Configuraões da narrativa: verdade, literatura e etnografia
 9783964563682

Table of contents :
AGRADECIMENTOS
SUMARIO
1. PORTO DE ORIGEM
2. RELATOS DE VIAGEM
3. DAS IDÉIAS E SUAS VICISSITUDES
4. À PROCURA DOS FATOS
5. CAMINHOS CRUZADOS
BIBLIOGRAFIA

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Valter Sinder: Configurâmes da narrativa: Verdade, literatura e etnografía

TCCL - TEORÍA Y CRÍTICA DE LA CULTURA Y LITERATURA INVESTIGACIONES DE LOS SIGNOS CULTURALES (SEMIÓTICA-EPISTEMOLOGÍA-INTERPRETACIÓN) TKKL - THEORIE UND KRITIK DER KULTUR UND LITERATUR UNTERSUCHUNGEN ZU DEN KULTURELLEN ZEICHEN (SEMIOTIK-EPISTEMOLOGIE-INTERPRETATION) TCCL - THEORY AND CRITICISM OF CULTURE AND LITERATURE INVESTIGATIONS ON CULTURAL SIGNS (SEMIOTICS-EPISTEMOLOGY-INTERPRETATION) Vol.21

EDITORES / HERAUSGEBER / EDITORS: Alfonso de Toro Ibero-Amerikanisches Forschungsseminar Universität Leipzig [email protected] g.de Luis Costa Lima Rio de Janeiro, RJ [email protected] Dieter Ingenschay Institut für Romanistik Humboldt-Universität zu Berlin [email protected] Michael Rössner Institut für Romanische Philologie der Ludwig-Maximilians-Universität München [email protected]

CONSEJO ASESOR / BEIRAT / PUBLISHING BOARD: J. Alazraki (Barcelona); G. Bellini (Milán); A. J. Bergero (Los Angeles); A. Echavarria (San Juan de Puerto Rico); Ruth Fine (Jerusalén); W. D. Mignolo (Durham); K. Meyer-Minnemann (Hamburgo); E. D. Pittarello (Venecia); R. M. Ravera (Rosario); S. Regazzoni (Venecia); N. Rosa (Rosario); J. Ruffinelli (Stanford). REDACCIÓN: René Ceballos, M. A.

Valter Sinder

Configuraçoes da narrativa: Verdade, literatura e etnografia

Vervuert • Iberoamericana • 2002

Die Deutsche Bibliothek - CIP-Einheitsaufnahme Sinder, Valter: C o n f i g u r a r e s da narrativa: verdade, literatura e etnografia / Valter Sinder. - Madrid : Iberoamericana ; Frankfurt am Main : Vervuert, 2002 (Teoria y critica de la cultura y literatura ; Vol. 21) ISBN 3-89354-221-3 (Vervuert) ISBN 84-8489-003-1 (Iberoamericana) © Iberoamericana, Madrid 2002 © Vervuert Verlag, Frankfurt am Main 2002 Diseño: Michael Ackermann Ilustración: Detalhe da reprodufäo Nieuve Caerte van het wanderbaer ende gondrijcke landt Guiana, 1598, de Jodocus Hondius; tal como editada no Catalogo 500 anos de Brasil na Biblioteca Nacional, p.91. Paulo Roberto Ribeiro (org.). Rio de Janeiro: Funda?ào Biblioteca Nacional / Ministério da Cultura - Brasil, 2000. Reservados todos los derechos Este libro está impreso íntegramente en papel ecológico blanqueado sin cloro Impreso en Alemania

À memòria de Luis Rodolfo da Paixäo Vilhena Para Slioma Sinder e Marcia Segai Sinder, Vania Belli, Thiago Belli Sinder e Bruno Belli Sinder, consignando, assim, esta outra forma de dedicagào

AGRADECIMENTOS

Configuragòes da Narrativa: Verdade, Literatura e Etnografia nasceu de urna tese de doutorado escrita entre 1991 e 1992 e defendida no Programa de Pós-Graduagào em Literaturas de Lingua Portuguèsa do Departamento de Letras da Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro em outubro de 1992. Elaborada sob a orientalo do Professor Dr. Affonso Romano de Sant'Anna, sua defesa contou, na banca examinadora, com a presenta dos Professores Drs. Roberto da Matta, Patricia Birman, Karl-Eric Sch0llhammer, Heidrum Krieger e Everardo Rocha. Em 1996 procurei redimensionar e reescrever em parte a tese visando sua public a d o . Dificuldades editoriais adiaram, contudo, esta publicafào, até que o interesse da Editora Iberoamericana/Vervuert em publicar esse traballio em sua colegào Teoria y Crítica de la Cultura y Literatura, a tornassem possivel. Gostaria de manifestar meu sincero agradecimento ao Professor Dr. Alfonso de Toro por ter acolhido esse livro na colegào que dirige. Voltado já há algum tempo para outro objeto de pesquisa, nào me pareceu aconselhável empreender urna nova revisào. Gostaria, portanto, de submeter ao leitor um traballio cujas referèncias explícitas nào atingem o ano de sua publicagào, mas cujo interesse, espero, continua absolutamente atual. O CNPq, a CAPES e a Fulbright forneceram, em diferentes momentos, as bolsas de estudo que tornaram materialmente possivel a efetivagào do trabalho. Agradego ao Departamento de Letras da PUC-Rio e aos colegas do Kellogg Institute da University of Notre Dame onde desenvolví parte deste trabalho. Agradego aos colegas do Departamento de Ciencias Sociais da UERJ e do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, por terem sempre me apoiado inclusive me liberando, quando necessàrio, para que esse trabalho fosse possivel. Sou grato a amigos, colegas e alunos que me auxiliaram de diferentes maneiras na redagào do trabalho e na publicado do livro. Roberto da Matta, acolheu-me generosamente no Kellog Institute - University of Notre Dame, introduziu-me nos meandros da vida académica norte-americana e tem sido já há algum tempo, além de um amigo, fonte de permanente inspiragào intelectual. Agradego ainda a Vania Belli, primeira leitora destas páginas, que sempre clareou meus pensamentos com suas questòes, por ter aqui inscrito seu rastro múltiplo.

Valter Sinder

Rio de Janeiro, dezembro de 1999

SUMARIO

1.

PORTO DE ORIGEM

13

2.

RELATOS DE VIAGEM

19

2.1 Colombo e seu diàrio: outras térras, outros seres

20

2.2 Cervantes e seu Quixote: outros seres, novos espatos

30

2.3 Os navios da razào

38

DAS IDÉIAS E SUAS VICISSITUDES

45

3.1 Historia, narrativa e verdade

46

3.2 Da verdade ética à verdade dos fatos

53

À PROCURA DOS FATOS

59

4.1 Observadores e observares

63

3.

4.

5.

4.1.1

Os naturalistas viajantes: a ciéncia como guia

68

4.1.2

Os prudentes argonautas: o impasse metodológico

71

CAMINHOS CRUZADOS

95

5.1 Observando, analisando, interpretando

99

5.2 Da escrita e do poder

BIBLIOGRAFIA

107

115

Entre os que se fazem ao mar há navegadores que descobrem novos mundos, somando continentes à terra e estrelas aos céus: eles sào os mestres, os grandes, os eternamente brilhantes. Depois há os que cospem terror por suas portinholas, que saqueiam, enriquecem e engordam. Outros saem à procura de ouro e seda sob céus estrangeiros. Outros, ainda, pescam salmào para o gourmet ou bacalhau para o pobre. Eu sou o obscuro e paciente pescador de pérolas, que mergulha ñas águas mais profundas e volta com as màos vazias e o rosto azulado. Alguma atragào fatal me arrasta para os abismos do pensamento, para aqueles recantos mais íntimos que nunca cessam de fascinar o forte. Hei de passar a vida apenas contemplando o oceano da arte, onde outros viajam ou combatem; e, de vez em quando, hei de me entreter mergulhando em busca daquelas conchas verdes e amarelas que ninguém há de querer. Assim, guardá-las-ei para mim e com elas recobrirei as paredes de minha tapera.

Gustave Flaubert

Il

1.

PORTO DE ORIGEM Em outras palavras, é mais importante ter idéias do que conhecer verdades; é por isso que as grandes obras filosóficas, mesmo quando näo confirmadas, permanecem significativas e clássicas. Ora, ter idéias significa também dispor de urna tópica, tomar consciéncia do que existe, explicitá-lo, conceituá-lo, arrancá-lo à mesmice, à Fraglosigkeit, Selbständigkeit. É deixar de ser inocente, e perceber que o que é poderia näo ser. O real está envolto numa zona indefinida de com-possíveis näo-realizados; a verdade nào é o mais elevado dos valores do conhecimento. Paul Veyne

Em A Descoberta da Lentidäo (1989), romance-biografìa de John Franklin (17851847), navegador e pesquisador inglés que realizou diversas expedigöes ao Polo Norte à procura da lendária Passagem Noroeste, S. Nadolny nos apresenta a historia de vida de um hörnern que, desde crianza, era considerado lento no falar, no pensar e no reagir; organizando e medindo o tempo de acordo com seus próprios padröes. Acompanhando o relato de sua historia, de suas viagens, deparamo-nos com um personagem que, frente a acontecimentos que dependiam de reagöes ágeis e ¡mediatas, captava peculiaridades e detalhes que só ele percebia. Para o capitäo, como pode-se acompanhar neste e em outros diálogos durante a narrativa, a ordem nào era urna coisa estabelecida: -

E agora, sobre o que ficou para trás, Sr. Franklim - disse o capitäo Dance - , dé-me urna noticia resumida!

-

Mais depressa Sr. Franklim! O que há mais para refletir? O senhor estava lá! - John também estava preparado para isso. - Quando eu descrevo, Sir, uso o meu pròprio ritmo. (Nadol ny 1989: 86)

Que relagöes estabelecer entre a experiència e a realidade, entre a descrigäo, construy o , análise, interpretado, enfim, entre o ritmo do narrador, da narrativa, daquilo que é narrado, e, finalmente, do leitor da narrativa? A inevitabilidade do nosso envolvimento na historia aponta para o fato de que o que quer que possamos ter da verdade näo será obtido apesar de nossa situagäo histórica mas devido a eia. 1 Estratégias de 1

Como assinala Merleau-Ponty, considered superficially, history destroys all truth, though considered radically it founds a new idea of truth. As long as I hold the ideal of an absolute spectator before me, of knowledge without a point of view, I can see my situation only as a principle of error. But having once recognized that through this situation I have become part of all action and all knowledge that can be meaningful for me, and that it contains, in gradually widening horizons, all that can be for me, then my contact with the social in the finitude of my situations reveals itself as the origin of all truth, including that of science; and since we have an idea of truth, since we are in the truth and

il

VALTER SINDER

afirmagao da verdade que apontam posigoes diversas tém sido estabelecidas das mais variadas formas, e as narrativas tém trilhado diferentes veredas. Neste livro, pretende-se configurar urna dentre as rotas estabelecidas pelas narrativas, tendo como porto de origem a mudanza de regime discursivo operada na época das grandes navegagoes. A verdade, toda verdade, nada mais do que a verdade. A idéia de que urna verdade eterna, universal, onipresente, deve ser descoberta por qualquer um de nós, parece ser urna idéia dominante em nossa civilizagáo. Entretanto, como reiteradamente apontou M. Foucault (1979, 1979a, 1992), essa idéia nem sempre esteve presente, ela surge em um momento histórico determinado, quando se abandona as técnicas de produgáo da verdade, 2 e volta-se para a constatagao da verdade. Viajantes, exploradores, missionários, naturalistas e etnógrafos tém realizado, desde a época das grandes navegagoes, longos percursos em aventuras variadas, produzindo e trazendo na volta relatos de lugares mais ou menos estranhos, formas de plantas e de animais até entao desconhecidas, experiéncias com povos exóticos. Filósofos e educadores, historiadores e naturalistas, poetas e artistas, assim como contadores de historias, tém produzido relatos de povos que ora parecem mais selvagens, ora mais idílicos, ora mais complexos do que eles próprios. Examinaremos algumas configuragóes dessas narrativas, sua escrita, seus diálogos. Para tal, parte-se dos Diarios da descoberta da América, de Cristovao Colombo (1986). Momento de demarcagao e estabelecimento de fronteiras temporais-espaciais: fronteiras geográficas, políticas, económicas, culturáis, físicas e espirituais. Momento em que se configura o mundo como um espago infinitamente grande, mas passível de conhecimento, em contraposigáo ao espago limitado do mundo medieval, comandado por um imenso poder ininteligível. Como contraponto, outra viagem. As aventuras do ingenioso hidalgo Dom Quixote de la Mancha. Momento em que o universo a ser conhecido se desdobra em um mundo de signos e de rastros. Estratégia diferente de produgáo da verdade empreendida pelo cavaleiro andante. - Nossa intengao? Trata-se de mapear como se produzem efeitos de verdade no interior de discursos/narrativas que nao sao em si nem verdadeiros nem falsos. Trata-se de examinar a constituigáo de políticas da verdade (da e na narrativa) que demarcam fronteiras, colocando de um lado, a positividade, a realidade, a certeza, a relatividade e o útil;

cannot escape it, then the only thing left for us to do is to define a truth within a situation. (Merleau-Ponty "The Philosopher and Sociology", 1951; apud Scholte 1986: 26) 2

A prova nào tinha corno fun ultimo o estabelecimento da verdade, mas sim a produfào desta. A velha e bastante arcaica pràtica da prova da verdade em que està é estabelecida judiciariamente nào por urna constatalo, urna testemunha, um inquérito ou urna inquisito, mas por um jogo de prova. (Foucault 1979: 26.)

PORTO DE ORIGEM

11

e do outro, a fantasia, o ficticio, o impreciso, o absoluto e o ocioso. Momento de transformagào das fronteiras narrativas; fronteiras movéis de produgào da verdade. Se nos voltarmos para a Poética de Aristóteles, veremos que este, apesar de apontar o poeta como podendo urdir urna trama com diferentes unidades, por estar livre da sucessào linear da escrita da historia, nào colocava como impossível o aparecimento dos acontecimentos e personagens históricos na tragèdia: "nada impede que algumas das coisas que realmente aconteceram pertengam ao tipo das que poderiam ou teriam probabilidade de acontecer" (Aristóteles 1973 [1451ab]). As fronteiras que demarcavam os dois campos, poesia e historia, tèm sido consideradas elásticas e permeáveis. Os relatos de viagem, por exemplo, já foram incluidos tanto no campo da historia como no da ficgào (cf. Veyne 1982). Nào surpreende, portanto, encontrar coincidéncias de preocupagoes. No século XVIII, como veremos no terceiro capítulo, o núcleo desses pontos em comum em termos de preocupado inclinava-se na diregào da relagào entre a ética e a verdade da narrativa. Como aponta H. White em The Historical Text as Literary Artifact (1978), antes da Revolugào Francesa a historiografía era vista como arte literária. Reconhecia-se ser inevitável a utilizagào das técnicasficcionais na representa?ào dos eventos reais na forma de discurso histórico. A oposigào entre belles Lettres e Lettres savantes, encontrada, depois da emancipagào da literatura, somente seria consumada no século seguinte (cf. Viala 1985). No final do século XVIII, inicio do XIX, dentre os múltiplos dominios que emergem do desdobramento e da fragmentagào da linguagem, urna nova concepgào das relagòes entre literatura (romance) e historia iria se formar. Formas particulares de representagào que apontariam, por um lado, para a ordem da imaginagào, o ficcional, e, por outro, para a ordem do acontecimento - a historia (cf. Lima 1984, 1986). Novo tragado, outra fronteira, no vos personagens: urna nova viagem que iremos acompanhar em nosso quarto capítulo. Naturalistas, comerciantes e aventureiros sairào em busca de fatos, riquezas e experièncias. Novas verdades serào produzidas. Às vezes boas, outras ruins, mas sempre com um certo valor deontológico. Verdades que dialogam entre si, recortando, ordenando, classificando. Verdade da Ciencia, outras verdades. Outras verdades, novas viagens. No vos meios de produgào da verdade em lugares nunca dantes navegados. As perguntas: como e onde produzir a verdade, em que condigoes, que formas observar, que regras aplicar, serào respondidas pelos novos argonautas do saber de urna maneira completamente inovadora. A verdade e nada mais do que a verdade, só pode ser atingida mediante a passagem do inquérito para a observagào. E quando se fala em observagào quer se dizer mais do que um simples olhar distante; pelo contràrio, para se ter a verdade, tem-se um prego a pagar: a saber, a observagào nào poderá mais ser feita seja do gabinete nas metrópoles, mediante o inquérito levado a cabo por observadores (treinados ou nào), seja por pesquisadores no campo que irào inquirir diretamente os nativos (mediante interpretes ou nào); trata-se agora de participar da observagào a ser feita. O prego a ser pago para a obtengào da verdade é a participagào-imersào do

VALTER SINDER sujeito que observa na vida dos objetos observados, transformando esses últimos, surpreendentemente, em sujeitos. Esta questao nos remete à distingào proposta por Benveniste em "As relagòes de tempo no verbo francés" (1976), entre narrativa (ou historia) e discurso. Neste artigo, Benveniste mostra como certas formas gramaticais (como o pronome eu, e sua referencia implícita tu), indicadores pronominais ou adverbiais e, ao menos em francés, alguns tempos do verbo (como o presente, o passado composto ou o futuro), se encontram reservados ao discurso; ao passo que, a marca da narrativa está no emprego exclusivo da terceira pessoa e de formas como o aoristo (passado simples) e o mais que perfeito. Como chama atengào Genette, em "Fronteiras da Narrativa" (1976), essas diferengas podem ser reduzidas a urna oposigào entre a "objetividade da narrativa" e a "subjetividade do discurso". De um lado, a narrativa da verdade, o conhecimento positivo, o lugar do sujeito-cientista e, de outro, o discurso imaginário, o lugar da subjetividade do sujeito. Será possível dizer: por trás, urna nova verdade? Será que com essa nova forma de saber teria se produzido urna verdade que deve passar necessariamente pela subjetividade do sujeito para que entào possa se constituir enquanto conhecimento positivo? Esta nova forma de produgào da verdade, que em alguns momentos privilegia o saber da testemunha, memòria empírica daquilo que foi visto e vivido pelo sujeito, e que em outros, toma como guia o saber do filósofo, memoria mais profunda, transcedental; às vezes, tenta conjugá-los. Será que se está diante de novos especialistas do universal que viriam trazer a boa nova? Ao firn e ao cabo, estaremos como Édipo, condenados a desvendar (agora pela ciéncia) o enigma da verdade, ao juntar as duas metades? Será que, como nos avisara Nietzsche, depois de tanto andar, tanto mar, Platào a nos esperar... Ñas configura?oes da narrativa fronteiras que pareciam definitivamente establecidas apontam para novas dinámicas, novos arranjos, e emergem enquanto possibilidade de produgào de novos tragos. Renuncia-se à procura do além ou do aquém da cultura. A descrigào passa a ser entendida, em si mesma, enquanto construgào. Elimina-se o postulado da descontinuidade entre a experiència e a realidade. As narrativas sao, em si mesmas, interpretagòes. Interpretagòes de interpretagòes. O olhar se volta novamente para a narrativa; a escrita da historia e a escrita da antropologia nào se encontram separadas da historia e da etnografia. Isto nào significa que se postule simplesmente a necessidade de revisào do método; pelo contràrio, significa sim colocar a pròpria nogào de método (etnográfico, histórico) em xeque. Implica entender o conhecimento histórico e etnográfico, enquanto formativos. Enfim, implica postular que historia e historiografía, antropologia e etnografia sào urna e mesma coisa. Isto significa, antes de mais nada, pensar a reintrodugào da narrativa literária, ficcional, polissèmica, que havia sido colocada em um outro registro. Os textos literários (metafóricos e alegóricos), compostos de invengòes (ao invés de fatos observados), que permitem o acesso de emogòes, especulagòes e o gènio subjetivo dos autores, lugar portanto por exceléncia da multiplicidade de sentidos, retornam ao

PORTO DE ORIGEM

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centro do questionamento sobre a possibilidade de se dizer a verdade. A linguagem é agora elemento fundamental da propria construgào do real. As fic?òes da linguagem literária, condenadas científicamente (e apreciadas esteticamente), exatamente por faltar-lhes univocidade, 3 retornam na pròpria escrita que se faz necessària para o saber antropológico (em tudo o que se pode saber do homem). A narrativa da viagem, do exótico e do diferente encontra-se com a literatura enquanto construyo de algo que pode ainda nào existir de fato, mas que deve existir, por múltiplas razòes. Contra o poder, levanta-se a bandeira do saber. Nesta luta, saber e verdade se entrelagam, constituindo um novo lugar. Como resultado, efeitos inesperados: p r o d u j o de novas autor(idades). Entre o silèncio e o diálogo, parafraseando P. Clastres, podemos dizer que se continua à procura do último. Nossa intendo, neste traballio, é de redistribuir as narrativas da verdade segundo no vos eixos problemáticos que fazem ressaltar analogías inesperadas, filiagòes desconhecidas, cumplicidades imprevistas, e também no vos mapas, novos recortes. Pretende-se realizar uma historia genealógica, que, como chama atenfào F. Chátelet (1977), é também uma geografia da filosofia; esta designalo, geografia da filosofia remete "para uma visào espacial da filosofia". Esta, embora tenha inventado a transcendencia, é, como a matemática, uma superficie. Dai que só a possamos trabalhar corretamente fazendo a sua projefào sobre um plano, isto é, considerando-a num espafo. Uma geografia das idéias, assim concebida, permite compreender como essas mitologías racionais que sào os sistemas filosóficos sao os elementos de polémicas intelectuais, que entram, elas próprias, ñas estratégias políticas. (Chátelet 1977: 41-42)

Se se concorda com Thomas Kuhn (1975) que tornar-se membro de uma comunidade científica envolve o aprendizado de um paradigma, o que aqui se propòe é uma estratégia de aprendizado. Estratégia que pretende, antes de mais nada, produzir novas configuragoes de verdade ñas ciencias humanas.

Refletir sobre essas questóes significa dialogar com idéias como as de G. Braithwaite, personagem-pesquisador da verdade histórica em O Papagaio de Flaubert, que em sua apreciafao sobre a historia diz que Podemos estudar arquivos durante décadas, mas com muita frequéncia nos sentimos tentados a jogar tudo para o alto e declarar que a história é meramente outro género literario: o passado é ficfáo autobiográfica fingindose de relatório parlamentar. (Barnes 1988: 100-101)

12.

2.

RELATOS DE VIAGEM A coisa mais incompreensível do mundo é que ele é compreensível. Albert Einstein

Sabemos que a diversidade das sociedades humanas, fenòmeno resultante das relagoes diretas ou indiretas entre os diferentes grupos, tem sido em geral apreendida pelos homens como algo aberrante, monstruoso, que deve ser justificado. A nofào de humanidade como algo que engloba todas as formas da espécie humana, sem d i s t i n t o de raga ou civilizagào, é algo nao só recente como também limitado. O fato de que, para inúmeras populagòes, as fronteiras da humanidade se restringem às fronteiras da sociedade, do grupo lingüístico ou mesmo da aldeia pode ser apreendido em um rápido exame da forma como os mais variados grupos se referem uns aos outros: pode-se encontrar desde os antigos conhecidos - bárbaros, selvagens e primitivos, até os exóticos - macacos e ovos de piolho. Pode-se, inclusive, levar o estranhamento a tal ponto, que torna-se possível alocar o outro na categoria de aparigào ou fantasma, colocando-o nos limites entre a realidade e sua negagào. A atitude que consiste em expulsar da cultura - isto é, para a natureza - tudo e todos que nào participam daquilo que se entende por humanidade e com o qual nos identificamos embasa um procedimento que parece comum a todos os homens (cf. Lévi-Strauss 1976/1952a). Sabe-se que durante o Renascimento locáis até entào desconhecidos sào explorados, elaborando-se discursos sobre os seres que habitam aqueles espatos. A principal questào que os europeus entào se colocam diz respeito ao pertencimento daqueles seres à humanidade, e tem como contraponto fundamental o critèrio religioso. A saber: Teriam os selvagens alma? Qual sua ligagào com o pecado original? 1 Ao mesmo tempo, sabe-se que a crise da cosmologia crista, acentuada a partir dos séculos XIV e XV, pode ser apreendida na crescente m a n i f e s t a l o de descrédito à possibilidade de apreensào da verdade do mundo como estando inserita de forma transparente nos fenómenos e nas coisas. Tal fato, que tem sido assinalado por diversos estudiosos (cf. Michel Foucault s. d. [1966], 1976, 1992; Jacques Le Goff 1985, entre outros), aponta para a emergència de novas formas de saber como produtoras e reveladoras da verdade.

1

Em "Rafa e Historia", Lévi-Strauss aponta que essas questóes nao eram exclusivas aos europeus. Para ilustrar tal fato ele nos lembra que [...] nas grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta da América, enquanto os espanhóis enviavam comissóes de investigafao para pesquisar se os indígenas tinham ou nao urna alma, estes últimos dedicavam-se a imergir brancos prisioneiros, a fim de verificar, após urna vigilia prolongada, se seu cadáver estava ou nao sujeito á putrefafáo. (Lévi-Strauss 1976/1952a: 334)

VALTER SINDER

20.

Trata-se aqui de refletir sobre esses modos de produgào da verdade. Para tal, partimos de duas narrativas que se constituem como relatos de viagem, e que podem ser apontadas como ponto de emergencia de nossa identidade presente, de nossa verdade atual; marcos históricos de passagem para a Idade Moderna: os Diários da descoberta da América de Cristovào Colombo, e o relato das aventuras do ingenioso hidalgo Dom Quixote de la Mancha de Miguel de Cervantes. Tanto a descoberta da América como as aventuras de Dom Quixote, podem ser apreendidas como relatos de viagem da descoberta do outro. Deslocamentos no tempo e no espado que apontam para novas dimensóes externas e internas. Como observou Baéta Neves, em seu estudo sobre o colonialismo e a repressào cultural, "o momento do encontro é um momento de choque, de violéncia, de alteralo de urna situagào até entào vigente" (1978: 29). Em seu livro, A Conquista da América, onde irá desenvolver urna reflexào sobre a questào da alteridade, Todorov afirma que [s]omos todos descendentes diretos de Colombo, é nele que cometa nossa genealogia se é que a palavra comefo tem algum sentido. Desde 1492 estamos, como disse Las Casas, 'neste tempo tao novo e a nenhum outro igual' (Historia de las Indias, I, 88). A partir desta data, o mundo está fechado (apesar do (sic) universo tornar-se infinito).'O mundo é pequeño', declara peremptoriamente o pròprio Colombo (Carta Rarissima, 7.7.1503 [...]). Os homens descobriram a totalidade de que fazem parte. Até entao, formavam urna parte sem todo. (Todorov 1988: 6)

2.1 Colombo e seu diàrio: outras térras, outros seres Pensei em descrever toda esta viagem mui pontualmente, dia após dia, relatando tudo o que fizesse, visse e acontecesse, como adiante se verá. [...] [A]lém de descrever cada noite o que suceder durante o dia, e de dia o que navegar durante a noite, tenho a intenfào de tramar nova carta de navegagào, na qual colocarei todo o mar e térras do Mar Oceano em seus devidos lugares, sob os respectivos ventos, e ainda mais, de compor um livro e estabelecer toda a analogia em pintura, por latitude do equinócio e longitude do Ocidente; e sobretudo cumpre muito que esqueja o sono e me empenhe em navegar, porque assim é preciso, o que me dará grande traballio. (Colombo 1986: 31-32)

Desta forma, anunciava o pròprio Colombo o inicio do relato de sua viagem iniciada em 3 de agosto de 1492: "A descoberta das Indias [escreveu um cronista espanhol em meados do século XVI] foi o maior acontecimento da historia depois da criagào do mundo". Como afirmava Colombo, tudo o que se fizesse, visse e acontecesse seria relatado: Quarta, 9 de janeiro - À meia-noite levantou as velas com o vento sudeste e navegou para o lés-nordeste; chegou a urna ponta que chamou de 'Punta Roja'. E a seu abrigo ancorou à tarde, que seriam umas très horas antes do anoitecer. Nessa terra toda há militas tartarugas que os marinheiros capturaram em Monte Cristi, quando vinham desovar em terra, e eram enormes, feito grandes escudos de madeira. Ontem, quando o Almirante ia ao Río

RELATOS DE VIAGEM

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del Oro, diz que viu tres sereias que saltaram bem alto, acima do mar, mas nào eram tao bonitas como pintam, e que, de certo modo, tinham cara de homem. (Colombo 1986: 87)

Quase cinco séculos depois, tomando como referencia esses mesmos Diários da Descoberta da América, temos dois comentários distintos e, de certo modo, complementares. Por um lado, o historiador Sérgio Buarque de Holanda apontaria que, [p]ara numerosos viajantes, o cenário americano estava repleto de misteriosas e inegáveis possibilidades. Ali, o milagre parecia novamente incorporado à natureza: urna natureza ainda cheia de gra?a matinal, em perfeita harmonía e correspondencia com o Criador. O pròprio Colombo, sem dissuadir-se de que atingira pelo Ocidente as partes do Oriente, julgou-se em outro mundo ao avistar as costas verdejantes da América, onde tudo lhe dizia estar a caminho do verdadeiro Paraíso Terreal. As mesmas imagens bíblicas, reafirmadas pelos cosmógrafos mais acreditados da época, acharia Colombo em seu desembarque ñas Antilhas: térras de fertilidade inaudita, árvores de copas altíssimas, fragrantés e carregadas de frutas, a eterna primavera musicada pela alegría dos cantares de pássaros de mil cores. (Holanda 1969: 37)

Por outro, alguns anos mais tarde, o escritor Gabriel García Márquez afirmaría que esses Diários podiam ser destacados como constituindo "o primeiro livro de realismo mágico". Imagens bíblicas, paraíso edènico, falsa consciéncia ou realismo mágico? Afinal, do que se trata? Que tipo de descrigào embasa essas narrativas de Colombo? A que realidade se referem? Terá deixado Colombo fluir sua imaginagào, produzindo um relato onde lenda e realidade se misturam? Para que se possa saber o que realmente aconteceu será necessàrio depurar a narrativa de Colombo, a fim de separar o joio do trigo? Afinal, será esta narrativa fruto de um momento histórico em que a razào ainda se encontrava encoberta pelo mito, nào sendo portanto possível urna descrigào da realidade de maneira fidedigna? Será que teremos que esperar pela ciéncia para que se possa ter um método de descrivo considerado fidedigno para que se possa atingir as verdades verdadeiras? Se nào for este o caso, como pensar entào este relato? Para além do ponto de chegada a que nos conduzem os relatos de viagem também trazem a possibilidade de um ponto de partida: partida de urna nova viagem. Afinal, nào faz parte da historia o fato de que o pròprio Colombo teria partido porque lera, entre outros, o relato de Marco Polo? A maioria dos livros que nos apresenta o saber dos homens da Idade Mèdia que descobriram a América, apresenta como ponto de referencia duas fontes principáis: a Biblia e os autores da Antiguidade paga. Além dos habitantes (cristàos ou nào) das térras conhecidas, sabia-se da existéncia de outros seres, que nem sempre mereciam o nome de homens, por nào terem sido criados à imagem e semelhanga de Deus; habitantes de outras térras que povoavam a imaginado destes homens medievais, que viviam em lugares extensos e ricos. Lugares mágicos anunciados desde muito por Homero, Platào e Aristóteles, (re)lembrados, entre outros, por Plutarco e Plinio.

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Muitos sao lembrados entre aqueles que escreveram cosmografías e narrativas de viagens, que legaram á Idade Média a crenfa na existencia de lugares extraordinários habitados por homens monstruosos. O viajante Marco Polo, 2 e o Cardeal Pierre d'Ailly3 sao alguns que em geral sao destacados. O relato de Colombo pode ser interpretado (seguindo esta linha de raciocinio), tal qual faz, por exemplo, Franco em seu estudo sobre As origens brasileñas da teoría da bondade natural, publicado em 1937 (1976). Segundo este autor, corroborando as crenfas arraigadas na ingenuidade popular dos velhos paises, poderia-se salientar que, Assim como o descobrimento da América veio fixar geográficamente urna série de figuras de monstros humanos, que andavam vagando, dispersos pela fantasía européia em várias térras ignotas, veio, também, este mesmo episodio histórico dar pátria, em urna determinada regiáo do globo, aos famosos e felizes homens que viviam numa espécie de idade de ouro, conformes á lei da natureza, e cuja existéncia era entrevista e admirada desde os tempos mais remotos. (Franco 1976: 15)

Continua o autor, lembrando que nao se pode antepor os primeiros aos segundos, pois, principalmente nos primeiros anos seguintes ao decobrimento da América, é frequente encontrar, em um mesmo livro, alusóes ao maus e bons selvagens. Poder-se-ia dizer entáo que havia duas tendencias contraditórias, mas que corriam paralelamente, sendo que, nao raro, se cruzavam. As narrativas das viagens poem frente a frente essas duas tendéncias acima apontadas, e faz com que alguns, submissos ao gosto europeu e as crengas arraigadas fortemente na ingenuidade popular dos velhos países, nao se animavam a desmentir a esperanza curiosa com que a opiniáo pública observava os chamados Novos Mundos. Estes observadores sao os que 2

No que diz respeito a Marco Polo, aponta-se que, nos séculos XIII e XIV, a tolerancia do Grande Cà da Mongòlia foi um dos principáis fatores que possibilitaram mercadores e missionários dirigirem-se para o Extremo Oriente. Marco Polo teria efetuado duas viagens por essas regìòes: na primeira, encontrou o Grande Cà que manifestou seu desejo em instruir-se na fé crista, incumbindo-o de urna embaixada junto ao Papa; na segunda vez, tornou-se homem de confianza do Grande Cà, tendo permanecido dezeseis anos em Catai, percorrendo, a seu servido, grandes regioes, tendo entào ouvido falar da grande ilha de 'Cipango' (o Japào), onde os telhados eram de ouro e que era circundada por 7457 ilhotas onde havia abundáncia de todo tipo de especiarías. No firn do século XIV, com o estabelecimento da dinastia Ming na China (que nào se mostrou tao tolerante), as relafòes regulares com o Extremo Oriente viram-se rompidas. A Descrifào do Mundo, ditada por Marco Polo em seu retorno, foi muitas vezes transcrita, tendo sido traduzida para várias línguas (latim, portugués, francés, castelhano, inglés).

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Seu grande livro, o Imago Mundi, urna espécie de Cosmografia Universal, é apontado como tendo bebido tanto da fonte de toda a literatura clàssica antiga, como de outros autores medievais. Tendo vivido até meados do século XV, sua obra apresenta de maneira geral o conjunto do imaginário medieval, com rela9ào aos novos mundos.

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concordarti em ver, [...], os homens terríveis, os povos monstruosos acima referidos. Nao se lhes deve querer mal por isto, nem seria elegante que, a tantos séculos de distáncia, procurássemos ajustar contas com eles pelo fato de terem contrariado tao abundantemente e tao aplicadamente a verdade. (Franco 1976: 13)

Nào devemos portante censurá-los, [c]oloquemo-nos nos seus lugares. Os nautas ousados que rumavam as proas, cortando mares tenebrosos, para mundos inteiramente ignotos, vinham decididos a toda sorte de surpresas. O ilustre D. Francisco Manuel de Melo dá bem a medida desse estado de espirito dos navegantes lusos, quando relata ñas suas Epanaphoras de Vària Historia o descobrimento da ilha da Madeira, realizado por Joào Gonfalves na primeira metade do século quinze. Conta D. Francisco Manuel que os portugueses estavam tao preparados para se defrontarem com duendes e fantasmas que, tendo em vista de terra, divisaram logo, por entre a bruma, 'gigantes armados, de temerossissima grandeza. Entendeo-se despois [conclui o poeta], que as brenhas de que é guarneceida a terra pellas prayas, fazia sembrante destas imagens... ' (Em: Francisco Manuel - Epanophoras. Lisboa, 1676. Pág. 324). (Franco 1976: 13-14)

Ve-se, portante, que para esse autor o episodio retrata, na realidade, urna confusào. Confusào de promontorios com gigantes. Terá sido esse o caso de Colombo? Se for este o caso, como dar conta, por exemplo, da idéia de que o hemisfério austral fosse habitado, já que seria necessàrio supor que se andasse ai de 'cabera para baixo'? Para responder a essa questào, recorre-se mais aos fatos da historia. Ora, sábese que este era o problema dos antípodas. Na segunda metade do século XV, as deseobertas portuguesas ñas zonas tropicais da Africa acabaram por apontar para o fato de que o hemisfério austral era habitado. Restava provar o mesmo para os antípodas ocidentais. Desde 1452, data da descoberta da Ilha das Flores (a mais ocidental da ilha do Arquipelágo dos Afores), as solicitagòes de licenza para descobrir aumentaram sensivelmente, e os relatos se multiplicaram. Como conta Las Casas: um piloto portugués chamado Vicente Dias dirigia-se da Guiñé para a Ilha Terceira; depois de ultrapassar a Madeira e deixando-a a levante, viu, ou julgou ver, urna ilha que teve certeza tratar-se de terra verdadeira. Quando chegou à Ilha Terceira, revelou seu segredo a um mercador genovès, Luca de Cazaña, homem muito rico. [Tendo persuadido-o a equipar um navio a firn de descobrir tal ilha], o piloto fez-se ao largo por très ou quatro vezes à procura da dita terra, navegando 100 léguas ou mais, todavia jamais chegou a encontrá-la. (Las Casas 1947, apud Mahn-Lot 1984: 34-35)

Colombo, como se sabe, anotava as novas informagòes que se apresentavam no relatos em seus libros de memoria. A idéia de atingir o oriente pelo poente encontrava-se no (m)ar. No entanto, nào há como deixar de admirar a coragem de Colombo. Apesar de toda sua seguranza, Colombo nào podia (ou nào devia?) ter certeza de que no firn do oceano nào havia um abismo. Nào podia ter certeza de que a viagem para o oeste nào



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significava urna longa descida - afinal, conforme relatam historiadores desde o século XIX, acreditava-se estar no cume da Terra - e que nào seria difícil demais subir de novo. Ou seja, nào podia estar absolutamente seguro de que seria possível retornar. Vejamos seu primeiro relato da distancia percorrida: Segunda, 10 de setembro. - Entre o dia e a noite, percorreu sessenta léguas, a dez milhas por hora, o que vem a dar duas léguas e meia; mas só registrava quarenta e oito, para que ninguém se assustasse se a viagem fosse longa. (Colombo 1986: 34)

Colombo sabia que a tripulado se angustiava com a viagem para o ocidente; a grande maioria, senào todos, acreditava que a terra além de ser plana era habitada pelos mais diversos, estranhos e na maioria das vezes perigosos seres, e que tal viagem poderia acabar por conduzí-los ao abismo da beira do mundo. No entanto, segundo pode-se perceber em suas a n o t a r e s , Colombo tinha suas certezas. Seis dias depois escrevia: Domingo, 16 de setembro. - Navegou dia e noite rumo a oeste. Teriam percorrido trinta e nove léguas, mas só registrou trinta e seis. O dia esteve meio nublado: choviscou. Segundo o Almirante, daqui por diante, hoje e sempre, encontrarào clima mui temperado, que dava o maior prazer acordar de manhà, só faltava ouvir rouxinóis. Diz ele: E o tempo era igual ao de abril na Andaluzia. Aqui comefaram a ver muitos molhos (manchas?) de algas bem verdes que havia pouco, conforme lhe pareceu, se tinham despregado da terra, e por isso todos julgavam estar perto de alguma ilha; mas nào da terra firme, segundo o Almirante, que diz: Porque a terra firme vamos encontrar mais adiante. (Colombo 1986: 35)

Colombo demonstrava estar seguro tanto do que fazia como para onde se dirigia. Tendo lido relatos de vários viajantes (dentre eles o de Marco Polo), assim como a Biblia, tratados científicos (dentre eles o Imago Mundi de d'Ailly), e mapas (dentre eles o que Toscanelli havia feito), ele estava seguro da possibilidade de ir à China pela via ocidental. Desde o inicio da viagem, encontrava sinais que corroboravam sua certeza. Logo na primeira semana de viagem, via sinais que indicavam inequívocamente a proximidade da terra - quando se encontrava no mar; sinais que indicavam a presenta do ouro - quando já haviam atingido a terra e, inclusive, sinais que apontavam para a descoberta da América - tudo é visto segundo a certeza do resultado final. Como aponta Todorov (1988), Colombo nào descobriu a América, ele a encontrou onde sabia que estava. Em momento algum se trata va de procurar a verdade (pelo menos da forma como nós entendemos essa procura atualmente), e sim de procurar confirmagòes. Confirmagòes para urna verdade conhecida de antemào. 'Eie sempre tinha achado, no fundo do seu corafào', relata Las Casas, 'quaisquer que fossem as razóes dessa opiniào (eram a leitura de Toscanelli e das profecías de Esdras),

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que atravessando o océano para além da ilha de Hierro, por urna distáncia de aproximadamente setecentas e cinquenta léguas, acabaría por descobrir a térra' (Historia, I, 139). (Todorov 1988: 23)

Da mesma forma, após ter atingido a térra encontrava constantemente sinais que indicavam a proximidade dos dominios do Grande Cá, estava seguro de que estava perto da ilha de Cipango, onde, como havia dito Marco Polo, os telhados eram de ouro (todos sabiam que grande quantidade de ouro nascia lá), e que era circundada por inúmeras pequeñas ilhas onde podia-se encontrar todo tipo de especiarlas. As informagoes recolhidas entre os nativos nada mais sao do que confírmagóes desta sua certeza: Domingo, 21 de outubro. - [...] Se o tempo permitir, logo partirei a circundar esta ilha até conseguir falar com o cacique e ver se posso obter dele o ouro que ou?o dizer que usam, e depois partir para outra ilha vastíssima, que acho que deve ser Cipango, segundo os sinais que fazem esses indios que viajam comigo, á qual chamam de 'Colba', e de urna outra a que dáo o nome de 'Bofío'. E as que ficam no meio verei logo assim, de passagem, e conforme descubra vestigios de ouro ou especiarías, resol verei o que hei de fazer. Agora, porém, já me determinei a ir á térra firme, e também á cidade de Quisay [nome que Marco Polo deu a cidade de King-See, que figurava no mapa que Toscanelli fez], para entregar as cartas de Vossas Majestades ao Grande Cá, pedir resposta e regressar com ela. (Colombo 1986: 53)

Apesar de inicialmente Colombo ter negado a existéncia de urna língua entre os indios (em seu primeiro contato, a 12 de outubro de 1492, manifesta intengao de levar consigo "[...] por ocasiaode minha partida, seis deles [...] para que aprendam a falar"), ele relata conversas que teve com eles o tempo todo. Dois dias depois deste episodio, relata Colombo que, [a]o amanhecer, mandei enfeitar o batel da ñau e os barcos das caravelas e percorri a ilha pelo comprido, [...] e avistei logo dois ou tres [povoados], e as pessoas que vinham todas á praia, chamando por nós e rendendo grabas a Deus. Uns nos traziam água; outros coisas de comer; outros ainda, quando viam que ninguém pretendía se aproximar da térra, langavam-se ao mar e vinham nadando, e entendíamos que nos perguntavam se tínhamos vindo do céu. E também apareceu um velho na parte inferior do batel e outros, em altos brados, chamavam todos os homens e mulheres: - Venham ver os homens que chegaram do céu; e tragam-lhe de comer e beber. Veio urna porfáo, com muitas mulheres, cada um trazendo algo, rendendo louvores a Deus, jogando-se ao chao e levantando as maos para o céu e depois gritando para que fóssemos á térra. (Colombo 1986: 47)

Segundo seu relato, as conversas aconteciam constantemente. Grande parte de suas conversas acabam por confirmar aquilo que já sabia. Mesmo quando os indios sao imprecisos ou nao dizem inteiramente a verdade, ele consegue descobrir:

VALTER SINDER Segunda, 26 de novembro. - [...] Calculou que a térra encontrada hoje fosse a ilha que os indios chamavam de 'Bohío'. Toda a gente que encontrou até hoje diz que sente o maior medo dos 'caniba' ou 'canima' que vivem nessa ilha de 'Bohío'. Nao queriam falar, por receio de serem comidos, e nao podía tirar-lhes o medo, pois diziam que só tinham um olho e cara de cachorro. O Almirante achava que era mentira, tendo a impressao que deviam ser do dominio do Grande C3, que os reduzia ao cativeiro. (Colombo 1986: 65)

Como aponta Todorov (1988), referindo-se a esta passagem, Colombo ao ouvir a palavra cariba (que designa os habitantes antropófagos do Caribe), entende caniba ou canima, ou seja, gente do Cá. Entende também que essas pessoas tinham só um olho e cabega de cao (em espanhol 'can'), com os quais comem. Conclui entao que os indios estavam inventando historias, e censura-os por isso, "o Almirante achava que era mentira, tendo a impressao que deviam ser do dominio do Grande Ca, que os reduzia ao cativeiro". Em outros momentos, como por exemplo em 18 de dezembro, Colombo lamenta que os nativos "...nao entendiam o que eu dizia e nem eu a eles", ou ainda, como em 15 de janeiro, de que "... pela difículdade da língua, que o Almirante nao entendía, [fora obrigado a] comunicar-se com eles por gestos". De quaquer forma, na grande maioria das vezes Colombo acreditava, como afirma em 11 de dezembro, que "cada dia (diz o Almirante) entendemos mais esses indios e eles a nós". Em todas as suas afoes, tal qual aponíamos anteriormente, Colombo em momento algum esta va a procura de urna verdade. Nao se trata de urna descoberta de algo ignorado, mas sim de procurar confirmagóes para um saber já entrevisto. No que diz respeito a suas conversas com os indígenas, o que ele entende ou escuta é apontado por muitos como sendo um resumo do que havia lido em livros como o de Marco Polo ou de Pierre d'Ailly. Nao podemos nos esquecer de que nos encontramos em fins do século XV. A interpretado é praticada por Colombo de forma finalista; o sentido final é dado de imediato (tal qual a doutrina crista), o que se deve procurar é o caminho que une o sentido inical ao sentido último. Será possível, portanto, constatar que as informagoes prévias de Colombo influencian! suas interpretares? Sabe-se que ele nao se preocupava em entender melhor as palavras dos que se dirigem a ele, pois já sabia antecipadamente o que encontraría. Mesmo quando incorporava urna nova palavra a seu vocabulário, Colombo tratava de determinar a que palavra espanhola correspondía exatamente, demonstrando sua concepcáo da linguagem onde os nomes se confundem as coisas, refletindo seu estado natural. Colombo nao duvida que os indios, da mesma forma que os espanhóis, também nomeiam as coisas; mas sua curiosidade limita-se ao exato equivalente indígena dos termos. Para ele todo vocabulário é semelhante aos nomes próprios, e estes decorrem das propriedades dos objetos que designam. As palavras sao a imagem das coisas. As línguas nada mais fazem do que refletir o estado natural das coisas. A diversidade lingüistica nao existe; a lingua é natural. Como aponta Mahn-Lot,

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[a]o longo desse século XVI, tao complexo por seus resquicios medieváis e sua entrada na modernidade, a explorafáo do interior do continente americano deveu-se, em grande parte, ao que S. de Madariaga chama de 'dom-quixotismo': a atrafào do maravilhoso, que se duplica, é verdade, com um grande apetite por riquezas. Como escreveu -nao sem urna ponta de exagero- Lévi-Strauss: 'Os espanhóis foram muito menos para adquirir nofòes novas do que para verificar lendas antigas: as profecías do Antigo Testamento, os mitos greco-latinos como a Atlàntida e as Amazonas; a esta heranja judio-latina, se acrescentavam as lendas medieváis como o Impèrio do Preste Joào e a contribuito india: o Eldorado, a Fonte da Juventude'. (Mahn-Lot 1984: 89-90)

A partir destas colocagòes, podemos retomar nossa questào, enfocando-a agora segundo um novo prisma. Se para Colombo nào se tratava de procurar a verdade, sendo sua leitura/interpretagào da realidade ancorada em urna verdade final, devemos perguntar: Por que ele a lia/interpretava desta forma? Trata-se de urna confusào que assola sua mente em particular ou eia pode ser apontada como sinal do tempo, corroborando o fato de tratar-se de um momento da historia quando ainda se tem o dominio da lenda sobre o conhecimento? Será que devemos examinar as condif oes económicas de existència a fim de entender na consciéncia dos homens o seu reflexo e expressào? Tratase de um relato falso, que deve ser depurado para nos revelar a verdade? Nenhuma destas suposifóes podem ser consideradas exatamente corretas. Aceitar tais colocagòes implicaria também "[...] supor, no fundo, que o sujeito humano, o sujeito do conhecimento, as próprias formas do conhecimento sào de certo modo dados prèvia e definitivamente, e que as condigoes económicas, sociais e políticas da existencia nào fazem mais do que depositar-se ou imprimir-se neste sujeito definitivamente dado" (Foucault 1979: 5). Em A Verdade e as Formas Jurídicas (1979a), Foucault, apontando para Nietzsche, indica a possibilidade de operar urna ruptura com a forma como a filosofia ocidental tem encarado a liga?ào entre o conhecimento e as coisas. O que, pergunta o autor, na filosofia ocidental assegurava que as coisas a conhecer e o propio conhecimento estavam em rela?ào de contiguidade? O que assegurava ao conhecimento o poder de conhecer bem as coisas do mundo e de nào ser indefinidamente erro, ilusào, arbitrariedade? O que garantía isso na filosofia ocidental, senào Deus? Deus, certamente, desde Descartes, para nào ir mais além, e ainda mesmo em Kant, é esse principio que assegura haver urna harmonía entre o conhecimento e as coisas a conhecer. Para demonstrar que o conhecimento era um conhecimento fundado, em verdade, nas coisas do mundo, Descartes precisou afirmar a existència de Deus. (Foucault 1979a: 14)

Sendo assim, nào se deve esquecer que as práticas sociais também engendram dominios do saber que nào somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento. "O pròprio sujeito de conhecimento tem urna história, a relagào do sujeito com o objeto, ou, mais claramente, a pròpria verdade tem urna história." (Foucault 1979a: 6).

VALTER SINDER Nâo se trata com isso de afirmar que o sujeito é formado pela ideologia; que os pesos ideológicos de urna certa época teriam impedido que os homens vissem a realidade. Nâo se trata de afirmar, no que diz respeito à nossa questâo, que antes do século XV, quando nâo se encontra a pràtica da ciência da observaçâo, esta nâo teria se manifestado devido a preconceitos ou ilusôes. Afirmar isto pressupôe a existência de um sujeito, de alguma forma neutro, que frente ao mundo exterior é capaz de ver o que se passa, de captá-lo. Se for assim, seria legítimo perguntar como se formou esse sujeito (vazio, neutro), que serve de ponto de convergência para todo o mundo empírico? Como é esse sujeito? Será um sujeito natural? Se ele nâo o fez antes do século XV, foi somente porque tinha preconceitos, ou ilusôes? Será que véus ideológicos o impediam de dirigir um olhar neutro e acolhedor sobre o mundo? Qualquer resposta afirmativa a essas questôes é indissociável de urna interpretaçâo simplista da relaçâo sujeito-objeto do conhecimento. O que se afirma aqui é que esse sujeito supostamente neutro é, ele pròprio, urna produçâo histórica. Foi preciso toda urna rede de instituiçôes e de práticas, para chegar ao que constitui essa especie de ponto ideal, a partir do qual os homens deveriam pousar sobre o mundo um olhar de pura observaçâo. Para Foucault, a constituiçâo histórica dessa forma de objetividade pode ser encontrada ñas práticas judiciárias e, em especial, na pratica do inquérito. Estas técnicas de inquérito teriam se difundido em outros dominios do saber, A partir dos séculos XIV e XV aparecem tipos de inquérito que procuram estabelecer a verdade a partir de um certo número de testemunhas cuidadosamente recolhido em dominios como o da Geografia, da Astronomia, do conhecimento dos climas, etc. Aparece em particular, urna técnica de viagem, empreendimento político de exercício de poder e empreendimento de curiosidade e de aquisiçâo de saber, que conduziu finalmente ao descobrimento da América. Todos os grandes inquéritos que dominaram o firn da Idade Média sâo, no fundo, a eclosâo e a dispersâo dessa primeira forma, desta matriz que nasceu no século XII. Até mesmo dominios como o da Medicina, da Botànica, da Zoologia, a partir dos séculos XVI e XVII, sâo irradiaçôes deste processo. Todo o grande movimento cultural que, depois do século XII, começa a preparar o Renascimento, pode ser definido em grande parte como o desenvolvimento, o florescimento do inquérito como forma geral de saber. (Foucault 1979a: 59)

Trata-se, portante, do estabelecimento da verdade a partir de testemunhas. Faz-se um inquérito para saber o que se passa, para saber a verdade. Anteriormente, o saber estava ancorado no modelo da prova. Como aponta Foucault, o saber na Universidade Medieval se manifestava, se transmitia e se autentificava através de determinados rituais, dos quais o mais célebre e mais conhecido era a disputatio, a disputa. A disputano consistía no confronto entre dois adversários que utilizavam a arma verbal, e que tinham todas as demonstraçôes baseadas essencialmente no apelo à autoridade. Apelava-se nâo para testemunhas de verdade, mas para testemunhas de força. Quanto mais autores um dos participantes tivesse a seu lado, quanto mais pudesse invocar testemunhos de autoridade, e nâo testemunhos de verdade, maior possibilidade ele teria de

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sair vencedor. A disputatio é urna forma de prova, de manifestaçâo do saber, de autentificaçâo do saber que obedece ao esquema geral da prova. O saber medieval (sobretudo o saber enciclopédico do Renascimento), que vai se chocar com a forma medieval da universidade, será precisamente do tipo do inquérito. Nesta forma de saber, o importante é ter lido os textos e saber o que efetivamente foi dito, conhecer tâo bem o que foi dito, quanto a natureza a respeito do qual algo foi dito e, enfim, verificar o que os autores disseram pela constataçâo da natureza. Em suma, "...utilizar os autores nâo mais como autoridade mas como testemunho, tudo isso vai constituir urna das grandes revoluçôes na forma de transmissâo do saber" (Foucault 1979a: 61). O conflito entre o inquérito e a prova, e o triunfo do primeiro sobre o segundo no fim da Idade Média, vai apontar para a formaçâo de um "olhar de pura observaçâo". Olhar este que vai se constituir a partir do século XV, no século XVI, em urna pràtica da "ciência da observaçâo". Nâo se trata, portante, de afirmar que antes do século XV, quando nâo se encontra a pràtica da ciência da observaçâo, esta nâo teria se manifestado devido à existência de preconceitos ou ilusôes; de que a força da ideologia desta época nâo lhes permitía que dirigissem o olhar neutro e acolhedor sobre o mundo. Temos, entâo, que esse sujeito supostamente neutro é, ele pròprio, urna produçâo histórica, já que a verdade também tem urna historia. Na constituiçâo histórica dessa forma de objetividade, onde se encontra o relato de Colombo? Trata-se de um relato de viagem escrito em fins do século XV, exatamente no momento do embate que acabamos de apontar. Relato da descoberta da América, embasado como se viu tanto em outros relatos de viagem, como em outras formas de saber. Voltemos portante a Colombo e à forma como se apresenta, em seus relatos, a relaçâo entre o conhecimento e as coisas a conhecer. Como nos chama atençâo Todorov, Colombo nâo tem nada de um empirista moderno: o argumento decisivo é o argumento de autoridade, nâo o da experiência. Ele sabe de antemâo o que vai encontrar; a experiência concreta está ai para ilustrar urna verdade que se possui, nâo para ser investigada, de acordo com regras pré-estabelecidas, em vista de urna procura da verdade. (Todorov 1988: 18)

Nâo devemos nos esquecer de que nâo houve urna substituçâo imediata da prova pelo inquérito, mas sim de um conflito entre o inquérito e a prova, como formas de autentificaçâo do saber, que acaba por conduzir à viteria do inquérito no fim da Idade Média. O argumento decisivo em Colombo é o da autoridade e nâo o da experiência. De que se trata aqui, entâo, da prova e nâo do inquérito? Situaçâo paradoxal. Colombo partiu munido de certezas alcançadas a partir de seu profundo conhecimento de inquéritos que procuravam estabelecer a verdade a partir dos mais variados testemunhos recolhidos em diversos dominios. No entanto, em grande parte de seu relato a autoridade

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desses testemunhos parece se sobrepor á suas próprias observares. Trata-se portanto de urna narrativa onde o argumento final é dado pela autoridade. Cometamos esse capítulo indagando sobre o tipo de descrigáo que embasa o relato de Colombo. Nao devemos nos esquecer, sobre pena de p resentí ficagáo, que, no momento em que o relato foi escrito, nao se identificava a verdade com o fato. Segundo pretendemos indicar, para Colombo, a verdade se encontra inscrita ñas coisas, sendo portanto transparente á aparéncia do mundo. Como já se disse várias vezes, a descoberta da América por Cristovao Colombo acaba por nos langar na modernidade, no entanto, tal qual um Moisés, o Almirante nao chega a (vi)vé-la. Colombo pode ser apontado como um herói do Mesmo, da Identidade, da Semelhanfa. Em seu mundo, as palavras e as coisas se refletem. A escrita, para usar urna imagem de Foucault, constituí a prosa do Mundo. As semelhangas e os signos estáo ligados. Colombo, quando parte, tem certeza nao só de para onde está indo, como o que vai encontrar. Todo seu relato nos mostra isso. Sua crenga é inabalável.

2.2 Cervantes e seu Quixote: outros seres, novos espatos Um pouco mais de cem anos se passam entre o relato de Colombo e a narrativa de Cervantes. A viagem agora é outra. Num lugar de La Mancha, de cujo nome nao quero lembrar-me, vivía, nao há muito, um fidalgo, dos de langa de cabido, adarga antiga, rocim fraco, e galgo corredor. [...] Querem dizer que tinha o sobrenome de Quijada ou Quesada, que nisto discrepam algum tanto os autores que tratam na matéria; ainda que por conjeturas verossímeis se deixa entender que se chamava Quijana. Isto, porém, pouco faz para a nossa historia; basta que, no que tivermos de contar, nao nos desviemos da verdade nem um til. (Cervantes 1978: 29)

Desta forma iniciava Cervantes o primeiro capítulo das aventuras do ingenioso hidalgo que ele se propunha a contar. Já no Prólogo, trava um diálogo com um amigo, e lhe diz que a historia de Dom Quixote havia lhe custado algum trabalho, no entanto, maior trabalho lhe dava escrever o prefácio que ora se lia. Isto devido ao fato de estar apresentando urna legenda seca como as palhas, falta de invengao, minguada de estilo, pobre de conceitos, e alheia a toda a erudigao e doutrina, sem notas as margens, nem comentários no fim do livro, como vejo estao por ai muitos outros livros (ainda que sejam fabulosos e profanos) tao cheios de sentencias de Aristóteles, de Platao e de toda caterva de filósofos que levam a admiragao ao ánimo dos leitores, e fazem que estes julguem os autores dos tais livros como homens lidos, eruditos e eloquentes? Pois que, quando citam a Divina Escritura, se dirá que uns Santo Tomases [...]. De tudo isto há de carecer o meu livro, porque nem tenho que notar nele á margem, nem que comentar no fim, e ainda menos sei os autores que sigo nele para pó-los em um catálogo pelas letras do alfabeto, como se usa, comegan-

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do em Aristóteles, e acabando em Xenofonte, em Zoilo ou em Zèuxis, ainda que foi maldizente um destes e pintor o outro. Também há o meu livro de carecer de sonetos no principio, pelo menos de sonetos cujos autores sejam duques [...] ou poetas celebérrimos. (Cervantes 1978: 13)

Ou seja, como seu livro nào apresentava tudo aquilo que ¿ra costume se fazer nos livros de cavalaria, tinha decidido que ficaria "sepultado nos arquivos da Mancha" até que alguém resolvesse adorná-lo com todas estas coisas que lhe faltavam, pois se sentia incapaz de remediá-las, seja por urna insufíciéncia natural, seja por ser "...muito preguifoso e custa-me muito a andar procurando autores que me digam aquilo que eu muito bem sei dizer sem eles" (Cervantes 1978: 13). Após urna "longa e estrondosa gargalhada", o amigo lhe diz ter sempre lhe achado "homem prudente e discreto em todas as agòes", e que portanto só poderia entender essas suas c o l o c a r e s como fruto de "preguifa e penùria de reflexào". Sendo assim, passa a especificar como desfazer todas as dificuldades enumeradas. No que diz respeito aos sonetos, epigramas e elogios que faltam no principio do livro, propòe que ele os componila e os atribua a "pessoa que for mais de vosso agrado". No tocante ao "negocio de citar ñas margens do livros os nomes dos autores que vos aproveitardes para inserirdes na vossa historia seus ditos e sentengas", lhe recomenda que ou utilize as citagòes que sabe de memoria ou que as recolha desde que nào tenha muito trabalho, enumerando várias citagòes sobre várias temáticas. Quanto a fazer anotafóes ou comentário no fim do livro, recomenda que ao nomear alguém ou algum lugar que se referende àqueles conhecidos, e que portanto os comentários sào mais do que sabidos (por exemplo, ao falar de gigantes, que seja o gigante Golias, e "somente com este nome"). E, por firn, no que diz respeito à citagào de autores que costumam trazer os outros livros, lhe aconselha que os retire de algum catálogo que tenha os autores conhecidos por ordem alfabética, apesar de achar nào ser necessàrio "incomodar tanta gente". No entanto, esse catálogo poderá servir caso encontre leitores tao bons e tao ingenuos que acreditem na verdade do vosso catálogo, e se persuadam de que a vossa historia, tao simples e tao singela, todavía precisava muito daquelas imensas citafòes, e, quando nào sirva isto de outra coisa, servirá contudo por certo de dar ao vosso livro urna grande autoridade. Além do que ninguém quererá dar-se ao trabalho de averiguar se todos aqueles autores foram consultados e seguidos por vós, ou nào o foram, porque dai nào tira proveito algum. (Cervantes 1978: 15)

Tendo enumerado a maneira como acreditava que se poderia preencher as faltas anteriormente apontadas, concluí o amigo que na verdade o livro nào carece de nada daquilo pois "se nào me iludo [...] todo ele é uma invectiva contra os livros de cavalarias", tendo por

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VALTER SINDER único fim desfazer a autoridade que por esse mundo e entre o vulgo ganharam os livros de cavalarias, nao careceis de andar mendigando sentenfas de filósofos, conselhos da divina escritura, fábulas de poetas, orafóes de retóricos e milagres de santos. (Cervantes 1978: 16)

Tratava-se, portante», de estabelecer a verdade dos livros de cavalarias. Será que podemos surpreender aqui urna postura que criticando a lenda, o mito, enfim, a tradigáo, apontaria para o estabelecimento da verdade do fato? Seria este o momento de emergéncia do olhar de pura observado? A fim de explicar o prestigio alcanzado pelo romantismo cavaleiresco, Hauser, em sua Historia Social da Literatura e da Arte (1982), aponta que, em lugar algum, o "novo culto da cavalaria" teria atingido um grau de intensidade tao grande como na Espanha. Isso teria se dado, principalmente, devido ao longo período de luta contra os mouros, onde os conceitos de fé e honra teriam se tornado urna unidade indissolúvel, conjugando-se, ao mesmo tempo, com outros "pretextos para a heroicidade militar" a partir das guerras de conquista contra a Itália, vitórias sobre a Franga e a explora?áo dos tesouros da América. "Assim neste país, onde o recém-revivido espirito da cavalaria brilhou com mais intensidade, a desilusao foi muito maior quando o dominio dos ideáis de cavalaria provou ser ficticio" (Hauser 1982: 528). Concordando com esta colocagao, Auerbach irá dizer que Dom Quixote é, antes do mais, urna sátira contra os romances de cavalaria e Cervantes lhes tocou o ponto principal: o ideal cavaleiresco num mundo totalmente mudado após a época em que a cavalaria teve urna fungáo real. (Auerbach 1972: 186)

Para Hauser, a novidade na obra de Cervantes nao foi a de ser uma crítica da cavalaria fora de moda (outros, antes dele já haviam feito), mas sim o fato de estabelecer a relafáo de dois mundos de "idealismo romántico" e "racionalismo realista". "O que era novo era o indissolúvel dualismo do seu ponto de vista do mundo, a concepgáo da impossibilidade de realizagáo da idéia num mundo de realidade, e de reduzir a realidade á idéia" (Hauser 1982: 529). Como aponta Aguiar e Silva, [o] Dom Quixote de Cervantes, espécie de anti-romance centrado sobre a crítica dos romances de cavalaria, representa a sátira desse mundo romanesco, quimérico e ilusorio, característico da época barroca, e ascende á categoría de eterno e patético símbolo do conflito entre a realidade e a aparéncia, entre o sonho e a vileza da matéria. (Aguiar e Silva 1979: 253)

Crítica aos romances de cavalaria quiméricos e ilusorios, decepgao com os ideáis da cavalaria frente á realidade, inadequagáo entre o real e o ideal. Afinal, do que se trata? Como vimos, para Cervantes, Dom Quixote seria narrado tomando-se cuidado em nao se desviar da verdade nem um til, tendo por fim último desfazer a autoridade que, por esse mundo e entre o vulgo, ganharam os livros de cavalaria. Vejamos como.

RELATOS DE VIAGEM Já no inicio do primeiro capítulo somos informados que o fidalgo Quijada, Quesada ou talvez Quijana, nos intervalos que tinha de ocio (que eram os mais do ano), se dava a 1er livros de cavalarias, com tanta afeifào e gosto, que se esqueceu quase de todo do exercício da cafa, e até da administrado dos seus bens; e a tanto chegou a sua curiosidade e desatino neste ponto, que vendeu muitos trechos de terra de semeadura para comprar livros de cavalarias que ler, com o que juntou em casa quanto pode apanhar daquele gènero. (Cervantes 1978: 29)

Tanto se empenhou naquelas leituras que passava as noites em claro; desta forma, do pouco dormir e do muito ler, se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo. Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que achava nos livros [...], e assentou-se-lhe de tal modo na imaginafáo ser verdade toda aquele máquina de sonhadas invengòes que lia, que para ele nao havia historia mais certa no mundo. (Cervantes 1978: 30)

Tendo perdido o juízo, passando a acreditar ñas historias que lera, acontece ainda que rematado já de todo o juízo, deu no mais estranho pensamento em que nunca jamais caiu louco algum no mundo, e foi: parecer-lhe convinhável e necessàrio, assim para aumento de sua honra pròpria, como para proveito da república, fazer-se cavaleiro andante, e ir-se por todo o mundo. (Cervantes 1978: 30)

Vemos, portante, que a estratégia adotada por Cervantes para realizar o seu projeto inicial de desfazer a autoridade que havia adquirido entre o vulgo os livros de cavalaria consiste em apresentar o personagem principal como alguém que teria se envolvido de tal forma na leitura destes livros que teria deixado completamente de lado seus afazeres, e que acabara nào só por acreditar na veracidade das historias de cavalaria, como perderá completamente o juízo, decidindo fazer-se cavaleiro andante. A partir deste momento comegam as aventuras de Dom Quixote. Cervantes decide desfazer a autoridade que os livros de cavalaria haviam adquirido, apresentando-nos um herói que havia perdido o juízo lendo e acreditando exatamente na veracidade destes livros. Sua loucura se constituí pela nao-distingáo entre o espado que seria pròprio às realizagòes de seus heróis favoritos e o espago da agào cotidiana, pela auséncia de fronteiras entre eles. Sancho Panga, seu fiel escudeiro, será introduzido como contraponto fundamental destas fronteiras tao difusas. Que tipo de viagem realizará Dom Quixote? Logo somos informados de que deverá ir-se por todo o mundo, com as suas armas e cavalo, à cata de aventuras, e exercitar-se em tudo em que tinha lido se exercitavam os da andante cavalaria, desfazendo todo o género de agravos, e pondo-se em ocasiòes e perigos, donde, levando-os a cabo, cobrasse perpètuo nome e fama. (Cervantes 1978: 30)



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Assim como Colombo se langou ao mar a fim de atingir o oriente pelo poente, deslocando-se em mares nunca dantes navegados, guiado por urna certeza que constantemente via sinais que reiteravam sua convicgáo, Dom Quixote também se propunha a "ir-se por todo o mundo" em suas aventuras. Da mesma forma que Colombo, Dom Quixote irá se guiar por sinais que lhe indicam estar no caminho certo; no entanto, como se sabe, em suas andanzas, ele nunca irá se apartar de sua provincia. Como afirma Foucault, em/ls Palavras e as Coisas (s. d. [1966]), Dom Quixote pode ser apontado como o herói do Mesmo. Sua viagem consiste em urna peregrinagáo meticulosa que sempre se detém diante de todas as marcas da similitude. Logo em sua primeira saída, após ter caminhado o dia todo sem lhe acontecer coisa merecedora de ser contada, procurando um lugar para se recolher, viu nao longe do caminho urna venda [...]. Achavam-se ao acaso á porta duas mulheres mofas, destas que se chamam 'de vida fácil' [...]; e como ao nosso aventureiro tudo quanto pensava, via, ou imaginava, lhe parecía real, e conforme ao que tinha lido, logo que viu a locanda se lhe representou ser um castelo com suas quatro torres, e coruchéus feitos de luzente prata, sem lhe faltar sua ponte levadiza, e cava profunda, e mais acessórios que em semelhantes castelos se debuxam. (Cervantes 1978: 33)

Dom Quixote parece ter a mesma seguranza que tinha Colombo tanto no que fazia, quanto para onde se dirigia. Tinha lido grande parte dos livros de cavalaria, estando seguro nao só de sua veracidade como de ser ele um nobre cavaleiro dentre tantos por ele conhecidos. Restava provar sua nobreza realizando o mesmo tipo de agoes que sabia terem os outros cavaleiros realizados. Desde o inicio de suas aventuras, via sinais que lhe comprovavam tudo aquilo que acreditava. Assim como Colombo via sinais que corroboravam sua certeza, Dom Quixote também via aqueles que testemunhavam a seu favor. Ambos, pelo que parece, estavam procurando confírmagóes para verdades conhecidas de antemao. Assim como Colombo havia lido o relato de Marco Polo, e pauta va grande parte de suas agoes e interpretares nestes conhecimentos, Dom Quixote se pauta va nos livros de cavalaria. Da mesma forma como a certeza de Colombo parece ter guiado suas aventuras, parece que os livros de cavalaria constituem a existéncia de Dom Quixote. E mais, talvez pudessemos dizer que constituem principalmente seu dever; a todo momento, conforme nos diz, deveria "exercitar-se em tudo em que tinha lido se exercitavam os da andante cavalaria"; a cada momento ele deve consultá-los a fim de saber exatamente o que deve fazer e dizer para mostrar que ele é, exatamente, da mesma natureza do que o texto de onde saiu. Será a forma de conhecimento da realidade de Dom Quixote igual a que surpreendemos em Colombo? Será que a relagáo entre o conhecimento e as coisas a conhecer se dá da mesma forma? Será que podemos formular urna equagáo dizendo que Colombo está para Marco Polo assim como Dom Quixote está para Amadis de Gaula? Trata-se do inicio do século XVII - a primeira parte do Quixote foi publicada em 1605, e a segunda em 1615. Será que a leitura/interpretagáo que Dom Quixote faz da

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realidade é praticada da mesma forma como fizera Colombo; ou seja, de forma finalista? Será possível, portanto, constatar que as leituras do Quixote teriam determinado suas interpretagoes, da mesma forma como as informagòes prévias de Colombo teriam influenciado as dele? As aventuras de Dom Quixote serào urna constante decifragào do mundo. Urna longa viagem para provar que os livros falam a verdade. Ora, se isto se faz necessàrio, se a prova tiver que ser feita, isto significa que os signos legíveis já nao sao semelhantes aos seres visíveis? As aventuras do Quixote consistem em urna tentativa de provar que os signos da linguagem sao realmente conforme às próprias coisas. "D. Quixote lé o mundo para demonstrar os livros. E as pro vas que ele obtém nào sào mais do que o reflexo das semelhangas" (Foucault s. d. [1966]: 71). Todas as aventuras de Dom Quixote se voltam para a tentativa de achar as similitudes. Mesmo os mais fracos sinais sào solicitados a testemunhar a semelhanga. Ainda em sua primeira saída quando resolveu parar para descansar, [f]oi-se chegando à pousada ou castelo, pelo que se lhe representava, e a pequeña distancia colheu as rédeas a Rocinante, esperando que algum anào surgiria entre as ameias a dar sinal de trombeta por ser chegado cavaleiro ao castelo. Vendo porém que tardava, e que Rocinante mostrava pressa em chegar à estrebaria, achegou-se à porta da venda [...]. Sucedeu acaso que um porqueiro, que andava recolhendo de uns restolhos a sua manada de porcos [...] tocou urna buzina a recolher. No mesmo instante se figurou a Dom Quixote o que desejava; a saber: que là estava algum anào dando sinal de sua vinda. (Cervantes 1978: 33)

Até mesmo quando fica patente a impossibilidade de qualquer tipo de semelhanga, quando fica evidente tratar-se de outra coisa, essa nào-similitude também tem um modelo explicativo: trata-se de metamorfoses produzidas pelos encantadores. Pode-se ver, dentre outras passagens, na famosa aventura dos moinhos de vento, tal suceder. Depois de Sancho Panga ter lhe dito que o que se via eram moinhos e nào gigantes, e de ter Dom Quixote investido contra eles, sendo projetado longe ao ter dado urna langada na vela, acontece o seguinte diálogo: - Valha-me Deus! - exclamou Sancho. Nào lhe disse eu a Vossa Mercè que reparasse no que fazia, que nào eram senáo moinhos de vento, e que só o podia desconhecer quem dentro na cabe9a tivesse outros? - Cala a boca, amigo Sancho - respondeu Dom Quixote; as coisas da guerra sao de todas as mais sujeitas a continuas mudanzas; o que eu mais creio, e deve ser verdade, é que aquele sábio Frestào, que me roubou o aposento e os livros, transformou estes gigantes em moinhos, para me falsear a glòria de os vencer. (Cervantes 1978: 55)

Apesar de todos os seus esforgos, Dom Quixote permanece sempre em torno do análogo, percorrendo-o sem parar, sem transpor as marcas da diferenga, mas também sem alcangar aquelas da identidade. Ao contràrio do que havíamos concluido do relato de Colombo, aqui nào temos mais, apesar de todos os esforgos de Dom Quixote, a prosa

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do Mundo. As similitudes acabam por nos conduzir a visòes que se modificam constantemente. As palavras e as coisas, ou melhor, a escrita e as coisas nào mais se assemelham. Em sua heroica tentativa de demonstrar a dúvida da legitimidade dessa alianza, Dom Quixote nos propicia suas fantásticas aventuras. Nào devemos nos esquecer, no entanto, que as aventuras de Dom Quixote nào se encerram nesta procura de similitudes que acaba por demonstrar a impotencia da linguagem. Como se sabe, na segunda parte do livro, Dom Quixote encontra vários personagens que haviam lido a primeira, e que o reconhecem a ele, homem real, como herói do livro. Este fato faz com que tenhamos mais urna (agradável) surpresa. O texto se volta para dentro de si mesmo, tornando-se objeto de sua pròpria narrativa. Da mesma forma como na primeira parte os romances de cavalaria pautaram a conduta e o dever de Dom Quixote, na segunda, a primeira parte é que desempenha esse papel. Tal fato faz com que a linguagem ao invés de ter se tornado impotente, adquira no vos poderes. Nesta passagem da primeira para a segunda parte, damo-nos conta que [a] verdade de D. Quixote nao está na relafáo das palavras com o mundo, mas nessa fina e constante relafào que as marcas verbais tecem de si para si mesmas. A ficfào desengañada das epopéias tranformou-se no poder representativo da linguagem. As palavras acabam por se fechar na sua natureza de signos. (Foucault s. d. [1966]: 70)

Tendo-se isso em conta, parece que reencontramos o mesmo tipo de questào que já enderezamos à leitura/interpretagào de Colombo. A saber, se para Dom Quixote a procura da verdade encontra-se ancorada em urna verdade final, que no entanto, ao contràrio de Colombo, ele nunca consegue plenamente realizar, devemos perguntar novamente: Por que ele lia/interpreta va desta forma? Trata-se de urna confusào que assola sua mente em particular ou eia pode ser apontada como sinal do tempo quando o dominio da lenda sobre o conhecimento comega a ser contestado? Ao iniciarmos nossa reflexào sobre Dom Quixote, ficou claro que a intendo inicial de Cervantes era a de ser urna invectiva contra os livros de cavalaria, demonstrando que estes nào retratavam a realidade. Sua estratégia foi a de apresentar Dom Quixote como um personagem que se propunha a demonstrar a verdade destes livros. Como vimos, Dom Quixote apesar de nunca chegar a provar essa verdade, entretanto, nunca chega a se render à evidéncia empirica. Tal fato, como já notamos, se dà devido à possibilidade dos encantadores estarem lhe enganando. Dom Quixote oscila portanto entre a autoridade dos livros e o testemunho da verdade dos fatos. Nào devemos nos esquecer que Dom Quixote nos é apresentado como urna pessoa que tendo debrugado-se dia e noite sobre os livros de cavalaria, acabou perdendo o juízo vindo a acreditar na veracidade do que estava escrito, decidido-se inclusive a tornar-se cavaleiro andante como os cavaleiros dos livros que havia lido. Logo que foi possivel, [...] solicitou Dom Quixote a um lavrador seu vizinho, homem de bem (se tal título se pode dar a um pobre), e de pouco sal na moleira; tanto em suma lhe disse, tanto lhe mar-

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RELATOS DE VIAGEM telou, que o pobre rústico se determinou em sair com ele, servindo-lhe de escudeiro. Dizia-lhe entre outras cousas Dom Quixote que se dispusesse a acompanhá-lo de boa vontade, porque bem podia dar o acaso que do pé para a mào ganhasse alguma ilha, e o deixasse governador déla. Com estas promessas e outras quejandas, Sancho Panfa, [...] deixou mulher e filhos, e se assoldadou por escudeiro do fidalgo. (Cervantes 1978: 53)

A partir deste momento, Sancho Panca, fiel escudeiro de Dom Quixote, irá acompanhá-lo constantemente, e apesar de nos ter sido apresentado como "homem de bem [...] e de pouco sal na moleira", irá servir de contraponto à leitura/interpretagào que farà Dom Quixote da realidade. Dom Quixote, tendo perdido o juízo, busca incessantemente estabelecer a ponte entre os livros que leu e a experiencia concreta. Sancho Panga, frente a essa mesma experéncia concreta e a loucura de Dom Quixote, de imediato, opta pelo que vé (como vimos no episodio dos gigantes/moinhos). No entanto, como lhe diz Dom Quixote, Sancho nao ve o que ele vé e muitas vezes Dom Quixote acaba por ver aquilo que Sancho havia dito que estava vendo, única e exclusivamente devido aos poderes dos encantadores. O que se passou no que diz respeito à questào da relagào entre conhecimento e coisas a conhecer? Dom Quixote, por um lado, assim como Colombo, acredita que sabe antecipadamente o que vai encontrar. A experiéncia concreta deveria simplesmente ilustrar urna verdade que possui. No entanto, ao contràrio de Colombo, suas aventuras sao uma constante busca de comprovagào desta verdade. Por outro lado, temos Sancho Panga, contraponto da loucura de Dom Quixote, que funda seu julgamento na experiéncia concreta. Ao pensar esta questào em relagào a Cristovào Colombo, havíamos concluido que o argumento de autoridade sempre se sobrepunha à experiéncia concreta. Ao nos voltarmos para Dom Quixote, vemos nosso cavaleiro constantemente usando o argumento de autoridade (os livros de cavalaria) frente à experiéncia concreta. Esta, no entanto, nem se assemelha nem chega a se diferenciar. Ao mesmo tempo, temos Sancho Panga, tentando separar os fatos da percepgào das criagòes da imaginagáo. Esquemáticamente, teríamos: Autoridade +

Colombo Dom Quixote Sancho Panga

Experiéncia Concreta

+

e ou

+ +

+

e ou

Onde se pode 1er que o papel exercido pela autoridade e pela palavra (pela prova) em Colombo encontra-se preenchido ou pela experiéncia, pelas coisas (pelo testemunho), ou pela imaginagáo, em Sancho Panga. Enquanto que no que diz respeito a Dom Qui-

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xote, apesar de este sair em busca da ilustragào de urna verdade que possui, a autoridadade do argumento é constantemente contestada pela experiència concreta que se lhe apresenta, sem que, no entanto, esta contestalo acabe por estabelecer-se como diferencia. Entre a prova e a inquisito, Dom Quixote oscila entre essas duas formas de produfào da verdade. Em sua loucura, apesar de contraditórios, entre a autoridade do dito e a constatalo do visto, Dom Quixote escolhe os dois. Ao fazer isso, ele os contesta, pois acaba por demonstrar a fraqueza de ambos. Como aponta Hauser, Dom Quixote [...] abre urna nova época na historia da literatura. Antes de Cervantes, na literatura tinha havido somente personagens bons e maus, leáis e traidores, santos e blasfemos. Aquí o herói é santo e louco numa só pessoa. (Hauser 1982: 529)

Apesar de Dom Quixote se apresentar como um livro que foi escrito com a intendo de ser urna crítica ao prestigio alcanzado pelos livros de cavalaria junto ao vulgo, podemos encontrar ai urna relagào tensa, inquieta, que existe ñas obras de arte, entre a realidade e a imaginagào.4 Neste sentido, Dom Quixote se apresenta como a primeira das obras modernas: entre a realidade e a imaginagào, entre a critica da imaginagào pela realidade, e urna releitura da realidade pela imaginagào, Dom Quixote aponta para urna terceira posifào, D. Quixote é a primeira das obras modernas, pois nela se vè a razào cruel das identidades e das diferengas zombar incessantemente dos signos e das similitudes; pois a sua linguagem rompe a velha intimidade com as coisas, para entrar nessa soberanía solitària de ser abrupto, donde só sairá convertida em literatura. (Foucault s. d. [1966]: 73)

2.3 Os navios da razào Da mesma forma que muitos outros autores, Artaud, ao referir-se ao Renascimento do século XVI, diz ter sido este um momento onde se haveria rompido com urna realidade que possuia suas próprias leis; no entanto, ao contràrio da maioria dos pensadores, ele completa seu comentário dizendo que o Humanismo do Renascimento nào foi um engrandecimento, mas sim um rebaixamento do homem. Como entender tal colocagào? Em sua Historia de la locura en la época clásica, Foucault (1976), ao analisar a loucura enfocando expressòes pictóricas e lingüísticas no Renascimento, aponta para a emergència de um processo de dominagào da loucura pela razào. Trata-se de enfocar o deslocamento tenso da loucura como forma de saber. O que aparece ñas imagens da pintura - em Bosch, por exemplo, aponta para um saber trágico, que prediz o fím do

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Cf. Foucault (1976) e Lima (1986) para urna discussào da relafào realidade/imaginafào que toma o Quixote como foco para reflexào.

RELATOS DE VIAGEM mundo, e que aponta o louco, e a pròpria loucura, como detentor da verdade e da vitóría final.5 Em sua expressào pictórica, a loucura tem fundamento na realidade. Aquilo que o delirio do louco aponta, inacessível e secreto para os outros, urna vez entendido, será apreendido como algo que já existia como verdade no pròprio mundo. 6 Mas, ao mesmo tempo, pode-se surpreender um discurso filosófico/literário, como em Erasmo, que se apresenta como uma consciéncia crítica da loucura. Nao se trata mais de urna forma positiva de saber, mas sim uma (des)moralizagào do saber; nao se trata mais de revelar as verdades mais secretas do mundo, pelo contràrio, trata-se de um jogo, de um afrontamento, dajungào, da luta e do compromisso, que terá como resultado a produgào e a consequente imposigào de uma ordem subjetiva que acaba por se afastar desta pròpria ordem. O louco aparece como o outro da razào. A Historia de la locura tematiza a paulatina subordinado da loucura pela razào. O esvaziamento dos leprosários no final da Idade Mèdia por toda a Europa aponta para sua sucessiva ocupagào por outras formas sociais: - o espago de separagào social e conexào moral nao ficaria desocupado. "Con un sentido completamente nuevo, y en una cultura muy distinta, las formas subsistirán, esencialmente esta forma considerable de separación rigurosa, que es exclusión social, pero reintegración espiritual" (Foucault 1976: 18). Trata-se da paulatina produgào e transformagào da loucura como uma forma de saber que expressava a experiencia trágica do homem no mundo, em proveito de um saber racional e humanista que tem como centro a questào da verdade e da moral. Foucault nos aponta um processo que tem urna diregào e um sentido muito precisos. Trata-se de surpreender urna luta, um processo, iniciado no Renascimento, da crescente subordinagào da loucura à razào. Neste sentido, a Historia de la locura aparece como uma crítica da razào: um esmiugar de seu campo, delimitando seus limites e suas fronteiras, suas áreas de conflito e estratégias de deslocamento a firn de reduzir ou, se possível, excluir tudo aquilo que possa ameagar a sua ordem. Trata-se de um processo descontinuo, delineado por Foucault através de très épocas diferentes: o Renascimento, a Época Clàssica e a Idade Moderna. No Renascimento, a relagào entre a loucura e a razào se apresenta de forma tensa, ambigua. Isto pode ser apreendido, por exemplo, na filosofia cética, que incorpora a loucura ao processo da dúvida, permitindo, muitas vezes, o comprometimento da relagào do pensamento com a verdade. Neste momento, o processo de produgào e de subordinagào da loucura

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¿Qué anuncia el saber de los locos? Puesto que es el saber prohibido, sin duda predice a la vez el reino de Satán y el fin del mundo; la última felicidad es el supremo castigo; la omnipotencia sobre la Tierra y la caída infernal. (Foucault 1976: 40)

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En el polo opuesto a esta naturaleza de tinieblas, la locura fascina porque es saber. Es saber, ante todo, porque todas esas figuras absurdas son en realidad los elementos de un conocimiento difícil, cerrado y esotérico. (Foucault 1976: 39)

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passa pela eliminaçào de sua especificidade enquanto forma de saber, e sua conséquente integraçâo em urna ordem da razâo que ainda a acolhe e aceita suas razôes. 7 Na época clàssica, porém, o processo irá se radicalizar. Descartes pode ser apontado como o principal marco filosófico desta transformaçâo. Este será o momento em que a loucura vai ser excluida da ordem da razâo. Na primeira das meditaçôes metafísicas, Descartes exclui a loucura do pensamento, afastando a possibilidade de esta vir a comprometer a démarche da dúvida. Se alguém pensa, nâo pode ser louco; se alguém é louco, nâo pode pensar. Na Idade Moderna, por fim, pode-se surpreender ñas Ciências Humanas um discurso que, ao apontar a loucura como alienaçâo, acabou por patologizá-la. Trata-se, portanto, de um processo de implantaçâo de urna razâo que, a partir de estratégias diversas, dominou essa experiência trágica da loucura. Nâo se trata, portanto, de um progresso continuo do saber sobre a loucura que caminharia em direçâo à descoberta de sua verdade última. 8 Trata-se, sim, de um processo lento de subordinaçâo e integraçâo da loucura à ordem da razâo. Isto significa dizer que a tese da Historia de la locura tem a argumentaçâo embasada na pressuposiçâo de urna experiência fundamental da loucura que teria sido dominada pela razâo, embora nâo tenha sido destruida.9 Dominio que tem inicio no 7

Foucault aponta como ñas farsas e soties, o personagem do louco, do bobo, adquire grande importancia. No está ya simplemente al margen, silueta ridicula y familiar: ocupa el centro del teatro, como poseedor de la verdad, representando el papel complementario e inverso del que representa la locura en los cuentos y en las sátiras. Si la locura arrastra a los hombres a una ceguera que los pierde, el loco, al contrario, recuerda a cada uno su verdad. (Foucault 1976: 28-29)

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Tal qual definido por Lévi-Strauss (1976/1952a: 342-343) o progresso nào é nem necessàrio nem continuo; procede por saltos, ou, tal como diriam os biólogos, por mutafóes. Estes saltos nào consistem em ir sempre mais longe na mesma direfào; sào acompanhados por mudanzas de orientagào, um pouco à maneira dos cavalos do xadrez que tém sempre à sua d i s p o s i l o várias progressòes mas nunca no mesmo sentido.

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Posteriormente em urna entrevista, ao referir-se à Historia de la locura, Foucault irá dizer que nesse momento encontrava-se ainda lutando com a nofào de repressào que aparecía nesse estudo de forma implicita: Acredito que entào supunha urna espécie de loucura viva, volúvel e ansiosa que a mecánica do poder tinha conseguido reprimir e reduzir ao silèncio. Ora, me parece que a no?ào de repressào é totalmente inadequada para dar contado que existe justamente de produtor no poder. [...] Se o poder fosse somente repressivo, se nào fizesse outra coisa a nào ser dizer nào vocè acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e seja

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Renascimento, quando a desrazáo, n o sentido de loucura c o m o experiencia fundamental, teria sido deixada de lado. La experiencia trágica y cósmica de la locura se ha encontrado disfrazada por los privilegios exclusivos de una conciencia crítica. Por ello la experiencia clásica, y a través de ella la experiencia moderna de la locura, no puede ser considerada como una figura total, que así llegaría finalmente a su verdad positiva; es una figura fragmentaria la que falazmente se presenta como exhaustiva; es un conjunto desequilibrado por todo lo que le falta, es decir, por todo lo que oculta. Bajo la conciencia crítica de la locura y sus formas filosóficas o científicas, morales o médicas, no ha dejado de velar una sorda conciencia trágica. (Foucault 1976: 51) A desrazáo, entendida c o m o urna forma de enfrentamento da loucura, c o m o urna consciéncia trágica, ainda irá permanecer. 1 0 Sua expressáo p o d e ser apreendida ñas últimas palavras de N i e t z s c h e , ñas últimas v i s o e s de V a n G o g h e na obra d e Artaud, [...] en esta obra que debería plantear al pensamiento del siglo XX, si éste le prestara atención, la más urgente de las preguntas, y la que menos permite al investigador escapar del vértigo, en esta obra que no ha dejado de proclamar que nuestra cultura había perdido su medio trágico desde el día en que rechazó lejos de sí a la gran locura solar del mundo, los desgarramientos en que se consuma sin cesar la 'vida y la muerte de Satán el Fuego'. (Foucault 1976: 51-52) O conflito entre experiéncia trágica e consciéncia crítica da loucura foi marcado por urna vitória progressiva desta última. O julgamento crítico paulatinamente se impóe, permitindo á razáo, instancia de verdade e moralidade, mascarar, controlar, subordinar, confiscar e por f i m anular os poderes da loucura, grande i n q u i e t a d o d o Renascimento. E s s e d e s l o c a m e n t o pode ser apreendido n o interior da própria literatura. A múltipla p r e s e n t a da loucura na literatura e m fins d o s é c u l o X V I e principio do X V I I , c o m o p o d e - s e ver, por e x e m p l o , e m Dom Quixote

o u n o Rei Lear,

parece

apontar para u m e s f o r g o e m dominar esta razáo que está a procura de si m e s m o . E m Dom Quixote

p o d e - s e acompanhar c o m o

aceito é simplesmente que ele nao pesa só como urna força que diz nao, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como urna rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância que tem por funçâo reprimir. (Foucault 1979: 7-8) 10

A. Green aponta que o desejo dos intelectuais em alcançar esta verdade da desrazáo tem um preço, envolve um risco. Pour parler vulgairemente, du prix à payer, ou encore du sacrifice pour la vérité que n'est autre que le risque de la folie ou de la mort. De noms? Hölderlin, Nietzsche, Artaud, pour parles de ceux qui nous sont proches. (Green 1977: 42)

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VALTER SINDER [...] del autor al lector las quimeras se transmiten, pero aquello que era fantasía por una parte, se convierte en fantasma por otra; la astucia del escritor es aceptada con tanto candor como imagen de lo real. En aparencia, nos encontramos solamente ante una crítica fácil de las novelas de imaginación; pero un poco por debajo, hay toda una inquietud sobre las relaciones que existen, en la obra de arte, entre la realidad y la imaginación, y acaso también sobre la turbia comunicación que hay entre la invención fantástica y las fascinaciones del delirio. (Foucault 1976: 63-64)

Dom Quixote, como vimos, obra moderna por exceléncia, aponta para um jogo onde as identidades e as diferentes brincam com os signos e as similitudes. Neste jogo, a linguagem rompe a intimidade com as coisas, emergindo um ser abrupto, convertido em literatura.11 A semelhanga ingressa em urna nova ordem que é para ela a do "contra-senso e da imaginagáo". Essa transformagáo, que separa os signos e as similitudes, aponta para a constituigao de duas experiencias, onde dois personagens aparecem frente a frente: o louco e o poeta. Desta forma, tem-se, por um lado, o louco que entendido [...] como fungáo cultural indispensável, tornou-se, na experiencia ocidental, o homem das semelhanjas selvagens. Esta personagem, tal como é descrita nos romances ou no teatro da época barroca, e tal como se institucionalizou a pouco e pouco até a psiquiatría do século XIX, é a que se alienou na analogía. É o jogador desregrado do Mesmo e do Outro. Toma as coisas por aquilo que elas nao sao, e as pessoas urnas pelas outras; ignora os seus amigos, reconhece os estranhos; julga desmascarar e impóe urna máscara. Inverte todos os valores e todas as proporfóes, pois julga a cada instante decifrar signos: para ele os ouropéis fazem o rei. Segundo a percep9ao cultural que dele se tem até fins do século XVIII, o louco nao é o Diferente senáo na medida que nao conhece a Diferenja; ele só vé por toda a parte semelhanfas e sinais de semelhanfas; todos os signos, para ele se assemelham, e todas as semelhanfas valem como sinais. (Foucault s. d. [1966]: 73)

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D. Quixote desenha o negativo do mundo da Renascenfa; a escrita cessou de ser a prosa do Mundo; as semelhanfas e os signos romperam a sua antiga alianza; as similitudes desiludem, descambam em visáo e delirio; as coisas permancem obstinadamente na sua identidade irónica: já nao sao senao o que sao; as palavras erram ao acaso, sem conteúdo, sem semelhanfas que as preencham; já nao sao marcas das coisas; dormem entre as folhas dos livros, no meio da poeira. A magia que permitía a decifrafáo do mundo descobrindo as semelhanfas secretas sob os signos, deixa de ter outra finalidade que nao seja explicar em tom delirante por que é que as analogías sao sempre frustadas. A erudifáo que lia como um texto único a natureza e os livros é restituida as suas quimeras: postos ñas páginas amarelecidas dos volumes, os signos da linguagem já nao tém outro valor para além da ténue ficgao daquilo que representan!. A escrita e as coisas já nao se assemelham. Entre elas D. Quixote vagueia ao sabor da aventura. (Foucault s. d. [1966]: 72)

RELATOS DE VIAGEM

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Por outro lado, situado na outra extremidade do espado cultural, no entanto, muito próximo pela simetria, encontra-se o poeta que, para além das diferen?as conhecidas e nomeadas, busca o reencontró das identidades e semelhangas subjacentes ás coisas. O poeta, sob os sinais estabelecidos, e mau grado a existencia, ele ouve um discurso mais profundo, que lembra o tempo em que as palavras cintilavam através da semelhanfa universal das coisas: a Soberanía do Mesmo, táo difícil de enunciar, apaga na sua linguagem a distingo dos signos. (Foucault s. d. [1966]: 74)

Como que marcando urna nova experiéncia da linguagem e das coisas, a poesia e a loucura se encontram na cultura ocidental moderna. Nos intersticios de urna forma de saber que separa os seres, os signos e as similitudes, o louco, por um lado, ao reunir todos os signos e dar-lhes urna semelhanfa que prolifera sem cessar, assegura a "fungao do homossemantismo"; por outro lado, o poeta, em sua posifáo simétrica e inversa, assegura a "fungáo alegórica", em sua busca desta "outra linguagem": - a linguagem da semelhanfa; "essa linguagem sem palavras nem discursos". O poeta faz vir a similitude até os signos que a dizem; o louco carrega todos os signos de urna semelhan9a que acaba por apagá-los. Assim se encontram ambos, na orla exterior da nossa cultura e no ponto mais próximo das suas divisoes essenciais, nessa situafáo extrema - postura marginal e silhueta profundamente arcaica - em que as palavras encontram sem cessar o seu poder de estranheza e o recurso da sua contestafáo. Entre elas abriu-se o espado de um saber onde, devido a uma ruptura essencial ocorrida no Ocidente, já nao se trata das similitudes, mas sim das entidades e das diferenfas. (Foucault s. d. [1966]: 75)

Fragmentagáo/desdobramento da linguagem que, como aponta Foucault, em As Palavras e as Coisas (s. d. [1966]), possibilitará o surgimento de múltiplos dominios, e apontará para a posterior emergéncia do homem no inicio do século XIX. Neste momento inicial, a linguagem surge como uma forma particular da representafáo, constituindo-se enquanto discurso. É exatamente isso que se pode surpreender na segunda parte de Dom Quixote, quando ele mesmo se torna, concomitantemente, personagem e autor de sua narrativa. O desdobramento da linguagem funda a possibilidade da dicotomía que se pode apreender ñas teorias modernas do discurso. É exatamente a partir da duplicado do próprio mundo da linguagem que se coloca, modernamente, em lados opostos, o discurso sério comprometido com o real do acontecimento (a Historia) e o discurso da ficfáo fruto do emaranhado imaginário do sujeito (a estória). As aventuras de Dom Quixote apontam para uma verdade fundamental: "A verdade de D. Quixote nao está na rela?ao das palavras com o mundo, mas nessa fina e constante rela?áo que as marcas verbais tecem de si para si mesmas" (Foucault s. d. [1966]: 73).

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3.

DAS IDÉIAS E SUAS VICISSITUDES As leis lógicas que afinal governam o mundo intelectual sào, por sua natureza, essencialmente invariáveis e comuns, nào só para todos os tempos e lugares, mas também para todos e quaisquer assuntos, sem nenhuma distinfào, mesmo entre aqueles que consideramos reais e quiméricos: as leis lógicas se observam, no fundo, até nos sonhos. Augusto Comte A relafào entre racionalizado e excessos de poder político é evidente. Nào devíamos esperar pela burocracia e por campos de concentragào para reconhecer a existencia de tais relafoes. Mas o problema é: o que fazer com um fato tao evidente? Devemos julgar a razào? Para mim nada seria mais estéril. Primeiro porque o campo da razào nào tem nada a ver com culpa ou inocencia; segundo porque nào tem sentido referir-se à razào como a entrada contrària à nào razào; e por último tal julgamento nos colocacira na armadilha de ter de desempenhar o papel arbitràrio e majante de irracionalista ou racionalista. Michel Foucault

Em um processo tenso iniciado no Renascimento, pode-se acompanhar a estratégia de estabelecimento e impianta?ào de urna forma de saber que, ancorada cada vez mais em um propòsito racional e humanista, tem como centro a questào da verdade e da moral. Trata-se da paulatina produgào, imposifào e finalmente identificagào desta forma de saber com a única verdade, estabelecendo urna dominagào que irá apontar para qualquer outro modo de produgào de verdade como produto da imaginagào, e que, portanto, só pode produzir um saber quimérico. Neste processo onde se pode acompanhar urna diregào e um sentido precisos de produgào e identificagào de urna verdade como sendo a verdade, é possivel verificar sua expansào mediante um esmiu^ar de seu campo, na tentativa de delimitar suas fronteiras, suas áreas de conflito e estratégias de movimentagào a firn de tentar excluir tudo aquilo que possa vir a ameagar a sua ordem. Vale lembrar Nietzsche que, em Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, assinala: Como poderiamos nós, se somente a verdade fosse decisiva na gènese da linguagem, se somente o ponto de vista da certeza fosse decisivo nas designafòes, como poderíamos no entanto dizer: a pedra é dura: como se para nós esse dura fosse conhecido ainda de outro modo, e nào como urna estimulafào inteiramente subjetiva! Dividimos as coisas por géneros, designamos a árvore como feminina, o vegetal como masculino: que transposifóes arbitrárias! A que distancia voamos além do cànone da certeza! (Nietzsche 1974: 55)

Novamente Nietzsche: "Somente por esquecimento pode o homem alguma vez chegar a supor que possui urna verdade" (1974: 55; grifo do autor).

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VALTER SINDER

3.1 Historia, narrativa e verdade Se nos voltarmos para a maneira como era concebida a historia na época clàssica,1 veremos que a constituido de sua narrativa como o intuito de dominar o caos, o terror a até o acaso, passava necessariamente pela afirmado de urna autoridade que se valia da legitimidade que lhe era dada pela tradigào a firn de construir modelos que deveriam assegurar orientado e verdade aos homens. Pode-se apontar, como característica básica dessa concepgào de historia, o fato de ser urna historia que, antes de se fundar no tempo, como a moderna, estabelece um 'espa90 de experiencias' onde podem ser reunidos exemplos, historias excepcionais, extraordinárias, exemplares, em suma, capazes de fornecer orientafào e sabedoria a todos os que dele venham se aproximar. (Araújo 1988: 29)

Trata-se da idade clàssica - o espago da representado. A ordem aparece como a idéia fundamental que domina todo o pensamento (Foucault s. d. [1966]). Momento em que a linguagem, densa e enigmática, dá lugar a um discurso transparente e instrumental. Momento em que a historia, entendida enquanto envolvimento das coisas numa linha temporal, ainda nào existe, e o que interessa sào as grandes manobras da ordenado do mundo. Trata-se, segundo a bela expressào-imagem de Prado Coelho, do "cinema da representado": "momento em que tendo as palavras se separado das coisas, restanos um mundo organizado segundo quadros de pensamento que ordeiramente se desenrolam perante nós na interminável geometria duma tela a que a realidade se reduz" (Prado Coelho 1982: 203). Como aponta Foucault, o fundamental para a episteme clàssica é sua relado com a mathesis, que até fíns do século XVIII permanece constante e inalterada, apresentando, como urna de suas características essenciais, o fato de que as relaf oes entre os seres serào efetivamente pensadas sob a forma da ordem e da medida, mas com esse desequilibrio fundamental de se poder sempre reduzir os problemas da medida aos da ordem. De sorte que a relafào de todo o conhecimento com a mathesis apresenta-se como a possibilidade de estabelecer entre as coisas, mesmo nao mensuráveis, urna sucessào ordenada. (Foucault s. d. [1966]: 84)

O fundamental é a possibilidade de se construir um mundo onde tudo se conjugue de acordo com o principio de urna sucessào ordenada. Tendo a ordem como base epistemológica, como se estabelecia a verdade nesta concepdo clàssica da historia? Quais eram os critérios utilizados para se agrupar essas

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Sobre a concep9ào clàssica da historia, entendida como compreendendo o período que vai do Renascimento até o ¡luminismo, pode-se consultar os trabalhos de Arendt (1972), White (1978), Veyne (1981; 1984) e Koselleck (1985).

DAS IDÉIAS E SUAS VICISSITUDES

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chamadas "historias exemplares"? Toda e qualquer narrativa era aceita como verídica? Paul Veyne, em trabalhos onde enfoca a concepgào clàssica da historia (Veyne 1981, 1984), irá nos chamar a atengào de que, em vez de se pressupor que a escrita da historia neste momento encontrava-se ainda encoberta pelos mitos, pela t r a d i t o , fazendo com que se acreditasse indiscriminadamente em todas as narrativas disponíveis, devese ter em mente que se tem urna maneira pròpria de escrever a historia, e que nào é a mesma que temos nós; ora, essa maneira repousa num pressuposto implícito tal, que a distinfào das fontes origináis e das fontes de segunda mào, longe de ser ignorada por um vicio de método, é estranha à questào. Veremos, com efeito, que um historiador antigo trata essas fontes nào como o faz um historiador moderno, mas sensivelmente como um jornalista trata suas fontes de informafào. (Veyne 1984: 83)

Veyne nos relata que antes de Etienne Pasquier publicar em 1560 suas Recherches de la France, havia feito circular entre os amigos os manuscritos. Em sua grande maioria as críticas que lhe foram feitas diziam respeito ao hábito de fornecer, frequentemente, referéncias das fontes por ele citadas. Tal hábito, diziam, nào era condizente com urna obra de historia. Se sua intendo era a de dar credibilidade à sua narrativa, deveria guiar-se pelas obras dos antigos que haviam se consolidado atra vés do tempo, sem a necessidade de tal artificio. "Pasquier deveria deixar que o tempo sozinho sancionasse o seu livro!" (Veyne 1984: 83). Um historiador antigo raramente citava suas fontes, ou colocava notas de pé de página. Quando o fazia, era normalmente por sentir orgulho de ter descoberto um autor ou um texto raro, "que é para eie mais urna espécie de monumento do que propriamente urna fonte" (idem: 83). Ele quería que se acreditasse em sua palavra. Nào que ele aceite e relate qualquer coisa, já que deve saber conferir a informagào; entretanto, [...] nào revelará a seus leitores todos os pormenores. Quanto mais exigente consigo mesmo, menos o farà; Heródoto regala-se em registrar as diferentes tradÌ9