análise. Sua “decomposição lenta e dolorosa” é assimilada pelo marido, ele consumindo a dor alheia. A agonia SEGUNDA PARTE CANTIGAS DE ESPONSAIS E A CAUSA SECRETA, DE MACHADO DE ASSIS10

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dela sustenta-o, bem como a tristeza e profunda dor de Garcia, amigo e admirador da finada. Desse último, Fortunato saboreou tranquilo a explosão de dor moral que “foi longa muito longa deliciosamente longa” (519). A gradação intensiva final impõe a encenação de A causa secreta: o acontecer do sentido humano é antes dramatizado na estrutura da sensibilidade, convertendo tudo e qualquer possível explicação unívoca em evento plural das diferenças. Esta é a boa fortuna que incorpora a simultaneidade do saber e de sua negatividade. Toda intenção soçobra em sua suspensão. Longa, muito longa, deliciosamente longa é a imagem da coexistência do ‘causar’, ‘afetar’. Tal é a imanência de todo projeto e experiência, tal é a fenomenologia do querer saber, instância pressupositiva do conhecimento. A dor real do outro conjuga-se ao prazer imaginado, no instante do cessar da unidirecionalidade teleológica de uma razão, fazendo vigorar os rendimentos hermenêuticos de um querer saber que é saber o sensível. Como vemos em Machado, a morte é representada como despotenciação, mas uma despotenciação que em sua negatividade ainda produz atos e efeitos.

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10. IMPRESSÕES DO CREPÚSCULO, DE FERNANDO PESSOA1 Pauis de roçarem ânsias pela minh’alma em ouro... Dobre longínquo de Outros Sinos... Empalidece o louro Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minh’alma... Tão sempre a mesma, a Hora!... Balouçar de cimos de palma!... Silêncio que as folhas fitam em nós... Outono delgado Dum canto de vaga ave... Azul esquecido em estagnado... Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora! Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora! Estendo as mãos para além, mas ao estendê-las já vejo Que não é aquilo que quero aquilo que desejo... Címbalos de Imperfeição... Ó tão antiguidade A hora expulsa de si-Tempo! Onda de recuo que invade O meu abandonar-me a mim próprio até desfalecer, E recordar tanto o Eu presente que me sinto esquecer!... Fluido de auréola, transparente de Foi, oco de ter-se... O Mistério sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o não conter-se... A sentinela é hirta – a lança que finca no chão É mais alta do que ela... Para que é tudo isto... Dia chão... Trepadeiras de despropósito lambendo de Hora os Aléns... Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro... Fanfarras de ópios de silêncios futuros... Longes trens... Portões vistos longe... através de árvores... tão de ferro!

De que nos falam os poetas, se é que falam de algo e a nós se remetem? Seu nomear, o que desencadeia? Que evento inauguram? 1 Sigo texto do poema, em Fernando Pessoa, Obra poética e em prosa. Porto: Lelo, 1986. v. I, 164.

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Com o poema Impressões de crepúsculo, somos tomados de tais interrogações. A dinâmica das imagens nos oferece um diálogo, abertura ao questionamento de nossa relação poética com o mundo por meio da linguagem. Impressões – efeitos na sensibilidade, linguagem muda de um drama estático que acolhe as reverberações e ressonâncias do acontecimento de sentido não indexado à sua pontual fenomenologia; realidade que se equilibra em seu desaparecer; desabsolutização de sua instância predicativa; aparição que suplanta a referencialidade de uma ocorrência. Crepúsculo – Fim. Somente fim? Limite, horizonte de um dia, mas em convivência com o mesmo dia. Teatro de cores, estrelaçamento de sombras e luz. Cadência emergente de um acaso, ventre esdrúxulo na cópula do porvir. Impressões do crepúsculo nos poderia mostrar um dia moribundo, um observador privilegiado diante de um cenário objetivo de cores e relevos? A predisposição naturalística, que confina o nomear poético à mera reprodução do visto, encontra sua falência perante a articulação pessoana nesse poema. A catástrofe do dia é reelaborada metaforicamente por uma sensibilidade que almeja encontrar o verbo consoante com experiências mais fundamentais. Objetivamente, a lógica das imagens em suas inesperadas combinações e contradições significantes é que prepondera sobre a simples valorização do já existente. O pôr do sol é incorporado por meio de um processo que não se substancializa nos meros dados anteriores à sua verbalização poética. O crepúsculo é o do poema, é o poema mesmo. Uma alma, uma “alma em ouro” (v. 1) rivaliza-se com outra alma na qual “corre um frio carnal” (v. 3), em apreensão do que dista do visto. Tal aspecto ambivalente, porém, se dilacera e converge para a “tão sempre a mesma, a Hora” (v. 4). Essa hora que é outra hora, “dobre longínquo de Outros Sinos” (v. 2), 142

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é o tempo, é horizonte que dá a dimensão fundadora para que esta alma tome plenamente contato com sua verdade. Entre luz e sombra, a alma rememora, para além do jogo sinestético de cores e vislumbres, o alhumbramento da indiferenciada presença do além-outro, tempo-vetor de um desvanecer que mais aparece em seu findar-se, movimento sem movimento na entreabertura mediadora na qual os contrários encaminham o ritmo oscilatório de um evento primordial. Na distância desmesurada está a memória dos acólitos do ser, dos que recebem os efeitos de uma realidade inexaurível. E a voz que canta o sagrado ritual é uma voz que busca. O poeta aspira por essa “outra coisa”, “anseia colocar garras na Hora” (v. 7). Incontrolavelmente disperso e irreversivelmente motivado a isto, “estende as mãos para além” (9). Que além é este, que longínqua solicitação nominada à qual o pacto se converte ao encalço de sua própria possessão? O conectivo ‘mas’ introduz a catástrofe, a ruína do desejar frente às pretenções do obter. A solicitação esvai-se entre as flutuações do querer. Não só o desejar se vê arremetido às abismáticas indulgências da queda, mas o objeto do querer ele mesmo é ofuscante e vário. Pois, ao estender as mãos, afirma o poeta que “já vejo/que não é aquilo que quero aquilo que desejo” (8-9). Será o desejo tão amplo que não se concretize? Será o bemquerido tão vigoroso que não se pode dele se apoderar? Na indimensionada distância só se experimenta o confronto dos contrários em sua indiferenciada processualidade; nessa outra hora buscada, só ecos, efeitos, impressões. Tempo de um futuro, que é representação de lugar nenhum, tempo da imaginação, momento de uma “oh tão antiguidade” (11). Passado feito presente, ausência que nos remete para os confins, limite-liminar de um acontecimento primordial.

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A contradição temporal que se avulta mais na reminescência do que dista, fecunda-se de uma “hora expulsa de si-Tempo” (12). Um momento não sequenciado, simultâneo à instantaneidade de um fim e de um prescrutar – uma lembrança e um sonho. O poeta busca a ineuxarível transfinitude do mais além, definindo sua personalidade mesma. O drama do mundo só existe para o homem desse mundo. Os ecos da origem, pulsantes na descontinuidade das mensagens e imagens de um caos criativo, incessantemente disposto no jogo ambivalente do tempo multiestratificado, reverberam no seu naufrágio vivo. O poema mesmo está num abandonar-se, num “abandonar-se, a mim até desfalacer” (13). O percurso de transviagem, que é a visagem da imemorial plasticidade, encrusta-se no seu ser. Ao mundo que soçobra, temos o homem que desfalece, sob o mesmo horizonte temporal do além outra hora. Fica ele a “recordar tanto o Eu presente que me sinto a esquecer” (14). Que memória aberrante! Lembrança que se ofusca perante o esquecer, reminiscência que se encaminha para o nada! Fundem-se homem e mundo, crepúsculo e impressões. O poeta é “fluído de auréola, transparente de foi, oco de ter-se” (v. 15). Como o crepúsculo (“outono delgado”, “trigo na cinza do poente”, “canto de vaga ave”, “azul estagnado” (.2 -.6), a voz do poeta nos fala de uma ruína diante do mistério que funda e dá vigor a tudo o que existe. A realidade não mais encontra apoio firme nas coisas e nos seres. Ambos estão sob o horizonte tensivo da contradição, uma vida que sobrevive no desfazer-se, na perene manifestação de um acontecimento final e limitante. As coisas e os seres nos arregimentam para o ritmo oscilante do ser e do não ser. Sobeja e excede-se, contudo, o findar-se. O que resulta é a premência de um vazio, uma vacuidade que sustenta o diálogo entre homem e mundo. Caos no mundo, caos no homem: reticências, silêncio. 144

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De que nos falam os poetas? Nada: a poesia rememora em seu canto a experiência ritual do acontecimento fundador que mais nos solicita a atenção e motiva a existência: a realidade é ineuxaurível. Impressões do crepúsculo expõe a linguagem que circunscreve nossas origens: o limite, a finitude, o horizonte pelo possível, pelo virtualizado. Daí a contradição – a co-ocorrência de um tempo que nunca cessa de terminar, uma vida que nunca cessa de morrer, assim como um crepúsculo só o é entre luz e sombras, e impressões só o são na pluraridade de sua abertura. Esse é o poema: tempo das origens que dramatizam o modo como autenticamente vivemos. A mitopoética em torno das imagens da finitude renova seu vocabulário e suas formas.

SEGUNDA PARTE IMPRESSÕES DO CREPÚSCULO, DE FERNANDO PESSOA

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11. O IMAGINÁRIO AGÔNICO EM LÉGUAS DA PROMISSÃO, DE ADONIAS FILHO1 Não seriam a busca e a viagem correlatos propósitos do homem na ânsia de se ultrapassar? As metáforas da morte configuram o imaginário de Léguas da promissão, de Adonias Filho, conjunto de narrativas que diversificam a topologia do ser em transcendência. Contudo, tal liminaridade – visagem do outro, do mais, do excesso – realiza-se como apelo às origens, iluminação dos fundamentos do existir. Para Adonias Filho, a ultrapassagem, o pôr-se-em-caminho, a busca do outro-que-não-eu dramatiza o conhecimento mesmo desse ‘eu’, desse pontual instante de uma decisão, impulso à prática, o primeiro passo: ir mais além é compreender o horizonte que permite ver. A transcendência não é superação abstrata do que meramente foi, mas a articulação da própria imanência tornada, agora, matéria plástica do destino. Por isso, a terra. No prólogo geral do livro, anuncia-se a viagem de alguém para outra região, território íngreme, rude e perigoso, espaço selvagem, encantado, com homens mais que homens porque feras, um mundo fechado dentro de sua primitividade, no qual “não havia céu nas funduras das brenhas” (2).2 A partir do prólogo, que evidencia a ambiência telúrica do livro, temos seis episódios, seis aspectos da vida em sua agônica presença. O primeiro episódio, Imboti narra uma das variações do tema da finitude: os mortos afligem os vivos. Velados, vigílias 1 Sigo texto Léguas da Promissão. São Paulo: Difel, 1982. 2 Neste tópico, o número em parêntesis refere-se à página da obra, na edição supracitada.

SEGUNDA PARTE O IMAGINÁRIO AGÔNICO EM LÉGUAS DA PROMISSÃO, DE ADONIAS FILHO

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do mistério e da agonia, os mortos são imagens que produzem a vontade dos vivos. Num mundo em que “o céu virou chão, pés de homens esmagando as estrelas” (5), inverte-se a perspectiva que prolonga diferenciações estanques, subverte-se a lógica da verossimilhança, direcionando-se o viver para o impensado. Deve-se “enxergar a sepultura, flores selvagens cercando, uma criatura de tão viva” (7). O olhar que vê a interpenetração da ausência e da presença recai na sobrevalorização da terra. Passa-se do cosmo conceitualmente apreendido em sua estaticidade olímpica e inatingível para a tensiva e dramática manipulação cotidiana da sensibilidade. Nesse compromisso com a diferença, com o enriquecimento da experiência pelas mais diversas imagens, “tudo [...] tinha valor de gente: a terra, as plantas, o fogo” (6), um mundo fecundado pela destinação trágica do homem, onde “morrer é como nascer, um serviço da natureza” (13). A mais preciosa dádiva dessa terra, desse “território no território” (9) – metalinguagem do limite explicando-se pelo limite, a morte explicando o existir –, é Imboti, a mulher que exala vida (12). Tudo aconteceu há muito tempo (12-13), prenúncio mítico da temporalidade hiperbólica da excessiva fundação de tudo o que é ou existe. Imboti condensa tal legado. A ela convergem os vetores e os rituais. Imboti é o fruto da terra que alumia as origens. É rosa e “a rosa vive pouco” (15), floração frágil do nada, espelho indiviso do telúrico. No pouco, porém, temos a demonstração da ultrapassagem: “Imboti é tudo o que existe” (17), pois tudo o que existe é como Imboti. Ela é a metáfora axiomática do mundo, encena a interpretação do nexo que sustenta o vário e díspar acontecer da existência. A rosa que vive pouco, fruto da terra, imagem da vida, configura essa mesma existência marcada na durabilidade intensiva por uma cisão no seio do ser. Entreaberta exposta, a flor denuncia que todo o ser é um resolver-se ao que se é: súbito 148

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evento que se apossa de um delimitante, vertigem inaugural do tempo pela véspera da antecipação – mito. Morta a mulher, resta o sacrifício primordial que ritualiza as razões e o sentido da terra. A festa na tribo, onde se comenta o fato antigo e se relembram as figuras do imaginário, não passa da atualização do que originou a vida, pois explicita o próprio vigor. O pôr-se-em-caminho não passa da revelação do que doa o caminhar. O que há é a “viagem sem prazo” (26), a vereda rumo à possibilidade mesma de trânsito, nossa eternidade e redenção. O movimento não se indiferencia na rota inconsciente de uma destinação linear. É preciso problematizar o impulso que permite o próprio partir. Partir, sair de si, conquista do outro. Morta a mulher, efetiva-se a virtualidade do caminhar. A trilha é a reencarnação desse sacrifício, sagrado laço que transforma a terra no corpo da mulher – corpo morto, terra como finitude. Essa é a terra: mortos afligindo os vivos, propugnando a potência do destino na pulsão da finitude. O homem só acresce seu ser quando compreende os limites inerentes ao existir. Terra, mulher e flor – ciclo da eterna presença pela ausência. “É o mesmo sangue em outro coração” (26): é preciso reviver Imboti, porque tudo recomeça (31), porque o todo é uma cisão como a frágil flor, primeva floração e circunferência. No episódio seguinte, O pai, tematiza-se a morte viva nas imagens, repercutindo na lei do sangue, fluxo vital que doa não só a continuidade, como a intensidade e o vigor da presença. Os ausentes não só interferem no real: eles o recriam. Morto o pai, dá-se a partilha, a propriedade para os filhos. Porém, o que estes possuem além do totem familiar? E o que mais podem repartir e comungar senão as lembranças? Sim, o pai “possuía o coração diferente de todos os homens” (37), era “tão animal quanto os cavalos” (36), fora “a única voz” (36), enfim, “estava em tudo o pai” (38). SEGUNDA PARTE O IMAGINÁRIO AGÔNICO EM LÉGUAS DA PROMISSÃO, DE ADONIAS FILHO

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Essas totalidade e abrangência constituem-se na interpretação do drama telúrico ao qual teriam de se iniciar os filhos após a partilha, após a ausência do pai. Sem ele, “era como se faltasse um pedaço de nós mesmos” (43). Em que se iniciam os filhos? No enfrentamento da existência em sua amplitude: “assim como toda terra tem seu homem, todo homem tem a sua terra” (39). Para a vida não basta somente o homem, é preciso ter mundo. Cotidiano esforço de assimilar as diferenças no conflito incessante entre o mesmo e o outro. Homem e mundo cojogados na imanência de um projeto que os enlaça e tece o destino. Neste processo, inaugura-se a vida, no irresistível convite ao descobrimento pelo padecimento – instância mítica na qual se acolhe o outro na ruptura que o sensível experimenta. É o reevio à experiência que a finitude ensina. Qual era, pois, o mundo do pai? Era o dos cavalos, aspereza selvagem e vibrante, vigorosa na pulsão vital. O “pai gostaria de ver os cavalos” (43), reminiscência que configura o nexo do homem desse mundo. Viver por eles, os cavalos, e por eles morrer: condição de existência, vida e morte. O pai, o progenitor, a raiz, viverá e morrerá pelos cavalos. Fundindo-se com a violência indômita de seu mundo, qualifica-se a “escolher a própria morte” (53), enterrandose no mais profundo da terra, tendo os cavalos por cima, pisando o chão (53). Habita o alto e o baixo numa perenidade conflitiva, que só inunda o universo com os signos da mortalidade. Esse é o pai e o homem – excessiva demonstração do inexaurível telúrico. Em sua singularidade, “ninguém superara o pai” (50). Mortal, o homem sob a terra, e sobre a terra a escolha de seu destino. Ele dispõe-se no conhecimento da vertical abissalidade do mundo. Os filhos, continuando seu trabalho (53), reafirmam os frutos do circuito genescatológico (inícios e fins) encenado 150

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pelo pai, ontogenética do telúrico na qual se vive a morte do outro no intercâmbio dos diferidos. Acima e antes de qualquer possibilidade, o limitante – a terra por sobre os que se perpetuam na primitividade vigorosa do deixar-nos órfãos, a terra sob os olhos que não veem mais que as profundezas. Em tudo e todos, o pai – fundamento sem substância que sustenta o mundo, drama primordial no qual os inícios e os fins se articulam na morte do prius. Terra e morte. Da terra são os pássaros; e vivem para findarem-se no seio do profundo, derradeiro ninho. A olímpica propulsão urânica se perfaz e se totaliza na catábase extrema da pulsão telúrica. É o canto de O túmulo das aves, terceiro episódio. As aves identificam-se com os homens, pois também morrem (57). Riscam o céu de todas as cores na esvoaçante abrangência do espectro do mundo. Vinham de longe e voavam muito alto, modelando os confins do território, agouros sob asas que, em sua indefinição de contornos, denunciam as fronteiras do conhecido e o limiar do perturbável. Voando no céu, colorindo-o pelo silêncio de sua variedade, as aves propugnavam um êxtase aos homens (64), êxtase somente semelhante ao desfalecer que todo arrebatamento místico concretiza, cindindo tempo e vida. Céu e terra aproximam-se, pois, nos ritos da finitude; as quadraturas mais dilatadas se encontram na lei mortal que perpassa as criaturas. “Morrem as árvores, os pássaros e os homens” (64): essa é a lei das tábuas não escritas, grafadas no chão dos seres e nos céus dos pássaros. Como princípio cosmogônico, temos a potência da finitude. Por isso “as aves não podem perder o túmulo” (68). A imensidão indiferenciada dos céus, plasmada no voo de liberdade e nas asas multicores, reivindica a evocação do sortilégio telúrico. Transcender é morrer, acolher o outro mais longínquo em nós, que é a própria morte. SEGUNDA PARTE O IMAGINÁRIO AGÔNICO EM LÉGUAS DA PROMISSÃO, DE ADONIAS FILHO

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Ameaçado está o túmulo das aves. Um velho muito velho, sabedor de sua morte (67), um menino e um assassino são os guardiões. O velho lança-se ao ninho, o menino assiste, e o matador transforma em serenidade a fúria dos homens que não creem nos mistérios da vida (73). Eis as três idades do homem a compactuarem com a consagração do tabernáculo das criaturas. É preciso garantir o túmulo e, desse modo, as aves. Elas são “um território no céu” (76), “planície em viagem” (76), alento básico insuflador do ânimo do mundo. Criavam o vento (76), foz/nutriz do ponto futuro da terra. As aves concretizam a transcendência em sua articulação com o túmulo – sepulcros encravados no chão, aves riscando os ares. O íngreme da terra e sua violência, esse inferno liminar que se vive na pulsão tanática – o que nos pode oferecer? O amor. É o que Um anjo mau anuncia. No interior do território, em seu núcleo, o viver lutando, inesgotável conflito da “carne saindo da carne” (84). Tal ritmo persecutório, no qual o mesmo-uno-unificante é, aparentemente, o coração bruto, apenas explicita um dos aspectos da finitude em seu vigor. A cadência do mal, a exasperação destruidora dos limites, a incansável expansão da intensidade fatal só se verifica como eidos da ultrapassagem. Busca-se, pela mortandade, não aplacar, e sim dilatar o coração bruto em seu mais querer. O mal se ofusca na irrupção de seu telos. Surge então Açucena, a docilidade errática, o intervalo mantenedor das diferenças e precursor do limiar – o além do fim do caminho e do migrar. O amor cria a vida (102). O repertório variado da violência encontra seu sentido na mulher: “Açucena ganhara a guerra”, inaugurando o céu para a terra. Transforma a cega vertigem da imanência na significância dessa proliferação. O conflito “era uma guerra de amor” (110). Nas funduras do território, ao se desvelarem as entranhas do mundo tomado pelo mal, revela-se que “não adianta o ódio” (102). É preciso 152

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voltar do caminho (101) para melhor avistar a verdadeira encruzilhada – ‘arquimaquia’. A “raça nova” (101) se compõe: a mulher e seu homem – “forte e livre, quase um anjo” (95), “gigante inocente como o seu filho morto. Juntos, dois e um, o homem mais a mulher” (110). O genos primordial consagra o milagre da redenção pela potenciação do duplo. Ela a nutri-lo, mulher-mãe-amante. Nesse conúbio, “ele merece o céu” (109) e “a mulher vale a vida” (107). O doce acolhimento que a imanência persegue na paixão de sua agonia abunda em alteridade. O sangue doa a entreabertura mediadora que o define – o corpo transige nos ritos da excedência. A interrupção no seio do ciclo da finitude impede que se divise a linearidade do processo. Açucena acena para a contradição fundadora que purga o cruento em sua raiz: catarse da morte na vida que se renova. Destrói-se a ilusão referencial da sequência. O conflito mortal, a existência humana em sua facticidade, delinea-se no limiar do amor que demonstra ser o destino, princípio e fim, a simpatia diferencial do coração telúrico – mel da terra, transcendência na imanência. Anjo mau é mais que uma trama imagética de contrários imersos em sua oposição; é mais que a fusão dos diferidos – é a transmutação para algo que não se afirma no sintagma do título do relato, mas que se prediz no nexo. No penúltimo texto, O rei, observamos que entre o céu e a terra não dista menos a visão que o questionamento. “O possível e impossível, homens e bichos amarrados pela dureza da vida” (117) um dia despertam. Rasga-se o azul urânico na eventualidade última de nossa salvação. “Este é o começo” (113) – a violência imemorial não mais dos homens do território, mas da terra inteira afligida pelo céu, é o que testemunha o velho mais velho (114-118), a origem. “O gavião veio como a flecha, cortando o ar” (117), rasgando o que há acima de nossas cabeças. Desce e mata “com suas forças do inferno” (119), mata os frutos da terra, o menino SEGUNDA PARTE O IMAGINÁRIO AGÔNICO EM LÉGUAS DA PROMISSÃO, DE ADONIAS FILHO

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(119) e a cobra (118). E voa, rodando os ares, veloz e belo, muito alto [...] sem medo do vento [...] o círculo amplo (115). O gavião “é o rei dessas léguas” (119); conhecedor de todos os caminhos, “conquistava a liberdade” (120). Mas o que deseja o ilimitado, o extremo perdurar do inatingível? Matar e morrer. Este é o emblema do além – a finitude desce do céu à terra com fome de sangue. Vive o urânico a morte do telúrico. As brenhas são o ninho dos céus. A liberdade circunscreve-se ao derredor do limite. Modela-se o excesso na plástica da finitude. Eis a redenção: descer à terra, sorver seu líquido espesso, matar e morrer. O impossível equilibra-se em uma vida pela morte. Cai o Gavião rodando, no espaço, sem vida (121). No último relato, Simoa, uma mítica geografia: “muito para dentro, quase na fronteira” há o reino (125), governado pelas imagens dos deuses, na antiguidade imemorial de sua visagem. Nas profundezas e no limiar, o reino se consagra ao culto da transcendência, ao desejo maior da ‘sobre-humanidade’. Simoa é o totem de sua tribo, rainha dessa terra. “Dona dos caminhos, brincando nos terreiros, força no olhar” (134), ela guiará seu povo para a redenção e o “destino estava na fronteira” (138). Simoa é a “filha mandada” (135), envio de outrora; “falava pouco, sempre em silêncio” (134), “os olhos nas estrelas do lado do mar” (134). Estranha, entranhada em sua singularidade, ela é o numinoso mistério do extremo, “concha, concha de pedra” (134). Levando o povo para a vida, levava-os para a morte. A fronteira buscada era o “lado morto do território” (129). Lá, em um lugar “quase de pedra no chão, vingavam os cactos de espinhos, a chuva não descia” (129). A fronteira imitava um “deserto – sem plantas, sem água, sem vida” (143). Para redimi-los do sortilégio fatal, do ciclo fatídico intermitente, Simoa precisava de Naro, o guia na selva. Lutavam antes contra seu oposto, os caçadores, e deles precisavam agora 154

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para se libertar. Naro é, pois, configuração necessária para a destinação. Transforma o contrário em complementar, o caminho da morte em trilha da vida. Ser da origem, “ninguém jamais amou a madrugada como ele [...] talvez o grande silêncio, estrelas sumindo do céu, hora em que o mundo parecia nascer” (131). Fantástico em sua presença (132), “o branco é a sua cor, habita no monte mais alto para ver o povo” (132). Só o conúbio Simoa/Naro totaliza a mensagem oriunda da subversão da lei da caça e da guerra. Pelo amor interrompe-se o ciclo da mortandade. Naro, o príncipe dos caçadores, despede-se de seu pai, pois “o coração já era negro” (140). Busca aquela que é linda “como as próprias trevas” (140). Une-se à filha dos que “se libertaram pela morte, a luta suicida antes da retirada” (128) com o filho dos assassinos, filho branco e louro das selvas: desumanidades prenunciadores de uma nova era – ela, “impossível tomá-la como mulher, não pulsava em seu peito um coração de gente” (134); ele, porção escolhida dos homens-feras, “bichos aqueles homens” (139). A fronteira era a própria morte: “o céu muito alto, as estrelas pequenas, fechado nas trevas o espaço sem fim” (144), o caminho íngreme, poços vazios, seco o rio. Mas o feminino é o sentido da caminhada. Simoa, “dona das vidas e das mortes” (144), exclama: “é preciso suportar a provação para que venham as águas” (144). A fronteira é liminar. O olhar convertido em símbolo vê, sob a terra seca, o mar infindo: “isso aqui já foi o fundo do mar” (143). Sob a patência imediata da aflição, o vigor latente do refrigério. Suportar é padecer da iminência da transformação. A um só tempo e num só espaço, os rendimentos do virtual. Então o patente se revela e desvela o sagrado – irrompe o maravilhoso no mundo. A travessia encontra seu termo e sua complementação. Simoa “mostrou o chão...andou com ele (Naro) abrindo passagem entre os negros. Recuaram todos permitindo SEGUNDA PARTE O IMAGINÁRIO AGÔNICO EM LÉGUAS DA PROMISSÃO, DE ADONIAS FILHO

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que ela fizesse a estrada. E, debaixo dos seus pés, onde pisava, a água nascia, nascia doce, como se viesse de Oxum” (147). O olhar cosmogônico de Simoa concretiza o ausente. As águas do mundo, a promessa de libertação, avistam-se no brotar do mais escondido. Mais que o absurdo, o clima do destino na excessividade que os deuses asseguram. Simoa é Iemanjá (145) e Naro, Oxossi (136). Garantem os deuses a destinação trágica dos homens. “Em todos os corações era Oxum quem existia” (143). Por eles é que se opera a transmutação da lei da morte em lei da vida, caça e guerra em redenção. Tudo ocorre no inesperado: “Coisas acontecem, as palavras não explicam, o mundo é grande demais para que se conheçam seus mistérios” (133). A indimensionável valência do mundo acopla-se à irresistível ação dos deuses. E este é o sentido da conversão da morte em vida, do conúbio entre Simoa e Naro, do próprio caminho e de toda e qualquer travessia: a finitude se infinitiza, o limiar da morte é o incessante comparecer diante de sua própria excedência. Suspende-se a horizontalidade do sortilégio em sua verticalidade abissal. A transmutação é o adquirir de novo olhar sobre o destino humano. Ver sob a terra árida as águas; ver na morte a vida e viver na finitude que nos consagra ao maravilhoso. Simoa e Naro são humanos-deuses, só se singularizam porque são demiurgos. Os deuses irrompem na terra como potências do destino que só nos confirmam nossa infinita vocação mortal. Nada fazem sem o homem, céu interligado à terra como espelho e horizonte de nossa existência. Temos um dever no mais profundo de nós, no silêncio do qual somos feitos. O horizonte das possibilidades é o acontecer do maravilhoso. A ruptura com a cadência linear doa a sobredeterminação de nossa desumanidade. Tais são as Léguas da promissão, a imanência em seu contínuo transcender. O hiperbólico no homem é a vida da morte, existência que se modela na entreabertura mediadora do possível no finito. A sua morte é o evento que o dispõe à novidade do perscrutável. 156

IMAGINAÇÃO E MORTE: ESTUDOS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FINITUDE

TERCEIRA PARTE: DESDOBRAMENTOS CONCEPTUAIS1

1 Demonstrando a crescente presença de traduções da obra bachelardiana, valho-me de edições nacionais de seus textos a partir desta parte do livro.

12. A TEORIA DOS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS: BACHELARD ENTRE A EPISTEMOLOGIA E A HERMENÊUTICA Em mais de um momento de sua carreira, Gaston Bachelard, dividido entre a epistemologia da ciência e a hermenêutica da imaginação, defende algo que em algumas proposições contemporâneas pareceria absurdo: irreversível distinção entre ciência e arte. Para nós hoje que vemos a metaforização da física, com seus buracos-negros e universos-bebês, e quantos e tantos experimentos estético-tecnológicos as afirmações de G. Bachelard podem parecer datadas, como prevenção que manifesta latentes dicotomias de alguém que tanto teria contribuído para aproximar tão afastados campos de conhecimento. Neste texto me proponho a analisar as implicações dessa prevenção bachelardiana, partindo, de início, de uma obra que, nas palavras do autor, “foi escrita com o objetivo de exorcizar as imagens que pretendem, numa cultura científica, gerar e sustentar conceitos:1 A formação do espírito científico. O livro em questão é eclética elaboração de uma história crítica da ciência, amalgamada com a proposta de um novo manual de metodologia científica. Para formar pesquisadores sensíveis aos novos métodos e objetos de investigação em química, física e biologia, seria preciso compreender o processo histórico de enfrentamento e solução de problemas, de como se produz o conhecimento no então chamado campo das ciências da natureza. Se o conhecimento articula-se em contexto de transmissão, apropriação e transformação de técnicas e conceitos, 1

A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988. p. 51. TERCEIRA PARTE A TEORIA DOS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS: BACHELARD ENTRE A EPISTEMOLOGIA E A HERMENÊUTICA

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pode-se compreender como se conhece e, então, produzir conhecimento. O repertório de equívocos pré-científicos esclarece, educadamente: antes de tudo, é preciso compreender essa dinâmica do conhecimento para que novos objetos e práticas de investigação sejam efetivados. Tal dimensão metacognitiva é o projeto de A formação do espírito científico (1938).2 Segundo Bachelard, “o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização”3. Neste ponto entramos na liminaridade do projeto bachelardiano: situado entre a epistemologia clássica e a hermeneutização da ciência provocada pela nova física, Bachelard propõe novas abordagens muitas vezes utilizando velhos procedimentos e vocabulários. Lado a lado convivem entidades como ‘alma’ e ‘mecânica ondulatória’. Em alguns momentos encontramos ecos de Bergson, Comte. Aplicando a si o seu programa, há acumulação de saberes díspares, em conflito, no fluxo do seu texto. Contudo, Bachelard advoga que esta acumulação seja interrogada, para que se formule claramente a situação do intérprete, os problemas que serão alvo de sua pesquisa. Assim, a obra sobrevive ao seu autor, como documento de uma forma de pensar que se coloca como experimental e exploratória. Nesse sentido, temos a estruturação do livro em torno da noção de obstáculo epistemológico. A formação do espírito científico expõe, a partir da história da ciência, padrões negativos, atos antimodelares, posturas que não contribuem para uma racionalização mais integral dos dados por parte 2 Este livro apresenta uma nova etapa na epistemologia bachelardiana, se comparado a Ensaio sobre conhecimento aproximado, de 1928 (há tradução nacional recente do livro pela Editora Contraponto, 2004). Diferente deste último, o foco agora é no sujeito cognoscente, na atividade de conhecer, e não no conhecimento de si. 3 Doravante, detenho-me em citar A formação do espírito científico, p. 17.

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de um pesquisador. Levando em conta que há uma dimensão construtiva do saber científico e que essa dimensão é reflexiva, incide sobre o agente desse saber, Bachelard identifica conjunto heteróclito de estratégias que inibiriam essa construtividade e reflexividade. Eis os obstáculos epistemológicos ou pressupostos de ação, pensamento e vontade que determinam o horizonte das práticas de pesquisa. A identificação dos obstáculos não é sistemática: há uma relação de contiguidade entre os dois primeiros obstáculos (experiência primeira e conhecimento geral), mas não entre os demais. A descontinuidade entre os itens provoca a busca por uma coesão diversa da proposta bachelardiana. A enumeração dos obstáculos segue diferentes critérios. Isto está patente na organização mesma do livro: os capítulos dedicados à tipologia dos obstáculos como demonstração de psicanálise do conhecimento vão cedendo espaço a capítulos temáticos independentes não vinculados diretamente à teoria dos obstáculos. Valendo-se de letras (‘A’ para capítulos sobre os obstáculos e ‘B’ para capítulos temáticos), temos assim a estruturação do livro: 1-A; 2-A; 3-A; 4-A; 5-A; 6-A; 7-B; 8-A; 9-B; 10-B; 11-A; 12-B. Note-se como Bachelard insere, mas para o meio e fim de seu livro, capítulos que interrompem uma expectativa de sistematização estrita, ocasionando justaposição de materiais mais livres a outros mais correlatos.4 Esta lógica ampla e diversificada também se vê na sucessão dos capítulos vinculados quando de um exame mais detido dos obstáculos propostos. O primeiro obstáculo é o da experiência primeira, ou seja, ao que é recebido, ao que é tido como dado. Em primeiro momento, o foco de atenção reside no sujeito cognoscente, em sua disposição de tomar o que ele já sabe como 4 A efetiva quebra da simetria defronta-se com a referência interna de Bachelard ao modo como os obstáculos são construídos: “como os obstáculos epistemológicos andam ao pares...” (260).

TERCEIRA PARTE A TEORIA DOS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS: BACHELARD ENTRE A EPISTEMOLOGIA E A HERMENÊUTICA

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conhecimento. Opiniões e sensações, ao mesmo ponto que imediato ponto de partida para uma atividade cognitiva, se não confrontados com dados e experiências produzidos dentro de condições de observação efetivas, podem acarretar circunscrição do horizonte do intérprete à reprodução de descontextualizadas informações e conclusões. Nesta reprodução de detalhes pitorescos, o a priori subjetivo se torna ao mesmo tempo objeto das afirmativas e sujeito das observações. Nesta tautologia reafirma-se não só uma subjetividade ensimesmada como também uma cultura cujo limite é atemporalidade do indiscutido. Para ultrapassar este obstáculo o intérprete deve enfrentar e compreender a projeção de si mesmo, de sua cultura na produção do conhecimento. O conhecer é conhecer-se, reformulação das estratégias de produção de conhecimento. Logo o obstáculo primeiro é o próprio sujeito, antes excluído e negado na epistemologia clássica. A objetivação do sujeito passa pela desubjetivação do objeto. Entre os documentos que Bachelard cita para comprovar posturas inautênticas, que se locomovem dentro deste obstáculo, temos um texto de A. Strindberg – fragmento de um romance, I havsbandet, de 1890, traduzido na França com o nome do protagonista, Axel Borg, jovem cientista enviado como inspetor de pesca em uma ilha remota, mas que acaba tendo sua saúde mental deteriorada quando no entrechoque entre a vida e razão. No fragmento, uma mulher histérica é tratada com infusões de plantas mal-cheirosas. O sucesso do paliativo era associado a uma ideia de que o útero produzia agitação no corpo ao se deslocar. O violento odor estabilizaria os órgãos em seus lugares. Sem nenhuma base experimental sólida se socializava uma cura espiritual. A sensação de alívio expurgava os sofrimentos imaginários. Neste caso, a convergência entre ciência, psicologismo e literatura é negativada por Bachelard: encontramos, portanto, “seja entre os especialistas, seja entre os sonhadores, os mesmos procedimentos de demonstração viciada” (54). O relato ficcional exemplifica 162

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um bloqueio à amplitude de produção de conhecimento. A imaginação científica que promove “racionalização imediata e errônea de fenômeno incerto” não é ciência. A má ciência é literatura. Arte e ciência permanecem separadas como forma de se apresentar um processo de clarificação da atividade intelectual nas ciências da natureza. Neste momento de fenomenologia da atividade cognitiva de pesquisas laboratoriais, é importante dissociar o novo cientista de um perfil informal e enciclopédico generalista, muito comum no século XIX. A alta especialização e complexa técnica dos novos cientistas demandam redefinição de suas posturas e procedimentos. Em uma época quando a interrogação sobre a natureza não mais se pauta sob uma erudição de discussões e preconceitos seculares, reivindica-se, em primeiro momento, intensa recusa de certos hábitos inibidores. Não se produz conhecimento para se ratificar o já conhecido, e sim para retificá-lo. O segundo obstáculo esclarece a cultura do sujeito cognoscente: trata-se do conhecimento geral. Se no primeiro caso perpetuavam-se certos limitantes que reproduziam valores e ideias mais próximos à imagem do sujeito, à definição de sua individualidade, aqui temos o âmbito social no qual informações tidas como verdade são assumidas e partilhadas sem o processo de sua revisão. O que se aplica ao maior número de eventos é tido como prova de sua valência. O alvo crítico aqui é a transformação do senso comum em ortodoxia, mesmo entre produtores de conhecimento. Cada época, dentro de suas limitações técnicas e intelectuais, exibe série de definições e leis que naquele momento são dadas como referentes estabelecidos de acontecimentos do mundo. A completude de tais definições e leis desencadeia sua autoevidência, como se, em círculo vicioso, o mais geral fosse o real e vice-versa. Tal círculo vicioso efetiva uma desconexão entre experiência e razão, o pensamento pensando sem se confrontrar com a TERCEIRA PARTE A TEORIA DOS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS: BACHELARD ENTRE A EPISTEMOLOGIA E A HERMENÊUTICA

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modificação de si mesmo diante das demandas de um processo de investigação específico. No lugar do dogmatismo do senso comum, do conhecimento geral, Bachelard defende atividade de conceptualização que se diversifica frente ao tratamento do objeto de investigação. Assim, “a fenomenotécnica prolonga a fenomenologia. Um conceito torna-se científico na medida em que se torna técnico, em que está acompanhado de uma técnica de realização” (77). Aquilo que se investiga exige o aparato de sua observação. Não é mais a cômoda situação de se confirmar e divulgar sentenças o que interessa. Note-se como estes dois obstáculos estão diretamente relacionados. Ambos expõem as limitações de abordagens dicotômicas, aferradas a metodologias parciais de tratamento dos dados e de capacitação dos intérpretes. A dicotomia sujeito-objeto desdobra-se na polarização particular-geral. Tais tabelas de oposições aristotélicas, ainda muito em voga, prescrevem distinções prévias e absolutas que são assumidas como pressupostos de investigação. É contra isso que Bachelard se insurge. O experimentalismo das novas interrogações da matéria exige um novo organum, menos discursivo, mais operacional, no qual a atividade de conceptualização não mais se pauta pela reprodução de saberes cuja validez apenas se alcança por intuições genéricas. Daí a ruptura entre senso comum e nova ciência ser o ponto de partida para a formação de uma diferente postura observacional. Nessa descontinuidade radical entre práticas tradicionais e construtos racionais, a negação do imagismo em ciência é relevante, coisa de surpreender “pop-pós-modernos”. Bachelard veementemente posiciona-se contra a metaforização do discurso científico, contra o perigo das imagens imediatas para a formação do espírito científico. Das imagens para o conceito não deve haver continuidade. A transposição de qualidades macroscópicas nas coisas, a transposição de seus traços externos bloqueia a amplitude de uma atividade observacional que não se 164

IMAGINAÇÃO E MORTE: ESTUDOS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FINITUDE

detém em analogias, percepções pontuais não problematizadas. Ao fim, reunindo e remoendo tais associações, um intérprete ficaria restrito apenas à verbalidade, ao que ele afirma a respeito de algo que ele vê. Não necessitaria redefinir sua observação em função de experimentos e ampla cadeia de reflexões a partir destes experimentos. Ele se confina em assegurar que única imagem é tanto o objeto quanto a explicação daquilo que ele observa. Partindo de algo conhecido, identificável, o mundo é passado a limpo a partir do gabinete. O alcance da explicação é proporcional à extensão de sua ampla aplicação. A denúncia e recusa do recurso imagético em ciência leva Bachelard a uma estranha tensão entre atividades às quais ele dedica o resto de sua vida. Em balanço de sua carreira, Bachelard apresenta-se como “um filósofo sonhador, um filósofo que cessa de refletir quando se põe a imaginar e que assim pronunciou para si mesmo o divórcio entre o intelecto e a imaginação”.5 Vemos como o esforço de liberar a criatividade científica das amarras de hábitos observacionais metafísicos prolonga-se, mesmo depois de todo o projeto de hermenêutica da atividade imaginante. O divórcio apontado em um livro que fecha o projeto dessa hermenêutica reafirma compromissos primeiros efetivados durante a proposição de uma epistemologia construtivista. Há de se pensar que grande parte da disposição bachelardiana para elaboração desse aberto projeto de uma hermenêutica da imaginação estaria relacionada com essa assepsia da imagem no conhecimento científico. E que este empenho em caracterizar a atividade científica não mais como discurso e sim como fenomenotécnica transpõe para o estudo da imaginação literária muitas das propriedades dessa fenomenotécnica. Em que pese a produção imediata de imagens ser obstáculo para a ciência, a complexa racionalidade de eventos complexos da matéria vai ser 5 A poética do devaneio, p. 27.

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mais bem definida no estudos sobre a imaginação. Mas, antes, acompanhemos mais de perto as aporias bachelardianas. Ainda em A poética do devaneio, publicado em 1960, Bachelard retoma um balanço de sua cindida carreira: “se eu tivesse de resumir uma carreira irregular e laboriosa, marcada por livros diversos, o melhor seria colocá-la sob os signos contraditórios, masculino e feminino, do conceito e da imagem. Entre o conceito e a imagem nenhuma síntese. E nenhuma filiação, sobretudo essa filiação, sempre dita, nunca vivida, pela qual os psicólogos fazem o conceito sair da pluralidade das imagens. Quem se entrega com todo o seu espírito ao conceito, com toda a sua alma à imagem, sabe muito bem que os conceitos e as imagens se desenvolvem sobre duas linhas divergentes da vida espiritual” (50). A longa citação muitas vezes frustra quem se seduz por uma expectativa de reconciliação de alguém que dedicou tantos anos a projetos diferenciados. Note-se como as pontas se fecham: como em A formação do espírito científico, o espírito e a vida espiritual são convocados para uma platônica esquematização de dicotômicas disposições e modalidades cognitivas. Como um a priori, as dualidades são justapostas, como em proporções matemáticas. A diferença aqui é que não há valoração. No projeto intelectual de fenomenologia do conhecimento científico, o expurgo do imagético efetivava parte da nova postura observacional. Aqui, após anos de análise de obras ficcionais, a atividade imaginante não é mais o contramodelo de uma razão experimental. O intervalo permanece, mas não a valoração: o status cognitivo da ciência é colocado lado a lado com o conhecimento da atividade imagética. A suspensa conclusão que Bachelard expressa é o acatamento da liminaridade de sua obra. O que está cifrado aqui é todo um esforço de prover tanto para a imaginação científica quanto para a imaginação literária contextos de racionalização específicos como resposta à cultura generalista e impressionista que atravessou 166

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a erudição acadêmico-jornalística de meados do século XIX até primeiras décadas do século XX. Podemos perceber certas aproximações e sobreposições que Bachelard ele mesmo interdita. Entre elas, a ampliação da atividade racional por meio de sua fenomenotécnica, presente no campo de interconceitos de uma rede observacional, é paralela ao ditame de se ultrapassar a imagem isolada para se compreender a imaginação, como definido em O ar e os sonhos. Em todo caso testemunhamos nas interdições e aporias bachelardianas a busca no século XX por um retorno às coisas mesmas, a produção de conhecimento a partir da interrogação dos objetos. Daí, inicialmente, percebemos um paradoxal tautegorismo: todo conhecimento debate sobre si próprio, “a imagem só pode ser estudada pela imagem”, assim como o conceito por seu processo de conceptualização. Hoje, com as quase exigências de interdisciplinaridade, muitas delas tomando Bachelard como seu totem, tal tautegorismo parece-se associar-se às aventuras estruturalistas. Ou seja, haveria na prevenção bachelardiana de separar conceitos e imagens uma motivação para que atividades tão complexas como estas não fossem simplificadas. Em um livro póstumo, Fragmentos de uma poética do fogo, publicado em 1988, Bachelard retoma esta tensão entre o pensador da ciência e o intérprete da imaginação. Na abertura da obra, temos um balanço do balanço de sua carreira: “quando, há cerca de vinte anos – ou talvez um lustro a mais, pois onde começam na vida de um intelectual, os desvios que duram? – , comecei, à margem de meu trabalho regular de professor de filosofia da ciência, a me interessar pelo problema das imagens literárias, acreditava que um problema tão estritamente limitado podia ser tratado com toda a simplicidade, sem nenhum dispositivo filosófico. Pensava dever estudar as imagens como tinha o hábito de estudar as ideias científicas, tão objetivamente quanto possível. [...] Multiplicando os exemplos eu acabaria TERCEIRA PARTE A TEORIA DOS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS: BACHELARD ENTRE A EPISTEMOLOGIA E A HERMENÊUTICA

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por encontrar as leis. Eu adotava, sem pensar as pretensões à objetividade” (25).6 Na abertura de A psicanálise do fogo, de 1949, Bachelard evidencia esta estranha complementaridade entre projetos diversos a partir do questionamento da produção de conhecimento e objetividade: “basta falarmos de um objeto para nos acreditarmos objetivos. Mas, por nossa primeira escolha, o objeto nos designa mais do que o designamos” (1). Em seguida, Bachelard procura mostrar, em função das diversas respostas ao objeto, as distinções entre objetividade científica e artística. Assim, “a objetividade científica só é possível se inicialmente rompemos com o objeto imediato, se recusamos a sedução da primeira escolha, se detemos e refutamos os pensamentos que nascem da primeira observação [...] Longe de maravilhar-se, o pensamento objetivo deve ironizar” (1-2). Esse movimento de não adesão à matéria é oposto ao da objetividade artística, de participação e partilha da coisa imaginada. Com isso, “os eixos da poesia e da ciência são a princípio inversos. Tudo o que a filosofia pode esperar é tornar a poesia e a ciência complementares, uni-las como dois contrários bem feitos. É preciso, portanto, opor ao espírito poético expansivo o espírito científico taciturno, para o qual a antipatia prévia é uma saudável precaução” (2). Ambivalentemente, o estudo de obras ficcionais contribui tanto para definir o horizonte de novas objetividades e racionalismos quanto para reforçar as diferenças, o limite limitante para tais empreendimentos intelectuais. A utopia da complementaridade é divisada em função do reforço do teste e reforço da construção da experiência racional na ciência. Como vemos, a doutrina da imaginação é um projeto marginal, elaborado a partir dos parâmetros na filosofia da 6 Fragmentos de uma poética do fogo. Editora Brasiliense, 1990.

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ciência. Daí a contiguidade de procedimentos entre os dois projetos: coleta de documentos, classificações, leis. A defesa de um racionalismo aplicado vai encontrar na proposição de alternativas ao fracasso da crítica intelectualista em compreender obras imagéticas modernas outra motivação para tal doutrina.7 Contudo, o posterior mergulho na atividade imaginante vai redefinir essa objetivação das ficções e estabilizar-se em uma suspensa não correlatividade: “imagens e conceitos se formam nesses dois pólos opostos da atividade física que são a imaginação e razão. Há entre ambas uma polaridade de exclusão”.8 A estratégia da distinção absoluta procura balancear o impulso denegatório da imagem como conhecimento na ciência com ampliação da autonomia e especificidade da atividade imaginante realizadas após os longos anos de estudos com ficções literárias. Em posições diversas e excludentes, imagem e conceito estão em pé de igualdade. São processos específicos, com suas fenomenologias próprias. A assimetria entre conceitos e imagens registrada na carreira de Bachelard comparece como provocação ao pensamento de agora. Dos obstáculos epistemológicos para distinções polares. Só assim poderemos retomar e compreender o desconcertante desabafo bachelardiano: “compreendi isso tarde demais. Tarde demais conheci a tranquilidade de consciência no trabalho alternado das imagens e dos conceitos, duas tranquilidades de consciência que seriam a do pleno dia e a que aceita o lado noturno da alma”.9 Tal estado “de um homem que permanece no trabalho 7 Exemplos dessa mistura de objetividade e imaginação atravessam as obras sobre a imaginação, como em Lautreamont (Litoral Edições, 1989): “o teorema fundamental da poesia projetiva é o seguinte: quais são os elementos duma forma poética que podem impunemente ser deformados por uma metáfora deixando subsistir uma coerência poética. Por outras palavras, quais são os limites da causalidade formal?”. 8 A poética do devaneio, p. 52. 9 Idem.

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até o último suspiro” apenas se consegue na constatação presente nas páginas de A formação do espírito científico e reproduzidas no balanço final da abertura de Fragmentos de uma poética do fogo: “em suma, na ordem das ideias nós não imaginamos as ideias. E, mais do que isso, quando trabalhamos num campo de ideias é preciso afastar as imagens”. Mesmo, neste passo, Bachelard confessando que “gostaria de poder reescrever todos os meu livros” (26-27) sobre imaginação, frente à presença de parâmetros de objetividade racional, ainda se reafirma o intervalo entre conceitos e imagens.

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13. CORPO, RITMO E ‘PERFORMANCE’: POR UMA LEITURA INTEGRATIVA DE GASTON BACHELARD I Os textos de Gaston Bachelard sobre o tempo ocupam lugar estratégico dentro do corpus de suas obras. L’Intuition de l’instant, de 1932, vincula-se tanto ao contexto da proposição de nova epistemologia da ciência, quanto às implicações dessa abertura para as condições e possibilidades de pensar. No livro, ao invés de discutir conceitos e experiências da química e da física contemporâneas, Bachelard se desloca para a leitura de um livro do historiador regional Gaston Roupnel – Siloë. Tal mudança de escopo e de foco é ratificada e ampliada com a publicação quatro anos depois de La dialectique de la durée (1936), no qual retoma-se a crítica ao conceito da continuidade temporal de Bergson, situando o debate nas fronteiras entre razão e criatividade (KEIKO, 2009; POWER, 2006). Não é de se estranhar que em seguida a essas pesquisas sobre o tempo, Bachelard passe a se ocupar mais incisivamente da imaginação literária, com a série de livros sobre a imaginação material e dinâmica. Nesse sentido L’Intuition de l’instant e La dialectique de la durée podem se caracterizar como laboratório de complexas especulações por meio das quais se dramatiza o impacto da descoberta existencial do pluralismo generalizado. Bachelard não se limita apenas a discutir ideias dos outros: ele mesmo rompe com os protocolos de leitura da pretensa objetividade da epistemologia TERCEIRA PARTE CORPO, RITMO E ‘PERFORMANCE’: POR UMA LEITURA INTEGRATIVA DE GASTON BACHELARD

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clássica e se coloca em situação de coprojetar, de participar daquilo que depreende em suas investigações (MOTA, 2010). Essa inserção explícita do intérprete no objeto de análise acarreta a aproximação entre o ato de conhecer e o ato de vivenciar, o que será fundamental nas obras sobre a imaginação, que articulam abordagem da atividade criadora literária a partir da adesão do sonhador às imagens. Nesse sentido, os aspectos descritos nas obras são ao mesmo tempo a configuração de um imaginário e a manifestação de atos que integram o sujeito ao universo representado, os quais marcam os atos de compreensão e fruição da obra. Os estudos sobre o tempo foram fundamentais para essa metamorfose do observador distante em sujeito participante em razão da recusa de esquemas prévios e abstratos da epistemologia clássica. Dentro de uma realidade em contínua transformação, a dinâmica do movimento reivindica a dinâmica do intérprete. Essa íntima conexão entre coisa e sujeito por meio do movimento impulsiona a liberação para a criação. Assim, a compreensão do tempo em sua diversidade é uma pedagogia autonomizadora. Mas como materializar essa intuição heterodoxa do tempo ainda restrita a uma experiência intelectual?

II

Vejamos algumas das afirmações de Bachelard sobre o tempo.1 Para Bachelard, a compreensão é uma obra temporal, 1 Em virtude de citações recorrentes das obras de G. Bachelard, uso a sigla DD para me referir à A dialética da duração e II para A intuição do instante.

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“une ouvre temporelle” (II, 19). Como obra, o tempo não se perfaz em linearidade constante. Consolida-se em superposições significativas. “O tempo tem várias dimensões. [...] o tempo tem uma espessura, le temps a plusieurs dimensions. [...] Le temps a une épaisseur” (DD, 92). O existencialismo do tempo consiste em assegurar uma pluralidade, ao comportar-se como pluralidade. “Só uma pluralidade pode durar, seule une pluralité peut durer” (DD, 123). Assim, a duração do tempo é uma metáfora que expressa um “complexo de ordenações múltiplas que se asseguram em sua reciprocidade, complexe des ordinations multiples quis’assurent l’une sur outre” (DD, 51). Estas dimensões multívocas preparam uma doutrina pluralista do tempo, préparent une doctrine pluraliste du temps” (DD, 61). A doutrina pluralista do tempo constata o fundamento descontínuo de sua efetividade. O tempo é oscilação, é hesitação. Sua finitude é o reenvio constante à sua flexibilidade. Nesta dinamogenia, constata-se o caráter alternante do tempo que esta descontinuidade produz: “neste instante, nada se passa, ou melhor, neste instante acontece qualquer coisa. O tempo é, então, contínuo como possibilidade, como nada. Ele é descontínuo como ser. Noutros termos, nós partimos de uma dualidade temporal, não de uma unidade, une cet instant, il ne se passe rien, ou bien en cet instant, il se passe quelque close. Le temps est alors comme possibilité: comme néant. Il est discontinu come être. Autrement dit, nous partons d’une dualité temporelle, non d’une unité” (DD, 25). A dialética temporal, desenvolvendo a dialética ontológica, cifra-se na complementaridade dos contrários que se harmonizam, demonstrando sua operatividade histórica. O tempo possibilita a abertura do ser em incessante desdobramento criador. É impossível preencher o vazio no seio da alteridade. O tempo modaliza a alteridade em sua epifania, a ‘deveniência’ constituinte e constituidora dessa hesitação TERCEIRA PARTE CORPO, RITMO E ‘PERFORMANCE’: POR UMA LEITURA INTEGRATIVA DE GASTON BACHELARD

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ontológica. Tempo é presença, projeção das tensões reversíveis do nada em sua atuação: “o tempo não tem uma realidade a não ser a do instante. Dito de outro modo, o tempo é uma realidade limitada sobre o instante e suspensa entre dois nadas, le temps n’a que’une réalité, celle de l’instant, autrement dit, le temps est une réalité resserrés sur l’instant et suspensue entre deus néants” (II, 13). Existe na fulguração instantânea de uma ofuscação labiríntica. Promove, em sua bifacialidade originária, a abertura como sua genealogia e escatologia: o tempo vem do nada e parte para o nada. Por isso, de tudo é mediação. A dualidade radical do tempo, que incorpora o vazio à sua configuração, concretiza-se no ritmo. O ritmo é a “noção temporal fundamental, notion temporelle fondamentalle” (DD, ix). Para recusar referências a uma duração absoluta e abstrata, é necessário aceitar francamente o apoio recíproco dos ritmos, d’accepter franchement l’appui réciproque des rythmes” (DD, 123). Os instantes rítmicos operacionalizam a imanência cambiante do tempo em seu constante transcender. O devir se traduz na linguagem descontínua do tempo. Representando, pois, a atividade de superação das determinações e normalidades gerais em prol da dramatização da estrutura da criatividade que comanda a estrutura da compreensão, o tempo se verticaliza (DD, 98), nega a horizontalidade superficial do mesmo, repondo a alteridade como condutora do diferencial nexo que doa a plenitude da existência. Trata-se do ‘circuito ontogenético do tempo’, que, na raiz da complementaridade, radicaliza a compreensão como evento construído, articulado em seus atos diversos. Neste circuito, tematiza-se o saber no horizonte de suas possibilidades. É uma viagem às avessas, na qual se vai “do mesmo ao mesmo, passando pelo outro, du même ai même en passant par l’autre” (DD, 91). O circuito ontogenético do tempo, revelando a cisão essencial inscrustrada na operatividade histórica, reorienta 174

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o questionamento da relação entre tempo e compreensão (MOTA, 1993). Se a temporalidade sustenta a compreensão e a compreensão se efetiva temporalmente, ambas se consagram a indicar a facticidade da existência. O ato de se completarem na contiguidade dos opostos encena a alteridade se desdobrando: “o tempo de pensar marca profundamente o pensamento. Não se pensa talvez na mesma coisa, mas se pensa ao mesmo tempo em alguma coisa, le temps de penser marque profondément la pensée. On ne pense peut-être pas la même close, mais on pense en même temps à quelque close” (DD, 105). Superpõem-se tempo e compreensão pela dramatização do possível no seio do finito. Esta ritmanálise do finito e do infinito, através da qual a compreensão é uma obra temporal, e a compreensão é a atividade descontínua do tempo, amplifica-se na poesia: “ser poeta é multiplicar a dialética temporal, é recusar a continuidade fácil da sensação e da dedução, etre poéte, c’est multiplier la dialectique temporelle, c’est refuser la continuité facile de la sensation et de la déduction” (DD, 125). Na poematização da existência, que faz irromper o nada no limite de sua efetividade, vê-se a compreensão “pontuada por instantes criadores, ponctueé par instants créateurs” (DD, 18).

III

Como se pode ver, em primeiro momento, Bachelard inicia-se nos efeitos do tempo sobre os atos de compreensão dentro ainda de uma metafísica tradicional. O estudo da imaginação literária é reorientação de percurso que guarda tanto signo de ruptura quando de continuidade: vai-se da filosofia para as letras, preservando assim TERCEIRA PARTE CORPO, RITMO E ‘PERFORMANCE’: POR UMA LEITURA INTEGRATIVA DE GASTON BACHELARD

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os fundamentos da cultura beletrista e ilustrada. Pois, em qualquer caso, as experiências de Bachelard ainda são de um intelectual de gabinete: reduzem-se ao universo noético de suas considerações e produção. Mas haveria a possibilidade de dar o passo seguinte, de ir além e com Bachelard no estudo do tempo experimentado, dos ritmos dispostos em acontecimentos fora da mente? Para isso, torna-se necessário valer-se do recurso utilizado por Bachelard em sua análise e crítica da episteme clássica. Ou seja, a dialética de negação e novidade que preside a história da ciência demonstra que as descobertas agem sobre o limite técnico-filosófico das ações anteriores. Desse modo, pode-se suplementar a contribuição de Bachelard sobre o tempo com leitura integrativa que correlacione o limite do literário como o limiar do performativo. Com isso, o discurso sobre o tempo pode ser retificado e resignificado por meio da materialidade que o corpo em ‘performance’ demonstra. Voltando para o primeiro livro de Bachelard sobre o tempo: L’Intuition de l’instant. A obra de Gaston Roupnel é estímulo para a autodescoberta de Bachelard, de sua “disposição em se deter sobre problemas da duração e do instante, do hábito e da vida” (II, 14). O que atrai Bachelard para estas questões é a possiblidade de esclarecer, compreender e efetivar experiências liberadoras, criativas, que ora são chamadas de “consciência do irracional”, “intuição filosófica”, “lirismo”, entre outras expressões. Para atualizar essas experiências, é preciso não apenas ler o livro, mas “reviver todo o livro, seguindo linha a linha para compreender o quanto o caráter estético lhe acrescenta de clareza” (II, 13). Dessa forma, Bachelard propõe outra maneira de ler, uma apropriação que joga o leitor em participação mais ativa na obra: “servimo-nos, pois com toda a liberdade das intuições de Siloë e, finalmente, mais que uma exposição objetiva, o que apresentamos aqui é nossa experiência do livro” (II, 14). Bachelard escreve seu livro, recriando o material que estudou e transformou. O que lhe 176

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interessa é ampliar o impulso criativo que foi seu ponto de partida. Mais que uma paráfrase explicativa e redundante de Roupnel, Bachelard deforma, redimensiona, subverte a obra lida. Ao fim, o que Bachelard produz é um metacomentário: é uma obra que se expõe, a partir de outras, como discussão sobre o fazer obras. A estrutura da compreensão conecta-se à estrutura da criatividade. As múltiplas perspectivas da obra analisada exibem a multiplicidade de aspectos de empreendimentos como os de Bachelard, que são híbridos, movimentando-se entre o ensaio e a literatura. Assim, é como um conjunto de variações sobre a criatividade que a reflexão sobre o tempo em L’Intuition de l’instant se realiza, o que aproxima os atos de Bachelard dos de um performer. Se a obra é a atividade de se apropriar e transformar um material prévio e expor essa transformação in situ, Bachelard vale-se na escrita dos procedimentos de um artista cênico. Pois não se trata apenas de embelezar a linguagem: o modo como Bachelard trata seu material e o dispõe e configura ultrapassa o registro verbal e aponta para um dinâmica de movimentos que não se definem em termos exclusivamente noéticos. O modelo performativo de base para o ensaísmo presente em L’Intuition de l’instant manifesta o desdobramento personativo de funções textuais: copresentes estão e em diálogo o autor que escreve e o público que usufrui, com Bachelard fazendo os dois papéis. A simultânea presença de diversos planos em mesma situação e a tensão complementar entre esses planos acarreta revisão da instância subjetiva. Logo, a reflexão sobre esse tempo denso, simultâneo, prenhe de planos e possibilidades, o tempo do instante, é a reflexão mesma sobre a constituição da subjetividade, do sujeito desdobrado, multiplicado em suas funções cenicamente perceptíveis. Ora, esse desdobramento personativo, essa mascarada ensaística, transparece desde o momento em que Bachelard atua como Roupnel. Ao se transformar no outro Gaston, e no seu oposto (Bergson), Bachelard situa o jogo de citações em um TERCEIRA PARTE CORPO, RITMO E ‘PERFORMANCE’: POR UMA LEITURA INTEGRATIVA DE GASTON BACHELARD

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teatro Guinhol. O ventriloquismo experimental bachelardiano multiplica sua figura em meio às figuras atualizadas no texto. Na maioria das ocasiões, Bachelard refere-se a esta tensão constituidora da subjetividade por meio de termos ontológicos ou psicologizantes. A indicação do modelo performativo para se compreender a dinâmica personativa de Bachelard é assinalada ocasionalmente por expressões e vocábulos ligados a “drama”. Se “o caráter dramático do instante” (II, 19) é constatado, mas perdura ainda como adjetivo ou como alusão não desenvolvida, é preciso suplementar Bachelard, para clarificar seu projeto expressivo. Contrapartida para o desdobramento personativo é pluralismo e intensidade do instante. Para ratificar essa argumentação, Bachelard entra em polêmica com o pensamento de Bergson. À filosofia da duração da continuidade defendida por Bergson, Bachelard posiciona a filosofia da descontinuidade e do instante (WORMS, WUNENBURGER, 2008; PERRAUDIN, 2008). A contraposição manifesta diversos modelos de se conceber não apenas o tempo mas os atos, a produção e participação em acontecimentos. A abordagem bachelardiana, ao trabalhar na fronteira de discursos e métodos, conecta diversas perspectivas. Daí, ao falar do livro de Roupnel, há tanto o discorrer sobre o objeto do discurso quanto o expor o processo de inscrição do intérprete na produção desse objeto. O pluralismo do objeto advém tanto ou mais do desdobramento personativo do agente do discurso. Essa acumulação de funções e referentes se manifesta na escritura do livro. Em obra que se apropria e transforma outra(s), Bachelard vale-se de alguns expedientes de organização de seu texto, os quais exploram no espaço da página a copresença de materiais diversos e formas de sua distribuição. Mesmo com títulos de capítulos que indexariam expectativas temáticas maiores, Bachelard pontua seu texto por meio de trechos numerados, fragmentos autônomos. Nesses trechos que não são 178

IMAGINAÇÃO E MORTE: ESTUDOS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FINITUDE

subtópicos de superordenação temática, Bachelard altera volta e meia a perspectiva do que está analisando, interrompendo argumentações em desenvolvimento, revisando proposições apresentadas, postulando situações hipotéticas, condensando e resumindo pensamentos que podem ou não ser expandidos posteriormente. A impressão para o leitor é a de que, no lugar de unificação temática ou argumentativa, o seguir do texto é o de contínuas mudanças de topicalização e de abordagens. Como L’Intuition de l’instant se estabelece no espaço experimental entre ensaio literário e filosofia, esse caráter híbrido do texto se intensifica na sobreposição ao nível do parágrafo de abordagens e conteúdos diversos. O que parece ser o foco de Bachelard não é o tema e sim a sentença: cada frase se organiza em sua independência. Os parágrafos são conjuntos heterogêneos destas sentenças e as seções numeradas do capítulo um pot-porri de descontínuas constelações discursivas. Nesse sentido, há a complementaridade entre o alvo observacional de L’Intuition de l’instant e sua organização textual. Ao falar do tempo como primordialmente a realidade do instante e ao concluir que o instante é complexo, tendo a densidade de vários ritmos, Bachelard expressa-se em termos temporais sobre o tempo. Se o tempo é pluralidade de ritmos, a heterogeneidade compositiva de L’Intuition de l’instant é sua tradução textual. Logo, o desempenho do intérprete Bachelard configurado na heterogeneidade dos espaços discursivos da obra nos remete para uma situação performativa identificável: a do improviso, a da manipulação da atualidade. Em virtude dos procedimentos escriturais explícitos de Bachelard, entende-se a correspondência entre reflexão sobre o tempo e os paradigmas performativos. Não só a defesa intelectual do instante, mas sim a sua expressão concreta no acontecimento textual multidimensionalizado é que advoga a suplementação performativa da proposta de Bachelard. Ao preconizar o atual, sincroniza-se o conceito com a atividade: TERCEIRA PARTE CORPO, RITMO E ‘PERFORMANCE’: POR UMA LEITURA INTEGRATIVA DE GASTON BACHELARD

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“pois como não ver que a natureza do ato, por um singular encontro verbal, é ser atual” (II, 27). Como se pode notar, a compreensão tanto da forma de expressão quanto da contribuição bachelardiana para o estudo do tempo e da imaginação ganha esclarecimento mais amplo quando é correlacionada a paradigma performativo. É para uma teoria dos atos que a temporalidade aponta. E como o ato é atividade configurada e configuradora, a reflexão sobre o tempo é a compreensão das condições dos acontecimentos, de sua materialidade. Se o tempo existe na atualidade de sua produção, no ato, ele subsiste ao refazer-se, no absoluto do instante. “A duração é efeito da densidade regular de seus instantes sem duração” (II, 70). O paradoxo é aparente: na realidade do performer isso é fato. Para esclarecer melhor essa correlação entre temporalidade e ‘performance’, eis o paralelo com A. Lord, que após estudar os cantores narrativos nos balcãs, concluiu: “para o poeta oral, o momento de composição é a performance. No caso de um poema literário, há um intervalo temporal entre composição e leitura ou performance. No caso do poema oral este intervalo não existe porque composição e performance são dois aspectos do mesmo momento. [...] Um poema oral não é composto ‘para’ mas ‘em’ performance.[...] Cantar, performar e compor são facetas do mesmo processo” (LORD, 2000:11). Ou seja, mais que uma expressão momentânea de algo já feito, cada situação de ‘performance’ é única e atualizando diversos aspectos do mesmo ato singular. Sendo assim, “o poeta oral não tem a ideia de um modelo textual fixo que serve de guia. Ele tem modelos o bastante, mas eles não estão fixados e ele não tem ideia de memorizá-los em uma forma fixa. A cada momento, ele ouve uma canção distinta” (LORD, 2000:25). O que nos impede de entender racionalmente essa prática sintética e absoluta do instante performativo é nosso hábito 180

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de nos referir a causalidades contínuas, pois, ainda segundo A. Lord, “temos um conceito da fixidez de uma performance. [...] Nós pensamos mudança de conteúdo ou redação. Para nós, em algum momento tanto conteúdo quanto a redação foram estabelecidos” (LORD, 1993:101). Ou melhor: “nossa real dificuldade se torna patente no fato que, diferente do poeta oral, nós não estamos acostumados a pensar em termos de fluidez. Nós encontramos dificuldade em compreender algo que é multiforme. Parece-nos necessário construir um texto ideal ou buscar um original, e permanecemos insatisfeitos com um fenômeno sempre em transformação. Eu acredito que quando compreendermos os fatos da composição oral vamos parar de tentar encontrar um original da canção tradicional. De um ponto de vista, cada performance é um original. De outro, é impossível reconstruir o trabalho de gerações de cantores até o momento quando um cantor primeiro canta uma canção particular. [...] Cada performance é a canção específica e é ao mesmo a canção em senso genérico. A canção que estamos ouvindo é ‘a canção’. Pois cada performance é mais que uma performance; é sua recriação” (LORD, 1993:100-102). O que fica patente no paralelo acima é que as peculiaridades da expressão de Bachelard aproximam-se de um modelo performativo. Se “a consciência do tempo é sempre, para nós, uma consciência da utilização dos instantes, é sempre ativa” (II, 86), o tempo se demonstra como acontecimento e os eventos performativos como explorações da criatividade temporal. Para tanto, é preciso rever as pressuposições que consideram a atualidade, o instante como restos de uma continuidade geral e abstrata, o que bloquearia o acesso à experiência temporalizada e criativa dos atos. A partir dessa revisão, haveria acesso à “construção real do tempo a partir dos instantes, em vez da divisão do tempo, sempre factícia, a partir da duração. Veríamos então que o tempo, longe de dividir-se no esquema do fracionamento TERCEIRA PARTE CORPO, RITMO E ‘PERFORMANCE’: POR UMA LEITURA INTEGRATIVA DE GASTON BACHELARD

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de um contínuo, se multiplica no esquema das correspondências numéricas” (II, 46). Ou seja, no lugar de um esquema prévio absoluto anterior aos atos, o tempo seria composto e coordenado aos momentos particulares e variados de sua efetivação. Essa heterogeneidade de momentos ao mesmo tempo que ativa a fruição do tempo, proporciona sua configuração. Daí se repensar o ritmo.

IV

Sendo o instante a experiência fundamental do tempo e cada instante único, o ritmo não é a anulação de cada singularidade temporal em prol de uma instância prévia formal. Ao invés da tendência de enfraquecimento dos eventos pontuais, Bachelard defende um “somatório integral dos ritmos” (II, 72), que se expressa em registros múltiplos e diferentes de eventos discretos que se articulam e se agrupam em função de sua disposição e instantaneidade. Assim, o ritmo não é anterior à organização e ocorrência do instante. Sempre começando e sempre se diversificando, o ritmo caracteriza-se por sua novidade: “o que persiste é sempre o que se regenera” (II, 82). Essas reflexões inserem a questão do ritmo no contexto concreto de sua produção: como tempo organizado, o ritmo se apresenta como medida, número de seu acontecimento e não subdivisão de algo já dado. Se o instante atrai, agrupa, reúne, o que fazer com a continuidade do tempo? O questionamento do ritmo possibilita responder a essa questão. As séries temporais projetam linearidade, expectativas de homogeneidade a partir de momentos específicos, pontuais. “A duração não passa de um número, cuja unidade é o instante” 182

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(II, 42). É justamente descontruindo a imagem absolta da plenitude temporal que se esclarece a dinâmica efetiva dos ritmos. Ao invés de indexar cada momento à atualização de um tempo maior que se subdivide em intervalos menores, Bachelard propõe que se parta desses intervalos mesmos, vendo-as não mais como frações ou subdivisões de algo que não está ali presente no instante de seu acontecimento. As expectativas de continuidade e duração que permeiam nossas experiências de nos referir ao tempo como totalização, como acabamento geral dos eventos, precisam ser contrastadas com e corrigidas pelas implicações de se levar em consideração a primazia de cada tempo em si mesmo. Assim, “recusamos essa extrapolação metafísica que afirma um contínuo em si, embora estejamos sempre, somente diante do descontínuo de nossa experiência” (II, 45). Essa intimidade com o tempo instantâneo, que se perfaz na copresença, acumulação e sobreposição de momentos diversos, é aproximada ao ritmo musical. A entrada dessa relação estética é problemática, pois a música entra como um todo, sem discussão sobre suas modalidades, formas, gêneros. É música sem músicos ou músicas. A intuição bachelardiana é bem idealista. Veja-se o longo trecho: “Esclareçamos nosso pensamento por uma metáfora. Na orquestra do mundo, há instrumentos que se calam com frequência, mas é falso dizer que sempre há um instrumento tocando. O mundo é regulado por um compasso musical imposto pela cadência dos instantes. Se pudéssemos ouvir todos os instantes da realidade, compreenderíamos que não é a colcheia que é feita de fragmentos da mínima, mas é a mínima que repete a concheia. É dessa impressão que nasce a impressão de continuidade” (II, 49). Como se pode observar, Bachelard propõe a sonoridade como metáfora epistemológica para tornar compreensível o que chegou ao limite de esclarecimento ao se valer de elementos geométricos. Antes do trecho citado, Bachelard procura demonstrar seu TERCEIRA PARTE CORPO, RITMO E ‘PERFORMANCE’: POR UMA LEITURA INTEGRATIVA DE GASTON BACHELARD

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raciocínio por meio de fenômenos macroscópicos representados por linhas e pontos. O mesmo evento é lido na repetição de um padrão anterior ou na produção de um padrão a cada instante e em sucessão. A metáfora da orquestra torna audiovisual a abstração dos pontos e das linhas. Aquilo que se ouve percebe-se como som e tempo de sua ocorrência. Na amplitude produzida por este tempo concreto, tempo de todos os momentos, o ponto de referência não é a unidade do maior tempo, do tempo que conclui todos os tempos. Bachelard vale-se termos de notação musical tradicional do tempo para ampliar sua metáfora: mundo e orquestra se fundem (metáfora) e se apresentam regulados como compasso, que é regulação temporal. O uso do termo ‘compasso’, que enfatiza mais regularidades, pode não ser muito favorável à argumentação bachelardiana do tempo livre do tempo dos relógios. Mas, aí é que se acumulam os paradoxos. O compasso ao qual Bachelard se refere é “imposto pela cadência dos instantes”. Novamente, para aumentar a perplexidade, Bachelard se vale de outro termo ligado à continuidade – ‘cadência’. O nó se desfaz no último elemento da expressão – ‘instantes’. É a pluralidade de tempos indivisos e únicos que determina a produção de expectativas de acabamento (‘cadências’) e formas recorrentes de agrupamentos de divisão temporal (‘compasso’). Se a metáfora leva ao paradoxo, dentro do paradoxo se instalam outras contradições: nesse espaço-tempo em que o instante é a única e primordial matéria do tempo, há distorção temporal que muda o modo como eventos rítmicos são compreendidos. Bachelard retoma a linguagem da notação rítmica e postula outra maneira de se contar os tempos. Como se sabe, na notação rítmica tradicional ocidental, de acordo com C. Sachs, predomina um modelo divisivo: as durações se subdividem em valores de igual tempo: uma mínima, que é um tempo inteiro, se subdivide em duas semínimas. E cada semínima em duas colcheias (SACHS, 1953). Ou, nas palavras de C. 184

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Deliège, um regime métrico “fundado sobre a proporcionalidade de valores de duração organizados em progressão geométrica” (DELIÈGE, 2003:206). Assim, teríamos: uma (1) mínima = ½ + ½ semínimas = ¼ + ¼ + ¼ + ¼ colcheias. Bachelard defende que no lugar do movimento do maior, do alto para o menor, para o mais baixo, da hierarquia que marque a preponderância do todo sobre as partes, que se parta do momento das ocorrências. Assim, a mínima não é ordenador superior de um conjunto de 4 colcheias, nem a colcheia é um pedaço menor da mínima, e sim o tempo de maior duração uma projeção dos tempos de menores durações. Na música grega antiga essa intuição se verifica. Aristóxeno, em rivalidade com as regularidades dos metricistas, havia proposto como unidade de medida do tempo algo que não era apenas indivisível matematicamente, e sim pela percepção. Assim, a questão da divisão e da organização do tempo acontecem dentro dos limites de sua percepção e reelaboração. Daí a necessidade de um tempo primeiro ou simples (chronos protos) como referente dos atos de ritmização (PEARSON, 1990). A proposta de Aristóxeno se compreende dentro de um contexto de pluralidade de ritmos, onde há a flutuação de tempos e não sua esquematização binária (breve/ longo). Ou seja, Aristóxeno, desviando-se no modelo metricista que postulava tempos e meios tempos como valores relativos e divisivos da duração dos eventos ritmizados, acaba por defender a presença de mínimos perceptíveis, dentro de variações temporais, o que o aproxima de situações performativas (GIBSON, 2005:90-92). O tempo da ‘performance’, do ritmo em situação de ‘performance’, é o de um valor da atualidade do instante, da manipulação das mudanças temporais de agrupamentos rítmicos pelo performer, escapando assim da duração mecânica do tempo geral, do tempo fora do acontecimento. Com isso, a identidade entre a mínima e a colcheia provoca subversiva inversão do modo como compreende o ritmo e sua TERCEIRA PARTE CORPO, RITMO E ‘PERFORMANCE’: POR UMA LEITURA INTEGRATIVA DE GASTON BACHELARD

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organização temporal. A radical importância do instante no acontecimento temporal faz que deixemos de qualificar eventos de diversificação dos agrupamentos rítmicos como reforços ou desvios de uma totalidade que na verdade encontra-se em construção. O contínuo empenho em se saltar do instante isolado para a continuidade absoluta arrefece a percepção e os efeitos do tempo em sua densidade plural. Dessa forma, não há “o ritmo”, como convencionalmente se pensa: a recorrência de um padrão externo ao seu processo de produção. Temos, sim, um conjunto de vários eventos temporais expostos nos diversos modos de seus nexos. A multiplicidade de durações a partir dos agrupamentos sanciona a ordenação do conjunto. A continuidade do ritmo é o efeito de operações de composição bem determinadas realizadas a partir dos materiais em reunião e tensão. Nesse sentido, entende-se a razão de Bachelard interromper a explicação geométrica e ir trabalhar com a metáfora epistemológica da música para tornar compreensivo o instante como gênese do acontecimento temporal: parâmetros psicoacústicos do tempo providenciam um horizonte compreensivo para eventos que se marcam performativos, que demandam a inserção de sujeitos no processo simultâneo tanto de efetivação do acontecimento quanto de contextualização da participação no acontecimento. Ainda que pareça tímida a relação entre ritmo e música (sonoridade), sem muito avançar em questões e tradições da atividade musical, Bachelard ratifica o movimento de sua reflexão pluralizada e performática ao transitar de instante em instante em variações sobre a temporalidade.

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V

Como se pode concluir, há uma correlação estreita entre a expressão textual bachelardiana e seu objeto de observação. Ao aderir ao que estuda, Bachelard acaba por produzir um ensaísmo que é ao mesmo tempo sobre o tempo e temporalizado. Marca dessa prática interpretativa é a organização textual em blocos justapostos, os quais materializam a sobreposição temporal, pesquisada por Bachelard. Mesmo em ambiência noética, a textualidade elaborada acaba por ultrapassar as molduras da palavra e da ideia: os movimentos e as formas do texto são correlativos de formas e movimentos temporalizados. É para o ato, para a síntese ato-texto que as reflexões e os experimentos noéticos de A intuição do instante se direcionam. Nesse sentido, é possível perceber que no corpus do texto uma corporeidade figurada transparece.2 A dinâmica textual aponta para uma fisionomia. Se o ritmo se traduz em disposição material que em sua organização manifesta sua teleologia (II, 76), então mesmo na mais formalista abordagem há lugar para se falar do corpo. O gesto textual se conecta ao gesto físico. Ambos, texto e corpo são construtos físicos. Se o som existe no instante, e entender o som no tempo é compreender como o tempo opera, a materialidade do som esclarece a materialidade do tempo, a organização do som em ‘performance’ nos possibilita o acesso ao tempo na ‘performance’ de sua construção. Esse tempo concreto, material, disposto em sua organização e construtividade se aproxima do som ritmizado, elaborado, o som-gesto, o som-corpo. As piruetas noéticas de Bachelard, ao traduzir múltiplos conteúdos no texto, são correlatos expressivos da corporeidade do tempo e do som. 2 Retomo jogo de referentes utilizado em Gontarski (2006). TERCEIRA PARTE CORPO, RITMO E ‘PERFORMANCE’: POR UMA LEITURA INTEGRATIVA DE GASTON BACHELARD

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A partir desses correlatos, ciência e arte se aproximam. Não é à toa que como manifesto o ensaio Instante poético e instante metafísico encaixa-se como poslúdio ao livro A intuição do instante. A simultaneidade essencial, a verticalidade, o sincronismo, essas codificações de uma temporalidade pluralizada consagram o ato poético como ato sintético “o poeta é, então, o guia natural do metafísico que quer compreender todas as potências de ligações instantâneas” (II, 106). Um poeta no metafísico, uma poesia que compreende processos criativos, um desdobramento personativo no mesmo indivíduo – eis cifras de uma plasticidade físicotemporal à qual Bachelard passa a dedicar sua vida. Pois, se “as simultaneidades acumuladas são simultaneidades ordenadas” (II, 101), ao se propor e realizar conjuntos e obras temporalizadas, tanto o artista quanto o cientista se projetam em planos de realidades complementares. No corpus das obras de Bachelard, A intuição do instante cifra então este momento em que Bachelard dramatiza sua expressão e se dramatiza no texto gestos que manifestam o estranho ballet da complementaridade, o qual aproxima e vincula acontecimentos de espaço-tempo diversos, atos e movimentos ritmizados.

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14. BACHELARD, INTERPRETAÇÃO, SUBJETIVIDADE: A INTERAÇÃO ENTRE LEITOR E TEXTO E O PARADIGMA PERFORMATIVO NOS ESTUDOS DO IMAGINÁRIO Como se tem apontado, o livro O ar e os sonhos manifesta um redirecionamento no projeto de G. Bachelard em torno do estudo da imaginação material e dinâmica. Este redirecionamento tem sido tratado em termos puramente conceituais, restringindo-se à paráfrase do próprio texto bachelardiano. Dessa forma, as alterações e mudanças parecem na abordagem da atividade imaginativa justificáveis como extensões das próprias ideias de Bachelard e não em função de seus pressupostos. Isso induz a pensar que tais ideias parecem geradas por si mesmas, sem o enfrentamento de situações que são anteriores e determinantes aos atos de sua compreensão. Ou seja, duplica-se, assim, na exposição do projeto bachelardiano, a abstração que muitas vezes é aplicada à atividade imaginativa. Se a lógica e a coerência do projeto bachelardiano são explicáveis a partir apenas da lógica interna de seu pensamento, a atividade imaginante é uma atividade inteligível em si mesma, desconectada de contextos outros que o de sua própria autorreferenciação. Tal perspectiva solipsista, contudo, soçobra quando nos deparamos mais atentamente com os pressupostos presentes em O ar e os sonhos. A tensão imagem-imaginário que abre o livro é fundamental para nos situar nessa ultrapassagem de perspectivas unidimensionais tanto no estudo da atividade imaginante quanto na análise da argumentação bachelardiana (p. 1).1 A ação imaginante é situada 1 Como vou me concentrar apenas em O ar e os sonhos, as referências entre parêntesis se restrigem às páginas do referido livro. TERCEIRA PARTE BACHELARD, INTERPRETAÇÃO, SUBJETIVIDADE: A INTERAÇÃO ENTRE LEITOR E TEXTO E O PARADIGMA PERFORMATIVO NOS ESTUDOS DO IMAGINÁRIO

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sob o horizonte da mudança, da transformação, do nexo. O ato de vincular algo a outra coisa tematiza o que Bachelard denomina de mobilidade das imagens (p. 2). A ênfase na mudança, na transformação, reafirma, por um lado, as características de um projeto de hermenêutica da atividade imaginante, eclipsado pela recepção parcial da imaginação material e dinâmica, que se concentrou nos elementos em si, em possibilidade de fundamentar a atividade imaginante aprioristicamente, cartesianamente, ao se reduzir a complexidade e diversidade da produção imaginativa a quatro formas básicas. Para além dessa busca das formas ideais da atividade imaginativa, Bachelard reafirma em O ar e os sonhos o que acontece nessa atividade, a sua efetividade variacional e vinculativa. Por outro, ele funde em suas reflexões esta experiência dinâmica com a escritura que a descreve e comenta. De modo que, no lugar de explicitar totalmente como a atividade imaginativa funciona, Bachelard insere-se nos efeitos daquilo que investiga ao se expressar por meio de uma organização textual que atualiza aquilo mesmo que busca apreender. Assim, cabe a outro discurso, ao intérprete, a quem se vincula ao texto bachelardiano, tornar a movimentar essa dinâmica da experiência variacional imaginativa. Não é à toa que se percebe no texto bachelardiano acúmulo de sentenças que se sucedem em pé de igualdade, sem hierarquia, sem subordinação. Essa parataxe arrola séries de aproximações do que se procura definir: a atividade imaginativa sob o signo da mudança. Se se tematiza a mudança não como conteúdo abstrato e sim como algo efetivo em sua produção, essa mudança, essa capacidade de vincular diferença, precisa ser não apenas referida, nomeada como exposta em seus efeitos. A escritura bachelardidana em sua acumulação de sentenças que redefinem aquilo que busca apreender desloca o leitor da experiência de acompanhar um pensamento que aponta para algo para um pensamento que se organiza a partir da experiência de atualizar seu alvo observacional na própria expressão. 192

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A fusão entre comentário e experiência projeta um texto dificílimo que não se enquadra nos protocolos recorrentes de escrita intelectual, baseados seja na separação entre investigador e objeto investigados, seja no ensaísmo especulativo que se traduz no canibalismo de pseudoconceitos científicos. Para além da oposição entre subjetividade e objetividade ou da divagação totalitária dos pastiches analogizantes, Bachelard movimenta-se no contato com seu alvo observacional, expressando as variações que acontecem durante o contato. Pois a relação com aquilo que se investiga não é estática, não se confina a um momento isolado e único de apreensão. Qual melhor modelo para essa atividade interpretativa que o da ‘performance’? Mesmo lidando precipuamente com objetos e situações intelectuais, e no caso da teoria da imaginação, com uma cultura literária livresca, podemos perceber, principalmente em O ar e os sonhos, que mesmo sem ser nomeado, os pressupostos de G. Bachelard podem ser mais bem descritos como procedimentos de uma atividade performativamente orientada. Primeiro, temos uma atividade que se funda na interação. Tanto a atividade imaginante quanto sua interpretação dentro da proposta bachelardiana são determinadas por atos relacionais, que se definem por ações recíprocas entre agentes. No caso, não se trata de uma postura de se analisar uma obra e forjar um esquema na qual a única atividade presente em um processo interpretativo reside no movimento unidirecional do intérprete para a obra, como se a obra só existe em um lugar, ou em um agente. Como se vê na escrita bachelardiana, o intérprete acompanha o movimento das imagens que é o movimento de participação nas imagens. As imagens se associam, se distinguem, configuram uma amplitude que é correlativa dos atos de inserção e interação do intérprete com aquilo que estuda e usufrui. Fluxo, nexo e fruição. Daí a oposição imagem/imaginário. A constituição do imaginário não se reduz à identificação de seus componentes. O imaginário, este surplus, TERCEIRA PARTE BACHELARD, INTERPRETAÇÃO, SUBJETIVIDADE: A INTERAÇÃO ENTRE LEITOR E TEXTO E O PARADIGMA PERFORMATIVO NOS ESTUDOS DO IMAGINÁRIO

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materializa-se nos atos vinculantes, no contexto das trocas. Assim, interpretar um imaginário não é apenas distinguir e descrever um sistema fechado em si mesmo e sim tornar perceptíveis os diversos procedimentos que simultaneamente implicam as figuras correlacionadas e seus efeitos recepcionais. Imaginário é contextura de atos vinculantes: as imagens atuam uma sobre as outras assim como o intérprete é afetado pelas imagens. As imagens em movimento são proporcionais à dinâmica interpretativa. Segundo, por consequência, a interação se efetiva performativamente. Pois, se o imaginário é uma contextura de vínculos, a compreensão do imaginário se dá nos atos de participação. Com isso, do mesmo modo que é preciso ultrapassar pressupostos que consideram os produtos da atividade imaginante entidades autotélicas, a orientação performativa explicita a orientação das orientações de um imaginário. Vincular-se é agir, é atuar, é responder impulso a um impulso. A orientação performativa explicita o acabamento da atividade imaginante, a qual não se reduz no registro de universo que se sustenta apenas no catálogo das coisas dispostas em uma ordem. Essa seleção e ordenação não o são das imagens somente, mas das alterações no contato, no jogo entre o impulso que recebe e o impulso resposta. Pois o que vem, o que afeta, o que é apropriado demanda atos correlativos de elaboração, de recepção. Então em um e mesmo movimento age-se sobre aquilo que provoca a ação. E como nesse encontro de atos não há a identidade entre os movimentos, o que de fato se realiza é a amplitude do processo. Pode-se decompor o processo de produção em seus instantes e partes. Porém, se indo em direção oposta, em vez de se buscar uma instância prévia que explicaria tudo o que acontece na atividade imaginante, nos ocupássemos mais detidamente dela em seu contexto de produção, ficaria evidente que mesmo começando a observá-la, seja na perspectiva de uma obra isolada e de sua morfologia, seja na perspectiva de quem a interpreta, aquilo que denominamos de horizonte integral 194

IMAGINAÇÃO E MORTE: ESTUDOS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FINITUDE

ou amplitude de sua realização não se contata em nenhuma e outra cena. A questão da ‘performance’ esclarece o contexto de produção da atividade imaginativa ao dotar todos os integrantes do processo de atos de modificação daquilo no qual se inserem. Nesse sentido, o esforço de Bachelard em O ar e os sonhos em rever suas pesquisas, enfatizando que o projeto da imaginação dos elementos se completa em imaginação material e dinâmica. Pois, em primeiro momento, haveria a ilusão de se chegar a compreensão global da atividade imaginante ao se completar um catálogo de substâncias (terra, fogo, água, ar). Mas o que importa não é a coisa em si e sim o que se faz com ela. Segundo Bachelard, o desafio de uma compreensão da atividade imaginante em sua amplitude está em estabelecer “entre as coisas e nós próprios uma correspondência de materialidade” (p. 9). Chegamos pois ao corolário dessa demanda por uma compreensão mais ampla da atividade imaginativa: aquilo que está na obra, está no mundo. O mundo é uma obra, toda obra é ato cosmogônico. Interações e participações não são atos exclusivos da atividade imaginante. O deslocamento da interpretação dos atos oníricos para um modelo performativo é a busca por uma hermenêutica da imaginação que não mais se confine em isolar atos criativos na abstração de sua excepcionalidade. Bachelard, como intérprete de obras imaginativas em seus livros, ao movimentarse nas variações de sua escrita que acumula experiências com as realizações oníricas com as quais interage, bem demonstra tal modelo performativo. Pois não somente insere no seu texto a sua participação nos imaginários analisados, como também concretiza essa situação interativa por sua interatividade. Desta forma, a recorrência dos atos de análise dos imaginários e da dinâmica observacional em O ar e os sonhos demarca que os atos não são pontuais ou isolados e sim materializações do modelo que as determina. As variações presente no texto paratático não são opções de estilo ou acúmulos de sensações isoladas de TERCEIRA PARTE BACHELARD, INTERPRETAÇÃO, SUBJETIVIDADE: A INTERAÇÃO ENTRE LEITOR E TEXTO E O PARADIGMA PERFORMATIVO NOS ESTUDOS DO IMAGINÁRIO

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uma subjetividade ensimesmada. Bachelard, como intérprete de obras imaginativas, demonstra que não há imagens sem imaginário, o qual se compreende em seu contexto de produção performativamente orientado. A correlação entre os movimentos das imagens e as variações entre os atos de participação no imaginário nos situa diante de outras estratégias não somente para nos aproximar do ‘estilo’ de G. Bachelard. E por que este estilo é difícil, críptico, elíptico, idiossincrásico? Ora, tais qualidades atribuídas por nós a este estilo advêm de expectativas, de protocolos de leitura. Primeiro, a não organização da obra em torno de tema central, ou melhor, o texto de Bachelard não se constrói a partir de expansão sem modificações de uma ideia. Segundo, assim como há ‘instabilidade temática’ também há instabilidade da figura do articulador do texto: o ‘autor’ não restringe a papel de bastidor, de homogeneidade de sua função. Assim, o leitor encontra-se em situação que complica sua participação no texto bachelardiano: terá dificuldade em seguir uma tópica que nunca se expressa totalmente, e uma voz autoral que continuamente diversifica seu papel na cena textual. Assim, Bachelard desloca a textualidade de seus livros para um modelo performativo, ao preconizar os atos sobre o dizer. Ao não enunciar um discurso fechado e promover os atos de participação naquilo que analisa e estuda, Bachelard descentra o registro escrito de suas interpretações de um modelo da fala plena, que nomearia e identificaria distinções, hierarquias, produtos finais. Ao assim agir, Bachelard torna simultâneo o ato de participação nas coisas com as quais interage com o ato de se reelaborar nesse contato. Essa presença, essa atualidade de nexos diversos, potencializa futuros desdobramentos dos que agora se vinculam como leitores de Bachelard. Daí ler Bachelard não é apenas tentar explicá-lo, mas mover esta compreensão de atividade imaginante para outras atividades imaginantes. A orientação performativa da escrita bachelardiana impulsiona novos atos criativos. 196

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Esse descentramento do modelo da palavra plena para o modelo performativo acarreta também que se compreenda o caráter vinculante da compreensão como resposta a algo. A concretude e determinação desse ato descartam o pensar sobre o pensar, ou atividade variacional que não se efetive sem a coisa. Nesse sentido, se as interações e as participações estão no mundo, produzir obras é interagir com obras, é participar do mundo. Os produtos da atividade imaginante têm como sua materialidade aquilo que determina o mundo: atos de interação e participação. Para tanto é preciso ir além do que Bachelard chama de “jogos da imaginação formal” (p. 9), ou focar mais nos elementos isolados que em suas relações. Daí a identificação entre imagem e visualidade, imagem e imaginário sem considerar todo o processo produtivo que as torna possível. A defesa desse cógito relacional, vinculante e variacional não se completa em nova abstração, em seriação indefinida de conceitos desprovidos de contexto de sua produção. Bachelard desloca-se para uma modelo performativo para escapar de um modelo da verbalidade absoluto como forma de, ao estudar a imaginação literária, poder se aproximar de uma antropologia do onirismo. E assim fazendo, Bachelard em nenhum momento defende uma instância metacognitiva como espaço que se locupleta na linguagem das linguagens, correlativa de uma subjetividade desvinculada de todo e qualquer contato com algo diferente de si mesma. Dessa forma, o paradigma performativo em Bachelard, mesmo que não expressamente nomeado, mas registrado na textualidade, se nos oferece não como momento em uma pré-história da contemporaneidade, e sim como problematização ainda digna de ser mais bem revisitada de proposições heterodoxas.

TERCEIRA PARTE BACHELARD, INTERPRETAÇÃO, SUBJETIVIDADE: A INTERAÇÃO ENTRE LEITOR E TEXTO E O PARADIGMA PERFORMATIVO NOS ESTUDOS DO IMAGINÁRIO

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IMAGINAÇÃO E MORTE: ESTUDOS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FINITUDE

15. ESPAÇO ONÍRICO E ESPAÇO CÊNICO: ELEMENTOS PARA UMA TEORIA DRAMÁTICA DO CONHECIMENTO1 “O espaço foi tratado como o morto, o fixo, o não dialético, o imóvel. O tempo, ao contrário era a riqueza, a fecundidade, a vida, a dialética.” (M. Foucault) “Por que então seus olhos vinham pintados de azul nos mapas?” (João Cabral de Melo Neto)

Não é em vão que o atual incremento da reflexão da atividade geográfica, frente ao excesso de formalismo e abstração teórica das chamadas Ciências Sociais, configura problemática inerente ao inquietante momento em que vivem o pensamento e a realidade neste fim de século. À questão do espaço parece fazer convergir a heteromorfose das atitudes hipercríticas da tradição ocidental que elegeu como dominância temática a superação de suas motivações metafísicas.2 Antes, a linguagem; após, a imaginação; e, agora, o espaço – neste movimento nos situamos em uma etapa dessa reorientação do saber para a estrutura concreta da compreensão em sua efetividade. Em dois mil anos de coroação da temporalidade e reificação da localidade, o incremento da discussão sobre o 1 Comunicação apresentada ao 5º Congresso Internacional ABRALIC, realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996. 2 HEIDEGGER, M. O ser e o tempo. Petrópolis: Vozes, 1989.

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circunscrito, o contingente eleva o problema a contexto de drama cultural. A materialidade recuperada nunca deixou de ser periférica na atividade imaginante. A vivência e a experiência do corpóreo e do finito sempre permearam a expressão poética. Ao fim da primeira parte do poema O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto, surge um conjunto de perguntas, como forma de expressão e apreensão da verdadeira realidade de um espaço onírico. Trata-se da poematização e da problematização de um referente, que questiona a representação da localidade. Ou seja, o que está em jogo não é comunicar os dados e as informações de uma realidade como dada. Ao contrário, objetiva-se submetê-la a um tratamento discursivo que a situe não como tema de acordo e exibição, mas sim procura-se recuperar a complexidade e a pluralidade de níveis do que se apresenta ao propô-la, integrando-a nessa complexidade questionante. Ao fim desta parte do poema, pergunta-se: “aquele rio / saltou alegre em alguma parte? / Foi canção ou fonte em alguma parte? / Por que então seus olhos vinham pintados de azul / nos mapas?” O que se oferece para o receptor da mensagem textual é a disparidade entre representação cartográfica e facticidade da existência. Ao rio do mapa não correspondem as águas da vida. A relação efetiva do homem com seu mundo, na afetividade específica de suas pulsões, não encontra eco na linguagem da ciência geográfica. Essa ciência é saber depositário de outra forma de conhecimento, modo de compreender e veicular uma organização da realidade que não corresponde à mediação desta por estruturas da sensibilidade. Purgam-se os eventos na própria raiz dos traços que possuam memória afetiva. O que interessa agora, na representação cartográfica, é a disponibilidade dos eventos em receber a moldura cognitiva de sua objetividade – que se justifica na neutralidade científica, ausência da participação do observador no fenômeno observado. 200

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Para tanto, estabelece-se dialética aparente de sujeito e de objeto. O rio é expresso e configurado em conjunto de relações que retomam propriedades físicas as mais unívocas e gerais possíveis. Este rio deve ser o rio para todos e para ninguém, águas abstratas que não movem moinhos e impulsionam economias; que não lavam roupas, mas mantêm a liquidez das contas dos proprietários de terras; que não são imagens, mas conceitos. O sujeito participa desse rio-conceito apenas para negar sua participação. Incapaz de oferecer um saber sobre as águas que vê em sua frente, deve ele esperar a validez de seu vínculo com o mundo que o rodeia na estabilidade definitiva de significação que lhe outorgará o mapa. “Por que então seus olhos vinham pintados de azul / nos mapas?” é pergunta que nasce da inquietação e insatisfação quanto à validade dessa medi(a)ção inteligível da realidade. Pois aqui não há razão nenhuma. Não há razão cativa de sua experiência. O rio-conceito é olhar cego, miopia interpretativa. A desconfiança é traduzida por imagens (“olhos”) que aderem e atualizam um momento de reflexão que retoma o espaço concreto e vital como horizonte último e íntimo dos sujeitos. Enfim, temos aqui descontinuidade entre representação e imagem. A recuperação do espaço encontra-se neste extenso e intenso projeto de orientação do pensar para a motivação precípua da sensibilidade. Não se pode mais reduzir o espaço à materialidade impressa nas relações de corpo/materiais, como bem assinala a etimologia da palavra real (realis, res rei). A capacidade restritiva da localidade, sua natureza de cerceamento de possibilidades, transforma-se em disponibilidade, em factível presença dos limites mesmos do homem. O homem é um ser espacial, o homem é espaço em seu fazer-se antecipador, impulsionado pela dialética limite/liminar que o caracteriza. Dessa maneira, o espaço não é um dado, mas intenção que, em sua dinâmica de elementos co-ocorrentes, produz nexos, mas sempre a partir de um prévio. O espaço ilumina a estrutura TERCEIRA PARTE ESPAÇO ONÍRICO E ESPAÇO CÊNICO: ELEMENTOS PARA UMA TEORIA DRAMÁTICA DO CONHECIMENTO

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pressupositiva que nos comanda, atualiza a impossibilidade de eliminação desse limite que é condição de abertura. Incrustado no homem, o espaço é realidade e meditação da finitude que em nós existe. Sendo a imaginação a operacionalização da finitude, a imaginação do espaço é a apreensão de nossa realidade, metalinguagem da estrutura de nossa alma. Bachelard bem descreveu essa topologia do anímico.3 Bachelard caracteriza o espaço onírico como dinâmica de dois impulsos contrários e complementares. O primeiro é o da concentração, da despersonalização que se personifica na adesão total do desejo, fundido o querer e o pretendido. A intencionalidade aqui se transmuta em imanência, através da qual o sujeito em encalço a seu objeto desejado funde-se com ele e ganha para si a reversibilidade de sua motivação. A primeira geometria é a de um centro, imagem do círculo que, rompendo com a linearidade de perspectiva, doa a reapropriação do sujeito consigo mesmo. O “a mais” que se ganha aqui é a conexão com o horizonte íntimo de sua densidade. Concentrando-se, experimenta-se o peso e a matéria do qual é feito. A vertigem da busca torna-se a visagem do corpo presente. O além-nós é a memória do aquém, do agora e do aqui. No primeiro momento da imaginação, somos tomados de uma ciência de nossa materialidade. Só imaginamos porque somos horizonte de nossa ultrapassagem. Quanto mais se concretiza nosso impulso, mais e melhor o onirismo se processa. Bem sonhar é reverter a projeção em autoconhecimento, é tomar da diferença, da alteridade do objeto desejado que nos é distante em proximidade para conosco. A incorpórea e vaga dimensão do intencionado requer a premência de buscar a realidade de quem sonha. O vago da alteridade provoca a contingência da liminaridade. Concentrar-se é possibilitar-se à imaginação. 3 G. Bachelard. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

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O primeiro movimento, pois, no espaço onírico é o de ‘antimovimento’, diversa teleologia que frustra a causalidade e altera o telos esperado. O segundo movimento contrário e complementar é o de vontade de irradiação, de ultrapassar o centro do confinamento do homem consigo, abertura à sua expressão, como impulsionada pela circunscrição anterior. Se antes, ao se evadir, introjetou-se, agora, por ter se limitado, projeta-se, prolonga-se. Dentro e fora, frente e fundo são modos de indicar o posicionamento do ser imaginante no espaço onírico, logos posicional que ratifica a necessidade de um horizonte factível para as ocorrências. Vemos que esses dois momentos de concentração e de irradiação são, na verdade, modos de realização e confirmação de nossa finitude. Mais que isso: a caracterização bachelardiana é também apresentação da hierarquia interna desses modos. Concentrar e distender não só são diversos modos de como se formam uma relação de anterioridade que corresponde à experiência imaginante. O que temos, desde logo, é uma experiência com a distância. O que dista permanece como ausente, como não acolhido e assimilado. Para um outrem o desejo imaginante aponta, para um distante, mas (re)torna para com a mesma intensidade do que aqui não está. No círculo, início e fim se encontram. O concentramento é a confirmação da distância irremovível, inadiável e impossível de ser ultrapassada. A imaginação não é fuga – é urgência do limite, acontecer de nossa contingência sempre esquecida no tempo rápido da vida. Imaginar é estar presente ali, nessa situação originária na qual o outrem é horizonte de uma impossibilidade, nossa única possibilidade na ausência, na fatal conclusão de haver separação, descontinuidade, intervalo entre o ‘eu’ e o desejado. Na verdade o ‘eu’ é um ser desdobrado. Só se pode buscar a proximidade; ou, da experiência com a distância, buscar o ausente. Este é o TERCEIRA PARTE ESPAÇO ONÍRICO E ESPAÇO CÊNICO: ELEMENTOS PARA UMA TEORIA DRAMÁTICA DO CONHECIMENTO

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espaço onírico: a dramatização de uma situação originária que é o horizonte de nossa imaginação – a finitude. O espaço onírico nos reenvia para essa situação originária muito presente nas geografias míticas da antiguidade.4 Veja-se, pois, que, desde os primórdios, o homem expressou-se por imagens para atualizar seu conhecimento do mundo, um mundo ainda cósmico, presente e inerente à sua experiência de limites, como se vê na codificação mítica. Diverso momento da imaginação dos limites transparece na codificação cênica. O drama veiculado por pessoas com palavras, gestos e canto no teatro revigora essa verdade da distância que o espaço onírico proclama. O espaço cênico é o da realização de um imaginário, da efetivação de uma distância, de testemunho da finitude. Fator construtivo determinante no agenciamento desse espaço cênico é a ‘ilusão dramática’.5 Nesta ilusão, temos a separabilidade de duas presenças copertinentes e avistadas em interação. Palco e plateia permanecem conjugadas e diversas, como duas totalidades heterogêneas. Até o fim do espetáculo, medeia-se a diferença em encontro no imaginário representando. Um é o mundo do palco, na corporificação de um projeto artístico; outro, o mundo da vida, que cessa seus afazeres para abrir-se ao drama da ficção. A cena toma do mundo da vida os materiais que serão modificados em sua interpretação imagética; o público toma do visto e do configurado os temas e as imagens que irreversivelmente já farão parte do estoque de representações de sua vida. Complementares e copresentes, contudo, palco e plateia permanecem distantes, conjugados em uma diversidade de níveis da realidade que os define. 4 V. E. Sousa. História e mito. Brasília: Editora UnB, 1978. 5 As sintéticas reflexões desta parte foram ampliadas em M. Mota. A imaginação dramática. Brasília, Texto&Imagem, 1998.

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Na tradição ocidental, a experiência dramática foi acomodada em duas instâncias dominantes: a trágica e a cômica. Historicamente com o teatro grego, e no movimento de sua formatividade, vemos alterações de sua orientação espacializante. A instância trágica toma por foco a distância, que, no percurso de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, de uma normatividade religiosa, ética e subjetiva, instaura-se projeto de proximidade. Começa uma tragédia e sabemos de um irreversível acontecimento que será multiperspectivado pelas cenas que se sucedem descontinuamente, como pontos de iluminação desse trajeto rumo ao impossível de ser desfeito e negado. Vemos o prosseguir de uma realidade que não será refutada. Forma-se no público imaginário de antecipações que só confirmam o que se espera e do que nunca se desconfia. Aqui é o contraditório espaço de uma direcionalidade que se intensifica e ganha sua integridade. Esta é a categoria do trágico: um projeto que não será alterado, mas que se suspende nessa impossibilidade, para, ao invés de se confinar à sua resolução, orientar-se para a experiência com esse limite intransponível. Daí a morte presente no espetáculo. Essa dimensão da morte que chega a todos não pode ser vista como motivação do enredo. Morte aqui é imagem, acatamento da finitude. Os personagens ou morrem ou matam, estão indissoluvelmente ligados a esse fator de coesão e de coerência do trágico. De seu modo, o cômico é a presença de proximidade. Na modificação do trágico em Eurípides, vemos como o excesso de proximidade e empatia produzidos em cena transformam o trágico em cômico. A comédia surge como interpretação do trágico, dessa impossibilidade, transmutando a impossibilidade da distância, que culmina na morte, em impossibilidade da proximidade, que vira sua própria paródia.

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Note-se a intencional e estratégica quebra da ‘ilusão cênica’ na comédia, com o recurso da parábase e a ‘interface’ do conteúdo representado com a contemporaneidade do receptor, em seus contextos de ação na polis. Em Aristófanes, a passagem de sua comédia social e de tipos para aquela de crítica da representação, das ideias-motores de seu tempo, mostra afastamento no seio do cômico. No trajeto da arte trágica, vemos a passagem da distância para a proximidade; na comédia, da proximidade para a distância. Estes posicionamentos retomam laços da comunidade helênica com sua cultura, com sua memória mítica e lendária. A tragicidade, contrariando seu princípio de composição, passa a expurgar seu mithos (para contraditoriamente recuperá-lo em As bacantes, como último suspiro e vocação da arte de Eurípides), enquanto a comédia, em seu criticismo da modernidade helênica, avistada na pregação sofista, recupera a tradição. Desta forma, a reapropriação da questão do espaço no pensamento contemporâneo retoma a atualidade de uma ‘interrogação transhistórica’ atrelada ao percurso desenvolvimentista de nosso legado ocidental, no qual se defrontam novamente tradição e razão. Os filtros culturais do Cristianismo e do Iluminismo, em sua categorização da experiência humana e desvalorização dos aspectos relacionados com o pensar os limites, proporcionam o soerguer de uma atitude condenatória frente ao espaço, este advisto como resíduo de uma experiência inteligível e, consequentemente, negação da atividade imaginante da corporificação dramática. E essa cultura da crise, na qual a anomia da modernidade reitera, pode ser compreendida em sua falência frente às estratégias interpretativas e cognitivas quanto ao espaço, como recusa altissonante e peremptória à ‘distância’. Heidegger bem percebeu este contexto de nossa época no seminário Das ding: “No tempo e no espaço todas as distâncias 206

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se contraem.[...] No tempo mais breve o homem vence os mais longos percursos. Deixa para trás de si as maiores distâncias, e todas as coisas traz para diante de si, à menor distância. Só que a célere supressão de toda a distância não traz nenhuma proximidade: pois esta não consiste na pouca extensão de distância”.6 Enfim, “por que seus olhos vinham pintados de azul nos mapas?” é a sintomática dissonância que o sujeito ficcional de um poema percebe no simulacro da realidade depositado em uma representação cartográfica. Tal sujeito, o poema mesmo, pergunta e responde por uma ausência, uma descontinuidade entre a moldura conceitual e a imagem, descontinuidade essa que recupera a fatal ilusão cênica que preserva as diferenças entre realidade e imaginação. Pois esse é o resultado da supressão da espacialidade em nossa tradição: reduzir a heterogeneidade essencial dos acontecimentos de sentido pelo monitoramento da experiência do sujeito. O ilimitado e atemporal do projeto racional ou sua reutilização na nova ilustração de contextura midiática e mercadológica suprimem a topologia do ser no jogo com sua corporeidade e rotinização frente à localidade. Expropriado, o homem dissolve-se nas fantasmagorias dos ruídos e das luzes que abafam sua intervenção frente a seu mundo. Sem seu espaço de vigília, sem a expectativa da distância, não há o que crer, não há nada para imaginar. A concentração do espaço onírico, antes da expansão, notabiliza desdobramento personativo que significa a pluralidade material significadora e prévia do homem. Só uma dramaticidade aplicada consegue recuperar essa distância impossível de ser percorrida na qual o homem cifra imaginários com a encenação de uma morte, de uma vida que sabe da imagem-morte como realidade de um limite, de um 6 Sigo a tradução de José Xavier de Mello Carneiro, presente no livro Mitologia, de Eudoro de Sousa (Editora UnB, 1980).

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desconhecido-grande-outro contemporâneo de nossa abissal existência. As imagens de profundidade enraízam em nossa espacialidade vital.

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16. O VAZIO HISTORIOGRÁFICO EM TORNO DE GASTON BACHELARD Do vazio: falar dele é situar-se no óbvio. Deixá-lo falar é não preenchê-lo. Todo vazio historiográfico indica o que não se pôde ter ou ser. A insuficiência é reveladora e produtiva. Trabalha-se na dialética do limite-liminar. De sua abismática ausência, a possibilidade para sentido posteriormente presentificável. O vazio historiográfico avista os modos de fundamentar as constatações de um discurso sobre a História, a partir da História. Logo, a verificação do vazio em torno de Bachelard – o acesso da intelectualidade ao bojo das problemáticas por ele aferidas – presta-se não a uma simples atualização ratificadora ou à pura divulgação retificadora. Neste texto buscamos compreender Bachelard para que se compreenda o próprio sistema intelectual brasileiro.1 O pensamento de Gastão Bacheland se situa após a derrocada da episteme clássica, com seu preceituário de regras e ingerências ao analista. Esta episteme fundamentou-se na pretensão hegemônica das chamadas “ciências da natureza” sobre as “do espírito”. Tal divisão artificial plenipotenciava o cognitivo frente às outras capacidades humanas – volitivas e efetivas. Trata-se de bruta inversão do modo pelo qual opera a compreensão mesma. Interrompeu-se o fluxo interpretativo, marcado pela interpenetração produtiva do ser que conhece e daquilo que se conhece, para infirmar a abstrata metafísica da 1 Texto escrito em 1992. Para acompanhar a produtividade da presença de Gaston Bachelard no Brasil, v. Bachelard. Pedagogia da Razão, Pedagogia da imaginação, de E. Barbosa e M. Bulcão (Vozes, 2004).

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identidade, da pura presença, o que acarretou a epistemologia do sujeito e do objeto. Como se realiza tal episteme? Quebrando com a processualidade do conhecimento, difunde-se o objeto em sua instância material, dotada do máximo de sua objetividade, e o sujeito que o projetou esconde-se por trás de sua obra, como manda o mito da neutralidade científica. Assim, lidando com objetos propositados, naturalmente verificados, a episteme clássica impera com sua pretensão dominadora, movimentando-se por simulacros obtidos em termos de uma base restritiva de suas investigações. A crise se dará quando da aplicação artificiosa desta episteme às “ciências do espírito”. Ora, é pelo artificial modo de ser de tais oposições, é pela realidade ontológica mesma do processo de compreensão que aplicabilidades oriundas de processos parciais tornam-se insatisfatórias. Pois, na sublevação do cognitivo sobre os outros elementos, bloqueia-se a maneira pela qual se opera a relação homem-mundo. Posto que sujeito e objeto estão ligados somente por um projeto mascarador que os apreende, a interrupção, a abstração circunscrevem a fatal perda da historicidade, marca diferencial do ser humano. Bachelard começa pelas “ciências da natureza”. Seu intuito é desarticular a epistemologia em relação às tradicionais concepções desta. O ponto básico é o da ruptura com qualquer referência a certas utilizações de um conceito estático de natureza, imutável fonte das produções humanas. Temos aqui uma ilusão referencial, uma miopia secular sobre como o real é viabilizado. O que dá status de existência à realidade é a sua realização. É pelo reenvio ao projeto de sua matematização e configuração que se pode compreender o produto. Desta forma, situando-se na fonte de destino do fenômeno – no nexo pelo qual o conhecimento humano desponta, ao invés das simples objectualidades e simples subjetividade radical – é que temos, verdadeiramente, o que 210

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assume e conduz o sentido e a riqueza do conhecimento. O sentido é internalizado, é construído a cada passo de sua disposição em operações coextensivas ao nexo sujeito-objeto. Com o retorno para o fenômeno mesmo como fonte de orientação das significações a serem detectadas, temos a complementaridade entre um cógito discursivo de um racionalismo aplicado e o materialismo racional construtivamente instaurado – a interação da constatação objetiva do observável e a instância de objetivação do observador. “Nada é dado, tudo é construído”. A realidade científica o é de sua movente superação. O observador comparece na dialética do erro significativo e da infirmação antecipadora, enquanto a matéria se faz energia, e a energia, matéria, ultrapassando suas fronteiras formais. Torna-se alvo de um discurso, um problema a resolver por operações intelectuais e técnicas. O pensamento se move na derrocada de seus limites, no afã de ultrapassar as aparências e referências imediatas do que analisa. Na verdade, descobrir é conhecer. Nesta nova epistemologia, reabilitam-se os antigos valores que haviam sido denegados. A linguagem e a imaginação, ativamente inter-relacionadas ao processo cognitivo, preconizam outras estratégias de inteligibilidade e um Novo Humanismo. Mas o processo não para. Tal atualização reavaliadora da crise do pensamento ocidental europeu prolonga-se. Passamos agora para novo degrau. Não bastou reverter a epistomologia a seus fundamentos interpretativos. Passa-se agora da epistemologia à hermenêutica. O fazer dos fatos, agora descortinado, é precedido de um meta-fazer, das condições de realização. Bachelard se aplica ao estudo do discurso literário, específico tipo de discurso preocupado na maturação das capacidades linguístico-imaginativas. A passagem para o poético é pedida pela retomada mesma de como a processualidade do conhecimento ocorre, pela reabilitação do sensível frente ao inteligível. Desta feita, rompe-se com dualismos aparentes, eternas metáforas do imediato. É a partir TERCEIRA PARTE O VAZIO HISTORIOGRÁFICO EM TORNO DE GASTON BACHELARD

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da situação hermenêutica do intérprete e de sua finitude que se especifica a sua compreensão, o seu modo de dar-se ao mundo e do mundo dar-se ao intérprete. Extensivamente à complementaridade de observador e observado, proposta na renovação da epistemologia, Bachelard, em sua análise do discurso poético, anuncia a correlação sistêmica entre imaginante e imaginado. O imaginante se inscreve no imaginado e o imaginado o denuncia. O sonhador que devaneia é guiado pelo seu sonho, de modo que o sujeito do verbo imaginar é a imagem. Seu cógito é fronteiriço, liminar, dialético, posto que não comanda, mas é objeto de viabilização da imagem. É por seu movimento de despersonalizar-se, de se transformar em contextura imaginária, orientação ao nada, que a subjetividade pode dotar de possibilidade de existência uma criação poética. Inscreve-se no movimento mesmo do poema, em seu contínuo refluir para si mesmo, diferenciando-se, diversificando-se. Estamos situados na dimensão ontológica da criação, que se sustenta na dialética da identidade e da diferença. A descontinuidade é a maneira fundamental para que a especificidade aconteça. Na correlação sistêmica entre imaginante e imaginado, transparecendo este cógito fronteiriço, o que temos é a reflexão sobre o modo como acontecem os eventos de sentido que interrogam e fundam o homem. Tudo é descontínuo. Cotidianamente vemos sempre coisas criadas, ao invés de nos interrogar pela gênese de sua objetivação. Só que esta inversão é significativa, pois não interessa o que se desvela ou o que se oculta, mas o ritmo do que se oculta desvelando e do que desvela ocultando. Tome-se como exemplo a chamada leitura onírica de textos ficcionais que Bachelard advoga. A expressão ‘leitura onírica’ converte-se em adjetivação e subjetivação de suas operações interpretativas. Sua leitura se situa ao mesmo nível do que lê, prolonga os sonhos do poeta, devaneia com o texto escrito, é onírica a sua leitura. Ao mesmo tempo, segue e persegue o ritmo 212

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imagético constituidor do texto analisado. Tal ritmo não se encontra nas referências habituais a um sentido anterior ao texto, a um referente externo, nem no psiquismo puro nem na linguagem cotidiana ou dicionarizada. As imagens não se explicam mais que por si mesmas. É uma leitura do onirismo do texto. Bachelard reinventa o que os poetas sempre souberam: a irrealidade tem sua realidade, seu estatuto ontológico próprio, e desempenha papel fundamental dentro da estrutura pressupositiva do conhecimento humano. O devaneio e sua distensão no poema-discurso lidam com as potencialidades da imaginação e da linguagem – forma privilegiada de antecipação, de abertura cósmica, na qual temos um mundo e um homem ascendendo à existência.

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17. O LOGOS DO MITO EM EUDORO DE SOUSA1 “O que no mundo acontece são as malhas que o deus tece.” (MIT, 150)2

As linhas diretrizes do pensamento de Eudoro de Souza se encontram num texto programático apresentado no III Congresso Nacional de Filosofia, em 1959, que se intitula Teísmo, Cosmobiologia e Princípio de Complementaridade. Reorientando o célebre conceito da física contemporânea em função do questionamento da tradição de ideias ocidental, Eudoro busca romper com a oficiosidade de um pensar absolutista e totalitário, excluidor das diferenças, em prol do resgate e da reabilitação do componente mítico de nossa conduta. Ou seja, a partir de uma releitura da tradição ocidental europeia, tendo por base a revisão de suas facetas mítico-metafísicas, Eudoro de Sousa progressivamente repõe o mítico, procedendo, já no fim deste processo, à radicalização do simbólico, postulando-o como pré-determinante na constituição dos sentidos e significações em que a compreensão humana se debate. Várias questões, em razão disto, aparecem interligadas: fenomenologia da consciência religiosa como aporte para codificações filomíticas complementares da realidade; a origem 1 Reescrita de comunicação apresentada ao 3º Congresso Abralic, São Paulo, 1992. 2 As abreviaturas relativas à obra de Eudoro de Sousa citadas neste capítulo são as seguintes: (MIT) Mitologia, Editora da UnB, 1980; (HM) História e mito, Editora da UnB, 1981; (HC) Horizonte e complemetaridade, São Paulo: Duas Cidades, 1975; (SMAM) Sempre o mesmo acerca do mesmo, Editora da UnB, 1978; (DC) Dioniso em Creta e outros ensaios, São Paulo: Duas Cidades, 1973; (BA) As bacantes, de Eurípides, São Paulo: Duas Cidades, 1974.

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da poesia da crise religiosa grega; a motivação hermenêutica das representações míticas; e, finalmente, elementos para uma teoria dramática do conhecimento, a ser realizado por uma anábase meta-histórica. Contudo, o fio coesivo-explicativo se encontra no logos do mito. Será a mitologia apenas biografia de deuses? Será ela apenas conjunto de narrativas a respeito dos sucessos e insucessos das relações entre deuses, homens e mundo no que estes sucessos e insucessos infundem mais diretamente? De e que nos fala o mito, se é que ele se impõe a algo definir? O que se representa, o que se pensa na mitologia? Terá o mito o seu logos, não no sentido lógico-discursivo, mas como mediação e meditação do modo de ser existenciário do homem? A visão normatizadora do mito tenta apreendê-lo dentro dos percursos dominantes da tradição filosófica ocidental, por meio da fórmula “do mito para o logos”. O percurso positivista da humanidade é o dia negação de sua componente mitológica. Este conflito entre duas ordens de mundo iniciou-se, segundo Eudoro, na Grécia. Ao refutar aspectos pré-helênicos de sua cultura, a Grécia preparou a metafísica e a formalização de um saber indisposto à própria experiência de pensar, um saber desconectado da existência, um conhecimento sem ritual e sem culto, aplicável em qualquer situação nenhuma. A codificacão dos eventos passados, dos eventos primordiais, é feita para descontextualizar uma interrogação sobre as origens. Assim, a mitologia, esta meta coleção de narrativas, torna-se “eutanásia do mito pré-helênico” (DC, 30). Ponto fundamental para esta mudaça de mentalidade se encontra na nova concepção da morte. À unidade religiosa da mediterrânea oriental, cultuando a morte de um deus que dava origem aos homens e ao mundo, provando a sobredeterminação da finitude como horizonte possibilitador do ser, contrapõe-se o monologismo burocrático-administrativo dos limites. O que 216

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importa é aplainar a diferença e a descontinuidade que a finitude revigora. Esta é a crise da consciência religiosa grega (DC, 75-91), na qual se avista o distanciamento de um pensar comprometido com os fundamentos existenciais finitos da compreensão humana. Tal reversão e julgamento da morte operados pela reforma homérica desentendem “a existência dos deuses antes que a filosofia lhes alterasse o modo de existirem: uma vida condicionada pela Morte” (DC, 158-159). Ora, desconsiderando os deuses em sua agonia fundante e a morte como possibilidade, como criação, a simples biografia dos deuses ignora que o drama ritual mítico encena a morte destes que, “morrendo, se transformam nas coisas vivas que há no mundo. [...] Em verdade os deuses não criaram o mundo; transformaram-se no mundo [...], intricados fios de uma teogonia e de uma cosmologia [...] cujo argumento poderia ser formulado nestes termos: como vive o mundo a morte dos deuses, sem que os deuses deixem a viver no mundo” (DC, 162-163). O mito não é discurso compatível com a despotenciação do aspecto tanático efetivo da existência. Antes, articula a sensibilidade humana que tira seu vigor da morte enquanto possibilidade de sentido. Vida e morte são complementares. A vocação ao contraditório para unir momentos que, no horizonte comum da existência humana, estão isolados, já na etimologia mesma da palavra ‘mito’ transparece: “entre mito (poesia) e mistério (religião) se interpõe a diversa quantidade de uma vogal...o verbo que corresponde ao substantivo mythos é mythéomai, que significa “falar”, “dizer”, e ambos os vocábulos provêm de uma raiz que contém um “y” breve; o verbo que corresponde ao substantivo mystérion é myein ou myisthai, com o sentido de “fechar” (olhos, boca, ferimentos), em que a raiz my- se escreve com “y” longo, e figura, por exemplo, no latim mutus e no sânscrito mukas, ambos os termos com o significado TERCEIRA PARTE O LOGOS DO MITO EM EUDORO DE SOUSA

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de “mudo”, “silente”. Por conseguinte, a oposição da quantidade vocálica parece somar-se à oposição semântica entre a palavra e o silêncio, o silêncio e a palavra” (DC, 177). Com isso, o mítico situa-se dinamicamemte no intervalo limite-liminar da expressão, no qual verbalidade e silêncio se implicam mutuamente. A palavra no mito é discurso que não se totaliza na expressão. Não existe a ruptura entre processo de representação e representado. O dito sempre é acompanhado de um não dito, de tematização de sua possibilidade de sentido. A fala mítica não está circunscrita à localidade de seus elementos. Não se trata de apresentar um referente decomposto destituído de sua instância de efetivação. O percurso temporal do simbólico é o transcurso da simultaneidade entre a origem e o originado, demonstrando que compreensão de um processo de sentido se encontra presente em todas as etapas de sua elaboração. O sentido a constituir está no tempo de sua constituição para que se observe a indissociabilidade entre estrutura da criatividade e a tematização de um saber. Sem horizonte de possibilitação, o discurso é uma decorrência de feitos formais e recorrentes em uma generalização. Com isto, no mito não temos categorias, mas sim tautegoria (DC, 139), por meio da qual “o que através da poesia nos aparece como sendo mais do que parece é a própria originalidade do que aparece” (HC, 171). Este movimento de ir do mesmo ao mesmo, passando pelo outro, este circuito ontogenético do tempo, é a operacionalização mesma da finitude que o mito faz, fiel ao seu estatuto dramático de encenar as faculdades humanas em ‘performance’. O mito toma sua substância da mesma matéria que representa. Explicita-se a tautegoria mítica com as catábases, teogonias e metamorfoses. Na metamorfose ocorre a alteridade por meio da compreensão dos limites. Só há abertura pela integratividade da finitude. “A metamoforse é alteração, passagem do mesmo ao 218

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outro, e o limitar do outro é a morte [...]. Momento decisivo da metamorfose é esta morte latente na vida” (MIT, 61). A metamorfose é a verticalidade que explora a dialética e a diferença. O que difere não é resíduo de um modelo. Trata-se do diferencial da própria diferença, em que, na raiz de sua complementaridade, finitude radical e nada dialogam. O que interessa na metamorfose não é simplesmente a alteração da forma, a mudança da forma, a mudança dos estados, mas consciência da unidade na diversidade. Antes da forma, a tensão nos limites e limiares de um processo de formação. As catábases remontam à ultrapassagem do horizonte comum da existência, para que se alcance a circularidade inerente ao tempo em que um sentido se aprofunda e se diversifica. Como ritual de iniciação, a catábase é uma situação liminiar, por meio da qual os limites são problematizados e compreendidos em seus dividendos hermenêuticos. Mas é na discussão em torno da cosmogonia que a tautegoria mítica melhor se divisa. Qual é o mundo do mito? Se no mito narra-se cosmogonia, antropogonia e teogonia, seu discorrer é uma pergunta pelas origens que é origem de todo o perguntar (MIT, 48). A simbologia do primordial se ajusta à representação da primordialidade das capacidades registradas na compreensão. Questionando o dado realístico ou o solipsismo individualista, sujeito e objeto são ultrapassados para que se coloque a dramaticidade de um homem e de um mundo unidos por um nexo não imediato, ausente, mas que sustenta todas as correlações. Nesta religação do originado com suas origens, os originados reverberam uma ‘genescatologia’; e este item é um critério que apresenta o que é a verdadeira mitologia: “excluir do âmbito da mitologia o mito que não se situe entre dois extremos, num dos quais reside tudo o que respeita a teoantropocosmogonia e, no outro, escatologia. Porém, numa perspectiva de complementaridade, não se pode excluir a hipótese de que tais extremos não coincidem: que “o de onde viemos” não seja o para onde vamos” (SMAN, 7). TERCEIRA PARTE O LOGOS DO MITO EM EUDORO DE SOUSA

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O mundo do mito é, pois, o da intersecção entre relações de sentido que configuram a interdependência da originação com a telecologia do originado. O mundo como corpo vivo de um deus morto é cifra da sobredeterninação finita do virtual. Assim, cosmofania é teocriptia, sendo que o “mito não nos relata o aparecimento dos deuses no mundo, mas sim, o seu desaparecer no aparecimento do mundo que eles só acenaram, enquanto acenantes mensageiros da Divinidade” (MIT, 150). Um deus que morre para que o mundo nasça, faz o percurso inverso do que originou. Registra que a finitude radical é criadora, indica que só possibilita o que se possibilita, o que se finitiza. Desse modo apresentado, o mito realibilita-se. Constitui-se como “a priori de todos os a priori da sensitividade, da intelegibilidade e dos pré-fixados condutos da ação humana, em qualquer cultura bem caracterizada” (SMAN, 6). A reversibilidade ontológica do mesmo e do outro como projeções cronotópicas da sensibilidade dramatiza-se em discurso imaginativo suspendido, interrompido nas raízes de suas possibilidades, na catástrofe simbólica em que homem e mundo, cojogados, dimensionam-se na ausência total ou presença dependente da potência originária e originante.3 3 A imagem da catástrofe, por meio da qual um triângulo se abate em sua base, querendo simbolizar a interdependência entre mortais, imortais e mundo, é mais uma das formas estilísticas de Eudoro de Souza. Fiel ao estatuto mitopoético de sua expressão, o racional, o matemático, o analítico são instrumentos, realce, confirmação de linguagem, e não fim em si mesmo. Contra a formação do saber, adquirida por meio de recorrências lógico-discursivas que codificam o conhecimento como sistema abstrato e apriorístico, o estatuto mitopoético da expressão experimenta a diversificação inerente ao pensamento que questiona porque se questiona. A catástrofe é a morte, a finitude como possibilidade de sentido (ver MIT, 65-128, e HM, 77-84). Outra imagem geométrica, retomando as discussões da fenomenologia e traduzindo-as em termos existenciais – a espessura existencial do horizonte –, encontra-se na problematização dos limites humanos por meio do horizonte que não tem um, mas três: “o horizonte objetivo e diabólico, o porém-horizonte próximo, onde ocorre a coisificação do homem; o horizonte da mediação, onde o homem, pelos êxtases, consegue vislumbrar o além-horizonte extremo; e este, o além-horizonte absoluto do Ser, do Mito originante” in F. Bastos Eudoro de Sousa e a complementariedade. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado, Universidade Gama Filho, 1990, p.-93-94.

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Na estrutura arquetípica da compreensão humana, finitude e nada se coordenam pela inexauribilidade do discurso mítico. Fluídas e translúcidas, as criaturas míticas difundem a entreabertura máxima de sua mutabilidade: mais real quanto mais ficcional. Os limites aprofundam-se, ampliando suas potencialidades. Excessivos, plasmáveis, comunicam que “há uma parte de nós, a melhor parte de nós, tão secreta, tão absoluta, tão excessiva como a Suprema Excessividade, como o mais Selado Segredo, como o mais Separado Absoluto. Uma parte de nós que continua habitando na Fulguração ofuscante – possuída por Ela, pertencendo a Ela, sendo como Ela: é a nossa irredutível subjetividade, aquela que nunca será objeto, por que é condição de toda objetividade” (SMAM, 28). Reabilitando-se o mito, reabilita-se o próprio homem. A reversão dos acentos valorativos que imobilizaram o livre exercício das potencialidades da compreensão sedimenta-se na primazia do mito como fundamento da história. A falida tradição ontoteológica ocidental é contextualizada em função do vigor do simbólico. As dualidades são justapostas em sua hierarquia radical. “Um kósmos é um khaós, um excesso que por instantes é detido no ímpeto de a si próprio ultrapassar” e o deter, a disciplina, a ordem não se exercem contra o excesso, mas são suscitadas pelo mesmo excesso, “como se o excessivo de si próprio o solicitasse a única força contrário de o mostrar e o demonstrar como excessividade” (BA, 123). Longe de se confundir com irracionalismo ou racionalismo, a redenção pelo mítico revela rigor em sua lógica onírica para engatizar os possíveis, os virtuais como limites e horizonte da estrutura pressupositiva da compreensão. Só condicionando pela abertura da expressão é que se ascende à experiência de pensar em sua autenticidade e diferenciação. Deste modo, “o cosmo está para o caos como o logos está para o mito, como o produzido

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está para o producente. O lógico e o cósmico vinculam-se um ao outro, como um a outro se vinculam o mítico e o caótico, e os dois vínculos se identificam no que une o producente com o produzido” (HM, 65). O logos do mito, o que se pensa no simbólico, é a disponibilidade da compreensão no processo efetivo de sua factível realização. Homens e deuses se encontram neste mundo. Descentrado e ‘ex-tático’ o homem pode abrir-se para este encontro e este diálogo. É o tema da soteriologia eudoriana: “Não cremos, todavia, que Deus esteja morto; nem sequer os deuses... esperam o mais íntimo de nós, a hora de começar representando conosco o papel que lhes está designado no drama do imenso tédio que a humanidade acabará por sentir de si mesma” (apud BASTOS, 1990, VI). Nesta soteriologia, uma anábase meta-histórica facultará a redenção do homem por meio do diálogo com a sua alteridade, num encontro com o outro inerente a si mesmo (MIT, 158). A atividade mitopoética assim compreendida ensina o homem a assumir a facticidade e abertura de sua constituição.

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18. CRONOTOPIA MITOPOÉTICA EM HISTÓRIA E MITO, DE EUDORO DE SOUSA “A história anda à mercê do mito.” (HM, 18)1

A obra História e mito (HM) pode ser considerada como o testamento do percurso intelectual e existencial do pensador Eudoro de Sousa. Ao mesmo tempo que retoma proposições dos livros anteriores, aprofundando-as, deixa ao leitor uma série de indagações a respeito do mito e de sua reavaliação. Retomadas são as seguintes questões: a problemática da religatio entre deus e homem por meio do drama ritual que, culturalmente, os institui; crítica integrativa do monologismo ocidental que se expressa, em contradição com sua vocação positivista, como o mito do homem – metafísica do centramento e unificação do sentido; revalorização do mito iluminada através de sua poética; hermenêutica do mítico que, ao apresentar seus constituintes, demonstra que os tais são inerentes à compreensão mesma, em sua efetividade. Por este último item, as razões do mito fornecem os elementos para uma soteriologia que redimirá o homem de seu percurso totalitário.2 O conjuntivo ‘e’ do título elabora uma disjunção interpretativa que o prosseguir do texto executará. “História” e “mito” comparecem em oposição que será resolvida em um plano superior, o do símbolo, em que se avistarão as especificidades dos 1 Cito História e mito, seguindo sua edição pela Editora da UnB, 1981. 2 Quanto à soteriologia eudoriana, v. Tese de doutoramento de Fernando Bastos, intitulada Eudoro de Sousa e a complementariedade do horizonte (Gama Filho, 1990).

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polos. A oficiosa preponderância da história será negada em prol da primordialidade do mito. Trata-se da revelação da verdade por meio do ritmo alethopoiético em que se fundamenta a escritura e o pensamento de Eudoro de Sousa.3 Inicialmente, a exegese do mito orientará esta revolução copernicana: contrariando os modelos referenciais e representativos dos discursos impressos no circuito sujeito-objeto, o mito radica na fusão e indistinção dos opostos (HM, 4), por meio da qual se experimenta a lonjura – indimensionável dimensão do espaço, que não é espaço, e sim um além-horizonte – e o outrora – indimensionável dimensão do tempo, que já não é tempo, mas um além-horizonte (HM, 3-4). Nesta ‘ucronia’ do ‘transobjetivo’, homem e mundo encontram um destino de excessividade, no qual a inexauribilidade opera. A reversa e diversa cronotopia da lonjura e do outrora rompe com a indisponibilidade do imediato. Requer-se recondução à modalidade efetiva em que se desdobra a existência humana. Elabora-se um “pensar o antes, em que selados se encontram os destinos do que venha a ser mundo e do dizermos nós o que o mundo seja. O ‘antes’ encerra possibilidades de mundo, realizadas ou irrealizadas e a nossa existência parece estar tão presa a umas quanto a outros. [...] Pensar o ‘antes’ é pensamento de metamorfose, de vida que decorra de mudança em mudança de formas destinais, de reabertura em reabertura, para realização de possíveis sempre outros” (HM, 66). Para este passo, subverte-se o eixo normal do tempo, para que se concretize este ser em trânsito (HM, 10): “tempo concreto não é linha que corre para trás e para a frente de qualquer de seus pontos: é campo de polaridades. [...] Não se imporia a necessidade de substituir a concepção de um eixo cronológico 3 Quanto à Alethopoiéses, v. capítulo “Alethopoiéses” da Tese de doutoramento de Ronaldes de Melo e Souza, intitulada A hermenêutica da concriatividade (UFRJ, l988).

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linear e, contínuo, em que se assinalam pontos intercambiáveis de passado, presente e futuro por futuro por um campo de polaridades? [...]. Pressupor a estrutura da realidade histórica equivale a ter concebido a diferenciada e heterogênea textura do tempo” (HM, 11). Com isto, conjugam-se a destinação transformativa do homem com a consecução diversificante da história. História e homem comparecem em sua originária forma de expressão porque ambos irrompem da mesma fonte – o mito, que funda o ser de tudo o que é ou existe. O ‘circuito genescatólogico’ do mito configura o percurso do homem, fazendo que os planos da realidade se coordenem em função de seu projeto originante. Duas modalidades epocais se intercruzam. A presença do presente e a presença do passado. A primeira é a da ordem do mito do homem que, como ser da recusa, nega as diferenças em prol da modelização de sua experiência. Contudo, cada epocalidade tem seus referentes cronotópicos, de acordo com o sentido que a funda. À generalidade de seu poder contrapõe-se a faticidade do poder ser. A presença do presente, centro convergente da conservação de um estado histórico, só persiste em durar porque se aliena do contexto de sua produção. O privilégio de sua posição só se faculta na particularidade que a si mesmo autorrefere. É que a história não quer saber do mito, a presença do presente desdenha da presença do passado. Como época das épocas, esta, em sua ausência fundante, resguarda resguardando-se (HM, 72). A sua verdade não se identifica com o exclusivismo de um pensar desconectado de suas origens. A presença do passado, fonte “das excedências virtuais do presente e do passado” (HM, 86), desenvolve-se em um “regime noturno da consciência” (HM, 57), por meio do qual rediscutem-se os mecanismos referenciadores e doares do real. Contraconformativa e unilateral da substância, da causualidade e da necessidade, transmuta-se o imediato no mediato. O que importa é a estrutura efetivadora do acontecer TERCEIRA PARTE CRONOTOPIA MITOPOÉTICA EM HISTÓRIA E MITO, DE EUDORO DE SOUSA

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de sentido. Nega-se a esfera elementar de um sistema produtivo, repondo a não localidade de sua configuração tensiva. Assim age o mito: perpassa o atual, transpassando o habitual. Perpetua-se através de sua cronotopia às avessas. A teleologia mítica, ao invés de encerrar sua destinação, surpimindo o vigor de seu projeto, reenvia constantemente para seu processo. É processo de processo, é dual e duplo posto que dimensiona-se na indistinção dos contrários como forma de conciliar a simultaneidade de sua genescatologia. O mito assume, então, a primordialidade que o define. É discurso das origens, pois discorre acerca de como se desdobram, efetivamente, as capacidades humanas. Ao interpenetrar as arquiacenações – de onde viemos e para onde vamos –, o mito surpreende a coalescência originária em que se divisam as possibilidades mistéricas da disponibilidade (HM, 84-88). Em sua reversibilidade do mutuamente implicado, suspendem-se as constâncias formais no fascínio do transformativo. A primordialidade do mítico fenomenaliza-se através da plasticidade que a fundamenta. É “o mítico que dá origem ao lógico; não o que lhe dá início, mas o que o sustenta, do início ao término. Será o logos um subproduto do mítico, como um cosmo é subproduto do caos? [...] O cosmo está para o caos como o logos está para o mito, como o produzido para o producente. O lógico e o cósmico vinculam-se um ao outro, como um ao outro se vinculam o mítico e o caótico, e os dois vínculos se identificam no que une o producente com o produzido” (HM, 64). A presença do passado é a abertura às disponibilidades do ser em processo, do ser que ilumina suas possibilidades de expressão. É como se o que existe, persistisse na tensão de sua entreabertura, encenando a virtualidade de sua aparição. O que aparece sendo mais do que parece mais indissoluvelmente relacionado com seu evento – eis o mito. A chave para a revalorização do mito se averigua na compreensão do aspecto tanático da existência. Ordinariamente, 226

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a morte é despotenciada, entendida como mero resíduo insignificante de uma movimentação já pré-dada. O fim apenas confirma uma indisponibilidade cursada. O término de antemão foi traçado (HM, 65). Conservem-se as relações de sentido no espelhismo condicionado à reverberação do já infirmado por um modelo articulador. Interrompe-se a processualidade do conhecimento, visualizando-se a aporia das generalidades ou particularidades que consagram um saber na atualidade de seu absolutismo e espacial a temporalidade. A morte é o fim da vida, na medida em que a emoldura como reticente acréscimo a algo que já perdeu seu vigor. Mas no mito, ao contrário a morte é fundadora, o limite é incorporado enquanto potencial criativo. A morte é metamórfica (HM, 92). Quanto mais se finitiza, mais se cosmiciza. A presença do passado se faz atuante na intermediação de seus efeitos. Com isto, fim e início não são demarcações de sua efetividade. A recursividade mítica atrela-se à não exaustão do que origina. O horizonte do mito é a reposição de suas possibilidades. A presença do presente é um extático acontecer da presença do passado. As suas máximas dominação e epifania não se resolvem em luz para consigo mesmas, mas como iluminação e descortinamento do que as sustenta. O lascinante fascínio do que ora imobiliza apenas valida-se no silêncio das convulsões prementes do caótico. “História” e “mito” não são rivais. Ao se superar a miopia interpretativa que confunde a elementaridade fenomenológica do que acontece com a estrutura de seu acontecer, revertem-se as valorizações tradicionais na celebração de uma expressão que recupera o sagrado – a excessividade divina que radicaliza o percurso existencial humano. A qualquer momento a história se dobrará ao mito, redimindo-se de seu percurso denegador. Os discursos encontrarão a dignidade de TERCEIRA PARTE CRONOTOPIA MITOPOÉTICA EM HISTÓRIA E MITO, DE EUDORO DE SOUSA

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seu entusiasmo e dizer não será mais nomear as coisas, mais trazê-las à existência. Não haverá mais caminho, mas sim complexo satyricon: cronotopia do sem tempo e espaço no hiperbólico referencial sem referência, a não ser o próprio diferencial da diferença – descentramento, mitopoética.4

4 Para aspectos da recepção da obra de Eudoro de Sousa, v. dossiê da Revista Archai, n. 8 (www. seer.bce.unb.br/index.php/archai/issue/view/762), incluindo meu texto Entre livros e Eudoro: relato de algumas experiências (p. 57-74); capítulo de Ronaldes de Melo e Souza Horizonte e complementariedade em Eudoro de Sousa, In: VVAA, Intelectuais portugueses e a cultura brasileira: depoimentos e estudos (Unesp/Edusc, 2002, p. 161-188; e o meu prefácio ao recentemente descoberto livro de Eudoro Catábases: estudos sobre viagens aos infernos na antiguidade (Annablume, 2013, p. 9-212).

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IMAGINAÇÃO E MORTE: ESTUDOS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FINITUDE

19. O DIFERENCIAL DA DIFERENÇA: A ALETHOPOIESIS, DE RONALDES DE MELO E SOUZA1 “Alethopoiesis” é título da quarta parte da tese de doutoramento de Ronaldes de Melo e Souza, defendida na UFRJ, 1988, A hermenêutica da concriatividade.2 Parte e todo conjugam-se: o citado título da quarta parte designa a súmula do processo interpretativo desencadeado anteriormente: as três primeiras partes dialogam com momentos da tradição ocidental de pensamento, interrogando sua constituição e diversidade, bem como rupturas e reorientações. Trata-se de profundo esforço hermenêutico e acurada exegese do subtexto que permeia esta tradição: o Ocidente converge para a alethopoiesis. Senão, vejamos. A primeira parte de A hermenêutica da concriatividade, “A dialética da concriatividade em Heidegger”, revê integrativamente a tradição metafísica em seus passos principais, sob a perspectiva da estrutura pressupositiva da compreensão e da finitude radical. Possui cinco capítulos. No primeiro, “Mitologema platônico da idealidade”, após cuidadosa exegese do tríptico da caverna (sol, linha segmentada e caverna), interpreta-se a constituição e os efeitos da transposição intelectual dos mistérios em Platão para a sua iniciação gnosiológica. O caminho do cavernícola é de sua conversão existencial para o supremo bem da Ideia. Dessa conversão, o Khorismós, a distinção entre inteligibilidade e sensibilidade. 1 Comunicação apresentada ao IV Congresso da Abralic, São Paulo, 1994. 2 Em parêntesis, a(s) página(s) citada(s) desta tese.

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Após, fundamentada a metafisíca, temos os continuadores de Platão. No segundo capítulo dessa primeira parte, “O filosofema cartesiano da subjetividade”, a mesma busca da essência de todos os entes, além de tudo o que é ou existe, configura-se no código lógico-discursivo que expressa o ideologema crítico da modernidade. Verifica-se a potenciação da capacidade raciocinante como contraponto ao impulso transcendental grego, agora tornando ‘representação’, convencional referenciação da realidade, ditada pelo a priori do logos. A razão absoluta cartesiana é diagnosticada e delimitada no terceiro capítulo, “Teorema kantiano da objetividade”. O dogmatismo da subjetividade imperial cartesiana na qual até “duvidar é buscar o indubitável” (36) é desfeito pelo relativismo crítico de Kant. No sujeito, cooperam a pulsão perceptiva e motivação conceptual (41). Resta-nos apresentar como funcionam as capacidades humanas. E sair de princípios e se dirigir para as condições (42-44). Contextualizando a metafísica e assimilando o experimentalismo teórico de Galileu, verifica-se a primordialidade do aspecto projetivo no conhecimento, a tarefa antecipadora que alimenta os devaneios da razão e a atividade de espírito. Com isso, temos os limites da razão, numa sintética faculdade de razão pura e sensível, contudo ainda abstrata e formal, sem os valores de uma analítica da existência (77). Hegel, em “O ideologema crítico da modernidade”, consuma a apoteose da metafísica na epopeia do espírito absoluto, pensamento especulativo autorreflexivo prenhe de plenitude e essencialidade, saber puro “porque seu conhecimento não se acomoda aos objetos da experiência” (97). Até aqui temos a diferenciação primordial de dois mundos (khorismós), por meio da qual a sensibilidade se hierarquiza em função da inteligilidade (113): um mundo que é mas nunca devém; e um que devém mas não é. A paideia platônica, na passagem 230

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do antropomorfismo poético para o teomorfismo filosófico (116), sacraliza a ordem apolínea do mundo. Essa elevação ao transcendente, separa “o ente manifesto da manifestação do ser” (139), numa “total negação do que caracteriza as coisas existentes” (153). A despotenciação da vivência vai ser refutada por Nietzsche, que procurou criticar Platão, invertendo-o: do inteligível, rumamos para o sensível. É o que se apresenta no quinto e último capítulo da primeira parte da tese, “o platonismo e o niilismo”. Com Nietzche, “os valores supremos se desvalorizam” (157). A volta aos pré-socráticos, despertando o pensamento arcaico, e a figura de Dioniso tentam subverter e dissolver a metafísica, mas se consumam em nova plenitude: a do patetismo recorrente e sem horizontes do voluntarismo: “o ser eterno se transmuta no eterno ser” (130). Navega-se na circularidade da metafísica platônica. O influxo heideggeriano nesta releitura da tradição metafísica se esforça por demonstrar seu percurso problemático em relação à verdade. A partir do resgate do sentido do ser é que se pode pôr em questão a constituição e a aporia da busca de identidades, fundamentos e casualidades instaurada por Platão. Antes do certo e do errado, há o efetivo horizonte de como se processa a compreensão. É o que se procura expressar na segunda parte: “A ética da concriatividade em Gadamer”. A hermenêutica gadameriana subverte as interdições do khorismós, em sua utopia da razão, ao contextualizar o tríptico da tradição. A arte, a historicidade e a linguagem convergem para além de sua abstração formalizante. Arte não é distinção estética, ou saber que contempla esquematizações inteligíveis, e não transforma o homem que a produz ou a recebe; linguagem não é comunicação ou lógica, e sim problematização de nosso estar no mundo; e história não é narrativa de fatos, mas tempo de processos inerente à estrutura da compreensão. São obras. Tal abertura da compreensão humana se assinala na terceira parte da tese, “A poética da concriatividade em TERCEIRA PARTE O DIFERENCIAL DA DIFERENÇA: A ALETHOPOIESIS, DE RONALDES DE MELO E SOUZA

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Bachelard”. Ciência e poesia não são metafísicas – são saberes que extendem nossa sensibilidade como maneira criativa de constituir eventos de sentido. Ultrapassando o estreito mentalismo da limitação psicológica e o ingênuo sensualismo do cego empirismo, o Novo Espírito Científico da física e o novo espírito literário das artes que romperam com a estética clássica ambos direcionam-se para a verdade do conhecimento projetivo, orientado por categorias criativas. Finalmente, a última parte: “Alethopoiesis”, alvo deste texto. Nela temos o horizonte mediador do divórcio entre razão e tradição instaurado pela metafísica. Recupera-se a ação míticoritual da representação (224). Por meio da arte, o representado se apresenta, ultrapassando o conhecido (223). “O ser da representação é mais do que o ser do que é representado” (idem). E este a mais, essa ultrapassagem é o “nada”, o “não ser”, visto não como mera negação do que é, e sim como possibilitação de acontecimento do que existe. Segue-se a apresentação e constituição de outra história, outra tradição, com análises de obras de Homero, Hesíodo, Dante, Guimarães Rosa, Goethe, culminando em Hölderlin. Desse modo, podemos observar como o estudo de obras ficcionais se articula em um diálogo com questões e saberes diversos. Literatura e diferença é hoje a questão básica a ser pensada. Literatura é a diferença. A pergunta pela diferença pronunciada pela filosofia é apropriada pela arte verbal, por meio da concretização existencial da palavra criativamente orientada. Eis o horizonte de “alethopoiesis”: “a verdade da poesia é a poesia da verdade” (385). Um tempo para os termos. Alethéia irrompe pensada e dramatizada no pensamento grego. A referência a Grécia é a ciência do Ocidente. Literatura e diferença assim pronunciadas por predicação reenviam para o contexto helênico. O que está em jogo é o conceito e a experiência de verdade. Os gregos 232

IMAGINAÇÃO E MORTE: ESTUDOS SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA FINITUDE

instauram todas as crises por meio de ideologema platônico da idealidade. Querendo negar a componente mitológica mediterrânea, pensaram mitologicamente contra o próprio mito, e estabeleceram a metafísica, os dualismos, a ontoteologia, a idealidade suprassensível, a identidade3.. O que se fez foi a alteração da experiência da verdade (11). A eclosão do extraordinário e do excessivo de alethéia normalizou-se em prol do desvelado nesse velamento. Confundiu-se acontecimento com o acontecido. Pensou-se no ser com olhos no ente. Verdade agora é orthotés, adequação e validação do representado ao processo de sua intelectualização (13). Absortos na contemplação da essência de todos os entes, os seguidores da fascinação metafísica transmutaram a diversidade dos eventos de sentido do mundo, apreendidos na especificidade de cada revelação, em unidade de apreensão, em conhecimento fundamental a priori. Discute-se a possibilidade dos surgimentos, configurando-os em categorização anterior e absoluta. A origem torna-se originação do idêntico. A metafísica, então, é a poesia da unidade, redução que colhe da verdade a sua validação e autonomia. Entificando o ser, ela o formaliza. Eis a ideia, a representação. A intelectualização prévia dos eventos configura o filtro cognitivo ao qual o homem deve ater-se: o Khorismós, a separação do sensível e do inteligível (4). A idealidade suprassensível mimetiza a busca e vira-se para a unidade de conhecimento. Dentro da estrutura da compreensão, ocorre uma hierarquia que trabalha com absolutos e paradigmas. Um representado, como representante de todas as modalidades de ser, converte-se na própria representação. O que se sabe e o que se sente encontram-se irremediavelmente submetidos à disponibilidade reguladora da orthotés. A modalização cede à modelização. A busca do ser 3 Conf. Eudoro de Sousa em Dionio em Creta e outros ensaios, e História e mito.

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e de sua fundamentação acabam por fundamentá-la em uma constância plena. Entre homem e mundo interpõe-se o esquema de representação. A meditação e apreensão do sentido das coisas é medeada pelo a priori. É mais fácil catalogar as matrizes direcionantes do estar-entre-as-coisas que habitar a terra. É mais fácil unificar os diferidos que alcançá-los em sua especificidade. Instaurado no regime da representação, o homem perde a questão das origens e ganha destinação, a pergunta pelo ser em suas possibilidades surge, agora, como planificação das possibilidades de ser. Só se conhece o conhecido (99), o demonstrado pela razão (86), pela poética da unidade: henopoiesis. A diferença da metafísica foi a de ser unidade. O que se necessita não é a mera inversão refutadora, e sim o avistar do diferencial da diferença. A mera contraposição e contradição entre identidade e diferença já é metafísica e se situa tardiamente em relação à questão mais originária. A negação da unidade em prol da diversidade é nostalgia do prius concebido como fundamento. A passagem do determinado para o indeterminado é permanência na mesma lógica da exclusão que caracteriza a metafísica. É ser metafísica da diferença. Caóticos e ordenados, materialistas e esperitualistas, racionais e empiristas, irracionalistas e positivistas – todos esses embates se coordenam sob mesmo emblema. A rivalidade advém da unidade. A cópula na predicação é adversativa e identificadora. Só há o combate porque persiste o diferencial sem diferença, a diferença em similitudes. Parece que sempre é preciso preencher o vazio no seio da diferença com plenitude de representação esquemática. Assim, pois, a revisão e a negação da metafísica não se resumem ou se definem na refutação da racionalidade nem na confutação do irracionalismo. As aporias do khorismós devem ser purgadas por uma medeação integrativa que ultrapassa a contradição para situar-se no diferencial da diferença. A história 234

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da cultura advém da valência de seu culto. E, desde os primórdios, isso foi traduzido em eventos de sentido. O que acontece traz-nos a comunidade e a historicidade. O que acontece foi a diferença, a incessante processualidade de constituir os fenômenos. Em cada evento, o ser irrompia. Ser é ser capaz de significar, de ser incorporado pela compreensão. Compreender é a apreensão do sentido das coisas em sua fenomenologia específica.Tal fenomenologia específica é a diferença. Entretanto, o khorismós interdita a compreensão do diverso, pois unifica o saber e a apreensão. Substitui-se a fenomenologia pela teleologia simplificadora da razão abstrata. Conhecem-se as categorias do ser e não o acontecimento da facticidade do ser aí. A grande modificação proposta pela metafísica é nosso desenraizamento. Por modelos, não se atinge nem o ideal. O homem se reconhece expatriado. O voluntarismo do absoluto inteligível foge da vocação fatal do homem que se ocupa de “não só ter de conhecer o que é, mas, sobretudo, ser o que conhece” (236). Mata-se o possível pelo previamente configurada. Triângulo, retas, mônadas figuram a formalização de nossa experiência sensorial consignada pela representação. A mediação integrativa se dá na superação compreensiva da representação formalmente imposta pelo khorismós platônico. À poesia da unidade contrapõe-se a alethopoiesis. A poesia da unidade provou em seu percurso ocidental não dar conta da abrangência e significação dos eventos em complexidade. A República de Platão nunca foi implantada e os poetas nunca deixam de existir. A máquina cartesiana entrou em descompasso frente à ilogicidade da física contemporânea. As revoluções iluministas decaíram em ditaduras obscurantistas. O tribunal e as leis, os códigos e as convenções conseguem sobreviver ilesos nas páginas impressas, mas são subvertidos, reescritos no cotidiano conflituoso e problemático da comunidade histórica. A poesia da unidade, sempre em busca do todo fundamental, TERCEIRA PARTE O DIFERENCIAL DA DIFERENÇA: A ALETHOPOIESIS, DE RONALDES DE MELO E SOUZA

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em uma diacosmese infinita, antepôs-se à poesia das diferenças. No entanto, antes, acontece a presença de uma indefinição mais fundamental que acompanha todo e qualquer evento de sentido. O ser não se circunscreve à sua tematização rígida e formalizada. O que aparece nos diz mais do que o que aquilo que mostra: aponta-nos para a própria fonte desse acontecer. A estrutura da compreensão não se reduz a modelizações; antes, amplia-se no deslinde da estrutura da criatividade que insufla todo e qualquer evento de sentido. Não há o pensar longe do sentir. Temos um pensar poetante doado pela alethopoiesis. Eis a ética da concriatividade: há uma alteridade em todo processo de compreensão. O outro do aprender é o compreender a aplicabilidade transformativa do saber na existência concreta de quem questiona. Não há entendimento e interpretação sem aplicabilidade. Não se raciocina e nem se sente no isolacionismo residual da atividade desconectada do contexto existencial. A abstração metafísica é incapacidade de se conectar às diferenças, e o irracionalismo puro é mergulho em aporia inversa do Khorismós. O que se separa, o que se distingue, o que se rompe, o que se nega não passa de ironia quanto ao ser em sua efetiva situação: quanto mais se presencializa, mais difunde-se uma ausência não problematizada pela dominância exclusiva e unilateral. A demonstrabilidade do categórico, a difusão do exclusivo volatizam-se em sua insuficiência. A abstração, frente à impossibilidade intrínseca que assume em sua teleologia, doa-nos ausência. A destinação da metafísica é ser ficção. Ver as formas de um objeto não significa que se possa compô-lo. O caminho e o ritual iniciático da dramaturgia da caverna apontam para o sol e sua decorrente cegueira. O cavernícola, deixando a já despotenciada vida terrena, encaminha-se para o vazio das formas, pela transcendência vazia da inteligibilidade. O entusiasmo com o suprassensível converte-se em desfigurada unidade da presença de 236

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tudo em tudo, na quantificação de todos os fenômenos de sentido. O cavernícula evade-se para se indeterminar, como reconduzido à origem, mas completamente isento de experiências. A identidade, pois, aponta para aquela ausência fundante que é o acontencer originário da compreensão humana. O homem que conhece se reconhece em seus efeitos. Os eventos de sentido produzidos dirigem-se para o sentido mesmo desse evento. O que é obra, o que é fazer, o que é criar? Estamos invadidos por nossas coisas, e nossas coisas nos dizem quem somos. Homem e mundo envolvem-se na mutuabilidade que os agencia para a irrupção dos eventos. A obra não se reduz ao feito nem a seu feitio. O fazer é metafazer que não suprime a facticidade de seu acontecimento. A obra só significa porque cria seu próprio sentido. Assim como o homem que a ela se conjuga. O homem se desfaz na carnadura da obra. Modela-se nas exigências específicas da modelação. Possui razões e planos, mas estes se subordinam à eventualidade do processo. A razão aqui não capta o abstrato, mas está concretamente comprometida com o que se faz. A produção de eventos de sentidos não se subordina ao produzido nem ao produtor. Estes são efeitos do evento. Por meio de uma miopia interpretativa, há, muitas vezes, ênfase mais nos elementos dentro de um processo que o processo mesmo. Isso é metafísica: o comparecer diante da unidade dos elementos, oriunda de sua captação sem historicidade. Por isso, para a metafísica não há obras e sim ruína. A elevação de um momentum do processo à condição de valor totalizante e definidor constitui a operação mais restritiva da compreensão. Contudo, diferentemente,eis aqui o diferencial da diferença: o que se produz não é simulacro do produzido. A compreensão humana se orienta para essa ausência fundante que não se pode nomear nem se pode descrever. O inédito e o inaudito são cifras que nomeiam a impossibilidade de uma dogmática e absoluta dos eventos. Ser e acontecer se implicam. O ser só existe porque se TERCEIRA PARTE O DIFERENCIAL DA DIFERENÇA: A ALETHOPOIESIS, DE RONALDES DE MELO E SOUZA

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revela: e seu acontecimento é indicial: em si mesmo encena o que é. É como não ser que o ser é, como disponibilidade e origem, como aporte para a reconsideração de sua instância produtiva. Aquilo que é acontece como ‘verivérbo’ de si próprio. Acontece para indicar como se acontece. O ser é porque nós somos, e somos como o ser acontece. Para existir, assim como para ser, é preciso ser e existir como a obra. A verdade da obra advém de sua verdade: ela é, pois se possibilita, como irrupção da diferença frente aos diferidos. Reúne o disperso, ilumina-o em sua dispersão; congrega os elementos e os agencia em sua especificidade; celebra o distante e o ilimitado, o próximo e o ínfimo pelo horizonte que configura seu tempo e seu espaço. A obra é a instância metacrítica da compreensão humana por meio da qual avistamos o sentido e a estrutura dos eventos de sentido no mundo. A obra medeia e integra homem e mundo. O fazer dos fatos e a consciência do efetuar interligam-se em uma situação que não está nem no início nem no fim, mas no entrerrealizar-se. Na obra, estamos antes do nomear e do categorizar. E obra é o trabalho da ficção, a dramatização das imagens em torno da quais concentramos e diversificamos a interpretação da existência e de sua aplicabilidade. Logo, o artista é um fenomenólogo: encena o horizonte compreensivo dos eventos do mundo. A obra de arte é conhecimento, que só revela quando desvela as potencialidades expressivas do homem. O fazer criativo é a operatividade de nossa historicidade.4

4 Este texto, como um manifesto, procura reorientar pesquisas iniciadas com as relações entre imaginação e morte, a partir do diálogo entre Gaston Bachelard e Adonias Filho, expresso na primeira parte deste livro.

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20. DESCONTINUIDADE MACHADIANA E O FIM DA UNIDADE ORGÂNICA: A METAFÍSICA DAS RUAS NAS CRÔNICAS A tão aclamada negatividade em Machado de Assis, distribuída em séries psicológicas, sociológicas, filosóficas, moralistas e estéticas, ressente-se de sua configuração, sua específica construtividade. Elipses, metalinguagem e ironia convergem para este ponto: a tematização dos limites, da finitude por meio da negatividade. Este ‘não’ que invade a obra machadiana é o limiar de seu princípio de composição. Ao mesmo tempo, coordena sua revolução narrativa e a imposição de nova estética. Enfim, eclode na negativa o descentramento narrativo sobre o qual teceremos nossos comentários. O que Machado de Assis nega por meio da especificidade construtiva de sua orientação narrativa é a unidade orgânica da obra de arte. Tal conceito, desenvolvido por Platão (Fedro, 264c), estipula que há a “concordância das partes de uma obra com outras parte e com o todo”.1 A coesão interna dos níveis é tão sistemática que a “alteração da parte, quando por acréscimo ou supressão, envolve a alteração do todo”.2 A metáfora biológica do organismo insuflou o ideal clássico de representação, modelador das estéticas e das teorias hegemônicas a respeito da arte no Ocidente até fins do século XIX. Críticos e analistas, de posse desse conceito, fundamentaram seus julgamentos na tentativa de adequação entre parte e todo. O que se representa na obra de arte – suas porções divisíveis – 1 Giordano Orsini em Organic Unity, Southern Illinois University Press, 1975, p. 21. 2 Orsini, idem, p. 98.

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ajusta-se à tematização de uma pretensa e obsessiva unidade. O que aparece no texto é descontextualizado em função de certa instância prévia – a da intuição impositiva de coerência e coesão. As partes não mais significam processos de descoberta, questionamento, especificações do que é assumido na narração; as partes são detalhes de descrições ou dissertações panorâmicas e gerais que só se justificam como resíduos de uma operação transcendental aporética e indeterminada. Na correlação entre parte e todo, na unidade orgânica da obra de arte, assistimos à fundamentação de uma hierarquia valorativa, com o predomínio do todo sobre as partes. A unidade de representação busca a unificação diretiva da elaboração textual. Escrever não passa de uma atividade sistêmica e sintetizadora que objetiva expurgar as flutuações e variâncias. Com isso, o que se procura na unidade da representação é a representação dessa própria unidade”,3 reservando-se ao artista a tarefa de atualizar esquemas de inteligibilidade a priori. Logo, entre literatura e vida há o intermediário teórico da unificação assumido previamente pelo escritor. Bloqueia-se o acesso à experiência hermenêutica que a imaginação criadora possibilita. A atividade sistematizadora da organicidade, em suas estratégias de identificação, causalidade, necessidade e verossimilhança, invalida diferenças, variações, novidades. As intuições de coerência e coesão remetem-se diretamente ao conhecimento, à produção da compreensão. O saber proposto pela unidade orgânica da obra de arte transforma aponta para o controle e a instrumentalização da atividade imaginante, reduzindo o escopo tanto do universo representado quanto dos nexos cognitivos e afetivos da obra. 3 Orsini, op. cit., p. 99.

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O diferencial machadiano reside justamente no ato de romper com o ideal clássico de representação e a organicidade. Às ambivalências do bruxo do Cosme Velho, há a atônita réplica do negativismo melancólico dos críticos, que difunde a ideia de pessimismo e sadismo narcisistas, sintomaticamente evidenciando uma nostalgia da verossimilhança e da unidade. O pressuposto da diferenciação estética, presente na ideia que haveria dois mundos, duas ordens representacionais, uma desdobrada organização do real, é que define a organicidade.4 A dicotomia entre as ordens se apresenta como oportunidade para desigual valoração, separando referências, formulando absolutas distinções. Há o mundo da arte e o mundo da vida. A genérica divisão da realidade em duas metades com desmedidas proporções e relevância na verdade acarreta a adoção de um centro, de uma não divisão ou diferenciação, já que há uma instância considerada melhor e superior. Machado de Assis, assumindo a não ordenação das relações entre ficção e realidade, questiona a produtividade mesma do real, ampliando-o pela refiguração de seu horizonte, integrando-o na compreensão de suas possibilidades. A descontinuidade machadiana diversifica os referidos aos contextualizá-los na dinâmica de sua diferenciação. Dentro dessa recusa da organidade, as crônicas machadianas investem na redefinição dos vínculos entre todo e parte, entre uma presumida definição do real e sua ordenação. Nas crônicas, o infinitamente pequeno e o extremamente distante comparecem em seu entrechoque tenso e intenso. Por meio de cadências hiperbólicas que dignificam o miúdo e desmistificam o colossal, as crônicas problematizam a ilusão da sequência, do esquema, da estabelecida organização do real. 4 H. G. Gadamer. Truth and Method. Londres, Sheed and Ward, 1979.

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Micro e macro reversíveis posicionam-se além da instância predicativa controlada pelo senso comum tornado bom senso. Sobre seu processo de observação nas crônicas, Machado de Assis afirma que “eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto [...] cousas que entram pelos olhos, eu apertei os meus para ver cousas miúdas, cousas que escapam ao maior número, cousas de míopes. A vantagem dos míopes é enxergar onde as grandes vistas não pegam” (772).5 Na citação fica bem patente a atitude investigativa, cumulativa do autor e sua diferença frente a práticas existentes. Ao negar a normalidade esquemática da observação do sujeito, correlativamente desaprova-se o estatuto da realidade observada. Sujeito e objeto se investem de diferente projeto: certo olhar que nasce de extensivo e intensivo esforço para se ver melhor. Ver “cousas que escapam ao maior número”, enxergar “onde as grandes vistas não pegam”. Ver o que está aí mas não se pode perceber por esses olhos eclipsados pela generalidade que constata a identidade constituinte dos fenômenos. A repetição numérica dos fatos é a álgebra linear das ações que torna inacessível a diferença produtiva e enriquecidora de um evento de sentido. Ao se sucumbir com as possibilidades de um fenômeno, com o horizonte de indeterminação que acompanha, obtemos a constância reprodutiva e programável da percepção. Contra o maior número e as grandes vistas, Machado acolhe o mínimo e escondido. As metáforas apolíneas da continuidade são substituídas pela vertigem de uma catábase (7). A planificação geométrica da unidade expandida linearmente soçobra frente à arqueologia machadiana, verticalização da perspectiva para se 5 Citações das crônicas são retiradas das Obras completas (Aguilar, 1992). Indico somente a página entre parêntesis.

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reverter o diagnóstico das expectativas. Novas, as imagens. O estreito e o agudo acompanham as modelações desse melhor ver que só existe no próprio e intrínseco questionamento do estatuto representacional da observação e da expressão. A organicidade retroage à pulsão que supera a crítica convencionalidade do referente. Atingindo, pois, a configuração das relações do homem para com seu mundo, as crônicas machadianas subvertem a óptica para condenar seu plexo. A neutralidade do observador e a constância do observador e do observado saturam a complexidade dos acontecimentos de sentido de rigidez e mesmice. Ao homem, caberia, somente, dentro desse universo inteiriço e eterno, apenas a contemplação pasmada. Porém, contra a veiculação do equilíbrio, temos a indicação dos conflitos. O espaço é plural e a cide diversificada. Eis o espaço urbano artisticamente proposto, em suas variações e assimetrias, como índice (8) do questionamento da fisicalidade unilateral do organismo-mundo. Para dramatizar o espaço urbano no limite e no limiar de suas tensões ambivalentes e endógenas, Machado transforma em princípio mesmo de composição a suspensão da linearidade presente na descontinuidade. As crônicas tematizam o aclínio do transcendental na imanência do elíptico. Inicialmente, o texto parte de um assunto, ao qual não volta. Fala-se de várias coisas ao mesmo tempo, vai-se do local ao supranacional com a mesma facilidade que a elevação da causuística à metafísica coabita com o dissertar a respeito dos sistemas políticos e morais. Trata-se de um dizer que desdiz a própria afirmação. A polifocalização do cronicismo machadiano é a replélica discursiva à instabilidade e unidade do real. A vida fluminense, composta de vários cenários e atores (teatro, datas festivas, Câmara, literatura, obtuários, eleições, militares, droguistas, modismos), surge em seu “perpétuo bailado dos espíritos” (9). Tudo converge para a reunião dos diversos, unificados pelo texto. Se o mundo

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nasce para estar contido em um livro, as palavras desse livro, no pentilhismo do escrito, a dinâmica das coisas, reunidas e dispotas no ritmo de seu acontecer. A linguagem que não descansa na tematização de uma constância perceptiva instaura a realidade mesma de seu dito. “A arte de dizer as coisas parecer dizê-las” (10), compromete o nosso estar aqui. Por meio de afirmações retificadas, nada se diz, ou retorna-se à possibilidade mesma de se afirmar. Convivem a fala e sua ausência; e a linguagem aponta para a sua impossibilidade última que é única condição da própria língua: para o homem. Há o inexaurível. Ele está condenado a reverenciar a falha estrutural inerente a todo e qualquer projeto. A reversão da expectativa nos diversos contextos privados é o que se comunga na polifocalização. Os diferidos aludem não mais a si, e sim ao que procuram expurgar. Em verdadeiro jogo de presenças e ausências, exsurge a não localidade dos eventos. Ninguém ocupa uma posição ou defende uma ideia sem estar sujeito a desorientação e variedade de sua significação. Aludem porque elidem. Daí a ironia. A ruína das intenções converge-se no riso que, situado no limite do equilíbrio e da ordem, recupera a problematicidade do real. É preciso “raspar a casca do riso para ver o que há dentro” (11). A ironia acompanha essa reunião dos díspares para longe da organicidade das coisas e dos seres. Desfeita a ilusão da sequência, aproximam-se os extremos antes distantes através da dramatização de sua verdade. Entranhados na nomalidade representativa, os homens viviam a metafísica das ruas oscilando entre o curativo e o sistêmico. Tudo sobrevivia na pendência ao equilíbrio. “Cada sistema tem os seus meios curativos e os seus emblemas particulares” (2) – emblemática definição da vida fluminense. O sistêmico reduz os vividos a abstrações da instituição. Vive-se o instituído e não o experimentado. A coordenação das ações individuais a um plano exclui diretor e interdita diferenças e relações interpessoais. Ou

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seja, a instituição só percebe o que identifica, o que se adequa ao previamente direcionado. Por isso, a lei do particular pode ser a lei do estado (13), o urbano é cosmopolita, as variedades não passam da repetição de modelos. “Tudo é reflexo da consciência” (14), pois cada um aceitou o sistêmico e com ele a curativa exclusão de toda e qualquer alteridade na compreensão, o que bloqueia, consequentemente, a experiênca concreta, a possibilidade mesma de haver compreensão. A metafísica das ruas, ironicamente, esvai-se na ilusão mesma de sua instância produtiva. O mais real é o mais abstrato. A ironia reside na ruína do projeto. Ao construir, só se destrói. Por meio da instituição sistêmica e curativa, registra-se a pulverização do saber no império da subjetividade e a descaracterização mesma da linearidade, quando da aproximação da loteria e do destino. Assim, “sempre gostamos do inextrincável [...]. A razão está não só na sedução do obscuro e do complexo, está ainda em que o obscuro e o complexo abrem a porta à controvérsia” (15). O sistema não passa da extensão ávida em retirar-se do contexto tensivo e diversificante da sua comunidade histórica para enclausurar-se no polemismo arfante que se esgueira por entre as tramas de ambição totalizadora. Quem se redime para reduzir tudo e todos ao que seu nariz aponta. O ego esconde-se nos subterfúgios das instituições. A pureza dos conceitos e dos ideais normalizadores, em seus vitrais perfeitos e inatingíveis, quer ser uma capa que sublima todo o longo processo de interdições e regras inscritos na petrificação da alteridade. O ego não é só o indivíduo – é incapacidade de volição, é privilégio do idêntico sobre o plural. Sua linguagem é a polêmica da metafísica das ruas que submete o sentido a questiúnculas, a discussão de conceitos, metalinguagem docente da organicidade. A linguagem veicula a idade de ouro na qual o obscuro e o complexo simulam a

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abrangência totalizadora e totalitária impressa nos homens que polemizam o senso comum, repercutindo a lógica da indentidade, ocasionando o fim da questão e da linguagem. Na rua na qual as falas reverberam o sistêmico e o curativo, nada mais recorrente que o destino ser comparado a uma loteria. “A loteria é a própria fortuna [...] a cidade fala de umas cousas que esquece, crimes públicos, crimes particulares; mas loteria não é crime particular nem público” (16). A indiferenciação que acompanha a engrenagem lúdica da ciranda financeira atrela comportamento e reflexão para o esgotamento volitivo do estar-aí. Perde-se o vínculo com a comunidade histórica, com as decisões, com os anseios. Tudo se planifica na linearidade da constância. O aspecto monetário da loteria é o que mais importa como revelador da padronização de sentido. A moeda, o interesse econômico antes de ser tema financeiro, é imagem. Converge circulação de mercadorias e de expectativas no mesmo ritmo condicionante que privilegia o todo sobre as partes. Desprovidos de uma teleologia fundamentada na interrogação das possibilidades dos eventos significativos da existência, os homens, como as moedas, movimentam-se indiferentes ao contexto delimitador de suas ações. O homem submete-se ao azar dos produtos alheios a sua destinação, ignorando as razões das coisas. Neste ponto, vemos a justificativa da opção ficcional machadiana. A escolha pelo imaginário como veículo de problematização das relações entre homem e cotidiano, sociedade e história, procura atingir a essência mesma da metafísica das ruas. Os discursos filosóficos, sociológicos, psicanalíticos, moralistas trabalham com descrição e denúncia. Partem da redução de sua perspectiva teórica ao elegerem um e outro elemento de seu referente, tomando-o como fundamento unívoco e verossímil do que criticam. Com isso, o indivíduo, o coletivo, o valor e o conceito reformam-se como instrumentos de análise ao

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reforçarem o objeto de observação. Os discursos teóricos buscam sua legitimidade na maior ou menor adequação à realidade investigada. Os instrumentos de análise viram entidades com o mesmo estatuto representacional do objeto de estudo. Transformam-se em entidade, ironicamente reificando a própria observação. No ímpeto de ser tão real como o que investigam, os discursos teóricos não problematizam as suas “entidades”, deixam ileso o campo de investigação. Ao contrário, a descontinuidade machadiana, ao negar o absoluto privativo do referente, submete a observação a um questionamento intrínseco, justamente ao romper com a unidade orgânica da representação. Em um primeiro momento, até parece contraditório a opção pela crônica elaborada ficcionalmente. Contudo, reafirmando sua proposta onírica, ele mesmo se justifica: “não quero mal às ficções, amo-as, acredito nelas, acho-as preferíveis às realidades; nem por isso deixo de filosofar sobre o destino das cousas tangíveis em comparação com as imaginárias” (17). Ao invés de contrapor real e imaginário, Machado os justapõe em sua complementaridade, preservando a especificidade de cada um. E vai além dessa operação: envolve o real por meio da disposição onírica. O imaginário é o termo comparante do verossímil. O discurso imaginativo de Machado de Assis, praticado em suas crônicas, contitui-se de experiência e de metalinguagem que se reportam à constituição dos eventos de sentido no mundo. Ficção aqui é compreensão e compreensão como hermenêutica das possibilidades de sentido da imanência, do nosso modo de estar aqui. A metafísica das ruas, em seu sistemismo e droguismo (o curativo), vive o progressivo esvaziamento histórico da comunidade. As opções existenciais – do indivíduo ao interpessoal – resolvem-se na reverberação esquemática da identidade. Somente o discurso

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imaginativo consegue abranger essa coerência de horizonte do cotidiano da vida fluminense. Tudo não passa de variações de um mesmo tema fundamental: o avesso de todas estáticas de controle e abstração que é a perda de mundo, o eterno exílio, o fim da temporalidade e das diferenças. Ao se estabilizar a representação, por meio da determinação rígida de seu referente, esvazia-se o real; o mais verossímel transforma-se no mais absurdo. Tal salto, impulso hiperbólico, registra nas malhas de exagero a aderência ao indeterminado. A este, que antes carecia de verdade e perspectiva, agora poematiza-as virtualidades do real. O cotidiano é o mais abstrato possível em virtude de sua organicidade. A verdade da ficção aponta à ficção da verdade. Superando as aporias da organicidade e da distinção estética, encanando as limitações intrínsecas de todo projeto reificador dos acontecimentos humanos, o cronicismo machadiano devolve-nos a historicidade. A crônica, antes descrição dos fatos acontecidos, torna-se fenomenologia do poder-acontecer. Machado de Assis opera, desse modo, autêntica transmutação do gênero que, artisticamente elaborado, perde o fluxo linear do tempo acontecido para situar-se na ruína alegórica dos eventos. A tematização da ruína encena e dramatiza o término de toda redução transcendental que, ao descontextualizar as ações e as intenções por sua normalidade representativa, comunica produtos desconectados de sua instância de produção. No cronicismo machadiano, a história não é o assentar do plausível, e sim a recuperação do possível. O gênero deixa o tempo para se temporalizar. E tempo é descontinuidade impossibilidade de eliminação da alteridade radical. A metafísica das ruas esbarra na configuração narrativa de sua veiculação, repondo o horizonte de questionamento invalidade pela esquematização da identidade. O gênero crônico, descentralizando sua perspectiva unívoca, fala do que deveria evocar: origens (genos). Eis a especificidade do discurso machadiano: explicitar o modo efetivo pelo qual articulamos nossa

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historicidade. Entranhados no mundo, nele habitamos com nossa finitude que nos compele a recriar constantemente o cotidiano por meio da percepção das diferenças, reconhecimento da existência do outro. As crônicas, em sua descontinuidade, revertendo a observação presa aos simulacros do sujeito e do objeto, constituem-se como compreensão. A arte é obra do conhecimento que explicita nosso nexo com o estar-aí. O social concretiza-se nas imagens da linguagem criadora.

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21. BAKHTIN/VYGOTSKY: FUNDAMENTOS DA TRADIÇÃO DO HORIZONTE COMPREENSSIVO DA LINGUAGEM1 Para Oswaldino Marques

Toda tradição de pensamento vive de impasses e obstáculos epistemológicos como resultantes, respectivamente, de suas escolhas intelectuais ou dificuldades mesmas ao nível da compreensão de suas problemáticas. Por meio da correta caracterização do discurso de base, dos princípios pelos quais certas operações metodológicas agem, ou seja, pelo deslinde da organização racional e seu correlato corpus nocional, é que se pode oferecer uma crítica epistemológica autêntica. Interrogando-se pelo fazer dos fatos, pelo modo como esses são tratados, hierarquizados, coordenados, postos a existir por uma investigação tecnodiscursiva, chega-se a situar os horizontes de investigação de uma problemática situação hermenêutica do intérprete e a dialética limite/liminar que preside ao ritmo de suas objetivações-dessubjetivações e de desobjetivações/subjetivações. Assim, comparecem Bakhtin e Vygotsky com fundamental importância para a epistemologia linguística. Partem eles de uma crise de suas diciplinas, e, pela pertinente crítica epistemológica empreendida, desregionalizam-se, concorrem em uma interdisciplinaridade produtiva. O fato é que se dirigem duplamente para seus campos de interesse e para um acontecimento mais abrangente e profundo: a crise mesma da teoria clássica do conhecimento clássica e os impasses maiores do 1 Reescrita de comunicação ao IX Congresso da ANFAL, Campinas, Unicamp, 1990.

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pensamento ocidental europeu. É ponto básico para evidenciar tanto o nexo que une Bakhtin e Vygotsky como o real alcance e a novidade de suas posições demostrar este “pano de fundo”, alicerce e subtexto de suas considerações. Correlativamente, internalizando tal básica questão, avista-se o fluxo histórico mesmo, as marcas ainda presentes, as assincronias posteriores. Para Vygotsky, os procedimentos metodológicos antigos se circunscreviam ao que se pode chamar de “Método de Elementos Componentes”. Apesar das diversas maneiras pelas quais atuavam, os antigos analistas se ocupavam em uma exclusiva atomização do conhecimento, enfocando processos isolados. Estavam impedidos de definir o que Vygotsky chama de “processos mentais superiores”, processos irredutíveis à simplificação sistêmica do circuito ação-reação. Os “antigos” oscilavam entre identificação/ fusão e disjunção-segregação de suas unidades epistemológicas – predomínio de unidades privativas, polares. Esta metodologia exempilifica-se em um estudo da molécula d´água. “Pode-se compará-lo à análise química da água em hidrogênio e oxigênio que nenhum deles apresentam propriedades do todo, e cada um tem propriedades que não estão presentes no todo. O estudante que utilizar este método para tentar explicar alguma propriedade da água – porque ela apaga o fogo, por exemplo – descobrirá, com supresa, que o hidrogênio queima e que o oxigênio alimenta o fogo. Essas descobertas não o ajudarão a solucionar o problema (VYGOTSKY, 1987:3).2 Guiam-se por produtos, por formas finais. Logo, ocorre o predomínio dos objetos sobre os processos que os engendraram, isolando-os sem que se possa acompanhar seu desenvolvimento experimentalmente; predomínio da descrição descontextualizada sobre a explicação das relações dinâmicas como causas reais dos 2 De Vygotsky, valho-me apenas, neste texto, das obras Pensamento e linguagem, São Paulo, Martins Fontes, 1987, e A formação social da mente, São Paulo, Martins Fontes, 1984.

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fenômenos: estão presos às aparições comuns de um objeto, atendo-se às similaridades externas de sua pura presença; por esta prisão ao referente imediato, reforça-se o caráter automatizante da investigação, perdendo, assim, de vista, a perspectiva histórica dos experimentos psicológicos – “estudar alguma coisa historicamente significa estudá-la no processo da mudança” (VYGOTSKY, 1984:73). Essa homogeneização impede que o próprio fenômeno fale, conhecimento produzido se encontra baseado em projeções, afirmações categóricas do sujeito-analista alienado ao acontecimento de sentido posto em circulação pela problemática inicialmente evidenciada. O que temos de outro lado é a acumulação de alterações de fatos isolados. Ora, este tipo de relacionamento artificial entre sujeito e o objeto se encontra na episteme clássica, duramente combatida pelos movimentos renovadores do pensamento humano desde o século passado, como Marxismo, Fenomenologia e, após, a visada integrativa da Hermenêutica. A teoria do conhecimento clássica postulou a máxima objetividade de sua empresa por interdições que se tornam seus próprios limites. Basicamente, temos a difusão de um objeto em sua simples referência material e a retração do sujeito que dotou de significação o projeto que encampa observador e observado. É a promulgação de dois simulacros complementarmente constituídos. A consequência deste modo de encaminhamento da análise infude o rompimento com a processualidade do conhecimento. Este se distende em formais metarrecorrências de similitudes constatadas nas feições aparentes de sua problemática. É o domínio de generalizações, da entrada mesma de certa naturalidade que impede que o observador se retifique para ratificar novos nexos que investiga. Seguindo esta disposição, o produto final é o inicial travestido pelos intervalos-fiat do intérprete. Por atomismos, formalizações e infirmações subjetivas é que se movimenta na episteme clássica. TERCEIRA PARTE BAKHTIN/VYGOTSKY: FUNDAMENTOS DA TRADIÇÃO DO HORIZONTE COMPREENSSIVO DA LINGUAGEM

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A proposição de novos procedimentos, primeiro objetivo de Vyogtsky, é também de Bakhtin. Bakhtin preocupa-se pelas orientações de base e decorrentes procedimentos metodológicos que alcancem a natureza real dos fenômenos linguísticos. Quer reorientar os estudos linguísticos, na medida em que estes se sujeitem às exigências intrínsecas do seu modo de ser. Assim, a referencialidade do analista, o apoio e os pontos de partida, bem como os horizontes-limites de suas investigações são resultados da própria questão. O Atomismo e a pulverização são constatações a posteriori, generalizadas como a priori da experiência humana de conhecer. Antes, há o fazer dos fatos. Deste ponto, suas críticas evidenciam dois modos complementares pelos quais a tradição linguística tinha se encaminhado. Chama uma de objetivismo abstrato e de subjetivismo idealista a outra. Ambas maneiras de proceder reenviam à articulação sujeito-objeto da epistemologia clássica, com o predomínio de uma ou outra instância. Ambas formas não resolvem problemas básicos de uma teoria linguística que são: a dimensão histórica do homem, a relação linguagem – compreensão, a intersubjetividade. Estes problemas são como operações correlatas, interativas, oriundos da relação homem – mundo. Mas por unidades artificiais, que privilegiam de um lado o sistema normativo e de outro o psiquismo individual, as questões não se resolvem. Prolongam-se em eternas recorrências e reenvios. São partes de um mesmo projeto inautêntico que os sustenta. Como afirma Bakhtin: “é só para a consciência individual, e do ponto de vista dela, que a língua se apresenta como sistema de normas rígidas imutáveis” (BAKHTIN, l986:90).3 O que aqui se verifica é uma distância mesma de como o fenônemo ocorre e se desenvolve. Desta distância, a impossibilidade de compreendê-lo. 3 De M. Bakhtin, valho-me de Marxismo e filosofia da linguagem, São Paulo, HUCITEC, 1986.

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Caracterizada a situação pela qual os impasses se eternizam, parte-se agora para a tentativa de melhor postulação do problema e dos procedimentos que o desenvolvam analiticamente. Bakhtin e Vygotsky novamente coincidem. É através de entrada do social, de um elemento não verbal, que se desentravam as reflexões linguísticas e formativas de sua integridade fonética e consequente solipsismo, partindo para uma redefinição da linguagem, além do mero dado, resíduo final de conjunto de investigações. O social aqui invocado é um campo de interconceitos relativos a diversas operações racionais. O social não comparece mais a reboque. Funciona como dimensão subjacente à gênese da linguagem. Em Vygotsky o “social” se constitui no modo pelo qual a aprendizagem do mundo, do ter mundo se processa. Basicamente, temos uma relação entre pensamento e linguagem. São formas diferentes pelas quais os homens apreendem o mundo – têm unidades diferenciais. Mas estão unidas pelo fundamental comportamento integrador que é o pensamento verbal. Este se constitui pela paralelidade da maturação dos instrumentos linguísticos e da maturação da internalização do social pelo contato com o grupo, com a comunidade histórica. Pensamento e fala se interpenetram em sua orientação de alteridade, dimensão histórica de existir para conhecer, convivendo, e conviver conhecendo. Disto, a função primordial da fala ser a comunicação, o intercâmbio social. O foco de interesse voltase para o não verbal. Com o trato objetivo deste, os estudos da linguagem são desmistificados. São descortinados novos esfoques, pelos quais se rompe com os estudos predecessores. É pela promulgação de outra instância, dinâmica e objetiva através da qual a linguagem estaria conectada, que seu estudo supera as recursividades formais. O pensamento verbal se constitui num processo pelo qual os indivíduos apreendem suas capacidades e condições de interagir com seus semelhantes e existir. Temos um circuito integrativo que ultrapassa os TERCEIRA PARTE BAKHTIN/VYGOTSKY: FUNDAMENTOS DA TRADIÇÃO DO HORIZONTE COMPREENSSIVO DA LINGUAGEM

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percursos atomísticos anteriores. A linguagem não é só um som. Ela é o meio pelo qual o pensamento se amadurece e é comunicado. E pensamento e linguagem desenvolvem-se pela integração na comunidade materialmente compartilhada e intersubjetivamente em formação. São como modos fundamentais pelos quais a existência se desdobra. Em Bakhtin, procede-se a uma verdadeira fenomenologia do social na linguagem. É básico o fato de haver esta outra dimensão da existência, essa realidade extraverbal como hierarquizadora dos fatos linguísticos. Partindo do esquema bifacial da linguagem (ela procede ‘de’ e dirige-se ‘a’), temos, para todo fenômeno interior e exterior da linguagem, um auditório em potencial, um contexto social imediato que determina quem serão os ouvintes possíveis” (BAKHTIN, 1986:113). Ora, as limitações, os horizontes da fala estão determinados por este contexto sempre presente que é o centro organizador de toda expressão. O social, além de postular um não verbal, arregimenta um contexto sempre presente para a palavra. Assim, as maneiras de estudar o fato linguístico não podem ser reduzidas ao mero inventário de seus elementos. Estes são orientados, organizados, distribuídos, escolhidos pelas exigências do contexto, do subjacente que emoldura o fenômeno-linguagem. Há aqui sim a possibilidade de compreensão. É por preocupar-se pelo arranjo direcional das formas linguísticas, de uma enunciação conforme um sentido que é construído, um subjacente incorporado, internalizado, que os estudos linguísticos poderão ser revitalizados. A história ocorre não nos fatos arrolados em historiografias, mas no fazer dos mesmos, na sua produção. É essa dimensão de razão prática como nexo do indivíduo – realidade social por meio da utilização das categorias marxistas por Bakhtin e Vygotsky, próximo ponto a considerar. Como se tornou comum na geração que seguiu a esta primeira incursão no social, o texto de maior referência quanto à 256

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concepção marxista de linguagem é ‘Ideologia alemã’. Nas teses contra Feurbach, avista-se aquele panorama de instabilidade epistemológica apontada no início de nossas considerações. Na primeira tese afirma-se que o conhecimento se conduziu na própria reificação do que apreende, ou seja, “captar o objeto, a efetividade apenas sob a forma de objeto ou intuição e não como atividade humana, atividade objetiva”. Entre o objeto e a intuição prolonga-se o culto de simulacros postos em movimentação por estratégias de inteligilidade estáticas e estéreis. Porém, com o ponto de partida deslocado para a existência, para a vida real, temos novos pressupostos e condições de exercício de pensar. Temos os seres humanos vivos produzindo seus meios de existência, na embricação de uma história da natureza e dos homens. Vê-se que a consciência se conduz ativamente como prática, real, para a produção da comunidade histórica. Daí a linguagem é a consciência real, fruto da carência e necessidade dos intercâmbios. O modo de ser do pensamento verbal se instituiu no processo de constituição integrativa do extraverbal, numa dinamicidade patente que demonstra uma complexidade latente. A arquitetura filosófica dessa efetivação do social dentro da linguagem, entretanto, possui duas faces, que em nossas conclusões comentaremos. Prosseguindo, como terceiro momento da reorientação dos estudos linguísticos por categorias constitutivas de seu modo de ser, surge a revitalização dos estudos da semântica. Para Bakhtin, em termos contundentes, o grande obstáculo e desafio para a linguística anterior é conciliar a polissemia da palavra com sua integralidade fonética. Como se divinizou o dado simples, havia uma certa conjunção identificadora entre significado formal e sentido veiculado. Vygotsky, em suas pesquisas sobre a maturação do instrumental linguístico, mostrou que os significados evoluem na medida em que o contexto incorporado se desenvolve. Diz que “há muito se sabe que as palavras podem TERCEIRA PARTE BAKHTIN/VYGOTSKY: FUNDAMENTOS DA TRADIÇÃO DO HORIZONTE COMPREENSSIVO DA LINGUAGEM

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mudar de sentido. Recentemente ficou demonstrado que o sentido pode modificar as palavras, ou melhor, que as ideias mudam frequentemente de nome. Da mesma forma que o sentido de uma palavra está relacionado com toda a palavra, e não com sons isolados, o sentido de uma frase está relacionado com toda frase, e não com palavras isoladas. Portanto, uma palavra pode às vezes ser substituída por uma outra sem que haja qualquer alteração de sentido. As palavras e os sentidos são relativamente independentes” (VYGOTSKY, l987:126). Desde já, a palavra é uma generalização da realidade; diversifica-se por meios das motivações de seus contextos, para construir um sentido. É o vetor, o índice dos suportes situacionais produtores de nexo interindividual. A enunciação se apresenta como a expressão de uma situação histórica concreta que lhe deu origem, relacionada a um aparato técnico para a sua realização. Assim, a polissemia, a multiplicidade de significações potenciais é o índice que faz de uma palavra uma palavra, pois o verbal é dinâmico, diversificadamente orientado, o que acarreta vários modos de organizar os significados para produzir o sentido. Após estas incursões fragmentárias na revitalização da semântica, temos a última decorrência da tradição do horizonte compreensivo do social na linguagem: o estudo da Literatura como discurso privilegiado para a representação da incorporação problematizadora do social. É tão marcante este passo que as coincidências chamam ao seu limite: em suas exemplificações, Bakhtin e Vygotsky citam o mesmo texto literário. É o texto de Dostoievski, extraído de Diário de um escritor, no qual seis pessoas emprestam, de acordo com cada microtexto de um contexto maior (cena), apreciações significativas diferentes à mesma palavra. A materialidade do signo está a serviço da materalidade da vida. O que se quer é apresentar a experiência linguística de cada falante como a concriação efetivadora de uma expressão orientada dentro de um auditório social. 258

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Nisso, a literatura aparece como condensador de suportes entoacionais ausentes e processualmente incorporados. É pelo seu enriquecedor trato do não dito, da construção deste, que o texto literário ajuda a “desalienar”o falante de sua inércia habitual. Se o sentido é processo, resultante de todo um conjunto de operações, a operatividade do linguístico se constitui na maneira pela qual age a comunicação humana. Conclusões. Bakhtin e Vygotsky denunciaram certas ingerências dos métodos de estudo, oriundos de uma crise maior que, creio, ainda subsiste em suas assincronias. Seus procedimentos, se corretamente interpretados, podem fornecer elementos e subsídios para solucionar alguns impasses epistemológicos. A incorporação do social na linguagem se traduz em uma gama de interconceitos ligados a certas operações intelectuais do discurso-base que viabilizam a dinamização dos estudos da linguagem, na medida em que situa a prática linguística relacionada a práticas sociais, e, deste fato, interroga-se pela realidade intrínseca do verbo – sua fenomenologia. É importantíssimo a desmitificação de vários pseudoproblemas, como o retirar da esfera mentalista o não dito. Aponta ainda para a aplicabilidade de suas especulações quando da reabilitação da semântica e das relações entre linguística e poética. Porém, há um ponto a considerar, que se torna como questão final e tema para outro trabalho: retirada a linguagem de sua simples postulação “objetal”, invertendo uma tradição na qual a palavra era centro de estudos humanísticos ao mesmo tempo que, por sua determinação indeterminada, instância principal para falsas discussões, isto não acarretaria um novo dogmatismo, em uma nova arbitraridade da palavra-comunicativa, puramente instrumental, a serviço de um “realismo socialista”? Creio que a epistemologia da linguística tem a ganhar com aprovações e objeções aos procedimentos metodológicos originais de Bakhtin e Vygotsky. TERCEIRA PARTE BAKHTIN/VYGOTSKY: FUNDAMENTOS DA TRADIÇÃO DO HORIZONTE COMPREENSSIVO DA LINGUAGEM

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Este livro foi composto em Adobe Garamond Pro 12 no formato 150x220 mm e impresso no sistema OFF-SET sobre Papel offset 75 g/m2, com capa em papel Cartão Supremo 250 g/m2