História da arte: ensaios contemporâneos
 9788575111888

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Introdução

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história da arte

ensaios contemporâneos

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História da ARTE – ensaios CONTEMPORÂNEos0

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Reitor Ricardo Vieiralves de Castro Vice-reitora Maria Christina Paixão Maioli

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Conselho Editorial Antonio Augusto Passos Videira Flora Süssekind Italo Moriconi (presidente) Ivo Barbieri Luiz Antonio de Castro Santos Pedro Colmar Gonçalves da Silva Vellasco

Introdução

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história da arte

ensaios contemporâneos Marcelo Campos | Maria Berbara | Roberto Conduru | Vera Beatriz Siqueira organização

Rio de Janeiro 2011

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História da ARTE – ensaios CONTEMPORÂNEos0

Copyright © 2011, dos autores Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, ou de parte do mesmo, em quaisquer meios, sem autorização expressa da editora.

EdUERJ Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 – Maracanã CEP 20550-013 – Rio de Janeiro – RJ Tel./Fax: (55)(21) 2334-0720 / 2334-0721 www.eduerj.uerj.br [email protected] Editor Executivo Coordenadora Administrativa Coordenador de Publicações Coordenadora de Produção Coordenador de Revisão Revisão Diagramação Capa, Projeto

Italo Moriconi Rosane Lima Renato Casimiro Rosania Rolins Fábio Flora Andréa Ribeiro e Jun Shimada Carlota Rios e Emilio Biscardi Carlota Rios

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC H673

História da arte: ensaios contemporâneos / Organização, Marcelo Campos, Maria Berbara, Roberto Conduru, Vera Beatriz Siqueira. – Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011. 452 p. ISBN 978-85-7511-188-8 1. Arte – Discursos, ensaios, conferências. I. Campos, Marcelo. CDU 7

Introdução

Sumário

Introdução 9 Marcelo Campos, Maria Berbara, Roberto Conduru e Vera Beatriz Siqueira

Arte e cultura material 15 Cultura material: vento/mito 17 Cezar Bartholomeu

Obras-arquivos: o efêmero, a memória, a transversalidade

29

Luiz Cláudio da Costa

A constatação de Duchamp: o estatuto do objeto no limiar da imaterialidade 36 Rafael Cardoso

Arte, pensamento e forma 51 Fragmentos para histórias de formas

53

Guilherme Bueno

Cubos, linhas, caminhos 62 Roberto Conduru

A intricação de espaços na arte

72

Stefania Caliandro

Arte e religião 89 Sobre as irmandades de clérigos em Portugal e na América portuguesa: o trânsito de modelos artísticos entre as duas margens do Atlântico 91 André L. Tavares Pereira

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História da ARTE – ensaios CONTEMPORÂNEos0

Sacrifício, mártir e imagem

97

Jens Baumgarten

Entre arte e ritual 112 Jérôme Souty

Arte e sacrifício: Laocoonte, Michelangelo, Marcus Curtius e a representação do sacrifício humano entre os astecas 125 Maria Berbara

A gravura e a religiosidade popular: A chegada da prostituta no céu, de J. Borges 138 Maria Eurydice de Barros Ribeiro

Arte e política 143 Uma leitura de gênero possível: o motivo da figura feminina nua

145

Ana Magalhães

Paisagem e poder: algumas reflexões sobre o mito da autonomia da arte no Ocidente e no Oriente 152 Claudia Valladão de Mattos

A aragem da utopia 161 Fernando José Pereira

Arte e política 174 Paulo Knauss

Liberdade, representação e poder 183 Sheila Cabo Geraldo

Arte e sistema de arte 201 Poéticas conceituais e espaços expositivos: algumas experiências

203

Dária Jaremtchuk

Localização e deslocamento da obra de arte no contexto de exposição 214 Elisa de Souza Martínez

Academia e tradição artística 244 Sonia Gomes Pereira

Álbum de família: coleções e museus de arte

254

Vera Beatriz Siqueira

Persistência do passado em eterno devir Viviane Matesco

273

Introdução

Arte e vitalidade 279 Corpos invisíveis, corpos que importam

281

Alexandre Santos

Tornar-se alferes: declarações do “eu” e autoficções

296

Marcelo Campos

A biografia, o gênio e a morte do autor

306

Maria de Fátima Morethy Couto

Verbetes 321 Apropriação 323

Arte e taoísmo 357

Fernanda Pequeno

Bony Braga

Arquitetura 326

Arte e transexualismo

Antônio Barros

Raphael Fonseca

Arte e América Latina

328

Assemblage 361 Rafael Souza

Elena O’Neill

Arte e arquivo

359

331

Caricatura 363

Adelaine Evaristo da Silva

Fernanda Marinho

Arte e China contemporânea 333

Colagem 365

Felipe Abdala

Mariana Gomes Paulse

Arte e corpo

335

Desenho 369

Renata Reinhoffer França

Inês de Araújo

Arte e Egito 338

Escultura 372

Evelyne Azevedo

Leidiane Carvalho

Arte e budismo

340

Arte e historiografia

342

374

Forma, informe, informal

376

Carla Hermann

Igor Valente

Arte e indumentária

Fim e hipertrofia da arte Camilla Rocha Campos

Bony Braga

344

Fotografia 379

Larissa Carvalho

Elena O’Neill

Arte e islão 346

Imitação 382

Evelyne Azevedo

Gilton Monteiro

348

Intervenções artísticas afro-brasileiras 384

350

Mônica Linhares

Antônio Barros

Monumentos: África e Brasil

Arte e psicologia

352

Mônica Linhares

355

Carla Hermann

Arte e mercado Camilla Rocha Campos

Arte e Mesoamérica

Renata Reinhoffer França

Arte e política na China Bony Braga

386

Paisagem 388 Perspectiva 390 Leidiane Carvalho

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História da ARTE – ensaios CONTEMPORÂNEos0

Pintura 392

Sistema de arte na África

Gilton Monteiro

Tadeu Lopes

Retrato 394

Tradição clássica

Raphael Fonseca

Fernanda Marinho

396 399

Bibliografia geral 401 Índice remissivo 421 Sobre os autores 445

Introdução

Introdução

A Galeria da Academia em Florença apresentou, entre maio de 2009 e janeiro de 2010, uma monumental exposição cuja proposta central era confrontar imagens produzidas pelo fotógrafo Robert Mapplethorpe a esculturas e desenhos de Michelangelo Buonarroti. A exposição é extraordinária tanto por ser a primeira a apresentar a obra de um artista pós-renascentista na tradicional galeria florentina, a qual tem nos mármores michelangeanos seu maior emblema, quanto por salientar os diálogos, pulsantes, entre Mapplethorpe e Michelangelo. A exposição não é guiada por princípios cronológicos, vale dizer, pelo percurso biográfico de cada artista, mas por determinados princípios, ou questões, que os curadores reuniram sob o título A perfeição na forma, a saber: a geometria da forma; o fragmento como forma; a forma duplicada; e a forma escultórea. O percurso expositivo parte da premissa de que há contatos entre as assim chamadas arte clássica e arte contemporânea, e, portanto, é possível individuar linhas de cruzamento nas quais artistas – por exemplo – renascentistas italianos e contemporâneos norteamericanos possam encontrar campos de linguagem que se articulem. Ao longo do corredor central da Academia, espinha dorsal da galeria, os quatro cativos, ou escravos, de Michelangelo, são ladeados pela série Thomas, fotografias de Mapplethorpe nas quais a figura humana é representada no interior de um tondo que, por sua vez, alude tanto à forma circular adotada por muitos mestres quatrocentistas quanto ao homem vitruviano de Leonardo, máxima expressão da síntese entre anatomia e geometria, edifício e corpo humano. Analogamente aos cativos michelangeanos circundados pelo mármore, os círculos no interior dos quais Thomas se movimenta impõem limites não apenas físicos, mas dinâmicos, criando uma tensão entre matéria e forma que dialoga eloquentemente com a tensão muscular explosiva, mas contida, dos cativos. Ao final do corredor, o colossal Davi, fulcro e âmago da galeria, é, por sua vez, rodeado por quatro imagens de Ajitto, propondo diferentes leituras e investigações relativas ao corpo humano – objeto central das investigações visuais e reflexões estéticas tanto de Mapplethorpe como de Michelangelo. O fato de tanto Thomas quanto Ajitto serem negros transforma

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e confere novo significado às suas relações com os cativos, dotando-lhes de um simbolismo, alusivo ao tema da escravidão africana, marcadamente contemporâneo. A espetacular exposição propõe visualmente um confronto tópico, não cronológico, dos objetos artísticos, criando um percurso que perpassa períodos históricos muito distantes, mas que é capaz de gerar conexões sólidas e frutíferas, em uma tendência que vem abrindo caminhos cada vez mais amplos no âmbito tanto da curadoria quanto da história da arte. Iniciativa semelhante é a que gerou A new sentimental journey, o livro editado pela Cosac Naify, e a exposição apresentada na Maison Européenne de la Photographie, em Paris, no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, em 2009, e na Galeria Bergamin, em São Paulo, em 2010. A partir de texto homônimo e fotografias inéditas de Alair Gomes, Miguel Rio Branco selecionou e confrontou imagens de corpos (sobretudo masculinos) feitas a partir de esculturas de diferentes épocas (Grécia e Roma antigas, renascença italiana) em museus europeus a de jovens homens se exercitando na praia no Rio de Janeiro. Assim, explicitou a “erotologia no sentido mais amplo” que Alair Gomes ensaiava (Gomes, 2009). O livro que aqui apresentamos, analogamente, propõe, seja no ponto de vista de sua rede geral seja no corpo de cada capítulo, uma história da arte vinculada não a concepções historicistas potencialmente limitantes, mas à produção de reflexões que, não determinadas nem pela cronologia nem pela geografia, permitam gerar investigações histórico-artísticas consistentes a partir do cruzamento de expressões visuais e culturais produzidas em diferentes contextos espaciotemporais. A história da arte é, de resto, um campo em transformação já há algum tempo. Na contemporaneidade, vários autores têm contribuído para sua reformulação, tentando liberá-lo das amarras do historicismo (Gombrich, 1994), com sua temporalidade linear, homogênea e evolutiva, e dos exageros cientificistas, formalistas, sociológicos e iconológicos de algumas práticas historiográficas modernistas. Assim, além do questionamento propriamente teórico sobre as especificidades do fazer da história da arte em relação a seus objetos, métodos e meios, vêm sendo produzidas análises da história da historiografia da arte e, como correlato destas, têm-se feito compilações e ensaios de história da história da arte (vide, por exemplo, publicações de Venturi, 1936; Hauser, 1958; Pächt, 1977; Argan, 1977; Podro, 1982; Bazin, 1986; Preziosi, 1989 e 1998; Minor, 1994; Belting, 1995; Fernie, 1995; Mansfield, 2002). Nessa dinâmica, as reflexões sobre o campo têm revisto seus princípios, métodos, processos e produtos a partir da problemática multicultural, geográfica, de gênero e etnia, bem como dos processos de institucionalização inerentes à disciplina em suas práticas críticas, historiográficas e curatoriais. Uma importante mudança de paradigma presente nessas crises historiográficas se refere à escrita da história. Ao buscar outros critérios de análise, historiadores passaram a questionar o mito da objetividade científica e aceitaram as vicissitudes das observações participantes.

Introdução

Os capítulos deste livro também demonstram atenção ao “roubo da história”, parafraseando Jack Goody (2008), produzido por uma escrita eurocêntrica. Porém, torna-se importante destacar que os próprios objetos de arte – ampliando concepções materiais, quebrando as fronteiras entre categorias – e seus autores, assim como sua sistematização, já expõem tais modificações paradigmáticas. A internacionalização da arte é um dos sintomas da atualidade e a história que se escreve atualmente se depara com um sistema muito mais descentrado, permitindo pensar para além de centros e margens. Frente à ideia de globalização, há esforços em contraposição ao foco quase exclusivo e de centramento da atividade historiográfica na arte ocidental. É o caso de Uma nova história da arte, de Julian Bell, publicado em 2007, que, mantendo a sequência cronológica e a centralidade do Ocidente, amplia o arco de estudo, contrapondo realizações sincrônicas em diferentes regiões do globo (Bell [2007], 2008). Nesse sentido, o Congresso Internacional do Comitê Internacional de História da Arte (CIHA), realizado em Melbourne, em janeiro de 2008, teve uma de suas sessões dedicadas ao tema The idea of world art history, com o propósito de discutir como, apesar de as obras de arte e a história da arte estarem difundidas pelo globo terrestre, o conteúdo da história da arte, tal como é produzido por meio de ensino, mostras e publicações, dificilmente se tornou mundial (Anderson, 2009). Embora mantenha a centralidade do Ocidente e insista com minúcia na cronologia, o livro Art since 1900, escrito em parceria por Benjamin H. D. Buchloh, Hal Foster, Rosalind Krauss e Yve-Alain Bois, é outra referência importante recente para uma história da arte que não pretenda impor-se totalitariamente às dinâmicas da arte, ao aceitar descontinuidades e estimular confrontos ao configurar o livro como um hipertexto, com introduções, debates, verbetes, símbolos gráficos, glossário e índices (Foster et al., 2004). No Brasil, por outro lado, não se tem produzido uma reflexão articulada de pesquisadores que gere eventos e publicações abordando a história da arte com abrangência mundial. Salvo engano, é possível indicar quatro obras editadas no país com esse escopo: História crítica da arte, de Carlos Flexa Ribeiro (1962), História das artes, de Carlos Cavalcanti (1963), e Pequena história da arte, de Duílio Battistoni Filho (1984), e História da arte, de Graça Proença (1989). Todos são obras de autoria individual, calcadas no modelo historicista centrado na arte ocidental. Porém, com o passar dos anos, no âmbito dos programas de pós-graduação, cada vez mais se pesquisa a arte confrontando-a a conceitos paradigmáticos, tanto advindos da história quanto de outras áreas do conhecimento. Os resultados da pesquisa aqui apresentada são frutos, consequentemente, de esforços coletivos e expõem o desenvolvimento e o intercâmbio de investigações realizadas em distintos âmbitos da esfera acadêmica dentro e fora do Brasil.

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Essas novas tendências na história da arte vêm sendo, ao longo dos últimos anos, discutidas e incorporadas às ações de ensino, pesquisa e extensão do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ART/UERJ). Desde 2005, na linha de pesquisa História e Crítica de Arte do Programa de Pós-graduação em Artes (PPGARTES), são desenvolvidos projetos de pesquisa que partem da dissolução das tradicionais fronteiras disciplinares entre estes três campos do saber – história, crítica e teoria – para problematizar, de modos variados, a formulação de um pensamento histórico-crítico sobre o fenômeno artístico. A partir de 2006, no âmbito do Departamento de Teoria e História da Arte (DTHA), vêm sendo formulados novos princípios, métodos e critérios para as disciplinas de história da arte dos currículos dos cursos de graduação em artes da UERJ: artes visuais (bacharelado e licenciatura) e história da arte (bacharelado). Tal orientação teórico-crítica se expressa nas ementas – com seus objetivos –, que, implantadas em 2009, se estruturam a partir de entradas conceituais, agrupadas em seis conjuntos: arte e cultura material; arte, pensamento e forma; arte e religião; arte e política; arte e sistema de arte; e arte e vitalidade. As seções deste livro, ideado também como suporte à atividade docente, relacionam-se de forma direta a essas seis seções. Esse processo editorial faz parte de um projeto apoiado pelo DTHA e pela EdUERJ, financiado pela Faperj, realizado, a partir de 2008, sob a coordenação de uma equipe composta pelos seguintes docentes do DTHA e do PPGARTESART/UERJ: Marcelo Campos, Maria Berbara, Roberto Conduru (coordenador) e Vera Beatriz Siqueira. Essa equipe, por sua vez, convidou outros pesquisadores, atuantes no campo da história da arte e/ou em campos de fronteira, para integrar o projeto: Jérôme Souty, então atuando como professor visitante no Instituto de Medicina Social (IMS) da UERJ; Paulo Knauss, do Laboratório de História Oral e Iconografia do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF); Rafael Cardoso, da Escola Superior de Desenho Industrial da UERJ; Stefania Caliandro, então atuando como professora visitante no DTHA/UERJ; e Sonia Gomes Pereira, professora titular da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A ação dessa equipe no processo de realização do projeto sustentou-se em um ponto de partida comum, a permeabilidade das esferas da arte e da cultura, e em um pressuposto teórico básico – a aproximação da história da arte com a crítica e com o olhar sobre a cultura, por meio da confluência com as áreas de antropologia, desenho industrial, letras e semiologia, com as ideias de recepção estética e crítica e com a reflexão sobre o sistema cultural. Apoiou-se, por fim, em um compromisso com a atuação crítica que transcenda os limites tradicionais do ensino e da pesquisa acadêmica. De acordo com as premissas expostas acima, este livro propõe a apresentação de uma história da arte multifocal, entendida como um campo múltiplo e aberto quanto a seus objetos e questões, bem como a seus diálogos com outros campos disciplinares.

Introdução

O texto divide-se em seis seções no interior das quais são apresentados ensaios de diferentes tamanhos produzidos por pesquisadores brasileiros e estrangeiros que vêm se destacando na área de história da arte e/ou em campos de fronteira. Tanto no que tange às suas formações quanto em relação aos temas aos quais se têm dedicado, os autores constituem um grupo heterogêneo, cujo campo de atuação engloba a história das artes plásticas ou visuais (pintura, escultura, desenho), o desenho industrial, a arquitetura, o paisagismo e o urbanismo, e ainda articulações com outros campos de conhecimento – antropologia, cultura visual, letras, semiologia –, estudando obras, artistas, instituições, ideias e práticas artísticas, no Brasil e no exterior. Dentre os pressupostos editoriais do volume destacam-se as seguintes diretrizes: não se ater nem se centrar, exclusivamente, na arte do Ocidente; produzir cruzamentos espaciais e temporais; não produzir narrativas totalizantes; problematizar o ato de historiar e as histórias da arte existentes (princípios, objetos, métodos, processos e produtos). O livro é deliberadamente assimétrico, permitindo que as seções de ensaios variem de acordo com necessidades e potencialidades de conteúdo, de modo a evitar seriações uniformes e totalizações. Assim, corrobora, em sua própria estrutura, seu sentido aberto a outros ensaios. Talvez essa assimetria possa qualificar, igualmente, os próprios cruzamentos temporais e espaciais desenvolvidos nos diferidos ensaios. Algumas vezes, são desafios enfrentados pelos pesquisadores que, até então, não haviam lidado com esse problema em suas investigações, mas que se sentem instigados a fazê-lo e produzem nexos históricos e culturais novos e inspiradores. Outras, são ainda um sítio a se chegar, um horizonte distante, porém imantado pela vontade de contribuir, a partir de nosso lugar cultural e histórico, para uma possível história da arte global. A noção de ensaio, ressalte-se, é importante na medida em que pressupõe a ideia de experimentação e se opõe a sistemas e métodos restritivos, fechados. O termo contemporâneo, por sua vez, não está, em absoluto, vinculado a uma preferência estética, a uma determinada noção de estilo ou a um período histórico predeterminado, mas, contrariamente, sinaliza o reconhecimento de que a experiência atual da arte, compreendida em sua vitalidade essencial, constitui o fundamento de toda a compreensão da arte e da cultura, recente ou tradicional. O livro inclui, ainda, uma seção com verbetes redigidos por estudantes e egressos dos cursos de graduação e pós-graduação da UERJ, cujos temas foram especificados a partir dos conteúdos dos ensaios e das necessidades de esclarecimento nocional. Realizados por encomenda dos organizadores do livro ou propostos pelos próprios autores, os verbetes formam um quadro bastante heterogêneo. Por vezes, referemse a determinado contexto cultural, dialogando com as presenças e ausências dos textos. Em outras ocasiões, relacionam-se a conceitos, a meios artísticos ou a problemas plásticos relevantes para a história da arte hoje. Dessa forma, em sua assumida assimetria, produzem outras ordens de cruzamento, propondo olhares transversos sobre os demais textos.

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Devido às dificuldades em obter autorização para uso de imagens no Brasil atualmente, os estudos não puderam se desdobrar, como pretendido, em um caderno de imagens, estruturado, por sua vez, como um ensaio visual ele próprio, uma vez que o encadeamento e a estratégia de seriação eram propostos como objeto de reflexão crítica. Dos ensaios também resultam ampla bibliografia geral e índices. Intermediando as seções desde a capa do volume, há intervenções de Ricardo Basbaum e Roberto Corrêa dos Santos, iluminando conceitualmente as descontinuidades que compõem o livro. Marcelo Campos, Maria Berbara, Roberto Conduru e Vera Beatriz Siqueira

Referências ANDERSON, Jayne (ed.). Crossing cultures: conflict, migration, and convergence. Victoria: The Miegunyah Press, 2009. ARGAN, Giulio Carlo. Arte e crítica de Arte. Lisboa: Editorial Estampa, 1988. ------. “Preâmbulo ao estudo da história da arte”. In ARGAN, Giulio Carlo e FAGIOLO, Maurizio. Guia de história da arte. Lisboa: Editorial Estampa, 1992 [1977]. BAZIN, Germain. História da história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989 [1986]. BATTISTONI FILHO, Duílio. Pequena história da arte. Campinas: Papirus, 1984. BELL, Julian. Uma nova história da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2008 [2007]. BELTING, Hans. O fim da história da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2006 [1995]. CAVALCANTI, Carlos. História das artes. Rio de Janeiro: J. Ozon, 1963. FERNIE, Eric (ed.). Art history and its methods. Londres: Phaidon, 1995. FOSTER, Hal et al. Art since 1900. Modernism, antimodernism, postmodernism. Nova York: Thames and Hudson, 2004. PROENÇA, Graça. História da arte. São Paulo: Ática, 1989. GOMES, Alair. A new sentimental journey. São Paulo: Cosac Naify, 2009. GOODY, Jack. O roubo da história: como os europeus se apropriaram das ideias e invenções do Oriente. São Paulo: Contexto, 2008 [2006]. HAUSER, Arnold. Teorias da arte. Lisboa: Presença, 1988 [1958]. MANSFEILD, Elizabeth (ed.). Art history and its institutions. Londres: Routledge, 2002. MINOR, Vernon Hyde. Art history’s history. New Jersey: Prentice Hall, 1994. PÄCHT, Otto. Questions des méthode en histoire de l’art. Paris: Macula, 1996 [1977]. PODRO, Michael. The critical historians of art. New Haven: Yale University Press, 1982. PREZIOSI, Donald (ed.). Rethinking art history. New Haven: Yale University Press, 1989. ------. The art of art history: a critical anthology. Oxford/Nova York: Oxford University Press, 1998. RIBEIRO, Carlos Flexa. História crítica da arte. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962. VENTURI, Lionello. História da crítica de arte. Lisboa: Martins Fontes, 1984 [1936].

Arte e cultura material

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arte e cultura material

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Arte e cultura material

Cultura material: vento/mito

Cezar Bartholomeu UERJ

A que se refere a expressão cultura material e por que devemos examinála? Ao empregá-la, podemos fazer referência a qualquer tipo de produto da cultura e não somente à arte. Falamos de objetos que podem ser decorativos, oriundos de rituais sociais ou simplesmente forjados a partir de práticas do dia a dia, como troféus, armas, fotos ou roupas. Estamos implicitamente dizendo que o objeto é rastro da cultura, retomando em última instância o conceito aristotélico de causa material. A forma do objeto de análise, de algum modo, preserva a marca a partir da qual poderemos interpretar um dado ou uma transformação cultural. Ao empregar a expressão, optamos pela materialidade dos objetos, constituindo uma visada arqueológica que deve seguir analiticamente a forma e os documentos que a suplementam, o que indica o desejo de um modelo de escrita que se quer objetiva e justificada, mais documental do que interpretativa. No campo de ciências como a arqueologia, a sociologia e a antropologia, a expressão designa um exame de artefatos, cujo uso é reconstituído a partir de sua materialidade. Não se enfatiza, desse modo, a contextualização dos objetos. Há, no uso da expressão, a influência do ponto de vista marxista. Não apenas do materialismo, que é seu método, mas possivelmente também do pragmatismo e do pudor histórico frente à dimensão estética do funcionamento da cultura.1 Esse pudor se relaciona com sua conceituação da cultura como produto das elites que buscam a manutenção da divisão de classes. Os objetos, sob esse ponto de vista, deveriam ser analisados a partir de materialidade diretamente relacionada à estrutura econômica. Assim, a questão técnica – seus usos, transformações e materiais – torna-se elemento importante na análise. A ideia da arte como representação transparente da O que pode ser visto em uma história social da arte ou na sociologia da arte de Pierre Francastel, por exemplo.

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cultura ecoa, no marxismo, as imagens na teoria de Platão: a arte é vista como ilusão, simulacro a ser regulado pela visada materialista. Mesmo oscilando na tensão entre desidealizar o objeto e desnaturalizar seu funcionamento, a expressão cultura material possibilita abrir o campo da arte e de sua história para o exame de obras e ações que não estão sancionadas – que não foram institucionalizadas pelo sistema de arte ou história da arte por conta de sua diferença em relação a um padrão canônico.2 A diferença que se deseja examinar e informar pode, por exemplo, ser caracterizada como diferença histórica – de um objeto que está no passado – ou antropológica – de um objeto que faz parte de outra cultura. Ambas as diferenças se relacionam ao aqui e agora do pesquisador. Entretanto, para a história da arte, essa diferença também deve ser vista como diferença presente e permanente entre criador e espectador, o que evidencia que a produção estética nunca é da ordem de representação cultural transparente ou neutra. É sempre necessário empreender a crítica dessa representação da cultura como parte do problema da obra e da metodologia que se constitui. Essa crítica sempre pressupõe, de algum modo, uma contextualização que revê a pergunta: o que é arte? Ao proceder à análise, visa-se caracterizar as culturas em questão compreendendo o valor que atribuem aos objetos e às práticas com que estão relacionados; deseja-se ver tais objetos tanto quanto suas culturas na alteridade, isto é, no jogo diacronicamente fixado pela criação e mesmo pela historicidade no objeto de análise de semelhanças e diferenças com a cultura. A questão dessa diferença é profunda: se, por um lado, relaciona-se à exigência antropológica de uma história cultural, por outro, trata-se de questão metodológica importante para toda a história da arte. Isso se dá, em primeiro lugar, porque será necessário lidar com a anacronia (Didi-Huberman, 2000) da história, já que os objetos não são pensados a partir de um contexto, mas definem seu contexto – embora não o reconstituam como síntese. Uma segunda questão é a revisão sempre necessária à contemporaneidade da história da arte do lugar dessas obras cuja finalidade não é necessariamente pertencer ao campo da história da arte. Uma última questão, de não menos importância, é pensar, no quadro da história da arte, como um objeto ou uma prática, nessa diferença, são incorporados ao campo da arte. Nesse sentido, o problema que se articula quanto ao conceito de cultura material é o da dimensão estética como dispositivo que vincula não apenas Diferença que, para alguns, pode ser explicada pelo não pertencimento dessas obras ao sistema de arte, pois seriam, para usar expressão em desuso, objetos da baixa cultura.

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Arte e cultura material

cultura e objeto enquanto marca, mas crítica e história da arte e história da arte e ciências sociais enquanto métodos. Essa relação entre método que deseja identificar e interpretar a marca, é necessário repetir, deve evitar constituir o objeto ou a prática em questão como marca apenas, como se os objetos tratados fossem destinados à representação da cultura. A expressão vinculação, nesse sentido, deve compreender que as obras são sempre produzidas como relações específicas entre material e imaterial. Caracterizar essa relação na relativa autonomia dos objetos é o desafio da pesquisa. A obra de Katsushika Hokusai pode ser vista a partir dessa problemática, embora o conceito de imagem, que cabe bem em sua obra, represente um desafio ao conceito de materialidade. O exame da especificidade dessas imagens começa por sua adequação a um gosto moderno e pela naturalidade com que parecem representar diretamente a cultura do Japão do século XIX.3 As Ukiyo-e, pelas quais o artista é conhecido, isto é, imagens “do mundo flutuante”, são xilogravuras que tratam basicamente do cotidiano japonês; entretanto, de parte limitada desse cotidiano – a expressão descreve locais de liberdade e entretenimento delimitados de modo extremamente restrito pela autoridade feudal. Vemos estampas de cortesãs, imagens do teatro, do comércio, gente comum em afazeres mundanos, personagens situados na natureza. Apesar de a técnica da xilogravura ser conhecida no Japão desde o século XVI, não faz propriamente parte do repertório da arte erudita japonesa: essa técnica era utilizada para reproduzir textos e imagens relacionadas ao budismo, pois sua reprodutibilidade e preço davam às imagens, preces e textos um caráter didático. A arte erudita na sociedade extremamente formal do Japão, ao contrário, lida com formas e gêneros tradicionais que os artistas buscavam dotar de pureza e sofisticação ímpares. A qualidade da forma produzida era vista como produto direto de espiritualidade desenvolvida que buscava mostrar sua essência – o que se opõe diretamente ao caráter popular da imagem reprodutível. Entretanto, ainda que a aderência à tradição seja uma questão central na vida japonesa, é importante perceber que, na mesma medida, os objetos e as ações mais corriqueiros são passíveis de revelar uma potência espiritual e expressiva em sua forma. Trata-se do legado budista. Nesse sentido, ainda hoje a questão estética é sempre tradicional, mas toda ação e todo objeto da cultura são passíveis de idealização – de transcendência. Nesse panorama, o simples ato de servir chá pode tornar-se arte da comunhão do Razões que explicam sua disseminação no Japão e principalmente no gosto da Europa modernista.

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gesto perfeito, o cultivo de jardins torna-se cultivo do espírito que medita, a escrita aparece como signo que revela tanto o espírito que escreve quanto a qualidade da coisa que é escrita. O que dizer, então, sobre a popularidade das Ukiyo-e, que elegem valorizar o próprio cotidiano, parecem tratar mundanamente da mundanidade – manifestando-se de modo vulgar, sendo reproduzidas sobre qualquer papel – e são influenciadas pelas imagens do ocidente? Se sua temática pode ser explicada pela estrutura política e pela possibilidade de florescimento de uma arte comercial que caracterizam o período Edo (1603-1868),4 o mesmo não pode ser dito acerca do valor que o artista dá a esses temas mundanos. As estampas de Hokusai conservam na imagem o enorme cuidado com a forma que é tradicional na arte japonesa. Parte de sua poética está na linearidade cuidadosa que, se é gentil, por um lado, não deixa, por outro, de fazer ver o controle em cada traço, em cada contorno. Esse controle é indicativo da necessidade de refinamento ditada pela tradição, ideia reforçada pela estrutura da sociedade japonesa feudal. No entanto, esse controle deve ser compreendido como internalizado: adere-se a essa tradição como dever não só do corpo, mas também do espírito, o que é determinado pelo pensamento budista. Entretanto, se os motivos das Ukiyo-e são parcialmente idealizados, a idealização ainda não parece justificar a escolha dos motivos – o aspecto flutuante do mundo e da vida diária tende a ser desprezado pelo budismo: o comportamento mundano, para o budismo, é algo a ser modificado, e não exibido. Ejiri na província de Suruga (Sunshu Ejiri), 1831-1833, 26 x 38,5 cm, da coleção do Musée National des Arts Asiatiques – Guimet, em Paris,5 faz parte da série de 36 vistas do Monte Fuji que tornaram Hokusai famoso. Essa paisagem, como gênero, esconde uma imagem do dia a dia: pessoas, ao caminhar, enfrentam forte ventania que faz voar roupas e papéis. Vemos um horizonte marcado por um ponto de fuga. O caminho é estruturado a partir de uma perspectiva. Talvez seja esse o dado material mais importante da imagem, já que indica uma transformação do modo de produzir imagens. Esse modo, que deveria soar impróprio à arte japonesa, Esse período é caracterizado pelo equilíbrio de poderes mais frágil do domínio Tokugawa, que abre a sociedade para mais liberdade e, paradoxalmente, exerce sobre ela controle rígido.

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Há algo a ser dito sobre o fato de essa obra constar da coleção do principal museu francês de arte oriental: sua recuperação para o mundo da arte passa pelo confronto do objeto japonês com o gosto europeu da modernidade, o que se evidencia por sua influência nas obras de Monet, Degas e Van Gogh.

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indica o contato com a tradição ocidental, o que localiza a obra em momento específico de transformação da cultura japonesa. Já os elementos naturais da paisagem, como montanhas, árvores e grama, são reconstruídos graficamente e sofrem uma estilização que revela uma concepção mais tradicional da arte japonesa. Vemos que se busca tanto controlar quanto idealizar a representação, enquanto se pretende revelar o espírito dos elementos descritos. Nesse sentido, a paisagem é constituída por elementos independentes que devem ser considerados simbolicamente, em vez de um espaço que dispõe seus elementos ao olhar. O que vemos são padrões e emblemas que, compreendidos como linhas e planos, buscam estruturar-se na perspectiva como se faria com elementos de uma pintura verossimilhante. A forma, portanto, denuncia uma contradição flagrante entre sistemas de valores. Isso reforça a ideia de uma transformação anunciada pela ascensão da xilogravura no gosto japonês. Há ainda outras pequenas dissonâncias, como a escala dos elementos mais realistas, que nem sempre se ajusta à estruturação da perspectiva. Isso confirma que é disciplina estranha e ainda não completamente integrada à criação. Por fim, o vento, que carrega as folhas e se contrapõe à estabilidade do Monte Fuji, pode ser visto apenas a partir de seus efeitos. O vento revela haver algo que escapa ao potencial do meio de controlar através das linhas, de estilizar e de idealizar: algo irredutível. A esse vento, mesmo que passageiro, estamos submetidos. Ele revela na imagem, quanto aos problemas da vida diária, a existência de grande pragmatismo, que pode ser compreendido tanto pelo bushido – o código de conduta que determina o dever – quanto pelo xintô – a religião ancestral do Japão cujo caráter íntimo é caracterizada por seu animismo. É nessa dualidade que devemos ver as imagens e práticas do dia a dia no Japão: toda coisa é dotada de densidade espiritual que deve ser percebida. Qual o dever do artista, então, em relação à perspectiva, esse modo estranho de estruturar e de experimentar o mundo? Deve-se buscar experimentar e controlar essa forma, agregando a perspectiva à tradição japonesa?6 A resposta é sim, duplamente sim. As imagens populares e comerciais do Ukiyo-e, do mundo flutuante, devem ser compreendidas como lugar no qual o controle do olhar encontra a densidade O mesmo dilema que caracteriza a disseminação da fotografia no Japão a partir de 1948. Yuichi Takahashi, pintor e gravador, resume a atitude do artista, que poderíamos relacionar à de Hokusai: “Um amigo me enviou uma litografia europeia por volta de 1850, e, quando a olhamos, percebemos que representava um maravilhoso modo de expressão. Imediatamente decidimos aprender essas técnicas, mas não havia ninguém para nos ensinar nem material para se estudar; portanto, trabalhamos dia e noite para descobri-las por nós mesmos” (Miki, 1997, tradução minha).

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espiritual do mundo dos fenômenos, tanto como efêmero e impactante divertimento quanto como admissão pragmática do imprevisível e do efêmero que nenhuma ordem – seja natural ou sobrenatural, individual ou política – pode desprezar. A partir desse encontro, podemos pensar a importante relação entre tradição e criação no oriente, que ocorre pela cópia de modelos. O ato de copiar incorpora não apenas a dimensão espiritual de sujeito e objetos, mas também uma dimensão empírica – os acidentes, o potencial do criador, a tinta e mesmo os instrumentos competem para infundir ao produto sua qualidade particular. Vemos que determinados objetos da cultura japonesa – espadas e armaduras, por exemplo – são nomeados, o que revela serem excepcionais. Sua historicidade os torna ideais, e o fato de serem ideais os torna históricos. Nesse sentido, o Japão é terreno particularmente fértil para se pensar a questão da cultura material, já que esse aspecto excepcional nunca está na explicitação visível que caracteriza a imagem dos objetos, mas sempre em seu refinamento depurado e profundo – em outras palavras, essencial, o que explica seu encontro, nesse momento, com o modernismo europeu. Assim, o que flutua no mundo não é passível de desprezo, mas carente de uma criação que revele a espiritualidade subjacente a toda coisa e a todo sujeito, que a ela humildemente se igualam. Se a questão de uma leitura da materialidade das imagens de Hokusai passa pela compreensão de uma clara – ainda que inicial – opção pela imagem em contraste com uma densidade espiritual conferida a cada objeto e prática, ao tratarmos da Grécia de um período histórico mais afastado, a questão da materialidade assume maior importância. A materialidade da obra, as marcas de seu uso, a reconstituição do sítio e a documentação decorrente de pesquisas anteriores talvez sejam o único modo de compreender o lugar do objeto na cultura – ou melhor, somente é possível reconstituir o objeto enquanto se reconstitui a cultura, e, nesse caso, a distância torna a diferença em relação ao pesquisador mais evidente. A Grécia antiga, ao contrário do Japão de Hokusai, não dota os elementos da natureza de uma espiritualidade própria. Ou melhor, o faz criando um princípio exterior ao objeto, divinizando-o. O mesmo vento que no Japão existe como desarranjo invisível das relações, revelando a relação entre controle, prazer e pragmatismo, na Grécia será figurado, materializado. Dota-se o vento de personalidade de modo a constituir uma ordem superior. O natural, assim, torna-se sobrenatural, enquanto

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o invisível, para tornar-se visível, humaniza-se. Desse modo, o vento não se torna apenas uma divindade, mas várias. A pluralidade de qualidades dos ventos – temperaturas, períodos, direções, humores – é equiparada ao temperamento humano específico que as caracterizará. Mais do que fábulas específicas, é a imagem que define sua integração à mitologia. Vemos, então, um agrupamento de iconografias dos ventos como divindades fixado nos frisos escultóricos da Torre dos ventos, de autoria de Andronikos de Kyrrhos. A Torre é um dos mais conservados monumentos de toda a ágora romana de Atenas (Camp, 2001). A partir do cruzamento dos relatos de Plínio, “o velho”, de Varro e das inscrições deixadas na ágora, podese limitar o período de sua construção entre 100 a.C. e 37 a.C. Essa datação a localiza no período da Grécia romana (146-31 a.C.), bem distante dos séculos IV e V, que produziram a arte e a cultura que chamamos de clássica, mais próxima de objetos como o Laocoonte e o altar de Pergamon. Nesse momento, a Grécia ao sul é dividida entre os sucessores macedônios de Alexandre, enquanto Atenas se torna província de Roma, que ascende comercialmente. A popularização e o crescimento do mercado romano no qual a torre se localiza, bem como sua construção e sucessivas melhorias, são indicativos dessa ascensão comercial, descrita por Spivey (1997) e Pollitt (1972). A Torre dos ventos consiste de edifício duplo feito em mármore, no qual um tambor octogonal é associado a uma pequena torre cilíndrica posicionada atrás do corpo principal da edificação. Apesar de seu nome corrente, sugerido pelos frisos que adornam seu exterior, a torre octogonal não foi lugar de adoração ou celebração dos oito ventos gregos.7 Em seu interior, abrigava uma clepsidra (relógio d’água) extremamente sofisticada que funcionava 24 horas por dia e indicava as estações, as datas e períodos astrológicos a partir do movimento de Os ventos são, em geral, representados como homens alados com roupas e cabelos desarrumados. Boreas é a principal figura mitológica dos oito ventos, junto a Zéfiro, e ambos constam das mitologias com histórias próprias, enquanto os dois outros ventos correspondentes aos pontos cardeais constam de lendas e elementos artísticos e decorativos de caráter cosmológico, como é o caso da Torre dos ventos. Boreas é representado por um homem velho e barbado que anuncia o vento com uma corneta; é o vento que sopra do norte tanto no inverno quanto no verão. Caecius, o vento nordeste, é representado como um homem barbado que carrega um escudo do qual derrama granizo. Apeliotes, que literalmente traduzido significa vindo do sol, é o vento leste, primaveril, simbolizado por um homem jovem que traz nas mãos frutas e grãos. Notus, o vento sul, é um homem jovem que carrega uma urna da qual se derramam chuvas. Lips, o vento sudoeste, é representado por um homem jovem que sopra uma nau. Zephyros é nome do vento oeste, um vento temperado e gentil a quem, em geral, são atribuídas as colheitas. Está simbolizado no friso por homem jovem e nu que joga flores. Euros, o vento sudeste, é um homem velho e barbado que traz escondido em sua capa um furacão. Sciron, o vento nordeste, é representado por um homem idoso que carrega um caldeirão, o que supostamente se interpreta como o vento que marca o fim do inverno.

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um painel anafórico ladeado de fontes.8 A torre cilíndrica associada ao edifício servia para guardar a água de um rio próximo, o que gerava pressão e material para o funcionamento do Horologium, palavra pela qual Vitrúvio e Varro9 nomeiam a torre. Além do relógio, a torre possuía em seu topo e em seu interior cataventos. Cada um dos oito frisos se situava sobre um relógio de sol que indicava não apenas as horas, mas os solstícios e os equinócios. Um último relógio de sol ficava posicionado atrás, na torre cilíndrica mais baixa, totalizando nove. A torre era acessível por portas em dois de seus lados,10 originalmente adornadas por coberturas sustentadas por colunas. Tratamos, portanto, de edifício que servia como relógio público para a população de Atenas, particularmente para os comerciantes e compradores do mercado, o que explica sua altura (14 m) e a presença de frisos e relógios em todos os oito lados. A presença de frisos não o situa na dimensão religiosa da arte grega, já que estes são posicionados como decoração, e no exterior em relação ao relógio, que é central a todo o projeto. Não se trata de templo, ainda que muito posteriormente11 a torre tenha sido utilizada para rituais de dervixes (durante a dominação turca da Grécia) e mesmo como igreja católica, o que é atestado por gravuras e marcas internas na torre e justificado por sua centralidade e espacialização imponente. O que se pode interpretar é a perda da força da religião grega (decadência completa do animismo, que é atuante no dia a dia japonês sustentado por religião de caráter íntimo) e sua substituição pela ciência, apresentada como outro modo de organização do sobrenatural, organização espetacular que é constituída pelo gênio humano e, mais, é pública, exposta à demonstração objetiva. “O disco possui gravação com mapa celestial em projeção estereográfica, mostrando todas as estrelas e constelações, do polo norte celestial até o sul do Trópico de Capricórnio. Entre estes há um círculo com a constelação zodiacal, com buracos nos quais se posicionavam, a cada dois dias, imagens do sol segundo a época do ano” (Noble e Price, 1968, pp. 351-2, tradução minha).

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Marcus Vitruvius Pollio (c. 80-70 a.C. – c. 15 a.C.), romano, é a grande fonte de informação sobre a arquitetura clássica. Ele menciona a torre no livro VI de De arquitetura. Marcus Terentius Varro (116 a.C. – 27 a.C.), romano, descreve a torre brevemente no terceiro livro do De re rustica.

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Há indicação, a partir do exame do mármore da torre em trabalho de campo, que uma das portas ficava fechada, enquanto a outra ficava aberta o tempo todo, dia e noite, o que fornece uma primeira dimensão do uso da ágora e do papel da torre.

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A análise da torre deve retornar a duas questões importantes sobre o problema de uma cultura material e sua visada. Em primeiro lugar, qualquer análise se afirma a partir da qualidade e da sofisticação do trabalho de campo, que deve considerar, nas marcas, a historicidade do artefato – desvelando as modificações de seu uso. Depois, é preciso considerar como a Torre dos Ventos, como artefato, problematiza alguns conceitos estruturantes da história da arte: não é obra, mas um aglutinado de sucessivas construções que se acumulam, tendo como modelo o palimpsesto; não possui estilo, pois não se constitui como unicidade; e, sobretudo, não possui autoria, não sendo apropriado falar diretamente de intenção e criação como dispositivos.

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Do mesmo modo, não está propriamente em questão o caráter épico ou ético, mas o caráter de informação, de espetáculo e de mentalidade. Sua principal função no espaço público é informar. A informação é dada publicamente e, como todo sistema que informa, busca unificar e homogeneizar um código ao qual atribui determinado sentido e valor. O lugar da Torre dos Ventos está bem definido no funcionamento da pólis, equilibrada entre o espaço nobre da acrópole – no qual se desenvolviam a arte enquanto forma canônica, a religião e as instituições da democracia ateniense – e o espaço mais comercial da ágora – caracterizado pela circulação de pessoas e mercadorias, mais do que de valores. O arsenal decorativo complementa a função do edifício: propicia-se informação de um determinado modo, constituindo valor. Nesse sentido, a indicação de que era preciso ressaltar a importância do lugar para os comerciantes e a questão de gosto são determinantes. O uso de mármore, os dois pórticos, o cuidado e o tamanho dos acabamentos,12 bem como todo o aspecto decorativo da clepsidra reconstituída arqueologicamente, revelam a necessidade de impressionar. Essa necessidade se reafirma nos frisos. Eles materializam, como iconografia dos ventos, as situações nas quais a população que frequentava o mercado sofria sua ação. Vemos nos ventos toda uma fábula: as dificuldades de se transportar pelo mar, a dependência dos elementos, as diferentes estações. Esse caráter pedagógico persiste na repetição das poses, dos corpos e vestimentas dos ventos, que fazem pensar em tipos de uma mesma figura. Evidentemente, o problema da formação dos frisos não é a inovação, a ação, seu aspecto sensual, fábula de caráter heroico. O problema não é o da construção de elementos particulares, mas de sua inteligibilidade como conjunto. A Torre dos ventos, portanto, não é apenas relógio, considerando que esse tempo cotidiano, das horas e dos dias, é situado nas estações e nos movimentos dos astros. Percebe-se que o interesse em representar o cotidiano depende de uma requalificação transcendente desse cotidiano. A torre, na verdade, refere o espectador ao tempo e ao espaço – integra, através de sua função espetacular, o sujeito ao cosmos, fazendo com que o comércio e todas as operações que envolve sejam enobrecidas. A iconografia dos ventos representa, junto aos outros elementos da torre, uma totalidade cosmogônica,13 bastante em moda no período e sobretudo no Descritos exaustivamente no artigo de Henry S. Robinson (1943), em que vemos um uso exemplar do conceito de cultura material no âmbito de uma análise arqueológica. Percebe-se uma nítida diferença em relação ao caráter interpretativo da escrita.

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Os detalhes de uma pesquisa de campo que reconstituiu, a partir dos indícios, o mecanismo específico do relógio estão descritos no já citado artigo de Noble e Price (1968).

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gosto da sociedade romana. O conjunto de relógio e disco afirma que essa totalidade pode ser dada pela ciência: aquilo que está além pode ser percebido e compreendido quando é disposto pelo engenho humano no intrincado mecanismo de fonte/relógio/disco/calendário. O prazer reúne a razão aos sentidos como espetáculo. Entretanto, no exterior da torre, no conjunto de frisos, relógios e cata-vento, essa totalização se mostra heterogênea. A definição do dia mais longo, registrada sob o friso no relógio de sol, por exemplo, depende de teorização. Esta é condição necessária para o deslocamento no oceano: o equinócio e o solstício, desde Homero, referem o barco ao poente e ao nascente, definindo os pontos cardeais a seguir para navegar de modo seguro.14 Esses oito pontos cardeais, no entanto, relacionam o tempo a uma espacialização particular. Os ventos retratados nos frisos associados aos relógios de sol referem-se à direção geográfica que tem origem na localização particularizada das massas de água e terras da Grécia – os ventos mudam dependendo de onde se está. Como caracterizar um vento como vento sul, ou norte, se nossa posição muda, se estamos bloqueados pela geografia? Cada um dos oito ventos, na verdade, refere o espectador à espacialização definida de modo pessoal, a partir do corpo. O exterior da torre e sua totalidade, nesse sentido, seriam a totalidade percebida, em oposição àquela do interior da torre, definida pela ciência. A torre parece, em seu exterior, existir para o corpo e como corpo; aí é definida a partir do conceito de unidade do corpo percebido na cidade. Dessa maneira, convivem diferentes concepções que relacionam o indivíduo a essa totalidade do tempo-espaço, mas percebe-se o valor crescente que é dado à ciência. Podemos ler tal paradoxo na questão explicitada por Panofsky: A percepção não conhece o conceito de infinito; desde o princípio está confinada a certos limites espaciais impostos por nossa faculdade de percepção. E, em conexão com o espaço perceptivo, não podemos falar tampouco sobre homogeneidade tanto quanto sobre infinito. A base da homogeneidade do espaço geométrico é que todos os seus elementos, os pontos que se articulam nele, são meras determinações de posição, não possuindo conteúdo independente fora dessa relação, esta posição que ocupam em relação aos outros (Cassirer apud Panofsky, 1991, p. 30).

Nesse momento histórico, a rosa dos ventos se transformou para conter oito direções, tal como definida por Aristóteles.

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Tempo e espaço são representados pelo modelo da ciência; ela traz a verdade objetiva, que se verifica. No entanto, a ambição da torre é também impressionar como espetáculo e representar o tempo-espaço desde sua dinâmica mais comezinha até sua organização cósmica. Deseja-se, em acordo com o aspecto público da instituição de valores na sociedade grega, essa homogeneidade própria à verdade. Os frisos parecem servir para decorar a verdadeira função da torre, convivendo, por exemplo, com o relógio de sol que marca o equinócio e o solstício. Contudo, os ventos antes complementam o funcionamento da torre, já que o aparato da ciência se mostra limitado para lidar com aquilo que é imponderável – temos o sentido das horas e do cosmos, mas não em sua totalidade. Nesse caso, o vento, como elemental do ar e parte da criação, apresenta-se figurado, como se não fosse sem ritmo, sem visibilidade, sem direção, sem previsão possível. Os ventos, assim, indicam que persistem nos espectadores, como questão não resolvida por essa verdade, tanto a vivência perceptiva do cotidiano quanto o mito,15 reunidos em uma só figura pela construção. A mitificação, portanto, esconde o desejo de controle e o exibe na contramão do espetáculo do relógio. Ora, como encarar hoje essa figura dos ventos que vinculam, por essa dupla via, corpo e mundo? Isto é, o que é mito, como se relaciona com o corpo e qual a figuração possível dessa vinculação? Se essa vinculação se dá em um presente muito mais complexo que escapa à possibilidade deste texto, é interessante indicar, por um lado, o agrupamento teórico do corpo como lugar de resistência contra a homogeneidade formulada pela palavra, pela teoria e particularmente por aspectos das teorias das formas e da percepção que buscam alienar o sujeito. Por outro lado, percebe-se um esvaziamento social da densidade simbólica que caracteriza o mito, substituída pela interpretação dos significados provenientes de dados materiais. Devemos nos lembrar, quanto à pertinência da inclusão das figuras míticas, da relação entre verdade e mito nessa Grécia romana. Podemos tomar como modelo duas fontes: Euhemerus de Messina e Aristóteles. Para Euhemerus, existem deuses eternos e existem outros, os heróis, que se tornam deuses. Seu ponto de vista indica uma tentativa de reinterpretar racionalmente a religião grega, esvaziada por sua falta de sistematização e pelo uso político de seus elementos. Para Euhemerus, o mito define uma verdade histórica sagrada e pode ser interpretado como tal. Nesse sentido, o mito possui relação extremamente positiva com a verdade. Isso pode ser lido em acordo com a concepção aristotélica descrita na Poética: o mito expresso pela arte revela uma verdade devida, ainda que não aquela ocorrida.

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O mito, como bem indica a obra de Walter Benjamin, torna acessível uma reminiscência humana talvez contemporaneamente indesejada. Nesse sentido, mesmo na aderência japonesa à imagem e na figura que transparece do controle, vemos prazer e espiritualidade latentes, ambos passíveis de celebração e encarnação como mito. Na imagem da torre grega, ao contrário, vemos o abandono da importância do mito; não há como concebê-lo na encarnação se se busca a homogeneidade racional da verdade científica. Seu esvaziamento, no entanto, não faz com que desapareça, já que suas questões nunca se mitigam, mas faz com que conviva desconectado da racionalidade e da ciência. O mito não existe, entretanto, fora da encarnação, fora da presença que busca promover no outro, fazendo-se reconhecer, fazendo o sujeito relembrar sua humanidade; é sempre material e imaterial. Como o vento, irrompe, enfim, sem ritmo na anacronia histórica, sem visibilidade, encarnado porém velado, sem direção, dependente de um aparecimento, sem previsão possível, sem teleologia.

Referências CAMP, John M. The archaeology of Athens. New Haven: Yale University Press, 2001. DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant le temps. Paris: Les Éditions de Minuit, 2000. MIKI, Tamon. The advent of photography in Japan. Tóquio: Tokyo Metropolitan Museum of Photography, 1997. NOBLE, Joseph V. e PRICE, Derek J. de Solla: “The water clock in the Tower of the Winds”. American Journal of Archaeology, 1968, v. 72, n. 4, pp. 345-55. PANOFSKY, Erwin. Perspective as a symbolic form. Nova Iorque: Zone Books, 1991. POLLITT, J. J. Art and experience in classical Greece. Cambridge: Cambridge University Press, 1972. ROBINSON, Henry S. “The Tower of the Winds and the Roman market-place”. American Journal of Archaeology, jul.-set. 1943, v. 47, n. 3, pp. 291-305. SPIVEY, Nigel. Greek art. Londres: Phaidon, 1997.

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Obras-arquivos: o efêmero, a memória, a transversalidade

Luiz Cláudio da Costa UERJ

Andy Warhol manteve durante anos uma prática bastante elucidativa da questão que apresento. O artista mantinha uma caixa de papelão perto de seu local de trabalho onde jogava tudo que podia dispensar, incluindo contas, anotações e fotografias. Preenchida a caixa, Warhol a lacrava com fita adesiva. Ele chegou a colecionar seiscentas caixas, a partir da mudança da Factory, em 1974, de seu antigo endereço na Union Square West para a Broadway Avenue. As Time capsules foram expostas em 2005 numa exibição organizada pelo Andy Warhol Museum. Edward Ruscha publicou, entre 1963 e 1978, 17 livros, entre os quais Twenty six gasoline stations, em que conjugou fotografias e narrativas textuais, documentando e ficcionalizando os múltiplos aspectos da cidade de Los Angeles. Entre 1968 e 1972, Marcel Broodhaers desenvolvia e fechava sua ficção de um imenso projeto-arquivo Museum of Modern Art, Eagles Department, com 12 seções e uma diversidade de materiais e práticas artísticas, incluídas a pintura e a literatura. No mesmo ano em que Broodhaers terminava seu projeto, Christian Boltanski apresentava na Documenta 5, em Kassel, na Alemanha, o trabalho intitulado Mythologies individuelles, com o qual começava uma reconstituição autobiográfica e ficcional. Analiticamente estudado, um conjunto de obras de arquivo produzidas por artistas no Brasil poderia evidenciar três modalidades que, não sendo práticas puras, atravessam umas às outras em sua tendência à heterogeneidade. Uma primeira modalidade registra e organiza imagens-documento de situações do mundo e da vida, fabulando a existência em movimento. Rubens Gerchman (Valcanal, 1978), Luiz Alphonsus (Rio de Janeiro, 1975), Maria do Carmo Secco (Projeto, processo, progresso, 1976), Clovis Dariano (Eu, o mercado e os outros, 1972), entre outros, utilizaram o super-8, o 16 mm e o 35 mm para fazer esses “filmes documentais de artistas”, nos quais o real

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e a fabulação se entrelaçam ao ponto da indiscernibilidade (Cocchiarale e Parente, 2007). Vários artistas, a partir dos anos 1980, trabalharam com o vídeo com a intenção de fabular a vida documentada, como os parceiros de produção Kiko Goifman e Jurandir Muller (A cidade e suas histórias, 1998) e Maurício Dias e Walter Riedweg (Velocidade máxima, 2003). Uma segunda modalidade é a prática de apropriação e de reprocessamento de documentos da memória pública por meio de imagens preexistentes em arquivos individuais ou institucionais não produzidas originalmente para o contexto da arte, como fazem Eder Santos e Rosângela Rennó colecionando e deslocando imagens de seus contextos originais e problematizando seus novos ambientes e suportes. Talvez tenha sido o filme Semi-ótica (Antônio Manuel, 1975) o que mostrou esse caminho do arquivo, conjugando imagensregistros de pessoas comuns – entre as quais algumas assassinadas – com fichas catalográficas identificando apenas seu nome, idade e cor. Uma terceira modalidade do efeito-arquivo presente na produção contemporânea aparece com os registros feitos em contextos de trabalhos impermanentes de arte: Hélio Oiticica, Arthur Barrio, Anna Bella Geiger, Paulo Brusky, Tunga e Ricardo Basbaum, entre outros. A arte contemporânea se interessa pelos objetos e acontecimentos do mundo e, como argumenta Arthur Danto (2005), desde Duchamp e especialmente após a pop art, insiste nessa produção um desejo de transfigurar o lugar-comum, transformando artefatos do cotidiano em obras de arte. Há algo singular, porém, nessa vontade no que diz respeito ao tratamento dos objetos, materiais e imagens como documentos, arquivos-texto do mundo partilhados com um espectador-leitor distraído. Com a obra processual e impermanente, que exige o registro de sua produção perecível, surge a necessidade desse tipo de tratamento de qualquer coisa do mundo como matéria-documento para arte. Cristina Freire (2006) ressalta que o arquivo, uma metáfora persistente na arte contemporânea, não é somente um espaço de armazenagem de documentos e obras, mas o mecanismo que revela por fragmentos um sistema de funcionamento. Mais que uma figura de linguagem, o arquivo é antes um dispositivo, uma tecnologia que pressupõe práticas e discursos e que tem recebido o investimento crítico de um grande número de artistas na contemporaneidade. Rosângela Rennó, com seus projetos Arquivo Universal e Biblioteca, ambos em expansão desde 1992, é um exemplo inequívoco. Entre outros exemplos menos evidentes, poderíamos citar os projetos vinculados ao programa NBP, especialmente o Sistema Cinema, de Ricardo Basbaum.

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Para aludir a outro exemplo pouco explícito, sem dar o devido tratamento da análise, lembro a série de Leila Danziger iniciada em 2004, Diários públicos. A artista plástica carioca coleciona jornais e emprega um método extrativo para apagar as palavras do noticiário, conservando algumas de suas imagens originais. Com carimbos, Danziger grava frases e por vezes versos de Paul Celan, Drummond, Cecília Meireles, Orides Fontela. O tempo instantâneo e efêmero das notícias começa a flutuar suspenso nos Diários de Danziger, atingido pelo gesto súbito que extrai as palavras não desejadas. A velocidade com que os momentos são substituídos no noticiário é aniquilada pela remoção que apaga o impresso. Ao mesmo tempo que abre as possibilidades expressivas do arquivo-jornal e estabelece diálogos com o campo de uma escritura exterior e distante das artes plásticas – a literatura –, o trabalho de Danziger explicita a vocação própria dos dispositivos cotidianos das comunicações: o esquecimento. Esse interesse em criar espaçamentos, divisões, partilhas no interior de dispositivos e sistemas de conhecimento – sejam da arte, das comunicações ou do saber em geral – não é recente. Nos anos 1960, os artistas do Fluxus conceberam a arte como um imenso armazém, colecionando objetos cotidianos de toda sorte. No Brasil, ao final dos anos 1950, os artistas neoconcretos problematizavam o quadro e a pintura. Quase dez anos mais tarde, o evento Apocalipopótese reuniria vários artistas no Aterro do Flamengo sinalizando a crise do mecanismo da exposição em espaços de galeria. O colapso da obra como presença plena, a inclusão do contexto como elemento da obra, a ampliação das bases da percepção para abranger o corpo, a dúvida sobre a essência da arte, a suspeita sobre a ontologia física dos suportes, tudo isso conduziria os artistas ao questionamento do objeto de arte. Em consequência, surgiriam não só as ações e as intervenções, mas também os restos deixados como documentos que virtualmente seriam guardados: papéis, fotocópias, registros mecânicos em imagens, fragmentos materiais, objetos. O que teria sido feito do volume residual do papel cortado e abandonado sobre o chão após a ação de Lygia Clark, Caminhando (1963)? Dar vida aos resíduos faria parte da nova poética do arquivo. O cinema, a fotografia e o vídeo auxiliariam – enquanto suporte técnico e material e do lugar de um observador-testemunho – na documentação daquelas ações transitórias. Potencializando o lugar do outro da criação, a sobra sinalizava uma sobrevida. Os resultados em imagem das ações realizadas começariam em breve a aparecer de dois modos diferentes: como simples registro para

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a memória do trabalho efêmero e como trabalho de autonomia relativa, na medida em que, editadas em vídeo ou em livro, as imagens remetiam a uma ação artística passada, ao mesmo tempo que alçavam uma independência poética. Os filmes Eat me, a gula ou a luxúria (Lygia Pape, 1976), Elements (Iole de Freitas, 1972), Costura de mão (Marcelo Nitsche, 1975), Abertura I (Artur Barrio, 1976), entre outros, mostram o interesse de registrar experiências diretas com o corpo, assegurando a clara ambiguidade entre o documento e a obra. Anna Bella Geiger (Passagens, 1975) e Letícia Parente (Marca registrada, 1975) fizeram experiências semelhantes com a chegada do vídeo portapack ao Brasil em meados dos anos 1970. Atualmente, parece ainda interessar a vários artistas envolvidos com as tecnologias comunicacionais e com as técnicas de reprodução a conjugação problemática dos suportes materiais com a imaterialidade da imagem ou da palavra, agregando-os em espaços expositivos. Algumas instalações de Brígida Baltar (“De repente é verde o sertão”, Sertão Contemporâneo, Caixa Cultural, 2008), de Ricardo Basbaum (Galeria Cândido Portinari, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2003) e de Lívia Flores (Agora/Capacete, 2000) mostram essa construção de pequenos arquivos onde imagens-registro podem se unir a palavras, desenhos e objetos. Arquivos existem desde a Grécia antiga, mas os arquivos nacionais surgiram com a Revolução Francesa, mais precisamente em 1790, na França. Três anos depois, o Louvre abriria sua coleção ao público e, em 1819, seria a vez do Museu do Prado, em Madri.16 Se a enciclopédia desejava conservar todo o saber de uma nação, o museu, no campo das belas artes, pretendia preservar a totalidade do acervo artístico e produzir sua história da arte (Crimp, 2000). As práticas artísticas autônomas no século XIX se constroem no arquivo – biblioteca ou museu – sob o signo da autorreferência, uma relação nova da pintura ou da literatura consigo mesma que manifesta a existência dos museus e das bibliotecas ao mesmo tempo que exprime o parentesco entre quadros, por um lado, e romances, por outro. É o próprio Foucault quem afirma: Flaubert é para a biblioteca o que Manet é para o museu. Eles escrevem, eles pintam, em uma relação fundamental com o que foi pintado, com o que foi escrito – ou melhor, com aquilo que da pintura e da escrita permanece perpetuamente aberto. Sua arte se erige onde se forma o arquivo (2006, p. 81). Para um breve entendimento da história dos museus, ver “Apontamentos sobre a história dos museus”, de Letícia Julião, disponível em http://www.museus.gov.br/downloads/cadernodiretrizes_ segundaparte.pdf. Ver também Suano (1991).

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Enquanto a literatura e a pintura remetiam a esse saber infinito de um mesmo campo, a fotografia teve papel fundamental para as poéticas críticas recentes na produção de um efeito-arquivo que permitiu deslocar sentidos e afetos estratificados em gêneros na direção de uma comunicação transversal entre suportes e linguagens. Mas, se o arquivo visual da fotografia foi absorvido pela arte, ele teve antes motivos de suscitar o interesse da instituição policial. A análise que Tom Gunning faz do processo de constituição da “sistematização de identificação fotográfica de criminosos do século XIX” pode contribuir para a compreensão dessa formação cultural que, com efeito, a fotografia ajudou a fundar: o arquivo. O sistema policial juntaria a antropometria, a precisão ótica da câmera, um vocabulário fisionômico refinado e a estatística. O estudo de Gunning mostra, porém, que faltava ainda ao sistema de identificação fotográfica a inclusão em um arquivo de informações. Citando literalmente as palavras de Alan Sekula, Gunning afirma que “o artefato central desse sistema não é a câmera, mas o arquivo” (2001, p. 58). Seria preciso expor – para abrir e partilhar – os sistemas de identificações e de remissões autorreferentes, de modo a buscar um fora sempre mais distante. Essa é a vocação da arte contemporânea, o que ela faz a partir do fundamento mesmo do saber constituído na modernidade, o documento – a condição de possibilidade para o discurso moderno da história. É relevante para essa reflexão, entretanto, lembrar que, a partir da Escola dos Annales, o discurso histórico sofreu uma inflexão radical na medida em que a ilusão positivista do documento como prova se rompeu. Segundo Jacques Le Goff (1984), a história havia descoberto o que transformava o documento em monumento: sua identificação pelo poder. Como esclarece Le Goff, “no limite não existe um documento-verdade. Todo documento é mentira” (1984, pp. 103-4, v. 1). Isso significa que toda apropriação é uma leitura e provém de interesses que acarretam definições éticas. É nesse sentido que a partilha paradoxal entre verdade e mentira, atualidade e virtualidade, própria ao documento, tem interessado à arte contemporânea, essa potência fabuladora do documento. Marcel Duchamp parece ter condenado a obra de arte a uma efemeridade com seus ready-mades e, desde as vanguardas, a arte não acredita mais senão em efeitos sensíveis de duração limitada. Discutindo essa impermanência, Harold Rosenberg problematizou as questões radicais de Duchamp através da prática insistente da circulação de obras em reproduções. O autor

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argumenta que “o principal atributo de uma obra de arte em nosso século não é a imobilidade, mas a circulação” (2004, pp. 89-97). Segundo ele, o trabalho de arte na contemporaneidade assume “seu outro ser espectral”, aparecendo em livros de arte, em catálogos de exposições, na televisão e no cinema. De modo ácido, Rosenberg conclui seu artigo afirmando que a obra de arte sobrevive no mundo das reproduções, mas separada de seu corpo físico. Para o historiador, o objeto de arte tende cada vez mais a diluir-se em suas reproduções e nas ideias preconcebidas sobre seu significado. Aquilo que Rosenberg parecia não perceber naquele artigo incluído em o objeto ansioso é que a obra de arte na contemporaneidade inverteu seu destino em direção à vida, promovendo uma imensa capacidade de sobrevida a partir de uma tecnologia voltada para a partilha, para a divisão e a abertura. Investindo em uma diversidade infinita de materiais e suportes, a obra tem como objetivo múltiplas destinações e testemunhos. A apropriação, a reprodução, a coleção, a tradução e a transferência multiplicam suas atualizações possíveis e permitem uma circulação que não dilui seu poder estimulante. Ao contrário, quando esses processos são simultâneos à obra – e não posteriores –, essas práticas e tecnologias artísticas potencializam os sentidos dela e as ações poéticas na recepção. A obra-arquivo ou o efeito-arquivo de certas obras é uma modalidade discursiva de natureza gráfica – o livro –, cinemática – o vídeo – ou cenográfica – espaço de galerias – por meio da qual a arte pode envolver-se criticamente com a cultura massiva, a sociologia e a antropologia, entre outros campos do saber. Colecionando não só o comum, mas também o dispensável, o documento, bem como suas fantasmagorias e discursos, a poética do arquivo articula os resíduos e os transfigura não para dar um sustento à memória da cultura, mas para expor a brecha que permite ao visível escapar às amarras das visibilidades e dizibilidades17 que o controlam.

Ao escrever sobre a noção de saber em Foucault, Gilles Deleuze (1991) utiliza as formulações da linguística de Hjelmslev, conteúdo e expressão, cada qual com sua forma e sua substância. O significado e o significante são noções da linguística estrutural rejeitadas nas formulações de Deleuze. Assim o filósofo traduz a noção de saber para Foucault: formações históricas constituídas de conteúdos – as visibilidades (a prisão é a forma do conteúdo, e o prisioneiro, a substância do conteúdo) – e de expressões – as dizibilidades (o direito penal é a forma da expressão, e a delinquência, a substância da expressão). Assim, Deleuze esclarece que, enquanto o direito penal como forma de expressão define um campo de dizibilidades (os enunciados de delinquência), a prisão como forma do conteúdo define um local de visibilidade (a arquitetura panóptica, local de onde é possível ver tudo sem ser visto).

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Referências COCCHIARALE, Fernando e PARENTE, André. Filmes de artista: Brasil 1965-1980. Rio de Janeiro: Contra Capa/ Metropolis Produções Culturais, 2007 (catálogo). CRIMP, Douglas. On the museum’s ruins. Cambridge: The MIT Press, 2000. DANTO, Arthur. A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2005. DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1991. FOUCAULT, Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. (Coleção Ditos e Escritos, v. 3). FREIRE, Cristina. Arte conceitual. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. GUNNING, Tom. “O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema”. In CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2001. JULIÃO, Letícia. “Apontamentos sobre a história dos museus” (disponível em http:// www.museus.gov.br/downloads/cadernodiretrizes_segundaparte.pdf, s. d.). LE GOFF, Jacques. “Documento/monumento”. Enciclopédia Einaudi: memória – história. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1984, v. 1-2. ROSENBERG, Harold. O objeto ansioso. São Paulo: Cosac Naify, 2004. SUANO, Marlene. O que é museu. São Paulo: Brasiliense, 1991. (Coleção Primeiros Passos).

Legendas das imagens a serem utilizadas 1. Caminhando. Lygia Clark, 1964. Foto Beto Felício. Catálogo Salas Especiais – Hélio Oiticica/Lygia Clark. XXII Bienal Internacional de São Paulo. Museu de Arte do Rio de Janeiro/ Museu de Arte Moderna da Bahia. 2. Diários Públicos (resíduo-obra). Leila Danziger, 2008. Foto da artista, arquivo pessoal. 3. Time Capsule 21. Andy Warhol. Web Project. The Education Department, The Andy Warhol Museum, 2005 (disponível em http://www.warhol.org/tc21). 4. Time Capsule 21 (conteúdos).

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A constatação de Duchamp: o estatuto do objeto no limiar da imaterialidade Rafael Cardoso UERJ

Segundo um relato muito conhecido, os artistas Marcel Duchamp, Constantin Brancusi e Fernand Léger visitaram uma feira aeroviária em Paris em 1912. Em determinado momento, o trio parou diante de uma hélice de avião, lisa e reluzente em sua sólida geometria polida. Reza o relato de Léger que Duchamp teria afirmado aos companheiros que a pintura estava liquidada, porque nunca conseguiria produzir nada superior àquele objeto (Sanouillet e Peterson, 1973, p. 160). A suposta morte da pintura já havia sido anunciada muitas vezes àquela altura, claro. Contudo, foi a primeira vez que um artista de renome fez o elogio de um artefato industrial de modo tão enfático: não como algo próximo ou equivalente a uma obra de arte, mas francamente superior. A história, mesmo admitindo versões variantes e até dúvidas quanto à sua veracidade, é bene trovata, um achado insubstituível, pois resume com concisão e clareza dramática o dilema que em breve lançaria as naus do modernismo rumo à sua conquista de Troia. Pouco depois desse episódio, o então pintor Duchamp abandonaria o ofício em que despontava e, em 1913, produziria seu primeiro objet trouvé, a Roda de bicicleta. Em seguida, vieram os ready-mades propriamente ditos – o Secador de garrafas (1914) e a pá de neve Em antecipação ao braço quebrado (1915). Em 1917, ele enviou para uma exposição artística um mictório, batizado de Fonte e assinado “R. Mutt”, um dentre vários pseudônimos cômicos dos quais passou a lançar mão.18 Ao fazê-lo, anunciava ao mundo que sua arte residia não mais em qualquer capacidade de se expressar por meio de uma técnica ou linguagem ou material, mas na ideia e no gesto por trás do enunciado. Nascia a arte conceitual – ainda sem esse nome –, e instaurava-se o paradigma que hoje rege boa parte da produção artística Para a discussão exaustiva do inexaurível Duchamp, ver De Duve, 1991.

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dita contemporânea. Ao mesmo tempo – e isto costuma ser esquecido, dependendo de quem conta a história –, o célebre ato de Duchamp afirmava a perfeição daquele desprezado objeto de uso elevado à condição de obra de arte. Se não era propriamente belo como a hélice de avião – de material e emprego nobres, proporções elegantes e aparência agradável –, o mictório era, pelo menos, admirável por seu acabamento e intrigante em termos visuais. Era um objet trouvé – literalmente, um achado –, objeto encontrado pronto pelo artista e cuja plenitude era descoberta por seu olhar. Reagindo ao mesmo incidente mítico da feira aeroviária, o escultor Brancusi optou por trilhar o caminho oposto. Era natural que o fizesse, pois ele carecia da mente analítica do enxadrista Duchamp, sendo “metade camponês astucioso e metade deus verdadeiro”, no divertido juízo de Peggy Guggenheim (1980, p. 211) a seu respeito. Ainda segundo o já citado relato de Léger, o primeiro a reagir à hélice fora Brancusi, o qual teria exclamado: “Isto sim é escultura! Daqui para frente, a escultura deve ser nada menos do que isso”. O escultor entregou-se ao desafio de criar com as próprias mãos uma obra de arte tão perfeita quanto aquele artefato tecnológico – tarefa que o ocuparia ao longo da próxima década. A culminação de seus esforços veio com a escultura Pássaro no espaço (1923), a primeira de uma série de peças abstratas executadas em mármore e em bronze com a sólida geometria polida que havia atraído o olhar dos três artistas alguns anos antes. Diante da constatação duchampiana de que a pintura nunca poderia produzir algo à altura da hélice, a alma falsamente ingênua de Brancusi resolveu demonstrar que a escultura, sim, podia fazê-lo. E o conseguiu, com uma força demiúrgica e uma literalidade mental que fazem jus ao ditame da terrível Peggy. A comparação entre as obras de Duchamp e Brancusi não é novidade, pelo menos para os historiadores da arte. A base conceitual para essa aproximação foi estabelecida em 1977 por Rosalind Krauss no ensaio “Forms of ready-made: Duchamp and Brancusi” (1981).19 Três décadas depois de sua publicação, sua análise continua convincente, o que é um tributo à qualidade da reflexão e à originalidade do pensamento que o gerou. Porém, o mundo mudou muito – em especial no que diz respeito às relações entre materialidade e imaterialidade. A discussão empreendida a seguir é proposta no espírito de diálogo através do tempo com o texto de Krauss, retomando Ver também, entre outros, as contribuições mais recentes de Singerman (2002, pp. 96-121) e Nixon (2007, pp. 3-5).

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questões e até debatendo alguns pontos, mas apenas com o intuito de atualizar e ampliar suas implicações. As reações opostas de Duchamp e Brancusi ao dilema da hélice constituem um bom ponto de partida para discutir a relação entre arte, design e artesanato – uma das grandes questões pendentes do século XX no domínio da cultura material e visual. No mundo atual, continua a ter sentido a separação dicotômica entre estético e utilitário, forma e função? O que diferencia a obra de arte da melindrosa mercadoria, e qual a distinção entre imagem e artefato? Hoje, com o pleno ingresso na era da informação e a crescente importância de meios imateriais na arte e no design, encontramonos no limiar de um novo paradigma para essas áreas, dentro do qual precisam ser reavaliadas as distinções presumidas que as separam. Escala de produção, processos e técnicas, mídias e materiais misturam-se de maneira inimaginável há cem ou duzentos anos, quando a separação entre arte, artesanato e design foi codificada para o mundo moderno. Hoje, artistas fazem vídeos, designers fazem vestidos e artesãos fazem reciclagem de lixo industrial. O que significam, nesse cenário, os termos artista, artesão ou designer? Seriam nada mais do que marcas de pertencimento a um determinado agrupamento social – rótulos para uma espécie de autodeclaração de cor ideológica? O presente texto propõe-se a examinar essas questões, discutindo as implicações das mudanças técnicas e culturais dos últimos 25 anos para a compreensão do objeto tridimensional e seu papel na era da informação.20 Conceitos fundamentais como corporeidade, acabamento e fruição vêm sofrendo modificações históricas que precisam ser consideradas dentro de um panorama de codificação sempre crescente das aparências e subordinação explícita de noções tradicionais de forma a estruturas mais profundas de linguagem.

Fonte é o que eu chamo de fonte Voltemos à Fonte, resposta definitiva de Duchamp à sua própria constatação da insuficiência da arte, na concepção tradicional do termo, perante a evolução industrial e tecnológica. Dentre todos os artefatos industriais disponíveis, a escolha do mictório foi estratégica. Independentemente da “função” nada elevada que lhe fora reservada por indústria e comércio – aliás, abstraída dela propositadamente para colocá-la em uma exposição artística –, a suposta louça sanitária tornava-se passível Ver, a esse respeito, Cardoso (2010) e Dantas (2008).

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de ser examinada pelo crivo de questões formais de superfície, acabamento e materialidade. Nas palavras de Krauss: Porque a Fonte, com suas curvas e contracurvas em lustrosa louça branca, possui uma presença sensual que convida a uma resposta visual prevista para as obras de arte: uma resposta que tende a promover um exame analítico. [...] Porém, a Fonte frustra esse impulso analítico. Diante de um objeto ready-made, não podemos empreender nenhuma tentativa de decodificação formal (1981, p. 80).21

Em outras palavras, o mictório tem lá sua potência plástica, por assim dizer, mesmo que ela resida unicamente na mente de quem observa. O espectador pode enxergar no objeto o que desejar – inclusive, as interpretações eróticas e psicanalíticas tradicionalmente associadas à obra Fonte –, mas nenhum desses significados pode ser deduzido a partir de relações internas de superfície e estrutura, como seria habitual na escultura, e, muito menos, atribuído a uma intenção criadora de Duchamp. O verdadeiro significado da obra reside, mais uma vez nas palavras de Krauss, na intenção de “colocar sob escrutínio a própria ação da transformação estética” (1981, p. 80).22 Por que qualificar a louça sanitária com o adjetivo suposta, como fiz anteriormente? Um mictório é um mictório, diriam os pragmáticos com seu irritante bom senso. Será? Um mictório deitado, sem conexão com qualquer tubulação, sem condição de ser usado para urinar, e sem sequer ter servido a propósito útil em sua existência como produto, continua, mesmo assim, a ser um mictório? A ação de Duchamp surte dúvidas. Assinado e exposto, o mictório torna-se forma. Torna-se signo. Torna-se arte. Torna-se piada e tapa na cara dos valores vigentes. Torna-se enigma. Torna-se matriz da construção de uma estrutura conceitual e discursiva que vai muito além de sua singela materialidade. Torna-se fonte. Ele passa a falar de algo maior do que si próprio, não como representação ou remissão, mas como ruptura na cadeia constitutiva do senso comum.23 A inegável genialidade do gesto artístico reside na consciência de que a arte não pode ser reduzida aos objetos que gera; ela ocupa um campo “For the Fountain, with its shiny white porcelain curves and countercurves, has a sensuous presence that elicits one’s normal visual response to works of art: a response that tends to promote an analytic examination. [...] But the Fountain thwarts this analytic impulse. Faced with a ready-made object, we can make no attempt at formal decoding”.

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“To scrutinize the act of aesthetic transformation itself”.

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Pouco importa, aliás, se o objeto em exposição é o exato exemplar originalmente escolhido por Duchamp, como ficou demonstrado nos objets trouvés, assemblages e ready-mades que o artista reconstruiu ou reconstituiu ao longo dos anos.

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ampliado que envolve todo o sistema no qual estão inseridos obra, artista e usuários. Para muitos, ainda é estranho ouvir falar de espectadores ou visitantes de exposições artísticas como usuários. O gesto de Duchamp é responsável por nada menos do que isso: a ação revolucionária de retirar o visitante de sua posição mais ou menos passiva como espectador e lançá-lo à nova condição de participante. Confrontado com o objet trouvé, e mais ainda com o ready-made, o espectador é obrigado não somente a completar o sentido do enunciado artístico – o que é o caso com qualquer obra de arte exposta, mediante processos de recepção e cognição –, mas a atribuir esse sentido por si mesmo, o que é bastante mais complexo. Trata-se de uma arte pensada para uma sociedade fragmentada, plural e ligeiramente absurda, de acordo com os padrões herdados do mundo pré-industrial.

Qualquer cor, contanto que seja preto A ação de Duchamp encontra eco em outro acontecimento contemporâneo distante do campo estrito das artes. Ao contrário do que possa supor quem restringe suas leituras a livros de arte, o fato histórico mais importante do ano 1913 nos Estados Unidos não foi o Armory Show de Nova Iorque, mas o aperfeiçoamento da linha de montagem da fábrica de Henry Ford, em Detroit. Após anos de estudos e experimentação, os engenheiros da Ford finalmente conseguiram operacionalizar um sistema de rígido controle do processo de fabricação, extraindo o máximo de eficiência por meio de uma linha em fluxo contínuo que ditava o tempo e movimento dos operários. O resultado foi algo bem maior do que o aumento do volume produzido e a queda de preço por unidade, bases daquilo que seria batizado como produção em massa. O ritmo desumano da nova linha em movimento obrigou a Ford a aumentar em cinco vezes os salários pagos, com a finalidade de estancar a altíssima rotatividade de empregados que ameaçava botar essa engenharia toda a perder. Com o novo salário diário de cinco dólares ao dia, considerado extravagante à época, os operários capazes de resistir ao brutal regime de trabalho ingressaram em um novo patamar de prosperidade. Seu poder aquisitivo era tamanho que podiam até sonhar em comprar os automóveis, agora mais baratos, produzidos pela fábrica em que gastavam suas energias e seus corpos.24 Um deslocamento conceitual de tal ordem não ocorre sem surtir efeitos inesperados. O regime de trabalho da Ford, pensado inicialmente apenas Ver Batchelor (1994) e o capítulo 6 de Hounshell (1984).

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para garantir o bom funcionamento do processo produtivo, acabou por gerar um sistema de tal modo abrangente que foi batizado, por estudiosos posteriores, de fordismo, uma das principais construções ideológicas do mundo moderno (Harvey, 1989). O pacto mefistofélico não se limitou a altos salários em troca de trabalho abnegado; envolveu também a criação de uma rede de controle social que abrangia desde as condições de moradia dos operários até sua contínua avaliação moral e cívica. O êxito desse sistema ganhou tamanha repercussão que acabou definindo o tom do cenário social e político nos Estados Unidos durante a maior parte do século XX e gerou, por tabela, a denominação pacto fordista para descrever a ideologia de união entre Estado, indústria e trabalho em prol da geração de lucro e de patriotismo como metas interligadas. Na conta dos cinco dólares diários de Ford, entrava não somente a compra da força de trabalho, mas também da alma do nascente cidadão. A ação estratégica da Ford transformou seus operários em consumidores, de modo análogo à ação de Duchamp, que transformaria, em seguida, os espectadores de suas obras em participantes. Excluindose a coincidência no tempo, em que sentido, exatamente, justifica-se o paralelo entre Duchamp e Ford? Em termos filosóficos e políticos, suas ações surtiram efeitos contrários: enquanto a de Ford contribuiu para a alienação do indivíduo por sua subordinação a uma lógica de mercado, a de Duchamp fortaleceu a autonomia da liberdade individual contra valores desgastados da coletividade. Em termos comunicacionais ortodoxos, Duchamp transformou o receptor em emissor; Ford fez o contrário. São muitas as diferenças. Todavia, vale insistir um pouco na comparação. Primeiramente, existe uma relação causal, mesmo que invertida e perversa, entre os feitos de Ford e Duchamp. O objet trouvé e o ready-made não teriam o mesmo sentido fora do contexto da produção em massa. É exatamente no momento histórico em que a indústria acena com a promessa de padronização das formas, abundância ilimitada e inclusão social pelo consumo que passam a ser interessantes, a apropriação e ressignificação artística do artefato industrial. Afirmar que um simples secador de garrafas é uma obra de arte não surtiria o mesmo efeito de escândalo, o mesmo frisson, caso se tratasse de um secador especial feito por um mestre artesão, passível de alto nível de acabamento manual ou de cuidados como a ornamentação artística. É importante, para o sentido do enunciado, que ele parta de um objeto comum, sem maior valor, sem o

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investimento fetichista da mercadoria, no sentido adotado por Marx.25 Daí a extrema pregnância do mictório, justamente por ser algo considerado reles e desprezível. Há mais paralelos, suficientes para justificar um novo parágrafo. As ações de Ford e Duchamp são ambas caracterizadas por um fato crucial: geram, a partir da produção de objetos, um sistema discursivo e ideológico muito maior do que os próprios objetos produzidos. Introduzindo palavras de grande importância para a presente discussão, são ações sistêmicas, complexas, aproximáveis, nesse sentido, ao trabalho de design. Por fim, ambas são ações voluntariosas, autorais e quase autoritárias, refletindo alto grau de arbítrio pessoal e até de arbitrariedade. Recompensando o famoso industrial por sua busca obsessiva da produtividade, o nome de Ford foi logo elevado a um patamar de reconhecimento mundial inédito na história, tornando-se grife e sinônimo do sistema que gerou.26 Tanto Ford quanto Duchamp, em menor escala, viraram celebridades em seu tempo, ganhando o direito de afirmar praticamente o que quisessem sobre o que bem entendessem, ao ponto do absurdo e da contradição. Aliás, o notório enunciado de Ford, segundo o qual o consumidor poderia ter seu carro em qualquer cor que desejasse, “contanto que fosse preto”, partilha algo do espírito de ironia cáustica, quase agressiva, que cerca a exposição do mictório. Como criadores de novos paradigmas, aparentemente ex nihilo, Ford e Duchamp eram percebidos como gênios, quase deuses, em seus respectivos campos de atuação.

Um corpo que cai Por falar em deuses pela metade, voltemos a Brancusi. Diante do sucesso espetacular do antiespetáculo inaugurado por Duchamp, o tamanho do feito brancusiano corre o risco de ficar esquecido nas entrelinhas. Seu Pássaro no espaço é uma tentativa mais do que bem-sucedida de refundir a hélice do avião como escultura, ecoando sua forma e substância e ainda pegando-lhe de empréstimo a associação semântica visual entre sua morfologia peculiar Para uma discussão dos sentidos do fetichismo, ver Cardoso (2007).

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Henry Ford foi o primeiro da linhagem de bilionários, que ainda hoje cativa a imaginação mundial. Principal porta-voz do capitalismo norte-americano em sua época, foi recebido com honras e regalias tanto na Rússia bolchevique quanto na Alemanha nazista. No Brasil, seu nome e seus escritos foram divulgados por Monteiro Lobato, seu grande admirador. Talvez a homenagem máxima, enviesada, tenha vindo no romance Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. No futuro distópico de Huxley, o calendário é datado “in the year of our Ford”, parodiando a expressão inglesa in the year of our Lord (no ano de Nosso Senhor).

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e a ideia do voo. O escultor tomou os elementos básicos de materialidade do artefato e agregou-lhes um sentido representacional, simbólico e artístico, criando um objeto de apelo plástico igual à hélice, com a vantagem de possuir a autonomia que só pode ser atingida totalmente por um objeto que não possui outra função operacional senão existir. A prova da coincidência entre artefato industrial e artístico está no fato de que o serviço alfandegário dos Estados Unidos tentou cobrar imposto de importação sobre a peça, alegando tratar-se de objeto manufaturado em metal. Brancusi ingressou com um processo na corte americana, em que foi ajuizado que Pássaro no espaço era mesmo uma obra de arte e, portanto, livre de taxação. A hélice, posta em exposição, nada mais é do que o fragmento de um avião. Ela só atinge a plenitude de sua intenção quando entra em funcionamento, e nesse momento, por ironia, a apreensão visual de sua plasticidade fica comprometida irremediavelmente. Ou seja, quem vê a hélice parada, não enxerga o ápice do propósito para o qual foi fabricada. Duchamp e Brancusi enxergaram mais. Reconheceram nela valores de beleza e perfeição formal que talvez tenham escapado até aos seus criadores, engenheiros. Com seu olhar peculiar de artistas, recriaram a hélice como objeto estético. Para Duchamp, era o suficiente. Ele poderia ter pegado a hélice e a colocado na galeria como obra de arte, pronta, um ready-made. Brancusi foi por outro caminho. Apropriando-se da forma, criou um objeto novo e autônomo – ao mesmo tempo escultura e pássaro. Para todos que admitem a possibilidade da representação na arte – ainda somos maioria –, não há dúvida de que o pássaro de Brancusi voa. Parado, diante de nosso olhar, em exposição no museu ou impresso nas páginas de um livro, ele se liberta de sua materialidade aparente e ganha outros contornos. Esvoaça virtualmente, nem que seja no complexo jogo de luz e sombra propiciado por sua superfície altamente polida, a qual dissolve sua aparente solidez e quebra qualquer noção de forma absoluta.27 A diferença entre as soluções de Duchamp e Brancusi para o mesmo dilema é bastante relevante para a evolução posterior dos campos que são assunto da presente discussão. A solução de Duchamp remete a ação artística à condição de ideia pura – arte como “cosa mentale”, no famoso dizer de Leonardo da Vinci, algo que se aproxima do inatingível ideal platônico. A solução de Brancusi mantém a ação artística no campo da virtuosidade – o bom fazer mediado por materiais, técnicas, proficiência, Ver Krauss, 1981, pp. 96-9.

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linguagem, comungando da noção aristotélica de poética. Esquematizando ainda mais a dicotomia: mente versus corpo, gesto versus gestual. Essa dicotomia é falsa, obviamente, como todas as contraposições maniqueístas de extremos opostos. Contudo, ela tem sua utilidade para elaborar melhor os termos da discussão. O principal elemento subtraído da equação pelo gesto figurado de Duchamp é o fazer e, por extensão, a mão e o corpo que fazem. Era precisamente esse o propósito do artista, é claro! Na era das manufaturas – da fabricação industrial –, passava a ser secundária ou até irrelevante a capacidade de fazer à mão (em latim, manufaturare). Com sua fina capacidade analítica, Duchamp percebeu a contradição lógica embutida na etimologia da palavra. Daí sua exclamação de que a pintura estaria liquidada diante da hélice. Pobre da pintura que, feita por mãos humanas, jamais atingiria a facilidade das máquinas para fabricar em série formas perfeitas e presentes. Ao declarar o objeto achado pronto como realização de sua intenção artística, Duchamp abdicava do imperativo de fazer qualquer coisa além daquilo que sua mente e seu olhar já haviam feito. Libertava-se do cansativo trabalho braçal, das câimbras na mão e das dores na coluna que acometeram e ainda acometem tantas gerações de pintores. Libertava-se, mesmo que momentaneamente, do peso de Aristóteles e sua aborrecida poética. Como as modernas donas de casa que descobriam, por volta dessa mesma época, a novidade do aspirador de pó, um eletrodoméstico recém-inventado, o artista dizia: “Chega de servidão!”. A libertação foi breve. O próprio Duchamp logo reconheceu a falta que fazia o corpo e passou a fazer uso do seu como suporte experimental para imagens. A arte corporal deve algo ao espírito irrequieto, sempre inacabado, desse grande artista que dedicou o resto de seus dias a explorar as relações entre objeto, conceito e imagem, juntamente com seu parceiro e colaborador, Man Ray, uma das principais fontes criativas dessa busca, mas frequentemente subestimado. Abstraindo-se do fazer durante o período auge dos objets trouvés e dos ready-mades, Duchamp conseguiu aprofundar sua constatação inicial diante da hélice. A questão não era, necessariamente, a da cisão entre a mão que fabrica – técnica – e o objeto fabricado – arte. Era ainda mais complexa. A questão profunda girava em torno da presença e da autoria. Ao retirar de cena a mão do artista, sua ascendência sobre o objeto não diminui, mas, paradoxalmente, aumenta. Os objetos achados dependem de quem acha, e

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em qual contexto os acha, para se inserirem num sistema e ganharem sentido. Diferentemente do Pássaro no espaço, de Brancusi, com sua autonomia e permanência comparativas, a Fonte, de Duchamp, só existe enquanto está identificada como conceito e discurso. Daí advêm sua força para o fazer artístico e sua fragilidade para o mercado, por exemplo. Colocada de cabeça para cima e conectada a uma tubulação adequada, a fonte volta a ser mictório. Não é preciso destruí-la fisicamente – como seria o caso se alguém derretesse a escultura de Brancusi – para retirar do objeto seu sentido. Isso por uma razão muito simples: o sentido não está no objeto; está na mente de quem enxerga nele o que nem todo mundo consegue ver.

Uma cadeira é para sentar Nos dias atuais de crise ambiental, saber enxergar nos objetos o que nem todo mundo consegue ver é uma das grandes virtudes do bom designer. Afinal, um artefato cujo projeto prevê usos flexíveis – como um sistema modular de móveis –, usos variáveis – como um casaco dupla-face –, uso em mais de uma instância – como uma embalagem de geleia que depois vira copo –, ou até seu próprio desaparecimento depois de usado – como no princípio do desmonte projetado, ou design for disassembly, adotado em algumas indústrias de bens duráveis, como automóveis –, tem mais chances de prolongar sua vida útil e adiar o momento de descarte, reduzindo o acúmulo de lixo e a incidência de refabricação. Pensar e planejar o pós-uso do artefato como parte de um ciclo de vida expandido é nitidamente um ganho na prática do projetista. Um exemplo curioso desse tipo de pensamento projetual é a banqueta WW Stool, criada por Philippe Starck em 1990, originalmente para compor um cenário de filme de Wim Wenders e produzida posteriormente pela Vitra. Mais escultura do que banqueta tradicional, a WW Stool serve, entre outras coisas, para sentar. Serve ainda como ponto de apoio para pessoas conversando em pé, como cabide para pendurar uma bolsa ou casaco, como objeto de decoração. Serve, antes de tudo, como signo visual, carregado de informações complexas sobre sua origem, autoria e razão de existência (Jeudy, 1999, pp. 48-50). Apesar dos urros de protesto de quaisquer velhos dinossauros funcionalistas que ainda possam rondar a Terra depois do degelo do modernismo, ela é um objeto de design muito bem concebido e elegante ao extremo. Ninguém compra uma WW Stool por engano ou falta de entendimento; ela não traz prejuízos ao usuário a não ser, possivelmente, os

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de natureza pecuniária, mas paga quem quer e pode. Além disso, dificilmente uma será encontrada no lixão de sua cidade. Essa abertura múltipla da WW Stool para uma série de usos e significados obriga-nos a repensar seriamente a noção desgastada de função, termo empregado quase sempre de modo abreviado durante o século XX para designar a função operacional imediata, ou o funcionamento, de um artefato qualquer. Permeiam a cultura do design modernista ditames funcionalistas, como “uma cadeira é para sentar”. E quando não o é? E quando os garçons do bar, impacientes com os últimos boêmios que continuam firmes e fortes às duas horas da manhã, colocam as cadeiras sobre as mesas, viradas de cabeça para baixo? Nesse momento, a cadeira não é para sentar; é um signo comunicando que está na hora de ir embora antes que lhes expulsem. E, se uma cadeira é para sentar, será o inverso verdadeiro? Se alguém senta sobre uma mesa, ela se torna cadeira? A pergunta pode parecer capciosa ou imbecil, mas encerra questões epistemológicas importantes sobre a interrelação entre artefato, significado e usuário. A correspondência estrita entre uma forma determinada e um determinado uso, como a cadeira e o sentar, acaba por bitolar o pensamento. Ao pensar a ação de sentar como experiência e não como artefato específico, o projetista se liberta de estruturas preexistentes e ganha a possibilidade de criar soluções realmente novas. Se a tarefa é projetar uma cadeira, é impossível escapar da morfologia: encosto, assento, pernas. Se a tarefa é projetar uma situação de sentar, o leque se amplia para incluir pufes, banquetas, bancos, sofás, almofadas, futons e até mesas, sem nem entrar nos híbridos possíveis. Podemos dizer de um aparelho como um relógio ou um motor que ele funciona ou não funciona, mas um relógio parado e um motor quebrado são o quê? Pelo paradigma antigo, eles são apenas lixo. Deverão ser descartados e substituídos. Claramente, esse é um pensamento insustentável no panorama atual. Para um funcionalista da velha escola, a função da hélice seria de ajudar o avião a voar; porém, o que acontece quando a hélice está exposta numa feira aeroviária, sem o avião, ou – o que seria mais provável hoje – num museu? Se seguirmos um pensamento sistêmico, de fluxo de significados, coisas acontecem! Coisas que podemos entender como arte, como fetichismo, ou como a ressignificação de artefatos, para os que preferem designações mais antropológicas. Essa abertura para uma nova conceituação do mundo material que nos cerca conduz a possibilidades quase infinitas de

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recombinação e reaproveitamento no admirável mundo imaterial que cada vez mais nos envolve (Flusser, 2007, pp. 51-65). Tome-se como exemplo uma obra de 2008, sem título, do artista Raul Mourão, constituída de uma cadeira presa numa gaiola de ferro. Nela, a cadeira serve não para sentar, prioritariamente, mas como signo para estimular a reflexão sobre os limites entre dentro e fora, público e privado, uso e propriedade, conforto e aprisionamento. Separada à força de sua suposta função, a cadeira que compõe a obra ganha um grau extraordinário de potência formal. O artefato em questão – trivial, comum, quase invisível como espécime em meio ao vasto e hierárquico universo das cadeiras – passa a ser objeto de um olhar diferenciado, que aprecia e esmiúça sua aparência como algo pleno de significado. Salva do brechó ou da lixeira, a cadeira escolhida por Mourão vira arte, ganha vida e valor – monetário, inclusive. Se ela é servível ou não para sentar é uma questão completamente irrelevante. Trata-se da mesma ação mágica, duchampiana, de ressignificação da matéria por algo imaterial: o olhar e o pensamento por trás dela. Mesmo se atendo à seara relativamente restrita das cadeiras, seria possível arrolar uma série de outros exemplos de como o significado do objeto pode ser descolado de sua estrutura ou aparência pelo uso. A obra Grande nua na poltrona vermelha (2009), da artista Cristina Salgado, é outro bom exemplo de subversão da tradicional equação entre aparência, uso e significado. Nela, a poltrona opera como signo que evoca a função de sentar, acrescentando uma dimensão de ação simulada às grossas pilhas de tapetes que compõem o resto da instalação. Em outras obras recentes em que a artista fez uso de tapetes empilhados, as camadas de tecidos se limitavam a ocupar o espaço, escultoricamente estáticas. Na Grande nua, elas ganham uma dimensão adicional de ação: sentam, recostam, envolvem. Ou seja, ao evocar uma ação potencial, a poltrona cria uma interação entre os materiais constitutivos da instalação. Além da elegante sugestão de movimento implícita nas dobras, quedas e amontoados do tecido – plasticidade escultórica por excelência –, a instalação ganha uma dimensão narrativa, de ação no tempo, que se completa na remissão erudita a outras obras de arte externas à situação, mas presentes no repertório. A dimensão da ação nos conduz de volta à corporeidade. Entender a contraposição entre Duchamp e Brancusi como uma dicotomia simples entre estrutura e superfície – nos termos do jogo escultórico identificado por Rosalind Krauss como essência da tradição de recepção estética dos objetos

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tridimensionais – é compreendê-la apenas pela metade. Para além da oposição entre forma e construção, existem as questões do uso e do esforço, ou seja, do corpo. O grande fator oculto na superfície polida da obra de Brancusi – e, ao mesmo tempo, evidenciado e constantemente ressaltado para o bom entendedor – é o alto grau de ação corporal necessária para atingir o perfeito acabamento daquelas peças. Na obra de Brancusi, técnica e trabalho se postam lado a lado, completando e materializando a ideia. A autonomia da obra, acima referida, confirma paradoxalmente a força do criador; e as mãos rudes e fortes do camponês Brancusi estão implicadas na fatura da obra, embora seus rastros estejam virtuosisticamente apagados de sua superfície. A corporeidade impressa como virtude no artefato, o antigo virtuosismo, tornou-se, desde fins do século XIX, um território normalmente relegado ao fazer artesanal. Na sociedade industrial, principalmente após o advento da mecanização e da produção em massa, a extensa tradição humana de fabricação manual foi condenada a sobreviver no gueto apelidado de artesanato. Seu emblema era a imperfeição. No embate aeroviário entre Duchamp e Brancusi, tem-se a dupla recusa da imperfeição como sinal da corporeidade. No caso de Duchamp, a recusa é explícita. Sai o corpo, entra a máquina como executora perfeita dos desígnios da mente. No caso de Brancusi, ela é mais manhosa. Empurrando ao limite a excelência da fatura manual, apagam-se todos os seus rastros. O resultado é o mesmo, na prática. A mão do artista não mais é evidenciada na obra, a qual parece que nasceu pronta ex nihilo. Essa discussão continuou a ecoar durante todo o século XX, evidentemente, como continua até hoje. Arte corporal, performance, situacionismo, até bad painting, são apenas alguns dos muitos marcos que demarcam uma discussão ampla demais para se resumir nas breves páginas deste texto. O corpo se nega a morrer; as mãos continuam a buscar a massa. O que vem mudando, muito recentemente, é a relação entre a manifestação material do mundo e a dimensão imaterial que o concebe e conduz. Com as novas mídias e ferramentas eletrônicas das últimas décadas, as linguagens, os sistemas de comando e as plataformas e interfaces vêm ganhando cada vez mais evidência como coisas, embora sejam essencialmente não coisas, imaterialidade e ideia. Aquilo que a indústria jamais foi capaz de fazer – abstrair o trabalho e a natureza e lançar o ser humano para a fruição das ideias puras, sonho e utopia desde o iluminismo até Marcuse –, a presente era da informação parece capaz de concretizar num futuro não tão remoto.

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Em meio a tudo isso, onde ficam os artefatos que sempre foram parceiros e testemunho de nossa humanidade? Repensar a relação entre arte, design e artesanato é urgente, sob risco de nunca terminarmos a partida de xadrez iniciada pela constatação de Duchamp.

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Fragmentos para histórias de formas

Guilherme Bueno MAC de Niterói (RJ)

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Não raro, boa parte da história da arte do século XX ficou conhecida como uma espécie de era do formalismo. Em linhas gerais, seus princípios já se tornaram de domínio comum: o discurso centrado na lógica de redução compositiva de uma obra a seus elementos estruturais, seguindo a máxima do pintor Maurice Denis, segundo a qual uma pintura, antes de representar qualquer coisa, é um conjunto de manchas dispostas numa certa ordem. Tal raciocínio teria sido apropriado posteriormente por diferentes intelectuais para construir uma narrativa totalizante que encontraria seu ápice na arte abstrata, dentro da qual haveria alternâncias morfológicas, que, no entanto, manteriam irredutível a premissa da autorreflexão dos meios – o sentido de bidimensionalidade na pintura, de volume na escultura e daí por diante. Se tal retrospecto crítico das teorias das formas guarda certa verdade, convém reler suas práticas, a fim de compreender a razão pela qual esse modelo assumiu tamanha importância. As origens dele, conforme o conhecemos recentemente, remontam a uma dupla tensão da crítica de arte francesa no século XIX. Por um lado, há a cogitação de uma experiência da arte que pode abdicar da interpretação temática – o entendimento da representação de uma cena qualquer – em prol de um mergulho nas profundezas das sensações. Essa seria a visão de Baudelaire, derivada de posições lançadas por Delacroix em seus diários. Por outro, passados alguns anos, a mesma defesa de uma abordagem da experiência não contaminada flertaria com pretensões cientificistas na crítica de Zola, que, na voz de seu alter-ego, o candidato a escritor e crítico Sandoz do romance L’Oeuvre, declara a necessidade de um relacionamento com a arte livre dos excessos de sentimentos românticos sofridos por sua geração.

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Nos dois casos, para além da briga com o discurso oficial da academia, coloca-se um problema fundador: saber lidar com o universo sensível quando este se encontra desamparado em um mundo secular. Questão adicional: mediar sua relação numa sociedade desejosa de firmar-se democraticamente, o que significa detectar os códigos formativos do sujeito moderno. Isso corresponde a um desenho no qual a individualidade – do artista e do espectador – e a universalidade – das condições de juízo – não se cancelam mutuamente. Tal equacionamento entre público e privado havia sido sistematizado outrora por Locke e por Kant e, no campo da arte, foi testado desde o início por Diderot, Schiller e outros. Esse programa não se furta, entretanto, a conviver desde suas origens com as contradições reconhecíveis nas abordagens de Baudelaire e Zola, visto que o último procura executar uma manobra evolutiva em relação ao predecessor: o caráter subjetivo se torna passível de ser decantado, passando da interiorização individual para a socialização positiva do rigor naturalista. Ainda assim, há algo não menos importante a assinalar na crítica formalista do século XIX: a relação com a arte, vista como protótipo de superação da natureza – a arte se desprende da mímesis, de seu vínculo com um mundo condenado às aparências acidentais –, e o descortinar da essência, que se apresenta como restituição de uma experiência original e autêntica. A crença na manifestação inata da forma como princípio judicativo conciliava várias demandas: ao poder tanto anteceder quanto concluir a história, essa tecnologia do sensível alinharia extremos, fazendo deles partes de um mesmo processo. A forma é vista como uma energia primordial replicada trans-historicamente. *** Mudando de ponto de vista, e já lidando com a fronteira entre os séculos XIX e XX, não é uma coincidência notar que as primeiras sistematizações formalistas coincidem com estudos de diversas áreas em formação, como a antropologia, a psicanálise e o interesse crescente pela arte primitiva. Se pensarmos por analogias, todas elas funcionam a partir do mecanismo de executar desrecalques da cultura ocidental. Esse encontro chocante consigo aconteceria tal como em uma passagem descrita pelo personagem Marlow no romance Heart of darkness, de Conrad, que, ao narrar o ingresso nas profundezas da floresta, afirma deparar-se com a alvorada da humanidade. Tanto o formalismo quanto o fascínio

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pela arte primitiva compartilhavam a perplexidade de testemunhar em ato uma inventividade primeira, uma experiência crua, vivenciando um momento de análise da civilização. A preservação dessa espécie de grau zero da criação seria a base da teoria da forma significante de Clive Bell, que acreditava demonstrar o elo secreto cristalizado entre diferentes séculos e culturas. Tal vínculo repercutirá em diversas teorias-manifesto e escritos que apresentavam a similaridade entre cabanas tribais e moradias modernas, máscaras rituais e pinturas das mais avançadas. A verbalização dessa premissa fundamenta suas raízes nos círculos neokantianos da virada do século XIX para o XX – composto por nomes como Fiedler, Hildebrand, Marees e Fry –, que redefinem termos familiares ao mundo da arte, como espaço, tempo, plano, volume, harmonia, contraste e equilíbrio, em parâmetros de descoberta da essência plástico-sensível de interpretação do real. No método historiográfico derivado dessas bases, há simultaneamente uma apologia da técnica linguística que não só converge com os programas construtivistas como os espelha: ambos proclamam o controle das operações elementares como uma ciência estética apta a reescrever e projetar a história e o mundo. O apelo à pura visibilidade e seu distanciamento crítico da realidade tátil – uma racionalidade objetiva – acabariam em seguida por tornar o formalismo no século XX a teoria da arte abstrata por excelência.

A forma internacional Junto a essas manobras podemos ainda reconhecer outros aspectos do formalismo enquanto estratégia discursiva moderna. Ele é um dos inúmeros esforços modernos de construção de uma cultura internacionalista que atravessa tempos e espaços diferentes, colocando-se como chave para superação do discurso das escolas nacionais e como alternativa ao universalismo ainda regido pelos cânones derivados do classicismo. Ao menos em suas intenções gerais (o que depois se mostraria diferente), a relação entre formalismo e internacionalismo tencionava a fundação de uma cultura sem centro como instrumento para o alcance de uma modernidade plena. Ressalte-se, contudo, que o internacionalismo formalista não existe sozinho. Foi antes uma das numerosas modalidades de diversos projetos que viram nesse ato de ultrapassagem de fronteiras a chave para a implantação de suas poéticas, entre os quais poderíamos lembrar o funcionalismo, o dadaísmo e o surrealismo. No entanto, apesar de enormes divergências, há em comum

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entre eles o fato de conferirem uma primazia ativadora, axial, à forma. Opõem-se as circunstâncias e motivações defendidas – a pulsão transgressora do inconsciente para os surrealistas, a exacerbação da racionalidade para o funcionalismo –, mas essa centralidade permanece como condição sine qua non. Vê-se, inclusive, o quanto, em certos casos, o limite entre esses rivais se torna incerto, particularmente na antítese formalismo versus funcionalismo. As recíprocas acusações de formalismo de intelectuais e artistas entre si são demonstrativas da confusão, pois o conflito não está na certeza da forma, mas em como obtê-la ou determinar seu papel.

Esquemas de uma gaia ciência O método formalista se desenvolve por meio de um movimento dialético: culturas técnicas e morfológicas revezadas em contínua reinvenção de suas configurações. Nisso podemos notar sua ambígua relação com o problema da matéria: sua presença é decisiva para interpretar o tipo de espaço em jogo – linear x pictórico, por exemplo –, mas sua percepção sempre fica circunscrita ao domínio do olho, havendo uma interdição háptica. Ou seja, há um vacilo em como esses objetos se localizam em relação ao espaço dito real, pois, se a forma pura atesta uma nova leitura do real, ela precisa se acautelar em sua contaminação com o mundo. Há, por um lado, a geometrização do mundo pelos movimentos construtivistas; por outro, no entanto, sobretudo no pósguerra, as abordagens formalistas norte-americanas insistirão na segmentação do espaço da arte, de modo a preservar a experiência subjetiva intacta aos acidentes externos. É uma reinvenção do horizonte, pois seu real opera por um deslocamento. Em princípio, seu raciocínio estrutural se preocupa menos com o questionamento daquilo que se vê do que com o funcionamento da percepção. Porém, esse real continua como um espaço de promessa, isto é, sempre se anuncia como um vislumbre.

Formalismo e imagem Paradoxalmente, essa operação se mostra, no século XX, cada vez mais atrelada à imagem e dependente dela, ainda que tente suprimi-la a todo momento. Seu procedimento discursivo é o de uma narrativa tecida pela conjugação de imagens, uma textualidade visual. Vale notar o quanto se lança mão de diagramas, montagens e sequências para demonstrar seus teoremas, compondo uma espécie de esperanto ótico.

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O recalque da imagem, ainda tomada como vestígio de uma arte figurativa que portaria os ranços da confusão de meios, compele o olhar formalista a contínuos entraves: grosso modo, por trás da manobra de repressão aos simulacros, há um engolfar do desejo e de sua capacidade de desequilibrar a estabilidade do juízo desinteressado. Quando a imagem se torna capital – ou reafirma tal condição vinda das Passagens parisienses do século XIX – e libido e consumo se fundem, o discurso da forma pura tende a desintegrar-se. Isso ocorre por três fatores. o primeiro é o fato de a incapacidade de resolver o dilema da tautologia moderna aparentemente desaguar naquilo que havia renegado. Visto o problema em seu contexto, a arte dos anos 1960 era naquele momento lida como um retorno à figuração, ainda por cima calcada em elementos da chamada baixa cultura. O segundo é a percepção de uma opacidade do sensível, isto é, o reconhecimento de sua construção histórica, bem como a retirada da potência interiorizada do objeto, que o capacitava antes a se distinguir dos objetos banais. É um impasse decorrente das releituras do ready-made e da apropriação do sistema como matéria. O terceiro provém do conflito entre a universalidade do sensível, proclamada pela arte abstrata, e a ubiquidade da indústria cultural. Como exemplo, podemos citar Andy Warhol, que declarou em uma entrevista que o mais interessante visto em Paris e Veneza, entre outros lugares, foi o McDonald’s, ou, ainda, Robert Venturi, com seu Aprendendo com Las Vegas. Isso significa a disputa desigual com outro internacionalismo. Ainda no que diz respeito à dependência do formalismo pela imagem, a onipresença desta última é decisiva para a formação de inúmeras de suas versões, uma vez que a circulação de segunda ordem dos objetos prolifera o surgimento de museus imagéticos a cada defesa da arte abstrata. Isso mais uma vez reflete o princípio internacionalista da arte moderna – a modernidade se pretende um fenômeno horizontal – e seu élan salvacionista. Das vanguardas construtivistas europeias às conferências de Flávio de Carvalho na São Paulo dos anos 1930 (“O período final, o auge, que é um período de purificação, pertence principalmente aos abstracionistas. Os abstracionistas repelem a natureza e a imundície ancestral do inconsciente como sendo coisas baixas e vulgares [...] Conquanto altamente em vida com suas criações, eles se purificam pelo pensamento” – Aspecto psicológico e mórbido da arte moderna, 1937), dos primeiros textos de Greenberg aos manifestos pela arte concreta mundo afora (a página do Manifesto neoconcreto é tão genealógica quanto a macieira de Mondrian), repete-se a confiança no poder transformador da arte

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abstrata como momento culminante. Diferem as obras e artistas assumidos como referenciais, mas o roteiro sequencial vislumbrado permanece. Ver corretamente é progredir e consertar o mundo. O terceiro aspecto da relação formalismo x imagem encontra-se no fato de que ambos se entrincheiram no mesmo dilema entre a sedução do olhar e o impalpável do toque. No caso da imagem, isso seria tomado pelo formalismo tanto como rendição ao falso – seja no âmbito do simulacro, seja no dos meios inadequados – quanto como rebaixamento da experiência estética ao domínio das finalidades pragmáticas. A ótica formalista é de contenção. De um modo ou de outro, algo que fica evidente diante da arte dos anos 1960, a encruzilhada imagem/real/impureza das sensações, é crucial para explicitar a desconfiança do visível, da arte retiniana preconizada pelas teorias formalistas. Não se trata apenas da crise de uma arte que caberia no olho, mas da suspensão elevada que justificava esse ato de distanciamento.

Desestetização universal (um lugar na história) As diferenças internas das genealogias da forma moderna acentuam, com suas verdades antagônicas e certezas irrefutáveis – visto que o formalismo precisa se traduzir em fórmulas generalizantes –, haver por trás de seu humanismo uma disputa de centros. Dois pontos: 1) saber quem detém a autêntica herança – fenômeno que abrange tanto a oposição entre Europa e Estados Unidos quanto entre Norte e Sul – significa demarcar quem lidera a cultura ocidental; 2) indagar a objetividade do gosto – tema de um dos seminários de Greenberg – pretendia, no fim das contas, concluir pelo consenso de que, se certas obras se tornam canônicas graças a uma coincidência de juízos, isso indica a existência de uma história real da arte – uma história construída diretamente pelo gosto. No entanto, esse domínio do gosto aponta desde sempre o problema de sua apropriação, atenuada na naturalização de um esquema em detrimento do outro (por exemplo, atribuir a continuidade legítima da arte moderna europeia ao expressionismo abstrato e não à arte concreta) e ainda na prescrição de que tipo de sujeito moderno – o liberal, o socialista, o revolucionário, o proletário etc. – controla corretamente aqueles instrumentais e pode arrogar-se ao direito de universalidade. Existe uma relação intrínseca entre a potência desse sujeito e sua linguagem imperativa, uma vez que o primeiro se confere de autoridade inconteste de enunciar a progressão certa da história. O discurso da forma pura e sua neutralidade empírica inata, sobretudo desde o

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pós-guerra, acabam por acionar outro processo de fetichização do objeto, ao equalizar os eventuais distúrbios do sensível. A experiência desinteressada é convertida em experiência liberal. *** O formalismo não é só uma história de formas, mas a tentativa de entender a forma na história. Quando identificada a irmandade entre esses dois termos, evidencia-se uma contradição de nascença em sua teoria: ao mesmo tempo que a lógica formalista quer transcender a história com suas constantes, ela quer se tornar sua guia e, mais além, só pode existir dentro da história – ao menos, como a última era entendida na modernidade, um olhar apto a aferir uma totalidade. O esquema formalista, além de dialético, é binário, não comporta opções alheias a esse modelo – afinal, ele é oriundo dos manifestos –, razão pela qual se mostra incapaz tanto de lidar com o cenário disperso da arte contemporânea quanto mesmo de ensaiar uma teoria da forma depois de sua hegemonia. O formalismo foi a última modalidade do raciocínio estilístico, mesmo quando esse formulou sua possibilidade conturbada no universo moderno. Quais seriam as hipóteses para a forma depois do formalismo? Parece desnecessário apontar sua permanência na produção contemporânea, muitas vezes valendo-se do mesmo processo dialógico vivenciado durante a modernidade. Reconheceríamos nesse fato três questões. A primeira diz respeito ao dado peculiar de a historicidade da arte contemporânea não se organizar mais em um esquema de antagonismo simples, excludente e sucessivo, ou seja, suas linhas divisórias oscilam e têm espessuras diferentes, de modo que seus processos globais se constituam por passagens e histórias. Naturalmente, poderíamos apontar uma alteridade similar na arte moderna, mas – ao menos aparentemente e à diferença dessa última – elas não se fixam mais em torno da demarcação de um paradigma, tal como fora o cubismo, por exemplo. Tratar-se-ia de uma historicidade formada por placas tectônicas em movimento recíproco. Nesse sentido, é sempre válido reiterar a imagem de campo, segundo a qual a produção contemporânea é tratada. A segunda questão, decorrente da anterior, diz respeito à própria condição da forma e seu modelo de experiência quando ela sai de sua posição hierárquica privilegiada. Conforme vimos, isso não significa sua extinção, e, sim, a eventualidade de que ela, inclusive, assimile outras modalidades antes

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desconsideradas. Em outras palavras, estamos lidando com a indagação da forma como índice. O esforço de leitura do lugar da forma na situação contemporânea envolve riscos. Por um lado, a tentação de produzir por meio dela manobras de recuperação que, em vez de examinarem rigorosamente o grau dos dilemas de hoje, optariam por conformá-los em um quadro teórico já dominado e instrumentalizado, passível de provocar a atrofia de tensões ainda em aberto e não coercíveis das aproximações usuais. Por outro, há também o desafio de nos expormos à dúvida do quanto efetivamente somos dissimilares da modernidade – algo insinuado no termo pós-modernidade, apontando que, de certo modo, continuamos atrelados a ela, enfrentando eventuais tabus ou mitologias de ruptura. Não saberia aqui ensaiar a resposta, até pela incerteza da pertinência de tais perguntas. De todo modo, elas dão o lastro para chegarmos à terceira questão, que viria a ser a outra condição e constituição da forma. Presenciamos logo de início o descompasso entre ela e a certeza em uma autoridade positiva do olho (como em Eureka/Blindhotland de Cildo Meireles e Waltercio Caldas), resultante das estratégias duchampianas. O caráter negativo da forma não corresponde à sua aniquilação, outrossim o teste do limite da naturalização (artificial) de sua potência inata. Algo semelhante poderia ser indicado nas várias investidas conceituais nas quais o sistema adquire uma consistência de ordem quase matérica na nomeação da obra. Permitiríamo-nos cogitar uma autorreferência às avessas em parte da produção contemporânea imediatamente pós-greenberguiana – especificamente no caso da arte conceitual –, pois, apesar da disjunção da experiência sensível e da desmaterialização do objeto – a saber, a desinvestida de sua qualidade plástica enquanto verdade primeira e última –, a proposição assume estrutura formal, bem como o sistema, enquanto configuração. O sistema se torna um meio. Trata-se de uma forma não mais assentada no parâmetro da materialidade física, por mais que a fisicalidade e a opacidade lhe sejam inerentes.

Quando o artista se torna forma Tomada essa opacidade da arte como campo ampliado e da forma pósconceitual como propositora que instrumentaliza a organização desse campo – haveria enigmaticamente uma forma pós-duchampiana –, chegamos a um ponto em que nos valemos das afirmações de Judd – para quem arte é aquilo

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que o artista afirma sê-lo – e Kosuth – arte é o enunciado de seu conceito. O conceito/forma vincula o enunciado àquele que o pronuncia. Há uma interdependência e interseção de dois campos ampliados que mutuamente estruturam o jogo: o primeiro, o conceito de arte; o segundo, o de artista. Sob esse ângulo podemos pensar os vários processos mapeados nos últimos quarenta anos nos quais reincide a analogia do “artista como...”: o “artista como antropólogo” (Kosuth, 1991, pp. 107-28), o “artista como etnógrafo” (Foster, 1996), o “artista como ‘gerente’” (Buchloh, 1999, pp. 514-37, ao falar da “estética administrativa” inaugurada pela arte conceitual), entre outros.1 A condição do artista se coloca a partir de sua gramatologia. Não significa dizer que o artista passa a ser um antropólogo, um etnógrafo ou seja lá quem for, mas de perceber suas táticas como mecanismos de analogias nas quais o significado do artista, propositalmente incompleto, é continuamente posto e/ou lembrado de sua situação crítica. Seu método interdisciplinar de agir “como se...” seria também passível de ser tomado como formalização pós-conceitual para a articulação do campo. Nesse último sentido, seria cabível perceber que o valor de uso negativo da forma, tal como apontado anteriormente, acaba sempre por rebater todos os dados do campo da arte como entidades imagéticas – se essa expressão for possível –, seja a linguagem, o artista – seu corpo, inclusive –, o objeto ou o que mais for. Uma forma antiforma, antissubstancial, maleável e apta a refutar qualquer tentação de reconstituir uma essencialidade da arte, ou, parafraseando a certeira expressão de Milton Machado, uma forma e uma arte que “são todas poros”.

Referências BUCHLOH, Benjamin. “Conceptual art 1962-1969: from the aesthetic of administration to the critique of institutions”. In ALBERRO, Alexander e STIMSON, Blake (orgs.). Conceptual art: a critical anthology. Cambridge: The MIT Press, 1999, pp. 514-37. FOSTER, Hal. “The artist as ethnographer”. The return of the real: the avant-garde at the end of the century. Cambridge: The MIT Press, 1996. KOSUTH, Joseph. “The artist as anthropologist”. Art after philosophy and after: collected writings, 1966-1990. Cambridge: The MIT Press, 1991, pp. 107-28. Uma reflexão sobre o postulado do “artista como” remete inevitavelmente à discussão da modernidade, seja quando, em sua versão oficial, ele ainda subsiste como operador estético, seja na leitura, redescoberta nos anos 1960, do “artista como produtor”, de Walter Benjamin. O problema do artista e da autoria, que recai no da formulação da proposição e da linguagem, além de sua recepção e delimitação (ou supressão) dos limites entre artista/propositor x público, propositor x objeto da proposição, suscita ainda um paralelo à hipótese da “morte do autor”, tal como formulada por Barthes, visto que rompe com o solipsismo, a autonomia e a onisciência do discurso.

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Cubos, linhas, caminhos

Roberto Conduru UERJ

Ao visitar o ateliê de Jorge dos Anjos em Belo Horizonte, no mês de dezembro de 2007, de pronto uma escultura me intrigou. Primeiro, por nela se enfatizar o volume, enquanto as obras do artista exploram, geralmente, a planura com a qual conquistam o espaço. Depois, por ela apresentar um grafismo simples, retilíneo e nada figurativo, o qual, embora não seja raro em seu trabalho, não é nele dominante. Essa escultura é um cubo oco composto por dois pares de três faces contíguas, articuladas em forma de “c” e rasgadas por três incisões no sentido longitudinal, constituindo dois conjuntos complementares de quatro tiras retas, paralelas e de iguais dimensões. Diante do meu interesse, o artista disse que a obra pertencia a uma série pensada em função de um princípio adotado por Amilcar de Castro em seu trabalho, que recomendava aos alunos quase como se fosse uma lei: uma escultura deve ser constituída a partir da matéria, de sua massa e de seu peso, não do oco e da leveza. Tomando a teoria do mestre como um desafio a ser enfrentado a partir de seu próprio universo, o discípulo respondeu com uma série de cubos na qual o oco é questão central, embora a leveza não o seja completamente. Inicialmente, elaborou as peças em papelão, em formato pequeno, como quase sempre faz. Em seguida, constituiu duas delas em aço, em tamanho médio.2 E me revelou ainda pretender fazer uma delas maior, de modo a ser situada em um espaço público, para que as pessoas possam nela penetrar a partir de uma entrada subterrânea. Assim, essa peça dá a ver a inquietude de Jorge dos Anjos, sua variedade de meios, a amplitude de seu trabalho. Fala de suas interlocuções, de como ele coloca a si mesmo problemas artísticos e os responde plasticamente. Mais do que tamanhos e escalas diferenciam as peças que constituem essa série. Elas variam desde esculturas pequenas, leves, passíveis de serem Na outra peça, as faces são compostas por três tiras geradas por duas incisões.

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manuseadas, a esculturas em tamanho mediano, já com peso considerável, que podem apenas ser observadas e experimentadas em contraposição ao corpo, ainda que sejam móveis, e a uma peça que, embora seja transportável, se quer fixa, configurando um lugar. Transitando entre objeto, escultura, arquitetura e paisagismo, a série situa-se no campo ampliado, tal como o mapeado por Rosalind Krauss (1984). Um tanto diversa das demais obras de Jorge dos Anjos, a peça aqui em foco me parece paradigmática de seu trabalho justamente por permitir perceber como seu fazer é variado. Quase uma exceção, ela ajuda a ver não as regras, mas os contornos expandidos de sua pesquisa. Esse cubo permite observar a dominância gráfica em sua obra, seja ela em desenho, pintura, gravura, objeto, escultura, instalação ou performance – meios dos quais se tem valido. Com certeza, reverbera no grafismo de Jorge dos Anjos o risco incisivo, seco e dramático com o qual Amilcar de Castro delineia, corta e dobra; exploração da linha que nos conduz da América à Europa e de lá nos faz retornar, permitindo pensar como princípios e práticas do concretismo foram reinterpretados no Brasil. A positivação da linha como um dos elementos plásticos emancipados na modernidade é um dado das obras do concretismo. No Brasil, muitas são as pesquisas artísticas engajadas nesse processo de autonomização dos meios plásticos. Entre os artistas adeptos do concretismo que participaram da renovação do sentido da linha, podem ser citados Waldemar Cordeiro, Ivan Serpa, Mauricio Nogueira Lima, Judith Lauand, Leopoldo Haar e Lothar Charoux. No neoconcretismo, é possível ver construção plástica com linhas livres na gravura de Lygia Pape, no desenho de Hércules Barsotti e na escultura de Franz Weissmann. Para pensar a linha como elemento plástico autônomo, boas entradas são oferecidas pelos poderosos desenhos de Hércules Barsotti, nos quais ela é menos um elemento deflagrador de ritmos na superfície onde aparece, estruturando o espaço que cria, como em obras de Charoux, e mais um delineador de formas em aberto e um ativador do campo plástico. Desse modo, Barsotti articula os elementos plásticos em jogo – geometria e plano pictórico – e revê a estrutura de representação, transformando-a em presentação, o que explicita a condição objetal da tela de cavalete, a concretude dos meios artísticos. Presentação que não abdica das dimensões semânticas, da reflexividade da arte. Apresentando a obra de Hércules Barsotti em 1973, Willys de Castro fala de como, em suas obras, o observador pode perceber “um fluxo

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conciso de informações de natureza puramente visual” (1973, p. 159). No ano seguinte, ao fazer nova apresentação do trabalho do artista, diz que ele consegue instituir na mente do observador “a tradução de seus mais profundos significados” (1974, p. 161). Nesses textos, Willys simultaneamente apresenta a obra de Barsotti e externa seu entendimento da arte concreta no início dos anos 1970, um período de baixa ressonância do concretismo. Neles, defende a arte concreta como modo de pensamento e comunicação por meio da visualidade. É uma concepção dos fatos plásticos como objetos reflexivos que me conduz a um poema de Amilcar de Castro, “A pescaria”, no qual ele diz: [...] A linha não existe. Mas, quando feita pela mão do homem é desenho. Obedece como um rio conspirando com as margens. É pensamento pensando. E pensa e risca e divide e desvela justiça entremeio entremeando espaços opostos: mapa do seu destino [...] (2001, p. 75).

O poema me remete à pergunta: como se dá a relação entre linha e reflexividade nos trabalhos de Amilcar de Castro e Willys de Castro? Com certeza, a linha não aparece positivada na maioria de suas obras. Em suas esculturas, Amilcar empreende incisões e deslocamentos em planos e volumes. Em seus desenhos, a linha aparece como traço alargado, quase como campo, e, sobretudo, como acontecimento, deixando seus rastros na superfície, enfatizando a intervenção feita no plano. Como designer, Amilcar acabou com os fios existentes nas páginas do Jornal do Brasil, argumentando que ninguém os lia. De modo similar, em sua pintura rumo à escultura, Willys interpõe planos de cor sobre volumes menos ou mais explicitados, jogo que se transforma em contraposição de elementos e procedimentos das tradições da pintura e da escultura. Evitando a evidência da linha, Amilcar e Willys diferem de artistas do concretismo que, em suas obras, seguem trilhas abertas por Wassily Kandinsky, Kazimir Malevich e Josef Albers, entre outros artistas do

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construtivismo, que exploraram a linha como elemento plástico autônomo. Entretanto, é possível ver linhas em obras de Amilcar e Willys, bem como de Lygia Clark, entre outros, que, com outros meios e ações, evidenciam a presença da linha ausente, tornando-a um elemento em negativo, embora eminentemente ativo. Isso indica outros modos de pensar e usar a linha, de lidar com suas dimensões intelectuais, com a racionalidade inerente à forma configurada linearmente. De Lygia Clark, com cujas Arquiteturas Jorge dos Anjos também se relaciona em algumas de suas peças maiores para espaços externos como o cubo penetrável, há o que ela concebeu, praticou e denominou como linha orgânica. Em suas Superfícies moduladas, a linha é gerada a partir da conexão de planos de cor idêntica, como no Quadrado branco sobre fundo branco, de Kazimir Malevich. Essa linha, ativa embora um tanto interiorizada, ganha corpo e explicita sua dimensão operativa, primeiro, quando se transmuta em dobradiça nos Bichos. Depois, aumenta sua positividade, ainda que preserve sua interioridade, e torna-se terapêutica, quando emerge do corpo humano e forma rede orgânica na Baba antropofágica. Limítrofe, fronteiriça, a linha surge a partir da justaposição de planos de cor nos Objetos ativos, de Willys de Castro, assim como nas pinturas losângicas de Hércules Barsotti. Linha que resulta, portanto, da variação cromática, do jogo de diferenças qualitativas entre tons distintos e que, desses planos, se estende às diferenças entre obra e espaço, objetos e ambiente. Assim, também aparece nas logomarcas e outros projetos gráficos realizados por Willys e Barsotti. Nas esculturas em aço de Amilcar, a linha surge mais ou menos negativa, a partir do corte e da dobra do plano. É ausência de matéria conformada linearmente, o risco de vazio que faz imaginar e traz à lembrança a ação incisiva, o corte na peça. É, também, marca linear que surge na matéria a partir da dobra resultante da espacialização. Linhas que são, portanto, indícios de ação e estão conectadas às linhas negativas nas esculturas em madeira, aos traços nos desenhos, aos fios negativos que estruturam os projetos gráficos de Amilcar. Essas diferentes linhas de Clark, Barsotti, Willys e Amilcar, não explícitas, evidentes como fronteiras entre planos de cor ou matéria, díspares ou idênticos, como lapsos ou variações da matéria, não deixam de configurar racionalmente a linha. Contudo, a configuram com modos algo duvidantes, ora sóbrios, ora dramáticos.

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E como é a linha no trabalho de Jorge dos Anjos? Ainda que o cubo se constitua com linhas negativas derivadas de corte, no conjunto de sua obra a linha é ambígua, pois muitas vezes apresenta-se positiva para delinear uma simbologia específica. Isso nos faz pensar outras questões abertas pelos cubos, adentrar outras sendas. Feitos os cubos, Jorge, um afrodescendente, se perguntou como se relacionam ao universo cultural africano e afro-brasileiro. Matutou. Pensou no oco existencial que sentia quando os fez, no vazio instaurado em sua vida pelas perdas recentes de seus amigos Amilcar de Castro e Éolo Maia, com os quais havia respectivamente estudado e colaborado. A reflexão o conduziu ao culto dos égún, os mortos para os nagôs, com suas manifestações por meio de vazios envoltos por tiras de panos moventes.3 Assim, uma dimensão africana da obra se revelou para seu próprio autor, nos permitindo ver como, muitas vezes, na arte, a obra comanda o processo de seu vir-a-ser, chegando, por vezes, a surpreender o artista, e como as ideias se encarnam e se desdobram no tempo e no espaço. Assim, as esculturas também se mostraram uma homenagem de Jorge a Amilcar. Homenagem verdadeira, porque nela o discípulo confirma o caminho próprio que vem delineando nas trilhas abertas a partir do mestre, evidenciando filiação e autonomia. A obra ajuda a pensar como a questão da afrodescendência em seu trabalho é, por vezes, um dado a priori, sobretudo quando é figurativa. Em outras ocasiões, essa referência é pensada a posteriori. No entanto, não implica imposição à obra, pois revela-se presente já no fazer, no ser. É, portanto, estrutural, embora deva ser procurada e até constituída. O que ajuda a ver como, na obra de Jorge dos Anjos, assim como na vertente artística designada como afro-brasileira,4 as conexões com a afrodescendência são, ao mesmo tempo, naturais e construídas, inconscientes e programadas. Em seu “construtivismo crioulo”, como Jorge qualificou seu próprio trabalho (apud Sampaio, 2009, p. 45), destaca-se uma dominância gráfica que, como visto, está relacionada tanto ao risco incisivo, seco e dramático com o qual, a partir do concretismo, Amilcar de Castro delineia suas obras, quanto à “riscadura afro-brasileira” (Valentim, 2001, p. 29), hierática, religiosa, de Rubem Valentim. Pois Valentim inicia seu “Manifesto ainda que tardio”, de 1976, dizendo que sua “linguagem plástico-visual-signográfica está A esse respeito, ver Santos (1986).

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A esse respeito, ver Conduru (2007).

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ligada aos valores míticos profundos de uma cultura afro-brasileira (mestiçaanimista-fetichista)” (p. 28). E relata como estabeleceu essa conexão: Intuindo o meu caminho entre o popular e o erudito, a fonte e o refinamento – e depois de haver feito algumas composições, já bastante disciplinadas, com ex-votos –, passei a ver nos instrumentos simbólicos, nas ferramentas do candomblé, nos abebês, nos paxorôs, nos oxês, um tipo de ‘fala’, uma poética visual brasileira capaz de configurar e sintetizar adequadamente todo o núcleo de meu interesse como artista. O que eu queria e continuo querendo é estabelecer um design (riscadura brasileira), uma estrutura apta a revelar a nossa realidade – a minha, pelo menos – em termos de ordem sensível. Isso se tornou claro por volta de 1955-1956, quando pintei os primeiros trabalhos da sequência que até hoje, com todos os novos segmentos, continua se desdobrando (p. 28).

O que ajuda a ver o projeto de Valentim é responder, como artista, a dois mundos plásticos impactantes e complexos, o da geometria racional do construtivismo e o da geometria mítica das religiões afro-brasileiras. Mundos que ele pretendeu fundir no campo da arte, com consciência crítica das linguagens artísticas modernas em confluência com o universo religioso. Operação oriunda de suas vivências entre a Escola de Belas Artes, as igrejas e os terreiros na Bahia, de seu permanente trânsito entre os mundos da cultura popular e erudita, entre Brasil, Europa e África. O manifesto e outros textos de Valentim permitem perceber como, seguindo as pesquisas de Alfredo Volpi e Milton Dacosta, ele articula princípios das vertentes construtivas da arte moderna com as formas simbólicas presentes no candomblé, na umbanda e em outras religiões. Nesse sentido, é importante ressaltar sua experiência do concretismo, com o qual dialogou: “Logo percebi, pelo menos entre os paulistas, que o objetivo final de seu trabalho eram os jogos óticos, e isso não me interessava. Meu problema sempre foi conteudístico, a impregnação mística, a tomada de consciência de nossos valores culturais” (Valentim apud Amaral, 1977, p. 292). Como disse Giulio Carlo Argan, o que sua pintura, em última análise, quer demonstrar é que nas atuais concepções do espaço e do tempo os símbolos e os signos de uma experiência antiga, ancestral, conservam uma carga semântica não inferior à geometria pitagórica ou euclidiana (2001, p. 37).

Valentim, porém, concentrou-se menos nos ritos das religiões afrobrasileiras do que em sua cultura material, mais nas coisas do que nos

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acontecimentos. A hieraticidade sacra que esses objetos preservam ajuda a entender a dominância da linha racional com a qual define signos de religiosidade ambígua que remetem a um misticismo de cunho universal. Linha que nos faz atravessar novamente o Oceano Atlântico, seguindo fluxos da cultura artística relacionados à diáspora africana. Nessa passagem da América à África, a questão pode ser vinculada, mais especificamente, à arte dos ioruba, na qual, segundo Clifford Geertz, a onipresença do grafismo deriva da condição fundamental da linha para aquela cultura. Explorando conexões entre linguagens artísticas e estruturas sociais, Geertz defende que não se pode “entender objetos estéticos como um mero encadeamento de formas puras”. Assim, propõe: Tomemos como exemplo um tema aparentemente tão transcultural e abstrato como a linha, e consideremos seu significado na escultura ioruba, segundo a descrição brilhante feita por Robert Farris Thompson. A precisão linear, diz Thompson, a mera clareza do traço, é a preocupação principal dos escultores ioruba e daqueles que avaliam a obra do escultor. E o vocabulário de qualidades lineares, que os ioruba usam coloquialmente e em referência a um espectro de interesses muito mais amplo do que simplesmente a escultura, é sutil e extenso. E não são só suas estátuas, potes e outros objetos semelhantes que os ioruba marcam com linhas: fazem o mesmo com seu rosto. Cortes em forma de linhas com profundidade, direção e comprimento variáveis, feitos no maxilar, tornam-se cicatrizes em suas faces; e a[s] terminologia[s] usada[s] pelo escultor e pelo especialista em cicatrizes – ‘cortes’ são diferentes de ‘talhos’ e ‘espetadela’ ou ‘marca de garras’, de ‘fendas abertas’ – são precisa e exatamente correspondentes, nos dois casos. Mas a importância do traço não termina aí. Os ioruba associam a linha com civilização: ‘Este país tornou-se civilizado’, em ioruba, quer dizer literalmente: ‘Esta terra tem linhas em sua face’ (1997, pp. 148-9).

Linha ioruba, racional, dotada de significados amplos, coletivos, que está presente na “riscadura afro-brasileira” de Rubem Valentim e no “construtivismo crioulo” de Jorge dos Anjos. No caso de Valentim, essa linha se conecta a linhas construtivistas e outras. Isso porque as religiões afro-brasileiras são, em seu trabalho, bases para a configuração de uma nova plástica cosmológica, que o fez aproximarse de outros sistemas plásticos vinculados a místicas religiosas: i-ching, tarô, taoísmo, bhagavad-gita, cristianismo. Conjunção de arte e misticismo que, nos deslocamentos continentais e marítimos deste texto focado em

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linhas pensantes, nos conduz a Sabará, cidade vizinha a Belo Horizonte, de onde partimos, mais exatamente à capela de Nossa Senhora do Ó. Com as chinesices de algumas de suas pinturas, essa capela nos remete à arte da China, que é referência mor no que tange ao uso da linha como elemento da arte reflexiva. Como disse James Cahill, a China fez do traço o centro de suas preocupações: “A linha domina a pintura chinesa do início ao fim de sua história”. Algo delineado muito cedo, pois, segundo o autor, Chouo Wen escreve no primeiro dicionário chinês, publicado no fim do primeiro século de nossa era, que “pintar consiste em desenhar as fronteiras” (1977, p. 11). Ainda segundo Cahill, na China apareceu muito cedo uma teoria estética segundo a qual a pintura tem por função exprimir o pensamento e os sentimentos do indivíduo que a cria, além e mesmo a despeito de toda interpretação descritiva ou metafísica do mundo exterior. Essa concepção, que determina um lugar secundário ao mundo exterior, não pode florescer senão em um contexto humanista (p. 5).

Eis o que determina questões importantes para os pintores chineses, de acordo com Cahill: Como fazer do estilo um instrumento de expressão pessoal? Como chegar a um equilíbrio entre descrição objetiva e comentário subjetivo? Como carregar de conteúdo humano a matéria formal da pintura, separar sua significação própria do sentido literal ou simbólico do tema (p. 6)?

Essa teoria alcança um momento especial na escola wen-jen-houa, fundada por Sou Che (1036-1101), também conhecido como Sou Tong-p’o, e outros letrados, durante a dinastia Song (960-1275). Sou Tong-p’o escreve: “Toda pessoa que fala de semelhança em pintura deve ser reconduzida às crianças”. Também conhecida como “pintura de letrados”, essa escola era marcada pelo confucionismo, que entende a poesia, a música, a caligrafia como veículos do ser profundo de seus autores, de seus sentimentos e pensamentos (pp. 89-105). Trata-se de uma linha sensível e pensante que pode nos remeter novamente à Europa, ao pensamento de Giulio Carlo Argan. Em uma entrevista concedida a Marc Perelman e Alain Jaubert, ao falar da situação da história da arte na Itália, no segundo pós-guerra, e da Universidade de Roma, da qual se tornou professor devido à escolha de Lionello Venturi para que o sucedesse, Argan diz:

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Lá eu desenvolvi sobretudo a pesquisa que foi o objetivo de toda minha vida: o conteúdo de ideias das obras de arte. Eu estava persuadido, e eu estou sempre persuadido, que há toda uma cultura que não é secundária vis-à-vis à cultura literária ou filosófica da época, mas que não é igualmente conhecida porque evidentemente a linguagem figurativa, a linguagem visual é muito menos difundida do que a linguagem verbal. Eu sempre procurei reconstruir a filosofia dos artistas, até o meu último trabalho, sobre Michelangelo, que eu tentei descrever, assim como talvez Erasmo de Roterdã, como o maior filósofo do século XVI (1992, p. 15).

Mais adiante, na mesma entrevista, ele complementa: Às vezes, me reprovam por dar muita importância à cultura, às ideias, à reflexão, à filosofia dos artistas. Dizem: ‘Mas Michelangelo nunca refletiu sobre essas coisas’. Eu concordo. Mas eu as pensei e não as poderia ter pensado sem Michelangelo (p. 37).

Se Argan publicou um livro intitulado, parafraseando o título de um de seus livros, História da arte como história da cidade (1992), podemos dizer, seguindo esse entendimento da arte como modalidade de pensamento, que ele entende e escreve uma história da arte como história do pensamento. Dando outro salto de espaço e tempo, este descontínuo texto retorna a Belo Horizonte, à obra de Jorge dos Anjos. Em texto sobre ele e seu trabalho, Ricardo Aleixo (2009) indica como o artista conjuga, no trabalho e na vida, forças antagônicas: matéria e vazio, construção e destruição, raivas e raízes. E finaliza dizendo que Jorge “constrói vazios” (p. 144). Essa imagem e a abertura de um poema de Tavinho Moura – “Casa do fazer” (2009, p. 140) – constituem boas vias de acesso ao trabalho do artista e bem podem resumir a obra com a qual se iniciou essa leitura-viagem, fazendo-nos retornar aos planos que, com linhas incisivas, se abrem e se articulam incorporando à matéria o seu oposto, o vazio, para criar espaços cúbicos. A partir de “No meio do caminho”, o célebre poema de Carlos Drummond de Andrade (2006, p. 16), podemos dizer que no meio do caminho há não uma pedra, mas um cubo. E que esse cubo, por meio de suas frestas, de suas linhas, abre muitos caminhos.

Referências ALEIXO, Ricardo. “Movida a raivas”. In DOS ANJOS, Jorge. Jorge dos Anjos. Belo Horizonte: C/Arte, 2009. AMARAL, Aracy (org.). Projeto construtivo brasileiro na arte. São Paulo: Pinacoteca do Estado; Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna, 1977.

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ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006. ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992. ------. Texto sem título republicado in FONTELES, Bené e BARJA, Wagner (orgs.). Rubem Valentim: artista da luz. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2001 [1966], p. 37. CAHILL, James. La peinture chinoise. Genebra: Skira, 1977. CASTRO, Amilcar de. “A pescaria”. In BRITO, Ronaldo. Amilcar de Castro. São Paulo: Takano, 2001. CASTRO, Willys de. “Hércules Barsotti” [1973]. In CONDURU, Roberto. Willys de Castro. São Paulo: Cosac Naify, 2005. ------. “Obras recentes de Hércules Barsotti” [1974]. In CONDURU, Roberto. Willys de Castro. São Paulo: Cosac Naify, 2005. CONDURU, Roberto. Arte afro-brasileira. Belo Horizonte: C/Arte, 2007. GEERTZ, Clifford. O saber local. Petrópolis: Vozes, 1997. KRAUSS, Rosalind. “A escultura no campo ampliado”. Gávea, PUC-Rio, 1984, pp. 87-93. MOURA, Tavinho. “Casa do fazer”. In DOS ANJOS, Jorge. Jorge dos Anjos. Belo Horizonte: C/Arte, 2009. PERELMAN, Marc e JAUBERT, Alain. “Interview de Giulio Carlo Argan”. In BUONAZIA, Irene e PERELMAN, Marc (orgs.). Giulio Carlo Argan (19091992). Historien de l’art et maire de Rome. Paris: Les Éditions de la Paisson, 1999. SAMPAIO, Márcio. “Risco, recorte, percurso”. In DOS ANJOS, Jorge. Jorge dos Anjos. Belo Horizonte: C/Arte, 2009. SANTOS, Juana Elbein dos. “O sistema religioso e as entidades sobrenaturais: os ancestrais”. Os nagô e a morte. Petrópolis: Vozes, 1986, pp. 102-29. VALENTIM, Rubem. “Manifesto ainda que tardio”. In FONTELES, Bené e BARJA, Wagner (orgs.). Rubem Valentim: artista da luz. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2001.

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A intricação de espaços na arte

Stefania Caliandro Universidade de Roma

A complexidade espacial da arte não se reduz às suas imagens, mesmo que, na maioria das vezes, sejam essas o meio principal, ou até o único, para que entremos em contato com as criações. Sem querer omitir a questão dos vários meios sensoriais em que as obras podem atuar, nem subestimar a importância dos materiais implicados, privilegiar-se-á aqui a espacialidade gerada pelas imagens – limite ditado por uma simplificação arbitrária e preliminar de um âmbito, ainda assim, muito vasto. Para uma percepção contemporânea, a construção do espaço com relação às imagens evoca, entre outros, o problema de construir a profundidade em uma superfície geralmente bidimensional. Talvez isso pareça remeter, em primeira instância, à perspectiva renascentista. No sentido comum, essa técnica teria estabelecido parâmetros exatos para representar um espaço geometricamente contínuo, organizando e unificando as várias partes do quadro. Uma análise mais aprofundada demonstra, ao contrário, que essa é apenas uma das possibilidades de construir e, portanto, conceber o espaço da arte, e que, mesmo restringindo-se a suportes planos, não somente outras culturas realizaram obras de maneira diferente, mas essa própria forma perspética contém, nas suas realizações, elementos da própria desconstrução. É interessante repensar esse pretenso momento central da arte para entender até que ponto há ou não descontinuidade relativamente às concepções pós-modernas. Ressaltar-se-á, por outro lado, a influência da orientação historiográfica, dirigindo e, às vezes, forçando um certo tipo de olhar na interpretação da história da arte. Depois de ter sido exaltada como ápice da pretensa evolução rumo à conquista da terceira dimensão na superfície, a perspectiva linear começou a ser denegada na história da arte a favor de novas concepções modernas e contemporâneas do espaço. O abandono desse dispositivo, definindo um

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ponto de vista único e fixo, uma construção em linhas de fuga convergentes e um espaço organizado de maneira homogênea e mensurável, teria revolucionado a criação artística. Contudo, analisando melhor os espaços em questão, talvez se descubra alguma continuidade inesperada no que concerne à complexidade das obras, apesar da aparente posição de recusa declarada pelas teorias estéticas desde o final do século XIX. Mais do que exaltar uma ou outra solução formal, relacionada também a algum tipo de pensamento da arte, o presente texto se propõe a focar a complexidade espacial que atravessa as criações, reunindo diversas reflexões esboçadas pelos teóricos da arte e assumindo, ao mesmo tempo, uma ótica pós-estruturalista que descreva, sem nenhuma intenção exaustiva, a multidão e a variedade das formas espaciais. Perceberemos, notadamente, a existência de espaços descentralizados, construídos por justaposição e entrecruzamento de várias formas perspéticas, ou, ainda, em entrelaçamentos. A apreensão sensorial do espaço e sua representação e percepção através de uma imagem são dois momentos distintos que a teoria da arte deveria ajudar-nos a não superpor de maneira rápida demais. Se a ótica e as ciências da visão constituíram referências na construção de um espaço na pintura ou, em geral, nas artes que se valem essencialmente de duas dimensões (desenho, estampa, fotografia etc.), há muito tempo foram reconhecidos vários modos de representar o espaço percebido, em particular a profundidade da terceira dimensão no suporte plano. Em “A perspectiva como forma simbólica”, Erwin Panofsky (1975) estudou o problema de um ponto de vista histórico, levando em conta diversos sistemas de representação e construção do espaço anteriores à ideação da perspectiva linear. Anteriormente a esse ensaio, o pesquisador, teólogo, filósofo e matemático russo Pavel Alexandrovich Florensky, também conhecido como padre Paul Florensky, escreveu, em 1919, o texto “A perspectiva invertida”, no qual ele redimensionava a importância da perspectiva linear com relação a outros modos de construir o espaço em culturas diferentes. Assim, a perspectiva invertida, que Rudolf Arnheim ainda definia, cinquenta anos mais tarde, como um dos “desvios do realismo projetivo”,5 tornou-se, no ensaio de Florensky (1992), a via para levar em conta outras formas espaciais na pintura. Continua Arnheim: “Termo pelo qual designo o tipo de imagem criada por lentes, através de projeção ótica”. Seu texto começa assim: “A perspectiva invertida é um fato secundário. Ocorre de vez em quando em períodos da história da arte que não são submetidos à tirania da perspectiva dominante” (1989, pp. 167-94).

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O olhar dirige-se em primeiro lugar aos ícones russos dos séculos XIV, XV e, em parte, XVI, que transgridem a unidade espacial da perspectiva renascentista e são, no entanto, segundo Florensky, superiores em valor artístico aos que se adaptam a essas regras. O autor reconhece um princípio de policentrismo, segundo o qual os diversos elementos do ícone respondem cada um a seu próprio centro perspético, mais do que a um ponto de vista único. De maneira parecida, as linhas de contorno que se destacam pelo uso de cores diferentes e, em geral, os traços do desenho colocados em ênfase, assim como a ausência de uma única fonte luminosa e a iluminação contraditória das partes, contribuem com uma estruturação por planos, cientemente assumida pelas obras (Florensky, 1992, pp. 67-72). A reflexão se faz, em seguida, mais abrangente, incluindo, por exemplo, a produção egípcia e babilônica, mostrando, então, como também outras culturas não se submeteram ao ilusionismo preconizado pela pintura pompeiana que a pintura italiana, de Giotto ao renascimento, iria impor. De todo modo, a conclusão de Florensky desmente qualquer pretensão de realidade ou de justeza – senão simbólica – da perspectiva clássica: o espaço representado e o espaço que o representa são ambos bidimensionais, mas incomensuráveis entre si, pois sua curvatura é diferente e varia de ponto a ponto. Toda tentativa de superpô-los, curvando um dos dois espaços, ou, ao contrário, achatando o espaço curvo do objeto percebido, comportaria inexoravelmente rupturas e dobras de um dos planos. Como aponta Florensky, “a representação é sempre antes diferente do que semelhante ao original” (1992, p. 109, tradução minha). Florensky se vale de todos os seus conhecimentos para demonstrar, com recursos matemáticos, os limites da perspectiva clássica, que pressupõe: a concepção de um espaço euclidiano, isto é, isótropo, homogêneo, infinito e ilimitado – na acepção da geometria de Riemann – e de curvatura zero; uma ótica kantiana determinando um ponto excepcional e único no espaço infinito; e uma visão de um olho só, através de um ponto de vista fixo, imóvel e imutável, excluindo todos os processos psicofisiológicos em que o visível pode ser influenciado pelos espaços tátil, auditivo, gustativo, olfativo, do sentimento orgânico geral etc. (Florensky, 1992, pp. 110-4). Erwin Panofsky relançou, poucos anos mais tarde, essa correspondência entre o espaço perspético do renascimento e o espaço geométrico euclidiano. Uma construção homogênea, métrica e quase mensurável atuaria nas criações daquela época, uma vez que, segundo esse historiador da arte, a respeito

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dos sistemas de representação anteriores, o renascimento conseguia “fazer total abstração da estrutura psicofisiológica” do espaço para “construir um complexo espacial unívoco e coerente de extensão infinita (no quadro da ‘direção do olhar’)” (1975, p. 156). É a estrutura de um espaço “infinito, contínuo e homogêneo” que Panofsky encontra na perspectiva linear. Reaproveitando o ensaio de Ernst Cassirer, citado pontual e longamente em “A perspectiva como forma simbólica”, Panofsky contrapõe o espaço métrico renascentista ao espaço visivo e ao espaço tátil, que são, esses, anisótropos e não homogêneos.6 Essa dualidade entre um espaço métrico construído racionalmente e um espaço psicofísico não homogêneo foi retrabalhada, mais recentemente, por Jean-François Lyotard, que atacou “a organização gestaltista da percepção visiva” como “fruto de uma racionalização secundária” (1985, p. 156, tradução minha). Apoiando-se no ensaio La perspective curviligne, de Barre e Flocon, e demonstrando que nenhuma forma regular, exceto o círculo, pode realmente ser vista como tal e que a educação e o hábito levam o cérebro a retificar as distorções da percepção, Lyotard afirma que “[a]prender a ver é desaprender a reconhecer” e exorta dar espaço “ao lugar figural por excelência, ao campo da visão que a atenção focalizada reprime e que implica, em torno da pequena zona de visão distinta (zona foveal), uma vasta borda periférica ao espaço curvo” (p. 157). Dessa “heterogeneidade irreversível da zona focal e da periferia”, o autor ressalta, mais do que a importância da margem, o surgimento da diferença, ou seja, “o evento, a atemporalidade irreversível, a espacialidade não simétrica”, “incorporando o desequilíbrio em um sistema estrutural” (p. 165). Panofsky era ciente, pelo menos em parte, dessa questão quando expressava que a construção da perspectiva do renascimento se descuida dessas diferenças ou as ignora, isto é, não apenas nossa visão não é determinada por um único olho imóvel, mas a dimensão e a forma dos objetos são sujeitas a modificações aparentes. Por isso, as deformações laterais, ainda que debatidas pelos teóricos do renascimento, eram retificadas no momento da projeção geométrica sobre a superfície pictórica (1975, pp. 43-9). De acordo com Panofsky, isso teria levado os artistas a superar a contradição entre perspectiva naturalis e perspectiva artificialis, aplanando as incongruências (p. 67). Cf. o longo trecho de Philosophie der symbolischen Formen (1925), de Ernst Cassirer, citado por Panofsky nas páginas 42-3 de seu referido ensaio.

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Essa idealidade do sistema perspético do renascimento não se encontra, porém, na produção artística daquela época. Florensky foi bem cuidadoso a esse propósito, notando que os artistas cometiam erros e que nessas inexatidões perspéticas permanece, ao final, a força da arte (1922, pp. 91 e ss.). Por outro lado, desejoso de notar o impulso constante rumo ao aperfeiçoamento da ciência da arte, o livro de Martin Kemp reconhece as defasagens substanciais entre o geometrismo teórico e os modos utilizados para os artistas procurarem dar conta, de maneira eficaz, da percepção humana. Das primeiras experimentações renascentistas às obras que aplicavam rigorosamente a nova técnica para representar a profundidade na superfície, sem contar as criações que rejeitavam deliberadamente as normas perspéticas, o autor lembra correções instintivas e arranjos empíricos adotados pelos artistas no sentido de apropriarem-se da nova técnica e realizarem assim os efeitos esperados (Kemp, 2005, p. 29). Efetivamente, os artistas visavam escapar do impasse da deformação lateral: Brunelleschi e Piero della Francesca se preocupavam, tanto nas experiências plásticas como nos conselhos teóricos, em não ultrapassar um ângulo de visão ocular de 53° ou, em qualquer caso, inferior a 90°, ao menos horizontalmente. De maneira parecida, o autor do código Huygens convidava a não empregar pontos de vista próximos demais a fim de evitar escorços verticalmente acentuados, especialmente no que concerne às extremidades superiores e inferiores.7 Se essas considerações permaneciam relacionadas à construção da perspectiva linear, Leonardo da Vinci já começava a questioná-la, ressaltando que os ângulos de visão de objetos equidistantes entre eles se reduziam progressivamente nas partes mais afastadas do centro, de acordo com seu esquema do plano curvo, e provocavam deformações monstruosas – o que era preciso evitar – para um observador que não se colocasse exatamente no ponto de vista designado. Além disso, em 15071508, com seu tratado sobre o olho, Leonardo demonstrou que a visão ocular não se concentra em um ponto, mas que diversas pirâmides óticas atingem esse órgão. Consequentemente, nenhuma borda de objeto pode ser vista claramente, daí a oportunidade de seu sfumato nos contornos das formas (Kemp, 2005, pp. 55-64). Embora nos tratados, em geral, esses artistas estudassem o modo mais científico e rigoroso para aplicar a nova técnica perspética, suas realizações O autor do Código Huygens, tratado norte-italiano de meados do século XVI, parece ter sido identificado com Carlo Urbino de Crema (Kemp, 2005, p. 87).

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contradizem uma utilização fiel. Isso é evidente não apenas nas primeiras obras, nas quais essa construção do espaço ainda estava sendo desenvolvida – como no Banquete de Herodes (1423), de Donatello, com dois pontos de fuga diferenciados, um para o chão e a cena em primeiro plano, outro para a arquitetura e a parte superior do baixo-relevo –, mas também na maioria das representações perspéticas seguintes. Até Paolo Uccello, um dos mais fervorosos pintores de figuras em escorço, parece ter desenhado dois pontos de fuga na luneta de Natividade (aproximadamente 1450), cujo péssimo estado de conservação impede, infelizmente, uma adequada compreensão a seu respeito. Ele se serviu também desse expediente em O dilúvio universal (aproximadamente 1445), em que a construção em dois pontos de fuga diferencia a temporalidade das duas cenas – durante e depois do dilúvio – no interior da mesma representação (Kemp, 2005, pp. 47-9). Os artistas, de fato, não hesitavam em reunir diversos sistemas de profundidade espacial e amalgamá-los para transmitir uma impressão perceptiva eficaz. Assunção de São João Evangelista, esculpida em baixo-relevo por Donatello, ou o afresco no teto da Camera degli Sposi, de Mantegna, são outras ilustrações desse fenômeno: a ferramenta geométrica se hibridava com outras soluções em que diversas perspectivas – frontais, descentradas, de baixo para cima, mais ou menos acentuadas etc. – compartilhavam o espaço, desde já plural, da imagem. Em geral, as criações do renascimento e da época clássica manifestam praticamente uma arquitetura espacial por imbricação e entrelaçamento de várias formas perspéticas. Um espaço concebido como contínuo ou homogêneo, conforme o definia Panofsky, não se encontra senão excepcionalmente. Embora esse espaço tenha sido estudado e até planejado do ponto de vista teórico, quase nunca foi implementado. Seria um erro pensar que isso resulte de uma economia de meios práticos ou de uma falta de precisão na aplicação do modelo. Em primeiro lugar, porque a intuição estética prepondera sempre sobre a realização maquinal do sistema geométrico. Secundariamente, porque há tratados apoiando a hibridação do modelo. Leonardo, como mencionado acima, colocava em questão a perspectiva linear e justapunha, a essa solução, a ideia de uma representação espacial modificando-se na medida em que a visão se aproxime das extremidades do campo ou, ainda, uma perspectiva atmosférica fluidificando linhas e contornos e alterando os tons das cores para significar a distância. Mas é interessante olhar também os desenhos

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teóricos de Albrecht Dürer,8 nos quais ele procura geometrizar o corpo humano em volumes, projetando-o no espaço de acordo com suas várias orientações e deformando, enfim, esses blocos segundo uma ondulação curvilínea inesperada. O rigor retilíneo da perspectiva linear, portanto, seria superado ainda quando essa técnica começava a se difundir. A adoção de vários pontos de vista e, por consequência, de vários sistemas perspéticos no mesmo espaço da imagem não causava problema algum à sua apreensão estética. Assim, prefigurando muitas soluções compósitas de tetos, a cúpula de Lodovico Cigli na Capela Paolina, em Santa Maria Maggiore, em Roma (1510-1512),9 mostra figuras em escorço projetadas em função de um observador situado embaixo do afresco no centro da capela, enquanto as figuras nas bordas da cena são sujeitas a uma deformação aparente e representadas quase frontalmente. Sobretudo a imagem da Madona não se adapta à visão geral em escorço e toma, ao contrário, toda a sua altura quando é observada de um ponto de vista colocado exatamente na entrada da capela. É claro que a pintura de superfícies arquitetônicas, em que o olhar do visitante segue um percurso móvel dependendo da acessibilidade espacial efetiva do lugar, aumentava as possibilidades de entrelaçamentos perspéticos, que os tetos barrocos e o uso da squadratura tornarão sempre mais articulados. Voltando à organização gestáltica da percepção que Lyotard denunciava, parece essencialmente que eram a crítica e a teoria da arte que procuravam uma boa forma na complexidade espacial da arte clássica, uma espécie de ordem ideal baseada na perspectiva linear. Se houve racionalização secundária, ela remete então mais à história da arte do que às obras ou às reflexões dos artistas. Por outro lado, alguns teóricos perceberam e começaram a analisar essa articulação complexa nas obras. Em seu tratado sobre a nuvem, Hubert Damisch (1984) esclareceu como os pintores chegavam até a integrar espaços a princípio incomensuráveis no interior da imagem e como, valendo-se do elemento que mais confunde qualquer sistema perspético, isto é, a nuvem, os artistas introduziam a transcendência do figurável na representação figurativa. Ademais, o mesmo autor introduzia a ideia de dobra no espaço pictórico quando da análise de Narciso, de Caravaggio, confrontando-o Como esclarece Martin Kemp (2005), os desenhos de Albrecht Dürer reunidos em Vier Bücher von menschlicher Proportion (Quatro livros sobre a proporção humana), terminados por volta de 1523 e publicados postumamente em 1528, concernem à estereometria do corpo humano com relação a seus movimentos no espaço.

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Lodovico Cardi, dito Cigoli, A Madona da Imaculada Conceição, 1510-1512, Capela Paolina ou Borghese, na igreja de Santa Maria Maggiore, Roma.

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com o quadro de Poussin de igual tema (Damisch, 1996). Nesse sentido, é preciso ressaltar que a complexidade espacial não é prerrogativa da contemporaneidade e da arte atual; ela não se encontra apenas nas obras medievais e antigas por causa de uma inexperiência em conceber um espaço contínuo e homogêneo, mas atravessa também a produção de todas as épocas. Constitui o desafio maior para a teoria da arte: dar conta de um espaço que só uma abstração geométrica simplificadora pode reduzir a uma ótica puramente linear. Desenvolvendo as reflexões de Panofsky em âmbito semiótico, a canadense Fernande Saint-Martin procurou esboçar uma síntese de mais de 25 sistemas perspéticos possíveis na arte e na linguagem visiva (pp. 141-84, especialmente 164-82). De acordo com aquele historiador da arte alemão, ela ainda vê alguma homogeneidade espacial e um paralelismo com a geometria euclidiana na produção da perspectiva clássica. Mas a ótica se amplia resolutamente em vista de uma compreensão da espacialidade também nas obras de outras culturas. Percebe-se certo interesse nas formas adotadas pelas criações modernas e contemporâneas. Nesse quadro, a preponderância das soluções renascentistas fica relativizada, sendo finalmente a perspectiva linear e a atmosférica apenas dois casos da tipologia proposta. Assim, a autora inclui nos sistemas perspéticos várias técnicas e maneiras para gerar a sensação de profundidade na arte. Ao mesmo nível das perspectivas já reconhecidas na história da arte – como a perspectiva axial (também chamada perspectiva em eixo de fuga ou a espinha de peixe) e a perspectiva invertida – e paralelamente às perspectivas isométrica ou axonométrica e à cavaleira – ambas muito utilizadas na arquitetura, no desenho geométrico e na arte –, Saint-Martin se inspira nas intuições plásticas e nos escritos dos artistas para designar, por exemplo, como perspectiva ótica a profundidade gerada por justaposição de várias cores, tons, vetorialidades, dimensões, luminosidades e/ou texturas. Assim, a percepção desses elementos topológicos10 na pintura gera uma profundidade ótica e um relacionamento proxémico do observador com a obra, provocando uma flutuação dos planos (frente/atrás da tela) a respeito do que a autora chama de plano original do quadro (apud Wassily Kandinsky, O termo é central na abordagem de Fernande Saint-Martin (1994), definida também como semiologia topológica. Ela retoma esse termo da psicologia de Jean Piaget com o intuito de pesquisar as relações espaciais elementares entre as partes, isto é, as relações que se estabelecem entre quantificações não métricas, denominadas por ela de coloremas, assim como suas ordens em sequência ou por englobamento (pp. 12 e ss., especialmente 14-5).

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1970). Talvez a obra de Mark Rothko revele essa utilização da perspectiva ótica, assim como, obviamente em outros aspectos, a op art. A perspectiva paralela, pelo contrário, define-se pela apresentação de elementos justapostos e mostrados como vizinhos, apesar de sua efetiva proximidade espacial. Poderíamos pensar na perspectiva tectônica, como a definia Heinrich Wölfflin, opondo as primeiras realizações renascentistas à perspectiva barroca – outra forma perspectiva segundo Saint-Martin –, baseada, esta, no encadeamento de planos intermediários até o fundo, potencialmente infinito, da representação. Mas a autora vai além das referências à arte clássica ocidental e inscreve na perspectiva paralela exemplos oriundos da arte infantil, da produção das sociedades ditas primitivas, da arte egípcia, grega, bizantina, chinesa etc. Se, na lista de Saint-Martin, algumas técnicas perspéticas têm relação com o posicionamento do ponto de vista – como a perspectiva a voo de pássaro, a perspectiva oblíqua ou do alto (das montanhas, por exemplo), a perspectiva aérea ou, ainda, a perspectiva focal, que coloca seu objeto ao centro do campo visivo e na extensão por completo do suporte –, outras implicam um ajuste que o observador deve realizar para entender a obra. Isso ocorre: na perspectiva esférica, em que a imagem é trabalhada sobre um suporte curvo, quase esférico; na perspectiva da anamorfose, prevendo pelo menos um ponto de vista acentuado e estranho contraposto à visão usual; na perspectiva reversível, cujos exemplos mais evidentes são as imagens metaestáveis no sentido da percepção gestáltica etc. Por diversos aspectos, é difícil acreditar que essa listagem, declaradamente não exaustiva, proponha uma verdadeira classificação dos sistemas perspéticos, uma vez que algumas formas parecem derivadas de outras 11 ou se superpõem parcialmente entre si. 12 Por sua vez, a autora já teve ocasião de argumentar que o reconhecimento do eventual entrecruzamento ou da coexistência de diversas perspectivas na imagem não é um problema, pois, de acordo com o pensamento de Freud no qual ela se inspira, a contradição não tem lugar nenhum. Uma maneira surpreendente, mas eficaz, de sair do pensamento lógico, talvez bastante simplificador das teorizações na arte. Vejam-se as perspectivas frontal, paralela e em pisos (perspective en étagement, faixas ou quadrinhos dispostos horizontalmente, em Saint-Martin, 1994, p. 181).

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Veja-se a perspectiva em voo de pássaro com a do alto ou a aérea, assim como a perspectiva de levantamento (ou, por transposição, perspective de rabattement, em Saint-Martin, 1994, p. 175) com relação à projetiva.

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Sem buscar estabelecer juízos no âmbito dessa tipologia de sistemas perspéticos, parece-me oportuno ressaltar, particularmente, duas técnicas ou maneiras de criar a profundidade às quais Fernande Saint-Martin mostra-se atenta e cuja análise é inusitada na teoria das artes. A perspectiva de levantamento (ou por transposição) e a perspectiva arabesca ou em entrelaçamentos, de fato, são duas maneiras compósitas de construir e plasmar a espacialidade da imagem. Procedem por imbricação de, pelo menos, dois pontos de vista ou planos de projeção distintos. Implicam, assim, uma dinamização do olhar, um efeito de movimentação das profundidades expressas na imagem, além do deslocamento real do observador perante a obra. Conforme escreve a autora, a perspectiva de levantamento remete à arte persa, medieval e, de acordo com um exemplo tomado de Panofsky (1975, pp. 83-5), observa-se também na arte egípcia, mas casos evidentes encontramse sobretudo na arte infantil.13 Essa perspectiva une, em uma disposição geralmente frontal, um conjunto de elementos orientados diferentemente no espaço, como, por exemplo, de perfil e em visão cartográfica de mapa. Assim, as linhas delimitam as figuras tanto pelos contornos verticais quanto em seção horizontal, sem discordância aparente entre as diversas angularidades de visão adotadas. Essa maneira articulada de pensar e dar conta do espaço, justapondo e encaixando diversas perspectivas na mesma imagem, atesta, já nas primeiras fases da percepção humana, a faculdade de conceber e apresentar uma experiência visiva – e não somente visiva – complexa. Talvez essa compenetração de formas perspéticas não seja estranha também aos chamados erros renascentistas analisados acima, que atrapalham o rigor da perspectiva linear com a interposição de variantes intuitivas ou expressivas, mais funcionais à estética artística. A imbricação heterogênea de momentos perspéticos diferentes torna-se ainda mais sutil naquela perspectiva que Fernande Saint-Martin denomina de arabesca ou em entrelaçamentos. Nessa, a profundidade ótica de cores, formas, texturas etc. interage com “ondulações lineares, paralelas ou entrecruzadas, alternativamente escavando ou levantando a massa topológica do plano original, de frente para trás”; essa perspectiva é assim “suscetível de desenvolvimentos, de ramificações e de diversificações sem fim” (1994, p. 170). As referências principais se encontram nas artes oriental, persa, egípcia e medieval, assim como nas artes ditas menores e na Segundo o estudo, essa representação aparece nos desenhos de meninos por volta de cinco anos de idade (Saint-Martin, 1994, p. 175).

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arte ornamental estudada por Alois Riegl. Segundo a autora, essa perspectiva em entrelaçamentos reapareceu finalmente na arte contemporânea – “sem ter sido reconhecida” –, na pintura de Jackson Pollock.14 A fim de compreender melhor tanto essa forma perspética quanto a aplicação possível da tipologia proposta, considero oportuno entrar no mérito de dois exemplos sugeridos por Saint-Martin, incluindo assim considerações espaciais sobre a criação não ocidental e a aborígine no quadro de um estudo atento às diversidades e ao multiculturalismo da arte. A pintura corporal kadiwéu (ou cadiueu), intercalando de maneira aparentemente assimétrica motivos geométricos e trançados curvilíneos ornados de volutas e gavinhas, dinamiza as faces das mulheres em que ela é aplicada, com uma ondulação entre abstração e decoração que simultaneamente esconde e exalta a figuração própria do rosto e do corpo feminino. Nesse sentido, provavelmente a produção kadiwéu é mencionada como um caso de perspectiva arabesca ou em entrelaçamentos na tipologia de Saint-Martin, que remete expressamente à análise realizada por Claude LéviStrauss em Tristes trópicos (1966). Nesse ensaio, o antropólogo franco-belga detalhava alguns aspectos sociais da arte corporal em sua função de máscara. Acrescentava também a reflexão sobre a possível não correspondência entre a estabilidade perceptiva da obra final e o processo dinâmico de sua criação. Desenhos de pintura corporal, simples e equilibrados na configuração resultante, são fruto de uma imbricação progressiva e assimétrica das partes, desvendável apenas nas irregularidades dos pormenores. O conhecimento da técnica construtiva da imagem modifica então a percepção do trabalho pictórico, contribuindo com a flutuação dos planos e o entrelaçamento dos elementos colocados na obra. É preciso lembrar, todavia, que Lévi-Strauss pesquisou muito sobre os índios sul-americanos e que, em um ensaio anterior, inserira a análise da arte corporal kadiwéu em um discurso mais amplo sobre algumas formas de criação indígena.15 No belo e rico artigo “O desdobramento da representação nas artes da Ásia e da América” (1958), republicado mais tarde em Antropologia estrutural, a questão da espacialidade torna-se central. O desdobramento, tanto figurativo quanto socialmente significante, de uma cabeça pintada em Uma vez que a referência não é mencionada no texto, provavelmente Saint-Martin não conhecia as reflexões espaciais de Louis Marin sobre o dripping em all over de Pollock. Todavia, a análise do semiótico francês parece desenvolver-se de acordo com essa interpretação, aprofundando, por outro lado, ulteriores pontos relevantes (cf. Marin, 2004).

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Em Tristes trópicos, ele mesmo faz referência ao escrito precedente.

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um desenho kadiwéu – “o rosto não é realmente visto de frente; é constituído de dois perfis confrontados” (p. 294) – leva o antropólogo a se interrogar sobre os motivos e a persistência de uma técnica de representação da figura – geralmente humana ou animal – difundida em culturas aborígines temporal e geograficamente muito longínquas.16 Essa técnica da split representation (ou desdobramento da representação) é descrita do seguinte modo por Franz Boas:17 Imagina-se o animal partido em dois, da cabeça à cauda – ... há uma depressão entre os olhos, que vai até o nariz. Isto demostra que a cabeça propriamente dita não deve ter sido considerada uma visão frontal, mas que consiste em dois perfis que se unem na boca e no nariz, que não estão em contato na altura dos olhos e da testa... ou os animais são representados como divididos em dois, de modo que os perfis unam-se no meio, ou uma visão de frente da cabeça é mostrada com dois perfis unidos do corpo (Boas, 1927, pp. 223-4, apud LéviStrauss, 1958, p. 289).

Mostrando várias faces da figura, recompondo-a em uma espécie de assemblagem coerente e unitária dos diversos lados vistos, a técnica da split representation desloca e desdobra os elementos representados, reunindo-os em uma perspectiva composta que poderíamos definir de transposição (ou levantamento) das partes e sua nova intricação. Gera-se, desse modo, uma imagem que não é percebida como resultado de perspectivas contrastantes, até incomensuráveis, mas que é estruturalmente pensada em função de sua dimensão antropológica. Convém ainda distinguir, como precisa Lévi-Strauss, duas formas principais de desdobramento: uma, propriamente dita, em que o rosto ou o indivíduo inteiro é representado por dois perfis confrontados, e outra, pertencente igualmente à split representation, em que uma face é flanqueada por dois ou mais corpos. Se é prudente distinguir essas duas formas, dado que talvez elas não procedam do mesmo princípio, mostrase contemporaneamente, segundo o antropólogo, toda a importância do tratamento aplicado à face, particularmente ao rosto humano. Além disso, tanto em um caso como no outro, pode-se apontar a questão da saliência associada à imagem. Em termos inspirados na ótica warburgiana, o Essa maneira de representar espacialmente a figura foi achada nas criações indígenas do noroeste americano e, segundo Lévi-Strauss, encontra afinidades com a produção da China arcaica, da Sibéria, dos maori na Nova Zelândia e de outras culturas.

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Ainda que a versão portuguesa do ensaio de Lévi-Strauss traduza ocasionalmente split representation como “representação da divisão”, prefiro manter o termo inglês, conforme fez Lévi-Strauss, e indicar entre parênteses a acepção que ele sugeriu.

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antropólogo italiano Carlo Severi define a saliência como uma intensificação da eficácia da imagem por meio da mobilização, elaborada visualmente, de suas partes invisíveis (2004, p. 84). Conforme escreve Severi, reelaborando uma antiga teoria do arqueólogo australiano Emmanuel Löwy, as imagens ditas primitivas, paralelamente às estilizadas das crianças, não são rudimentares, são mnemônicas, exaltam os elementos constitutivos do objeto que têm valor pela memória da consciência individual ou coletiva de quem as criou. Assim, a intricação de elementos perspéticos que podem aparecer como discordantes ou incoerentes desvela, ao contrário, sua pertinência com respeito à cultura diferente na qual a imagem foi criada. Levando em conta as variantes da split representation com relação à sua possível origem na representação em um objeto tridimensional poliédrico ou cilíndrico, mais do que no suporte plano,18 Lévi-Strauss sublinha como todas essas formas se submetem à funcionalidade da criação, pois o fim não é apenas produzir um objeto decorado: a decoração é, sim, adaptada e modificada pela estrutura do objeto, mas determina finalmente a função dele – ritual, ancestral, totêmica, mágica etc., e não apenas estética. Esse valor antropológico é essencial; contudo, talvez seja oportuno enfatizar igualmente a importância técnica das variantes aqui mencionadas. A transposição espacial da figura gera representações por alguns aspectos de tipo similar, apesar de a imagem ser realizada seja nos vários lados de uma caixa retangular, seja sobre uma pulseira redonda, seja em uma superfície achatada (1958, pp. 302-3). Porém, a complexidade da imagem aumenta ulteriormente, dependendo do emprego de um suporte em uma ou mais dimensões. Mudam não apenas as projeções perspéticas necessárias e a maneira de juntá-las nos planos ou nos ângulos, mas varia também a fruição da imagem pelo observador, que vê de um olhar por inteiro ou em modo fragmentado a figura representada. A percepção da imagem implica, mais uma vez, a modalidade de apreensão de seu sentido, quer dizer, sua compreensão semiótica. A ideia de sistemas espaciais múltiplos e de perspectivas compósitas guiou-nos para analisar a intricação de planos e profundidades representadas que se justapõem, se entrecruzam e se transpõem um no outro. Mais dificil é entender como um sistema perspético possa valer-se do entrelaçamento de planos e profundidades, provocando uma ondulação ótica que perceptivamente escave ou levante o plano do suporte. Para essa forma mais sutil de intricação de espaços – a perspectiva em entrelaçamentos –, Saint A tese de Franz Boas é retomada e, em parte, discutida por Lévi-Strauss (1958, p. 302).

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Martin fazia referência explícita ao arabesco. Uma passagem muito rápida pelas produções da arte islâmica19 ajudará então a esclarecer esse ponto e favorecerá, ao mesmo tempo, uma abertura à riqueza desse patrimônio cultural, apesar de ele não ser adequadamente dominado por quem procede apenas a uma comparação espacial. No interior da arte islâmica, o arabesco compreende, no sentido lato, tanto a ornamentação com elementos vegetais estilizados quanto os entrelaçamentos rigorosamente geométricos. Talvez influenciada pelo andamento gráfico e pelo simbolismo da escritura, a trama dos arabescos se aproxima também do efeito de textura, presente tradicionalmente na produção nômade de tecidos e, em especial, de tapetes (Burckhardt, 2002, pp. 61-82). Assim, os monumentos islâmicos, repletos, em sua maioria, de decorações de azulejos e estuques, parecem quase edifícios com fachadas, paredes e cúpulas revestidas de tapeçaria. Evocam, na prática arquitetônica, a arte, por excelência sedentária, de algum gosto nômade pertencente a dinastias, a fundadores de império e à aristocracia de origem beduína, oriunda do deserto ou das estepes (pp. 107-17). Em inúmeros casos, as decorações vegetais ou, mais ainda, as geométricas, fruto de grande maestria técnica e sólidos conhecimentos matemáticos, especialmente da álgebra (em que os árabes primaram),20 fundam-se no ritmo continuamente repetido e variado da imbricação dos motivos. O entrelaçamento torna-se um elemento crucial da decoração islâmica. No entanto, para gozar de sua força, é preciso não apenas ver, mas percorrer com o olhar o andamento das linhas, os traçados das formas e seus entrecruzamentos, ou seja, a lógica morfogenética que animou e ainda dinamiza a composição. Observe-se, para mencionar apenas alguns exemplos, o revestimento das fachadas da necrópole de Shah-i Zinda, em Samarcanda, notadamente a fachada do mausoléu de Ali Nesefi (aproximadamente 1380) (Hattstein e Delius, 2004, pp. 416-25). O plano do suporte desaparece para deixar ver, em seu lugar, a urdidura dos elementos geométricos que o revestem. A percepção da fachada resulta movimentada, menos pelos pequenos relevos ou entalhes aplicados do que pela brincadeira visual dos traçados que se recortam, se A preferência do termo arte islâmica, em lugar de arte árabe, deriva não apenas da importância do valor religioso dos monumentos e das obras realizadas, mas, sobretudo, do grande número de povos que, ao longo dos séculos, contribuíram com sua produção.

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No século XI, o matemático e astrônomo Al-Khwarizmi, originário do Khwarizm (atual Uzbequistão), chamado a trabalhar em Bagdá, publicou Kitab al-Jabr, tratado de álgebra pelo qual ele é considerado o fundador da disciplina. Nessa mesma época, começaram a aparecer as primeiras decorações geométricas islâmicas (cf. Boujibar, 2007, pp. 141-8, especialmente 148).

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superpõem, se voltam para baixo. A textura da ornamentação altera o aspecto rígido e achatado da parede, permitindo uma flutuação do olhar, da frente para trás e vice-versa, um entrelaçamento de espaços que as vibrações luminosas exaltam. Amiúde na arte islâmica, a luz torna-se de fato protagonista, as variações de formas, cores e materiais tornam-se lugar para que ela perfure a superfície, clareie pesos, teça volumes e até trame transparências. A ideia de captar e difratar a luz, símbolo sagrado da unidade divina, reencontra-se também nas muqarnas (Burckhardt, 2002 pp. 82-7). Ali a textura da ornamentação apenas desenhada ou em leve relevo nas decorações parietais ganha dimensão e invade o espaço ambiente. Impropriamente chamadas de alvéolos ou estalactites, as muqarnas são séries de nichos inseridos nos tetos e no interior das cúpulas, articulando a passagem entre elementos arquitetônicos planos e esféricos, especialmente entre a cúpula e seu baseamento cúbico ou octagonal. Sem valor estrutural, movimentam a percepção e relançam, no espaço tridimensional, a brincadeira lógico-geométrica já presente nas ornamentações planas. Diversas variantes fazem delas um motivo recorrente em diferentes elementos arquitetônicos, geralmente para enfatizar o espaço sagrado e a complexidade da mediação com o alto (Stierlin, 2002). Sugerem um entrelaçamento do olhar na difração dos planos, atuando na terceira dimensão a proliferação de formas intersticiais quase fractais. Assim, esse breve percurso entre criações artísticas tão diversas, produzidas por culturas igualmente distantes, não apenas mostra a variedade e a diversidade das formas espaciais, mas também revela que a articulação complexa de espaços na arte não é fruto somente de um olhar contemporâneo. Evadindo as simplificações talvez até acadêmicas com as quais o discurso crítico acompanha a análise das obras, a complexidade da arte permanece o desafio maior para uma teoria que vise à compreensão da riqueza estética e plástica das criações. Na tentativa de aprofundar a questão da espacialidade, encontramos várias formas possíveis de intricação de espaços, desde aquelas amiúde desconsideradas e quase omitidas da arte clássica até a superposição, o entrecruzamento e os entrelaçamentos de perspectivas e profundidades na arte e na produção de imagens por outras culturas. Sem dúvida, muito ainda poderia ser acrescentado, ampliando a ótica dos espaços apresentada e representada na arte a uma concepção dos espaços da arte,21 isto é, desenvolvendo o valor da obra como meio – medium Retorno à diferença entre espaço do quadro e espaço no quadro, proposta por Louis Marin (2004), distinguindo-os também do espaço do observador.

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no sentido latino – e, então, sua incidência com relação à definição do espaço do observador. É um objetivo crucial da semiótica da arte pós-estruturalista procurar entender como o espaço é trabalhado pelas imagens ou, melhor, como as obras criam espaços em, através e a partir de si mesmas.

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Sobre as irmandades de clérigos em Portugal e na América portuguesa: o trânsito de modelos artísticos entre as duas margens do Atlântico André L. Tavares Pereira Unifesp

Sobre as irmandades de clérigos

As irmandades de clérigos são agremiações que reúnem os membros do clero secular, congregando-os em uma corporação que, como sublinharia o historiador inglês Charles Boxer, procurava emular a estrutura das ordens religiosas primeiras. Embora se estruturassem ao redor da figura tutelar de São Pedro, devoções a outros santos, como São Felipe Neri, Nossa Senhora da Conceição ou da Assunção, eram também patrocinadas pelos irmãos. Essas agremiações têm sua existência contínua registrada ao menos desde o século XV, quando se funda, na catedral de Viana do Castelo, uma irmandade de clérigos devotada a São Pedro. Em fins dos anos 1590, temos já notícias sobre a fundação de uma irmandade similar em Salvador, com capela junto à Sé. No século XVII, seriam fundadas outras tantas em Amarante, no Rio de Janeiro, no Porto e em Recife. Seria em meados do século XVIII, entretanto, que essas irmandades alcançariam seu momento de maior proeminência, muitas delas passando por uma verdadeira refundação. A partir da década de 1720, os irmãos construiriam suas sedes definitivas, não raro em pontos privilegiados do espaço urbano e contando com edifícios marcados por grande ousadia formal. As torres elevadas e as experiências com plantas centralizadas poligonais ou elípticas são os recursos mais sublinhados. O caso do Porto, com risco de Nicolau Nasoni, o do Rio de Janeiro, com risco atribuído a José Cardoso Ramalho, o de Recife, por Manuel Ferreira Jácome, e o de Mariana, por Souza Calheiros, são significativos na constituição desse regime de exceção arquitetônico que caracterizou as igrejas dos clérigos. Porém, havia mais: sua implantação espetacular, dotada de apurado senso cenográfico, as transformou em marcos monumentais onde quer que se

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instalassem. Sob esse ponto de vista, os exemplos da torre nasoniana do Porto e o sítio elevado em que se erigiu a igreja dos clérigos de Mariana são os casos mais notáveis. A função específica dessa agremiação – como ainda é possível perceber a partir da leitura de seus compromissos1 – era a centralização administrativa do clero secular, processo que se aprofunda a partir do Sínodo de Salvador, em 1707. Apesar disso, o que se percebe é que as irmandades de clérigos organizaram-se como uma versão em ponto menor da estrutura hierárquica eclesiástica, algo como uma Igreja de Portugal dentro da Igreja de Roma. As inscrições nos quadros da irmandade eram feitas logo após a ordenação dos padres, mas eram também irmãos os cônegos, bispos, arcebispos e mesmo o patriarca de Lisboa. Não raro, os prelados eram, eles mesmos, figuras-chave na criação dessas instituições. Assim foi com D. José Fialho, em Recife, ou D. Sebastião Moneiro da Vide, primeiro arcebispo de Salvador. Membros de outras ordens religiosas eram também aceitos, como no exemplo clássico de D. José Maria da Fonseca e Évora, franciscano que se tornaria bispo do Porto em 1741 e provedor da irmandade já a partir de sua elevação ao cargo. D. Tomás de Almeida, bispo do Porto e primeiro patriarca de Lisboa, era, igualmente, irmão do hábito de São Pedro e mecenas particularmente ativo na constituição do patrimônio da irmandade portuense de clérigos. Conviviam no corpo da irmandade, no reino ou na colônia, membros dos mais diversos escalões e, por vezes, leigos que recebiam permissão especial para isso. No contexto europeu, grosso modo, essas agremiações tenderam a ter papéis e estruturas distintas do que se percebe no caso português. Em certa medida, as irmandades de clérigos, como os Oratorianos, operavam no contexto da Península Itálica. De fato, vamos encontrar no Porto um grupo de padres reunidos ao redor do culto de São Felipe Neri que dará origem a um terço da nova irmandade de clérigos que se cria por volta de 1731. O mesmo ocorreria no caso de Recife, situação em que os clérigos de São Pedro compartilhariam, por certo tempo, o espaço gerido pelos Oratorianos na Igreja da Madre de Deus. Agremiações exclusivamente voltadas para o clero secular existiram também na Espanha e, em alguma medida, na América espanhola – o caso mexicano nos é mais familiar –, mas não adquiriram nesses ambientes o relevo que aparentemente as distinguia no caso português. Referimo-nos, especificamente, aos livros de compromisso das irmandades de São Pedro dos Clérigos de Mariana (1729, Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana) e Salvador (1853, Arquivo da Irmandade de São Pedro dos Clérigos).

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Além da ideia do modelo português: a emulação de Roma O dinamismo do ambiente artístico em Portugal entre os anos 1710 e 1750 é, em muito, resultado direto da criação, em 1716, do patriarcado de Lisboa. Os privilégios garantidos aos patriarcas lisboetas pelos papas diversos, de Inocêncio XI a Pio VI – e muito particularmente por Bento XIV –, tiveram como corolário tanto o incremento no aparato de procissões, auxiliado pela presença de um encarregado romano a zelar pela decência do culto e outras manifestações litúrgicas, quanto a encomenda de obras a Roma, como a Capela de São João Batista em São Roque de Lisboa, para não falar da sofisticação dos sinais da presença portuguesa nos círculos eclesiásticos romanos. Estudos sobre as entradas triunfais de bispos no reino ou na América portuguesa, ou investigações sobre alfaias, ou mesmo a mobília – tronos episcopais, objetos litúrgicos ou castiçais, por exemplo – e peças artísticas associadas intimamente com esses personagens capitais da igreja portuguesa poderiam revelar a mudança que representou não só a nomeação de D. Tomás de Almeida para o posto de patriarca de Lisboa, mas igualmente sua elevação ao cardinalato em 1737. Cada um desses eventos determinou privilégios que se transformavam em conteúdo visual e legitimavam, por exemplo, a utilização de elementos como o triregno – a tríplice tiara dos papas – e as chaves – as armas papais – pelas irmandades de clérigos. Mudada a situação do clero, alterava-se seu programa visual: sintomáticas, nesse sentido, seriam as sucessivas encomendas de novas imagens de São Pedro em trajes papais efetuadas pelas irmandades de Recife e Mariana, em meados dos anos 1740, para substituir as antigas imagens de São Pedro apóstolo que haviam servido aos padres fundadores de uma e outra irmandade. As novas imagens, vestidas no rigor da moda eclesiástica setecentista, envergando as vestes trespassadas por uma movimentação de gosto berniniano, figuravam de modo eficaz a presença do Príncipe dos Apóstolos e simulavam a centralidade nos extremos do Império.

Considerações finais A escolha pelo tema das irmandades de São Pedro, como esperamos ter ficado claro ao longo da visão geral que acabamos de propor, teve como finalidade possibilitar o desenvolvimento de uma investigação que necessariamente pudesse estender-se sobre pontos diferentes do mapa

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cultural português e americano – e não só sobre eles – durante o século XVIII. Pensando numa contribuição efetiva para uma coletânea de textos como a que ora se apresenta, que visa operar como estímulo a futuras investigações e como um compêndio de introdução ao estudo da história das artes, gostaríamos de concluir com algumas perguntas e hipóteses analíticas. Não são, necessariamente, novidades absolutas. São, antes, propostas – no sentido das propostas de Italo Calvino (1990) para o novo milênio – que gostaríamos de ver formuladas de modo claro em um momento em que se cuida de sugerir novos pontos de partida a pesquisadores ou aos interessados na compreensão do desenvolvimento dos estudos sobre um patrimônio comum a dois contextos culturais diversos mas parelhos, como é o caso dos de Brasil e Portugal. O processo de estruturação das irmandades de clérigos não segue exatamente a regra da criação anterior no âmbito do reino para posterior implantação na colônia. Sua instauração se move, no que diz respeito à cronologia, de um lado a outro do Atlântico, resultando em grupos de maior ou menor complexidade, dependendo dos contextos citadinos em que surgem. Pareceu-nos, assim, que seu desenvolvimento é, de fato, processo de múltiplas faces que se dá entre América e Europa. Nisso reside a novidade de sua história, inclusive no que diz respeito à criação artística e aos processos de mecenato e de fixação de um gosto local. Não se preserva necessariamente a lógica do modelo dotado de longevidade em Portugal que se transfere posteriormente à colônia, mas formam-se programas iconográficos e decorativos que, embora baseados em razões similares, materializam-se – de modo simultâneo – em uma pluralidade de soluções. Outro ponto diria respeito ao trato dos limites cronológicos desses estudos. O tempo de constituição efetiva do aparato decorativo das irmandades, em algumas situações, extrapola arcos temporais razoáveis, estendendo-se por longas durações. O caso da igreja dos clérigos de Recife é exemplar sob esse ponto de vista. Iniciadas as obras ao redor de 1728, o templo não seria sagrado antes de 1782. Obras de pintura de grande significado seriam executadas em 1764, ao longo da década de 1790, e, a seguir, entre 1802 e 1804. A talha decorativa do altar seria refeita ao longo da década de 1860 – mas emulando modelos setecentistas – substituindo a decoração em ruínas executada no último quartel do século XVIII. Assim, a circunscrição temporal restritiva ou a identificação da criação artística com momentos históricos pontuais nem sempre solucionam as questões que o

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objeto selecionado nos propõe. A história do devir dos objetos artísticos, de suas reutilizações, correções e eventuais restauros devem enriquecer a análise dessas mesmas obras, dando a perceber de modo efetivo a densidade do tecido cultural em que elas se inserem. Talvez devêssemos caminhar no sentido de uma história de superposições e permanências, da reconstituição dos usos e sentidos múltiplos – e superpostos – dos objetos de arte, da arquitetura, da música ou da cenografia em vez de cuidar exclusivamente de uma abordagem classificatória e imóvel no tempo. As variantes locais no tratamento plástico das formas decorativas, nas soluções arquitetônicas e na encomenda de obras artísticas tenderam a assumir, no caso da historiografia brasileira do século XX, um viés nacionalista muitas vezes acentuado. Entretanto, proporíamos a compreensão desses fenômenos antes como o desenvolvimento autônomo de certos procedimentos que, ao se confrontarem com matérias-primas diversas ou artífices com qualificações e sofisticação distintas, acabaram produzindo novas concreções formais. Revestir essas mutações de conteúdo ideológico, utilizando-as como mito fundador de um caráter nacional, foi operação posterior que, por vezes, resultou numa tópica de ruptura nem sempre proveitosa. Unidades estilísticas compreendidas como grandes sistemas talvez sequer tenham existido no Portugal setecentista com o rigor de clivagem que se lhe deseja, por vezes, atribuir. O que se percebe, ao contrário, é um grande dinamismo na construção das linguagens visuais desses contextos artísticos. Cabe às análises futuras materializar em seus discursos esse jogo do encontro do estilo e sua metamorfose perene. No caso do Porto, no âmbito da irmandade dos clérigos e de seus patrocinadores, vimos como a linguagem visual estrutura-se a partir da atuação de um artista toscano – Nasoni – de experiência bolonhesa e com passagem por Malta ou de um pintor como Pacchini, que acaba por introduzir os modelos de Ripa em Portugal. O encontro de Nasoni com o granito nortenho, com a herança gótica anterior, com as intervenções de Santos Pacheco e a decoração exuberante da talha dourada típica da região ajudou a plasmar, ao longo de três décadas de atividade contínua, uma província artística autônoma. Nesse sentido, há tanta diferença entre a arte do Douro ou do Minho e aquela do Algarve quanto entre essas e a de, por exemplo, Salvador ou, se quisermos desenvolver o ponto, entre a Lisboa dos anos 1770 e Recife ou entre a Lisboa joanina de 1740 e o Alentejo. A eleição de temas que possibilitem antes a compreensão do modo com que as múltiplas fontes visuais se entrecruzam

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parece-nos, agora, campo mais promissor e urgente do que os exemplos de isolamento cultural e de fixação de uma tópica localista, superando-se o ciclo da simples identificação dos possíveis modelos portugueses para a produção artística que compõe a herança brasileira do século XVI ao XIX.

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Sacrifício, mártir e imagem

Jens Baumgarten Unifesp

Este artigo pretende analisar a ligação entre a construção do sacrifício e a do mártir. No cristianismo, o sacrifício possui uma importância fundamental em relação ao papel da imagem, assim como nas artes plásticas. As discussões sobre a presença de Cristo na Eucaristia e o chamado conceito da transubstanciação determinam não apenas os debates paleocristãos e medievais, mas estabelecem igualmente as relações litúrgicas, estéticas, políticas, corporais e culturais entre tais concepções. Os debates sofreram uma condensação em torno da Reforma e Contrarreforma no início da primeira época moderna. A polêmica sobre o “testemunho de sangue” foi inserida no discurso sobre o sacrifício, tornando-se o martírio evidência da fé. Assim, o ato de testemunhar deve ser entendido como referência material à religião. O discurso sobre o sacrifício e sua relação com a imagem, no que se refere a debates teóricos e soluções artísticas, não se restringe ao mundo ocidental e ao cristianismo, mas abrange também outras religiões monoteístas, como o judaísmo e o islamismo. Este artigo pretende fornecer uma visão geral dos conceitos de sacrifício e martírio e suas respectivas representações visuais não somente nas religiões tradicionais, mas incluindo também as posições de religiões políticas, como o nazismo, com suas interpretações figurativas do sacrifício e do martírio. As representações dos mártires parecem dominar a história da arte durante a antiguidade tardia, a Idade Média até o final do Antigo Regime, como também as encenações do chamado barroco europeu e das Américas a partir do século XVI. Tais representações foram interpretadas como uma das características da cultura cristã, como apontam Bowersock (1995) e Weigel (2007). No entanto, a figura do mártir e suas representações ganharam nova importância no começo do século XXI com os mártires da Revolução e do

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islã, sobretudo devido aos atentados de 11 de setembro em Nova Iorque. Nesse contexto, as fotografias dos mártires no Líbano, na Palestina e no Irã compõem apenas uma parte dos exemplos publicados e divulgados em grande número por cartazes nas cidades e nas novas mídias, como a televisão e a internet. Essa observação levanta duas questões: a primeira sobre a função e a definição do mártir no cristianismo e no islamismo, a segunda acerca da relação entre mártir e imagem. O complexo composto por imagem e mártir inclui também os discursos sobre o sagrado e o sacrifício. No idioma grego, o termo martys significa testemunho, cuja modificação em latim para testemunho de sangue pode ser encontrada, sobretudo, nos primeiros dois séculos de nossa era. Em geral, a literatura secundária afirma que o conceito de martírio é uma invenção genuinamente cristã, negando assim as tradições mais antigas que podem ser encontradas, por exemplo, no texto “Ad martyres”, de Tertuliano, no qual se descreve o culto de diamastigosis e suas representações próprias, discorrendo sobre as festas em honra à deusa Diana. Esse culto foi praticado em memória dos sacrifícios humanos de doação de sangue à deusa. Nesse contexto, podem ser mencionados como padrão de martírio também o autossacrifício de Lucrécia para a glória de sua pureza e castidade e os suicídios dos judeus contra a ocupação de Antíoco, descritos no Livro de macabeus. O que se intensificou nos primeiros dois séculos foi a construção do termo mártir no sentido de morte ou de sacrifício a (e por) algo com uma conotação de suicídio ou aceitação da morte. As diferentes formas e interpretações nos séculos seguintes, evidentes em suas representações, podem ser compreendidas dentro do processo de diferenciação das três religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. A qualidade específica do mártir cristão constitui-se na conexão rigorosa entre martírio e confissão, constância e testemunho. Por conseguinte, não é suficiente que o mártir dê o testemunho de seu sacrifício apenas com sua morte, mas também que essa tradição seja documentada em textos e imagens. Com isso, o testemunho de sangue passa a ser ao mesmo tempo escrito e visual. Chama a atenção, contudo, o fato de que as primeiras representações de mártires sejam de mulheres, em comparação com os séculos posteriores ou com o islamismo. Os primeiros mártires islâmicos foram as vítimas de perseguições religiosas em Meca. No entanto, as reações dos fiéis não foram o sofrimento voluntário de tortura ou morte como testemunho de devoção, mas sua

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emigração para Medina no ano 622. Duas batalhas, no ano 624 em Bar e em 625 em Uhud, ganharam, porém, importância crescente para o entendimento do conceito de mártir. Os mortos foram entendidos como “mártires do campo de batalha” (Horsch, 2007, p. 100; Neuwirth, 2004, pp. 258-81; Donner, 1991, pp. 31-69). Se a morte de um combatente na sociedade tribal tinha o significado de um sacrilégio que exigia a vingança de sangue, no islã a morte foi reinterpretada como um ato de honra a ser recompensado no além-mundo. A figura do mártir se refere também à tradição paleocristã com sua concepção de testemunho de fé paciente e sereno, transferindo esse conceito ao combatente autossacrificado, que se inseriu na cultura árabe pré-islâmica. Diferente do que acontece no cristianismo, porém, o mártir não tinha a função de se purificar por meio da expiação e, assim, conciliar a comunidade. Na primeira fase do islã, o mártir serviu como modelo de comportamento, sem, no entanto, ter sido adorado em formas rituais ou de culto. As representações mais impressionantes são encontradas a partir dos séculos XV e XVI em miniaturas turcas. Essa observação leva ao segundo aspecto do problema aqui tratado: a relação entre os conceitos de imagem no cristianismo e no islã. Na perspectiva da literatura eurocêntrica, a posição do islã parece por vezes consensualmente contra as imagens. Do mesmo modo, as posições dentro do cristianismo experimentam uma ambivalência entre diferentes fases, havendo períodos em que dominavam ou a iconofobia ou a iconofilia. Referem-se todas as três religiões monoteístas ao segundo mandamento, que aparentemente proíbe a produção de imagens. Porém, no judaísmo, e a partir de tais discussões, os conflitos são muito mais complexos: trata-se então da relação entre imagens materiais e imaginárias, imagens figurativas e abstratas, imagens sagradas e profanas (Besançon, 2009, pp. 63-146). Durante o Império Bizantino, em simultâneo a diversas polêmicas, ocorreu no islamismo o iconoclasmo, seguido de defesas teológicas representadas principalmente na figura de João Damasceno.2 Em um procedimento comum às religiões monoteístas, os jurídicos criavam os conceitos em relação às imagens fundamentados em três princípios: a proibição da adoração de ídolos, o caráter da impureza e a ideia da insubstituição da criação divina. Como Silvia Naef atesta, o tema da proibição das imagens não recebeu no islamismo a mesma atenção e importância que no cristianismo, com suas discussões polêmicas. A questão Cf. a vasta literatura sobre o iconoclasmo bizantino, como Brubaker (2001). No Ocidente, as discussões podem ser encontrados nos chamados “Carolini ibri” (Besançon, 2009, p. 151).

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das imagens foi discutida no contexto de outros temas, não tendo sido concebidos tratados enfocando apenas as imagens. Porém, os hadithos, que ditavam normas para as vestimentas, o comportamento e a oração, tratavam implicitamente das imagens. Al-Ghasâli (1058-1111), por exemplo, se ocupa das imagens no capítulo sobre a “decência de um bom muçulmano” (Naef, 2007, pp. 25-6). Sobretudo nos primeiros séculos dos conflitos com o cristianismo, os líderes políticos e religiosos não apelavam à destruição de imagens figurativas, mas dos símbolos polêmicos, como a cruz, ou daqueles que representavam dogmas proibidos pelo Alcorão, como a Trindade. Esses deveriam ser destruídos. Essa animosidade em relação às imagens resultou em consequências para o uso destas. Imagens figurativas foram banidas de locais sagrados, como mesquitas e salas de orações, e também de locais públicos. A argumentação se fundamenta na afirmação da impureza da imagem figurativa. O caráter sagrado de um local é definido pela ausência de objetos impuros (Naef, 2000, pp. 289-307). Ao contrário do que ocorreu no cristianismo até o início dos debates da Reforma protestante e da chamada Contrarreforma, o islã distinguia a imagem de culto da imagem profana, sem fazer, porém, referência à produção artística. Assim, representações gráficas foram banidas dos espaços sagrados, podendo ocorrer, contudo, em contextos profanos. Novamente nesse caso, os objetos encontrados nos primeiros séculos não se explicam por uma simples oposição. Os califas omíadas construíram mesquitas em Jerusalém, a Cúpula da Rocha em 691-692, e a Mesquita de Damasco em 706 e 714-715. Ambos os edifícios foram decorados apenas com ornamentos abstratos, apesar de seus artistas terem recebido sua formação nas técnicas e padrões da arte bizantina. No mesmo período, também se encomendaram os palácios no deserto da Síria, que possuem uma decoração rica em afrescos representando não apenas flora e fauna, mas também figuras humanas. À primeira vista, a suposição de uma distinção rígida parece comprovar-se. No entanto, as pesquisas de Oleg Grabar (1977) demonstram que justamente a situação da concorrência de um sistema iconográfico consistente e evidente forçou o islã em suas representações sagradas e públicas a se limitar a representações abstratas, o que se justificou posteriormente nos hadithos. Isso significa que a ausência simultânea de imagens figurativas e de uma postura iconofóbica veio a exigir uma explicação teológica nos séculos posteriores.

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Devido à restrição ao tema principal, não é possível aqui sequer esboçar as linhas gerais da história islâmica das artes plásticas. No contexto apresentado, é interessante a existência de poucos exemplos de escultura tridimensional. Eles representam, no xiismo, a figura do mártir Husain ibn Ali, que pode ser considerado o protomártir do xiismo. A morte do filho do quarto califa Ali e da filha do profeta Maomé em 680 significa também o evento da constituição do xiismo, que se separou então do sunismo, a corrente principal. Apenas quatro anos mais tarde, os penitentes de Kerbala passaram a buscar a morte em tributo ao martírio de Husain. Tais sacrifícios transformaram-se em um ritual até hoje comemorado em territórios xiitas, como no Irã e no Iraque. Em uma procissão rítmica, os penitentes invocam solenemente os nomes dos mártires, sobretudo aquele do fundador Husain, e cortam a pele na região da fronte, deixando expostos os rostos ensanguentados. Desse modo, eles não apenas representam a figura de Husain no momento de sua morte, mas também reencenam o sacrifício. O conceito do mártir no xiismo distingue-se das ideias do período inicial do islamismo e de sua corrente maior, o sunismo. A figura de Husain resume o aspecto de culto e adoração, ideal próximo ao conceito de paixão no cristianismo. A história de Husain também é encenada como drama de mártir – ta’ziya – durante os dez dias da tradicional festa Ashura. Na época moderna, a figura de Husain permite também a entrada de imagens figurativas, pelo menos virtualmente, no território do sagrado. Pinturas de grandes dimensões conectam as estações do sofrimento e da morte de Husain. No centro da primeira parte, encontra-se Husain sobre um cavalo branco, na tentativa de buscar água no rio Eufrates para aliviar a sede de seu filho. Esse ato de clemência marca o início do martírio que resulta na morte de Husain e sua família. A última cena mostra o cavalo branco sozinho em uma paisagem deserta: uma iconografia acerca de uma sociedade sem governador justo.3 No cristianismo, por sua vez, ocorreu uma profunda ruptura com relação às imagens e aos mártires no contexto da Reforma protestante e da chamada Contrarreforma. Particularmente em Roma, desenvolveu-se durante os primórdios do cristianismo uma tradição oposta ao princípio luterano da sola scriptura. A atenção passou a se concentrar não apenas na restauração das igrejas paleocristãs, sobretudo no ano jubilar de 1600, mas também na defesa e na propagação da devoção aos santos, defendida perante os protestantes. Cf. Neuwirth (2007), Ayoub (1978) e Kermani (2002).

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Em virtude do espaço de que dispomos, seria impossível mencionar aqui todos os esforços dirigidos a revitalizar – ou mesmo reconstruir – a época inicial do cristianismo, tal como fora exemplarmente formulado por Cesare Baronio nos Annales eclesiasticae. Esses temas adquiriram especial importância para a missão dos jesuítas, cujos noviços, procedentes do centro da Europa, recebiam sua formação em Roma. A igreja de Santo Stefano Rotondo, um edifício paleocristão do século V/VI situado em Monte Celio, em Roma, estava consagrada ao primeiro mártir na sucessão de Cristo, Santo Stefano, e servia de igreja colegial para o Germano-Humgaricum da recém-fundada ordem jesuítica. A ordem, como toda a Igreja pós-tridentina, interpretava a evangelização como uma guerra contra os hereges. O ciclo de pinturas murais de Santo Stefano Rotondo consiste de trinta imagens na parede exterior do ambulatório, afrescos de mártires, destacados pelos sanguinários guias de viagem do século XIX.4 Esse excesso de violência jamais se encaixou nas normas estéticas do século XIX por várias razões, entre elas seu conteúdo violento e seu estilo arcaico. A encenação dos episódios em Santo Stefano seguiu um padrão tradicional: os afrescos estão marcados por pilastras e semicolunas, coroados por uma frente lisa e posicionados sob uma janela circular pela qual a luz incide no interior da galeria. Foram realizados no princípio dos anos 80 do século XVI por Niccolò Circignani – chamado Il Pomarancio – e Matteo di Siena, com a colaboração de Antonio Tempesta. Quase como em um compêndio, os martírios mostram cronologicamente um período de 480 anos, representando cada afresco o domínio de um imperador romano. O ciclo se inicia na área sudeste do ambulatório, próximo às capelas de São Paulo Ermitão e Santo Stefano Rei da Hungria, e finda a noroeste, junto à porta de entrada, no vestíbulo. Cada afresco está marcado por duas colunas. Destacam-se especialmente o centro e os quatro braços laterais da cruz, diante dos altares consagrados a Santo Stefano, patrono e protomártir, Primo e Feliciano, ambos com capela própria, Francisco, Clemente e a Santa Cruz. Os afrescos de Circignani não apresentam martírios independentes ou retratam santos separadamente, mas combinam vários martírios em uma só imagem. Cf. Monssen (1981; 1982a; 1982b; 1983a; 1983b). Sobre a história da arquitetura da Antiguidade tardia e da Idade Média, cf. Brandenburg (1998). A descrição mais recente da restauração pode ser lida no volume organizado por Brandenburg e Pál (2000), sobretudo no texto de Insolera (2000), sobre a tradição da iconografia dos mártires. Há também os textos recentes de Burschel (2003), Poletto (1989) e Baumgarten (2004, 2007).

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A relação estrutural entre imagem e texto segue os modelos emblemáticos usuais. As cenas distintas que concorrem no afresco estão dotadas de letras que remetem a inscrições latinas e italianas, a fim de tornar cada ação clara e classificá-la cronologicamente. Ademais, as inscrições estabelecem um nexo entre as imagens e a prática litúrgica, sobretudo por meio do vínculo com a concepção imagética inaciana pós-tridentina. Se, frente à recusa protestante das imagens, os teólogos católicos desenvolveram uma nova forma de teologia das imagens e de visualização baseada em suas teorias antropológicas, sociais e políticas, nesse exemplo parecem essenciais os aspectos didático-mnemotécnicos dos exercícios espirituais, sobretudo a composição do lugar.5 Para Inácio de Loyola, isso inclui a reconstrução mental do aspecto visual de uma cena como condição essencial para a meditação e seu conteúdo espiritual.6 Tal argumentação não procede no momento em que relaciona esses afrescos com os textos mais próximos sem considerar o amplo marco em que se encontra o discurso da visualização. Assim, é necessário situar essas representações visuais em um metadiscurso posterior ao Concílio de Trento. Entre os teólogos pós-tridentinos, podemos destacar aqui, sobretudo, os conhecidos arcebispos Carlo Borromeo e Gabriele Paleotti, assim como os jesuítas Roberto Bellarmino e Gian Domenico Ottonelli, que, mais do que discorrer sobre uma estética póstridentina jesuítica, redigiram reflexões teóricas contemporâneas sobre a imagem, a visualização e suas consequências para a teoria do conhecimento. A criação artística não deve, portanto, remeter monocausalmente às instruções teóricas, porém, é necessário procurar entender tais obras como um processo discursivo sobre a imagem e a percepção visual. A concepção da teoria da arte de Bellarmino deve ser entendida sob a perspectiva de sua “teologia do visível”, que alude a Inácio de Loyola (Daurentiis, 1990, p. 589). O célebre applicatio sensus exige uma imaginação religiosa que também perceba visualmente os dados visuais transmitidos pelo texto. A uma determinada passagem textual deve corresponder necessariamente uma imagem. Para Paleotti, tudo aquilo que o ser humano conhece ou reconhece, seja intelectualmente ou pelos sentidos, ele o

Cf. em detalhes Fabre (1992).

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Cf. sobretudo Smith (2002) e Baumgarten (2004). Além de Inácio de Loyola, a literatura científica menciona principalmente a obra de Jerome Nadal (Evangelicae historiae imagines) e a importância das imagens como lugar da memória e como ajuda mnemotécnica. Sobre isso, cabe consultar a obra mais recente de Bailey (2003).

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experimenta por imagens.7 O arcebispo compara a necessidade das imagens para a fé católica com aquela dos sacramentos,8 o que mostra o nexo existente entre a arte religiosa e o sacramento: a arte religiosa não seria possível sem os sacramentos, mas esses, por sua vez, não seriam concebíveis sem a arte. Em sua opinião, a absolvição não pode ser concedida sem o conhecimento dos sacramentos, e os “idioti” somente podem percebê-la por meio das imagens (Paleotti, 1582, liv. I, cap. 24, p. 224).9 A arte pode ser assim definida como “antecâmara” ou subcategoria dos sacramentos (Scavizzi, 1974, p. 212).10 Na representação dos mártires, era necessário que os estudantes do colégio jesuíta se identificassem com os primeiros mártires cristãos para, se necessário, estarem dispostos a sacrificar sua própria vida e sofrer passivamente o excesso de violência na atividade missionária e na guerra contra os hereges. A representação iconográfica era apoiada por textos literários e litúrgicos escritos e recitados nesse contexto, como o breviário romano (Noreen, 1998, p. 690). Richard Krautheimer ressalta que essas procissões mostram o triunfo dos mártires romanos sobre seus assassinos pagãos e a conversão de Roma em uma cidade cristã, isto é, católicoromana (1967, p. 178). Bellarmino (1586, t. 3, liv. II, cap. 7, p. 216): “Homo quidquid cognoscit sive sensu, sive intellectu, per imagines cognoscit”. Sobre a memória e a tradição aristotélico-escolástica, cf. o capítulo 3 de Yates (1967).

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Paleotti (1582, liv. I, cap. 3, p. 137): “Come in alcumi sacramenti hanno detto i sacri teologi che, per essere di somma necessità, è stata ancora instituita la materia loro tale che sia commume e pronta al bisogno di ciascumo [seguem exemplos de diferentes sacramentos como o batismo]; così per lo bisogno umiversale delle imagini, pare ch’ogni materia loro sia applicata”. Cf. também Prodi (1965).

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Göttler demonstra a importância prática que isso tinha para Paleotti, especialmente para os programas decorativos de distintas igrejas bolonhesas, entre elas S. Paolo e S. Maria dei Servi. Com relação à doutrina do sacrifício da missa e o dogma sobre o purgatório, cf. Göttler (1994, pp. 161-2).

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Sobre a doutrina do sacramento da Eucaristia, cf. Feld (1976, pp. 121-2). Em relação à Eucaristia na doutrina tridentina, cf. Wohlmuth (1975). Sobre a relação entre sacramento e imagem na doutrina tridentina, Wohlmuth demonstra que a teologia ocidental em sua tradição católica, no que se refere à teologia dos sacramentos, aproxima-se, em que pese sua iconofilia básica, da posição dos iconoclastas bizantinos, para os quais o sacramento, e em especial a Eucaristia, vale muito mais do que qualquer ícone. Por outro lado, os protestantes, no que se refere ao ceticismo básico ante as imagens e à teologia dos sacramentos, aproximam-se dos iconófilos, “porque tampouco as imagens são mais do que imagens”. Os ortodoxos veneram os ícones muito mais do que os sacramentos. Cf. Wohlmuth (1989, p. 117). Sobre a recepção da doutrina da Eucaristia de Orígenes durante o concílio e na época póstridentina, consultar Lies (1985, pp. 101 e ss). Bellarmino destaca sobretudo o caráter representativo da Eucaristia, que, para ele, representa a expressão sensível da graça divina (Lies, 1985). Já Michalski (1988), em sua análise do conceito de repraesentatio, procura estabelecer conexões com a teoria da arte para instituir nos debates sobre o símbolo uma comparação das categorias iconográficas e das categorias análogas com o símbolo das controvérsias cristãs sobre a Eucaristia. Ver ainda Stock (1990) e Wohlmuth (1990, pp. 87-104).

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O ficcionalismo do mártir personalizado sofrendo o excesso da violência requer um lugar nominável para que possa ser experimentável emocionalmente pelo futuro seguidor potencial. Os jesuítas mudaram o objetivo de uma das construções paleocristãs mais importantes e erigiram um monumento à antiga ecclesia militans, a qual servia então à igreja militante contemporânea como novo centro religioso e universal da missão. Ao mesmo tempo, as mesmas imagens combatidas pelos protestantes eram autorizadas e protegidas, já que por meio delas se visualizavam as torturas dos mártires. A luta pelas imagens foi combatida, assim, pelas imagens e pela meditação jesuítica sobre as mesmas, as quais, por sua vez, tinham de incitar à luta.11 Em um último passo, os conceitos de mártir podem ser encontrados nas religiões políticas e nas ideologias totalitárias com seus respectivos padrões, que herdaram no século XX as formas, os símbolos e as imagens das religiões tradicionais. Um exemplo de tal herança são as representações, encenações e rituais nazistas na comemoração do golpe fracassado de 9 de novembro. Tais rituais e representações visuais não somente reinterpretaram a história, mas também, por meio do mito nacionalista amalgamado à tradição cristã ou, mais especificamente, à tradição católica pós-tridentina, auxiliaram os nazistas a definir e estabelecer a violência como medida e objetivo primordial de sua ideologia. As vítimas de 1923 foram chamadas de “testemunhos de sangue do movimento”, o que vem a ser uma tradução literal do termo “mártir”. Já em 1926, Hitler havia declarado o dia 9 de novembro como o Reichstrauertag – dia da luta nacional do partido (Behrenbeck, 1996, p. 299). Em seus discursos anuais, sempre enfatizava a importância dessa data, aludindo à fé cristã e ao fato de que “o sangue dos mortos [...] servira como ‘água batismal’ do Terceiro Reich”, passando essa data a ser uma espécie de Gethsemane e Golgatha para o movimento nazista (Gamm, 1962, p. 142). Sobre a possibilidade de uma comparação mais ampla: especialmente os nazistas utilizaram em suas encenações, em grande parte, ritos católicos. Não é possível partir aqui apenas de uma recepção geral, mas do fato de sua integração localizar-se concretamente na devoção póstridentina das imagens e dos mártires. Peter Reichel (1991) definiu a exaltação do herói nacional na realidade profana, na qualidade de mártir sagrado, como uma cópia de seu simbolismo católico pós-tridentino e como “aparência bela”. Reichel acentua que, em vista do fato de tais celebrações e encenações terem ocorrido até o final da Segunda Guerra Mundial e de os nazistas vincularem seus conceitos de vida a visões apocalípticas, isto é, escatológicas, aqueles somente “as desvalorizaram pateticamente”. Os nazistas elevaram seu episódio sagrado e nacional ao caráter alegórico-híbrido. Aqui procede questionar ainda em que medida, juntamente a essas referências concretas, a concepção pós-tridentina específica da teologia das imagens poderia ter influído na teologia política, por exemplo, de Carl Schmitt. Uma publicação recente sobre essa relação, porém com outro foco, é a de Levy (2004).

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Na interpretação de Sabine Behrenbeck, os rituais, particularmente após a inauguração dos monumentos comemorativos na praça Königsplatz, em Munique, passaram a representar o evento da salvação. Essa interpretação tinha como modelo a liturgia do sacrifício cristão, isto é, a transubstanciação e, por conseguinte, a Eucaristia.12 Posteriormente, a cena foi substituída por um outro ato simbólico, o desfile coletivo, para garantir a ampla participação da população no evento da salvação. Na história desse ritual, é possível distinguir diferentes fases no desdobramento da linguagem cerimonial: um desfile breve em 1933; o desenvolvimento do ritual até 1935, com a translação dos cadáveres dos mortos de 1923; as grandes comemorações até 1938-1939; e, durante a Segunda Guerra Mundial, o retorno a comemorações de caráter mais breve. A partir de 1935, os membros do desfile portavam coroas em lugar de sarcófagos. A alusão cristã foi absolutamente planejada pelos representantes do culto, como demonstra a seguinte citação: A cerimônia do dia 9 de novembro em sua monumentalidade, a qual significa [que] o nacional-socialismo [...] é um evento sacro, fundamentado profundamente no sentimento religioso germânico. [...] A falta do luto na cerimônia heroica e a ideia de uma ‘guarda eterna’ enfatizam o conceito nórdico, cujo ideal não é a tranquilidade preguiçosa, podre e covarde no outro mundo com aleluia e palmeiras (Dürr,1935, p. 399, apud Behrenbeck, 1996, p. 300).13

Nessa citação, fica evidente que os nazistas, apesar de fazerem referência à liturgia cristã, pretendiam antes se distanciar de todo e qualquer catolicismo portador de teatralidade não heroica, não nacionalista. Desse modo, aplicavam métodos semelhantes àqueles utilizados pela representação póstridentina, sobretudo com relação às missões e à luta da Igreja Católica contra os protestantes, definindo-se a si próprios como representantes da ecclesia militans (igreja militante). Ao sacralizar a violência por meio do conceito do mártir, representante do autossacrifício, o nacional-socialismo vinculou-se aos discursos pós-tridentinos. As encenações não fazem apenas referência vaga à tradição cristã: em suas tradições imagéticas, os nazistas tiram proveito É interessante ver, no contexto da relação entre o sagrado, a violência e o sacrifício, as pesquisas e os debates de Girard (1972, 2003).

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“Die Feier vom 9. November, in jener Monumentalität, die den Stil des Nationalsozialismus kennzeichnet [...], war eine zutiefst im germanischen religiösen Empfinden verkerte weihevolle Handlung. [...] Die Klagelosigkeit dieser heldischen Feier und die Idee von der ‘ewigen Wache’ unterstrichen die nordische Auffassung, deren Ideal nicht die faule und feige Ruhe in einem Jenseits mit Halleluja und Palmwedeln ist”.

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do sistema sofisticadamente desenvolvido de disciplinamento, poder, emocionalização, visualização e sacralização no que se refere à violência. Enquanto o exemplo romano da época moderna utiliza a encenação no processo de confessionalização, o exemplo de Munique demonstra a sacralização do mito nacional. O mártir paleocristão assume aqui o papel de herói nacional. A alegoria religiosa e a apropriação ritual são utilizadas para interiorizar o mito nacional excessivo, produzindo um ritual exteriorizado da violência corporal e sacralizando-a para abusar do sentimento de dor como expressão de uma missão, o que leva finalmente à aniquilação corporal no sentido literal. Uma tal aniquilação assume, em séculos altamente tecnicizados como o XX e o XXI, proporções gigantescas, tanto quanto à qualidade da expressão do martírio como quanto à quantidade de martirizados. Por meio de seu caráter pontual e momentâneo, um evento como o 11 de setembro leva à ocorrência de uma inversão daquilo que é normalmente intencionado por um ato de martírio, uma vez que a proporção entre os mortos voluntários e aqueles compelidos à morte difere desmesuradamente: do prisma ocidental, aqueles que deram a própria vida pela causa islâmica passam a ser os algozes das centenas de pessoas – mártires – que se encontravam no World Trade Center no momento da ocorrência do atentado (Barlow, 2007; Hafez, 2006). A destruição pode também ser interpretada como um ato clássico de iconoclasmo: a destruição e aniquilação do “ídolo do outro” (Mitchell, 2008, p. 186).14 Na verdade, contudo, a nova dimensão do mártir apenas se apresenta com uma nova qualidade midiática fotográfica, filmográfica – inclusive televisiva – e da internet. Uma estrutura serial, semelhante àquela pré-configurada nas representações de Santo Stefano Rotondo, permite uma proliferação da violência através de suas imagens. Sigrid Weigel, referindo-se implicitamente a Benjamin e Virilio, constata que, em uma época de reprodutibilidade das imagens, a dinâmica das genealogias de mártires acelera-se e amplia-se (Weigel, 2007, p. 21). As encenações midiáticas dos ataques de 11 de setembro reúnem e condensam a construção do mártir, discutindo o estatuto da própria imagem. A título de exemplo, cite-se aqui a destruição das esculturas de Bamiyan no Afeganistão, em março de 2001, pelos talibãs. Assim, encontramos esse duplo uso da imagem também dentro dos debates imagéticos acerca da destruição das esculturas budistas e sua encenação através Cabe ver também esses debates do iconoclasmo em um contexto mais abrangente: o catálogo organizado por Latour e Weibel (2002) e a obra de Van Asselt (2007).

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de mídias como a televisão e a internet. O primeiro ato refere-se à proibição de imagens pelo Alcorão no primeiro período do islã, e o segundo ato reforça a apropriação da imagem por meio da emocionalização, como aquela realizada nas encenações pós-tridentinas e nos eventos da Munique nazista. A sobreposição de discursos diferentes e ao mesmo tempo interligados apresenta-se ainda nas encenações das vítimas americanas expostas nas fotografias do Ground Zero em Nova Iorque, mostrando os bombeiros elevando a bandeira americana sobre os destroços do World Trade Center (Mitchell, 2008). A fotografia faz referência ao ato de içar a bandeira americana na Segunda Guerra Mundial, após a vitória dos aliados. Em ambos os casos, as vítimas dos ataques se transformaram em mártires. Imagens e conceitos de mártires entraram, assim, em um conflito midiático. A história da imagem do mártir entrou em uma fase de concorrência renovada entre as diferentes propostas de mártires, imagens e iconoclasmos. A superação da violência e a destruição das lógicas parecem opostas por definição, mas na realidade são semelhantes: o que as distingue são antes sua pontuação dos eventos e suas hierarquias – e não tanto suas qualidades. A diferença entre o sagrado e o profano também se torna irrelevante em uma análise mais profunda. Os ícones do Ocidente profano são conectados ao passado sagrado desse mesmo Ocidente, como foi demonstrado no exemplo do nacional-socialismo, reativando assim conceitos religiosos-políticos. As concepções de um islã radicalmente político, com suas tentativas e objetivos de restabelecer o fundamento religioso, acabam por afastá-lo de suas próprias origens religiosas. Equiparam-no, assim, ao Ocidente, cuja postura no século XX e XXI foi alvo de suas mais rigorosas críticas.

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Entre arte e ritual

Jérôme Souty UERJ

N ossa concepção contemporânea do artista como uma pessoa autônoma e individualista, inspirada e inovadora, não é transcultural. Isso também vale para o conceito ocidental de estética subjacente à visão da arte pela arte, que, por ser essencialmente avaliativo, não combina com uma abordagem comparativa do tema.15 Portanto, como é possível estudar ou teorizar um fenômeno como a arte, que, aliás, em muitas culturas sequer tem nome? Em numerosos contextos não ocidentais e/ou sem tradição institucionalizada de belas artes, a apreciação da criatividade ou do Belo não recai sobre uma área específica da atividade humana nem sobre um indivíduo especializado. Nessas sociedades, a autoria é muitas vezes coletiva e a arte não existe como uma categoria autônoma e independente. Ao contrário, a dimensão artística impregna um amplo conjunto de aspectos da vida social; dimensão essa que emerge, sobretudo, nas atividades rituais. Criações culturais coletivas tal como as formas de arte que com frequência lhes estão associadas, os rituais se caracterizam por serem praticados seguindo sequências de atos repetitivos, carregados de significações simbólicas e sociais. Sem se limitarem exclusivamente à esfera religiosa, integram momentos marcantes de manifestações com carga simbólica, como é o caso de festas ou cerimônias, celebrações de relações hierárquicas, de trocas de bens etc. Aqui, considero a arte um conjunto de práticas e savoir-faire, de saberes e estratégias, de representações coletivas e crenças que fazem parte de um sistema cultural e simbólico mais abrangente. Essa abordagem socioantropológica permite, se não desconstruir, ao menos relativizar a visão A estética ocidental considera, desde a obra de Immanuel Kant, que a arte é o produto do nosso juízo de gosto e postula a universalidade e o caráter desinteressado dessa valoração.

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ocidental e sua pretensão universalista de arte, pois, como todo fenômeno social, a arte não é um dado da natureza, mas uma construção, que responde a certas determinações.16 Neste artigo, abordo as complexas relações entre arte e ritual por meio de dois exemplos em contextos temporais distintos: no período pré-histórico associado à realização das pinturas rupestres e nas atuais religiões e culturas afro-brasileiras.

As primeiras manifestações de artes gráficas Já que não se pode definir de maneira satisfatória ou mesmo transcultural o que seria arte, pode ser útil buscar, na longa história da hominização, quando e como emergiram o sentimento estético e, em seguida, as práticas artísticas propriamente ditas. Desde o início do Paleolítico,17 há 3 milhões de anos, pode-se notar uma inegável sensibilidade estética nos representantes do gênero homo: eles utilizavam tintas (há 1 milhão e 500 mil anos) e catavam certas pedras, conchas ou fósseis julgados atraentes pela cor, pela forma ou pela textura. Já no Paleolítico Médio (há 300 mil-40 mil anos), algumas ferramentas, sobretudo aquelas feitas de pedras lascadas (chamadas bifaces), eram talhadas respeitando alguns critérios estéticos – busca da simetria e do belo corte – e não apenas utilitários. Isso foi chamado de estética funcional (Leroi-Gourhan, 1965). As atuais pesquisas científicas convergem ao afirmar que um conjunto de comportamentos simbólicos próprios aos seres humanos emergiu na África há cerca de 50 mil anos, momento em que teria ocorrido o que foi provavelmente a maior revolução cultural da humanidade e que coincide com uma radical mudança de comportamento. Desde então, um pequeno grupo de homens passou a dispor de um sistema de pensamento e de uma forma de linguagem que, em sua estrutura, são os que ainda hoje preservamos. A sociologia da arte mostrou que as escolhas estéticas, longe de serem puramente subjetivas e desinteressadas, variam conforme o pertencimento social. Pierre Bourdieu (1979), por exemplo, demonstrou que a aplicação do julgamento estético, através da aquisição progressiva de um habitus específico de classe, representa o ápice do exercício da distinção social. Mesmo os artistas ocidentais contemporâneos, independentemente de suas tentativas de subversão, sempre são convidados a entrar no sistema de arte – que conta seus atores, instituições, lugares, regras, carreiras, mercado –, sob o risco de ficarem no anonimato ou de serem pouco conhecidos.

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O Paleolítico, que corresponde ao período no qual o homem foi caçador-coletor, foi o primeiro e mais longo período da pré-história. Ele se iniciou há cerca de 3 milhões de anos, com a aparição do homem, e se encerrou há cerca de 10 mil anos. O homo sapiens apareceu há cerca de 100 mil anos.

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O homem elaborou novas técnicas e se mostrou capaz de adaptação social e inovação cultural. Também nesse período se desenrolaram as primeiras experiências de relação com o sagrado – ainda que formas simples de sepulturas existam há 100 mil anos – e de condutas artísticas elaboradas. O nascimento do que hoje podemos qualificar como arte é indissociável de uma série de inovações cognitivas, sociais e culturais. Há cerca de 40 mil anos, começou-se a produzir, em diferentes locais, uma pequena arte mobiliária composta por pequenas estatuetas, colares e armas escultadas. Com isso surgiam uma forma específica de arte gráfica, a arte parietal, e, com ela, os primeiros grandes afrescos nas grutas ornadas. Foi o nascimento da arte figurativa. O reconhecimento oficial dessa arte pré-histórica só veio a se concretizar no final do século XIX; durante muito tempo, ela foi identificada com as pinturas do sudoeste da Europa, em particular com regiões da Espanha (Altamira) e do sul da França (Chauvet, Lascaux, Pech-Merle, Niaux etc.). A arte rupestre europeia do Paleolítico Superior (há cerca de 40 mil-10 mil anos) é ainda hoje a mais conhecida e a mais documentada, embora esse tipo de arte possa ser encontrado em escala mundial: ela foi desenvolvida entre 40 e 30 mil anos atrás em regiões como Europa, Austrália, África do Sul, e no continente americano há 20 ou 10 mil anos.18 Nas cavernas ornadas, a arte rupestre se caracteriza por um conjunto temático. Primeiramente, é notável a presença de figuras realistas: grandes mamíferos mais ou menos estilizados (bisões, cavalos, leões, touros, auroques, veados da Europa, antílopes e tipos de veados da África do Sul, girafas e bovídeos da África do Norte); cenas de caça; e misteriosos personagens híbridos (geralmente com corpo humano e cabeça de animal). Em todos os continentes, também são recorrentes impressões de mãos nas paredes. Além dessas representações figurativas de caráter realista, existem grafismos abstratos, por vezes chamados signos: pontos, pequenos riscos e traços em sequências horizontais ou verticais, formas geométricas. “Agora, eu sei quem é o meu mestre!”, exclamou Pablo Picasso ao descobrir pela primeira vez a gruta de Lascaux, na França. As grutas ornadas paleolíticas contam com algumas das maiores obras-primas da história da arte. Para quem pode admirar in situ esses conjuntos de afrescos, algo que realmente impressiona e emociona, além da delicadeza, da firmeza dos traços A arte rupestre e tribal, feita até os dias de hoje, encontra-se muito difundida no planeta. De 70 mil sítios recenseados em 160 países, enumeraram-se aproximadamente 45 milhões de pinturas e gravuras rupestres em rochas e no interior de cavernas (Anati, 2003).

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e do nível de acabamento, é a grande “modernidade” deles. São criações atemporais capazes de dialogar conosco ainda hoje. Um mistério, porém, permanece, dado que uma forma de alteridade inevitavelmente se exprime através do que poderia ser chamado de uma profunda e indefinível “aura” (Benjamin, 1969) que surge dessas pinturas. *** Qual o contexto em que surgiram essas pinturas e gravuras rupestres? E qual é a significação da arte pré-histórica? 1) Será que o homem pré-histórico foi um esteta tão sensível às belezas do mundo que tentou reproduzi-las no fundo de sua caverna? A tese da arte pela arte, defendida no fim do século XIX, foi rapidamente abandonada. Não é possível, apenas por uma perspectiva estética, dar sentido ao fato de os homens do Paleolítico terem escolhido lugares tão obscuros e de difícil acesso para realizarem suas pinturas, cuja execução implicava a necessidade de se arrastar por dezenas de metros, em plena escuridão, para se chegar ao fundo das grutas... 2) No começo do século XX, por influência do desenvolvimento da etnografia, começou-se a formular uma teoria da arte enquanto expressão de rituais mágicos, destinados a favorecer a caça ou a fecundidade. A presença significativa de animais pintados nas paredes poderia indicar uma espécie de magia da caça. Ao desenhar, os homens pré-históricos estariam pressupondo que poderiam influenciar ações da vida concreta. Assim, um animal representado com uma ferida – supostamente feita pelo caçador – poderia influenciar o sucesso real de seu abate; a pintura de uma fêmea grávida sugeria a possibilidade de carne em abundância.19 A despeito dessa teoria, estudos mais recentes mostraram que os animais representados nas cavernas eram pouco caçados e a caça às principais presas, como javalis, aves, lebres, raposas e peixes, ao contrário, era pouco representada. 3) Nos anos 1950 e 1960, segundo a tese estruturalista, a arte parietal atestaria um sistema cultural e mitológico sofisticado: nas grutas, animais e signos geométricos seriam organizados segundo grandes princípios de oposição, representariam simbolicamente uma visão de mundo dividida entre masculino e feminino (o “casal primordial” cavalo-bisão ou cavalo-touro). Porém, essa teoria, formalista demais, só se sustenta no caso de algumas cavernas específicas. Posteriormente, a análise simbólica também buscou uma De maneira similar, as pequenas estátuas humanas chamadas “Vênus” representariam matronas grávidas participando de um rito de fertilidade.

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gramática comum às grutas para evidenciar a organização social, propondo ler as representações pré-históricas como símbolos com significações intercambiáveis, mas diretamente influenciadas pela topografia da gruta. 4) Mais recentemente, a tese do xamanismo da pré-história teve bastante sucesso.20 De acordo com essa teoria, as pinturas e gravuras representariam as diferentes e sucessivas visões dos xamãs durante seus períodos de transe: pontos luminosos, sobreposição de linhas, figuras geométricas e imagens de animais. Essas visões, obtidas por via do uso de substâncias alucinógenas – entre outras coisas –, seriam a expressão de capacidades neurais coletivamente compartilhadas. Alguns dados etnológicos atuais provindos dos bushmen da África do Sul ou dos índios sul-americanos podem ser interpretados de forma a confirmar essa hipótese. Entretanto, há também outros estudos de neuropsiquiatria que se contrapõem a essa perspectiva ao afirmarem que só algumas imagens representadas podem ser interpretadas como resultado de visões. A tese sedutora do xamanismo foi também combatida pelos representantes da análise mitológica. 5) Nas sociedades dos caçadores-coletores, que reinaram durante toda a pré-história humana, o pensamento mítico é onipresente. Inclusive, os cultos das atuais sociedades de caçadores-coletores – como os aborígines da Austrália, os índios da Amazônia, os inuits da Groenlândia ou os bushmen da África do Sul –, quando comparados a eles, apresentam algumas semelhanças significativas. Invariavelmente, os homens inventam mitologias, cosmogonias e narrações de mitos de origem em que se faz menção a espíritos de animais. Esses espíritos são sempre invocados durante cerimônias coletivas e ritos de passagem; sempre são invocadas forças do além durante sessões de cura ou de adivinhação praticadas por especialistas. Esse parece ser um esquema comum generalizado, existente desde o Paleolítico. Além disso, as correspondências que às vezes existem entre a arte rupestre e as mitologias de alguns povos contemporâneos permitem pensar que a arte pré-histórica traduzia, em partes, as mitologias dos caçadores-coletores da pré-história.21 Provavelmente, existiu um tipo de religião das grutas, ligada a um grande Cf., dentre outros, Lewis-Williams e Clottes (1996).

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Por exemplo, no Saara, alguns mitos atuais, em particular os dos berberes, como o do herói civilizador, que copula com elefantes, têm eco na arte rupestre pré-histórica. Nas rochas do deserto Messak, ao sul da Líbia, estão representados humanoides com cabeça de cachorro, personagens também presentes nas mitologias dos nômades tuaregues da região. Na Austrália, as imagens pintadas em vários sítios rupestres incluem seres estanhos, a temática das duas irmãs ancestrais e da serpente arco-íris, ainda hoje frequentes na mitologia aborígine.

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conto de criação do mundo, na qual o espaço subterrâneo era impregnado por forças e poderes sobrenaturais.22 Em algumas cavernas, consideradas santuários possuidores de uma função genitora, eram realizadas cerimônias sagradas, iniciáticas e talvez secretas. A associação da gruta com o útero materno é universalmente difundida. 6) Há, ainda, outras interpretações complementares acerca das pinturas rupestres. Por exemplo, na Caverna da Pedra Pintada, na Amazônia brasileira, que serviu de refúgio para populações chamadas paleoíndias há cerca de 11.200 anos, as paredes são pintadas com figuras de seres humanos e animais.23 Ora, nas imediações da caverna foram também descobertas pinturas em diversos paredões de rocha. Segundo algumas análises, essas pinturas, que retratam ainda motivos celestes e marcas de mãos, poderiam ter como motivação a necessidade de demarcar e defender territórios. *** Mitologia pré-histórica, xamanismo, magia da caça, rituais de iniciação ou de fecundidade, totemismo ou marcação do território: várias são as teorias que permitem explicar o nascimento da arte parietal. Essas não são necessariamente exclusivas, intransponíveis umas às outras. Aliás, todas as interpretações apresentadas têm um aspecto em comum: mostram que as pinturas e gravuras rupestres paleolíticas refletem um imaginário coletivo; que são indissociáveis das primeiras crenças e práticas mágico-religiosas. Para os homens da pré-história, as imagens desenhadas nas paredes das grutas foram um meio de dar vida ao invisível. Do mesmo modo como há uma metafísica escondida nos afrescos da Capela Sistina, em Roma, a arte das grutas paleolíticas remete a uma metafísica própria. Pode-se afirmar que o nascimento da arte está ligado a uma forma de transcendência associada a rituais específicos. Embora haja diversas teorias sobre o ritual, todas se coadunam acerca de um aspecto: todo ritual supõe uma alteridade com a qual existe uma troca de mensagens codificadas.24 Esses ritos são fundados na crença em Por exemplo, um importante mito da origem dos animais, universalmente difundido, à exceção da Austrália, conta como os primeiros animais saíram de uma gruta nos primórdios do mundo.

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Ver Schaan (2008) e Pereira (2003). Os primeiros grupos humanos adentraram a Amazônia há 11.200 anos. Vestígios arqueológicos dessas populações foram encontrados na Serra dos Carajás (sul do Pará) e em Monte Alegre (baixo Amazonas). Além da Amazônia, o Brasil conta com um conjunto de pinturas rupestres na Região Nordeste, nos cerrados goianos e na bacia do alto São Francisco (MG).

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Autores importantes e diferentes, como James Frazer, Lucien Lévi-Bruhl, Emile Durkheim, Marcel Mauss, Bronislaw Malinowski, Erwing Goffman, Victor Turner, Gregory Bateson, Richard Schechner

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forças superiores ativas com as quais os homens tentam se relacionar a fim de alcançar certos efeitos. Desse modo, a maioria dos ritos visa obter a ação favorável das forças que influenciam o mundo, sacralizar algumas relações sociais e fortalecer a coesão do grupo.

O contexto afro-brasileiro Os rituais se referem às regras fixadas pela tradição e/ou pelo uso e pelo hábito. Portanto, corroboram a ordem preexistente implicada em sua execução. Contudo, os rituais dispõem também de uma capacidade sincrética e inovadora: antes de serem estáticos, são sujeitos a uma improvisação parcial. Assim, as práticas rituais, em suas dimensões artísticas, se reconfiguram em permanência. No Brasil, as atuais religiões de ascendência africana, bastante difundidas em diversas partes do país, inscrevem-se no contexto da modernidade urbana contemporânea. A profunda capacidade de adaptação, a “plasticidade” dessas religiões sincréticas, foi uma das razões de sua resistência e sobrevivência em condições tão hostis quanto a destruição das famílias, a escravidão e o trabalho forçado, a interdição dos cultos e dos rituais festivos africanos.25 O termo candomblé é às vezes empregado de maneira genérica para designar o conjunto dos cultos afro-brasileiros, mesmo se ele representa somente uma variação regional.26 O candomblé, que se tornou uma religião em meados do século XIX na cidade de Salvador e por seus arredores, é uma crença politeísta marcada pelo transe de possessão pelas divindades orixás ou voduns, originárias da África. O exemplo desse culto nos permite observar, agora in situ, a articulação entre artes e rituais: a) A prática do candomblé é indissociável de uma estética cotidiana: gestual, postura e técnicas corporais, savoir-faire ligados a uma cultura material; b) Uma série impressionante de práticas artísticas vem à tona durante os rituais religiosos: músicas – em particular as percussões – e cantos, e Michael Houseman, realizaram análises valiosas acerca dos rituais. As mesmas não podem ser aqui sintetizadas devido à dimensão deste pequeno ensaio. Apesar das interdições, as divindades africanas foram celebradas desde a chegada dos primeiros escravos, particularmente por via dos batuques (danças festivas) e no contexto das confrarias de escravos.

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Entre as variações regionais, distinguem-se o tambor de minas (Maranhão), o xangô (Pernambuco) e o batuque (Rio Grande do Sul). Além disso, a umbanda nasce no século XX nas grandes cidades do sudeste, resultante de uma mistura de elementos africanos, católicos, espíritas e indígenas.

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danças, cenografia, figurinos dos atuantes e decorações são parte dos cerimoniais coletivos e dos ritos privados. Essas práticas se inserem num conjunto de representações e crenças no além, num sistema simbólico geral. Os rituais do candomblé são inseparáveis da profunda dimensão artística que os impregna; c) Alguns objetos ou conjuntos de objetos,27 além de suas dimensões estéticas, existem para preencher uma função religiosa e ritual e “interagem”, em situação, com o mundo material e espiritual. Vemos, assim, que não cabe aqui a dicotomia, comum na arte contemporânea, entre, de um lado, a obra exposta – criação plástica, instalação –, a ser contemplada de forma passiva, e, de outro, a ação vivida – performance, intervenção ou happening –, com a qual se pode interagir em diferentes níveis.

Para entender o funcionamento desses rituais artístico-religiosos, é preciso descrever brevemente a arquitetura geral do sistema simbólico que lhes é subjacente. A cosmologia do candomblé se articula no fato de que tudo o que existe no mundo terreno (aiê) está constituído de materiais provindos do mundo sagrado do além (orum). Os numerosos rituais estabelecem assim uma comunicação entre essas duas dimensões da existência, uma individualizada e imanente, a outra genérica e imaterial. Então, as divindades oferecem suas benevolências neste mundo terreno na condição de que sejam honradas e alimentadas com oferendas e sacrifícios de animais. Também há a condição de que, chamadas por cantos e pela utilização de ritmos específicos, elas disponham de adeptos nos quais possam se encarnar durante as danças de possessões. Todos esses rituais e cerimônias religiosos com forte dimensão artística se inserem notadamente numa economia geral do axé. Essa energia mágico-sagrada está presente, em graus variáveis, nos deuses, nos seres humanos, nos animais, nas plantas e em alguns objetos, em particular nos assentamentos. Axé é uma força dinâmica que deve ser mantida e que deve circular. é mobilizada e redistribuída aos fiéis por meio dos rituais, sempre renovados. A acumulação individual do axé vai permitir alcançar o objetivo final desses cultos: a plenitude – saúde, prosperidade material, vida longa etc. – e a realização do ser humano para que ele se torne, no sentido pleno da palavra, uma pessoa. *** Altares; vasos, pedras ou objetos-suportes dos orixás, chamados assentamentos; objetos-símbolos dos orixás exibidos pelos adeptos em transe.

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Não é suficiente, no entanto, afirmar que a dimensão artística é constitutiva, consubstancial e inerente aos rituais. É também preciso saber em que medida a dimensão estética e artística do ritual atribui ao ato religioso seu sentido, sua plenitude. Responder a essa pergunta implicaria, primeiro, ultrapassar a noção ou a categoria de arte sagrada tal como a entende a história da arte, isto é, objetos/obras de arte a serviço de um culto religioso.28 Só então é possível interrogar amplamente acerca das relações que unem, nesses cultos, a estética e o sagrado, o belo e a dinâmica do ritual. Gostaria de insistir neste fato: a profunda dimensão artística e estética dos rituais aparece como uma condição de sua eficácia mágico-religiosa. As atuações artísticas permitem e/ou reforçam o caráter performático do ritual, sua eficácia simbólica. Por exemplo, nos cantos, fórmulas de saudações ou fórmulas mágicas, a poesia da letra, a forma da dicção oral, participa e reforça a força mágica, performática, do verbo – o que o antropólogo Pierre Verger chamou de verbe agissant. Para ter uma eficácia performativa, para ser suporte do axé, as palavras devem ser pronunciadas em voz alta. E elas são acompanhadas por gestos, ritmos, movimentos corporais. Outro exemplo: durante as cerimônias públicas de possessão, a música e os ritmos da percussão não são suficientes para fazer o adepto incorporar, mas são, dentre outros,29 elementos indispensáveis que induzem ao transe, que o tornam possível e facilitam seu acontecimento. “É o olhar dos observadores que faz o quadro”, declarava o artista Marcel Duchamp à época em que o antropólogo Marcel Mauss explicava que são os clientes dos mágicos que, acreditando em seus poderes mágicos, os tornam eficazes. Alfred Gell (1998), outro antropólogo que se afastou do critério da fruição estética e da contemplação, propôs uma aproximação entre magia e arte, vendo em ambos os fenômenos uma manifestação do encantamento da tecnologia. Via a arte como “agência” (agency), ou seja, como um sistema de ação, como algo para fazer ‘fazer’, como um processo que tem efeitos particulares, produzindo resultados práticos. Segundo Gell, a característica das artes visuais – sejam elas ocidentais ou não – é provocar emoções. Nesse sentido, o Belo é apenas um aspecto parcial. A arte possui uma função A noção de arte sagrada remete a um quadro religioso que incorpora um pensamento teológico ou cosmogônico e funções especificamente litúrgicas.

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Como o condicionamento ritual no momento da iniciação reclusa dos noviços com uso de drogas, a aprendizagem de técnicas corporais, a sensibilidade à música e ao ritmo de seu orixá etc. (Rouget, 1990; Verger, 1999).

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nas relações estabelecidas entre agentes sociais, é um meio utilizado pelos indivíduos para influenciar os atos e os pensamentos de seus contemporâneos. Considerada um modo de ação, a arte se aproxima então do processo ritual. Talvez seja aqui que arte e ritual se encontrem e se complementem, pois uma das qualidades mais evidente da ritualização é o fato de que ela é um modo particular de ação (Houseman, 2002). Os símbolos não somente representam, mas transformam o mundo (Geertz, 1983); as pinturas não somente testemunham, mas falam e agem.

*** As práticas rituais e artísticas dos cultos afro-brasileiros ultrapassam o mero quadro religioso. Elas, e ainda outras práticas artísticas afro-brasileiras que incluem uma dimensão ritual, se difundiram e influenciaram o resto da sociedade e da cultura brasileira. Nesse sentido, a influência africana – afrodescendente – é difusa, muito presente na música, na dança, nas artes de rua ou mesmo na culinária. O samba, por exemplo, não é considerado uma arte afro-brasileira em si. No entanto, a influência das culturas negras em sua constituição é evidente e preponderante quanto a ritmo, dança, relação com o corpo etc. Existe outro tipo de arte oficialmente chamado de arte afro-brasileira. Em poucas décadas, alguns objetos religiosos dissimulados, como feitiços, objetos-suportes dos orixás e símbolos mágicos, passaram do estatuto de armas do crime – já que os cultos eram proibidos e esses objetos eram confiscados pela polícia como provas da feitiçaria e da transgressão da lei – ao estatuto de joias da coroa, expostos em museus de antropologia e mais recentemente em museus de arte. Essa mudança radical é intrínseca a um processo mais abrangente de mudança histórica iniciado nos anos 1930, que transformou o candomblé, por muito tempo proibido e perseguido, em sinônimo de cultura afro-brasileira (Sansi, 2007). Em paralelo a esse processo, constituiu-se recentemente uma arte afrobrasileira autônoma e contemporânea, essencialmente uma arte plástica, amplamente desligada de uma função ritual, cujas produções são exibidas em museus de arte e vendidas em galerias.30 A autonomia desse campo artístico Além disso, uma miríade de artistas e artesãos populares, muitos deles localizados na cidade de Salvador, alimentam o mercado turístico com iconografias afro-brasileiras (e são desprezados pelas elites artísticas).

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proporciona algumas questões. A valorização da atuação/comunicação ritual se apoiando em práticas artísticas coletivas específicas dentro do quadro religioso se opõe agora à concepção do poder estético ligado à capacidade de inovação do criador defendida pela arte contemporânea. O paradoxo é o seguinte: os produtores dessa nova arte afro-brasileira, que reivindicam de maneira legítima o estatuto de artista e a autonomia criativa atrelada a essa atividade, continuam a associar parte da autenticidade e da legitimidade de suas obras à tradição dos cultos afro-brasileiros. Além de muitos desses artistas serem iniciados espiritualmente nessas religiões, a maior parte das obras plásticas e visuais qualificadas hoje de arte afro-brasileira ainda conserva uma ressonância direta dos cultos, em particular do candomblé. Isso é feito seja desdobrando-se de modos variados a gama das representações pictóricas dos orixás, de seus símbolos e de seus objetos associados, seja, de maneira mais criativa – e mais interessante se nos colocarmos na ótica da arte contemporânea –, inspirando-se na estética ligada à religiosidade politeísta para tentar reinterpretá-la e reinventá-la.31 Nesse sentido, surge a seguinte questão: até que ponto poderia existir uma arte afro-brasileira capaz de se desvencilhar completamente da dimensão religiosa e ritual? Inversamente, se desejássemos definir a arte afro-brasileira contemporânea como religiosa, ou pelo menos como uma arte ligada a uma estética religiosa, o risco seria então de reduzir seu campo de visibilidade e limitar a receptividade da crítica e sua circulação no mercado artístico contemporâneo, cujo acesso é reivindicado pelos artistas.

Considerações finais Tentei rapidamente evocar, em dois contextos religiosos muito diferentes, o ritual em sua dimensão artística. Talvez seja possível concluir evocando a introdução de uma dimensão ritual na arte contemporânea por via do contato não contemplativo, da ênfase colocada na interação com o público, das situações abertas permitindo intervenções externas, da desaparição relativa da dicotomia criador/receptor, do espectador transformado em participador etc. Nas artes plásticas e visuais, nas instalações, nas artes teatrais e performáticas, nos happenings e nas intervenções urbanas, alguns dispositivos artísticos contemporâneos, mesmo se não se confundem com o ritual, laçam pontos de contato, criam conexões possíveis com a performance ritual. Isso se processa em particular Cf. Thompson (1983) e Conduru (2007).

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por via da busca de interatividade, da presença compartilhada, da formação de um corpo coletivo. Enfim, aqui também poderíamos evocar numerosos exemplos mais: a dimensão tátil nas obras de Lygia Clark; a participação do corpo nos dispositivos de Hélio Oiticica; as dimensões performáticas no Living Theater ou no Teatro Oficina de Zé Celso; as propostas de interações com o público nas performances de Marina Abramović; o conceito de arte carnal da artista visual/performer Orlan etc. Esses dispositivos artísticos permitem, entre outras coisas, (re)descobrir ou se (re)aproximar de uma dimensão coletiva – seja ela convivial, lúdica, irônica, festiva ou política – e talvez também desconstruir, finalmente (?), a seriedade altiva que durante muito tempo caracterizou o objeto quase sagrado que é a obra de arte.32 A efervescência social e a emoção coletiva suscitadas pelas cerimônias rituais permitem unir, mesmo que temporariamente, uma coletividade. Essa é uma das principais funções do ritual (Turner, 1990). A partir dessa perspectiva, podemos reconhecer uma dimensão ritualística nas artes contemporâneas: elas são capazes, às vezes, de proporcionar uma breve coesão coletiva e até mesmo uma forma de catarsis social. O performer mexicano, artista visual e teórico Guillermo Gómez-Peña afirmou recentemente que somente o ritual poderá aliviar a dor com a qual convivemos na sociedade contemporânea...

Referências ANATI, Emmanuel. Aux origines de l’art. 50.000 ans d’art préhistorique et tribal. Paris: Fayard, 2003. ARAÚJO, Emanoel (org.). A mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e histórica. São Paulo: Tenenge, 1988. BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. In COSTA LIMA, Luis (org.). Teoria da cultura de massa. Rio de Janeiro: Saga, 1969 [1936], pp. 207-38. BOURDIEU, Pierre. La distinction. Critique sociale du jugement. Paris: Minuit, 1979. CONDURU, Roberto. Arte afro-brasileira. Belo Horizonte: C/Arte, 2007. GEERTZ, Clifford. “Art as a cultural system”. Local knowledge, further essay in interpretative anthropology. Nova Iorque: Basic Books, 1983, pp. 94-120. GELL, Alfred. Art & agency. Londres: Claredon Press, 1998. O paradoxo é, justamente, que as artes modernas e contemporâneas se colocaram como se fossem totalmente independentes de qualquer influência ou dimensão religiosa. Chamando a atenção para a função do ritual em torno do objeto mágico ou religioso nas sociedades primitivas, Benjamin (1969) observa que existe uma transferência desse sentido original ao culto que se presta às obras de arte.

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HOUSEMAN, Michael. “Qu’est-ce qu’un rituel?”. L’autre. Cliniques, cultures et sociétés, 2002, v. 3, n. 3, pp. 533-8. LE QUELLEC, Jean-Loïc. Arts rupestres et mythologies en Afrique. Paris: Flammarion, 2004. LEROI-GOURHAN, André. Le geste et la parole, la mémoire et les rythmes. Paris: Albin Michel, 1965, v. 2. LEWIS-WILLIAMS, David e CLOTTES, Jean. Les chamanes de la préhistoire. Transe et magie dans les grottes ornées. Paris: Seuil, 1996. MAUSS, Marcel. Sociologie et anthropologie. Paris: PUF, 1993. PEREIRA, Edith. Arte rupestre na Amazônia-Pará. São Paulo/ Belém: UNESP/ Museu Paraense Goeldi, 2003. PRICE, Sally. Arte primitiva em centros civilizados. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2000 [1991]. ROUGET, Gilbert. La musique et la transe. Paris: Gallimard, 1990. SANSI, Roger. Fetishes and monuments. Afro-Brazilian art and culture in the twentieth century. Nova Iorque/ Oxford: Berghahn Books, 2007. SCHAAN, Denise Pahl. “A Amazônia antes do Brasil”. Scientific American Brasil, 2008, n. 1, pp. 28-35. SCHECHNER, Richard. The future of ritual. Writings on culture and performance. Londres/ Nova Iorque: Routledge, 1993. THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit. Nova Iorque: Vintage Books, 1983. TURNER, Victor. Le phénomène rituel. Structure et contre-structure. Paris: PUF, 1990. VERGER, Pierre. Notas sobre o culto aos orixás e voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil e na Antiga Costa dos Escravos, na África. São Paulo: EDUSP, 1999. WHITE, Randall. L’art préhistorique dans le monde. Paris: La Martinière, 2003.

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Arte e sacrifício: Laocoonte, Michelangelo, Marcus Curtius e a representação do sacrifício humano entre os astecas Maria Berbara UERJ

No assim chamado cortile ottagono, nos museus vaticanos, turistas do mundo inteiro costumam deter-se diante do Laocoonte, obra escultórica celebérrima não apenas em si mesma, mas também em virtude das reflexões estéticas e histórico-artísticas produzidas há séculos sob seu signo. Alojado, praticamente desde sua espetacular exumação (1506), no nicho projetado por Giuliano da Sangallo especialmente para recebê-lo, Laocoonte é exibido frontalmente e separado do público por uma corda que impede o observador de circular ao seu redor. Superado o impacto inicial produzido pela beleza e potência da obra, carregada pelo pesado lastro de centenas de outras imagens e textos referentes a ela, o visitante talvez se pergunte por que um homem que está, junto com seus filhos, sendo mortalmente atacado por duas enormes serpentes permanece sentado. Além disso, onde está sentado, e por que somente ele, e não seus filhos? Essas perguntas – como quaisquer outras relativas ao Laocoonte – não podem ser formuladas de maneira ingênua. São muitos os artistas e pensadores que se vêm ocupando delas ao longo do tempo, e a questão da contenção laocoontiana ocupa o fulcro de transeculares debates não apenas artísticos, mas literários, estéticos e filosóficos. A questão que aqui nos interessará, mais particularmente, é o objeto sobre o qual Laocoonte, o sacerdote troiano que suspeitara do ardiloso cavalo abandonado pelos aqueus diante das muralhas de sua cidade, está morrendo. Ao deslocar-se o ângulo de visão para as laterais da obra – na medida em que a corda nos permite –, percebe-se que se trata de um objeto quadrado, ou retangular, com dois pequenos degraus. Àqueles minimamente familiarizados com a estatuária greco-romana e seus revivals, a identificação do objeto não traz problemas: trata-se de uma antiga ara, um altar sacrificial sobre o qual, na antiguidade

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clássica mas também em outros contextos, animais eram abatidos durante ritos religiosos. A ara comparece em numerosos relevos greco-romanos, como demonstra de modo imediato uma visita ao mesmo cortile ottagono, que alberga, além do Laocoonte, diversas obras nas quais é representada, de variadas maneiras, a antiga ara. A presença do altar parece perfeitamente explicável, à primeira vista, pelo fato de Laocoonte ser ele próprio um sacerdote. Mais além, segundo Virgílio – a mais divulgada fonte literária relativa ao episódio –, Laocoonte estava prestes a sacrificar um touro no exato momento em que foi atacado pelas serpentes: À sorte eleito, O antiste Laocoon com sacra pompa A Neptuno imolava um touro ingente. De Tenedos (refiro horrorizado) Juntas, direito à praia, eis duas serpes De espiras cento ao pélago se deitam: Acima os peitos e as sanguíneas cristas Entonam; sulca o resto o mar tranquilo, E se encurva engrossando o imenso tergo. Soa espumoso o páramo salgado: Já tomam terra; e, em sangue e fogo tintos Fulmíneos olhos, com vibradas línguas Vinham lambendo as sibiliantes bocas. Tudo exangue se espalha. O par medonho Marchando a Laocoon, primeiro os corpos Dos dois filhinhos seus abrange e enreda, Morde-os e come as descozidas carnes: E ao pai, que armado acorre, ei-las saltando Atam-no em largas voltas; e enroscadas Duas vezes à cintura, ao colo duas, O enlaçam todo os escamosos dorsos, E por cima os pescoços lhes sobejam. De baba e atro veneno untada a faixa, Ele em trincar e nós com as mãos forceja, E de horrendo bramido aturde os ares: Qual muge a rês ferida ao fugir d’ara, Da cerviz sacudindo o golpe incerto. Vão-se os dragões serpeando ao santuário,

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E aos pés da seva deusa, enovelados, Sob a égide rotunda ambos se asilam (1948, pp. 130-1, grifos meus).

De acordo com a narrativa virgiliana, Laocoonte é metaforicamente transformado de sacerdote em vítima sacrificial; Virgílio explicita esse simbolismo ao comparar seus terríveis gritos ao da “rês ferida ao fugir d’ara”. Na arquitetura virgiliana, a morte de Laocoonte adquire um papel fundamental. No segundo canto da Eneida, Eneias, a pedido da rainha Dido, recorda os atrozes acontecimentos que precederam o definitivo ataque grego e a queda de Troia. O herói recorda como os dânaos haviam fabricado um enorme cavalo de madeira, oco, e em seu interior escondido seus melhores soldados. Abandonam então a costa, escondendo-se nas proximidades da ilha de Tênedos, mas deixam o insidioso cavalo às portas de Troia. Acreditando que os gregos haviam desistido do longo sítio e regressado à sua terra, alguns troianos propõem aceitar o suposto presente e arrastá-lo ao interior das muralhas de Troia. Nesse momento, Laocoonte, sacerdote de Netuno e filho do rei Príamo, acorre com seu séquito ao local onde os troianos debatem e proclama um célebre discurso no qual os exorta a não confiar nos gregos, nem mesmo quando trazem presentes. Dizendo isso, Laocoonte arremessa uma lança contra o costado do animal. Nesse exato momento, porém, aparece, maniatado, Sínon, um jovem grego. Com um discurso enganoso, ele explica aos troianos que os gregos haviam decidido abandonar Troia e construído o cavalo como uma oferenda a Minerva, ofendida por Ulisses ter profanado seu templo e roubado o Paládio. Como severas tormentas impedissem sua partida, relata, o oráculo determinara que “sangue de hóstia grega” fosse oferecido em sacrifício a fim de aplacar a chuva e os ventos. Após dez longos dias, o mesmo oráculo designou que fosse Sínon a vítima, mas ele, assustado, conseguiu escapar e se esconder até a partida dos gregos. É nesse momento que as duas enormes serpentes marinhas surgem do mar e se dirigem diretamente a Laocoonte e seus filhos, estrangulando-os, mordendo-os, envenenando-os e matando-os por fim, antes de se esconderem aos pés do simulacro de Minerva. A morte de Laocoonte é interpretada pelos troianos como um castigo infligido pela deusa ao sacerdote troiano por ter ele atirado uma lança contra o cavalo de madeira; esse é o elemento que os convence, por fim, a arrastar o simulacro ao interior das muralhas citadinas. Durante a noite, Sínon destranca as portas que encerravam os guerreiros gregos no simulacro, e esses abrem os portões da cidade, permitindo a entrada dos demais gregos,

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escondidos no exterior. Enquanto isso, Eneias, herói central do épico virgiliano, é visitado em sonhos por Heitor, o grande guerreiro morto por Aquiles: o destino de Troia é inevitável, diz-lhe o espectro, mas ele próprio poderia ainda salvar-se, levando consigo os Penates de Troia. Segue-se o massacre: soldados troianos são trucidados, casas são incendiadas, o castelo de Príamo é invadido e o rei, assassinado por Pirro. Eneias luta; vê Helena e, furioso, quer vingar-se dela, quando sua mãe, Vênus, aparece-lhe em uma segunda visão, exortando-o a buscar sua mulher, pai, filho e os Penates troianos e escapar, pois seu destino está algures. Os capítulos seguintes da Eneida narram as vicissitudes da longa viagem que haveria de conduzir Eneias e sua família – menos Creúsa, sua esposa, a quem os deuses não permitem acompanhá-lo, mas que aparece a Eneias em uma terceira visão, convencendo-o a prosseguir sem ela – à Itália, onde daria início a um novo reino e desposaria uma mulher da nobreza local. Como indicado pelo grande arqueólogo alemão Bernard Andreae em seu fundamental Laokoon und die Gründung Roms (­ 1988), a sorte de Laocoonte e seus filhos constitui o primeiro de uma série de sinais – seguidos pela aparição de Heitor, Vênus e Creúsa – que gradualmente revelam a Eneias sua elevada missão: salvar os Penates troianos, renovando-a no povo romano. Embora a relação causa-efeito entre o ataque das serpentes, a fuga de Eneias e, consequentemente, a fundação de Roma não seja explícita, a leitura atenta do segundo livro da Eneida revela que a passagem virgiliana mantém esse vínculo, o qual, como mostra Andreae, já existia na tradição literária grega. A ênfase dada por Virgílio ao episódio laocoontiano, por sua vez, relacionase ao fato de o poeta latino ter composto um poema celebrativo de Roma, tendo buscado, portanto, acentuar quaisquer elementos relacionados às suas origens míticas. Por meio de uma metáfora de máxima intensidade e valor poético, isto é, a comparação entre Laocoonte e a vítima diante do altar, o sacerdote troiano – que, não por acaso, sacrificava um touro no momento em que foi atacado pelos répteis – torna-se ele próprio a vítima sacrificial (Andreae, 1988, p. 25).33 Sua morte é o que confere credibilidade ao relato de Sínon, convencendo os troianos a permitir a entrada do cavalo na cidade; concomitantemente, é também o primeiro de uma sucessão de sinais que revelariam a Eneias a inevitabilidade da destruição de Troia e ao mesmo tempo seu próprio destino, que o levaria a renovar Troia em Roma. No O estudioso constrói seu argumento ao longo de todo o livro, enumerando diversas fontes literárias e iconográficas que, por falta de espaço, precisamos omitir aqui.

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contexto desse magnífico poema que glorifica o povo romano e suas origens, a morte de Laocoonte constitui o sacrifício necessário à fundação de Roma. Na iconografia antiga, por outro lado, o vínculo entre Laocoonte e o touro sacrificial é, com frequência, fortemente enfatizado. Em uma miniatura num manuscrito da obra virgiliana de princípios de século V d.C. (Codex Vaticanus Latinus 3225, fólio 18v), o episódio laocoontiano é representado em dois momentos: à esquerda, o sacerdote, imberbe, prepara-se para imolar o touro branco diante de um altar sacrificial; à direita, o mesmo sacerdote, agora com barba e usando uma esvoaçante capa, é atacado pelas duas serpentes – também representadas duplamente, aparecendo à esquerda no mar – juntamente com seus filhos. Laocoonte, note-se, apoia-se no mesmo altar sobre o qual pretendia sacrificar o touro, destacando-se assim o paralelismo metafórico entre as duas vítimas. Apesar de variações relativas à forma de figurar a morte de Laocoonte em fontes antigas, a presença do touro e/ou do altar sacrificial reaparece em imagens produzidas em contextos históricos muito distantes, como em duas pinturas pompeianas a fresco do século I d.C., nas quais Laocoonte aparece, sendo atacado pelas serpentes, próximo a um altar sacrificial e um touro branco.34 Essas alusões sacrificiais permaneceriam presentes em representações medievais e renascentistas do Laocoonte que precederam a descoberta do célebre grupo escultórico, como a miniatura do Codex Vat. Lat. 2761, a do Codex Riccardiano 492, ou a xilogravura na edição da Eneida publicada por Johannes Grüniger em 1502 (Estrasburgo) (cf. Förster, 1906). Abandonando agora o contexto greco-romano e observando algumas obras produzidas durante o Quatrocentos italiano, descobre-se a presença do mesmo altar sacrificial em obras religiosas, como na tela Virgem e menino com santos, de Filippino Lippi.35 O trono no qual a Virgem está sentada, entre São Martinho e Santa Catarina de Alexandria, é, na verdade, um altar pagão, adornado com uma cabeça de bode, uma guirlanda e uma batalha de centauros marinhos. A alusão não poderia ser mais clara: Maria e Jesus ocupam o espaço tradicionalmente reservado às vítimas sacrificiais, identificando-se, portanto, com elas. Nessas duas tradições – greco-romana e cristã, durante o renascimento –, a presença da ara corrobora a concepção do personagem central – Laocoonte ou Cristo – como uma vítima sacrificial. Uma das pinturas é preservada in situ, na assim chamada Casa di Menandro, e a segunda, da Casa di Laocoonte, encontra-se atualmente no Museu Nacional de Nápoles.

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Na Capela Nerli em Santo Spirito, Florença, ca. 1487-1488, são também representados os comanditários da obra, Tanai de’ Nerli e sua esposa, Nanna.

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Seria Michelangelo, apaixonado admirador do Laocoonte e testemunha ocular de sua exumação no Colle Oppio, em Roma, a reunir ambas as tradições criando um Cristo na cruz que haveria de influenciar decisivamente toda a iconografia da crucifixão: trata-se do célebre desenho realizado para sua grande amiga Vittoria Colonna e atualmente conservado no British Museum. Na Itália, a partir do segundo quartel do século XIII – notadamente com as Crucifixões de Giunta Pisano e Cimabue –, o modelo de representação de Cristo morto na cruz – o assim chamado Christus Patiens – torna-se quase universal. Michelangelo rompe com essa tradição ao representar Cristo com os olhos abertos, os ombros torcidos, a cabeça voltada ao céu, em uma posição de claríssima derivação laocoontiana. Ao figurá-lo vivo, o grande artista florentino não recorre, em absoluto, aos antigos tipos bizantinos do Christus Triumphans, em que Cristo aparece vivo mas sereno e completamente alheio à dor. De acordo com Ascanio Condivi, seu biógrafo, Michelangelo fez por amor a ela [Vittoria Colonna] um desenho de Jesus Cristo na cruz, não morto, como é costume representá-lo, mas vivo, com o rosto elevado ao pai e parecendo dizer: ‘Heli, Heli’; onde se vê aquele corpo não como morto abandonado cair, mas como vivo, pelo amargo suplício, ressentir-se e contorcer-se (1887, p. 202).

Condivi faz referência, naturalmente, à célebre passagem do Evangelho segundo São Mateus (Mt. 27,50) que relata o sentimento de abandono de Cristo segundos antes de morrer na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”. Michelangelo funde as imagens de Cristo e Laocoonte, identificados graças à experiência do sacrifício: o mestre florentino não utiliza o Laocoonte apenas como um modelo formal, mas também como uma citação iconográfica. Se o sacerdote troiano é a vítima sacrificial necessária para a renovação de Troia em Roma, é a morte sacrificial de Cristo que permite a renovação da antiga Roma imperial, decaída e saqueada em séculos de abandono, na nova Roma, sede da Santa Sé, luminosa e outra vez pujante. A morte de Laocoonte e a de Cristo, dolorosas não só física, mas também moralmente, expressam-se magistralmente nas torções do Cristo michelangeano, inquieto e alerta. A genial criação do mestre florentino haveria de influenciar profundamente as gerações seguintes, definindo um novo modelo de representação de Cristo na cruz que atravessaria muitos séculos, chegando mesmo, sempre com importantes variações, ao momento atual. No desenho michelangeano no

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British Museum, a citação antiga não forma, como em tantos outros exemplos da arte renascentista, uma representação isolada, destacada da cena central, mas funde-se a ela: Cristo e Laocoonte se tornam um. Entre esses dois momentos – a exumação do Laocoonte, em 1506, e a criação do Cristo michelangeano, nos anos 1530 –, o navegador espanhol Hernan Cortés, que aportara em Hispaniola em 1504, recebeu a missão de desbravar e conquistar o interior do atual México. Em 1518, desembarcou na península de Yucatán, então território maia, e nos meses seguintes realizou uma série de alianças táticas com tribos autóctones. Graças, por um lado, a circunstâncias políticas locais e, por outro, à sua enorme inteligência diplomática e militar, Cortés conseguiu realizar o impensável: após meses iniciais, durante os quais intenções hostis foram suavizadas, de parte a parte, por discursos de tom diplomático, os espanhóis estrangularam a capital do reino asteca, aprisionaram Montezuma, seu rei, em seu próprio castelo e, finalmente, reduziram a cinzas Tenotchtitlán, a cidade prateada comparada por viajantes como Thevet, entre outros, a Veneza e Constantinopla.36 Parte do tesouro de Montezuma foi levado por Cortés à Europa e dado como presente ao imperador Carlos V; Dürer, em sua viagem aos Países Baixos, teve a oportunidade de vê-lo no palácio de Bruxelas e registrar em seu diário todo o seu assombro e admiração por aqueles objetos tão belos quanto estranhos. ***

A produção artística asteca divide com a cristã a centralidade absoluta não apenas do rito sacrificial, mas também da imagem do sacrifício e de instrumentos relacionados a ele. Os instrumentos da Paixão de Cristo (a coroa de espinhos, o látigo, a esponja embebida em vinagre etc.) são com frequência empregados como uma pars pro totum relativa à morte no Gólgota. Analogamente, no universo asteca, instrumentos que tinham por função extirpar o coração das vítimas, as lâminas sacrificiais, ocupam um posto central no universo pictórico. Esses objetos não são concebidos apenas como instrumentos inanimados, mas simbolizam o próprio sacrifício. No assim chamado Codex Borgia, por exemplo, uma lâmina sacrificial antropomórfica A cidade de Tenotchtitlán parece ter sido conhecida também como “Nova Veneza” no século XVI, como vemos na passagem de Ziletti que se refere a Cortés como “descobridor da Nova Espanha e da grande cidade do México, agora chamada Nova Veneza por causa de sua localização, edifícios e riqueza” (apud Gómara, 1566, pp. VII-VIII).

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devora suas próprias vítimas.37 Embora a prática de sacrifícios humanos tenha sido comum a praticamente todas as culturas mesoamericanas, entre os astecas o culto à morte sacrificial e a prática massiva de sacrifícios humanos parecem ter atingido uma intensidade sem precedentes. Às analogias entre as duas tradições e formas de representação sacrificiais, contudo, contrapõem-se importantíssimas diferenças. A principal delas é que, na tradição cristã, contrariamente à asteca e à greco-romana, o sacrifício não envolve a morte de animais ou de vítimas humanas involuntárias. O sacrifício cristão – seja o de Cristo ou o de santos mártires – é sempre um exercício da vontade. Um dos maiores assombros dos cidadãos romanos que presenciavam a execução de cristãos nos primeiros séculos da nossa era era constatar não apenas o destemor dos mártires ante a proximidade da tortura e da morte, mas também sua alegria face à perspectiva de emular, com o próprio corpo, o destino de Cristo.38 A religião cristã é profundamente encarnacional: o Verbo encarna em Cristo, e Cristo encarna na hóstia e no vinho diariamente consumidos na Eucaristia – seu corpo e seu sangue. Seus seguidores, por sua vez, autodenominam-se cristãos, isto é, são um com Cristo; para eles, a maior glória que podem alcançar neste mundo é sua imitação até a morte. Sobretudo a partir da Idade Média, o conceito de immitatio Christi torna-se cada vez mais literal: em 1224, São Francisco de Assis experimenta a estigmatização, isto é, as cinco feridas de Cristo são reproduzidos milagrosamente em suas mãos, pés e coração. Nos séculos posteriores, o milagre da estigmatização haveria de repetir-se diversas vezes, como com Santa Clara de Montefalco ou Santa Catarina de Siena. Contrariamente ao que se costuma pensar, a mística cristã não propõe a separação entre o corpo e a alma, ou a superação das sensações corpóreas; o corpo é concebido como uma via de acesso a Deus. É por meio do corpo – da potencialização conscientemente buscada de suas percepções sensoriais – que o cristão alcança experiências espirituais extremas. Essas experiências, com frequência, são concebidas como sacrifícios – não no sentido literal do termo, mas como aproximações místicas à morte sacrificial de Cristo. No universo romano antigo, paralelamente ao sentido religioso, o sacrifício adquiria com frequência uma função cívica. Um dos mais célebres exemplos de sacrifício patriótico é o de Marcus Curtius, em um O Codex Borgia, atualmente conservado no Vaticano, contém cinco códices realizados antes da Conquista. Há no codex várias representações sacrificiais.

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Para diversos testemunhos, cf. Musurillo, 1972.

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episódio narrado por Tito Lívio (Ab urbe condita, VII, 6). Conta-se que, em 362 a.C., o solo cedeu em pleno foro romano, abrindo-se uma enorme cratera que não se fechava apesar de renovados esforços para cobri-la de terra. Os sacerdotes afirmaram que, para fechar a cratera e garantir a continuidade da república romana, seria preciso oferecer em sacrifício, naquele mesmo local, aquilo que de mais valioso possuísse o povo romano. Ouvindo isso, Marcus Curtius, um jovem soldado romano, afirma em voz alta que nenhuma virtude é mais romana do que as armas e o valor militar. Ele, então, devota-se solenemente à morte, monta um cavalo de guerra e, armado, atira-se ao precipício. A lenda encontra paralelos nas histórias de outros heróis romanos como Publius Decius Mus, Mucius Scaevola e Horatius Cocles. Cícero e Sêneca os citam como modelos de conduta moral, e Valerius Maximus os inclui em sua famosa coleção de exempla, os Factorum et dictorum memorabilium libri novem. Esses paradigmas de devotio romana possuem características comuns: em primeiro lugar, o herói precisa ser virtuoso; geralmente, trata-se de um guerreiro nobre e valente. Além disso, seu sacrifício precisa ser voluntário; normalmente, ocorre em um contexto de guerra ou catástrofe natural ou sobrenatural. Todos esses elementos, à primeira vista, são identificáveis com a morte sacrificial de Cristo e dos mártires cristãos, paralelismo que não passou despercebido aos primeiros escritores cristãos.39 A ideia de que uma pessoa pague para salvar a comunidade, deixando-se morrer para que se restabeleça um perdido estado de equilíbrio, é comum tanto ao martírio cristão quanto ao autossacrifício romano. Uma morte abnegada é um sinal de força e virtude válido em ambos os universos simbólicos. Apesar dessas semelhanças, Santo Agostinho (1963, pp. 214-5), entre outras vozes, procura diferenciar os sacrifícios pagãos dos cristãos: os últimos, afirma, suportam martírios infligidos por outros; sua morte é aceita passivamente, não escolhida ativamente. Além disso, o herói romano morre para salvar a cidade terrena, enquanto mártires cristãos são sacrificados pelo reino celestial. O conceito de sacrifício romano, como dito acima, conectava-se efetivamente menos à religião do que ao patriotismo, que era, para os romanos, um dever moral da maior ordem. Os primeiros cristãos, por outro lado, ignoravam o apelo patriótico a favor da Cidade de Deus; como apontado por Tertuliano, “nada lhes é mais indiferente do que a coisa pública” (1984, p. 173). Cf. Orígenes (1980, pp. 31-2).

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Na iconografia romana, Curtius é representado de acordo com o relato de Lívio, isto é, armado e montando seu cavalo enquanto se precipita no abismo. Durante o renascimento, contudo, o herói, livre de quaisquer ambiguidades morais, é com frequência representado com o mesmo pathos espiritualizado dos próprios mártires cristãos. Em uma tela oval de Paolo Veronese atualmente conservada no Kunsthistorisches Museum de Viena (ca. 1535), Curtius é representado de um ponto de vista incomum, de baixo para cima, como se o observador estivesse situado no interior da cratera na qual o herói se lança.40 A cabeça erguida, os olhos voltados para o céu, os braços estendidos: típicas características do mártir cristão no momento de seu sacrifício. A atitude belicosa de Curtius, presente nas representações antigas, desaparece por completo; ele já não segura sua espada ou as rédeas de seu cavalo, nem parece controlar o animal, que se transforma, assim, em instrumento de seu sacrifício. Como mencionado, uma das principais diferenças entre o sacrifício pagão e o cristão, segundo Santo Agostinho, entre outros, era que o primeiro é ativamente buscado pelo herói, e o segundo, passivamente suportado pelo mártir. Veronese, contudo, retira de Curtius o poder sobre sua própria morte, tornando-o tão passivo quanto os mártires cristãos ou como animais levados ao altar pelos acólitos. Em sua tela, a descida de Curtius ao mundo subterrâneo transforma-se em uma ascensão ao céu. Os diálogos – consonantes ou dissonantes – entre as tradições sacrificiais greco-romana e cristã, os quais se manifestam, com tanta eloquência, nas artes visuais, não encontram paralelos transatlânticos: a riquíssima iconografia sacrificial asteca não se infiltra na arte ocidental contemporânea, e seria preciso esperar séculos para que os muralistas mexicanos, entre outros, regressassem às fontes astecas, incorporando-as à própria produção artística. Alguns historiadores e antropólogos da segunda metade do século XX quiseram ver na imagem sanguinária da civilização asteca uma distorção propositalmente engendrada por colonizadores hispânicos ávidos de justificar a própria violência através da demonização do povo aniquilado. Essa teoria, historicamente determinada, não resiste a qualquer análise: embora as informações que nos tenham chegado sobre o sacrifício asteca provenham majoritariamente de documentos e imagens espanhóis, basta verificar a abundância de evidências ósseas, a infinidade de costelas portando a marca inconfundível da lâmina, para constatar que o sacrifício humano era praticado frequentemente na sociedade asteca, e de forma massiva. A tela foi originalmente concebida para ser posicionada no teto.

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Cento e setenta crânios perfurados,41 por exemplo, foram desenterrados em Tlatelolco, próxima à antiga Tenotchtitlán, e nos museus de antropologia e etnografia da Cidade do México é possível contemplar centenas de lâminas e outros objetos destinados à prática do sacrifício. Por outro lado, é certo que grande parte das imagens representando sacrifícios humanos que chegaram aos nossos dias foi fortemente mediada pela cultura visual espanhola; entre as fontes mais difundidas, encontra-se o chamado Códice florentino, um conjunto de 12 livros organizados pelo espanhol Bernardino de Sahagún aproximadamente entre os anos 1540 e 1580. Os livros, trilíngues (em nahuatl, espanhol e latim), contêm aproximadamente 1.800 imagens figurando diversos aspectos da vida asteca anterior à Conquista, entre as quais representações sacrificiais. Embora as imagens tenham sido produzidas por tlacuilos, isto é, astecas cuja profissão consistia em escrever, desenhar e esculpir, do ponto de vista técnico e formal elas revelam claramente a forte influência da pintura ocidental contemporânea. Em uma das imagens mais célebres do sacrifício asteca que chegou aos nossos dias, quatro acólitos seguram a vítima sacrificial por seus braços e pernas, mantendo-a deitada sobre o altar; abaixo, uma escada esquematizada indica que os personagens se encontram ao alto de uma pirâmide. O sacerdote, segurando ainda a lâmina sacrificial, acaba de extirpar o coração da vítima e oferece-o ao sol, divindade central no panteão asteca cuja sobrevivência e funcionamento dependia essencialmente da oferenda periódica de sangue humano.42 Os braços abertos da vítima, seu grito, seu olhar voltado para o céu remetem às imagens cristãs de martírio e ao próprio Laocoonte, imolado, ele também, sobre um altar sacrificial. O sacrifício é um rito presente em todas as religiões e sistemas civilizacionais. Nos três contextos aqui abordados – o greco-romano, o renascentista italiano e o asteca –, o sacrifício e os instrumentos sacrificiais, concebidos literalmente ou não, não apenas ocupam um lugar central na iconografia; a eles é atribuído, aí sim literalmente, um valor religioso de fato: contrariamente aos protestantes – e essa foi, recorde-se, uma das principais causas do cisma luterano –, os católicos creem profundamente no valor real, não simbólico, da Eucaristia, isto é, o pão e o vinho transformam-se Os crânios eram perfurados para que pudessem ser pendurados no Tzompantli, uma estrutura de madeira com uma série de estacas dispostas horizontalmente.

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Estudos recentes têm demonstrado, no entanto, que a assim chamada explicação energética do sacrifício asteca – isto é, a ideia de que o sacrifício servia para alimentar os deuses e assegurar o funcionamento ordenado e equilibrado do cosmos – provavelmente não exaure a complexidade do fenômeno. Cf. os estudos de Davies (1981, cap. 9) e, mais recentemente, de Graulich (2005).

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realmente, na celebração da missa, no corpo e no sangue de Cristo. Há profundas diferenças, por outro lado, entre esses sistemas, tantas que não nos seria possível analisá-las, mesmo brevemente, neste artigo. Sacrifícios podem ser propiciatórios, como é frequente na tradição grega, ou expiatórios, como no contexto hebreu. Na religião cristã, o sacrifício de Cristo, cordeiro de Deus, ao ser perfeito e totalmente eficiente, torna desnecessária a repetição de rituais de expiação. Já entre os astecas, o sacrifício não é individual nem voluntário, nem basta que uma única vítima – a mais nobre – pereça para salvar os demais. Pesquisas realizadas entre os últimos decênios do século XIX e meados do XX procuraram edificar uma teoria geral do sacrifício. Investigações mais recentes, contudo, ressaltam sua complexidade e diversidade, insistindo em que cada ritual deva ser compreendido no contexto religioso do qual participa.43 Essas pesquisas, assim, em vez de buscar construir uma teoria universal, propõem uma tipologia comparada dos diferentes sistemas sacrificiais. Essa foi, de certa forma, a direção que procuramos dar a este artigo, indicando possibilidades de abordar comparativamente rituais e elementos iconográficos sacrificiais em culturas muito distantes entre si, seja do ponto de vista cronológico ou geográfico. O sacrifício envolve sempre violência; sacrificar é consagrar um objeto à divindade, mas essa consagração implica, necessariamente, a destruição desse objeto. Retornando a Vernant, “não há sacrifício sem mediador, e não há mediador que não seja, de certa forma, vítima” (1981, p. 2). No caso do catolicismo, a eucaristia não simboliza, apenas, a morte sacrificial de Cristo, mas a revive. A percepção da brutalidade, assim como do medo e da dor, é fortemente mediada pela cultura. Segundo as cartas de Cortés, os conquistadores sentiam uma genuína repulsa pela prática do sacrifício humano. Essa repulsa, porém, encontra analogias no estupor romano dos primeiros séculos da era cristã ante a prática eucarística, considerada por aqueles canibalística, ou na rejeição de alguns dos assim chamados pais da Igreja pela prática do sacrifício animal entre os antigos romanos. Durante o renascimento, Laocoonte ou Marcus Curtius puderam ser cristianizados, isto é, seu sacrifício pôde ser incorporado à ética e à estética cristã, assumindo novos significados e novas formas. Esse não foi o caso da iconografia sacrificial asteca, em relação à qual se abria o abismo de um sentimento de alteridade profundo demais. Cf. o artigo de Vernant (1981).

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Referências ANDREAE, Bernard. Laocoonte e a fundação de Roma. Mainz: Philipp von Zabern, 1988. CONDIVI, Ascanio. Vita de Michelangelo Buonarroti. Berlim: Frey, 1887. DAVIES, Nigel. Human sacrifice. Londres: Macmillan, 1981. FÖRSTER, R. “Laokoon im Mittelalter und in der Renaissance”. Jahrbuch der Königlich preussischen Kunstsammlungen, 1906, v. 27, pp. 149-78. GÓMARA, Francisco López de. La terza parte delle historie dell’Indie, nella quale particolarmente si tratta dello scoprimento della província di Iucatan detta Nuova Spagna. Veneza, 1566. GRAULICH, Michel. Le sacrifice humain chez les aztèques. Paris: Fayard, 2005. MUSURILLO, H. (org.). Acts of the Christian martyrs. Oxford: Oxford University Press, 1972. (Oxford Early Christian Texts). ORÍGENES. Contra Celsum I, 31. Londres: Cambridge University Press, 1980. SANTO AGOSTINHO. De civitate Dei V, 14. Londres/ Cambridge: Loeb Classical Library, 1963. TERTULIANO. Apologeticus 38, 3. Ed. e trad. T. R. Glover. Londres/ Cambridge: Loeb Classical Library, 1984. VERNANT, Jean-Pierre. “Théorie générale du sacrifice et mise a mort dans la υσία grecque”.  In REVERD, O. e GRANGE, B. (orgs.). Le sacrifice dans l’antiquité. Genebra: Fundação Hardt, 1981, pp. 1-39. VIRGÍLIO. Eneida. Trad. Manuel Odorico Mendes. Rio de Janeiro/ São Paulo/ Porto Alegre: W. M. Jackson, 1948.

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A gravura e a religiosidade popular: A chegada da prostituta no céu, de J. Borges Maria Eurydice de Barros Ribeiro UnB

“ D iabo, mulher e cobra são as coisas que mais realçam numa gravura” declarou J. Borges (apud Ferreira, 2006, p. 73), um dos nomes mais importantes do cordel e da gravura no Brasil. São temas medievais que remetem ao episódio do Gênese, quando Eva, aceitando a maçã que a serpente lhe oferecia, deu-a a Adão, provocando a expulsão de ambos do paraíso (Gen. 3,1-21). O diabo, a mulher e a cobra se confundem na Idade Média em um só tema iconográfico – o paraíso perdido – graças à associação da mulher ao demônio e à serpente pelos Pais da Igreja. Repetido pelo clero, esse discurso apontava, na natureza feminina, a luxúria e a traição, representadas nos manuscritos iluminados pela serpente com face humana. A xilogravura de J. Borges A chegada da prostituta no céu (Ferreira, 2006, p. 48) reúne a mulher e o diabo, permitindo identificar no corpus de imagens, na composição da cena e na distribuição do espaço códigos elaborados ao longo do medievo, como as noções espaciais, os atributos e os símbolos. Em cima e embaixo; à esquerda, à direita ou no centro: essa distribuição permite situar os personagens e determinar a hierarquia entre eles, enquanto os atributos os identificam. A produção dos códigos cristãos se abasteceu tanto na tradição bíblica quanto na multiplicidade de culturas de origem oriental e clássica que a cercavam. Nelas, encontrou material propício à formação de uma linguagem plástica capaz de traduzir a doutrina cristã. Dentro desse contexto sociorreligioso, nos finais do século XI, os teólogos conceberam a Geografia do Além, atribuindo maior importância hierárquica ao mundo de cima, celestial, por oposição ao mundo de baixo, os infernos. Obedecendo a essa ordem, na parte superior da gravura de J. Borges, o céu é facilmente identificável. À sua porta, Pedro recebe a prostituta. Situada à direita, a figura ocupa

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quase a metade da gravura, revelando a importância do personagem cujo atributo – as chaves que traz nas mãos – invoca a tradição bíblica do poder (Is. 22,22). A prostituta, caracterizada pelos longos cabelos, trajando-se de forma contemporânea com um curto vestido que expõe parte de suas coxas, está em plena ascensão, enquanto, no mundo de baixo, o demônio tenta deter o movimento, puxando-a para si pelos pés. Na gravura, o modelo feminino de Eva foi afastado e substituído pelo de Madalena. Isto é, a representação feminina não se refere à mulher pecadora, mas sim à mulher arrependida, inserindo a xilogravura no programa iconográfico da santa, elaborado gradualmente com base nos sermões. No início, os livros de salmos, os missais e evangelhos iluminados representavam Maria Madalena no contexto do ciclo da paixão de Cristo. Prostrada pela dor, ela é uma das Marias que participam da descida da cruz. Desde então, Madalena assumiu uma dimensão especial, transformando-se, ao longo da Idade Média, em uma figura emblemática.44 Porém, tal conquista não a libertou da tensão ambígua própria à imagem medieval: nos séculos XII e XIII, a sociedade cavalheiresca, embora sensibilizada pelos sermões, associava os longos cabelos e o perfume – atributos da santa – à luxúria. Doravante, as representações de Maria Madalena na pintura ou na escultura se fariam segundo dois principais modelos iconográficos: no primeiro, ela é inserida no tema maior da paixão; o segundo, de natureza hagiográfica, se baseia nas passagens de sua vida, como a ascensão aos céus, a penitência no deserto, ou sozinha em meditação. É sempre representada com cabelos longos, e o vaso de perfume que traz nas mãos – destinado, segundo os ritos judaicos, ao preparo do corpo de Jesus – alterna-se com um crânio simbolizando a transitoriedade do mundo terreno. Todavia, enquanto, na ascensão aos céus, não há dúvida quanto ao caráter sagrado do momento, quando aparece sozinha, sua vasta cabeleira, o perfume ou o crânio tornam a representação ambígua, trazendo à tona a lembrança da mulher vinculada aos prazeres mundanos, em especial aos da carne. Essa ambiguidade perdurou até o século XVII, podendo ser vista na pintura de Georges de La Tour. 44

Desde o século VI, o papa Gregório, “o grande”, reconheceu a presença de Madalena na vida de Jesus com base nos evangelhos de Lucas, João e Marcos. De todas as mulheres citadas pelo evangelho, ela é a mais visível, aparecendo 18 vezes. A respeito dela, a narrativa evangélica é precisa, descrevendo seus sentimentos e sua fidelidade a Cristo até o final. Ela foi a primeira testemunha do acontecimento maior sobre o qual repousa o fundamento do cristianismo: a ressurreição. Durante toda a Idade Média, muitos poucos ousaram questionar sua importância (Duby, 1995).

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O estudo da pintura ou das gravuras que têm Madalena como tema permite verificar a circulação dos temas em várias épocas. Constata-se que a obra de arte, independentemente de sua forma, não é constituída apenas por matéria, mas possui um conteúdo, introduz uma ordem cuja função exige uma atualização como a feita por J. Borges. Na ascensão da prostituta, o gravador combinou elementos profanos ao sagrado: acrescentou aos longos cabelos coxas expostas e provocadoras; substituiu os anjos, presença obrigatória na ascensão aos céus, pelo demônio, cujo gestual trouxe de volta a pecadora. A ambiguidade medieval emergiu suavizada pela presença masculina de Pedro abrindo as portas do céu, opondo-se ao demônio, reconhecível com facilidade por seus chifres, patas e cauda. Inicialmente, na gravura nordestina, as séries sagradas tornaram-se mais importantes que as laicas, assim como havia acontecido no passado com a produção xilográfica na Europa. Todavia, as séries brasileiras, longe de reproduzirem a religiosidade tradicional, romana, reformada e tridentina, adquiriram a expressão da religiosidade medieval transladada no século XVI pelos primeiros colonos portugueses, garantindo a sobrevivência do catolicismo medieval. O fato de a xilogravura de J. Borges ter antecedido o texto escrito (Ferreira, 2006, p. 49) não significa que não possuísse um conteúdo com o qual o público se familiarizasse ao reclamar a narrativa textual. No movimento de ascensão da prostituta, o conflito entre os mundos superior e inferior pela sua alma é evidente. No mundo de cima, a figura de Pedro é maior e mais poderosa. No mundo de baixo, o demônio possui quase a metade do tamanho de Pedro e não parece amedrontador. A imagem elaborada por Borges remete a elementos sociorreligiosos próprios à cultura popular, em que o sagrado e o profano se conjugam. Compreender a complexidade da sobrevivência do corpus imagético medieval e de seus códigos na contemporaneidade exige uma reflexão que não se limita apenas ao território da história da arte. Vai mais além, impondo o rompimento com os paradigmas que concebem o tempo linearmente e propondo uma metodologia interdisciplinar. Uma imagem, cada imagem é o resultado de movimentos provisoriamente sedimentados ou cristalizados nela. Esses movimentos a atravessam de um extremo ao outro; tendo cada um uma trajetória – histórica, antropológica, psicológica – que vem de longe e continua além dela (Didi-Huberman, 2002, p. 39).

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Referências DIDI-HUBERMAN, Georges. L’image survivante. Histoire de l’art et temps des fantômes selon Aby Warburg. Paris: Minuit, 2002. DUBY, Georges. Dames du XII siècle. Paris: Gallimard, 1995. FERREIRA, Clodo (org.). J. Borges por J. Borges. Gravura e cordel do Brasil. Brasília: Ed. da UnB, 2006.

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Uma leitura de gênero possível: o motivo da figura feminina nua

Ana Magalhães USP

A história da arte a partir de uma interpretação de gênero tem sua origem nos estudos sobre a história da pintura moderna, especialmente na análise do impressionismo. Entre as décadas de 1940 e 1970, vimos surgir os mais importantes estudos sobre a pintura impressionista e, desde então, a participação das pintoras Mary Cassatt (1844-1926) e Berthe Morisot (1841-1895) nas exposições impressionistas gerava reflexões críticas acerca de um impressionismo feminino. Tal termo havia se constituído desde as primeiras resenhas críticas sobre o trabalho das duas pintoras do grupo impressionista já nas últimas décadas do século XIX e procurava mapear em suas respectivas produções determinados motivos temáticos eminentemente femininos, isto é, dentro do locus de um papel social atribuído à mulher: o espaço da casa, da domesticidade, da função da mulher como mãe e de seus afazeres domésticos. Tais temas estão, na visão dos críticos da época, associados a um certo procedimento técnico, de cores e pinceladas suaves, que exprimiam adequadamente os motivos representados. Com o advento dos movimentos feministas na década de 1970, historiadoras da arte como Linda Nochlin e Griselda Pollock tiveram papel fundamental na renovação das leituras sobre a pintura impressionista e a contribuição dessas duas mulheres artistas. No caso de Mary Cassatt, a retomada de sua obra e a leitura crítica de sua produção levaram efetivamente a um resgate de seu papel no movimento impressionista e a colocaram numa posição central em relação a abordagens inovadoras das novas técnicas de pintura e mesmo de motivos temáticos. Griselda Pollock dá a Cassatt o título de “pintora de mulheres modernas” (1998, p. 30), em que a concepção tradicional de um impressionismo feminino é desconstruída para dar lugar a uma noção de condição feminina e de

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como tal condição seria capaz de constituir um olhar diferenciado daquele eminentemente masculino.1 Um tema mais do que privilegiado por essa historiografia é a relação entre Mary Cassatt e seu amigo Edgar Degas (1834-1917). O encontro entre os dois artistas teria acontecido em 1877, momento em que a pintora chegara de uma longa viagem por outros países do velho continente e, mais uma vez, frustrara-se com a tentativa de envio de uma obra para o Salão Anual da Escola de Belas Artes de Paris. Ao conhecê-la, Degas a convidou para participar da segunda exposição que o grupo de impressionistas organizou naquele ano. A partir de então, Cassatt parece tomar um novo rumo e se afirmar dentro de uma linguagem modernista de pintura. A artista participaria ainda das exposições do grupo em 1879, 1880 e 1886. Sua participação na última exposição impressionista, em 1886, merece uma atenção particular, sobretudo por conta da obra Menina arrumando o cabelo (1886, óleo sobre tela, 75,1 x 62,4 cm, National Gallery of Art, Washington, The Chester Dale Collection), que, no conjunto geral de obras expostas pela artista desde sua primeira participação, é de fato excepcional. Cassatt, que começava a ganhar a atenção da crítica por suas representações de mães com seus filhos, mulheres em seu interior lendo, tomando chá, cuidando de crianças, abordou aqui um motivo inédito em sua obra: a mulher em sua toilette. Tal motivo era propriamente o tema explorado nas obras apresentadas por Degas naquela mesma exposição impressionista de 1886.2 A crítica da época é severa ao tratar das obras que Degas apresenta aqui: suas mulheres que se lavam, se enxugam, penteiam os cabelos são tomadas como imagens que nada devem à pornografia. Nas composições de Degas, o voyeurismo é um dado fundamental da erotização da figura feminina, o que até hoje – e mais do que nunca – faz dele um pintor emblemático da visão masculina do corpo feminino e da misoginia. Como entender, então, a versão de Mary Cassatt em relação a esse contexto? A anedota que se conta sobre a origem de Menina arrumando o cabelo é que, numa das inúmeras discussões entre Cassatt e Degas sobre arte, este último teria afirmado categoricamente que mulheres não deveriam ter o Na historiografia em língua inglesa (sobretudo norte-americana e britânica), o termo gaze (olhar) passa a ser utilizado nas abordagens de gênero para tratar da construção do olhar na pintura de um modo crítico e justamente situá-la dentro de uma cultura predominantemente masculina. Para uma leitura de gênero de tal termo, veja-se Pollock (1992).

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Desde a década de 1870, Degas vinha trabalhando com composições de figuras femininas em sua toilette. A esse respeito, cf. os textos “Combing the hair” e “Women bathing”, de Kendall (1996, pp. 218-20, 230-1).

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direito de expressar opiniões sobre estilo, pois, em sua condição feminina, elas não tinham a menor ideia do que era estilo. Cassatt, enfurecida, se retirou e, em seu ateliê, deu início à composição de Menina arrumando o cabelo. Quando a tela foi mostrada na exposição impressionista de 1886, Degas teria sido o primeiro a elogiá-la e a reconhecer-lhe o estilo. Ele se tornaria o primeiro proprietário da tela e após sua morte, em 1917, por ocasião das vendas de seu espólio, ela chegou a ser atribuída a ele.3 A anedota reforça o papel de Cassatt como pintora feminista e o de Degas como um misógino. De um lado, a pintora mulher, que prova que pode pintar como um homem; de outro, o pintor homem, que reconhece o estilo de sua colaboradora quando ela se aproxima de seu próprio estilo, masculino. Entretanto, se analisarmos a obra atentamente, veremos que tais categorias se dissolvem. Degas jamais poderia ter pintado Menina arrumando o cabelo, uma vez que a composição de Cassatt opera a desconstrução do olhar masculino. A figura é tomada em três quartos de frente, o que nos permite ver claramente sua feição. Trata-se, de fato, não de uma mulher, mas de uma menina, cuja fisionomia não se adequa a um padrão de beleza da época. No caso das representações de Degas, de mulheres em sua toilette, dificilmente é possível distinguir fisionomias e feições. O que Degas cria são figuras sem rosto ou de rostos obscurecidos – ou porque as figuras são vistas à distância, ou porque nos dão as costas. O voyeurismo, nas figuras de Degas, é justamente acentuado pelo modo como suas figuras são representadas: elas se nos apresentam como alheias à presença de seus espectadores, nós; não se sabem observadas. Já na composição de Cassatt, a proximidade entre a figura e o espectador é muito grande. Aliás, esta é uma das características das composições de Cassatt: o ângulo aproximado e fechado sobre a figura sugere a presença, inclusive, da pintora no momento de execução da obra, tal como assinalado por Griselda Pollock. Esse recurso é responsável por criar um incômodo para o espectador, que se reflete frequentemente no olhar e na posição desconcertante das figuras. Como nas figuras de Degas, há de certo modo um gesto exagerado: se observamos a posição dos dois braços da figura, percebemos que eles formam com a trança do cabelo uma linha sinuosa que perpassa a figura da cabeça ao tronco, compensado pela linha do ombro direito com a inclinação da cabeça para trás. Tais recursos corroborariam a ideia de estilo na pintura, Cf. Pollock (1998). A anedota é tão conhecida que é contada em publicações de grande divulgação da obra de Mary Cassatt. Cf., por exemplo, a análise de Getlein (1980).

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sem dúvida: são remanescentes do estudo atento da tradição da pintura, sobretudo do período maneirista, assim como vemos também nas figuras de Degas. Por outro lado, nessas últimas, a referência imediata às posições de figuras femininas em cartões postais pornográficos é patente, como no caso da grande tela Depois do banho (Mulher se enxugando) (1896 ca., óleo sobre tela, 89,5 x 116,8 cm, Philadelphia Museum of Art), de Degas, em que a figura feminina parece arquejar as costas descomunalmente para se enxugar, lembrando as figuras das fotografias pornográficas de Pierre Louÿs (18701925).4 No caso da figura de Cassatt, tal referência não existe. Ao contrário, ela se desconstrói na constituição de um plano de fundo que, segundo Griselda Pollock, é caracteristicamente um interior de domesticidade: o quarto da criada – e não o interior do prostíbulo. O que Pollock nos lembra é que, em países de tradição católica, mulheres burguesas eram constrangidas a não observar seu próprio corpo – uma das práticas comuns, inclusive, é tomar banho com um camisolão branco fino para não deixar o corpo à mostra. Tal costume era menos observado em mulheres da classe trabalhadora, que parece ser de onde a figura de Menina arrumando o cabelo provém. Ainda que ela esteja de camisolão, sua proximidade em relação ao espectador e a revelação de sua intimidade podem efetivamente sugerir a leitura desse corpo feminino por um olhar feminino. Tal olhar não estaria pautado por esse jogo de erotismo, mas sobretudo por um procedimento analítico, de reconhecimento de uma condição especial, particular. Degas parece ter prestado uma homenagem ao estilo da amiga pintora num pastel hoje pouco conhecido: Menina fazendo uma trança no cabelo (1894, coleção particular). Essa composição se distancia em muitos aspectos das inúmeras outras que ele realizou de mulheres em sua toilette. Em primeiro lugar, Degas coloca a figura, dessa vez, num espaço de domesticidade. São reconhecidos, na cama e nos elementos do móvel junto a ela, objetos do quarto da criada. A figura feminina está de pé, no canto esquerdo da composição, numa posição que parece espelhar a posição da figura no quadro de Cassatt, e que ele relê justamente a partir da linha que cria com a posição dos braços. Também desaparece aqui qualquer sugestão erótica, e sua tomada à distância parece ser um indício da diferença entre seu olhar masculino e o olhar feminino de sua amiga pintora. De fato, dentro dos parâmetros tradicionais adotados no julgamento de um impressionismo feminino, o Para uma análise dessa obra e sua relação com a fotografia pornográfica, cf. Magalhães (2007).

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pastel de Degas parece se adequar melhor do que a tela de Cassatt, que possui linhas de composição muito bem desenhadas e cuja figura se impõe muito mais em sua estrutura do que a de Degas. Ao abordar as diversas composições que Degas faz sobre o motivo da figura feminina penteando ou arrumando o cabelo, Richard Kendall (1996) lembra a carga erótica atribuída a tal ato no contexto cultural do século XIX, uma vez que as mulheres andavam sempre com os cabelos presos em público. Os cabelos soltos eram, portanto, sinônimo de intimidade. Por outro lado, Kendall assinala que representar figuras femininas no ato de arrumar e pentear os cabelos é remeter a um longo e penoso ritual de preparação do penteado. Além disso, tal motivo aparece já em obras da tradição da pintura, tais como versões de Vênus em sua toilette. Outra referência importante no caso de Degas e de Cassatt é justamente a estampa japonesa, que também possui como motivo temático a figura feminina que arruma o cabelo. Ou seja, apesar de sua aparente banalidade, tal motivo é carregado de significados dentro de tradições alegóricas, literárias e sexuais. Kendall recorda finalmente que, ao contrário de sua amiga Mary Cassatt, Degas, por ser solteiro, tinha muito menos acesso ao estudo ao vivo da figura feminina em tal ato – o que contradiz sua prática mais comum de tomar sempre o estudo do modelo vivo ou ao vivo dos motivos a serem representados. Isso também pode ser um aspecto relevante no modo de apresentação dessas composições por um e por outro artista. Voltemos ainda sobre essas linhas sinuosas que marcam a construção da figura de Cassatt. Elas compõem aquilo que Degas percebe como estilo, porque desenham a figura feminina e estabelecem, efetivamente, a linguagem ou a assinatura de Cassatt sobre a superfície da tela. Os motivos com nus femininos se prestariam a essa função no período que vai do advento do impressionismo à explosão das vanguardas modernistas das primeiras décadas do século XX. Não é à toa que vemos proliferar uma série de composições com figuras femininas nuas reclinadas, banhistas etc. Na busca por uma linguagem própria, artistas modernistas de várias vertentes procuraram afirmar seu estilo por meio do estudo da figura feminina nua. No caso do Brasil, isso também viria a ocorrer. Entre as pintoras brasileiras do período, Georgina de Albuquerque (1885-1956) pode ser abordada num contexto semelhante ao de Mary Cassatt. Ana Paula Simioni lembra que a pintora brasileira se autodesignava impressionista, e sua trajetória como artista também é emblemática numa

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interpretação da história da arte no Brasil à luz das questões de gênero.5 Simioni já analisou a obra Sessão do Conselho de Estado (1922, óleo sobre tela, Museu Histórico Nacional) e suas relações com o gênero tradicional de pintura de história. Tal leitura nos permite traçar paralelos com o famoso projeto de pintura mural Mulher moderna, realizado por Mary Cassatt para o saguão de honra do Pavilhão da Mulher na World’s Columbian Exposition de Chicago, em 1893. Mas tomemos uma obra menos conhecida de Albuquerque, Moça no jardim (s. d., 32 x 24 cm, óleo sobre tela, coleção particular, São Paulo), que, embora não se debruce sobre o motivo temático da figura feminina que arruma o cabelo, pode ser tomada como um exercício na busca de seu estilo. Nessa obra de Albuquerque, temos uma figura feminina nua, que colhe flores, ajoelhada, tomada de lado. A representação de luzes e sombras projetadas sobre o corpo da figura, bem como a palheta de rosas e verdes que se espalham por toda a superfície da tela, remete a diversas versões da pintura floral do final do século XIX e início do XX, em que a figura feminina é quase metáfora da flor representada.6 Embora Albuquerque se aproxime da linguagem pictórica de um Renoir em suas composições de banhistas, também desconstrói um olhar erotizado sobre a figura, que se apresenta sem atributos evidentes que a vinculem a um contexto social do papel da mulher. Nesse sentido, parece vincular-se à voga da pintura floral. Entretanto, será preciso ainda um estudo mais atento desse nu, que parece ser um estudo preparatório ou uma versão menor de outra obra de maior porte da artista: Maracá (s. d., óleo sobre tela, 150 x 130 cm, localização desconhecida).7 Pelas próprias dimensões dessa obra, ela se revela como um projeto mais ambicioso, tal como Menina arrumando o cabelo, de Mary Cassatt. É curioso ver ainda o que diz João Angyone Costa sobre esses nus femininos realizados por Georgina de Albuquerque. Ele parece sugerir que a artista regrediu depois de feitos como a tela Sessão do Conselho de Estado, que seria uma obra exemplar de “composições de mais responsabilidade” (1927, p. 18, apud Itaú Cultural). Numa visão dicotômica da atuação de mulheres artistas na primeira metade do século XX, tal reivindicação não caberia. Assim como não caberia Mary Cassatt debruçando-se sobre a figura feminina em sua toilette. Cf. Simioni (2002, 2008). O segundo é o único estudo do país a partir de uma interpretação de gênero sobre as mulheres artistas brasileiras.

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Para uma análise desse gênero de pintura, designado como “pintura feminina floral”, que se estabelece na virada do século XIX para o XX, cf. Stott (1992).

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A obra está publicada no site oficial da Enciclopédia de artes visuais do Itaú Cultural, no verbete “Georgina de Albuquerque”, mas não temos a referência original da imagem.

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O que essas obras analisadas à luz de uma interpretação de gênero nos revelam é que o conjunto da obra dessas artistas parece apontar qual o contexto social em que essas imagens são produzidas. Essa estratégia foi, portanto, fundamental para a revisão de toda a história da pintura impressionista e da pintura moderna em geral na medida em que deixamos de olhar as imagens produzidas pelos artistas da virada do século XIX para o XX como mero exercício formal de busca progressiva pela abstração e somos capazes de ver nelas questões colocadas a partir de seu contexto histórico. Desse modo, a interpretação de gênero contribuiu para uma nova abordagem não só da obra de mulheres artistas, mas também da obra de seus pares homens. Nesse sentido, uma reavaliação do significado e do papel das inúmeras representações de figuras femininas nuas ou em sua toilette do período ainda está por ser feita.8

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Paisagem e poder: algumas reflexões sobre o mito da autonomia da arte no Ocidente e no Oriente Claudia Valladão de Mattos Unicamp

Nas narrativas tradicionais da história da arte, o gênero da pintura de paisagem frequentemente aparece como protagonista do processo de condução da arte a uma esfera autônoma e autorreferente, caracterizada como própria da história da arte ocidental. Em seu famoso artigo “A teoria renascentista da arte e a ascensão da paisagem”, o historiador da arte Ernst Gombrich defenderia a ideia de que foi exatamente no campo da pintura de paisagem que a apreciação da “arte como esfera autônoma da atividade humana” pôde surgir. De acordo com seu argumento, foi o “sul” que soube valorizar a pintura realizada no norte da Europa como “pintura sem um tema”, ou como pura pintura. Enquanto em Antuérpia, por exemplo, ela ainda era valorizada por seu tema, por menor que esse aparecesse no espaço da tela, na Itália houve uma grande demanda por essa pintura, fundamentada em novos princípios: A primeira condição para o surgimento de tal demanda é, evidentemente, uma atitude estética mais ou menos consciente em relação às pinturas e gravuras, e essa atitude, que implica a apreciação das obras de arte por sua realização artística, e não por seu tema ou função, é certamente um produto do renascimento italiano (1990, p. 145).

Esse mesmo princípio narrativo é também ativado quando se trata de descrever o surgimento da modernidade na Europa. De acordo com tal discurso, a pintura de paisagem – um gênero menor na hierarquia das artes ainda no século XIX9 – teria encabeçado o processo de implosão Desde o renascimento, mas principalmente a partir de sua institucionalização na Academia Francesa no século XVII, o sistema de arte, e, particularmente, da pintura, era regido por uma classificação hierárquica dos gêneros. De acordo com tal hierarquia, a pintura histórica seria a mais importante e mais valorizada, seguida pelo retrato, pela pintura de gênero ou de cenas do cotidiano, pela pintura de paisagem e, por fim, pelas naturezas-mortas. Essa hierarquia de gêneros baseava-se em uma fundamentação das artes visuais no conceito de mímesis e derivada de Aristóteles, que, em sua Poética, considerava a imitação das coisas do mundo o fim último de todas as artes. Sobre a hierarquia de gêneros, ver Félibien (1967) e Aristóteles (2003).

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da hierarquia de gêneros que sustentava o sistema das artes, por meio de um deslocamento do conceito de mímesis para o campo da subjetividade do artista. O quadro A cruz na montanha (ou Tetschener altar), do artista romântico alemão Caspar David Friedrich, pintado em 1808, é um dos exemplos mais citados pelos historiadores da arte quando se trata de pontuar tal mudança no conceito de obra de arte. Inspirado por discussões sobre as relações entre natureza, religião e arte, Friedrich pintou uma paisagem para ser instalada em um altar de igreja, dando visibilidade à ideia da paisagem como campo privilegiado de representação dos sentimentos religiosos do artista e, portanto, transformando-a em um gênero tão nobre quanto a pintura de história. A paisagem como locus de expressão da subjetividade do artista fez dela a vanguarda de uma nova arte que não buscava mais a mímesis da natureza, adquirindo sua autonomia em relação a ela e construindo seu próprio campo semântico. A concepção da pintura de paisagem como cenário de realização da autonomia da arte, considerada um fenômeno próprio da arte ocidental que teria suas raízes no renascimento e se realizaria plenamente no início do século XIX, começou a ser questionada há algumas décadas por estudiosos que passaram a olhar para outras tradições artísticas, como a arte chinesa e a japonesa. Em uma passagem do livro Pictures and visuality in early modern China (Imagens e visualidade no início da era moderna na China), Craig Clunas argumenta, nesse espírito, contra a análise que Philip Sohm propõe do conceito de pitoresco: Qualquer historiador da pintura chinesa teria, no entanto, muito material para relativizar a conclusão confiante (e tipicamente paroquial) de Sohm de que ‘os venezianos foram os primeiros a explorar, mesmo de forma tateante, a proposição moderna de que a pintura nada mais é do que tinta’. A noção de que o estilo é mais discernível onde a pincelada é mais visível é uma ideia que, de acordo com Sohm, foi expressa pela primeira vez por Giulio Mancini, médico de Urbano VIII, em 1621, e certamente não provocaria qualquer dificuldade aos teóricos chineses contemporâneos a Mancini (1997, p. 15).

Tais releituras da história da arte evidenciaram rapidamente o caráter eurocêntrico do discurso sobre arte no Ocidente, porém não colaboraram para avaliar a questão da autonomia do gênero da pintura de paisagem em novos termos. De forma geral, os novos estudos comparativos da arte ocidental e oriental promoveram um deslocamento temporal e espacial do

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fenômeno de autonomização da arte em direção ao Oriente, principalmente para a China e o Japão, inclusive abrindo novos campos de investigação sobre a importância dessa outra tradição artística para o processo de construção do discurso sobre arte moderna no Ocidente.10 Porém, a pressuposição de que a pintura de paisagem seria o lugar por excelência dessa autonomia da arte não foi ainda reavaliada. Na realidade, ela foi mesmo reforçada pela importância da pintura de paisagem no contexto das tradições pictóricas chinesa e japonesa. O presente ensaio tem como objetivo lançar um ponto de interrogação sobre a ideia da pintura de paisagem como o campo por excelência da fruição puramente estética. Partindo da discussão metodológica proposta pelo historiador da arte Tom Mitchell em seu livro Landscape and power (2002) e lançando mão de alguns exemplos, procuraremos apontar para a necessidade de uma revisão dos discursos sobre pintura de paisagem, de forma a tornar a compreensão desse gênero mais rica e complexa. Será nossa meta insistir nas intricadas relações entre o campo da representação da paisagem e as demais esferas de atuação e significação humanas, sem, no entanto, incorrer em uma redução simplificadora da esfera da arte à base social, como ocorre em certa forma de sociologia da arte. Nossos exemplos serão retirados de diferentes espaços geográficos, inclusive da China, procurando apontar para o caráter universal de nosso argumento. Na introdução de seu livro, Tom Mitchell afirma que o objetivo de seu empreendimento é “transformar a ‘paisagem’ de um nome em um verbo” (2002, p. 1), ou seja, desenvolver um modelo mais abrangente do campo da pintura de paisagem que “perguntaria não apenas o que pintura de paisagem ‘é’ ou ‘significa’, mas o que ela faz, como ela funciona enquanto prática cultural”. Trata-se aqui de atribuir um papel ativo à pintura de paisagem como instrumento de poder. Tal poder é derivado, em primeira instância, de sua capacidade de “passar por natureza”, de ser o locus de naturalização de determinadas relações sociais. Ou seja, o fato de a paisagem encenar-se como espaço despovoado de relações humanas tornou-a o local privilegiado para a naturalização dessas mesmas relações. Mitchell propõe um novo modelo para a análise da pintura de paisagem que enfatiza sua condição de representação em “segunda potência”, deixando

Sobre o tema, ver, entre outros, Guth (2004).

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entrever sua ligação seminal com o campo do simbólico.11 De acordo com esse modelo, a natureza tal qual presente em sua materialidade deve ser considerada inacessível ao olhar. O que reconhecemos e chamamos de natureza seria uma construção simbólica, uma representação mental, permeada de relações sociais, que, em uma segunda instância, receberia sua inscrição em pintura. A paisagem que vemos não seria, portanto, um trecho da natureza, como nos acostumamos a pensar, mas sim um medium legítimo de representação onde são inscritas relações de poder.12 Vale recordar que é exatamente no jogo de apagamento de sua condição de medium de representação que a paisagem funciona como espaço de naturalização das relações humanas. Esperamos que os exemplos discutidos na sequência ajudem a deixar mais claro tal argumento.

Exemplo 1: América do Norte Nosso primeiro conjunto de exemplos será extraído do universo da pintura americana. A tradição da pintura de paisagem nos Estados Unidos foi grandemente marcada pela teoria do sublime, empregada para a fabricação visual de um discurso sobre a grandiosidade da natureza do continente americano. As impressionantes paisagens de artistas como Frederic Edwin Church e Thomas Cole, pintadas ao longo do século XIX, tornaram-se matéria-prima para a construção do imaginário da nação americana. As representações, despovoadas de homens e de marcas humanas, que dão a ver uma natureza intocada, possuem forte apelo estético e, aparentemente, relacionam-se de forma distante com as esferas da política e da história nacional. No entanto, ao se apresentarem como um retrato da natureza em estado virgem, elas asseguram a existência de um verdadeiro marco zero no processo de construção da nação sobre aquele território, mascarando a violenta história de sua colonização. As imagens de Church e Cole funcionam como agentes de apagamento da história de usurpação dos territórios indígenas por imigrantes ingleses. Cada montanha, rio ou trecho de mata representado nesses quadros certamente possuía um nome e um significado específico para o povo que lá habitava e que efetivamente lutou para mantê Ao buscar um modelo teórico capaz de auxiliar na compreensão do funcionamento do campo da pintura de paisagem, Tom Mitchell traça uma analogia com o esquema proposto por Lacan para descrever o local do trauma, acompanhando a certa distância a divisão proposta por Lacan entre os campos do “real”, do “simbólico” e do “imaginário” (2002, pp. x-xi).

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Essa característica midiática da paisagem torna-se transparente na arte da jardinagem, em que o artista manipula os elementos naturais da mesma forma que um pintor pinta seu quadro.

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los. Ainda assim, as imagens desses supostos trechos da natureza, criadas pelos artistas, propiciam o apagamento da história, oferecendo ao espectador a terra fértil e maravilhosamente abundante por ele retratada como uma virgem a ser deflorada. Em sua análise do funcionamento dessas imagens da América selvagem, o historiador da arte Jonathan Bordo chamaria a atenção para o projeto propriamente político agenciado por elas: Em um registro, podemos chamá-lo de político-legal, o selvagem é parte de um aparato declaratório para a constituição de território. A simbologia da imagem é um anteparo que oferece um álibi visual, uma espécie de quina, ou espaçamento, entre uma cultura herdada, saturada de lugares e nomes, e novos projetos de territorialização que se impõem declarando que esta terra é pouquíssimo povoada, ou mesmo despovoada – um marco zero jurídico-político (2002, p. 309).

A utilização da imagem da natureza selvagem como instrumento ativo no processo de ocupação territorial na América do Norte irá se repetir durante a conquista do Oeste americano. Joel Snyder argumenta que muitos dos fotógrafos que registraram a expansão americana em direção ao Oeste construíram esse território como “terra de ninguém” a ser conquistada pelo colono aventureiro. As célebres fotografias de Carleton Watkins registrando o Yosemite (1861) são bons exemplos desse projeto. Analisando a obra Cape Horn near Celilo, Oregon (1867), do mesmo artista, Snyder comentaria: “As fotografias de Watkins reafirmam o engajamento de seu público na crença em um Éden americano, mas ele representa esse Jardim de forma a encorajar o observador a vê-lo como cena de potencial exploração e desenvolvimento” (2002, p. 189). Tratava-se, vemos, de um paraíso (despovoado) a ser conquistado.

Exemplo 2: Brasil A pintura de paisagem realizada no Brasil ao longo do século XIX tem sido analisada basicamente por suas relações com a produção europeia, seja por seu vínculo com os chamados artistas viajantes, seja pela comparação com modelos europeus trazidos por imigrantes ao país. Muito pouco foi feito até agora para compreender a pintura de paisagem aqui produzida em sua relação com os contextos sociais e políticos específicos da época de sua criação. No entanto, sem essa abordagem empobrecemos muito nossa análise. Em primeiro lugar, porque, “em projetos de colonização do ‘novo mundo’”, como ocorreu na história do Brasil, “a arte da paisagem é uma encenação cenográfica do

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esquecimento” (Bordo, 2002, p. 309); faz-se necessário compreender o que está sendo esquecido em favor do que e de quem. Em segundo, porque, como pretendemos demonstrar com único mas significativo exemplo, em certos casos a pintura de paisagem no século XIX foi de fato compreendida como um meio legítimo de expressão de posições políticas e sociais. Em 1843, o artista Félix-Émile Taunay pintou um quadro intitulado Vista de uma mata que se está reduzindo a carvão, que hoje faz parte do acervo do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro. Trata-se da representação de uma parcela de floresta tropical que está sendo derrubada por mãos escravas. Tendo em vista a proximidade de Taunay aos círculos da corte e sua posição de diretor da Academia Imperial de Belas Artes no momento da realização do quadro, a historiografia da arte sempre atentou, corretamente, para a relação dessa pintura com a construção de uma imagem para a jovem nação brasileira. Porém, lendo a obra de um ponto de vista alegórico, podemos interpretá-la como a representação do enfrentamento entre natureza e civilização, por exemplo (Migliaccio, 2000). Uma investigação mais detalhada do contexto em que esse quadro foi pintado permite, no entanto, um aprofundamento de análise e a revelação de um engajamento específico do artista em debates da época sobre as consequências nefastas da destruição ambiental causada por atividades agrícolas, algo não considerado em interpretações anteriores.13 Além de ser diretor da Academia, Taunay era também membro fundador da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN) e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), o que o situava no centro das discussões referentes aos projetos políticos do Império. Nesse contexto, exatamente na década de 1840, desenvolveu-se em ambas as instituições um intenso debate sobre formas efetivas de promover o emprego de técnicas agrícolas mais modernas, acompanhado de uma forte crítica aos meios arcaicos ainda empregados no Brasil e associados à escravidão, que, de acordo com muitos intelectuais, destruíam de forma irreversível o patrimônio natural do país. Nesse mesmo período, começa também a ser votada a primeira lei de terras do país. Sendo a família Taunay proprietária de uma plantação de café na Tijuca, vários de seus membros acompanhavam tal debate de perto. Um dos irmãos de Félix-Émile, Carlos Taunay, interessou-se particularmente por tais questões, escrevendo o Manual do agricultor brasileiro, no qual dedicava Uma análise detalhada dessa obra e de seu contexto de produção e recepção pode ser encontrada em Mattos (2008).

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longas passagens às consequências da destruição das matas nativas, em especial nas regiões em torno do Rio de Janeiro. Esse livro nos parece uma fonte de extremo valor para analisarmos o quadro de Félix-Émile Taunay. Cotejada com ele, a pintura deixa de ser apenas uma alegoria genérica do enfrentamento entre homem e natureza para se tornar uma espécie de manifesto visual contra práticas concretas de destruição da floresta na parte específica do Rio de Janeiro que ele próprio habitava – a Floresta da Tijuca. Visto sob tal perspectiva, o quadro de Taunay, além de poder ser interpretado como uma alegoria do embate entre natureza e civilização – o que, por sinal, ele representa muito bem –, dirige-se ao observador como um testemunho do envolvimento direto do artista em uma das primeiras batalhas de política ambiental no Brasil, que, surpreendentemente, terminou vitoriosa, ao menos momentaneamente, com o início do reflorestamento da Tijuca em 1862.

Exemplo 3: China O terceiro e último exemplo oferecido aqui tem um peso especial em nosso argumento a favor da tese de um comprometimento inevitável da pintura de paisagem com os contextos sociais e políticos nos quais ela foi praticada. Como foi discutido no início deste ensaio, há algumas décadas a arte do extremo Oriente, principalmente a chinesa e a japonesa, conquistou a primazia com relação ao Ocidente na invenção de um conceito de arte autônoma, sem compromisso com a representação de um tema. Traçando uma comparação entre essas duas tradições representacionais, o historiador da arte Norman Bryson definiria, a arte chinesa como performática em sua essência, em contraposição ao esforço de ocultamento do gesto do artista, próprio da tradição artística ocidental: Se a China e a Europa possuem as duas tradições mais antigas de representação pictórica, essas tradições, no entanto, se bifurcam, desde o início, no ponto da dêixis. A pintura na China é baseada na constatação e, de fato, no cultivo das marcas dêiticas. [...] A temporalidade da pintura representacional no Ocidente é raramente o tempo dêitico da pintura enquanto processo, tal tempo é usurpado e cancelado pelo tempo indeterminado do evento [representado] (1983, pp. 89-92).14 Norman Bryson (1983) toma emprestado da linguística o termo “dêitico”, que se refere aos signos verbais que carregam consigo um indicador de sua posição espacial ou temporal, relativa ao conteúdo ao qual ele se refere, como “aqui”, “agora”, “perto”, “longe”, “ontem”, “hoje” etc. Uma pintura dêitica, nesse sentido, seria aquela que revela em sua superfície a presença corpórea tanto do artista quanto do observador.

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Essa visão hoje popularizada da arte chinesa como avessa à ideia de mímesis e baseada na análise e no cultivo da pincelada do artista é coerente com uma parte significativa da historiografia da arte chinesa produzida, por exemplo, durante a Dinastia Ming (1368-1644). Porém, como afirma Craig Clunas, ainda não foi devidamente enfatizado que ela é igualmente marcada por um discurso social: [...] está ficando cada vez mais claro que a preocupação com ‘os rastros do pincel’ é, na teoria chinesa, um discurso essencialmente social, baseado no status de elite do artista, na possessão de um certo tipo de capital cultural e, de uma forma geral, também em certos níveis de capital econômico (1997, p. 16).

De acordo com o autor, a historiografia sobre a arte chinesa da Dinastia Ming produzida tanto por especialistas chineses quanto por ocidentais adota como verdadeiras as definições de arte dadas pelos teóricos da época. Assim, uma massa significativa da produção visual chinesa desse período permanece desconsiderada. Existe uma quantidade significativa de produção visual engajada com a questão da mímesis que permaneceu desvalorizada pelo cânone artístico da época, assim como ainda permanece pouco explorada hoje. Partindo do campo da cultura visual e, portanto, incorporando à sua análise um universo mais amplo de produção imagética chinesa do que aquele ditado pelas artes de então, Craig Clunas foi capaz de identificar importantes vínculos entre a produção da pintura chinesa e definições de status social e de gênero. Atraído pela presença de uma produção significativa de pintura que não seguia o padrão da dita alta pintura, mas engajava-se na representação detalhada da realidade, o autor deparou-se com um universo visual clivado sob a perspectiva de gênero e de classe social. De acordo com Clunas, a pintura mimética existia principalmente para consumo feminino, uma vez que a visão de uma elite masculina a destinava aos “socialmente subalternos (mulheres, crianças, eunucos e príncipes mongóis), incapazes de ir ‘além da representação’, mas que se encantam com o que veem, imitando as (boas ou más) ações representadas para eles” (1997, p. 158). Em contraste com tais imagens produzidas para mulheres e pessoas incultas e socialmente desconsideradas, a elite masculina chinesa da Dinastia Ming cunhou sua própria arte, culta, espiritualizada e não mimética. A pintura de paisagem que reconhecemos e valorizamos hoje como autenticamente chinesa, como Bryson, por seu caráter autorreferente e performático, deve ser lida nesse novo contexto para que seu significado social possa vir à luz. Tal forma de arte era parte de um repertório exclusivo dos homens das classes altas

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bem educadas, que, para se diferenciarem de suas mulheres e demais classes sociais, recusavam qualquer elemento imitativo ou narrativo, concentrandose em um repertório extremamente restrito de montanhas, rochas e bambus, adaptáveis ao gesto livre da mão do artista. Eis como a pintura de paisagem funcionava e eis o que ela fazia no contexto da arte chinesa do século XVI. Logo, no que concerne à proposição de uma relação íntima entre a representação da paisagem e seus contextos, podemos concluir que é possível, ao menos em teoria, pensar uma cultura que não se dedicou à representação da mesma. Porém, esperamos ter contribuído para a visão de que, nos casos da presença de uma tradição de representação da paisagem, em qualquer espaço geográfico, ela não deve ser considerada uma atividade autônoma ou puramente estética. É preciso aprender a reconhecer nesses enquadramentos da natureza aquilo que Mitchell chamou de “um medium de troca entre o humano e o natural, entre o próprio e o outro”, independentemente do local em que o fenômeno venha a se manifestar.

Referências ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Sousa. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 2003. BORDO, Jonathan. “Picture and witness at the site of the wilderness”. In MITCHELL, W. J. T. (org.). Landscape and power. 2 ed. Chicago/ Londres: The University of Chicago Press, 2002. BRYSON, Norman. Vision and painting. The logic of the gaze. New Haven: Yale University Press, 1983. CLUNAS, Craig. Pictures and visuality in early modern China. Londres: Reaktion Books, 1997. FÉLIBIEN, André. Entretiens sur les viés et sur les ouvrages des plus excellens peintres anciens et modernes. Farnborough: Gregg Press, 1967, v. 5. GOMBRICH, Ernst. “A teoria renascentista da arte e a ascensão da paisagem”. Norma e forma. Estudos sobre a arte da renascença. São Paulo: Martins Fontes, 1990. GUTH, Christine et al. Japan, Paris: impressionism, postimpressionism, and the modern era. Catálogo de exposição. Washington: The University of Washington Press, 2004. MATTOS, Claudia Valladão de. “Paisagem, monumento e crítica ambiental na obra de Félix-Émile Taunay”. In TAVARES, Ana, DAZZI, Camila e VALLE, Arthur (orgs.). Oitocentos. Arte brasileira do Império e da Primeira República. Rio de Janeiro: Escola de Belas Artes da UFRJ, 2008, pp. 493-9. MIGLIACCIO, Luciano. A arte do século XIX. catálogo da Mostra do Redescobrimento. São Paulo: Fundação Bienal, 2000. MITCHELL, W. J. T. (org.). Landscape and power. 2 ed. Chicago/ Londres: The University of Chicago Press, 2002. SNYDER, Joel. “Territorial photography”. In MITCHELL, W. J. T. (org.). Landscape and power. 2 ed. Chicago/ Londres: The University of Chicago Press, 2002.

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A aragem da utopia

Fernando José Pereira Universidade do Porto

Arquipélago

Diz-se correntemente que um arquipélago se encontra sempre separado por aquilo que o une. A intencionalidade metodológica deste texto encontra similitudes nessa metáfora. Quer, antes de mais nada, conter uma espécie de condição experimental próxima da produção artística – sou artista plástico e não quero nem posso desligar-me dessa condição, mesmo no âmbito da escrita. É, aliás, uma condição que prezo muito, por conter em si uma especificidade territorial que, por ser interna, lhe proporciona pontos de vista diferenciados das restantes análises – chamemos-lhes satélites ou exteriores –, vindas das várias e importantes contribuições das disciplinas teóricas. A ideia de arquipélago é, acima de tudo, nos tempos que correm, uma ideia com conteúdos politizados. A globalização assim o determinou. Todos fazemos, de uma forma ou de outra, parte de alguma ilha nesse mar imenso que é a totalização global. Diz, acertando e indo ao encontro de nossos argumentos, no catálogo da Tate triennial, seu comissário, Nicolas Bourriad15: “O arquipélago é um exemplo da relação existente entre o singular e o todo. É uma entidade abstrata; sua unidade deriva de uma decisão sem a qual nada terá significado senão a de um grupo de ilhas unidas por nenhum nome comum” (2009).16 Nicolas Bourriaud foi-nos habituando ao longo dos anos a uma larga produção de conceitos mais ou menos mass midiáticos que depois se transformam em leitmotivs para a corporização de exposições e que, de imediato, têm seguidores por todos os lugares. Não é o meu caso. Contudo, a honestidade intelectual determina um grau de distanciamento que permite a leitura crítica dos textos sem preconceitos. O texto em que é apresentado o novo conceito de altermodernidade tem componentes de análise da realidade contemporânea que me parecem ser de grande utilidade. Daí sua utilização neste texto.

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“An archipelago is an example of the relationship between the one and the many. It is an abstract entity; its unity proceeds from a decision without which nothing would be signified save a scattering of islands united by no common name”.

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A multiplicidade cultural encontra-se hoje homogeneizada pelo que a une numa ampla matriz que nada tem, contudo, de fragmentário. A arte pretende ser parte do arquipélago. A arte é parte do arquipélago. Tomemos como exemplo para a estrutura metodológica deste texto outro caso, retirado do interior do território das artes plásticas: a obra de Eija-Liisa Ahtila e o caso particular de sua última obra videográfica: Where is where? Aqui, como de resto em muitos de seus filmes, a artista finlandesa constrói seu trabalho na base de uma narrativa que é fragmentada não em jeito cinematográfico, isto é, no mesmo espaço e em tempos distintos. Pelo contrário, desenvolve-se em simultaneidade temporal, mas em espaços diferenciados. A narrativa encontra-se, nesse caso particular, estilhaçada espacialmente em seis projeções diferentes, cada uma contendo uma singularidade que, no entanto, pode contribuir para o entendimento do todo. Uma coisa é certa: nenhum observador consegue ter a percepção do todo, pois a disposição espacial não o permite. Só uma visão consecutiva da mesma obra em sentidos de orientação diferentes permite sua visão total. O todo é, de novo, uma abstração. Para este texto, pretendi a mesma estrutura: um conjunto de pequenos textos que se encontram implicitamente unidos pela mesma noção: sua relação intensa com nosso tempo e, como especificidade natural, a discussão estrutural do relacionamento da produção artística com o pensamento político. Também aqui são necessárias algumas notas explicativas, pois o pensar do político afirma-se distante da conjuntura da política. É nesse âmbito que deverão ser entendidas todas as referências ao político no âmbito de sua relação com a arte, isto é, ter como ambição produzir um pensamento de cariz estrutural, liberto das amarras do tempo,17 a partir da análise de obras criadas na conjuntura temporal que é normalmente designada como contemporânea, quer dizer, do nosso tempo.18 Num texto publicado no final dos anos 1990: On art, death and postmodernity, and what they do to each other, Zygmunt Bauman (2000) interroga-se, a partir de Hannah Arendt, sobre o caráter perene da obra de arte e refere que esse só se revela retrospectivamente, em uma obra que mantenha a capacidade de suscitar emoções estéticas num espectador distinto daquele ao qual o autor poderia estar se dirigindo em sua época.

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Giorgio Agamben (2009) escreve, num pequeno ensaio intitulado “What is the contemporary?”: “Those who are truly contemporary, who truly belong to their time, are those who neither perfectly coincide with it nor adjust themselves to its demands. They are thus in this sense irrelevant [inattuale]. But precisely because of this condition, precisely through this disconnection and this anachronism, they are more capable than others of perceiving and grasping their own time”.

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“Fuck May 68; fight now” A certa altura de O estado de exceção, Agamben (2003) refere-se a uma questão fundamental: o ponto de vista que, nesse contexto, é determinado a partir de uma ordem jurídica que requer reconhecimento por uma outra que se lhe opõe. Diz o filósofo, citando o jurista italiano Santi Romano: Depois de ter reconhecido a natureza antijurídica das forças revolucionárias, acrescenta que tal só funciona desta forma em relação ao direito positivo do Estado contra o qual se dirige, mas isso não quer dizer que, de um ponto de vista bem diferente, desde o qual elas se definem a si mesmas, não seja um movimento ordenado e regulado pelo seu próprio direito. O que também quer dizer que é um ordenamento que se deve classificar na categoria dos ordenamentos jurídicos originários, no sentido que se atribui a essa expressão. Nesse sentido e dentro dos limites que foram indicados, pode-se, portanto, falar de um direito da revolução (Agamben, 2003).19

Isso quer dizer, ainda na perspectiva de Agamben, que a ideia da ordenação jurídica do Estado ser a única que se opõe eficazmente ao que normalmente é designado por caos é, sobretudo, redutora e falaciosa. Isto, contudo, é correto: toda a estruturação mental relativa à dualidade exclusão versus inclusão depende única e simplesmente do ponto de vista. E talvez esse seja o ponto mais importante para tornar claro o relacionamento que é intrínseco e impossível de ocultar, principalmente, porque ele é, também, a fonte da essencialidade do político, isto é, a necessária constatação do antagonismo. Por todo o lado na cidade de Atenas está pintada a frase “Fuck May 68; fight now!”. Testemunho físico das manifestações que aí decorreram em dezembro de 2008, essa frase é, também e sobretudo, um sério aviso a todos aqueles que, de algum modo, encaram o combate com o olhar nostálgico dos que perderam o horizonte. Aliás, foi dessa forma que Jacques Rancière se referiu, num texto lido nas Conferências de Moscou, também em 2008, à reação da esquerda ao estado atual do mundo. “Si la révolution est à coup sûr un état de fait qui ne peut être réglementé dans la procédure par cês pouvoirs d’État qu’elle tend à subvertir et à détruire et est, en ce sens, par définition ‘antijuridique, même quand il est juste’ (Romano 2, 222) elle ne saurait aussi apparaître telle qu’au regard du droit positif de l’État auquell s’oppose, mais cela n’empêche pás que du point de vue bien différent par lequel elle se présent elle-même, elle est un mouvement ordonné et réglementé par son propre droit. Cela signifie aussi qu’elle est un système que l’on doit classer dans la categorie dês systèmes juridiques originaires, au sens maintenant bien connu que l’on attribue à cette expression. En ce sens, et en nous limitant à la sphère que nous avons évoquée, on peut donc parler d’un droit de la revolution”.

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O significado profundo das palavras pintadas nas paredes gregas remete para um ajuste de contas que já não é sequer identificável com o idealismo de 1968 e que concentra em seus núcleos os ensinamentos de outras revoltas mais recentes e muito menos contextualizadas ideologicamente. As reações juvenis, que acontecem em todos os lugares, ao aprofundamento da invasão globalizadora, tornaram-se o novo modus facienti de toda uma geração. A desorganização em que se movimentam e a ausência de controle fazem com que se tornem, de imediato, incômodas e suspeitas aos olhos das ditas organizações políticas responsáveis, mesmo para suas organizações juvenis – aquelas que, nas atuais condições políticas do capitalismo em crise, se mostram totalmente alheias à vida real e às realidades que daí advêm. Aparentemente, trata-se de um violento paradoxo, mas, como em tudo neste nosso tempo imagético, a aparência é o lado tangível da realidade. Vejamos: a crítica mais generalizada aos nossos jovens é a de seu distanciamento do fenômeno do político. Alguns, contudo, militam nas organizações juvenis dos partidos políticos ditos do poder, ou seja, dos supostos responsáveis. Mas essa militância tem apenas uma ligação fonética com a palavra, pois seu significado modificou-se de tal forma que é difícil encontrar qualquer similitude. São esses que hoje ocupam os corredores do poder aos mais variados níveis – do parlamento europeu aos modestos e incógnitos jobs for the boys... –, exercendo aí a política como uma profissão que, dizem-nos constantemente, deve ser respeitável. Autênticos apparatchicks pós-políticos. Nas ruas, os outros, jovens encapuzados – proteção essencial contra as cargas policiais –, encarnam essa máxima do niilismo punk do no future, “arruinando a hipótese de um estado moderno (?)”, como clamaram, em pânico, os media, em clara sintonia com esse tempo gloriosamente assético e maquínico de um only future, que, acima de tudo, odeia e diaboliza a ideia de se poder não estar de acordo. Uma espécie de doença, dizem... A palavra anosognosia refere-se a um estado patológico em que o paciente não tem consciência de seu verdadeiro estado. O acréscimo do prefixo des- quer significar uma dupla condição: por um lado, construindo uma nova palavra que quer ter um significado específico; por outro, evitando a ratoeira de utilizar uma palavra existente para significações diversas. Queremos ser inequívocos: a palavra desanosognosia – que existe por nossa inteira vontade a partir deste momento – quer significar uma consciência aguda do estado das coisas; tão patologicamente aguda que descontrolada.

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Desanosognosia é uma obra realizada para o universo da rede e, como tal, uma experiência de interação privada, isto é, para ser vista em nosso computador e realizada por mim, a com a colaboração de Tiago Assis. Pode ser vista em http://www.interact.com.pt/.

Giardini It is important for me to create a still moment in the biennale, particularly because this is a work with a beginning, a middle and an end. Steve McQueen, junho de 2009

A mais recente Bienal de Veneza (2009) vem colocar, uma vez mais, questões que têm a ver com o relacionamento complexo que as obras de arte mantêm com o contexto político que as envolve. Isso ocorre a diversos níveis que não só aquele comumente apelidado de arte política, pois dessa rotulação não nos interessa sequer aqui falar. Interessa-nos, antes, aquelas obras que, de forma humilde, renunciam, quase paradoxalmente, ao bright side majoritariamente ambicionado. É um distanciamento que as mantém alheias às luzes intensas que emanam das chamadas propostas críticas e, naturalmente, consensualmente aceitas. A opção as situa num território de dissensão e, por isso, elas não utilizam a arma de arremesso político como base de lançamento para reconhecimento e legitimação internos – porque no fundo as opções majoritárias na arte contemporânea têm sempre um cunho crítico ou não seria esse, talvez, o domínio mais estranhamente consensual de nosso tempo. Ser consensualmente crítico, ou, dito de forma mais crua, pura e simplesmente não o ser. Aquilo a que Jacques Rancière se refere de forma muito clara como a produção de estereótipos como modelo crítico para os estereótipos a criticar. Uma das questões que mais nos interessam neste momento tem a ver com o tempo. Não por acaso, o curator da Bienalle, Daniel Birnbaun, escreveu um pequeno mas precioso livro intitulado Chronology. Nele, teoriza sobre o problema do tempo em diferentes perspectivas, desde a permanência deste presente cada vez mais efêmero e ao mesmo tempo perpétuo até a problematização da temporalidade na produção videográfica, na arte contemporânea, em obras de artistas fundamentais como Stan Douglas,

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Eija-Liisa Ahtila e Doug Aitken. Contudo, o que nos interessa aqui é falar de um momento que se propõe como uma temporalidade de exceção no rodopio que é a visita a uma bienal. Esse momento é corporizado na obra Giardini, de Steve McQueen. No exterior do pavilhão inglês, um pequeno placard informa que a visita só se efetua em horas certas, quer dizer, não se pode entrar e sair a qualquer momento, como é comum nas exposições. Essa é a primeira exceção com que somos confrontados: se queremos ver a obra, temos de esperar; e o que, a princípio, se apresenta como consequência operativa da instalação específica aí montada transfigura-se, no entanto, numa primeira abordagem politizada do fenômeno do tempo: é deliberadamente exigida a paragem. No interior negro do pavilhão, existe uma espécie de plateia que confronta o espectador com outra exigência temporal: o estar sentado e, naturalmente, parado. A obra propriamente dita apresenta-se em dupla projeção e desenrolase ao longo de 38 minutos. Uma das críticas mais populistas que se ouve a respeito dos eventos de arte contemporânea é a de que não há tempo para tudo, são muitos vídeos exigindo nossa atenção, tempo demais para cada um deles etc. Uma parafernália de argumentos coincidentes com a ideia de que nosso tempo não dá hipótese ao tempo. Ora, é no interior dessa problemática que a obra de Steve McQueen se ergue como possibilidade política de resistência a esse estado de coisas. A temporalidade tranquila que exala de Giardini corporiza uma opção tão dramaticamente oposta à velocidade contemporânea que funciona perceptivamente como estimulante, quer dizer, provoca uma espécie de incômodo no espectador, que se encontra fechado numa sala escura acompanhando imagens com outro tempo distinto da realidade exterior ao pavilhão. Aí fora, quase em frente, uma das obras mais faladas: a dupla de pavilhões nórdico e dinamarquês com a curadoria da dupla de artistas Elmgreen & Dragset representa a oposição quase absoluta a Giardini: ao tempo impõe-se o espaço, à reflexão impõe-se a anedota, à complexidade impõe-se a superficialidade. Voltemos, porém, ao vídeo de Steve McQueen. Em grande percentagem, estamos perante uma sucessão de imagens paradas, planos longos – quase diríamos fotográficos –, onde apenas de quando em quando se introduzem sub-repticiamente elementos que aí vêm alterar o clima de paragem em que se encontram envolvidos, sempre acompanhados de uma excelente banda sonora que, de algum modo, também se distancia do frenesi contemporâneo. Ora, um olhar mais atento e analítico à palavra paragem apreende de imediato a existência em seu

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interior de duas outras quase opostas: para – age (m). Conduzem, é certo, a uma ideia de paradoxal convivência, e é exatamente na construção do oximoro que queremos situar Giardini. Nosso tempo consome o tempo de forma rápida e impiedosa e, talvez por essa razão, cada vez temos menos tempo para ter tempo. A alteração que está sendo produzida na temporalidade contemporânea pela catadupa de imagens em que estamos literalmente mergulhados produziu uma inversão conceitual que merece atenção: o estar parado potencia a ação. Essa espécie de passividade radical é amplamente experienciada no recurso videográfico da contemplação das imagens.20 Ao tornar necessário o tempo como fator determinante para o agir, estamos possibilitando uma nova forma de observar: a contemplação ativa – uma possibilidade de inserir o fator atenção no âmbito do consumo das imagens, isto é, transformar a deriva superficial da dromologia nesse investimento estranho ao nosso tempo que é a paragem. Na paragem, sentimos a aragem da utopia. Resta-nos agir, ou seja, contemplar.

Busan Em 2008, estive envolvido em mais uma bienal, realizada na cidade coreana de Busan. A ampla longitude do artworld potencia, e nossos dias, a institucionalização de um circuito de bienais que se afastam cada vez mais de qualquer estatuto canônico e, em vez disso, pretendem ser intervenientes ativos de uma nova forma de bienal. Tal objetivo passa quase sempre pela procura de temáticas e pessoas que possam favorecer a ideia de diferença a que se encontram vinculadas. Todavia, é preciso não esquecer que sua profusão produziu, também, relacionamentos pragmáticos distantes da ideia romântica da produção artística. As organizações mantêm os pés bem assentes na terra e introduzem em sua mecânica operativa os mecanismos totalitários da economia liberal, quer dizer, a diferença como conceito filosófico transfigura-se rapidamente em noção econômica mais comumente designada por nicho. A diferenciação neoliberal assim o obriga, trazendo As imagens produzidas pela comunicação se sucedem de forma cada vez mais veloz. Pensemos na imposição da MTV para a realização dos videoclipes: o tempo máximo de cada plano é de cinco segundos. Uma das respostas possíveis passa pelo recurso a uma contemplação, digamos, estratégica, para podermos nos distanciar da noção tão criticada durante toda a modernidade. A contemplação que aqui se propõe passa pelo ajuste temporal à ação de pensar e, como todos sabemos, esse ato reflexivo leva tempo.

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consigo todas as regras de relacionamento que naturalmente lhe estão associadas: de um lado, quem manda e paga; de outro, todos aqueles que, de uma forma ou de outra, trabalham e recebem por seu trabalho. A Bienal de Busan seria comissariada por um grupo de curadores europeus e americanos que, no entanto, deviam uma espécie de obediência ao diretor coreano. A uma distância temporal curtíssima, de cerca de dois meses, a direção tomou a decisão, enviada por e-mail aos artistas, de despedir uma das curadoras e suspender o trabalho e a consequente participação dos artistas por ela selecionados (aprovados, entretanto, pelos restantes curadores). A forma brutal como todos os participantes receberam o anúncio da decisão, sem qualquer hipótese de contestação, vem trazer uma dose de realidade ao mundo da arte que muitas vezes queremos que se mantenha em seu exterior. O artworld e seus intervenientes ativos, apesar da cuidada forma que têm de se publicitar, são regidos exatamente pelas mesmas regras econômicas do resto do mercado, sejam elas de componente material ou, como nesse caso, pessoal. A demissão da curadora e a não participação de um grupo de 25 artistas potenciaram, de algum modo, uma amarga relação com a realidade; contudo, como em muitos outros casos, isso teve seu lado pedagógico: o verniz estalou e a máscara deixou de existir – se dúvidas ainda existissem. Até os demais curadores preferiram manter uma atitude distanciada, como se dissessem “Não é nada comigo”, deixando a colega cair, mas mantendo seus próprios lugares. Assim é o nosso mundo, mesmo o da arte. Curiosamente, o texto que suportava conceitualmente a bienal – que, apesar de truncada, aconteceu –, e que tinha uma forte participação da curadora afastada, parte de uma noção de Bataille que, nesse caso particular, ganhou outro interesse, mas mantém uma enorme relação com nosso presente: expenditure, quer dizer, o gasto que as energias humanas despendem livremente quando se encontram dedicadas a uma tarefa não produtiva, iludindo, dessa forma, a racionalidade utilitária ou instrumental. Refere o autor francês seu livro A parte maldita: O movimento geral de dilapidação da matéria viva anima-o [ao homem] e este não poderia detê-lo mesmo que quisesse. Inclusive, em seu apogeu, sua soberania do mundo vivo identifica-o com esse movimento; consagra-o de forma privilegiada à operação gloriosa, ao consumo inútil (2007).21 “El movimiento general de exudación (de dilapidación) de la matéria viva lo anima y él no podría detenerlo. Incluso, en su apogeo, su soberania del mundo vivo lo identifica con este movimiento; ella lo consagra de manera privilegiada, a la operacion gloriosa, al consumo inútil”.

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Numa sociedade totalmente concentrada na ideia de ganho e de produtividade, tal noção é naturalmente subversiva. Sua aplicação ao trabalho artístico é da maior relevância, pois, ao prolongar o ideal kantiano de interesse desinteressado, potencia um distanciamento perante a lógica economicista que medeia toda a atividade, incluindo-se a realização desses megaeventos artísticos. Não saberei nunca como teria sido a bienal – fui um dos excluídos –, mas tenho uma certeza em torno desse assunto: não se pode desligar de forma alguma o território internalizado da arte da atividade econômica, embora muitos o tentem fazer e até provar. Pela parte que me toca, jamais tive ilusões a esse respeito; e, se estou muito interessado na “aplicação” desses conceitos ao trabalho artístico, a mesma se faz com a consciência de sua impossibilidade. Toda a problemática aqui descrita tem naturalmente como consequência um necessário acréscimo do discernimento para, ainda assim, conseguir o distanciamento indispensável ao visionamento dos trabalhos propostos pelos artistas. Um artista que me parece determinante nesse contexto é Francis Alÿs. Analiso à luz desses conceitos uma obra desse artista que tive a oportunidade de ver: When faith moves mountains, de 2002. Ele pediu a ajuda de quinhentos voluntários peruanos para moverem o perfil de uma duna dez centímetros para o lado. Para tal, cada um deles começou a mover um pouco de areia, desde sua base e em linha, com a ajuda de pás. O movimento contínuo foi realizado num sentido ascendente até chegar ao topo, sendo o resultado fotografado e montado em cima da imagem original, bem como registrado em vídeo. Dizia o artista belga que uma das impressões mais fortes que deteve desde sua chegada à América Latina, onde vive, foi a de uma quase inversão das habituais premissas econômicas de desenvolvimento. Ainda segundo ele, aí existe uma máxima para os procedimentos econômicos: o máximo esforço para o mínimo resultado. Como facilmente se depreende, essa é uma condição antieconômica, especialmente por se apresentar como portadora de uma forte reação às estratégias de crescimento e empreendedorismo associadas aos ditos bons desenvolvimentos econômicos. Alÿs já tinha testado essa condição de “desperdício de energia” anteriormente, em sua já famosa peça de vídeo Paradox of práxis I, de 1997, na qual empurrava ao longo da Cidade do México um enorme bloco de gelo que, com o passar do tempo, se dilapidava e terminava em nada, quer dizer, numa pequena poça de água. O que Francis Alÿs está experimentando é essa possibilidade que a arte tem de se mobilizar em torno da parte maldita, aquela condição essencial

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também analisada por Giorgio Agamben (2007) num texto recente que remete diretamente a uma ideia possível de resistência à imposição totalitária da economia neoliberal. O filósofo italiano refere que a arte tem, em alguns momentos, a possibilidade de adquirir um significado político: “A arte é em si própria constitutivamente política, por ser uma operação que torna inoperantes e contempla os sentidos e os gestos habituais dos homens e, dessa forma, os abre a um novo possível uso”. Essa ideia de inoperância é extremamente importante para a produção artística, pois, por si só, introduz a possibilidade de “desativar suas funções comunicativas e informativas para abri-la a novo possível uso”. Temos então uma dupla condição para a existência da obra de arte. Por um lado, há a desativação dos mecanismos econômicos ditos positivos, ou seja, todo aquele universo de intencionalidade – e a arte não quer ser intencional – que fomenta a existência de produtividade e que “faz avançar o mundo”. Dito de outra forma, mais simples e direta: sua integração nos territórios de desenvolvimento econômico neoliberal. Por outro lado, a aparente inércia em que se mantém ao desligar-se de tal contenda torna internalizada toda a operação que condiciona qualquer intencionalidade de poder agir ou fazer na recusa de uma operatividade que lhe seria sempre exterior e impositiva. Contudo, essa aparente inércia é enganosa, pois é aí nesse lugar de paragem – e já vimos que a paragem não equivale a estagnação – que se fomentam as possibilidades em aberto para que a obra possa existir numa ambicionada condição de exílio voluntário e, em contrapartida, como sabemos, tornada impossível. A obra de arte torna-se, assim, o campo experimental privilegiado para a consecução dessa utópica condição que Derrida tão afincadamente procurou: possibilidade da impossibilidade.

Infâmia – Bem-vindo sejas, meu filho. Estava pensando nos benefícios da revolução. Tenho a impressão de que há mais movimentos, mais atividades no bairro. Ouço as pessoas rirem e se interpelarem com graça, como se para elas a vida tivesse se tornado uma coisa agradável. Alivia-me constatar em cada dia que a felicidade já não é apanágio dos poderosos (Cossery, 2000).

A poderosa metáfora elaborada por Cossery, em seu livro As cores da infâmia, através das palavras de um pai que ficou cego por ter recebido um golpe de bastão da polícia numa manifestação muitos anos antes, numa

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época anterior ao golpe dos militares e em que não se conhecia a realidade agora em vigor na estória do escritor egípcio, afirma-se como uma espécie de declaração sobre o discernimento. A ideia de crença na mudança tantas vezes elaborada e experimentada com o fracasso correspondente que lhe está associado produziu o que inicialmente seria entendido como desencanto. Mas, se numa pura condição experimental nos propusermos a aplicar-lhe, também, a possibilidade da operação inoperativa anteriormente apresentada, esse se transfigura em discernimento – uma espécie de atenção que configura a obra como campo de tensões e, dessa forma, a potencia como lugar de dissensão. Sua dimensão política encontra-se no estabelecimento das coordenadas desse lugar infame – topos – que, por ser na maioria das vezes não lugar – u-tópos –, se afirma como motor incessante nessa busca. A territorialidade infame afirma radicalmente a dissensão. É nesse lugar que devemos concentrar nossa atenção e não em suas confluências limítrofes. A categorização, sempre subjetiva, dos conteúdos por estas introduzidos e utilizados apresenta-se, assim, como profundamente secundarizada em relação ao imenso poder do lugar infame. Acima de tudo, porque esse se apresenta sempre como amoral, longe da lógica unívoca da razoabilidade moralista ou, então, de sua oposição polar imoral, ambas faces da mesma moeda. Algumas tradições de comemoração do carnaval na região de Trásos-Montes, no norte de Portugal, a que populares de aldeias vizinhas se opõem verbalmente, utilizando os mais variados e fortes insultos, afirmamse como uma curiosa estruturação espacial. Esse território fronteiriço, formalizado pela frontalidade simétrica de dois lugares altos, dois montes, separados por um vale, apresenta-se como uma fortíssima metáfora da democraticidade antagonista. No entanto, afirma Slavoj Žižek que um dos problemas das democracias liberais contemporâneas é a transformação da ideia de antagonismo em possibilidade unicamente agonística, isto é, uma pacificação “bem comportada” da anterior noção de combate. É nesse ambiente adormecido que surge o potencial da infâmia, porque, por isso mesmo, sua conotação negativa lhe permite um posicionamento radical. Debaixo do fogo “politicamente correto”, o território infame afirma uma vitalidade e um protagonismo que lhe é oferecido em nome próprio. O alastramento do politicamente correto a todas as esferas da vida – a arte incluída – determina, então, uma espécie de nova transparência22 consensual Entretanto, não devemos esquecer que, como afirma Juan Luís Moraza, nada é mais invisível que a evidência, pois essa funciona como um marcador contextual que desvia o olhar daquilo que deve, supostamente, permanecer oculto.

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em que tudo se encontra dentro dos limites, naturalmente deixando de fora a nomeação exterior da infâmia. As razões são sempre as mais importantes, as mais próprias, as mais razoáveis; apesar disso, apetece sempre estar como reduplicatio, isto é, numa posição que nunca se ajusta verdadeiramente ao seu lugar. Na contemporaneidade light e liberal, é esse o território da infâmia. Como refere Alain Badiou (2004) em suas duas últimas “[Quinze] teses sobre arte contemporânea”: 14. Posto que se encontra seguro da sua capacidade para controlar todo o campo do visível e do audível através das leis que governam a circulação comercial e a comunicação democrática, o Império já não censura nada. Toda a arte e todo o pensamento estarão perdidos se aceitarmos essa permissão para consumir, para comunicar e para desfrutar. Deveríamos, por isso, convertemo-nos em cruéis censores de nós próprios. 15. É melhor não fazer nada a contribuir para a criação das estruturas formais que permitem tornar visível aquilo que o Império já reconhece como existente.23

A arte pode corporizar o lugar infame. Não é fácil assumir a dissensão. Utilizemos, uma vez mais, a escrita corrosiva de Cossery (2000): “Tirando a gatunagem, que não se preocupava com política e preferia por princípio as trevas da clandestinidade aos sóis doentios da fama, não conhecia ninguém que correspondesse a esta descrição”. Ainda assim, esta é uma tarefa estimulante. Pelo prazer de arriscar. Como a arte o sabe fazer tão bem... quando quer.

Referências AGAMBEN, Giorgio. État d’exception – homo sacer. Paris: Seuil, 2003. ------. “Arte, inoperatividade, política”. Crítica do contemporâneo, conferências internacionais. Porto: Fundação de Serralves, 2007. ------. “What is the contemporary?”. What is an apparatus? Califórnia: Stanford University, 2009. Badiou, Alain. “Fiftheen thesis”. Lacanian Ink, 2004, n. 23. “14. Since it is sure of its ability to control the entire domain of the visible and the audible via the laws governing commercial circulation and democratic communication, Empire no longer censures anything. All art, and all thought, is ruined when we accept this permission to consume, to communicate and to enjoy. We should become the pitiless censors of ourselves. 15. It is better to do nothing than to contribute to the invention of formal ways of rendering visible that which Empire already recognizes as existent”.

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BATAILLE, Georges. La parte maldita. Buenos Aires: Las Cuarenta, 2007. BAUMAN, Zygmunt. On art, death and postmodernity, and what they do to each other. Londres: Phaidon, 2000. BOURRIAUD, Nicolas. “Altermodern”. Altermodern, tate triennial. Londres: Tate Publishing, 2009. COSSERY, Albert. As cores da infâmia. Lisboa: Antígona, 2000.

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Paulo Knauss UFF

Ponto de partida

Os laços entre arte e política são profundos. Primeiramente, porque os Estados e seus governantes têm um papel importante na construção dos sistemas de arte. Ao longo da história, o mecenato do Estado foi decisivo para o desenvolvimento das artes. Por meio de suas encomendas, o Estado definiu a participação das artes na vida política, seja em contextos palacianos aristocráticos de corte ou em contextos de afirmação da esfera pública. Assim, coube também às artes representar as formas de governo. Até os dias de hoje, reconhecemos o Egito dos faraós da antiguidade pelas suas pirâmides e seus monumentos, como a Esfinge. Do mesmo modo, o Partenon nos oferece a imagem da Grécia clássica, assim como o fórum romano permite configurar uma ideia do que era a Roma antiga. A história das monarquias europeias, por sua vez, pode ser contada em grande medida pela história dos palácios reais. Na França, as diferentes partes do palácio do Louvre identificam diferentes reinados, assim como o Palácio de Fontainebleau representa o governo de Francisco I. Na Espanha, o Palácio do Escorial representa o período da dinastia dos Habsburgos, assim como o Palácio de Madri encarna a época dos Bourbon. Em Portugal, os palácios de Sintra representam diferentes épocas da monarquia portuguesa, assim como o Palácio de Mafra é a imagem do governo de D. João V, e o Palácio de Queluz, a da época da “viradeira” do reinado de D. Maria I. As grandes obras públicas certamente ofereceram um amplo campo de ação de artistas. A arquitetura era representada nessas grandes construções – resultado do encontro de inúmeras artes –, que também eram enriquecidas por atividades artísticas que povoavam a vida palaciana. Desse modo, as formas artísticas dos governos com frequência definiram estilos plásticos que permitem reconhecer as características das

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obras de arte de seu tempo. Por sua vez, o gosto oficial influenciou igualmente os parâmetros da vida das elites políticas, que reproduziam em escala menor o gosto dominante do Estado. Mas no contexto da política também há muita divergência e concorrência de poder. Por isso, frequentemente as artes também serviram para exibir as tensões entre grupos políticos. No século XVII, o luxo excessivo e as formas artísticas inovadoras da arquitetura externa e de interior, assim como a dos jardins, do palácio privado de Vaux-le-Vicomte foram interpretados pelo rei francês como um sinal de rivalidade política, levando seu proprietário, o ministro Nicolas Fouquet, à desgraça política. Esse evento marca a nova era do reinado do rei Sol, após a morte do cardeal Mazarino, quando o rei extingue o cargo de primeiro-ministro e assume diretamente o controle do governo. O monarca acaba convocando os artistas de Vaux-le-Vicomte para realizar a construção do Palácio de Versalhes, que entraria para a história como o símbolo do reinado de Luís XIV. Já no contexto pós-Revolução Francesa, Napoleão mandou erigir, na ponte da Concórdia, em Paris, estátuas em homenagens a generais mortos nas campanhas de guerras promovidas pelo seu governo, substituídas posteriormente no contexto da Restauração por estátuas de personagens da história da monarquia. É nesse mesmo contexto de disputas políticas que um grupo de artistas neoclássicos, marcados pelo ostracismo em sua terra natal, foi organizado e deu origem à chamada Missão Artística Francesa, que chegou ao Rio de Janeiro em 1816 renovando a cena artística do Brasil e afirmando a estética neoclássica da monarquia nos trópicos. Importa frisar que os movimentos da política frequentemente resultam na promoção das artes, entrelaçando a vida política e a artística. No entanto, os vínculos entre arte e política estabelecem também referências para o pensamento da política e fundam, em certa medida, a disciplina da história da arte. Voltaire, no contexto de sua filosofia da história, tomava as artes como medida da razão de Estado e da afirmação da civilização.

Historiografia A interrogação sobre as relações entre arte e política aponta também para duas outras direções possíveis. A primeira conduz a problematizar a autonomia da historiografia da arte colocando em questão o campo disciplinar da história da arte. A segunda coloca em questão a própria

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autonomia do objeto e da experiência artística e de seus eventuais limites ou condicionantes e leva a um questionamento do papel do artista enquanto sujeito da arte. É comum dizer que a história da arte, ao menos no Ocidente, se inaugura com a publicação, em 1550, de A vida dos artistas, de Giorgio Vasari (15111574), fundando uma abordagem evolutiva da arte europeia. No contexto do século XVIII, identifica-se a tendência do pensamento das luzes para afirmar a autonomia da arte, ao lado de uma teoria da beleza objetiva. Nesse sentido, a referência comum é a obra de Johann Joachim Winckelmann (1717-1768), com seus livros que enfocam a arte da antiguidade clássica – Reflexões sobre a imitação das obras gregas na pintura e na escultura (1755) e História da arte antiga (1764). Contudo, nesse mesmo contexto do iluminismo, a arte foi tomada também como uma medida importante da história das civilizações. Voltaire, por exemplo, dedicou um capítulo às belas artes em seu famoso livro O século de Luís XIV. E foi nos Ensaios sobre os costumes e o espírito das nações que o filósofo francês sublinhou a importância das belas artes para abrandar as forças da tirania. Fundamentalmente, o que se colocava era a possibilidade de compreender a política a partir da cultura. Nesse caso, as artes não eram apenas expressão da civilização, mas também revelavam o poder de promovê-la. Assim, Voltaire identificou a experiência artística com sua capacidade de intervenção social, estabelecendo um vínculo entre arte e política. Mas foi na passagem do século XIX para o XX que a história da arte se definiu como disciplina científica propriamente dita. Se, de um lado, o problema da atribuição levou à constituição do método objetivo que contribuiu para afirmar o lugar da análise estilística e identificar o historiador ao perito, por outro, o estudo das linguagens artísticas também serviu à valorização dos significados da expressão. Logo, datar obras de artes se tornou um desafio, assim como compreender os sentidos dessa obra. Nesse contexto, a obra de Heinrich Wölfflin – Conceitos fundamentais da história da arte (1915) – se consagrou ao conceituar os esquemas de visualidade para reconhecer os padrões do desenvolvimento das formas, constituindo bases de sua leitura. Contudo, não se pode esquecer que um dos mestres de Wölfflin foi o suíço Jakob Burckhardt, autor de A cultura do renascimento na Itália (1860). Em sua introdução, Burckhardt indica que sua pesquisa, inicialmente, tinha como propósito tratar da arte do renascimento. Porém, ele foi conduzido a caracterizar os contornos espirituais de uma época. Na

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primeira parte, terminava afirmando que a forma de Estado da Itália do renascimento conformava “criação consciente e calculada, enquanto obra de arte” (1991, p. 22). Ele retoma essa mesma imagem mais adiante ao também caracterizar a guerra como obra de arte naquele contexto histórico italiano. Cabe destacar que a arte conduziu o tratamento da vida cultural de modo abrangente, afirmando a configuração espiritual de uma época, conforme Burckhardt. No pensamento histórico do autor suíço, o Estado e a religião se definiam como potências estáveis da história, devido ao seu caráter universal, enquanto a cultura se caracterizava como potência móvel, pois é o mundo da liberdade e do que não é necessariamente universal. Burckhardt não propõe qualquer hierarquia entre as três potências, mas sublinha: “O espiritual é mutável, mas não perece” (1983, p. 48). Dentro dessa linha de pensamento, inclui (de modo original) no universo da cultura, ao lado das línguas, artes e ciências, a sociabilidade, a moral e o comércio. A característica desse universo é “exercer uma incessante ação modificadora e desregradora sobre as instituições estáveis” – a religião e o Estado (1983, p. 102). Isso situa a importância do estudo das artes em seu pensamento histórico. O pensamento de Burckhardt interroga de que modo a cultura e as artes se relacionam com outras estruturas sociais. Em seu desdobramento, essa pergunta vai provocar a discussão, no século XX, sobre o papel do artista diante da sociedade. Sob inspiração marxista, Herbert Read, por exemplo, vai afirmar que a criação se coloca entre a alienação e a ação revolucionária. No limite de seu argumento, Read diz que a arte “é sempre perturbadora, permanentemente revolucionária”. Ao final, o artista é definido como “um perturbador da ordem estabelecida”, demarcando igualmente uma definição de arte (1983, p. 27). Interessa ressaltar o fato de que a definição da disciplina da história da arte coloca constantemente a si mesma a questão da autonomia da arte frente à ordem social e, consequentemente, interroga o papel político do artista e da obra de arte. A questão, na verdade, é chave para definir o objeto e os limites disciplinares da história da arte. Em certa medida, responder a essa interrogação significa ir ao encontro do que Argan e Fagiolo anotaram, ao considerar que cabe à história da arte “estudar a arte não como reflexo, mas como agente da história” (1994, p. 18). Por outro lado, não se pode esquecer que também o discurso disciplinar especializado é muitas vezes atravessado por disputas políticas, inserindo-se num campo alargado de condicionantes. A história das disputas pelo valor

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de obras artísticas muitas vezes ilustra essa situação em que a crítica de arte se baseia em disputas de ordem extra-artísticas. A história da famosa Vênus de Milo, pertencente ao acervo do Museu do Louvre, o mais importante museu de arte francês, caracteriza bem como política e crítica de arte se entrelaçam.24 A escultura foi descoberta em 1820, na ilha de Milos, na Grécia, pelo oficial de marinha francês Olivier Voutier. Depois disso, foi levada para a França, onde foi exposta sem os fragmentos dos braços e de parte do soco. A discussão sobre os fragmentos foi decisiva para revelar o valor artístico da obra. A qualidade do trabalho escultórico dos braços e a inscrição do soco definiriam a peça como do período helenístico, genericamente caracterizado pela crítica especializada como período de decadência da arte grega antiga. Ao contrário, sem esses elementos complementares, era possível considerar a peça como uma obra-prima da época clássica, vista como período de maior valor artístico. Casualmente, os fragmentos desapareceram e deixaram o debate em aberto. A questão ganhou destaque ao ser envolvida numa querela de amplas consequências para a historiografia. Como, em 1817, o príncipe Ludwig da Bavária havia comprado o teatro de Milos, ele se sentiu no direito de reivindicar a posse da estátua que foi exposta na França, pois seria parte do complexo. Os franceses, por sua vez, argumentaram que a estátua nada tinha a ver com o teatro. Na sequência, os críticos germânicos promoveram certo ceticismo em relação ao verdadeiro valor da estátua, caracterizando-a como do período helenístico, e não como do período clássico, como pretendiam os franceses. Dois nomes proeminentes da historiografia da arte na época se confrontaram: do lado alemão, Adolf Furtwängler; e, do lado francês, Salomon Reinach. Ainda que o soco perdido tenha reaparecido em 1900, confirmando a data e a autoria da obra, a querela entre os especialistas não terminou. O resultado foi um avanço grande na erudição sobre a arte grega da antiguidade. Contudo, a discussão pública rendeu na medida em que envolvia uma disputa entre os dois países sobre a proeminência no campo da cultura. A França não tinha nenhuma obra-prima em suas coleções do período clássico da arte grega da antiguidade, enquanto a Inglaterra tinha os mármores de Elgin e os frisos do Partenon, o Vaticano tinha o Apolo Belvedere e a Alemanha, os achados arqueológicos de Micenas. Os usos do passado da arte ultrapassavam, com isso, o espaço da disciplina Para conhecer a história dessa escultura, cf. Curtis (2004).

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e transportavam o debate da crítica de arte para o campo das relações internacionais.

Usos da imagem Ao tratar da história da imagem antes da era da arte, Hans Belting (1996) chama a atenção para o fato de que nem sempre o estatuto do objeto artístico foi o mesmo. Assim, a rigor, a ideia de arte que se estende até nossos dias pode ser definida como uma construção posterior à Idade Média e que se associa à criação individual, ou autoral, e a uma dada teoria do belo. A era da arte, segundo Belting, está enraizada nas consequências do movimento iconoclasta do período das reformas religiosas, responsáveis pela destruição de inúmeras imagens e pela produção de novas imagens para completar as coleções destruídas. Em seu desdobramento, isso significa admitir que a história da arte não pode se basear na naturalização do objeto artístico. Além disso, é preciso admitir que a ideia de arte se relaciona aos usos da imagem. Os usos da imagem, porém, são muito diversificados e envolvem também seus usos artísticos, o que confere um estatuto especial à imagem, distinguindo-a de outras formas de arte. Há uma construção social que está baseada na afirmação de um sistema de artes, que define as características do circuito da criação, produção, exposição, fruição e recepção do objeto artístico, conduzindo à sua institucionalização. Isso implica um jogo de posições no sistema de artes que se relaciona com a ordem política da sociedade. Há um entrelaçamento entre ordem política e sistema das artes. De todo modo, os usos da imagem estão submetidos aos seus padrões de visualidade, ou “regimes escópicos”, para usar a expressão de Martin Jay (1999, pp. 66-9), que caracterizam as diversas sociedades. Isso equivale a dizer que em torno de imagens se afirmam formas de controle social que têm a visualidade como referência. O controle social implica não apenas restrições e interdições, mas também formas de promoção de imagens. A censura e a propaganda caminham muito perto uma da outra. Sempre que há imagens censuradas ou proibidas, há imagens a serem difundidas. Um bom exemplo pode ser acompanhado no estudo original de Nazli Aytuna que interroga os efeitos da interdição ao uso de imagens nos cartazes de propaganda eleitoral na Turquia. É preciso considerar que o cartaz político aparece tardiamente na vida turca, sendo contemporâneo da implantação da democracia representativa em 1946, e representa a passagem ao pluralismo político que substituiu a velha ordem autoritária. Apesar da afirmação

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do estado laico, a tradição da interdição da imagem por motivações religiosas caracterizou a história turca. Mesmo assim, pode-se dizer que a transformação social da Turquia foi acompanhada pela mudança dos usos da imagem. As eleições de 1950 foram acompanhadas de uma lei eleitoral que estabeleceu as regras da propaganda e dos cartazes políticos, a qual proibiu até 1979 qualquer presença visual ou recurso a símbolos, como a bandeira nacional, ou símbolos religiosos. A falta de imagens se torna uma característica peculiar dos cartazes eleitorais turcos. Desse modo, uma forma simbólica da língua se desenvolve em torno dos cartazes. As palavras dominam a composição e afirmam valores. Procurando compensar o impacto da ausência de imagens elucidativas, as mensagens se tornam longas, multiplicando a presença de letras. O resultado foi a criação de um grafismo especial que caracteriza os cartazes eleitorais turcos da época, que se valem da diversidade tipográfica, do tamanho e do colorido de letras, animando a comunicação visual apesar das restrições impostas (Aytuna, 2008). Nesse caso, observa-se como a censura ao uso de imagens promove a criação de novos tipos de imagens no campo das artes gráficas, que demarcam uma criação original. Contudo, ao longo da história ocorrem movimentos que irrompem contra imagens estabelecidas e confrontam regimes visuais vigentes. A iconoclastia se contrapõe, assim, às formas condicionadas de promoção de imagens ou de iconofilia. O que se configura não é apenas um campo de disputas de sentidos, mas também de disputas sociais, que caracterizam uma “guerra de imagens” (Bredekamp, 1975). Conforme aponta Dario Gamboni (1997), estudar os movimentos iconoclastas é uma forma de interrogar a historiografia da arte e sua tendência a ser normativa e programática. Desse modo, a iconoclastia sempre foi tratada como uma atitude de blasfêmia ou ignorância, sendo estigmatizada a priori. Mas, ao contrário, segundo o autor, a iconoclastia não deve ser entendida como mero vandalismo errante, e sim como algo que frequentemente se baseia num gesto intencional de uma doutrina organizada e que pode ser definido também como um fenômeno de expressão. Nesse sentido, o problema do recorte da noção de “destruição da arte” que envolve a iconoclastia é pressupor que o alvo atingido seja necessariamente o objeto artístico e, por consequência, considerar que o objeto de discussão do ato historicamente demarcado seja a arte. Todavia, com frequência, o objeto das ações iconoclastas nada tinha a ver com as qualidades artísticas, e sim com outras qualidades relacionadas às imagens.

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Em tempos recentes, a destruição das estátuas dos heróis da construção das sociedades do socialismo real, como Lênin e Stalin, certamente se explica antes por sua natureza política que artística. O fato destruidor também envolve novos conceitos acerca da imagem e da arte. Portanto, a destruição da arte representa, sobretudo, processos sociais de manipulação de emblemas e operações simbólicas que envolvem a arte. Por seu turno, a arte moderna e contemporânea também faz usos de processos iconoclastas, subvertendo os sentidos estabelecidos em torno de imagens e objetos – ora dessacralizando o objeto artístico conhecido, ora conferindo aura artística a objetos que não são vistos como obras de arte. Em 1917, Marcel Duchamp, com a Fonte, colaborou para afirmar os ready-mades no campo das artes, descobrindo arte onde esta não era vista. O mesmo autor, em 1919, pintou sobre uma reprodução do famoso quadro da Monalisa um bigode e uma pêra, além de uma inscrição provocadora, discutindo os sentidos da arte. Cabe salientar ainda que os processos sociais de perseguição ou destruição de certas imagens, em geral, correspondem a processos correlatos de promoção de outro tipo de imagens. No contexto artístico da França sob a ocupação nazista, por exemplo, desenvolveu-se a perseguição à arte de vanguarda do século XX, considerada degenerada, ao mesmo tempo que se convivia com a promoção da arte valorizada pelo pensamento social nazista. As esculturas de Arno Becker foram expostas com pompa, difundindo o padrão de gosto oficial do regime nazista na França. Esse mesmo padrão de gosto caiu no ostracismo no contexto posterior à Segunda Guerra, mas em outros movimentos artísticos daquele contexto buscou-se reconhecer formas de resistência (Bertrand Dorléac, 1986). Contudo, é recorrente o uso de obras de arte para afirmar certa pedagogia cívica e uma mitologia nacional. A pintura histórica é um caso exemplar conhecido da história do Brasil, em especial no caso dos quadros das grandes batalhas do século XIX. Em outras situações históricas, a pintura colaborou para consagrar os mitos políticos. Na República do Congo, a imagem de Patrice Lumumba, herói da resistência anticolonial e primeiro-ministro do país independente, se perpetua em telas de produção popular vendidas às centenas no mercado livre das ruas, transformando a paixão pelo líder em lembrança da promessa de libertação não realizada, tornando-se emblema de denúncia e reivindicação. A pintura transporta o mito da política e afirma uma exigência de justiça (Jewsiewicki, 1996).

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Em resumo, a política pode ser um campo de promoção e de perseguição de imagens da arte, assim como a arte pode servir para sustentar a política.

Referências ARGAN, Giulio Carlo e FAGIOLO, Maurizio. Guia de história da arte. Lisboa: Estampa, 1994. AYTUNA, Nazli. “L’interdiction des images das les affiches électorales turques (19501979)”. In DELPORTE, Christian et al. Quelle est la place des images en histoire? Paris: Nouveau Monde, 2008, pp. 350-7. BELTING, Hans. Likeness and presence: a history of image before the era of art. Chicago/ Londres: The University of Chicago Press, 1996. BERTRAND DORLÉAC, Laurence. Histoire de l’art – Paris, 1940-1944: ordre national, traditions et modernités. Paris: Publications de la Sorbonne, 1986. BREDEKAMP, Horst. Kunst als Medium sozialer Konflikte: Bilderkämpfe von der Spätantike bis zur Hussitenrevolution. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1975. BURCKHARDT, Jakob. Reflexiones sobre la historia universal. México: Fundo de Cultura Econômico, 1983. ------. A cultura do renascimento na Itália: um ensaio. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. CURTIS, Gregory. Disarmed: the story of the Venus of Milo. Nova Iorque: Vintage Books, 2004. GAMBONI, Dario. The destruction of art: iconoclasm and vandalism since French Revolution. Londres: Reaktion Books, 1997. JAY, Martin. “Scopic regimes of modernity”. In MIRZOEFF, Nicholas (org.). The visual culture reader. Londres/ Nova Iorque: Routledge, 1999, pp. 66-9. JEWSIEWICKI, Bogumil. “Corps interdits: la représentation christique de Lumumba comme rédempteur du peuple zaïrois”. Cahiers d’Etudes Africaines, 1996, pp. 113-42. READ, Herbert. Arte e alienação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1983.

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Liberdade, representação e poder

Sheila Cabo Geraldo UERJ

Como escreve Hannah Arendt (2006), a ideia da coisa política surge na pólis grega, onde é idêntica à liberdade. Divergindo de Aristóteles, para quem a política é inerente ao homem, a pensadora diz que a política não surge no homem, mas no entre-homens, que são diferentes, plurais. A política surge, então, no intraespaço e se estabelece como relação. Baseia-se, assim, na pluralidade dos homens e trata da convivência entre diferentes. Sua função seria organizar e regular o convívio. A liberdade e a espontaneidade dos homens é que seriam, desse modo, os pressupostos para o surgimento de um espaço para o livre agir em público, que é o espaço original da política. Se a ideia de política surge da lembrança da pólis grega, para Arendt a política sempre poderia ser realizada de novo, porque dependeria da capacidade do livre agir do homem, que a reinventaria. A política, porém, apareceu raras vezes na história nesse sentido. Os sistemas de governo baseados no controle, especialmente os totalitários, são as formas mais extremas de desnaturação da coisa política, pois suprimem a liberdade humana, submetendo-a à determinação ideologizante, pela qual a resistência individual livre é violentamente vetada. A relação entre arte e política, portanto, não pode ser entendida, como alguns alardeiam, como um modismo do final do século XX. É uma relação que pode ser identificada em diferentes espaços e temporalidades, tomando configurações diversas em que tanto a política quanto a arte encontram-se entre a liberdade de agir – individual ou coletivamente – e o controle (Foucault, 2007) – seja dos aparatos de Estado, seja dos sistemas econômicos e culturais, como o sistema de arte, que inclui os museus, as galerias, o mercado, a crítica, os historiadores de arte, o ensino de arte e de história da arte (Fraser, 2008).

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Muitas vezes, a política toma a forma do poder e, não raro, da violência. Em arte, o poder e a violência, explícita ou veladamente, podem ocorrer enquanto representação de acontecimentos sociais e eventos políticos ou na própria condição de produção e circulação da arte. Uma das mais reconhecidas manifestações de produção enquanto representação simbólica do poder em arte está na forma da arquitetura monumental, usada de maneira bastante clara pelos regimes totalitários modernos, mas que também nos remete ao antigo império egípcio. Os egípcios antigos viviam sob uma constituição de sociedade agrícola que os impelia para a concepção de uma eternidade cíclica – ciclos em eterna reiteração – presidida pelo deus solar, assim como para uma eternidade linear, feita de momentos que se sucedem sem começo nem fim, comandada pelo deus dos mortos. A mitologia acentuava, acima de tudo, que o rei era descendente direto do deus criador do universo e, portanto, dono do mundo e de tudo o que esse contivesse. Na criação do universo, o caos – líquido, ilimitado e informe – fora ordenado, mas não extinto, continuando como ameaça. A mitologia cria, assim, deuses que incorporam as noções de verdade, justiça, medida, equilíbrio e ordem. Fortalecer com oferendas os deuses e, desse modo, adiar o fim dos tempos era o principal encargo do rei do Egito, que se tornava também um deus coroado como humano e divino. Cada pessoa também deveria colaborar nessa tarefa para assegurar a ordem, acatando a tarefa do rei, contribuindo com impostos e prestando a corveia. O templo egípcio, segundo Ciro Flamarion Cardoso (1999), foi “concebido como um modelo de maquete do universo organizado”. Era uma espécie de residência, “a mansão entre os homens de alguma divindade”. Esses eram templos dedicados ao culto do rei no sentido de promover e celebrar a união do faraó reinante com o divino. Alguns deles assumiam, entre outras, a função funerária em favor do rei morto. Ainda segundo Cardoso, uma estela de Amenhotep III, do século XIV a.C., mostra que seu enorme e suntuoso templo elevado na Tebas ocidental era visto pelo faraó como monumento para seu pai Amon, o senhor de Tronos das Duas Terras (Karnak), fazendo para ele um templo divino e esplêndido no lado oeste de Tebas. Além disso, tinha a função de renovar os poderes de Amon e do rei. Karnak, o principal templo de Amon, era um domínio sagrado, cercado por um muro, que continha outras edificações, formando o Reino Novo. Junto com o templo de Luxor, Karnak dominava Tebas tanto por suas edificações majestosas quanto por estas se situarem em um terreno mais alto do que a zona habitada

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pelos comuns mortais. Na 19a dinastia, que seguiu a dinastia de Amenhotep III, o templo ganhou uma enorme sala com 122 colunas de 15 metros de altura, colocadas em volta da colunata central original, que constava de 14 colunas de 22 metros de altura. Todo o conjunto era brilhantemente colorido (Stadelmann, 1990 apud Cardoso, 1999) e, como escreve ainda Cardoso, só a Babilônia e as capitais assírias do primeiro milênio poderiam rivalizar com Tebas em magnificência monumental. No México, na cidade de Teotihuacan,25 que teve seu ocaso no século VIII d.C. e foi descrita pelos espanhóis do século XVI, destacam-se duas grandes e importantes construções em forma de pirâmides que serviam de base para templos e se referiam à própria criação mitológica do mundo dos homens. A pirâmide, que em arquitetura é uma forma elementar, na sua escala sugere a ideia de estabilidade e durabilidade, o que impõe aos comuns, em sua transitoriedade, a força do poder desigual. Enquanto construção monumental, afirma um sobre os demais. As pirâmides são ainda uma representação de mundo onde mitologia e história estão inextricavelmente associadas. Segundo relatos do padre franciscano Bernardino Sahagún, que chegou ao México em 1529 e recolheu dos astecas muitas lendas, em suas plataformas estariam os ídolos do Sol e da Lua, feitos de pedra coberta de ouro. A pirâmide do Sol é a maior de Teotihuacan, com 65 metros. A da Lua, menor que a do Sol, com 45 metros, foi construída em um elevado, alcançando-a em cota. Ambas dominam simbólica e miticamente o espaço onde se desenvolveu a antiga cidade (Bazin, 1980). Entretanto, a história da representação do político na América nem sempre está associada às manifestações simbólicas de poder pelo arquitetônico. Associa-se também com a conquista e a violência. Há no Museu de Belas Artes de Buenos Aires um conjunto de “tablas”26 que relata a conquista do México desde o desembarque espanhol de Hernán Cortés em San Juan de Ulúa, em 1519, até a caída de Tenotchtitlán, a capital asteca, e a prisão do último imperador indígena, Cauthémoc, em 1521. As imagens se Teotihuacan é hoje um sítio arqueológico localizado a 40 km da Cidade do México, no atual município de San Juan de Teotihuacan. Foi a maior cidade conhecida da época da América pré-colombiana, exercendo influência em grande parte da Mesoamérica. O primeiro povoado dessa região data de 600 a.C. Para os astecas, a cidade era um local lendário, onde havia sido criado o Quinto Sol, ou Quinto Mundo, época actual.

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Alejandro Mackinlay comprou as Tablas de la Conquista de Mexico em Londres, em meados do século XIX, e mais tarde as doou para a fundação do primeiro Museu Público da Argentina, atual Museu de Ciências Naturais. Desde 1898, integram o patrimônio do Museu de Belas Artes de Buenos Aires.

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baseiam na crônica do século XVI escrita por Bernal Díaz del Castillo e foram confeccionadas pelo mexicano Miguel Gonzáles, ao final do século XVII e início do XVIII, com uma técnica chinesa de incrustação de madrepérola (nácar) que lhes dá um brilho e uma luminosidade particulares.27 Desde o século XIX, integram o acervo do museu. A sequência mais surpreendente é a da relação política entre Cortés e Montezuma. Como escreveu Todorov: “[...] como explicar que Cortés, liderando algumas centenas de homens, tenha conseguido tomar o reino de Montezuma, que dispunha de várias centenas de milhares de guerreiros?” (1996, p. 51). As explicações são muitas e ambíguas. De acordo com Bernal Días: “Achamos que Montezuma estava arrependido [do começo das hostilidades] [...] Mas na verdade Montezuma procurava apaziguar seus súditos e pedia que cessassem seus ataques”. Montezuma, diante dos inimigos, prefere não usar seu poder, como se não tivesse certeza de querer vencer, escreve Gomarra, capelão e biógrafo de Cortés (apud Todorov, 1996, p. 54). As Tablas da Conquista do México são representações que seguem tecnicamente não só as hibridações culturais entre Oriente e Ocidente, mas também a forma narrativa dos códices produzidos entre os povos da Mesoamérica desde o século VIII d.C.28 Essa representação em narrativa, seja ideográfica ou pictográfica, nos informa tanto sobre as relações mitológicas quanto as políticas ao longo da história. A forma narrativa dos códices, no entanto, foi também conhecida na Grécia desde a era antiga tardia, tendo se desenvolvido significativamente na Idade Média latina. A pintura moderna herda em muitos aspectos essa narrativa, que depois, no período do renascimento, toma a forma da representação naturalista (Byington, 2009). É possível reconhecer uma impressionante representação pictórica das relações sociais enquanto relações políticas modernas no quadro A ronda noturna, de Rembrandt, no qual estão figurados 18 cidadãos de Amsterdã. O quadro é um retrato de grupo e os guerreiros são personagens determinados, que pertencem à unidade da guarda cívica do capitão Frans Banning Cocq, senhor de Purmerland, e de seu tenente Willen van Ruytemburg, senhor de Segundo as referências museológicas, a aplicação de madrepérola (nácar) se fez conhecida no México por meio do comércio com a Ásia. A frota espanhola do Galeão de Manila, ou Nau da China, percorria a rota Acapulco-Manilha entre 1565 e 1815. Trazia para a América sedas, marfim, jade, porcelana e biombos chineses e japoneses, difundindo na América a técnica do encochado.

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Grande parte dos códices encontrados pelos conquistadores da Mesoamérica foi destruída. Apenas três chegaram à atualidade: o códice de Madri, o de Dresden e o de Paris. Por meio desses documentos, é possível conhecer a história e a mitologia desses povos.

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Vlardingen. São os arcabuzeiros, também chamados arqueiros, pertencentes a uma tradição medieval das antigas irmandades de atiradores, que seguiam sendo o contingente militar da burguesia, reservado para a intervenção bélica em tempos difíceis e que normalmente cumpria um papel representativo em atos solenes. Na Holanda, onde se formou o primeiro esboço da forma estatal capitalista, a milícia cidadã teve durante muito tempo uma grande importância político-social. Foi lá que, como escreveu Alois Riegl (apud Bauch, 1981), desenvolveu-se o retrato de grupo. Pintaram pela primeira vez os grupos e as representações sociais que constituem a população de uma cidade. Já com Frans Hals, os retratos de grupo são pintados independentemente dos conceitos ideológico-humanísticos, não mais sob a figura simbólica do príncipe e dos nomes históricos de patronos nobres ou eclesiásticos. Entretanto, soam como pintura de gênero, de fatos triviais. Com A ronda noturna, Rembrandt vai além e pinta a existência das milícias de cidadãos com igualdade de direitos em uma forma retratística coletiva, que não era apenas a reunião de retratos individuais, mas de um grupo de cidadãos que desempenhavam uma ação comum e em que, consequentemente, os gestos eram significativos, referindo-se cada um a um outro ou a outros. Ali fica criado o que Riegl chamou de unidade interior do quadro, ou seja, ordenações que submetem os indivíduos a um conjunto, que unem os representados no tempo e no espaço. As representações das relações entre desiguais, não como liberdade, mas como poder e violência, se intensificam na era das revoluções (Hobsbaum, 2008), sobretudo na França e na Inglaterra, e acirram-se com a expansão napoleônica. Atingiram até mesmo o Brasil, onde a corte portuguesa se refugiou e para onde contratou artistas identificados com a revolução, agora ameaçados com a Restauração monárquica de Luís XVIII. Por intermédio do embaixador extraordinário de Portugal junto à corte francesa, o marquês de Marialva, e de Alexandre van Humboldt, naturalista alemão que estivera no Brasil, foi contratado Joaquim Lebreton, secretário recém-demitido da Academia de Belas Artes do Instituto da França, que seria, desde então, o organizador e chefe de Nicolas Antoine Taunay e Jean-Baptiste Debret, entre outros que chegam ao Brasil em 1816 para dar início à academia de artes em terras tropicais. Se na França A morte de Marat, de Jacques-Louis David, A jangada da Medusa, de Théodore Géricault, e A liberdade guia o povo, de Eugène Delacroix, são exemplos de pinturas marcadas pela era das revoluções, o Caçador na floresta, de Caspar Friedrich, e o Fuzilamento, de Francisco Goya, referem-se explicitamente à política expansionista de Napoleão, remetendo à condição

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do homem em sociedade sob o domínio e submissão ao terror. São exemplos da “arte em tempos de exceção”, como escreveu Giorgio Agamben (2004). A restauração monárquica na França abala o universalismo iluminista e revolucionário, fazendo nascer no âmbito mais geral do romantismo, que incluía a ideologia ética neoclássica, um romantismo histórico que se opõe violentamente à racionalidade já em crise – como é o caso de Gericault e depois Delacroix, que empreendem um verdadeiro choque do indivíduo com a história. Na Alemanha, o romantismo histórico é um processo que se constrói, sobretudo, a partir das invasões napoleônicas, das quais a pintura Caçador na floresta, pintada em 1812 por Caspar Friedrich, é um exemplo. Apesar de, num romantismo nacionalista, tratar-se diretamente da invasão do exército francês, trata-se também e, sobretudo, da perplexidade do soldado de Napoleão diante da natureza nórdica, revelando-se uma constante da pintura na Alemanha: a reflexão que se mostra como desejo de transcendência, ganhando contornos de liberdade. Enquanto os franceses, como Delacroix, tentam a realização da utopia libertária procurando no Oriente real o Oriente mítico, Friedrich, cuja pintura tem um caráter mais reflexivo que ético-ativo, procura a liberdade em uma abertura para o infinito. É uma pintura a serviço de uma ética profunda. É uma lição de moral fechada na aparência dos seres e da natureza oculta na pintura.

A vanguarda e a nova práxis vital Peter Bürger (2008) descreve a vanguarda sob dois planos: um que diz respeito à intenção dos movimentos históricos de vanguarda, a de destruição da instituição arte, que se mostrava dissociada da práxis vital; e outro em que a concepção de obra de arte é colocada em questão. No que se refere à obra, alerta-se para a contradição na aplicação do conceito de obra de arte aos produtos da vanguarda, quando a “dissolução da unidade tradicional da obra pode ser comprovada de maneira bastante formal como característica comum da modernidade” (Bubner apud Bürger, 2008, p. 117). A concepção mesma de arte como criação individual de obras únicas, em vigor desde o renascimento, é questionada. Citando Adorno, Bürger escreve: “As únicas obras que contam hoje são aquelas que não são mais obras”.29 Mesmo que se observe a resistência da arte, é sempre de forma negativa que os Bürger (2008) esclarece que a concepção de obra que Adorno está empregando é aquela identificada como orgânica, em que não há mediação entre a unidade do geral e do particular (arte simbólica). Na obra não orgânica (alegórica), como no caso das obras da vanguarda, defende, trata-se de uma unidade mediada, que, se for produzida, só o será pelo receptor.

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movimentos de vanguarda se relacionam com a categoria da obra, sendo o caso mais famoso disso o da ação de Marcel Duchamp (2008) nas duas primeiras décadas do século XX. Entretanto, é impossível não reconhecer que as obras continuaram a ser produzidas e a instituição arte se mostrou resistente ao ataque. Uma importante questão nessa descrição do sentido da vanguarda para o entendimento da relação entre arte e política diz respeito ao que Bürger, discutindo a intenção de destruição da instituição da arte, chamou de “negação da autonomia pela arte de vanguarda” (2008, p. 101). Partindo do problema que se instaurou na modernidade com o conceito de obra de arte autônoma, faz uma análise dos termos da arte que vai da produção de arte sacra à arte cortesã e depois burguesa. Propõe uma tipologia histórica em que aparecem três elementos: finalidade de aplicação, produção e recepção. A arte sacra, que é produzida de maneira artesanal, servia como objeto de culto – finalidade – e estaria associada à instituição social da religião, sendo recebida coletiva e institucionalmente. A arte cortesã tem finalidade representativa e é parte da práxis vital do homem de fé, embora nela se perceba a libertação da vinculação sacra, como em Frans Hals e Diego de Velásquez. Se a arte cortesã permanece coletiva na recepção, no que diz respeito à produção, entretanto, difere substancialmente da arte sacra, sendo produzida individualmente, sob consciência da singularidade do fazer artístico. Já a arte burguesa se define substancialmente como a arte da autocompreensão de classe e corresponde à “satisfação de necessidades residuais”, que se poderia identificar como a forma de aliviar as pressões das transformações históricas e que se reuniria, enquanto ideal, sob a capa de valores como verdade, alegria, humanidade, solidariedade (Habermas apud Bürger, 2008, p. 103), presentes, por exemplo, na pintura de Vuillard. Como escreve Bürger, a recepção burguesa é individual. Só a aproximação solitária possibilita a fruição desses valores, como no romance novecentista. Contudo, no que diz respeito à produção, há na arte burguesa um virada fundamental em relação tanto aos objetos de culto quanto aos de representação, que tinham finalidade de aplicação. A arte burguesa teria essa finalidade reduzida às satisfações residuais. Assim, a separação de arte e práxis vital se institucionaliza como autonomia da arte.30 É importante ressaltar, diz Bürger, que se está falando do status da obra na sociedade, o que não inclui o conteúdo da obra. O conteúdo das obras está sujeito, nesse caso, a um processo histórico que culmina com o esteticismo, em que a obra é conteúdo de si mesma.

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Os movimentos europeus de vanguarda definiram-se, assim, como um ataque ao status da arte na sociedade burguesa, negando a instituição arte como instituição descolada da práxis vital. Porém, o fato de os vanguardistas exigirem que a arte se tornasse prática não quer dizer que o conteúdo devesse ser socialmente engajado, nem que a arte tivesse de se integrar na práxis vital burguesa – um mundo ordenado pela racionalidade-voltada-para-os-fins. O que querem é ordenar, a partir da arte, uma nova práxis vital. Só uma arte abstraída da sociedade estabelecida, que entre os burgueses se tornou esteticismo, pode, como propuseram os dadaístas e os vanguardistas russos, efetivamente ser a fonte de uma nova práxis. Como escreve Argan (1992), as vanguardas históricas apresentaramse, em geral, como rebelião contra a cultura oficial, aproximando-se dos movimentos políticos progressistas. Entretanto, apesar dos propósitos revolucionários, muitas vezes aproximaram-se de extremismos polêmicos, como foi o caso do futurismo italiano, que reclamava a destruição dos museus e das velhas cidades. Desejando a revolução industrial ou tecnológica, pregavam a nova cidade e a nova arte como uma máquina em movimento. Nessa máquina, os artistas e os intelectuais seriam a fonte ou o impulso de gênio para salvar a cultura mundial. No caso italiano, defendiam um nacionalismo belicoso, o que aproximará alguns de seus participantes do fascismo pós-primeira guerra mundial, como é o caso de Marinetti. A concepção de vanguarda desenvolvida pela análise teórico-histórica de Bürger parece se explicar melhor diante da produção que se desenvolveu na Rússia com o suprematismo e, sobretudo, com o construtivismo. Ali se instaurou a tensão necessária não só para a negação da autonomia, mas também para a afirmação da produção e da recepção coletivas (Benjamin, 1985). Malevich idealizou uma possibilidade efetiva de nova práxis em que a arte e a vida estivessem ligadas.31 Todavia, sua proposta nega tanto a pura esteticidade da arte – sua autonomia – quanto sua utilidade social. Propõe, de acordo com a revolução social e política na qual está inequivocamente enredado, uma transformação radical em que o mundo estaria destituído de objetos, assim como as noções de passado e futuro seriam suspensas. Parte para uma espécie de grau zero na arte e na civilização em que a pintura O artista, de grande projeção na cena vanguardista russa desde o início do século XX, tratou a história da herança da visualidade russa não sob o filão do éthos popular, mas buscando o significado primário dos símbolos e signos. Estudando o cubo-futurismo, retirou dali a combinação de módulos formais geométricos, chegando à formulação do suprematismo: identidade entre ideia e percepção, fenomenização do espaço simbólico em um espaço geométrico, propondo uma abstração absoluta (Argan, 1992, p. 324).

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corresponderia a um signo que define a equação entre mundo interior e exterior, ou seja, entre sujeitos e objetos. O quadro enquanto estrutura, enquanto instrumento mental, seria socialmente revolucionário porque instauraria não só uma nova arte, mas um novo homem, já que a concepção de um mundo sem objetos implica em não propriedade das coisas e noções, como parece ficar expresso em sua pintura suprematista (Branco sobre branco) de 1918.32 Desde 1921, entretanto, um novo conceito de vanguarda revolucionária se desenvolve na Rússia sob o nome de construtivismo (Foster, 2004). Tendo Tatlin e Rodchenko como principais artistas, o construtivismo foi definido como um modo científico de organização no qual não seria envolvido nenhum excesso de materiais ou elementos. Tatlin desenvolve mesmo a defesa da verdade dos materiais. Assim, a forma e o sentido deveriam ser determinados e motivados pela relação entre os vários materiais, e a construção deveria ser um signo motivado, cuja arbitrariedade fosse limitada. As esculturas suspensas de Rodchenko poderiam ser consideradas demonstrações do método científico – que, naquela época, queria dizer método dialético, materialista, comunista (Nunes, 2000-2001). Não havendo qualquer concepção a priori, o trabalho era determinado pelas condições materiais. Considerando os movimentos de vanguarda em uma rede maior que a europeia, parece importante observar de que maneira acontece na América Latina, e mais especialmente no Brasil, essa tentativa em arte de uma nova práxis vinculada à vida. Apesar de o movimento modernista poder ser considerado um marco nesse processo, foi com o Manifesto antropófago de 1928, segundo Oswald de Andrade, que se teria concretizado uma divisão política, levando a cabo o que teria sido, em 1922, um ensaio de vanguarda. A vanguarda antropofágica, como escreveu Benedito Nunes (2000-2001), enquanto símbolo de devoração, foi, simultaneamente, uma metáfora do repúdio à estética acadêmica, da assimilação das vanguardas europeias e da superação dessas, no sentido do esforço empreendido para alcançar certa independência intelectual e artística no Brasil. Foi, assim, a negação das determinações da autonomia burguesa, nos termos de Bürger, mas também a assimilação do movimento cubo-futurista, assim como uma tentativa de superá-lo. Foi, ainda, como escreveu Nunes, uma terapêutica, visto que, Sua utopia urbanista-arquitetônica, que se iniciou em 1919 na Escola Unovis, em Vitebsk, e prosseguiu no Instituto para o Estudo da Cultura da Arte Contemporânea, em São Petersburgo, então Leningrado, também segue o princípio segundo o qual na sociedade futura haveria uma forma única de expressão para sujeitos e objetos, o que vai gerar posteriormente aquilo que ficou conhecido em arquitetura como estilo internacional. Mas a arquitetura de Malevich, assim como sua pintura abstrata, logo seria reprimida na Rússia Soviética (Foster, 2004).

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pela reação violenta e sistemática contra os hábitos cultos, os modelos sociopolíticos e as expressões artístico-literárias, seria liberada a consciência coletiva – por meio da adoção daquilo que Oswald chamou de “instinto caraíba” (Andrade, 1990).

Arte e discurso como política O sentido de política em seu conceito mais remoto pode ser compreendido melhor enquanto um sinônimo de liberdade. Não a liberdade do eu consigo mesmo, e sim aquela que diz respeito à possibilidade de agir entre diferentes, enquanto ação livre. A ação artístico-política enquanto exercício de liberdade, como escreveu Mário Pedrosa, revelou-se contundente entre os artistas dos anos 1960 e 1970, sobretudo para aqueles cuja arte não foi mais exercida como elaboração de obras, mas como crítica discursiva, especialmente no campo institucional, que definiu a própria arte no período moderno. Como se constata desde a segunda metade do século XX – especialmente na ação de artistas como Hans Haacke, Daniel Buren e Marcel Broodthaers (cf. Buchloh, 2004), que se remetem historicamente à ação crítica de Duchamp –, o que constitui a arte nesse momento é o mesmo campo da política: o jogo livre do discurso, que, no caso, questiona a ontologia da arte e sua relação com as instituições e o espaço público, ou seja, problematiza a si problematizando os limites da instituição e a maneira como se insere em sociedade. Os questionamentos sobre o objeto autônomo e o espaço puro do modernismo, que se evidenciaram com a arte minimalista, desdobram-se em debates sobre o site specific (Kwon, 2004) e passam, nas décadas de 1960 e 1970, a requerer uma relação indivisível entre o trabalho, sua localização e a experiência fenomenológica do observador. Esse apego à realidade do lugar, assim como a exigência de uma experimentação corporal da obra, se dá concomitantemente à vontade de exceder os limites não só das linguagens, mas também do cenário institucional. Todo esse processo teve como consequência, necessariamente, a afirmação de uma arte conceitual, assim como a que ficou conhecida por arte de crítica institucional.33 A A crítica institucional, referindo-se mais diretamente aos espaços de exposição, reforça o fato de que o espaço moderno é ideológico, mas disfarçado de neutro. Esse espaço neutro seria a representação simbólica da dissociação entre o espaço da arte e o espaço mundano, reforçando o imperativo idealista da arte e da instituição, que se definiam como desinteressadas.

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crítica institucional reclama um deslocamento epistemológico que vá do significado interno das obras para as contingências do contexto. Afirma, dessa maneira, que o lugar na/da arte não é físico, mas cultural, ou seja, é definido pelas instituições de arte, que incluem não só museus e galerias, mas o ateliê, a crítica de arte, a história da arte, o mercado de arte. Assim, para a crítica institucional, também o corpo participante não só é físico, mas social, de classe, de gênero, de raça, sexual. Na década de 1980, a crítica institucional fica cada vez menos apoiada nos debates sobre os parâmetros físicos do “cubo branco”. O lugar da arte deixa de ser um espaço literal. Passa da condição física para o sistema de relações socioeconômicas e políticas. Michael Asher, por exemplo, avança no conceito de lugar para abranger dimensões históricas e conceituais. Os locais de exposição não só geram expectativas e narrativas, como passam a ser instituídos como discursos. O lugar da/na arte se torna aquele das intervenções críticas em um espaço amplo, que inclui as instituições artísticas e não artísticas. Portanto, a grande questão deixa de ser o confinamento cultural da arte para ser a busca de um enorme engajamento com o mundo externo e com a vida cotidiana, uma crítica da cultura que inclui os espaços não especializados, instituições não especializadas e questões não especializadas em arte. Meshac Gaba, artista que nasceu no Benim em 1961 e vive hoje na Holanda, desenvolve uma prática artística que, embora possa se concretizar em instalações, esculturas e pinturas, estrutura-se em torno do debate relacionado ao poder econômico, à globalização e ao mercado. Seu trabalho tem como característica fundamental o exame dos códigos culturais e econômicos, assim como a relação de troca entre a África e os continentes ocidentais, como a Europa e as Américas. Na XVII Bienal de São Paulo, em 2006, depois de uma residência em Recife, criou como instalação uma cidade de açúcar, que remetia tanto à relação de escravidão que envolveu a África, o Brasil e a Europa, como às relações de afeto e tolerância multicultural e multinacional que o doce metaforiza. Como imigrante, Gaba empreende em arte o debate do franco-argelino Jacques Derrida (2005) em torno da hospitalidade e do perdão. Na exposição Africa remix, de 2005, no Centro Georges Pompidou, Meshac Gaba mostrou sua Padaria africana, uma instalação com vídeo e vitrines em que discute o colonialismo reproduzido no fato de a baguete francesa ser um dos principais constituintes da alimentação básica em um país como o Benim, onde sequer se produz trigo. Entre 1997 e 2001,

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concebeu o que talvez seja seu projeto mais instigante e que tem a instituição artística sob a mira de seu discurso crítico. O Museu de Arte Contemporânea Africana é um projeto desenvolvido em uma série de instalações que inclui salas representando partes de um museu ficcional, como o Restaurante, a Arquitetura, o Salão. Cada uma de suas 12 partes é apresentada separadamente e em cada exposição Gaba focaliza uma área do museu enquanto espaço de negócios. São sempre lugares de troca, seja financeira, intelectual, cultural ou social. Desconstrói, assim, a hierarquia espacial dos museus, em que, pretensamente, a sala de exposições seria o espaço central. Usa esses espaços para propor sempre alternativas radicais ao uso costumeiro dos espaços do museu. Na Documenta 11 (mostra que acontece a cada cinco anos na cidade de Kassel, na Alemanha), conforme relata em entrevista a Lisette Lagnado (2006, p. 176), o museu era constituído pelo painel Espaço Humanista, que dispunha de bicicletas para aluguel, cuja renda seria remetida ao Benim. Conforme explica o artista, o museu abrangia ainda outros setores, como a biblioteca e a loja. Em 2005, Gaba apresentou dez partes desse museu fictício em Londres, espalhando as salas em várias galerias e museus. Na sala chamada “A arquitetura”, os visitantes podiam construir seus museus imaginários usando blocos de madeira. Nessa ocasião, Gaba ocupou uma segunda galeria na Tate, com a instalação Glue me piece, inspirada pelo Prêmio Nobel da paz.

Ações em arte e micropolíticas Remetendo-se ao texto de Walter Benjamin (1985), que avalia, na década de 1930, o sentido da obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, ou seja, as mudanças que a tecnologia mecânica moderna traz para a compreensão e a fruição da arte, Hal Foster (2005) escreve “O artista como etnógrafo”, artigo sobre as mudanças paradigmáticas que a arte sofre na época do debate antropológico e cultural acerca do processo de espetacularização mundializada em decorrência da globalização, como escreveu Guy Debord (1997) ainda nos anos 1960. Esse processo só se acelera nas décadas de 1980 e 1990, sobretudo com o crescimento do número de bienais e mostras internacionais de arte. No sentido de possibilitar uma reflexão sobre o que Foster (2005) chamou de uma mudança discursiva na arte contemporânea, que a tornou perigosamente política, parece interessante levantar aqui os debates formados durante a Documenta 12. Os curadores desse evento o organizaram a partir

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de três plataformas. Uma delas referia-se ao problema que vem atormentando os teóricos e historiadores, sobretudo desde os anos 1980, e que está relacionado com a discussão do fim da modernidade, coincidente com o fim da história, com a morte da arte e da história da arte. Há quem diga que essa é uma discussão ultrapassada, associada ao moribundo conceito de pós-modernismo em arte. Mas a modernidade continua colocando problemas para a história da arte, que, enquanto disciplina, é, em si, moderna. Coloca problemas, sobretudo, quando as fronteiras desta, assim como as da história em geral, passam à condição de permeabilidade, o que possibilitou a criação de campos híbridos, ou campos de transição, entre a história e diversas outras disciplinas, como a antropologia – que também é uma disciplina moderna. Dessa condição híbrida surgiu, então, a discussão política que passa pela pergunta sobre a ocidentalidade do conceito de modernidade. Como escreveu Okwui Enwezor no catálogo da Documenta 11, qualquer discussão sobre arte hoje teria de partir da concepção de história da arte como campo ampliado, o que inclui a diversidade de culturas e as noções de espaço e tempo não só para a cultura europeia e norte-americana, mas também para as culturas sul-americanas, asiáticas, africanas e da Oceania. O processo que impeliu Foster a identificar e colocar sob suspeita aqueles que chamou de artistas-etnógrafos, que se identificam com o debate das identidades culturais, com o problema do outro cultural e com a questão do pós-colonial, recai no antigo receio de Benjamin, na década de 1930, com a instrumentalização política dos russos adeptos do proletkult. Independentemente dessa referência, que agora se transforma em receio de ver a arte e a história da arte desvirtuarem-se em estudos culturais, no sentido de uma politização da arte enquanto idealização da alteridade, Foster não pode deixar de reconhecer que, no cômputo geral dos discursos modernos, a elaboração dos conceitos de identidade e alteridade pela antropologia e pela psicanálise foi crucial para as práticas críticas da arte e da história da arte, que tomaram configurações de críticas políticas. Identificando o processo contemporâneo da arte, reconhece que o “mapeamento na arte atual tende na direção do sociológico e do antropológico, a ponto de o mapeamento etnográfico de uma instituição ou comunidade ser uma forma primária de sitespecific hoje” (2005, p. 144). Foster prossegue pontuando que procedimentos de artistas como Martha Rosler, que descreve alcoólatras indigentes em The bowery in two inadequate descriptive systems, ou Alan Sekula, nos documentais com preocupações geopolíticas, são, em arte, formas de “geografias materiais

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e imaginárias do mundo capitalista avançado”, um mapa cognitivo de nossa ordem global. Outro importante debate levantado pela curadoria da Documenta 12, e que, sem dúvida, está ligado ao primeiro, diz respeito ao que em inglês se designa como bare life, que pode ser traduzido por vida nua ou vida crua. Destacava-se como um projeto de debate nesse tópico o vídeo Voracidade máxima, feito em Barcelona pela dupla MauWal, que sublinha a vulnerabilidade do ser em suas escolhas individuais, sejam elas do nível econômico e cultural, sejam do nível da sexualidade e do prazer. Enquanto debate sobre a vida nua, mostraram-se também significativas as fotografias The transport of KnaNdebele, de David Goldblat, feitas na década de 1980, na África do Sul, em que homens e seus corpos banidos e punidos são fotografados no processo de going to work e going home. A dimensão de não estar, coincidente com a de não ser, registrada nas imagens, nos leva a uma leitura da autoridade e do modo como se age sobre os direitos individuais. Trata-se de uma leitura do mando e seu oposto, que é a vida nua, como nos explicou, independentemente de políticas culturais de defesa de minorias, Giorgio Agamben (2002). As relações do poder soberano, ou seja, daquele que se exerce em estado de exceção sobre os corpos e mentes, evidenciavam-se na maioria dos trabalhos da mostra internacional de Kassel. A implicação dessa evidência parece ser o reconhecimento da inexorável condição do homem contemporâneo, como escreve Agamben (2002), quando já não existe a diferença entre a existência individual enquanto existência política e a existência anônima e anômica fora da norma e da lei. Assim, o que parece perpassar a produção contemporânea de arte nas diversas culturas, nos variados lugares, é o imponderável de uma vida sem qualificação, ou seja, do homem em estado de exceção e, sobretudo, o estado de banimento que o poder soberano impõe, no qual, nas palavras de Agamben, “a relação originária da lei com a vida não é a aplicação, mas o abandono”. As relações, assim, passam a ser as de força, em que a justiça é aplicada em seu ausentarse, deixando espaço à violência do homem sobre o homem. Em Vigiar e punir, Foucault (2007) alerta para a possibilidade de controle em um nível que definia como sistema panóptico: controle de comportamentos não só sociais, mas corporais: controle da vida. É no sentido de identificar alternativas a esse controle que Deleuze e Guattari (2004) escrevem sobre as micropolíticas como formas de ação que, em arte, corresponderiam a uma reinvenção dos espaços da crítica institucional sobre

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a base das políticas de subjetividade. Como escreveu Benjamin Buchloh na obra supracitada, a crítica institucional já havia há tempos se transformado em institucionalização da crítica. Nesse sentido, as táticas artísticas como definidas por Michel de Certeau (2007) poderiam hoje ser mais bem identificadas com o que Bourriaud (2006) chamou de uma estética relacional, que, guardando especificidades, Suely Rolnik (2008) percebera nas ações de Lygia Clark, sobretudo em trabalhos em que a casa é o corpo, mas que também se pode identificar nos projetos de convivência artística e ações colaborativas, como o trabalho do artista suíço Thomas Hirschhorn ou do coletivo de artistas turcas Oda Projesi (Bishop, 2008). O que as micropolíticas em arte desvendam é uma possibilidade de arte nos espaços que sobram, que podem ser o do fazer cotidiano, como explicita Certeau, mas também o do jogo, o do corpo, o do encontro, o do estar junto, o da sexualidade livre (Aliaga, 2007), que, não desconhecendo as regras da institucionalização voraz, sempre encontram formas de agir, o que nos faz recordar a concepção de Arendt sobre a política de como agir em liberdade entre diferentes. A exposição do controle da vida, que se configura, como escreveu Foucault, um fato biopolítico (apud Deleuze, 2005), nos leva ainda à identificação dessa outra forma de política em arte, já designada como micropolítica e perceptível na maneira de expor o sujeito até que a subjetividade quase inexistente se torne, porque ínfima, uma resistência ao processo de encruecimento, como aparece no trabalho de Tseng Yu-Chin, Who’s listening n. 5. Nele, a mãe e seu filho de quatro anos são filmados em uma situação cotidiana de afagos. Podemos ainda pensar em quando AiWeiwei convida 1.001 chineses para Farytale, um trabalho em que esses homens e mulheres se expõem uns aos outros e também aos visitantes, mas no sentido de estabelecer uma forma de convívio a que não tiveram jamais acesso. AiWeiwei trama ali uma espécie de empoderamento dos sujeitos chineses de província, que por décadas estiveram em situação de banimento.

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Poéticas conceituais e espaços expositivos: algumas experiências

Dária Jaremtchuk USP

Jean-François Chevrier chama a atenção para como as experiências conceituais do final da década de 1960 foram fundamentais para que se manifestasse de maneira explícita a oposição entre fotógrafos e artistas que utilizam a fotografia. Seriam cada vez mais frequentes, por exemplo, as declarações como de Gilbert e George: “Não somos fotógrafos, usamos a fotografia” (apud Chevrier, 2006, p. 148). Já Dominique Baqué destacou o papel da fotografia conceitual como instrumento teórico nas investigações sobre a natureza da obra, do autor e do receptor. Ou seja, ambos sinalizam a relevância das fotografias conceituais para a inserção da fotografia no âmbito das artes visuais. Foram numerosos os trabalhos conceituais que exploraram características da fotografia como procedimento mecânico, objetivo e neutro, ou como registro documental destituído de preocupações estéticas ou sofisticação formal. As imagens caracterizavam-se muitas vezes por aspectos visuais pobres, com resoluções descuidadas, mal enquadradas, desfocadas. Os temas também contribuíam para torná-las insípidas e próximas às imagens vernaculares. Subvertiam-se princípios fotográficos como profundidade de campo, precisão, detalhe e plano focal, colocando em xeque seu caráter icônico. Apresentandose sem qualidades artísticas ou técnicas, com aspectos triviais, insignificantes e desglamourizados, esse conjunto de trabalhos distanciava-se dos cânones tradicionais da fotografia de arte e da fotografia documental. Da mesma forma, as experiências conceituais alargaram o sentido da relação da imagem impressa com os textos, não mais circunscrita à condição descritiva ou ilustrativa. Podese acrescentar que, além de promoverem um novo tópos para a fotografia, dilataram as atribuições e as relações com os espaços expositivos. Dito de outro modo, os trabalhos conceituais colaboraram para desestabilizar fronteiras tradicionais do campo artístico.

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É dentro desse universo de questões que o trabalho Os/As meninos/ as de Júlio Plaza pode ser pensado, pois problematiza os espaços físicos, sociais e simbólicos da arte. Realizado em 1977, consistia em um conjunto de seis fotografias dispostas nas paredes da Galeria Global em São Paulo. Observadas à primeira vista, confundiam-se com espelhos, porque pareciam refletir o ambiente circundante. Passado o primeiro instante, o observador compreendia tratar-se de imagens realizadas a partir do próprio ambiente da galeria. Contudo, pela forte ligação entre as fotografias e o espaço, a impressão de reflexividade e a conexão não se dissolviam facilmente. Percebida a simbiose entre as imagens e a sala de exposição, o trabalho deixava de se relacionar com a experiência física do observador – de percepções sobre a escala, reconhecimento do tema e localização – e dava lugar a especulações em torno da condição da fotografia como instrumento teórico. A operação proposta por Plaza não se restringia ao movimento tautológico, que relacionava a imagem à galeria e vice-versa, mas ia além, propondo um olhar mais amplo para o universo das imagens mecânicas no âmbito do sistema de arte. Da mesma forma, a forte ausência de aspecto subjetivo acentuava sua condição descritiva e informativa, fazendo igualmente referência à precisão e à objetividade próprias da tradição histórica da fotografia. Também a conexão entre as imagens e seu lugar de exibição potencializava uma mirada crítica para a moldura institucional. As bordas de cada fotografia eram insuficientes para demarcar sua unicidade, assim como sua transferência para outros espaços tornava-as sem sentido. Foram realizadas para aquele locus, e sua existência estava condicionada ao período de extensão da mostra, impossibilitando-as de serem transformadas em objetos ou mercadorias. É possível também estabelecer conexões desse trabalho com Fototrilha, de Victor Burgin. Realizado em várias versões entre 1967 e 1969, consistia em um conjunto sequencial de fotografias em escala de 1:1 realizadas a partir do próprio ambiente em que as imagens seriam expostas. Ou seja, a cada nova mostra, as imagens eram refeitas. Colocadas sobre o chão sem qualquer sinalização ou enquadramento, observadas a uma certa distância, eram frequentemente confundidas com material transparente. Pela aproximação, as imagens se diferenciavam pela materialidade e textura do suporte e contrastavam com a madeira do assoalho fotografado. Em ambos os casos, de Plaza e de Burgin, a especificidade e a aderência do trabalho ao espaço da galeria revelavam a dependência de qualquer

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trabalho de arte a um campo específico. Ao mesmo tempo, possibilitavam uma leitura do espaço da arte não como mero receptáculo e circuito de exibição, mas como um lugar privilegiado que elabora narrativas e referenda e potencializa objetos singulares. Meses mais tarde, Plaza realizou Câmara obscura no MAC/USP. No texto que acompanhava a mostra, pode-se entender melhor seu posicionamento sobre o tema. Para ele, a máquina fotográfica deve ser entendida como um objeto auxiliar da percepção, observação e pesquisa [...]. Câmara obscura é uma metáfora da câmara escura e também das relações entre espaços e ambientes que o espectador tem que observar, perceber e mentalizar, se quiser decodificar o trabalho. Câmara obscura são todas as inter-relações desses espaços e imagens rebatidas, umas contra as outras, ora espelhando-se, ora transparentando-se, interiorizando o exterior e vice-versa. [...] Também a comparação das imagens rimadas ou similares, mas não idênticas, cria esta relação através das sutis diferenças. A relação de posição no espaço e a ação de calcular, medir, comparar, qualificar, assinalar um percurso, permite um estar e ocupar ativamente o espaço: um uso antropológico do espaço, uma cultura (1977, s. p.).

O título do trabalho de Plaza tampouco deixa de ter conexão com a história da arte, já que é quase homônimo à obra Las meninas, de Velásquez, com a pequena diferença de introdução de gênero, Os/As meninos/as. Além da analogia com o título, a remissão ao pintor espanhol diz respeito às ligações entre a cena pintada e o espectador localizado frente a ela em um ponto específico de observação. Como já observou Foucault a respeito da obra: Dos olhos do pintor até aquilo que ele olha, está traçada uma linha imperiosa que nós, os que olhamos, não poderíamos evitar: ela atravessa o quadro real e alcança, à frente da sua superfície, o lugar de onde vemos o pintor que nos observa; esse pontilhado nos atinge e nos liga à representação do quadro. [...] o olhar do pintor, dirigido para fora do quadro, ao vazio que lhe faz face, aceita tantos modelos quantos espectadores lhe apareçam; nesse lugar preciso mas indiferente, o que olha e o que é olhado permutamse incessantemente. Nenhum olhar é estável, ou antes, no sulco neutro do olhar que transpassa a tela perpendicularmente, o sujeito e o objeto, o espectador e o modelo invertem seu papel ao infinito (1999, p. 5).

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Se, no caso de Velásquez, os papéis são instáveis e intercambiáveis entre observados e observadores, numa relação de envolvimento espacial, no trabalho de Plaza essa inversão acontece apenas no plano cognitivo, pois a interação é inferida pelo sujeito após perceber a conexão entre as fotografias e seu entorno. O observador não interage com a cena fotografada porque é mantido fora da equação das paralelas estabelecidas entre as imagens e o espaço que se replicam. Making time (2007), realizado por Tomas Struth no Museu do Prado, em Madri, também está vinculado ao universo da fotografia como um dispositivo que aciona questões em relação à percepção e à reflexão sobre os espaços expositivos.1 O trabalho do fotógrafo alemão – o primeiro artista vivo a expor no museu espanhol – possibilitava a criação de uma nova narrativa museográfica para a tradicional coleção. Além disso, a iniciativa revelava o desejo do Prado de se desvencilhar de uma imagem fortemente associada à identidade nacional, favorecida pelo significativo número de pintores espanhóis em seu acervo, como José de Ribera, Velásquez e Goya. Em época de União Europeia, é quase inevitável a busca de um perfil mais contemporâneo e globalizado. Normalmente, as obras do Prado são exibidas sob parâmetros consagrados da museografia e da história da arte, priorizando padrões geográficos e cronológicos. As obras são dispostas de acordo com seu tema, seu autor e suas dimensões físicas. Era dentro desse contexto que a mostra de Struth propunha um ruído na trajetória de “obras-primas”. Para isso, foram removidas algumas pinturas de várias salas diferentes e suas fotografias passaram então a coabitar com suportes e temas diferenciados, assim como dividiam sem hierarquia o mesmo espaço simbólico. A exposição obteve recepção comedida nos periódicos e na crítica especializada. Surgiram questionamentos conservadores: por que convidar um alemão para ser o primeiro artista vivo a expor no Prado? Por que fotografias, suportes tão comuns, para acompanhar os exemplares da coleção? Com a experiência da mostra, foi possível constatar que, mesmo legitimada pela crítica e pelos museus, a participação da fotografia dentro de um acervo tradicional recuperou igualmente antigos conceitos como o de “obra de arte” e o de fetichização da pintura e da expressão, bem como a questão unicidade versus cópia. O trabalho se compunha de duas partes: a primeira, formada por 11 fotografias que ele havia realizado dentro de museus, incluindo o próprio Prado, dispostas ao lado das obras da coleção do museu; já a segunda, formada por 15 imagens, inauguraria a nova ala do Prado aberta em maio daquele mesmo ano.

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Não obstante as apreensões citadas, o resultado foi surpreendente até mesmo para Struth. Ele escolheu pessoalmente os locais que receberiam suas imagens. O conjunto englobava um ensaio feito dentro do próprio museu: fotografias do público observando as próprias pinturas do Prado, assim como outras tomadas realizadas ao longo de anos em museus de diferentes países. A harmonização entre as fotografias e o acervo foi notável, pois não houve apenas uma integração no conjunto, mas também uma provocação de novos sentidos na disposição territorialista e biográfica do Prado. Todavia, a adequação e a correspondência deviam-se especialmente às características dos trabalhos de Struth: o aspecto de fotografia-quadro de largas proporções e a primorosa apresentação formal. Igualmente notável foi a presença de Self-portrait, alte pinakothek, que consiste em uma perspectiva de Struth visto de costas. A ausência de traços fisionômicos não subtrai a identificação, pois o fotógrafo observa um autorretrato de Dürer (de propriedade do museu de Munique) e os atributos do retrato aparecem de modo espelhado. Ou seja, se o próprio rosto deixou de ser parte privilegiada, a opção por se apresentar pela imagem do pintor alemão promoveu pertencimento do fotógrafo à história da arte e à tradição alemã, acentuado ainda mais pela disposição do trabalho no Prado, colocado ao lado de outro autorretrato do mesmo pintor. Foram vários os encontros surpreendentes, como o ocorrido entre a imagem realizada por Struth no Museu de Arte de Tóquio, Liberdade guiando o povo, de Delacroix, e a obra de Goya, Os fuzilamentos: 3 de maio. Colocados frente a frente, os dois emblemas iluministas da cultura ocidental se apresentavam como ícones reatualizados da liberdade política. Para além da aproximação temática, as relações estabelecidas entre um emblema da história espanhola em solo espanhol confrontado ao quadro do pintor francês fotografado em um museu japonês também diziam respeito ao universo contíguo entre as artes e o mundo das ideias. A vinculação entre os processos poéticos e os processos políticos mostra-se pertinente também no mundo contemporâneo. Interessa a Struth se perguntar sobre o sentido desses espaços reservados aos ícones da civilização: O museu é um cemitério de produtos feitos pelas pessoas ou são obras de arte que respiram e sentem e se comunicam com pessoas vivas, contemporâneas? Minha intenção foi abarcar essa ponte entre as obras e os visitantes e chegar a encenar com modelos vivos parte da ação que existe nos quadros.

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Para isso, diz ele, “utilizo uma câmera de grandes dimensões situada no alto com um negativo de 8 x 10. Enfoco e espero para ver quem chega. Reconheço em seguida o que quero” (apud Trenas, 2007). Tal como no conjunto de imagens de Plaza, os trabalhos de Struth instauram uma experiência com o espaço da arte, recolocando um olhar sobre os códigos de recepção e os fluxos perceptivos. O próprio fotógrafo declara: Quando comecei a expor em museus, me indaguei sobre a diferença que existe entre os lugares que acolhem as pessoas, como aeroportos ou centros de arte. Me perguntei como obras de arte sobrevivem como tais, sem que lhes seja arrancada parte dessa aura que têm precisamente pela quantidade de gente que as observa (apud Trenas, 2007).

No entanto, apesar de a fotografia servir nesses dois casos como instrumento de análise para a realidade artística, para a moldura institucional e para as práticas discursivas, na mostra de Julio Plaza a potencialidade crítica ganha relevo quando as condições de objeto e de mercadoria são fortemente negadas. O teor crítico da proposição se acentua e a conformidade e a espetacularização passam ao largo de seus objetivos. Em contraposição, as imagens de Struth se mantêm autônomas e participam, inclusive, de diferentes mostras do fotógrafo. Talvez estejam demasiadamente relacionadas com a orquestração de grandes exposições e de peregrinações massivas aos acervos museológicos. Porém, nesse paralelo, não é demasiado relembrar que Plaza e Struth pertencem a contextos históricos distintos e que negar a autonomia e a comercialização da arte na década de 1970 era uma forma de ativar a criticidade e negar qualquer sujeição ao mercado de arte. Vinculada a esse mesmo universo de práticas em que a fotografia promove novas leituras em acervos tradicionais está a mostra Realidades, que ocorreu no Museu de Belas Artes de Sevilha, entre 2006 e 2007. Dessa vez, o convidado foi o fotógrafo Pierre Gonnord. Conhecido retratista, surpreendeu por estabelecer uma similitude entre suas personagens hodiernas e as personagens das pinturas barrocas exibidas no museu. Lado a lado, a proximidade entre elas possibilitava pensar que as fotografias tinham sido realizadas a partir do acervo, o que não era verdade. De qualquer forma, o resultado harmônico e dinâmico não deixou de ser uma lufada de ar fresco em um conjunto de pinturas históricas. A experiência atraiu outros públicos, além dos assíduos escolares e turistas. Retornando outra vez à década de 1970 e às discussões diretamente relacionadas às poéticas de caráter desmaterializado, a VI Mostra Jovem

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Arte Contemporânea (VI JAC) pode ser colocada entre as propostas mais radicais do período. Organizada pelo MAC2 em 1972,3 foi um ensaio diretamente sintonizado não só com as novas práticas artísticas, como também com algumas das mais emblemáticas exposições da história da arte contemporânea. Partilhava, por exemplo, princípios apresentados por Live in your Head. When Attitudes Become Form (Berna, 1968) ou, então, Happening und Fluxus (Colônia, 1970), ambas sob a orquestração de Harald Szeemann. Em 1972, ele também foi o responsável pela visionária Documenta 5 de Kassel (Alemanha), que se caracterizou como uma mostra antiforma por excelência e que, apesar de dividida em distintas partes, colocou atitudes, processos e conceitos no centro das discussões. Essas mostras tiveram em comum, entre outras coisas, a participação do artista no desenvolvimento ou montagem dos trabalhos. Com isso, a formação de uma rede internacional com vários pontos de contatos e de intercâmbios dissolve a ideia de centros irradiadores de ideias. Assim, quando o MAC apresenta uma prática institucional inovadora como a VI JAC, demonstra estar em sintonia com essas perspectivas, assim como com as poéticas processuais. Ou seja, como se verá adiante, define-se como um espaço de debate e se arrisca com o ainda não legitimado. Antes mesmo de se avaliar a referida mostra, é importante destacar que a administração do professor Walter Zanini contou com a presença dos artistas, que não só contribuíram de forma efetiva nas atividades da instituição, como deixaram impressas suas utopias na própria história do museu. Por isso, não havia ineditismo em se colocar no centro da atenção os artistas. Isso era quase um desdobramento natural da política do museu, com a diferença de que as ações deles passariam a ser os próprios trabalhos. Já em setembro de 1972, Zanini defendeu na reunião do Comitê Internacional dos Museus de Arte Moderna, na Polônia, a ideia de museu como “espaço operacional”, em que a atuação deveria ser concomitante ao fazer do artista (Boletim Informativo, 1972, n. 180). No mesmo ano, o MAC realizou as mostras Acontecimentos e Ambiente de Confrontação, que podem ser compreendidas como laboratórios para a VI JAC. No primeiro caso, houve happening, performance e intervenção no próprio espaço das exposições Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC). Também se utiliza a sigla MAC/USP.

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As mostras para jovens artistas remontam aos primórdios do surgimento do MAC/USP. Em 1963, foi criada a mostra Jovem Desenho Nacional, que se intercalava anualmente com a Jovem Gravura Nacional. Em 1967, ambas deram lugar à Jovem Arte Contemporânea (JAC). Sua última edição ocorreu em 1974.

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temporárias. Em Ambiente de Confrontação, realizou-se uma experiência de cunho teatral no recinto da mostra. A referência dessa vez foi a peça Gracias señor, de José Celso Martinez Correa. Desse modo, a VI JAC pode ser mais bem compreendida também se ligada aos processos que se desdobravam dentro das histórias de suas próprias mostras. Seus propósitos eram claros: Deslocar a ênfase do objeto produzido para os processos de produção, apresentando assim um largo confronto das iniciativas processuais da linguagem contemporânea com suas diferentes cargas informacionais, conteúdos semânticos e motivações interdisciplinares (Boletim Informativo, 1972, n. 173).

Sua maior diferença em relação aos salões e às mostras tradicionais diz respeito ao fato de a inclusão e a exclusão não seguirem critérios de qualidade ou especificidade nos trabalhos. Todos que quisessem poderiam se inscrever, fazendo jus a uma máxima do período que sustentava que qualquer indivíduo poderia ser um artista. Assim, a escolha deu-se por sorteio, haja vista a pertinência de alguma subtração, pois nem todos os interessados poderiam participar. Outra mudança refere-se à disposição do espaço, pois o museu não colocou seu próprio espaço físico para a realização do evento. A extensão destinada às mostras temporárias foi delimitada e entregue aos contemplados. Assim, ao menos em tese, cada sorteado receberia um lote dentro do museu e desenvolveria seu trabalho no prazo de duas semanas, dentro dessa delimitação espacial.4 A inexistência de qualquer critério na seleção dos trabalhos ou dos participantes dava lugar à possibilidade do surpreendente. As propostas sorteadas também poderiam apresentar riscos, sobretudo porque o MAC se colocava numa posição mais receptiva do que ativa. Walter Zanini não deixou de percorrer diariamente o evento, tentando abrandar ânimos e aplacar ações que apresentavam algum tipo de perigo, tanto ao acervo como ao prédio. Alguns exemplos podem dar ideia da borbulhante atmosfera dessa inusitada experiência. Animais vivos e mortos estiveram por lá. Paulina Rabinovich e Roberto Smith cercaram com tela o espaço do lote que receberam e inseriram nele 25 galinhas new hampshire. Já Paulo Fernando Novaes apresentou Boi encantado, que consistia na apresentação de uma peça de carne de 30 kg sobre uma mesa colocada no lote. A ideia era apresentar o processo de putrefação da Os alunos do curso de Comunicação Visual da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), sob coordenação do professor Laonte Klawa, dividiram o espaço de 1.000 m2 das exposições temporárias em 84 lotes. Foram recebidas 210 inscrições. Cf. Jaremtchuk (1999).

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carne no lugar da própria arte em processo. Para diminuir os desagradáveis efeitos olfativos, aplicava-se diariamente uma injeção de formol. Mas isso não foi suficiente para minimizar a deterioração, o que provocou a elaboração de um abaixo-assinado entre os participantes da JAC pedindo a remoção do trabalho. O fato não deixou de promover outra mobilização, daqueles que eram solidários ao autor, mas, como era de se esperar, eles não foram atendidos. No entanto, antes da remoção da carne, alguns artistas decidiram assar e ingerir parte dela, utilizando um fogão presente em um dos lotes no museu. Tal fato causou acalorado debate e o autor do trabalho manifestou sua indignação publicamente, qualificando o ocorrido como ação desrespeitosa à sua proposição. O clima frenético identificado na VI JAC não deixa de apresentar conexão com o momento político brasileiro. Naquele período, qualquer manifestação coletiva ou mesmo individual era inviável devido às restrições colocadas pela ditadura civil-militar. Assim, muito do que ocorreu no MAC pode significar insatisfação e até mesmo extravasamento de emoções. As ações que ali ocorreram podem ser mais bem compreendidas se tivermos como horizonte o momento específico da vida política, em que as insatisfações deveriam ser contidas e controladas na vida pública. Dentro da diversidade do que se viu naquelas duas semanas, a proposta Incluir os excluídos, desenvolvida por Lydia Okumura, Genilson Soares e Francisco Inarra, destaca-se por ter valorizado o espírito colaborativo. Esse grupo foi bastante ativo no período e não somente se apresentou no MAC diversas vezes, como na Bienal e em outros museus de São Paulo e do Rio de Janeiro. Na apresentação de propostas para a VI JAC, Arthur Luiz Piza, Jannis Kounellis, Jean Castex e Sérvulo Esmeraldo não foram sorteados. Okumura, Soares e Inarra tomaram para si a empreitada de desenvolver as propostas enviadas por eles. O trabalho de Jannis Kounellis, por exemplo, consistia na execução intermitente da peça Va, Pensiero, Sull’Ali Dorate, de Verdi. Os pianistas Carole Gubernikoff e Manuel Paiva se revezavam na tarefa. O resultado tornou-se insuportável, não apenas pela péssima acústica do pavilhão do Ibirapuera, mas, sobretudo, pela intermitência do som. Para Zanini (1999), a execução se transformou em algo paranoico. Já para muitos outros presentes, a repetição tornava-se uma tortura alucinante. Uma discussão em que cada ocupante do espaço comentasse sua experiência havia sido prevista para depois do término das duas semanas destinadas ao desenvolvimento de processos nos lotes. Seria uma

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oportunidade para um balanço dos acontecimentos, sobretudo porque foram inúmeros os desentendimentos, assim como muitas atividades foram mal compreendidas e até confundidas com ações cotidianas. Em carta a Hélio Oiticica, Zanini afirmou que uma parte da imprensa não entendeu a exposição/manifestação. Acharam que o que os rapazes e moças fizeram era brincadeira. Um cara do Estado achou lindo uma senhora tocar piano: era a proposta de Kounellis. Havia uma forte integração no sociológico que muitos não perceberam. Foi forte, dramático, no conjunto. Vai trazer consequências (1972).

Observando a documentação produzida pelo museu, é possível dizer que nem todos os participantes tiveram maturidade suficiente ou compreenderam as dimensões da mostra. Vários trabalhos refletiram de modo ingênuo as proposições, assim como muitos desrespeitaram regras básicas, como delimitar o trabalho às dimensões do lote recebido e não estendê-lo às áreas do museu. Das inúmeras ações desenvolvidas, para os que observavam de longe, era quase impossível discernir as atividades. A própria configuração do evento era pouco atrativa para os críticos de arte, que não se dispuseram a um acompanhamento diário. Dito de melhor forma, como a característica central dessa experiência foi o tempo, que por si só não pode se objetivar, também o controle e a especulação da recepção tradicional eram impraticáveis. Portanto, se a VI JAC não ocorreu conforme o planejado ou não promoveu os efeitos desejados, não deixou de contaminar as subsequentes atividades do MAC. As mostras temporárias que ocorreram em seguida, como as duas outras edições das JACs, a Prospectiva e a Poéticas Visuais, assim como as duas edições da Bienal de São Paulo (de 1981 e 1983),5 todas organizadas por Zanini, colocam-se como práticas curatoriais críticas às convenções. A esse respeito, também foram significativas as experiências que utilizaram a fotografia como dispositivo de análise dos espaços da arte e de suas práticas discursivas. Se pensarmos, como Zygmunt Bauman (1999, p. 90), que a sociedade de consumo promove o esquecimento e não o aprendizado porque abole a durabilidade, talvez esse conjunto de exposições e trabalhos que colocam o tempo e os processos como questões centrais possa ser compreendido como forma de resistência a essa condição da sociedade contemporânea. E, obviamente, essas exposições e trabalhos não deixam também de se opor à espetacularização, tão em voga no circuito das artes de hoje. Essas duas edições das bienais, além de trazer novamente credibilidade ao certame, foram organizadas sem critérios geopolíticos ou representações nacionais.

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Referências BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. BOLETIM INFORMATIVO. São Paulo, 1o jul. 1972, n. 173. ------. São Paulo, 13 set. 1972, n. 180. CHEVRIER, Jean-François. La fotografía entre las bellas artes y los medios de comunicación. Barcelona: Gustavo Gili, 2006. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. JAREMTCHUK, Dária. Jovem arte contemporânea no MAC da USP (dissertação). ECA/ USP, 1999. PLAZA, Julio. Câmara obscura. Exposição. 3-5 set. 1977. Espaço B, MAC/ USP. TRENAS, Mila. “El fotógrafo Thomas Struth, primer artista vivo que entra con sus obras en el Museo del Prado”. El Mundo, 6 fev. 2007 (disponível em http://www. elmundo.es/elmundo/2007/02/06/cultura/1170785434.html). ZANINI, Walter. Carta de 3 de novembro de 1972 a Hélio Oiticica em Nova Iorque, 1972. ------. Depoimento concedido à pesquisadora em São Paulo, 12 abr. 1999.

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Localização e deslocamento da obra de arte no contexto de exposição Elisa de Souza Martínez Unb

Every exhibition responds to a situation at a given moment. Each one needs to be seen in its specific temporal context and, since it consists of a collection of objects and artifacts, each exhibition is a very different thing from a theoretical discourse or a set of intellectual abstractions, although it may be influenced by these. Jean-Hubert Martin

A interpretação de uma obra de arte é contextual e pressupõe uma disponibilidade recíproca: de ver e de ser visto. Podemos afirmar que olhar é um ato de escolha, que se realiza a partir da disponibilidade dos objetos aos sentidos. Se acreditarmos que a escolha do olhar é unilateral, teremos de considerar que, no processo interpretativo, quem olha tem precedência sobre o que está ao alcance de sua percepção. Entretanto, o processo interpretativo ocorre em um espaço no qual o significado da obra se configura. Se considerarmos ainda que cada obra é percebida em uma situação na qual suas qualidades são relacionadas às predisposições interpretativas circunstanciais e provisórias de um sujeito que a olha, bem como às qualidades do ambiente em que é percebida, afirmamos que o resultado do processo interpretativo, apreensão do significado da obra, é sempre provisório. Ainda que o quadro inicial pareça inviabilizar qualquer tentativa de inventariar um conjunto de fatores que agem sobre o processo de significação de uma obra de arte, nossa abordagem busca traçar o modo pelo qual aspectos contextuais agem sobre esse mesmo processo. O conjunto de elementos que constitui o espaço em que as qualidades da obra são percebidas configura, na interpretação de seu

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significado, uma moldura institucional. Essa afirmação nos conduz a um questionamento: o fenômeno artístico pode ter sua origem em circunstâncias ou contextos externos ao sistema de arte? Caso seja possível, a que condições deve atender para ser admitido no sistema de arte? Prosseguimos na cadeia especulativa que irá nortear nossa reflexão introduzindo aqui mais um aspecto pressuposto na percepção da obra no contexto expositivo: sua inserção é decorrência de uma escolha. A decisão configura um modo pelo qual a posição da obra se insere em um formato institucional e um discurso sobre a arte a ser apresentado ao público. A amplitude conceitual com a qual algumas exposições paradigmáticas e até mesmo transgressoras têm sido realizadas a partir da década de 1980 está apoiada em projetos curatoriais que abrangem acervos cujas fronteiras não se definem a partir das coerções do sistema de arte consolidado pela tradição. A abrangência da circulação de ideias sobre o campo da arte e a capacidade inesgotável que o sistema de arte possui para incorporar propostas e formatos ao seu domínio tornam quase impossível falar, nos dias de hoje, em arte que não seja institucional. A ampliação das fronteiras coercitivas da prática artística se manifesta em revisões da história, da crítica e, sobretudo, daquela mesma prática. As fronteiras se autodefinem como provisórias ou temporárias. Cada nova obra crítica ou historiográfica que é publicada contribui para a afirmação da arte como um estado resultante de um olhar que permanentemente se desloca ao redor de um objeto, sendo esse, por sua vez, circunstancial e efêmero. A obra de arte é vista em uma determinada situação de exposição. No ateliê do artista, no museu ou no livro de história da arte, entre outras possibilidades, a obra é interpretada no contexto em que é vista. Seria possível definir um local ideal em que a obra seja apreciada em sua plenitude? É o ateliê, que a contextualiza a partir de relações de parentesco com os demais objetos criados por seu autor? Se na atualidade o ateliê não corresponde necessariamente a um espaço físico íntimo do artista, mas sim ao local no qual o processo e a execução da obra são desencadeados, todas as nossas considerações sobre o espaço de criação devem contemplar também as situações em que esse é, muitas vezes, inacessível. Seria esse o espaço em que a obra está livre das projeções interpretativas de quem a vê no mundo? Por outro lado, algumas obras só existem em uma situação única e, devido à condição de site

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specificity, deixaram de existir.6 Nesses casos, sobrepõem-se as instâncias de concepção, confecção e exposição de modo definitivo e único. Existem também obras confeccionadas a partir de processos nos quais a participação de agentes externos – que não são necessariamente pessoas – é prescrita pelo artista para que a obra se realize. O tempo de execução da obra, bem como o espaço de sua gênese, extrapola a situação do ateliê e engloba as situações de exposição em que é percebida. Ainda que nesses casos a precedência autoral do artista seja camuflada, ela subsiste no encadeamento de ações previstas. A obra que resulta do processo colaborativo do público também reflete as contingências institucionais que influenciam o processo de significação. A partir do momento em que tratamos das instituições da arte, o processo criativo é sempre institucionalizado. Para pensar na obra de arte em situação pública, é preciso distinguir as condições e as características de sua localização no espaço institucional.7 Cada situação expositiva constitui uma combinação de fatores que motivam percursos interpretativos únicos, irreiteráveis. Quando a obra é deslocada do local de criação e realização para o de exibição, ela e sua interpretação são atualizadas em relações espaciotemporais elaboradas por quem a vê. Nesse caso, consideramos a visão um sentido que precede os demais no processo interpretativo de uma obra de artes visuais. Entretanto, esclarecemos que a visão, em alguns casos, pode estar em segundo plano ou até mesmo ser irrelevante,8 ao admitirmos que a obra de arte é atualizada por meio de um processo interpretativo que não se repete; portanto, ela se encontra permanentemente exposta em uma situação única – porque vista como Para exemplificar essa afirmação, podemos citar o trabalho Spiral jetty, de Robert Smithson, que atualmente existe apenas em registros fotográficos. A elevação do nível da água, que passou a cobri-lo e, consequentemente, ocultá-lo, é um dado que passa a compor a existência da obra no seu próprio tempo após o momento de conclusão estabelecido pelo artista. No Brasil, do evento em que as 14 Trouxas ensanguentadas (T.E.) de Artur Barrio foram encontradas no Parque Municipal de Belo Horizonte, só existe a documentação fotográfica. O trabalho, realizado em 20 de abril de 1970, é reconstituído hoje pelo conjunto de fotografias acompanhadas de um relato no qual o artista descreve a preparação, a colocação das trouxas, a chegada das pessoas que as descobriram e as intervenções da polícia e do corpo de bombeiros no local.

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A publicação recente dos livros de Douglas Crimp (1993) e Brian O’Doherty (1999) em português ocorre com um certo atraso. As ideias de Crimp sobre a hegemonia de um modelo expositivo implantado pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque e as de O’Doherty sobre o papel do espaço da galeria na valorização das qualidades plásticas da obra exposta antecedem a criação de instituições e a realização de eventos internacionais que ampliam o repertório de situações institucionais paradigmáticas. Embora possa parecer uma obra recente, esse livro de Crimp está apoiado em seu trabalho crítico sobre o mesmo tema publicado anteriormente, do qual destacamos “The postmodern museum” (1987).

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Naturalmente, essa ressalva deve ser avaliada caso a caso.

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um fenômeno. A seguir, identificamos um elenco mínimo de questões que podem influenciar nosso modo de perceber e compreender a arte tendo em vista uma certa variedade de contextos espaçotemporais.

1 Partindo do princípio de que o processo de significação desencadeado na situação em que a obra de arte é exposta ao público tem como um de seus componentes sua localização, é necessário distinguir diferentes maneiras de caracterizar o contexto espacial de um fenômeno artístico. Esse contexto espacial para a obra pode ser configurado a partir de diferentes fatores: o espaço expositivo no qual é vista, a procedência geográfica de seu autor ou o espaço institucional a que esse e sua obra pertencem no sistema da cultura. Esses fatores não são mutuamente excludentes e podem ser combinados em gradações variáveis conforme o enfoque da interpretação. O local em que a obra é exposta sobredetermina, em uma dimensão sensorial, sua interpretação. O desenho de uma exposição tem por objetivo criar hierarquias, produzir destaques, relacionar, subordinar, contrastar ou romper com as expectativas de associação da obra a um local predeterminado na história da arte. Esses efeitos de sentido constituem a imagem da instituição na qual a obra é exposta e o discurso curatorial em que sua pertinência é contextualizada. O conjunto de valores imperantes na instituição expositora não é, necessariamente, afirmativo de uma abordagem tradicionalmente consolidada pela história da arte. Sua missão pode ser expor o paradoxo, gerar polêmica ou criar um posicionamento divergente em relação à abordagem das demais instituições. As decisões tomadas para caracterizar o ambiente em que a obra é exposta são estratégias para produzir efeitos de sentido. A configuração do lugar determina o modo pelo qual os valores institucionais são transmitidos a quem vê a obra. A aparência do lugar gera e reflete uma identidade institucional. Isso pode ser constatado na visitação tanto às coleções permanentes dos museus quanto a mostras temporárias. A identidade de uma instituição é marcada por meio de seus elementos físicos, ainda que esses não tenham como finalidade produzir uma unidade estilística homogênea. A coleção dos museus Castro Maya, no Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que reflete o ecletismo e o cosmopolitismo do gosto modernista no Brasil, relaciona-se a um modo de colecionar existente há vários séculos, típico da nascente burguesia da Europa ocidental no século XV. Distribuída

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entre duas residências do colecionador – o Museu do Açude e o Museu da Chácara do Céu –, a coleção de Raymundo Ottoni de Castro Maya (18941968) abrange períodos e regiões que compõem, simultaneamente, o gosto pelo antigo,9 pela arte de seu tempo10 e pelo exótico.11 Sobre o hábito de colecionar antiguidades, ainda que documentos antigos demonstrem que já existiam, no período helenista, colecionadores que valorizavam os objetos da Grécia arcaica, é na Renascença italiana que podemos encontrar personalidades determinadas a formar acervos que fomentariam o estudo e, por meio desse, o renascimento do espírito antigo em seus contemporâneos. As coleções eram formadas por objetos que, ao serem considerados exemplares, deveriam ser fonte de estudo e inspiração para a criação artística. Além disso, a extensão dos horizontes de um colecionador demonstrava seu cosmopolitismo. No caso de Castro Maya, tanto o Museu do Açude quanto o Museu da Chácara do Céu têm ambientações para a exposição da coleção permanente que proporcionam ao visitante certa intimidade com um modo de ver obras e objetos de arte em espaços que preservam uma aparência doméstica.12 São, em certa medida, casas-museu, que se caracterizam como um prolongamento da imagem de seu proprietário e expressam um modo de vida excêntrico.13 Outro exemplo desse tipo de instituição encontra-se na sede da Fundação Maria Luisa e Oscar Americano, em São Paulo, onde há uma proposta semelhante à do Museu do Açude: a preservação do patrimônio artístico tem tanta relevância quanto a preservação do patrimônio natural do terreno em que a casa é construída.14 No Museu do Açude, encontra-se uma coleção de azulejaria holandesa, espanhola e portuguesa dos séculos XVII ao XIX.

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O papel de mecenas é atribuído a Castro Maya por sua atuação na Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, criada em 1943, na Sociedade dos Amigos da Gravura, fundada em 1952, e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, fundado em 1948, do qual foi o primeiro presidente.

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Isso pode ser comprovado na coleção de arte oriental, com objetos da China, da Índia e do Vietnã.

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Sobretudo no Museu da Chácara do Céu, em que os ambientes da sala de jantar e da biblioteca foram mantidos como se ainda fossem utilizados pelo morador da casa.

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No século XVI, os comportamentos de apreciar e colecionar eram considerados indispensáveis para a formação do que hoje denominaríamos um homem do mundo. Havia tratados que ensinavam aos cavalheiros como proceder, dos quais se destacam as lições de Sabba da Castiglione (1480-1554) sobre os diferentes tipos de gabinete que uma residência deveria ter, conforme o gosto pessoal de seu dono.

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Criada em 1974, tendo suas portas abertas ao público em 1980, a Fundação Maria Luisa e Oscar Americano possui um acervo de pinturas dos séculos XVII a XX, mobiliário, objetos de decoração e arte sacra brasileira do século XVIII. De acordo com seu site, a amplitude do acervo é creditada ao “sentimento de brasilidade que nele está presente” (cf. http://www.fundacaooscaramericano. org.br/fundacao20a.html).

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Ainda que a vida íntima do colecionador não seja exposta ostensivamente como as obras de arte e os objetos, é possível ver como a escolha de alguns itens da coleção tem relação com o desenho e a decoração do espaço em que são preservados. Para valorizar a pertinência de coleções como a de Castro Maya, é preciso admitir que os critérios para a formação de uma coleção não são universais, seja essa reunida para deleite de um proprietário extravagante ou para a educação pública de uma nação. Assim como podemos diferenciar entre coleções privadas – sejam elas expostas nas páginas das revistas de decoração ou em residências históricas abertas à visitação pública –, também as coleções públicas dos grandes museus e seus projetos museográficos podem ser comparados na busca de um repertório de tipologias museográficas.15

2 Em 1996, a Pinacoteca do Estado de São Paulo realizou, no Palácio do Planalto, em Brasília, a exposição Expressões do Corpo. Tratava-se de uma mostra de esculturas de Auguste Rodin (1840-1917), Bruno Giorgi (1905-1993), Ernesto de Fiori (1884-1945), Victor Brecheret (1894-1955) e Francisco Leopoldo e Silva (1879-1948). O evento comemorava a recente incorporação de sete esculturas de Rodin ao acervo da Pinacoteca.16 O Palácio do Planalto é um dos prédios mais representativos da arquitetura modernista de Oscar Niemeyer e faz parte do conjunto arquitetônico da Praça dos Três Poderes. No conjunto de obras expostas com ênfase no corpo humano, que, segundo o autor do projeto, deveria “servir como mote para uma discussão mais ampla sobre a escultura brasileira” (Araújo, 1995), a decoração dos elementos da montagem contrastava com a arquitetura do Palácio, arrojada e sem adornos. Na montagem, cada uma das esculturas foi colocada sobre pedestal branco com frisos nas bordas. Além de introduzir na amplidão do saguão do Palácio uma escala diferenciada, os pedestais e painéis se destacavam no percurso de visitação. Os elementos utilizados na montagem das esculturas na sede da instituição em São Paulo foram O termo museografia é utilizado aqui para que possamos tratar o modo específico com qual um projeto museológico é implementado. Assim, contém os aspectos materiais da configuração de uma instituição: suportes expositivos, sinalização, iluminação, bem como recursos que garantem a proteção das obras e a circulação do público. Inclui também recursos didáticos e material impresso de apoio à visitação.

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Segundo Emanoel Araújo (1995), a mostra foi concebida para “celebrar o Projeto Rodin entre a Associação dos Amigos da Pinacoteca e o Banco Safra na aquisição de cinco esculturas de Auguste Rodin para o acervo da Pinacoteca do Estado, apoiado pela Lei de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura, fato importante e pioneiro na compra de obras para o acervo do museu”.

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transpostos para o Palácio, modernista. Em vez de marcar o modernismo da escultura, de Rodin a Bruno Giorgi, a montagem se caracterizava por uma aparência tradicionalista. O contraste ficava ainda mais evidente para o visitante, que via pelo vidro da fachada do prédio a escultura de Bruno Giorgi na Praça dos Três Poderes. Essa obra, incorporada há décadas à ocupação informal do espaço da Praça, está fixada diretamente no chão, sem qualquer tipo de base ou pedestal. Com a finalidade de estabelecer “uma linha de continuidade entre a obra do grande mestre francês Rodin e a produção dos quatro artistas brasileiros” (Weffort, 1995), a exposição situava um passado por meio dos elementos da montagem: os frisos dos pedestais e as fotografias em preto e branco17 marcavam uma ambientação tradicionalista. Algumas das fotografias nos mostravam obras de Rodin em execução, no ateliê, e proporcionavam ao visitante da exposição a possibilidade de vê-las na situação em que foram criadas, há aproximadamente cem anos. Apresentavam-se, portanto, dois caminhos. Ao compreender a antiguidade do processo técnico da escultura em bronze, relacionava-se ao conjunto de obras exibidas na exposição e na Praça dos Três Poderes uma tradição artística de vários séculos. Reunidas em torno de um tema comum – o corpo humano –, as obras expostas exemplificavam diversos graus de aderência ao exemplo deixado por Rodin. Se considerássemos apenas o tema e a técnica como elementos unificadores do conjunto, a exposição era clara. Se, entretanto, buscássemos no grupo de escultores brasileiros a continuidade – ou o desdobramento adaptado à tradição nacional – do tratamento dado por Rodin à forma humana, sobretudo na relação parte/fragmento em que explorou os limites do equilíbrio formal e físico da estrutura dinâmica, o conjunto não sustentava a proposta curatorial. Se considerássemos que a fachada envidraçada do Palácio do Planalto proporcionava ao visitante uma continuidade entre a situação expositiva e a Praça dos Três Poderes,18 onde as esculturas participam Realizadas sob encomenda de Rodin, são, segundo Pinet, as imagens de “um mundo inanimado, pois em nenhuma dessas imagens se vê a equipe de artesãos que trabalham no ambiente do escultor: moldadores, ampliadores, práticos são excluídos das imagens e, consequentemente, do imaginário. Essas fotografias que não guardam qualquer traço da presença humana sustentam o mito do artista solitário, do demiurgo isolado do resto do mundo, e parecem proclamar bem alto: ‘É ele, e apenas ele, que é a origem desse universo’” (2001, p. 141).

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Nessa Praça, além de Os guerreiros (1959), de Bruno Giorgi, encontramos as esculturas Herma de Tiradentes (Bruno Giorgi, 1986), A justiça (Alfredo Ceschiatti, 1961), Herma de Israel Pinheiro (Honório Peçanha, s. d.), Cabeça do presidente JK (José Alves Pedroza, 1960) e A pomba (Marianne Peretti).

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do cotidiano da cidade, seria ainda mais evidente o contraste entre a montagem no saguão do Palácio e o despojamento da instalação das esculturas a céu aberto.19 A opção por um determinado estilo de montagem marcou a identidade institucional da Pinacoteca do Estado de São Paulo20 no segmento transplantado temporariamente para Brasília. Se considerarmos as diferenças arquitetônicas e as respectivas identidades institucionais, como conciliar a Pinacoteca e o Palácio? A Pinacoteca é a instituição cujo valor está associado à antiguidade e à tradição de sua história, sobretudo quando comparada à do Palácio do Planalto. A tradição é também o valor que perpassa a escolha do tema – a figura humana – e a técnica – a escultura em bronze – que nortearam o projeto de exposição de Emanoel Araújo. A caracterização do ambiente por meio de um elenco de soluções formais tradicionais despertaria no público um interesse por informações a respeito da ancestralidade do modernismo com o qual cotidianamente convive em Brasília? O saguão do Palácio do Planalto não é uma galeria. Embora tenha um acervo de obras de arte, esse não é acessível ao público. Cada obra está instalada em um local do prédio, em que pode ser vislumbrada apenas nas imagens de divulgação de cerimônias oficiais. Não há, portanto, um formato convencional para a montagem de exposições ali. Portanto, a iniciativa da Pinacoteca não poderia ter sido comparada a outras, uma vez que não tinha antecedentes.

3 A configuração neutra do ambiente expositivo é um recurso para minimizar e até mesmo anular a tensão produzida pela presença das obras de arte e seus respectivos vínculos aos contextos em que foram produzidas. O universalismo proclamado pelo pensamento modernista, se considerarmos a longa história da produção de bens artísticos pela humanidade, é uma tendência recente e que parece estar próxima do fim na medida em que as recentes discussões em torno da relação global/local têm se multiplicado no campo da arte. A escultura de Bruno Giorgi é o local preferido pelos turistas para compor o cenário de suas fotografias na Praça dos Três Poderes. Como uma imagem-símbolo de Brasília, Os guerreiros são reproduzidos em vários materiais e formatos por artesãos locais e adquiridos em lojas de souvenir espalhadas pela cidade.

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O primeiro museu da cidade de São Paulo.

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Há uma tensão entre a abordagem formalista e a interpretação do conteúdo da obra de arte vinculado a um contexto de origem externo à exposição. Desde o início do século XX, o contato de artistas como Paul Gauguin (1848-1903) e Pablo Picasso (1881-1973) com objetos provenientes de culturas primitivas tem sido admitido na história da arte como a incorporação de novas soluções formais. Ainda que essa abordagem esteja condizente com as intenções dos artistas, o olhar que se lança aos objetos que são matéria-prima para investigações formais ignora a existência de outras qualidades, pertinentes a funções que esses mesmos desempenham nos contextos socioculturais em que foram criados. Na história da arte, os objetos primitivos são valorizados apenas por terem contribuído para a expansão do repertório de soluções formais consideradas, assim, primitivistas. Quando a exposição Primitivism in 20th century art: affinity of the tribal and the modern foi realizada no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) em 1984,21 o que se considerava inédito não era apenas justapor a obra de artistas como Constantin Brancusi (1876-1957), Emil Nolde (1867-1956), Paul Klee (1879-1940), Alberto Giacometti (1901-1986) e Henry Moore (1898-1986) às suas “fontes” primitivas, muitas das quais eram objetos pertencentes a coleções particulares dos artistas. A contextualização era feita de tal modo que nos parece colocar os pintores e escultores europeus como os credores de uma dívida eterna: são eles os benfeitores da inclusão do “outro” no espaço institucional do MoMA.22 O objeto proveniente do contexto tribal é primitivo porque guarda ainda um conjunto de qualidades que não são pertinentes em uma análise eminentemente formalista. Serve para alguma coisa, tem um uso específico muitas vezes determinado por um ritual no qual é um adereço ou objeto mágico necessário para o êxito da performance de quem o utiliza. No museu, é descontextualizado a ponto de, desprovido de função mágica, ser objeto unicamente da apreciação estética. Embora haja uma diferença entre a maneira pela qual Gauguin talhou objetos em madeira para parecerem primitivos e a realização das esculturas de Henry Moore com um resultado primitivista, nenhum dos dois escultores foi orientado por uma necessidade que não fosse essencialmente plástica. Consequentemente, ambos foram Após a montagem no MoMA, a exposição também foi realizada no Detroit Institute of the Arts e no Dallas Museum of Art, ambos nos Estados Unidos. Entretanto, o foco de todas as críticas é a exposição realizada no MoMA.

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Organizado por William Rubin, diretor da exposição, o catálogo possui textos de Kirk Varnedoe, diretor assistente da exposição, Donald E. Gordon e Rosalind Krauss, entre outros.

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igualmente inseridos na exposição do MoMA. A aproximação é estilística e a perspectiva etnológica é, nesse contexto, irrelevante. Diante dessa exposição, que glorificava a universalidade formal em detrimento das relações que se estabelecem entre os objetos e os modos de vida dos povos que os criaram, Thomas McEvilley pergunta: Após cinquenta anos [desde a publicação do livro Primitivism in modern painting, de Robert Goldwater] de convívio com as relações dinâmicas entre objetos primitivos e modernos, não estamos prontos para começar a entender as intenções reais das tradições nativas, para finalmente permitir que essas culturas silenciadas nos falem diretamente (1984, p. 59, tradução minha)?

Objetos reunidos em uma mesma exposição, pertencentes a tradições culturais independentes, instauram uma relação polêmica ao evidenciar um vínculo entre o sistema de valores artísticos declaradamente neutros e o contexto ideológico a que estão, de fato, subordinados. Sobre o confronto entre tradições artísticas, existe uma extensa produção bibliográfica que tem fundamentado a revisão crítica da história da arte eurocêntrica. Ainda que alguns desses textos não apresentem uma abordagem que possa substituir a referência historiográfica sedimentada por meio de uma rede de instituições oficiais e agregados circunstanciais como debates públicos e periódicos, seu papel pode ser constatado na ampliação do repertório de questões que passaram a compor o debate sobre arte e contexto artístico.

4 Quando analisamos a dimensão espacial nas exposições, consideramos não apenas a configuração do espaço em que as obras são vistas, os enquadramentos da visão, mas também a relação entre os territórios geopolíticos de onde procedem. Nesse aspecto, consideramos que, tanto nas exposições permanentes dos acervos dos museus e suas expografias paradigmáticas quanto nas exposições temporárias, os vínculos dos objetos de arte com os contextos de procedência não são totalmente apagados.23 Talvez esse aspecto se torne mais evidente quando analisamos as exposições temporárias nas quais ao contexto original de produção da obra é acrescido outro, que pode até mesmo suplantá-lo: o local institucional ao qual a obra Ainda que o objetivo central tenha sido demonstrar a existência de “afinidades” entre a pintura Still life of masks, realizada por Emil Nolde em 1911, e a cabeça humana transformada em troféu pelos índios munduruku do Brasil, da coleção do Museum für Völkerkunde, em Berlim, o parentesco entre os objetos era apenas formal.

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pertence. Além disso, a reunião de um conjunto de objetos ou obras de arte de procedências variadas pode suscitar questionamentos quanto ao seu real parentesco artístico, como ocorreu na exposição organizada por William Rubin, uma vez que já não é imprescindível atestar uma origem no campo institucional da arte para que algo seja legitimado nesse mesmo território. Os territórios da arte são demarcados a partir de fronteiras que excluem objetos cuja função predominante não é estética. É uma fronteira instável e recente na história das instituições museológicas. O motivo principal de sua instabilidade é o que permite compreender a abrangência de projetos curatoriais que, sobretudo desde meados da década de 1980, têm reunido conjuntos de objetos cujas procedências definem concepções de arte incompatíveis. Na história da humanidade, as coleções tornaram-se objeto de curiosidade por diversas razões. As coleções dos templos da antiguidade24 eram visitadas por peregrinos e turistas que buscavam conhecer as obras mais primorosas realizadas pelos célebres escultores gregos. Essas obras, assim como os demais objetos, estavam relacionadas ao culto de divindades. O interesse público por obras de arte no final do século XX é, segundo Bazin (1967), semelhante ao da Roma antiga. Com o fim do Império Romano, o espírito público em relação às obras de arte e aos tesouros entrou em declínio e somente a partir do século XVIII passou a ser lentamente recuperado. São também da antiguidade os registros mais remotos sobre a formação de coleções com o espólio das conquistas dos povos, sobretudo com as pilhagens sofridas pelos gregos sob o domínio romano.25 A adoração de imagens e objetos não havia sido totalmente abandonada quando as ordens religiosas da Idade Média começaram a formar vastas coleções ou tesouros. Surgiram também nas cortes laicas da Europa coleções que reuniam esculturas, objetos A lenta acumulação de ex-votos nos templos da Grécia antiga pelos devotos é considerada a origem dos acervos de obras de arte. Como atividade integrada a um sistema no qual as coleções estavam sob os cuidados do guardião do templo, responsável pelo inventário e pela manutenção de um conjunto de objetos heterogêneo, esses acervos continham obras executadas pelos mais importantes artistas da Grécia. Os inventários, realizados por um hieropei responsável pelos tesouros do templo, continham, entre outras informações, dados sobre a nacionalidade do doador (Bazin, 1967, p. 12).

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Foi por meio da conquista da Grécia no século II a.C. que os romanos adquiriram o gosto por obras de arte. O espólio da guerra, depois de ser exposto à multidão em procissões triunfais, era distribuído pelos templos ou comercializado entre ricos colecionadores. As coleções privadas incluíam: cópias ou originais de esculturas gregas, objetos de ouro ou prata, marfim ou casco de tartaruga, móveis de bronze, cedro, cipreste, arbovitae ou maple, tapetes orientais tecidos com fios de ouro, e baixos-relevos. Os templos, abarrotados de objetos, transformavam-se em lojas de curiosidades. O segundo marco importante na formação das coleções foi a realização das Cruzadas.

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de arte26 e livros preciosos. Na Ásia, tesouros foram também acumulados no Islão, na China e no Japão. Vistas como tesouros a serem preservados, as coleções eram protegidas dos riscos da guerra e depositadas em locais seguros que em nada se assemelhavam aos museus27 de hoje.

5 Embora seja imprescindível admitir que há uma história da arte eurocêntrica, a realização de exposições temporárias ou permanentes nos museus tem tornado evidente que não há um conjunto homogêneo de cânones artísticos ou um paralelismo universal entre as tendências artísticas. A apropriação de qualidades estéticas atribuídas a obras do passado ou a objetos produzidos por outras culturas, bem como a busca por exemplos a serem admirados ou motivos que, copiados, serviriam para a renovação de estilos artísticos, não é exclusiva da arte do século XX em diante. Ainda que seja atribuída à Idade Média a preferência por colecionar tudo o que estivesse relacionado às vidas de Cristo, da Virgem Maria e dos santos, encontra-se também nesse período um grande interesse em guardar objetos remanescentes da antiguidade ou provenientes do Oriente. Esses objetos eram preservados devido a qualidades que o homem medieval admirava, mas não se considerava capaz de imitar. Dos altares medievais na Europa ocidental, acredita-se que apenas a quarta parte tenha sido originalmente executada por artífices contratados pelas ordens religiosas que os possuíam (Bazin, 1967). A maioria das peças pode ter sido levada do Oriente bizantino, árabe ou chinês. O ecletismo das coleções que contêm objetos provenientes de regiões distantes, valorizados por seu exotismo, foi impulsionado pelas relações de comércio e dominação entre os povos. Como exemplo, a partir da tomada de Utilizamos a expressão “objeto de arte” como tradução do termo francês objet d’art, que designa uma obra de arte de valor material intrínseco superior às qualidades estéticas. Pode ser atribuído a qualquer tipo de artigo decorativo e precioso, mas geralmente denota objetos relativamente pequenos, como porcelanas, bibelôs e pratarias, encontrados, sobretudo, em coleções particulares.

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Museu tem sua origem nos termos museion, em grego, e museum, em latim. Na Grécia, museion era o termo atribuído a santuários, academias filosóficas ou instituições de estudo avançado, ou pesquisa científica, presididos pelas musas. Para os romanos, museum era o termo utilizado para denominar as villas designadas para a discussão filosófica. Bazin (1967) compara o zelo dispensado pelos romanos às obras de arte produzidas por outros povos ao que é atualmente característico do cuidado que os norte-americanos manifestam com relação às obras-primas produzidas pela civilização ocidental, sobretudo ao ostentar condições econômicas e políticas excepcionais para adquiri-las e preservá-las.

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Constantinopla pelos turcos em 1453, os mercados europeus foram inundados com obras e objetos obtidos por meio de pilhagem, tendo sido Veneza seu mais importante ponto de revenda.28 Após a separação, no século XIX, das coleções de artes das demais coleções – históricas, científicas, etnográficas, entre outras –, tornou-se improvável incluir em um evento artístico objetos que não tenham sido produzidos conforme uma única tradição artística. Se tomarmos como referência as coleções do século XVI, perceberemos que havia naquela época um sistema de valores no qual as obras de arte, sobretudo as pinturas, possuíam um valor extremamente inferior ao que era atribuído às “bizarrices” da natureza, ainda que estas fossem forjadas.29 Outro fato importante é o contato com os objetos levados para a Europa pelos viajantes que, a partir do século XV, percorriam os territórios do Novo Mundo. A obsessão maneirista, no século XVI, por penetrar os mistérios da natureza deu origem a coleções em que “bizarrices” eram populares. A variada coleção de Cosimo de Médici (1389-1464) incluía um gabinete de história natural no qual eram encontrados animais, conchas, fósseis, minerais, moldes da natureza feitos por Lucca della Robia (1400-1482) e álbuns de desenhos de fauna e flora. Na Itália, apesar de numerosos, esses gabinetes – denominados museo naturale – não eram tão cobiçados quanto os que continham objetos criados pelo homem. Correspondiam aos que eram, na Alemanha, denominados Wunderkammer e, na França, chamber des merveilles. Ainda que a fauna e a flora europeias fossem objeto de curiosidade, no século XVI, exemplares das “Índias” passaram a ser colecionados em grandes quantidades, como demonstração de gosto cosmopolita. A palavra gabinete, que se origina do latim cavea, inicialmente denominava uma peça de mobiliário na qual eram guardados objetos pessoais de pequenas dimensões, como joias e cartas. Posteriormente, passou a designar os aposentos nos quais objetos raros e preciosos eram guardados (Bazin, 1967). Na segunda metade do século, o padre franciscano André Thévet (1502-1590), que tinha viajado Afirma-se que nove décimos do tesouro da Basílica de San Marco, em Veneza, são formados pelo espólio da última Cruzada, composto de objetos preciosos acumulados pelos imperadores bizantinos desde a Antiguidade. Oficialmente, Veneza nasceu Bizantina e assim permaneceu por séculos. Era considerada a mais típica cidade oriental no Ocidente.

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No inventário de Lourenço, “o magnífico”, feito em 1492, encontrava-se a prova da discrepância nos valores atribuídos aos objetos: trinta florins por uma pintura de Jan van Eyck (São Jerônimo), três florins por uma escultura de Desiderio as Sattiagrano e 6 mil florins por um chifre de unicórnio. Obviamente, tratava-se de um objeto forjado por um comerciante inescrupuloso a partir de um dente de narval. É nessa mesma coleção que o termo museu é pela primeira vez atribuído a uma coleção: museo dei codici e cimeli artistici. Na ocasião, a palavra denominava o acervo de livros e gemas (Bazin, 1967, p. 44).

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ao Brasil (1555-1556), tornou-se o curador da coleção de curiosidades do rei Carlos IX, que incluía objetos recolhidos em suas viagens30 e oriundos de países como Turquia e China. No século XIX, o gosto pelo exótico, estimulado por uma necessidade de abrir mercados e postos de comércio, deu origem a uma nova vitrine para o cosmopolitismo europeu: as exposições universais. Assim como os museus passaram a ser instituições fundamentais para a identidade do Estado moderno, as exposições universais foram criadas no século XIX para afirmar um modelo de supremacia das nações industrializadas. Após a Revolução de 1789, os objetos de arte que pertenciam à realeza francesa deviam ser confiscados e obrigatoriamente enviados para o Palácio do Louvre. Embora tenha sido um marco importante para a fundação de museus públicos, a abertura da coleção real teve como principais beneficiários os artistas, que há muito tempo exigiam acesso às obras para estudá-las.31 As primeiras montagens de exposições no Louvre não tinham um princípio classificatório. A montagem evidenciava os contrastes entre as obras para que o valor individual se tornasse mais evidente. O resultado era caótico e, na Grande Galeria, a localização de pinturas e objetos de arte não seguia uma ordem cronológica ou a divisão por gêneros. Essa montagem foi alterada durante a primeira reforma; quando a Grande Galeria foi reaberta em 1799, as pinturas se viam agrupadas de acordo com as diferentes escolas representadas na coleção. A essa classificação seguiu-se outra, mais abrangente, que de certo modo justificou a necessidade de fundar outros museus. Existiam outras coleções que, caso fossem assimiladas à do Louvre, teriam sido inseridas em uma relação hierárquica na qual ocupariam uma posição inferior. Justificase, portanto, a criação de duas instituições específicas. Em Versalhes foi reunida uma coleção dedicada exclusivamente à arte francesa, e em Paris foi fundado o Museu de Monumentos Franceses,32 dedicado à preservação de monumentos da velha França monarquista e religiosa. Assim como se Antes de viajar ao Brasil como capelão da frota de Villegaignon (1510-1571), Thévet realizou, entre de 1549 a 1554, uma viagem de exploração a Ásia, Grécia, Palestina e Egito.

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A cada dez dias aberto, os artistas tinham cinco dias de acesso exclusivo, sendo os demais divididos pela limpeza – dois – e pelo público em geral – três. Devido ao grande número de copistas que passou a frequentar o Louvre, sua admissão passou a ser limitada mediante a exigência de apresentação de uma licença, limitada ao número de cem, que expirava em seis meses (Bazin, 1967).

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Seu primeiro diretor, Alexandre Lenoir, definia-o como “o único lugar onde é possível estudar o nascimento, a evolução e o eventual florescimento das artes em um contexto”. A montagem de “salas de época” era obtida por meio da fabricação artificial de monumentos a partir de fragmentos de monumentos reais para evocar períodos históricos (Bazin, 1967, p. 173). O museu foi destruído em 1815.

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tornou o repositório do acervo da França, o Louvre se tornou também o destino de todas as obras de arte e antiguidades pertencentes aos estados derrotados em guerra. Como locais em que todas as influências estrangeiras eram incorporadas a um cenário de reflexão sobre a cultura nacional, os museus no século XIX eram também instrumentos para a implementação de projetos políticos nacionalistas em diferentes países da Europa. Nesse contexto, considerando o papel dos museus na formação de uma visão de mundo a partir de um local fixo, com fronteiras nacionais bem definidas, a amplitude das coleções era objeto de debate. Na Alemanha, existiam duas posições antagônicas explícitas. Por um lado, defendia-se que os museus deveriam conter apenas as obras-primas da antiguidade e das grandes escolas europeias. Por outro, valorizava-se o museu como um lugar para a preservação de um universalismo que deveria incluir a cultura e a história de todos os povos, sem restrições geopolíticas, inclusive a nacional. A tendência universalista, na primeira metade do século XIX, era alimentada também pelo culto ao passado histórico e pelas descobertas arqueológicas. O olhar para o passado não apenas alimentava a apreciação pelos tempos idos, mas também proporcionava um entendimento mais sólido de uma trajetória, de um percurso evolutivo da humanidade. A evolução é vista no século XIX como a consequência lógica de um processo civilizatório progressivo. Nesse contexto, as exposições universais são eventos eminentemente didáticos, com a função de fornecer à sociedade industrializada da Europa uma experiência domesticada com o novo e com o exótico, e de prepará-la para o futuro. Na exposição universal, as novidades mais admiradas eram a máquina mais recente, o invento mais surpreendente e os produtos industrializados prestes a serem incluídos nas rotas internacionais de comércio. Ainda que a realização das exposições universais33 possa parecer distante e até mesmo incompatível com a formação das instituições museológicas, ela é exemplar do modo pelo qual um evento que deveria promover o congraçamento entre as nações era, de fato, mais uma oportunidade para evidenciar diferenças. A primeira foi realizada em Londres, em 1851, e denominada The Great Exhibition of the Works of Industry of All Nations. Para sua realização, foi construído o Palácio de Cristal (The Crystal Palace), projeto de Joseph Paxton que se tornou um marco das amplas construções em ferro e vidro do século XIX.

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Seu formato deveria configurar um panorama das realizações humanas, considerando tanto o acúmulo de conhecimento ao longo da história quanto a expansão geográfica a que a visão do visitante seria submetida em um contexto universalista. Partindo do princípio de que as exposições eram a oportunidade que se oferecia pela primeira vez a um público curioso, que desconhecia grande parte do que lhe era apresentado, e que deveriam cumprir um dever positivista de difundir o saber, as exposições desempenhavam, tanto quanto os museus, uma função didático-pedagógica (Pesavento, 1997). Ao mesmo tempo que eram expostos a uma grande variedade de produtos de procedências inesperadas, os visitantes também deveriam ser convencidos de que a vitória do espírito científico era restrita ao território, politicamente definido, das nações industrializadas. A indústria era o símbolo da civilização.34 A promessa de visitar terras distantes sem sair de uma única cidade era materializada por meio da construção de pavilhões para exibição dos países e das indústrias tais como eram entendidas no século XIX.35 Essas construções efêmeras tinham também um papel simbólico, associado à identidade do que deveriam conter e exibir. Para a exposição universal de Paris em 1889, comemorativa do centenário da Revolução, foi construída a Torre Eiffel, objeto de polêmicas,36 e, abaixo dessa, um conjunto escultórico intitulado A morte tentando parar o gênio da luz, que se esforça para iluminar a verdade, inspirado na Fonte dos quatro rios37 (1651), de Bernini. Era uma alegoria dos cinco continentes, cada um associado a um estereótipo: à Oceania correspondia o homem primitivo; à África, o homem com sinais de contato precário com a civilização; à Ásia, a Na exposição de 1862, na Inglaterra, evidenciava-se “o contraste entre o avanço técnico-científico das nações ditas avançadas e o exotismo e a barbárie do mundo não europeu” (Pesavento, 1997, p. 110), apesar de terem sido amplamente admiradas nesse evento as porcelanas da China e os objetos laqueados do Japão.

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É necessário esclarecer que, no século XIX, o termo indústria tinha, conforme afirma Pesavento, um sentido mais amplo do que o que lhe é atribuído na atualidade: “Os critérios da época associam à palavra toda e qualquer forma de atividade humana, independente do grau de beneficiamento, do emprego de tecnologia ou das relações sociais subjacentes. Assim, a agricultura ou a criação de gado são classificadas como indústrias, e atividades meramente extrativas ou de coleta simples de materiais da natureza também o são” (1997, p. 105).

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Embora essas tenham dificultado sua construção, não foram suficientemente contundentes a ponto de impedir que se tornasse um monumento permanente após o fim do evento.

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Esse conjunto encontra-se na Piazza Navona, em Roma, e é composto por alegorias dos quatro continentes, cada um associado a um rio: a Europa é representada pelo Danúbio (o rio mais longo próximo a Roma), a Ásia, pelo Ganges, a África, pelo Nilo, e a América, pelo Rio da Prata (com um duplo sentido, indicando as riquezas que proporcionaria à Europa por meio da exploração de metais preciosos).

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odalisca sensual; à América,38 o homem à procura de fortuna; e à Europa, os símbolos de superioridade intelectual que se propagam a outros continentes – o livro e a imprensa (Pesavento, 1997). No centro do conjunto, encontrava-se a França, sede do evento, irradiadora de progresso e cultura civilizada. A visão eurocêntrica era plenamente justificada pela necessidade de afirmar a importância do progresso industrial para o desenvolvimento das nações e dos continentes, sobretudo os que ainda se encontravam mais próximos de um estado de barbárie. Os modos de expor objetos nas exposições universais têm relação com os modos de expor obras de arte a partir do século XIX. Existe uma semelhança entre a configuração dos gabinetes, cuja ambientação proporcionava a mobilização dos sentidos, a construção das “salas de época” nos museus históricos e a edificação dos pavilhões nas exposições universais.

6 O modelo de exposição que se organiza a partir de representações nacionais, típico das exposições universais, foi adotado pela Bienal de Veneza. Criado em 1895, esse evento paradigmático para a história das exposições internacionais de arte, cuja influência sobre a concepção da Bienal de São Paulo é evidente, apoia-se na autonomia de cada nação para indicar os artistas mais representativos de sua produção contemporânea.39 Seu surgimento coincide com o momento em que o cosmopolitismo que caracterizava o século XIX dava lugar ao universalismo que predominou no pensamento moderno da primeira metade do século XX.40 O pressuposto universalista não substituiu, entretanto, a hierarquia dos valores artísticos estabelecida pela tradição da Europa ocidental, que, após a Segunda Grande Guerra, passa a ser também defendida pelos Estados 38

Ao mesmo tempo que o evento ostentava uma visão simplista, considerando provavelmente apenas os Estados Unidos, a representação desse país no evento incluiu também uma grande dose de exotismo com a presença de Buffalo Bill em pessoa, acompanhado de outros índios de sua tribo, cowboys, cavalos selvagens, búfalos, cervos e coiotes, para o entretenimento do público.

Sejam esses artistas os autores da produção de destaque do momento em que a bienal é realizada ou, até mesmo, os que tenham realizado obras a serem homenageadas à luz de sua influência sobre os caminhos da atividade artística nacional na atualidade.

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Sobre essa mudança, Argan define o contexto no qual surge o expressionismo como tendência que despreza uma retórica progressista em favor da liberação de “impulsos autenticamente progressistas” no campo da arte. No contexto mais amplo, o cosmopolitismo modernista e a utopia do progresso universal dariam lugar à “superação dialética das contradições históricas, começando naturalmente pelas tradições nacionais” (1992, pp. 227-8).

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Unidos. A relação desigual entre as nações se prolonga ao campo da arte, onde existem fronteiras para separar a produção dos centros hegemônicos daquela dos países periféricos. Foi a permanência dessa hierarquia que justificou a criação de denominações para novos segmentos de produção material que, embora pudessem ser comparados às mais valiosas realizações artísticas da cultura eurocêntrica, mantêm o vínculo com um contexto original e exótico. Distingue-se uma grande variedade de termos para definir objetos que, embora eventualmente sejam exibidos em instituições artísticas, serão plenamente compreendidos apenas no momento em que sua definição a partir de um subcampo específico for considerada: arte das crianças, arte naïf, arte pública, arte utilitária, arte política, arte de guerrilha e tantos outros. A neutralidade da visão universal da arte é, desse modo, limitada. Essas classificações pressupõem a circulação dos objetos, que também podem ser denominados artísticos em outros sistemas de produção cultural.

7 A partir da afirmação de que a relação hierárquica no sistema de arte é necessária, surgem dois argumentos contrários ao desmembramento do campo da arte em territórios funcionais. O primeiro tem relação com uma visão evolucionista e linear na qual a qualidade artística é atributo inquestionavelmente superior de um objeto. Apesar de seu uso, ele pode passar a ser visto, acima de tudo, como obra de arte. A outra posição denuncia a existência de liberdade e tolerância ilimitadas no sistema de arte, gerando a situação na qual todas as tendências são equitativamente acolhidas. Sem a orientação hierárquica, o pluralismo conduz a uma ineficácia generalizada. Nessa perspectiva, é como se existisse um estado superior, herdeiro do universalismo modernista, em que tudo o que se produz está livre das coerções de linguagens e das convenções dos códigos. Deslocada de contextos históricos ou políticos, a arte se desvincula do compromisso com uma temporalidade histórica específica e passa a tratar o tempo como um tema e todas as épocas precedentes como se fossem igualmente acessíveis. Indiferente ao momento histórico em que vive e à historicidade das condições que marcam o sistema de arte de seu tempo, o artista abraça o pluralismo como um novo estágio. A ingenuidade dessa atitude, segundo Hal Foster (1982), gera um problema. Ao ignorar diferenças de valor e contexto, o artista, na busca desesperada por um lugar no mercado de arte, produz uma obra inofensiva.

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Como assumir posições diante do argumento de que as classificações – ou a afirmação de funções diferenciadas para os objetos artísticos – são muitas vezes utilizadas para justificar deficiências de qualidade estética? Essas classificações podem, por outro lado, ser justificadas simplesmente pela necessidade de conceber novas formas para expor e preservar coleções que, embora sejam mantidas por museus, ocupam um espaço marginal em relação às coleções de arte. Os objetos que pertencem a essas coleções são geralmente utilizados quando há necessidade de compor um cenário de época, uma ambientação para simular o modo de viver típico em determinado período histórico. Mesmo assim, existem museus que resistem ao modo de parecer histórico. Em 1991, o MoMA realizou a exposição Art of the Fourties. Combinaram-se objetos de dois departamentos: “Pintura e Escultura” e “Arquitetura e Design”. Embora, nesse caso, o espírito de uma época fosse reconstituído a partir, também, de objetos utilitários assinados por designers reconhecidos, a relação funcional entre os objetos era situada em espaços que não se assemelhavam a ambientes domésticos ou de uso cotidiano. A visão integradora deixa de lado a valorização de uma relação específica entre cada obra e seu contexto de produção. Todavia, se os territórios da arte podem ser subdivididos indefinidamente, o que há em comum após sucessivas diluições do vínculo inicial entre tudo o que pode ser denominado arte? Busca-se, de fato, um equilíbrio. Sem deixar de considerar a multiplicidade de contextos possíveis para a produção de arte, é necessário perguntar sempre qual é a pertinência dessa grande categoria para a identidade e a função de um objeto.

8 Em 1989, no bicentenário da Revolução Francesa, a exposição Magiciens de la Terre foi organizada para substituir a Bienal de Paris, tornando-se o mais recente paradigma internacional para a exibição de obras de arte em um sistema globalizado. Idealizada por Jean-Hubert Martin,41 foi considerada “a primeira apresentação de artes visuais verdadeiramente internacional”.42 Desde 1988, Jean-Hubert Martin era diretor do Museu de Arte Moderna do Centro Georges Pompidou, em Paris.

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Essa afirmação de Eleanor Heartney, embora apoiada em um sincero entusiasmo pela iniciativa de Martin, que evitou a fórmula recorrente de nomear uma exposição “internacional” a partir apenas de um conjunto de obras de artistas europeus, norte-americanos e japoneses, não está baseada em uma análise aprofundada de outros eventos internacionais, como a Bienal de São Paulo.

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Teria sido essa uma ocasião para evocar a visão pluralista da Europa cosmopolita, representada na exposição universal de 1889 em Paris? Há cem anos, a exposição universal foi realizada para demonstrar, também, a amplitude da visão eurocêntrica. O trabalho dos curadores43 pode ser visto de dois modos: ao percorrer um país para selecionar obras que demonstrassem a hipótese de Martin, era necessário querer ver algo além daquilo que as representações oficiais dos países preferem oferecer a um evento de grande visibilidade internacional. Entretanto, para atingir o resultado pretendido, era preciso realizar apenas as escolhas que garantiriam a reiteração do tema, ou seja, que arte é magia. Em defesa desse argumento, Martin estabelece a diferença entre sua proposta curatorial e a abordagem formalista da exposição de William Rubin: Parece-me importante enfatizar os aspectos funcionais no lugar dos aspectos formais da espiritualidade. Afinal, as práticas de magia são funcionais. Os objetos que têm uma função espiritual para a mentalidade humana, que existem em todas as sociedades, são os que interessam em nossa exposição. Afinal, a obra de arte não pode simplesmente ser reduzida a uma experiência retiniana. Ela possui uma aura que provoca essas experiências mentais (apud Buchloh, 1989, p. 155, tradução minha).

A repercussão dos resultados, no entanto, proporcionou o surgimento de uma tendência que, ao banalizar-se, tem assumido outros papéis: a visão do curador que, exposto ao deslocamento geográfico e ao descentramento de seu sistema de valores, abre-se para novas possibilidades de compor um evento temporário. Diante do aumento do número de exposições temporárias e itinerantes, Germain Bazin (1967) apresentava, na qualidade de conservador-chefe do Museu do Louvre, críticas aos eventos que definiu como mera estratégia de fins didáticos para facilitar o contato com obras de arte, de fins políticos para favorecer funcionários públicos ou de fins exibicionistas para promover curadores. Todavia, a efemeridade cria uma margem de segurança que preserva os museus dos efeitos mais radicais que esse tipo de evento poderia gerar. O papel do curador de museu não corresponde ao do curador de exposições temporárias.

Martin teve como colaboradores Mark Francis, J. S. Mauban e Jan Debbaut.

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O tipo de curador internacional, promovido a partir da exposição de Martin, que viaja para realizar seu trabalho, não está necessariamente comprometido com a consolidação de uma visão institucional pública da arte. O que garante a visibilidade de seu gesto – e do critério que o fundamenta44 – é uma oportuna independência em relação ao sistema de valores artísticos consolidado pela tradição. Uma de suas estratégias explícitas era escolher predominantemente instalações ou obras que jamais haviam sido mostradas em museus. Em Magiciens, o inesperado estava na justaposição de 50 artistas “do centro” a 50 artistas “da margem”. A partir do evento, as obras de artífices que participavam pela primeira vez de uma exposição internacional começaram a circular no mercado de arte.45 A exposição era distribuída entre o Centro Georges Pompidou e o Grande Halle do Parc de La Villete. No Grande Halle, sem o peso institucional do Georges Pompidou, encontrávamos dois pares de obras que exemplificavam o paradoxal sistema de valores “inclusivo” da curadoria que cria equivalências e ambiguidades. O primeiro caso é a combinação, na montagem, de dois trabalhos efêmeros. O círculo do inglês Richard Long, pintado com lama diretamente sobre a parede, é efêmero por motivos pertinentes a um determinado conceito de arte. O outro trabalho era uma obra coletiva, criada in situ por seis artistas da comunidade yuendumu (Austrália), executada com terra tingida e outros materiais. Esse trabalho era efêmero porque, no sistema cultural em que tem origem, deve cumprir uma função simbólica a partir de determinações estabelecidas pela tradição. Enquanto a mágica é obtida na obra de Long por meio do desdém pelo código tradicional, que define as qualidades que toda pintura mural deve apresentar para ter permanência material e, necessariamente, artística, na obra do grupo yuendumu é a obediência à tradição que garante a eficácia simbólica do que foi realizado. Paradoxalmente, ainda, é a obra, que se realiza apenas em sua efemeridade, que é protegida da ação destrutiva do público por meio de uma corda de isolamento.

Na entrevista concedida a Benjamin H. D. Buchloh, Martin afirma: “pretendo selecionar esses objetos de várias culturas de acordo com minha própria história e minha própria sensibilidade” (1989, p. 153).

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Essa possibilidade havia sido aberta anteriormente, na medida em que o sistema de arte passou a ter uma perspectiva pluralista.

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Outra dupla de obras a ser contrastada é a de figuras recortadas em ferro, de Christian Boltanski (França) e Gabriel Bien-Aime (Haiti). Nesse caso, é ainda mais evidente que o contexto institucional a que o artista está vinculado determina um modo de olhar a obra. Enquanto a obra de Boltanski está vinculada a uma narrativa que é, ao mesmo tempo, individual e mítica, o trabalho de Bien-Aime emerge de um contexto ritualístico.46 Transportadas para a exposição, suas obras são, de certo modo, descontextualizadas, a ponto de apenas poderem despertar um interesse formal ou um estranhamento que as reduz ao lugar de uma imagem meramente exótica. Seriam, entretanto, suas qualidades formais suficientes para que passassem a pertencer a um panorama artístico universal? Tendo em vista suas afinidades formais, qual a relevância do conceito de magia na distinção das especificidades de cada obra?47 A exposição, como um evento antropológico,48 pode ser vista em uma rede de práticas que contribuem para a consolidação de uma identidade cultural coletiva. Convencido de seu valor, o público que a vê tem certeza de sua universalidade e da durabilidade de sua contribuição para o sistema de arte. Enquanto o contexto do século XIX era o da expansão neocolonialista da Europa, no final do século XX, após a queda do muro de Berlim, o contexto era de assimilação de manifestações artísticas cuja diversidade era também identificada no panorama artístico de cada país. As discussões sobre representatividade e inclusão no campo da arte também se refletem na realização de eventos restritos às fronteiras nacionais. Uma das características da produção artística da década de 1980 nos Estados Unidos é a recorrência à investigação das fronteiras do conceito de identidade. A exposição The decade show; frameworks of identity in the 1980s, Na religião vodu do Haiti, as figuras recortadas em ferro são, geralmente, representações de espíritos – Iwa –, que podem ter uma grande variedade de formas humanas ou não humanas.

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Para a exposição Trópicos – visões a partir do centro do globo, os curadores Alfons Hug, Viola König e Peter Junge afirmaram ter adotado critérios estéticos e não científicos. Por isso, a exposição realizada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Brasília parecia resgatar mais do espírito da exposição de William Rubin do que o da de Jean-Hubert Martin. Os grupos temáticos – Natureza, Antepassados e Imagens Humanas, Poder e Conflito, Cores, e Instrumentos Musicais – dificilmente poderiam ter origem em parâmetros estéticos universais. Além disso, a expografia não fornecia ao visitante qualquer tipo de informação para que os objetos fossem relacionados a um contexto artístico amplo, internacional, além das fronteiras do Museu Etnográfico de Berlim, instituição à qual pertencem.

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Sobre essa perspectiva, Martin declarou que “colaborou com muitos antropólogos e etnógrafos na preparação dessa exposição. Essa colaboração provou ser muito fértil, já que nos ajudou a abordar o papel do artista individual nas várias sociedades tanto quanto a entender as atividades especializadas dos artistas e as funções de suas linguagens formais e visuais. A propósito, nossa exposição acontece no momento em que muitos antropólogos começam a se perguntar por que eles tradicionalmente privilegiaram mito e linguagem em vez de objetos visuais” (apud Buchloh, 1989, p. 153, tradução minha).

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realizada em 1990, tomava como ponto de partida as diferenças de identidade nas constituições dos três museus de Nova Iorque que se propuseram a formar o panorama da década. Reuniram-se nesse projeto o Museum of Contemporary Hispanic Art,49 The New Museum of Contemporary Art e The Studio Museum of Harlem, representando, respectivamente, três segmentos da comunidade artística cuja produção não tinha destaque nas coleções dos museus tradicionais.50 Buscava-se, por meio do intercâmbio de curadores, coleções e públicos, encontrar uma maneira nova de ver e de ser visto, tendo em perspectiva um mapeamento do conceito de identidade. Na opinião de Márcia Tucker, então diretora do New Museum, havia também um confronto de histórias institucionais e expectativas frente ao sistema de arte que não poderia ser minimizado. O paradoxo – ou o constrangimento – era exemplificado com o relato de Tucker do encontro com a diretora do Studio Museum, cuja comunidade é composta predominantemente por afrodescendentes: Eu me lembro, Kinshasha [Holman Conwill], que quando você viu que a missão do New Museum era tentar rachar o cânone, ou seja, posicionar-se em oposição ou fora do mainstream, você fez uma piada: ‘Vocês querem se livrar do cânone justo no momento em que nós estamos prestes a entrar nele!’. Para mim, essa foi uma declaração importante, porque eu não tinha pensado nisso desse modo. Pensar em destruir o cânone é uma maneira de inadvertidamente falar por outros (Peraza, Tucker e Conwill, 1990, p. 11, tradução minha).

Essa preocupação, que atravessa todo o projeto interinstitucional de The decade show, pode ser resumida pela seguinte afirmação de Tucker: “Sinto, às vezes, que nós no New Museum estamos falando sozinhos quase o tempo todo, ou, o que é ainda pior, que algumas vezes temos a tendência de falar pelos outros” (p. 11, tradução minha).

O MoCHA, como era chamado, foi um museu alternativo inaugurado no SoHo, em Nova Iorque, durante a ascensão do multiculturalismo em 1985, como uma vitrine para a arte da América Latina e para a arte realizada pela comunidade de artistas latinos atuante nos Estados Unidos. Tendo sido auspiciada pela associação Friends of Puerto Rico, suas atividades promoviam, sobretudo, os artistas de ascendência latina que residiam nos Estados Unidos.

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Nos museus de referência, embora as coleções incluíssem artistas que pertenciam a grupos minoritários, como afrodescendentes e hispânicos, as obras eram submetidas a uma abordagem predominantemente formalista e eurocêntrica. Referimo-nos especialmente aos Metropolitan Museum of Art, Whitney Museum, Guggenheim Museum e Museum of Modern Art.

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9 Uma das consequências de Magiciens de la Terre foi, segundo um ponto de vista eurocêntrico, a multiplicação de eventos internacionais, sobretudo bienais, que passaram a ser realizados em países que não ocupam posição hegemônica no sistema de arte. Um desses eventos é a Bienal de Dacar, no Senegal, criada em 1992. De acordo com a autocrítica feita por seu diretor, Yacouba Konaté, curadores internacionais, membros de uma comunidade artística que não é nem senegalesa nem africana, selecionam obras tendo em vista a aprovação de seus colegas europeus. Desse modo, a partir de uma pré-validação eurocêntrica, a Bienal de Dacar tem representado uma etapa na trajetória de artistas africanos em direção aos mercados europeus e norte-americanos. Talvez tenhamos que reiterar aqui um questionamento anterior: qual é o verdadeiro local de um objeto? Se as máscaras africanas são matéria-prima para a investigação formal das esculturas cubistas de Pablo Picasso, hoje as obras de Willie Cole ironicamente levam ao circuito da arte um certo modo de apropriar-se de objetos produzidos em escala industrial para criar formas semelhantes às de objetos de culto das sociedades primitivas. Isso só é possível porque a inserção de objetos mágicos nos museus de arte já não causa surpresa e é até mesmo esperada quando a instituição assume algum tipo de posição crítica frente à hegemonia eurocêntrica. As esculturas feitas a partir de sapatos de mulher assemelham-se a pequenos totens com títulos que, graciosamente, evocam a função da arte da antiguidade.51 A cultura ocidental modernista apropriou-se de um conjunto de valores estéticos que pertenciam a tradições artísticas excluídas do cânone acadêmico. Gravuras japonesas, imagens populares, motivos da arte popular e ídolos africanos encontram-se entre os muitos objetos cujas soluções formais foram incorporadas ao repertório “universal” europeu. No século XIX, os tesouros levados do Egito por Napoleão rapidamente se tornaram fonte de inspiração para o estilo império, ao qual também foram agregados elementos ornamentais copiados dos monumentos da antiguidade clássica, que era muito apreciada na França pós-revolucionária. Além disso, existe desde o início do século XIX um tipo de primitivismo na obra de Gustave Courbet (1828-1885), que buscava, ao abandonar as Como exemplo podemos citar Black patent leather Venus with scarification (1993) e Pink leather Venus (1993). Os títulos, aparentemente descritivos, explicitam a relação “natural” que se estabelece entre qualquer objeto associado à moda feminina e a reiteração de um ideal clássico de beleza eurocêntrica – o da Vênus.

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convenções acadêmicas, produzir imagens de apelo popular. O tratamento das figuras deveria ser condizente com a escolha dos temas, geralmente extraídos das situações da vida simples e das atividades laborais de um segmento da sociedade que ainda não havia sido influenciado pelo processo de industrialização. O gosto pelo rústico francês em Courbet difere da atração que os românticos, seus contemporâneos, sentiam pelo exotismo dos povos histórica ou geograficamente remotos.52 Na atualidade, os trabalhos de artistas como Willie Cole e Fred Wilson são respostas irônicas à afirmação de que a transposição de objetos dos museus etnográficos para os museus de arte os integra a uma coleção de fetiches subjugados à precedência do gosto ocidental. McEvilley pressupõe que haja uma “interpretação desses objetos, longe das intenções originais de seus criadores, extirpando seus desígnios para integrá-los na intencionalidade do desígnio alheio, e fazendo o mesmo com seu gosto” e, consequentemente, “uma violação perpétua da integridade da cultura estrangeira” (2006, p. 180). Essa crítica à “violação perpétua da integridade da cultura estrangeira” reflete, ainda que não tenha sido essa a intenção de seu autor, um princípio modernista. A intenção original do artista está acima dos processos interpretativos desencadeados pelo contato com sua obra? Se admitirmos que essa é uma verdade inquestionável, o que fazer com objetos deixados por culturas sobre cuja estrutura social, dinâmica econômica, sistema de crenças religiosas, costumes alimentares ou visão de mundo não há informação? Poderiam ser mantidos em uma instituição artística ou etnográfica? Afinal, há sempre o risco de cometer equívocos durante sua classificação. O que fazer? Qual é a real validade desse suposto contexto original de produção de um objeto? Cabe ressaltar que o paradigma do cubo branco não é tão universal quanto parece. Inúmeras exceções ao modelo são justificadas pela necessidade de aproveitamento das estruturas arquitetônicas existentes para a instalação de um museu. A inauguração do Musée d’Orsay em Paris foi um marco no aproveitamento de estruturas arquitetônicas preexistentes para a acomodação e preservação de coleções públicas. A “aparência do velho” passou a ser considerada na museografia contemporânea. Talvez esse tenha sido um dos episódios mais significativos para a afirmação da identidade nacional dos museus no final do século XX.

Sobre a ética de Courbet, ver Schapiro (1996).

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A Estação d’Orsay, construída originalmente para receber os visitantes da Exposição Universal de 1900, foi transformada no museu inaugurado em 1986. Sua coleção é composta majoritariamente por obras realizadas na segunda metade do século XIX, instaladas no museu de um modo dinâmico e ruidoso, condizente com o espírito de uma estação ferroviária. A relação entre o período a que as obras pertencem e a ambientação do museu53 é determinante a ponto de justificar a composição de sua coleção a partir das coleções de três instituições: Museu do Louvre, Museu do Jeu de Paume e Museu Nacional de Arte Moderna.54 Existem atualmente museus e alas de grandes museus que explicitam a necessidade de contextualizar de modo espacialmente adequado uma coleção de arte. Entretanto, as marcas institucionais e o gosto que essas simbolizam também viajam, parecendo reviver o movimento civilizatório de integração do Ocidente europeu e norte-americano. Isso ocorre sobretudo com o movimento expansionista de museus como o Louvre e o Guggenheim. A construção de um complexo turístico em Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes, representa um passo na direção de um circuito globalizado de museus de arte. Os altos preços alcançados pela arte contemporânea têm levado alguns museus norte-americanos a adquirir obras com fundo comum, sendo previsto que a propriedade compartilhada de um acervo garanta a cada instituição o direito de expor, em períodos alternados, as obras que lhe pertencem parcialmente. Entretanto, o empreendimento de Abu Dhabi tem outras características. A participação dos museus do Ocidente no projeto de Abu Dhabi inclui o Louvre Abu Dhabi55 e o Guggenheim Abu Dhabi.56 Como contrapartida pela concessão de sua marca por trinta anos, o Louvre recebe algumas

Esse aspecto é questionado por Claude Lévi-Strauss: “Os arranjos internos procuraram sistematicamente a ruptura, quando todas as obras pediam uma apresentação que as colocasse em harmonia com o edifício; harmonias diferentes segundo os gêneros e os períodos, é certo, mas que, com um pouco de tato e gosto, poder-se-ia obter” (1988, p. 159).

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Parte da coleção desse museu foi para o Centro Georges Pompidou, que recebeu apenas as obras de artistas nascidos após 1870. Esse critério de distribuição, meramente cronológico, não favorece as obras de alguns artistas, que, embora nascidos após 1870, não podem ser plenamente compreendidos sem uma ampla visão de seus antecedentes. Por outro lado, há artistas na coleção do Musée d’Orsay cujas obras são imprescindíveis para a compreensão da relação entre arte e cultura popular que se consolida no século XX.

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O prédio projetado pelo arquiteto Jean Nouvel deverá ter 8.600 m2.

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O projeto é de Frank Gehry, o mesmo do projeto do Guggenheim em Bilbao, na Espanha.

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recompensas financeiras.57 O Louvre Abu Dhabi deverá abrigar uma coleção universal, ou seja, formada por obras de todos os períodos e regiões geopolíticas, incluindo o mundo islâmico. Como parte do acordo, o governo de Abu Dhabi investe na remodelação de uma ala do Pavilhão de Flore para a exposição de arte internacional.58 As vantagens políticas e econômicas são bilaterais e pertencem ao momento histórico em que a visibilidade positiva dada às ações culturais do mundo islâmico na Europa acompanha a tendência geral de abordar a produção artística como um patrimônio transnacional e a-histórico.59 Nessa direção, outras ações importantes são a construção de uma ala específica para a coleção de aproximadamente 10 mil objetos de arte islâmica pertencentes ao Museu do Louvre a partir de uma doação da Arábia Saudita e da inauguração da Jameel Gallery (Galeria de Arte Islâmica) do Victoria and Albert Museum, em Londres. Nesses espaços, uma imagem da sofisticação cultural do mundo islâmico deve substituir os estereótipos difundidos pelos meios de comunicação de massa do Ocidente.

10 Inicialmente, quando consideramos a multiplicidade de contextos para a experiência artística na atualidade, admitimos que a passagem de uma perspectiva cosmopolita para outra, universalista, nas proposições artísticas da passagem do século XIX para o XX tem sido superada por uma nova visão pluralista, definida por Hal Foster como a que dá origem a um estado no qual tudo é igualmente sem importância. Acontece um estado de abolição das relações hierárquicas que, materializadas na realização de eventos públicos, haviam fundamentado um modo de ver no qual as obras de arte eram apreciadas a partir de sua localização numa escala de valores hegemônicos – um modo de ver, portanto, universalizante. Consequentemente, na medida em que a definição da arte na modernidade, segundo um conjunto de pressupostos plásticos universalizantes, passa a compreender gradualmente Essas incluem o pagamento de 520 milhões de dólares pelo uso do nome Louvre por 30 anos, 747 milhões de dólares pagos desde o início de 2007 pelo empréstimo de obras e consultoria administrativa para a gestão do museu em Abu Dhabi e a doação de 32,5 milhões para a remodelação do Pavilhão de Flore (Riding, 2007).

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Ao ser reaberto, em 2010, terá o nome de Sheik Zayed bin Sultan al-Nahayan, fundador e governante dos Emirados Árabes falecido em 2004 (Riding, 2007).

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Essa discussão não pode ignorar os problemas da pilhagem ou do contrabando de obras de arte que assombram governos e administrações de grandes museus dos Estados Unidos e da Europa.

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a existência de uma pluralidade de funções e definições para o fenômeno artístico, seu potencial hegemônico é enfraquecido. Esse movimento não é unidirecional, no sentido de uma expansão cósmica das instituições artísticas. Entretanto, tem proporcionado uma variedade de abordagens da arte – e de sua contextualização em eventos e publicações – que contribuem para a contínua ampliação de seu universo conceitual. Sobre o modelo de exposição – ou sobre o ambiente que esse configura –, as críticas a um certo modelo hegemônico elaboradas a partir da segunda metade do século XX pressupõem a existência de um modelo único a ser substituído por outro ou outros. Pressupõem ainda que esse mesmo modelo seja a síntese evolutiva de todos os demais que o antecederam. Partindo desse princípio, a crítica tem a necessidade de justificar a divergência, assim como sua capacidade de se adequar melhor à demanda da produção artística heterogênea em constante colisão em museus e galerias que se propõem a dar visibilidade à arte globalizada. O dilema prevalece: qual é o ambiente ideal para expor uma obra de arte? Inserida em um circuito no qual são expostos, além de obras de arte, valores culturais que geram um ambiente de aceitação para produtos imprescindíveis para um determinado modo de pensar e agir, a arte torna-se também um ícone associado a um modo de ser. Se o trânsito e o comércio de obras de arte são inevitáveis, quais as características de um contexto ideal para a exibição de obras de arte? Para definir esse contexto, é preciso considerar que ele depende do conceito de obra de arte que adotamos. Podemos partir da concepção mais combatida na atualidade, a de que a definição de obra de arte se restringe a certos objetos produzidos conforme a reprodução de um cânone consolidado. Essa definição excludente facilita o juízo de valor e a delimitação de uma fronteira que separa o território da arte dos demais. Embora fácil, essa definição gera inúmeros problemas. O primeiro, e mais importante, é que, para definir os antecedentes que legitimam a realização de uma determinada obra de arte, é necessário escolher uma tradição artística à qual seu sentido estará vinculado. A procedência de uma tradição artística implica a valorização absoluta de um único sistema cultural. Os demais, ainda que o tenham antecedido cronologicamente, são relegados a posições periféricas. Será, então, a partir de uma visão prototípica que as exposições serão configuradas. A crítica reincidente sobre a arquitetura do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque é um exemplo de que a capacidade que uma instituição apresenta para

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transformar suas estratégias museológicas em paradigmas internacionais não depende da duração histórica dessa mesma instituição no cenário artístico transnacional. É a definição de obra de arte que vai determinar se um objeto é visto no circuito de exposições em museus ou galerias, pertence à coleção de uma instituição artística e tem sua contribuição para a compreensão da história da arte abordada na literatura da área. Um mesmo objeto pode ser classificado de modos diferentes, de acordo com a função que, na perspectiva de quem o julga, seja predominante. Por isso, temos assistido nos últimos vinte anos a uma modificação no modo de expor para adequá-lo ao que é exposto. Em algumas situações, muda a maneira como as obras de uma mesma coleção, de uma mesma instituição são expostas. Em outros casos, criam-se novas instituições a partir de conceitos diferenciados, autônomos, que não se adequam às fronteiras institucionais a que se opõem.

Referências ARAÚJO, Emanoel. “Introdução”. Expressões do corpo na escultura de Rodin, Leopoldo e Silva, De Fiori, Brecheret, Bruno Giorgi. Catálogo de exposição. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1995. ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna – do iluminismo aos movimentos contemporâneos. Trad. Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BAZIN, Germain. The museum age. Trad. Jane van Nis Cahill. Nova Iorque: Universe, 1967. BUCHLOH, Benjamin H. D. “The whole Earth show, an interview with Jean-Hubert Martin”. Art in America, mai. 1989, s. p. CRAIGHEAD, Linda (coord.). The decade show – frameworks of identity in the 1980s. Catálogo da exposição. Nova Iorque: Museum of Contemporary Hispanic Art/ The New Museum of Contemporary Art/ The Studio Museum in Harlem, 1990. CRIMP, Douglas. “The postmodern museum”. Parachute, mar.-jul. 1987, n. 46. ------. On the museum’s ruins. Cambridge/ Massachussetts/ Londres: The MIT Press, 1993. FOSTER, Hal. “The problem of pluralism”. Art in America, jan. 1982, pp. 9-15. HEARTNEY, Eleanor. “An adieu to cultural purity”. Art in America, out. 2000, s. p. LÉVI-STRAUSS, Claude. “Orsay: a moldura e as obras”. Trad. Rodrigo Naves. Novos Estudos, 1988, n. 20, pp. 159-62. McEVILLEY, Thomas. “Doctor lawyer Indian chief: ‘primitivism in the 20th century art’ at the Museum of Modern Art in 1984”. Artforum, nov. 1984, pp. 54-61. ------. “Abertura da cilada: a exposição pós-moderna e Magiciens de la Terre”. Trad. Xênia Roque Benito. Revista Arte & Ensaios, EBA/UFRJ, 2006, pp. 177-83.

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Academia e tradição artística

Sonia Gomes Pereira UFRJ

Há algum tempo venho trabalhando com a chamada arte acadêmica, tanto no Brasil quanto na Europa. A motivação para este trabalho tem sido minha ligação com o Museu D. João VI, da Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ).60 Na verdade, meu interesse maior ao tomar esse tema como estudo é tentar identificar os princípios estéticos e artísticos que constituíram as fundações da ideologia e da prática acadêmicas e analisá-los por meio de uma perspectiva renovada. Ao usar a palavra renovada, refiro-me a duas premissas teóricas importantes. Uma delas é, certamente, a inserção deste estudo no grande movimento de revisão historiográfica por que tem passado a arte do século XIX desde pelo menos a década de 1980, recusando a crítica modernista, que a julgou quase que por completo abominável, à exceção das obras que anunciavam a modernidade futura. Meu desejo, porém, não fica por aí. A outra premissa importante referese à tentativa de pensar a ideologia e a prática acadêmicas em confronto com vários problemas da crítica contemporânea. Pretendo confrontar os conceitos que venho identificando como essenciais para o entendimento do Sabemos que a antiga Academia Imperial de Belas Artes reuniu um acervo considerável desde sua abertura em 1826. Em 1937, grande parte dessa coleção passou a constituir o Museu Nacional de Belas Artes. Uma pequena parte – em geral material didático e exercícios escolares – permaneceu na então chamada Escola Nacional de Belas Artes, em suas salas de aula e ateliês. Após a transferência da Escola para a Cidade Universitária na Ilha do Fundão em 1975, esse acervo foi reunido, dando origem ao Museu D. João VI, da EBA da UFRJ, em 1979. Desde 2005, coordeno o projeto de revitalização do Museu D. João VI, apoiado pela Petrobras, responsável, basicamente, pela inserção do inventário informatizado do museu no site http://www.museu.eba.ufrj.br, pela higienização de todo o acervo, pela recuperação de boa parte do acervo de pinturas e pela nova concepção das reservas técnicas que possibilitam o acesso do público.

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universo acadêmico – as noções de desenho, composição, estilo, tipologia, entre outras – com as leituras e os problemas contemporâneos da história da arte. Logo, não se trata apenas de tentar me aproximar ao máximo de como pensavam e como agiam os artistas acadêmicos do século XIX, mas de abordar suas questões inserindo-as no debate contemporâneo.61 É, portanto, nesse cenário mais amplo que desejo examinar a noção de tradição artística ou, mais exatamente, de tradição pictórica e da forma como ela foi construída na arte ocidental a partir do renascimento.

A importância do conhecimento da tradição na formação do artista Sabemos que o ensino acadêmico preocupava-se primordialmente com a introdução do aluno ao conhecimento da grande tradição artística europeia. Isso fica muito claro nos discursos dos acadêmicos, como Félix-Émile Taunay e Manoel de Araújo Porto-Alegre.62 Essa questão também aparece na prática intensiva de cópias no processo de ensino: primeiro das estampas, depois das moldagens e finalmente de obras pintadas ou esculpidas. Os alunos ganhadores do Prêmio de Viagem da Academia tinham, entre outras atribuições, a tarefa de fazer cópias dos grandes mestres europeus – tarefa duplamente importante. Por um lado, eram exercícios essenciais para sua própria formação: ao copiarem, estavam aprendendo como os grandes pintores resolveram inúmeros problemas técnicos, compositivos e iconográficos na abordagem de seus temas. Por outro lado, essas cópias, ao serem enviadas para o Brasil, constituíam material didático para os alunos que não tinham a chance de viajar, replicando, portanto, a possibilidade de entendimento da tradição artística desde o renascimento. O Museu D. João VI possui várias dessas cópias pintadas. É muito interessante observar as escolhas feitas em termos de obras e artistas a serem copiados. Predominam os mestres italianos – como Rafael, Ticiano, Veronese, Tintoretto, Cagnacci, Zampieri e Barbieri –, mas aparecem também franceses – Lebrun, Pagnest, Chardin, Laurens, Gros, Ary Scheffer –, o flamengo Rubens, o holandês Frans Hals, o espanhol Murillo e o inglês Gainsborough. Do ponto de vista cronológico, destacam-se os pintores do século XVI, mas Para conhecer os trabalhos mais diretamente relacionados às discussões deste ensaio, cf. Pereira (2003, 2005, 2007, 2008a, 2008b, 2008c e 2008d).

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Ambos foram diretores da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro: Félix-Émile Taunay, de 1834 a 1851, e Manoel de Araújo Porto-Alegre, de 1854 a 1857.

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se encontram também artistas dos séculos seguintes e até mesmo do XIX – artistas contemporâneos românticos. Podemos assim observar que, ao contrário do que usualmente se pensa, há enorme diversidade entre as fontes escolhidas para cópias. Representantes de diferentes tendências, mesmo dentro das diversas escolas regionais da pintura europeia, essas cópias nos colocam um problema importante. Sabendo da insistência das academias na adesão à doutrina clássica, como entender a surpreendente escolha eclética de obras e mestres tão diversos como Rafael e Rubens, Lebrun e Veronese, Frans Hals e Gros, só para citar alguns exemplos?

Doutrina clássica e diversidade artística: a construção do conceito de tradição Na verdade, artistas e teóricos foram obrigados desde o renascimento a conviver e tentar conciliar o ideário clássico com tendências artísticas muito diferentes. Mesmo partindo de alguns pontos consensuais – a concepção da arte como imitação da natureza e a excelência dos modelos dos Antigos –, eles tinham de reconhecer a diversidade da produção artística não apenas em seu próprio tempo – como, por exemplo, entre Rafael e Michelangelo –, mas também entre os Antigos. Isso constituía um grande problema: como organizar essa diversidade óbvia se os valores da arte eram eternos e imutáveis? A concepção que temos atualmente do longo período que vai do século XVI ao XIX como uma sequência de estilos – renascentista, maneirista, barroco, rococó, neoclássico – é uma construção a posteriori da história da arte.63 Não era dessa maneira que os artistas e teóricos desse período pensavam. Quase todos os artistas se incluíam na tradição clássica, mesmo aqueles que hoje nos parecem anticlássicos.64 Se o classicismo se apresenta tão dogmático em termos doutrinais, na prática artística ele sempre foi elástico e flexível, tendo como solo comum O conceito de barroco foi introduzido a partir do final do século XIX, sobretudo com a obra de Heinrich Wölfflin. O de maneirismo é bem posterior, tendo surgido em meados do século XX, especialmente com os estudos de Walter Friedlaender. Somente a partir do romantismo é que os movimentos se autodenominaram de imediato. A escrita de Baudelaire, no Salão de 1846, é uma evidência disso: “Quem diz romantismo, diz arte moderna, isto é, intimidade, espiritualidade, cor, aspiração pelo infinito, expressas por todos os meios de que dispõem as artes” (apud Lichtenstein, 2006, p. 96).

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“Muito surpreso ficaria Bernini se lhe dissessem que ele se afastara do classicismo; foi barroco sem ter consciência disso! Só Borromini, Guarini, Caravaggio e Pietro da Cortona tiveram a vontade de transgredir normas” (Bazin, 1989, p. 49).

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a mediação dos modelos antigos. A construção do conceito de tradição artística, então, corresponde a essa necessidade de resolver o problema da dualidade entre um ideário que se acreditava eterno e imutável e uma prática artística diversificada e, em muitos casos, antagônica. Isso posto, vamos tentar verificar os elementos constitutivos do conceito de tradição, que foi forjado na mesma época do surgimento das academias na Itália do século XVI. Seus desdobramentos foram significativos tanto na Itália quanto na França a partir do século XVII, resultando num paradigma que norteou todo o universo acadêmico até o século XIX e o início do XX. Quais seriam seus traços mais evidentes?

A questão da temporalidade: artistas antigos e modernos Nessa concepção de tradição artística, a divisão cronológica mais significativa é feita entre os Antigos – isto é, os artistas da antiguidade grecoromana – e os Modernos – grupo no qual se incluem todos os mestres a partir do renascimento. Trata-se, portanto, de duas longas durações, separadas pelo que se considerava a barbárie da Idade Média.65 No interior dessas duas grandes categorias temporais – Antigos e Modernos –, prevalece, quase de forma unânime, a concepção de um tempo unitário, concebido como um todo orgânico – mesmo que a ele seja aplicada a ideia de ciclo vital, isto é, a concepção de que a arte segue a mesma trajetória dos seres vivos, atravessando o ciclo evitável de infância/ maturidade/decadência. Vamos examinar melhor essa questão da percepção temporal no grupo dos Modernos. Sabemos que o livro de Giorgio Vasari de 1550 – As vidas dos mais excelentes arquitetos, pintores e escultores italianos – era dividido em duas partes: a primeira dedicada à arte antiga e a segunda com biografias de artistas basicamente de Florença e Roma no Trecento e no Quattrocento. Aos dois grandes períodos em que dividiu a arte, Vasari aplicou o modelo explicativo da evolução biológica. Assim, na história da arte antiga, a infância estava no Egito e na Mesopotâmia; na Grécia, as artes tiveram um desenvolvimento extraordinário, mas a perfeição da maturidade estava reservada a Roma; seguindo-se, depois, a decadência com os bárbaros. Já Nunca é demais lembrar que a arte no Ocidente “nasceu de um impulso que destruiu a civilização antiga e tornou-se uma mistura conflitual entre a romanidade e o mundo bárbaro”. O Renascimento entra nesse conflito francamente a favor da romanidade e querendo exorcizar o mundo bárbaro. “Tratava-se de retomar a evolução da civilização, para eles interrompida durante longos séculos, entre Constantino e a Toscana do século XIII” (Bazin, 1989, pp. 32-3).

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para a história de seu próprio tempo, Vasari estrutura a maniera moderna da seguinte forma: a infância começou em 1250 e se desenvolveu ao longo do Trecento; o período da maturidade começa com o Quattrocento, mas é no Cinquecento que a perfeição é alcançada, sobretudo com Michelangelo, que é considerado o modelo insuperável, mais elevado na escala de perfeição do que os próprios Antigos (Vasari, 1965). Ainda assim, é importante ressaltar que, apesar da aplicação interna do conceito de evolução, prevalece a noção de que os chamados artistas modernos constituem um conjunto único, isto é, uma longa duração de artistas que foram tocados pela novidade do renascimento e a ela deram continuidade.

O problema do espaço: a expansão geográfica da tradição É muito interessante observar a incorporação progressiva de um número cada vez maior de artistas, com suas variadas tendências e origens, ao núcleo original bem reduzido daquilo que se considerava a maniera moderna. Esse processo já aparece no próprio Vasari. Conforme citado, a primeira edição de seu livro, em 1550, arrolava apenas artistas de Florença e Roma. Dezoito anos depois, na segunda edição, de 1568, Vasari não apenas incluiu artistas novos, nascidos entre 1550 e 1567, como incorporou várias outras cidades da Itália, fazendo um quadro muito mais completo da arte italiana de seu tempo. Vários autores posteriores a Vasari – sempre seguindo seu método biográfico – trataram de ampliar o repertório dos artistas – tanto na Itália como no resto da Europa – inscritos no rol de modernos que mereciam ser incluídos nessa tradição.66 O resultado dessa ampliação geográfica – ainda compreendida prioritariamente como um todo orgânico – pode ser verificado na obra de Pietro Bellori – Vidas dos pintores, escultores e arquitetos modernos –, publicada Germain Bazin (1989) traça um extraordinário panorama dessa literatura dos séculos XVI e XVII, evidenciando a progressiva incorporação de um espectro mais amplo não apenas de artistas italianos, mas também dos estrangeiros. Karl van Mander, por exemplo, escreveu numerosas obras de caráter enciclopédico tratando dos artistas da Itália e do resto da Europa; as informações biográficas sobre a maioria dos pintores do Norte nos foram transmitidas exclusivamente por ele. Joachim Sandrart concebeu uma verdadeira enciclopédia da arte: bastante eclético, admitia todos os estilos; em sua obra, há biografias de artistas da antiguidade e de seus contemporâneos, aparecendo inclusive o espanhol Murillo. O isolamento da Espanha nesse quadro cultural é surpreendente. O pintor Francisco Pacheco escreveu L’arte de la pintura, em que trata de Rubens e de Velásquez, seu genro, em 1649, mas a obra não teve grande repercussão fora da Espanha e Velásquez permaneceu desconhecido no resto da Europa até o século XIX.

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em 1672. Bellori preocupa-se com o conjunto de artistas modernos sem considerar suas cronologias e nacionalidades. Analisa largamente os italianos: elogia Rafael, Michelangelo, Giulio Romano, Dominiquino, Lanfranco, Guido Reni e os Caracci, mas condena violentamente Caravaggio, acusado de tentar destruir a pintura ao propor a cópia da natureza tal como ela é, sem o processo de escolha em busca do belo ideal. Trata também de alguns flamengos, como Rubens e Van Dyck, assim como de franceses – especialmente Poussin, que considera o artista supremo, aquele que melhor corresponde ao gosto clássico (Bellori, 1672). Assim, a tradição está sendo entendida nesse momento como um grande conjunto bem mais amplo do que o desenhado por Vasari, independentemente da cronologia e da geografia, mas unido pelo italianismo. A mesma concepção de tradição artística estendida geograficamente pode ser encontrada entre os acadêmicos franceses do século XVII. Roger de Piles, por exemplo, coloca os venezianos acima de Rafael e admite Caravaggio. Poussin lhe parece demasiadamente preso à antiguidade e pouco humano. Elogia Rubens, dando-lhe um lugar central por ter atingido o perfeito equilíbrio, colocando-o acima, inclusive, de Ticiano, e comenta sobre Rembrandt, em quem descobre afinidades com Ticiano (De Piles, 1681). Fica bastante evidente pela leitura desses autores que se está instalando uma concepção ampla de cultura artística europeia, fundada na experiência italiana do renascimento e referendada pelo modelo dos Antigos.

O aparecimento da noção de escolas artísticas regionais no interior do conceito de tradição artística No entanto, é importante evidenciar que, nessa mesma época, a noção de escolas artísticas regionais estava se formando no interior da ideia mais ampla de tradição artística. Os acadêmicos franceses – entre eles o já citado De Piles – historicizam a escola francesa de pintura, localizando suas origens, de maneira bastante significativa, na chegada dos artistas italianos a Fontainebleau. Em relação à arte italiana, vários autores identificaram as diferentes escolas regionais: romana, florentina, lombarda, veneziana, bolonhesa, usando frequentemente o nome de ultramontana para a arte estrangeira. Esse sistema de escolas foi fixado definitivamente pelo padre Lanzi no final do século XVIII. Luigi Lanzi, em sua Storia pittorica dell’Italia, tentou criar grandes sínteses, definindo os estilos inerentes aos artistas, às épocas e às escolas (Bazin, 1989).

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É exatamente esse entrelaçamento entre as noções de tradição artística e de escolas regionais que vemos, de forma cristalina, no discurso de FélixÉmile Taunay, diretor da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro de 1834 a 1851. Não há dúvida, para Taunay, da importância dos Antigos: “A raça helênica, a mais favorecida entre todas as associações humanas, tanto pela pureza de sua origem como pelo clima em que floresceu” (Ata, 1837). Ou ainda: “Huma nação houve, a grega, que excedeu e excede a todas na cultura das Belas Artes” (Sessão pública, 1845). Taunay também organiza toda a diversidade da produção artística dentro e fora da Itália, caracterizando as diversas escolas artísticas modernas e seus principais mestres: Seja-nos suficiente mencionar Leonardo da Vinci, Peruggino, Giorgione, precursores das escolas de pintura florentina, romana e veneziana, como della forão fundadores verdadeiros os Michel Angelo Buonarroti, Raphael Sanzi e Tiziano Vecelli. Todos três influirão umas sobre as outras. A escola romana pedio emprestada muita força do desenho à florentina e alguma sciencia do colorido a veneziana: nem esta deixou de se aperfeiçoar à vista das produções rivais: entretanto, as três conservam um caráter bem distinto, análogo ao das individualidades que presidião aos seus destinos. Quem representasse fielmente as feições moraes de Michel Angelo, de Raphael, de Tiziano daria a conhecer as qualidades notáveis das suas escolas: o primeiro, triste, solitário, de gênio altivo, austero e independente, apaixonado pelo grande; o segundo, tenro, dócil, amável, apaixonado pelo belo; o terceiro alegre, social, brilhante, apaixonado pela harmonia exterior e relativa. Temos a indicação dos três merecimentos especiais, força de desenho e de claro escuro na escola florentina, pureza de formas e de tons na escola romana, brilho, suavidade e bela fusão de cores na escola veneziana... Da escola romana nasce a alemã contemporânea; da florentina, a qual se liga principalmente a estatuária moderna, nasce a escola francesa com mestre Rosso e João Cousin; a veneziana modifica felizmente a flamenga e se infunde na hespanhola. Todas três ellas renascem com novo esplendor na escola bolonheza. Annibal Carracci, chefe desta, recebeu da natureza antes disposições enérgicas que brandas, e provavelmente teria imprimido outro sello que não a eclética maneira geral dos seus adeptos, se não tivesse por collaboradores os seus irmãos e até por mestre o seu primo Luiz Carracci, de gênio mais flexível e suave; entretanto, addicionou aos meios da arte o da magia dos effeitos geraes da luz, exagerado logo

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depois pelo Caravaggio. A mais bela expressão da escola de que tratamos reside nas obras de Domenico Zampieri, dito o Domenichino, victima durante a sua vida da inveja e da calunnia: ao resto ella certamente offerece a colecção mais numerosa de nomes ilustres da história das bellas artes: o Albano, o Guido, o Guercino, o Pesarese, os Procaccini, e tantos outros; alguns delles fundarão novas escolas mais ou menos chegados nos três tipos primitivos: e não devemos esquecer a genovesa, nem tampouco a napolitana, em certo sentido companheiro da hespanhola (Sessão pública, 1842).

Finalmente, Taunay, como os teóricos acadêmicos franceses, estabelecia uma espécie de genealogia em que a herança dos gregos antigos passava para os italianos do renascimento e depois para a França a partir do século XVII. Nessa herança, poder-se-ia vislumbrar um possível futuro para uma escola brasileira de pintura: Temos pois estes três povos, o grego, o italiano e o francês entre os quais nasce, se desenvolve e se conserva o bom gosto artístico [...] estudando profundamente as feições salientes das suas nacionalidades e conferindoas com o caráter brasileiro [...] este povo [...] deve se sobressair e fazer-se notável no mundo civilizado (Sessão pública, 1844).

Fica aqui bastante evidente o uso da constituição das escolas regionais na integração das nações europeias ao italianismo predominante e na academia brasileira no século XIX. Para finalizar, é importante assinalar a tensão crescente na coexistência dessas duas ideias: a abrangência histórica e geográfica do conceito de tradição e o nacionalismo crescente que vai impregnar a noção de escolas regionais. Um exemplo notável dessa polêmica aparece no texto de Roberto Longhi, escrito entre 1913 e 1914 e só publicado postumamente em 1980: Breve mas verídica história da pintura italiana. Em sua conclusão, Longhi sentencia: Com os poucos nomes [...] de Caravaggio e Preti, de Tiepolo e Giordano [...] encerra-se a história da arte italiana [...] Da pintura italiana! Só faltava mais essa tristeza! Que direito ou dever tem a pintura de se dizer italiana! Que italianidade específica vocês sentiram em Pollaiolo, em Ticiano ou em Caravaggio? Quero dizer que isto também deve ficar claro para vocês: ‘a importância nula das características étnicas na arte’. A etnicidade é um dos elementos usuais que servem aos falsos críticos para ambientar – dizem eles – a arte, já que não a sabem interpretar. Mas os artistas estão fora de qualquer ambiente, a não ser aquele puramente artístico; ou seja, eles se dão as mãos para formar a cadeia de tradição histórica; mas esse simples

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contato basta pra elevá-los magicamente muitos palmos acima do solo da terra natal, onde estão a agricultura, a indústria e o comércio – isto é, acima da etnicidade e do ambiente [...] Em suma, não é preciso que o espírito se deixe manietar pela geografia ou pela topografia [...] Pois bem: a história da arte italiana continuou no exterior, e esse simples fato demonstra que o belo solo italiano não tinha mais o que fazer por ela (2005, pp. 114-5).

Esse texto polêmico de Longhi 67 revela, de forma exemplar, a permanência do conceito de tradição artística ainda no início do século XX, mesmo que ele esteja sendo usado, agora, em nome de outro valor – o da autonomia da arte.

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Luciano Migliaccio (2005), em seu posfácio à edição brasileira do livro de Longhi, chama a atenção para o fato de esse texto iconoclasta ser uma obra da juventude, que revela, sobretudo, uma grande insatisfação com a situação da crítica e da história da arte na Itália da época. Invoca, inclusive, o fato de Longhi não tê-lo publicado em vida. Contudo, a grande circulação do texto ainda mimeografado revela a força dessa polêmica e – para o que nos interessa diretamente neste ensaio – a permanência do conceito de tradição histórica da arte europeia no início do século XX.

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Álbum de família: coleções e museus de arte

Vera Beatriz Siqueira UERJ

Por volta de 1523, Il Parmigianino pinta o Retrato de um colecionador, uma obra um tanto enigmática, mas significativa. A figura severa, em contraposto, do colecionador aparece entre duas esferas nitidamente diversas: a natureza, ao fundo, e os objetos culturais sobre a mesa. Entre essas, porém, uma relação de continuidade se insinua, questionando a oposição mais óbvia. Na formação rochosa à esquerda, um alto relevo mostra Vênus, Marte e Cupido. Entre um reino e outro, surge o colecionador, igualmente parte da natureza e dela diferenciada por suas vestes pesadas e pose austera, mas especialmente por trazer em sua mão um livro ricamente encadernado, obra da inteligência e da habilidade humanas. À sua frente, no primeiro plano, objetos esparsos sintetizam o ideal colecionista de então: moeda, medalhões, estatueta de Vênus. Nessa descrição do personagem central de um gabinete de curiosidades, estabelece-se a concepção da base comum de colecionador e naturalista, típica desse período. Os gabinetes se estruturam como um repertório enciclopédico de objetos, no qual o tempo é esvaziado em prol da apresentação simultânea de curiosidades naturais, obras de arte antigas, artefatos recentes, instrumentos técnicos, autômatos. Porém, curiosamente, esse apanhado aparentemente disparatado de objetos, se não possui um sentido propriamente histórico, começa a delimitar uma reflexão sobre a sucessão temporal de objetos naturais, esculturas antigas, obras recentes e instrumentos mecânicos, como propõe Horst Bredekamp, apresentando visualmente essa possibilidade de elo histórico entre uma esfera e outra. Segundo o autor, ao erguerem um “inventário de habilidades técnicas e artísticas do homem, em duas áreas distintas e separadas – escultura antiga e máquinas modernas” (1995, p. 9) –, os gabinetes de curiosidades deram origem a um tipo de reflexão histórica

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dinâmica, mostrando visualmente que natureza e arte possuíam histórias. Assim, essas coleções se tornaram momentos cruciais na história intelectual e cultural no início da modernidade. No retrato de Il Parmigianino, a repetição da Vênus no relevo na rocha e na pequena estatueta sobre a mesa aponta para essa transição: de forma seminatural a objeto colecionável, pequeno e caprichoso como o anel que porta no dedo mínimo da mão direita (anéis são os primeiros objetos colecionáveis); da Vênus forma ideal, eterna e absoluta à Vênus artefato, construída pela habilidade humana e inserida entre outros objetos. Tudo justificado pela presença do livro, objeto símbolo da criação do intelecto humano. A conversão da arte em objeto de coleção, especialmente por meio das esculturas e pinturas sobre tela de encomenda privada, corre paralela à sua própria transformação em objeto estético. O colecionador, identificado com a figura do expert de formação humanística, desempenha papel preponderante nesse processo. É certo que em outras culturas, como na China da Dinastia Han (206 a.C. a 220 d.C.), se não existia a figura do colecionador com seus contornos ocidentais e modernos, já encontramos o estímulo à contemplação privada de objetos de arte. Os aristocratas, com responsabilidades públicas, tinham o direito de se recolher à contemplação privada de objetos artísticos. Havia obras extremamente requintadas, feitas especialmente para a meditação privada, como as famosas pinturas de rolo. Na realidade, o que chamamos hoje de pintura chinesa, cujo nascimento geralmente é atribuído a Gu Kaizhi, ativo na corte chinesa entre 345 e 400, diz respeito a essa tradição. Seus rolos, como a célebre representação de A ninfa do rio Luo, inspirada em poema antigo, não apenas eram compostos com extremo cuidado e refinamento intelectual, como se destinavam a pessoas especiais, em momentos especiais, fora das cerimônias públicas. Os rolos de seda contendo poemas, letras ou pinturas eram geralmente trocados entre os membros da elite da sociedade mais letrada do mundo, dando aos espíritos educados a possibilidade de apreciar essa arte que se percebia como superior. Outros objetos também eram feitos para a contemplação privada dos nobres, como os boshan (cuja tradução literal é “montanha de fadas”) – vasos em formato de montanhas –, os azulejos pintados, os cavalos de bronze, as figuras de terracota ou jade, entre outras peças cujo destino comum era o túmulo de seus proprietários. Toda uma rede de artesãos e artistas se ocupava da confecção dessas obras, que vieram a formar uma rica coleção funerária.

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A mais conhecida de todas é a do túmulo do imperador Qin, falecido em 210 a.C., no qual foram encontradas as estátuas de terracota em tamanho natural de 6 mil guerreiros, perfeitamente individualizados. Se o caráter essencialmente íntimo da arte e da coleção chinesa difere do crescente sentido público dos gabinetes de curiosidades – alguns deles eram abertos ao público mais geral e chegavam até a cobrar ingresso –, há nessa comparação algo importante a destacar: em ambos os casos, o contexto do colecionismo é central para a compreensão da arte como objeto estético comparável à poesia ou à retórica. Também no mundo árabe, em particular na Pérsia, o ápice da produção das iluminuras se deu quando o gosto por livros ilustrados se transformara no desejo de possuí-los sob a forma de álbuns e fólios. No século XV, sob forte influência da pintura chinesa, muitos dos artistas iluminadores e calígrafos produziam diretamente sob encomenda de monarcas bibliófilos, em cujas bibliotecas trabalhavam. As várias cópias dos Shahnamas – livros dos reis, que narram a história persa de forma épica – mostravam como a produção também se destinava a um público burguês local e à exportação. O escritor contemporâneo Orhan Pamuk fala, em seu romance Meu nome é vermelho, desse universo das iluminuras cercado de mistério e magia durante o Império Otomano. A morte de um dos iluminadores, a encomenda de uma obra secreta para o sultão, um romance proibido, os múltiplos pontos de vista da narração: tudo enfatiza a névoa de encantamento e segredo que cerca a história desses livros ilustrados. É um mundo de poesia contemplativa e prazeres íntimos que se vê fatalmente ameaçado pela influência do realismo renascentista italiano e de sua relação com a exterioridade. Podemos ainda falar em coleções de objetos artísticos na cultura dos povos de Papua Nova Guiné, que desenvolvem o Kula, um complexo sistema cerimonial de troca de colares e braceletes entre ilhas vizinhas. Aquele que conseguisse atrair e guardar uma grande quantidade de objetos de valor se tornava particularmente famoso na região. Para tal, desenvolveram também uma arma em especial. As canoas Kula, nas quais esses homens circulavam, eram adornadas com as famosas tábuas de proa, de decoração luxuriante, cuja função era causar espanto e desmoralizar o habitante da ilha em que a embarcação aportava, fazendo seus habitantes entregarem mais anéis e braceletes, em quantidade e valor superior ao que comumente entregariam – recurso mágico que serve, portanto, para estimular as trocas e incrementar o valor das posses de certos homens.

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Em todos os casos citados, colecionadores italianos, nobres chineses, bibliófilos persas ou melanésios do sistema Kula exercem uma função cultural importante: a posse privada é parte essencial no processo de transformação da arte em objeto estético. Georg Simmel, ao tratar do problema do valor, fala da posse como a realização de um desejo por um objeto que oferece resistência a ser possuído, seja por seu elevado valor de mercado, seja pelo elevado valor cultural ou ritual que o cerca. A fonte do valor do objeto seria justamente essa dificuldade de adquirilo, que produz um efeito de encantamento, de ordem mágica, sobre o sujeito que o deseja. Georges Bataille, por sua vez, fala da perda como um elemento essencial das relações comerciais em geral e, em particular, da aquisição de obras de arte. Seu conceito de despesa improdutiva destaca a propriedade positiva da perda na atribuição do valor significativo de um objeto. A perda – ou sua possibilidade – seria a função última da própria riqueza. No mundo moderno, a fortuna da nobreza deveria ser sacrificada em despesas sociais improdutivas, como festas, espetáculos, jogos e arte. Mesmo no mundo burguês de controle racional de gastos e de privilégio da noção de utilidade, são as despesas improdutivas que, segundo o autor, asseguram alguma possibilidade de liberdade e transgressão. O objeto artístico valeria, portanto, tal como os anéis e colares da troca cerimonial melanésia ou as riquezas trocadas pelos índios norte-americanos dentro do contexto das potlatchs analisadas por Marcel Mauss e citadas por Bataille, pelo seu caráter sacrificial ou de perda. Pelo menos em um caso de colecionador moderno, no Brasil, podemos identificar a dificuldade e a perda como origem da própria coleção. Raymundo de Castro Maya, industrial carioca, legou ao patrimônio público duas residências com sua coleção de arte: os atuais museus Castro Maya – o Museu do Açude, no Alto da Boa Vista, e o Museu da Chácara do Céu, em Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Conta ele que estava em Paris, no início dos anos 1920, com dinheiro recebido do pai para a compra de um carro, quando passou pela vitrine de uma galeria e viu uma tela de Henri Rousseau mostrando uma floresta tropical com duas panteras. Tentou adquiri-la, mas seu valor era superior à soma que possuía. Na construção desse mito iniciático, Castro Maya identificou na não concretização de seu desejo – de forma definitiva, já que jamais adquiriu um Rousseau – a fonte de sua paixão pelos objetos.

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Máscaras Era assim, como um apaixonado pelos objetos de arte, que Castro Maya queria ser reconhecido. Preferia ser chamado de amante das artes que de colecionador. Isso demonstra a insuficiência poética desse termo, capaz de aproximar o interesse científico do colecionador naturalista do cálculo financeiro do proprietário de antiguidades, o caráter metódico e compulsivo de um colecionador de selos do juízo valorativo de um amante das artes. Descartá-lo significaria apagar os traços mundanos deixados pelo valor de mercado das obras. Entretanto, recuperando Simmel e a particular interpretação que Alfred Gell faz de sua Filosofia do dinheiro, o elevado custo de um objeto artístico é elemento compositivo de seu valor, não apenas em sentido bruto, mas, sobretudo, por anexar mais uma ordem de resistência ao desejo (2005, p. 49). Outras dificuldades vêm se anexar, como a originalidade da obra, especialmente no caso de objetos antigos. No atual Museu da Chácara do Céu, antiga residência do colecionador Castro Maya, vemos em sua sala de jantar, diante de uma ampla janela que dá para o jardim, um torso grego feminino cujo atestado de autenticidade afirma tratar-se de escultura advinda do mesmo sítio arqueológico no qual se encontrou a escultura da Vitória de Samotrácia. Também o material usado – mármore branco com veios verdes – e a evocação da semelhança estilística com trabalhos do escultor Scopas da Macedônia são citados para garantir a origem e atestar a antiguidade da peça. Somados esses dados, começa a se delinear sua significação na coleção. De seu assento à cabeceira da mesa, podia apreciar o torso como a passagem entre o interior e o exterior: o ponto de fuga de sua experiência singular, a abertura para o universo antecedente da natureza e da história. É também uma figura feminina, uma espécie de Vênus moderna, que aparece no retrato que Renoir faz do marchand Ambroise Vollard por volta de 1908. Nessa tela, Vollard apoia seus cotovelos sobre uma mesa e contempla demoradamente uma pequena escultura feminina. A tela apresenta uma espécie de inversão ideal do retrato do colecionador por Il Parmigianino. A natureza deixa o fundo e se transforma no motivo vegetal e animal da toalha, do vaso e dos tecidos sobre a mesa. O fundo se torna abstrato: apenas duas áreas delimitadas de vermelho e laranja, que parecem concentrar os tons que se dividem a partir do motivo central da toalha no primeiro plano e reforçam a oposição entre as duas figuras. Do lado vermelho está o colecionador, com todos os atributos masculinos e contemporâneos: terno, gravata, barba,

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careca. De outro, a escultura feminina esguia, maleável e atemporal em sua nudez branca. Entre os dois, uma troca de afetos: se Vollard contempla a estatueta, essa parece devolver-lhe a atenção carinhosa, correspondendo fisicamente a seu toque e olhar. Novamente, a figura abstrata da Vênus aparece como possibilidade de abertura de todo o universo histórico e anterior da arte. É claro que nesse exemplo moderno estamos falando de outro tipo de colecionador. Vollard era, antes de tudo, um marchand, um comerciante de arte. Em várias épocas e culturas, podem ser pinçados exemplos de comercialização de objetos artísticos. Seja pela encomenda de nobres ou eclesiásticos, seja pela venda em feiras – como as de Colônia, Avignon ou Namur, que atraíam os artistas medievais e curiosos – ou nos ateliês, artistas como Poussin, Rubens e Rembrandt estabeleciam preços e vendiam suas obras diretamente aos colecionadores. A partir do século XVIII, começam a surgir casas especializadas na venda de objetos artísticos, geralmente comercializados junto a outros artigos de luxo, como tecidos, perfumes, porcelanas, prataria etc. Em plena vigência do sistema acadêmico, comerciantes como o célebre Le Brun na França vendiam os quadros de artistas que já eram admirados e respeitados pelo público e pela crítica. Na modernidade, contudo, a insistência dos artistas em produzir de forma independente, recusando as tradicionais regras acadêmicas, gera outro tipo de marchand: Vollard passa a apostar em valores instáveis e cambiantes, apoiando artistas que só seriam incorporados ao mercado e às instituições artísticas tempos mais tarde. Aproveitando-se dos preços baixos das obras modernas, desprezadas pelo público e pelo mercado tradicional, aproximouse de artistas como Cézanne, Degas, Pissarro, Gauguin, Renoir e o jovem Picasso, comprometendo-se com a divulgação de seus trabalhos. Estabelecendo relações pessoais e próximas com artistas e eventuais compradores, Vollard não vendia apenas obras de arte. Vendia também uma parcela de seu próprio gosto privado – na contramão do gosto tradicional, público –, donde a importância de ser também um colecionador e um homem de cultura. Em 1895, realizou a primeira grande mostra de trabalhos de Cézanne, arrasada pela crítica. Mais tarde, tornou-se um editor de livros ilustrados, encomendando a Picasso, por exemplo, as gravuras que ilustram a novela de Honoré de Balzac A obra-prima ignorada. O colecionador se identifica com as obras com as quais convive. Delas extrai as qualidades que passam a ser também suas: modernidade, vanguarda, ousadia e beleza.

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Picasso também fala, de outro modo, dessa relação ambígua de identificação de colecionador e arte, em seu retrato de Gertrude Stein, de 1906. A encomenda do quadro não foi confortável nem para a retratada nem para o pintor. Picasso não pintava um retrato a partir de um modelo desde sua adolescência. Stein tampouco havia posado para um retrato. Do incômodo de ambos surgiu uma pintura que permaneceu inacabada por um ano. Picasso largou a tela sem completar o rosto, ainda em 1905. Apenas no ano seguinte, quando já havia se interessado pelo estudo da escultura africana e ibérica – estando completamente envolvido com os estudos para sua grande tela Les demoiselles d’Avignon –, completou a obra, criando um rosto em tudo diverso do corpo e das mãos. Àqueles que comentavam que Gertrude não se parecia com o retrato, teimava em responder: “Um dia se parecerá”. É apenas nesse futuro que a colecionadora viria a se parecer com o retrato. Não um futuro provável ou realizável. Ao contrário, um futuro que sempre se coloca à sua frente como um desafio. Ali, onde a colecionadora irá ser buscada após seu desaparecimento e quando os critérios de semelhança física já não mais importarem. Ali, onde vai existir para sempre como arte. Comparado com o retrato de Il Parmigianino, o de Picasso preserva a severidade da figura do colecionador, com seus trajes pesados. Não há nada, porém, como nessa ou nas obras de Renoir, que identifique a atividade da colecionadora. Uma poltrona antiga, a parede lisa ao fundo, nenhuma concessão a elementos característicos. Mesmo o famoso casaco marrom de Gertrude Stein e sua saia predileta acabam perdendo toda peculiaridade nessa pintura substantiva. A figura feminina deixa de ostentar significações tradicionais – beleza ideal, a própria arte. O colecionador não é mais uma figura de mediação entre o mundo da cultura e sua anterioridade. Com direção invertida, aponta para o futuro incerto e sombrio do homem enquanto ser natural e cultural – algo que os olhos profundos de Stein parecem antever. A história é interna ao próprio quadro, percebida nas pinceladas mais claras que corrigem o contorno da cabeça ou no rosto que se coloca como um problema posterior para toda a pintura. Tudo indica esse caráter futuro, essa posteridade da arte que escapa da própria coleção para se situar no seu devir. Torna-se uma espécie de destino – ou antidestino – a que se entregam artista e colecionadora, dedicados a persegui-la sem que consigam jamais detê-la. Compreende-se que Picasso tente preservar esse absoluto da arte. Afinal, as coleções, encaradas como destino da produção artística moderna,

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transformavam a obra de arte em objeto raro e precioso, que só podia ser histórico ao perder sua peculiar historicidade, ao ser colocado fora do circuito da vida. Isso só vem a se acirrar quando as coleções dão origem a instituições museológicas. Paul Valéry já havia anotado esse sentido destruidor dos museus, em sua formidável ambiguidade. Por um lado, garantiam que as obras de arte seriam apreciadas em sua pura existência, ainda que no tumulto causado pelo excesso e pela convivência forçada de obras que disputam sua atenção. Por outro, impunham uma vivência que combina silêncio religioso, certo esnobismo e pretensa função didática, em tudo distinta da confusão da cidade, da maneira como experimentamos esteticamente o mundo. Contra os muros do museu vêm bater as ondas da alteridade. Lá fora estão o mundo, a vida, o movimento, o barulho, a cidade e a natureza desafiando os limites dessa instituição moderna. Gertrude Stein disse, com ironia: “Sempre gostei de visitar museus, porque a vista das janelas dos museus é geralmente muito agradável”. Pronunciada por uma colecionadora moderna, essa afirmação fala de certa decepção experimentada no interior dos museus, em cuja origem parece estar o próprio vazio ou a morte que produzem, assim como de suas aberturas para esse universo do que não é arte, sem o qual – ainda que por contraste – não pode existir.

Origens Alfred Gell propõe discutir a arte como parte de um sistema técnico ou tecnológico, o que amplia muito a noção de sistema de arte que costumamos adotar, geralmente restrita ao ambiente mais profissionalizado das instituições e do próprio gosto. Para ele, o valor estético atribuído ao objeto artístico não difere do valor moral, na medida em que supõe a fé no esteticismo universalmente válido. Instituições culturais como museus, teatros, livrarias e galerias de arte seriam equivalentes recentes das igrejas e santuários. O mundo moderno teria sacralizado a arte e transformado a estética em uma sorte de teologia. A relação histórica entre coleções e encantamento parece corroborar esse argumento, sempre tão antipático – ou indiscreto – aos nossos olhos de amantes das artes. Schlosser aponta como, na Idade Média, muitas igrejas se converteram em verdadeiros museus de antiguidades, reunindo objetos preciosos, pedras talhadas, relicários e, eventualmente, até ídolos pagãos, aos quais se associava caráter sagrado e simbólico. Na Espanha, por exemplo, a descrição de Ambrosio de Morales da Câmara Santa da Catedral de Oviedo destaca,

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entre os objetos mais apreciados: um pedaço da vara de Moisés, dois espinhos da Paixão de Cristo, um denário romano, a pele de São Bartolomeu, uma sandália de São Pedro, a cruz ornamentada usada pelo rei Don Pelayo em suas batalhas, a caixa do santo sudário, joias e cálices. Outras igrejas ibéricas reuniam animais empalhados e ossadas, como o crocodilo dissecado da Catedral de Sevilha ou o casco de tartaruga da igreja de Guadalupe, que serviam para expulsar monstros e demônios dos lugares sagrados. Combinando o prestígio da antiguidade com o valor dos materiais preciosos e a origem mística ou exótica, esses objetos tornavam-se veneráveis por sua própria raridade e inacessibilidade. Muito desse encantamento mágico e religioso dos objetos se preservou nos gabinetes de curiosidades entre os séculos XVI e XVIII. Horst Bredekamp fala da natureza lúdica desses gabinetes, que, além de incorporar em suas coleções instrumentos musicais, tabuleiros de xadrez e autômatos, apresentavam-se como desprovidos de objetivo ou utilidade para além do próprio prazer e desinteresse do conhecimento e da apreciação, mantendo um elo importante com a ideia de contemplação religiosa. Também Leibniz, em 1675, lança seu projeto para um “teatro da natureza e da arte”, capaz de reunir “toda a sorte de coisas”. Ele começa o texto pela narrativa da apresentação de uma máquina de andar sobre as águas que vira em Paris. Busca ampliar a ideia de uma “representação pública” para todas as formas de artes e ciências. Poetas, pintores, engenheiros, matemáticos, livreiros, tipógrafos, gravadores, relojoeiros e tantos outros apresentariam suas “belas curiosidades”: lanternas mágicas, maravilhas óticas, fogos de artifícios, palhaços, acrobatas, cavalos, invenções, jogos de damas e xadrez, instrumentos musicais, teatros de marionetes, loterias, pigmeus etc. Tudo isso abrigado em várias casas e lojas, formando uma verdadeira “Academia do Jogo e do Prazer”: “O jogo será o mais belo pretexto para se começar algo tão útil para o público” como este museu de tudo (apud Dagognet, 1993, pp. 133-9). Entretanto, na edificação física e simbólica dos museus modernos, tentou-se apagar essa fonte sagrada ou lúdica, escolhendo-se outros antepassados mais adequados. Na edição da Encyclopédie, cujo primeiro volume, coordenado por Diderot e d’Alembert, foi publicado em julho de 1751, encontramos sob a palavra “museu” a referência a duas fontes antigas. A primeira delas diz respeito ao monte em Atenas nomeado a partir do poeta ático Musee, no qual eram realizadas performances de poesia e arte. Essa parece, contudo, ser uma origem insuficiente para os iluministas franceses,

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incapaz de justificar ou de servir de modelo para o projeto dos museus modernos. Era preciso acrescentar outro sentido, igualmente antigo, para a palavra museu: o Museu de Alexandria, no Egito, hoje desaparecido. Esse musaeum era em tudo diferente ou oposto ao templo das musas. Em vez de ser um espaço natural, aberto, de circulação livre, era descrito como “uma grande edificação ornada de pórticos e galerias para caminhar, grandes salas de conferência e conversas sobre assuntos literários e um salão particular onde os sábios comiam juntos”. E a Encyclopédie conclui: “Este edifício era um monumento à magnificência dos ptolomeus, amantes e protetores das letras” (apud Dagognet, 1993, p. 106). Essa definição se consolida no volume sobre arquitetura da Encyclopédie methodique, escrita por Quatremère de Quincy, publicada em 1800: “Museum. Este era o nome de um estabelecimento literário fundado na Alexandria pelos ptolomeus” (apud Young Lee, 1997, p. 389). Museu é visto como uma edificação palaciana que reúne indivíduos devotados ao conhecimento e oferece um modelo não apenas para o gabinete de curiosidades ou o museu moderno, mas também para a própria cidade iluminista. Muito da força dessa interpretação de museu foi possibilitada justamente pelo desaparecimento do palácio do Bruchion, onde se situava. Isso, junto à escassez de fontes, contribui para a disseminação de narrativas, em múltiplas versões, por vezes fabulosas. O museu de Alexandria se converteu em importante motivo da imaginação acadêmica nos séculos XVIII e XIX. Em todas essas narrativas, o museu é descrito como uma espécie de universidade dedicada às letras e às ciências, reunindo biblioteca, observatório, anfiteatro de anatomia, jardim botânico, zoológico, coleções várias. Nele circulavam poetas, filósofos, historiadores, matemáticos, astrônomos, tradutores, críticos, físicos, filólogos, arqueólogos. Abrigava pessoas de todas as raças – romanos, gregos, egípcios, orientais –, de todos os credos – pagãos, cristãos, muçulmanos, judeus – e de todas as escolas de pensamento – céticos, estoicos, cínicos, peripatéticos etc. O estudo de sua arquitetura, possivelmente repetindo a fusão de estilos egípcios, gregos e árabes da cidade de Alexandria, servia para corroborar essa ideia de convivência do múltiplo. Na realidade, esse imenso museu mítico, originário, é a concretização dos ideais éticos e estéticos dos iluministas: a reunião harmônica de todos sob a luz da razão. E seu desaparecimento lembra a necessidade de engajamento diante da possibilidade real de destruição por guerras civis ou religiosas. É assim, com esse sentido programático, que o Museu de Alexandria é

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percebido como a fonte dos museus modernos. Nos projetos Museu e Biblioteca do rei, feitos pelo arquiteto neoclássico francês Etienne-Louis Boullée na década de 1780, o ideal iluminista de museu encontra tradução literal, inclusive por se tratar de planos que parecem feitos para não serem executados. Em seus desenhos, a referência ao clássico deixa de possuir um sentido estilístico ou iconográfico para ganhar caráter moral. Como ele mesmo costumava dizer, “aparecer grande é anunciar qualidades superiores”. Suas colunatas, escadarias, fachadas e frisos alegóricos celebram atributos intangíveis, valores ideais que o arquiteto encontra não apenas na Grécia antiga, mas em seu próprio tempo e nas culturas babilônicas e egípcias que tanto lhe interessavam. A própria alusão, no projeto Biblioteca do rei, à tela Escola de Atenas, de Rafael, antes de ser uma mera citação, permite a Boullée se posicionar como mais um elo na transformação simbólica da caverna – que se mantém como citação em seu espaço cavernoso – em realização triunfante do iluminismo. Era preciso eliminar os resquícios religiosos e mágicos da relação entre arte e caverna. Na China medieval, a caverna de Mogao era um santuário budista na Rota da Seda que atraía vários peregrinos. Era decorada com figuras de Buda, bodhisattvas e seus discípulos em argila pintada e, à frente, adornada com afrescos. No ano de 366, um monge budista teve uma visão no local – milhares de Budas sob raios dourados de luz – e deu início à escavação da primeira caverna, que se estendeu até 1368. Hoje são 492 cavernas, com cerca de 30 km de obras de arte – esculturas, pinturas de parede e de teto –, além de relíquias deixadas pelos fiéis. As dinastias Sui (581 a 618) e Tang (618 a 907) são consideradas o apogeu no desenvolvimento do budismo na China e da arte das grutas Mogao. Durante mais de mil anos, abrigavam as minorias étnicas e representavam um local de mescla das culturas chinesas, indianas, islâmicas e gregas que nelas deixaram seus vestígios. No âmbito da cultura clássica, a gruta também foi objeto poético privilegiado. Ovídio, em suas Metamorfoses, publicadas no ano 14, faz Diana se encontrar com Actateon numa caverna maravilhosa, incapaz de ser erguida pela arte humana, onde a natureza, em sua própria sagacidade, simulou a arte, esculpindo um “arco natural a partir da pedra viva e dos tufos macios” (apud Campbell, 2004, p. 64). Giacomo Sannarazo, em sua Arcádia, de 1502, faz Ergasto exclamar, após visitar a caverna na qual se localizava a origem de todos os rios da Terra: “Oh, maravilhoso artifício do grande Deus”. Seja como santuário religioso, seja como arquitetura orgânica

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na qual a natureza ou Deus agia como artífice, a caverna possuía um sentido poético particular que certamente inspirou a colecionadora Isabella d’Este na escolha formal da grotta como espaço para dispor sua coleção no Palazzo Ducale, em Mântua, Itália. Nessa construção subterrânea com teto abobadado, de caráter privado, ligada diretamente a seu studiolo, reunia sua grande paixão: mármores, estatuetas, medalhas e outras peças da antiguidade, além de obras de artistas contemporâneos seus. Logo na entrada, um portal monumental esculpido por Gian Cristoforo Romano, antes de 1503, apresenta, na face externa, relevos de musas da história, da poesia dramática e da música, junto com Minerva. Na face interna, seis tondi funcionam como uma espécie de ilustração à História natural de Plínio, obra colecionada pela marquesa, fazendo referência direta a cavernas artificiais nas residências privadas de Roma, chamadas de musea (espaços das musas). Essa relação entre criatividade da natureza e artifício humano, de sentido poético e mitológico, fez com que a gruta e seu correlato arquitetônico – a arcada – se transformassem na forma ideal do gabinete de curiosidades. Clement Pierre Marillier, ao tentar representar visualmente o cartesianismo, escolhe a arcada para sintetizar seu gabinete ideal. Na gravura analisada por Bredekamp, de 1762, sob o arco simbolizando a antiguidade reúnemse fósseis, animais, instrumentos técnicos e livros. A figura infantil da Melancolia senta-se sobre um crânio em pose de pensadora. À frente de tudo, um medalhão com perfil de Descartes. Ameaçado pela natureza que o recobre, o arco guarda a chave, pendurada em seu ponto mais alto, que abre tanto para as criações naturais quanto para as realizações humanas. O arco ou o teto abobadado reaparecem nos projetos de Boullée como parte de seu programa ético de releitura da tradição clássica. Embora seu museu jamais tenha sido erguido, o arquiteto participa da elaboração conceitual do Museu do Louvre, contribuindo para moldá-lo como um repositório de ideais enciclopédicos. O projeto original, previsto na Assembleia Constituinte de 1791, declarava-o um museu nacional dedicado às artes e às ciências. O projeto monumental dos arquitetos Molinos e Legrand não incluía só salas de pintura, escultura, arquitetura, mas também de botânica, química, mineralogia, medicina, zoologia, antiguidade, agricultura, entre outras artes e ciências. Dois anos depois, o Louvre e o Jardin des plantes passaram a dividir entre si a tarefa pretérita: o primeiro é inaugurado como museu de arte; o segundo, como Museu de História Natural. Nessa divisão, esse assume mais

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claramente sua proximidade com o antigo modelo de Alexandria: apresentase como abrigo de um corpo autônomo de intelectuais europeus dedicados à pesquisa científica em todos os ramos da história natural, incluindo jardim botânico, museu, zoológico, biblioteca, laboratórios, salas de aulas, alojamento de professores. Suas coleções serviam a esses pesquisadores e eram usadas em aulas de medicina, farmácia ou mesmo “arte agrícola”. Entre 1793 e 1797, o Louvre, cujo projeto ainda parecia incerto, chega a mudar de nome várias vezes: Museu Francês, Museu da República, Museu das Artes, Museu Central das Artes. Por trás dessas mudanças de nomenclatura, estava a própria modificação do conceito de coleção, que fundamentava o museu. A coleção deixava paulatinamente de representar, em sua formação e expansão, uma tentativa de desenvolvimento do conhecimento humano, para se tornar, mais e mais, um conjunto especializado de objetos. Dessa forma, o Museu de Arte precisava lidar, antes de tudo, com a própria concepção de objeto de arte. Nesses primeiros anos de funcionamento do museu, segundo Hans Belting, está em jogo a redefinição da ideia de obraprima. Por um lado, surgem os defensores do ideal atemporal da arte antiga, pretendendo que o Louvre fosse um museu basicamente de esculturas grecoromanas. Por outro, aqueles que encaram a missão do museu de fornecer um panorama da evolução das artes ao longo do tempo. Para Belting, apenas no início do século XIX essa segunda visão se torna central. Ao se despedirem da escultura de Apolo do Belvedere, saqueada da Itália durante a conquista napoleônica e devolvida ao país de origem em 1815, os franceses estavam também dando adeus ao ideal atemporal de arte. A escultura, que havia resumido o próprio ideal de obra-prima, sendo qualificada por Winckelmann como a ideia visível do absoluto na arte, perde seu posto depois da difusão de estudos que distinguem cópias romanas e originais gregos. O museu passa a venerar outras formas de arte, especialmente as pinturas europeias a partir do renascimento. O ideal de arte se torna duplamente histórico, como produto de um certo tempo histórico e como resultado de uma reflexão histórica sobre a arte (Belting, 2001).

Álbum de família Em sua história particular, os museus tiveram de colocar atrás de si os gabinetes de curiosidades, os templos das musas, as igrejas medievais, a caverna, o Museum de Bruchion, enfim, construir seus antepassados numa relação de superação e continuidade. A cultura contemporânea, porém,

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não se mostra apta a colocar atrás de si, como etapa encerrada, os museus. Não consegue produzir nada de diferente e, ao mesmo tempo, não pode se assemelhar aos espaços que tanto critica. Uma das estratégias atuais é recuperar as fontes esquecidas do próprio projeto museológico, como a caverna de culto que reaparece no curioso projeto da Cathedral d’images, em Baux de Provence, na França. As minas do Vale do Inferno inspiraram Albert Plécy, jornalista e pesquisador da fotografia, a criar seu peculiar museu, cuja programação alterna, desde sua fundação em 1977, projeções de imagens de até 100 m² sobre as paredes regulares de pedra ou o piso da antiga mina de bauxita, combinadas com música e sonorização. A ideia é produzir, a partir da obra de um artista ou de um tema selecionado, um ambiente de “imagem total” a partir de mais de cinquenta fontes de projeção. Não gratuitamente, o nome da instituição evoca o sentido sagrado, de introspecção e maravilhamento – o que é reforçado pelos temas abordados, como “A Idade Média”, “A Índia eterna”, “As mais belas natividades”, “Balada africana”, “Os deuses de pedra”, “Retratos da China”, ou simplesmente pela escolha de artistas individuais célebres em todo o mundo, como Michelangelo, Van Gogh, Cézanne, Picasso. Outra estratégia seria recuperar o sentido lúdico e variado dos gabinetes de curiosidades. Há cerca de vinte anos, David Wilson fundou na Califórnia o Museum of Jurassic Technology. Sua ideia era criar um museu diferente, muitas vezes chamado pelos críticos de pós-moderno, capaz de desafiar nossas crenças e mesmo nossa razão. Sua proposta era retomar a concepção do museu como a casa das musas, espaço eclético de apresentação das coleções de história natural, arte, antropologia e ciência, que pretende – na contramão dos pressupostos didáticos dos museus – estimular sensações de conforto e relaxamento diante dos afazeres cotidianos. Apenas para exemplificar as curiosas histórias que o museu apresenta, uma de suas vitrines exibe a história fabulosa da formiga de ferrão da República dos Camarões. Vez por outra, uma das formigas é contaminada por um esporo de fungo que se aloja na cabeça da formiga como um chifre de unicórnio. Confusa, a formiga sobe pelas plantas até uma determinada altura onde se prende até morrer. Dias depois, o esporo cai para contaminar outra formiga. Lawrence Weschler, autor do livro sobre o museu, Mr. Wilson’s cabinet of wonder, indagou seu fundador sobre as razões de sua atração pela saga bizarra da formiga. Ele respondeu se tratar de um duplo metafórico de sua própria existência, moldada pela compulsão irrefreável de realizar coisas

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fora do padrão. Weschler conclui, no prefácio a outro livro seu sobre J. S. G. Boggs – artista que pintava cédulas de dinheiro, o que o levou inclusive a uma série de problemas com a polícia –, que ambos seriam semelhantes no sentido de suas atuações: Wilson, nos últimos anos, estaria fazendo pelos museus – e pela autoridade dos museus – o que Boggs tem feito pelo dinheiro e pela autoridade do dinheiro. Ou seja, em ambos os casos, você nunca está seguro de onde está ou de onde deveria estar; o sentido é sempre escorregadio (2000, p. xi).

O deslocamento entre ficção e verdade, a impossibilidade de se decidir por apenas um desses lados, parece ser a tônica não apenas desse museu, mas de outros museus contemporâneos, como já notara Marcel Broodthaers nos anos 1970 com seu ficcional Museu de Arte Moderna – Seção das Águias. Talvez David Wilson tenha mais razão do que gostaríamos de admitir: talvez o museu exista somente como ficção, como motivo de nossa imaginação histórica. Talvez toda a autoridade que lhe confiamos resida tão somente na possibilidade de produzir a deliciosa confusão entre a verdade e a fábula. Já em 1952, o curioso museu-casa das irmãs Comte, em Marsac, França, falava da arbitrariedade que constitui esses espaços. Alexandre Vialatte escreveu uma crônica curiosa sobre esse museu cujo interesse residia exatamente em sua absoluta falta de critério. Reunia tudo o que as irmãs possuíam, sem qualquer valor específico: do coelho empalhado ao busto recente de Temístocles, do retrato de Vercingétorix a cabeças de cabras modeladas e pintadas, de ovos de pássaros à escultura em bronze do deus Marte. Tudo transfigurado pelas vitrines e etiquetas. Enfim: um “museu do objeto qualquer”, “museu do museu”, ou melhor, “museu da ideia de museu”, verdadeiro “metamuseu” capaz de fazer das coisas uma miragem, de provar que “o museu é uma simples atitude de espírito” (apud Dagognet, 1993, pp. 144-8). Talvez seja assim, como pura fantasia, que os museus se sustentem no sistema globalizado da arte. Um signo de nossa impossibilidade de colocá-los em nosso passado. As respostas a esse dilema, de maneira geral, tendem a recuperar para os museus atuais um tanto do sentido mágico e do maravilhamento de sua origem, por vezes aproximando-os temerariamente de outra fonte – certamente mais poderosa – de encantamento do mundo: a mercadoria. Em recente exposição polêmica no Museu de Versalhes, Jeff Koons, artista nova-iorquino conhecido como rei do kitsch, ocupou os

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espaços nobres do antigo palácio real com seus infláveis de aço e alumínio pintados, aspiradores de pó, esculturas da Pantera Cor-de-rosa ou de Michael Jackson com seu macaco Bubbles. Assume, assim, a paródia para falar da própria situação institucional da arte. É alguém que adota como estratégia central o espelhamento irônico das qualidades estéticas grandiloquentes de Versalhes, essencial para que o mundo de ídolos e objetos pop se revista de significado. Faz seu próprio busto dialogar com aquele de Luís XIV feito pelo artista barroco italiano Bernini, em 1665. Nesse, o rei francês é uma verdadeira força da natureza. Seu rosto clássico, de traços fortes, contrasta com os longos cabelos cacheados e com o movimento intenso de suas vestes. Tudo é imponência e dinamismo. Puro êxtase. No busto de bronze de Koons, os trajes antigos e a peruca, ao contrário, chamam a atenção para a sua própria artificialidade e, consequentemente, para o quanto de artifício e imagem espetacular possui o palácio. Por um lado, revela aquilo que tão ciosamente os dirigentes de Versalhes tentaram encobrir: sua artificialidade, sua proximidade com a cultura pop. Por outro, indica uma espécie de salvação por meio do desafio das próprias noções de arte e artista. Luís XIV e Michael Jackson, Maria Antonieta e a Pantera Cor-de-rosa, todos passam a fazer parte desse álbum de família de Jeff Koons, tornam-se seus antepassados eleitos, suas máscaras. Entretanto, quando vemos alguns exemplos recentes de museus, temos de repensar seu papel e nos confrontar com outro problema crucial: como se contrapor a ou se confrontar com os museus se sua forma não é fixa, se ele parece ora se diluir, ora se refazer a um só tempo? É o caso da luta dos indígenas brasileiros para recuperar o Museu do Índio de Brasília, cujo projeto de Oscar Niemeyer se inspirava na casa circular yanomami, com uma praça central. Segundo Berta Ribeiro, que elaborou o projeto conceitual do museu, o espaço foi projetado em 1987 para render tributo aos artesãos indígenas e apresentar sua contribuição à cultura brasileira e universal. O acervo, rejeitando práticas espoliativas, seria formado por objetos confeccionados pelos índios hoje. Um jardim botânico seria erguido nos espaços exteriores para mostrar as formas de relação, classificação e manejo dos recursos naturais pelos povos indígenas. Seria, portanto, uma inversão da tradicional função do museu etnográfico: um distanciamento da exibição do exótico e uma tentativa de enaltecimento da herança pluriétnica e policultural da América Latina. Todavia, acabou sendo inaugurado como Museu de Arte Moderna, com uma exposição do artista venezuelano Armando Reverón.

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Inconformados com essa subversão do projeto original, os líderes indígenas conseguiram apoio de vários intelectuais e simpatizantes de sua causa, iniciando longa campanha para retomar o espaço. Em 16 de abril de 1999, o museu foi reaberto como Memorial dos Povos Indígenas, cujo objetivo central é promover apresentações de tradições culturais e intercâmbio entre os povos indígenas do Brasil e do mundo. Atende, assim, a programa semelhante ao de outros museus, como o Museu do Índio Americano em Washington, inaugurado em 2004 com a presença de representantes brasileiros das tribos do Mato Grosso e Maranhão, Suyá, Kaapor e Tapirapé, após uma longa e tediosa disputa sobre o destino de seu acervo, guardado em depósitos no Bronx. A rigor, um museu do índio seria a resolução imaginária de uma contradição real que envolveu historicamente a violenta decadência da sociedade indígena. Entretanto, é percebido pelos próprios índios como uma forma de resistência, uma prática transgressora capaz de promover o colapso das diferenças. Nas palavras de José Ribamar Bessa Freire (2003), os índios descobriram que museus podem ser potencialmente explosivos, contribuindo para a recuperação de tradições perdidas e mesmo para o reconhecimento social da identidade indígena, essencial inclusive para a demarcação de suas terras. Foi o que motivou, entre 1988 e 1991, a ampla mobilização do povo ticuna para a construção do Museu Magüta, na Amazônia. Até a museografia mais tradicional funcionava positivamente. Recusando o estigma de primitivos para seus objetos, preferiram construir bases de madeira, painéis e vitrines para expor o acervo, com legendas em português e idioma ticuna. Apesar de sua existência institucional ambivalente, oscilando entre a premiação por entidades nacionais e internacionais e o risco perene de fechamento, o museu teve pelo menos uma repercussão cultural interessante: a população da cidade de Benjamin Constant, onde está situado, que nunca havia tido contato com instituições museológicas anteriormente, acredita que “museu é coisa de índio”, oferecendo a ele as mesmas resistências que dedica à população ticuna. James Clifford (2003) percebeu nos museus tribais norte-americanos – como o Centro Cultural de U’mista e o Museu Kwagiulth, em Vancouver – um resultado totalmente inesperado produzido pela forma tradicional de coleta e exposição de objetos indígenas. Todo o desencantado discurso de morte das instituições culturais é substituído pelos relatos de luta, memória e renascimento. Sem escapar do jogo entre arte, mercado e cultura, os

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índios conseguiram subvertê-lo. Não gratuitamente, esses museus retomam o sentido original do templo das musas, associado a espaços abertos, performances culturais e produção artística contemporânea. O próprio chefe kwagiulth narra a inauguração do museu nos seguintes termos: klassila, o espírito da dança, ficara preso nos cárceres de Ottawa e depois fora jogado ao mar; aquele que o pescou lançou na praia e ele conseguiu entrar na “morada sagrada: o museu” (apud Clifford, 2003, p. 301). Seria uma nova função para os museus? Uma reinvenção dessas instituições tão criticadas na contemporaneidade? Apenas mais um discurso cultural no meio de tantos outros? Ao menos esses novos museus parecem indicar que não devemos perdê-los ou desprezá-los integralmente como um acontecimento cultural pertencente a outro tempo. Muitas das críticas aos museus se ancoram na sua conversão em passado – um lugar que imaginamos não nos pertencer e no qual não desejamos habitar. Porém, como acontece com a própria ideia de arte, esgarçamos seus significados, forçamos seus contornos e limites, mas não dispomos – parafraseando T. J. Clark – “de uma imagem usável de seu fim” (2007, p. 8), restando-nos ora a luta e a resistência, ora o trabalho irônico, melancólico ou decadente de continuação e superação.

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Persistência do passado em eterno devir

Viviane Matesco UFF

Indagar-se sobre o sistema de arte nos países latino-americanos deve necessariamente partir da problematização do termo América Latina, rótulo impotente diante da diversidade de realidades dos países originários da América Espanhola e Portuguesa. A heterogeneidade do desenvolvimento econômico e geocultural de países como Argentina, México, Bolívia e Honduras inviabiliza qualquer perfil generalizante do sistema de arte. Tal termo mostra-se também insuficiente nos dias de hoje, pois não dá conta das migrações maciças e das comunidades transnacionais em um mundo em que as culturas não se definem pelo critério territorial (Canclini, 2008). Se as fronteiras ultrapassam a noção geográfica mediante relações interculturais que não obedecem ao conceito de nação, a situação – periférica – do sistema de arte da América Latina, no entanto, continua problemática, pois esse sistema permanece subordinado aos centros hegemônicos, como a outra face do “Ocidente”, em eterna busca de afirmação. Como caracterizar elementos comuns em um universo tão distinto? Refletir sobre o sistema de arte na América Latina significa constatar como esses países têm traços histórico-culturais comuns; como o passado colonial e a busca de um lugar no mundo implicaram processos que deixaram estigmas ainda hoje atuantes. Uma característica comum aos países da América Latina é a sobrevivência de antigas estruturas convivendo com as subsequentes, configurando várias camadas de significação que jamais são totalmente ultrapassadas. A convivência de múltiplas temporalidades se reflete nas relações do sistema de arte: o período colonial inaugurou a via do mecenato religioso e de Estado que os processos de independência não apagaram; a relação de subordinação entre colônia e metrópole e um sistema marcado pela busca de adaptações artísticas europeias às condições locais constituem uma estrutura persistente.

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Persistências e adaptações na busca de caminho apropriado sedimentaram uma integração no barroco, na qual convivem diversas temporalidades. O arquiteto argentino Ramón Gutiérrez (2001) repensou o significado do barroco americano sem converter o cordão umbilical europeu em um rígido cabo de transmissão que explique tudo que aconteceu na América por modelos formais externos. Se a Igreja exerceu praticamente sozinha a tutela e o mecenato das artes, isso não se traduziu, no barroco, em um conflito contrarreformista europeu. Trata-se de um cenário em que as ideias centrais eram escolhidas, adaptadas e modificadas para viabilizar o projeto de evangelização em outro contexto. Isso significa pensar o barroco americano como fruto de uma interação cultural, como resposta criativa a alguns programas que requerem não apenas beleza, mas também satisfação de necessidades funcionais e espirituais. Ao analisar o sistema de arte do século XVII, sobretudo em áreas com tradição artesanal anterior à chegada dos espanhóis, Gutiérrez enfatiza a importância da participação dos artesãos indígenas68 ou mestiços como mecanismo de ascensão social. A rede formada pelos grupos de parentesco indígena em grêmios artesanais e confrarias religiosas incorporava esses setores marginais da sociedade. A articulação da etnia familiar com o ofício é clara nas sagas de grupos de artesãos que cobrem secularmente a produção artística na América. Tanto pelo sincretismo de valores religiosos do paganismo dentro do cristianismo quanto pela manutenção de valores simbólicos do mundo pré-hispânico, vai se produzindo uma integração em uma nova cultura barroca. O tempo do barroco americano articula a conjunção do mundo indígena ao recuperar os ancestrais nos cenários familiares e ao propiciar o protagonismo social a partir de sua própria experiência participativa. A permanência de formas arcaicas no contexto da mestiçagem cultural impõe a ideia da continuidade do pensamento indígena, expresso pelo mágico, pelo atemporal, pelo mítico e pelo simbólico nos rituais e nas festividades religiosas. Dessa maneira, o barroco permite a construção de uma nova identidade superadora do conflito da conquista, mas sem alcançar a ultrapassagem da dependência. A riqueza de manifestações regionais que o sistema de arte barroco gerou sofrerá uma ação homogeneizadora no final do período colonial, a partir da fundação das academias. Da pioneira Academia de San Carlos, fundada em 1785 na Cidade do México, exemplo do rigor do ensino da norma clássica, ao É importante ressaltar que a análise de Gutiérrez sobre a importância indígena no barroco não se reduz a traços decorativos de fauna e flora locais, como defendido por uma historiografia de cunho nacionalista.

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tardio Instituto de Artes do Paraguai, em 1885, houve o desenvolvimento de um modelo que promoveu relativa uniformidade na circulação da arte. Mais famosa entre as academias hispano-americanas, a de San Carlos, como as outras da América, era europeia seus objetivos estéticos (Ades, 1997, p. 27). O padrão neoclássico aplicava-se a quase todos os outros países latino-americanos, o que revela a escolha da Ilustração e da França como modelo ideológico e cultural da América Latina, em contraposição ao colonialismo espanhol. Apesar de parecer descarnado sem a relação com seus determinantes históricos europeus, o neoclássico expressa os valores buscados para a reestruturação dos recentes países, mesmo que isso implique incoerências com relação à sociedade (Martin, 2001). O ensino e a estruturação do sistema de exposições a partir das academias simbolizavam uma modernização que se aliava à adoção do racionalismo e do positivismo, às liberdades burguesas, ao crescimento da educação secular, considerados conjuntamente como processo de integração à ordem mundial. O interesse do setor rural predomina, mas o projeto era claramente urbano e burguês. É interessante compararmos o sistema de arte do século XIX na América Latina com aquele dos Estados Unidos, marcado pelo fracasso da academia do Estado e pelo engajamento profissional em academias criadas pelos próprios artistas ou em ligas.69 O sentido de comunidade proveniente da congregação puritana colonial inglesa, caracterizada por relações voluntárias e pactuadas entre as partes, diferencia-se da municipalidade hispano-americana, baseada em uma identidade coorporativa que reproduz hierarquias em todos os níveis da sociedade.70 Essa estrutura se manteve após a independência, e, apesar das propostas liberais na constituição dos Estados da América Latina, a sociedade permanecia atrelada ao esquema de patrocínio colonial; Igreja, Estado e oligarquias continuavam a ser a base das encomendas. Se a fundação de academias colocou novos valores para a cultura, a persistência de uma sociedade analfabeta, por um lado, inviabilizava a ampliação da base cultural e, por outro, introjetava a relação colônia-metrópole na própria hierarquização social do sistema de arte. A National Academy of Design era uma contrainiciativa de artistas para competir com a American Academy por membros, patrocinadores e ingressos de exposições que garantissem as despesas. Fora de Nova Iorque, várias cidades fundaram academias patrocinadas pelos próprios membros das comunidades. Também relacionada ao espírito empreendedor norte-americano, a formação de ligas de artistas foi a solução para o dilema do patrocínio; com subscrição, execução de gravura e sorteio de obras, a American Art-Union passou de oitocentos membros em 1839 para 19 mil em 1849, o que permitiu a difusão da arte em pequenas cidades do interior (Groseclose, 2000, p. 10).

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A esse respeito, ver Richard Morse. “O desenvolvimento urbano na América espanhola colonial” (Bethell, 2001, p. 57).

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É contra a homogeneização do modelo europeu promovida pelo sistema das academias que as vanguardas modernas se insurgem no início do século XX. Nesse momento, a fragilidade da base social da cultura e a relação colôniametrópole serão travestidas nos dilemas do modernismo latino-americano diante das tentativas de articulação do nacional e do estrangeiro. Aqui a busca de linguagens modernas e ao mesmo tempo de uma identidade originária produz uma ambivalência de que se nutrem as vanguardas. Também era pela adoção de modelos externos europeus que os diferentes movimentos se davam a conhecer: manifestos, revistas e exposições reproduziam a dinâmica europeia. As revistas propunham a renovação das artes, os novos valores, a importação da nova sensibilidade, o combate aos valores do passado e ao status quo das academias.71 Se a ruptura com o passado e a questão da identidade são elementos comuns a todos, a busca de uma nova estética terá respostas diversas dependendo da conjuntura da região. Assim, assume uma feição indigenista e revolucionária no México, enquanto nas Antilhas afirma-se a fusão de múltiplas raízes. Ana Maria Belluzzo (1990) analisa como as práticas vanguardistas na América Latina deslizam para níveis diversos, ajustamse; operam mediante surtos e hiatos, com a coexistência de processos de renovação artística com sistemas de patronato de Estado, como o muralismo mexicano. Chama a atenção para o esforço de síntese cultural que vincula modernismo artístico e modernismo cultural; o artista enfrentava um duplo desafio: desenvolver métodos artísticos e redimensionar a cultura de seu país. Como é possível o modernismo em sociedades pré-industriais? O modernismo sem modernização das condições sociais tem como consequência a continuidade dos impasses coloniais, uma vez que permanece o divórcio entre cultura e base social. Nestor Garcia Canclini (1990) defende uma abordagem dos dilemas culturais da América Latina a partir de uma interpretação de história híbrida. Analisa essas contradições a partir de três momentos. Na primeira fase do modernismo, promovida por artistas que regressavam da Europa, não teria sido tanto o transplante das vanguardas europeias o responsável por desenvolver a modernização plástica, mas sim as questões dos próprios artistas para torná-las compatíveis com a realidade que viam: foi a experiência de estranhamento que fez com que olhassem seu país de outro modo. Apesar de tropeçarem na falta de mercado artístico independente, no provincianismo, nas brigas com os acadêmicos e no É o caso da Proa (1a época) e Martin Fierro (2a época), em Buenos Aires; da Revista Avance, em Havana; e Válvula, em Caracas. Outras estão mais comprometidas com os processos de modernidade do que com as vanguardas. A esse respeito, cf. Schwartz (1995).

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regionalismo ingênuo, nenhum deles significou uma adoção mimética de modelos importados. Suas contradições e discrepâncias internas expressam a heterogeneidade sociocultural, a dificuldade de realizar-se em meio a conflitos entre diferentes temporalidades históricas que conviviam no mesmo presente: a encruzilhada de uma ordem semioligárquica dominante, uma economia capitalista semi-industrial e movimentos sociais semitransformadores. O segundo momento dessa cultura híbrida é aquele da política desenvolvimentista e de maior industrialização em meados do século XX, marcado pela diminuição do divórcio entre arte/cultura e base social. É a fase da fundação de museus de arte moderna (1948 em São Paulo e no Rio, 1956 em Buenos Aires, 1962 em Bogotá e 1964 no México) e também da diversificação do mecenato nas artes, quando a burguesia industrial toma para si o papel do desenvolvimento de instituições artísticas. A ampliação do mercado cultural permite maior especialização e desenvolvimento experimental de linguagens, que atingem, no entanto, apenas uma elite da população. No final do século XX, não se pode mais pensar pelo modelo da dependência. Se continua havendo desigualdade na apropriação dos bens simbólicos, ela já não tem a forma simples de dominantes/dominados ou de um mundo em impérios e nações dependentes, como parte da crítica se colocava na oposição ao imperialismo norte-americano.72 Enquanto nos anos 1950 a 1970 houve uma fratura entre as culturas de elite e de massa e uma crescente especialização dos produtores e de públicos, nos anos 1980 as empresas se apropriaram da programação cultural para as elites e para o mercado massificado. A introdução de fundações e centros experimentais desloca para a iniciativa privada o papel de reordenação do mercado cultural, o que, no entender de Canclini, ataca o cerne do projeto moderno, já que a autonomia do campo artístico está agora subordinada à vontade empresarial. O mundo globalizado é de reformulação radical das relações entre tradição e modernidade, entre o culto, o popular e o massivo, o que vai muito além da busca do mercado. Pressupõe também mudanças na constituição de identidades coletivas, na articulação do nacional e do estrangeiro, e em quase todos os dilemas da modernidade latino-americana. Se, com a globalização, o conceito de identidade cultural perdeu sentido após tudo ter resultado em um sincretismo geral, ainda se vive na América A exemplo de Marta Traba (1977), que via a arte norte-americana como região da tecnologia que produzia ativamente para atender às demandas das sociedades de consumo, produtora de sinais que nada tinham a ver com linguagem; por isso a arte latino-americana ficaria na posição de mera receptora. Áreas abertas (Venezuela, Brasil, Uruguai, Argentina e parte do Chile) e áreas fechadas (áreas ancestrais mexicana e andina), tempo de entrega e arte de resistência tornaram-se temas obrigatórios nos meios intelectuais na década de 1970.

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Latina a precariedade do sistema de arte com traços coloniais e pré-modernos. Os antigos impasses assumem outro registro em um período definido pela multiculturalidade e pelo próprio questionamento das definições universais de arte. Cada vez mais, arte e política vão interagir e contradizer-se; memória nacional, sociedades locais e o mercado de arte desenvolvem estratégias que raramente coincidem (Weibel e Buddensieg, 2007). Os artefatos de etnologia podem ser relacionados à arte contemporânea e novos entrecruzamentos do popular tradicional com circuitos internacionais transformam as questões de identidade e do nacional. Ultrapassar concepções essencialistas da cultura, que fomentavam visões fechadas de identidade, e buscar um lugar no mundo mediante um conceito de espaço cultural construído historicamente por valores comuns parece ser ainda um desafio para a América Latina (Piñon, 2003). Na crescente desterritorialização da cultura, em que a contaminação impede definições rígidas, continuamos convivendo com múltiplas temporalidades e projetando um eterno devir.

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Arte e vitalidade

Corpos invisíveis, corpos que importam

Alexandre Santos UFRGS

Criar não é uma frivolidade qualquer. O criador empenhouse numa aventura apavorante que consiste em assumir pessoalmente até o fim os perigos arriscados pelas suas criaturas. Jean Genet

Embora o conceito de homoerotismo relacione-se à expressão do amor ou do desejo entre pessoas do mesmo sexo, incluindo homens ou mulheres em tal situação, neste texto interessa-me pensá-lo pelo viés do masculino. Dessa forma, a ênfase está ligada à questão do corpo masculino visto como um depositário de potencialidades que apontam, no plano da arte, para o desenvolvimento expressivo do homoerotismo. Longe de esgotar uma questão tão complexa, pretende-se trazer elementos da representação artística responsáveis pela construção cultural de uma corporalidade específica, a masculina. Por corporalidade, entendo o conjunto de condições e elementos que sinalizam culturalmente o corpo, seja de forma implícita ou explícita. A constituição de uma corporalidade homoerótica na história da arte não pode ser vista como uma recorrência isolada. Ao contrário disso, para pensá-la é necessário que a relacionemos com outros elementos que a dinamizam, como a representação do corpo e as questões de gênero. No primeiro caso, estamos no campo da própria arte, pois ao relacionar-se com a representação do corpo o homoerotismo também gravita em torno do conceito de nu artístico. No segundo, justamente por estar relacionado à representação do corpo e do nu artístico, o homoerotismo acarreta discussões que dizem respeito às questões de gênero, ou seja, ao “conjunto de valores, papéis, comportamentos, atitudes e expectativas que cada cultura desenha e elabora julgando homens e mulheres em função de haverem nascido com um sexo ou com outro” (Aliaga, 2004, pp. 10-1). Historicamente, o gênero

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está ligado ao que reconhecemos por masculinidade e feminilidade como aspectos antitéticos que não se devem mesclar. A representação do homoerotismo artístico é praticamente atávica às relações entre arte e vida, pois toca em aspectos ligados a tabus culturais relacionados aos usos do corpo e à sexualidade. Embora a relação entre arte e vida sempre tenha estado presente na produção artística, sobretudo quando a ideia de autoria se afirma na renascença, no que concerne ao homoerotismo sua manifestação foi, em geral, pouco elaborada pela historiografia da arte. No desenvolvimento do que hoje reconhecemos como arte ocidental, do século XV ao XIX, houve a predominância de formas ideais, responsáveis pelo afastamento da produção artística de seu comprometimento mais direto com o mundo real, em favor de um campo erudito autônomo e asséptico às questões mundanas. Em se tratando do homoerotismo masculino, houve um processo cultural ainda mais ofensivo responsável pela retração de sua presença na arte. Isso colaborou para escamotear essa corporalidade desejante, compreendida como ameaça à ordem heteronormativa, que se afirma tanto com o monopólio da moral judaico-cristã quanto com a consolidação do ideário iluminista no Ocidente (Foucault, 1988). Ainda assim, muitos foram os personagens, míticos ou reais, que solicitaram com frequência a imaginação homoerótica. Na representação desses temas, houve a construção de uma linguagem de alusões, de símbolos ou de metáforas responsável pelo desenvolvimento da expressão discreta daquelas memórias consideradas fora das normas idealizadas pelo discurso erudito no que concerne à sexualidade. Isso provocou a existência de uma produção à margem, legada ao silêncio e à invisibilidade histórica.

Corpos invisíveis e arte É principalmente na Grécia clássica que encontramos importantes elementos para a constituição de algumas matrizes referentes à representação do corpo masculino na arte ocidental, inclusive na expressão do desejo homoerótico. Ao servir como paideia, ou seja, como elemento ligado à formação do cidadão que iria atuar nas decisões da pólis, a representação artística era tributária da constituição de um ideal de homem no qual o corpo, principalmente o masculino, servia como elemento de base dessa construção cultural. Apesar de não haver pudor na prática da pederastia (Dover, 1978), esta era recomendada como ritual de passagem ligado à formação

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das virtudes morais, sociais e políticas de um jovem (erômeno), iniciado inclusive sexualmente por um homem mais velho (erasta). A representação explícita desse ato sexual entre homens reservava-se às formas artísticas mais prosaicas, como a pintura cerâmica. A escultura, como arte oficial da pólis – presente nos monumentos que ocupavam o cenário da cidade –, seguia um modelo de representação no qual a humanidade desejante subordinava-se aos códigos culturais da contenção. É ao princípio apolíneo que essa produção está relacionada, no qual a forma artística segue a noção de sophrosyne, fundada no equilíbrio e na razão, em detrimento das formas artísticas ligadas ao seu oposto, a hybris, conceito que remete ao desequilíbrio do princípio dionisíaco, mais próximo do mundo real e das paixões humanas incontroláveis (Nietzsche, 1992). Isso é percebido claramente na sofisticação formal da escultura do século V a.C, na qual o corpo nu dos jovens atletas é uma elaboração que combina o real, como inspiração, com o ideal, como meta artística e moral a ser atingida. Nesse sentido, a presença de Eros tem de ser discreta, acompanhando o caráter didático da arte, preconizado tanto por Platão quanto por Aristóteles. Mesmo quando a relação com o homoerotismo é mais evidente, predomina a invisibilidade dessa condição, ressaltando em seu lugar atributos morais a ela interligados. No conjunto escultórico que revive o mito do fim da tirania em Atenas, Harmódio e Aristógiton (477 a. C), temos claramente a representação clássica da pederastia, em que um homem mais velho, de barba, e um homem mais jovem, imberbe, são representados em uma mesma cena. Ao contrário da representação mais vulgar da pederastia na cerâmica, nessa escultura, apesar de sua nudez, os personagens são transpostos para o plano do heroísmo cívico, como “os tiranicidas”, ou seja, aqueles que contribuíram para exterminar a tirania. Aristógiton levanta sua capa como a proteger o amante, enquanto Harmódio tem o braço erguido em sinal de convicta ousadia. A pose e a nudez desses heróis funcionam como fatores que acentuam mais privilegiadamente sua valentia e a façanha do ato simbólico em que estão implicados do que propriamente sua afeição amorosa (Fernandez, 2001, p. 19). Nos relatos históricos de Tucídides sobre o fato, também narrado por Aristóteles (Mossé, 1982, p. 20), o pano de fundo do fim da tirania se dá a partir da história de amor e fidelidade entre os dois personagens envolvidos, os quais se tornam emblema do fim de uma era: na Atenas do século VI a.C., Aristógiton, cidadão pertencente às camadas médias, estava apaixonado

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pelo belo Harmódio, o qual, por sua vez, foi cortejado por Hiparco, filho do último tirano, Psístrato. Harmódio não apenas despreza a investida de Hiparco, mas ainda arquiteta um plano juntamente com Aristógiton para matá-lo. Condenados por Psístrato, os heróis são punidos em praça pública: Harmódio é condenado à morte e sacrificado, enquanto Aristógiton recebe a pena do martírio. O sacrifício desses homens é considerado o embrião do movimento que levou à instauração da democracia em Atenas. O amor homoerótico aqui se relaciona à ética da fidelidade masculina na Grécia clássica, assim como ao culto do heroísmo, princípios imprescindíveis para a organização das cidades-estado. Na Grécia antiga, são muitos os mitos relacionados ao heroísmo militar, em que temos constantemente a presença do amor homoerótico. Aquiles e seu amor por Pátroclo, relatado por Homero e representado em vasos cerâmicos, parece ser uma das referências mais evidentes. Por outro lado, o famoso batalhão sagrado de Tebas, formado por 150 erastas e 150 erômenos, demonstra que o companheirismo militar também era uma forma de extensão da pederastia como ingrediente que reforçava as alianças de coragem e bravura, necessárias ao sucesso dos empreendimentos militares. O mesmo se pode dizer do severo exército espartano. É por isso que o mais importante pintor do neoclássico francês, Jacques Louis David, representa uma cena de guerra envolvendo os heróis de Esparta em Leônidas nas Termópilas (1814). Essa tela apresenta um teor homoerótico não explícito, tributário dos cânones gregos de representação e bastante recorrente em David, considerado um pioneiro – e, justamente por isso, alvo de críticas em sua época – na transposição da nudez masculina, herdada da escultura clássica, para o plano bidimensional da pintura. As críticas endereçadas a David muito provavelmente referem-se ao caráter real de sua representação, distanciado dos cânones frios trazidos pela nudez escultórica clássica. Cabe ressaltar que, em O banquete, Platão refere-se a dois tipos de amor, trazendo para sua especulação filosófica os costumes universais do mundo grego em relação ao tema. Trata-se do Eros vulgar, pressuposto das relações heterossexuais, e do Eros celeste, que preside as relações entre erastas e erômenos. Se ao primeiro tipo de amor cabe a exaltação do sexo, do prazer e da união carnal com fins de procriação, caberia ao segundo ocupar um lugar especial ao qual corresponderiam preponderantemente virtudes da alma em detrimento do corpo, assim como o alcance do bem moral e da pureza. Essa noção contribuiu para destituir a representação do corpo de seu

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viés desejante, em nome da afirmação de uma forma artística cujo desfecho carnal não interessa, já que está subordinada aos valores espirituais. Se, por um lado, o tratamento dado ao corpo masculino como lugar da idealização o separa da realidade por meio de um princípio que traduz sua importância como uma espécie de ficção, por outro, esse mesmo modelo se torna imprescindível para que se compreenda o pudor no tratamento dado à representação dessa corporalidade pela arte no Ocidente, sobretudo se nos remetermos aos desdobramentos e à influência dos cânones clássicos nela presentes (Scimé, 2004). O corpo masculino na escultura grega, mesmo quando representado sem roupa, segue o protocolo do que se convencionou reconhecer pelo conceito de nu artístico, tornando-se descarnado e asséptico (Clark, 1956; Berger, 1999). O mesmo acontece com as cenas escultóricas nas quais existe a representação, sempre codificada, da pederastia. Nessa lógica, dá-se a instauração, no plano da arte, do que proponho denominar de “corpos invisíveis”, os quais correspondem à própria materialização da norma, conduzindo àquilo que Butler (2000) chama de “corpos que importam”. Na Roma antiga, o homoerotismo não era uma prática condenável, porém, como na Grécia, sua aceitação social era restrita. A rígida hierarquia social romana era transposta para as uniões de cunho sexual e, nessa medida, o homoerotismo era tolerado nas relações entre senhores e escravos, sendo que o papel ativo era recomendado ao senhor, enquanto o passivo era protagonizado pelo escravo. Aliás, as relações passivas para um senhor eram consideradas um crime punido pela lei. Em uma sociedade que se sustentava na conquista militar exercida pelos homens, sodomizar alguém significava estender a noção de poder masculino também às práticas sexuais. Assim, mulheres e subalternos de qualquer sexo, como escravos ou pessoas que se prostituíam, eram vistos como objetos passivos por excelência, os quais deveriam servir ao poder e ao desejo masculinos. Entretanto, como característica da cultura pragmática de Roma, a arte produzida em seus domínios apresenta uma relação de maior proximidade com o mundo real. Nesse aspecto, podemos observar uma ligação mais ampla entre a arte e a vitalidade. Na sociedade que valorizava o indivíduo por seus feitos, o direito reservado aos patrícios, desde o período republicano, de cultuar a imagem de seus antepassados mortos pelo culto às máscaras mortuárias, acaba por tornar-se o elemento que dá origem ao hábito do retrato escultórico. Como arte fortemente calcada no realismo, na temporalidade da representação e, sobretudo, na individualização dos

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personagens representados, o retrato evidencia o valor de culto legado aos heróis eternizados em pedra. Como extensão disso, nas artes de caráter decorativo percebe-se uma relação que remete à representação realista dos retratos. Na pintura parietal e nos objetos decorativos encontrados em Pompeia e Herculano, há representações que explicitam a emergência de um corpo masculino mais real, às vezes tocando até mesmo o bizarro. Um exemplo disso é A pesagem do falo, afresco da Vila dos Vettii em Pompeia, que mostra um homem com uma imensa genitália colocada sobre a bandeja de uma balança. Seu sexo se mostra bem mais pesado do que a soma em moedas colocada no outro prato como contrapeso. A representação é complementada, ainda, pela frase em latim “Hic habitat felicitas”, ou seja, “Aqui habita a felicidade”. Sinônimo de riqueza, o culto ao falo era recorrente na Roma imperial, assim como a representação de sua turgidez, aspecto claramente desprezado e condenável segundo os cânones gregos de representação do nu artístico. Em Roma, o falo ereto aparece em diferentes objetos decorativos, como fontes ou peças feitas em metal. Nesse sentido, há um distanciamento da visão grega do nu como algo etéreo e desumanizado. Não se trata, entretanto, de cultuar o órgão masculino no sentido homoerótico, mas de percebê-lo, em sua turgidez, como veículo da potência e da energia vitais humanas. Por outro lado, no que se refere aos temas mais voltados para a representação do amor homoerótico, as diferentes esculturas de Antínoo, o grande amor do imperador Adriano, são uma referência importante na arte romana. Não apenas por estarem relacionadas ao amor entre um imperador e um jovem rapaz, repetindo de certo modo o que era recorrente no mundo grego com a pederastia, mas também por mostrarem o tema para além das questões puramente hierárquicas. As representações de Antínoo aludem à existência do sentimento amoroso entre os envolvidos e, de certo modo, colaboram para fazer a apologia do homoerotismo intelectualizado e em pleno acordo com os cânones da cultura helênica, fortemente apreciada por Adriano. As diferentes imagens de Antínoo espalhadas pelos domínios romanos mostram o grande amor de Adriano em representações isoladas como um Apolo idealizado, seguindo os princípios de beleza herdados da escultura grega.1 Quando observamos a sobrevivência dos mitos clássicos na arte ocidental a partir do renascimento, um exemplo relacionado ao homoerotismo salta O jovem grego da Bitínia morreu afogado nas águas do Nilo e foi oficialmente transformado em um deus. Além disso, Adriano faz erigir esculturas, templos e também uma cidade em memória de seu amado: Antinópolis.

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aos olhos: trata-se do episódio mitológico da paixão de Zeus pelo jovem pastor Ganímedes, no famoso Rapto de Ganímedes. Transformado em águia, Zeus rapta o jovem adolescente proveniente da Frígia, levando-o com ele para viver no Olimpo, onde substituirá a bela Hebe na função nobre de servir vinho aos deuses. Essa iconografia, que privilegia o rapto em si, atravessou os séculos e foi representada por inúmeros artistas do Renascimento, entre os quais Michelangelo e Cellini, ambos extremamente atuantes na Florença, onde emergiam as ideias neoplatônicas, a partir das quais houve maior liberdade no tratamento dos temas pagãos. Não era apenas pelo amor ao legado filosófico da Grécia antiga que a recorrência do tema se apresentou na arte do período. Entre as razões para a escolha do mito estava também a possibilidade de os artistas produzirem discursos homoeróticos de maneira codificada, sem, contudo, carregar o peso social de sua apologia em ambiente cristão. Como se percebe, a relação entre questões autobiográficas e arte é flagrante em atitudes como essas. Na correspondência de Michelangelo com amigos, há menção ao uso desse tema em contexto diverso daquele de sua origem pagã, mostrando, com certo escárnio, que representar tal iconografia seria uma forma de zombar tanto dos tolos, ignorantes de seu real conteúdo, quanto das próprias regras oficiais da idealização artística (Fernandez, 2001, p. 49). É verdade que, sob a influência do cristianismo, o mito do rapto de Ganímedes foi sofrendo diversas alterações até ser, por fim, destituído de sua conotação erótica, para simbolizar a transcendência, a iluminação divina ou a subida ao céu (Tamagne, 2001, p. 38). O tema pouco conhecido da maioria da população poderia servir como uma homenagem cristã a determinados santos, como São João, do Apocalipse, transportado ao céu. Para que essa substituição fosse feita, bastaria, por exemplo, colocar um halo sobre Ganímedes, detalhe que o faria representar o papel de São João (Fernandez, 2001). Entre as versões mais provocantes do tema, talvez esteja o desenho que Michelangelo oferece a seu amigo Tommaso de Cavalieri como uma sutil declaração de amor, hoje conhecido por meio de uma cópia de Marcello Venusti, ainda do século XVI. Na obra, as pernas separadas de Ganímedes são fortemente dominadas pelas presas da águia, em uma atmosfera que sugere a sodomização do jovem, expondo certa brutalidade ligada à natureza da relação homoerótica entre os personagens míticos. De certo modo, continuamos na seara da representação codificada da pederastia, ainda que

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se trate da menção ao amor grego entre um homem mais velho e um mais jovem. Entretanto, com Annibale Carracci a representação vai mais longe nesse aspecto, no afresco da Galeria Nazionale d’Arte Antica denominado A ascensão de Ganímedes (c. 1600). Apesar de seguir o mesmo modelo do desenho de Michelangelo, a ousadia é maior ao transformar o adolescente em um homem adulto que abraça a águia como se consentisse a entrega ao domínio erótico do deus.

Reprodutibilidade técnica e ativismo artístico A representação do homoerotismo seguiu obedecendo regras que a enquadram no plano do implícito por longo tempo, sendo estas ameaçadas somente em momentos esporádicos, seja na produção esparsa dos artistas consagrados, seja com a entrada mais efetiva da reprodutibilidade técnica e seus desdobramentos no mundo editorial e na vida cotidiana. A gravura foi uma forte aliada para a representação artística mais mundana, sobretudo se nos remetemos à sua ligação com a ilustração de livros obscenos como os do Marquês de Sade, nos quais eram frequentes as alusões a práticas sexuais menos ortodoxas, inclusive homoeróticas. O advento da reprodutibilidade técnica nos séculos XIX e XX caracterizase como um marco a partir do qual há novos parâmetros para pensarmos a arte e o campo artístico. Foi principalmente com a fotografia que encontramos uma grande e rotineira banalização da imagem. Esse processo seria ampliado com o cinema, o vídeo e a imagem digital, transformando sobremaneira a produção dos artistas e suas relações mais aproximadas com a vitalidade, incluindo novas visibilidades para o corpo, assim como constituindo novas maneiras para encararmos a própria representação artística. O mundo autônomo da arte e suas regras veladas de representação, como as anteriormente mencionadas no que concerne ao homoerotismo, vão aos poucos se desmantelando. Com a imagem técnica, da idealização e invisibilidade anteriores, passou-se, sobretudo a partir das vanguardas históricas – e, em um grau mais elevado, a partir da contemporaneidade artística –, a um verdadeiro processo de desvelamento paulatino do corpo; principalmente considerando a recente capacidade de produção e difusão rápida de imagens, bem como seu papel junto aos ativismos políticos de toda ordem. Ainda no século XIX, a fotografia mostra seu poder de disseminação de novas ideias ao captar, sem distinções, tudo o quanto existe no mundo e

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é passível de se tornar imagem (Rouillé, 2005) e ao obrigar as autoridades a impor censura ao comércio e à exposição pública de imagens obscenas do corpo, esse grande e lucrativo alvo da própria fotografia (Freund, 1989). Paralelamente, na passagem do século XIX para o XX se afirmam novas relações culturais com a corporalidade, em grande parte consolidadas pela imagem fotográfica, amplamente inserida nas mídias como dispositivo de divulgação de hábitos e costumes da chamada cultura de massas, inaugurada com a Segunda Revolução Industrial. O culto à saúde e o nascente hábito do fisiculturismo deram, por meio da fotografia, uma visibilidade sem precedentes para o corpo masculino. Como homem forte e de músculos bem talhados, o alemão Eugen Sandow, também conhecido como “O magnífico”, torna-se um ícone do corpo masculino saudável. Não apenas nos espetáculos públicos nos quais exibe sua força, encarnando personagens do imaginário masculino, mas, sobretudo, pela disseminação de sua imagem fotográfica. Suas poses e sua gestualidade ressaltam as qualidades da masculinidade idealizada, reforçando as construções de gênero endereçadas ao sexo masculino desde a antiguidade clássica. Trata-se da configuração de um corpo ligado ao poder e subsidiário da dominação masculina (Bourdieu, 1999). Portanto, mesmo a despeito da homossexualidade de Sandow, estamos falando de um corpo cuja representação não permite a fragilidade, a vulnerabilidade ou a erotização. Historicamente, essas qualidades se constituíram majoritariamente como atributos de gênero ligados à representação do corpo feminino na arte ocidental, inclusive após o advento da reprodutibilidade técnica (Mulvey, 1983). Subjacente ao comércio de fotografias das proezas de Sandow, é estabelecida uma prática de colecionismo da imagem do corpo masculino que conhecerá seu apogeu com as chamadas “revistas para homens” da Belle Époque, ligadas à difusão dos esportes e da saúde corporal e, portanto, ambiguamente tributárias tanto da representação canônica grega quanto de um homoerotismo implícito, no sentido de terem sido feitas para o deleite de outros homens. Essa tradição é seguida pelos magazines norte-americanos de fisiculturismo no pós-guerra, encabeçados pela pioneira Physique Pictorial. Cabe lembrar que, nos Estados Unidos, essas revistas de imagens flagrantemente homoeróticas eram vendidas diretamente a assinantes que preenchiam o pedido de assinatura, recortando-o de um anúncio de jornal e enviando-o discretamente pelo correio. Como se vê, uma atmosfera de clandestinidade marcaria a permissão para fruir esteticamente do corpo

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masculino via imagens, ainda que as mesmas tivessem o álibi cultural de terem sido produzidas para divulgar a saúde do corpo masculino. O mascaramento da condição homoerótica se faria presente também naquelas fotografias mais explícitas do nu masculino. Muitos foram os fotógrafos que se dedicaram à atividade de produzir coleções de imagens da nudez masculina em poses acadêmicas para vender aos pintores e escultores. Com a vantagem do preço das fotografias, os artistas foram paulatinamente dispensando seus modelos vivos e utilizando em grande escala a imagem técnica produzida por esses profissionais especializados no tema, muitos deles advindos da própria pintura (Scharf, 1994). Entretanto, essa prática da produção de imagens acabou por levar alguns fotógrafos muito além dessa premissa, realizando estudos de nu masculino com forte teor homoerótico, como é o caso do francês Eugène Durieu. Em se tratando de estratégias de mascaramento do homoerotismo, aparecem ainda na Belle Époque europeia alguns fotógrafos amadores que, ao utilizarem sua influência social, tornam-se pioneiros no registro fotográfico de jovens nus em ambientes paradisíacos, privilegiando cenários e poses que remetiam à cultura clássica. É o caso do barão de Taormina, Wilhelm von Gloeden. Apesar de esteticamente duvidosas, suas imagens tinham passaporte garantido no comércio com os turistas que frequentavam as praias da costa siciliana, pois escamoteavam seu conteúdo homoerótico sob o código visual do classicismo antigo. Outros fotógrafos que se dedicaram ao tema na mesma época, como Guglielmo von Plüschow, Vincenzo Galdi e Frank Eugene Smith, usaram a mesma tática. Em um período no qual a homossexualidade era perseguida e vista como doença em diversos países da Europa, é provável que as imagens mais picantes desses artistas tivessem circulação restrita a uma rede de interessados pertencente ao círculo mais íntimo desses produtores. Se a fotografia não foi inicialmente bem recebida pelos artistas, não deixou de influenciá-los, do mesmo modo que deles também recebeu influências, aspecto que nutriu tanto a modernidade quanto a contemporaneidade artísticas. Os norte-americanos Thomas Eakins e Fred Holland Day constituem-se exceções à regra do mascaramento da corporalidade homoerótica e parecem estar entre os pioneiros no cruzamento entre arte e vida tendo como linguagem o próprio dispositivo fotográfico. Eakins realiza, com o auxílio de um assistente, na obra Eakins at 45 to 50 (1884-1889), uma série de autorretratos em que trata sua nudez de modo realista: um corpo pouco atlético e em provocante pose feminina é mostrado

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com as nádegas voltadas para o espectador, lembrando a Grande odalisca, de Ingres (1814). O fotógrafo pictorialista Holland Day, por sua vez, realiza façanha parecida em sua série Estudo para a crucificação (1896): além de figurar narcisicamente em algumas imagens, o artista abusa de nus frontais e da languidez das poses de seus jovens modelos, quase como uma blasfêmia. Distantes tanto do corpo masculino como construção de gênero quanto do nu artístico subordinado ao código da contenção herdado da cultura clássica, essas imagens de Eakins e Holland Day são ainda interessantes pela autorrepresentação de cunho quase performático. De certo modo, elas remetem às experimentações posteriores das vanguardas com a fotografia no início do século XX, momento em que se consolidam as aproximações entre arte e vida. É o caso de Marcel Duchamp, com a criação da personagem ambígua Rrose Sélavy, encarnada pelo próprio artista em diferentes situações e fotografada por Man Ray; ou ainda dos autorretratos de Claude Cahun na mesma época, mostrando a artista – que posteriormente participaria do surrealismo – ora como um rapaz bem comportado de terno e gravata, ora como um homem calvo que veste camiseta de física e tem os olhos e a boca pintados. Em qualquer dos casos, Cahun, tal como Duchamp, cria personagens e interpreta identidades sexuais múltiplas diante da câmera fotográfica, trazendo reflexões sobre os papéis fixos de gênero. O mais incrível de tudo é que Claude Cahun reservou esta sua produção artística, feita entre quatro paredes, a um circuito reduzido de amigos íntimos, entre os quais sua namorada Suzanne Malherbe. A situação de clandestinidade e/ou marginalidade da iconografia ligada ao homoerotismo é uma recorrência que se estende até os dias de hoje, inclusive no discurso da história da arte. Mesmo com a chamada revolução sexual, a partir da década de 1960, o mundo ocidental não parece estar ainda suficientemente preparado para receber nem a imagem do corpo masculino em um sentido de exploração de seus atributos desejantes, nem a imagem desse mesmo corpo manifestando sinais evidentes de homoerotismo. É o caso do episódio recente do monumento às vítimas gays do Holocausto, inaugurado no parque Tiergarten em Berlim, no qual um vídeo assinado pelos artistas Michael Elmgreen e Ingar Dragset expõe um beijo entre dois homens, no caso os próprios artistas. Essa obra causou desconforto ao ministro da cultura, que censurou o convite da inauguração que apresentava uma imagem do referido beijo.2 “Beijo gay em Berlim ainda opõe artistas e políticos”. Folha de São Paulo, 27 de junho de 2008.

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Os exemplos de artistas que trabalharam esse tema de modo discreto e paralelamente à sua carreira mais reconhecida são muitos, do mesmo modo que outros permaneceram no limbo por se dedicarem a essa questão, inclusive na contemporaneidade artística. O fotógrafo brasileiro Alair Gomes é um exemplo dessa condição: ele dedicou quase toda a sua obra ao registro do corpo masculino, tanto a partir de flagrantes cotidianos na praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, quanto em situações de ensaios de nus realizados em seu estúdio improvisado, durante as décadas de 1970 e 1980. Gomes passou sua vida praticamente invisível ao mainstream da arte, uma vez que se dedicou, sem concessões, ao tema do homoerotismo e ousou fazer frente aos cânones da representação do corpo masculino. Sua prática poética fora dos padrões da época em que viveu era, por ele mesmo, considerada um trabalho de caráter pessoal, incapaz de vislumbrar uma visibilidade mais ampla junto ao campo artístico e seu conservadorismo. Se durante os anos 1960 e 1970 vivemos um período imprescindível para o avanço dos costumes, com os movimentos das ditas “minorias” – feministas, gays e negros – influenciando também a arte em direção à questão do corpo, os anos 1980 significaram uma etapa de ambiguidades e retrocessos no que concerne às liberdades corporais conquistadas nas décadas precedentes, principalmente em função da epidemia da Aids e a consequente demonização da diferença, que teve a imprensa como aliada na promoção do pânico. A resposta a esse retrocesso moralizante se dá no final da década, quando a noção de diferença é ampliada a partir de movimentos ativistas nos Estados Unidos e na Inglaterra, com grande adesão de artistas. Esses coletivos, além de denunciarem publicamente o descaso dos governos em relação às políticas públicas de saúde, responsáveis pela invisibilidade das vítimas da epidemia da Aids, propunham um ativismo artístico em prol da visibilidade das diferenças. O primeiro deles, intitulado Act Up,3 foi criado em 1987, seguido posteriormente pela chamada Queer Nation e pela Out Rage, ambas de 1990.4 A palavra queer relaciona-se ao modo pejorativo de se referir à homossexualidade, usada com forte carga de desprezo pelos homofóbicos. Por outro lado, queer é também uma referência a tudo que é estranho ou bizarro. Ao ser assumido como o nome de batismo dos grupos interessados Aids Coalition to Unleash Power.

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Cf. Tamagne (2001, pp. 236-53). Essas iniciativas constituíram o embrião da chamada queer theory, grupo de intelectuais norte-americanos interessados nos estudos de gênero, entre os quais a crítica literária e ensaísta Eve Kosofsky Sedwick e a filósofa da Universidade da Califórnia Judith Butler, ambas teóricas influentes do chamado pós-feminismo.

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em discutir a diferença afirmativa, essa palavra alcança um sentido político amplo, servindo para hipotecar as identidades fixas de gênero, legadas pela concepção dual dos comportamentos sexuais. A politização das diferenças trouxe uma ampliação dos estudos de gênero no sentido de reconhecer a sexualidade em suas composições plurais – gay, lésbica, bissexual e transgenérica –, inclusive considerando situações fluidas entre essas orientações, bem como em relação às diferentes conformações de gênero que se ligam ou não aos comportamentos do corpo. Aos queer studies também foram incorporados aspectos sociais ligados à diferença, como os problemas étnicos e os dos imigrantes ilegais na Europa e nos Estados Unidos. Influenciados por Michel Foucault, os estudos queer se interessam pelas micropolíticas do cotidiano e pela maneira com que as diversas questões de gênero organizam e desorganizam a dinâmica da sociedade. Nesse sentido, mais do que reduzir a queer theory a uma história dos grupos relacionados a ela, temos aqui uma proposta política de reflexão acadêmica sobre o modo como as diferentes identidades desses grupos se confrontam, se diluem e se transformam junto ao processo histórico. É a partir dessas discussões que emergem interesses acadêmicos sobre diferença e gênero na arte. Desse modo, aquelas produções de artistas que tocam pelo viés autobiográfico nos comportamentos de gênero abandonam sua invisibilidade cultural. É o caso da produção anteriormente desprezada de muitos artistas, como os desenhos e polaroides de nus masculinos de Andy Warhol, que começam a emergir de sua vasta produção. Ressalte-se, aliás, que desde os anos 1960 – através dos filmes My hustler (1965), Vinyl (1965), Screen test (1965), Bike boy (1967) e os curtas-metragens Blow job (1964), Haircut (1963) e Mario Banana I e II (1964) –, o artista já vinha explorando a sensualidade do corpo masculino, aspecto que se expande ainda mais em sua parceria de filmes com o diretor Paul Morrissey, expondo a nudez do ator Joe D’Alessandro. A filmografia ousada de Andy Warhol não se restringe às experimentações com as imagens; remete ao próprio universo homoerótico que marca a obra do artista como um todo e sobre o qual a historiografia da arte pouco atentou. Entretanto, o artista que talvez melhor tenha ultrapassado todas as convenções historicamente constituídas na representação do corpo masculino e da estética homoerótica seja o norte-americano Robert Mapplethorpe, inclusive pelo fato de que sua obra passa a ter maior visibilidade em meio à explosão da Act Up e da Queer Nation nos Estados Unidos.

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Com uma produção contemporânea voltada para o uso da fotografia, Mapplethorpe traz à tona diferentes aspectos da questão de gênero, discutindo tanto as sexualidades à margem, como o universo S&M de São Francisco, quanto a exuberância corporal da fisiculturista Lisa Lyon ou dos negros norte-americanos, por ele fotografados como esculturas clássicas de ébano. Pela sua repercussão, a fotografia de Mapplethorpe se configura como um divisor de águas capaz de abrir caminhos tanto para novas gerações de artistas quanto para a própria crítica de arte, que experimentou um grande desafio ao se deparar com suas provocações, sobretudo após o processo de censura sofrido pelo artista ao ser acusado de obscenidade, no final da década de 1980 (Meyer, 2002). Para Douglas Crimp, “os debates sobre arte contemporânea não poderiam mais ser os mesmos depois do furor nacional em torno das fotografias de Mapplethorpe” (2005, p. 8). O autor se refere ao despreparo, dentro do qual ele mesmo se inclui, de boa parcela da crítica norte-americana para lidar com as peculiaridades da arte implicada com o tema do homoerotismo depois de Mapplethorpe. Ou seja, caberia ao discurso crítico se desfazer dos preconceitos para lidar mais de perto com a questão da arte e suas relações com a vitalidade, porém com isenção de preconceitos, repetindo a mesma naturalidade com a qual o artista trabalhava (pp. 11-4). Cabe destacar que, quando do advento do processo de acusação de obscenidade, em 1989, a própria defesa de Mapplethorpe ressaltou nos tribunais as qualidades formais de sua fotografia, como se constituísse um verdadeiro processo de apagamento da relação entre a obra e a vida do artista. Ou seja, um apagamento da memória incômoda ligada aos componentes autobiográficos de seu trabalho, operação muito recorrente na história da arte quando o tema gravita em torno do homoerotismo. O contexto explosivo da década de 1990 propicia a emergência mais evidente da corporalidade homoerótica, juntamente com a aparição de um grande caleidoscópio de outras corporalidades que invocam diferentes práticas desejantes para o corpo. Desse modo, novos desafios se abrem para a história da arte no que concerne à inserção mais agressiva do corpo na produção artística. Em suas configurações mais contundentes, essas corporalidades emergentes fazem frente ao discurso normativo e cutucam o silêncio cultural programado durante séculos. Repetindo o questionamento de Butler: “Qual desafio este reino excluído e abjeto produz para uma simbólica hegemonia que poderia forçar uma rearticulação radical daquilo

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que ela qualifica como corpos que importam?” (2000, p. 264). Sem dúvida, sua inserção mais efetiva na arte e na história da arte já significa um passo fundamental para responder essa pergunta.

Referências ALIAGA, José Vicente. Arte y cuestiones de gênero. San Sebastián: Nerea, 2004. BERGER, John. Modos de ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. BUTLER, Judith. “Bodies that matter”. In WARR, Tracey (org.). The artist’s body. Londres: Phaidon, 2000. CLARK, Keneth. O nu: um estudo sobre o ideal em arte. Lisboa: Ulisseia, 1956. CRIMP, Douglas. Sobre as ruínas do museu. São Paulo: Martins Fontes, 2005. DOVER, Kenneth J. A homossexualidade na Grécia antiga. São Paulo: Nova Alexandria, 1978. FERNANDEZ, Dominique. L’amour qui ose dire son nom: art et homosexualité. Paris: Stock, 2001. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988. FREUND, Gisèle. Fotografia e sociedade. Lisboa: Vega, 1989. MEYER, Richard. Out law representation: censorship and the homosexuality in twentiethcentury American art. Boston: Beacon Press, 2002. MOSSÉ, Claude. Atenas: a história de uma democracia. 2 ed. Brasília: Ed. da UnB, 1982. MULVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”. In XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal/ Embrafilme, 1983. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ROUILLÉ, André. La photographie: entre document et art contemporain. Paris: Gallimard, 2005. SCHARF, Aaron. Arte y fotografía. Madri: Alianza Editorial, 1994. SCIMÉ, Giuliana. “Objeto: hombre”. In PÉREZ, David (org.). La certeza vulnerable: cuerpo y fotografia en el siglo XXI. Barcelona: Gustavo Gili, 2004. TAMAGNE, Florence. Mauvais genre? Une histoire des répresentations de l’homosexualité. Paris: EDLM, 2001.

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Tornar-se alferes: declarações do eu e autoficções

Marcelo Campos UERJ

Como alguém se torna aquilo que é? A pergunta de Nietzsche em Ecce homo, livro em que o filósofo faz uma análise de sua trajetória, aponta a problemática que envolve a representação do eu quando os autores, artistas, se autorreferenciam em suas criações. Nietzsche, criticando o mito da objetividade científica, da autonomia da ciência diante da subjetividade, afirma: “A moral da renúncia de si trai uma vontade de fim, nega em seus fundamentos a vida” (1995, p. 115). No conto “O espelho”, Machado de Assis mostra as desventuras de um cavalheiro que perde sua identidade. Ao vislumbrar a possibilidade de se tornar alferes, passa a ter sua condição humana reduzida ou substituída pelo título honorífico. Seus gestos e sua indumentária criam um comportamento fundamental nessa empreitada. Eis o que podemos denominar: reflexividade. Então, ao se ver sozinho em casa, o personagem percebe, olhando no espelho, que não se reconhece mais. Sua imagem não corresponde ao seu eu. Diante dessa constatação, o protagonista toma uma atitude: veste-se de alferes e torna a se mirar no espelho. Com isso, volta a ter sua imagem em consonância com sua autoconsciência. A partir daquele momento, sente-se outro, torna-se “outro” (Assis, 1994, p. 328). Tornar-se outro é um processo que ganha distintas particularidades em culturas e épocas diversas. A hipocrisia era uma qualidade dos atores da tragédia, louvável e estimulada. O hipócrita é aquele que consegue tornar-se outro. Porém, quando a outridade se coaduna com o eu, como justificá-la? Em contrapartida, será que conseguimos nos ver, diante do espelho, separados de um personagem? Transes, máscaras, vestimentas, papéis sociais, todas essas demarcações são recorrentes nas autorrepresentações da arte e da cultura. George Marcus e Michael Fischer consideram que talvez o ponto mais importante de diferenciação entre as culturas seja a concepção de pessoa,

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fundamentando as ideias acerca do “eu e a expressão das emoções” (2000, p. 81). Na Indonésia, por exemplo, a ideia de subjetividade está restrita à figura pública, não se diferenciando da instância privada, “muito diferente da [ideia] do eu autônomo europeu descrito por Freud” (p. 84). Podemos questionar, com isso, a própria noção de sujeito. O pensamento humano, segundo a antropologia de Clifford Geertz, é “uma atividade pública – seu habitat natural é o pátio da casa, o local do mercado e a praça da cidade” (1989, p. 225). Em Bali, os nomes pessoais são raramente usados, sendo substituídos por títulos públicos – e aqui entendemos a metáfora do alferes de Machado de Assis – ou por graus de parentesco – avó, avô, irmão. Portanto, “o nome de alguém é o que resta para esse alguém quando são retirados todos os outros rótulos culturais” (p. 235). Aqui, já começamos a questionar o sentido da autorrepresentação na arte como aquele lugar prenhe de declarações subjetivas, segredadas ao espectador. Não podemos usar tal noção transculturalmente. A modernidade ou o colonialismo definiram uma geografia imaginária, segundo Edward Said, moldada pelo olhar do viajante europeu. A partir dessa nova cartografia, a noção de sujeito passa a ser ditada pela Europa. Geertz adjetiva de egoísta nosso arcabouço de definição da personalidade. Estaria, então, o autorretrato restrito ao sentido do sujeito colonialista moderno? Ainda que a resposta seja positiva, a autoimagem apareceu em distintas épocas como assunto representacional. Certamente, não estaria somente o corpo fadado a habitar toda a personalidade dos indivíduos. Mas, diante dele, mitos, lendas e obras de arte se dedicaram à representação. E talvez por isso o autorretrato ganhe destaque quando se pretende a utópica liberdade íntima do artista. A antropologia contemporânea, chamada de experimental por Marcus e Fischer, pode ativar um questionamento para a história da arte: “Como se pode comunicar a intensidade da experiência de vida em outras culturas?” (2000, p. 118). Meu objetivo, assim, é ampliar a noção de autorretrato, exemplificando outros tipos de declarações do eu e de autoficções, conflitos e fábulas da identidade, nas quais os artistas se autorreferenciem. Marcus e Fischer chamam tais intentos antropológicos de autoetnografia; podemos, então, denominar os exemplos a seguir de autoarte. As autorrepresentações precisam escapar do mero descritivismo dos retratos. Na iluminura datada aproximadamente de 1402 Márcia pintando seu autorretrato, pertencente à Biblioteca Nacional de Paris, o rosto já denota

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um assunto instigante. Vemos a personagem diante de dois espelhos: o real, que ela segura nas mãos, e o retrato pintado na tela sobre o cavalete. Arthur Danto, ao tratar metaforicamente da mímesis no mito de Narciso, nos explica que a identificação direta e simbiótica entre o menino Narciso e o menino-do-reflexo não dá conta da construção de uma obra de arte. Se fosse apenas a crença na cópia perfeita pela sua fisicalidade, Narciso não se iludiria e um copista de Caravaggio seria tão genial quanto o artista. O fato é que a artesania da cópia não define uma obra de arte, assim como a duplicação de um sujeito diante do espelho não o define como pessoa, como no citado exemplo do alferes que precisa se vestir para se reconhecer. Portanto, ser apenas um espelho ou um rosto não é condição principal para ser um autorretrato (Danto, 2005, pp. 42 e ss). Sofonisba Anguissola, pintora contemporânea de Michelangelo, realizou diversos autorretratos. Se autorrepresentou até a velhice, às vezes em atividade, tocando piano, por exemplo, em uma pintura de 1561. Numa passagem anedótica, percebemos ainda mais sua autorrepresentação nas artes da época. Vasari conta que Michelangelo desafiou a artista a fazer o desenho de alguém chorando. Respondendo ironicamente ao mestre, Sofonisba pintou uma cena na qual aparece uma menina rindo de um rapaz que chora por ter metido a mão num cesto de caranguejos. Como mulher, a artista se recusou a pintar o sofrimento da menina. Distante das representações grandiloquentes e categóricas da época, executadas por homens, Anguissola podia se dedicar a representações banais, domésticas, comezinhas, até mesmo ironizando a primazia masculina. É também a partir de representações de uma realidade cotidiana, e nem por isso menos dramática, que Frida Kahlo constrói uma trajetória paralela aos temas políticos, pintados em grandes painéis pelos muralistas mexicanos. A relação entre a autorrepresentação e o universo feminino cria importante caminho para este estudo. Louise Bourgeois, Eva Hesse, Lygia Clark e Ana Mendieta trazem uma pesquisa material, ligando formas assemelhadas aos órgãos genitais, metaforizando tecidos do corpo, fluidos, líquidos, estimulando ações erotizadas em ambientes marcados pela racionalidade masculina da geometria euclidiana. Tratar da poética feminina é um dos desafios da autorrepresentação na contemporaneidade, que viu, a partir dos movimentos pelos direitos civis deflagrados nas décadas de 1960 e 1970, o lugar da mulher como foco de protestos e de novos sintomas formais na linguagem da arte. Analisada pelo teórico espanhol Juan Aliaga, a trajetória feminina na arte procura

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combater, até a atualidade, o androcentrismo e as violências de gênero. Isso é atravessado tanto pela representação do lar como lugar cuja atuação da mulher se torna imprescindível – “a casa e a consequente domesticidade implicavam que a feminilidade se edificava em relação ao ausente marido, que aportava os recursos financeiros para que a ansiada e publicizada aspiração à felicidade pudesse se cumprir” (Aliaga, 2007, p. 194) – quanto pela problemática exploração do corpo feminino como fetiche. Muito se fala das máscaras africanas nas empreitadas do primitivismo, mas as odaliscas de Delacroix e Matisse tornam-se emblemáticas do culto ao corpo e da excitação androcêntrica e exótica diante da outridade. “O tema do harém e das fantasias viris”, esclarece Aliaga, suscitou o corpo feminino “para desfrute de um só homem” (p. 304). Com isso, as Olímpias da pintura ganham destaque, pois configuram um dos signos explorados por Manet e Cézanne (na passagem do século XIX para a modernidade) e reinterpretados por Picasso, que até o último instante questionava a presença do homem diante da cena em Les demoiselles d’Avignon, como vemos nos estudos para a confecção da obra. Hoje, no processo de descolonização, autorretratos, autorrepresentações e autoficções ganham força nos trabalhos de “nativas” que acessam o sistema de arte mundial. São exemplos disso as obras de Shirin Neshat, Ghazel, Shadi Ghadirian e da iraniana Elahe Massumi. Assim como Homi Bhabha, Edward Said e Anish Kapoor, essas artistas são mediadoras entre mundos distintos, iranianas morando em Nova Iorque. A kiss is not a kiss, de Elahe Massumi, é uma videoinstalação de 2000 sobre a prostituição infantil filmada em Nova Déli, “em um país onde se estima que 300 mil crianças estão envolvidas em prostituição. Em cidades como Bombaim, Déli, Chennai e Calcutá, cerca de 15% das prostitutas são crianças”. No vídeo, uma mulher bela e enfeitada, como as odaliscas da história da arte, sofre constrangida enquanto a mão de um homem a acaricia e a desnuda. Aqui, o contratador, em movimento, empreende a ação. Diferente da negra que desnuda a Olímpia de Cézanne, agora o próprio homem descobre o corpo da menor e sacia seu desejo diante das câmeras. Como em Blow job, de Andy Warhol, o close no rosto da menina deixa a ação subentendida. Porém, o prazer em Elahe Massumi é castrador e unívoco, relegado somente ao homem. Esse é um dos exemplos em que artistas nascidas em países periféricos, colonizados, fontes de imagens e personagens do primitivismo do século XX, usam sua arte para denunciar problemas sociais decorrentes da colonização e da situação periférica de

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determinadas nações no século XXI. A isso podemos chamar de reflexividade, de autorretrato. Aliaga alerta para o erro de enfoque ao se tentar aplicar “os postulados feministas surgidos no contexto europeu e norte-americano [...] a outros países com o objetivo de salvar as mulheres das atrocidades da tradição e dos costumes tribais e religiosos e suas mentalidades atrasadas” (2007, p. 300). A chamada descolonização de países africanos e asiáticos deve levar em consideração a especificidade dessas culturas. Em muitas histórias autorreferentes, artistas, ao lidarem com sua própria biografia, se colocam como personagens. Com isso, o caráter de fábula está presente em diversas autorrepresentações. Na pintura de Pablo Picasso A família de acrobatas, de 1905, o pintor se autorrepresentou junto à sua amante, Fernande Olivier, como malabarista. A mulher do quadro segura um bebê, enquanto o casal é observado por um macaco de circo. Um fato a ser destacado é que Picasso quase nunca usava modelos profissionais posando nos retratos. Como destaca Danto, em importante texto sobre Picasso e o retrato, mesmo que a história e a crítica de arte atribuam ao cubismo uma motivação puramente plástica, “a intenção global é apresentar a realidade sentida em termos de algum equivalente visual”. Sua obra artística, afirma o autor, é uma “vasta autobiografia pictórica” (2003, p. 264). Como uma fábula de amor, Marina Abramović também se equilibra, tal qual malabarista, caminhando quilômetros na Muralha da China em sentido oposto ao seu partner e amante Ulay na performance chamada Os amantes, de 1987. Depois de caminharem separadamente, encontraram-se no ponto central da Muralha e se separaram definitivamente, na vida e na arte. Da ação, restaram apenas vestígios em fotografias de terceiros. Em um fenômeno de publicização sem igual para a arte contemporânea, Sophie Calle também faz do amor uma fábula, saindo da esfera privada para as primeiras páginas dos jornais. Em Cuide de você, a artista, depois de receber uma carta de seu amante desfazendo a relação amorosa, resolve enviar a carta para que 107 mulheres a interpretem. Segundo Calle, ela resolveu pedir ajuda a outras mulheres para tentar esgotar o assunto antes de romper o enlace. Hal Foster cria importante polêmica ao desconstruir a crença na relação direta entre expressão artística e sentimento subjetivo: “A transparência do real e do eu, tal como assumida pelo modelo expressivo da arte, se torna problemática [...] a ideia do eu ser uma ficção é libertadora, até mesmo subversiva” (1996, p. 105). Assim, Foster desarticula a relação dada

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principalmente pela busca expressiva da imediaticidade e do espiritual. A partir disso, o eu se destaca como construto, por exemplo, nas imagens de Cindy Sherman. Suas fotografias são autorretratos. Porém, entre a imagem apresentada e a modelo (a própria artista), o que vemos são personagens construídos teatralmente, sempre como still de um filme inexistente. A artista assume a hipocrisia. Tal exemplo e tal afirmação nos servem para revermos, na pintura histórica, a insistência de Rembrandt em se autoficcionar durante toda a sua carreira artística. Vemos o artista com chapéu emplumado, com paleta e pincel, com expressão de surpresa, com braço repousado em uma parede de pedra. Da mesma forma, era comum artistas se colocarem em cenas religiosas, assumindo personagens: Filippo Lippi na Coroação da Virgem, Botticelli na Adoração do mago, Giorgione como Davi, Van der Weyden como São Lucas desenhando a Virgem e a criança, entre outros. Na tentativa de dar materialidade aos retratos, surgem duplos, próteses, sombras. Em algumas interpretações de si, artistas pautados pela ampliação da imagem bidimensional criam curiosos objetos. Antonio Manuel, eliminado em um salão de arte no qual inscreveu a si mesmo como obra, protesta na abertura ficando nu. Depois, cria a caixa Corpobra. Robert Morris utiliza a verticalidade fálica da palavra “eu” – “I” – e se coloca nu, em fotografia, transformando a letra-palavra “I” em porta que, ao ser aberta, revela o corpo do artista, na obra I-box. Man Ray cria uma espécie de máscara mortuária com o molde de seu próprio rosto adornado por um par de óculos. Duchamp cria a prótese de sua própria bochecha em With my tongue in my cheek, produzindo nessa e em outras obras um jogo de linguagem. Também é do jogo de linguagem que Bruce Nauman constrói alguns trabalhos autorreferenciais no intercâmbio entre imagem e reflexo. A partir da tautologia estudada por Wittgenstein, Nauman nos devolve a todo instante a sentença do filósofo: o que resta quando se subtrai do fato de que você levanta seu braço o fato de que seu braço se ergue? Curiosamente, a antropologia de Clifford Geertz também nos propõe uma clássica sentença lançando uma pergunta: como interpretar uma piscadela? Nessa lógica da ação, criam-se vínculos entre a linguagem do corpo e seus significados interpessoais. Coisas diferentes podem ser ditas com gestos idênticos. Nauman, a partir disso, constrói importantes trabalhos. Autorretrato como fonte é um dos exemplos em que ele mesmo encena o lugar do urinol de Duchamp. O corpo, assim, pode ser o ponto de partida para que relações artísticas se amalgamem com predicados irônicos, pessoais, de gênero e de ancestralidades.

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Nas propostas entre a arte e a construção da primeira pessoa, a etnicidade atribui importantes relações a estratégias de posicionamento artístico, político e social. Segundo Geertz, o mundo cotidiano “é habitado não por homens quaisquer, sem rosto, sem qualidades, mas por homens personalizados” (1989, p. 229). Nesse hiato entre o ser social e o ser individual, camadas de cultura são sobrepostas como máscaras sobre pessoas, corpos, rostos. Como no enigma da linguagem, a representação do eu cairá eternamente na vacuidade de ser interior e exterior ao sujeito que fala. Na relação entre corpo social e corpo subjetivo, a pintura corporal indígena fornece, segundo Lúcia Andrade, “uma espécie de cartão de identidade” (1992, p. 125), marcando distintas passagens na vida de grupos como os Asurini, por exemplo. Nos grafismos, homem, mulher, corpo, natureza, encantaria congregam sistemas de representação e sistemas de subjetivação, éthos e visão de mundo. Então, podemos dizer que a pintura corporal é uma espécie de autorretrato. Na lógica da máscara africana, é também de identidade social, cultural e religiosa que tratam os distintivos de cor, forma e, sobretudo, os mecanismos de encenação. No processo ritual, como no alferes de Machado de Assis, os seres são outros, tornam-se outros, mascaram-se. A moral da máscara percorre a arte e configura importante fetiche para representações da alteridade, desde Les demoiselles d’Avignon a artistas que refazem seus próprios rostos como máscaras, como Jean Michel Basquiat ou Jimmie Durham, destacando suas ancestralidades. Jimmie Durham também faz de sua arte um “cartão de identidade” ligando-a a seus distintivos étnicos. Descendente de índios Cherokee, Durham nasceu em Arkansas, em 1940. Dos objetos, o artista sublinha o caráter de fetiche, de totem, apropriando-se tanto de elementos da cultura urbana quanto de amuletos e materiais tipicamente indígenas, como penas de aves e peles de animais. Usa a palavra, escrevendo sobre objetos instalativos tal qual no uso do grafite e dos escritos íntimos espalhados pelas cidades. Faz de sua herança étnica sua política, seu protesto, aderindo a movimentos indígenas, patrulhando exposições de arte. Para a XXVII Bienal de São Paulo, Durham estimulou um boicote por não apresentarem nenhum espaço para os indígenas. Em um autorretrato, o artista cria uma peça de corpo inteiro em material que mimetiza uma pele humana. Podemos chamá-la de máscara, já que para os indígenas a máscara muitas vezes se estende pelo corpo, sendo composta, por exemplo, por roupas, macacões de líber, entrecasca de árvores. O rosto, na obra de Durham, é colorido por maquiagens, as orelhas

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têm brincos classicamente indígenas. Por todo o corpo, são escritas frases e declarações em primeira pessoa: “Olá, eu sou Jimmie Durham, eu quero explicar algumas coisas básicas sobre mim mesmo...”. Assim, Durham vai apresentando seu próprio corpo – abdômen, pênis, rosto – em frases críticas e irônicas, como “Os pênis indígenas geralmente são grandes e coloridos”. Classifica-se a si mesmo como fetiche, dividindo o corpo como o de um animal a ser esquartejado. Durham, com isso, trabalha “com signos sociais como discursos que devem ser superados” (Campos, 1999, p. 34). Critica o preconceito diante da ancestralidade dos sujeitos, que muitas vezes são classificados pela característica da pele e por seus objetos identitários e exóticos, colocando-os como outsiders, como inimigos, principalmente por não pertencerem às linhagens de sangue da corte, à posse dos meios de produção da burguesia ou aos recônditos do clero – três vínculos que definiram a história da arte até o século XIX. O autor sempre ocupa o lugar de um morto. Benjamin, Foucault e Agamben se dedicaram a nos fornecer pistas sobre esse hiato entre narrativa e narrador, autoria individual e domínio público. A narrativa quer ser perfeita a ponto de apagar de vez a autoria e o narrador que se coloca sempre às margens do texto, manipulando fatos e dados que o precedem. No pósestruturalismo, aprendemos a dizer: “Eu”. O sujeito-autor, tão excluído do discurso a favor de universalismos, autonomias da linguagem, hoje se coloca como ser subjetivo, culturalmente inscrito. James Clifford relata a experiência da etnógrafa Marjorie Shostak, que se dedicou a pesquisar a condição feminina numa comunidade de caçadores-coletores. Nisa, sua informante, lembrava e explicava a própria vida, perfazendo os fatos sociais, coletivos. Shostak, atenta à pertinência de manter a autonomia textual de sua personagem, vai construindo a duração de um ciclo de vida: casamento, sexo, maternidade, perda, envelhecimento. Porém, somente quando Shostak se dedica ao registro do trabalho de campo é que encontramos as chaves para diversas explicações incompletas na teoria. O livro, segundo Clifford, parte de um novo interesse do pós-estruturalismo em “revalorizar aspectos subjetivos, mais precisamente intersubjetivos” (2002, p. 76). Nessa construção da intersubjetividade entre Shostak e a comunidade Ikung, numa observação a princípio distraída, a consonância entre representação e autorrepresentação se deu. Shostak percebeu que uma menina de 12 anos olhava insistentemente seu próprio rosto no retrovisor do Land Rover da equipe de trabalho. A antropóloga, então, usou um modo

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de tratamento, uma brincadeira própria daquela comunidade que era um elogio às avessas: “Tão feia”, disse. “Como pode uma menina desta idade ser tão feia?”. Ao que a menina respondeu: “Não, de jeito nenhum, eu sou bonita”. “Bonita?”, disse Shostak. “Talvez meus olhos tenham ficado gastos com a idade, e por isso não consigo ver onde é que está essa beleza”. A menina respondeu: “Está em todo lugar, no meu rosto, no meu corpo. Não tem nenhuma feiura aqui” (Clifford, 2002, pp. 77 e ss.). A etnógrafa tocara num dos distintivos mais subjetivos de classificação da alteridade, a beleza. Segundo James Clifford, ao assumir a primeira pessoa do discurso, despojando-se do lugar de cientista e colocando-se como personagem de uma história, a antropóloga forneceu a profundidade que faltava para essa alegoria etnográfica. Uma se mirando no espelho da outra. Diferenças de idade, de destinos, de desejos e de etnicidade. Reflexividades em jogo na construção do feminino. Dois sujeitos diante do espelho. Diante dos espelhos, vimos cenas clássicas da história da arte. O espelho pode ser entendido como protagonista nas encenações das bailarinas de Degas, no quarto do casal Arnolfini, na opulência de Versalhes. Yinka Shonibare reinterpreta essa herança da história da arte, mostrando-nos uma dicotomia que define a primeira pessoa e ganha, cada vez mais, o interesse da arte e da antropologia: a etnicidade. Na série fotográfica Odile e Odete, Shonibare coloca uma cena de balé com a bailarina diante do espelho. Porém, a imagem refletida muda a etnicidade da personagem: uma branca, outra negra. O balé, um dos mecanismos mais usados para a constituição da feminilidade civilizatória, é denunciado pelo artista como lugar de exclusão social. Hoje, para alguns desde Magiciens de la Terre, as exposições de arte se dedicam a incluir uma pluralidade de lugares e artistas para além dos circuitos estabelecidos. Atualmente, qualquer bienal no mundo apresenta artistas iranianos, africanos, brasileiros. Talvez isso seja um sintoma do multiculturalismo. Yinka Shonibare é negro, nasceu em Londres e foi morar na África com três anos de idade. É um desses sujeitos em trânsito sobre os quais tratamos anteriormente. A roupa define o alferes de Machado de Assis e a suposta África define Shonibare. O artista tem no tecido supostamente africano sua marca identitária. Faz instalações com manequins vestindo roupas de corte, porém todas em tecidos multicoloridos, estampados com motivos africanos. Já se inicia aí sua primeira denúncia: grande parte dos tecidos tipicamente africanos é produzida nas indústrias da Holanda. Nas instalações, Shonibare explora cenas típicas do processo civilizador, sujeitos sentados em escrivaninhas, assinando documentos, empunhando armas.

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Em diversas obras, o artista encena poses eróticas, mostrando personagens tentando levar vantagens. Cita, recorrentemente, a história da arte para denunciar a exclusão social e geográfica. Apropria-se da famosa série de Goya, chamada O sono da razão produz monstros, e inclui um ponto de interrogação precedido por lugares no final da frase: “O sono da razão produz monstros na América, na Ásia, na Austrália, na Europa?”. Para cada fotografia, o personagem sentado muda de idade e de etnicidade. Com esse último exemplo, podemos dizer que o sono da razão também produziu uma história da arte excludente e geocêntrica. Tal qual o alferes de Machado de Assis, diante de mim mesmo e das autoficções analisadas neste texto, tenho diversas imagens e declarações de reflexividades: reproduções fidedignas? Imagens e semelhanças? Como fornecer a construção da primeira pessoa do relato? Como inserir um texto numa autoanálise? Entre minha imagem etnicamente mestiça, academicamente híbrida e as imagens-de-reflexo exemplificadas aqui, insistem como presença, ora estrangeira, ora familiar, os vazios da arte e do espelho.

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A biografia, o gênio e a morte do autor

Maria de Fátima Morethy Couto Unicamp

Eu realmente penso que não sou ninguém. Se você trabalha como artista, você se devasta. Quanto mais você trabalha, menos você existe, e cada vez que você dá uma entrevista, uma parte de você desaparece. Parece horrível, mas também pode ser uma coisa boa, pois é mais fácil viver do que fazer arte. Christian Boltanski

Os primeiros trabalhos de caráter experimental do artista francês Christian Boltanski, realizados entre o final da década de 1960 e o início da década de 1970, foram, em sua maioria, concebidos de modo a discutir os limites da narrativa biográfica. Servindo-se de imagens, textos e objetos de diferentes origens e com eles construindo pequenos livros de artista, vitrines museológicas ou instalações, Boltanski recriou o passado de seus personagens, atribuindo legendas falsas às suas fontes iconográficas, modificando a cronologia dos eventos retratados, cruzando o ficcional e o documental e embaralhando a história. A seu respeito, soube elaborar, com perspicácia, uma versão mitificada de sua própria existência, tecendo uma narrativa de primeira pessoa sem relação intrínseca com sua vida cotidiana. Em Recherche et présentation de tout ce qui reste de mon enfance, 1944-1950, seu primeiro livro de artista, editado em 1969, Boltanski reuniu imagens diversas – fotos de família, da turma da escola, de objetos de infância – e fragmentos de textos, identificando-os como seus por meio de legendas precisas. Embora Boltanski afirme, na apresentação do livro, ter-lhe sido muito difícil reencontrar aqueles poucos elementos ligados a seu passado e declare que só foi possível “provar sua autenticidade, situá-los com exatidão”, por meio de “questões incessantes e de uma pesquisa minuciosa”, vários dos objetos ali reproduzidos jamais lhe pertenceram. Em 10 portraits photographiques de Christian Boltanski 1946-1964, de 1972, temos acesso a um

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conjunto de fotografias em preto e branco de formato idêntico cujas legendas manuscritas indicam tratar-se de registros do artista em diversas fases de sua vida, dos dois aos vinte anos de idade. Na realidade, essas fotos foram tiradas por sua companheira no mesmo dia, no parque de Montsouris, em Paris, de diferentes crianças e rapazes em poses similares. Apenas a última imagem do conjunto é de fato de Boltanski, mas sua legenda também é falsa, pois ele teria, naquele momento, quase trinta anos de idade e não vinte, conforme indicado. É importante ressaltar que o artista jamais teve a intenção de esconder por completo sua suposta farsa. No caso de 10 portraits photographiques, por exemplo, um observador atento não demoraria a duvidar da relação entre texto e imagem em razão da pouca semelhança entre os retratados. Em outras ocasiões, o caráter ficcional da narrativa por ele estabelecida se faz ainda mais evidente, como em Reconstitution d’un accident qui ne m’est pas encontré arrivé et ou j’ai trouvé la mort, também de 1969, livro no qual ele agrupa documentos variados que comprovam sua morte futura em consequência de um acidente de bicicleta. Boltanski tampouco buscou construir uma autobiografia heroica ou gloriosa. Muito pelo contrário: ele afirma jamais ter desejado falar verdadeiramente de si, pois o que lhe interessa de fato é “a passagem do que é mais íntimo ao que é mais coletivo”. A seu ver, o artista é aquele que envia uma espécie de estímulo ao observador, cabendo a este apropriar-se da imagem/estímulo oferecida e terminar livremente a obra. O artista é alguém que possui um espelho no lugar do rosto, no qual cada um pode ver seu próprio reflexo. “Ao falar de si, ou de um sujeito inventado, o artista fala de cada um, e cada um pode ali se reconhecer”, declara. A seu respeito, diz “ter sempre tudo inventado, nunca havia nada de verdadeiro. Eu inventei uma infância comum, a mais coletiva possível, sem a menor anormalidade” (Boltanski e Grenier, 2007, pp. 83-4). “Grande parte de minha atividade”, sustenta em outra ocasião, “está relacionada à ideia de biografia, mas uma biografia totalmente falsa e dada como falsa por meio de toda espécie de provas falsas” (apud Gumpert, 1992, p. 13). Boltanski parece perseguir os mesmos objetivos em outras obras desse período que não possuem caráter autobiográfico. Em Album de photos de la famille D. entre 1939 et 1964, elaborada em 1971, ele escolhe e manda refotografar cerca de 150 fotos de família dentre as várias que um amigo lhe emprestara e, sem conhecer detalhes da vida das pessoas nelas retratadas,

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tenta reconstituir a história desse núcleo familiar compondo arranjos visuais e ordenando as imagens da maneira que acredita ser a mais coerente. Em seus Inventaires, instalações apresentadas ao todo em sete ocasiões distintas, de 1973 a 1989, e compostas por um conjunto variado de objetos (móveis, utensílios domésticos, objetos decorativos e de uso pessoal etc.) que pertencem ou pertenceram a uma determinada pessoa, em geral desconhecida do artista, ele deixa para o espectador a tarefa de recompor a vida desse indivíduo, levando-o assim a refletir sobre o que se pode aprender sobre alguém examinando seus bens pessoais. Na realidade, na opinião de Boltanski, cada pessoa que entra em contato com um de seus Inventários reencontra seu próprio eu, seu próprio retrato. “Aprendemos mais sobre nós mesmos do que sobre a pessoa objeto do Inventário” (Boltanski e Grenier, 2007, p. 77). Para Didier Semin, os trabalhos de cunho autobiográfico de Christian Boltanski contestam de forma direta uma tradição narrativa que remonta a Vasari e seu projeto de descrever a vida dos artistas tal qual “um épico, uma coleção de anedotas edificadoras e feitos miraculosos” e que persiste ainda hoje. Assinalando que “a arte contemporânea, para muitos, consiste mais na memória de ações remarcáveis feitas pelo artista do que em trabalhos autônomos concebidos para sobreviver aos percalços do tempo”, Semin (2008) observa o quanto o jovem Boltanski distanciou-se de outros nomes de destaque no cenário artístico internacional dos anos 1960-1970, como Warhol ou Beuys, ao construir para si uma identidade fictícia fortemente estereotipada e pouco invejável. Além disso, ao manipular constantemente suas fontes e documentos, ao confundir voluntariamente realidade e ficção, faz-nos suspeitar de relatos pretensamente autênticos, centrados na figura do autor/criador e sua história individual. Para os fins deste texto, que tem por objetivo analisar as repercussões da narrativa vasariana, calcada na relação entre biografia e obra, para a história da arte ocidental, interessa-me ressaltar o quanto o trabalho do jovem Boltanski, entre outros tantos exemplos desse mesmo período, obriga-nos a refletir sobre a validade de um modelo de escrita e de pensamento que celebra o artista por sua singularidade e concebe a história da arte como o campo de estudo dos feitos de homens excepcionais. Como demonstra Georges Didi-Huberman no livro Devant l’image. Question posée aux fins d’une histoire de l’art, tratava-se então, para Vasari, de elaborar um novo gênero de “narrativa que tivesse um sentido, ou seja, uma direção e um fim [...] mas que também pudesse ser lida pelo príncipe

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[mecenas] e que fosse eficaz e autoglorificante para todos os artefici del disegno” (Didi-Huberman, 1990, p. 86). Como objetivo maior, havia o interesse em romper com a noção de arte enquanto ofício e legitimar a arte renascente – em especial a florentina – como uma prática “nobre, coerente, uma prática intelectual e liberal” e seus criadores como homens de elite. Na visão de Vasari e de vários de seus contemporâneos, a Idade Média fora um período sombrio, pois relegara os artistas da antiguidade clássica ao esquecimento, apagando seus nomes da história, assim como seus belos exemplos. Dentro desse espírito, Vasari empenhou-se em “salvar os artistas de sua segunda morte” escrevendo sobre suas vidas, trajetórias e trabalhos, tornando assim a arte inesquecível ou imortal. Renegou ainda o modelo de aprendizado das corporações medievais, auxiliando a fundar, em 1563, a Academia del Disegno em Florença, que “consagraria definitivamente o métier do artista como liberal” e daria início à era das belas artes.5 O que se constitui nesse momento, afirma Didi-Huberman, é uma segunda religião, uma religião localizada no campo denominado ‘arte’. Ela promove seu conceito de imortalidade com base em uma utilização glorificante da memória [...]. A religião que inventa Vasari é uma religião de classe – e mesmo uma religião de primeira classe, que concerne apenas os homens de elite [...]. A história da arte teria então nascido – ou renascido – inventando um novo gênero humano: uma elite, uma nobreza não do sangue, mas da virtude (1990, p. 83).

A valorização desse novo corpo social, dessa nova categoria profissional, à qual o próprio Vasari pertencia, dar-se-á, portanto, por meio de diversas estratégias de positivação, entre as quais a elaboração de relatos históricobiográficos plausíveis, instigantes, laudatórios e agradáveis, porém não necessariamente verdadeiros. Em estudo no qual analisam a construção da imagem do artista na sociedade ocidental, Ernst Kris e Otto Kruz identificam traços recorrentes – fórmulas narrativas, anedotas artísticas, episódios biográficos similares – que se repetem com pouca ou nenhuma variação em diversas biografias ou crônicas sobre artistas – pintores, escultores e arquitetos – escritas em diferentes momentos da história, algumas das quais anteriores a Vasari. Kris e Kurz consideram haver uma raiz comum entre Recorde-se que pintura e escultura eram até então consideradas artes mecânicas, como toda e qualquer ocupação manual. Segundo tradição herdada da antiguidade clássica, formavam as chamadas artes liberais a gramática, a dialética, a retórica, a aritmética, a geometria, a astronomia e a música. Nathalie Heinich (1993) considera que, no caso da França, foi a fundação da Academia Real de Pintura e Escultura, em 1648, que possibilitou o rompimento com o quadro corporativo medieval dos chamados fazedores de imagens (imagiers).

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esses temas biográficos típicos e as estórias de caráter mitológico, em especial as que tratam da saga dos heróis, e acreditam que tal associação remonta aos primórdios de nossa história escrita, ainda que nem todas as culturas e sociedades antigas tenham conferido um lugar especial a seus artistas plásticos. A pesquisa de ambos busca comprovar que, desde o momento em que o artista fez a sua aparição em registros históricos, algumas noções estereotipadas foram relacionadas a seu trabalho e sua pessoa – preconceitos [preconceptions] que nunca perderam inteiramente sua importância e que ainda hoje influenciam nossa visão do que seja o artista. [...] Apesar de todas as modificações e transformações sofridas, elas mantiveram alguns de seus significados originais até o passado mais recente, apenas sua origem se perdeu de vista e deve ser minuciosamente recuperada (1979, pp. 3-4).6

Várias biografias, por exemplo, referem-se à infância do artista, descrevendo o momento em que ele, ainda criança, teve seu talento reconhecido por um passante – em geral alguém de renome – por conta dos desenhos que realizara ao acaso, enquanto desempenhava suas tarefas cotidianas. É nesses termos que Vasari relata a descoberta de Giotto, filho de um simples camponês, por Cimabue, tecendo comentários similares a respeito de Andrea Sansovino e de Andrea del Castagno. Semelhante história se conta sobre o pintor japonês Maruyama Okyo, descoberto por um samurai de passagem depois de ter desenhado um pinheiro em um saco de papel na loja da cidade (Kris e Kruz, 1979). O artista, nesse caso, é visto como uma criança prodígio que, em razão de um acontecimento fortuito – ou do destino –, tem a possibilidade de mudar de status social. Afirma-se ainda, nesse contexto, a ideia de que a criatividade artística não é determinada por horas de prática ou de aprendizado, mas por um dom especial, um talento inato que justificaria o pertencimento do artista à comunidade de gênios. Outro tema – constante nos relatos biográficos dos mais variados períodos e culturas – usado com o intuito de ressaltar a virtuosidade do artista diz respeito à sua capacidade de imitar com destreza o real, ou mesmo de superá-lo, corrigindo suas imperfeições e iludindo completamente o espectador. São frequentes as passagens que descrevem situações nas quais a obra de arte é confundida com a realidade, em que o retrato é tomado por aquele que ele retrata, esculturas parecem dotadas de movimento ou Todavia, os autores salientam que somente a partir do renascimento, quando o pintor e/ou escultor logra romper com a tradição do anonimato e ganha reconhecimento público e status diferenciado, a biografia do artista se consagra enquanto gênero narrativo independente.

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seduzem seus próprios criadores e animais pintados atraem aqueles que vivem. É célebre o trecho em que Plínio narra o encontro dos pintores Zeuxis e Parrhasios: Zeuxis pintou uvas; alguns pardais que por ali voavam tentaram bicálas. Parrhasios pediu então para Zeuxis acompanhá-lo a seu estúdio, onde ele demonstraria que poderia fazer algo parecido. No estúdio, Zeuxis pediu para Parrhasios puxar a cortina que cobria a pintura. Mas a cortina era pintada. Zeuxis reconheceu a superioridade de Parrhasios: ‘Enganei os pardais, mas você me enganou’ (Kris e Kruz, 1979, p. 62).

Kris e Kurz também fazem menção a escritos mais recentes, que datam dos séculos XVI-XVIII e que se servem dos mesmos artifícios para exaltar a mestria de alguns artistas do renascimento, como o relato de Vasari sobre passantes que confundiam o retrato do papa Paulo III, que havia sido colocado por Ticiano para secar em uma janela, com o próprio papa, e o saudavam. Outro exemplo é o relato de Zuccaro sobre um cardeal que entregou caneta e tinta para a imagem do papa Leão X pintada por Rafael, visando obter sua assinatura, ou ainda a história contada por Aretino do cordeiro carregado por São João Batista em um quadro de autoria de Ticiano que provocou balidos alegres de uma ovelha. Se é evidente que essas historietas, tais como as fábulas criadas por Boltanski, são inverídicas e hoje nos fazem rir, seu valor como figura retórica, como instrumento de persuasão, não deve ser menosprezado. Elas revelam que, nas mais diferentes sociedades, a narrativa biográfica é um recurso eficaz e poderoso de legitimação do artista. É por outro viés que Maurice Merleau-Ponty aborda o tema da relação entre a vida e a obra de um artista em “A dúvida de Cézanne”. Nele, o filósofo francês nos leva a refletir sobre a impossibilidade de associarmos de forma direta e unívoca dados biográficos, da ordem do pessoal, ao fracasso ou ao sucesso estético de uma obra de arte, contestando as análises que viam Cézanne como um “gênio abortado” (Émile Zola) ou como um pintor que se entregara “ao caos das sensações (Émile Bernard), tal qual Frenhofer, personagem da Obra prima ignorada, de Balzac. “Não teria sido o fato de terem dado muito importância à psicologia, ao conhecimento pessoal de Cézanne, que levou Zola e Émile Bernard a acreditarem no fracasso do amigo?”, pergunta-se Merleau-Ponty (1975, pp. 303-16). Cabe ressaltar que, em seus últimos anos de vida, Cézanne viu seu isolamento e sua rotina alterarem-se em função da visita de vários

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admiradores de sua obra, os quais, impulsionados por sua crescente reputação, mostravam-se interessados em conhecer suas ideias e seu método de trabalho. Muitos desses visitantes e algumas de suas (poucas) relações mais próximas não tardaram a publicar artigos e livros sobre seus encontros com o “mestre de Aix”, nos quais entremeavam comentários sobre sua obra com declarações a respeito de seu temperamento difícil, sua misantropia, suas hesitações.7 Nos textos de Émile Bernard, por exemplo, podemos ler que “na rua as crianças riam dele [Cézanne] e lhe atiravam pedras” (1978, p. 54). Ou ainda que, em uma ocasião, ao tentar ajudar Cézanne a se manter de pé, o pintor foi tomado por um acesso de cólera, começou a xingar e me destratou. Então, correu adiante, olhando de tempos em tempos receosamente em minha direção, como se eu tivesse tentado tirar sua vida. [...] Eu conhecia há muito pouco tempo meu velho mestre para saber de todas as particularidades de seu caráter (pp. 69-70).

Para Merleau-Ponty, anedotas como essas não fornecem o sentido positivo do trabalho de Cézanne, induzindo-nos a tomar sua obra como uma “manifestação doentia”, um “fenômeno de decadência”. Todavia, em sua opinião, a pintura de Cézanne deve ser vista como exemplo de um encontro bem-sucedido entre o artista e a natureza, encontro esse não mediado por ideias preconcebidas. Talvez, afirma Merleau-Ponty, Cézanne tenha podido, “entregue a si mesmo, olhar para a natureza como só um homem saberia fazê-lo, [...] concebendo uma forma de arte válida para todos” (1975, p. 304). Embora não negue que vida e obra se comunicam e defenda a importância das intuições psicanalíticas para a compreensão do fenômeno artístico, reportando-se de forma positiva ao texto de Freud sobre Leonardo da Vinci, Merleau-Ponty considera que devemos partir do princípio de que não é a vida que explica a obra, e sim que a obra a fazer exigia esta vida. A seu ver, a incerteza e a solidão de Cézanne não se explicam, no essencial, por sua constituição nervosa, mas pela intenção de sua obra. [...] Se nos parece que a vida de Cézanne trazia em germe sua obra, é porque conhecemos sua obra antes e vemos através dela as circunstâncias da vida, carregando-as de um sentido que tomamos à obra (p. 311). Podemos citar como exemplo, entre outros títulos publicados nas primeiras décadas do século XX, os artigos de Bernard (1904), Rivière e Schnerb (1907), Borély (1926), Denis (1920) e Camoin, (1920), além dos livros de Larguier (1925), Gasquet (1926) e Vollard (1914), primeiro marchand de Cézanne. Todos os autores, em seus textos, falam sobre suas visitas a Cézanne e descrevem suas impressões sobre o homem e o artista. Ressalte-se ainda que a obra de Cézanne foi objeto de diversas interpretações psicanalíticas, destacando-se, nesse campo, os estudos de Sidney Geist, Theodore Reff e Meyer Schapiro.

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A tese de que o sentido e o valor da obra de um artista não são inteiramente determinados por aspectos biográficos está longe de ser uma unanimidade no campo da história da arte, como comprovam os diversos estudos que estabelecem relações de causa e efeito entre vida e obra e buscam explicar a última em função da primeira. Tomo como exemplo dessa postura metodológica as análises que consideram que o recuo formal de Anita Malfatti após sua célebre exposição individual de 1917 foi motivado por questões exclusivamente pessoais, engendradas pelo mal-estar causado pelas ácidas críticas de Monteiro Lobato a seu trabalho. Em seu pioneiro livro sobre a Semana de Arte Moderna, Aracy Amaral afirma que “a pintura de Anita […] se debilitaria sensivelmente a partir das críticas de Lobato e a artista [perderia] sua vitalidade nervosa de 1917” (1998, p. 250). Também Marta Rossetti Batista, biógrafa “oficial” de Anita, considera que “as mãos expressionistas começaram a duvidar da própria validade do caminho seguido, das conquistas alemães às norte-americanas” (2006, p. 238), após a publicação do texto de Lobato. Outros autores, sem rejeitar por completo o peso da palavra de Monteiro Lobato, propuseram uma hipótese distinta, porém de cunho igualmente pessoal, para o progressivo distanciamento de Anita das formulações mais radicais das vanguardas internacionais. Refiro-me à ideia de que a entrada em cena da bela e aristocrática Tarsila acentuou a insegurança pessoal de Anita, levando-a a retrair-se e a renegar seu engajamento vanguardista inicial em prol de uma arte sem excessos. Gilda de Mello e Souza e Sérgio Miceli consideram que houve um enfrentamento direto e desigual entre a moça feia e sem afeto amoroso – Anita – e a mulher atraente e sofisticada, de beleza esfuziante – Tarsila –, e colocam a primeira em posição nitidamente inferior à segunda também no campo profissional. Para Gilda de Mello e Souza, o comportamento artístico de Anita é o de quem foi rejeitada: pela vida, que não a fez bonita; pela crítica, que investiu contra sua arte; pela estética vigente, que não lhe permitiu extravasar o drama pessoal; pelos companheiros, que não a trataram como mulher (1980, pp. 269-72).

Tarsila, ao contrário, teve a seu favor “o fato de ter sido uma mulher bonita. [...] Se isso jamais interferiu diretamente na avaliação que os contemporâneos fizeram do seu talento, auxiliou-a sem dúvida a cumprir seu destino” (pp. 269-72). Sérgio Miceli, por sua vez, considera que

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a marca autoral de Anita tem a ver, sobretudo, com suas dificuldades de assumir sua plenitude afetiva como mulher, em parte por conta de suas constrições de imigrante, que a condenam ao celibato, em parte por força da postura defensiva que se viu impelida a adotar em virtude da mão defeituosa (2003, p. 123).

Em sua opinião, a mão deformada, sempre recoberta por um “lenço colorido displicentemente ali esquecido”, resultou em uma “fragilidade física” que provocou uma “fragilidade emocional” em Anita, que a impediu de traçar um percurso uniforme e sem vacilações, ao contrário de Tarsila, que “retornou à Europa em 1923 [...] decidida a alterar os rumos de seu aprendizado artístico [...] e a mobilizar o que fosse preciso para afirmar sua condição de mulher e artista bem-sucedida” (p. 130). O embate entre as duas artistas deu-se, portanto, em bases bastante diferenciadas e a “vencedora”, segundo o autor, não poderia ser outra: Enquanto a estigmatizada Anita Malfatti construiu sua obra como protocolo sofrido de um itinerário afetivo marcado pela solidão e pelo isolamento, acossada por carências físicas e afetivas (a mão defeituosa, o celibato), a belíssima Tarsila do Amaral desenvolveu o período de maior criatividade de sua carreira como artista plástica nos ritmos e conteúdos ditados pela parceria amorosa com o escritor Oswald de Andrade (p. 97).8

É fato que, ao analisarmos Autorretrato com casaco vermelho, pintado por Tarsila do Amaral em 1923, ano-chave em sua carreira, reconhecemos ali uma mulher elegante, segura de si, que tem certeza de seus atributos físicos e de seu poder de sedução. A própria pintora se mostrava bastante consciente da impressão que causava à sua volta, conforme expôs em diversas cartas enviadas de Paris à sua família. Em 1923, escreveria aos pais dizendo que esteve “num jantar dos artistas do Salão das Tulherias. Muita gente. Artistas de valor e outros medíocres. Estreei o meu vestido amarelo de chez Patou. Parecia uma rainha. Todos os olhares convergiram para mim...” (apud Amaral, 2003, p. 408). Em seu texto, Miceli refere-se ainda ao amor platônico de Anita por seu amigo Mário e analisa alguns de seus quadros dentro desse prisma. Já Tadeu Chiarelli critica enfaticamente a hipótese de que a suposta fraqueza emocional de Anita foi a causa de seu retrocesso no campo das artes. Para Chiarelli, Anita sofreu do mesmo descaso com que a história da arte oficial do século XX tratou “os artistas que, apenas circunstancialmente, tangenciaram o projeto moderno no decorrer de suas trajetórias e/ou que se engajaram por breve período nas correntes que contestavam tanto a tradição quanto a própria modernidade” (1999, p. 158). O autor entende o abandono de posições estéticas mais radicais como uma “atitude comum a outros artistas internacionais igualmente ligados às vanguardas, como Picasso, Derain, Sironi e outros”.

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Dois anos mais tarde, em outra de suas temporadas em Paris, relataria: Ontem fui com Betita a um baile na Ópera. Fiz sucesso como mulher linda e dei um passo importantíssimo na minha carreira artística, pois fui convidada pelo sr. Maurice de Valeff, diretor do jornal Paris-Midi e uma das figuras mais importantes da imprensa daqui, para realizar minha exposição no grande salão de festas de Le Journal (p. 185).

Ressalte-se que, em seu caso, os dois papéis – de mulher elegante e de artista em busca de reconhecimento – se mesclam, não sendo possível dissociar sua aceitação no restrito meio da vanguarda parisiense dos anos 1920 de seus contatos sociais. Mas, tendo em mente as colocações de Merleau-Ponty, pergunto-me se esses comentários, do domínio do privado, auxiliam-nos a analisar sua obra. Se Tarsila, intencionalmente, cria de si uma imagem deslumbrante, por meio da qual revela à crítica e ao público brasileiros sua pronta assimilação dos conselhos de seus novos mestres franceses, enquanto Anita hesita em relação aos rumos a tomar e revê suas filiações artísticas, declarando-se uma simples “colegial em Paris”, isso não nos autoriza a inferir que o trabalho de uma artista é superior ao da outra. Ademais, em que medida a imagem criada por Tarsila é mais verdadeira do que os personagens inventados por Boltanski? Não poderia terminar este artigo sem evocar o célebre texto de Roland Barthes, “A morte do autor” (2004, pp. 57-64), publicado em 1968, e assinalar suas repercussões imediatas no campo das artes visuais. Nele, Barthes decreta a morte do autor – personagem inventado pela sociedade ocidental após o fim da Idade Média – em proveito da figura do leitor – representante de uma coletividade renovável – e critica o fato de que a explicação da obra seja sempre buscada do lado de quem a produziu: A imagem da literatura que se pode encontrar na cultura corrente está tiranicamente centralizada na figura do autor, sua pessoa, sua história, seus gostos, suas paixões; a crítica consiste ainda, o mais das vezes, em dizer que a obra de Baudelaire é o fracasso do homem Baudelaire, a de Van Gogh é a loucura, a de Tchaikovski é o seu vício (p. 58).

Barthes, ao contrário, acredita não existir um antes – o autor que nutre o livro – e um depois – a obra: “O escritor moderno nasce ao mesmo tempo que seu texto [...]; outro tempo não há que sua enunciação, e todo texto é escrito aqui e agora”. Afirma que desde Mallarmé já se sabe que “é a linguagem quem fala, não o autor”. Nesse sentido, “dar ao texto um autor é impor-lhe um travão, é provê-lo de um significado último, é fechar a escritura”, a qual

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deve ser entendida como atividade múltipla e não como “a voz de uma só e mesma pessoa [...] a revelar a sua confidência” (p. 63). Mesmo obras como a de Proust, escritor que parece “colocar sua vida em seu romance”, demandam análises que ultrapassem a figura do autor enquanto criador absoluto, gênio solitário, e a visão da arte enquanto expressão de uma personalidade singular cujos passos e pensamentos podem ser acompanhados e desmembrados. Na opinião de Barthes, Proust, ao contrário do que muitos pensam, logrou desorganizar a lógica ilusória da biografia, lógica essa que segue “a ordem puramente matemática da passagem dos anos”, subtraindo o tempo rememorado da “falsa permanência da biografia”. Se, em seus textos, numerosos elementos de sua vida pessoal são ainda conservados, eles estão, afirma Barthes, desviados: “Como se vê, o que passa para a obra é, de fato, a vida do autor, mas uma vida desorientada. [...] Proust entendeu (e aí está o gênio) que ele não tinha que contar sua vida, mas que sua vida tinha, entretanto, a significação de uma obra de arte” (pp. 354-5).9 A hipótese de Barthes será rapidamente contestada por intelectuais do porte de Michel Foucault, que, em conferência proferida em 1969, busca distanciar-se da escola estruturalista francesa que nega o sujeito, defendendo a importância de uma análise histórica dos discursos e de suas modalidades de existência (modos de circulação, valorização, atribuição etc.), não mais centrada em seu valor expressivo ou formal (Foucault, 1992). A seu ver, não se pode decretar a morte do autor ou do sujeito, embora entenda que desde Mallarmé “o desaparecimento do autor é um acontecimento constante”. Foucault não propõe um retorno à hipótese de um sujeito originário, portador de sentidos próprios e desgarrado das condições histórico-sociais de sua existência. Interessa-lhe, ao contrário, refletir sobre a constituição e as transformações da “função autor” no contexto da cultura europeia do período moderno, assim como investigar as condições que possibilitaram a um determinado indivíduo desempenhar essa função momentaneamente. Esse debate, inicialmente voltado para o domínio dos estudos literários, reverberará rapidamente no campo das artes visuais, talvez em função de questões colocadas por trabalhos como o de Boltanski e de outros artistas comprometidos com uma investigação conceitual da arte e do “sistema de arte”. Como vimos, o nome do autor parecia desvanecer-se em obras que De modo similar à leitura de Merleau-Ponty sobre Cézanne, Barthes considera que Proust “fez da sua própria vida uma obra de que o livro foi como o modelo”.

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obliteravam as marcas pessoais de seu criador e que, nos dizeres de Rosalind Krauss, refutavam “o caráter singular, privado e inacessível da experiência estética” (1998, p. 312), buscando com isso romper com um discurso que defendia que a obra de arte era uma metáfora das emoções do artista.

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Apropriação Fernanda Pequeno

O conceito de apropriação se instaura decisivamente no campo artístico com a operação que Marcel Duchamp empreende em 1913, ao tomar posse de um objeto de uso cotidiano, uma roda de bicicleta. Até então, as apropriações diziam respeito à apreensão culta e consciente de uma arte ou tradição anterior, e não a objetos prosaicos do mundo contemporâneo. O começo do século XX, entretanto, caracterizou-se pelo confronto com inúmeros outros referenciais de mundo, o que modificou profundamente os pensamentos plásticos e os jogos formais desenvolvidos pelos artistas. Mas, afinal, o que diferiria a apropriação da simples influência? Segundo Richard Wollheim, a apropriação levaria em consideração não somente o desejo do artista, como também os espectadores, que apreenderiam tal operação, o que a caracterizaria como algo essencialmente público, passível de ser compartilhada, portanto, entre artista e observador. O referido filósofo britânico, na palestra intitulada “Pintura, textualidade, apropriações”, enuncia que, quando uma apropriação passa a integrar o conteúdo de uma pintura, alguma parte da obra que foi exposta ou reforçada pelo motivo ou imagem apropriado deve fazer referências também ao seu contexto original, e é nesse sentido que uma apropriação deve conter uma descrição da fonte em sua totalidade (2002, p. 204). Dessa maneira, a apropriação não poderia ser confundida com herança ou influência, pois, enquanto essas seriam diretas, não processadas, a primeira pressuporia uma escolha, uma intencionalidade, uma opção. Contudo, se esse tomar de empréstimo determinado motivo ou imagem de uma arte mais antiga deve passar necessariamente pela consciência do artista e precisa estar posto de uma maneira mais ou menos objetiva para que o público apreenda e assimile não somente a fonte original, mas também seu contexto, descaracterizaríamos as manobras de Braque, Picasso e Duchamp, visto suas apropriações dizerem respeito ao mundo contemporâneo e não a uma arte anterior? Antes mesmo da referida operação de Duchamp, as colagens do cubismo sintético utilizaram-se de jornais, rótulos de garrafa e

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caracteres tipográficos como materiais com possibilidades artísticas. Além disso, Georges Braque e Pablo Picasso apreenderam as máscaras africanas, passando a utilizá-las formalmente em uma série de trabalhos. Enquanto as colagens tomam de empréstimo temas e materiais do mundo contemporâneo – e não de uma arte anterior –, a pintura Les demoiselles d’Avignon (Pablo Picasso, 1907) faz o mesmo com relação às fontes africanas. Nesse caso, a apropriação se instaura, embora haja recalque dos significados simbólicos e contextuais das máscaras. O termo a que o presente verbete se dedica, assim, se aplicaria nos dois casos, embora Wollheim pudesse argumentar que não. Nesse sentido, a apropriação é efetivada tanto no deslocamento de materiais do mundo – estopa, cartas de baralho, pedaços de madeira – para a produção das colagens cubistas quanto na incorporação formal da arte negra para a realização de pinturas por parte de Braque e Picasso. E como poderíamos pensar nos ready-mades de Duchamp – que fariam um elogio do acaso e da impessoalidade pela negação da ideia de gosto – senão como apropriação? O cálculo do francês e as manobras cubistas, dessa maneira, são pontos pacíficos, o primeiro tendo inclusive recebido a nomenclatura de ready-made – objeto feito por máquina, sem pretensão estética e indiferente aos olhos –, que viria a caracterizar boa parte da busca por uma arte não retiniana e, consequentemente, da produção artística de Duchamp. Embora sua primeira apropriação tenha sido realizada em 1913 – a referida Roda de bicicleta pregada de maneira invertida sobre um banco de cozinha –, a que veio a público primeiramente e já sob o conceito de ready-made, criado a posteriori, foi A fonte, de 1917: um urinol, datado e assinado com o pseudônimo R. Mutt, que causou escândalo quando enviado a um salão de artes americano e foi, obviamente, recusado. Com seus procedimentos, Duchamp empreende uma crítica tanto formal quanto conceitual do objeto de arte, colocando uma série de perguntas quanto à natureza da obra de arte. O que caracterizaria uma obra como artística? Arte é tudo o que o artista faz? A escolha ou o encontro com um objeto por parte do artista e seu deslocamento para o campo artístico se caracterizam como arte? As indagações de Marcel Duchamp continuam vivas, pois inauguraram um projeto estético que questiona a arte enquanto produção de formas e fazer manual, marcando profundamente a cultura moderna, influenciando não somente a visualidade, como também a música e a dança – vide John Cage.

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Esse legado foi tamanho que, nos anos 1950, Robert Rauschenberg realizou suas Combine paintings, que são assemblages realizadas pelo acúmulo de diversos materiais de diferentes procedências. Enquanto isso, seus colegas da pop art, desejando estabelecer uma comunicação direta com o público, utilizaram elementos retirados da cultura de massa e da vida cotidiana. Para tal, apropriaram-se usualmente de imagens da publicidade e do mundo comercial, como fez Andy Warhol, e de histórias em quadrinhos, como fez Liechtenstein. No Brasil, Hélio Oiticica desenvolveu sua Mesa de bilhar, d’après O café noturno de Van Gogh em 1966 e a apresentou na mostra Opinião 66, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Além do referido ambiente, o artista carioca utilizou o princípio da apropriação em seus bólides, caracterizados por ele como transobjetos: objetos e materiais de uso cotidiano – cubas de vidro, bacias, garrafas, latas, luminárias, caixas d’água – deslocados para o campo da arte. Ainda no país, o mecanismo foi largamente aplicado por Nelson Leirner, Farnese de Andrade e outros. Ao enviar seu ready-made para a Exposição dos Independentes (Nova Iorque, 1917), e embora não esperasse a aceitação do mictório como obra e desejasse polemizar, Duchamp não poderia prever o amplo alcance que sua manobra alcançaria. Dessa maneira, não foi em vão os editores da revista October lançarem o livro O efeito Duchamp (Buskirk e Nixon, 1996),1 nem o teórico Thierry de Duve (1989) indagar, anteriormente, sobre as ressonâncias do ready-made. Assim, as modificações causadas pelo procedimento da apropriação foram extremamente profundas, já que essa, enquanto operação artística, coloca indagações quanto à originalidade, à autenticidade e à autoria da obra de arte, questionando, a um só tempo, a instituição-arte e a própria dificuldade enfrentada na tentativa de definição do que viria a ser a própria arte.

Referências BUSKIRK, Martha e NIXON, Mignon. The Duchamp effect. Cambridge: The MIT Press, 1996. DE DUVE, Thierry. Resonances du readymade. Nîmes: Jacqueline Chambon, 1989. WOLLHEIM, Richard. A pintura como arte. São Paulo: Cosac Naify, 2002. O livro foi editado na tentativa de mapear o legado de Marcel Duchamp e sua recepção por parte dos artistas a partir dos anos 1950. Incluindo ensaios e entrevistas de Benjamin Buchloh, Hal Foster e outros, investiga, inclusive, o efeito Duchamp na arte conceitual.

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Arquitetura Antônio Barros

O mais antigo tratado europeu sobre a arquitetura é, provavelmente, o De architectura, escrito aproximadamente em 40 a.C. pelo arquiteto e engenheiro romano Marcos Vitrúvio. Para ele, a arquitetura era norteada por três princípios fundamentais: firmitas, que se refere ao caráter estrutural; utilitas, relacionado à utilidade; e venustas, associado à beleza. Logo, a arquitetura seria uma construção bela, bem estruturada e com uma finalidade clara – lembrando que o conceito de beleza no universo greco-romano se associava estreitamente à imagem e às proporções do corpo humano. Durante o renascimento, houve uma revalorização da obra de Vitrúvio, notadamente através dos escritos de Leon Battisti Alberti, arquiteto e autor do tratado De re aedificatoria. Para o genovês, a arquitetura deveria acolher o corpo humano, ou melhor, as edificações existiriam para ambientar o homem. Alberti se interessava pelo conceito de homem segundo as ideias humanistas que circulavam em Florença. O próprio Vitrúvio idealizara essa arte de maneira semelhante; porém, realizara um esforço diferente, buscando identificar as formas geométricas no corpo humano. Em 1490, Leonardo da Vinci elabora o chamado Homem vitruviano, no qual um círculo e um quadrado relacionam-se perfeitamente ao corpo humano, exatamente proporcional em suas partes, tendo como centro de gravidade o umbigo. Além disso, a área do círculo é igual à área do quadrado, realizando um conjunto matematicamente perfeito. Para o arquiteto romano, a arquitetura era uma questão de geometria. Michelangelo sublinhou, décadas mais tarde, em carta a Pio da Capri, a estreita afinidade entre a arquitetura e a própria anatomia humana, enfatizando a simetria entre os lados opostos: “os membros da arquitetura derivam dos membros humanos”. Dessa maneira, a figura humana seria o modelo edificante. Logo, Michelangelo indica a anatomia como principal referência da produção arquitetônica. Na virada do século XIX para o XX, Antonio Gaudí retomou o problema. O arquiteto catalão não percebia as edificações como realizações ideais

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ou proporcionais ao corpo humano, mas defendia as obras arquitetônicas como corpos próprios, permitindo uma perspectiva mais orgânica das construções. Baseando-se nas características dos materiais e em desenhos pouco convencionais, Gaudí permitiu à arquitetura uma liberdade de formas até então inimaginável, associando estilos e estruturas variados como se as construções fossem elas mesmas responsáveis por suas escolhas. O resultado foram edificações como corpos independentes. No século passado, Frank Lloyd Wright sustentou que cada projeto arquitetônico deveria ser único e desenvolvido em total harmonia com o local escolhido. Para o arquiteto norte-americano, as obras de arquitetura não corresponderiam a corpos estranhos na paisagem, mas, contrariamente, deveriam atuar como corpos integrados a ela. O projeto que melhor exemplifica esse pensamento talvez seja a Casa da cascata. Sua estética valorizava o corpo adequado à paisagem, problematizando, assim, mais a relevância da paisagem do que a importância do corpo edificado. No Brasil, por sua vez, o arquiteto centenário Oscar Niemeyer continua defendendo sua arquitetura sinuosa com afirmações como: “O que me atrai é a curva livre e sensual, a curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas ondas do mar, no corpo da mulher preferida”.

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Arte e América Latina Elena O’Neill

Pensar a expressão “arte e América Latina” nos coloca frente a algumas perguntas. O que entendemos por América Latina? A América Latina do século XVI, dos anos 1850, é a mesma que a dos anos 1920, do segundo pósguerra, da década de 1970 e do século XXI? A expressão América Latina inclui as populações nativas? E os objetos que essas populações originárias produziam são considerados arte? Por outro lado, existe uma arte latino-americana? Se os latino-americanos produzem arte, isso significa que produzem arte latinoamericana? Na suposta existência de uma identidade latino-americana, podemos isolar aquilo que é visualmente latino-americano? Arte latinoamericana é aquela que trata de temáticas latino-americanas? Nesse caso, poderia um não latino-americano produzir arte latino-americana? Por que não pensar uma arte indo-afro-latino-americana? Pensar “arte e América Latina” nos leva a enfrentar a relatividade dos termos, as ambiguidades das classificações e, na medida em que refletimos sobre elas, surgem mais questões e problemas. Proponho, aqui, ampliar essas questões e pensar na relação entre arte e América, com o propósito de investigar o impulso de construção de modernidades autóctones, alternativas à modernidade “originária” europeia. A tentativa de Jackson Pollock e Joaquin Torres-García de assimilar as culturas nativas permite juntar dois aspectos que a priori parecem antagônicos e paradoxais: a modernidade e seu aspecto primitivo a partir de um ângulo não europeu. Se na Europa o primitivismo permitia uma ruptura com o local ou nacional, na América o primitivo era o local. “Pollock pintou sua homenagem final àqueles cuja arte ele estimava e em que pensava, na sua necessidade: o índio americano, Matisse e Soutine” (O’Hara, 1960, pp. 34-5). O próprio Pollock afirma: No chão, sinto-me mais à vontade. Sinto-me mais próximo, mais uma parte da pintura, já que dessa forma posso passear em torno dela, trabalhar dos quatro lados e, literalmente, estar na pintura. É isso parecido com o que faziam os pintores índios de areia do Oeste (Pollock, 1947, apud O’Hara, 1960, p. 35).

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As imagens dessas pinturas de areia que passaram por seu subconsciente são mais interessantes como materiais que como influências porque, como assinala O’Hara, é pela qualidade plástica das obras de Pollock e não pela analogia com as pinturas de areia que o relacionamos com os índios norteamericanos. É através de Pollock que as pinturas desses índios se tornam caras e reais para nós. Confrontar as pinturas de Pollock é confrontar a esfinge, o monstrointerrogador, frente ao qual ouvimos a pergunta fatal. Tentar responder o “decifra-me ou te devoro” de Pollock é submeter-se conscientemente ao poder e à violência; à massa de “energia criativa dissipada em destruição, a fé religiosa na democracia por um lado, e a persistência do racismo e a atitude imperialista por outro”, nas palavras de Argan (1982, p. 96). A assimilação dos rituais e dos mitos dos índios americanos por Pollock possui este sentido: colocar-nos num estado profundo de percepção que nos faz tomar consciência do lado obscuro da criação, da ameaça, da destruição, da violência. O caso de Torres-García é diferente. A tarefa de seu projeto de primitivizar sua arte consistia na transformação da arte das vanguardas, que, segundo ele, além de seguir tendências contraditórias, estava andando numa direção que a levava à ruptura e ao abandono de toda perspectiva antropocêntrica, o que provocaria a angústia do homem frente à própria desaparição.2 A partir da década de 1930,3 buscou uma matriz indoamericana para enfrentar o problema plástico (forma, tom e ritmo) e, na ausência de uma tradição uruguaia, se baseou na cultura pré-incaica e na civilização inca como fontes nas quais arraigar e afirmar sua arte. Torres-García aportou um olhar sobre a riqueza expressiva das culturas nativas, introduzindo elementos anímicos, simbólicos e religiosos, e não sobre as condições de miséria do índio.4 Porém, seu projeto não privilegiava a arte pré-colombiana nem tentava colocá-la como paradigma, mas a colocava em pé de igualdade com outras culturas primitivas e arcaicas. Buscava uma volta à tradição do continente não por meio de estudos arqueológicos ou pela imitação, mas pela continuação e adaptação da tradição às necessidades presentes. Torres-García, em La recuperación del objeto, faz uma autocrítica e questiona uma excessiva influência das formas e expressões ameríndias em sua técnica construtiva. Em Universalismo constructivo, estabelece a necessidade de não se inspirar em modelos ameríndios.

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Torres-García retorna ao Uruguai em 1934, aos sessenta anos de idade, depois de passar anos em Barcelona, Paris e Nova Iorque, além de outras cidades.

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Segundo Manuel Aguiar, aluno da escola de Torres-García, talvez o principal aporte – além da pintura, da escola e da experiência – tenha sido o elemento anímico, simbólico e religioso, e não a questão construtiva (apud Exposição Imaginarios prehispánicos..., 2006, p. 118).

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Referências ARGAN, Guilio Carlo. “Pollock et le mythe”. Jackson Pollock. Paris: Centre Georges Pompidou, 1982. EMERSON, Ralph Waldo. The American scholar. Cambridge, 1837 (disponível em http://www.emersoncentral.com/amscholar.htm). Exposição Imaginarios Prehispánicos en el Arte Uruguaya: 1870-1970. Montevidéu: Fundación MAPI, 2006. O’HARA, Frank. Jackson Pollock. Belo Horizonte: Itatiaia, 1960. POLLOCK, Jackson. “My painting”. In MOTHERWELL, R. et al. (orgs.). Problems of contemporary art: possibilities 1. Nova Iorque: Wittenborn, Schultz, Inc. Publishers, 1947. ROSENBERG, Harold. “Action painting: crise e distorção”. O objeto ansioso. São Paulo: Cosac Naify, 2004. TORRES-GARCÍA, Joaquin. Metafísica de la prehistoria indoamericana. Montevidéu: Publicaciones de la Asociación de Arte Constructivo, 1939. ------. La recuperación del objeto. Montevidéu: Biblioteca Artigas, 1965 [1948]. ------. Estructura. Montevidéu: Ediciones la Regla de Oro, 1974. ------. Universalismo constructivo. Madri: Alianza Editorial, 1984 [1944].

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Arte e arquivo Adelaine Evaristo da Silva

Atualmente, artistas como o francês Christian Boltanski e a brasileira Rosângela Rennó têm recorrido a arquivos não pertencentes ao campo das artes ou a seu próprio repertório para a constituição de seus trabalhos. O primeiro, com a obra 10 retratos fotográficos de Christian Boltanski – coleção de retratos seus criando uma autobiografia fictícia –, e Rennó, com a instalação Bibliotheca – fotografias anônimas coletadas e organizadas pela artista –, questionam a credibilidade dos meios de produção de imagens e sua capacidade documental. Antes de constituir com seus ready-mades uma alegoria do fazer artístico e das instituições que o legitimam, já em 1914 Marcel Duchamp criou o primeiro de uma série de trabalhos cujo conteúdo arquivado em caixas relaciona-se à sua própria produção precedente. Posteriormente, baseandose nos mesmos processos de apropriação, arquivamento e mapeamento de sua própria obra, criou a Caixa verde (1934), com documentos referentes ao Grande vidro, e as Caixas-valise (1941), que constituíam pequenos museus para miniaturas de sua obra. Assim como Duchamp, os surrealistas levantaram questões acerca da autoria e unicidade das obras de arte ao apropriarem-se de imagens das mais diversas fontes. Artistas como o alemão Max Ernst produziram colagens nas quais o choque entre visualidades lhes conferia novos sentidos – uma alternativa às definições preestabelecidas dos saberes modernos em sua pretensa racionalidade. Já no final da década de 1950, indo de encontro ao formalismo predominante até a decadência do expressionismo abstrato, inúmeros movimentos artísticos passaram a buscar uma redução da lacuna existente entre a arte e a vida cotidiana. Nesse contexto, Andy Warhol produziu as Time capsules, coleções encaixotadas de objetos de seu dia a dia que revelavam aspectos de sua própria obra e vida, além do contexto sociocultural de sua época. Com o intuito de questionar uma tendência à mercantilização predominante no meio das artes no pós-guerra e buscando meios alternativos

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para distribuição e exposição da arte, o grupo Fluxus criou uma série de publicações, organizadas em sua maior parte por George Maciunas, na forma de caixas-arquivo para trabalhos de seus artistas. Obras de site specific, como Spiral jetty (Robert Smithson, 1970) e Lightining field (Walter de Maria, 1977), também remetem à prática do arquivo na medida em que sua existência não depende exclusivamente de sua forma material, mas ainda dos resíduos que explicitam seu processo de constituição e seu modo de funcionamento: cartografia dos locais anteriores à materialização do projeto, documentos referentes ao processo de elaboração da obra, além de registros em imagem. Estruturando um processo já perceptível nas obras produzidas pelas vanguardas históricas, o mapeamento crítico das instituições legitimadoras da arte toma forma a partir da década de 1970, por meio de artistas como Marcel Broodthaers, que, apropriando-se de trezentas imagens de águias das mais variadas épocas e origens, instala em Düsseldorf o seu Musée d’Art Moderne, Département des Aigles, Section des Figures (1972). Ampliando o campo de atuação da crítica institucional, muitos artistas contemporâneos se aproximam de diversas áreas do saber, infiltrando-se em seus meios para evidenciar seus limites. É o caso da norte-americana Eleanor Antin, que se fotografou nua diariamente durante o período em que fez um regime para a elaboração da obra Entalhe: uma escultura tradicional (1972). A partir da narrativa criada pela coleção de imagens, foram levantadas questões sobre os direitos e a identidade da mulher na sociedade. Mesmo não configurando uma linguagem artística específica, a apropriação, a coleção, a cartografia e a transferência têm sido procedimentos comuns a diversos trabalhos artísticos na direção do que poderíamos chamar de poética do arquivo.

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Arte e China contemporânea Felipe Abdala

Desde o fim da dinastia Qing, em 1911, a China se tornara uma república. Nesse momento, esforços foram realizados para que o país se alinhasse com a cultura ocidental. Tais atitudes se mantiveram até a ascensão do Partido Comunista em 1949 e o consequente novo fechamento da nação para o mundo. Daí a importância dos eventos de fins da década de 1980, momento no qual a China se abriu novamente. Para facilitar, pensase que a China contemporânea é a pós-1979, pós-Revolução Cultural. A China contemporânea seria, portanto, esta nação que busca se estabelecer no cenário global, sendo a Revolução Cultural determinante para a contemporaneidade. Para entender como se dá a prática artística na China contemporânea, deve-se voltar ao início do século XX. Praticado durante a primeira fase da república e sob o regime comunista, o realismo foi uma forma de atualizar a prática artística chinesa em relação à arte ocidental. A essa época, os pensadores progressistas na China tentaram acabar com a arte tradicional, que consideravam ultrapassada. Com a ascensão de Mao Tsé-Tung, há uma tentativa de conciliação entre essas duas expressões, originando o chamado realismo revolucionário. Por conta dessa prática realista de décadas, a arte contemporânea chinesa ainda atribui um valor à forma, ao virtuosismo e ao acabamento que a arte ocidental buscou abolir em suas inúmeras experimentações. Apesar da abertura, o regime comunista ainda vigora, e os artistas chineses sofrem restrições ideológicas. Desse modo, é interessante pensar que o surrealismo, nos primeiros anos da década de 1980, tenha sido uma influência por não implicar uma experimentação formal tão radical. Assim também será utilizada a arte letrada, já agora mesclada com outras poéticas, e não mais falando a um sujeito distante e geral. Com todas as mudanças ocorridas, é necessário que se formem novos valores para a nação. A produção artística nesse novo país possui, igualmente, uma carga de busca de identificação com o mundo que está no seio da própria

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cultura chinesa contemporânea. A prática artística absorvida pelo Estado, considerada benigna, é ou o realismo revolucionário ou a folclórica tradicional. Um terceiro grupo de artistas, independente, busca seu lugar. Meios modernos e contemporâneos de expressão como a fotografia, o vídeo e a performance estão presentes nessa nova produção e nesse novo país. Também se deve notar a importância da tradução e publicação de obras da filosofia e literatura ocidentais. Autores como Nietzsche, Freud, Heiddeger e Wittgenstein se revelam à sociedade chinesa a partir da segunda metade da década de 1980. Os chineses se viram inundados de novas teorias e pensamentos sobre a arte, a sociedade e o homem. Ainda nesse momento, houve um intenso processo de imitação da arte ocidental pós-1960, frequentemente combinada com elementos da cultura chinesa. Refletindo a pluralidade da própria sociedade, a arte na China contemporânea é marcada por uma intensa e profícua convivência entre passado e presente. A arte letrada tradicional, da pintura de nanquim e ideogramas, tem coexistido com o realismo revolucionário ainda praticado e com a arte contemporânea. Algumas questões têm-se mostrado frequentes na recente produção, como a crítica cultural, a opressão interna, uma certa estética da violência e do macabro e a sociedade de massas. Uma vez que a nação se mostra como a nova potência econômica e geopolítica dos dias atuais, sua produção artística não seria colocada de lado, mas considerada tributária desse próprio processo. O processo de globalização tem feito o país mergulhar num sem-número de novas possibilidades.

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Arte e corpo Renata Reinhoffer França parte s.f. (1142) 1 ARTE E CORPO morfologia 2 ARTE E CORPO: SUBUNIDADES retratos; ex-votos; máscaras; torsos, olhos, pés, mãos, cabeça, boca etc. 3 ARTES VISUAIS E CORPO: FORMA olho como órgão da visualidade, objeto de pesquisa da pintura autônoma moderna 4 ARTE E CORPO: FRAGMENTOS violência; destruição; acaso; ruína 5 CULTURA E CORPO a negligência da harmonia em favor da beleza estanque das partes, no Ocidente, século XXI 5 PSICANÁLISE a não percepção do corpo unificado no bebê e a questão da gestação psíquica para a constituição de um corpo separado da mãe. *** Desdobramentos de ‘parte [...] ARTE E CORPO: SUBUNIDADES’: olho s.m. (sXIII) 1 ANATOMIA o órgão da visão, nos animais e no homem 2 ARTE E CORPO: FRAGMENTO SIGNIFICATIVO olhar petrificante da Medusa de Caravaggio (1596-1597); olhos voltados para o infinito e o terreno, respectivamente, nas estátuas funerárias do príncipe Rahotep e sua esposa Nofret, IV dinastia do reino de Sneferu (c. 2575-2551 a.C.), que, ao refletirem luzes de lanternas nas tumbas, dão aspecto vivo às estátuas; olhos de Lokeshvara-Jayavarman no bosque de rostos de Bayon, templo-montanha em Angkor Thom, que parecem abertos ou fechados dependendo da incidência da luz e do ponto de onde são vistos 3 ARTE E CORPO: FORMA olhos estruturais da forma: olho ciclópico da forma perspectiva linear, simbólico, mas não representacional; olhos das máscaras africanas tomadas como signo visual por Pablo Picasso, em Les demoiselles d’Avignon (1907); a visualidade como objeto científico da arte moderna europeia; a questão da pureza na pintura explorada pela história da arte de Clement Greenberg; olhos persecutórios da Monalisa de Leonardo da Vinci e a técnica do sfumato; a crítica à arte retiniana e o voyeurismo em Marcel Duchamp 4 ARTE E CORPO: COR a consciência da diferença de cor embutida nos olhos de quem vive nos trópicos e no norte

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da Europa (o “mal do azul”, de Frans Post); as teorias das cores de Michel Chevreul e Josef Albers; olhos em presença corpórea: Mark Rothko e a ação muscular do olho para sustentar as massas de cor das telas, Barnett Newman e o olhar que não abarca todo o quadro. mão s.f. (1255) 1 ANATOMIA HUMANA extremidade do membro superior, articulada com o antebraço pelo punho e terminada pelos dedos 2 ARTE E CORPO: FRAGMENTO SIGNIFICATIVO os cinco Budas de arte gandhara, relevos de xisto do século III, Índia antiga, em que gestos das mãos (mudra) expressam ensinamento, meditação e segurança; a mão enluvada de brilhantes como retrato do cantor Michael Jackson, morto em julho de 2009 (capa da Revista Veja – Brasil); o toque entre dedos das mãos de Deus e do primeiro homem em A criação de Adão de Michelangelo (afresco da Capela Sistina, Vaticano, c. 1511); as mãos esculpidas de Auguste Rodin 3 ARTE E CORPO: FORMA o gesto de punho do pintor de cavalete e o gesto de soltar o braço de Jackson Pollock; o fazer artístico manual e o questionamento do conceito de artesania por Duchamp; a pirâmide da serpente emplumada, em Chichén Itzá, cujos degraus, sob aplauso, ecoam som similar ao do pássaro sagrado quetzal em grito decrescente (pássaro associado ao deus Quetzalcóatl ou Kukulkcán, reverenciado no templo); a body art de Gina Pane e o flagelo. pé s.m. (sXIII) 1 ANATOMIA HUMANA extremidade do membro inferior abaixo da articulação do tornozelo e terminada pelos artelhos, assentada por completo no chão, e que permite a postura vertical e o andar 2 ARTE, CULTURA E CORPO: FRAGMENTO SIGNIFICATIVO as diferentes inserções culturais da sapatada recebida pelo presidente dos Estados Unidos, George Bush, do jornalista iraquiano Muntazer al Zaidi, durante coletiva de imprensa em Bagdá (2008); o mosaico bizantino do imperador Justiniano em San Vitale, Ravenna (c. 547), em que pisar nos pés dos outros é sinal de hierarquia; os sapatos do mundo da imagem de Andy Warhol (entre 1950 e 1980); a proibição de apontar os pés para Buda nos templos de Bangkok; os pés descalços dos escravos no Brasil nas pinturas de Jean-Baptiste Debret (1834-1839); os sapatos de Vincent van Gogh (1888) e a polêmica entre Martin Heidegger e o historiador da arte Meyer Schapiro em torno do livro A origem da obra de arte, de Heidegger; os pés (e as mãos) de Jesus pregados à cruz nas imagens religiosas cristãs.

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máscara s.f. (sXV) 1 ARTE E CORPO: TEATRO E DANÇA máscaras balinesas (topeng); a tradição italiana da commedia dell’arte; teatro de máscaras Nô, Kabuki e danças japonesas; Kathakali; máscaras mitológicas gregas (Górgonas etc.); máscara no teatro contemporâneo (Grotowski, Bread and Puppet Theatre – um teatro estatuário, Mummenschanz, Putxinelis Claca etc.) 2 ARTE E CORPO: RITUAIS máscaras indígenas brasileiras (xingu etc.); máscara nos festejos populares: carnaval etc.; máscaras funerárias: máscara de ouro de Agamemnom, Micenas, Grécia, e máscara egípcia de Tutankhamon, máscara Mochica, Peru; máscaras policrômicas do Sepik, Nova Guiné; máscaras astecas de Teotihuacán; máscara de culto aos mortos segundo tradição ioruba, Brasil; máscaras africanas: Fang, Gabão, máscara Bantun, Zaire, máscara Gelede, do Benin, no Brasil.

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Arte e Egito Evelyne Azevedo

O Egito, com suas pirâmides, obeliscos e hieróglifos, fascinou diferentes culturas ao longo da história. Da antiguidade aos dias de hoje, dos viajantes aos estudiosos, a antiga civilização dos faraós despertou o interesse e a curiosidade de muitos povos e diversas civilizações. Esse fascínio teve sua origem ainda na antiguidade com os escritos de grandes pensadores, como o Heródoto, que cristalizou a imagem de uma civilização animada pelas águas do Nilo. A dominação romana subjugou a grande civilização faraônica, mas levou consigo o culto de divindades como Ísis e Serápis – divindade de origem helênica, que agrega em si os deuses Osíris e Hápis, esses sim egípcios – para o centro de seu império. Com isso, tomam forma os primeiros objetos de matriz egipcizante, cuja iconografia é claramente baseada nos modelos egípcios, mas que apresentam uma série de elementos que não pertencem a esse contexto. A principal obra que marca essa tradição é a Mensa isiaca. Datada do século I d.C., mostra a deusa Ísis representada ao centro da imagem dentro de um naos, cercada pelas figuras de outros deuses e personagens fazendo oferendas. Essas cenas são separadas por inscrições hieroglíficas sem qualquer significado, apenas com valor decorativo. A Mensa isiaca ganhou notoriedade não só por suas características ímpares, mas, principalmente, pela notícia de sua descoberta, vindo integrar, durante o Renascimento, a coleção de antiguidades do cardeal Pietro Bembo – razão pela qual também é conhecida como Tabula bembina. Os séculos XV a XVII foram profundamente marcados por um crescente interesse pelas coisas egípcias e pelo surgimento do mito de uma civilização idealizada, origem de todo conhecimento místico e de toda verdade oculta, em que até mesmo os gregos se inspiraram. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, a egiptophilia nascente nos séculos precedentes ganha ares de orientalismo e a observação da antiguidade é associada aos estudos do Oriente moderno. Pinturas como Mulheres taitianas sentadas em um banco (1892), de Paul Gauguin, ou Antiguidade egípcia I e II (1890/1891), de Gustav Klimt, fazem

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parte de um mesmo cenário que se descortinava para o aparecimento da egiptomania e da egiptologia. O século XIX esteve, assim, dividido entre o gosto pelo Egito e suas evocações e a ciência nascente com Champollion e sua descoberta da escrita hieroglífica, que desvendou os antigos mistérios de uma religião há muito soterrados pelas areias do tempo. A tradução dos hieróglifos permitiu o estudo aprofundado da antiga sociedade egípcia, constituindo as bases para os estudos científicos dos séculos XX e XXI. A arte egípcia continua mantendo vívidos diálogos com formas contemporâneas de expressão artística, inclusive em solo egípcio, com artistas como Farghali Abdel Hafiz e Abdel-Wahab Morsi El-Sayed, que têm na antiguidade sua memória e identidade.

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Arte e budismo Bony Braga

O budismo é um sistema religioso nascido na Índia. Sua fundação é atribuída a Sidarta Gautama, também chamado Shakiamuni, o buda histórico. O budismo propôs uma série de transformações em relação ao hinduísmo, tendo sua base no refúgio nas três joias: o buda, o darma e a sanga. O buda é o desperto, aquele que conquistou o nirvana, libertando-se do ciclo de sucessivos nascimentos e mortes. O darma é a doutrina do buda. A sanga é a comunidade que vive de acordo com a doutrina. O budismo é uma das poucas religiões sem um deus. Para entender o budismo, é necessário compreender que ele nasceu no seio da cultura politeísta hindu. Para o buda, mesmo os deuses que viviam nos mais altos céus estavam sujeitos ao ciclo de nascimento e morte, motivo pelo qual o budismo rejeita o culto a qualquer deus, sejam os deuses do hinduísmo, seja o deus das religiões monoteístas, preferindo uma profunda abordagem da psique humana: Tudo o que somos é o resultado daquilo que pensamos: funda-se em nossos pensamentos, é feito de nossos pensamentos. Se um homem fala ou age com um pensamento puro, a felicidade o segue tal como a sombra que jamais o abandona. Ele me insultou, ele me bateu, ele me abandonou, ele me roubou: os que não agasalharem tais pensamentos deixarão de odiar. Porque o ódio não cessa pelo ódio em nenhum tempo: o ódio cessa pelo amor – é uma lei antiga (tradução minha).

Uma das características mais importantes do budismo – além do tom universalista da mensagem que propaga – é sua facilidade de adaptação às culturas em que se instala. Talvez seja essa uma das razões de sua ampla difusão pelo mundo. Há uma grande gama de produtos artísticos ligados ao pensamento budista. Podemos citar como exemplo de arte budista obras de arquitetura, pinturas, esculturas e objetos rituais. Pode-se dizer que, em cada país em que se implantou, a arte budista assumiu formas artísticas características da cultura local. Assim, é possível distinguir com clareza e certa facilidade a arte budista tibetana da arte budista chinesa, japonesa ou tailandesa,

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por exemplo. Embora as formas empregadas sejam diferentes, elementos iconográficos importantes se repetem nas produções locais. Podemos traçar as origens de tais elementos na arte religiosa da Índia hinduísta. Elementos importantes da iconografia budista, como a flor de lótus, a presença de inúmeros braços e pernas nas deidades, a multiplicidade de cabeças e olhos das figuras, bem como sua variedade de cores, já estavam presentes na cultura figurativa hindu. Além disso, devemos mencionar os mudras, gestos representativos de determinados conceitos. Na China, a iconografia budista teve muita importância não apenas na criação de uma arte budista chinesa, mas também na formação da arte religiosa taoísta. Antes da entrada do budismo na China, os chineses não tinham o costume de cultuar imagens. Após a chegada da religião de Gautama, inúmeros templos com uma suntuosa estatuária foram erguidos. Além disso, deve-se destacar a existência na China (e também no Japão) de uma arte de inspiração filosófica budista cujos temas não são as figuras de culto da vida religiosa, mas sim as da pintura laica: paisagens, naturezas mortas, animais etc. No budismo tibetano, a produção de imagens tem um papel muito importante. As imagens dos budas, que são representados por uma arte de cores vivas e linhas precisas, são tratadas com extremo zelo, reverenciadas como se fossem o próprio buda. Não se deve, contudo, considerar isso uma espécie de idolatria. De acordo com os próprios budistas, a imagem do buda serve como um veículo de treinamento para que se transforme a própria mente, alcançando o nirvana. Toda a riqueza artística da pintura religiosa tibetana deve assumir uma nova dimensão na vida mental do adepto por meio da reverência, das visualizações e das meditações.

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Arte e historiografia Igor Valente

O termo historiografia traz em si um apanhado de instâncias nas quais memória, registros documentais e método científico se coadunam para dar corpo a uma escrita muito específica, que valida não regras e leis naturais ou físicas, mas movimentos e organizações sociais que se fundam na subjetividade humana. A memória se instaura enquanto ferramenta do historiador, que, no afã de inscrever experiências pretéritas no tecido da história, negocia constantemente com o presente, de modo a detectar os vestígios ainda vigentes de determinados valores. Em se tratando de manifestações artísticas, mais do que pontuar marcos e fins de movimentos artísticos, é preciso resolver o discurso dos artistas. Se, em seu advento, esse discurso não pode ser precisado – dado o fervor e as paixões que comprometem uma análise imparcial –, cabe à história revelar suas estruturas subjacentes mediante um esforço crítico do historiador. Entretanto, essa noção de um historiador comprometido com reflexões críticas e filosóficas só tomou corpo mais tarde, pois foi no espaço do registro, da básica catalogação enciclopédica, que o pintor e arquiteto Giorgio Vasari (1511-1574) fundou suas bases. Em termos gerais, pode-se dizer que Vasari foi o primeiro historiador da arte, ou ao menos aquele que primeiro condensou artistas e obras em um único estudo, de modo a conter, em um único espaço, tudo o que de mais importante – segundo sua ótica – o humanismo renascentista – tendenciosamente focado nos artistas florentinos – produziu. Esse estudo, intitulado Le vite de’ più eccellenti pittori, scultori e architettori (As vidas dos mais excelentes arquitetos, pintores e escultores, 1550), é encarado como a primeira obra de história da arte e a base sobre a qual estudos posteriores se pautaram. A arte enquanto sistema cultural não se reduz a um fenômeno isolado, como espaço exógeno à realidade social. Ao contrário, é, antes de qualquer outra concepção possível, um agente da história, como defendido pelo historiador Giulio Carlo Argan (1909-1992), segundo o qual apenas se poderia apreender o sentido de suas imagens por meio de uma visão

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abrangente dos processos de construção da obra de arte. Essas seriam o resíduo de experiências socioculturais, produtos de um ambiente histórico específico. Partindo desse princípio, Erwin Panofsky (1892-1968) segmenta a apreciação de uma obra em três instâncias metodológicas, nas quais o nível primário constitui a simples compreensão formal de uma composição, cabendo à análise iconográfica a determinação do espaço organizacional da obra – no qual se determinaria o tema a partir das relações específicas travadas pelas imagens –, e à análise iconológica a percepção do ambiente histórico-cultural que abarca e dota de sentidos as imagens produzidas por um artista. Porém, com a modernidade, esse aspecto plural do historiador fica ainda mais evidente diante das constantes rupturas e problematizações acerca da função e do espaço da arte. Teóricos como Arthur Danto (1924) e Hans Belting (1935) discutiram respectivamente, a morte da arte e da história da arte, assuntos que, por sua natureza interconsequente, acabam por constituir uma mesma questão. A morte da arte significa a morte da história, ao menos no que tangencia seu movimento narrativo, abstraída de seu aspecto diacrônico ou mesmo teleológico. Se a arte não segue mais uma progressão, em um movimento contínuo, mas passa a circundar experiências passadas, diluída em esferas diversas, chega-se a um ponto zero, no qual toda experimentação é lícita, assim como toda geografia se mostra limitada diante da transversalidade dessas operações, que atingem espaços éticos, políticos, filosóficos e mesmo científicos. Cabe ao historiador da arte contemporânea enxertar nesse vácuo insurgido pela morte da arte e da própria história práticas externas ao universo estético, assumindo-se como agente plural, em uma sinergia que não compreende diferenças entre o historiador, o crítico e o filósofo. É uma consciência que acaba constituindo uma identidade possível perante o impasse da historiografia.

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Arte e indumentária Larissa Carvalho

Previamente ao esclarecimento das possíveis relações existentes entre arte e indumentária, cabe elaborar uma reflexão semântica a respeito dessa última. De origem latina (indumentu), o termo denota a ideia de cobertura e revestimento, evidenciando assim a equivalência entre a noção de indumentária e a de vestuário – utilizado para cobrir o corpo – como sua primeira significação. Em seguida, sua acepção também se refere inusitadamente à arte do vestuário, do mesmo modo que à sua história. É igualmente curioso perceber como o termo moda – frequentemente utilizado na interseção entre os dois campos – também apresenta sua definição como arte do vestuário, embora esteja ligado mais à técnica, como pode ser observado em dicionários e enciclopédias atuais. Vale, portanto, indagar: será que o vínculo entre arte e indumentária estaria mais próximo de uma noção histórica, enquanto a relação entre arte e moda estaria próxima de um estudo mais técnico de sua produção? Até que ponto é possível dizer que uma se refere ao passado e a outra, ao presente e novo? Falar hoje em indumentária deixa implícito que também se está falando da história do vestuário, ou, ainda, dela como uma arte? Moda é arte? É adequado empregar o termo moda para os vestuários antigos, renascentistas ou mesmo de outros períodos e regiões? Ele pode ser utilizado da mesma forma que na contemporaneidade? Será que a moda estava ou está presente em todos os lugares e povos? É possível falar de uma indumentária dissociada da noção de moda? Esses numerosos questionamentos fazem parte das reflexões de historiadores e críticos de arte que buscam demonstrar a autonomia da moda como expressão artística. Roland Barthes, Umberto Eco, Florence Muller, Gilles Lipovetsky e Alice Mackrell, entre outros, tentaram ir além dos elementos exclusivamente estéticos da moda, pois consideram que ela é inseparável de suas injunções sociais, culturais, psicológicas, políticas e, sobretudo, do Espírito do Tempo, o zeitgeist. Logo, a indumentária – e também a arte – é uma linguagem que comunica e apresenta posições ideológicas e culturais segundo as formas escolhidas/oferecidas para que seus significados sejam transmitidos.

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Os primeiros elos manifestos entre arte e indumentária podem ser observados por volta do século XIV na Europa. Nos séculos seguintes, houve o fortalecimento das atividades comerciais, do sentimento de nacionalidade e individualidade, ocasionando uma grande mudança nos trajes – em intervalos de tempo cada vez mais curtos –, juntamente às novas valorizações sociais e ao posicionamento do indivíduo na sociedade. A renovação constante das modas e das leis suntuárias eram os modos encontrados pela nobreza para se distinguir de outras classes, sobretudo da burguesia emergente e abastada. O mesmo acontecia em diferentes regiões, já que buscavam singularidades que as distinguissem das demais. Os exemplos são muitos: Pisanello desenvolveu modelos de vestuário e padrões têxteis; em seguida, Cesare Vecellio lançou uma das primeiras publicações sobre as diferentes indumentárias, não só europeias, como asiáticas, africanas e americanas. No entanto, cabe questionar em que medida essas obras fornecem informações confiáveis acerca da indumentária do passado, pois elas podem tanto ser uma criação individual do artista quanto favorecer a identificação de personagens, contribuindo para a significação da obra de maneira geral. Aliados ao estudo de peças originais – caso existam –, à literatura da época e a conhecimentos técnicos, pinturas, esculturas, relevos etc. não podem auxiliar no estudo da indumentária? As relações podem ser outras, ainda mais após a influência da indústria, da publicidade e da tecnologia. O século XX trará iniciativas conscientes da união entre ambos os campos, já que os designers de moda viam na arte de vanguarda a produção de novas visualidades, enquanto os artistas utilizavam a indumentária como novo suporte para suas experimentações e propostas. O diálogo estava estabelecido: a indumentária em si poderia ser arte. Assim, Paul Poiret empregava de forma inovadora a arte moderna em suas criações de moda e artistas visuais lidavam com o vestuário de maneira provocativa, teórica, funcional e experimental (Klimt, Balla, Malevich, Moholy-Nagy etc.), unindo o estético ao vestir. No Brasil, o diálogo entre arte e moda já estava presente até mesmo nos anos 1950, com Flávio de Carvalho, e, depois, com os parangolés de Oiticica, as máscaras e luvas de Clark e os objetos de Gerchman. Compartilhando cada vez mais do vocabulário e das questões artísticas, a moda e a indumentária acabaram lidando com as mesmas – e, em alguns casos, mais profundas – relações de poder que determinam o que é ou não arte, o que está ou não em voga e o que faz com que uma obra ou moda seja mais valorizada que a outra. Quem toma essas decisões, incentivando-as? A moda pode ser concebida como serviço, expressão e linguagem, mas também é... arte.

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Arte e islão Evelyne Azevedo

Ainda hoje, o mundo muçulmano é misterioso aos olhos ocidentais. É parte de nosso universo sem, contudo, integrá-lo efetivamente. A história dos povos islâmicos entrecruza as narrativas ocidentais desde a Idade Média até os dias atuais. Ao longo dos séculos VIII e XV, a expansão muçulmana levou a dominação árabe à Europa, deixando raízes profundas em Portugal e, principalmente, na Espanha. São inúmeros os monumentos de grande importância desse período que pontuam as regiões andaluzas, como o Palácio de Alhambra, a Mesquita de Córdoba e a Torre Giralda. Além da arquitetura, as artes decorativas ganharam enorme notoriedade integrando tapetes e louças que ficaram conhecidos por toda a Europa, propagando assim a arte muçulmana. No entanto, são pouco conhecidos exemplos de pintura, o que não impediu que a pintura europeia, por sua vez, buscasse, naquilo que lhe era comum, referências ao mundo árabe. Fra Filippo Lippi, por exemplo, utilizou caracteres arábicos para decorar a faixa que os anjos seguram em sua Coroação da virgem (1441-1447), atualmente na Galleria degli Uffizi, em Florença. A arte muçulmana não só secaracteriza pela grande utilização da caligrafia, como também pelo uso de motivos geométricos e vegetais e pela repetição das formas. Sua principal característica, porém, é o aniconismo, ou seja, o não figurativismo, o que pode ser interpretado como uma das razões para o uso caligráfico das passagens do Corão, por exemplo. Outro aspecto muito presente na arte árabe é o horror ao vazio, o horror vacui, tão caro ao assim chamado barroco europeu e hispano-americano. Os árabes eram ainda invocados nas narrativas bíblicas cujas passagens se referiam ao Oriente. Muitas vezes, foram associados aos povos da antiguidade, como na Travessia do Mar Vermelho (1481-1482), de Cosimo Rosselli, em que o exército do faraó que persegue o povo hebreu é representado como árabes modernos, utilizando o típico chapéu turco, que pode ser visto ainda em obras de Giotto e Tintoretto.

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Fonte inesgotável de exotismo, o “outro” não cristão foi inúmeras vezes representado como muçulmano, inclusive quando deveria retratar o índio americano, como mostra o Rio da Prata da Fonte dos quatro rios, na qual Bernini representa um mouro no lugar de um índio para simbolizar a América. Foi ao longo do século XIX que o exotismo adquiriu ares de fascínio, representando o Oriente tal qual ele era visto aos olhos europeus: com suas odaliscas e vistas das cidades árabes, com suas construções e comércios a céu aberto. Uma das maiores contribuições para isso foi a tradução das Mil e uma noites para o francês por Antoine Galland, seguida da de Richard Burton para o inglês. Apesar de pertencer à literatura persa, a obra consiste numa coleção de contos de diferentes tradições árabes. A tradução de Galland privilegiou apenas aqueles que não causassem estranhamento na Europa do século XVIII, sendo a versão mais conhecida até hoje. O mundo árabe é, ainda hoje, cercado pela ambiguidade: de um lado, o imaginário ocidental das odaliscas com seus véus e danças sensuais; de outro, a religião rígida, que obriga suas mulheres a se cobrirem dos pés à cabeça. Os vestígios arqueológicos das grandes capitais antigas – Constantinopla, Damasco, Bagdá – convivem com projetos modernos espetaculares como Dubai, a capital surgida em meio ao deserto. Assim como sua nova capital, a arte muçulmana do século XX procurou incorporar outros valores e dialogar com a arte europeia; recordemos, por exemplo, Sabri Berkel, cuja obra foi fortemente influenciada pelo cubismo. Diálogos e confrontos entre as culturas visuais islâmica e ocidental, portanto, permanecem no centro de debates, reflexões e produções artísticas contemporâneas.

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Arte e mercado Camilla Rocha Campos

Evidenciar relações sociais. Inversão de mecanismos compostos por aparente linearidade que subentendem as transações humanas na sociedade como alicerce para o agenciamento individual da coletividade. O dinheiro não é a única moeda, o comércio de lucros não baliza apenas objetos: o poder simbólico. Na extensão do sistema de troca identificado por Marcel Mauss (2003), estão o prestígio, a honra, a moeda, a rivalidade, o combate. Elementos essenciais para as trocas cerimoniais em que os contratos são adjacentes à moral e à economia, que regem essas relações. Migração de instituições ressoadas pelos clãs envolvidos, ressoada em outros povos: hoje. A obrigação de dar e receber, constituir o social, construí-lo através da troca de símbolos, contratos. Sob valores diferentes, a arte se assenta em termos semelhantes. Vista pelo comércio como um rentável investimento monetário e simbólico, como disse Alan Dominique Perrin (apud Haacke e Bourdieu, 1995, p. 28), presidente da Cartier, é um “instrumento de sedução da opinião”. Carregada e utilizada como prestígio, honra, moeda, rivalidade, combate. Campo de negociação de valores. A ideia que se estabelece como troca ao refazer o pensamento sobre a sociedade. O valor de uma ideia endossada no canhoto de um cheque. Hans Haacke: o mundo da arte como espaço capaz de equalizar um mundo extrínseco a ela. A liberdade será patrocinada agora somente em moedinhas (1990), título de uma instalação pública do artista alemão em que transações econômicas com interesses que circundam a guerra, a arte e o comércio são assinaladas. Revisar as lacunas econômicas da moral endereçadas somente àqueles “ativamente engajados em preservar seu status quo” (Haacke, 2004, p. 112). O fazer da arte perpassa o território relativo à sociedade na qual está inserida, não apenas cooptada por ela, mas também apontando transformações a partir dela. Migração das instituições para que sejam intencionalmente questionadas enquanto verdades moventes. Ocupar estados de transparência. Em Ocupação (1999/2000), Newton Goto (1999) “reordena” adesivos com o símbolo do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) impressos com o

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patrocínio do Estado. Regência simbólica e econômica. A contracorrente da moeda. Ampliação; outras trocas institucionais. Ocupar uma galeria, ocupar áreas agrícolas. A atenção irônica no reverso de uma ação. Possibilidades em que se estabelecem trocas extensivas aos seus próprios sistemas. Evidenciar relações sociais, inverter mecanismos compostos por aparente linearidade a fim de alertar contra uma aceitação passiva enquanto troca, comércio ou arte.

Referências GOTO, Newton. Ocupação (disponível em http://newtongoto.wordpress.com/ ocupacao/. Acessado em 1999). GRASSKAMP, Walter et al. Hans Haacke. Londres: Phaidon, 2004. HAACKE, Hans. “The constituency”. In GRASSKAMP, Walter et al. Hans Haacke. Londres: Phaidon, 2004. ------ e BOURDIEU, Pierre. Livre troca. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva”. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

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Arte e Mesoamérica Antônio Barros

O termo mesoamérica possui uma conotação mais antropológica que geográfica; não raro, fala-se, por exemplo, de civilizações mesoamericanas no Peru. Isso se deve ao fato de que as variadas civilizações formadas continente afora tiveram origens semelhantes. Quase todas as culturas pré-colombianas sofreram influência direta ou indireta dos olmecas, reconhecidos como a primeira grande organização social do continente americano. Supõe-se que, na mesoamérica, originou-se com os olmecas a prática de relacionar produções artísticas a deidades sobrenaturais. Seu panteão de deuses era numeroso e variado. Essa variedade se refletiu nos diversos materiais e técnicas utilizados na realização de “obras de arte”. A arte praticada em toda a mesoamérica estava intimamente relacionada à religião, à política e à astrologia. Além disso, essa arte era marcada pela produção coletiva, inviabilizando o registro de grandes expoentes individuais. Talvez os calendários realizados por esses povos sejam os melhores exemplos da unidade envolvendo a astrologia, os deuses e os governos. Relacionando escultura, pintura e cerâmica, os calendários sintetizam a ampla associação entre a arte e a sociedade nessas culturas. Quanto às formas, as figuras humanas eram normalmente retratadas de perfil e, na maioria das vezes, eram usadas cores fortes e quentes. Porém, eram as linhas que tinham grande destaque. Elas exerciam fascínio entre esses povos, revelando grandes sequências de figuras e de desenhos em quase todos os artefatos. As cerâmicas tinham papel fundamental como utensílio cerimonial e doméstico. As esculturas apresentam linhas simples e formas vigorosas tanto nos pequenos bustos quanto nas colossais esculturas que ultrapassam em muito a escala humana. Já as pinturas rupestres combinam motivos humanos e zoomórficos. O amplo uso das linhas também era empregado no planejamento das cidades. Plantas-baixas de cidades como Teotihuacán revelam inúmeras construções de pequeno porte e poucas ruas largas e retas; grande parte das cidades era organizada como um enorme desenho labiríntico repleto de linhas.

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A recepção e a assimilação das artes pré-colombianas ainda continuam seu processo. Os colonizadores europeus destruíram grande parte dessa riqueza artística: dos astecas pouco sobreviveu, mas dos incas e dos maias ainda resta um volume significativo de obras. Ao retornar à Espanha, Cortés levou um grande número de artefatos do Novo Mundo. Posteriormente, Albert Dürer relatou em seu diário um profundo fascínio por essas peças. Entretanto, os estudos da arte mesoamericana se deram, principalmente, a partir dos relatos de nativos e anotações de colonizadores. Alguns desenhistas viajaram à América a fim de retratar as obras e a natureza do continente. Durante a Revolução Mexicana, houve uma grande valorização das culturas antigas; vários artistas de renome – entre eles Diego Rivera, que décadas depois inaugurou um museu de pequenos artefatos astecas – envolveram-se no chamado renascimento mexicano, que buscava retornar a essas fontes em um movimento análogo ao do renascimento europeu em direção à antiguidade greco-romana. Ainda hoje, novas peças continuam a ser descobertas por todo o continente, gerando vastos estudos acadêmicos, documentários arqueológicos e até mesmo filmes de vários gêneros. Na arte contemporânea, as respostas a esse legado artístico e arqueológico são variadas e provenientes de distintas regiões. O núcleo de artistas de Oaxaca, por exemplo, tem realizado releituras dessa tradição desde a década de 1990. Os trabalhos do artista Rolando Rojas, por exemplo, retomam a mística précolombiana, e as pinturas de Gabriela Campos evidenciam a temática dos murais das antigas civilizações.

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Arte e psicologia Renata Reinhoffer França

Psicanalistas afirmam que nas bases do desenvolvimento humano está a convergência dos sentidos (Houzel, 2002), uma vez que o nascimento biológico é marcado por um bombardeio sensorial caótico e que essa intensa experiência estética é acompanhada de grande angústia. O acolhimento dessa angústia primordial, fundamental para a continuidade do desenvolvimento, dá-se pela convergência sensorial, que cria uma ilusão de continuidade corporal com a mãe. Ou seja, no nascimento biológico há uma explosão de sentidos gustativos, táteis, sonoros, visuais e motores que são percebidos de forma dispersa, fazendo cada sentido unir-se à sua melhor sensação: o ouvido ao som que mais lhe atrai, o olhar ao brilho mais chamativo, o toque à superfície mais convidativa ao tato, e assim por diante. Esses estímulos, entretanto, têm pouca chance de partir do mesmo objeto externo. A convergência sensorial começa a acontecer quando o bebê percebe que o cheiro de sua mãe, sua imagem visual, o gosto de seu leite, o calor de sua pele e a proteção de seu colo não são sensações independentes umas das outras, mas que, ao contrário, estão reunidas naquela experiência de acolhimento das angústias vitais e espaciais, contidas por sua atenção e capacidade de devaneio. Esse momento de prazer, de acolhimento das angústias, contudo, é interrompido quando o bebê se separa do objeto estético, fazendo com que se desmantelem novamente as sensações. Donald Meltzer (1980, p. 30) nomeia esse processo de “conflito estético” e insiste ainda na importância da reciprocidade estética dessa relação, ou seja, é preciso que à experiência estética do bebê responda a experiência estética da mãe. Didier Houzel (2002) concorda, mas enfatiza a importância da dimensão dinâmica dessa relação estética primária. Para ele, não é apenas o problema de o objeto ser belo na superfície e desconhecido no interior que causa o conflito estético. A questão é como se vai viver a relação com o objeto – estruturante ou destrutivamente –, já que o objeto estético é, desde o

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início, sedutor, atraindo-o irresistivelmente em seu campo gravitacional com uma violência sentida como destrutiva caso não seja amortecida pela reciprocidade estética. Supõe ainda que haja não apenas uma reciprocidade estética, mas também uma sedução recíproca, que faz com que à atração do psiquismo nascente da criança pela mãe responda a atração do psiquismo da mãe em relação a seu bebê. Na abordagem dinâmica do pensamento, o conceito matemático do atrator substitui a relação continente/conteúdo proposta por W. R. Bion em sua função de conter as angústias. Trata-se então de um processo de estabilização do fluxo dinâmico, que conduz à morfogênese.5 O aspecto interiorizável da relação entre os dois faz o papel de atrator dos sistemas dinâmicos, ou seja, atua como um campo de vetores aplicados sobre um espaço substrato que é, ele mesmo, formado e deformado sob os efeitos das forças representadas por esses vetores. René Thom exemplifica o atrator como aquilo que um vale é para o escoamento de água, isto é, o vale é escavado por águas vivas e turbulentas, ao mesmo tempo que dirige e canaliza o fluxo ao lhes oferecer estabilidade estrutural. A força de sedução do objeto estético – e o bombardeio sensorial inerente a ela – causa uma angústia de aniquilamento, sentida como precipitação incontrolável e morte por queda em abismo sem possibilidade de sustentação, à qual apenas o encontro com o objeto estético dado primeiramente pela convergência sensorial pode oferecer sustentação, freando-a sem, no entanto, imobilizá-la, ao conceder-lhe certa estabilidade estrutural. É o que vai permitir a continuidade do desenvolvimento do pensamento em formas mais complexas. Por isso, não é então o objeto em si que é belo, mas o encontro com o objeto. É no encontro – no acolhimento das angústias vitais – que se faz o agrupamento sensorial. Esse é percebido não como uma função desempenhada por outra pessoa, mas como a imagem motora do abrandamento das angústias. A capacidade atratora do encontro com o objeto oferece uma parte estável ao processo de abertura do espaço ao fazer convergirem os fluxos dinâmicos em ato, permitindo a realização do novo pela manutenção de uma forma estruturalmente estável. Na teoria das catástrofes de René Thom (2004), o processo de invenção (destruição criadora) nada mais é do que o nascimento ou a aparição de uma nova forma, isto é, um processo de morfogênese, criação ou ruptura de uma forma preexistente e, portanto, uma zona de descontinuidade qualitativa do processo morfogenético que dá origem a uma catástrofe do tipo dobra (destruição ou criação de uma forma), caracterizando um salto qualitativo no movimento.

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A questão a ser pensada em relação à relevância da experiência estética da arte é: como isso pode ser elaborado enquanto desdobramento do encontro estético com a obra de arte?

Referências HOUZEL, Didier. “Les modèles topologiques”. L’aube de la vie psychique. Issy-lesMoulineaux: ESF, 2002, pp. 29-74. MELTZER, Donald. Explorations dans le monde de l’autisme. Paris: Payot, 1980. THOM, René. Parábolas e catástrofes. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2004.

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Arte e política na China Bony Braga “Que o senhor aja como senhor, que o vassalo aja como vassalo, que o pai aja como pai e que o filho aja como filho”, diz um adágio confucionista. O pensamento da China antiga fundava-se em um apreço profundo à ideia de ordem, o que podemos constatar por algumas sentenças do Livro dos ritos: O desejo não pode ser seguido, a vontade não pode ser plena, a alegria não pode ser extrema [...] o caminho, a virtude, a benevolência e a justiça, sem o espírito ritual, não serão concluídos [...] as relações entre o senhor e o vassalo, o superior e o inferior, o pai e o filho, os irmãos mais velhos e os irmãos mais novos, sem o espírito ritual, não estarão estabelecidas (tradução minha).

Ora, o espírito ritual proporcionou na antiguidade chinesa a junção das esferas artística e política. Verificam-se, nas primeiras peças de arte produzidas sob o auspício das casas de Shang e Zhou, valores composicionais semelhantes àqueles valores comportamentais e éticos estabelecidos no Livro dos ritos alguns séculos depois: deve-se observar a proporção entre as linhas que compõem o formato de um instrumento litúrgico (como o vaso ou a espada), entre o alto e o baixo, entre o superior e o inferior, assim como se deve saber o próprio lugar na vida social. As peças em jade e em bronze dos Shang e dos Zhou estão impregnadas do espírito ritual do qual Confúcio sente falta já em seu tempo (segundo as datas tradicionais, 551-479 a.C.). Lemos no clássico confucionista dos ritos: Mesmo que o orangotango possa falar, não deixa de ser uma besta. As pessoas de hoje, sem o rito, mesmo que possam falar, não têm a mentalidade das bestas? […] Por isso, o homem sagrado emprega o rito para educar as pessoas. Leva as pessoas, pela posse do rito, a perceberem o que as distingue das bestas (tradução minha).

Os objetos rituais da antiguidade eram produzidos de acordo com os parâmetros dos objetos usados no cotidiano, mas em material precioso e com acabamento finíssimo. Quando os soberanos desejavam afirmar sua

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autoridade, patrocinavam a produção de inúmeros artefatos, como vasos rituais em bronze, que recebiam inúmeras denominações, dependendo de suas formas: ding, li, hu, zun, you, dou. Em tais vasos cerimoniais, eram gravadas formas de pássaros, elefantes, tartarugas, peixes, motivos florais, formas geométricas e imagens de animais míticos, como a fênix e o dragão. O motivo principal nos vasos rituais Shang era o taotie, possuindo variadas formas que lembram os olhos, as orelhas e a boca de um animal, sem chegar, no entanto, a definir com precisão o desenho do rosto. A antiga religiosidade chinesa procurava a salvação não no além-vida, mas na vida em sociedade, definida por parâmetros éticos e protocolares, tendo na família o seu centro. No topo dessa vida em sociedade, estava o Filho do Céu, o imperador. Não por acaso, o Livro dos ritos e outros clássicos confucionistas versam sobre a importância de tudo o que se relaciona ao imperador. A própria palavra para sagrado faz referência à instituição imperial. Não só no confucionismo, mas também no taoísmo, a figura do imperador possui extrema importância. O panteão taoísta possui inúmeros deuses cujos nomes terminam com o título para imperador. O mais elevado dos deuses, não por acaso, é chamado de Imperador Superior Augusto de Jade. Por que motivo a jade, e não qualquer outra pedra preciosa, aparece como um dos principais elementos da iconografia taoísta a indicarem as relações entre o sagrado e a autoridade divina e temporal? A língua chinesa conhece inúmeros termos para diferentes objetos feitos de jade, sendo yu o termo geral para o material de que são feitos. Jade é o nome pelo qual designamos dois minerais diferentes: jadeíte e nefrite, que são muito difíceis de ser trabalhados. O primeiro dos dois minerais citados só começou a ser usado na China durante o século XVIII, e o segundo era extraído em certas regiões da Ásia desde a antiguidade. Dependendo da forma do objeto e da cor da pedra, usa-se um vocábulo específico para denominá-lo, como ocorre com bi, que designa um disco de jade plano com abertura em seu centro. Assim como os bronzes, as peças de jade foram amplamente produzidas para fins cerimoniais desde o Neolítico. Durante a dinastia Song (960-1279), eruditos chineses, percebendo a relação existente entre as peças de bronze e de jade e o poder político, começaram a coletar e a estudar artefatos antigos. As primeiras coleções de arte chinesas nasceram sob a ideia de que a legitimidade do poder político residiria em objetos antigos.

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Arte e taoísmo Bony Braga

O taoísmo é uma religião nascida na China em fins da dinastia Han (século II d.C.). Segundo a tradição, a primeira instituição religiosa taoísta propriamente dita – a Ordem Ortodoxa Unitária – teria sido fundada por Zhang Daoling, o Mestre Celestial. Durante os séculos seguintes, surgiram inúmeras outras linhagens religiosas taoístas, como a Tesouro do Espírito, Transparência Superior, Verdade Completa, Sutileza Transparente, Nuvens Divinas etc. A religião taoísta é praticada contemporaneamente não apenas na China continental e em Taiwan, mas também na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil. Pode-se dizer que as artes possuem uma grande importância no contexto da liturgia taoísta. O próprio ritual pode ser considerado um tipo de arte, uma prática performática guiada por determinados princípios cosmológicos que estabelecem a relação dos seres humanos entre si e com o espaço sagrado, que inclui o mundo natural. Um ritual elaborado ocorre dentro de um templo. Os grandes templos taoístas são, por si mesmos, obras arquitetônicas singulares. Um ritual, para ocorrer, exige não apenas um local preparado para esse fim, como também peças produzidas por pintores, escultores e sacerdotes. Além disso, empregamse músicos, sejam eles sacerdotes ou não. O uso de imagens nos altares taoístas é uma contribuição do budismo, pois não se utilizavam imagens antes de sua chegada à China. Hoje, faz-se um vasto uso de imagens pintadas e esculpidas. De modo geral, apenas os grandes templos possuem peças de pintura e escultura realmente valiosas e reconhecidas pelo seu alto valor artístico. É o que ocorre no caso do Templo da Nuvem Branca, em Pequim, onde há uma excelente representação do Senhor Celestial do Princípio Inicial. A pintura foi considerada, no período imperial chinês, a mais importante das artes. Pintores e sacerdotes taoístas muitas vezes demonstraram um conjunto de crenças semelhantes, como a ideia de que há uma continuidade entre a realidade e o mundo das imagens produzidas por ambos. Um dos princípios básicos da pintura chinesa estipulados por Xie He no Catálogo classificatório das pinturas antigas é o “timbre do sopro vivo e dinâmico”

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(tradução minha). O sopro é um conceito fundamental do pensamento chinês, relacionado à prática das artes, da medicina, da feitiçaria, da religião etc. O sopro seria o princípio vital subjacente à existência e à manutenção de tudo. Tanto o pintor chinês quanto o sacerdote taoísta acreditavam ser fundamental direcionar o sopro para a realização das pinturas, no caso do primeiro, e dos talismãs, no caso do segundo. Ambos usavam os quatro tesouros da tradição chinesa: papel, pincel, tinta e pedra para preparo de tinta. Algumas anedotas narram o poder mágico das pinturas: diz-se que Ku, célebre pintor da dinastia Qin, estando apaixonado por uma mulher que lhe negava amor, pintou seu retrato aplicando uma agulha na parte correspondente ao coração da moça, que, sentindo então muita dor, suplicoulhe para que retirasse a agulha da pintura feita na parede de sua casa. Também se fala na pintura de dragões feita por Chang durante o período das dinastias do Sul e do Norte, na capital Nanjing. O pintor não dotou os dragões de olhos. Inquirido sobre o porquê disso, Chang explicou que, caso desse olhos aos dragões, eles voariam das paredes. Descrentes disso, as pessoas o acusaram de fraude. Chang, então, deu olhos a dois dragões, que saíram das paredes adquirindo vida ao som de um estrondo forte como um trovão! Essa historieta lembra o ritual taoísta de sagração de esculturas chamado “Pontuar os olhos para abrir a luz”. Trata-se de um rito em que o sacerdote, usando pincel e tinta, pontua os olhos das estátuas, que passam a ser consideradas tão vivas quanto qualquer pessoa e, portanto, dignas de veneração e respeito. Ao contrário das pinturas, que foram feitas para ser vistas, os talismãs dos sacerdotes são instrumentos litúrgicos que não devem ser expostos aos leigos, sendo produzidos com fins rituais e mágicos. Diz-se que, quando Cangjie codificou a escrita na antiguidade, os espíritos choraram. De acordo com um adágio taoísta, aquele que desconhece a chave da escrita talismânica desperta o riso dos espíritos, enquanto aquele que a conhece desperta seu temor, tornando-se invulnerável. A escrita seria a primeira forma de talismã, a primeira forma de contrato entre o ser humano e o sagrado, estabelecido pelo uso do pincel. Tanto o pintor quanto o sacerdote creem conduzir o sopro pelo pincel através de sua intenção. Segundo os Registros dos talismãs divinos das três grutas (三洞神符記), compilação taoísta, “a chegada da intenção move o pincel, o sopro uno produz o talismã” (tradução minha).

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Arte e transexualismo Raphael Fonseca

Embora a palavra transexual tenha sido cunhada recentemente, o mesmo não pode ser dito de andrógino e hermafrodita, que, mutatis mutandis, podem ser incluídas em seu mesmo campo semântico: trata-se de pessoas que “apresentam características, traços, órgãos ou comportamento imprecisos, entre masculino e feminino” (Dicionário eletrônico Houaiss, 2007). No campo das artes visuais, a tensão entre os sexos em um mesmo corpo foi representada das mais variadas formas. O faraó egípcio Akhenaton, servidor de Aton – manifestação esférica do deus-sol Rá –, é representado em uma série de esculturas como uma figura andrógina, com o corpo construído por curvas sinuosas. Tal opção parece justificável devido à compreensão de Aton como o pai e a mãe de todas as coisas, ou seja, há uma relação entre divindade e ambivalência sexual, absolutismo no poder político e religioso. Aqui, androginia se associa a poder. Na história ocidental moderna, porém, essa tensão é frequentemente compreendida como algo monstruoso. Nos primeiros tratados médicos renascentistas, o hermafroditismo é considerado uma anomalia. No tratado de Ambroise Paré, Dos monstros e dos prodígios (1579), os hermafroditas estão listados como aqueles que “são coisas que aparecem fora do curso da natureza” (1997). Temer o hermafrodita é temer o outro e, portanto, tais imagens e definições podem dialogar com a alteridade cultural. Exemplo disso é um retrato pintado por José de Ribera (1591-1652) da família de Magdalena Ventura, uma nobre napolitana em quem teria nascido, aos 37 anos, uma longa barba. O olhar é lançado para aqueles que se encontram à margem. Androginia e exotismo cultural caminham juntos. Luís XIV (1638-1715), também conhecido como rei sol, dialoga com Akhenaton e incentiva em seus retratos de Estado a tensão entre sua posição política e seus cabelos e vestimentas femininos. Neles, vemos a utilização de maquiagem, perucas, saltos e estampas que saltam de seus trajes. O rei lançou moda e é considerado um dos grandes incentivadores do dito estilo rococó e, nos dias atuais, um protótipo do travestismo.

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Na fotografia, temos na Rose Sélavy, de Marcel Duchamp (1887-1968), mais uma faceta do conjunto de identidades que forma a figura do artista francês: Duchamp enquanto modelo feminino. Andy Warhol (1928-1987), por outro lado, fotografa e também é modelo; retratos e autorretratos de travestis, já em outro recorte histórico, o da tomada de consciência de uma cultura gay. Travestir-se também pode ser uma forma de realizar críticas culturais, como no caso de Yasumasa Morimura (1951-), artista japonês que se traveste, por exemplo, de Olympia, célebre mulher pintada por Édouard Manet (1832-1883), e, para além de questões de gênero, nos faz pensar sobre a geografia e os lugares das culturas ocidental e oriental. O transexualismo se faz presente na história das artes visuais e, contemporaneamente, marca sua presença nas mais diversas esferas da cultura visual, sendo constante na música pop, na televisão, no cinema e na publicidade.

Referências Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. “Andrógino”. São Paulo: Objetiva, 2007. PARÉ, Ambroise. “Des monstres et des prodiges”. In LANEYRIE-DAGEN, Nadeije. L’invention du corps – la représentation de l’homme du Moyen Age à la fin du XIXe siècle. Paris: Flammarion, 1997, p. 170. ------. Des monstres et des prodiges. Paris: L’Oeil d’Or, 2005 [1579].

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Assemblage Rafael Souza

Cunhado em 1953 pelo artista francês Jean Debuffet no intento de designar algumas de suas obras que, para ele, não se encaixavam na já existente categoria da colagem, o termo assemblage somente veio a ganhar renome internacional quase uma década depois, quando o curador do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA), William C. Seitz, realizou, em 1961, a exposição The Art of Assemblage. Seitz reuniu 138 artistas que, embora pertencessem a diferentes tendências, apresentavam um interesse comum no uso de elementos do cotidiano; produziam obras que, estando para além daquelas simplesmente pintadas, desenhadas, modeladas ou esculpidas, eram reunidas – assembled – a partir de materiais que a priori não respondiam ao mundo da arte, fossem eles objetos ou fragmentos, naturais ou manufaturados. À palavra assemblage, segundo o crítico Michael Archer (2001), existem duas ideias-chave amalgamadas. A primeira é a de que as imagens e os objetos unidos e justapostos para a produção da obra de arte jamais perdem totalmente sua identificação com o mundo cotidiano, de onde foram tirados. A segunda é a de que essa ligação com o cotidiano abre possibilidades para que o artista lance mão livremente de uma vasta gama de materiais e técnicas até então não associados ao fazer artístico. No campo da arte, a utilização de elementos ordinários teve lugar muito antes do advento do termo assemblage. Já em 1912-1913, Pablo Picasso (18811973) e Georges Braque (1882-1963) produziram obras cubistas a partir da colagem de papéis como rótulos de produtos e jornais sobre a superfície da tela, prática cujo caráter inovador fez emergir questões acerca do estatuto do objeto de arte e conduziu à necessidade de criação de uma nova categoria artística – a colagem –, uma vez que os trabalhos abarcados por essa não se encaixavam nas classificações existentes. Em seu desenvolvimento, a assemblage recebeu contribuições não apenas do cubismo, mas também de diversos outros movimentos, como o futurismo – por meio de artistas como Umberto Boccioni (1882-1916) e Fillipo Tommaso Marinetti (1876-1944) –, o dadaísmo e o surrealismo. Não se pode deixar, entretanto, de citar o papel

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do artista francês Marcel Duchamp, que, a partir da produção de seus readymades, já em 1912 elevou objetos do dia a dia, como uma roda de bicicleta e um banquinho, à condição de obras de arte. Seitz, em sua exposição, evidenciando toda a diversidade que remetia ao termo assemblage, apresentou ao público obras muito diferentes quando comparadas entre si, produzidas não apenas pelos referidos “ismos”, mas também por nomes rotulados como beat, funk, junk, cinéticos e neodadaístas, como Kurt Schwitters (1887-1948), Ettore Colla (1896-1968), Joseph Cornell (1903-1972), Louise Nevelson (1899-1988), Alberto Burri (1915-1995), Arman (1928-2005), Robert Rauschenberg (1925-2008) e Marisol (1930-). Após a grande exposição de 1961, que contou com um simpósio do qual participaram profissionais como Richard Huelsenbeck, Rauschenberg, Roger Shattuck, Lawrence Alloway e o próprio Marcel Duchamp, a assemblage passou a ocupar seu lugar dentro da confusão de estilos, práticas e materiais que caracterizam e marcam a arte do momento, que denominamos contemporânea, aparecendo na produção de artistas das mais variadas posições, posturas e nacionalidades. No Brasil, a assemblage também marcou presença, surgindo em maior ou menor grau na produção de alguns de nossos artistas, como Farnese de Andrade (1926-1996), Rubens Gerchman (1942-2008), Wesley Duke Lee (1931), Nelson Leirner (1932), Leda Catunda (1961) e Rochelle Costi (1961), apenas para citar alguns.

Referências ARCHER, Michael. Arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. CHILVERS, Ian (org.). Dicionário Oxford de arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996. DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas e movimentos. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

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Caricatura Fernanda Marinho

A caricatura é uma das expressões artísticas mais antigas da história; no entanto, sua legitimação no âmbito da disciplina histórico-artística ocorre apenas em meados do século XIX, num momento de maior interesse acadêmico pelas manifestações artísticas consideradas populares. Suas características essenciais e mais genericamente conhecidas se mantêm desde os primeiros afrescos de Pompeia até os dias de hoje: a sátira, a deformação e o exagero. A essas podemos acrescentar outras intensamente presentes em suas manifestações: o discurso do embate, como belo e feio; a problematização de conceitos contrastantes, como verdade e mentira; e o questionamento de fronteiras tênues, como popular e erudito. O exagero ou a deformação física se opõem já em primeira instância à arte padronizada, preocupada em fundamentar regras de composição e em eleger os melhores modelos naturais como fonte de inspiração, conforme vivido nas épocas históricas fortemente regidas pelas teorias clássicas. Em Pompeia, as caricaturas também assumiam formatos textuais sob os muros da cidade, fosse em forma de protesto às autoridades, críticas pessoais ou reforço da autoestima, muitas vezes de conotação sexual. A primeira referência conhecida a essa denominação artística data do Seiscentos e está no prefácio do livro de Giovanni Battista Agucchi, em que Giovanni Massani analisa as caricaturas de Annibale Carracci. Já aqui, a aplicação do termo é apresentada a partir de dois polos contrastantes muito em voga na época: o processo criativo do artista frente ao modelo natural e à invenção. Massani refere-se à caricatura como perfeita deformação, procurando afirmar que tal prática permitia ao artista libertar-se do intenso compromisso de inspirar-se nas coisas mais belas encontradas na natureza, podendo inventar de forma igualmente bela suas criações. Sua comicidade inerente a aproxima de um discurso aparentemente mais fugaz e menos profundo, o que à primeira vista a confronta com as formas de arte mais calculadas e planejadas. Sua essência sobrevive a poucos traçados, a esboços mais intuitivos do que esquematizados. Aristóteles classifica a

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comédia como imitação de homens inferiores; Alberti afirma que o espaço do riso é o não verdadeiro, e assim a caricatura, por longos anos da história, assume um caráter de expressão abjurada, não servindo como veículo da verdade. No entanto, podemos pensar nos estudos grotescos de Leonardo da Vinci, extensamente identificados como caricaturas. Seu propósito era mais que apenas a deformação, uma vez que, fortemente comprometido com os conhecimentos científicos, procurava estudar o caráter humano através de diversas representações fisionômicas. Algo semelhante ocorre com outros artistas interessados em estudos fisionômicos, como Giuseppe Arcimboldo, que, por meio de combinações vegetais, criava feições humanas. A caricatura cumpre, em certa extensão, o mesmo papel do retrato e da fotografia: a identificação. No entanto, nesse caso que analisamos, isso não ocorre pela representação natural do retratado e sim por um traço além da realidade, por um exagero peculiar. O elemento que nos permite identificar o retrato com o retratado é um conjunto de distorções que desvendam mais do que suas características físicas; revelam seu caráter. Negar à caricatura o senso crítico é não perceber a intensidade da condenação de Goya às campanhas napoleônicas nas séries Caprichos, Desastres da guerra e Disparates e os deboches de Honoré Daumier aos parlamentares e à burguesia francesa. Cabe, portanto, acrescentarmos mais uma característica a essa expressão: um engajamento muitas vezes cômico, mas intencionalmente crítico, que a faz existir entre os meandros da sociedade. A caricatura aparece de forma espontânea, acompanhando os acontecimentos diários. Por muitas dessas razões, encontra-se hoje em dia numa fronteira entre o que chamamos de popular e erudito, convidandonos a refletir sobre tais conceitos. No Brasil, por exemplo, foi introduzida no século XIX, por Araújo Porto-Alegre, sob os moldes da arte francesa, juntamente com o ensino artístico acadêmico, fazendo conviverem padrões clássicos e liberdade criativa, formas lineares e deformações, tradições simbólicas e novas conotações atreladas ao momento vigente. A caricatura hoje não é mais questionada enquanto discurso crítico. Suas publicações diárias em jornais e revistas, muitas vezes atreladas às charges, atestam a seriedade alcançada por meio da linguagem cômica.

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Colagem Mariana Gomes Paulse

A partir do início do século XX, a colagem se estabeleceu como procedimento artístico por meio do movimento cubista, mais especificamente em sua segunda etapa, denominada cubismo sintético. Essa fase, de 1912 a 1914, tornou-se um marco na história da arte por muitas de suas obras agregarem materiais da realidade, até então estranhos à arte, dentro do espaço plástico. Jornal, pacote de cigarro, caixa de fósforos e outros objetos foram aderidos à tela ou a um suporte de papel. Desde então, esse procedimento, em suas variações de fazeres e nomenclaturas – décollage, bricolage, assemblage, fotomontagem, rollage etc. –, foi utilizado por artistas modernos no futurismo, no dadaísmo, no surrealismo, no construtivismo, por exemplo, e por contemporâneos como Jiri Kolar, Robert Rauschenberg e Wolf Vostell, entre outros. De maneira geral, o procedimento da colagem problematiza a relação que o espaço plástico pode construir com a realidade, questionando as formas tradicionais de representação e estabelecendo muitas vezes uma relação crítica direta com a história da arte a partir do emprego de reproduções de obras consagradas. Em alguns casos, objetos do mundo, como jornais e chapas de metal, são colocados sobre tela, papel cartão ou outro suporte, distribuídos de modo a constituir formas geométricas, assumindo um caráter mais abstrato. Dessa forma, sem perder seu caráter de objeto do mundo, corriqueiro, cujo sentido já está dado, esses elementos passam a ser ressignificados. Podem ser tomados em seu valor simbólico e abstrato – representativos da imprensa ou do universo do trabalho operário, por exemplo – e, ao mesmo tempo, estabelecer outras significações ainda mais complexas por meio das relações internas construídas no arranjo desses materiais da realidade no suporte, algumas vezes misturados a outros materiais convencionais na pintura, como a tinta e os desenhos, rediscutindo o próprio espaço plástico, as delimitações categóricas entre pintura e escultura e os limites da arte. Na arte contemporânea, além das questões apontadas anteriormente, o uso da colagem se afirma como procedimento crítico privilegiado que

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problematiza os valores culturais, a conjuntura política e os padrões da sociedade. As colagens podem tratar de vários temas, como a questão do feminino, a sexualidade, o consumismo, a expansão dos meios de comunicação, a destruição causada pelas guerras etc., tendo como ponto em comum a relação dialética que se estabelece entre seus componentes. Esses não constroem um todo de sentido simplificado, mas parecem apontar para a complexidade interna do espaço plástico ao deixar em aberto ambiguidades em suas múltiplas referências à realidade reformuladas pelos arranjos formais. Pela particularidade de ser um juízo crítico quanto ao próprio fazer artístico e à história da arte, pode-se traçar um paralelo entre o uso da colagem e as escolhas entre diversos modelos efetuadas por Rafael para compor suas obras. Destacado como um representante do classicismo e muitas vezes identificado com valores artísticos que movimentos modernos desejam romper, Rafael também se valia de soluções recolhidas de fontes de artistas antigos e contemporâneos a ele para elaborar suas criações. Distinguindo-se das colagens modernas e contemporâneas, sua obra detém um caráter de verdade que se constrói pelo apagamento das diferenças entre as variadas fontes – de tempos distintos e modos de fazer artísticos específicos –, selecionando-as e combinando-as em soluções felizes. Nas obras de Rafael, figuras humanas, arquitetura, natureza, tudo se articula harmoniosamente para alcançar uma representação ideal do mundo. A colagem, no entanto, discute esse tipo de representação, ressaltando as fronteiras entre os elementos reunidos. Picasso, um dos artistas mais destacados no estudo da colagem pela sua participação no cubismo e por seus inúmeros trabalhos, utiliza jornais, rótulos de garrafa, papel de parede, desenhos e outros resíduos do cotidiano para realizar seus papiers collés, fornecendo a esses elementos o status de arte. Dentro do espaço plástico, os recortes desses materiais são tomados como signos que podem, em certas ocorrências, como em Guitar, sheet music and glass (1912), simular a representação de um violão, fazendo entrever partes do instrumento musical em pedaços de papel e desenhos utilizados, sem ser possível constituí-lo inteiramente como numa representação tradicional. A ideia do violão e outras noções circundantes, que não dizem respeito só à sua forma, mas também à própria musicalidade, são dadas pelo uso de recortes de partituras e outros elementos da obra. Nesse sentido, os historiadores da arte Rosalind Krauss e Yve-Alain Bois entendem as partes da colagem como signos por cujas relações internas a significação se estabelece. O tratamento que o artista dá a esses

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materiais faz com que se instaure uma dubiedade entre o que está dentro e o que está fora, o que é figura e o que é fundo, onde há profundidade e onde há planaridade. Outros trabalhos de Picasso que discutem a representação falseando-a são os pastiches. Através de desenhos, reúnem corpos formados por linhas algumas vezes sem qualquer sombreado, com rostos realistas à la Ingres, estabelecendo uma relação irônica com a história da arte e com a tradição. Picasso não misturava colagens de papéis de parede ou dos jornais – ainda sem imagens – nesses pastiches. Ele separava, em sua produção, o uso de objetos do cotidiano e o uso de referências da história da arte. Por mais que os papiers collés problematizassem a representação e o estatuto da arte ao inserir elementos não pictóricos no campo plástico, e por mais que o pastiche ironizasse os modos de representação, imitando-os, falseandoos, ainda se preservava certa separação entre a arte feita com elementos do mundo e o pastiche feito com obras de arte. Diferentemente de Picasso, contemporaneamente, destacamos as colagens da série Releitura da Bíblia (1984-1990), do artista argentino León Ferrari (1920), que põem em diálogo imagens da história da arte com outras, veiculadas em jornais e em outros impressos. Nos trabalhos de Ferrari, essas instâncias se combinam, têm o mesmo valor no espaço plástico: o de imagem reproduzida e constantemente veiculada pelas mídias. Nesse sentido, são tomadas como parte do real tanto quanto o papel de parede de Picasso. Suas colagens reúnem, por exemplo, a imagem de um helicóptero da Guerra do Vietnã e a reprodução de A visão de São Bernardo, de Perugino (Helicóptero, 1988); ou a imagem do Criador de A criação do sol, da lua e das plantas, de Michelangelo, sobre a imagem do Vaticano (Incircuncisos, 1988); ou as de anjos apocalípticos sobre a imagem da bomba atômica (Apocalipse, 1988); ou, ainda, a Anunciação, de Fra Angelico, sobre a imagem da seção “Fecundação” da parte de ginecologia em um livro de ciências (Fecundação, 1988). Ao empregar reproduções de obras do renascimento e misturá-las com outras imagens, Ferrari provoca ruídos formais e conteudísticos. A distinção entre elas é marcada pela escala, pela organização dos próprios elementos e/ou pelas variadas especificidades cromáticas dos recortes. Os elementos da colagem se caracterizam pela precariedade em que se unem, sem que se harmonizem ao todo. Nos trabalhos de Ferrari, também se estabelece uma relação dialética entre os componentes da colagem, como visto em Picasso; além disso, problematiza-se a compreensão geral dessas imagens na cultura de massa de modo a construir internamente a significação da obra por meio das analogias

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propostas na crítica do artista quanto à intolerância da sociedade ocidental e cristã e suas relações com a Igreja Católica. Percebemos, nessas obras, o uso da colagem não só para discutir a relação entre o espaço plástico e as formas de representação, mas também as associações feitas entre as obras do renascimento e uma noção de clássico aproximada à noção de verdade, já mencionada em Rafael, correspondente à verdade assumida pelas narrativas bíblicas que os trabalhos de Ferrari questionam. A colagem, entendida como problema plástico e não simplesmente técnico, parece alterar a forma de construção da significação nas artes visuais. O procedimento de escolha de determinadas unidades entre variadas fontes – que se assemelha ao juízo crítico de Rafael – assume um papel privilegiado na arte moderna e contemporânea, ao ressaltar – em vez de diluir – as fronteiras entre os diversos elementos do mundo, incluindo nele a arte.

Referências ARGAN, Giulio Carlo. “Rafael e a crítica”. Clássico anticlássico: de Brunelleschi a Bruegel. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp. 283-95. BOIS, Yve-Alain. “The semiology of cubism”. In RUBIN, William (org.). Picasso and Braque: a symposium. Nova Iorque: The Museum of Modern Art, 1992. GIUNTA, Andrea (org.). León Ferrari: retrospectiva. Obras 1954-2006. São Paulo: Cosac Naify/ Imprensa Oficial, 2006. KRAUSS, Rosalind. Os papéis de Picasso. São Paulo: Iluminuras, 2006. TAYLOR, Brandon. Collage: the making of modern art. Nova Iorque: Thames & Hudson, 2006.

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Desenho Inês de Araújo

Do ponto de vista do sistema tradicional de representação visual, que remonta ao renascimento, o desenho é valorizado por sua natureza especulativa e mental em detrimento do conjunto de atos de desenhar e seus resultados visíveis. Já os aspectos conceituais e práticos enfatizados em muitos processos artísticos recentes, que atravessam ou operam questões do desenho, sugerem direções refratárias a uma definição convencional. Aliando atos de pensamento ou estados nascentes de processamentos perceptivos à singularidade de seus sentidos poéticos, os processos artísticos contemporâneos não podem ser reduzidos às figuras que os atravessam ou que por meio deles se possam potencializar, opor, deslocar, reverter e tencionar. Se imaginarmos rapidamente uma lista reunindo alguns dos procedimentos que caracterizam a fluidez dessa atividade imaterial ou material, reconheceremos a insuficiência de uma formulação conceitual unificadora que contraia o desenho a uma definição. Por outro lado, não podemos nos impedir de recorrer à descrição sonora de alguns termos que nomeiam o desenho, que percorrem suas ideias e seus atos, e perfazem vibrações sumárias de seus limites tênues e sugestivos. Uma lista revela-se útil, pois chama a atenção para o espectro de desdobramentos e reverberações que decorre das relações entre os modos de classificação do desenho e a singularidade de formas incorporadas nos processos artísticos que se valem de operações do desenho. Entre as ocorrências do desenho, podem-se listar tanto algumas formas de circunscrição, de diagrama, de mapa, de percurso, de estruturas formais, de reprodução do visível, de figuração das aparências, de sistemas, de representações lineares, espaciais, arquitetônicas, geométricas, decorativas quanto algumas formas de inscrição, de impressão, de grafismo, de signo, de escritura, de assinatura, de gravação, de registro, de figura, de movimentos inacabados, de gestos, de traços, de linhas, de tramas, de cifras, de letras, de marcas, de códigos, de ritmos, de esboços, de estudos, de anotações, de sinais variados, de desenhos preparatórios. Mesmo esses termos não deixam de

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provocar novas disseminações, fazendo de outros termos novos potenciais de desenho. Idealmente, nossa abordagem deveria levar em conta especialmente as ressonâncias desses aspectos potenciais que nos escapam. Apenas uma aproximação dispersiva e fragmentar ofereceria a vantagem de não reduzir as possibilidades do olhar a uma forma de inventário de suas convenções. No ensaio em que analisa o desenho de Degas, Valéry observa que há uma diferença entre ver e traçar, entre uma construção do hábito ou das convenções que determinam nossa visão e o que vemos ao desenhar não apenas através dos olhos, mas a partir do engajamento perceptivo do corpo. O poeta sugere também que deveríamos nos submeter ao exercício do desenho das formas informes para acedermos às presenças singulares: As formas informes não deixam outra lembrança senão a de uma possibilidade. [...] o artista pode, pelo estudo das coisas informes, isto é, de forma singular, tentar encontrar sua própria singularidade e o estado primitivo e original da coordenação de seu olho, de sua mão dos objetos e de seu querer (2003, p. 88).

Outra referência que nos parece convergir na mesma direção de sentido sugerido por Valéry, que sublinha a ideia de uma possibilidade e não de um resultado, remonta a uma das origens lendárias do desenho e da pintura. Numa das versões de sua origem incerta, conta-se que a pintura teria se originado do contorno de uma sombra. A versão mais conhecida dessa estória consta do livro História natural, de Plínio, “o velho”, escrito no primeiro século da era cristã. Uma jovem de Corinto, filha do artesão ceramista Dibutade, teve a ideia de traçar o contorno da sombra do perfil de seu amante, que deveria deixar a cidade por algum tempo, sobre um muro iluminado a luz de vela. De acordo com esse relato, o desenho tomaria o lugar de uma das possíveis matrizes da pintura, cuja origem acentuaria menos uma operação de representação do que uma relação à presença, ou uma operação relativa a uma lógica por contato. A sombra implica uma operação parcial de representação, funciona como índice de uma presença, participa de seu curso de transformações. Distinguindo-se, igualmente, da afirmação do que é idêntico por semelhança, o traçado de uma sombra tampouco obedece a um sistema clássico de representação. O relato coloca em relevo uma possibilidade do desenho que ativa um percurso de ressonâncias e que deriva de uma lógica por contato. Vista pelo lado contrário, pensada como origem posterior, a lenda, além de oferecer pistas para abordar operações do desenho após o desenho, contribui

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para o exame dos questionamentos contemporâneos da arte posteriores à arte e da arte como porvir de uma origem. Desenhista incomparável e rápido, de inigualável intensidade, Antonin Artaud reconhece o valor plástico do sopro, dessa cavidade massiva de ar ressentida no corpo como uma aglomeração do corpo anterior às palavras. O poeta designa ainda como questão da escrita um problema de contorno, de expressão visível que não representa mas introduz na superfície algo do invisível. O contorno pode indicar uma dimensão sem fim, linha que desfaz o cálculo homogêneo das distâncias, que se baseiam numa mesma unidade de valor, e modificar as relações entre interior e exterior, fundo e figura, figura e espaço, como um sopro. Num texto para Gênica, de 1926, Artaud nota que o olhar de Paolo Ucello nada mais vê “do que a sombra imensa de um pelo” (2004, p. 198). Relata que, ao interrogar os rostos vizinhos, o pintor florentino veria apenas um circuito de ramificações, como uma treliça de veias, como o rastro minúsculo de uma ruga, como a ramagem de um mar de cabelos. “De um pelo a outro, quantos segredos e quantas superfícies!”, exclama o poeta. Alerta que, de tal olhar, emergiria a “linha ideal dos pelos intraduzivelmente fina e duas vezes repetida”, e anuncia ao pintor que, “com a distância de um pelo, você se balança sobre um abismo temerário, do qual você está para sempre separado”. Na paradigmática figura da Spiral jetty, de Smithson, mais uma vez pode-se observar o percurso de uma operação por ressonância. Mobilizando relações de escala entre registros heterogêneos, o trabalho de Smithson não deixa de se traduzir nos termos da presença ou da complexidade das relações, por exemplo, entre o antes e o depois, o simultâneo e o distante, o tempo e a história, o começo e o fim, a progressão e a regressão, a natureza e a cultura, a ficção e o real, a imanência e a transcendência, a experiência social e a mítica.

Referências ARTAUD, Antonin. Oeuvres. Paris: Gallimard, 2004. VALÉRY, Paul. Degas dança desenho. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

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Escultura Leidiane Carvalho

Parafraseando Rosalind Krauss (2008), coisas surpreendentes têm recebido a denominação de escultura. Ou objeto, como se passou a chamar o que é tridimensional, a fim de evitar o termo cultural “escultura” e seu peso histórico, ou mesmo afastar-se do ato de desbastar uma pedra ou fundir um sólido. Alguns artistas, entretanto, querem o título para si, mesmo que não pareça lhes caber: Mathew Barney afirma ser um escultor. Ao ver sua obra, de imediato pensaríamos que se trata de vídeo-arte, mas, ao observá-la mais cuidadosamente, se esclarece nela uma concretude que não nos permite questioná-lo. Do mesmo modo, podemos falar de Michelangelo: embora uma de suas obras mais famosas seja pictórica, diz-se dele que, até quando pintava, esculpia. Sua preferência pela escultura é (re)conhecida – o artista sempre assinava como escultor e os corpos representados no teto da Capela Sistina ou no Tondo Doni são tão escultóricos que comprovam essa afirmativa. É difícil negar, contudo, o peso histórico que vem sendo construído desde a escultura grega, cuja função era representar deuses na medida do homem, buscando ser tão semelhante a esse quanto possível. A escultura, assim, era principalmente vista como objeto-fetiche, e isso não se limitava à arte europeia: África, Américas, Ásia e Oceania tinham suas esculturas-fetiche, às quais se atribuíam poderes mágicos e de culto. Os egípcios esculpiam seus faraós para assegurar sua vida eterna – e isso importava tanto que era dado ao escultor o nome de “aquele que mantém vivo”. Desde os romanos, que desenvolvem a retratística escultórica de suas personalidades mais influentes politicamente, até o fim do século XIX, sem diminuir nem um pouco sua importância para o pensamento da arte, a escultura obedece particularmente à lógica do monumento – feito comemorativo que se relaciona simbolicamente com um lugar, pessoa ou evento – e, apesar de vir se modificando por forma e pensamento, permaneceu dentro desse campo. A nova escultura, então, quer se desfazer dessa relação tão estreita. Krauss afirma que a escultura, a partir do modernismo, perde seu pedestal

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– característica essencial do monumento – e se insere no mundo, buscando tornar-se parte dele, do mesmo modo que a pintura moderna busca desfazerse de sua moldura e fugir do ilusionismo de uma janela de representação. Em lugar da solidez e da permanência, da homenagem que deveria durar e se fazer lembrar por gerações vindouras, dos materiais nobres e do virtuosismo da fatura sugeridos pela escultura do passado, essa nova escultura traz a oposição: o pedestal, quando não é negado, é utilizado como elemento diferenciado da escultura ou ainda agregado a ela. O que importa é exibir de que modo ele transforma o sentido do objeto. Isso fica claro, por exemplo, na Mademoiselle Pogany (segunda versão), de Brancusi, exibida sobre vários pedestais acumulados que parecem querer ser confundidos com a suposta obra em si. A fatura também ressalta a diferença da nova escultura: já no início do século XX, Duchamp compreenderia que o critério de valor para a arte de seu tempo era seu virtuosismo e, como provocação, faz ser admitida numa exposição a famosa Fonte, o urinol invertido, cunhando o conceito de ready-made. Há ainda a escultura abstrata, que foge de qualquer referência anatômica, ou mesmo de uma fatura artesanal: os chamados minimalistas – dos quais Carl Andre, Dan Flavin, Donald Judd, Sol LeWitt e Robert Morris são os mais exponenciais – apropriavam-se de materiais da indústria, da repetição seriada, que, através de muitas partes, tentava constituir-se como um todo, uma obra realmente inserida no espaço, sem disfarces, redomas ou pedestais que a tornassem superior àquele que a observava. A dificuldade de chamar de escultura a Spiral jetty, de Robert Smithson, as Brillo boxes, de Andy Warhol, ou o Bezerro de ouro, de Damien Hirst, nos torna, por fim, conscientes de quão amplo o conceito pode ser e por que é, até hoje, tão paradigmático o “campo ampliado da escultura”, conceito de Krauss que abre este pequeno texto.

Referência KRAUSS, Rosalind. “A escultura no campo ampliado”. Arte e Ensaios, dez. 2008, EBA/ UFRJ, n. 17, p. 129.

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Fim e hipertrofia da arte Camilla Rocha Campos

A expansão do campo de atuação da arte é um fato que aponta para uma nova organização de tempo e espaço a partir de um certo alargamento, uma espécie de hipertrofia. No panorama atual, os supostos motivos artísticos e políticos da palavra fim procuram configurar a arte em outra situação de relação centro-periferia. Antes, palavras, pensamentos e formas se conjugavam num contexto linear. Cambaios, eles tinham como objetivo se manterem suspensos numa corda bamba – lugar de visibilidade legitimadora no tempo caduco da linha histórica cronológica. Hoje, se misturam e saltam, a fim de ressurgirem como imagem flexível no plano horizontal de uma cama elástica. A flexibilidade do movimento em tempo e espaço. Flexibilidade demais, controle de menos. A insuportável demanda sucessiva, rápida e fragmentada de acontecimentos reafirma sua força dando um nó no ponto final. Foi assim aceita e camuflada a incapacidade de se dar conta de todas as narrativas locais do globo. A corda “perdeu autoridade na mesma medida em que se tornou onipresente e disponível” (Belting, 2006, p. 22). Limite controlado. Senhoras e senhores: chegamos ao fim. A utilização do fim para designar história, sistema narrativo e expansão de eventos locais aponta para uma estrutura que não suporta mais, como frisa Fredric Jameson, “o peso universalizante de um particular representativo” (2007, p. 21); substitui-se a “história da arte única e opressora por várias histórias da arte que” passam a existir “uma do lado das outras, sem conflitos” (Belting, 2006, p. 24). Da corda bamba à cama elástica. No plano, a força impressa no contato é lançada à sorte. Sua potência é conhecida no irremediável momento em que se alcança o ápice. O ápice é o começo da queda. Manter-se no ar por tempo indefinido não é mais uma possibilidade. Voltar para o plano é a nova partida. Inúmeras partidas reunidas na multiplicidade dos acontecimentos. Não importa definir história, importa sugerir a dimensão em que se consegue suportá-la. A arte não é mais feita com o “benefício da narrativa legitimadora” (Danto, 2006, p. 5). A cama aparece para suprir uma condição de sustentabilidade à qual a corda

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já não mais responde. A suposta hipertrofia da arte. O “bum!” histórico se exercita aqui, comportando seu crescimento e sua intensificação. A prática da venda de promessas acabou. Ingressos esgotados para a linha do futuro. O presente é o novo paraíso plano. O futuro de um passado “único e obrigatório” (Belting, 2006, p. 29) fechou suas portas. Numa cama elástica superlotada, os fatos exercitam sua energia – altos e baixos, rápidos e lentos. Todos ganham elasticidade naquilo que se pode identificar como a “superhistória”, a “overdose-história” ou mesmo a “hipertrofiação histórica”.

Referências ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BARTHES, Roland. Como viver junto. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BELTING, Hans. O fim da história da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2006. DANTO, Arthur C. Após o fim da arte. São Paulo: EDUSP, 2006. JAMESON, Fredric. Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2007.

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Forma, informe, informal Carla Hermann

A forma é comumente assumida por morfologia ou aparência. Pensando dentro dessa definição, parece impossível existir obra de arte sem forma. Ao restringir a noção de forma ao mero contorno aparente ou ainda à maneira como um objeto é apresentado no espaço, atribuímos à forma a equivalência de limite da obra. No entanto, ela não deve aprisionar. Deve operar enquanto possibilidade de análise, permitindo trabalhar diferentes aspectos do objeto artístico, mesmo que eles constituam absurdos ou paradoxos, e ainda que sem a finalidade de resolvê-los. Nesse sentido, podemos nos valer da definição levantada por Robert Kudielka (1998) da forma como a mediação entre a obra e o espectador, sendo a abstração a instância articuladora dessa ordem de relação. A tensão entre a composição do objeto artístico e sua contrapartida inominada – o oposto da composição – é dotada de forma, e é por meio da própria forma que a tensão se revela. Se já parece complicado pensar em dualidades como composição e contrapartida inanimada, conteúdo e aparência, torna-se quase impossível pensar em uma separação efetiva entre dicotomias. Ao tentar separar efetivamente o dado puramente visual do conteúdo, uma análise formalista privilegiaria a aparência da obra para o mundo e acabaria por fazer uma crítica incompleta ou inconsistente. Podemos evitar a descrição pobre e simplista das formas e fugir de categorias opositivas de análise incapazes de se comunicar. Uma obra não precisaria ser só formal ou ter conteúdo, ser necessariamente aberta ou fechada, apenas atrativa ou apenas repugnante. Ela pode ser aberta e fechada, atrativa e repugnante, um e outro. Uma face da contradição não pode jamais existir sem a outra, sem seu oposto. Um e outro não existem dissociados, um é parte do outro e ambos são, ao mesmo tempo, partes e unidade. Em entrevista, Yve-Alain Bois (2006) afirmou que “a forma sempre carrega um significado, e o significado mais profundo, ou mais importante, está sempre no nível da forma, não no nível do referente ou do conteúdo ideológico”, marcando a impossibilidade de dissociação.

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Ademais, não precisamos resolver contradições e paradoxos – sejam eles explícitos ou não – e podemos trabalhar categorias pelo avesso, usando, por exemplo, o informe para a forma. Partindo da ideia de Georges Bataille, o mesmo Yve-Alain Bois (2000) defende o informe como o elemento operacional que inicia uma operação e produz a organização da obra. Assim, a forma não pode mais ser encarada como definição ou formato (a maneira como ela se organiza fisicamente); é também constituída pelo aspecto operacional do informe. É essa dimensão operativa que permite pensar a ambiguidade da forma e do informe: numa oposição que não se resolve. É necessário lembrar a distinção entre informe, no sentido que estamos levantando aqui, e aquele cristalizado como arte informal, termo utilizado para designar as tendências artísticas dos anos que sucederam a Segunda Guerra Mundial. Longe de ser um movimento autodeclarado, e sendo mais uma convergência de questões formais, tendências como o tachismo, a art brut, a abstração lírica – e, para alguns, o próprio expressionismo abstrato –, o grupo CoBrA e o grupo japonês Gutai acabam por cair sob o selo da arte informal. Na tradução do francês para o português, o termo informe aparece tal como na grafia original. Segundo o dicionário Michaelis: “in.for.me. adj 1 informe, esboçado, grosseiro, imperfeito. 2 desgracioso, pesado, feio”. Note-se a distinção para o termo informel, traduzido como informal e para o qual o mesmo dicionário atribui a seguinte definição: “in.for.mal. adj (in+formal) Que não é formal, que não observa formalidades”. Informe refere-se mesmo ao que é sem forma, enquanto o informal remeteria mais àquilo que não obedece às formalidades enquanto regras. Considerando o contexto de renúncias conscientes de certas premissas artísticas no qual a arte informal se desenvolveu, a tradução parece mesmo mais adequada. Preferimos manter os dois termos em separado, cada qual com seu significado, e não tomar o informe por informal. Seria possível existir arte sem forma? Pensando a forma enquanto contorno, a resposta parece fácil: não, não é possível. Porém, considerando o sentido operativo mais amplo do informe, seria possível a obra ser formal e/ ou informal, uma vez que não houvesse a necessidade de superar a oposição entre figuração e abstração, bem como se a oposição entre forma e informe fosse compreendida dentro da estrutura, sem identificar objetos formais ou informais nela. A apropriação do termo de Bataille traz algumas dificuldades operacionais inerentes a ele mesmo, pois não vê a distinção entre opostos –

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não há enfrentamento, como na dialética, e, portanto, não há superação ou resolução. Mas também nos permite pensar um conjunto de forças que não se cristalizam, evitando formalismos e encadeamentos lineares evolutivos. Por não considerar a distinção entre opostos incomunicáveis, o pensamento de Bataille não pressupõe a existência de certo ou errado, evitando escalas de valores, muitas vezes prejudiciais para a atividade verdadeiramente crítica perante a arte.

Referências BOIS, Yve-Alain. “The use value of formless”. Formless: user’s guide. Nova Iorque: Zone Books, 2000, pp. 13-40. ------. “Ideologias da forma – entrevista com Yve-Alain Bois”. Revista Novos Estudos, nov. 2006, n. 76, pp. 237-49. KUDIELKA, Robert. “Abstração como antítese”. Revista Novos Estudos, jul. 1998, n. 51, pp. 15-35. Michaelis – moderno dicionário da língua portuguesa. “Informe”. São Paulo: Melhoramentos, 1998.

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Fotografia Elena O’Neill

Se estivesse educado, o olho humano poderia, guiando um olho de vidro, apropriar-se de um mundo tão vasto como aquele que tem sido controlado por mão mais ou menos exercitada guiada por um olho semifechado, disse Man Ray, em “La photographie n’est pas de l’art” (1998, p. 69). Nesse artigo, assim como em “La photographie peut être de l’art” (1985) e na entrevista à Camera, na qual afirma que “l’art n’est pas de la photographie” (1998), Man Ray mostra uma concepção de arte e fotografia como mecanismo que deve ser montado, desmontado e remontado continuamente. Enfatizou neles, como também em suas fotografias, o aspecto misterioso e onírico da imagem. Nessa alusão aos mestres da pintura, poderia estar implícita a questão de Benjamin, da arte enquanto fotografia, como uma alternativa ao debate da fotografia como arte, numa tentativa de transpor a discussão centrada na estética à função social. A fotografia permitiu a Benjamin pensar a cultura moderna segundo a produção e a reprodutibilidade técnica, assim como o modo em que os desenvolvimentos técnicos afetaram a experiência ótica e, portanto, a experiência visual dos artistas. No entanto, a distinção entre produção e reprodução pode ser considerada a base da teoria sobre fotografia de László Moholy-Nagy. Para ele, reprodução é a repetição de relações já existentes; distingue-se da produção – ou criação produtiva –, que define em Peinture photographie film (1925) como a produção de relações ainda desconhecidas. Segundo Moholy-Nagy, a imagem fotográfica não é redutível à visão humana nem a uma função reprodutora: a representação é um ato criativo e não apenas imitação. Para ele, a fotografia era um meio de produzir novas experiências sensoriais, em vez de registrar algo que já tinha sido apreendido pela percepção direta, ou de representar o mundo de forma semelhante à processada pelos sentidos. Esse modo de entender a fotografia está em ressonância com o entendimento que Carl Einstein tem da arte. Einstein faz a distinção entre a arte como tentativa de ordenar uma visão já dada do mundo e a arte que, segundo ele,

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representa um meio de tornar visível a dimensão poética, um meio de acrescentar concretamente a quantidade de figuras e aumentar a desordem, um meio de reforçar o caráter absurdo e inexplicável da existência. Assim destacamos o valor daquilo que não é conhecido, que não é ainda visível. Não reproduzimos a existência, porém a formamos. Isso quer dizer que incessantemente introduzimos novos mitos no real (2003, p. 138).

Em “Por uma antropologia da imagem”, Hans Belting (2005) estabelece uma relação triádica entre imagem, meio e corpo, baseada na configuração de Jean-Pierre Vernant, na qual uma pessoa vive num corpo físico, tem a experiência de uma imagem e cria um artefato. Os estudos de Vernant sobre a antropologia histórica das imagens mostram a proximidade entre artefatos visuais e a evolução do pensamento grego. Vernant afirma que a aparição no grego das palavras eikon e mimésis acarretou a desvalorização do eidolon, que, a partir de então, passou a significar cópia ou imitação inerte. Segundo ele, a definição de imagem se deu depois dessa ruptura. Segundo Belting, estamos condenados a viver no labirinto de nossas próprias linguagens, que tão frequentemente restringem e mesmo cerram partes do espectro semântico que desejamos descrever, estreitando não só nossa terminologia como também nosso pensamento (2005, p. 72).

Se entendermos a fotografia como uma duplicação do real, ela terá a função que Einstein atribuía à arte: estabilizar e compensar a ansiedade causada pelo fluxo vital e a morte. Segundo ele, nas obras de arte sobrevivem agentes ativos de ordens do passado que continuam a estruturar nossa experiência do mundo. Para Einstein, que defendia uma arte direcionada contra a ordem visual existente, o cubismo parecia ter o potencial de desintegrar essa ordem e ser o signo de um ser humano visualmente ativo. Embora não tenha escrito sobre fotografia, ele centrou sua teoria da arte na noção de reprodução em seu aspecto negativo. Pensar a fotografia desde a ótica de um ser humano visualmente ativo requer romper com as noções de duplicação e imitação, criar intervalos entre a coisa e a coisa fotografada, distinguir entre reprodução criativa e repetição. Para Einstein, o cubismo, que mostrava algo que não existia antes da visão e que esperava ser descoberto como se existisse anteriormente, não aponta para a representação do objeto senão como um processo visual e mental no qual o objeto é o resultado desse processo. Para Benjamin, a câmera revelava aspectos não observados do objeto, do espaço ou do movimento,

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independentes do sujeito que percebe. Essas duas formas de entender a visão permitem pensar a fotografia como modo de mostrar a função visual e não a realidade. A construção formal de uma fotografia mostraria, então, como ela adequa, contradiz ou desestabiliza nossa visão do mundo. Portanto, podemos considerar a fotografia, suporte mediante o qual uma imagem se inscreve e articula o visível com nossas imagens mentais, uma modalidade de transformação, de metamorfose mediante a qual Eros empresta aos homens os olhos dos deuses.

Referências BELTING, Hans. “Por uma antropologia da imagem”. Concinnitas – Revista do Instituto de Artes da UERJ, 2005, n. 6, pp. 64-78. BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996a. ------. “O autor como produtor”. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996b. ------. “Pequena história da fotografia”. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996c. EINSTEIN, Carl. Georges Braque. Bruxelas: Éditions La Part de l’Oeil, 2003. ------. “Notes on cubism”. October 107. Cambridge, Massachussets: The MIT Press, 2004, pp. 158-68. MAN RAY. Man Ray photographe. Paris: Philippe Sers, 1985. ------. Ce que je suis et autres textes. Paris: Hoebeke, 1998. MEFFRE, Liliane. “Note sur le Traité de la Vision de Carl Einstein”. Les Cahiers du Musée Nationale d’Art Moderne, 1996, n. 58, pp. 28-9. MOHOLY-NAGY, László. Peinture photographie film. Nimes: Éditions Jacqueline Chambon, 1993 [1925].

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Imitação Gilton Monteiro

Passada a limpo toda uma biblioteca, o tema da imitação não se concluiria. Insatisfatoriamente, continuaria esquivo às garras de nossos conceitos. Não à toa, surge desconcertante na história das ideias. A imitação, como já se sabe, tirara Platão do sério ao ocasionar um abalo profundo sobre sua concepção de verdade. Ocorre que, em termos heideggerianos, o ateniense entrevê a ideia como uma espécie de morada do ser, reprovando na mímese sua carga de sensibilidade. É assim que se deve aqui operar a concepção de mímese tal qual a compreendeu todo o período moderno, das teorias renascentistas ao sistema kantiano, como imitatio. Banida da República, a imitação irá encontrar exílio em Aristóteles. Isso porque era demais para Platão ajustar à ideia o poder de sua sedução. Ancorada no suprassensível, a concepção platônica da verdade não hesita em ver na aparência da arte uma espécie de sereia homérica, iludindo e afastando os homens do correto aprendizado. Porém, foi Sócrates que levou a ideia ao cabo. Sua recusa aos escritos é prova disso. E é a pari passu que na República a ontologia platônica descreverá com a mímese sua definição de arte. Segundo uma hierarquização típica, Platão percebe na imitação uma espécie de fundo falso sobre o qual o que é dado a ver não é exatamente a aparência da ideia, a verdade, e sim uma reprodução dessa aparência, um simulacro. Estaríamos então lidando com uma espécie de análogo de segunda ordem, um análogo do análogo, mediado por um abismo intransponível: a distância que ali separa a arte da verdade. É nessa perspectiva que, estratificado no desenvolvimento que conduz da verdade à arte, tal operação caracteriza uma involução, uma degradação moral, por ser uma distorção da realidade. A depreciação só será amenizada, senão completamente invertida, em Aristóteles, ao entrever na imitação certa naturalidade. Reconhecendo o caráter espontâneo da mímese, o pai da peripatética reabilita a arte com vistas à satisfação por ela proporcionada ao homem, e isso por meio dos sentimentos de prazer e dor. Tomando conscientemente o modelo da natureza, sem a essa ter de se reduzir, a imitação restitui-nos uma espécie de conformidade – o que não quer dizer que na Poética esteja superada a distância que a separa da verdade.

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O imperativo da metafísica platônica conduzindo os termos da imitação só viria a perder fôlego a partir do renascimento, quando o problema é articulado frente a novos horizontes de relação com a natureza. Em Vasari, por exemplo, a ideia supera o inatismo, tão próprio ao neoplatonismo, para se ver originada da experiência, como intuição do real, abrindo-se as portas para a problemática do sujeito e do objeto – ainda que, nesse caso, o problema se encerre antes mesmo de ser elaborado. Isso se dá porque a ideia que se manifesta no sujeito expõe concomitantemente “as intenções próprias de uma natureza cujas produções são submetidas a leis” (Panofsky, 2000, p. 63). Tendo origem na realidade, a ideia seria processada quase paradoxalmente pelo sujeito a partir de si mesmo, ou seja, independe da natureza, chegando até a auxiliá-la. Paradoxal sim, não fosse a compreensão de que, após seu parto, a ideia passaria a viver certa autonomia, ainda que conforme à realidade e... completando-a. Se tal concepção da ideia ignora os termos da teoria platônica, aponta, contudo, para um sentido naturalista. Sintetizando e aparentemente conduzindo às últimas consequências a problemática entre imitação e suas companheiras – a verdade e a realidade –, os movimentos da arte moderna traçarão horizontes inteiramente novos de relações entre tais departamentos. Passando pelo realismo impressionista e pela profunda análise da natureza em Cézanne, chegando a superar a antinomia sujeito-objeto, ela alcança o cartesianismo cubista, acionado pelas engrenagens do mecanicismo moderno, para encerrar um paradigma secular. É então que os códigos que garantiam a integridade das linhas fronteiriças entre mímese e verdade, por exemplo, não são apenas triturados para figurar a grade das telas de Picasso e Braque, mas sim radicalmente superados, testemunhando nas obras de Malevich e Mondrian formas inaugurais, inéditas, mobilizando os sentidos na construção da realidade. A ontologia de Heidegger e, antes dela, o idealismo de Hegel são testemunhas das mudanças de relações estabelecidas entre imitação e companhia. Ao buscarem a verdade, ambos descrevem o percurso da arte em uma época marcada pelo utilitarismo da técnica e, no caso de Heidegger, da morte da metafísica, diagnosticando um movimento que tem como termo o declínio pop do sentido. Se, a partir de então, a realidade (material) ameaça exaurir a arte, não custaria apostar em certa dose de experimentalismo para pô-la novamente de pé.

Referência PANOFSKY, Erwin. Idea: a evolução do conceito de belo. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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Intervenções artísticas afro-brasileiras Mônica Linhares

Intervenções artísticas pretendem transformar o espaço comum em comunicação excepcional, adotando os ambientes urbanos, paisagísticos ou simplesmente públicos com intuito de ressignificar lugares e valores. Os procedimentos utilizados vão desde projetos de interferências, apropriações de imagens do cotidiano, com fotografias, jornais, lambe-lambes, outdoors, instalações, até gestos performáticos e efêmeros, entre outros. Interiores ou exteriores às instituições, com ou sem apoio, dialogam com os circuitos de mídia alternativos. Imbuídos como agentes de transformação cultural, encontraremos também assinaturas de coletivos de artistas, propondo nova relação de autoria e inovação na dialética entre os pares arte e sociedade, público e privado, arte e artista. Podemos entender essas ações como mediações na incomunicabilidade das diferentes formas de construção da realidade, sugerindo novos comportamentos. Os mecanismos utilizados causam estranhamento na apreensão dos fatos pelo sujeito, que, ao ser colocado em xeque, amplia sua percepção para outros significados. Adicionando às intervenções a prerrogativa afro-brasileira, teremos um conjunto de ações que irão encontrar seu foco de atuação tanto sobre as questões sociais do negro quanto sobre as religiões de matriz africana. Assim, revelando o que estava ideologicamente oculto, somos surpreendidos pela obra da Frente 3 de fevereiro, ao estender enormes bandeiras no Estádio Morumbi, em 2005, com os dizeres “Brasil negro salve”, “Onde estão os negros?” e “Zumbi somos nós”, além do projeto Zona de ação (2004), que atuou crítica e reflexivamente sobre o racismo policial em São Paulo. Há ainda a irônica conversão da logomarca da maior rede de varejo do país em Lojas Africanas (2003), de Leandro Machado; os projetos Inserções em circuitos antropológicos: black pente, de Cildo Meireles (1971); e o projeto JAMAC, de Mônica Nador, uma intervenção estética com stencil nas periferias de São Paulo, engendrando novas relações com as favelas. São todas ações

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que lançam um olhar sobre a exclusão, a invisibilidade e a violência desse contexto sociocultural. A temática religiosa afro reclama seu espaço de representação simbólica na cidade, afirmando a diversidade e forçando diálogo com opostos por meio de embates sociopolíticos como os cartazes Fé em Deus/ Fé em Diabo (2001) e o portentoso Tridente NI (2006) pintado em cal atrás do Mirante do Cruzeiro, em Nova Iguaçu, além do irreverente carro de defumação que invade as ruas cariocas já há alguns carnavais (o Fumacê do descarrego).6 Todas são obras de Alexandre Vogler. Mantendo o tom de mediação, há, também em Nova Iguaçu, Tatuagens urbanas (2008), de Ronald Duarte, que utilizou o crocodilo de duas cabeças.7 Dentre as poéticas que experimentam o efêmero, temos as performances Nimbo de Oxalá, de Ronald Duarte, e Pérola de água doce (2007), de Marepe, remetendo às oferendas e à proteção ambiental. Enfim, intervenções afro-brasileiras propõem um curto-circuito momentâneo revelador de injustiças sociais.

Referências BUCHLOH, Benjamin H. D. “Procedimentos alegóricos: apropriação e montagem na arte contemporânea”. Arte & Ensaio, UFRJ, 2000, n. 7, pp. 179-97. COCHIARALE, Fernando. “A (outra) arte contemporânea brasileira: intervenções urbanas micropolíticas” (disponível em http://www.rizoma.net/interna. php?id=222&secao=artefato. Acessado em 10 de agosto de 2009). CONDURU, Roberto. “Entre o ativismo e a macumba: arte e afrodescendência no Brasil contemporâneo”. VIS – Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB, 2008, v. 7, n. 1, pp. 55-7. JAMAC – Jardim Míriam Arte Clube. Coordenação de Mônica Nador. São Paulo: Centro Cultural da Espanha, 2007 (disponível em http://www.jamac.org.br em 10 de agosto de 2009). PRICE, Christine. “The textile arts”. Made in West Africa. Londres: Studio Vista, 1975, pp. 15-31. VOGLER, Alexandre. “Fé em Deus/ Fé em Diabo, ensaio de artista”. Concinnitas – Revista do Instituto de Artes da UERJ, jul. 2007, ano 8, v. 1, n. 10, pp. 133-42.

O Fumacê do descarrego é obra do Coletivo Rradial, composto por Vogler, Ronald Duarte e Luis Andrade (Conduru, 2008, p. 63).

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Símbolo Adinkra Funtunfunafu – crocodilo de duas cabeças que partilham o mesmo estômago, de origem Ashanti. O crocodilo vive na água e anda na terra, demonstrando uma capacidade de adaptação às circunstâncias. Ao partilhar o mesmo estômago, torna-se signo da tolerância e da diversidade (Price, 1975, p. 31).

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Monumentos: África e Brasil Mônica Linhares

Há certo continuum no espaço – que é rompido pelo homem através da urbanização – ligando, fragmentando e configurando. Diríamos ainda que, ao inscrever monumentos nos espaços, esses podem funcionar como uma ponte unindo – conectando – termos dissociados, ganhando um sentido maior de unidade pela relação com as margens, permitindo aproximações das expressões que imprimem na paisagem sua memória, seus mitos e sua visibilidade. Nesse fluxo entre as margens – na fruição artística entre África e Brasil –, ao passar por Osogbo no Bosque Sagrado de Osun, Nigéria, veremos as esculturas de Susanne Wenger (Aduni Olorisá)8 realizadas em parceria com artistas iorubas. A materialidade das formas figurativas surge na paisagem e se integra com a terra, plantas e árvores, utilizando os elementos naturais com tamanha propriedade que nos perguntamos onde começa ou termina a obra. Na outra margem – outro lado da ponte –, teremos sensação semelhante ao apreciarmos o Jardim do Nego em Nova Friburgo, Rio de Janeiro, de Geraldo Simplício (Nego) – com suas enormes figuras de verde e pedra, cobertas de musgo, surgidas como se encantadas da própria terra. Nego reverbera em seus temas personagens típicos da cultura brasileira. Com certa reverência, as esculturas do bosque em Osogbo marcam simbolicamente o entorno do santuário e o rio dedicado ao orixá das águas doces, protegendo a área contra avanços de construções e consequente poluição. Suas figuras estilizadas são leituras das entidades que habitam o invisível, personagens da cultura e da religião ioruba. Em composições mais urbanas, vamos encontrar alguns desses personagens representados na obra Orixás (1998), de Tati Moreno, no Dique do Tororó, em Salvador, Bahia, além do Exu dos ventos (1992), de Cravo Junior, na Linha Amarela, no Rio de Janeiro, ambos resistentes aos conflitos de intolerância religiosa. Outra ponte possível são as referências a Odudua, 9 histórico ou mitológico, humano ou divinizado, fundador de Ilê Ifé. Além da escultura “ A artista plástica Susane Wenger (também chamada Aduni Olorisá) é austríaca residente em Oshogbo desde 1960. Faleceu em janeiro de 2009.

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Oduduá incumbido por Olodumare da criação do mundo e primeiro rei de Ifé, pai de Oraniã, primeiro rei (Oni) de Oyó (Ayoh’Omidire, 2005, pp. 37-41).

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em sua homenagem, de forma naturalista com elementos míticos, vamos encontrar em Ifé o antigo monolito Opa Oranian.10 Juntos, conferem força e respeito às antigas tradições e às esculturas escavadas em Ifé em 1910, cujos originais e cópias causam encanto pela admirável beleza nos museus pelo mundo. O mesmo ocorre na Praça Onze, no Rio de Janeiro, com a ampliação feita como homenagem no Monumento a Zumbi (1986), em que a apropriação da cabeça, em conjunto com a pirâmide na qual está apoiada, conclama a Zumbi ancestralidades potenciais de origem africana, as quais, conectadas à passarela do samba e à Escola Municipal Tia Ciata, distinguem um espaço dedicado à memória do negro. O conjunto dos monumentos apresentados, cada qual com suas singularidades, pode ser entendido como conciliações: encontros de diferentes formas de preservação e memória, uma vez que há uma escolha sobre o que deve ser conservado. Esses monumentos são marcos simbólicos que afirmam a história da cidade, ao mesmo tempo que conectam identidades ao território nacional por meio da arte.

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Paisagem Carla Hermann

Os olhos repousam sobre o horizonte à frente, e o sol ilumina toda a superfície visível, dando mais destaque a determinados aspectos e apagando outros nas lacunas de sua ausência. Ao observador cabe a tarefa de escolher – por algumas eleições conscientes e várias outras nem tanto – quais facetas do espaço adiante configuram sua percepção. Vai conformando, assim, sua visão de paisagem. Paisagem é imagem. É uma percepção do meio, captada em determinado instante. Cada imagem é única, pois também é única a apreensão do momento. O espaço – seja natural ou construído – é formado por camadas. Camadas materiais que cristalizam temporalidades e história, camadas geológicas entranhadas na terra, camadas afetivas de vivências nele ocorridas. A paisagem é a apreensão imagética de elementos ou de algo presente no espaço. É, antes de mais nada, uma construção mental, a eleição de elementos existentes no meio. Depende da existência de um observador e constitui, antes de tudo, portanto, um ponto de vista. Devemos nos despir do preconceito de entender paisagem somente como imagem campestre: paisagem é tudo aquilo que o olho alcança. A paisagem é ou pode ser urbana, assim como pode ser a reordenação de memórias afetivas ou a retomada de experiências de vida por meio de signos, dentre outras possibilidades. Na verdade, a imagem da cidade é cada vez mais familiar à humanidade e nos chama de imediato à reflexão sobre o que carrega de subterrâneo a natureza artificial construída pelo homem. A paisagem urbana é o resultado da ação do homem e, por isso, é impregnada de afetividades e disputas. Tal como qualquer olhar, o do artista realiza uma seleção de paisagem. A diferença é que a obra de arte da paisagem leva isso além. Uma pintura de paisagem é arte do meio. É meio (mediação) do meio (físico externo, circundante). Faz a interlocução entre a história da imagem mostrada, o olhar que a construiu e o juízo do espectador, capaz de reinterpretar as escolhas daquela construção/captura de acordo com seu filtro analítico

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próprio, estético e vivencial. É preciso ver a paisagem no tempo, já que o próprio sentido de natureza faz com que a importância que o meio tem para o homem varie ao longo da história. A função simbólica da paisagem sofre modificações e nos leva a tentar entender os motivos dessa escolha. Por que paisagem? Para marcar determinada visão, para relatar ambientes, para encontrar a forma da arte nos contornos do mundo? Se infindáveis são as leituras que os artistas fazem do meio, também são numerosas as motivações para trabalhá-lo na arte. Ainda pensando a relação entre arte e meio, é preciso aventar uma brevíssima consideração sobre as intervenções artísticas acontecidas diretamente no ambiente, seja ele urbano ou natural. A alteração do meio também é arte da paisagem na medida em que arquiteta um ponto de vista e interfere diretamente na imagem percebida pelo artista antes de sua intervenção. No mundo contemporâneo, em que o espaço muda com rapidez e a visualidade desempenha papel de destaque na vida dos indivíduos e da sociedade, a discussão acerca da paisagem e da arte ganha crescente validez. Não tratando a paisagem como gênero de pintura, evidentemente, e sim como lugar de práticas e relações do meio.

Referência WENDERS, Wim. “A paisagem urbana”. Revista do IPHAN, 1994, n. 23, pp. 181-9.

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Perspectiva Leidiane Carvalho

Perspectiva é, sobretudo, um ponto de vista. No âmbito das artes visuais, a perspectiva cria seu observador ideal ou um ponto de vista ideal a partir do qual a obra dialoga com esse observador. O ponto de vista busca dar conta de um aspecto daquilo que o artista quer representar e tem uma estreita relação com o modo de ver das pessoas de seu tempo, seu entendimento do que e de como ver. Assim, é um erro recorrente dizer que a perspectiva foi criada por volta do século XV. Antes disso, os gregos usavam a perspectiva esférica na pintura de seus vasos; no medievo havia sobreposição sobre um plano original com dimensões autônomas que se organizavam hierarquicamente de acordo com aquilo que estava sendo representado; muito depois, Cézanne pintaria como se houvesse um ponto de vista para cada coisa representada e, também como Rothko, utilizaria um tipo de perspectiva cromática baseando-se em massas de cor que se contrastam e completam criando planos no quadro. Os dois o fazem de modo diferente entre si, mas lidam com o mesmo material. Brunelleschi é um dos criadores, de fato, de uma perspectiva: a perspectiva linear, utilizada de modo sistemático durante o Renascimento – técnica pictórica que, a partir do uso de linhas e pontos de fuga, permitia representar espaços como se vistos através de uma janela que se abre no plano e oculta o suporte sobre o qual se aplica, tratando a superfície da tela como transparente. A perspectiva, compreendida então como arte erudita, também era empregada por pintores e escultores que buscavam ascender ao patamar das artes liberais em uma época na qual ainda eram considerados, fundamentalmente, artesãos. Leon Battista Alberti, grande representante do humanismo no Quatrocento, via a pintura como a representação do mundo exterior baseada nos princípios da razão, criando uma concepção de realismo a partir de uma teoria segundo a qual todo corpo construía uma pirâmide até o olho do observador – princípio da perspectiva linear e mais um método de representála. Leonardo, por outro lado, trabalha a perspectiva aérea, que consiste na percepção de que os objetos tornam-se, ao se afastarem, cada vez menos

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nítidos e seus contornos, mais difusos. Nessa mesma época, encontra-se outro modo de representação perspéctica, que se opõe à linearidade albertiana. Pintores como Tiziano optam por uma perspectiva cromática que constrói os corpos pela modulação tonal e a relação figura e fundo também do mesmo modo, dirigindo o olhar do observador pelo equilíbrio das cores e não pela configuração de linhas na tela. Fica evidente que, numa mesma época, pontos de vista convivem e produzem a riqueza de suas representações artísticas. A perspectiva como usada durante o renascimento tornou-se paradigmática para a história da arte e as expressões artísticas posteriores. Desde então, apropriações, negações, desconstruções e reconstruções dela ocorrem ao longo dos séculos, entrelaçando-se com outros pontos de vista que se formam e se renovam.

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Pintura Gilton Monteiro

Do céu ao inferno, poder-se-ia dizer que ela perfez todos os caminhos – ou quase todos. É de fato o que parece se percorremos rapidamente alguns de seus itinerários. Nessa aventura, vemos que celebrou musas, exaltou revoluções, tornou visíveis os seres mais excêntricos, colocou ao alcance do olho os mitos e as maiores peripécias imaginárias. Ambiciosa, tornou o homem uma quase testemunha da Criação, retratou realezas, registrou paisagens, elogiou o quadrado. Recuada do infinito ao plano, viu seu papel ser radicalmente transformado. A pintura já passou por poucas e boas. O que admira é sua resistência atual, tendo em vista as investidas modernas e contemporâneas. Conquistado o reconhecimento de seu caráter mental, ela se distingue da mera atividade artesanal, obtendo o mesmo valor das chamadas artes liberais. Trágica, eloquente, dramática ou ascética, a pintura se torna então companheira e termômetro da humanidade, oscilando com seus altos e baixos, do febril ao hipotérmico. Pintura histórica, natureza-morta, retrato ou paisagem, as especialidades não deixaram de marcar a partir de então seus protagonistas. Os confrontos de Velásquez com o retrato, de Poussin com cenas sacras e de Chardin com a natureza-morta são pequenas amostras disso. Em um Cézanne, no entanto, a passagem de um a outro motivo é fato corriqueiro, faz parte do métier. Estava clara sua sabotagem aos preceitos que definiam as categorias dos gêneros. Nesse contratempo, Hegel já havia cantado a pedra: incapaz de revelar as formas absolutas do espírito, a pintura se lançaria em uma vertiginosa empreitada no enfrentamento de sua realidade. Enfim, sempre imersa em seu tempo, ela se deparou com situações adversas, fosse como fiadora, fosse como a antípoda cética de uma tradição que tem sua raiz na antiguidade clássica: sublimou a aura sacra da cultura cristã, confraternizou a ideologia social-democrata construtiva, denunciou o barbarismo da razão moderna, exasperou a versão cínica e desencantada da arte como ciência europeia etc.

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Hoje a pintura se põe à prova, abrindo um campo de possibilidades e desafios para os que se dedicam a produzi-la e estudá-la. Isso sem afastar a sombra do obituário, essa parceira testamentária já de décadas. Se o próprio Deus está morto, por que a pintura não padeceria desse mal de esclarecimento moderno? No entanto, teimosa, ela aparece inflada por ares diversos. Indo da parede ao chão, do quadro a suportes os mais inusitados, sua performance não cessa. E, se a arte é realmente uma coisa do passado, estamos, quem sabe, usufruindo ainda hoje dos frutos de seu velório, cumprindo essa prolongada tarefa do luto. Consciente de si, a pintura não apenas deixa de operar com as noções tradicionais de representação. Contorcendo e estilhaçando a grade perspéctica, ela inaugura uma densa sintaxe. Seja aprofundando a investigação do plano, seja saturando a superfície, sua tarefa parecia levar às últimas consequências seu uso e forma de vê-la e pensá-la, a ponto de se achar ali, naquela situação de compartilhar com os demais objetos, um lugar em um mundo já não tão afável. Esses novos empreendimentos pareciam exigir tudo o que fosse possível para manter acesa sua chama, aparentemente esgotando-a. Com recortes de jornais, camas, vassouras e materiais diversos, ela arrastou em seu vórtice tudo que estivesse ao seu alcance, cogitando horizontes inéditos de possibilidades. Sob o imperativo do novo – levado às últimas consequências –, parecia não haver clima para positivar tais experimentos, para uma afirmativa convalescência da linguagem. Teimosa sim, porém nada anacrônica, a pintura (com sua persistência) é garantida pelo próprio senso de experimentalismo contemporâneo. Afinal de contas, se, depois de tudo, a arte é coisa que ainda não sabemos o que seja, é nesse excesso, nessa ignorância reservada, que reside também sua negatividade, isto é, sua força maior.

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Retrato Raphael Fonseca

Retratar é a tentativa de resguardar a imagem de um ou mais indivíduos. Todo retrato é um exercício de lembrança e está fadado ao fracasso, já que aquela imagem permanecerá apenas enquanto for um objeto e, além disso, nunca poderá substituir o retratado. Por essas razões, podemos afirmar que os retratos são monumentos, já que sua origem latina, monumentum, significa evocar o passado, perpetuar a recordação. Retrato e memória caminham juntos e estão baseados na relação entre quatro pontos: o retratista, o retratado, o comanditário – aquele que encomenda a imagem – e, por fim, a finalidade. O retrato tem seu públicoalvo; desde as estátuas romanas de imperadores como Júlio César (100-44 a.C.), passando pelas miniaturas com cunho de lembrança particular, como na corte de Elizabeth I (1553-1603), até o advento da fotografia digital. Sua visualidade é proporcional ao seu futuro espaço expositivo público, particular ou mesmo em ambas as instâncias. Somado a isso, há nos retratos uma tensão entre a individualização do retratado e sua adequação a um tipo. Na Roma antiga, por exemplo, ao observarmos as esculturas de imperadores, por mais que exista uma vontade de denotar uma face específica, temos em maior potência a construção de uma figura que seja facilmente reconhecida como o governante, aquele que merece destaque e deve ser visto por todos. Tal forma de retratar é comumente chamada de retrato de Estado. Por outro lado, nas figuras retratadas por Goya (1746-1828), mesmo que saibamos sua posição social – como na pintura da família real de Carlos IV –, sua pormenorização e sua visada crítica saltam aos olhos, tendendo mais para o particular do que para o estatal. Não só de figuras célebres vive a retratística. Também na antiguidade existiram os retratos de Fayum, pinturas colocadas sobre os sarcófagos de múmias durante o poderio de Roma sobre o Egito. Nessas placas de madeira, eram retratados os humanos correspondentes às múmias; os rostos foram preservados, mas seus nomes próprios foram perdidos com o correr do tempo.

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Outro subgênero da retratística é o autorretrato, em que o próprio artista imortaliza sua imagem. Rembrandt (1606-1669) fez mais de cem obras nesse gênero, representando-se como pintor e como um personagem bíblico. Isso nos faz lembrar que o retratar não precisa ser individual; também pode estar inserido dentro de obras com um cunho narrativo, como nas obras do renascimento em que encontramos os retratos de doadores, ou seja, a inclusão da imagem daqueles que encomendaram a obra e aparecem ali, ao lado das figuras sacras, ajoelhados e rezando. A memória, uma vez honrada e restrita, também pode ser instantânea, como em um artista como Andy Warhol (1928-1987). Além de realizar uma série de autorretratos em polaroid, ele lançou mão do cinema com cunho documental – retratos em movimento – para eternizar/criticar a banalidade dos mínimos atos do aqui e agora.

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Sistema de arte na África Tadeu Lopes

A história da arte ocidental costuma abordar a produção artística africana por meio de sua influência plástica marcante na obra de renomados artistas modernos, como Pablo Picasso. As máscaras, as esculturas em madeira ou em terracota e os trabalhos em metal que lotam as salas de museus europeus e americanos, que colecionam essas peças ditas exóticas, auxiliaram na popularização de certos aspectos da visualidade desse continente no meio dos estudos das artes visuais. No entanto, essas peças nascem de um sistema de artes plural e multiforme que é pouco visitado pelos pesquisadores das artes e da cultura e, por conseguinte, pouco conhecido. O olhar eurocêntrico, por vezes, acorrenta a produção de arte no continente africano à ideia de uma criação anônima, ligada unicamente à religiosidade, em um sistema no qual a crítica não existe e em que toda a obra segue padrões iconográficos preestabelecidos pela tradição. De fato, a produção imagética de diferentes culturas africanas está intimamente vinculada ao sagrado, até mesmo porque em muitas dessas culturas o sagrado não se desvincula de nenhum dos atos cotidianos vivenciados na comunidade, assim como perpassa cada elemento existente na natureza e se faz igualmente presente em toda criação humana. A arte dan, a arte ioruba, a arte chokwe e a visualidade dos diversos outros grupos culturais são vistas pelos etnólogos como obras com padrões iconográficos que as identificam e particularizam em relação às demais. Contudo, dentro de cada um desses sistemas de produção existe um universo onde a recepção da obra, a crítica e a criatividade artística transbordam, mesmo dentro desses ditos padrões da tradição visual de cada etnia. O sagrado, somado ao artista, à comunidade, ao consumo e à influência imagética de outras culturas, estrutura, acrescenta e modifica a forma do objeto artístico e o modo como ele é pensado e fruído. Paul Bohannan narra um fato que exemplifica um processo de criação de uma escultura que encomendara a um Tiv, o que mostra como a composição pode se transformar a partir de sua interação com um novo pensamento crítico:

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A escultura, a qual eu encomendara, tinha por volta de 45 centímetros de altura e, como toda escultura africana, era feita a partir de um tronco ainda verde. Enquanto ele trabalhava – eu me sentara ao seu lado, assistindo silenciosamente –, um jovem de sua aldeia apareceu. O jovem, à guisa de saudação, disse algo como: ‘Avô, o senhor está esculpindo [criando – gba] uma mulher’. O senhor respondeu que esse era, de fato, o caso. ‘O que são esses três caroços em sua barriga?’, perguntou o jovem. O senhor largou sua enxó e olhou o rapaz que o havia interrompido. ‘O do meio’, disse, impaciente, ‘é o umbigo dela’. O jovem se calou por um momento, mas voltou a falar justo quando o senhor apanhava sua enxó: ‘Então o que são os outros dois caroços?’. O senhor mal continha o desdém por ouvir perguntas tão óbvias. ‘Esses aí são os seios dela’. ‘Bem lá embaixo?’, perguntou o jovem. ‘Eles caíram!’, gritou claramente o senhor. ‘Mas, meu avô, se eles tivessem caído, não estariam...’. O senhor agarrou sua enxó e resmungou ‘Está bem, está bem...’, e, com três golpes certeiros, os três caroços foram extirpados. Na época em que registrei tal acontecimento, anotei que o rapaz, que passara três anos na escola, aprendera uma estética do naturalismo, algo que não ocorrera com seu avô (Bohannan, 2007, pp. 149-50).

Peter Junge, em seu texto para o catálogo da exposição África, ocorrida em 2003 na cidade do Rio de Janeiro, traz um relato retirado do romance Arrow of God (A seta de Deus), obra na qual Chinua Achebe narra o quanto um artista africano chamado Edogo se preocupa com os problemas formais de sua obra e com a recepção da mesma pelo público. Sua narrativa se inicia no primeiro desfile de uma máscara produzida por esse artista. Os homens que lhe fizeram a encomenda se encantaram com a peça. No entanto, o artista se desagradara com o aspecto do nariz da máscara, que teria ficado muito fino e destoaria do personagem mítico que buscava representar. Como essa peça foi pensada para ser utilizada em uma performance ritual, Edogo queria ver se com o movimento da dança os aspectos de sua composição ficariam de seu agrado. Durante o rito, percebe que o detalhe, que antes o incomodava, se harmonizava com a performance e conseguia presentificar visualmente a força da entidade mítica que buscava representar. Ele, todavia, ainda parcialmente insatisfeito, se retirou do lugar reservado ao artista e buscou observar como as outras pessoas recebiam o objeto criado por ele e o que elas falavam sobre essa peça, ou seja, ali ele era um artista em busca de críticas, preocupado com a recepção de sua criação pelo público que a fruía.

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Existe no continente africano um complexo sistema de artes, em que a produção visual é pensada por artistas que também buscam originalidade. Como diz um deles, Tro, artista dos dan: “Faço obras de entalhe para que as pessoas perguntem: ‘Quem fez isso?’, e para que assim o meu nome circule no país” (in Himmelheber, 1960, p. 29, apud Junge, 2004, p. 29). Além disso, a crítica, o consumo e a recepção da arte transitam em um espaço de disputa no qual elementos da tradição resistem ao mesmo tempo que o novo é incorporado.

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Tradição clássica Fernanda Marinho

A ideia de tradição está ancorada em uma rigorosa concepção de continuidade, da mesma maneira que o termo clássico parece consolidar uma legitimação histórica. Tais relações não são incoerentes, mas passíveis de reflexão. O classicismo do qual nos ocupamos aqui remonta, grosso modo, à antiguidade, mas a tradição da qual falamos não se esgota nesse período nem se repete da mesma forma nos períodos posteriores, ampliando, portanto, o conceito do primeiro termo. Por clássico compreende-se, antes de tudo, uma determinada relação com a natureza, uma estreita afinidade entre arte e formas naturais, desde as rígidas figuras pintadas em cerâmica à fluidez intuitiva da Vitória de Samotrácia ou Laocoonte. No entanto, ao associarmos esse termo à tradição, alargamos um conceito que não se restringe mais à esfera da imitatio, mas se expande ao estudo das diversas recepções relativas ao mundo antigo. Não estamos, então, lidando apenas com períodos históricos inseridos em contextos antigos específicos, mas principalmente com as permanências e modificações de suas formas e conteúdos. A análise da tradição clássica consiste, desse modo, no estudo das imitações e renovações dos antigos e é exercida em duas instâncias: a recepção e a assimilação dessas noções. Interessa-nos conhecer, por exemplo, não apenas a descoberta do Laocoonte em 1506, mas também saber como ele modificou o cenário cultural renascentista ao ser assimilado como exemplum doloris. A recepção, dessa maneira, diria respeito a uma convivência material ou conceitual entre os antigos e épocas posteriores, enquanto a assimilação indicaria o entrelaçamento destes. O interesse medieval pelas teorias neoplatônicas apresenta-se como uma das bases fundadoras do cristianismo. O renascimento, por sua vez, consistiu no período mais intensamente edificado na experiência do clássico: as disciplinas antigas – conhecidas como studia humanitatis, geralmente compreendiam gramática, retórica, dialética, história e filosofia moral – tornam-se as diretrizes humanistas; nas artes plásticas, tratadistas como Alberti resgatam conceitos fundamentais, como proporção, perspectiva e

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naturalismo; e grandes artistas, como Michelangelo, destacam a potência e a força divina inerentes à figura humana. Já com Leonardo da Vinci e seu interesse científico pelas práticas artísticas, a relação direta entre modelo e maniera all’antica assume um desvio de referências. O exemplo antigo é posto como motivo de superação da forma, culminando nas ditas manifestações anticlássicas próprias das tensões dos assim chamados períodos maneirista e barroco. A referência ao clássico permanece ainda no século XIX, seja nas figuras femininas de Ingres ou na temática das composições de Jacques Louis David, nas quais a forma equilibrada reaparece com grande importância narrativa. A recepção das tradições clássicas ocorre, assim, a partir de diferentes experimentações do mundo antigo: da imitação – como nas manifestações supracitadas – à renovação e ao questionamento da própria definição de arte. Manifesta-se, por exemplo, na arte conceitual que prioriza a ideia em detrimento da forma, como anunciam os ready-mades de Marcel Duchamp; no hiper-realismo de Ron Mueck, que ultrapassa a vontade da natureza tão característica dos antigos, pretendendo, mais que retratá-la, reinventá-la em novas proporções; e nas ilusões perspécticas das anamorfoses de Julian Bever, expandindo as noções de naturalismo introduzidas pelos clássicos na história da arte ocidental.

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Índice remissivo

A Abdala, Felipe 7, 333 Abreu, Estela Santos 198, 408 Abstração Geométrica 79 Lírica 377 Academia de San Carlos 274 Imperial de Belas Artes 157, 244,  245, 250, 253, 416 Achebe, Chinua Arrow of God 397 Adamson, Glenn 49, 406 Ades, Daw 275 Adorno, Theodor W. Afrescos de Pompeia 363 A pesagem do falo 286 África do Norte 114 do Sul 114, 116, 196, 429 Afrodescendência 66, 385, 406, 427 Agamben, Giorgio 162, 163, 170, 188,  196, 303 Agucchi, Giovanni Battista 363 Ahtila, Eija-Liisa Where is where? 162 Aitken, Doug 166 Albano, Francesco 251 Alberro, Alexander 61, 405 Albers, Josef 64, 336 Alberti, Leon Battista 326, 364, 390, 399 Albuquerque, Georgina de Maracá 150 Moça no jardim 150 Sessão do Conselho de Estado 150 Alcorão 100, 108

Aleixo, Ricardo 70 Alemanha 29, 42, 178, 188, 194, 209,  226, 228 Alexandre, O Grande 23 Al-Ghasâli 100 Ali 85, 86, 101, 187, 190, 211, 260 Aliaga, José Vicente 295 Aliaga, Juan 298 Ali, Husain ibn 101 Al-Khwarizmi 85 Alloway, Lawrence 362 Almeida, D. Tomás de 92, 93 Alphonsus, Luiz 29 Altamira 114 Alves, Ephraim Ferreira 198, 406 Alÿs, Francis When faith moves mountains 169 Amaral, Aracy 313 Amaral, Tarsila do Autorretrato com casaco vermelho 314 América do Norte 155, 156 Espanhola 273 Latina 7, 169, 191, 236, 269, 273,  275, 276, 277, 278, 328, 401, 403,  406, 413 Mesoamérica 7, 185, 186, 350 Portuguesa 91, 93 American Academy 275 American Art-Union 275 Análise formalista 376 Andrade, Carlos Drummond de 70 Andrade, Farnese de 325, 362 Andrade, Lúcia 302 Andrade, Oswald de 191, 314 Andreae, Bernard 128

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Angelico, Fra 367 Anguissola, Sofonisba 298 Anticlássico 370 Antiguidade Chinesa 355 Clássica 125, 176, 237, 289, 309, 392 Egípcia 338, 441 Greco-romana 247, 351 Antin, Eleanor Entalhe: uma escultura tradicional 332 Antínoo 286 Antropologia 13, 17, 34, 54, 87, 121,  135, 195, 267, 297, 301, 304, 305,  349, 380, 381, 403, 406, 413,  414, 418 Antunes, João Pedro 198, 405 Anunciação 367 Apolo do Belvedere 266 Aquitetura Vitrúvio 24, 326 Arabesco 85 Araújo, Emanoel 219, 221 Araújo, Inês de 7, 369 Araújo Porto-Alegre, Manoel de 245 Archer, Michael 361 Arcimboldo, Giuseppe 364 Arendt, Hannah 162, 183 Argan, Giulio Carlo 67, 69, 71, 342, 416 Argentina 185, 273, 277, 427 Aristóteles 26, 27, 44, 152, 183, 283,  363, 382 Arman 362 Arnheim, Rudolf 73 Arquipélago 161 Arquitetura Frank Lloyd Wright 327 Gaudí 326, 327 Modernista 219 Monumental 184 Oscar Niemeyer 219, 269, 327 Renascimento 74, 75, 76, 77, 129,  134, 136, 152, 153, 176, 177, 182, 186,  188, 198, 218, 245, 246, 247, 248, 249,  251, 266, 270, 286, 310, 311, 326, 351,  367, 368, 369, 383, 391, 395, 399 Vitrúvio 24, 326 Artaud, Antonin 371 Art brut 377

Arte Abstrata 53, 55, 57, 58, 161, 191,  259, 373 Acadêmica 244 Afro-brasileira 121, 122 Árabe 85 Chinesa 153, 158, 159, 160 Chokwe 396 Clássica 9, 78, 80, 86 Clássica ocidental 80 Conceitual 36, 60, 61, 192, 325, 400 Concreta 57, 58, 64 Contemporânea 9, 30, 33, 59, 82,  119, 122, 165, 166, 172, 194, 209, 213,  239, 278, 294, 300, 305, 308, 318, 333,  334, 343, 351, 365, 385, 405, 406, 412 Corporal 44, 82 Dan 396 Erudita 19, 390 Erudita japonesa 19 Figurativa 57, 114 Francesa 53, 227, 364 Gandhara 336 Grega 24, 178 Informal 377 Ioruba 396 Islâmica 85, 86, 240 Japonesa 20, 21 Minimalista 192 Moderna 57, 58, 59, 67, 154, 181,  243, 246, 277, 335, 345, 368, 383, 418  Negra 324 Ocidental 11, 12, 134, 152, 153, 245,  282, 286, 289, 308, 333, 334, 396, 400 Oriental 20, 218 Política 165, 231 Pré-colombiana 329 Pré-histórica 114, 115, 116 Primitiva 54, 55 Rupestre 114, 116 Artesanato 38, 48, 49 Asher, Michael 193 Ásia 82, 87, 186, 225, 227, 229, 305,  356, 372 Asselt, Willem van 107 Assemblage 361, 362, 365 Assis, Machado de 296, 297, 302, 304,  305, 402 Astecas 6, 125, 132, 134, 135, 136, 185,  337, 351

Índice remissivo

Astrologia 350 Ateliê 62, 147, 193, 215, 216, 220 Ativismo artístico Act Up 292, 293 Out Rage 292 Queer Nation 292, 293 Austrália 114, 116, 117, 234, 305 Autorretrato 207, 297, 298, 300, 302, 395 Aytuna, Nazli 179 Azevedo, Evelyne 7, 338, 346

B Badiou, Alain 172 Bad painting 48 Balla, Giacomo 345 Baltar, Brígida De repente é verde o sertão 32 Balzac, Honoré de 259 Baqué, Dominique 203 Barbieri, Giovanni Francesco 2, 245 Barja, Wagner 71, 402, 419 Barlow, Hugh 108, 403 Barney, Mathew 372 Baronio, Cesare 102 Barre, André 75 Barrio, Arthur Abertura I 32 Trouxas ensanguentadas 216 Barroco Americano 274, 278, 411 Barros, Antônio 7, 326, 350 Barsotti, Hércules 63, 65, 71, 406 Barthes, Roland 315, 344 Bartholomeu, Cezar 5, 17  Basbaum, Ricardo NBP 30 Sistema Cinema 30 Basquiat, Jean Michel 302 Bataille, Georges 257, 377 Batchelor, Ray 40, 49, 403 Bateson, Gregory 117 Batista, Marta Rossetti 313 Bauch, Kurt 187 Baudelaire, Charles 53, 54, 246, 315 Bauman, Zygmunt 162, 212 Baumgarten, Jens 6, 97 Bazin, Germain 233 Becker, Arno 181 Behrenbeck, Sabine 106

Belas artes 32, 112, 176, 309 Bellarmino, Roberto 103 Bell, Clive 55 Bell, Julian 11 Bellori, Pietro 248 Belluzzo, Ana Maria 276 Belting, Hans 266 Benjamin, Walter 28, 61, 194 Berbara, Maria 5, 6, 13, 14, 125 Berger, John 285 Berkel, Sabri 347 Bernard, Émile 311, 312 Bernini, Gian Lorenzo Fonte dos quatro rios 229, 347 Bertrand Dorléac, Laurence 181 Besançon, Alain 99, 109, 404 Beuys, Joseph 308 Bever, Julian 400 Bhabha, Homi 299 Bhagavad-Gita 68 Biblioteca Nacional de Paris (França) 297 Bien-Aime, Gabriel 235 Bienal Busan 167 de Dacar 237 de Paris 232 de São Paulo 212 de Veneza 230 Bill, Buffalo 230 Bion, W. R. 353 Biorgi, Bruno Herma de Tiradentes 220 Birnbaun, Daniel 165 Bishop, Claire 197 Boas, Franz 83 Boccioni, Umberto 361 Body art 336 Boggs, J. S. C. 268, 272, 420 Bogotá (Colômbia) 277 Bohannan, Paul 396 Bois, Yve-Alain 11, 366, 376, 377,  378, 404 Boltanski, Christian 10 portraits photographiques de Christian Boltanski 1946-1964 306 10 retratos fotográficos de Christian Boltanski 331 Album de photos de la famille D. entre 1939 et 1964 307

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Inventaires 308 Mythologies individuelles 29 Recherche et présentation de tout ce qui reste de mon enfance, 1944-1950 306 Reconstitution d’un accident qui ne m’est pas encontré arrivé et ou j’ai trouvé la mort 307 Bonaparte, Napoleão 175, 187, 188, 237 Bordo, Jonathan 156 Borély, Jules 312 Borges, J. A chegada da prostituta no céu 6, 138 Borromeo, Carlo 103 Botticelli, Sandro Adoração do mago 301 Bottmann, Denise 198, 242, 402 Boujibar, Naima Elkhatib 85 Boullée, Etienne-Louis 264, 265 Bourdieu, Pierre 113, 289, 348 Bourgeois, Louise 298 Bourriaud, Nicolas 161 Bowersock, Glen Warren 97 Boxer, Charles 91 Braga, Bony 340 Branco, Miguel Rio 10 Brancusi, Constantin Mademoiselle Pogany (segunda versão) 373 Pássaro no espaço 37 Braque, Georges 324 Brasil 7, 12, 13, 14, 29, 31, 32, 35, 42, 63,  64, 67, 94, 96, 117, 118, 124, 138,  141, 149, 150, 151, 156, 157, 158,  175, 181, 187, 191, 193, 198, 216,  217, 218, 223, 227, 235, 244, 245,  252, 257, 270, 277, 295, 325, 327,  336, 337, 345, 349, 357, 362, 364,  384, 385, 386 Brecheret, Victor 219 Bredekamp, Horst 254 Brito, Ronaldo 71 Broodthaers, Marcel Musée d’Art Moderne, Département des Aigles, Section des Figures 332 Museum of Modern Art, Eagles Department 29 Brubaker, Leslie 99 Brunelleschi, Filippo 390 Brusky, Paulo 30

Bryson, Norman 158 Bubner, Rüdiger 188 Buchloh, Benjamin 197 Buda 264 Buddensieg, A. 278 Bueno, Guilherme 53 Buenos Aires (Argentina) 185 Buonazia, Irene 71 Burckhardt, Jakob 176, 177, 182 Burckhardt, Titus 85, 86, 87, 405 Buren, Daniel 192 Bürger, Peter 188 Burgin, Victor Fototrilha 204 Burri, Alberto 362 Burton, Richard 347 Bush, George 336 Bushido 21 Buskirk, Martha 325 Butler, Judith 292 Byington, Elisa 186

C Cagnacci, Guido 245 Cahill, James 69 Cahun, Claude 291 Autorretratos 291 Caldas, Waltercio 60 Calheiros, Souza 91 Caliandro, Stefania 13 Calle, Sophie Cuide de você 300 Calvino, Italo 94 Camoin, Charles 312 Campo Ampliado 60 Campos, Camilla Rocha 348, 374 Campos, Gabriela 351 Campos, Marcelo 3, 13 Canclini, Nestor Garcia 276 Candomblé 67, 118, 119, 121, 122 Cangjie 358 Capela Borghese (Igreja de Santa Maria Maggiore, Roma, Itália) 78 de Nossa Senhora do Ó (Sabará, Brasil) 69 de Santo Stefano Rei da Hungria (Igreja de Santo Stefano, Roma, Itália) 102

Índice remissivo

de São João Batista (Igreja de São Roque, Lisboa, Portugal) 93 de São Paulo Ermitão (Igreja de Santo Stefano, Roma, Itália) 102 Nerli 129 Paolina (Igreja de Santa Maria Maggiore, Roma, Itália) 78 Sistina (Vaticano) 117 Caravaggio, Michelangelo Merisi da Medusa 335 Narciso 298 Cardeal Mazarino 175 Pietro Bembo 338 Cardoso, Ciro Flamarion 184 Cardoso, Rafael 13 Carotti, Federico 198 Carracci, Annibale A ascensão de Ganímedes 288 Carracci (irmãos) 250 Carracci, Luiz 250 Carvalho, Flávio de 345 Carvalho, Larissa 344 Carvalho, Leidiane 372 Casa Shang 355, 356 Zhou 355 Cassatt, Mary Menina arrumando o cabelo 146, 147,  148, 150 Cassirer, Ernst 26, 75 Castagno, Andrea del 310 Castex, Jean 211 Castiglione, Sabba da 218 Castillo, Bernal Díaz del 186 Castrioto, Mônica Linhares 7, 384, 386 Castro, Amilcar de A pescaria 64, 71, 406 Castro Maya, Raymundo Ottoni de 218 Castro, Willys de 63, 64, 65, 71 Catedral Cathedral d’images (Baux de Provence, na França) 267 de Oviedo (Espanha) 261 de Sevilha (Espanha) 262 de Viana do Castelo (Portugual) 91 Catunda, Leda 362 Cavalcanti, Carlos 12 Cavalieri, Tommaso de 287

Celan, Paul 31 Cellini, Benvenuto 287 Centro Cultural de U’mista (Vancouver, Canadá) 270 Georges Pompidou (Paris, França) 193, 232, 234, 239, 317, 330, 402, 404 Cerâmica 283, 350, 399 Certeau, Michel de 197 Ceschiatti, Alfredo A justiça n. 18 220 Cézanne, Paul Olímpia 299 Champollion, Jean-François 339 Chang (pintor chinês) 358 Chardin, Jean-Baptiste-Siméon 245,  392 Charoux, Lothar 63 Che, Sou 69 Chevreul, Michel 336 Chevrier, Jean-François 203 Chiarelli, Tadeu n.8 314 Chile 277, 427 China 69, 83, 153, 154, 158, 160, 186,  218, 225, 227, 229, 255, 264, 267,  300, 333, 334, 341, 355, 356, 357,  406 Christus Triumphans 130 Church, Frederic Edwin 155 Cidade do México (México) 135, 169,  185, 274 Cigoli, Ludovico Cardi (dito o) 78 Madona da Imaculada Conceição 78 Cildo, Meireles Eureka/Blindhotland 60 Cimabue 130, 310 Cinema 31, 34, 35, 288, 295, 360, 395,  409, 411 Circignani, Niccolò 102 Civilização Asteca 134 Faraônica 338 História da Inca 329 Mesoamericanas 132, 350 Clark, Lygia Arquiteturas 65 Baba antropofágica 65 Bichos 65

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Caminhando 31, 35 Superfícies moduladas 65 Classicismo 55, 246, 290, 366, 399 Clássico 92, 107, 178, 237, 246, 249, 264,  269, 355, 368, 370, 399, 400 Clifford, James 270, 303, 304 Clottes, Jean 116, 124, 413 Clunas, Craig 153, 159 Cocchiarale, Fernando 30, 35 Cocq, Frans Banning 186 Códice Borgia 131, 132 de Dresden 186 de Madri 186 de Paris 146, 186, 229, 232, 297,  314 Florentino 135 Huygens 76 Riccardiano 129 Vaticanus Latinus 129 Códigos Cristãos 138 Colagens Cubistas 324 Cole, Thomas 155 Cole, Willie Black patent leather Venus with scarification 237 Pink leather Venus 237 Colecionador 218, 219, 254, 255, 257,  258, 259, 260 Coletivo Brasil negro salve 384 CoBrA 377 Elmgreen & Dragset 166 Frente 3 de Fevereiro 384 Fumacê do descarrego 385 Gutai 377 Oda Projesi 197 Onde estão os negros? 384 Rradial 385 Zona de ação 384 Zumbi somos nós 384 Colla, Ettore 362 Colonna, Vittoria 130 Comitê Internacional de História da Arte 11 dos Museus de Arte Moderna 209 Commedia dell’arte 337

Conceito Immitatio Christi 132 Concílio de Trento 103 Concretismo 63, 64, 66, 67 Condivi, Ascanio 130 Conduru, Roberto 3, 4, 5, 13, 14, 62, 71,  123, 385, 387, 406 Confúcio 355 Conrad, Joseph 54 Constant, Benjamin 270 Constantinopla 131, 226, 347 Construtivismo 65, 66, 67, 68, 190,  191, 365 Corão 346 Cordeiro, Waldemar 63 Cornell, Joseph 362 Corpo feminino 82, 146, 148, 289, 299 humano 9, 10, 35, 65, 78, 114, 219,  220, 326, 327, 335, 411 masculino 281, 282, 285, 286, 289,  290, 291, 292, 293 Corporeidade 38, 47, 48 Correa, José Celso Martinez Gracias Señor 210 Cortés, Hernan 131 Cortona, Pietro da 246 Cossery, Albert 170, 172 Costa, João Angyone 150 Costa, Luiz Cláudio da 5, 29 Costello, Diarmuid 110, 414 Costi, Rochelle 362 Courbet, Gustave 237 Cousin, João 250 Couto, Maria de Fátima Morethy 7,  306 Crimp, Douglas 35, 165, 216, 242, 294,  295, 317, 407 Cristianismo 68, 97, 98, 99, 100, 101, 102,  139, 274, 287, 399 Cristo, Jesus 130 Crítica Contemporânea 244 Cultural 334 Formalista 54 Institucional 192, 193, 196, 197, 332 Modernista 244 Norte-americana 294 Crítica de arte 53, 178, 179, 193, 294, 

Índice remissivo

300, 402, 419 Cruzadas 224 Cubismo 59, 300, 323, 347, 361, 365,  366, 380 Cubo-futurismo 190 Cultura Afro-brasileira 67, 121 Árabe pré-islâmica 99 Artística 68, 249 Artística europeia 249 Barroca 274 Brasileira 121, 269, 386 Chinesa 334 Civilizada 230 Clássica 264, 290, 291 Contemporânea 266 Cristã 97, 392 de massa 123, 325, 367, 403 Erudita 19, 47, 67, 390 Estrangeira 238 Eurocêntrica 231 Europeia 195, 316 Filosófica 70 Gay 360 Helênica 286 Indiana 264 Internacionalista 55 Ioruba 68, 337, 386, 396 Japonesa 21, 22 Literária 70 Material 5, 12, 15, 17, 18, 22, 24, 25,  38, 67, 118 Moderna 324, 379 Mundial 190 Nacional 228 Ocidental 54, 58, 207, 237, 333 Ocidental modernista 237 Popular 67, 140, 239 Pré-colombiana 350 Pré-incaica 329 Urbana 302 Cúpula da Rocha 100 Curador 227, 233, 234, 361 Curadoria 10, 166, 196, 234 Curtis, Gregory 178, 182

D Dacosta, Milton 67, 428 Dadaísmo 55, 361, 365

Dagognet, François 262, 263, 268 D’Alembert, Jean le Rond 262 D’Alessandro, Joe 293 Damisch, Hubert 78, 79 Dança Japonesa 337 Dantas, Denise 38, 49 Danto, Arthur 30, 298, 343 Danziger, Leila Diários 31, 35 Diários públicos 31 Daoling, Zhang 357 Dariano, Clovis 29 Daumier, Honoré 364 Daurentiis, Valeria 103, 109, 407 David, Jacques-Louis A morte de Marat 187 Leônidas nas Termópilas 284 Davies, Nigel 135, 137, 407 Day, Fred Holland Estudo para a crucificação 291 Dazzi, Camila 160 Debbaut, Jan 233 Debord, Guy 194, 198, 408 Debret, Jean-Baptiste 187, 336 Debuffet, Jean 361 De Duve, Thierry 49, 317, 325, 407 Degas, Edgar Depois do banho (Mulher se enxugando) 148 Menina fazendo uma trança no cabelo 148 Delacroix, Eugène Liberdade guiando o povo 207 Deleuze, Gilles 34, 35, 198, 344, 408 Delius, Peter 85, 87, 411 Delporte, Christian 182 De Maria, Walter Lightining Field 332 De’Nerli, Tanai 129 Denis, Maurice 53 De Piles, Roger 249 Derrida, Jacques 170, 193, 198, 408 Descartes, René 265 Desenho Geométrico 79 Industrial 13 Design Detroit Institute of the Arts (EUA) 222

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História da ARTE – ensaios CONTEMPORÂNEos0

De Solla, Price, Derek J. 28, 415 D’Este, Isabella 265, 271, 405 Deus Amon 184 Apolo 178, 266, 286 Aton 359 Cupido 254 Eros 271, 283, 284, 381, 405 Hápis 338 Lokeshvara-Jayavarman 335 Marte 268 Netuno 127 Osíris 338 Quetzalcóatl ou Kukulkcán 336 Rá 359 Serápis 338 Zeus 287 Deusa Diana 98, 264 Hebe 287 Ísis 338 Minerva 127, 265 Vênus 115, 128, 149, 178, 237, 254,  255, 258, 259 Dhabi 239, 240 Dialética 230, 309, 366, 367, 378, 384,  399 Dias, Maurício 30 Dibutade (ceramista) 370 Diderot, Denis 54, 262 Didi-Huberman, Georges 28, 141, 308,  317, 408 Dinastia Amenhotep III 184, 185 Bourbon 174 Habsburgos 174 Han (China) 357 Ming 159 Qin 358 Qing 333 Sneferu 335 Song 69, 356 Sui 264 Tang 264 Documenta 5 (Kassel, Alemanha, 1972) 29, 209 11 (Kassel, Alemanha, 2002) 194,  195, 198, 408 12 (Kassel, Alemanha, 2007) 194,  196

Domenichino, Domenico Zampieri (dito o) 251 Donatello Banquete de Herodes 77 Doran, P. M. 317, 404 Dos Anjos, Jorge 62, 63, 65, 66, 68, 70,  71, 401, 415, 417 Douglas, Stan 165 Dover, Keneth 282 Dragset, Ingar 291 Duarte, Ronald Nimbo de Oxalá 385 Tatuagens urbanas 385 Duby, Georges 139, 141, 408 Duchamp, Marcel Caixas-valise 331 Caixa verde 331 Fonte 36, 38, 39, 45, 181, 229, 347,  373 Grande vidro 331 Roda de bicicleta 323, 362 Secador de garrafas 36 With my tongue in my cheek 301 Duke Lee, Wesley 362 Dürer, Albrecht 78 Durham, Jimmie 302, 303, 305, 405 Durieu, Eugène 290 Durkheim, Emile 117

E Eakins at 45 to 50 290 Eakins, Thomas 290 Eco, Umberto 344 Edogo (artista africano) 397 Egiptologia 339 Egiptomania 339 Egito 174, 184, 198, 227, 237, 247, 263,  338, 339, 394, 406 Einstein, Carl 379, 381, 414 Elmgreen, Michael 166, 291 El-Sayed, Abdel-Wahab Morsi 339 Emirados Árabes 239, 240 Enwezor, Okwui 195 Ernst, Max 331 Escola Bolonhesa 95, 249 Brasileira de pintura 251 de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil) 13

Índice remissivo

de Belas Artes de Paris (França) 146 dos Annales 33 Estruturalista francesa 316 Florentina 250 Francesa 249, 250 Francesa de pintura 249 Municipal Tia Ciata (Rio de Janeiro, Brasil) 387 Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro, Brasil) 244 Romana 250 Veneziana 250 wen-jen-houa (China) 69 Escultura Africana 260, 397 Campo ampliado 39, 60, 63, 71,  195, 373, 412 Grega 285, 286, 372 Ibérica 260 Ioruba 68 Esmeraldo, Sérvulo 211 Espaço expositivo 217, 394 Espanha 92, 114, 131, 174, 239, 248, 261,  346, 351, 385 Estados Unidos 40, 41, 43, 58, 155, 222,  230, 235, 236, 240, 271, 275, 289,  292, 293, 336, 357, 406 Estética Acadêmica 191 Administrativa 61 Cristã 136 Dimensão do naturalismo 397 do século XIX 73 Experiência 58, 317, 352, 354 Funcional 113 Homoerótica 281, 282, 287, 290,  293, 294 Neoclássica 175 Politeísta 122 Pós-tridentina jesuítica 103 Produção 18 Reciprocidade 352, 353 Religiosa 122 Sensibilidade 113 Teoria 69 Estilo 14, 24, 69, 95, 102, 147, 148, 149,  150, 153, 191, 221, 237, 245, 252,  359, 416

Ética Neoclássica 188 Etnografia 115, 135 Euhemerus de Messina 27 Europa Ocidental 217, 225, 230 Evaristo da Silva, Adelaine 7, 331 Exposição A Arte da Assemblage (MoMA, Nova Iorque, 1961) 361 Africa Remix 193 África (Rio de Janeiro, 2003) 397 Armory Show (Nova Iorque, EUA, 1913) 40 Art of the Fourties (MoMA, Nova Iorque, 1991) 232 dos Independentes (Nova Iorque, 1917) 325 Expressões do Corpo (Brasilia, 1996) 219 Frameworks of Identity in the 1980s (EUA, 1990) 235, 242, 243 Happening und Fluxus 332 Impressionista (França, 1886) 146, 147 Individual de Anita Malfatti (São Paulo, 1917) 313 Live in your Head. When Attitudes Become Form 209 Magiciens de la Terre (Paris, 1989) 232, 237, 242, 414 Opinião 66 (MAM, Rio de Janeiro, 1966) 325 Primitivism in 20th Century Art 222, 223 The Decade Show 235, 236, 242, 243 The Great Exhibition of the Works of Industry of All Nations 228 Trópicos – Visões a partir do Centro do Globo 235 Universal Universal (Paris, 1889) 229 Universal (Paris, 1900) 239 VI JAC 209, 210, 211, 212 VI Mostra Jovem Arte Contemporânea (São Paulo, 1972) 208 Expressionismo Abstrato 58, 331, 377 Eyck, Jan van São Jerônimo 226

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História da ARTE – ensaios CONTEMPORÂNEos0

F Fabre, Pierre-Antoine 103, 109, 408 Fagiolo, Maurizio Akhenaton 359 Amenhotep III 184, 185 Faraó 184, 346, 359 Karnak 184 Ramsès II 199, 418 Tutankhamon 337 Farris Thompson, Robert 68, 122, 124 Félibien, André 160, 408 Fernandez, Dominique 283, 287, 295 Fernie, Eric 11, 408 Ferrari, León Apocalipse 287, 367 Fecundação 367 Helicóptero 367 Incircuncisos 367 Releitura da Bíblia 367 Ferreira, Clodo 141, 409 Fetiche 299, 302, 303, 372 Fetichismo 42, 46, 49, 406 Fialho, D. José 92 Fiedler, Konrad 55 Fierro, Martin 276 Filippino Lippi Virgem e Menino com santos 129 Filippo Lippi, Fra Coroação da Virgem 346 Filosofia 35, 49, 70, 87, 175, 305, 334,  399, 404, 407, 409 Fiorentino, Rosso 250 Fiori, Ernesto de 219 Fischer, Michael 111, 296, 297, 305,  413, 419 Flaubert, Gustave 32 Flavin, Dan 373 Fleischer, Alain 318, 409 Flocon, Albert 75 Florença (Itália) 9, 87, 111, 247, 248,  287, 309, 326, 346, 412 Florensky, Pavel Alexandrovich 73,  87, 409 Flores, Lívia 32 Fluxus 31, 332 Fonseca e Évora, D. José Maria da 92 Fonseca, Raphael 7, 8, 250, 359, 394 Fontainebleau 174, 249 Fontela, Orides 31

Fonteles, Bené 71, 402, 419 Ford, Henry 40, 42, 49, 403 Fordismo 41 Formalismo 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59,  331 Förster, R. 129, 137, 409 Foster, Hal 11, 12, 61, 191, 194, 195,  198, 231, 240, 242, 300, 305, 318,  325, 409 Fotografia 21, 31, 33, 35, 73, 108, 148,  203, 204, 206, 207, 208, 212, 243,  267, 288, 289, 290, 291, 294, 295,  301, 305, 334, 360, 364, 379, 380,  381, 394, 404, 411, 416 Foucault, Michel 32, 34, 35, 183, 196,  197, 198, 205, 282, 293, 303, 316,  408 França 7, 32, 114, 174, 178, 181, 187,  188, 226, 227, 228, 230, 235, 237,  247, 251, 259, 267, 268, 275, 309,  335, 352 França, Renata Reinhoffer  335, 352 Francastel, Pierre 17 Francis, Mark 233 Fraser, Andréa 183, 199, 409 Frazer, James 117 Freire, Cristina 30 Freire, José Ribamar Bessa 270 Freitas, Iole de Elements 32 Freud, Sigmund 80, 297, 312, 334 Freund, Gisèle 289 Friedrich, Caspar David A cruz na montanha (ou Tetschener altar) 153 Caçador na floresta 187, 188 Fry, Peter 55 Fundação Maria Luisa e Oscar Americano (São Paulo, Brasil) 218, 410 Furtwängler, Adolf 178 Futurismo 190, 361, 365

G Gaba, Meshac Gabinete de curiosidades 254, 263,  265 Glue me piece 194 Gainsborough, Thomas 245 Galdi, Vincenzo 290

Índice remissivo

Galeria Bergamin (São Paulo, Brasil) 10 da Academia (Florença, Itália) 9 Galleria degli Uffizi (Florença, Itália) 346 Global 204 Galland, Antoine 347 Gamboni, Dario 180 Gasquet, Joachim 312, 318, 410 Gaudí, Antonio 326, 327 Gauguin, Paul Mulheres taitianas sentadas em um banco 338 Geertz, Clifford 68, 297, 301 Gehry, Frank 239 Geiger, Anna Bella Passagens 32, 57 Geist, Sidney 312 Gell, Alfred 120, 123, 258, 261, 271, 410 Genet, Jean 281 Geraldo, Sheila Cabo 6, 183 Gerchman, Rubens 29, 345, 362 Géricault, Théodore A jangada da Medusa 187 Getlein, Frank 147, 151 Ghadirian, Shadi 299 Ghazel 299 Giacometti, Alberto 222 Gilbert & George 203 Giordano, Luca 251 Giorgi, Bruno Os guerreiros 127, 186, 220, 221 Giorgione, Giorgio da Castelfranco (dito o) Autorretrato como Davi 250, 301 Giotto di Bondone 74, 310, 346 Girard, René 106, 109, 410 Globalização 11, 161, 193, 194, 277, 334 Gloeden, Wilhelm von 290 Goffman, Erwing 117 Goifman, Kiko 30 Goldblat, David The transport of KnaNdebele 196 Goldwater, Robert 223 Gómara, Francisco López de 137, 410 Gomarra 186 Gombrich, E. H. 10, 152, 160, 410 Gomes, Alair 10, 292 Gómez-Peña, Guillermo 123

Gonçalves, Luiz Roberto Mendes 243, 418 Gonnord, Pierre 208 Goody, Jack 11, 410 Gordon, Donald E. 222 Goto, Newton Ocupação 348, 349, 410 Goya, Francisco José de Caprichos, Desastres da guerra e Disparates 364 Fuzilamento 187 Os fuzilamentos: 3 de maio 207 Grabar, Oleg 100, 110, 410 Grafismo Abstrato 114 Grasskamp, Walter 349, 410, 411 Graulich, Michael 135, 137, 410 Gravura de cordel 138, 141, 409 Japonesa 237 Nordestina 140 Xilogravura 19 Grécia 10, 22, 23, 24, 26, 27, 32, 174, 178,  186, 218, 224, 225, 227, 247, 264,  282, 284, 285, 287, 295, 337 Greenberg, Clement 57, 58, 317, 335,  407, 409 Grenier, Catherine 307, 308, 317, 404 Grotowski, Jerzi Bread and Puppet Theatre 337 Grüniger, Johannes 129 Grupo escultórico A morte tentando parar o gênio da luz, que se esforça para iluminar a verdade 229 Guarini, Camilo-Guarino 246 Guattari, Félix 196, 198, 408 Gubernikoff, Carole 211 Guercino, Giovanni Francesco Barbieri (dito o) 251 Guerra do Vietnã 367 Guerra Neto, Aurélio 198, 408 Guggenheim, Peggy 37 Gumpert, Lynn 307, 318, 409 Gunning, Tom 33, 35, 411 Gutiérrez, Ramón 274, 278, 411

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História da ARTE – ensaios CONTEMPORÂNEos0

H Haacke, Hans A liberdade será patrocinada agora somente em moedinhas 348 Haar, Leopoldo 63 Habermas, Jurgen 189 Hafez, Mohammed M. 107, 110, 411 Hals, Frans 187, 189, 245, 246 Harmódio e Aristógiton 283 Harvey, David 41 Hattstein, Markus 85 Hauser, Arnold 11 Heartney, Eleanor 232 Hegel, Georg Willhelm Friedrich 383,  392 Heidegger, Martin 336 Heinich, Nathalie 309, 318, 411 Henri-Pierre, Jeudy 49, 412 Hermann, Carla 7, 376, 388 Heródoto 338 Herói Agamemnom 337 Aquiles 128, 284 Aristógiton 283, 284 Cícero, Marcus Tullius 133 Cocles, Horatius 133 Curtius, Marcus 6, 125, 132, 133, 136 Harmódio 283, 284 Laocoonte 23, 125, 126, 127, 128,  129, 130, 131, 135, 136, 137, 399, 402 Mus, Publius Decius 133 Scaevola, Mucius 133 Sêneca, Lucio Aneu 133 Ulisses 127 Hesse, Eva 298 He, Xie 357 Hieróglifos 338, 339 Hildebrand, Adolf von 55 Hiparco 284 Hiper-realismo 400 Hirschhorn, Thomas 197 Hirst, Damien Bezerro de ouro 373 História da arte 10, 11, 12, 13, 14, 18, 19, 24, 32,  53, 69, 70, 72, 73, 78, 79, 97, 114, 120,  140, 145, 150, 152, 153, 175, 176, 177,  179, 182, 183, 193, 195, 205, 206, 207,  209, 215, 217, 222, 223, 225, 242, 245, 

246, 247, 251, 252, 271, 281, 291, 294,  295, 297, 299, 303, 304, 305, 308, 309,  313, 314, 335, 342, 343, 365, 366, 367,  374, 375, 391, 396, 400, 402, 403 Ocidental 359 Ocidental moderna 359 Historicismo 10 Historiografia da arte 11, 157, 159, 175,  178, 180, 282, 293 Hitler, Adolf 105 Hobsbaum, Eric 187, 199, 411 Hokusai, Katsushika Ejiri na província de Suruga (Sunshu Ejiri) 20 Ukiyo-e 19, 20, 21 Holanda 187, 193, 304 Holman Conwill, Kinshasha 236 Homem vitruviano 9, 326 Homero 26, 284 Horsch, Silvia 99, 110, 411 Houseman, Michael 118, 124, 411 Houzel, Didier 352, 354, 411 Hug, Alfons 235 Humboldt, Alexandre van 187 Huxley, Aldous 42

I I-ching 68 Ícone 74, 104, 241, 289 Iconografia 25, 101, 102, 129, 130, 134,  135, 136, 287, 291, 338, 341, 356 Idade Média 97, 102, 132, 138, 139, 179,  186, 224, 225, 247, 261, 267, 309,  315, 346 Identidade Cultural 235, 277 Institucional 217, 221 Latino-americana 328 Igreja Católica 24, 106, 368 da Madre de Deus (Recife, Brasil) 92 de Guadalupe (Espanha) 262 de Santo Stefano Rotondo (Roma, Itália) 102 de São Pedro dos Clérigos (Mariana, Brasil) 92 Militante 96, 105, 106 Paleocristã 99

Índice remissivo

Iluminismo 48, 176, 242, 264, 402 Ilustração/Iluminismo 265, 288 Imagem História da 108, 179, 388 Imperador Adriano 286 Carlos V 131 Cauthémoc 185 Júlio César 394 Justiniano 336 Qin 256 Império Bizantino 99 Otomano 256 Romano 224 Impressionismo 145, 148, 149 Inarra, Francisco 211 Incas 351 Índia 218, 267, 336, 340, 341 Índio Americano 328, 347 Índios Americanos 329 Asurini 302, 305 Brasileiros 269 Cherokee 302 Kaapor 270 Norte-americanos 257, 329 Sul-americanos 82, 116 Suyá 270 Tapirapé 270 Yanomami 269 Inglaterra 178, 187, 229, 292 Ingres, Jean-Auguste Dominique Grande odalisca 291 Instalação 47, 63, 119, 166, 193, 194, 221,  238, 331, 348 Instituto da França 187 de Artes do Paraguai 275 Histórico e Geográfico Brasileiro 157 Histórico e Geográfico Brasileiro de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil) 416 Internacionalismo 55, 57 Internet 98, 107, 108 Islã 98, 99, 100, 108 Islamismo 97, 98, 99, 101 Islão 225, 346

Itália 128, 130, 226, 247, 248, 250, 252,  265, 266

J Jackson, Michael 269, 336 Jácome, Manuel Ferreira 91 Jameson, Fredric 374, 375, 412 Jaremtchuk, Daria 6, 203, 210 Jaubert, Alain 69, 71, 416 Jay, Martin 179 Jewsiewicki, Bogumil 181, 182 Judaísmo 97, 98, 99 Judd, Donald 60, 373 Junge, Peter 235, 397 Junior, Cravo Exu dos ventos 386

K Kabuki 337 Kadiwéu 82, 83 Kahlo, Frida 298 Kaizhi, Gu A ninfa do rio Luo 255 Kandinsky, Wassily 64, 79, 87 Kant, Immanuel 54, 112 Kapoor, Anish 299 Kathakali 337 Kemp, Martin 87, 412 Kendall, Richard 146, 149, 151, 412, 417 Klawa, Laonte 210 Klee, Paul 222 Klimt, Gustav Antiguidade egípcia I e II 338 Knauss, Paulo 6, 13, 174, 387, 412 Kolar, Jiri 365 Konaté, Yacouba 237 König, Viola 235 Koons, Jeff 268, 269 Kosuth, Joseph 61, 412 Kounellis, Jannis 211 Krauss, Rosalind 49, 71, 317, 318, 368,  373, 404, 412 Krautheimer, Richard 104, 110, 412 Kudielka, Robert 376 Ku (pintor chinês) 358 Kurz, Otto 309, 311 Kwon, Miwon 192 Kyrrhos, Andronikos de Torre dos Ventos 24, 25

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História da ARTE – ensaios CONTEMPORÂNEos0

L

Lyotard, Jean-François 75, 78

Lagnado, Lisette 194, 199, 410 Lanfranco, Giovanni 249 Lanzi, Luigi 249 Laocoonte 6, 23, 125, 126, 127, 128, 129,  130, 131, 135, 136, 137, 399, 402 Larguier, Léo 312, 318, 413 Latour, Bruno 107, 110, 413 La Tour, Georges de 139 Lauand, Judith 63 Laurens, Jean-Paul 245 Leão, Lúcia Claudia 198, 408 Lebreton, Joaquim 187 Lebrun, Charles 245, 246 Léger, Fernand 36, 37 Le Goff, Jacques 33 Legrand, Guillaume 265 Leibniz, Gottfried Wilhelm von 262 Leirner, Nelson 325, 362 Lenoir, Alexandre 227 Leonardo da Vinci Monalisa 181, 335 Leopoldo e Silva, Francisco 219, 242,  243, 402, 420 Lévi-Bruhl, Lucien 117 Lévi-Strauss, Claude 82, 83, 84, 239 Lewis-Williams, David 116 LeWitt, Sol 373 Lichtenstein, Jacqueline 246 Liechtenstein, Roy 325 Lies, Lothar 104 Lima, Mauricio Nogueira 63 Linhares, Mônica 7, 384, 386 Lipovetsky, Gilles 344 Living Theater 123 Lívio, Tito 133, 134 Livro dos ritos 355, 356 lloyd Wright, Frank Casa da cascata 327 Lobato, Monteiro 42, 313 Locke, John 54 Longhi, Roberto 251, 252, 413, 414 Long, Richard 234 Lopes, Tadeu 8, 396 Louÿs, Pierre 148 Löwy, Emmanuel 84 Lucrécia, Bórgia 98 Lumumba, Patrice 181 Lyon, Lisa 294

M Machado, Leandro Lojas Africanas 384 Machado, Milton 61 Mackrell, Alice 344 Madri (Espanha) 32, 174, 186, 198, 206,  295, 305, 330, 401, 403, 405, 427 Magalhães, Ana 145, 148, 151 Magnífico, Lourenço (dito o) 226 Maia, Éolo 66 Maias 351 Maison Européenne de la Photographie (Paris, França) 10 Malevich, Kasimir Quadrado branco sobre fundo branco 65 Malfatti, Anita 313, 314, 317, 403, 406 Malherbe, Suzanne 291 Malinowski, Bronislaw 117 Mallarmé, Stéphane 315, 316 Mancini, Giulio 153 Mander, Karl van 248 Maneirismo 246 Manet, Édouard Olympia 360 Manifesto antropófago 191, 198, 402 Mansfield, Elisabeth C. 11, 413 Mantegna, Andréa Camera degli Sposi 77 Manuel, Antônio Corpobra 301 Semi-ótica 30 Maomé 101 Mapplethorpe, Robert Ajitto 10 Thomas 9 Marchand 258, 259, 312 Márcia pintando seu autorretrato 297 Marcuse, Herbert 48 Marcus, George 296 Marcus Vitruvius 24 Marees, Hans von 55 Marepe Pérola de água doce 385 Marillier, Clement Pierre 265 Marinetti, Fillipo Tommaso 190, 361 Marinho, Fernanda 7, 8, 363, 399

Índice remissivo

Marin, Louis 82, 86 Marisol 362 Martínez, Elisa de Souza 6, 214 Martin, Jean-Hubert 214, 232, 235,  242, 405 Marxismo 18 Marx, Karl 42 Máscara Africana 302 Balinesa 337 Bantun (Zaire) 337 Egípcia 337 Fang (Gabão) 337 Funerária 337 Gelede (Benin) 337 Indígena 337 Mitológica grega 337 Mochica 337 Mortuária 285 Sepik (Nova Guiné) 337 Massani, Giovanni 363 Massumi, Elahe A kiss is not a kiss 299, 305 Matesco, Viviane 6, 273, 428 Matisse, Henri 299, 328 Mattos, Claudia Valadão de 6, 152, 157 Mattos, Claudia Valladão de 6, 152 Mauban, J. S. 233 Mauss, Marcel 117, 120, 124, 257, 348,  349, 414 Maximus, Valerius 133 McEvilley, Thomas 223, 238, 242, 414 McQueen, Steve Giardini 165, 166, 167 Mecenato 94, 174, 273, 274, 277 Médici, Cosimo de 226 Medievo 138, 390 Meireles, Cecília 31 Meireles, Cildo Inserções em circuitos antropológicos: black pente 384 Mello e Souza, Gilda de 313, 318, 414 Meltzer, Donald 352, 354, 414 Memória da cultura 34 Pública 30 Mendes, Manuel Odorico 137, 419 Mendieta, Ana 298 Mensa isiaca 338

Mercado de arte 193, 208, 231, 234, 278 Merleau-Ponty, Maurice 311, 312, 315,  316, 318, 414 Mesopotâmia 198, 247, 406 Mesquita de Damasco 100 Mestiçagem 274 Método formalista 56 México 131, 135, 169, 182, 185, 186, 273,  274, 276, 277 Meyer, Richard 295 Miceli, Sérgio 313 Micenas (Grécia) 178, 337 Michalski, Sergiusz 104 Michelangelo Buonarroti A criação de Adão 336 A criação do sol, da lua e das plantas 367 Tondo Doni 372 Micropolítica 194, 196, 197, 293, 385,  401, 406 Migliaccio, Luciano 157, 252 Mil e uma noites 347 Minor, Vernon Hyde 414 Mirzoeff, Nicholas 182 Missão Artística Francesa 175 Mitchell, W. J. T. 110, 160, 404, 414, 418 Mitologia Pré-histórica 117 Modernidade 20, 33, 55, 57, 59, 60, 61, 63,  115, 118, 152, 167, 188, 189, 195,  240, 243, 244, 255, 259, 276, 277,  290, 297, 299, 314, 328, 343, 416 Moderno Artista 248, 249, 365, 396 Estado 227 Mundo 38, 41, 257, 261 Período 192, 316, 382 Sujeito 54, 58 Moholy-Nagy, László 379, 381, 414 Molinos, Jacques 265 Mondrian, Piet 57, 383 Moneiro da Vide, D. Sebastião 92 Monteiro Jr, Gilton 7, 8, 382, 392 Monumento a Zumbi 387 Moore, Henry 222 Morales, Ambrosio de 261 Moraza, Juan Luís 171 Moreno, Tati Orixás 386 Morimura, Yasumasa 360

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História da ARTE – ensaios CONTEMPORÂNEos0

Morisot, Berthe 145 Morris, Robert I-Box 301 Morrissey, Paul 293 Morse, Richard 275 Mossé, Claude 283 Mourão, Raul 47 Moura, Tavinho 70 Movimento Feminista 145, 292, 300 Gay 291, 292, 293, 360 Negro 292, 294 Mueck, Ron 400 Muller, Florence 344 Muller, Jurandir 30 Mulvey, Laura 289 Muralha da China 300 Murillo, Bartolomé Esteban 245, 248 Musee (poeta) 262 Museu Americano 270 Andy Warhol Museum 29, 35 Casa das Irmãs Comte (Marsac, França) 268 Castro Maya (Rio de Janeiro, Brasil) 217, 257, 428 da Chácara do Céu (Rio de Janeiro, Brasil) 218, 257, 258 Dallas Museum of Art (Dallas, EUA) 222 de Alexandria 263 de antiguidade 261 de antropologia 121, 135 de Arte 12, 35, 70, 194, 199, 207, 209,  216, 218, 222, 232, 239, 240, 241, 266,  268, 269, 313, 325, 330, 361, 401, 415,  419, 427 de Arte de Tóquio (Japão) 207 de Arte Moderna 35, 70, 216, 218,  222, 232, 241, 268, 269, 325, 361, 401 de Arte Moderna do Centre Georges Pompidou (Paris, França) 317, 330, 402, 404 de Arte Moderna do Rio de Janeiro 218, 325 de Arte Moderna (Nova Iorque, EUA) 216, 222, 241, 361 de Belas Artes (Buenos Aires, Argentina) 185

de Belas Artes (Sevilha, Espanha) 208 de Bruchion 266 de Ciências Naturais 185 de Etnografia 135 de História Natural (Jardins de Plants) 265 de História Natural (Jardins de Plants) (Paris, França) 265 de Monumentos Franceses (Paris, França) 227 de Munique 207 de Versalhes 268 D. João VI 244, 245, 252, 253, 402,  416, 418 do Açude 218, 257 do Índio 269, 270 do Índio Americano (Washington, EUA) 270 do Índio (Brasília, Brasil) 269 do Jeu de Paume (Paris, França) 239 do Louvre Abu Dhabi (Abu Dhabi, Emirados Árabes) 239, 240 do Louvre (Paris, França) 178, 233,  239, 240, 265 do Prado (Madri, Espanha) 32, 206 D’Orsay (Paris, França) 238, 239 Etnográfico 235, 238, 269 Etnográfico (Berlim, Alemanha) 235 Europeu 10, 396 Ficcional 194 Fictício 194 Guggenheim Abu Dhabi (Abu Dhabi, Emirados Árabes) 239 Guggenheim em Bilbao (Bibão, Espanha) 239 Histórico 230 Histórico Nacional (Rio de Janeiro, Brasil) 150, 253, 416 Imagéticos 57 Imaginário 194 Japonês 207 Kunsthistorisches Museum (Viena, Áustria) 134 Kwagiulth (Vancouver, Canadá) 270 Magüta (Amazonas, Brasil) 270 Memorial dos Povos Indígenas 270 Metropolitan Museum of Art (Nova

Índice remissivo

Iorque, EUA) 236 Moderno 263 Musée National des Arts AsiatiquesGuimet (Paris, França) 20 Museum für Völkerkunde (Berlim, Alemanha) 223 Museum of Contemporary Hispanic Art (Nova Iorque, EUA) 236, 242, 243, 407 Museum of Jurassic Technology (Califórnia, EUA) 267 Nacional de Arte Moderna (Paris, França) 239 Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro, Brasil) 244 Philadelphia Museum of Art (Filadélfia, EUA) 148 The British Museum (Londres, Inglaterra) 130, 131 The New Museum of Contemporary Art (Nova Iorque, EUA) 236, 242, 243, 319, 407, 420 The Studio Museum of Harlem (Nova Iorque, EUA) 236 Vaticano 125 Victoria and Albert Museum (Londres, Inglaterra) 240 Música 35, 69, 95, 120, 121, 265, 267, 278,  309, 324, 360, 409, 413,  428

N Nadal, Jerome 103 Nador, Mônica Jamac 384, 385 Naef, Silvia 99, 100 Nascimento, Evando 198, 408 Nasoni, Nicolau 91, 95 National Academy of Design (EUA) 275 Nauman, Bruce Autorretrato como fonte 301 Nego, Geraldo Simplício (dito o) 386 Neoclássico 246, 264, 275 Neoconcretismo 63 Neoplatonismo 383 Nesefi, Ali 85 Neshat, Shirin 299 Neuwirth, Angelika 99, 101, 111, 415 Nevelson, Louise 362

Niemeyer, Oscar 219, 269, 327 Nietzsche, Friedrich 283, 296, 334 Nitsche, Marcelo Costura de mão 32 Nixon, Mignon 37, 49, 325 Noble, J. V. 24, 25, 28, 415 Nolde, Emil Still life of masks 223 Noreen, Kirstin 104, 111, 415 Nossa Senhora da Assunção 91 da Conceição 91 Nouvel, Jean 239 Novaes, Paulo Fernando Boi encantado 210 Nova Iorque (EUA) 28, 40, 49, 98, 108,  109, 110, 123, 124, 151, 182, 198,  213, 216, 222, 236, 241, 242, 243,  272, 275, 299, 318, 319, 325, 329,  330, 361, 368, 378, 403, 404, 405,  407, 408, 409, 410, 411, 416, 417,  418, 419, 420 Nunes, Benedito 191

O Obelisco 338, 387 Objet trouvé 36, 37, 40, 41 Oceania 195, 229, 372 Ocidente 11, 14, 99, 108, 152, 153, 154,  158, 176, 186, 226, 239, 240, 247,  273, 282, 285, 335 October 49, 325, 381, 408, 415, 418 O’Doherty, Brian 216, 242, 415 O’Hara, Frank 328, 329, 330, 415 Oiticica, Hélio Mesa de bilhar, d’après O café noturno de Van Gogh 325 Okumura, Lydia 211 Okyo, Maruyama 310 Oliveira, Ana Lúcia de 198, 408 Olivier, Fernande 300 Olmecas 350 Olorisá, Aduni (cf. Wenger, Ssanne) 386 O’Neill, Elena 7, 328, 379 Op art 80 Oriente 6, 22, 152, 154, 158, 186, 188,  225, 338, 346, 347, 410 Orígenes 104, 133

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História da ARTE – ensaios CONTEMPORÂNEos0

Orlan 123 Ottonelli, Gian Domenico 103 Ovídio 264

P Pacchini 95 Pacheco, Francisco 248 Pächt, Otto 11, 415 Paço Imperial (Rio de Janeiro, Brasil) 10 Pagnest, Amable Louis Claude 245 Paisagem 20, 21, 101, 152, 153, 154, 155,  156, 157, 158, 159, 160, 327, 386,  388, 389, 392, 410, 420 Paisagismo 13, 63 Paiva, Manuel 211 Palácio de Alhambra (Espanha) 346 de Bruxelas (Bélgica) 131 de Fontainebleau (França) 174 de Madri (Espanha) 174 de Mafra (Portugal) 174 de Queluz (Portugal) 174 de Sintra (Portugal) 174 de Vaux-le-Vicomte (França) 175 de Versalhes (França) 175 do Bruchion (França) 263 do Escorial (Espanha) 174 do Louvre (França) 227 do Planalto (Brasília, Brasil) 219,  220, 221 Ducale (Mântua, Itália) 265 Paleotti, Gabriele 103, 104, 111, 416 Pamuk, Orhan 256 Pane, Gina 336 Panofsky, Erwin 28, 87, 343, 383, 416 Pantera Cor-de-Rosa 269 Papa Bento XIV 93 Gregório, o Grande 139 Inocêncio XI 93 Leão X 311 Pio VI 93 Pape, Lygia Eat me, a gula ou a luxúria 32 Parc de La Villete (Paris, França) 234 Paré, Ambroise 359 Parente, André 35, 406 Parente, Letícia Marca registrada 32

Paris (França) 10, 20, 28, 36, 57, 71, 87,  109, 111, 123, 124, 137, 141, 146,  160, 172, 175, 182, 186, 199, 227,  229, 232, 233, 238, 252, 257, 262,  295, 297, 307, 314, 315, 317, 318,  319, 329, 330, 354, 360, 371, 381,  401, 402, 404, 407, 408, 409, 410,  411, 413, 414, 415, 416, 417, 418,  419, 420 Parmigianino, Girolamo Francesco Maria Mazzola (dito o) Retrato de um colecionador 254 Parrhasios 311 Partenon 174, 178 Paulse, Mariana Gomes 7, 365 Paxton, Joseph 228 Peçanha, Horório Herma de Israel Pinheiro 220 Pedahzur, Ami 110, 411 Pedroza, José Alves Cabeça do presidente JK 220 Penchel, Marcos 199, 411 Pequeno da Silva, Fernanda 7, 323 Pereira, André L. Tavares 5, 91 Pereira, E. 96, 124, 252, 416 Pereira, Fernando José Desanosognosia 164, 165 Pereira, Sonia Gomes 13, 244, 252,  416, 427 Perelman, Marc 69, 71, 416 Peretti, Marianne A pomba 220 Pérez, David 295 Performance 48, 63, 119, 122, 124, 209,  222, 300, 334, 393, 397, 418 Perrin, Alan Dominique 348 Personagem bíblico Eva 87, 138, 139, 298, 404 Moisés 262 Virgem Maria 225 Personagem mítico Creúsa 128 Dido 127 Ergasto 264 Ganímedes 287, 288 Heitor 128 Helena 128 Narciso 78, 298 Odudua 386

Índice remissivo

Pátroclo 284 Pirro 128 Príamo 127, 128 Sínon 127, 128 Temístocles 268 Perspectiva 20, 21, 72, 73, 74, 75, 76, 77,  78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 87, 99,  103, 115, 116, 123, 132, 158, 159,  163, 207, 223, 231, 234, 235, 236,  240, 242, 244, 327, 329, 335, 382,  390, 391, 399, 402 Perugino, Pietro A visão de São Bernardo 367 Pesarese, Simone Cantarini (dito o) 251 Pesavento, Sandra Jatahy 229, 230, 243,  416 Peterson, Elmer 36, 49, 418 Piaget, Jean 79 Picasso, Pablo A família de acrobatas 300 Guitar, sheet music and glass 366 Les demoiselles d’Avignon 260, 299,  302, 324, 335 Piero della Francesca 76 Retrato de Gertrude Stein 260 Piles, Roger de 249, 252, 407 Pinacoteca do Estado de São Paulo (São Paulo, Brasil) 219, 221 Pinet, Helène 220, 243, 416 Piñon, F. 278 Pintura Chinesa 69, 153, 159, 255, 256, 357 Corporal Corporal indígena 302 Corporal kadiwéu 82 de gênero 152, 187 Europeia 246, 346 Floral 150 Histórica 151, 152, 181, 301, 418 Impressionista 145, 151 Moderna 145, 151, 186, 373 Morte da 36 Mural 150, 234 Natureza-morta 392 Pisano, Giunta 130 Pissarro, Camille 259 Piza, Arthur Luiz 211 Platão 18, 283, 284, 382 Plaza, Júlio Os/As meninos/as 204, 205

Plécy, Albert 267 Plínio, o Velho 23, 265, 311, 370 Plüschow, Guglielmo von 290 Podro, Michael 11, 416 Poesia Dramática 265 Poiret, Paul 345 Policentrismo 74 Política 12, 20, 22, 105, 123, 143,  155, 158, 162, 164, 165, 166, 170,  171, 172, 174, 175, 176, 178, 179,  181, 182, 183, 184, 186, 187, 189,  190, 191, 192, 194, 195, 196, 197,  198, 207, 209, 211, 231, 277, 278,  293, 302, 305, 350, 355, 359, 366,  381, 401, 402, 404, 409, 427 Pollaiolo, Antonio 251 Pollock, Griselda 145, 147, 148 Pollock, Jackson 82, 328, 330, 336,  402, 415 Polônia 209 Pomarancio, Niccolò Circignani (dito o) 102, 110, 411 Ponto de fuga 20, 258 Pop Art 30, 325 Porto-Alegre, Araújo 245, 364 Portugal 91, 92, 93, 94, 95, 96, 171,  174, 187, 346 Pós-estruturalista 73, 87 Pós-modernidade 60 Pós-modernismo 318, 375, 411, 412 Post, Frans 336 Poussin, Nicolas 79, 249, 259, 392 Preti, Mattia 251 Preziosi, Donald 11 Price, Derek J. de Solla 24, 25, 385 Primeira Guerra Mundial 190 Primitivismo 237, 299, 328 Princesa Nofret 335 Príncipe Ludwig da Bavária 178 Procaccini 251 Rahotep 335 Proença, Graça 12, 417 Proletkult 195 Proust, Marcel 316 Psístrato (Tirano) 284

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História da ARTE – ensaios CONTEMPORÂNEos0

Q Quincy, Quatremère de 263

R Rafael Sanzio Escola de Atenas 264 Rainha D. Maria I 174 Elizabeth I 394 Maria Antonieta 269 Ramalho, José Cardoso 91 Rancière, Jacques 163, 165 Rapto de Ganímedes 287 Rauschenberg, Robert 325, 362, 365 Ray, Man 44, 291, 301, 379, 381 Read, Herbert 177 Ready-made 325 Ready-mades 33, 36, 39, 44, 181, 324, 331,  362, 400 Reff, Theodore 312 Rei Carlos IV 394 Carlos IX 227 D. João V 96, 174 D. João VI 244, 245, 252, 253, 402,  416, 418 Don Pelayo 262 Francisco I 174 Luís XIV 175, 176, 269, 359 Luís XVIII 187 Montezuma 131, 186 Reichel, Peter 111, 417 Reinach, Salomon 178 Religião Afro-brasileira 67, 68 Cristã 132, 136 Grega 24, 27 Ioruba 386 Rembrandt van Rijn A ronda noturna 186, 187 Renascença 10, 160, 218, 282, 410 Renascimento 74, 75, 76, 77, 129, 134,  136, 152, 153, 176, 177, 182, 186,  188, 198, 218, 245, 246, 247, 248,  249, 251, 266, 270, 286, 310, 311,  326, 351, 367, 368, 369, 383, 391,  395, 399 Reni, Guido 249

Rennó, Rosângela Arquivo Universal e Biblioteca 30 Renoir, Pierre-Auguste 150, 258, 259,  260 República do Congo 181 Retórica 230, 256, 309, 311, 399 Retratística 187, 372, 394, 395 Retrato de Estado 394 de grupo 186, 187 Revolução Francesa 32, 175, 232 Mexicana 351 Ribeiro, Berta 269 Ribeiro, Carlos Flexa 12 Ribeiro, Maria Eurydice de Barros 138 Ribera, José de 206, 359 Riedweg, Walter 30 Riegl, Alois 82, 187 Rio de Janeiro (Brasil) 10, 12, 13, 29, 32, 3 5, 70, 71, 87, 91, 96, 123, 124,  137, 151, 157, 158, 160, 175, 182,  198, 199, 211, 213, 217, 218, 245,  250, 253, 257, 271, 278, 292, 295,  305, 317, 318, 325, 349, 386, 387,  397, 401, 402, 403, 405, 406, 407,  408, 409, 410, 411, 414, 416, 417,  418, 419 Riscadura Afro-brasileira 66, 68 Rivera, Diego 351 Robia, Lucca della 226 Rocha, Camilla 348, 374 Rococó 246, 359 Rodchenko, Aleksandr 191 Rojas, Rolando 351 Rolnik, Suely 197, 198, 408 Roma (Itália) 10, 23, 69, 78, 87, 92, 93,  101, 102, 104, 109, 110, 117, 128,  129, 130, 137, 174, 224, 229, 247,  248, 252, 265, 285, 286, 394, 402,  403, 405, 411, 413 Romano, Gian Cristoforo 265 Romano, Giulio 249 Romantismo 188, 246 Rosenberg, Harold 33, 35, 330, 417 Rosler, Martha The bowery in two inadequate descriptive systems 195

Índice remissivo

Rosseli, Cosimo Travessia do Mar Vermelho 346 Roterdã, Erasmo de 70 Rothko, Mark 80, 336 Rouanet, Sérgio Paulo 198, 404 Rouget, Gilbert 120, 124, 417 Rouillé, André 289, 295 Rousseau, Henri 257 Rubin, William 222, 224, 233, 235, 368,  404 Ruscha, Edward Twenty six gasoline stations 29 Rússia 42, 190, 191 Ruytemburg, Willen van 186

S Sade, Marquês de 288 Sahagún, Bernardino de 135, 185 Said, Edward 297, 299 Saint-Martin, Fernande 79, 80, 81, 82,  84 Salgado, Cristina Grande nua na poltrona vermelha 47 Sampaio, Márcio 66, 71, 417 Sandow, Eugen (dito O Magnífico) 289 Sandoz 53 Sandrart, Joachim 248 Sangallo, Giuliano da 125 Sannarazo, Giacomo 264 Sanouillet, Michel 36, 49, 418 Sansovino, Andrea 310 Santa Catarina de Alexandria 129 Catarina de Siena 132 Clara de Montefalco 132 Cruz 102 Maria Madalena 139 Santo Agostinho 133, 134, 137, 418 Inácio de Loyola 103 Stefano Rotondo 102, 107, 109, 110,  405, 411, 414, 415 São Bartolomeu 262 Clemente 102 Feliciano 102 Felipe Neri 91, 92 Francisco 117, 132, 294 Jerônimo 226

João 77, 93, 287, 311 João Batista 93, 311 João do Apocalipse 287 Lucas 139, 301 Marcos 387 Martinho 129 Mateus 130 Paulo Ermitão 102 Pedro 91, 92, 93, 96, 262 Primo 102 São Paulo (Brasil) 10, 35, 49, 57, 70, 71,  87, 96, 102, 123, 124, 137, 150, 151,  160, 182, 193, 197, 198, 199, 204,  209, 211, 212, 213, 218, 219, 221,  230, 233, 242, 243, 252, 271, 272,  277, 278, 291, 295, 302, 305, 317,  318, 319, 325, 330, 349, 360, 362,  368, 371, 375, 378, 381, 383, 384,  385, 387, 401, 402, 403, 404, 405,  406, 407, 408, 409, 410, 411, 412,  413, 414, 415, 416, 417, 418, 419,  420 Schaan, D. Pahl 117, 124, 415 Schachter, Bony Braga 340, 355, 357 Schapiro, Meyer 243, 312, 336, 418 Scharf, Aaron 290, 295 Schechner, Richard 117, 124, 418 Scheffer, Ary 245 Schiller, Friedrich 54 Schubert, Eva 87, 404 Schwitters, Kurt 362 Scimé, Giuliana 285, 295 Scopas (escultor) 258 Secco, Maria do Carmo 29 Sedwick, Eve Kosofsky 292 Segunda Guerra Mundial 105, 106, 108,  377 Seiler, Christiane 111, 415 Seitz, William C. 361, 362 Sekula, Alan 33, 195 Sélavy, Rrose 291, 360 Semana de Arte Moderna 313 Semin, Didier 318, 319, 409, 418 Semiologia 13, 79 Semiótica 84, 87, 428 Serpa, Ivan 63 Settignano, Desiderio da 226 Severi, Carlo 84, 87, 418 Sfumato 76, 335

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História da ARTE – ensaios CONTEMPORÂNEos0

Shattuck, Roger 362 Sheik Zayed bin Sultan al-Nahayan 240 Sherman, Cindy 301 Shonibare, Yinka Odile e Odete 304 Shostak, Marjorie 303, 304 Siena, Matteo di 102 Signo 20, 32, 39, 45, 46, 47, 125, 191, 268,  335, 369, 380, 385 Símbolo 86, 104, 175, 191, 221, 229, 255,  348 Simioni, Ana Paula 149, 150 Simmel, Georg 257, 258, 272, 418 Siqueira, Vera Beatriz 13, 14, 254, 272,  418, 428 Sistema de Arte 12, 18, 113, 152, 183,  201, 204, 215, 231, 234, 235, 236,  237, 261, 273, 274, 275, 278, 299,  316 Site-specific 192, 195, 199, 214, 332, 412 Smith, Frank Eugene 103, 210, 290 Smith, Jeffrey Chipps 111, 418 Smithson, Robert 216, 332, 371, 373 Snyder, Joel 156, 160, 418 Soares, Genilson 211 Sociedade Asteca 134 Auxiliadora da Indústria Nacional 157 Contemporânea 49, 123, 212, 407 de caçadores-coletores 116, 303 Grega 27 Industrial 48, 228 Japonesa feudal 20 Ocidental 309, 315, 368 Ocidental cristã 368 Primitiva 123, 237 Romana 26 Tribal 99 Sohm, Philip 153 Soutine, Chaïm 328 Souty, Jéròme 6, 13, 112 Souza, Rafael 7, 361 Spiral jetty 216, 332, 371, 373 Spivey, Nigel 23, 28 Split representation 83, 84 Squadratura 78 Stadelmann, Rainer 185, 199, 418

Starck, Philippe WW Stool 45, 46 Stein, Gertrude 260, 261 Stencil 384 Stierlin, Herni 86, 87, 419 Stimson, Blake 61, 405 Stott, Annette 150, 151, 419 Struth, Tomas Making time 206 Self-Portrait, Alte Pinakothek 207 Sunismo 101 Suprematismo 190 Surrealismo 55, 291, 333, 361, 365 Szeemann, Harald 209

T Tachismo 377 Tamagne, Florence 287, 292 Taoísmo 68, 356, 357 Tarô 68 Tatlin, Vladimir 191 Taunay, Félix Émile Vista de uma mata que se está reduzindo a carvão 157 Tavares, Ana 160 Tchaikovski, Piotr Ilich 315 Teatro de Marionetes 262 de Milos 178 Mummenschanz 337 Oficina 123 Putxinelis Claca 337 Teixeira, Maria Teresa Lopes 199, 411 Televisão 34, 98, 108, 360 Tempesta, Antonio 102 Templo Angkor Thom 335 da Nuvem Branca (Pequim, China) 357 das Musas 263, 266, 271 de Amon 184 de Bangkok 336 de Luxor 184 Egípcio 184 Taoístas 357 Templo-montanha 335 Teoria da arte 55, 73, 78, 79, 103, 104, 115,  380 Formalista 58

Índice remissivo

Teotihuacan (México) 185 Tertuliano 137, 419 Thévet, André 226 Thompson, Robert Farris 68, 122 Thom, René 353 Tiago Assis. Colaborador de Pereira, Fernando José 165 Tiepolo, Giovanni Battista 251 Tintoretto, Jacopo Comin (dito o) 245,  346 Todd, Jane Marie 109, 404 Todorov, Tzvetan 186, 199, 419 Tong-p’o, Sou 69 Torres-García, Joaquin 328, 329 Traba, Marta 277 Tradição Alemã 207 Árabe 347 Artística 154, 158, 220, 226, 241, 244,  245, 247, 249, 250, 252 Bíblica 138, 139 Católica 104, 105, 148 Chinesa 358 Clássica 246, 252, 265, 399, 416 Cristã 105, 106, 132 Grega 136 Ioruba 337 Japonesa 21 Literária grega 128 Medieval 187 Ocidental 21 Paleocristã 99 Uruguaia 329 Troia 36, 127, 128, 130 Tsé-Tung, Mao 333 Tucídides 283 Tucker, Márcia 236, 243 Tunga 30 Turner, Victor 117, 124, 419 Turquia 179, 180, 227

U Uccello, Paolo Natividade 77 O dilúvio universal 77 Ulay, Uwe Laysiepen (dito o) 300 Umbanda 67, 118 Urbanismo 13 Uruguai 277, 329

V Valásquez, Diego Las meninas 205 Valeff, Maurice de 315 Valente, Igor 342 Valentim, Rubem 66, 67, 68, 71, 402, 419 Valéry, Paul 261, 272, 370, 371, 419 Valle, Arthur 160 Van Dyck, Antoon 249 Van Gogh, Vincent 20, 267, 315, 325 Vanguarda 153, 181, 188, 189, 190, 191,  198, 259, 315, 345, 405 Varro, Marcus Terentius 23, 24 Vasari, Giorgio Academia del Disegno 309 Vaticano 132, 178, 336, 367 Vecellio, Cesare 345 Veneza (Itália) 57, 131, 137, 165, 226,  230, 410 Venturi, Lionello 11, 57, 69, 419 Venturi, Robert 57 Vênus de Milo 178 Venusti, Marcello 287 Vercingétorix 268 Verdi, Giuseppe Va, Pensiero, Sull’Ali Dorate 211 Verger, Pierre 124, 419 Vernant, Jean-Pierre 136, 380 Veronese, Paolo 134, 245, 246 Vialatte, Alexandre 268 Vidal, Lux 305, 401 Vídeo Vídeo-arte 372 Video-instalação 299 Vietnã 218, 367 Villegaignon, Nicolau Durand 227 Virgílio 126, 127, 128 Virilio, Paul 107 Vitória de Samotrácia 258, 399 Vitruvius, Marcus 24 Voegelin, Eric 111, 419 Vogler, Alexandre Fé em Deus/ Fé em Diabo 385 Fumacê do descarrego 385 Tridente NI 385 Vollard, Ambroise 258, 259, 312, 319,  420 Volpi, Alfredo 67

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História da ARTE – ensaios CONTEMPORÂNEos0

Voltaire, François-Marie Arouet (dito o) 175, 176 Vostell, Wolf 365 Voutier, Olivier 178 Voyeurismo 146, 147, 335 Vuillard, Jean-Édouard 189

W Warhol, Andy Bike boy 293 Blow job 293, 299 Brillo boxes 373 Haircut 293 Mario Banana I e II 293 My hustler 293 Screen test 293 Time capsules 29, 331 Vinyl 293 Warr, Tracey 295 Watkins, Carleton Cape Horn near Celilo, Oregon 156 Weffort, Francisco 220, 243, 420 Weibel, P. 107, 278 Weigel, Sigrid 97, 107 Weissmann, Franz 63 Weiwei, Ai Farytale 197 Wen, Chouo 69 Wenders, Wim 45 Wenger, Susanne 386 Willsdon, Dominic 110, 414 Wilson, David 267, 268 Wilson, Fred 238 Winckelmann, Johann Joachim 176,  266 Wölfflin, Heinrich 80, 176, 246 Wollheim, Richard 323, 324

X Xiismo 101 Xintô 21

Y Yu-Chin, Tseng Who’s listening n. 5 197

Z Zaidi, Muntazer al 336

Zampieri, Domenico (ou Domenichino) 245, 251 Zanini, Walter 209, 210 Zeuxis 311 Žižek, Slavoj 171 Zola, Émile 53, 54, 311 Zuccaro, Federico 311 Zumbi 384, 387, 407

Sobre os autores

Alexandre Santos Doutor em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, 2006). Docente do curso de graduação e do Programa de PósGraduação em Artes Visuais da UFRGS. Desenvolve pesquisas nas áreas de arte contemporânea, história da fotografia, arte e gênero na contemporaneidade.

Ana Magalhães Doutora em Artes pela Universidade de São Paulo (USP, 2000). Professora da Divisão de Pesquisa em Arte, Teoria e Crítica do Museu de Arte Contemporânea da USP. Desenvolve pesquisas nas áreas de acervos estrangeiros no Brasil, fotografia contemporânea e arte moderna.

André L. Tavares Pereira Doutor em História e em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, 2006 e 2009, respectivamente). Professor do curso de história da arte da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Desenvolve pesquisas nas áreas de história do Brasil colônia e de história da arte, da música e da literatura coloniais.

Claudia Valladão de Mattos Doutora em História da Arte pela Universidade Livre de Berlim (1996). Pósdoutora pelo Courtauld Institute de Londres (2001). Professora do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e colaboradora no Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da mesma universidade. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte do século XVIII, Winckelmann, arte do século XIX no Brasil, arte moderna brasileira, Lasar Segall, vanguardas europeias e expressionismo alemão.

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Cezar Bartholomeu Doutor em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 2008), com PDEE realizado na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais EHESS Paris, França. Professor da Escola de Belas Artes da UFRJ. Artista e pesquisador, desenvolve estudos prioritariamente no campo das imagens técnicas, com destaque para os temas: fotografia, arte contemporânea, arte conceitual, estética, teoria da imagem e teoria da arte, em particular as teorias e a história da fotografia.

Dária Jaremtchuk Doutora em Artes pela Universidade de São Paulo (USP, 2004). Professora de história das artes da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da mesma universidade. Desenvolve pesquisas na área de história da arte, atuando principalmente nos seguintes temas: arte contemporânea, arte conceitual e arte brasileira contemporânea.

Elisa de Souza Martínez Doutora em Intersemiose na Literatura e nas Artes pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, 2002). Professora do Instituto de Arte e do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília (UnB). Seu trabalho de pesquisa se desenvolve a partir dos temas: curadoria e história da arte, relação entre arte e técnica na modernidade, discursos utópicos da modernidade, processos de significação na arte contemporânea, semiótica visual e semiótica dos espaços de exposição.

Fernando José Pereira Doutor em Belas Artes pela Faculdade de Belas Artes de Pontevedra, Universidade de Vigo, Espanha (2002). Atua como pesquisador do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagem da Universidade Nova de Lisboa e como professor auxiliar na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Tem desenvolvido estudos interdisciplinares sobre as relações entre arte e tecnologia.

Guilherme Bueno Doutor em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 2005). Diretor do Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC). Desenvolve pesquisas a partir dos temas: arte contemporânea no Brasil, arte contemporânea, arte moderna, historiografia e arte moderna, teorias da arte e formalismo.

Sobre os autores

Jens Baumgarten Doutor em História da Arte pela Universidade de Hamburgo (2002), com pós-doutoramento pela Universidade Nacional Autônoma do México (2003), pela Universidade de Dresden (2003), pela Universidade da Basileia (2004) e pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, 2005). Professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Desenvolve pesquisas em história da arte e cultura visual, com destaque para a arte no Brasil colonial.

Luiz Claudio da Costa Doutor em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 1999), com curto período de pesquisa na Universidade de Nova Iorque (1999). Professor da graduação e do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Desenvolve pesquisas na área de arte contemporânea, investigando problemas como o tempo, a memória, os dispositivos, as práticas de apropriação e arquivamento e as diferentes tecnologias de reprodução e registro de imagens e som nas artes visuais.

Marcelo Campos Doutor em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 2005). Professor dos cursos de graduação (artes visuais – bacharelado e licenciatura; história da arte – bacharelado) em Artes do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Desenvolve pesquisas a partir dos temas: arte contemporânea, arte no Brasil, antropologia da arte, hibridismos culturais, história e teoria da arte e curadoria.

Maria Berbara Doutora em História da Arte pela Universidade de Hamburgo (1998), com pósdoutoramento pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP, 2004) e pela Universidade de Leiden, Holanda (2007). Professora dos cursos de graduação (artes visuais – bacharelado e licenciatura; história da arte – bacharelado) e do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Desenvolve pesquisas na área de Renascimento italiano e ibérico e tradição clássica.

Maria Eurydice de Barros Ribeiro Doutora em História pela Universidade de Paris X – Nanterre, França (1990), com diploma de estudos aprofundados (DEA) em Civilizações do Ocidente Medieval pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, Paris (1989). Professora de história medieval no curso de graduação em história da

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Universidade de Brasília (UnB) e integra a linha de pesquisa Teoria e História da Arte do Programa de Pós-Graduação em Artes da mesma universidade. Desenvolve pesquisas nas áreas de história e história da arte, com destaque para o problema do retorno de determinados temas na arte e para o estudo do espaço na Idade Média.

Maria de Fátima Morethy Couto Doutora em História da Arte e Arqueologia pela Universidade de Paris I – Pantheon, Sorbonne, França (1999). Professora do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Desenvolve pesquisas na área de fundamentos teóricos e críticos das artes, com estudos sobre os temas: crítica de arte, arte francesa do final do século XIX, arte moderna e contemporânea, arte de vanguarda, concretismo e neoconcretismo, pintura informal.

Paulo Knauss Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF, 1998), com pós-doutoramento pela Universidade de Estrasburgo, França (2006). Professor do Departamento de História e do Laboratório de História Oral e Imagem da UFF. Desenvolve pesquisas na área de história sobre as relações entre memória e patrimônio cultural, explorando os campos da história da arte, história da imagem, história oral, história urbana e historiografia.

Rafael Cardoso Doutor em História da Arte pelo Courtauld Institute of Art, Universidade de Londres (1995). Escritor e historiador da arte, atua como professor visitante da Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da mesma universidade. Desenvolve pesquisas na área de história da arte e do design, com destaque para os temas: memória gráfica brasileira, artes gráficas e visuais na modernidade brasileira e história do design no Brasil.

Ricardo Basbaum Doutor em Artes pela Universidade de São Paulo (USP, 2008). Artista e pesquisador, atua como professor dos cursos de graduação (artes visuais – bacharelado e licenciatura; história da arte – bacharelado) e do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Desenvolve pesquisas na área de artes visuais, com ênfase em produção e crítica da arte contemporânea.

Sobre os autores

Roberto Conduru Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF, 2000). Professor dos cursos de graduação (artes visuais – bacharelado e licenciatura; história da arte – bacharelado) e do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), bem como do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação da mesma universidade. Desenvolve pesquisas na área de história da arte, com destaque para os seguintes temas: arte, cultura e afrodescendência no Brasil; arte no Brasil; arte moderna e contemporânea; e arquitetura moderna e contemporânea.

Roberto Corrêa dos Santos Doutor em Semiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 1983), com pós-doutoramento pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade Contemporânea da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP, 2010). Professor dos cursos de graduação (artes visuais – bacharelado e licenciatura; história da arte – bacharelado) e do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Desenvolve pesquisas nas áreas de teoria e filosofia da arte, estética, processos artísticos contemporâneos e arte e escritura expandidas.

Sheila Cabo Geraldo Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF, 2001), com pós-doutoramento pela Universidade Complutense de Madri (2008). Professora dos cursos de graduação (artes visuais – bacharelado e licenciatura; história da arte – bacharelado) e do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Desenvolve pesquisas na área de história e crítica da arte, atuando principalmente nos seguintes temas: arte e política e arte moderna e contemporânea no Brasil.

Sonia Gomes Pereira Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 1992), com pós-doutoramento pelo Laboratório do Patrimônio Francês, Paris (CNRS, 2000). Professora titular da graduação e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ. Desenvolve pesquisas na área de história da arte, com destaque para os temas: arte brasileira do século XIX, academia, ensino artístico, cidade e urbanismo.

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Stefania Caliandro Doutora em Ciências da Linguagem: Arte e Literaturas, pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, Paris (1999), com pós-doutoramento pela Universidade de Aarhus, Dinamarca (1999), pela Universidade Católica de Leuven, Bélgica (2003) e pela Universidade de Friburgo, Suíça (2007). Colaboradora no Departamento de História e Conservação do Patrimônio Artístico e Arqueológico da Universidade de Roma. Desenvolve pesquisas na área de arte e semiótica estética, com destaque para os temas: teoria da arte, arte contemporânea, metadiscurso crítico, fruição e percepção estética, sentido e mediação cultural e espacialidade da arte.

Vera Beatriz Siqueira Doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 1999). Professora dos cursos de graduação (artes visuais – bacharelado e licenciatura; história da arte – bacharelado) e do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Desenvolve pesquisas na área de história e crítica da arte, com destaque para os temas: arte moderna e contemporânea, arte moderna e contemporânea no Brasil, historiografia da arte, arte e instituições artísticas.

Viviane Matesco Doutora em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 2008). Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Desenvolve pesquisas em história e crítica da arte, com destaque para os temas: a questão do corpo na arte e arte moderna e contemporânea brasileira.

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