História da África em perspectiva: ensino e pesquisa [1 ed.]
 9786554120548

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HISTÓRIA DA ÁFRICA EM PERSPECTIVA: ENSINO E PESQUISA

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MOISÉS C. FONSECA DA SILVA  NÚBIA AGUILAR MORENO (ORGS.)

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© Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar Editora Telha Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei nº 9.610/1998) Conselho Editorial Dra. Ana Paula P. da Gama A. Ribeiro, Dra. Camila Gui Rosatti, Dra. Carolina B. de Castro Ferreira, Dr. Daniel Moutinho, Dr. Eduardo de Faria Coutinho, Dr. Flavio Pereira Senra, Dr. Jonas M. Sarubi de Medeiros, Dra. Larissa Nadai, Dra. Luciana Molina Queiroz, Dra. Ludmila de Souza Maia, Dra. Mônica Amim, Dra. Priscila Erminia Riscado, Dr. Rafael França Gonçalves dos Santos, Dr. Rodrigo Charafeddine Bulamah, Dra. Silvia Aguião Produção Editorial Publisher: Douglas Evangelista Gerente Editorial: Mariana Teixeira Coordenação Editorial: Carolina Palha Revisão do Texto: Razzah Publishers Capa: Fernando Campos Diagramação: Razzah Publishers

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Sumário

Prefácio

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Apresentação

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A renascença intelectual africana dos filhos do país: racismo, nação e crítica anticolonial (1880–1890) Eduardo Antonio Estevam Santos

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Ensino de História da África: Propostas de simultaneidades para repensar o contemporâneo Raissa Brescia dos Reis & Taciana Almeida Garrido de Resende

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O jogo da dissimulação: Uma proposta conceitual para a análise dos genocídios coloniais na África Felipe Paiva

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A escravidão no cinema africano francófono (1980–2000): complexidade de um objeto problemático Franck Pierre Gilbert Ribard Gênero, mulheres e a escrita da História da África no Brasil Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar Reflexões: trajetória e experiências em torno da pesquisa e do ensino em História da África Maria Cristina Cortez Wissenbach Ensino e Pesquisa: diálogos por uma “Descolonização das Mentes” Entrevista com o Professor Ngugi wa Thiong’o, por Moisés Corrêa & Núbia Aguilar

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Sobre os organizadores

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Sobre as autoras e os autores

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Prefácio

Em 2003, a Lei 10.639 introduziu a obrigatoriedade do ensino da história da cultura afro-brasileira e da história da África em todas as escolas brasileiras. Essa lei e seus desdobramentos abriram caminho para uma infinidade de iniciativas que ultrapassaram em muito o limite das escolas. As mudanças chegaram às universidades, aos centros de pesquisa, às instituições de cultura e patrimônio, aos meios de comunicação e, dessa forma, a uma extensa parcela da população brasileira. É com grande alegria que prefacio História da África em Perspectiva: Ensino e Pesquisa, organizado por Moisés Corrêa da Silva e Núbia Aguilar. Em grande medida essa coletânea é fruto das políticas públicas estabelecidas entre os anos 2003–2018 dos governos do Partido dos Trabalhadores. É também fruto da profissionalização de toda uma geração de novos universitários que se formaram dentro dos parâmetros da nova lei. Foram anos de intenso trabalho e intercâmbio acadêmico entre o Brasil e os países africanos. Lamentavelmente, o ambiente no qual o livro está sendo lançado é muito diferente daquele que permitiu sua gestação. A continuidade do trabalho — em tempos de desastres de todas as ordens — é motivo de celebração. Abarcando um largo espectro de temas, os capítulos desta coletânea mostram o empenho dos autores em tornar a história da África acessível a todos os brasileiros, evitando que as conquistas alcançadas nos sejam usurpadas. Na entrevista que encerra o livro, o professor Ngugi wa Thiong’o propõe a “descolonização das mentes” e alerta que no Brasil precisamos “conhecer as histórias e culturas dos povos indígenas brasileiros”. Termina afirmando que “o principal é fazer conexões

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e interconexões entre todas essas linguagens e culturas”. Fica aqui meu profundo respeito por cada um dos autores desta obra e também por aqueles que a lerão, uns e outros se mostram dispostos a aprofundar a reflexão e o laços entre o Brasil e os países africanos, e também a perseverar na luta por um ensino melhor e por um país melhor do que o que temos hoje. Boa leitura a todos! Mariza de Carvalho Soares Professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF)

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Apresentação

Foi por meio de encontros que este livro se concretizou. Inicialmente, com origem no I Seminário de Ensino e Pesquisa em História da África na Contemporaneidade, realizado em 2020, reuniram-se discussões de pesquisadoras e pesquisadores das mais diversas regiões. A proposta inicial foi pensada para realizar um evento que incitasse os debates sobre o continente africano e sua relação com a área de História nas múltiplas instâncias dos saberes. Mas não contávamos com um cenário tão inédito. O contexto impôs exigências. A nossa pretensão, em colocar em primeiro plano os diálogos entre o ensino e a pesquisa da História da África, com atenção às questões próprias do tempo presente e fomentar essas discussões, passou de uma intencionalidade para uma necessidade. A pandemia de Covid-19, sem dúvidas, afetou todas, todos e todes. Cada qual sentiu ao seu modo as mudanças, a sensação de imprevisibilidade que ainda hoje, no momento da produção deste livro, nos cerca. De um lado, os novos entraves. Do outro, vieram as adaptações, a partilha de experiências — em que se inseriu o Seminário. Com o encurtamento das distâncias, para aquelas e aqueles que puderam e podem usufruir de tal reordenamento, a internet foi o local para que os debates se efetivassem. Foi possível unir referências de pesquisadoras e pesquisadores, professoras e professores, que se dedicam ao ensino e pesquisa da História da África em diferentes regiões. Mas, sem motivos para saudosismos, a pandemia foi um momento que expôs as fragilidades imperativas na nossa sociedade. Acentuou as desigualdades e retirou de nós os próximos, aqueles que eram nossas e nossos. Para uma parte considerável, não há perda

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maior. Sem buscar naturalizar o cotidiano impregnado de dores e uma resposta política covarde, mal-intencionada, que não nos amparou, tentamos, cotidianamente, ganhar fôlego; refinar, como Koselleck denomina, os horizontes de expectativa. Movimento que não é fácil, mas, ao olharmos para os lados e encontrarmos crenças semelhantes em um projeto de dias melhores, nos sentimos, ainda que minimamente, mais esperançosos. Nas correntes de vento que nos trouxe a este lugar, Édouard Glissant, por meio de sua poética das relações, relembrou que os encontros são fundamentais para experimentar a vida, expressão dada em nossos trabalhos. A encruzilhada que se formou entre transparência e opacidade dialogou com a produção acerca da História da África e nos fez desabrochar neste produto; mar de vento com sequelas que ainda estamos a seguir. Segundo Glissant, existe na experiência social e artística (lugar fundamental de sua obra) dadas incertezas que são possíveis de serem evocadas por meio dos olhares daqueles e aquelas que vivem o momento. Aqui, portanto, está uma contribuição de nossas visões. Das escritas que aqui materializaram ideias, contatamos a solidariedade em compartilhar visões que põem como centrais discussões sobre o continente africano. A partir de pensamentos plurais, crescem narrativas dedicadas a confrontar projetos de ensino e pesquisa que buscam perpetuar hierarquias de poder. Foi feito contato com demandas e estratégias apresentadas por pessoas envolvidas em diferentes níveis do ensino, que pensam em seus espaços as produções históricas. Deste posto, surgem como resultado os capítulos constituintes das páginas que seguem. Os questionamentos, argumentos e discussões partem de um trabalho, da soma em torno de escrever, com especificidades, sobre um tema em comum. A pluralidade do continente é sentida por essas abordagens, que colocam a produção da História da África como uma atividade dinâmica viva e fundamental. Os capítulos que seguem contribuem para reflexões sobre a formação da História da África enquanto disciplina nos espaços acadêmicos do Brasil. No primeiro, Eduardo Estevam Santos nos leva até a Angola de fins do século XIX, com um debate sobre organizações sociais densas e reações diversas ao movimento colonial.

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10 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) Em seguida, Raissa Brescia dos Reis e Taciana Almeida Resende discutem sobre a contemporaneidade por meio do Ensino de História da África. Ao penetrar em experiências coloniais, Felipe Paiva retoma o genocídio na atual região da Namíbia, com o refinamento de um tema denso. Na esteira, Franck Gilbert Ribard ilumina, em tela e cores, uma abordagem metodológica para o cinema africano de expressão em língua francesa. Enquanto, no Capítulo 5, Moisés Corrêa da Silva e Núbia Aguilar transversalizam a ideia de Ensino e Pesquisa acerca de gênero e história das mulheres na História da África produzida no Brasil contemporâneo. Como formas de elucidar e condensar ideias de suas falas no Seminário, a professora Maria Cristina Wissenbach nos brida com palavras que tratam a História da África dentro do conjunto de conflitos pertencentes ao universo epistemológico, com considerações interdisciplinares, atentas às relações de poder. Por fim, a oralidade de Ngugi Wa Thiong’o se tornou o elemento escrito para o fechamento da obra; uma atividade fulcral de desempenho das práticas relacionadas ao processo de descolonização, necessária no Brasil. Por meio de respostas de cunho teórico-metodológico, Thiong’o revela um arcabouço de elementos para a continuidade da área de História da África no país. Sem deslocar ensino de pesquisa, este material é denunciativo do quanto as duas áreas precisam andar juntas. Pensar na História da África é um exercício recorrente a interesses sociais localizados no presente. Uma busca por referencial para entender dinâmicas passadas desdobradas nas necessidades do agora. Trabalhar com os diferentes temas abre margem para desvelar questões sensíveis, debatidas em amplos espaços. Este livro é um convite à reflexão. O momento que nós, enquanto sociedade, atravessamos é mais uma possibilidade, como propõe bell hooks, de pensar a teoria como prática de libertação. Desejamos dias melhores, tanto na Saúde quanto para aquilo que nos desgoverna. Até lá, força! Da pandemia que muito nos tirou: avó, avô e tia; nossa dedicação.

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Agradecemos a cada um que contribuiu para a formação deste livro. Com os melhores votos de leitura, Moisés Corrêa da Silva e Núbia Aguilar

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A renascença intelectual africana dos filhos do país: racismo, nação e crítica anticolonial (1880–1890)1 Eduardo Antonio Estevam Santos2

Introdução Este artigo interpreta, do ponto de vista crítico da política colonial e da ideia de raça, a dimensão histórica das práticas políticas dos filhos do país, por meio das suas atuações na imprensa periódica. Acreditamos que o fator racial, com base nos critérios biológicos e/ ou civilizacionais, foi decisivo na estrutura da sociedade colonial. Dessa forma, pretendemos demonstrar como esse fator condicionou as ideias protonacionalistas, de forma que as reivindicações por uma maior autonomia para a colônia fossem catalisadas, em grande medida, pelos conflitos de ordem racial, ainda que apresentassem posições ambivalentes. Pretendemos enfatizar o caráter racial dos protestos dos filhos do país, procurando desconstruir a tese de que esse movimento foi um “mero” ressentimento social e econômico.3 “Filho do país”, “filhos desse país”, “filhos d’Angola”, “filhos da terra” 1 Este trabalho faz parte do plano de estudo e trabalho da Licença Capacitação. Sou grato ao professor e pesquisador Marcelo Bittencourt, da Universidade Federal Fluminense (UFF), pelos comentários, críticas e observações. 2 Professor adjunto do Instituto de Humanidades e Letras, campus dos Malês, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). Membro do Grupo de Estudos sobre Territórios Atlânticos (GETA), da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: [email protected]. 3 “Os seus apelos, fruto de um grande descontentamento por estas e mais razões, demonstram efetivamente um forte ressentimento que os assalta, em razão da crescente degradação do seu estatuto social e económico. Numa primeira fase são postos em evidência nos seus escritos, os seus interesses de classe, e paralelamente a ideia de construir um país fora da tutela colonial. Daí a ambiguidade no processo político por eles desencadeada.” (CRUZ E SILVA, 2000).

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ou “filhos dessa província”, embora fossem todas autodenominações4 desse grupo social, o primeiro termo era uma autodesignação mais corriqueira na imprensa periódica. Apresentaremos também os vínculos, a coexistência, a solidariedade política e os conflitos de interesse entre os portugueses e os filhos do país. Na tabela a seguir, temos um quadro numérico dos filhos do país, mas não sabemos ao certo quais foram os critérios definidos para o uso dessa identidade/classificação nesse censo demográfico, pois apresenta um número bastante expressivo. Uma vez que, no mapa estatístico, os dados sobre os naturais do reino e ilhas adjacentes, naturais de colônias portuguesas e estrangeiros apresentavam campos específicos, acreditamos que a categoria filhos do país incluísse os mestiços e negros, ou seja, a maioria da população, nessa conjunta histórica. A historiografia angolana oitocentista tem demonstrado a existência de uma multiplicidade de identidades culturais e políticas. Para efeito deste estudo, utilizaremos essa categoria num sentido restrito, fazendo referência tão somente ao grupo social que fazia parte de uma elite letrada e tinha espaço nos centros de poder, tais como nas câmaras, comissões municipais, serviços militares, nos periódicos, na burocracia colonial; eram clérigos, sacerdotes, professores; tendo até representante na Câmara de Deputados, a exemplo de Joaquim António de Carvalho e Menezes, que foi o único filho do país a ocupar esse cargo. Tabela 1: Mapa Estatístico da população da província de Angola — 1869 Designações Distrito de Luanda — concelhos de:

Luanda Barra do Bengo Barra do Dande Libongo Alto-dande

Total da população 16.252 1.475 1.350 3.109 11.000

Filhos do país Masculino Feminino 14.884 640 827 — — 1.159 1.949 4.027 6.918

4 Para Jill Dias (1984; 1998), em “Novas identidades africanas em Angola no contexto do comér¬cio atlântico”, as principais identidades políticas, étnicas ou culturais reclamadas hoje em dia pela população angolana evoluíram, num enquadramento dinâmico de interações e de confrontações mútuas, principalmente no contexto do tráfico transatlântico. Dessa forma, os filhos do país descendiam de famílias antigas, algu¬mas remontando ao século XVII e ao tráfico de escravizados, pois, no início dos oitocentos, esta permanecia como a principal atividade a que se dedicavam. Dias informa ainda que esse grupo perdeu o protagonismo econômico na província em função do fim da escravidão.

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14 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) Distrito de Luanda — concelhos de:

Distrito de Benguela — concelhos de:

Distrito de Mossamedes — concelhos de:

Icolo e Bengo Zenza do Golungo Calumbo Muxima Novo Redondo Golungo Alto Dembos Ambaca Malange Duque de Bragança Pungo Andongo Cazengo Cambanbe Massangano Ponto Militar do Congo Ambriz Pedro V Encôge Total Benguela Catumbela Dombe-grande Quilengues Caconda Egito Total Mossamedes Bumbo Huila Total Total Geral

13.832 8.179 3.538 10.677 1.493 37.910 11.610 21.240 39.517 4.818 19.113 28.240 26.000 22.000 600

6.496 4.339 1.957 4.539 1.451 17.711 4.995 9.984 23.474 2.300 9.070 13.067 10.946 10.094 335

2.115 458 38.538 323.064 5.174 3.306 6.000 42.400 28.239 2.861 87.980 5.873 1.168 15.312 22.353 433.397

1.913 229 16.872 — — — 3.193 5.961 12.381 2.847 — 3.287 577 15.200 —

7.330 3.845 1.568 6.125 20.180 6.609 11.355 16.080 2.518 10.028 15.136 14.998 1.899 250 202 21.662 —

1.873 470 —

Fonte: Boletim Oficial do Governo Geral da Província de Angola, publicado no dia 15 de outubro de 1870. Mapa estatístico adaptado para este estudo. O censo demográfico completo inclui dados, como já observamos, sobre os naturais do reino e ilhas adjacentes, naturais de colônias portuguesas e estrangeiros, assim como, as profissões mecânicas e liberais, número de servidores do governo, instrução, religião, livres e libertos. Sobre os dados não informados, a Secretaria do Governo, responsável pela divulgação informava que, em decorrência do não recebimento de dados precisos de alguns concelhos, preferiu-se não proceder o preenchimento de alguns campos, o que impossibilitou também o processo de totalização.

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Mamede de Sant’Anna e Palma, João da Ressurreição Arantes Braga, Inocêncio Matoso e Câmara, José de Fontes Pereira, João Inácio de Pinho e Joaquim Dias Cordeiro da Mata são alguns dos filhos do país que foram atuantes no contexto por ora delimitado para o nosso estudo. Para tal, percorremos os seguintes periódicos, nos quais esses publicistas deixaram registros de suas ideias independentistas e de suas críticas às práticas racistas: A Civilização da África Portuguesa, O Mercantil, A União Áfrico-portugueza, O Pharol do Povo, O Echo de Angola, Jornal de Luanda, Arauto Africano, O Desastre e o Muen’Exi. Tabela 2: Periódicos 1845–1869 1870–1879 1880–1889 1890–1900 Circulação de jornais/ periódicos

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Jornais editados pelos “filhos do país”



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Fonte: Construímos essa tabela a partir da nossa documentação. Quanto aos jornais editados pelos filhos do país, encontram-se em: FREUDENTHAL, Aida. Republicanismo em Angola: os “filhos do país” perante a Era Nova (1870–1912). São Paulo: Via Atlântica, n. 23, pp. 87–97, jun/2013, p. 88. Em 7 de dezembro de 1836, o decreto português mandava publicar em todas às províncias do ultramar um boletim oficial sob a inspeção de cada governo local. Em 13 de setembro de 1845, foi criada, sob a direção do Pedro Alexandrino, o Boletim do Governo Geral da Província de Angola. Jornais editados pelos filhos do país: O Cruzeiro do Sul (1873–1876), O Futuro de Angola (1882), O Pharol do Povo (1883), O Arauto Africano (1889), Muen’Exi (1889), O Desastre (1889), Kamba ria Ngola (1891).

Em 1880, assistiu-se ao advento de dezenas de periódicos, a maioria motivada pela oposição ao governo colonial em nome das ideias republicanas de liberdade, igualdade, fraternidade, economia e progresso, com uma participação ativa de vários filhos do país. Nosso marco temporal se circunscreve às décadas de 1880 e 1890, compreendendo mais precisamente a administração dos governadores Francisco Joaquim Ferreira dos Amaral (1882–1886) e Guilherme Augusto de Brito Capelo (1886–1892). Essas décadas foram bastante tensas no que tange às relações internacionais, momentos de inflexão junto à Conferência de Berlim (1884–1885) e ao Ultimatum inglês (1890). Jill Dias (1998) informa-nos que, ante a partilha internacional da África, na década de 1880, os governadores

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16 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) gerais de Angola reconheceram a urgência de ocupar mais efetivamente o território, contudo, deparavam-se com as resistências dos povos africanos. Quando finalmente ficaram definidas as fronteiras coloniais e as pretensões de Portugal em África foram asseguradas internacionalmente, o governo de Lisboa ficou livre na sua política africana. Para Pedro Lains (1998), nessa nova fase, passou-se rapidamente do momento liberal, quanto ao comércio e à administração, para um novo sistema colonial. Na década final do século XIX, condicionado pela crise no desenvolvimento econômico (SMITH apud LAINS, 1998, p. 466), o que levou Portugal a entrar na partilha África, o governo português instaurou um novo regime colonial, o que possibilitou aumentos bastantes significativos em sua receita, na sua balança comercial5, provocando um alargamento da estrutura administrativa portuguesa (LAINS, 1998). Na genealogia dos movimentos urbanos “nacionalistas” de matriz periodista, temos as contribuições de Joaquim António de Carvalho e Meneses, que nasceu em Angola e foi escrivão e deputado. E, por volta de 1842, já escrevia sobre temas críticos ao domínio colonial, posição que as gerações posteriores retomaram, por meio da “renascença”, a exemplo de José de Fontes Pereira, que informava que Joaquim António havia solicitado materiais tipográficos para instalar um jornal e o mesmo foi afundado a mando do governo colonial. O episódio da “imprensa afundada” revelava o quanto o periodismo ameaçava o domínio colonial metropolitano. No campo político e literário, a historiografia reconhece no livro Espontaneidade da Minha Alma, de 1849, a primeira obra publicada por um autor africano de língua portuguesa, um “nativismo” precursor dos nacionalismos, de autoria José da Silva Maia Ferreira, que fazia parte de um grupo social que expressava uma vertente regionalista. Segundo Jacopo, Maia nunca contestou abertamente o sistema colonial. Em Benguela Maia Ferreira entrou em contato com um grupo de mestiços igualmente descontentes. Eles começaram a chamar-se filhos da terra, a reunir-se em clubes como a União ou a Jovem Luanda — agremiações de inspiração maçônica que abrigavam as atividades políticas dos seus membros mais antiportugueses — e a desenvolver sentimentos nativistas, exprimindo-os principalmente por meio da disseminação de pasquinades e outras ‘indecentes peças 5 Ib.Idem.

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História da África em Perspectiva: Ensino e Pesquisa 17 anônimas’ endereçadas contra as autoridades e, mais em geral, contra os portugueses da colônia. (CORRADO, 2010).

Desde a imposição, em 1845, do português como língua oficial da colônia, registraram-se diversas reações que procuravam defender a língua quimbundo. O médico Saturnino Souza de Oliveira, em coautoria com Manuel Alves de Castro Francina, publicou, em 1864, Elementos gramaticais da língua N’Bundu. Merecem destaque também o trabalho poético-literário e a defesa política da língua quimbundo realizada por Joaquim Dias Cordeiro da Mata, autor de Os Delírios. Mata dizia que abandonara a escrita em português para dedicar os seus talentos ao desenvolvimento de uma literatura nacional (DIAS, 1984). Segundo as informações do seu amigo, Carlos da Silva, editor do Arauto Africano, um jornal composto só de africanos, J. D. Cordeiro da Mata nasceu em 25 de dezembro 1859, no concelho de Icolo, ganhava a vida como pequeno comerciante e agricultor6 e, desde tenra idade, vinha se dedicando à leitura dos autores clássicos da literatura, “não cursou universidades, nunca esteve em colégio nenhum da Europa, nem em escola nenhuma de Luanda [...]”.7 Dessa forma, procuramos sustentar a nossa tese por meio do diálogo crítico com a historiografia especializada. Para tanto, merecem destaque, dado o rigor investigativo, os seguintes trabalhos: Dos jornais às armas — trajetórias da contestação angolana, de Marcelo Bittencourt (1999); O nacionalismo angolano, um projeto em construção no século XIX? Através de três periódicos da época: O Pharol do Povo, Tomate e O Desastre, produzido pela historiadora angolana Rosa Cruz e Silva; e, por fim, Uma questão de identidade: respostas intelectuais às transformações econômicas no seio da elite crioula da Angola portuguesa entre 1870 e 1930, da anglo-portuguesa Jill Dias. Em linhas gerais, M. Bittencourt (1999) salienta que, na trajetória da contestação angolana, desde às décadas finais do século XIX até a década 1960, os fatores étnicos e raciais, juntamente com os condicionamentos internacionais, sobrepõem-se a uma multiplicidade de outros vínculos de solidariedade social, cultural, religioso, familiar ou associativo. Rosa Cruz (2021) questiona os 6 Arauto Africano 27 de abril de 1889. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais, A-1, n. 1, cota J. 3148//6 M. 7 Ib.Idem.

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18 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) limites dos discursos de protesto dos sujeitos luso-africanos, “[...] presos aos compromissos com a administração colonial [...]”. Nesse trabalho, Cruz interpreta, a partir das ideias independentistas de ruptura com a metrópole e de formação de uma união luso-africana, as propostas, não obstante, conciliadoras, ambíguas e ambivalentes dos filhos do país. Para Jill Dias (1984), as transformações pelas quais passou a economia colonial provocaram um rebaixamento geral de estatuto e de oportunidade no interior da elite crioula, de forma que uma minoria dos seus membros tentou, sem êxito (mas, abrindo caminho) mobilizar-se para defender os seus interesses, apoiando-se ideologicamente numa autoafirmação étnica. Os filhos do país e a imprensa O jornalista José de Fontes Pereira, advogado e funcionário público, foi o principal expoente da imprensa angolana nessas décadas finais do século XIX, tendo grande destaque no interior do grupo autodenominado “renascença intelectual africana”.8 Escreveu ativamente na imprensa de Luanda entre 1870 e 1890, nos periódicos O Mercantil, O Cruzeiro Sul, O Echo de Angola, O Futuro d’Angola, O Imparcial, O Desastre, O Pharol do Povo e Arauto Africano. O seu aparecimento na imprensa periódica data de março de 1867, quando encontramos registros dos seus escritos na Civilização da África Portuguesa, quando assumia a função de escrivão da administração do concelho. José de Fontes Pereira prestou solidariedade aos redatores da Civilização da África Portuguesa, Urbano de Castro e Alfredo Mântua, em defesa da liberdade de imprensa, quando estes foram presos por um mês, acusados de terem “[...] feito extorsões de dinheiro por meio de ameaças morais [...]”9, a quantia de cem libras aos negociantes Marques e Ferraz. Fontes Pereira escreveu sobre os mais variados temas, sobretudo, políticos, mas, neste artigo, ressaltaremos apenas aqueles que fizeram uso dos determinantes raciais como base moral à solidariedade política. 8 Arantes Braga fez uso desse termo em 17 de março de 1883, no seu jornal O Pharol do Povo: “Provocar a reunião dos elementos da nova renascença intelectual africana — com o fim de desbravar a natural rudeza desta raça — quebrar-lhe as cadeias da escravidão a que estão habituados, e infiltrando na alma o amor à liberdade — é o fim d’O Pharol do Povo”. Arantes Braga, O Pharol do Povo: folha republicana, 17 de março de 1883. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais, A-1, n. 132. 9 Civilização da África Portuguesa, 22 de janeiro de 1868. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Monografias, cota 5150.

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Dentre dezenas de artigos, em A independência de Angola, o primeiro de uma série de treze textos publicados como o mesmo título, entre outubro de 1886 e junho de 1887, José de Fontes Pereira apresentava fortes críticas, tendo em vista o desleixo e o “despotismo” da metrópole. Sendo assim, afirmava: “[...] detestamos e rejeitamos sua deletéria administração.”10 Ao contrário de Angola, Portugal impulsionou o florescimento do Brasil, à custa dos milhares de braços arrancados dessa região, e concedendo-lhe a liberdade séculos depois. Tal impulso foi negado a Angola durante quatrocentos anos e, ainda assim, atrapalha a independência dessa região, afirmava. O mais salutar para a nossa discussão, porém, é que, para Fontes Pereira, a emancipação de um povo poderia acontecer tanto pelas suas riquezas naturais desenvolvidas, como pela vasta ilustração dos seus concidadãos. Os filhos do país almejavam assumir a administração colonial ou uma “provável” nação independente. Em janeiro de 1890, José de Fontes Pereira publicou o artigo “Partido Colonial”, em que aconselhava os ingleses a negociarem com os africanos na qualidade de filhos do país e não com os portugueses, tendo provocado uma reação violenta por parte dos colonos. Como consequência, o periódico O Arauto Africano passou a designar-se O Polícia Africano, com alterações na sua política editorial. Na concepção de Fontes Pereira, os tratados, uma vez assinados, não implicariam em perda da almejada soberania, seriam apenas acordos de cooperação e auxílio. A concepção de nação desses filhos do país circunscrevia a possibilidade de um governo próprio, de autonomia administrativa da província. Uma ideia também partilhada pela elite letrada portuguesa, uma prova de que os mesmos compartilhavam com os demais membros da classe política elementos comuns. Antonio Urbano Monteiro de Castro, jornalista, branco e português, defendia em seus artigos o self-governament (o modelo britânico era constantemente reivindicado). Em suas narrativas, os filhos do país evocavam vários elementos comuns de um passado cultural compartilhado, entre portugueses e africanos. Jill Dias aponta que, na década de 1860, assistiu-se a uma crescente consciência de raça, a partir de um conflito aberto entre os africanos “civilizados”, colonos e comerciantes brancos, estes 10 O Futuro d’Angola, 21 de outubro de 1886. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais, A-1, a. 12, n. 206.

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20 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) últimos eram concorrentes comerciais direto dos primeiros. Tudo isso aconteceu em meio às transformações provocadas pelas leis abolicionistas, no âmbito das relações de trabalho, tendo sido esses assuntos amplamente debatidos com o advento da imprensa livre (decreto de 22 de maio de 1866). Essa imprensa acompanhou o aumento paulatino dos projetos imigratórios. Na década de 1880, as hostilidades de ordem racial, alimentadas por questões materiais, persistiam numa proporção direta com o aumento da imigração portuguesa. Em linhas gerais, o aumento do fluxo para as colônias refletiu a conjuntura de confronto de interesses e litígios dos países europeus no território africano. Dessa forma, o único meio de Portugal valorizar os seus vastos domínios coloniais era canalizando a emigração para essas regiões . (DINIZ, 1826 apud GONÇALVES, 2018). Tabela 3: Composição racial da população angolana11 (1777–1900) Ano 1777 1845 1900

Brancos Nº 1.585 1.882 9.198

% — 0,03 0,20

Mestiços Nº 4.043 5.770 3.112

% — 0,10 0,06

Negros Nº — 5.378.923 4.777.636

Total % — 99,9 99,7

Nº — 5.386.525 4.789.946

% 100 100

Fonte: BENDER, Gerald. Angola sob o domínio português: mito e realidade, Lisboa: Sá da Costa, 1980, p. 47.

A posição do governador expressava fortemente o quanto a questão racial mobilizava a vida social da província, quando dizia que “o elemento nativo vive em constante rivalidade com o europeu” (DIAS, 1984, p. 71). O jornal O Sul de Angola, que circulava em Mossamedes, denunciava como caso de polícia a existência de colonos que tinham vindo da metrópole: “[...] um grande número deles que em vez de procurar no trabalho o seu sustento, se entregam a 11 Em, The Population History of Luanda during the Late Atlantic Slave Trade, 1781–1844, trabalho do José C. Curto e do Raymond R. Gervais, também encontramos dados e análises demográficas, In: African Economic History, N. 29. (2001), pp. 1–59. “[...] verificaremos que a população ‘branca’ passou de 1.601 indivíduos (135 mulheres) para 1.240 (420 mulheres); isso traz um saldo negativo de 361 ‘brancos’, em geral, embora as mulheres tenham um saldo positivo de 285. A população ‘mestiça’ e ‘negra’ que era, respectivamente, de 491 e 3.513 elementos, passa em 1850 para 2.055 e 9.270”. In: MOURÃO, Fernando Augusto Albuquerque. A evolução de Luanda: aspectos sócio demográficos em relação à independência do Brasil e ao fim do tráfico. PANTOJA, Selma & SARAIVA, José Flávio S. (Orgs.) Angola e Brasil nas Rotas do Atlântico Sul. São Paulo: Editora Bertrand Brasil, 1999.

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vadiagem, bebedice e o que ainda é pior a apropriação do alheio.”12 Recomendando, ainda, a instalação de uma base policial por meio de uma seção composta de 25 praças. No artigo “Paralelo”, escrito por José de Fontes Pereira, podemos notar mais um chamado, apelo ou provocação no tocante ao papel dos filhos do país e suas responsabilidades políticas enquanto sujeitos civilizados. Um chamamento de um destacado periodista, publicado n’O Echo de Angola, em 1881, um periódico cujo proprietário e editor era o também um filho do país, Inocêncio Matoso e Câmara. O Echo foi considerado o primeiro periódico da chamada imprensa africana (Angola). Em sua primeira edição, apresentava-se como um periódico modesto, e de fato era, afirmava que seu objetivo era advogar pela causa e os interesses “[...] desta infeliz província, que tão descurados, tão esquecidos, tem sido da metrópole”.13 Livre de todos os preconceitos, objetivava defender os interesses dos seus habitantes e em particular dos “naturais” da terra. Os filhos deste país, os mais civilizados, são, a nosso ver, os únicos a quem se deve atribuir o atraso da sua terra natal. Timoratos [temeroso] uns, indiferentes outros, e esquecendo-se a maioria deles da sua sublime qualidade de homem livre, mui poucos tem dado provas de dispor de um caráter independente.14

No artigo em questão, José de Fontes Pereira apresentava duras críticas aos eleitores, em seu estado de alienação diante das promessas eleitorais, quando trocavam o interesse geral pelo interesse particular, em nome da conservação do “[...] seu miserável emprego [...]”.15 Esse pragmatismo político só contribuía para o estado de atraso em Angola, um círculo vicioso que fazia com que tanto o governo da metrópole quanto o da província reservassem os cargos mais elevados para os seus apadrinhados e afilhados, em detrimento daqueles que se julgavam habilitados. Aqui vale salientar que os decretos de 27 de dezembro de 1877 e de 29 de 12 O Sul de Angola — órgão quinzenal dos interesses do distrito de Mossamedes, 4 de outubro de 1893. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais, A-2, n. 23. 13 O Echo de Angola, 12 de novembro de 1881. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais. Cota J. 786//29 A. 14 José de Fontes Pereira, Idem. 15 Ib.Idem.

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22 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) novembro de 1883 estabeleciam que todos os postos administrativos coloniais deveriam ser ocupados por indivíduos nomeados e enviados do Reino. Sua indignação era tamanha, diante desse jogo eleitoral, a ponto de afirmar que tal prática só contribuía com a informação que circulava no ministério das colônias, de que os filhos do país não passavam de uns indolentes, estúpidos e ladrões, e que por essa causa não poderiam tomar parte na administração da província onde nasceram. Sua indignação estava relacionada ao fato da não escolha pelos filhos do país, em 1881, mais precisamente, do nome de Inocêncio Matoso e Câmara para representar Angola nas cortes como deputado, que, segundo Fontes Pereira, era um ilustre filho do país que não se cansava de solicitar providências contra o estado anormal da fazenda pública. Inocêncio Matoso e Câmara foi vereador entre os anos de 1874 e 1877. Dizia ainda que, quando o mesmo foi vereador, prestou relevantes serviços na câmara. Para José de Fontes Pereira, esse sistema eleitoral era intencional e só corroborava com a decadência de Angola, pois o governo-geral e a secretaria da junta da fazenda não nomeavam os filhos do país mais instruídos para não desbravarem suas “travessuras”16. Neste artigo, depreende-se que a perda da posição econômica dos filhos do país e a sua consequente marginalização nas posições sociais ocupadas no aparato colonial não eram apenas resultado de uma política vertical, mas revela, sobretudo, a existência de uma disputa por cargos, emprego, no interior desse grupo social. No artigo “A eleição de deputado e o Sr. Joaquim de Salles Ferreira”, publicado em A União Áfrico-portugueza, Antonio Urbano Monteiro de Castro expressava uma profunda indignação com os eleitores de Angola, que se deixavam levar por promessas frívolas, votando “[...] a favor de quem estava em Lisboa, e te não conhece, senão pelo mapa geográfico [...]”. Tal análise se pautava na eleição passada, em que Joaquim de Salles Ferreira, ex-presidente da câmara municipal de Luanda, havia se candidatado a representar Angola no parlamento. Enfatizava que Angola deveria votar em Francisco de Salles Ferreira, Inocêncio Matoso e Câmara, José de Fontes Pereira, Lino de Araújo (mestiço e amanuense da alfândega de Luanda em 1868), pois estes poderiam lutar para melhorar a realidade social da província no parlamento. 16 Ib.Idem.

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História da África em Perspectiva: Ensino e Pesquisa 23 Portanto te recomendo que, na ocasião da nova eleição elejas a um dos acima apontados, e não a algum burguês que vá depois na antecâmara depor as armas ofensivas em troca de fitinhas que lhe encham a vista, ou a algum Carvalho, para em satisfação vos apresentar o seguinte agradecimento, ‘no preto não há instinto que mova para o bem’!

A posição de Urbano de Castro, dentre outros periodistas que defendiam uma maior autonomia para a província, revela o apoio social que os filhos do país tinham de outros segmentos da sociedade. Os filhos do país apostavam na política liberal para demarcar posição nas instâncias representativas de poder, mas as consciências dos eleitores eram um campo de disputa. Segundo a Constituição de 23 de setembro 1822, a nação lusitana era resultado da união de todos os portugueses de ambos os hemisférios (não se fazia distinção entre brancos e pretos), e o seu território era compreendido, na Europa, pelo reino Portugal; na África ocidental, por Angola, Benguela e suas dependências, Cabinda e Molembo; Bissau e Cacheu; na Costa de Mina, o Forte de São João Batista de Ajudá; as ilhas de Cabo Verde e as de São Tomé e Príncipe e suas dependências; na costa oriental, Moçambique, Rio de Sena, Sofala, Inhambane, Quelimane e as ilhas de Cabo Delgado. Essa constituição liberal, que tinha como princípio a integração e a igualdade jurídica do território nacional, incluindo a representação dos territórios ultramarinos nas cortes, do outro lado do atlântico se deparava com fortes tensões, pressões e lutas, que procuravam, por meio da legislação, resolver os problemas conceituais da diversidade, para que não se tornassem uma mera ilusão de uniformidade, uma suposta luta por igualdade entre os cidadãos das colônias e da metrópole. Esse direito foi formulado a partir das necessidades objetivas da política colonial para ampliar as relações dos portugueses com os povos do ultramar. A partir de uma leitura a contrapelo dos africanos, esse direito transformou-se num instrumento de luta, tendo em vista o modo como essas leis foram interpretadas por esses sujeitos. Até mesmo o governador-geral, Guilherme Augusto de Brito Capelo, em 1887, reconhecia a natureza da dimensão desse conflito social. Dizia ser uma grande vantagem para a província investir numa melhor qualidade do serviço público. Destacava que nesse período

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24 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) havia uma grande falta de pessoal habilitado para exercer os inúmeros cargos que só os filhos do país podiam aceitar, em consequência da exiguidade dos vencimentos. Enfatizava que era necessário resolver essa circunstância, pois criava muitas dificuldades ao governo “[...] no bom e regular andamento da administração pública”.17 Antigamente supunha-se que o filho do país se contentaria com uma pequena remuneração, e assim era; hoje, porém, a vida é outra, criaram-se novas necessidades, tudo encareceu, e não é possível que um empregado, que tem de viver decentemente, e com família, passe quase toda a sua vida com ordenados, que raras vezes excedem 250$000 réis, visto que os cargos mais convidativos e melhor pagos são ocupados por europeus de nomeação regia.18

Helena Wakim (2014), em “Voz d’ Angola clamando no deserto: protesto e reivindicação em Luanda — 1881–1901”, apresenta alguns dados reveladores dessas desigualdades. A primeira repartição da secretaria-geral, em 1894, contava com 31 funcionários, apenas quatro nascidos em Angola, enquanto os demais provinham de Portugal, da Índia portuguesa e de Cabo Verde. Os maiores salários eram pagos aos portugueses, superiores a 500$000. Em 1895, trabalhavam 29 empregados nessa mesma repartição, sendo três nascidos em Angola e, dos treze funcionários que recebiam acima de 500$000 anuais, nenhum era nascido em Angola. Os filhos do país e seus críticos Na seção Comunicados de A União Áfrico-portugueza, de 30 de julho de 1882, o leitor Carlos de Almeida, no artigo sob título “A independência de Angola”, apresentava a seguinte crítica aos filhos de Angola: que nenhum filho do país se lembrou de propor ou de desejar a independência da província desligando-a da tutela da mãe pátria, Portugal. A crítica do leitor, aliada a outras fontes documentais por ora analisadas, evidencia que havia de fato quem duvidasse dos reais interesses ou da possibilidade de se levar a cabo o empreendimento de ruptura política. Em Ideias republicanas na consolidação de um pensamento angolano urbano, Maria Cristina Portella Ribeiro apresenta um diálogo entre 17 Relatórios dos governadores das províncias ultramarinas. Relatório do Governo Geral da Província de Angola — 1887. Ministério da Marinha e Ultramar, Lisboa, Imprensa Nacional, 1889, p. 64. 18 Ib.Idem.

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os dois expoentes do periodismo oitocentista: José de Fontes Pereira e Antonio Urbano Monteiro de Castro. Nessa conversa, cujo registro foi de autoria do José de Fontes Pereira, publicada no Futuro d’Angola, o jornal mais representativo dos interesses dos filhos do país, apresenta-se um diálogo bastante elucidativo no que tange às diferentes concepções liberais entre um africano e um português. Quando me retirava o sr. Urbano de Castro me estendeu a mão que apertei, dizendo-me ao mesmo tempo, talvez com o fim de me dar um xeque: — ‘Gosto mais d’aquelle discurso (o do sr. Carlos da Silva), que dos seus escriptos.’ — Mas creio que o sr. Urbano já em tempo escreveu o mesmo que eu tenho escripto agora. — ‘Não, porque eu pugnei sempre pela liberdade dos povos, mas não pela independência d’Angola’ — Logo, o sr. Urbano, como europeu, seguiu sempre a política do seu paiz, e eu como africano também trato do que mais convém a minha terra (RIBEIRO, 2012, p. 368).

Urbano de Castro foi um liberal monárquico. Seu discurso colonialista, por vezes, bastante retórico e sua filiação política e ideológica refletiam a realidade por meio da estrutura de convenções coloniais do império português. Inaugurou o periodismo de protesto, por meio da crítica colonial. Em linhas gerais, como principal redator dos seus periódicos — A Civilização da África Portuguesa (1867–1869) e A União Áfrico-portugueza (1882) —, fez uso da imprensa como um verdadeiro instrumento em prol da conquista colonial. Seus artigos influenciaram e pressionaram politicamente e em conjunto com o grupo social dos comerciantes, para a manutenção da política liberal, o avanço da expansão portuguesa e a extensão da soberania metropolitana por meio de guerras e espoliações. Defendia publicamente, tendo por base a experiência dos colonos americanos, o autogoverno. “O estacionamento de Angola tem por causa à falta de instrução pública, que o é da falta de riqueza, e durará, enquanto não lhe for dado o necessário self-governement”19. Quanto às suas ideias sobre as diferenças raciais, dizia que a imprensa tinha em África como missão reconciliar as raças, nessa província tão portuguesa quanto a da Europa. Ele acreditava que deveria haver reformas para a garantia dos direitos individuais e sociais, reciprocidade de serviços e o respeito mútuo entre os “autóctones” e colonos. “É um africano, 19 Urbano de Castro. A União Áfrico-portugueza, 7 de maio de 1882. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais, A-1, n. 6.

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26 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) que escreve estas linhas que vão lêr-se [...]”20. “[...] mas este, em vez de pregar o ódio aos europeus, proclama o que proclamar-se: a fraterna amizade entre esses e os africanos”21. Suas posições políticas e ideológicas a respeito das questões raciais alimentavam os sentimentos de solidariedade com os filhos do país, ao mesmo tempo em que refutava os conflitos dessa natureza. Em meio a esses conflitos de ordem racial, Portugal ainda precisava assegurar os seus domínios e o poder da administração colonial. E as bases para a exploração comercial, para o desenvolvimento agrícola, a partir de uma perspectiva conjuntural mais ampla, passavam pelos meios de educar e aportuguesar a raça preta, “será com ela e por ela, que poderá levar, se é possível, num futuro mais ou menos remoto, este país ao grêmio da civilização”22. Embora essa posição persistisse como um ideário político, a mesma foi produzida no contexto das políticas para a erradicação do trabalho forçado, e, agora com o processo imigratório em curso e a presença do elemento branco cada vez mais consistente, os filhos do país assumiram a pauta e passaram a cobrar do governo. E até por desgraça o governo-geral não tem querido nomear os filhos do país para figurar nessas comissões engendradas para descobrir certos roubos, por que tem-se preferido arrumar-se o negócio em família para livrar-se de certas reputações.23

O historiador Marcelo Bitencourt (1999) observa que, pelo menos até pouco mais da metade do século XIX, os lugares importantes na administração pública de Angola, com incidência para os postos da estrutura intermediária do aparelho de Estado, foram exercidos por membros das principais famílias da terra, ou seja, pelas aristocracias urbanas de origem local e por europeus há muito radicados na colônia e possuidores de farta descendência. Outro tanto aconteceu nos corpos de exército, e, talvez, aí mais do que em qualquer outra estrutura. 20 Urbano de Castro. Luanda, 06 de dezembro 1866. A Civilização da África Portuguesa. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Monografias, cota 5150. 21 Ib.Idem. 22 Relatório do Governo Geral da Província de Angola. Sebastião Lopes de Calheiros e Menezes. 1861. Lisboa, Imprensa Nacional, 1867, p. 68. 23 José de Fontes Pereira, “Paralelo”. O Echo de Angola, Luanda, 12 nov. 1881. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais J. 4586 V.

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Nesse sentido, mais do que o registro dos acontecimentos, procuramos interpretar a imprensa como “ingrediente” do acontecimento (DARTON; ROCHE, 1996), como força ativa nesse processo social. Arantes Braga, filho do país, áfrico-português24, foi editor d’O Pharol do Povo, um jornal essencialmente republicano, “verdadeiramente africano”25 e de ideias independentistas, segundo suas afirmações. Esse impresso circulou entre 1883 e 1885, teve curta duração, assim como a maioria dos periódicos oitocentista em Angola, com exceção d’O Mercantil (1870–1891, 1896–1897). Tinha a sua própria tipografia, o que revela uma certa autonomia financeira, e correspondentes no interior, nas seguintes regiões: Ambriz, Zenza do Golungo, Massangano, Barra do Dande, Alto Dande, Benguela-Velha e Novo Redondo. Quanto ao seu editor, responsável pela maioria dos artigos, João da Ressurreição Arantes Braga, um mestiço filho de um funcionário português, além do seu próprio jornal, foi colaborador d’O Echo de Angola (1881–1882). Provocar a reunião dos elementos da nova renascença intelectual africana — com o fim de desbravar a natural rudeza desta raça — quebrar-lhes a cadeia da escravidão a que estão habituados, e infiltrando na alma o amor a liberdade — é o fim do Pharol do Povo.26

N’O Pharol do Povo, encontramos artigos de personalidades importantes do cenário político da imprensa angolana. Contava com a colaboração do Alfredo Mântua, redator e proprietário do jornal A Verdade, cofundador do periódico A Civilização da África Portuguesa, redator d’O Mercantil e sócio fundador da Sociedade de Geografia de Angola, assim como do decano José de Fontes Pereira. Em 1881, Arantes Braga foi acusado pelo crime de injúria, cuja sentença em primeira instância o condenara a cinco anos de suspensão dos direitos políticos, que, por meio de acórdão, foi comutada para quarenta dias de prisão.27 Acreditamos que essa condenação esteja ligada à sua verve crítica e provocadora. 24 Essa dupla identidade aparece na primeira edição d’O Pharol do Povo. 16 de março de 1883. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais. A. 1, no 1 (10 fev. 1883) — a. 3, n. 132. 25 Expressão presente no editorial da primeira edição d’O Pharol do Povo. Idem. 26 Ib.Idem. 27 Informação presente na seção Noticiário do Jornal de Loanda, 6 de outubro de 1881. 1896 — O Decreto de 26 de novembro estabelecia a punição como crime de abuso de liberdade de imprensa a todos os que se cometerem com publicidade,

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28 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) Em sua primeira edição, num editorial extenso que cobria toda a primeira página, O Pharol do Povo afirmava que somente um jornal verdadeiramente africano poderia representar a África na Europa, por meio dos gênios dos povos que habitam o continente africano. Argumentava que as colônias tinham o direito de se emancipar, que a emancipação era o destino dessas áreas colonizadas, no momento em que estas adquirissem forças e criassem condições para conspirações locais e, mesmo não logrando sucesso, possibilitaria dar unidade ao povo, criando as bases da personalidade da futura nação. “As colônias se emancipam quando tem capacidade de nações independente, ou porque a metrópole falte os meios para poder dominá-la.”28 Arantes Braga, por meio d’O Pharol, queria demonstrar aos europeus a grandeza moral e intelectual dos africanos, representada nos filhos do país. Sua luta política no plano social consistia em despertar no africano, cuja consciência era infantil, segundo suas ideias evolucionistas, sentimentos espontâneos, ainda que vagos, indecisos e nebulosos, o amor ao seu país e, por consequência, a sua liberdade.29 Essa disseminação de um nacionalismo30 nominal foi capaz de fazer uma mobilização relativamente importante nos espaços urbanos, o que pode ser constatado nas cartas e correspondências dos leitores e comerciantes. Nesse cenário de discussão entre as potências imperialistas sobre a ocupação e a fixação de limites, um ano antes do início dos preparativos da Conferência de Berlim, a invocação do pertencimento de Angola a Portugal por direito histórico foi fortemente contestada pelos filhos do país, que contra-argumentavam que o domínio colonial por qualquer meio de impressão, ou estampagem, periódica ou não periódica, independentemente do tamanho. 1898 — O Decreto de 11 de agosto estabelecia que todos os crimes de abuso de liberdade de imprensa seriam julgados em processo de polícia correcional, qualquer que fosse a pena aplicável. 28 O Pharol do Povo. 16 de março de 1883. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais. A. 1, n. 1 (10 de fevereiro de 1883) — a. 3, n. 132. 29 Ib.Idem. 30 “Comunidades imaginadas” é um conceito criado por Benedict Anderson. Para esse autor, a Nação é um exemplo de comunidade socialmente construída, imaginada por pessoas que percebem a si próprias como parte de um grupo, o seu nacionalismo é cultural, mas também é de construção identitária, uma identidade que se constrói em oposição a outra. No caso angolano, porém, temos uma série de nuances e contradições, não identificamos uma oposição objetiva aos portugueses defensores do domínio metropolitano. Era corrente, nas narrativas dos filhos do país, evocarem vários elementos comuns de um passado cultural compartilhado, entre portugueses e africanos.

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não conseguiu consolidar o progresso material e civilizacional nessa região, conforme prometera. Quando a Conferência foi realizada, José de Fontes Pereira havia criticado e denunciado o fato de nenhum Estado africano, nomeadamente o Reino do Kongo, ter sido convidado. Em A postos patriotas!, Arantes Braga, mais uma vez, incitava a população para uma tomada de consciência para um processo de independência por meio de um levante popular. “E o povo deve emancipar-se com a extinção dos tiranos — passando a sua autoridade para uma assembleia livremente eleita pelo sufrágio universal, recebendo as instruções dos seus eleitores.”31 Na esteira da efervescência das ideias republicanas, houve uma explosão de novos periódicos, a maioria era contrário à monarquia e lutava pela instalação do republicanismo em Portugal. Arantes Braga acreditava num futuro promissor com os avanços das ideias republicanas. Assim como os demais filhos do país, esse periodista empenhou-se para que a administração de Angola pudesse ser associada ou ficar sob a tutela de um outro país, verdadeiramente desenvolvido, uma vez que Portugal civilizava o povo africano “com azorrague e palmatória”, achando que eles “são idiotas”, que não conhecem os seus direitos. Lego engano, dizia Arantes Braga, o povo africano não era tão rude quanto imaginavam, “[...] creia que é inteligente, e que apenas lhe falta quem o dirija [...]”.32 O discurso de Arantes Braga apresentava críticas propositivas, levava em consideração nas suas análises a situação concreta da província (capitais, créditos, administração pública, políticas sociais), apontando para reformas e desenvolvimento econômico autônomo. No artigo “Contrastes”33, O Pharol deixava claro que a insatisfação dos filhos do país era com o sistema colonial português, eminentemente com os decréscimos dos recursos necessários para o desenvolvimento da colônia. Apontando para a década de 1860, demonstrava um saudosismo com os anos de 1864 e 1865, quando as receitas (591:402$000) superavam as despesas (419:298$268), numa terra de terrenos incultos com um grande potencial agrícola, 31 O Pharol do Povo, 9 de março de 1883. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais. A. 1, n. 1 (10 de fevereiro de 1883) — a. 3, n. 132. 32 Ib.Idem. 33 O Pharol do Povo, 20 de abril 1883. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais. A. 1, n. 1 (10 de fevereiro de 1883) — a. 3, n. 132.

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30 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) o que poderia conduzi-la a um novo Brasil. Portugal, porém, alheio a tudo em sua autoridade despótica, com o monopólio do comércio, obrigava a população a um abastecimento com produtos ruins, com preços altos, “[...] a favor de meia dúzia de comerciantes da praça de Lisboa”.34 O artigo do filho do país João Ignácio de Pinho, publicado na primeira edição35 d’O Pharol do Povo, sob o título “Não nos entenderam!”, expressa muito bem a nossa tese sobre a raça como elemento mediador das tensões políticas. De início, contra-argumentava que O Pharol do Povo não pregava o ódio contra a raça, contra os brancos portugueses; muito pelo contrário, era dos próprios portugueses, com raríssima exceção, observava, que nasciam as “[...] consequências de que nós somos as vítimas”36. Afirmava que “O Pharol do Povo não veio estabelecer a odiosa questão de raças, veio acabar com ela, cortando pela raiz o mal de que se servem nos seus argumentos, querendo ter a primazia e a superioridade nos filhos do país”.37 A década de 1880 mostrou-se bastante tensa no tocante às relações raciais entre os filhos do país e os brancos recém-chegados, o que provocou um recrudescimento do racismo. Em tom irônico, João Ignácio exclamava: Agora vejamos a nossa ingratidão. Somos ingratos por dizermos que os filhos do país, são preteridos pelos europeus em tudo e por tudo? Somos ingratos por pensarmos na independência desta província, que as leis portuguesas e o direito público internacional das gentes nos garante?

Os filhos do país sentiam-se desterrados em sua própria terra. João Inácio, nesse artigo, denunciava também a falta de investimentos para a instrução pública; a ausência dos princípios de igualdade presentes na constituição monárquica; às injustiças, uma vez que os magistrados só favoreciam os “grandes”; a falta de liberdade de imprensa; os castigos corporais cometidos pela polícia, quando os filhos do país eram presos; e, dentre essas denúncias, mais uma de 34 O Pharol do Povo, 16 de março de 1883. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais. A. 1, n. 1 (10 de fevereiro de 1883) — a. 3, n. 132. 35 Ib.Idem. 36 Ib.Idem. 37 Ib.Idem.

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cunho racial, a de que todos os empregos públicos de primeira e segunda ordem, com rara exceção, eram ocupados pelos europeus. A ideia de emancipação, nesse período de políticas liberais, era recorrente, principalmente ao longo das décadas depois da autorização metropolitana para a instalação da imprensa. Até mesmo personalidades e setores de extração portuguesa eram favoráveis. O artigo denominado “Colônias”, publicado em 1871, de autoria de um correspondente do jornal (O Mercantil?), e reeditado em duas edições d’O Pharol do Povo38, já aventava sobre o futuro da política colonial. Considerava o processo da abolição, até então em curso, injustificável, uma vez que aniquilava o comércio entre Portugal e as suas possessões africanas. Sua posição era justificada pela balança comercial de 1868, que possibilitou acréscimos na receita metropolitana, conduzido pelo projeto colonial do ministro do ultramar Pereira Miranda, sucessor do Sá da Bandeira (principal representante da política colonial portuguesa no ultramar). Defendia uma colonização livre, uma emancipação colonial “[...] preparada com amor e ensino [...]”39, para evitar processos violentos, vide Estados Unidos e Inglaterra. Seu lema era “[...] colonizar para emancipar [...]”40, reconhecia que o progresso conduziria inevitavelmente para a emancipação, dada as relações históricas e os compromissos estabelecidos. Esse artigo corroborava a posição editorial d’O Pharol do Povo, que defendia a descentralização administrativa da colônia. Arantes Braga era partidário das ideias do estadista inglês John Russel41 (1792–1878), que defendia que, no futuro, as colônias gozariam da mais absoluta liberdade comercial, salientando que as mesmas não poderiam conceder privilégios, para não causar prejuízos às nações. O panfleto de 1874, de que por ora reproduzimos apenas um trecho, apelava para a luta armada e a independência, e circulou 38 O Pharol do Povo, 20 de abril de 1883. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais. A. 1, n. 1 (10 de fevereiro de 1883) — a. 3, n. 132. 39 Ib.Idem. 40 Ib.Idem. 41 Sobre a expansão da soberania portuguesa, Russel afirmou para o conde do Lavradio, embaixador português na Inglaterra, em 1860: “Os interesses de Portugal seriam muito mais bem servidos pelo desenvolvimento dos recursos dos vastos territórios que o país já possui em África do que pela tentativa de estender uma soberania estéril a futuras extensões de território nesse continente, que só poderiam ser adquiridas pela violência e pelo derramamento de sangue.” (PELISSIER, 2016, p. 89).

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32 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) por Luanda sob o pseudônimo de Dom Ferrabraz Rei d’Alexandria. O historiador Alberto Oliveira Pinto observa que, por trás do pseudônimo, poderia estar João da Ressurreição Arantes Braga, José de Fontes Pereira ou até mesmo Inocêncio Matoso e Câmara. O panfleto já demonstrava uma consciência da marginalização dos negros e dos mestiços. Essa provocação pública surgiu em meio às medidas graduais de abolição42 da escravatura, no mandato do governador José Baptista de Andrade. Angolenses! Pegue em armas para libertades a pátria das nossas mães; pois que a emancipação dos escravos fraqueanos uma boa ocasião... quebrai o jugo e os grilhões que vos prendem há 4 séculos... imitai a grande América e o Brasil, Lembrai que os empregos tudo é só para os portugueses, para nós nada. Vede os nossos campos arrazados, a nossa riqueza aniquilada, as nossas irmãs prostituídas, os nossos concelhos do interior despovoados [...] A cor preta e parda é considerada como uma palha movida pelo vento. Não somos chamadas para nada por que entende o governo que nós somos escravos (DIAS, 1984, p. 83).

O Arauto Africano, cujo proprietário e redator principal era o jornalista Carlos da Silva, tinha a sua própria tipografia e apresentava-se como mais um na fileira do periodismo africano, com a árdua tarefa de pugnar-se pelos interesses do país, “[...] hoje mais do que nunca se torna necessário mostrarmos ao mundo que também temos crença e que sabemos ser humildes, altivos ou arrogantes, conforme as necessidades da ocasião”43. Sobre essa questão, o Arauto Africano dizia que, naquele momento, tornava-se necessária a União luso-africana e “[...] que acabemos com esses preconceitos todos, que de há muito deviam ter deixado de existir, para nos tornarmos bons irmãos e tratarmos do bem comum”44. Essa União se justificava 42 O primeiro decreto de 10 de dezembro de 1836, que objetivava tornar mais eficaz a total abolição do desumano e criminoso tráfico da escravatura, conforme consta no documento, proibia a exportação de escravos das colônias portuguesas para além do Atlântico. Em 28 de abril de 1858, foi publicado o segundo decreto que previa, dentro de vinte anos, a partir dessa data, a liberdade dos escravos da colônia. Em 25 de fevereiro de 1869, em mais um decreto, foram declarados libertos todos os indivíduos dos dois sexos, que se achassem na condição de escravos, sendo obrigados a trabalhar por um pequeno salário para as pessoas que anteriormente pertenciam. Por fim, em 28 de abril de 1875, extinguiu-se a servidão dos libertos, mas estes ficariam sob a tutela pública até 29 de abril de 1878, conforme a previsão do decreto de 1858. 43 Arauto Africano, 27 de março 1889. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais, J. 3148//6 M. 44 Ib.Idem.

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também devido ao acontecido na região vizinha, no Zaire (Congo), objeto de domínio privado (Rei Leopoldo). O jornal dizia não querer que os escândalos acontecidos no Zaire se repetissem em Angola. O Arauto acreditava também que, com a “União”, poder-se-ia evitar e fugir do que acontecia no Brasil, o ódio de raças. Por fim, dizia que as queixas contra a metrópole eram justas, mas que não se deveria usar de insultos. Dizia defender os interesses comuns de todos, tanto dos africanos quanto dos europeus, procurando formar a união dos filhos do país, formando uma liga, “[...] para que mutuamente nos protejamos [...]”45. Essa solidariedade estava evidente nos escritos, nas narrativas, nas letras, assim como nos momentos mais dolorosos da vida pessoal de um filho do país. No dia 25 de abril de 1889, José de Fontes Pereira agradeceu ao amigo Carlos da Silva pela lembrança de mandar celebrar uma missa pelo descano eterno do seu filho46 Manoel, e também pela sua presença no referido ato religioso, o que considerou como uma grande prova de amizade. As condições da morte, José de Fontes Pereira relata em carta enviada ao governador Guilherme Augusto de Brito Campello, na qual o acusa indiretamente pelo falecimento do seu filho. O ajudante de campo do governador espancou o filho de José de Fontes Pereira com um cacete, o fato se dera “[...] quando aquele infeliz lhe apresentou umas contas para legalizar, tendo de saltar por uma janela para não ser assassinado por aquele ‘trug’ por lhe ter fechado a porta!”47. Diante do ocorrido, o governador mandou que o ajudante ficasse em reclusão por seis dias, porém, no segundo dia, o mesmo já se encontrava solto, o que causou tamanho medo e incômodo à vítima, a ponto de ter delírios à noite, vindo a falecer no dia 13 de abril de 1889. Enfim, para o jornalista, se o governador tivesse mantido o castigo correcional, o seu filho não teria se impressionado (sentido medo) tanto com a soltura a ponto de adoecer e falecer. O Desastre — órgão político-noticioso, do editor e proprietário Mamede de Sant’Anna e Palma, que foi chefe de Calungo, foi lançado em 30 de setembro de 1889, era publicado quinzenalmente e apresentava uma feição gráfica modesta, demonstrando ser mais um jornal de feição pessoal, de opinião, que noticioso. Os custos da impressão eram superiores às receitas, informava que só mantinha 45 Ib.Idem. 46 Ib.Idem. 47 Ib.Idem.

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34 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) as publicações do periódico muito mais por força de vontade que por questões monetárias. Por não possuir sua própria tipografia, O Desastre era impresso na tipografia do jornal Arauto Africano, sendo assim, por vezes, atrasava sua publicação. Tinha apenas três colunas, dividindo-se entre o editorial, a seção “Comunicados” e pouquíssimos anúncios. Em algumas edições, não aparecia sequer um único anúncio. Mamede foi um político experiente. Antes de fundar o periódico, pediu demissão do seu cargo de funcionário público. “Somos pela República”, afirmava, o partido republicano era o único caminho para se alcançarem a justiça e fraternidade em Angola. “Unamo-nos todos, extinga-se no nosso grêmio o chamado ódio de raça, que não deve existir hoje em face das doutrinas do século que atravessamos; e só assim poderemos ver Angola progredindo mais.”48 Mamede ainda acreditava na parceria com Portugal, afirmava que Angola prosperava, principalmente em Luanda, tomava como exemplo os caminhos de ferro, o encanamento das águas do rio Bengo, a instalação de cabos submarinos, mas salientava que a mesma deveria ser olhada com mais cuidado e interesse, “[...] principalmente hoje, que os ingleses nos querem possuir”49. Com o triunfo do regime republicano no Brasil, as esperanças dos filhos do país, desses republicanos africanos, aumentaram. Sessenta dias após a Proclamação da República no Brasil, no artigo “Triunfo da República no Brasil”, Mamede atribuía a mudança de regime brasileiro à vontade popular que sacrificaram “[...] fortunas e vidas, até ver realizadas as suas justas aspirações”50. “Esperamos a sorte de Portugal e, consequentemente, a das colônias”51. A maioria da imprensa desse período era republicana, uma vez que a monarquia miseravelmente nos abandonou, como afirmava o periódico Propaganda Colonial52, do então vereador Arsênio de Carpo. Esses periodistas tinham plena consciência da força dos periódicos nos processos eleitorais. Mais uma vez, denunciavam os escândalos e os aviltantes atos que se praticavam no tocante à 48 O Desastre, 20 de setembro 1889. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais, J. 1640//41 V. 49 Ib.Idem. 50 O Desastre, 15 de janeiro de 1890. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais, J. 1640//41 V. 51 Ib.Idem. 52 Propaganda Colonial, outubro de 1896. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais. Cota J. 965//39 P.

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compra de votos. Essa prática possibilitava a eleição de indivíduos que desconheciam a realidade do país e que, ainda que a conhecessem, seriam incapazes de representar os angolenses nas cortes, quer seja por conveniência política, quer seja por insuficiência de dotes intelectuais. Essas críticas foram apresentadas no artigo “As eleições em Angola”. Assim como os filhos do país, já mencionados, Mamede acreditava na união entre os europeus e os africanos, de todos os que amavam o bem-estar de Angola e a sua transformação. Os cidadãos eleitores eram quase todos brancos ou mestiços, uma vez que somente estes, sendo os mestiços em menor número, preenchiam as condições requeridas para votar (MARQUES, 1998). Notamos que, ao longo do processo histórico oitocentista, passou a existir uma “tradição” de votar em deputados de origem metropolitana, desde 1840 todos os deputados eleitos tinham uma origem portuguesa. Os candidatos a deputado eram apontados previamente pelo governo da metrópole, e as eleições em Angola eram marcadas pelo desinteresse e pelas acusações de fraudes fraudes (MARZANO, 2016). Dessa forma, a afirmação da identidade angolense consistia em concentrar esforços contra os apadrinhamentos que os ex-governadores-gerais, militares e até mesmo do Conselho Ultramarino faziam para eleger os seus candidatos. Depreende-se que a “união entre europeus e africanos” não era um discurso contraditório, mas tão somente que se deveria priorizar os angolenses em detrimento daqueles que eram fiéis incondicionalmente a Portugal. Os intelectuais filhos do país se constituíram num um bloco relativamente homogêneo, alguns, principalmente do interior, “[...] embora continuasse a ser profundamente influenciado pelos ideias liberais e republicanos [...]” (DIAS, 1984, p. 87), na medida em que foram aumentando às pressões coloniais, a unidade desse grupo mostrava-se cada vez mais desintegrada, por vezes, condicionada por “pequenas rivalidades e vaidades pessoais” (DIAS, 1984, p. 87). Esses periodistas selecionados nesta pesquisa lutavam em defesa de duas identidades políticas, angolana e africana, no sentido mais restrito. Nos momentos dos processos eleitorais, bastante turbulentos, segundo a historiadora Jill Dias (1984, p. 88), “[...] tanto a nível local como nacional, eram aproveitados como oportunidades para a articulação das queixas dos crioulos e para a afirmação do sentimento patriótico ‘angolano”. A referida historiadora afirma ainda que a situação tinha muito mais a ver com diferenças raciais

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36 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) e sociais internas, que por sua vez se interligavam com a clivagem sociorracial e cultural existente entre as comunidades crioulas do litoral e do interior. As questões de ordem eminentemente racial nem sempre eram atribuídas à administração metropolitana. Tomamos como exemplo um fato de ampla repercussão social: a exoneração em massa dos empregados, todos filhos do país, da Junta da Fazenda. Esse fato foi amplamente noticiado n’O Mercantil, O Futuro de Angola e em O Correio de Loanda, sendo caracterizado como uma prática racista, por serem chamados de indolentes e estúpidos pelo superior hierárquico Alexandre Severo Coelho Fortes. Para Mamede Sant’Anna e Palma, os funcionários pensavam que tal prática não passava de meias-palavras, achando que Coelho Fortes era um daqueles a quem podemos atribuir o provérbio: “o diabo não é tão feio como se lhe pinta”. Ledo engano, dizia Mamede, Coelho Fortes era um malvado, de uma monstruosidade sem igual. Há tempos, de forma maquiavélica, que mandava ofícios para o ministério, “[...] fingindo propor este e aquele para lhes agradar e entretê-lo nos respectivos lugares”53. Enfim, para Mamede, Coelho Fortes já tinha experiências anteriores com essas formas violentas nas relações interpessoais. Em tom moderado, Mamede concluía que a culpa não deveria recair sobre o governo metropolitano, mas este deveria resolver tal injustiça. [...] porque vivendo ele muitas milhas afastado, desconhece completamente o que aqui se passa nas repartições públicas, salvo quando lhe façam saber. A culpa é, sim, de Alexandre Severo Coelho Fortes que instou sempre com o governo em confidências pela expulsão dos antigos empregados da extinta junta da fazenda, pedindo a nomeação total dos empregados do reino.54

Um segundo fato, mais mobilizador que o primeiro, envolvia o deputado português Sebastião de Souza Dantas Baracho. Esse acontecimento foi amplamente debatido nos jornais, foram coletados onze artigos que criticavam a postura do deputado e publicados numa obra coletiva e anônima pelos filhos do país, sob título Voz d’Angola clamando no deserto — oferecida aos amigos da verdade pelos naturais. Em discurso pronunciado na Câmara dos Deputados, em Lisboa, no dia 7 de fevereiro de 1893, o deputado 53 O Desastre, de 11 de julho de 1890. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais, J. 1640//41 V. 54 Ib.Idem.

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em questão afirmara que não deveria ser permitido o ingresso de pretos e mestiços nos cargos públicos, porque poderia provocar o rebaixamento da raça “superior”, ao misturar raças antagônicas, uma vez que os “vícios dos indígenas” resultariam numa “promiscuidade inconcebível”. Na edição d’O Desastre, de 7 de maio de 1893, Mamede de Sant’Anna e Palma criticou de forma contundente o sr. Dantas Baralho. O discurso provocador foi realizado num lugar bastante simbólico, em pleno parlamento português, no seio da representação nacional da nação portuguesa. Mamede mostrou-se indignado não só com a postura antipolítica, insensata, insultante e indecente do tenente-coronel e deputado, mas também com a falta de um contradiscurso nacionalista. O Sr. Baracho disse o que quis dos filhos das colônias, e nenhum representante dela no parlamento se levantou para repelir as frases inconvenientes e sujas desse homem, qual brutamontes. Nenhum, a não ser o ex-ministro, Sr. Ferreira do Amaral! E é para isso que as colônias elegem deputados!55

Mostrou-se também indignado com a falta de reação dos políticos locais. Depois de tamanho insulto, dizia, nada disseram o sr. Joaquim Mattoso da Câmara e, na imprensa, nenhuma palavra dos senhores Carlos de Mello, Carlos Tavares, Carlos Vasconcellos dentre outros africanos ilustrados e talentosos. Em seu artigo n’O Desastre, Mamede, destacou partes do discurso do Baracho e refutou ponto por ponto. Respondendo que o preto trabalha muito, quer seja no interior, quer seja nas repartições e obras públicas, apesar de mal pago. Sobre as misturas de raças, o editor d’O Desastre afirmava que os pretos e os pardos mostravam melhor aptidão e prática de serviço nas repartições públicas. Quanto à inteligência dos africanos, apoiando-se nos trabalhos do Balsemão56, esclarecia que os indivíduos da raça preta em nada eram inferiores aos da raça branca, “[...] não o manifestam por vezes por que não são educados, e na metrópole lhe sucede o mesmo com as classes que o não são”57. Nesse artigo, Mamede de Sant’Anna demonstrava que refutar os insultos 55 O Desastre, de 7 de maio de 1893. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais, J. 1640//41 V. 56 Eduardo Augusto de Sá Nogueira Pinto de Balsemão (1837–1902) foi secretário do governo-geral da província de Angola e autor de vários trabalhos, dentre eles: A Guerra dos Dembos e História Resumida do Governo do Conselheiro, Francisco Antonio Gonçalves Cardoso, contra-almirante da guarda real. 57 O Desastre, de 7 de maio de 1893. Op.cit.

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38 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) racistas, em meio aos conflitos com a metrópole, era defender os interesses da “nação” angolana. E, ainda, quando Dantas Baracho afirmara que o preto não deveria ter foro de cidadão, porque era indolente, bêbado e ladrão; mais do que uma posição racista pontual, expressava o racismo estruturado no sistema colonial. Do ponto de vista da política colonial, o historiador e presidente da Sociedade de Geografia Comercial do Porto, fundada em julho de 1880, José Pedro de O. Martins (1845–1894), mais conhecido como Oliveira Martins, teve “[...] uma influência profunda e duradoura na ideologia e na política colonial portuguesa [...]” (ALEXANDRE, 1996), por meio de suas afirmações “científicas” de que os negros eram biologicamente inferiores e, dada essa suposta hierarquia racial, os africanos deveriam ser tutelados e sujeitos ao trabalho forçado. Nesse sentido, uma vez que a racialização permeava as relações políticas, para os filhos do país, a saída (ou uma possível possibilidade) só poderia ser por meio de um projeto político racial, talvez a única, para conter as propostas de exclusão do direito de cidadania que a constituição lhes garantia. Membros do parlamento português defendiam que, dado que os africanos eram “inerentemente preguiçosos”, eles não deveriam gozar da cidadania portuguesa. A nossa perspectiva de análise parte da compreensão do racismo como uma relação social, que se estrutura política e economicamente (BALIBAR; WALLERSTEIN, 2021). Raça “indolente”, “preguiçosa” e “rude” eram qualitativos, dentre outros, presentes nos mais diversos materiais impressos oitocentistas, de diferentes naturezas tipográficas, tais como, jornais, livros, relatórios, comunicações oficiais, romances, o que confirma o peso do racismo nas relações sociais na província. O preto geralmente é traiçoeiro, mentiroso, ladrão e bêbado, são bem morigerados e afeiçoados aos seus senhores, mas esses são tão raros como os bons sonetos. Todos são indolentes por hábito e sistema, mas as suas necessidades são muito limitadas e fáceis de satisfazer.58

Ao mesmo tempo que se fazia necessário tratar bem os indígenas e cumprir religiosamente o que lhes prometessem, a fim de ganhar afeição e continuar obtendo o seu auxílio, para não correr o risco de ficar sem a colônia, estas eram as recomendações aos colonos, 58 Quarenta e cinco dias em Angola. Apontamentos de Viagem. Porto: Typ. de Sebastião José Pereira, 1862, p. 9. Nesse pequeno opúsculo, o autor, desconhecido, documenta e aponta virtudes e erros da administração portuguesa na colônia.

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elaboradas pelo sr. Peres Abreu59, um conhecedor dos dilemas para se promover a prosperidade de Angola e idealizador do projeto de colonização para as décadas finais do século XIX. A “cordialidade” nas relações sociais era necessária, no século XIX, como bem observou António Manuel Hespanha, pois o domínio político português não se fazia pela conquista de manchas territoriais contínuas, mas pelo estabelecimento de redes de fortes (presídios), cada qual com uma zona de influência (HESPANHA, 2019). Sá da Bandeira, enquanto a maior expressão política nas relações da metrópole — colônia, reconhecia a existência desse racismo latente e prenunciava, em Angola, possíveis tensões sociais. A tirania exercida contra os indígenas e as injustiças praticadas contra eles, [sic] são um perigo permanente para o domínio português, e ao mesmo tempo para a segurança dos indivíduos de raça europeia que habitam nas colônias; pois que a recordação das injúrias sofridas no passado, e continuadas no presente tempo, suscitando o ódio, pode um dia, em ocasião oportuna, manifestar-se por atos de vingança.60

No relatório do governador Guilherme Augusto de Brito Capello, encontramos os seguintes relatos, dentre outros, com o mesmo tom preconceituoso, quando se referia ao baixo nível do desenvolvimento industrial nessa região: “Dos filhos da terra são poucos os que sujeitam a um trabalho assíduo, nem da índole deste povo, nem da educação e modo de pensar dos parentes se poderá esperar fazer deles bons operários.”61 Os relatórios forneciam subsídios para a administração metropolitana, orientações mais objetivas para as futuras políticas coloniais. Ao contrário do pensamento do governador, para os filhos do país, comportamentos culturais e morais poderiam ser remediados pela educação. Nesse mesmo período, José de Fontes Pereira disseminava suas ideias pelos interiores de 59 Bacharel pela Universidade de Coimbra, empregado na Direção da Companhia Real dos Caminhos de Ferro Portugueses e colaborador da Correspondência de Portugal. Autor do opúsculo Emigração e Colônias, publicado pela tipografia Lisboense em de 1873. 60 BANDEIRA, Marques de Sá da. A emancipação dos libertos. Carta dirigida ao excelentíssimo senhor Joaquim Guedes de Carvalho e Menezes, Presidente da Relação de Luanda. Lisboa: Imprensa Nacional, 1874, p. 9. 61 Relatórios dos governadores das províncias ultramarinas. Relatório do Governo Geral da Província de Angola — 1887. Ministério da Marinha e Ultramar, Lisboa, Imprensa Nacional, 1889, p. 45.

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40 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) Angola. “[...] iniciei uma propaganda separatista que aparece em quase todos os jornais que se tem publicado em Loanda, e continuo a trabalhar n’este propósito com o fim de conseguir um plebiscito de que possa resultar a Independência.”62 Mas quem era o povo, na visão dos filhos do país? No artigo “A Fome”, José de Fontes Pereira tecia críticas ao governador, refletindo que os povos dos Quillengues eram tão portugueses quanto o governador. O texto referia-se à resolução que o mandatário tornou pública, “pelo grande desejo que nutriu de castigar por este modo os povos de Quillengues pelo crime de receptarem os serviçais que não querem continuar a servir os seus senhores... ”63 Dessa forma, proibiu a exportação do milho, da farinha e do feijão para os mercados de Luanda, principalmente num período de estiagem. Fontes Pereira qualificou essa medida como desumana e infeliz, o que poderia provocar, nesses sujeitos, uma revolta social. Informava ainda que o chefe de Icolo e Bengo, com o fim de cumprir as ordens “despóticas do seu amo”, ampliou um pouco a resolução, por sua própria conta, fazendo retroceder as canoas que passavam por sua jurisdição que conduziam gêneros alimentícios para Luanda, a pretexto de serem tais mantimentos comprados pelos povos de Quillengues. Essa medida, tão perniciosa e bárbara, para os pretos de Quillengues, tinha outras intenções, segundo o periodista: E demais, não é reduzindo à fome as classes menos favorecida da fortuna, que o Sr. Governador geral há de reaver os escravos fugidos; é tirando da bainha a sua espada e marchando para os Quillengues com o poder das suas baionetas, que o poderá conseguir — se não o fizer, os povos serão esmagados pela fome, mas as vítimas baixarão à sepultura levando a cortesia de deixarem na terra os pretos de Quillengues prontos a livrar os seus irmãos dos ferros do cativeiro. 64

Essa defesa dos mais pobres não pode ser generalizada como uma ação política programática dos filhos do país. A maioria não se 62 Jornal O Desastre, citado por SILVA, Rosa Cruz e. O nacionalismo angolano, op. Cit., s/p. 63 José de Fontes Pereira. A Fome. O Pharol do Povo: folha republicana, 10 de março de 1883. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais. A-1, n. 5. 64 Ib.Idem.

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inquietava com as ofensivas militares portuguesas, como observa a historiadora Rosa Cruz (2000). Manifestavam-se como um grupo completamente à parte dos demais africanos que não haviam sido marcados pelo fenômeno da aculturação promovido pela colonização portuguesa. O Desastre usava a expressão “povo angolense”, termo que circulou amplamente na imprensa periódica nas décadas de 1870 e 1880. Fiéis aos padrões europeus de pensamento e valores, como afirma Jill Dias, os projetos dos filhos do país voltados para a massa dos africanos estavam focados na transformação dos seus modos de vida, para que se tornassem civilizados. Para tal, defendiam a existência de missões civilizadoras. Compreendemos que os filhos do país se manifestavam, por vezes, como um grupo completamente à parte dos demais africanos, porque acreditavam que a civilização aperfeiçoaria o preto intelectual, “corrigindo” moralmente a “rudeza da raça”; esses aspectos faziam parte do ponto de vista dos seus projetos de nação. Os filhos do país acreditavam bastante no potencial instrutivo, educador e civilizatório dos missionários. Alguns eram considerados mais africanos que europeus, dado seu empenho material, a exemplo do bispo D. Manoel de Santa Rita, que, segundo José de Fontes Pereira, contribuiu muito mais em dois anos do que os professores do governo nesses 57 anos de regime liberal. Esse filho do país fazia questão de manifestar publicamente esse tipo de homenagem pelos serviços prestados.65 O Pharol do Povo tinha um forte apelo popular, nesse período, era o que mais conclamava o povo para a luta, dizia que todo cidadão tinha a obrigação de lutar pela liberdade da sua pátria, como um bom filho que ama verdadeiramente o seu país. “União, povos africanos, união.”66 Conclusão No conjunto, a luta em rede dos filhos do país não pode ser resumida apenas ao objetivo de alcançar e manter o status privilegiado. Como uma ambição de toda a elite crioula, as clivagens raciais como resultado das políticas coloniais também devem ser 65 O Desastre, 15 de janeiro de 1890. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais, J. 1640//41 V. 66 O Pharol do Povo — folha republicana, 10 de março de 1883. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção Fundo Geral Jornais. A. 1, n. 1 (10 de fevereiro de 1883) — a. 3, n. 132.

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42 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) levadas em consideração. Os filhos do país, em relação ao domínio colonial metropolitano, não pensavam em termos de uma oposição irredutível entre os seus interesses e os da presença colonial, daí as ambivalências do projeto de nação. Acreditavam que a política colonial poderia ser reformada sob uma perspectiva africana. A imprensa foi o lócus por excelência para apresentar as fissuras e a incapacidade de Portugal de administrar a província promovendo o seu “desenvolvimento”. Suas posições foram condicionadas pelas diferentes dinâmicas históricas da política colonial, principalmente com o aguçamento do capitalismo comercial, colocando em xeque suas possibilidades de sobrevivência e os seus interesses políticos. Fontes pesquisadas: BALSEMÃO, Eduardo Augusto de Sá Nogueira Pinto de. Angola. História Resumida do Governo do Conselheiro, Francisco Antonio Gonçalves Cardoso, contra-almirante da guarda real. Lunda: Imprensa do Governo, 1871. Autores Angolanos. Voz de Angola Clamando no Deserto — oferecida aos amigos da verdade pelos naturais. Lisboa: Typographia, 1901. Neste trabalho, fizemos uso da edição fac-similar: Autores Angolanos. Voz de Angola Clamando no Deserto. Lisboa: Edições 70, Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1984. MENEZES, Joaquim Antonio de Carvalho e. Memória geográfica e política das possessões portuguezas n’Affrica Occidental, Que diz respeito aos reinos de Angola, Benguela, e suas dependências. Origem de sua decadência e atrasamento, suas conhecidas produções, e os meios que se devem applicar para o seu melhoramento, de que deve resultar mui grandes vantagens a monarquia. Lisboa: Tipografia Carvalhense, 1834. Relatório do Governo Geral da Província de Angola. Sebastião Lopes de Calheiros e Menezes. 1861. Lisboa, Imprensa Nacional, 1867. Relatórios dos governadores das províncias ultramarinas. Relatório do Governo Geral da Província de Angola — 1887. Ministério da Marinha e Ultramar, Lisboa, Imprensa Nacional, 1889.

Periódicos: A Civilização da África Portuguesa (1866–1869) O Mercantil (1870–1891;1896–1897) A União Áfrico-portugueza (1882–1883)

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História da África em Perspectiva: Ensino e Pesquisa 43 O Pharol do Povo (1883–1885) O Echo de Angola (1881–1882) Jornal de Luanda (1878–1882) Arauto Africano (1889–1890) O Desastre (1889–1890) Muen Exi (1889)

Referências CRUZ, Heloísa de Faria & PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador: conservas sobre história e imprensa. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, nº35, pp. 255–272, dez, 2007. DIAS, Jill. Novas identidades africanas em Angola no contexto do comércio atlântico. In. BASTOS, Cristina et al. Trânsitos coloniais — diálogos críticos luso-brasileiros. Campinas (SP): Editora Unicamp, 2007. FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil during the Era of the Slave Trade. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. FREUDENTHAL, Aída. Republicanismo em Angola: os “filhos do país” perante a Era Nova (1870–1912). São Paulo: Via Atlântica, n. 23, pp. 87–97, jun/2013. LOPO, Julio de Castro. Para a História do Jornalismo de Angola. Luanda: Museu de Angola, 1952. MARZANO, Andréa & BITTENCOURT, Marcelo. Contestação e nacionalismo em Angola. In: LIMONCIC, Flávio & MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (Orgs). A Experiência nacional: identidades e conceitos de nação na África, Ásia, Europa e nas Américas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. MARZANO, Andréa. Cruzes e Feitiços: identidades e trocas culturais nas práticas fúnebres em Angola. Belo Horizonte: Revista Varia História, Vol. 32, n. 59, pp. 471–504. NETO, Maria da Conceição. Ideologias, contradições e mistificações da colonização de Angola no século XX. Lusotopie, 1997. OLIVEIRA, Mário Antonio de. Luanda, “ilha” crioula. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1968.

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44 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) PÉLISSIER, René; WHEELER, Douglas. História de Angola. Lisboa: Tinta da China, 2016. PINTO, Alberto de Oliveira. História de Angola — da pré-história ao início do século XXI. 2º edição. Lisboa: Mercado de Letras Editores, 2017. SANTOS, Catarina Madeira. De “antigos conquistadores” a “angolenses”: a elite colonial de Luanda no contexto da cultura da Luzes, entre lugares de memória e conhecimento científico. Centro de História da Cultura: Cultura [Online], Vol. 24 | 2007, post online do dia 10 de outubro de 2013, consultado em 9 de dezembro de 2013. http://cultura.revues.org/898. SANTOS, Eduardo A. Estevam. Imprensa, raça e civilização: José de Fontes Pereira e o pensamento intelectual angolano no século XIX. Salvador: Revista Afro-Ásia, n. 61, pp. 118–157, 2020. SERRANO, Carlos. Angola. Nascimento de uma nação: um estudo sobre a construção da identidade nacional. Luanda: Kilombelombe, 2008.

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Ensino de História da África: Propostas de simultaneidades para repensar o contemporâneo Raissa Brescia dos Reis67 Taciana Almeida Garrido de Resende68

Introdução No tomo II de seu manual, África negra: história e civilizações, publicado pela primeira vez em 2008, o historiador congolês Elikia M’Bokolo discorre especificamente sobre os séculos XIX e XX. Não por acaso, inicia sua análise da política africana ao longo do século XIX com a afirmação: O século XIX foi, na maior parte da África, a ‘era das revoluções’, tanto no plano político como nos planos econômico e social. Se, no domínio econômico, as mutações foram em parte geradas por impulsos externos, as alterações políticas tiveram as suas forças motrizes essenciais na própria África (M’BOKOLO, 2011, p. 23).

De forma semelhante e demonstrando a longevidade das discussões em torno da escrita da História Contemporânea de um ponto de vista do protagonismo externo ao mundo europeu, Ali Mazrui, historiador queniano responsável pela organização do oitavo volume da coleção História Geral da África, afirma: [...] dado o caráter particular do século XX, século em que, pela primeira vez no curso da aventura humana, a economia e a política adquiriram uma dimensão verdadeiramente global, universal, a história da África 67 Professora adjunta de História da África — Universidade Federal do Rio de Janeiro. 68 Instituto Federal de Minas Gerais.

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46 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) contemporânea não pode ser compreendida plenamente senão quando inserida no contexto mais amplo da história mundial (MAZRUI, 2010, p. 7).

Esse trecho de M’Bokolo, que se refere diretamente à consagrada produção de Hobsbawn, e a afirmação de Mazrui sobre a necessidade do olhar global para a compreensão da história da África introduzem e dialogam com a discussão que trazemos neste texto a respeito da História Contemporânea tradicional/europeia, tal como é comumente ensinada na Educação Básica.69 As citações dos dois autores africanos tangenciam ainda discussões teóricas mais amplas que buscamos recuperar sobre a escrita da História e da modernidade europeia para, assim, pensar possibilidades de abordagens em sala de aula em um viés global e a partir da perspectiva africana. Como propõe Marina de Mello e Souza, o ensino de temas africanos é fundamental para vencermos os incômodos ainda presentes no ensino da história afro-brasileira em sala de aula, incômodos vindos de raízes racistas e de intolerâncias diversas presentes na sociedade brasileira. Ao lado da autora, entendemos como essencial o ensino das “características culturais e formas de organização social e política próprias [da África], os processos históricos tanto internos quanto pertinentes à sua relação com outros continentes, seja com as sociedades ocidentais, seja com as orientais”. (SOUZA, 2012, p. 22) Neste texto, buscamos dar ênfase às conexões africanas com o mundo contemporâneo como mais uma ferramenta para o cumprimento da Lei 10.639/2003. Nesse intuito, após a discussão teórica, sugerimos possibilidades e indicamos textos de apoio e acervos digitais onde os profissionais da educação possam buscar inspiração para suas aulas. Este capítulo, portanto, propõe-se a discutir a necessidade de repensar marcos cronológicos da História Contemporânea a partir de 69 Segundo Jean Chesneaux, em “Devemos fazer tábula rasa do passado? Sobre a história e os historiadores”, a divisão quadripartite de uma história dita universal é em si mesma um resultado da hegemonia europeia, marcadamente francesa, na formação de uma periodização legitimada acerca da disciplina. Para o autor, um resultado disso é que o conteúdo que delimita essas divisões do currículo em história é, longe de ser universal, profundamente europeu, com exceção do período da história contemporânea, que seria “a única que ultrapassa, bem ou mal, o marco europeu e deixa um lugar efetivo para os países de Ásia, África e América” (CHESNEAUX, 1995, p. 93).

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uma perspectiva crítica da História Global, da pedagogia decolonial e do ensino de História da África na Educação Básica, com ênfase no conceito de simultaneidade como ferramenta para a compreensão de estruturas de tempo que favoreçam o entendimento de experiências humanas em sua diversidade e em suas conexões. O texto está dividido em três partes. A primeira traça o percurso de lutas até a promulgação da Lei 10.639/2003, que introduz a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras, bem como de história da África no Brasil. Nesse primeiro momento, buscamos interlocução com os significados sobre educação que permearam as lutas por e a decisão pela entrada de novos conteúdos no Ensino Básico para abordar a discussão sobre a necessidade de descolonizar o currículo escolar de forma ampla e urgente. A segunda parte busca recuperar um debate construído no seio do campo dos Estudos Africanos e pós-coloniais sobre as dimensões da violência contidas na escrita da História, que alijou a experiência africana e de agentes não europeus, de modo geral, dos limites da História. Neste trecho, levantamos possíveis consequências de processo tanto para a disciplina, como um todo, quanto para o seu ensino, em particular. A última parte traz uma reflexão acerca do tempo histórico em sala de aula e sua relação com as identidades, sugestões de temas possíveis e indicações de bibliografia e acervos digitais que, a partir de uma concepção de simultaneidade de experiências históricas diversas, conecta a história africana a temas e conteúdos já comumente trabalhados em sala de aula, como a independência do Brasil, a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. Essas propostas temáticas partem de dois princípios que nos parecem fundamentais: o constante e necessário diálogo entre pesquisa acadêmica e ensino de História e a necessidade de descolonização dos currículos escolares como um todo, não apenas de inclusão forçada e/ou eventual de temas africanos como forma burocrática de cumprir a Lei. Este texto é, portanto, parte de um movimento mais amplo e dinâmico identificado por Nilma Lino Gomes que remonta à articulação entre as reflexões sobre a História, as questões colocadas pelos sujeitos organizados em movimentos sociais e as ações coletivas no campo educacional. O questionamento do currículo e a exigência de ações emancipatórias, aí incluídas as práticas pedagógicas educacionais, colocam escola e universidade unidas na

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48 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) crítica epistemológica do saber (GOMES, 2012b, p. 99). Quando se ensina a transgredir, como pede bell hooks, confrontar e transformar o currículo de modo a não reforçar ou reproduzir práticas de poder e de dominação e, mais do que isso, criar um conjunto de valores sociais justos e democráticos, a prática educacional também se torna um foco de resistência (HOOKS, 2017, pp. 25–36). Resistência que procuramos inscrever como uma contribuição para o ensino antirracista no Brasil, de compromisso político com a educação como prática de liberdade e de democracia e como ferramenta para um conhecimento histórico significativo. Educação, ensino de História da África e transgressão: uma genealogia de lutas Os currículos da educação básica vêm passando por sucessivas mudanças nas últimas décadas. Desde 2016, a reforma do Ensino Médio e a reformulação da BNCC mobilizaram professores e estudiosos da educação na discussão sobre os perigos e os impactos dessas modificações nos itinerários formativos e nos processos de escolarização dos adolescentes. Suscetíveis a entendimentos antagônicos e conflitantes dentro do espectro político, os debates sobre o currículo do Ensino Médio demonstram a existência de projetos educativos em disputa, sendo a área de Ciências Humanas, e a história afro-brasileira e da África em destaque, alvo preferencial de ataques sistemáticos de movimentos conservadores. O “novo” Ensino Médio, concretizado pela Lei 13.415/2017, e o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), de 2021, geraram debates nas instituições de ensino sobre as novas configurações do currículo e, por conseguinte, dos materiais didáticos. Para muitos, a extinção das componentes curriculares compromete a formação de estudantes, sobretudo daqueles vindos de escolas públicas, além de dificultar a implementação da obrigatoriedade. Assim, no novo cenário, a aplicação da Lei 10.639/2003, fio condutor deste trabalho, mantém-se como desafio e passa a ser atravessada por este cenário de mudanças. Preocupação constante de professores e de pesquisadores desde sua promulgação, em 2017, a reforma do Ensino Médio e o modo como o PNLD apresentou os conteúdos de história africana e afro-brasileira geraram desconforto. O Manifesto do III Fórum de Docentes de História da Rede Federal

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de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (2021) acerca do Programa Nacional do Livro e do Material Didático considerou que os livros “diluem a discussão sobre a história africana, a história afro-brasileira e a história indígena, dificultando colocar em pauta as leis 10.639/03 e 11.645/08”. Questão mais do que urgente no cenário brasileiro, a introdução da obrigatoriedade no texto da Lei, conquistada em 2003, contém genealogia longeva e perpassa discussões sobre racismo estrutural e o papel da educação na luta antirracista no Brasil. As discussões no presente apontam para a longa duração das disputas sobre o significado da educação e sua representação que permeiam o espaço público brasileiro, marcado pelo racismo institucionalizado. Não por acaso, a inclusão da história da África, dos africanos e de sua Diáspora nas salas de aula da educação básica no Brasil é uma reivindicação de longa data. Sobre os desdobramentos dessa luta ao longo do século XX, a tese de Jorgeval Andrade Borges, A vez da África? O ensino da história africana em escolas públicas da Bahia (2014), traz importante síntese. Segundo Borges, alguns marcos seriam importantes para esse relato, a começar pela criação do Teatro Experimental do Negro, em 1944, que realizou, em 1950, o I Congresso do Negro Brasileiro, no Rio de Janeiro, em que as pautas traziam a reivindicação da criação de institutos e de linhas de pesquisa dedicados a compreender a história do negro no Brasil e a promover meios para a mitigação das desigualdades. Desde a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1961, tributária dessas discussões vindas das décadas anteriores, vemos a repercussão do debate sobre o ensino e sua responsabilidade enquanto modificador social na condenação a qualquer tratamento desigual, bem como a todo preconceito de raça ou classe. Isso, todavia, não garantiu as bases de uma educação antirracista na prática (BORGES, 2014, pp. 106–109). A denúncia do espaço escolar como reprodutor de hierarquias e de desigualdades foi feita por intelectuais e militantes negros de forma mais contundente a partir da década de 1970 (PEREIRA, 2011; GOMES, 2012a). Ao trazerem para o centro do debate as ancoragens estruturais do racismo e suas consequências, essas figuras, junto ao eco mais amplo dos movimentos negros, chamaram o Estado a assumir a responsabilidade de promover uma educação de combate às desigualdades raciais por meio de políticas públicas.

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50 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) Abdias do Nascimento foi um dos expoentes dessa geração de autores negros da década de 1970 que denunciou a relação nefasta entre ensino e racismo no Brasil. No livro O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado, de 1978, o autor enfatiza o controle exercido pelo sistema educacional sobre a discriminação e critica a ausência do ensino de história da África e dos africanos. Segundo ele, a inexistência dessas histórias nos bancos escolares era mais um ritual de formalidade e ostentação da história europeia e estadunidense. Numa reflexão sobre passado e futuro, questiona: Se consciência é memória e futuro, quando e onde está a memória africana, parte inalienável da consciência brasileira? Onde e quando a História da África, o desenvolvimento de suas culturas e civilizações, as características do seu povo foram ou são ensinados nas escolas brasileiras?” (NASCIMENTO, 1978, p. 95).

Em sua fala durante o Segundo Festival Mundial de Artes e Cultura Negra e Africana (FESTAC’77), realizado na Nigéria, em 1977, Nascimento também tocou na questão educacional, ao dizer da ausência, no Brasil, do ensino da História africana ou dos africanos. Segundo o autor: “Quando ocorre a eventualidade de um curso referente a essas matérias, é no sentido de perpetuar os conceitos neocolonialistas e racistas sobre a África, e seus povos.” (NASCIMENTO, 1978, p. 154). Lélia Gonzalez, no mesmo sentido, identificou a educação como pilar estrutural na perpetuação do racismo brasileiro. Ao enfatizar as consequências dessas ausências de conteúdos sobre as histórias negras no Brasil em sala de aula, a autora aponta que, desde os livros didáticos até a postura de professores, realiza-se um processo de apagamento da identidade negra, a ponto de que uma criança “que continua seus estudos e por acaso chega ao ensino superior já não se reconhece mais como negra” (Apud RIOS; LIMA, 2020, p. 39). Graças a esse ressignificado e à politização da ideia de raça a partir de “um traço emancipatório e não inferiorizante” (GOMES, 2012a, p. 733)70, a discussão ganhou novo fôlego desde a década de 197071. 70 Para as ações do movimento negro por uma educação emancipatória no contexto das discussões sobre diversidade, desigualdades e educação, ver GOMES, 2012a. Disponível em https://www.scielo.br/j/es/a/wQQ8dbKRR3MNZDJKp5cfZ4M/?lang=pt&format=pdf Acesso em 5 de agosto de 2021. 71 Durante a abertura democrática, no final da década de 1980, essa bandeira foi novamente colocada em pauta, como se pode ver na Convenção Nacional do Negro

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Gonzalez esteve na linha de frente em um dos momentos-chave desse processo, quando foi uma das organizadoras e representantes do Movimentos Negro a participar de manifestações e debates por ocasião da Assembleia Constituinte, em 1987, um ano antes do centenário da abolição no Brasil. Em discurso realizado em Brasília para os deputados que se ocupavam da escrita da nova Constituição brasileira, dedicou-se à reivindicação de políticas públicas que orientassem a educação para a revisão de ausências históricas no currículo, marcado por um projeto nacional de embranquecimento. Nesse sentido, afirmou: [...] Não é com a mulher negra na prostituição; não é com o homem negro sendo preso todos os dias por uma polícia que o considera, antes de mais nada, um suspeito; não é com a discriminação no mercado de trabalho; não é com a apresentação distorcida e insignificante da imagem do negro nos meios de comunicação; não é com teorias e práticas pedagógicas que esquecem, que omitem a história da África e das populações negras e indígenas no nosso país; não é com isso que se vai construir uma nação (Apud RIOS; LIMA, 2020, p. 233).

Deve-se entender, portanto, a Lei 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade do ensino da história africana e afro-brasileira na educação básica, como uma resposta importante, ainda que tardia, à luta histórica de Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento e tantos outros militantes do Movimento Negro, que há décadas apontavam pela Constituinte, realizada em 1986, em Brasília. A adoção dos estudos afro-brasileiros e africanos foi uma de suas resoluções. Não por acaso, a Constituição Federal do Brasil, implementada no ano de comemoração do centenário da abolição, em 1988, primava pelo respeito à diversidade e pela necessidade de considerar, nos currículos escolares, a participação das diferentes culturas que formam a sociedade brasileira, principalmente na área de conhecimento da História. Essas tendências seriam confirmadas, em 1996, com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que determinou, em seu artigo 26, que “o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia” (BORGES, 2014, pp. 106–109; OLIVA, 2007, pp. 198–200). Importante salientar, por outro lado, que, embora aqui vejamos uma repercussão dessas discussões e pressões do Movimento Negro brasileiro, a inserção no texto do que seriam as três matrizes de uma cultura nacional apela a uma identidade nacional que pode acabar inviabilizando e invisibilizando a pauta original do artigo que, como nos lembra Márcia Guerra, nasce de uma reformulação que descaracteriza a proposta inicial da então senadora Benedita da Silva de implementar uma “reformulação do ensino de história do Brasil e a obrigatoriedade em todos os níveis educacionais da ‘História das populações negras do Brasil’” (PEREIRA, 2012, p. 58).

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52 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) para os efeitos dessas ausências na formação das identidades da sociedade brasileira. Na esteira dessas disputas, Katiúscia Ribeiro Pontes entende a lei como ferramenta essencial para a educação das relações étnico-raciais no país, fundamental para a reconstrução imagética da África, do diálogo antirracista e para a valorização da pluralidade de identidades (PONTES, 2017, p. 22). Ainda nesse cenário, a resolução n. 1, de 17 de junho de 2004, complementou a legislação ao estabelecer as Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de História e cultura afro-brasileira e africana, com relatoria da professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. Com isso, fortaleceram-se uma política educacional de Estado e estratégias pedagógicas para a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos na construção de uma nação democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e suas identidades valorizadas. É nesse sentido que as Diretrizes apresentam a Lei 10.639/2003 como parte de um conjunto de medidas reparatórias e afirmativas: Assim sendo, sistemas de ensino e estabelecimentos de diferentes níveis converterão as demandas dos afro-brasileiros em políticas públicas de Estado ou institucionais, ao tomarem decisões e iniciativas com vistas a reparações, reconhecimento e valorização da história e cultura dos afro-brasileiros, à constituição de programas de ações afirmativas, medidas estas coerentes com um projeto de escola, de educação, de formação de cidadãos que explicitamente se esbocem nas relações pedagógicas cotidianas. Medidas que, convém, sejam compartilhadas pelos sistemas de ensino, estabelecimentos, processos de formação de professores, comunidade, professores, alunos e seus pais (BRASILb, 2004, p. 13).

As Diretrizes reforçam a dimensão afirmativa da Lei ao apontarem que, com um passado escravista tão presente, a demanda da comunidade afro-brasileira é por reconhecimento, pela valorização, pela divulgação e pelo respeito à história africana pré-colonial. Ainda nesse sentido, destacam-se os processos históricos de resistência negra no Brasil, além das conquistas e experiências afrodescendentes na contemporaneidade, tanto individual quanto coletivamente (BRASILb, 2004, pp. 11–12). Junto a isso, propõe o texto, devem ser questionados em sala de aula os preconceitos que desqualificam

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pessoas negras e ressaltam estereótipos72. Assim, fruto dos debates aqui apontados, a Lei 10.638/2003 e suas Diretrizes representaram uma vitória na luta por uma educação retirada do papel de reprodutora de narrativas hegemônicas e fomentadora de mudanças sociais estruturais. Thiago Henrique Mota, em uma reflexão recente sobre o tema, chama a atenção para a importância de alargarmos a implementação dessa lei para além da História, de dimensionarmos as contribuições africanas e afro-brasileiras para todas as áreas do conhecimento e, assim, de repensarmos o currículo como um todo, em diferentes níveis da educação (MOTA, 2021). Especificamente no ensino de história no Brasil, seria necessário romper com os marcos da nacionalidade ancorados numa narrativa branca que permeia os conteúdos do país e do mundo. No ensino básico, o marco da nacionalidade segue sendo a colonização portuguesa como elemento de civilização. Aquilo a que se atribui a condição de História do Brasil foi, na verdade, a seleção de uma narrativa conduzida para legitimar os interesses das elites eurodescendentes do país, as elites brancas. Esse quadro homogêneo, cuidado e retocado com esmero pelas políticas educacionais e curriculares ao longo dos séculos, atualmente, tem apresentado rachaduras impostas pelas lutas populares que almejam o reconhecimento de outros povos e culturas que, literalmente, construíram o Brasil (MOTA, 2021, p. 16).

Os estudos de Nilma Gomes, que amparam o argumento do autor, defendem que tal proposta não depende de um simples acréscimo de conteúdos ao currículo, mas de uma nova forma de pensar os temas da educação de forma ampla para, enfim, descolonizá-la. Nesse sentido, e levando em consideração que a discussão deve girar em torno não apenas da indicação de conteúdos, mas também de uma investigação da maneira como estes adentram ou não o cotidiano escolar, questionamo-nos sobre os momentos em que as Histórias da África e afro-brasileira adentram o currículo 72 Somado à lei de cotas raciais, é importante compreendermos este conjunto legislativo como apenas uma das vertentes de atuação necessárias na redução das desigualdades históricas, ao lado da ampliação de outros acessos materiais e de formação essenciais para alcançarmos, como sociedade democrática, a igualdade e a justiça devidas.

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54 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) na prática. Seriam estes integrados à normalidade escolar? Em sua tese de doutorado, defendida em 2011, a antropóloga Rachel Bakke estudou as aplicações da Lei 10.639/2003, tendo como foco a abordagem de manifestações religiosas de matriz africana e como estas figuravam em materiais, em cursos para professores e na interação professor-aluno em sala de aula na educação básica. Ao identificar barreiras e dificuldades na abordagem das Histórias afro-brasileira e africana entre professores e alunos e a comunidade escolar, Bakke destaca, por um lado, as dificuldades estruturais de acesso à formação por parte dos professores e, por outro lado, as representações negativas prévias acerca das religiões e outros aspectos relacionados às histórias afro-brasileiras e africanas reinantes no mundo social. Esses significados acessados previamente pelos agentes envolvidos no ensino-aprendizado teriam muitas vezes relegado os conteúdos a uma “pedagogia do evento”. Segundo Bakke: Acredita-se que isso ocorre porque a escola ainda se apresenta como espaço de reprodução da representação do Brasil como um ‘cadinho de raças’, e ainda que ela incorpore a discussão sobre o racismo e os novos conteúdos impostos pela Lei, ela o faz essencializando a ideia de cultura negra e a recolocando nos seus locais tradicionais de expressão, o do exótico ou do lúdico. Não é por acaso, que dessa Lei emerge, na maioria das vezes, uma abordagem eventual da temática étnico-racial, concentrada naquilo que chamamos de ‘pedagogia do evento’ (BAKKE, 2011, p. 206).

Essa “pedagogia do evento”, que Bakke nomeia a partir de fala anterior de Ana Lúcia Lopes, impediria a entrada dos conteúdos introduzidos pela Lei 10.639/2003 no currículo cotidiano e, portanto, na normalidade das aulas de História. Em debate semelhante, Júnia Sales Pereira e Luciano Magela Roza propõem no artigo “O ensino de história entre o dever de memória e o direito à história”, de 2012, que as abordagens por vezes dadas a conhecimentos, a agentes e a processos históricos silenciados podem promover a criação de um “currículo turístico”, também paralelo ao currículo entendido como “tradicional”, normalizado na escola. A partir da citação do trabalho do pesquisador espanhol Jurjo Torres Santomé, “As culturas negadas e silenciadas no currículo”, Pereira e Roza alertam que: [...] há um relativo risco da seleção de perspectivas limitadoras ao tentar-se incorporar referenciais culturais a priori

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História da África em Perspectiva: Ensino e Pesquisa 55 excluídos do contexto escolar. Tais riscos explicitam-se em perspectivas focalizadas na folclorização, superficialidade, banalidade, exotismo, alegorização e estereotipagem, tornando-se assim problemática a visibilização, assim como seu oposto. A essa opção Sacristan denomina de “currículo turístico”, para dizer da manutenção de abordagens convencionais no currículo oficial seguidas da introdução folclorizada, secundarizada e banalizada de “aspectos, itens, elementos isolados ou pinceladas” de conteúdos culturais silenciados, movimento não seguido por uma revisão ampla e sistêmica de concepções que, a nosso ver, perpetuam o colonialismo e o eurocentrismo, estigmatizando grupos, práticas culturais e histórias antes silenciadas, agora evidenciadas por meio da estereotipia (SALES; ROZA, 2012. p. 94).

A partir dessas preocupações, pretendemos criar caminhos propositivos ao conjugar debates e desafios da implementação do ensino de História da África e dos afrobrasileiros com questões levantadas nas lutas pela institucionalização de uma disciplina de História da África da perspectiva africana, em meados do século XX, em contextos africanos, americanos e europeus. Pretendemos aqui salientar caminhos para se escapar às armadilhas de abordagens exotificadoras ao tomarmos como referência as discussões e questões levantadas por historiadores e filósofos que procuraram pensar a História da África. Entendemos, dessa forma, que a inserção dessa área no currículo da Educação Básica no Brasil deve partir da mudança estrutural de marcos e de periodizações e pode suscitar um diálogo não apenas conteudista, mas também teórico e metodológico com a recente disciplina em seu formato acadêmico. O processo de reorganização curricular privilegiaria a percepção da simultaneidade e da diversidade da experiência histórica no tempo por parte de professores e alunos, preocupações compartilhadas com a História da África em sua disciplinarização. Consideramos, portanto, que a inserção das narrativas e das perspectivas previstas pela Lei 10.639/2003 em sala de aula devem levar necessariamente a uma perturbação nos conteúdos a serem tocados e privilegiados pela História enquanto disciplina e nas percepções socialmente compartilhadas sobre a história-processo. Com isso, porém, não afirmamos a diversidade como experiência harmônica no sentido do discurso multiculturalista de viés conservador, trazendo para o centro do debate as assimetrias de poder que

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56 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) conformam os encontros e os conflitos que constituem as sociedades ao longo do tempo. Como afirma Peter Mc Laren: [...] quanto tentamos transformar a cultura num espaço imperturbado de harmonia e concordância, onde as relações sociais existem dentro da forma cultural de um acordo ininterrupto, endossamos um tipo de amnésia social onde esquecemos que todo conhecimento é forjado em histórias que se desenrolam no campo dos antagonismos sociais (Mc Laren Apud STEINBERG, 1992, p. 399).

Essa perspectiva crítica sobre o multiculturalismo e certa forma de falar sobre diversidade não é nova entre professores e pesquisadores, e muitas dessas mudanças já são visíveis em coleções didáticas mais recentes73, reflexo, no que diz respeito à lei 10639/2003, também de uma consolidação do campo dos Estudos Africanos e do campo da Educação para as Relações Étnico-Raciais no Brasil. A prática de um ensino mais equilibrado das experiências humanas no mundo e suas conexões, sobretudo, em relação à contemporaneidade, passa por um olhar que se atenta aos conflitos e aos fatores que concorrem, inclusive, para os silêncios que permeiam o fazer historiográfico e as Ciências Humanas de maneira geral. Conjugando os debates propostos no interior das reivindicações de transformação da área da História da África desenvolvidas ao longo do século XX e as discussões em torno de como construir espaços para os currículos silenciados em sala de aula, fortalecidas no Brasil pela obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas, identificamos dificuldades e desafios 73 Segundo a análise de Anderson Ribeiro Oliva, em sua tese “Lições sobre a África: diálogos entre as representações dos africanos no imaginário Ocidental e o ensino da história da África no Mundo Atlântico (1990–2005)”, defendida em 2007, foi somente a partir de 1999 que materiais didáticos utilizados por alunos de 5a a 8a série do Ensino apresentaram ao menos um capítulo completamente direcionado à história da África, em geral voltado para o período entre os séculos VII e XVIII (OLIVA, 2007, p.199). Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) traziam a matéria principalmente a partir de um de seus temas transversais: a Pluralidade Cultural. Esses PCNs voltados para a história, lançados a partir de 1998, criticavam a construção da identidade nacional homogênea como resultado de movimentos excludentes e hegemônicos ao mesmo tempo em que afirmavam a necessidade de fomentar entre os alunos a “percepção da alteridade” e o senso da diversidade. O foco era a construção de indivíduos capazes de refletir de maneira crítica sobre os “processos dinâmicos e contraditórios das relações entre as culturas e os povos”, (PCNs, 1998, p.55) o que envolveria a criação de um currículo no qual figuraria de maneira equilibrada a História da América, da Europa, da África e da Ásia.

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metodológicos e teóricos que se entrecruzam. Nesse sentido, os estudos sobre a entrada marginal ou a não entrada de conteúdos ligados à História da África e dos negros no Brasil na normalidade curricular na Educação Básica são referências sugestivas à forma como a História se constituiu em espaço de enunciação de identidades e de alteridades excludentes no contexto de sua institucionalização. História da África: o tempo em debate Na discussão apresentada até aqui, e considerando o contexto de longa duração das lutas dos movimentos e lideranças negras, está a concepção do ensino como campo em/de disputa, capaz de fomentar ou de silenciar narrativas concorrentes e excluir ou incluir parcelas da população no cotidiano político e social de um país. Partindo dessa premissa e de acordo com nossa proposta de incluir e ampliar conexões da História da África com um entendimento recente sobre História Global74, procuraremos revisitar discussões internas ao campo dos estudos africanos ao longo do século XX. O objetivo é apresentar alguns pontos de um amplo panorama de debates e dar destaque a questionamentos sobre as representações do tempo e as periodizações realizadas no interior da disciplina histórica. Esses olhares críticos são ainda mais significativos neste capítulo por terem partido de uma visão da história acadêmica direta e irrevogavelmente relacionada à sua dimensão política e pedagógica, considerando que tiveram seu ponto de inflexão durante as lutas pela independência no continente, em meados do século XX, momento de (re)construção de projetos educacionais públicos para os novos Estados Africanos (BARRY, 2000). 74 Como campo teórico-metodológico, a História Global oferece possibilidades interessantes como contraponto às análises de viés internalistas e nacionais que figuraram na historiografia da História e mesmo nos trabalhos de História pretensamente mundial e global, mas que incorporam pontos de vista eurocêntricos. Ainda que haja maior ou menor diferença conceitual entre História Comparada, Trasnacional, Mundial e Global, a depender do autor em questão, há o consenso de que todas as abordagens buscam o abandono do Estado-Nação ou das fronteiras imperiais como categoria absoluta e necessária de análise e compreensão do passado e do presente, além da defesa de uma narrativa histórica crítica a parâmetros etno ou eurocêntricos. Além disso, a chave para abordagens transnacionais é sua preocupação com os movimentos, os fluxos e a circulação de ideias e pessoas. Portanto, não simplesmente processos históricos em lugares diferentes e desconectados do mundo, mas sua construção a partir da movimentação entre lugares e regiões (BAYLY et all, 2006, pp. 1440–1464).

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58 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) No bojo dessas discussões, um autor incontornável é o historiador Joseph Ki-Zerbo, nascido, em 1922, na então colônia francesa do Alto Volta, transformada primeiro no Alto Volta independente em 1960 e, nos anos 1980, em Burkina Faso. Ki-Zerbo inicia a Introdução Geral à coleção da História Geral da África (HGA) com uma afirmação curta e direta: “A África tem uma história.” Esse anúncio remetia, como fica claro nas linhas seguintes do texto, a uma discussão já secular, em que o estatuto de historicidade das sociedades, dos acontecimentos e dos indivíduos africanos tinha sido constantemente colocado em dúvida ou mesmo diretamente negado. A exclusão do continente africano durante a sistematização e a disciplinarização do conhecimento científico ocidental no modelo acadêmico/universitário durante o século XIX seria representada, para Ki-Zerbo, por uma imagem fixada “no cenário da miséria, da barbárie, da irresponsabilidade e do caos. Essa imagem foi projetada e extrapolada ao infinito ao longo do tempo, passando a justificar tanto o presente quanto o futuro” (KI-ZERBO, 2010: p. XXXII). Essa imagem seria reproduzida a partir de discursos internos à história e às outras disciplinas que se organizaram e se fundamentaram ao longo do século XIX pelo estudo das sociedades humanas. Nesse mesmo volume I da HGA, o historiador inglês John Fage destaca o que se tratava de uma visão que negou a possibilidade de construção de conhecimento histórico sobre o continente com base em uma recusa em considerar a África como inserida no movimento da história da mesma forma que as sociedades europeias. Fage aponta o trabalho de Georg W. F. Hegel (1770–1831) como representação da profundidade das raízes que esse discurso teria criado na modernidade europeia, embasando e até justificando não apenas silêncios ou abordagens acadêmicas hierarquizantes, mas também projetos políticos escravistas e, posteriormente, colonialistas: Hegel (1770–1831) definiu explicitamente essa posição em sua Filosofia da História, que contém afirmações como as que seguem: “A África não é um continente histórico; ela não demonstra nem mudança nem desenvolvimento.” Os povos negros “são incapazes de se desenvolver e de receber uma educação. Eles sempre foram tal como os vemos hoje” (FAGE, 2010, p. 8).

O trecho destacado na citação de Fage alicerça a abordagem e a teorização hegelianas sobre o movimento da história, pretensamente

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universal, como sendo marcado pela dialética — pela mudança, portanto — que cimentaria no tempo o caminho do “espírito” em direção à “liberdade”. O continente africano surgiu nessa narrativa como o Outro, espaço que confirmaria a existência desse sentido na história-processo por sua exclusão do campo da mudança consciente, fomentada pelos personagens principais desse movimento, os sujeitos históricos. Portanto, África e africanos surgiam como o contraponto das sociedades europeias, brancas e cristãs no argumento do filósofo. Lido posteriormente, o texto de Hegel aponta para a forma como o que se proclamava “universal” em meio a tradições filosóficas e históricas europeias estava profundamente ligado a uma autoimagem enquanto “civilização” por excelência, que intérpretes e pensadores procuraram fundamentar a partir do século XVIII e, principalmente, ao longo do século XIX. Esse movimento é ainda mais relevante na medida em que faz parte do processo de disciplinarização das Ciências Humanas no mundo ocidental. Ainda no mesmo livro da HGA, publicado em 1981, mas escrito ao longo dos anos 1970, ao analisar as “tendências recentes das pesquisas históricas africanas e contribuição à história em geral”, o historiador estadunidense Philip D. Curtin apontava para as ligações entre essas representações e o desenvolvimento dos Estudos Africanos. Curtin destacou também a forma como a exclusão das sociedades africanas do desenrolar histórico do tempo contribuiu para sua estigmatização no interior das ciências humanas a partir do “mito de uma África ‘primitiva’” (CURTIN, 2010, p. 46). Para pensar grupos humanos que haviam sido classificados externamente ao campo da história, teria se desenvolvido a etnologia e a antropologia, com um arcabouço teórico que procurava nas populações, nas culturas e nas formações sociais africanas e não europeias, em geral, o símbolo do anterior, a imagem congelada do passado da própria humanidade. Em meio a esse arcabouço, Curtin destaca o conceito de “presente antropológico”: Eles reconheciam que as sociedades africanas que puderam examinar haviam mudado muito desde o início do regime colonial, fato que consideravam prejudicial a sua demonstração. A seus olhos, era conveniente restabelecer o quadro, concentrando-se num único período, tomado ao acaso no passado imediatamente anterior à conquista

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60 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) europeia. Eles sustentavam que era possível descobrir a natureza dessa sociedade tradicional destacando os dados das observações atuais e abstraindo tudo o que se assemelhasse à influência exterior. O resultado foi o “presente antropológico” (CURTIN, 2010, p. 46).

A busca por desvendar o dito “presente antropológico”, conforme apresentada por Curtin, partia da representação que fomentava o uso de qualificativos como “primitivo” ou “primevo” para categorizar sociedades africanas. Até mesmo o termo “tradicional”, relevante, pois inserido em um par binário com a ideia de “modernidade”, trazia em si a conotação que expulsava essas populações do “contemporâneo”, onde permanecia somente aquilo que pudesse ser diretamente relacionado a uma imagem de “civilização moderna”. A relevância do estudo de sociedades não europeias era cimentada pela consideração de que estas seriam um vislumbre de tempos anteriores, quando pensadas a partir de uma visão linear e unívoca da humanidade, cujo ápice deveria estar no que então se identificava como “moderno” e, necessariamente, europeu. Em uma narrativa intermediada por essas representações evolucionistas, ou até difusionistas, não poderia haver confusão entre tempo cronológico e tempo histórico. Esses grupos humanos conviviam em um mesmo tempo cronológico, mas eram concebidos como pertencentes a idades diferentes da humanidade, como representantes de estágios diferentes da evolução histórica75. No limite, a alegada ausência da mudança expulsava África e africanos do tempo e da história enquanto disciplina conforme esta foi concebida em muitos centros universitários europeus ao longo do século XIX e parte do século XX. Essa discussão denota a centralidade da preocupação dentro do HGA, um dos mais importantes projetos realizados pela geração que fundamentou a área da História da África em novos termos a partir de meados do século XX (BARBOSA, 2012; LIMA, 2012), com a proximidade estrutural entre a concepção das Ciências Humanas e a conceituação da África como espaço de ausência e de contraponto à modernidade europeia. O esforço desses historiadores em revelar a estigmatização do continente dentro da conformação das Ciências 75 Um dos principais autores a defender uma tese nesse sentido é Lewis Morgan, em A sociedade antiga ou investigações sobre as linhas do progresso humano desde a selvageria, através da barbárie, até a civilização, de 1877 (CASTRO, 2016, pp. 11–24).

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Humanas, ligada à legitimação de projetos políticos de formação do nacional na Europa e de colonização em regiões africanas e asiáticas, era então considerado um necessário movimento de rompimento (LOPES, 1995). A luta no interior dos espaços acadêmicos era parte do nascimento da História da África enquanto área e se desenrolava ao mesmo tempo em que pululavam movimentos anticoloniais (LIMA, 2012, pp. 279–280). Nesse sentido apontou, de maneira provocativa e propositiva, o livro de Valentin-Yves Mudimbe, A Invenção da África, publicado em 1988. Situada em um diálogo entre História e Filosofia, a obra em questão é muitas vezes classificada no interior do pensamento pós-colonial, por seu diálogo com métodos, objetivos e fontes semelhantes aos levantados nas décadas de 1970, 1980 e 1990 por autores e autoras como Edward Said e Gayatri Chakravorty Spivak. Neste capítulo, porém, o enfoque vai principalmente para suas contribuições para a área dos Estudos Africanos e para o projeto de (re) construção de seus termos ao longo do século XX. Em seu texto, o filósofo e literato congolês se propõe a investigar “as condições de possibilidade do conhecimento sobre África”. Para Mudimbe, estas seriam fomentadas pela inserção das Ciências Humanas em uma estrutura epistemológica, por um lado, e política/ideológica, por outro lado, que as ligariam diretamente à narrativa de autoconstrução identitária europeia na modernidade, base e produto do crescimento de seu poder político e econômico internacional entre os séculos XVIII e XIX. Para Mudimbe, porém, essa estrutura epistemológica, na qual estaria situado “o local de invenção da África”, não teria deixado de organizar os repertórios e as possibilidades de construção de conhecimento sobre África mesmo no final do século XX, quando escreveu. O autor destaca como os “africanismos”, como ele nomeia os lugares autorizados pelo conhecimento científico europeu dos quais se tornou possível falar de África, obedeceriam às regras de organização da alteridade referentes à economia das identidades europeias a partir da “ordem classificatória”, estabelecida a partir do século XVIII e marcada pelo olhar voltado para a produção e a reprodução de imagens do “Mesmo”: “O africano tornou-se não apenas o Outro que é todos os outros menos eu, mas também a chave que, em suas diferenças anormais, especifica a identidade do Mesmo” (MUDIMBE, 2019: p. 35).

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62 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) A alteridade que estaria na base das condições de possibilidade de conhecer a África a partir das disciplinas das Ciências Humanas seria, segundo Mudimbe, sustentada pelo movimento de negação do Outro. A diferença, para permear a estrutura de produção de saber, seria colocada no extremo oposto da identidade, sendo, por fim, apenas uma projeção negativa do Mesmo, o que nega epistemologicamente qualquer possibilidade efetiva de encontro com a diversidade. No interior dessa ordem classificatória, se a imagem que se queria estabelecer para a chamada modernidade europeia era de rápida mudança, de ápice da evolução humana, o par binário que completava o sentido da operação deveria ser categorizado a partir da impossibilidade da mudança, pela falta da consciência do tempo e, portanto, pela negação da história-processo e, como sua consequência, da História enquanto disciplina. O que se vê a partir desse breve percurso é como o debate ao longo do século XX sobre a construção de uma nova história da África passou pela decodificação, crítica e denúncia dos meios pelos quais essa narrativa foi feita, ou simplesmente não feita, anteriormente. Notamos que o movimento de institucionalização dos Estudos Africanos, com destaque aqui para a reivindicação do conhecimento histórico, foi característico de lutas dentro e fora da academia, com o envolvimento de historiadores em grande parte africanos, que eram também figuras políticas importantes, principalmente nas décadas de 1950, de 1960 e de 1970. Ao se levar em consideração o trabalho do historiador Muryatan Santana Barbosa, a coleção HGA é simbólica das questões e propostas dessa geração e teria como ponto central a defesa de uma “perspectiva africana” como paradigma fundacional e dimensão de ruptura conceitual, teórica e metodológica com uma história anterior, muitas vezes nomeada como “imperialista” ou “colonialista” (BARBOSA, 2012). A partir das críticas e considerações analisadas, procuramos colocar no centro desse procedimento a perspectiva temporal, concluindo que grande parte desse novo aparato historiográfico ligado à ideia de “perspectiva africana” passava pela afirmação da contemporaneidade das sociedades do continente. Os pesquisadores apontados viram a necessidade de romper com a imagem da alteridade radical, que significaria, no limite, a negação de que os agentes africanos habitaram, assim como as sociedades, as culturas

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e os sujeitos europeus, diversas temporalidades históricas. E, mais importante ainda, que o fizeram de forma simultânea a estes últimos. Cabe lembrar que os caminhos epistemológicos citados até aqui foram constitutivos das Ciências Humanas como um todo e centrais para a forma como o conhecimento e seu conteúdo se organizaram no interior da disciplina da História. Isso significa dizer, no limite, que a diversidade da experiência histórica não se encontra representada na periodização evolucionista e hierarquizada a partir da qual o tempo foi concebido na modernidade europeia, com a negação da consciência da mudança histórica aos povos e sujeitos africanos. Esse debate nos leva, assim, a repensar a abordagem da história que é feita em diversos recortes temporais, especialmente na História Contemporânea, foco desta discussão, a partir da crítica à narrativa temporal da modernidade europeia. Se, por um lado, os últimos séculos são muitas vezes abordados pela maneira como regiões distintas do mundo se colocaram irrevogavelmente em “contato”, por outro lado, enfocamos aqui a dimensão paralela e violenta desses “contatos” sobre as formas de se contar, de divulgar e de qualificar o passado. Esse processo foi levado a cabo no projeto de fundação das Ciências Humanas, a partir da criação de mecanismos classificatórios que selecionaram alguns marcos, periodizações e narrativas, excluindo e silenciando outros, ou mesmo, se pensarmos com Mudimbe, negando a própria possibilidade do Outro. História contemporânea e propostas de ruptura de seus marcos teórico-cronológicos Retornemos à citação que abre este capítulo. Para falar de processos específicos do continente africano, M’Bokolo faz referência à África do século XIX a partir do uso da expressão título de uma obra já canônica da historiografia: “era das revoluções.” A provocação do historiador congolês articula o que pretendemos focar a partir dos questionamentos já levantados até aqui, ou seja, delimitar debates que polemizem e desloquem os marcos normalmente utilizados para se pensar a História Contemporânea. Tudo isso entendido como um importante passo para a inserção da História da África no currículo da educação básica no Brasil e da promoção, ao mesmo tempo, da tarefa de questionar a disciplina da História de maneira ampla e, especialmente, em sua estrutura de organização de conteúdos e metodologias de ensino.

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64 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) Deste ponto de partida, consideramos que M’Bokolo aponta alguns caminhos possíveis ao levantar a referência à “era das revoluções” para qualificar a história do continente africano. Essa expressão, consagrada pela obra do historiador inglês Eric Hobsbawm, de 1962, tornou-se uma fórmula comum para se referir à história política europeia e para justificar a defesa de que o período da passagem do século XVIII ao XIX marcaria um novo momento histórico para o mundo.76 Nessa imagem de uma era histórica convulsionada por revoluções políticas que colocaram em questão o chamado “antigo regime” em nome de novas concepções estatais e identitárias, as análises de Hobsbawn permaneceram focadas nos feitos de agentes europeus e pouco ou nada se menciona de outras regiões do planeta e de suas interconexões, como é o caso da Revolução do Haiti, que não possui devido destaque no livro A era das revoluções: 1789–1848. Nesse sentido, é o historiador haitiano Michel-Rolph Trouillot, em Silenciando o passado: poder e produção da história, quem direciona a crítica: Hobsbawn menciona a Revolução Haitiana uma vez nas notas de rodapé e duas vezes no texto: a primeira vez para dizer, de passagem, que Toussaint Louverture fora o primeiro líder revolucionário independentista das Américas — como se isto não fosse tão importante; a segunda (entre parênteses), para assinalar que a Revolução Francesa “inspirou” levantes coloniais. [...] Se concedermos que Hobsbawn se encontra na extrema esquerda do espectro da historiografia acadêmica ocidental e é um historiador sob todos os aspectos consciente tanto da invenção da tradição e da necessidade de escrever a história a partir de baixo, então o paralelo com Diderot-Raynal é impressionante (TROUILLOT, 2016, pp. 165-166).

A disputa pelo marco inicial desse período geralmente denota a ausência de um olhar global ou, ainda, a forte centralidade da história europeia mesmo em uma narrativa que se pretende mundial e ou construída com foco na conexão. Nesse sentido, a única grande ameaça ao reinado da Revolução Francesa parece ser a independência estadunidense. Pouco ou nada se menciona sobre a Revolução haitiana, por exemplo. C.L.R. James apontou essas exclusões em Jacobinos Negros, de 1938, uma obra fundacional para 76 Para uma análise sobre os limites eurocêntricos presentes nas eras de Hobsbawn, ver TRAVERSO, 2012, pp. 35–70.

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posicionar a revolução de Santo Domingo como um dos marcos da modernidade a partir de uma perspectiva global contra o racismo e o colonialismo ocidentais; e, no entanto, ainda assim, o título da obra mantém ou reforça o elo entre modernidade e história europeia ao se referir diretamente aos acontecimentos na França. Nota-se a dificuldade em escapar aos códigos de representação do moderno e do contemporâneo, que os ligam ao protagonismo europeu, branco e masculino, no interior da História e das Ciências Humanas de forma mais ampla. Ainda acerca da Revolução haitiana, Michel-Rolph Trouillot destaca como, a começar pela produção jornalística, filosófica e histórica contemporânea ao período dos acontecimentos, há um processo de apagamento da novidade e da originalidade políticas e históricas representadas pela independência do país e, de forma concomitante, da agência dos indivíduos escravizados e afrodiaspóricos que a protagonizaram. Para Trouillot, certa historiografia canônica teria herdado, e muitas vezes reiterado, essa apresentação do acontecimento como um “não evento”, deixando a nu o poder arquivístico presente na escrita da História, a íntima relação entre historiografia e formas de poder e domínio do saber e, no limite, na definição do que é ou não é um objeto de pesquisa válido, além de prover um silenciamento do colonialismo francês de forma mais ampla (TROUILLOT, 2016, p. 165). O autor ainda ressalta que esse silenciamento sobre uma das revoluções mais radicais do período, se não a maior, tem menos a ver com o Haiti ou com a escravidão do que com o próprio Ocidente, já que os acontecimentos que culminaram na independência da ilha em 1804 contradizem “muito do que o Ocidente conta de si mesmo, para si e para os outros” (TROUILLOT, 2016, p. 178), sendo esse silenciamento apenas mais um capítulo de uma larga “narrativa de dominação global”. A partir dessa necessária reflexão de Trouillot, devemos partir em busca dos ruídos de outros silêncios. Paul Lovejoy traz sua contribuição ao pensar a escrita da História do período contemporâneo se considerado o continente africano. Em “Jihad na África Ocidental durante a ‘Era das Revoluções’: em direção a um diálogo com Eric Hobsbawm e Eugene Genovese”, artigo de 2014, o autor traz novamente a questão da limitação do olhar que guiou a seleção dos acontecimentos e das interpretações acerca dos movimentos que

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66 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) teriam agitado o mundo atlântico durante o período conhecido como “era das revoluções”. Para o historiador estadunidense: No entanto, Hobsbawm associa, em seus estudos, revoluções e transformações a espaços restritos à Europa ocidental, negligenciando a possibilidade de eventos como os movimentos do jihad na África Ocidental terem tido algum impacto na formação do mundo moderno ou ainda que esses eventos africanos fossem contemporâneos à era das revoluções ocidentais (LOVEJOY, 2014, p. 24).

Segundo sugere Lovejoy, movimentos como as jihads, acontecidas na África Ocidental entre os séculos XVIII e XIX, seriam importantes aspectos do espaço político atlântico em transformação e deveriam ser considerados em suas interações com acontecimentos consagrados pela literatura eurocentrada e também a partir das novidades e dos repertórios que inseriram e dispersaram ao longo das margens atlânticas. As disputas políticas que cercaram esses conflitos na região africana teriam sido campo fértil para o desenvolvimento de novas práticas e terreno de intensas mudanças sociais que colocaram em questão formas anteriormente legítimas de governo em nome de novas organizações. Esses espaços políticos africanos em convulsão complementariam e ajudariam a entender dinâmicas em todos os cantos do mundo atlântico, com destaque para movimentos protagonizados na América por pessoas escravizadas, muitas delas nascidas e agentes diretas dos acontecimentos na África. Os elementos para essa análise conjugada estariam, porém, de acordo com a crítica de Lovejoy, invisibilizados pelo olhar de historiadores mais interessados em compreender dinâmicas nas quais acontecimentos e sujeitos históricos europeus ou estadunidenses surgem como centrais. Com relação às implicações de afetividades e repertórios políticos africanos no mundo atlântico durante as últimas décadas de vigência da escravidão, com ênfase na história do Brasil, é sempre relevante mencionar a obra de João José Reis, com destaque para Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês em 1835, publicada em 1986. O livro é muitas vezes considerado um dos principais pilares de uma bibliografia nomeada como História Social da escravidão, que procurou compreender protagonismos históricos de pessoas escravizadas e traz outros nomes fortes da historiografia,

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como Sidney Chalhoub, Flávio Gomes e Silvia Lara. Essa produção de José Reis, inserida no contexto de redemocratização e do centenário da abolição no Brasil, colocou no centro da análise a Revolta dos Malês, realizada em 1835, em Salvador, e se preocupou em entendê-la a partir das identidades e filiações políticas mobilizadas por seus protagonistas, muitos deles africanos vindos da África do Oeste. Nesse sentido, é interessante a maneira como o autor levantou como questão inclusive como os acontecimentos que sacudiram a região no período poderiam ou não ter tido papel importante na organização de solidariedades locais do outro lado do Atlântico quando do início dos conflitos nomeados como Revolta dos Malês (REIS, 2003). O rompimento de perspectivas cujo foco secundariza a relevância de atores e acontecimentos não europeus permeia também outros marcos da história contemporânea, inclusive no século XX, como podemos ver pela proposição feita pela coleção HGA ao situar seu volume VIII a partir de um recorte iniciado em 1935. A discussão aqui é de Ali Mazrui, um dos editores do volume citado na introdução deste capítulo, que propõe a invasão da Etiópia como marco do início dos conflitos da Segunda Guerra Mundial e não a invasão da Polônia, em 1939, ou o ataque a Pearl Harbor e a declaração de guerra dos EUA ao Japão, em 1941, balizas mais conhecidas. Ao mesmo tempo, 1935 também representa o início de mudanças internas nos movimentos pan-africanistas e anticoloniais que se desenrolariam no pós-1945, o que situa a Segunda Guerra Mundial ao mesmo tempo como acontecimento global e regional, ou até local em suas repercussões. Essas experiências do século XX amplificam as palavras de Trouillot nos fazendo questionar quando as evidências empíricas se tornam secundárias diante de certezas ontológicas e como, mesmo diante do desmoronamento do colonialismo na segunda metade do século, a ação de indivíduos não europeus questiona um quadro referencial e desafia uma linearidade desse protagonismo na escrita da História, desde o Haiti. É nessa medida, por exemplo, que Steven Feierman chama atenção, no capítulo “African histories and the dissolution of world history”, publicado no livro Africa and the disciplines: the contributions of research in Africa to the Social Sciences and Humanities, de 1993, organizado por R.H. Bates, V.Y. Mudimbe

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68 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) e J. O’Barr, para uma mudança tanto temática quanto metodológica precipitada pelo crescimento da História da África no interior da disciplina da História de maneira mais ampla. Segundo o autor: É um paradoxo profundo da “escrita da história” nos últimos tempos que nossa fé no conhecimento histórico objetivo tem sido abalada precisamente por causa do avanço do “conhecimento” em seu sentido objetivo. A versão de conhecimento histórico tida como verídica [authoritative] tem sido minada porque os historiadores, nas décadas recentes, construíram conjuntos de conhecimentos [“sobre gente anteriormente excluída da história geral da humanidade”] a respeito dos quais seus predecessores só podiam sonhar. (...) [Essas] histórias excluídas não apenas apresentam novos dados para serem integrados à narrativa mais ampla; elas levantam dúvidas sobre a validade dessa mesma narrativa (Feierman Apud SLENES, 2010, p. 23).

Provincializar a Europa, como pede Dipesh Chakrabarty (2007), ainda é urgente. E a História da África, aliada à História Global, revela-se como campo historiográfico potencial para ultrapassar os umbrais políticos da escrita da História e das barreiras raciais. Com a perspectiva aliada da História Global, entendemos o passado não como um amontoado de acontecimentos em várias partes do mundo a partir da perspectiva do Estado-nação, mas sim como um conjunto de interações, de circularidades, de conexões, de trocas materiais, econômicas, culturais e de redes estruturantes das próprias experiências históricas, “certamente hierarquizadas, mas também unificadoras” (TRAVERSO, 2012, p. 16). Inevitavelmente, provincializa-se a “Europa hiperreal” de Chakrabarty, já que, como produto da “imaginação imperialista de ‘missão civilizadora’ e ‘dos sonhos nacionalistas de modernização’” (CHAKRABARTY, 2014, p. 86), está presente no discurso histórico e deve ser enfrentada.77 Nesse sentido, propomos que pensar a simultaneidade de acontecimentos históricos abre a história para as potencialidades metodológicas, teóricas e temáticas proporcionadas pela História da África e seus conceitos. Aporte que a História Global pode aprofundar por meio de seu olhar complexificador das conexões e de 77 A respeito desta expressão adjetiva, que o autor não considera um conceito propriamente dito, ver CHAKRABARTY, 2007, pp. 27–46 e a resposta de Chakrabarty às críticas de Carola Dietze em CHAKRABARTY, 2014.

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suas assimetrias. Ao rompermos, como propuseram historiadores africanos e não africanos interessados no protagonismo histórico de atores e de dinâmicas africanos e não europeus, com imagens do tempo histórico que pretendem criar nichos excepcionais para as narrativas de uma Europa entendida como universal, ficamos mais próximas da (re)construção da história enquanto fenômeno entre local e global, articulada em conflitos e disputas que lhe são constitutivos. Simultaneidades e ensino de História: História da África em diversas temporalidades Diante do quadro teórico-metodológico levantado até aqui sobre o impacto das epistemologias eurocentradas na escrita da História e sobre a produção de pesquisadores e professores comprometidos em tensionar o cabo de força dessas narrativas, é preciso retornar à sala de aula. Como tensionar, e de forma efetiva, essas “histórias únicas”, como postula a escritora nigeriana Chimamanda Adichie78, presentes no ensino de História levando em conta a História da África e suas conexões com o mundo na História Contemporânea, quando essa divisão temporal se mostra marcada por certo silenciamento ou isolamento da história africana? Nossa aposta, a partir da História Global, está nas abordagens que exploram as simultaneidades e as conexões e, no limite, num ensino comprometido com a crítica a visões lineares do tempo que reproduzem concepções de progresso e protagonismo de sujeitos do Norte.79 Como argumentamos no início deste texto, a obrigatoriedade do ensino de História da África e afro-brasileira foi uma vitória de lutas 78 Termo retirado de “O perigo de uma história única”, palestra proferida por Chimamanda Adichie, em 2009, disponível em https://www.ted. com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story/ transcript?language=pt-br. 79 Segundo Carmen Teresa Anhorn, há décadas existe o empenho de provocar esta mudança no ensino de História. Discussões para superar os obstáculos do ensino-aprendizado pautado no tempo histórico linear estiveram presentes na elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais publicados na década de 1990. Nele, segundo a autora, “apresenta-se uma proposta de recontextualização didática do tempo histórico pautada na concepção do tempo braudeliano com o intuito, mais uma vez, de combater a ideia de um tempo histórico linear, assimilado à ideia de progresso e a uma perspectiva eurocêntrica da história. Tratava-se de valorizar a ideia de duração diferenciada dos fatos históricos estudados, trazendo para o aprendizado da história as noções operatórias de ‘ritmos de transformação’, ‘permanências’ e ‘mudanças’” (ANHORN, 2012, p. 198).

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70 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) gestadas no seio da sociedade civil organizada durante décadas. Por isso, incontornavelmente, deparamo-nos com o tema da identidade articulada ao ensino de História (ANHORN; COSTA, 2011). Segundo Anderson Oliva, em “Entre máscaras e espelhos: reflexões sobre a identidade e o ensino de História da África nas escolas brasileiras”, de 2012, a discussão sobre como realizar a inserção dos conteúdos de História da África e afro-brasileira não está completa sem que a estrutura da narrativa histórica que permeia o ensino brasileiro ao longo do século XX seja questionada por meio de sua relação com a construção de uma identidade nacional unificadora e excludente. Para o autor, o tratamento dado à história da África na sala de aula pode fomentar, interditar ou até justificar interpretações multiculturais no interior do ensino. Pode tanto favorecer quanto impedir uma abordagem positiva e complexificadora da diversidade. Com Oliva, consideramos a escola um lugar em que a diversidade se faz presente em múltiplas dimensões, a começar pela relação professor-aluno. Da mesma forma, tornam-se visíveis os embates e as tensões constituídas por sua representação em uma dada sociedade. Não apenas a diversidade racial, social e cultural, mas as apreensões e as narrativas ativas em uma mesma sociedade sobre passados significativos e, junto com esses passados presentes, sobre projetos de unidade e de identidade nacional estão em constante tensão. Segundo o autor: Ao partirmos da constatação de que as escolas, no sistema educacional contemporâneo, desempenham papel relevante na construção de percepções de mundo e na divulgação de informações e conteúdos, que deveriam compor aquilo que chamamos de ‘memórias compartilhadas’, parece inquestionável a necessidade de ampliarmos nossos recortes temáticos, conteúdos programáticos e abordagens reflexivas nas salas de aulas (OLIVA, 2012, p. 42).

Partindo dessa premissa, o tempo e suas abordagens podem tanto ser uma ferramenta de produção de identidades excludentes quanto de seu questionamento e reconstrução e, portanto, são fundamentais para o ensino de História e para o raciocínio histórico. (SILVA, 2016, p. 30) Como defende Lana Siman, pensar historicamente significa [...] o desenvolvimento da capacidade de identificar e explicar permanências e rupturas entre o presente/passado e

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História da África em Perspectiva: Ensino e Pesquisa 71 futuro, a capacidade de relacionar os acontecimentos e seus estruturantes de longa e média em seus ritmos diferenciados de mudança; capacidade de identificar simultaneidade de acontecimentos no tempo cronológico; capacidade de relacionar diferentes dimensões da vida social em contextos sociais diferentes (SIMAN, 2003, p. 119).

A discussão sobre o tempo e as temporalidades, portanto, apresenta-se como farol das práticas educadoras. Como sugere Adriano da Silva, “torna-se urgente a elaboração de estratégias educacionais que priorizem as questões relacionadas com o tempo histórico e as temporalidades nos temas e conteúdos propostos para o ensino da História” (SILVA, 2016, p. 31). Não é suficiente, para o autor, distanciar a cronologia tradicional do ensino da História, mas ir além, enfatizando “as relações de tempo, especialmente a simultaneidade, duração e sucessão, ao lado de outras noções mais comumente trabalhadas, como períodos, permanências, rupturas e ordenação” (SILVA, 2016, pp. 30–31). Partindo do pressuposto que o entendimento do tempo histórico é um aprendizado fundamental para os estudantes e que é uma das funções do ensino de história indicar as estruturas formais que colocam e relacionam a ação humana no tempo (SILVA, 2016, p. 31), entende-se como o tempo histórico e as temporalidades figuram como essenciais nesse percurso de aprendizagem. Marina de Mello e Souza ensina que os temas ligados às culturas afro-brasileiras são assuntos que incomodam, o que resulta na dificuldade de colocar em prática a Lei. Para que os temas deixem de incomodar, é necessário explicitar os processos históricos e ideológicos presentes nas bases das percepções contemporâneas acerca da África e da cultura afro-brasileira, como, aliás, conforme dito no início deste texto, é indicado por vários pesquisadores que se detiveram sobre o assunto. Dessa perspectiva, é fundamental o ensino de temas africanos, considerados não apenas pelos seus aspectos negativos, largamente divulgados pela imprensa e pelas mídias oficiais, mas sim pelo que podemos chamar de aspectos positivos, ou seja, as características culturais e formas de organização social e política próprias e complexas, os processos históricos tanto internos quanto pertinentes à sua relação com outros continentes, seja com as sociedades ocidentais, seja com as asiáticas (SOUZA, 2012, p. 23). A partir dessas ideias, e na esteira do que propõe Marina de Mello e Souza (SOUZA, 2012, p. 22) sobre a necessidade de se conhecer

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72 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) a história da África para compreender a história do Brasil, ou, como defende Mazrui, para quem o contexto mundial é condição para um entendimento da história do continente no período contemporâneo, é possível mapear marcos dos séculos XIX e XX em que a história do continente se entrelaça a temas mais comuns do currículo por meio da conexão e da simultaneidade. Na perspectiva atlântica, para os séculos XVIII e XIX, por exemplo, pensar e ensinar as dinâmicas da escravidão para além dos dados da violência é fundamental para complexificarmos suas dimensões. Num cenário de mudanças no tráfico pelas intercorrências políticas ocorridas no Brasil, é possível trabalhar os encontros e as intenções diplomáticas do Daomé, por exemplo, com a corte portuguesa no Rio de Janeiro a partir de 1810. Por meio da cultura material e de fontes escritas, pode-se perceber o empenho de Adandozan, então rei do Daomé, em preservar seu monopólio do comércio de escravizados na costa ocidental africana com o Brasil. O trabalho de Ana Paula Sanção, “Cartas, tronos e bandeiras: reflexões sobre as trocas de presentes na embaixada de Adandozan de 1810”, de 2016, oferece ao professor análises e imagens que podem ser usadas em uma aula voltada para dimensionar uma intrincada rede de interesses comerciais disputada pela via diplomática. Além disso, oferta uma janela para se trabalhar o século XIX a partir do protagonismo africano e de sua interação com o Brasil de 1810 fora do eixo tradicional dos dados da escravidão ou das relações Brasil-Portugal-Inglaterra via Tratado de Aliança e Amizade, ampliando as informações sobre as dinâmicas políticas próprias do continente (SANÇÃO, 2016, pp. 173–204). Ainda numa discussão maior sobre passados sensíveis, na efeméride da independência do Brasil, que em 2022 completará duzentos anos em meio a manifestações conservadoras, historiadores têm se empenhado em desmistificar uma narrativa oficial de cordialidade dos brasileiros e da centralidade da família real no processo, jogando luz às dimensões da violência pertinente ao contexto político do período e também de suas apropriações no presente, bem como às diversidades de protagonismos na consolidação do novo estatuto político do Brasil, com destaque para os indivíduos escravizados80. 80 Nessa perspectiva, vale destaque para o livro de Sidney Chalhoub, “Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte”, de 1990.

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Esse tipo de debate se faz ainda mais importante devido ao peso negativo que o ensino de temas relacionados à escravidão pode ter para alunos e alunas afrodescendentes em sala de aula. Seguimos aqui os apontamentos de Monica Lima sobre como “vale refletir também sobre as diferentes formas de se abordar essa mesma história — afinal, pode-se escolher o tom e os caminhos da memória nos percursos e narrativas”. (LIMA, 2018, p. 101) Ao se perguntar como garantir que o momento de aprendizagem sobre períodos históricos nos quais era vigente a escravidão não se torne uma banalização da violência ou, por outro lado, a idealização das possibilidades de resistir que estavam postas dentro de uma estrutura de profunda assimetria, a autora aponta para a escolha de uma abordagem histórica dos significados da violência em diferentes momentos no tempo e também de uma compreensão de como esses significados puderam ser contestados e até renovados (LIMA, 2018, pp. 104–105). Colocar-se nesse debate é importante, e alargar as possibilidades de compreender o jogo de interesses numa perspectiva atlântica demanda também um conhecimento sobre práticas coloniais e protagonismos africanos. O trabalho de Gilberto da Silva Guizelin (2015) apresenta um apanhado historiográfico a respeito da comunidade mercantil em Angola e suas demandas por converter a colônia portuguesa em província do Brasil independente. As ações do partido brasileiro — ou brasílico, como também era chamado — em Benguela mostram como a Coroa Portuguesa equilibrava-se sobre uma frágil estabilidade também em Angola e deixa evidente a importância do tráfico nos interesses diretos de angolanos sobre o Brasil. Além disso, abre possibilidade para pensar os rompimentos e mudanças no interior das relações entre África e Europa nesse momento e como estas estão em um contexto de inflexão das relações políticas e econômicas atlânticas com o processo que levou ao fim do tráfico de pessoas escravizadas e a novas organizações do sistema capitalista. O projeto Acervo Digital Angola-Brasil, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHBG), é uma fonte preciosa para uma aula das conexões atlânticas que mobilizaram indivíduos nas duas bordas do Atlântico.81 81 Trabalhos de Roquinaldo Ferreira (2012) e Mariana Cândido (2013) também analisam os ecos da independência brasileira na capitania de Benguela, deixando mais do que evidente que o grito do Ipiranga movimentou o Atlântico fora do eixo Portugal-Brasil-Inglaterra. Por serem obras em língua inglesa, porém, têm público restrito no Brasil.

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74 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) Já no século XX, há também inúmeras possibilidades para abordar a relação entre a África e o resto do mundo. As Guerras Mundiais e a Guerra Fria são temas bastante trabalhados em sala de aula, possuem especial interesse de estudantes da educação básica, mas suas narrativas permanecem assentadas sobre bases de protagonismo europeu-estadunidense ou da conhecida bipolaridade a partir de 1945/1947. As independências afro-asiáticas e a conferência de Bandung, de 1955, são os assuntos mais recorrentes do protagonismo nos livros didáticos, mas aparecem pelas relações pontuais dos países do Norte com suas ex-colônias, no primeiro caso, ou pelo lugar da não efetividade e de um movimento que já nasce fadado ao fracasso, no segundo. Portanto, seria interessante incluir outras experiências africanas, como as participações efetivas de africanos sob colonização nas disputas das guerras mundiais, inclusive de forma visual, a partir de fotografias. A partir de uma discussão sobre a participação de africanos e suas contradições e silenciamentos, outros temas são possíveis, como o próprio marco para o início da Segunda Guerra Mundial com a invasão da Etiópia, um dos únicos países africanos a não ter jamais passado pelo colonialismo europeu, pelo fascismo italiano e o potente discurso de Haile Selassie na Liga das Nações, disponível online. Surgem outras balizas para o início do conflito mundial. Da mesma forma, trazer o V Congresso pan-africano, realizado em Manchester, em 1945, para a sala de aula, com seus principais líderes, como Kwame Nkrumah, George Padmore e W.E.B. Du Bois, é essencial para compreender as novas configurações políticas e o cenário das independências do continente africano nas décadas seguintes e para conhecer o pensamento de lideranças afrodiaspóricas e africanas e suas expectativas para o futuro (NAVARRO, 2018, pp. 186–249). Para a Guerra Fria, compreender não só o entrelaçamento de povos do Terceiro Mundo entre si, como nas conferências de Bandung, em 1955, e na Tricontinental de Havana, em 1966, mas como as próprias experiências radicais na Argélia (1954–1962), em Cuba (1959), no Congo (1960–1961) e no Vietnã (1955–1975) fizeram parte de uma rede multivetorial Sul-Sul de formação de repertórios de protestos que encontraram eco também na Europa, dessa forma descentralizando o Maio de 68 parisiense para percebê-lo como um movimento dentro de uma “densa rede de conexões transnacionais,

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reais e imaginadas, desejadas e temidas”, que incluem protestos estudantis não apenas em Paris, mas em várias cidades do mundo, incluindo Dakar (KLIMKE; NOLAN, 2018, pp. 1–9). Essa abordagem redimensiona a Guerra Fria e também os anos 1960 no mundo, de forma global e com novos aportes locais. Ainda nesse recorte, o movimento da luta pelos direitos civis no Estados Unidos, sobretudo, na vertente da Black Revolution82, de Malcom X, ativa repertórios de práticas e ideias políticas africanas, como é possível ver em seu famoso discurso Mensagem às bases, de 1963, e em seus discursos durante sua viagem à África, em 1964 (BERTRAIN, 2021). Para não deixarmos de citar o Brasil no século XX, a tese de Amílcar Pereira, O Mundo Negro: a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil (1970–1995), defendida em 2010, aponta a forte conexão entre as independências africanas e a criação/fortalecimento do movimento negro contemporâneo entre as décadas de 1960 e de 1970, inclusive com ligações com os países africanos de língua oficial portuguesa. Nesse cenário de um mundo atlântico em contato, pensadores como o cabo-verdiano Amílcar Cabral e o martinicano diretamente imbricado na Revolução argelina Frantz Fanon foram referências importantes de leitura e de inspiração para essa geração de intelectuais negros brasileiros, em idas e vindas atlânticas. A solidariedade de um feminismo afro-latino-americano também ganha força nesse período na voz de Lélia González, leitora de Amílcar Cabral, mas também de Filomina Chioma Steady, com seus estudos sobre gênero na África Ocidental (RIOS; LIMA. 2020, p. 10). Já para o século XXI, o movimento #RhodesMustFall (Rhodes deve/precisa cair) coloca as manifestações sociais e as sociedades africanas como centrais para a construção de repertórios, inclusive políticos, no mundo contemporâneo, tanto local quanto globalmente. Aqui, o destaque para a centralidade política desse movimento desestabiliza abordagens que muitas vezes se restringem a pensar as dimensões culturais e artísticas das experiências africanas na contemporaneidade. O #RhodesMustFall, que uniu estudantes sul-africanos, em 2015, em manifestações pela retirada da estátua do colonialista inglês, 82 Sobre a distinção entre Black Revolution e Negro Revolution de Malcom X, ver nota 5 de BREITMAN, 2021, p. 25.

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76 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) Cecil Rhodes, das dependências da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, é um dos palcos centrais de uma articulação que tomou dimensões mundiais, alcançando o Brasil. Nesse cenário, propagaram-se ideias e movimentos de retirada de estátuas de colonialistas, mercadores de escravos, bandeirantes (no caso brasileiro) etc. Ao longo das manifestações de 2015, o movimento passou a reivindicar mais do que a retirada da estátua de Rhodes. Foram incluídas as bandeiras pela reforma dos currículos universitários no país e por mudanças estruturais no sistema educacional da África do Sul que combatessem as desigualdades vindas do colonialismo inglês na primeira metade do século XX e também do regime do Apartheid no pós-independência, em que uma minoria branca dominou o território por décadas, até 1994. Quando pensamos o movimento #RhodesMustFall, o nome já é uma pista: trata-se de uma hashtag, ou seja, de uma espécie de palavra de ordem e de mobilização típica das redes sociais. Como um movimento inserido nas lógicas da mobilização das redes sociais, o #RMF já nasce com repercussão internacional, inserido nas referências cruzadas de um mundo conectado e num repertório de símbolos que estudantes em todo o mundo podem facilmente reconhecer. Para uma abordagem da temática, sugerimos o podcast Sikiliza África! — #RhodesMustaFall, uma produção do Laboratório de Estudos Africanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro — LEÁFRICA83, e, ainda, o dossiê sobre a derrubada de estátuas do blog Conversa de Historiadoras, organizado pelas professoras e pesquisadoras Hebe Mattos, Martha Abreu, Ana Flávia Magalhães Pinto, Giovanna Xavier, Keila Grinberg e Monica Lima.84 Um destaque das relações possíveis a serem trabalhadas nos reenvia para o movimento #BlackLivesMatter, lançado nos EUA em 2013, por três ativistas negras, Alicia Garza, Patrisse Cullors e Opal Tometi, após a absolvição do policial George Zimmerman da acusação do assassinato do adolescente Trayvon Martin, mas que retoma com força redobrada em 2020 e passa a incluir em seu repertório debates e práticas diretamente relacionados ao #RhodesMustFall. De um ponto de vista mais local, sul-africano, podemos pensar nas 83 Esse e outros programas do Sikiliza África!, projeto voltado para a divulgação histórica e o ensino de história da África, estão disponíveis no link: https://www. spreaker.com/show/sikiliza-africa. 84 O dossiê sobre Estátuas, assim como outras produções do grupo podem ser acessadas no link: https://conversadehistoriadoras.com/?s=est%C3%A1tuas.

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comemorações e revisões que o ano de 2014 significou na política nacional sul-africana, em que a chamada “nação arco-íris”, lema celebrado por Nelson Mandela, completou vinte anos. O #RhodesMustFall fecha com maestria nossa lista de possíveis caminhos práticos ao se apresentar como movimento interessado justamente na mudança social e antirracista que pode ser fomentada por meio de novos modelos e perspectivas de ensino. Algumas de suas propostas centrais são organizadas pela busca de um ensino decolonial e pela atenção aos mecanismos de seleção internos à construção de conhecimento e a uma geopolítica epistemológica. Além disso, a possível abordagem dos passados sensíveis que permeiam as disputas entre projetos políticos e identitários fazem do #RhodesMustFall um gancho para pensar não apenas diferentes espacialidades, mas também a conexão entre as muitas temporalidades que fundamentam o mundo contemporâneo e seus passados significativos. Conclusão Nesta contribuição, procuramos articular questões e debates caros à formação da disciplina da História da África com as demandas e os desafios diagnosticados por uma ampla produção bibliográfica que se interessou, no Brasil, pela implementação da obrigatoriedade do ensino de História e cultura afro-brasileiras e de História da África na Educação Básica. Entendemos, ao lado dos autores e autoras citados aqui, que o processo de estabelecimento dessa obrigatoriedade, fundamentada institucionalmente pela Lei 10.639/2003, é um desenvolvimento direto da luta do Movimento Negro no Brasil ao longo do século XX e de sua percepção da educação como possível ferramenta para a mudança social e o combate ao racismo e, portanto, como área estratégica para implantação de medidas reparadoras e afirmativas pelo Estado. Concluímos daí que qualquer aplicação completa das diretrizes relacionadas a essa obrigatoriedade precisa partir de posturas de mudança não apenas de conteúdos. Essas ações não podem se tornar esforços ilhados no interior de uma estrutura de categorias e concepções de ensino e de história eurocêntricas e ligadas a uma narrativa nacional hegemônica e excludente, como é o caso no Brasil. Como proposta de intervenção estrutural na organização do conhecimento escolar, principalmente voltado para o conteúdo da

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78 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) História, propomos que a História da África pode fornecer, mais do que conteúdos isolados, um arcabouço teórico, metodológico e temático capaz de gerar mudanças duradouras e fundamentais na representação da diversidade da experiência histórica e dos conflitos e disputas engendrados por sua mobilização. Nesse sentido, procuramos analisar como a perspectiva e os protagonismos africanos em que se centraram historiadores e teóricos engajados na formação da História da África como disciplina desde meados do século XX se relacionam com uma quebra da visão linear de tempo moderna. Esse tipo de concepção linear encontra-se inserida nas narrativas históricas autocentradas na formação nacional europeia e no projeto colonialista que dominaram as Ciências Humanas em seu momento de organização e investimento enquanto ciência na modernidade. Propomos, portanto, que essa quebra de linearidade seja trazida para o conhecimento escolar, com ênfase na diversidade de experiências possíveis em uma mesma temporalidade e também nos mecanismos de seleção que foram responsáveis pelo aplainamento de tal multiplicidade. É importante salientar ainda que tal esforço está interessado não apenas na inserção de novos conteúdos no currículo, mas também na adesão a práticas de ensino atentas à compreensão dos mecanismos de poder que promoveram sua exclusão de certa história-disciplina e também da narrativa que fundamenta uma identidade nacional brasileira excludente, branca, masculina e racista. Esse interesse justificou mais uma vez o recurso às discussões internas à História da África, que, por sua vez, desenvolveu-se em meados do século XX, em contextos de lutas anticoloniais nos quais a disciplina foi concebida como ponto central de um programa de rompimento colonial e desmantelamento de um aparato de dominação estrutural. Tendo em vista a proposição de saídas para esse desafio, mobilizamos um diálogo direto com a História Global na seleção de novos marcos para a História Contemporânea. Marcos que procuramos dar a ver a partir da sugestão direta de temáticas e materiais passíveis de guiar professores e agentes de educação na criação de novas narrativas e práticas. Nesse sentido, procuramos fundamentar a necessidade da inclusão de conteúdos e de conceitos da História da África para a reconstrução da História enquanto parte do currículo da Educação Básica no Brasil ao entendermos que somente esse movimento garante

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a perturbação direta de pilares que sustentam uma versão unívoca e excludente da existência humana no passado e no presente. Referências ANHORN, Carmem T. Gabriel. Teoria da História, didática da história e narrativa: diálogos com Paul Ricoeur. Revista Brasileira de História, São Paulo, v 32, nº 64, 2012, pp. 187–210. ANHORN, Carmen T. Gabriel; COSTA, Warley. Currículo de História, política da diferença e hegemonia: diálogos possíveis. Educação e realidade, Porto Alegre, v. 36, n. 1, 2011, pp. 127–146. BAKKE, Raquel Rua Baptista. Na escola com os orixás: o ensino das religiões afrobrasileiras na aplicação da Lei 10.639. Tese (Doutorado) — Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Departamento de Antropologia, FFLCH, USP, São Paulo, 2011. BARBOSA, Muryatan Santana. A África por ela mesma: a perspectiva africana na História Geral da África (UNESCO). Tese (Doutorado em História) — Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2012. BARBOSA, Muryatan Santana. A construção da perspectiva africana: uma história do projeto História Geral da África (Unesco). Revista Brasileira de História, vol. 32, n 64, 2012, pp. 211–230. BARRY, Boubacar. Senegâmbia: o desafio da história regional. Rio de Janeiro: Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2000. BAYLY, C. A., BECKERT, Sven, CONNELLY, Matthew, HOFMEYR, Isabel, KOZOL, Wendy; e SEED, Patricia AHR Conversation: On Transnational History. American Historical Review, v. 111, n. 5, pp. 1440–64, 2006. BORGES, Jorgeval Andrade. A vez da África? O ensino da história africana em escolas públicas da Bahia. Tese (Doutorado) — Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014. BRASILa, Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília. Julho, 2004. BRASILb. Lei nº. 10.639 de 9 de janeiro de 2003. BREITMAN, George. Malcom X fala. São Paulo: Ubu Editora, 2021. CASTRO, Celso. Textos básicos de antropologia. Cem anos de tradição: Boas, Malinowski, Lévi-Strauss e outros. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. CHAKRABARTY, Dipesh. In Defense of “Provincializing Europe”: A Response to Carola Dietze. History and Theory, v. 47, n. 1, pp. 85–96, 2008.

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O jogo da dissimulação: Uma proposta conceitual para a análise dos genocídios coloniais na África Felipe Paiva85 “O Diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém!” Shakespeare, O mercador de Veneza

Introdução Os bárbaros não falam a língua do império. O barbaroi, na acepção dos gregos antigos, é um estrangeiro que não fala o grego (MUDIMBE, 1994, p. 81).86 Ao invés de pronunciar um idioma inteligível, ele balbucia e, por isso mesmo, dificilmente deixa rastros inteligíveis aos civilizados, os ciosos de seu próprio vernáculo. Esse problema, a ausência de registro histórico assinado pelo próprio bárbaro, levou o filósofo Giorgio Agamben a especular um cenário hipotético: a existência de um campo de concentração no qual seus prisioneiros desconhecessem o logos, sendo, portanto, bárbaros; estrangeiros que não conseguem passar adiante com suas próprias palavras o horror a que estão submetidos (AGAMBEN, 2008, p. 119). A sabedoria ocidental, mesmo em seus exemplares supostamente “progressistas”87, continua cega à realidade da história, aos 85 Professor de História da África junto ao Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Contato: [email protected]. O autor dedica este texto à memória de Galdino de Jesus dos Santos (1952–1997) e aos indígenas vitimados pelo genocídio que nos cerca hoje. Que o cinismo não oblitere nossa memória. 86 Depois, o termo foi assimilado pela cultura romana, na medida em que ela adotava aspectos da cultura grega, de maneira que bárbaro para os romanos era aquele que não falava o latim (POCOCK, 2005, p. 12). 87 Termo vago usado recorrentemente na opinião pública. Entende-se com isso os autores que sustenta as cabeças das esquerdas universitárias ao redor de certas partes do globo terrestre.

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84 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) temas coloniais. Por não falarmos as línguas dos impérios, nós precisamos aprendê-las, a recíproca dificilmente é verdadeira. Os sujeitos hipotéticos aos quais se põe a imaginar Agamben realmente existiram, os genocídios coloniais exemplificam toda a radicalidade dessa situação, pois, além do extermínio e da reclusão do campo, é preciso lidar com algo que está para além de Auschwitz: a ausência do registro próprio, a língua mutilada incapaz de denunciar ela mesma o massacre e as sevícias a que foi sujeita. Um exemplo possível dessa situação limite está disponível no genocídio herero perpetrado pelo colonialismo alemão na atual Namíbia. Em 11 de janeiro de 1904, teve início a ofensiva alemã em uma pequena aldeia do centro da África do sudoeste, de ocupação germânica. As hostilidades só tiveram fim em 1908, após uma ação genocida do exército colonial, vitimando em torno de 80% da população herera e 50% de namas, outra designação étnica namibiana. Os sobreviventes foram encarcerados em campos de concentração e condenados a regimes de trabalho forçado (GEWALD, 2008, p. 392, 393). Desse episódio particularmente obsceno da história do colonialismo europeu na África, já se produziu uma dose bastante considerável de material de cunho historiográfico e antropológico. Contudo, há um detalhe que passou despercebido pela literatura acadêmica especializada: a natureza mesma do memorial do crime. O grau de reificação da população herera foi brutal o suficiente para atingir um ponto sensível até agora não tratado com a ênfase merecida: o relator do extermínio não é a vítima, senão um outro agressor. Conhecemos as consequências humanas do genocídio herero por obra de outra potência colonial concorrente à Alemanha, a Grã-Bretanha. Em 1918, o Império Britânico publica o Report on the natives of South-West Africa and their treatment by Germany, obra que passou a ser conhecida simplesmente por Blue Book, material narrativo e documental que pretendia denunciar a chacina colonial germânica na África. Pretendo fazer a seguir uma reflexão preliminar sobre esse fato bruto ainda não corretamente interrogado pela bibliografia especializada: a delação de uma potência por outra praticante dos mesmos vícios. Para tanto, procuro fornecer os primeiros rudimentos do que designo por cinismo imperial, conceito analítico que deverá guiar meus estudos ulteriores a respeito do genocídio herero.

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Com a construção e posterior aplicação do aludido conceito, busco explicitar o seguinte fato: o que tornou a denúncia humanitária do Blue Book possível foi justamente a necessidade do Estado colonial britânico em obliterar conscientemente suas ações concentracionárias, belicosas e, eventualmente, genocidas em suas próprias colônias na África e em alhures. A esse artifício retórico e discursivo, que dissimula diferenças entre as metrópoles coloniais em nome de um suposto humanitarismo, chamo por cinismo imperial. Os impérios e seus bárbaros Segundo Mahmood Mamdani, enquanto primeiro genocídio do século XX, o genocídio herero guarda profundas conexões com o holocausto judeu (MANDANI, 2001, p. 13); e, como argumentou Andreas Huyssen, o holocausto judeu ocupa, por razões históricas muito específicas, que não cabem no espaço de discussão deste texto, um lugar de singular importância na memória histórica contemporânea. Enquanto evento, a Shoah é uma espécie de paradigma da barbárie, um tipo de régua moral do mal, a comparação com ela “pode legitimar e elevar o sofrimento do indivíduo na hierarquia da vitimação” (HUYSSEN, 2014, p. 181).88 Como afirmou Zimmerer, é no campo de concentração africano que assistimos ao “prelúdio de um século de guerra total, de inimaginável brutalidade, de armas erguidas contra a população civil” (ZIMMERER, 2008. p. 41). Desse modo, além do genocídio em sentido estrito, é especialmente a ação concentracionária que escancara o que denomino por cinismo imperial. Inobstante essa situação, também são possíveis aspectos cínicos em outras atrocidades perpetradas pelos diversos Estados coloniais: violência sexual, trabalho forçado, cobranças de impostos realizadas de forma violenta etc. A utilização de campos de concentração não era artimanha desconhecida da Inglaterra do final do século XIX e princípio do XX. Durante a guerra anglo-bôer (1899–1902), parcelas expressivas da população civil bôer foram enviadas para campos de prisioneiros; estima-se que 26 mil de civis bôeres pereceram de doença e desnutrição, a maior parte deles, com menos de dezesseis anos. 88 Diante dos absurdos diuturnamente verbalizados por certas correntes políticas, cumpre esclarecer: a palavra “vitimação” não tem absolutamente nenhuma relação com o epíteto neoconservador “vitimização”, cinicamente utilizado para desmerecer demandas de grupos marginalizados em nossa sociedade. Essa espécie de cinismo, no entanto, está além das fronteiras do presente trabalho.

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86 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) Do mesmo modo, a população negro-africana — imprensada entre bôeres e ingleses — sofreu sorte parecida. Aproximadamente 116 mil de africanos foram capturados em varreduras realizadas pelos militares britânicos para “limpar” os distritos rurais sul-africanos. Essa população foi enviada para os seus próprios campos de concentração, onde a morte alcançou 14 mil deles (MEREDITH, 2017, pp. 483–484). Ato contínuo, o conflito não foi somente uma “guerra do homem branco”, concernente apenas à população britânica e bôer, mas também incluiu a participação e a vitimação da população negro-africana. Tendo esta população sofrido com a política colonial de ambos os lados e opondo sua resistência, quando possível (SMITH, 1990, p. 24). Peter Warwick demonstrou que a ideia de uma “guerra do homem branco” não passaria de um mito, pois campos de concentração e de trabalho foram erigidos exclusivamente para a população negra. No momento mais agudo da mortandade, entre dezembro de 1901 e janeiro de 1902, a proporção de mortos entre a população negro-africana foi de 436 para cada mil pessoas na Colônia do Rio Orange e 320 para cada mil nos campos do Transvaal. A maior parte das vítimas, cerca de 80%, foi de crianças. Além de conhecer essa ação concentracionária, a população negra também esteve sujeita a regimes de trabalho forçado, sobretudo, na indústria de mineração (WARWICK, 1983, pp. 127, 151–152). Os exemplos de política concentracionária britânica na África não se encerram na guerra anglo-bôer. Nos anos finais do império, já na década de 1950, administradores coloniais foram instados a recolher, guardar e dar fim em todos os registros possíveis de genocídio e política concentracionária. Naquilo que ficou conhecido como “Operação Legado”, o M15 e as Forças Armadas de Vossa Majestade fizeram piras funerais com os documentos. Quando a fumaça adensou o suficiente para levantar suspeitas de partes da opinião pública, o Estado bretão tratou de pôr os arquivos “em caixas com lastro que afundaram longe da costa” (BRIDLE, 2019, p. 196). Muitos desses papéis concerniam à política britânica no Quênia, país no qual os emissários da rainha construíram pelo menos seis campos de concentração: Manyani, Hola, Athi River, Mwea e Mageta. Estudos recentes têm demonstrado que os prisioneiros foram submetidos a “castração, estupro, espancamento e até canibalismo

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forçado”; e só no ano de 1956 o número de mortos nos campos quenianos “chegou a 11.000 e o de novos prisioneiros a 30.000 pessoas” (LUKOYE, 2006, p. 4). Os documentos que não foram afogados ou incendiados — secundados pelo testemunho de alguns sobreviventes — têm auxiliado a remontar o horror dos campos de concentração britânicos no Quênia e em outras frações das terras da rainha. Logo, a barbárie colonial inglesa foi mais longeva na África do que sua contraparte alemã, tendo conhecido episódios de violência aguda tanto antes do holocausto herero quanto depois dele. Esses exemplos comprovam que havia uma consonância estratégica e pragmática entre as duas potências, Inglaterra e Alemanha, no que diz respeito às suas ações no continente africano, ainda que cada uma agisse de acordo com suas especificidades locais. A coincidência no trato da população colonizada é indício de um imaginário comum. Jan Rüger, por exemplo, concluiu que os festivais militares germânicos, que invariavelmente faziam alusão à expansão imperial, prenunciaram a ascensão dos nazistas. Do mesmo modo, os rituais militares britânicos e sua propaganda colonial produziram o sentimento imperialista e o consenso interno que sustentou a era eduardiana (RÜGER, 2007, p. 7). A dedução lógica é simples: mesmo que diferentes em seus arranjos institucionais internos, ambas as potências produziram um habitus militar e geopolítico próximo, porque baseado na mesma ambição expansionista colonial. Conforme explica Shelley Baranowski, o sistema interestatal europeu dessa época era formado pelo que a autora chama por “Estados híbridos”: impérios que se esforçavam no sentido de se constituírem enquanto Estados nacionais. A concorrência imperial entre as potências nacionais emergentes do século XIX levou ao primeiro conflito mundial, bem como à crise dos Estados europeus no entre guerras. A instabilidade política não foi outra coisa senão a manifestação extrema “de um problema europeu de longo prazo, a tensão entre a manutenção do império com toda a sua diversidade e a luta pela homogeneidade étnica e ideológica” (BARANOWSKI, 2014, pp. 20–21). A disputa entre esses “Estados híbridos” envolveu a tentativa retórica de comoção e instrumentalização da opinião pública com a finalidade de criar apoio para a escalada da violência colonial. Para tanto, acusações recíprocas de desvios morais nas colônias

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88 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) eram feitas reiteradamente por órgãos oficiais do Estado britânico e, também, germânico. A resposta habitual era menos a de negar taxativamente as acusações e mais a de desviar o foco para outro episódio protagonizado pelo adversário. A disputa era para decidir quem possuía a balança mais precisa na aferição do conjunto dos cadáveres mutilados pelo rival. Nisso, a compilação do genocídio herero no Blue Book foi peça fundamental. Nesse jogo da dissimulação, era a liderança colonial que estava em disputa, tanto para o público interno quanto para o auditório internacional. O efeito foi claro e decisivo: os parlamentos, a maior parte da imprensa e da opinião pública apoiavam e defendiam as guerras, massacres e campos coloniais de seus respectivos países, ao mesmo tempo em que condenavam a empresa colonial alheia. Nisso está inclusa a recepção tanto da guerra anglo-bôer quanto do conflito germano-herero (BOSH, 2009, p. 118). A relação era também cercada de ambiguidade, pois o império britânico fornecia um modelo para as colônias germânicas. O “sonho invejoso”, diz Bosh, presente no debate público alemão era o de encontrar uma Índia para chamar de sua. Igualmente, o desejo germânico de “desenvolver colônias usando a cooperação com companhias financeiras independentes poupando gastos também era modelado pelo exemplo do imperialismo britânico”. Após apossar-se de maneira definitiva de suas próprias colônias, o pensamento colonial alemão tentou buscar seu próprio caminho, acusando os bretões de, dentre outras coisas, priorizarem mais o dinheiro do que a transmissão da cultura aos colonizados (BOSH, 2009, p. 119). Cultura, nesse contexto, é barbárie. Com os elementos arrolados até o momento, é possível adiantar algumas características essenciais do cinismo imperial: 1) Ele é um fenômeno retórico e discursivo concernente a Estados e seus agentes. Isto é, não necessariamente as críticas de segmentos da sociedade civil e de sujeitos individuais participam da composição cínica, tudo depende do grau de adesão ao discurso oficial de Estado. Esse é um ponto importante, pois é preciso lembrar que o colonialismo teve críticos metropolitanos autênticos, humanistas genuínos que não capitularam ao cinismo de seus conterrâneos. 2) O cinismo é recíproco, só podemos falar em cinismo se houver crime praticado também pelo denunciante. Nesse sentido, ele é sempre mútuo de um Estado

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em relação ao outro, não sendo uma especificidade britânica ou germânica, de maneira que é possível encontrar formulações cínicas em outras metrópoles colonizadoras. 3) O cinismo imperial é um fenômeno ideológico no bom e velho sentido do termo: falsa consciência. Sua função é encobrir, mascarar e falsificar a realidade para criar consenso social em torno de projetos políticos exploratórios. Dito isto, avancemos para os demais aspectos epistêmicos do conceito para, por fim, deslindarmos alguns aspectos do Blue Book. Cinismo imperial É preciso diferenciar o sentido antigo e o moderno do termo “cínico”. Originalmente, a palavra (que literalmente designa em seu radical grego algo por “amigo dos cachorros”)89 servia para designar a corrente filosófica centrada em Diógenes de Sinope (404 ou 412 a.C–323 a.C), baseada especialmente na rejeição dos valores da moralidade grega convencional e num asceticismo quase irrestrito. A ideia radical de “liberdade” dos cínicos originais — “usar qualquer espaço com qualquer propósito”, segundo o dito de Diógenes — acabou insultando o cânone filosófico estabelecido. Essa etapa originária deve ser separada da posterior recepção romana da palavra “cínico/ cinismo” (BRANHAM; GOULET-CAZÉ, 1996, pp. 4–5). A partir do período romano, e, posteriormente, com a escolástica medieval, o cinismo passa a ser relacionado com “a hipocrisia dos dias correntes”, como escreveu o abade dominicano Giovanni Dominici (1355–1419), em sua obra de 1405, Lucula Noctis (MATTON, 1996, p. 257). Desse momento em diante, consolida-se o uso comum do vocábulo, que perdura até os dias de hoje, ligado principalmente à hipocrisia, mas também à imoralidade e ao despudor. É com esse sentido, distante da formulação filosófica original, que a categoria do cinismo imperial se vincula. Inobstante, a utilização do sentido moderno de cinismo para construção de um conceito original possui precedentes. É na diferenciação entre o kynismus grego e o cinismo moderno que Peter Sloterdikj baseou sua principal obra, Crítica da razão cínica, publicada em 1983. Segundo ele, o kynismus de Diógenes era “uma reflexão essencialmente plebeia”, a filosofia daqueles alijados do poder e, por isso mesmo, detentora de um núcleo subversivo único 89 Kyon e Kynós são os nomes gregos para cão, cachorro.

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90 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) entre as escolas filosóficas da antiguidade. Com a modernidade, entretanto, assistimos à ascensão do cinismo moderno, o cinismo dos senhores, uma “desinibição disfarçada de indignação” a serviço do Estado. Nesse sentido, “dizer a verdade” não é necessariamente um ato de crítica disruptiva, senão uma estratégia “de pragmatismo e instrumentalismo: sob controle de um eu político que pensa de início e em última instância em si mesmo”. Em termos mais diretos: o cinismo moderno se mostra somente “com verdades nuas, que mantêm algo falso no modo como são expostas” (SLOTERDIKJ, 2012, pp. 14, 26, 155–156, 166). Lanço mão dos vocábulos “cínico” e “cinismo” para fundamentar o conceito, pois o cínico é aquele que distorce “procedimentos de justificação da ação” conformando-os a interesses que não podem ser abertamente revelados, de maneira que ele se vale de “máscaras da insinceridade” para dizer o que quer. Além disso, concordo com Safatle quando afirma, na esteira de Sloterdikj, que há um modo cínico de funcionamento das estruturas do Estado que aparece “normalmente em épocas e sociedades em processo de crise de legitimação”. Por meio desse raciocínio, Safatle sustenta que “a partir de um certo momento histórico, os regimes de racionalização das esferas de valores da vida social na modernidade capitalista começaram a realizar-se (ou, ao menos, começaram a ser percebidos) a partir de uma racionalidade cínica” (SAFATLE, 2008, p. 13). O que gostaria de adicionar a esta discussão é um fato que tanto Sloterdikj quanto Safatle não enfatizaram: o colonialismo é, muito provavelmente, o momento histórico de estabelecimento, ou pelo menos de consolidação definitiva, da razão cínica na modernidade capitalista. Provas disso são justamente as disputas “humanitárias” das potências coloniais e as discussões sobre qual império seria mais benevolente com seus súditos.90 Como afirmado anteriormente, o cinismo imperial é aqui encarado como um recurso retórico e discursivo. Nesse sentido, 90 É justamente o fato de não enfatizar o colonialismo o que leva Sloterdikj a ver na república de Weimar, e no fascismo, de forma mais geral, “uma abundância de cinismos” como em “nenhuma outra experiência histórica anterior” (2012, p. 36). Essa afirmação só é possível se ignorarmos o fato colonial. O “primeiro herdeiro” do cinismo moderno não foi o fascismo, mas o liberalismo colonial. Se não avaliarmos isso, como entender então a recorrente imaginação colonial do Terceiro Reich? As recorrentes alusões de Hitler e seus acólitos à conquista das Américas e à própria expansão da Inglaterra imperial como exemplos a serem seguidos?

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entendemos o discurso não somente como aquilo que traduz “as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 2009, p. 10). O que estava em jogo quando da publicação do Blue Book era não só a denúncia humanitária, esta, ao revés, era indício de uma disputa moral pelo estabelecimento de uma “ordem do discurso colonial”. Tratava-se de se autoqualificar enquanto denunciante e relator do crime91, ao mesmo tempo em que se desqualificava a concorrência de outrem no território africano. Não por acaso, chegou-se a cogitar, por parte do Estado germânico, o fabrico de um livro-denúncia nos mesmos moldes do Blue Book, onde os crimes coloniais britânicos fossem expostos (KÖSSLER, 2004, p. 704). Considerando o embate entre as potências, é importante salientar que o Blue Book é, antes de peça humanitária, um discurso político. O que faz um discurso tornar-se “político” não é tanto o seu conteúdo, senão suas circunstâncias de comunicação, a situação é que o politiza (CHARAUDEAU, 2015, pp. 40–41). Por esse motivo, é necessário frisar não somente o conteúdo do discurso — transcrevendo extensamente as passagens do Blue Book, em uma análise de fonte de tipo mais restrita e, por isso mesmo, ingênua; é preciso salientar também o que Eliseo Véron chamou por “aspectos ideológicos de condições de produção de um discurso”, recolocando-o “no conjunto do processo histórico de sua emergência (produção-circulação-consumo)” (VÉRON, 1980, p. 126).92 Em uma visão apressada, minha leitura do Blue Book como discurso político pode ser acusada de moralista, visto que estou adjetivando determinados agentes históricos com termos pouco usuais à historiografia (cínico/cinismo). Essa crítica seria imprópria, pois não se trata de atribuição de valor moral aos agentes envolvidos, dividindo-os em “bons” ou “maus”, mas de apontar as contradições internas de um determinado tipo de documentação. Essa contradição, como dito, concerne ao duplo caráter dos discursos 91 Os usos semânticos dos termos “crime” e “vítima” que faço neste texto são literais, não visam nem a figuração estilística e tampouco o maniqueísmo narrativo. Levo em conta a tipificação de “crime contra a humanidade” estabelecida pela “Convenção para prevenção e punição do genocídio”, de 1948. A convenção fincou o genocídio “tanto na jurisprudência quanto na percepção pública como o mais hediondo dos crimes” (BACHMANN; FATIC, 2015, p. 10). 92 Ênfase do original.

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92 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) cínico-coloniais: eles são simultaneamente peças de denúncia “humanitária” e também propaganda política imperialista. O Estado britânico e o germânico entraram em disputa a respeito do controle de determinadas regiões africanas, dentre elas, a atual Namíbia. Tratava-se de uma disputa pela legitimidade da exploração colonial. Ou seja, apesar de serem concorrentes, ambos os agentes possuíam uma “cognição política” comum, para usarmos um termo de Van Dijk (2015, p. 197), visto que para esses rivais a exploração colonial era uma verdade óbvia autoevidente, restando somente embasá-la adequadamente naquilo que Habermas chamou por “produção comunicativa de um poder legítimo” (HABERMAS, 1990, p. 108). Era uma disputa pela legitimidade da exploração baseada em um determinado consenso. É nessa batalha entre discursos políticos divergentes, ainda que com matizes ideológicos próximos, que ocorre a chamada “antilogia discursiva”, o direito de resposta (TRINGALE, 2014, p. 31). O ponto central é que nesse caso o direito de resposta exclui a fala das vítimas, tendo-as como mero utensílio comprobatório na dosimetria da barbárie das metrópoles coloniais93. Por esse motivo é que defino o cinismo imperial a um só tempo como um artifício discursivo, mas também retórico, pois ele se pretende simultaneamente objeto de polêmica e persuasão. Na senda aberta pelos antigos, encaro a retórica como o discurso [logos] que tem na persuasão a sua razão de existir (ARISTÓTELES, 2012, p. 12) (PLATÃO, 2011, p. 203)94. É nesse aspecto que se compreende a antinomia fundamental do 93 Aqui, discordo profundamente do excelente trabalho de Tringali, bem como de Charaudeau e outros analistas do discurso. É comum, na análise do discurso, associar a antilogia (direito de resposta) com ambientes democráticos. O fenômeno do cinismo imperial demonstra que isso é falso, pois é plenamente possível que ela tenha fins retóricos vazios sem necessariamente incluir a presença de uma oposição radical, que nesse caso seria anticolonial. Se a antilogia exclui o subordinado, ela não é democrática. 94 A aproximação entre Platão e Aristóteles não é estranha, ao menos em termos de retórica. Conforme demonstra o aparato crítico das obras que consultei, há de fato uma relação entre ambos na definição do discurso retórico, sobretudo, no que diz respeito ao seu caráter persuasivo. Para mais ver: a introdução e as notas à obra de Aristóteles escritas por Manuel Alexandre Jr., e, no caso de Platão, o longo estudo preliminar e as diversas notas explicativas de Daniel R. N. Lopes. Inclusive, é baseado em Lopes que optei por traduzir o logos grego por “discurso” (PLATÃO, 2011, p. 180, nota 13). A persuasão permanece um elemento essencial para a definição da retórica contemporânea, vide especialmente os trabalhos de Perelman e Haquira Osakabe (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2014, p. 29) (OSAKABE, 1999, p. 176).

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cinismo imperial: ao mesmo tempo a peça documental que se pretende denúncia humanitária é também sintoma de hipocrisia colonial. Como já aludido em momento anterior, essa hipocrisia diz respeito ao fato de, enquanto relata a política concentracionária e genocida alemã, a própria Inglaterra perfazer movimento parecido, especialmente no que diz respeito aos seus próprios campos de concentração na África do Sul. Se incluirmos a violência e os campos posteriores perpetrados no Quênia ou em outras paragens do mundo colonial britânico, a situação fica ainda mais insustentável e o cinismo, ainda mais patente. Portanto, por sua recorrência, acreditamos que a política concentracionária colonial instaura, em última instância, o funcionamento moderno da biopolítica no continente africano. Os campos de concentração são aqui vistos como “laboratórios para a experimentação do domínio total” (ARENDT, 1994, p. 240). Laboratórios nos quais a reificação da humanidade encontra-se no seu nível mais radical, “onde a política se faz inteiramente biopolítica”, sendo o prisioneiro do campo portador da existência enquanto vida nua, existência animal sem nenhuma qualificação humana. Nesse sentido, o campo é antes de qualquer coisa “o paradigma oculto do espaço político da modernidade” (AGAMBEN, 2010, p. 117, 119). Segundo Giorgio Agamben: “São os corpos absolutamente matáveis dos súditos que formam o novo corpo político do Ocidente” (AGAMBEN, 2010, p. 122). Dilatemos o pensamento: alocada para o contexto colonial, para as paragens não ocidentais, essa afirmação deve ser vista em sua radicalidade absoluta. Ao contrário de muitos daqueles que pereceram nos campos de concentração europeus, os africanos (da Namíbia, da África do Sul, do Quênia ou de alhures) não eram propriamente uma população civil, senão um corpo indistinto de súditos coloniais, pois, geralmente, ou quase sempre, a colonização implicou também a sujeição à norma legislativa da população autóctone à potência invasora. Não possuindo o mesmo status civil da população metropolitana, os herero e outros povos estavam mesmo longe de terem os seus direitos negados ou retirados, pois estes não lhes foram sequer atribuídos. O Blue Book Como já adiantado anteriormente, o Blue Book (1918) constitui hoje umas das principais fontes a respeito do genocídio consumado

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94 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) pelas forças alemãs na atual Namíbia, entre 1904 e 1908. Essa fonte foi gerada e publicada pelo Estado britânico e, por isso, possui um componente cínico em sua composição, visto que a rainha não era muito superior ao Kaiser no tratamento dos seus súditos coloniais. A apreensão desse ardil retórico-discursivo do cinismo imperial só pode ser completa se considerarmos o contexto de escrita e publicação do referido livro. Durante a Primeira Guerra Mundial, a marinha britânica bloqueou as frotas alemãs no Mar do Norte, impedindo o acesso da Alemanha às suas colônias, de maneira que, com a exceção da Tanganica (atual Tanzânia), todas elas foram conquistadas com relativa facilidade. O Togo, em 1914; Camarões, em 1916; e a África do Sudoeste (Namíbia), em 1915. Essas colônias foram divididas entre os vencedores do conflito, usando o mecanismo dos Mandatos da Liga das Nações, que em princípio seriam autorizações temporárias para administrar os territórios. À França, foi reservado 2/3 do Togo e dos Camarões, indo o restante para a Inglaterra, que também abocanhou a Tanganica; Ruanda e Burundi foram para os belgas; a atual Namíbia foi para a África do Sul (VISENTINI, 2010, p. 58, 59). Esse processo significou uma mutação formal no colonialismo, e não uma transformação radical de suas práticas, a ideia de “Mandato” é ela mesma um componente da situação cínica que se desenrolava. Os pronunciamentos públicos do governo sul-africano falavam sobre administrar a Namíbia tendo por guia “a verdade sagrada da civilização”, por meio do “bem-estar moral e do progresso social de seus habitantes”. Muito benevolentes, os novos senhores proibiram o trabalho forçado, exceto para obras e serviços públicos essenciais. A ambição da África do Sul era a de incorporar paulatinamente a Namíbia de maneira definitiva (KATJAVIVI, 1990, p. 13). Ponto digno de nota: as ambições coloniais sul-africanas contaram com o apoio inglês, já que nesse momento a África do Sul (União Sul-Africana) era parte do império britânico. Tão logo adentraram em território namibiano, em 1915, os oficiais ingleses e sul-africanos foram ordenados a reunir todo o material documental que pudessem, a ideia era ilustrar as sevícias do poder colonial alemão com a população autóctone. Para sorte deles, os germânicos haviam documentado fartamente suas obras, sobretudo, nos arquivos da capital, Windhoek. Além disso, os oficiais contaram com

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a ajuda de sobreviventes, africanos dispostos a narrar, com riqueza de detalhes, tanto o genocídio quanto a política concentracionária à qual estiveram sujeitos. Nesse ponto, é preciso lembrar que o cinismo imperial é um discurso com efeitos retóricos, pois é claro que essa disposição dos sul-africanos e dos ingleses em registrar o genocídio tinha por objetivo o abandono definitivo por parte da Alemanha de suas pretensões coloniais (GEWALD, 2008, pp. 398–399). Assim nasceu o Report on the Natives of South-West Africa and Their Treatment by Germany, volumosa brochura publicada em janeiro de 1918, e desde então apelidada por Blue Book. Na folha de rosto lemos, no lugar dedicado à autoria: Prepared in the Administrator’s Office. Logo abaixo, na parte dedicada às informações editoriais, vemos o seguinte: Presented to both houses of Parliament by Command of his Majesty; London: Published by his Majesty’s Stationery Office. O documento tinha, portanto, caráter oficial, algo claro nas suas bordaduras cheias de insígnias imperiais e nas identificações de autoria e edição. Entretanto, os impérios mudam, fenecem ou são destruídos, mas alguns de seus antigos moradores quedam-se imóveis. E é preciso conviver, acomodar-se, pactuar, consertar. Esquecer. Modificar para permanecer igual. A existência de um memorial do horror como o Blue Book incomodava profundamente os colonos alemães remanescentes. Não era para menos, a natureza desse memorial é, de fato, atípica. Todas as informações são bem documentadas, e as construções frasais são diretas e explícitas. Além desses atributos textuais internos, há outro fator que também contribuía para que sua leitura se tornasse potencialmente generalizada: o memorial foi feito em natureza de livro. Essa informação, por óbvia que seja, precisa ser destacada. Nesse formato, ele poderia ser adquirido por qualquer interessado com tempo, recursos e conhecimento da língua inglesa, e não eram poucos os inclinados a criticar — de modo genuíno ou cínico — os impérios coloniais. Da mesma forma, isso o tornava presença constante em bibliotecas, estando disponível para consulta pública tanto na Namíbia, quanto na África do Sul, como também na totalidade do império britânico. Esses fatores aborreciam a mente dos colonos mais do que o genocídio propriamente dito ou os campos de concentração. Afinal, esses eventos nunca chegaram a ser reconhecidos pelos representantes políticos da população alemã remanescente em território namibiano.

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96 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.)

Folha de Rosto do Blue Book: SOUTH-WEST AFRICA ADMINISTRATOR’S OFFICE, 1918.

Com efeito, desde o momento em que foi lançado, o livro suscitou protestos e reivindicações para que fosse imediatamente retirado de circulação. Em 1925, somente sete anos após sua publicação, aconteceram as primeiras eleições na Namíbia sob mandato sul-africano. Em uma ironia mordaz, os colonos alemães tiveram assegurado seu direito à participação política, organizando-se no Deutsche Bund in Südwestafrika [Confederação Alemã no Sudoeste africano]. Inversamente, a participação e a representação política foram vedadas à população herera. Cioso da manutenção da coesão entre os colonos brancos (fossem alemães ou sul-africanos), o então administrador colonial, A. J. Werth, cedeu à pressão, e já em 1926 o Blue Book foi abolido em território namibiano. Regozijando-se do feito, um membro da assembleia legislativa da Namíbia saudou a iniciativa afirmando que o Blue Book era tão somente “uma ferramenta bélica”, já tendo passado o momento “de pô-lo fora de circulação e destruir todas as cópias que se encontrem nas bibliotecas e nos lugares oficiais deste território” (GEWALD, 2008, p. 401).

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O que demonstra cruamente o funcionamento cínico do Blue Book é que afirmações como essas não estavam, de fato, completamente erradas. O documento foi pensado como peça bélica, uma munição a mais em um arsenal retórico agora obsoleto. Era tempo de dar adeus às armas. Os exemplares disponíveis na Namíbia e na África do Sul foram fisicamente incendiados, consumidos pela chama do esquecimento. As outras cópias distribuídas ao redor do império britânico foram encaminhadas ao ministério das relações exteriores [Foreign Office], ficando interditadas ao público, inclusive durante a Segunda Guerra Mundial. Nesse novo conflito, os velhos rivais se reencontrariam para uma nova contenda. Rivais, sim; cúmplices, também. A celeridade com que o Blue Book foi retirado de circulação (não chegando a ter uma década de vida) se explica “pela promessa de uma cooperação pacífica” entre as comunidades de colonos brancos, algo que preocupava os administradores sul-africanos e seus aliados ingleses ao longo de todo o colonialismo europeu na África. Se o livro permanecesse em circulação, essa cooperação estaria ameaçada. Em síntese, conforme resume Gewald: “os hereros que morreram no genocídio foram apartados e olvidados pela cooperação entre colonos brancos” (GEWALD, 2008, p. 402). À morte física foi seguida a morte simbólica, sintetizada na ausência de participação e representação política. Em uma palavra: silenciamento. Nesse segundo assassinato, o próprio registro do crime foi peça fundamental, na medida em que foi retirado de circulação e vedado à consulta pública aberta. Conclusão A proposta conceitual esboçada pretende somar-se ao esforço acadêmico que tem sido feito nos últimos anos de resgatar o ocorrido herero e recolocá-lo em seu devido lugar na memória histórica contemporânea. Entretanto, esse espaço memorialístico e historiográfico não pode ser o de uma tábula rasa na qual a concorrência e o pragmatismo imperial são obliterados e postos em termos conciliatórios. Isso seria comprar o valor apregoado pela própria fonte, tornando o historiador refém do registro histórico. Deve-se lançar mão de um método apropriado e de uma teoria adequada para que fique demonstrado o caráter intrinsecamente

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98 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) contraditório do documento, que é simultaneamente pretensa denúncia, mas também assegurada propaganda colonial. A fonte histórica é importante não somente pelo que registra, as informações arroladas das quais destacamos alguns trechos para demonstrar uma hipótese historiográfica, senão também por sua natureza interna, seus propósitos de produção e circulação. No reconhecimento dessa natureza, dessa idiossincrasia testemunhal, podemos encontrar informações tão valiosas quanto os dados “objetivos” disponíveis em uma leitura tradicional da fonte. Em síntese, é lembrar o que disse Shakespeare em O mercador de Veneza: “O diabo pode citar as Escrituras para os seus próprios fins!” (SHAKESPEARE, 2006, p. 28). O conteúdo grafado na Bíblia pode não mudar nas mãos do pai da mentira, mas certamente ele dará um jeito de utilizá-lo em uma circunstância específica que o beneficie e, tão logo essa circunstância tenha passado, ele não terá dificuldades em pôr os versículos de lado. Realoquemos essa situação para o contexto das mútuas acusações entre os Estados coloniais e teremos diante de nós o fenômeno do cinismo imperial. Seu conceito foi esboçado anteriormente, o autor admite, entretanto, que há muito a ser feito daqui adiante. De todo modo, é importante ressaltar que nenhuma fração do Blue Book se torna menos aterradora pelo fato de esse livro ter sido escrito e instrumentalizado por uma potência colonial. Afirmar isso seria imitar o cinismo dos impérios, e em lugar dele é preciso opor o autêntico kynismus grego, desrespeitando algumas das normas e lugares-comuns estabelecidos, na academia inclusive. Uma forma de fugir desses lugares-comuns é pensar em novas palavras-guia, novos conceitos. As palavras são as velas da embarcação do historiador, “se bem içadas elas tornam-se conceitos” (BENJAMIN, 2019, p. 784). Uma leitura pormenorizada do sinistro memorial nomeado por Blue Book é tema para outro escrito, os arrecifes do presente texto e a fragilidade da minha própria embarcação me empurram para fora desse oceano. Pélago tingido de azul-escuro, qual sangue coagulado. Detenho-me na orla, ao menos por ora; e dela observo as velas que acabei de içar. Antes de seguir, quero salgar as feridas em minhas mãos — elas ainda não estão suficientemente calejadas —, conferir a direção dos ventos e escutar a maré. O marulho é a voz dos bárbaros; e eles falam — de algum modo os escutarei. Com

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os pés sobre a areia, deduzo que esse discurso supera, em muito, a imaginação dos filósofos. Post scriptum (28 de maio de 2021) E, no entanto, ela se move. A terra, mas também a história. Uma dessas voltas se deu quando este texto já havia sido concluído: em fins de maio de 2021, a Alemanha anunciou o investimento de um bilhão de euros na Namíbia (cerca de 1,3 bilhão de dólares), reconhecendo, finalmente, que o que se deu foi de fato um “genocídio”. O dinheiro deverá ser injetado na infraestrutura do país e em ações de saúde para a população local. Algumas lideranças hereras protestaram afirmando que as negociações se deram sem a sua presença, não sendo, portanto, uma restituição pelo horror colonial. Do mesmo modo, um pedido formal de desculpas também não aconteceu, ao menos não enquanto redijo este adendo. A situação ganha ares esquizofrênicos. Ao admitir que cometeu um genocídio, mas não proceder um pedido formal de desculpas, o Estado alemão nos leva a concluir uma única coisa: que genocídios não são atos criminosos ou moralmente condenáveis, apenas materialmente custosos. Sendo assim, basta barganhar e comutar a vida humana por moedas, como nos imemoriais comércios de indivíduos escravizados que aconteceram ao longo da nossa história. Junto a essa ausência de um pedido de perdão oficial, segue também a continuada morte simbólica da população vitimada. Considerando, portanto, esse silenciamento sistemático das vítimas e de seus descendentes, é justa a indagação se esse ato representa realmente um avanço em relação às pretéritas posturas coloniais ou se não se trata de uma atualização do cinismo imperial de outrora. Não seria essa doação tardia uma reação à consolidação de novas potências emergentes na Namíbia? Por exemplo, alguns contratos de investimento chinês em infraestrutura na Namíbia, lavrados na última década, chegam a alcançar cifras notáveis, cerca de 13 bilhões de dólares somados (DOBLER, 2017, p. 11). Estariam esses investimentos ameaçando as velhas relações econômicas e também simbólicas herdadas do colonialismo? Se não a natureza intrínseca dessas relações, ao menos estariam pondo em xeque as hegemonias culturais e econômicas das antigas metrópoles em suas ex-colônias?

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100 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) Nesse cenário ainda em transformação, a conclusão é princípio, e não fim, da jornada; é tomar novo fôlego de coragem para só então navegar; pois, apesar de tudo, a história ainda se move. Referências AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010. ____________. Estado de Exceção (Homo Sacer II, 1). São Paulo: Boitempo, 2004. ____________. O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha (Homer Sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008. ARENDT, Hannah. Essays in understanding. Nova York: Harcourt, 1994. ARISTÓTELES. Obra Completa. Vol. VIII. Tomo I — Retórica. Tradução e notas de Manuel Alexandre Jr.; Paulo Farmhouse Alberto; Abel do Nascimento Pena. Introdução e Prefácio de Manuel Alexandre Jr. São Paulo: Martins Fontes, 2012. BACHMANN, Klaus; FATIC, Aleksandar. The UN international criminal tribunals. Transition without justice? Nova York: Routlegde, 2015. BARANOWSKI, Shelley. Império Nazista. O imperialismo e o colonialismo alemão de Bismarck a Hitler. São Paulo: Edipro, 2014. BENJAMIN, Walter. Passagens. 3 Vols. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2019. BRANHAM, R. Bracht; GOULET-CAZÉ, Marie-Odile. “Introduction” In______;______ (Ed.), The cynics. The cynic movement in antiquity and its legacy. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1996. BRIDLE, James. A nova idade das trevas. A tecnologia e o fim do futuro. São Paulo: Todavia, 2019. BOSH, Frank. “Are we a cruel nation? Colonial Practices, Perceptions and Schandals” In GEPPERT, Dominik; GERWARTH, Robert. (Ed.). Whielmine Germany and Edwardian Britain. Essays on Cultural Affinity. Londres: Oxford Univ. Press, 2009. CHARAUDEAU, Patrick. O discurso político. São Paulo: Contexto, 2005. DOBLER, Gregor. “China and Namibia, 1990 to 2015: how a new actor changes the dynamics of political economy”. Review of African Political Economy. Vol 44, Nº 153, 2017. Taylor & Francis online. Disponível em . Acessado em 8 de junho de 2021.

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A escravidão no cinema africano francófono (1980–2000): complexidade de um objeto problemático

Franck Pierre Gilbert Ribard95

O cinema africano nasceu depois da Segunda Guerra Mundial, no contexto marcante das independências dos países recém-libertados no continente. Contribuiu, bem como a literatura, com aquele momento de formação de novas identidades nacionais, com narrativas, imagens e cenários alimentando um imaginário, permitindo aos africanos revisitarem o seu passado e pensarem as sociedades em reconstrução depois do colonialismo. Em particular, as primeiras gerações de cineastas africanos se voltaram para temas ligados aos valores ancestrais do que poderia ser chamado de África tradicional, apropriando-se e revisitando a rica história dos múltiplos povos antes do período de sofrimento representado pela colonização96 (1875–1974). De lá para cá, o cinema africano cresceu, diversificou-se em termos de nacionalidades dos diretores, mas também em termos de linguagens, de assuntos e de questões sociais abordadas, ao ponto de, hoje, ser considerado como um cinema original e eclético, celebrado em numerosos festivais no continente e no planeta todo. Para o Brasil, que tem na relação histórica, atlântica, com a África, um dos pilares do seu processo de formação social, estranhamente, 95 Professor associado do Departamento de História da UFC (Universidade Federal do Ceará). 96 Apenas alguns filmes, nesses primórdios, como La noire de (A negra de..., Senegal, 1966, 65min) de Ousmane Sembene, Soleil Ô, de Med Hondo(Sol Ô, Mauritânia, 1967, 104min) abordaram de frente a questão da denúncia do colonialismo.

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104 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) teve pouco contato com esse cinema que não contou, fora de alguns festivais universitários, com quase nenhuma distribuição oficial no país. Mesmo assim, a relação antiga e a deportação para o Brasil de quase metade dos escravizados envolvidos no comércio negreiro do Atlântico geraram muitos pontos em comum, muitas conexões possíveis e certamente necessárias entre as duas margens. Afinal, abordar a África, quer seja através do cinema, da história, da literatura... é sempre um passo importante para compreender o Brasil, enxergar o negro e a herança africana a partir de um olhar consciente, além do preconceito, e mesmo contribuir sobremaneira ao debate antirracista. A conexão atlântica construída em cima do processo de escravização e do comércio negreiro sedimentou experiências que, mesmo correlacionadas, situavam-se nos dois pontos, origem e destino, da travessia infernal dos capturados africanos. As duas margens do oceano vivenciaram experiências diferentes do ponto de vista do sistema escravagista, que, se planejado na Europa e atingindo muitas regiões e povos da África, encontrou nas Américas e no Brasil, em particular, as suas formas mais sistemáticas, desenvolvidas, abrangentes, ao ponto de se constituir no que pode ser chamado de “modo de produção escravista” (LOVEJOY, 2002, p. 40) ou de sociedade escravistas. Por isso, e já que surge regularmente como questão polêmica, panfletada, a memória da escravidão na África, enquanto campo de análise, reveste um interesse que se situa, em particular, na possibilidade de contribuir para romper com as horizontalizações, assimilações e aproximações proferidas por alguns, que, para justificar a continuação perpétua do processo escravocrata, declamam que “são os africanos que escravizavam”. O ponto de partida da minha reflexão, agora contextualizada, versa sobre memórias “do lado de lá”, da escravidão e do comércio negreiro — virado tráfico nos idos de 1830 —, memórias e imaginários de africanos, aqui pensados a partir da produção cinematográfica da África ocidental. Interessam-me, mais precisamente, filmes do gênero “filme histórico”, entendidos como produzindo um discurso histórico, e que se encaixam no período de 1980–2000, período de fomentação da institucionalização de uma memória da escravidão e de políticas de patrimonialização de alguns sítios no golfo da Guiné e na Senegambia. Esse período vê, ao mesmo tempo,

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a consolidação do FESPACO (Burkina Faso), nascido, entre outros, da dinamização do cinema africano em alguns países — Senegal, Mali, Mauritânia, Costa do Marfim, Camarões, Argélia... para falar dos diretores mencionados aqui — que tinham se livrado do julgo colonial francês. A narrativa segue, no diálogo entre as três instâncias, da escravidão, da memória e do cinema, num jogo de conjugação e de contrapontos, avaliando possibilidades de interpretações. Alguns referenciais sobre a escravidão na África Antes de pensar a memória da escravidão, existe a necessidade de desconstruir a categoria de escravidão para quebrar a homogeneização da compreensão de fenômenos bastante diversos 97. Assim, é importante compreender o impacto do tráfico atlântico que transformou seres em mercadorias e desembocou numa escravidão americana em grande parte regida por códigos negros (TAUBIRA, 2007) — fora o Brasil —, onde o estatuto dos escravizados negava a condição de ser social. Esse ocasionou a maior migração forçada de pessoas dos tempos modernos (com o comércio oriental de escravizados), esvaziando regiões, decimando povos e populações, dilacerando famílias. Se existiam práticas de sugestão, de servidão, de coerção e mesmo de escravização de pessoas na África antes da chegada dos europeus, o tráfico atlântico representa uma ruptura profunda — pela abrangência do fenômeno — nos motivos e nas lógicas de “captação” e no estatuto dos escravizados. A continuidade existente entre a escravidão moderna americana, ligada ao tráfico, e as modalidades de conquista e de exploração dos povos africanos no imperialismo e no colonialismo subsequente (1870–1975) parecem evidentes, ao ponto de podermos falar de primeira e de segunda colonização (TIM, 2013, p.27), e, mesmo considerando que os europeus, na sua ideologia baseada na lógica dos 3 C “civilizar” a África, pelo, “comércio” e o “cristianismo”” (M´BOKOLO, 2011, p. 135), justificaram a sua invasão do continente africano pelo objetivo autoproclamado de erradicar a escravidão, depois de ter terminado com o tráfico atlântico que eles mesmos tinham organizado. 97 Ver, por exemplo, o anacronismo representado pelo fato de falar, hoje no Brasil, de “trabalho escravo”. Sobre o assunto, consultar Eduardo França Paiva (2007).

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106 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) Ade Ajayi (2007, p. 44) enfatiza: [...] A verdade é que séculos de tráfico de escravos tinham criado uma situação que exigia a Reparação. Na ausência de tal Reparação, o colonialismo só fez aumentar a dependência da África frente à Europa (Ajayi 2000). Apesar das recentes tentativas de reescritura da história do colonialismo na África, ninguém pode negar que o colonialismo nasceu do movimento abolicionista, nem que ele é muito ligado ao tráfico negreiro. O desejo de apropriar-se da mão de obra e das terras africanas, força motora do colonialismo, era uma tentativa objetivando dar continuidade à exploração da mão de obra africana até então fornecida pelo tráfico negreiro, mas transpondo esse fenômeno das Américas para a África em si98.

Assim, o abolicionismo, na sua vertente imperialista, proporcionou, mais que impediu, o tratamento desumano e a exploração das populações locais, bem como apareceu como ineficaz para dar fim às práticas sociais de cativeiro e de sujeição, que existiam em certas tradições e regiões africanas. De fato, até hoje, com enfatiza THIOUB (2012, p. 7): A persistência de práticas sociais ligadas ao cativeiro, manifestando-se sob formas e em campos sociais múltiplos, indo da servidão real à transmissão do estatuto servil por hereditariedade biológica, passando pela ressurgência de estereótipos ligados à uma escravidão social vivaz, continua identificável em numerosas sociedades contemporâneas da África do Oeste.99

Mesmo de forma rápida e caricatural, os elementos históricos apresentados atestam a diversidade de um fenômeno que revela 98 Tradução minha de: [...] La vérité est que des siècles de traite des esclaves avaient créé une situation qui exigeait la Réparation. En l’absence d’une telle Réparation, le colonialisme n’a fait qu’accroître la dépendance de l’Afrique vis-à-vis de l’Europe (Ajayi 2000). En dépit des récentes tentatives de réécriture de l’histoire du colonialisme en Afrique, personne ne peut nier que le colonialisme est né du mouvement abolitionniste, ni qu’il est très lié à la traite négrière. Le désir d’accaparer la main d’oeuvre et les terres africaines, force motrice du colonialisme, était une tentative visant à poursuivre l’exploitation de la main-d’oeuvre africaine jusque-là fournie par la traite négrière, mais en transposant ce phénomène des Amériques vers l’Afrique même. 99 Tradução minha de : [...] La persistance de pratiques sociales liées à la captivité, se manifestant sous des formes et dans des champs sociaux multiples, allant de la servitude réelle à la transmission du statut servile par hérédité biologique, en passant par la résurgence de stéréotypes en rapport avec un esclavage social vivace, reste repérable dans nombre de sociétés contemporaines de l’Afrique de l’Ouest.

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ainda mais a sua complexidade quando abordado pelo prisma da problemática memorial. Pensar a memória da escravidão no cinema histórico africano francófono do período estudado requer abordar o contexto dessa memorialização no âmbito regional, nacional (países dos diretores de filmes), mas também transnacional (BAMBA, 2013), na medida em que as produções (muitas vezes coproduções francesas — daí também o termo “francófono” no título) e o público de destino dos filmes compõem elementos que interferem diretamente na natureza do discurso histórico produzido. Memória da escravidão, Reparação e cinema africano francófono Mesmo se hoje o turismo memorial ligado aos antigos sítios do tráfico se transformou em um verdadeiro mercado econômico, no qual os países da África ocidental entram em concorrência (JOACHIM, 2016), as dinâmicas em jogo, nas décadas de 1970 a 1990, na patrimonialização desses sítios100 me parecem poderem ser relacionadas com a emergência concomitante, no continente, de uma reflexão e de um posicionamento voltados para a questão da Reparação. Sem entrar no debate, vale dizer que as políticas de reparação e de reconciliação, se elas trazem especificidades, integram o trabalho de memória sem o qual elas não podem existir101. No começo da década de 1990, a OUA (na época, Organização da Unidade Africana) encarregou um Grupo de Personalidades Eminentes (GEP) de promover a causa das reparações, baseando-se “na evidência da exploração dos Africanos nas épocas do tráfico dos escravos e da colonização, eventos de longa duração responsáveis dos dramas humanos na África e na Diáspora” (JEWSIEWICKI, 2004, p 11). Por isso, algumas nações europeias teriam uma obrigação moral et política de Reparação. Os trabalhos culminaram no Documento Final da Conferencia contra o Racismo de Durban, de setembro de 2001, que qualificou a escravidão e o tráfico, em 100 Classificação, pela UNESCO, ao Patrimônio mundial da humanidade de Gorée (Senegal, 1978), classificação ao patrimônio nacional dos fortes e castelos em Gana (1973). Inscrição na lista indicativa da Unesco do porto negreiro de Ouidah (Ajudá, Benim, 1996), onde foi inaugurado o projeto A Rota dos Escravos (UNESCO), que foi lançado em 1994. 101 A referência constante ao passado inerente à política de Reparação é apontada, hoje, por alguns intelectuais como um dos seus principais limites. Sobre uma visão crítica ou reservada da noção, ver, entre outros, MBEMBE (2004), APPIAH (2004).

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108 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) particular transatlântico, como crimes contra a humanidade, sendo com o colonialismo as maiores fontes e manifestações do racismo, da discriminação racial e da xenofobia (HOWARD-HASSMANN, 2004, pp. 11–12). Interessante notar que o processo de memorialização descrito, quer seja na sua vertente de patrimonialização dos sítios do tráfico ou nas movimentações em torno da ideia de Reparação, concentram-se na referência ao tráfico atlântico, não abordando a questão do tráfico oriental arabomuçulmano, cuja abrangência, em termos de duração ou de número de escravizados, ultrapassa o tráfico atlântico. Se a presença dominante do Islã na África ocidental parece ser um elemento de destaque nessa questão, MAZRUI (2002), um dos integrantes do GEP, grande historiador, apresenta outra razão: a escravização e o tráfico orientais, ao contrário do crime perpetrado pelos ocidentais que se voltou contra as populações negras (inclusive nas Américas), não teriam se baseado na discriminação racial, os escravizados pelos muçulmanos podendo ser de diferentes cores de pele. O argumento é pelo menos controverso102, mas procuramos aqui apenas salientar as características gerais do processo de memorialização. No que interessa ao cinema, o clássico Ceddo (Senegal, 1977, 120min), do grande diretor Ousmane Sembene e de produção senegalesa, aparece como uma exceção na abordagem do tema. Situando a sua ação no século XVII ou XVIII, quando missionários cristãos e muçulmanos competem para converter os Ceddos103 “animistas”, a escravidão aparece de forma furtiva, através da imagem da “marcação ao ferro” de escravos pelo branco, do comerciante de produtos e de homens, mas também pela tentativa de escravização daqueles que não aceitam o islã, por parte dos muçulmanos, chefiados por um imã árabe. A palavra viva, coletiva e mobilizadora dos Ceddos incarna a resistência do africano frente à dupla opressão estrangeira das religiões católicas e muçulmanas e da sua implicação no tráfico104. Vale lembrar que esse filme, caracterizado pela verve 102 Sobre uma visão totalmente contraditória, ver N’DIAYE (2019). 103 Para M´BOKOLO (2009, p. 409): “Tais foram em particular os Ceddos da Senegâmbia, escravos da Coroa organizados em tropas equipadas com armas, especialistas nas guerras tanto como nas pilhagens e levados, por este fato, a desempenhar um papel crescente durante a sucessão ao trono.” 104 Sobre esse contexto na literatura, ver a excelente trilogia, muito bem documentada, mas infelizmente ainda não traduzida em português, “Ségou” da romancista

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inconfundível de denúncia política de Sembene, sofreu, durante anos, a interdição do governo senegalês pela imagem que dava do colonizador branco e do Islã, religião dominante no país. Sembene sobre esse filme (Apud HENNEBELLE, 1985, p. 29): Quis, sobretudo, que seja um filme de reflexão, para que nós, africanos, tenhamos a coragem de tentar refletir sobre a nossa própria história e os elementos que nós recebemos do exterior e que nos cessemos de fazer filmes para chorar sobre a nossa miséria ou solicitar a condescendência dos outros105.

Imagem 1: A resistência africana à dominação externa. Ceddo, Senegal, 1977, 120min. Jom, Senegal, 1981, 80min.

Para a 2ª geração dos cineastas africanos, emerge a questão da afirmação dos princípios africanos, que delimitam o sentido de um luta anti-imperialista — começo, em 1970, da FEPACI — Federação Pan Africana dos Cineastas e do FESPACO — Festival Panafricano de Cinema e Televisão de Ouagadougou — contra a alienação econômica e cultural dos países recém-independentes. Por isso, no período, encontram-se muitos mais filmes tematizando a luta contra o colonialismo106, a referência à escravidão aparecendo em poucas guadalupense Maryse Condé (1985). 105 Tradução minha de: J´ai surtout voulu que ce soit un film de reflexion, afin que nous, Africains, ayons le courage d´essayer de réflechir sur notre propre histoire et les éléments que nous avons reçu de l´extérieur et que nous cessions de faire des films pour pleurer sur notre misère ou solliciter la condescendance des autres. 106 Ver entre outros exemplos os filmes de Ousmane Sembene, La noire de (A negra de..., Senegal, 1966, 65min), de Med Hondo, Soleil Ô (Sol Ô, Mauritânia, 1967, 104min) e Sarraounia (Sarraounia, Mauritânia, 1986, 120min); Sambizanga, de Sarah Moldoror (Sambizanga, Angola, 1972, 102min), Lumumba, de Raoul Peck (Lumumba,

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110 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) ocasiões e, geralmente, de forma indireta. Assim, no filme Jom (Jom, Senegal, 1981, 80min), de Ababacar Samb Makharam, no qual um narrador principal (griot), encarregado de explicar a seu público o que é o “Jom” (coragem, dignidade, respeito, primeira de todas as virtudes) do homem africano, traz à tona, como exemplo, uma cena tirada do passado, na qual o escravo doméstico não aceita a dominação e o tratamento do seu senhor branco. Da mesma forma, encontramos uma referência pioneira à escravidão no filme consagrado (Prêmio do Júri no festival de Cannes em 1987) Yeelen, la Lumière (Yeelen, A Luz, Mali, 1987, 106min), de Souleymane Cissé, quando o mestre cego Djigui, nas falésias de Bandiagara, profetiza, a partir da visão sonhada e comunicada pela Luz (espíritos), para Nyanankoro (o herói do filme), o seu sobrinho, uma era de mudança, o fim dos Bambaras, a conquista dos seus territórios e a vinda futura e “marcada” da sua escravização. Trata-se, no caso, de uma previsão, num tempo anterior ao contato com os europeus, de uma anunciação da vinda futura dos tempos da escravidão e do tráfico atlântico.

Imagem 2: A escravidão africana “por dentro”. Yeelen, A Luz, Mali, 1987, 106min. A coragem dos outros, França, 1982, 92min. Adanggaman, Rei Negro, Costa do Marfim, 1999, 79min.

Se as referências à escravidão e ao tráfico atlântico são poucas no cinema africano das décadas de 1980–1990, observa-se um silencio quase absoluto em relação à evocação da escravidão doméstica Haïti, 2000, 116 min), Indigènes de Rachid Bouchareb (Dias de Glorias, Algeria, 2006, 128min).

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africana ou mesmo à participação africana no tráfico atlântico. Aqui também, duas exceções: um filme mudo, escrito e filmado por um francês, certo, mas com uma equipe do Burquina Faso, produzido pela extinta Cinafric, Le courage des autres (A coragem dos outros, França, 1982, 92min), única longa-metragem de Christian Richard, tendo como ator principal o fantástico Sotigui Kouyaté no papel de um espírito ajudando um jovem chefe africano cuja comunidade foi capturada por traficantes africanos para ser vendida no tráfico atlântico. Além de ser um dos únicos filmes a abordarem o tema do papel e da responsabilidade dos africanos na captura de escravizados para o tráfico, a obra, que homenageia o Lagl Naab a Âbga (alto dignitário e depositário da cultura oral mooga do Burkina Faso) no seu começo, tem uma narrativa e uma linguagem que o aproxima muito dos filmes da segunda geração do cinema africano (Yeelen, de Souleymane Cissé...). Essa observação certamente pode ser relacionada ao fato de o diretor francês Christian Richard ter realizado o filme quando estava ensinando no Instituto do Cinema de Ouagadougou — INAFEC. De qualquer forma, esse filme, apesar de qualidades estéticas e de um cenário interessante, não foi bem recebido e teve, certamente, por sua temática, uma distribuição muito reduzida. “A sua apresentação em abertura do Fespaco tinha provocado uma grande controvérsia: mostrar a escravidão dos Negros pelos Negros equivaleria a justificar o tráfico?”107 (BARLET, 2012, p. 234). Adanggaman, Roi Nègre, do marfinense Roger Gnoan M’bala (Adanggaman, Rei Negro, Costa do Marfim, 1999, 79min), constitui outra obra africana de cinema histórico que aborda, de forma corajosa, o tema do envolvimento de algumas realezas com a captura predatória de sujeitos para o comercio escravagista. Ambientado no final do sec. XVII, o filme tem um enredo parecido com o filme citado anteriormente, narrando a história de um jovem que, para salvar o seu povo capturado e escravizado pelo rei negreiro Adanggaman, deixa-se capturar e, indo a caminho de ser vendido para as Américas, consegue, com a ajuda de uma guerreira amazona que era sua carcereira, o seu objetivo. Para Roger Gnoan M´Bala (AFRICULTURES, s/d): 107 Tradução minha de: Sa présentation em ouverture du Fespaco avait déclenché une vive controverse : montrer l´esclavage des Noirs par les Noirs revenait-il à justifier la traite?

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112 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) Esse filme está colocado sob o signo da memória. Tinha talvez chegado o tempo de falar disso; para nós e para os outros. Quatro séculos de um abominável e vergonhoso comercio, com milhões de vítimas engolidas pelos oceanos ou levadas pela brutalidade. Por essa razão, convido vocês a reabrir essa rachadura. Reabramos essa ferida histórica. Falemos disso, todos. Nesse sentido, Adanggaman será apenas uma contribuição. Para perdoar, mas também para não esquecer. Nunca108.

Essa questão ultrapassa o universo do cinema, aparecendo com um tema muito controverso e geralmente silenciado no âmbito do debate público sobre a memória da escravidão. Para THIOUB (2012, p. 8), referindo-se à escravidão doméstica: A atitude de denegação que se observa sobre essa questão não é, certamente, estranha ao silêncio da historiografia africana sobre o estudo da escravidão doméstica. No mesmo registro, a memória dominante da escravidão se confine, nos discursos das elites repercutidos pelas instancias estatais (programas escolares), à evocação dos tráficos escravagistas, principalmente transatlânticos, ignorando a sua presencia notável nas culturas populares: cantos, provérbios, ditados, etc. Da mesma forma, os lugares de memória da escravidão e os seus monumentos referem-se quase-exclusivamente ao tráfico atlântico e são centrados sobre os espaços da costa atlântica.109

As lógicas descritas da memorialização da escravidão e do tráfico atlântico através do processo de patrimonialização dos sítios africanos — em particular, portos de embarque dos escravizados 108 Tradução minha de: Ce film est placé sous le signe de la mémoire. Il était peut-être temps d’en parler; pour nous et pour les autres. Quatre siècles d’un commerce abominable et honteux, avec des millions de victimes englouties par les océans ou emportées par la brutalité. Pour cette raison, je vous invite à rouvrir cette déchirure. Rouvrons cette blessure historique. Parlons-en, tous. Dans ce sens, Adanggaman ne sera qu’une contribution. Pour pardonner, mais aussi pour ne pas oublier. Jamais. 109 Tradução minha de: L’attitude de déni qui s’observe sur cette question n’est certainement pas étrangère au silence de l’historiographie africaine sur l’étude de l’esclavage domestique. Dans le même registre, la mémoire dominante de l’esclavage se confine, dans le discours des élites relayés par les instances étatiques (programmes scolaires), à l’évocation des traites esclavagistes, principalement transatlantiques, ignorant sa présence remarquable dans les cultures populaires: chants, proverbes, dictons, etc. De même, les lieux de mémoire de l’esclavage et ses monuments se réfèrent quasi-exclusivement à la traite atlantique et sont centrés sur les espaces de la côte atlantique.

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Imagem 3: A escravidão e o tráfico como “enjeux” memoriais. Sankofa, Etiópia, 1993, 125min. Asientos, Camarões, 1995, 52min.

— aparecem da mesma forma, mas num período posterior (a partir dos anos 1995) no contexto da França metropolitana. Hermético durante muito tempo à evocação desse passado escravagista, o estado francês se viu obrigado, com a pressão da população das Antilhas e das antigas colônias na África110, a abrir o debate na sociedade. A cidade de Nantes — e depois Bordeaux, Le Havre, St Nazaire, todos antigos portos envolvidos no tráfico — foi pioneira nesse sentido, planejando em 1998 a edificação, nas docas da cidade, de um Memorial da Abolição da escravidão. A mesma cronologia aparece na referencialidade aos portos atlânticos de embarque dos escravizados que é investida, como poderoso símbolo em alguns filmes africanos, privilegiados aqui, da década de 1990 e franceses a partir de 1995111. 110 Ver entre outros exemplos o impacto simbólico da Marcha silenciosa realizada em Paris no dia 23 de maio de 1998, ano de comemoração oficial dos 150 anos da abolição da escravidão. Organizada pelo Comité para uma comemoração unitária do sesquicentenário da abolição da escravidão dos negros nas colônias francesas (CCUCAENCF) a Marcha visava a prestar homenagem aos ancestrais escravizados e de tirar eles do esquecimento, reclamando silenciosamente o dever de memória. Representou um marco no processo de abertura de um debate na sociedade sobre a questão das memorias silenciadas dos descendentes de escravizados. Em 2001 seria votado no parlamento, sob proposição da deputada da Goiana francesa Christiane Taubira, um texto de Lei reconhecendo a escravidão como crime contra a humanidade. 111 Ver, por exemplo, o filme documentário “La côte des esclaves” (A costa dos escravos, França, 1994, 53min), de Elio Suhamy, encomenda do canal TV franco-alemã Arte. Ver também o filme cliché de Bernard, Giraudeau. “Les caprices d´un fleuve” (Os caprichos de um rio, França, 1996, 111min), sobre o exilio, durante a

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114 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) Mesmo fugindo do nosso recorte de filmes históricos da África francófona, impossível de não mencionar um filme etíope, de Haile Gerima, Sankofa, (Sankofa, Etiópia, 1993, 125min) e um documentário ensaístico do camaronês François L. Woukoache, Asientos (Asientos, Camarões, 1995, 52min)112. Tomando por quadro o Cape Coast Castle (Cabo Corso, Gana) pelo primeiro e A Casa dos Escravos em Gorée (Senegal) para o segundo, as duas obras investem nos espaços, hoje vazios, de antigas feitorias como ponto de partida da evocação da memória e do “luto de milhões de mortos sem sepulturas. Os mortos de ontem e os de hoje... nomes para sempre perdidos no interior da história” com apontado em voz off, quando a câmera passeia lentamente nos muros dos quartos dos escravizados, no fundo sonoro... o mar batendo nas paredes, no filme Asientos. Por sua vez, no filme de Gerima (RIBEIRO, 2018, p. 694): Se é preciso retomar o passado, Sankofa é o pássaro que simboliza, na cultura akan, do Gana, o movimento de retorno e de reviravolta que a retomada implica: um pássaro que se volta sobre sua própria cauda, sobre o passado, preparando ou prometendo um voo em direção ao futuro.

A imagem do mar, enquadrada na “porta da não volta” pela qual passavam os escravizados para serem embarcados e onde diziam “Adeus à África”113, abre-se em direção a um vazio, repleto e guardião das almas dos que desapareceram. É também um ponto de partida e de volta para os afrodescendentes presentes enquanto turistas, tanto no filme de Gerima quanto em outro filme de grande repercussão midiática, do argelino Rachid Bouchareb, Little Senegal (2001, 97min), produção franco-germano-argelina, onde Alloune (interpretado pelo ator Sotigui Kouyaté), guia turístico na Casa dos Escravos da Gorée atual, vai operar uma nova travessia atlântica, nos rastros dos seus antepassados e indo ao encontro, nos Estados-Unidos, dos descendentes dos seus parentes dioulas escravizados, reconstituindo, no bairro nova-iorquino de Little Senegal, revolução francesa, de um aristocrata-pensador que se apaixona pela África e por uma jovem escravizada. 112 FESPACO — Ouagadougou (1997): Prêmio do melhor filme documentário. 113 Na fala do personagem Alloune, guia turístico na Casa dos Escravos em Gorée — no filme Little Senegal —, quando apresenta a “porta sem volta” à turistas afroamericanas, completamente comovidas.

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uma genuína família africano-afroamericana, testemunha de novas e velhas migrações.

Imagem 4: “Middle passage” revisitado. Little Senegal, França-Alemanha-Argélia, 2001, 97min. Índias Ocidentais ou os negros quilombolas da Liberdade, Mauritânia, 1979, 110min.

As memórias atlânticas da escravidão têm nas imagens marítimas passagens obrigatórias, referências incontornáveis, abismos sem fim do “Middle passage”114, onde o barco negreiro surge como grande símbolo da modernidade colonial. Ele aparece, muito metaforizado e transformado em palco principal da atuação dos atores negros afrodescendentes, martiniquenses, na fresca teatralizada West Indies ou les nègres marrons de la liberté115 (Índias Ocidentais ou os negros quilombolas da Liberdade, Mauritânia, 1979, 110min), filmada pelo diretor mauritano Med Hondo116, que utiliza o barco117 como fundamento/testemunha da experiência afrodescendente, trazendo à tona e denunciando a exploração colonial do período do tráfico até hoje. 114 O filme do martiniquense Guy Deslauriers intitulado “Passage du Milieu” (Passagem do Meio, Martinica- França, 1999, 74 min) é um dos únicos a abordar frontalmente a experiência da travessia, a partir dos porões. 115 Baseado na peça teatral do dramaturgo martiniquense Daniel Boukman, intitulada “Les négriers” (Os negreiros). 116 Ele mesmo descendente de uma família de escravos da Mauritânia que tinha sido “alforriada”. 117 O filme todo se desenvolve nesse barco negreiro reconstruído, com os seus porões, dentro de um galpão enorme de um sitio industrial abandonado.

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116 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) Conclusão Caminhando pelos meandros das memórias africanas da escravidão e do tráfico negreiro e passeando por alguns filmes tratando do tema, podemos notar que ambas trajetórias se acompanham, bem abaixo do esperado, por se referirem a um dos processos de maior importância da modernidade que configurou completamente as regiões atlânticas. De fato, “O cinema não sabe como abordar a escravidão e o tráfico negreiro. Confirmação nos anos 2000: é um dos grandes recalcados da memória mundial”118 (BARLET, 2012, p. 232). Do lado da África ocidental, percebe-se toda a ambiguidade e a complexidade de um objeto muito sensível, envolvendo questões que ainda precisam emergir de forma mais clara no debate e nas opiniões públicas. Tendências atuais apontam conjunções, articulações e, por vezes, antagonismos entre dimensões como: o dever e o trabalho de memória; a necessidade anunciada de sair de uma perspectiva vitimada; a luta contra a escravidão contemporânea; os elementos econômicos ligados ao turismo memorial da “Rota dos escravos”. Em relação ao cinema da África ocidental, a sua dificuldade em sair da dependência de financiamentos e produções europeus — franceses, em particular — cria situações nas quais pressões engendrando, às vezes, autocensuras continuam a existir sobre assuntos dificilmente abordáveis. Mesmo assim, a renovação provocada pela emergência do cinema digital, que diminua os custos e favorece, em teoria, a autonomia dos diretores, aparece como um elemento importante na perspectiva, que já está acontecendo, de consolidação de um cinema africano mais “livre” na sua disposição a apreender e tencionar as grandes questões sociais e políticas, os desafios postos na construção da África de amanhã. Referências AFRICULTURES, Fiche Filme Adanggaman, Roi Nègre. Disponível em: http://africultures.com/films/?no=238. Acesso em : 22 ago. 2021 AJAYI, J. F. Ade. La politique de Réparation dans le contexte de la mondialisation. Cahiers d’études africaines, n. 173–174, pp. 41–63, 2004. 118 Tradução minha de: Le cinema ne sait comment aborder l´esclavage et la traite négrière. Confirmation dans les années 2000: c´est un des grands refoulés de la mémoire mondiale.

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História da África em Perspectiva: Ensino e Pesquisa 117 DOI https://doi.org/10.4000/etudesafricaines.4524. Disponível em: http:// journals.openedition.org/etudesafricaines/4524. Acesso em: 16 ago. 2021. APPIAH, Kwame Anthony. Comprendre les réparations. Cahiers d’études africaines, n. 173–174, pp. 25–40 , 2004. DOI https://doi.org/10.4000/ etudesafricaines.4518. Disponível em: http://journals.openedition.org/ etudesafricaines/4518. Acesso em: 18 ago. 2021. BAMBA, Mahomed. Os espaços de recepção transnacional dos filmes: propostas para uma abordagem semiopragmática. Crítica Cultural (Critic), Palhoça, SC, v. 8, n. 2, pp. 417–424, jul./dez. 2013. BARLET, Olivier. Les cinémas d´Afrique Noire. Le regard en question. Paris: l’Harmattan, 1996. BARLET, Olivier. Les cinémas d´Afrique des années 2000. Perspectives critiques. Paris: l’Harmattan, 2012. CONDÉ, Marise. Ségou (3 tomos). Paris: Robert Laffont, 1985. HENNEBELLE, Guy. Sembène parle de ses films. In : Sembène Ousmane. Cinémaction, nº.34, p. 29, 1985. HOWARD-HASSMANN, Rhoda E. Reparations to Africa and the Group of Eminent Persons. Cahiers d’études africaines, n. 173–174, pp. 81–97, 2004. DOI https://doi.org/10.4000/etudesafricaines.4543. Disponível em: http:// journals.openedition.org/etudesafricaines/4543. Acesso em: 16 ago. 2021. JEWSIEWICKI, Bogumil. Héritages et réparations en quête d’une justice pour le passé ou le présent. Cahiers d’études africaines, n. 173–174, pp. 7–24, 2004. DOI https://doi.org/10.4000/etudesafricaines.4514. Disponível em: http://journals.openedition.org/etudesafricaines/4514. Acesso em: 16 ago. 2021. JOACHIM, Fanny. Esclavage : la course de quatre pays africains au tourisme mémoriel. Jornal Le Monde, 4 jul. 2016. Disponível em: https:// www.lemonde.fr/afrique/article/2016/07/15/esclavage-la-course-de-quatre-pays-africains-au-tourisme-memoriel_4970215_3212.html. Acesso em: 16 ago. 2021. LOVEJOY, Paul. A escravidão na África: uma história das suas transformações. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2002. MAZRUI, M. Ali. (ed.) Black Reparations in the Era of Globalization. Binghamton NY: Institute of Global Cultural Studies, 2002. MBEMBE, Achille. Essai sur le politique en tant que forme de la dépense. Cahiers d’études africaines, n. 173–174, pp. 151–192, 2004. DOI https:// doi.org/10.4000/etudesafricaines.4590. Disponível em: http://journals.openedition.org/etudesafricaines/4590. Acesso em: 18 ago. 2021.

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118 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) M’BOKOLO, Elikia. Africa negra: história e civilizações. Tomo I (até o século XVIII). Salvador: Edufba; São Paulo: Casa das Áfricas, 2009. M’BOKOLO, Elikia. Africa negra: história e civilizações. Tomo II (Do século XIX aos nossos dias). Salvador: Edufba; São Paulo: Casa das Áfricas, 2011. N’DIAYE, Tidiane. O genocídio ocultado: Investigação histórica sobre o tráfico negreiro árabomuçulmano. Lisboa, Portugal: Gradiva, 2019. PAIVA, Eduardo França. Travail contraint et esclavage. Cahiers d’études africaines, n. 179–180, pp. 1123–1142, 2005. DOI https://doi.org/10.4000/ etudesafricaines.15104. Disponível em: http://journals.openedition.org/ etudesafricaines/15104. Acesso em: 16 ago. 2021. RIBEIRO, Marcelo R. S. Retomar o passado: a escravidão em filmes africanos. XXII Encontro SOCINE. 50 anos de Maio de 1968. 2018, Goaiana. Anais[...]. São Paulo: SOCINE, 2018, pp. 692–697. Disponível em: https:// www.socine.org/wp-content/uploads/anais/AnaisDeTextosCompletos2018(XXII).pdf. Acesso em: 22 ago. 2021. TAUBIRA, Christiane (intro). CODES NOIRS. De l´esclavage aux abolitions. Paris : Dalloz, 2007. THIOUB, Ibrahima. Stigmates et mémoires de l’esclavage en Afrique de l’Ouest : le sang et la couleur de peau comme lignes de fracture. FMSH-WP, n. 23, out. 2012. Disponível em : https://wpfmsh.hypotheses.org/207. Acesso em: 14 ago. 2021. TIM, Louis-Georges. De l´esclavage aux réparations, les textes clés d´hier et d´aujourd´hui. Paris : Les Petits Matins, 2013.

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Gênero, mulheres e a escrita da História da África no Brasil Moisés Corrêa da Silva119 Núbia Aguilar120

Este trabalho é um exercício analítico proposto para pensarmos sobre o desenvolvimento dos estudos a respeito do continente africano em algumas universidades brasileiras a partir de duas perspectivas. A primeira delas recai na possibilidade de refletir sobre a multiplicidade de temas que tem sido atrativa para diferentes olhares, e contribuem para a construção de narrativas imbricadas a interesses sociais manifestos na condução de pesquisas. Por outro lado, chamamos atenção para os desdobramentos dessas discussões, catalizadoras de preocupações fundamentadas em percepções de uma época. Assim, as produções permitem investigar movimentos dinâmicos, inseridos nos dilemas da própria escrita da História, conectados aos lugares ocupados por historiadoras e historiadores. Estudar este campo da História da África é um encontro com questões, temas e entraves reveladores e explicativos sobre contextos específicos. Para atender a esse objetivo geral, apresentaremos um levantamento de dados sugestivo de presenças e ausências em produções que possuem por tema central a história de mulheres e questões relacionadas a gênero em África, entre os anos de 2003 e 2020. Em paralelo, a pesquisa buscou estudos realizados por mulheres sobre a história do continente africano em algumas universidades do Brasil. Os dados que utilizamos foram coletados nos repositórios das universidades e nas páginas virtuais dos Programas de Pós-Graduação 119 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ (PPGHIS/UFRJ). 120 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da USP.

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120 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) em História, com conceitos seis e sete, concedidos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES). A aderência em historicizar essas formas de produção concentra-se na atividade investigativa que busca confrontar categorias de dominação ainda visíveis e sentidas em diferentes espaços e por sujeitos históricos (DIAS, 1998). Deste modo, se a África tem uma História, conforme escreveu Joseph Ki-Zerbo (2006), é importante entendermos qual História é esta. Por tempos, ocorreram silenciamentos e desvios de informações vinculados a narrativas coloniais, organizadas para a construção de visões de mundo estereotipadas e reducionistas acerca das sociedades africanas. Essas construções percorreram espaços afetados por estruturas de poder, como composições envoltas a relações de gênero. Anne McClintock (2010) é assertiva ao pontuar que o colonialismo deve ser lido por meio de uma teoria de gênero. O movimento colonial, por essa perspectiva, é descortinado em uma análise minuciosa sobre as atividades desenvolvidas por diferentes pessoas. O colonialismo foi correspondente permanente para escritas formuladas sobre África como um lugar construído pela visão ocidental. Homens e mulheres foram descritos em diálogo com os interesses imperiais, trama posta na qual não é difícil encontrar diferenças atenuadas por marcadores de gênero (GEIGER, MUSISI, ALLMAN, 2002). Nosso recorte não é uma tentativa fechada, amparada na categorização dura, excludente de formas subjetivas de definição. Mais que expor dados informativos sobre alguns contextos, buscamos aproximar, sem tentar definir parâmetros de representação que vão além (certamente) de um primeiro contato com termos que surgem de buscas e seleções em bases de dados. A intenção geral é fornecer indicativos sobre produções que perpassam por questões de gênero, sem gerar ou tender, de alguma forma, a endossar tentativas frustradas de preestabelecer parâmetros. Tentamos colocar em primeiro plano, na linha da História da África, elementos que fazem parte desses estudos. A dificuldade de contornar desafios foi presente ao considerarmos as identidades como múltiplas, e, por isso, os dados aqui utilizados não conseguem adensar sobre autoidentificações, nomes sociais, gêneros fluidos, binarismos, não binarismos e outras percepções tangíveis a diferentes sujeitos históricos que estiveram envolvidos na feitura dos trabalhos que chegaram até nós.

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Concordamos, de antemão, com uma colocação bem fortuita realizada por bell hooks121 em que categorias são construídas e desconstruídas, a exemplo da categoria “mulher” (hooks, 2017): [...] a insistência em reconhecer que o sexo não é o único fator que determina as construções de feminilidade — foram uma intervenção crítica que produziu uma revolução profunda no pensamento feminista hegemônico, produzida principalmente por acadêmicas brancas em sua maioria (hooks, 2017, p. 88).

A identificação, em um contato inicial, com nomes registrados, leitura de títulos e resumos foi o primeiro movimento para este trabalho. Associamos nomes e temas por meio de um recorte de gênero, que, antes de qualquer tentativa de definir, cria um horizonte de aproximação. Reconhecemos que nome e corpo possuem profunda associação (PILCHER, 2016) e, dentro do campo das possibilidades, utilizaremos a construção social como artifício para um guia norteador. Para pensarmos sobre a prática de produção científica, com o entrelaçamento assumido em função social, encontramos bell hooks (2017) como base. A teoria por si só não tem ação, mas, vista como potência, possui ferramentas para usos sociais, com atuação dentro de diferentes espaços. As reflexões podem ser apropriadas e utilizadas para atender a necessidades, como a aclamada prática de cura, mencionada pela autora. Toma-se nota da circularidade existente nas formas de construção analítica que não só partem das realidades sociais, como são afetadas pelas mesmas. Por esse ponto, e com o uso de critérios seletivos, escapa-nos, por meio de “padrões críticos restritivos”, produções outras para compor a análise que propomos. Esperamos que esta discussão, com base nos dados selecionados, sirva como fresta indicadora de questões sobre temas que atravessam diferentes circunstâncias em suas produções. “Não é fácil dar nome à nossa dor, torná-la lugar de teorização” (hooks, 2017, p. 102), daí condensamos na proposta assumida a importância de pensarmos sobre os caminhos percorridos para o desenvolvimento de pesquisas e, em um plano amplo, realizar um balanço sobre o desenvolvimento de produções que rebatem 121 As referências a essa pensadora são colocadas em letras minúsculas, ao considerarmos a intenção e o uso adotado pela escritora quando se relacionava com o seu nome em termos gráficos; um questionamento às sociedades logocêntricas.

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122 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) estereótipos reverberados em diferentes meios de expressão. A escrita da História, como possibilidade de encontro com novas narrativas, permite contato com manifestações do passado que são lidas por olhos do presente. Com a temática inserida dentro do campo da História da África, em vista de atender a mais um critério de seleção, recorremos à ata da Primeira Reunião do Grupo de Trabalhos de História da África, construída na Associação Nacional de História (ANPUH), em 2011, para assimilar discussões sobre delimitações desse tema. Há um encaminhamento, sobretudo, para localizar dentro da grande área da História os trabalhos que retratam realidades vinculadas ao continente africano, ainda que se considerem os contatos com outras regiões do mundo. Na página da ANPUH, além das atualizações sobre os movimentos que englobam o tema, cria-se um espaço para interlocução entre ensino e pesquisa122. Márcia Guerra aponta que o desenvolvimento dos Estudos Africanos no Brasil esteve profundamente ligado ao entrelaçamento político assumido com a África a partir da sua inclusão na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em vigor desde a definição na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996) (GUERRA, 2012). O objetivo da BNCC visa incluir uma orientação geral no sistema de ensino, desde as universidades federais até as redes públicas e privadas da Educação Infantil, Fundamental e Médio123. A esse respeito é interessante refletir sobre a abertura concernente ao crescimento de debates, uma vez que se torna obrigatoriedade o ensino e as abordagens possíveis para a construção de diálogos mais inclusivos. Ao passo que ocorre a inclusão do Ensino da História da África em diferentes lugares, é viável ponderar sobre os desafios emergentes de tal movimentação. Conectar ensino e pesquisa, mais que nunca, precisa ser um exercício frequente nas realidades escolares e universitárias. A abordagem da História do continente africano insere-se de modo central nas necessidades da nossa própria 122 Debate sobre o Ensino da História da África na BNCC. In.: https://anpuh.org. br/index.php/bncc-historia/item/3322-nota-do-gt-de-historia-da-africa-da-anpuh-nacional-e-da-associacao-brasileira-de-estudos-africanos-abe-africa-sobre-a-proposta-da-base-nacional-comum-curricular-bncc-para-o-ensino-de-historia Acesso em 20 de novembro de 2021. 123 http://basenacionalcomum.mec.gov.br/.

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sociedade, em que as formas como os discursos são produzidos e apropriados se manifestam de maneira contundente. A ausência de discussões sobre o continente, como argumenta a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (2019), põe-nos de frente à armadilha de cair no “perigo de uma história única”. Outro direcionamento para a busca do material partiu do recorte da avaliação conceitual da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior) como delimitação para a seleção de dados. Os Programas de Pós-Graduação em História, com notas seis e sete, foram selecionados devido à grande influência em território nacional e, em muitos casos, internacional. Considera-se que as pós-graduações com esses conceitos possuem maiores valores orçamentários e abrem algumas possibilidades no que tange à execução das pesquisas. Este exercício dialoga com a forma dinâmica e intensa que assume os estudos da História da África e suas especificidades no Brasil. As preocupações voltadas para entender organizações sociais, eventos e questionamentos sublevados dentro da própria sociedade em que a escrita da História se desenvolve tomaram concretude em pesquisas que partiram de pontos múltiplos e foram intensificadas, em certos aspectos, devido à implementação da Lei 10.639/03. Essa ação desdobra-se na discussão sobre África em ambientes de ensino diversos, pleiteia novos espaços de debates e a reconstituição de acontecimentos com abordagens, até então, com certo teor de ineditismo (OLIVA, 2003). Desvelam-se caminhos, referenciais e apontamentos sobre um continente que ainda é retratado, em alguns casos, com resquícios do colonialismo. Não resta dúvidas sobre o papel encarregado dos estudos africanos — e talvez neste ponto não se difira das demais áreas dentro do conhecimento histórico — de pôr em foco narrativas interseccionadas pelo diálogo com interesses do público em geral. Por tempos, fruto de relações de poder desiguais, a história sobre o continente ficou atravessada por representações vinculadas às construções coloniais, profícuas em reduzir formas de organizações sociais e expressões individuais aos interesses europeus (LOPES, 1995). Ainda não é incomum encontrarmos para o continente um espaço em que imperem visões engessadas sobre organizações que são plurais, dinâmicas e difíceis de definir dentro de alguns padrões (ELA, 2013). Portanto, apontaremos dados crescentes nos últimos

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124 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) anos, que possivelmente contribuem para a circulação de discussões vinculadas à publicização de pesquisas que passam a serem sentidas e atuam neste contexto de muitas formas. Neste movimento, informações sobre teses e dissertações defendidas nos ajudam a visualizar, dentro de um panorama amplo, como o encaminhamento de estudos sobre o continente africano em algumas universidades do Brasil desenvolveu-se e segue em curso. Ferramentas para a construção analítica As referências utilizadas para o desenvolvimento deste exercício foram retiradas, como apontado, dos Programas de Pós-Graduação em História com conceitos da CAPES seis e sete. Na estratégia de nos referirmos aos dados que cada programa apresenta, as comparações e leituras realizadas estiveram na esteira do acompanhamento dos cenários que cada amostragem possui de potencial. As informações, em sua maioria, foram extraídas das páginas virtuais das pós-graduações, que disponibilizaram em formato de banco de dados as teses e dissertações defendidas no período selecionado pelo recorte temporal pesquisado. Contudo, foram também utilizados os repositórios digitais das universidades, em vista da necessidade de verificar dados disponíveis nos sites dos programas e a possibilidade de encontrarmos outras informações. Nesta procura, os olhares se direcionaram a uma perspectiva relacional, isto é, ao que os dados foram capazes de nos dizer a partir dos vínculos com a historiografia e das abordagens teóricas que foram selecionadas para as construções das pesquisas. A coleta foi realizada mediante a busca nas plataformas em forma virtual por meio dos resumos, títulos, autoras e temáticas enquadradas dentro da proposta traçada. Esses detalhes, considerados como essenciais para o andamento da análise, são úteis para uma apreensão mais detalhada das informações. Consideramos de importância primária a intermediação que surge entre o movimento de coleta de dados dentro do conjunto das narrativas sobre o tema história de gênero e das mulheres, inseridas dentro do grande campo História da África. Em muitos casos, a seleção levou em consideração o intercâmbio que une ideias acerca dos estudos de gênero e das mulheres mais as possibilidades que

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os bancos de dados possuem, a partir da busca de autoras dentro dos Programas de Pós-Graduação em História. Em muitas situações, a relação entre os dados recolhidos e a construção da narrativa histórica esteve imbricada com a concepção de “silenciamento” do passado, tal como pensado por Michel Rolph Trouillot (1995). Pautados nessa discussão, ficaram evidentes “silêncios” propositais, colocados na historiografia por meio das relações de poder que foram instauradas no conjunto das intenções de uma narrativa hegemônica. Os estudos sobre gênero e história das mulheres na área de História da África, junto à pesquisa nas plataformas e bancos de dados, foram pensados também ao encontro do que Trouillot nos relegou enquanto procedimento metodológico para as interpretações e leituras acerca da História. As informações dos programas foram atravessadas por vieses críticos entendidos como ausência e o “silêncio”, substâncias que fazem parte de projetos sentidos nesta área dos estudos históricos. A maneira como as produções relacionadas aos estudos de gênero e história das mulheres apareceram nos Programas de Pós-Graduação em História instalou-se com fôlego para trajetórias que, em muitas situações, não haviam recebido devido destaque. A apresentação das informações acerca dos estudos em questão foi cronológica e tematicamente organizada para que tivéssemos uma noção da produção historiográfica com seu sentido quantitativo e qualitativo. Outras leituras surgiram ao longo do debate que os dados incitaram, inclusive com as estratégias de composição de um mapa do conhecimento sobre a quantidade e os trabalhos em si, confeccionados nos últimos anos. Os estudos realizados por mulheres formaram uma seleção sobre a qual nos debruçamos. Em segundo lugar, foram retirados das plataformas os trabalhos que possuíam em seu cerne os debates referentes às perspectivas de gênero e/ou da história das mulheres dentro da área de História da África. Neste caso, temos o desenvolvimento de pesquisas historiográficas realizadas, necessariamente, por mulheres ou por pessoas que se identificam com esta categoria. Já na terceira via, o conjunto que distingue mais uma esfera de nossa análise esteve na intersecção dos dois últimos. Portanto, sublinharam-se os trabalhos que foram realizados por mulheres e

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126 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) que tratavam também de perspectivas de gênero no âmbito da História da África. Essas informações foram importantes não somente por serem distinguidas nas três categorias citadas, mas igualmente pensadas como uma estratégia para que pudéssemos refletir acerca dos “silenciamentos” e nas possibilidades de transgressão por meio da coleta de dados. Com isso, as informações dos Programas de Pós-Graduação em História foram expostas para abordar os estudos dentro de suas temporalidades, contendo informações do contexto sócio-histórico em que as produções estavam inseridas, o que sugere um tratamento qualitativo dos dados. Além disso, foram razoadas as possibilidades do conjunto dos estudos nos Programas de Pós-Graduação de uma forma geral para que comparações de caráter quantitativo e qualitativo pudessem ser extraídas dos bancos de dados. Amostragem sobre produções na História da África Visualizar e buscar conexões: a prática de historiadoras e historiadores se encontra na encruzilhada dos dados. As informações presentes nas plataformas dos Programas de Pós-Graduação foram analisadas a partir dos questionamentos e interesses travados na busca de verificar a escrita da História da África. A intenção foi contribuir para planos de pesquisas que vão ao contrapelo de um projeto que ainda se faz hegemônico na academia: o desconhecimento de inúmeras formas de vivência ao longo do tempo que partiram da outra margem atlântica. Dentro do recorte, com cronologia entre 2003 e 2020, foi feito um exercício analítico em busca de apreender, na historiografia recente, informações acerca da África no Brasil no âmbito da História. Mulheres narradoras e produtoras de História, participantes do processo histórico e que fazem a História na dialogicidade dos mecanismos de escrita de uma área em permanente conflito, diante das relações de poder existentes. Com a coleta de dados sobre este tema, elaboramos uma tabela com disposição cronológica das informações levantadas. É possível observar, nesta disposição, os anos em que as produções acadêmicas foram defendidas — portanto, concluídas —,

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os nomes das autoras e os títulos que suas pesquisas tiveram ao momento final. Há ainda as informações acerca das instituições em que a produção foi realizada, além dos níveis de curso inseridos — mestrado ou doutorado. A seguir, poderemos observar a coleta da amostragem relacionada ao objeto geral desta análise, para indicarmos algumas relações entre os estudos sobre gênero e história das mulheres nos entremeios da historiografia: Tabela 1 – Alguns dados sobre a escrita da História da África no Brasil (2003–2020) Ano 2005

Nome da autora Ana Mônica Henrique Lopes

Título

Nível

Nas Margens da História e da Doutorado Ficção: identidades impressas e fronteiras do nacionalismo em Angola (1866–1910) 2005 Kelly Cristina Um só povo, uma só nação. Mestrado Oliveira de O discurso do Estado para a Araújo construção do homem novo em Angola (1975–1979) 2005 Regina Célia Letras negras em folhas brancas: Mestrado Soares Claro a construção da nação em Angola por Assis Júnior (1917–1935) 2006 Enidelce Os meia-cara: africanos livres em Doutorado Bertin São Paulo no século XIX 2006

2007 2008

2008 2008 2009

Regiane Augusto de Mattos

De cassange, mina, benguela a Mestrado gentio da Guiné: grupos étnicos e formação de identidades africanas na cidade de São Paulo (1800–1850) Ana Lúcia África do Sul e Brasil: Dois Doutorado Danilevicz Caminhos Para a Transição ao Pereira Pós-Guerra Fria (1984–1994) Fernanda do Os “Filhos da Terra”: Discurso e Mestrado Nascimento Resistência nas Relações CoThomaz loniais no Sul de Moçambique (1890– 1930) Rosana África indômita: missionários Mestrado Andreia capuchinhos no reino do Congo Gonçalves (século XVII) Juliana Ribei- Homens de ferro. Os ferreiros na Mestrado ro da Silva África central no século XIX. Luciana da Cruz Brito

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Sob o rigor da lei: africanos e africanas na legislação baiana (1830–1841)

Mestrado

Programa UFMG

História Social — USP História Social — USP História Social — USP História Social — USP UFRGS UFF

História Social — USP História Social — USP Unicamp

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128 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) 2009

Carolina Barros Tavares Peixoto

2010

Sarah Calvi Amaral Silva

2010

Raquel Gryszczenko Alves Gomes 2010 Ana Flávia Cicchelli Pires 2011

Rafaela Alves da Silva Balsinhas

2011 Juliana de Paiva Magalhães 2012

Letícia Cristina Fonseca Destro

2012 Andrea Luciane Rodrigues Mendes 2012

Laila Brichta

2012 Tatiana Pereira Leite Pinto 2012

Fernanda do Nascimento Thomaz

2012

Mariana Bracks Fonseca 2012 Ivana Pansera de Oliveira Muscalu

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Limites do ultramar português, Mestrado UFF possibilidades para Angola: O debate político em torno do problema colonial (1951–1975) Africanos e afrodescendentes Mestrado UFRGS nas origens do Brasil: raça e relações raciais no II Congresso Afro-brasileiro de Salvador (1937) e no III Congresso Sul-riograndense de História e Geografia do IHGRS (1940) Oliver Schreiner, literatura e a Mestrado Unicamp construção da nação sul-africana, 1880–1902 Comércio e trabalho em Cabin- Doutorado UFF da durante a ocupação colonial portuguesa, 1880c.–1915c. Postando o Ideal: A Emissão Mestrado História de Selos Postais Moçambicanos Social pelo Estado Novo Português — UFRJ (1931–1961) Moçambique e Vale do Paraíba Mestrado História na dinâmica do comércio de esSocial cravos: diásporas e identidades — USP étnicas, séc. XIX. Serão Todos Filhos de Adão? A Mestrado História Invenção da África Negra pelo Social Imaginário Cristão a partir da — UFRJ Literatura de Viagem e Cartografia dos Séculos XV e XVI Vestidos de realeza: contriMestrado Unicamp buições centro-africanas no Candomblé de Joãozinho da Goméia (1937–1967) A bem da nação: literatura, asso- Doutorado Unicamp ciativismo e educação no Brasil e em Angola (1930–1961) Etnicidade e racismo em Angola: Mestrado UFF Da luta de libertação ao pleito eleitoral de 1992 Casaco que se despe pelas Doutorado UFF costas: a formação da justiça colonial e a (re)ação dos africanos no norte de Moçambique, 1894c.–1940 Nzinga Mbandi e as guerras de Mestrado História resistência em Angola. Século Social XVII. — USP “Donde o ouro vem”: Uma Mestrado História história política do reino do Social Monomotapa a partir das fontes — USP portuguesas (século XVI)

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História da África em Perspectiva: Ensino e Pesquisa 129 2012

Regiane Augusto de Mattos

2013

Flávia Maria de Carvalho

2013 Beatriz Carvalho dos Santos 2013 2013 2014

Flavia Renata Machado Paiani Teresa Cristina Teles Taciana Almeida Garrido de Resende

2014 Jacimara Souza Santana

2014

2015 2015

2015

2016

2016

Isabel de Souza Lima Junqueira Barreto Mariana Schlickmann

As dimensões da resistência em Angoche: da expansão política do sultanato à política colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842–1910) Os homens do rei em Angola: sobas, governadores e capitães mores, sécs. XVII e XVIII Entre Mouros e Cristãos: os mandingas da “Guiné de Cabo Verde” (séc. XVI e XVII) A escrita da história de moçambique no romance Terra Sonâmbula, de Mia Couto. Nzambi ikale ni enhe! Histórias de vida de imigrantes angolanos em São Paulo. Isso Não É África, É Cabo Verde: o Movimento Claridoso e a Busca por uma Identidade Crioula (1931–1960) A experiência dos Tinyanga, médicos-sacerdotes, ao sul de Moçambique: identidades, culturas e relações de poder (C. 1937–1988) Migrantes da descolonização: Portugueses e luso -angolanos no Brasil (1974–1977)

Doutorado

História Social — USP

Doutorado

UFF

Mestrado

UFF

Mestrado

História Social — USP História Social — USP UFMG

Mestrado Mestrado

Doutorado Unicamp

Doutorado

A Introdução dos Estudos Mestrado Africanos no Brasil nos Anos 1960–1985 Amanda Palo- “Angolano segue em frente”: Um Doutorado mo Alves panorama do Cenário Musical Urbano de Angola entre as Décadas de 1940 e 1970 Ingrid Silva Textos militares e mercês numa Doutorado de Oliveira Angola que se pretendia “reforLeite mada”: um estudo de caso dos autores Elias Alexandre da Silva Correa e Paulo Martins Pinheiro de Lacerda. Jeocasta A Religião dos Barbacins, Mestrado Juliet Oliveira Casangas, Banhuns e papéis Martins nos relatos de viagem na Guiné (1560–1625) Márcia Comércio, bens de prestígio e Mestrado Cristina insígnias de poder: as agências Pacito Fonseca centro-ocidentais africanas nos Almeida relatos de viagem de Henrique de Carvalho em sua expedição à Lunda (1884–1888)

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UFF

UFMG UFF

UFF

UFMG

História Social — USP

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130 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) 2016 Juliana Ribeiro da Silva Bevilacqua 2016 Rosana Andreia Gonçalves 2016

Lia Dias Laranjeira

2016 Juliana de Paiva Magalhães 2016 Elaine Ribeiro da Silva dos Santos 2017

Viviane de Souza Lima

2017

Cristiane Nascimento da Silva

2017

Joyce Richelle Barcellos Fernandes

2017 Katiuscia Quirino Barbosa 2018

Lurdes José Cossa

2018 Raissa Brescia dos Reis 2018 2019

Mariana Bracks Fonseca Laura Gallo Tirandelli

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De caçadores a caça: sobas, Diamang e o Museu do Dundo.

Doutorado

Sociedades africanas frente à situação colonial europeia: o Estado Independente do Congo (1876–1908) Mashinamu na Uhuru: conexões entre a produção de arte makonde e a história política de Moçambique (1950–1974) Trajetórias e resistências de mulheres sob o colonialismo português (Sul de Moçambique, XX). Sociabilidades em trânsito: os carregadores do comércio de longa distância na Lunda (1880–1920) Solidariedade Atlântica: Movimento Brasileiro Em Apoio Às Independências Africanas, Entre Percursos e Conexões (1961–1975) Viver na fé em Moçambique: As relações entre a Frelimo e as Confissões Religiosas (1962–1994) A África nas narrativas de Luis de Cadamosto e Diogo Gomes de Sintra - Relatos europeus sobre o continente durante o século XV A África sob o olhar do Outro: A guiné nas representações literárias e Cartográficas Portuguesas do Século XV. A autoridade tradicional em Moçambique no século XX: estudo dos distritos de Mandlakazie Chibuto — Província de Gaza África imaginada: história intelectual, pan-africanismo, nação e unidade africana na Présence Africaine (1947–1966) Ginga de Angola: memórias e representações da rainha guerreira na diáspora A escola como microcosmo de resistência: gênero e relações étnico-raciais através da biografia de Nzinga Mbandi, rainha de Angola.

Doutorado

História Social — USP História Social — USP

Doutorado

História Social — USP

Doutorado

História Social — USP História Social — USP

Doutorado

Mestrado

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Doutorado

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Mestrado

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UFF

Doutorado

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UFMG

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Mestrado

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História da África em Perspectiva: Ensino e Pesquisa 131 2019

Anelice Bernardes

2019

Cintia Mary de Oliveira

2019

Lorena Dias Martins

2019 Luciana Lucia da Silva 2019

Iamara de Almeida Nepomuceno

2020

Thuila Farias Ferreira 2020 Ariane Carvalho da Cruz 2020

Maria Cristina Portella Ribeiro

2020 Raquel Games Monteiro

Educação das relações étnicoMestrado -raciais, ensino de História da África e literatura africana: o Amkoullel, o Menino Fula de Amadou Hampâté Bâ, nos anos finais do ensino fundamental O Massacre de Mueda (1960) Mestrado e a constituição das narrativas nacionais em Moçambique (1962–1986) Os Macuas e Ayao diante da Mestrado administração da Companhia do Niassa (1891–1929) O Ndongo e a presença porMestrado tuguesa: indícios da agência mbundu na relação com os portugueses, século XVI Guerra de Massangano: Luísa de Mestrado Goengue e o Bonga — interações sociais e poder feminino no vale do Zambeze (1867–1889) Africanas: gênero e feminismo Mestrado em perspectiva afrocentrada Guerras nos sertões de Angola: Doutorado sobas, guerra preta e escravização (1749–1797) Angola e Brasil: convergências Doutorado identitárias na construção de um pensamento nacionalista angolano (1789–1830) Biografia de João Júlio Monteiro: Mestrado O fenômeno dos viajantes naturais de Cabo Verde

UFRGS

UFMG

UFMG História Social — UFRJ História Social — USP UFRGS História Social — UFRJ História Social — UFRJ UFF

Fonte: Repositórios das Universidades Federais com Programas de Pós-Graduação em História com notas seis e sete na CAPES/ Páginas Virtuais dos Programas de Pós-Graduação em História.

Informações que incitam um debate A partir da seleção de Programas de Pós-Graduação em História que possuem notas da Capes seis e sete, ficaram disponíveis para a coleta de dados os seguintes deles, conforme aparece na Tabela 1: o Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGH-UFMG), criado em 1990124; o Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo (História Social-FFLCH/USP), com registro de produção da primeira 124 Em 1990 foi criado o Programa de Pós-Graduação em História, inicialmente com abertura para produção de dissertações e nos anos 2000 alargado para o doutorado. In.: http://historia.fafich.ufmg.br/. Acesso 20 de novembro de 2021.

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132 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) tese em 1939125; o Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGH- UFRGS), com início das atividades de mestrado em 1986126; a pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH-UFF), criada em 1971127; o Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas (PPG-Unicamp), iniciado em 1976128; e o Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS-UFRJ), criado há “quase quatro décadas”129. No levantamento de dados observou-se que a partir de 2005 surgiram as primeiras defesas de pesquisas realizadas por mulheres nos Programas supracitados, após a implementação da Lei 10.639/03, ou seja, pós 2003. Nos dez primeiros anos, o número de mulheres na área, com trabalhos de mestrado e doutorado, chegou a 28. Dessas pesquisas, abordagens sobre temas diversos, desde o Reino de Monomotapa (MUSCALU, 2012) até a história contemporânea das trocas entre Brasil e África do Sul (PEREIRA, 2007), criou uma dinâmica de percorrer diferentes lastros temporais e regionais. Temas sobre os atuais territórios de Angola e Moçambique apareceram de modo intenso nestas seleções. Como um primeiro ponto, revelam-se interesses, de certa forma, entre os daqui e os de lá. Alberto da Costa e Silva (2021) sugere que, se o Brasil muito recebeu de África, foi um intercâmbio de duas faces, já que o continente também ganhou contribuições. A instauração de redes comerciais, que fizeram do Atlântico caminho recorrente para idas e vindas de corpos, produtos e desejos, cativou interesses e encontros culturais. Indubitavelmente, para as trocas incessantes, foi expoente de uma linha sobrevivente, de doações e criações, de costumes semelhantes, reverberados em diferentes espaços no tempo presente. As zonas transacionais de investimentos levaram à participação de diferentes sujeitos históricos, que atuavam e construíam suas realidades movidos por motivos diversos. De uma forma ou de outra, os caminhos 125 https://ppghs.fflch.usp.br/pt-br/posgraduacao/hs/programa/apresentacao Acesso 20 de novembro de 2021. 126 O curso de Doutorado foi credenciado em 1995. In.: https://www.ufrgs.br/ ppghist/ppgh-35-anos/. Acesso 20 de novembro de 2021. 127 Mais informações sobre o PPGH da UFF, ver: https://www.historia.uff.br/ academico/pt-br/. Acesso em 21 de dezembro de 2021. 128 https://www.ifch.unicamp.br/ifch/pos/historia/programa. Acesso 20 de novembro de 2021. 129 https://ppghisufrj.com.br/programa/. Acesso 20 de novembro de 2021

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cruzados ao longo do Atlântico, ainda hoje, são navegados em buscas de explicações sobre movimentos políticos, econômicos e culturais desenvolvidos em África e suas relações. Dessa aproximação, ocorre o interesse sobre o comércio transatlântico, como um período de desenvolvimento do estreitamento de laços, formação de arranjos sociais que contavam com as dinâmicas de vida de escravizados, tão sintomáticas para a compreensão de complexidades do tempo presente. De idas e vindas, assuntos sobre o surgimento de grupos e indivíduos imersos nesta dinâmica também chamaram a atenção. Neste sentido, esses trabalhos (re) visitaram conexões importantes em um passado denso. Há também a consideração sobre a partilha de um idioma, e possíveis redes construídas por esse facilitador, demonstradas nos estudos voltados para regiões que possuem o português como língua oficial.

Imagem 1: Representação Estatística dos Trabalhos por Temas Fonte: Repositórios das Universidades Federais com Programas de Pós-Graduação em História com notas seis e sete na CAPES/Páginas Virtuais dos Programas de Pós Graduação em História.

A representação por percentagem indica uma inclinação sobre temas tangentes a discussões sobre os atuais países de língua portuguesa, exceto pela ausência de debates, neste grupo, a respeito de São Tomé e Príncipe. Tal indicativo não dá conta de produções que fujam do delineamento inicial que esboçamos. No levantamento, foram encontradas 58 pesquisas que atenderam às definições preexistentes nos critérios de seleção; entre estas, 38, ou seja, 66% das produções dentro dos Programas de Pós-Graduação em História com notas seis e sete na Capes, abarcam países de língua portuguesa no continente africano. Mesmo que não seja possível estabelecer explicações fechadas para a compreensão dessa aproximação, alguns pontos são

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134 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) interessantes para pensarmos a respeito dos dados. O português como língua oficial partilhada entre Brasil e esses países deve ser um fator a ser considerado. O idioma é sugestivo não apenas de uma rede formada entre pesquisadores e pesquisadoras, com inclusão dos próprios vínculos com Portugal, como caminho de acessibilidade. Precisamos considerar uma questão fundamental para o desenvolvimento de discussões: o acesso a fontes e bibliografias. Ler e escrever em outro idioma nem sempre é acessível para estudantes de cursos de graduação, nem para muitos das próprias pós-graduações, o que gera uma aproximação com produções envoltas aos países de língua portuguesa, salve os trabalhos que foram traduzidos de seus originais. Esse aspecto está imbricado no conhecimento de autoras e autores no exterior, lidos ou menos lidos em diferentes salas de aula ou espaços de pesquisas. Tais discussões intensificam debates ao envolver não apenas discentes, mas as e os docentes que ministram a disciplina de História da África e precisam pensar em estratégias para o desenvolvimento dos cursos. A interferência direta criada por essa acessibilidade envolve também fontes, possibilidades de estágio no exterior, pesquisas em arquivos, possíveis supervisões e diálogos. Em paralelo, a situação traz uma questão de classe econômica, basilar ao ensino de línguas estrangeiras no Brasil, como uma barreira de alto impacto na realidade de diferentes discentes e com rastros em diversas camadas do ensino. As dificuldades despojadas de compreender, ou até mesmo realizar uma leitura técnica, em idiomas como o inglês e o francês — isso para não mencionar a não aproximação do árabe e alemão e outros idiomas, como as línguas africanas —, possivelmente deixam influências nessas produções de conhecimento; uma discussão que precisa ser mais aprofundada.

Imagem 2: Representação estatística das produções sobre gênero ou História das mulheres

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História da África em Perspectiva: Ensino e Pesquisa 135 Fonte: Repositórios das Universidades Federais com Programas de Pós-Graduação em História com notas seis e sete na CAPES/ Páginas Virtuais dos Programas de Pós Graduação em História.

Esse segundo gráfico ilustra, dentro dos dados levantados, o percentual de produções que envolveram uma concentração temática sobre gênero e/ou história das mulheres no continente africano. Identificamos a discussão proposta por Rachel Soihet (1998) sobre os estudos que abarcam a construção de narrativas sobre mulheres e gênero ao apresentar o contexto em que se desenvolveu o estudo da história das mulheres no Brasil a partir de sua própria experiência neste campo. Ao se deparar com limitações concernentes ao lugar incômodo de objeto para partícipes na escrita da história, o movimento potencializou questões importantes, atrelado às condições de desigualdade permeáveis a essa iniciativa em um momento em que fazia sua pesquisa sobre a história das mulheres, impactadas pelas mudanças que ocorriam na década de 1960 e 1970 no campo da historiografia (SOIHET, 1998). O encaminhamento de discussões no âmbito da História Social e Cultural foi importantíssimo para a inclusão de narrativas de sujeitos históricos localizados às margens em muitos debates acadêmicos. Atravessante a essa abertura, inserem-se os olhares interessados em temas concernentes ao continente africano, em um momento de intensificação às críticas ao colonialismo, e os movimentos independentistas independentistas (FEIERMAN, 1993). A conjuntura passou a ser favorável para reflexões novas ao contar com a participação de sujeitos históricos com referenciais diversos na composição das produções. Esse alargamento que atingiu o campo da História, com a inclusão de narrativas do continente africano, de acordo com Paul Zeleza (2005), em produções de grande circulação, deixou discussões sobre a história das mulheres e de gênero nas franjas dos espaços acadêmicos. Ao analisar obras que se popularizaram sobre o estudo da História da África, como a coleção “História Geral da África”, da UNESCO, e os volumes organizados da “History of Africa”, de Cambridge, o autor aponta que há uma escassez não apenas de mulheres na feitura da escrita da História da África nesses grandes manuais, como uma abordagem tímida sobre a participação das mulheres nos diferentes contextos estudados (ZELEZA, 2005).

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136 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) Para a realidade que temos a partir da amostragem, podemos conferir nos dados levantados que o total de estudos realizados por mulheres, nos Programas de Pós-Graduação selecionados, corresponde a 58. Dentro desse universo, sete pesquisas possuem a história das mulheres e/ou gênero como recorte temático. Essa sinalização não significa que os demais trabalhos deixem de abordar o tema, em capítulos, ou dentro das discussões propostas. Mas sinaliza um perfil sobre um recorte mais incisivo na escrita da História. A contrapelo, a maior parte dos estudos realizados, dentro dos dados levantados, demonstra discussões abrangentes sobre as sociedades africanas de uma forma geral, com focos em outras dinâmicas culturais, políticas e econômicas. Esse dado refere-se, aproximadamente, a 87% das produções historiográficas aqui abordadas. No campo de análise, o primeiro trabalho defendido por uma mulher desde a implementação da Lei 10.639/03 ocorreu em 2005 na Universidade Federal de Minas Gerais, pela doutora Ana Mônica Henrique Lopes, cujo tema da tese foi “Nas Margens da História e da Ficção: identidades impressas e fronteiras do nacionalismo em Angola — 1866–1910”. Após essa defesa, correram cinco anos para que na Universidade Estadual de Campinas surgisse um estudo realizado por uma mulher que abordasse um tema também sobre a história de uma mulher em África. Raquel Gryszczenko Alves Gomes teve por tema de dissertação a história da escritora Oliver Schreiner, defendido em 2010, intitulado como “Oliver Schreiner: literatura e a construção da nação sul-africana, 1880–1902”. Ainda que seja difícil rastrear o impacto desse movimento, ressaltamos que, no mesmo ano, a Editora da Unicamp publicou a tradução de “Couro Imperial. Raça, gênero e sexualidade no embate colonial”, da autora Anne McClintock (2010). O livro possui uma abordagem marcante, com ênfase na importância de os estudos sobre o colonialismo serem realizados amparados a uma teoria de gênero: Na última década, surgiram evidencias que estabeleceram que homens e mulheres não experimentaram o imperialismo da mesma maneira. O imperialismo europeu foi, desde o começo, um encontro violento com hierarquias preexistentes de poder que tomou forma não como um desdobramento de seu próprio destino, mas como interferência oportunista e desordenada com outros regimes de

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História da África em Perspectiva: Ensino e Pesquisa 137 poder. Tais encontros, por sua vez, alteraram as trajetórias do próprio imperialismo. Dentro desse longo e conflituoso engajamento, a dinâmica de gênero das culturas colonizadas foi tão distorcida a ponto de alterar as formas irregulares que o imperialismo assumiu em várias partes do mundo (MCCLINTOCK, 2010, p. 21).

Outro ponto que chama atenção nas produções realizadas por mulheres e sobre mulheres em África é que, dentro desses sete estudos, encontrados em diferentes Programas, quatro entre eles foram defendidos no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo. Em 2012, Mariana Bracks Fonseca defendeu sua dissertação de mestrado com o título “Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola. Século XVII”. A autora, em 2018, deu continuidade e apresentou a seguinte tese no mesmo Programa: “Ginga de Angola: memórias e representações da rainha guerreira na diáspora”. Entre a dissertação de Mariana Bracks e a próxima abordagem, no Programa de Pós-Graduação em História Social (USP), sobre a participação de mulheres em movimentos no continente africano seguiram-se quatro anos. Em 2016, Juliana de Paiva Magalhães defendeu a tese de doutoramento “Trajetórias e resistências de mulheres sob o colonialismo português (Sul de Moçambique, XX)”. No mesmo programa, em 2019, encontramos a dissertação “Guerra de Massangano: Luísa de Goengue e o Bonga — interações sociais e poder feminino no vale do Zambeze (1867–1889)”, construída por Iamara de Almeida Nepomuceno. É possível criar mais uma relação entre esses dados. Dois dos trabalhos defendidos no Programa de Pós-Graduação em História Social (USP), o de Juliana Magalhães e o de Iamara Nepomuceno, receberam orientação da professora Maria Cristina Cortez Wissenbach. Ambas as pesquisadoras fazem parte do “Grupo de Pesquisa Ana Gertrudes de Jesus, mulher da terra: por uma história social dos grupos subalternos no Sul Global (África & Américas)”, coordenado pela mesma professora e pela Drª. Juliana Magalhães. No cadastro do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), encontramos uma descrição na qual o grupo possui o objetivo geral de “discutir as premissas dos estudos sobre os grupos subalternos de diferentes sociedades e períodos do Sul Global, nomeadamente, nos contextos do colonialismo e do pós-colonialismo

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138 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) na África, das sociedades escravistas e do pós-abolição no Brasil e nas Américas”130, com uso de base para o fomento das discussões de trabalhos teóricos de Maria Odila Leite da Silva Dias, que possui reflexões pioneiras na construção de estudos sobre gênero no Brasil. Os dois trabalhos que se somam aos supracitados também são indicativos, pois advêm de uma mesma instituição. Um deles é a dissertação de mestrado intitulada “A escola como microcosmo de resistência: gênero e relações étnico-raciais através da biografia de Nzinga Mbandi, rainha de Angola”, de Laura Gallo Tirandelli, defendida em 2019 na Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; e a dissertação “Africanas: gênero e feminismo em perspectiva afrocentrada”, realizada por Thuila Farias Ferreira, em 2020, no mesmo programa. Essas produções apresentam um crescimento dentro do campo de desenvolvimento da História da África no Brasil nos respectivos Programas de Pós-Graduação, a partir da escrita realizada por mulheres sobre temáticas a respeito da história das mulheres ou com perspectivas de gênero. Alguns Programas de Pós-Graduação, dentro do recorte referido neste levantamento, possuem um investimento — a exemplo do grupo de estudos — que deixam transparecer influências diretas na produção de seus integrantes. Também é interessante perceber que o debate a respeito dessas discussões configuram-se de modo próximo com o contexto de inserção, como coincide a tradução e publicação do livro de McClintock que expõe questões relacionadas a gênero durante o período colonial em África. Conclusão Buscamos apontar algumas questões importantes para pensarmos sobre a produção de História da África em algumas universidades do Brasil nas últimas décadas, a partir do estabelecimento da Lei 10639/03. Ressaltamos a importância do lugar ocupado nos debates e a relação estreita entre essas produções e seus próprios contextos de inserção quando se tensiona a escrita da História feita por mulheres e tendo-as como temática na História da África. Reconhecemos o lugar limitado, devido às seleções, que essa pesquisa ocupou. Para a feitura do trabalho, utilizamos recortes específicos, 130 Cadastro CNPq: http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/5247222190007629.

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como as notas atribuídas aos Programas de Pós-Graduação pela CAPES, que coloca uma questão incômoda ao deixar localizado no Sul e Sudeste do país Programas de Pós-Graduação com conceitos seis e sete em suas avaliações. Essa interação marginaliza outras áreas, ao passo que potencializa desenvolvimentos desiguais entre as universidades. Nosso recorte, se por um lado expôs um campo, foi feito a partir de um movimento que encobriu muitos outros. A própria categoria mulher, utilizada, deixou escapar elementos importantes, como quem são essas historiadoras e como suas trajetórias impactaram suas produções. Com um alargamento da busca, atividade que pode ser realizada, seria possível incluir temas, abordagens e historiadoras que se dedicam a fomentar e contribuir para a História da África produzida no Brasil. Com essa intenção, destacamos a importância de investigar as heterogeneidades e outras identidades, como o lugar de partidas dessas escritas e reflexões; suas inserções dentro de recortes de classe e raça, para uma análise mais densa. Reconhecemos que pesquisas de grande fôlego ficaram de fora, a exemplo de Natália Cabanillas (2016), que estudou o ativismo de mulheres negras na Cidade do Cabo na contemporaneidade, desenvolvida na área de Sociologia, na Universidade de Brasília; e o trabalho de Ana Carolina Schveitzer (2016) sobre o colonialismo alemão em África, com foco na atual região de Namíbia, e a produção de fotografias sobre mulheres, na Universidade Federal de Santa Catarina. Os dois trabalhos, uma tese e uma dissertação, foram produzidos por mulheres e abordam em seus estudos movimentos que também envolvem mulheres. Exemplos como esses demonstram as bordas construídas e, de certa forma, limitantes da nossa abordagem, seja por pertencer a um Programa de Sociologia, enquanto buscamos dar conta de produções historiográficas, ou, até então, pelo programa não possuir a nota CAPES selecionada para a análise. Mas, ainda que com limitações, nossa tentativa foi de indicar um caminho. Uma sinalização dentro de um quadro sobre o andamento das produções que envolvem a História e que também possui o seu espaço. Nossa vontade foi a de apontar uma discussão que permeia uma situação em desenvolvimento, apegados à tentativa de ficarmos longe de conclusões fechadas. Observamos como o interesse por temáticas sobre a atuação de mulheres em diversos momentos da história do continente africano despontam, bem como a escrita da História da África realizada por mulheres no Brasil.

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140 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) Referências ADICHIE, Chimamanda. O perigo de uma história única. São Paulo, Companhia das Letras, 2019. bell hooks. Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2017. CABANILLAS, Natalia. Para além do político. Mulheres ativistas na Cidade do Cabo, África do Sul. Tese de Doutorado. Instituto de Ciências Sociais, Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília, 2016. DIAS, Maria Odila Leite da. Hermenêutica do Quotidiano na Historiografia Contemporânea. Projeto História, n. 17, nov. 1998. pp. 223–258. ELA, Jean-Marc. Restituir a história às sociedades africanas: promover as ciências sociais na África Negra. Luanda: Edições Mulemba; Mangualde: Edições Pedago, 2013. FEIERMAN, Steven. African histories and the dissolution of world history In: BATES, R. H.; MUDIMBE, V. Y.; O’BARR, J. (editors). Africa and the disciplines: the contributions of research in Africa to the Social Sciences and Humanities. Chicago: University of Chicago Press, 1993, pp. 167–212. FERREIRA, Thuila Farias. Africanas: gênero e feminismo em perspectiva afrocentrada. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História. UFRGS, 2020. FONSECA, Mariana Bracks. Nzinga Mbandi e as guerras de resistência em Angola. Século XVII. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-graduação em História Social, USP, 2012. ______________________. Ginga de Angola: memórias e representações da rainha guerreira na diáspora. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em História Social, USP, 2018. GEIGER, Susan; MUSISI, Nakanyike; ALLMAN, Jean Marie. Women in African colonial histories. Bloomington: Indiana University Press, 2002. GOMES, Raquel Gryszczenko Alves. Oliver Schreiner, literatura e a construção da nação sul-africana, 1880–1902. Dissertação (Mestrado). Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, 2010. GUERRA, Márcia. História da África, uma disciplina em construção. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduados em Educação: História, Política Sociedade. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012. KI-ZERBO, Joseph. Para quando África? Entrevista com René Holenstain. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.

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História da África em Perspectiva: Ensino e Pesquisa 141 LOPES, Ana Mónica Henriques. Nas margens da história e da ficção. Identidades impressas e as fronteiras do nacionalismo em Angola 1866–1910. Tese Doutorado em História. Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, 2005. LOPES, C. A pirâmide invertida: historiografia africana feita por africanos. Colóquio Construção e Ensino da História da África. Actas. Lisboa, 1995. MAGALHÃES, Juliana de Paiva. Trajetórias e resistências de mulheres sob o colonialismo português (Sul de Moçambique, XX). Tese de Doutorado. Pós-Graduação em História Social, USP, 2016. MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial: Raça, gênero e sexualidade no combate colonial. Campinas: Ed. Unicamp, 2010. NEPOMUCENO, Iamara de Almeida. Guerra de Massangano: Luísa de Goengue e o Bonga — interações sociais e poder feminino no vale do Zambeze (1867–1889). Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-graduação em História Social, USP, 2019. OLIVA, Anderson. A História da África nos bancos escolares. Representações e imprecisões na literatura didática. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 25, no 3, 2003. PILCHER, Jane. Names, Bodies and Identities. Sociology n. 50 v. 4, 2016. SILVA, Alberto da Costa e. A África e os africanos na história e nos mitos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2021. SOIHET, Rachel. História das mulheres e história de gênero. Um depoimento. Cadernos Pagu. V11, 1998. SCHVEITZER, Ana Carolina. Imagens do Império: mulheres africanas pelas lentes coloniais alemãs (1884–1914). Dissertação (Mestrado), Programa de Pós-Graduação em História, UFSC, 2016. TIRANDELLI, Laura Gallo. A escola como microcosmo de resistência: gênero e relações étnico-raciais através da biografia de Nzinga Mbandi, rainha de Angola. Dissertação (Mestrado Profissional). Programa de Pós-Graduação em Ensino de História, UFRGS, 2019. TROUILLOT, Michel-Rolph. Silencing the Past: Power and the Production of History. Boston: Beacon Press, 1995. ZELEZA, Paul T. Gender biases in African historiography. In: OYĚWÙMÍ, O. African gender studies: a reader. Hampshire: Palgrave Macmillan, pp. 207–232, 2005.

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Reflexões: trajetória e experiências em torno da pesquisa e do ensino em História da África131 Maria Cristina Cortez Wissenbach132

É com muito prazer que participo desta mesa de abertura do 1º Seminário Internacional EPHA — Ensino e pesquisa em História da África. Trata-se de um evento importante, que abre o espaço devido para jovens pesquisadores vindos de várias partes do Brasil e que trazem os resultados de pesquisas em curso em torno das problemáticas da História da África Contemporânea, da História da África em geral e do ensino de História da África, investindo na transversalidade entre pesquisa e ensino. Vejo, com muita satisfação, a programação do evento que apresenta uma grande variedade de temas de pesquisa e de fontes e principalmente a busca pela interdisciplinaridade na construção de materiais didáticos facilitadores do ensino de África. Bem como reflexões sobre livros didáticos e o tratamento dado a temas históricos; a intensa presença da literatura infantil e juvenil e de contos; a questão do uso das imagens e do cinema nas classes de aula de História da África. Desejo a todos e todas ótimas apresentações. É importante dizer que as propostas do seminário vêm ao encontro dos objetivos maiores de uma série de outros eventos que aconteceram e continuam a acontecer nesses tempos de isolamento social, de crise sanitária trazida pela pandemia de Covid-19. São eventos que surgem inicialmente em resposta às ondas de ataques racistas, de grande barbárie e repercussão, e de ameaças 131 APRESENTAÇÃO 1º SEMINÁRIO INTERNACIONAL EPHA — Ensino e pesquisa em História da África na Contemporaneidade, em 9 de setembro de 2020. 132 Professora do Departamento de História FFLCH/USP.

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conservadoras que parecem reeditar um senso comum tacanho e preconceituoso, municiado por chavões que se imaginava terem desaparecido. Na nossa área em particular, desde ideias inconsequentes sobre a escravidão no continente africano, à percepções equivocadas sobre nossas lideranças quilombolas e comunidades tradicionais, concebidas como marginais. Mas, posições que, de outra parte, tornam o debate imprescindível e nos colocam diante de novos desafios e comprometimentos relacionados ao nosso campo de trabalho e de pesquisa — e de batalha! Tomo como exemplo as reuniões que ocorreram nas últimas semanas: as promovidas por grupos de trabalho da ANPUH em torno das relações entre a sociedade e o ensino de história da África e sua importância para a educação das relações étnico-raciais133, como também o ciclo de conferências organizado pela rede de historiadores negros e historiadoras negras, em comemoração aos 170 anos da lei Eusébio de Queirós.134 Nas apresentações foram tratados temas importantes: desde o protagonismo histórico dos africanos e afrodescendentes na abolição do tráfico, às discussões sobre as autorias femininas negras, no âmbito da historiografia sobre África, sobre a história da diáspora, da escravidão e do pós-abolição no Brasil. No geral, essas iniciativas — em algumas das quais participei conjuntamente a companheiros e companheiras de luta pela afirmação da disciplina e dos estudos africanos no Brasil: Monica Lima, Lucilene Reginaldo, Luana Pereira, Anderson Oliva, Mariza Soares, Alexsander Gebara, entre tantos e tantas — reafirmaram aspectos que estavam mais ou menos adormecidos, entre eles a ligação entre a Lei 10.639/03 e a militância dos movimentos sociais entre os anos de 1960 e 1980 que anteciparam e deram forma às exigências pelos estudos africanos, considerando, desde aquela época, seu significado na luta antirracista e na afirmação da identidade de grande parte das crianças e dos jovens brasileiros e brasileiras. A presença desta mobilização que, sobretudo na Assembleia Constituinte de 1987/1988 inspirou os debates sobre as comunidades negras, indígenas, tradicionais, ribeirinhas, bem como as demais minorias 133 Live ANPUH 2020: A história da África e a lei 10.639/2003: o que mudou? Disp: https://www.youtube.com/watch?v=GwEI_5sMhHY; Live ANPUH 2020: Produção dos estudos africanos entre academia e sociedade. Disp: https://www. youtube.com/watch?v=Z-Ot5jeTIKU. 134 Referência e programação em: https://www.geledes.org.br/historiadores-negros-promovem-jornada-sobre-os-170-anos-do-fim-do-trafico-transatlantico-de-africanos-escravizados.

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144 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) em luta em prol a seus direitos e reconhecimento, foi significativa não só para a Carta Magna de 1988 e os direitos constitucionais dessas comunidades, como para a adoção das políticas de ação afirmativa que lhe seguiram. Importante assinalar a mobilização das lideranças indígenas na Constituinte (CUNHA, 2018; DIAS e CAPIBERIBE, 2019) e a contribuição dada desde as décadas de 1960 e 1970, pelos centros de estudos africanos no Brasil, que se posicionaram pioneiramente sobre a importância das relações históricas, acadêmicas e sociais entre Brasil e o continente africano (PEREIRA, 2010; GOMES, 2021). Nos tempos atuais, também o GT História África da ANPUH tem sido agitado por discussões que trouxeram à tona questões relacionadas à natureza das relações entre o Norte e o Sul, tanto no que diz respeito à produção e circulação de conhecimentos e de saberes, quanto à conservação e manutenção de acervos documentais africanos. Em cerca de algumas semanas manifestaram-se estudiosos brasileiros e estrangeiros que reagiram a temáticas variadas, desde as situações dos arquivos localizados no continente africano, a pertinência ou não da reprodução mecânica das fontes, a importância do chamado “turismo acadêmico”, e o que nos interessa mais particularmente, a discussão sobre a qualidade mais ampla ou mais restrita dos estudos africanos produzidos no Brasil. Indo adiante, e reeditando as colocações levantadas por Paulin Houtondji (2010, [2008]), debateu-se sobre a quem cabe a responsabilidade da escrita da história da África, como devem ser geridos os acervos e quais os termos mais adequados para os diálogos entre os centros de produção de saber sediados no hemisfério Norte e no Sul. Além disso, a cada passo, e animadas pelos movimentos de destruição das estátuas e da contestação da memória enaltecida dos traficantes e dos heróis imperiais, foram atualizadas informações sobre as restituições dos bens culturais e artísticos saqueados nas campanhas imperiais e retirados de seus contextos originais. Depositados nos museus metropolitanos, nas vitrines ou, aos milhares, nas reservas técnicas, sem informes sobre autoria e sobre os sentidos que tinham em suas sociedades de origem, transformaram-se em partes de uma tradição universal da qual seriam eles, os europeus, os exclusivos guardiões (para uma síntese, RIBEIRO, 2021). Histórico dos saques, da presença dos resultados das recolhas na constituição

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dos jardins de curiosidades metropolitanos à concepção de objetos de arte patrimoniados pela história da Humanidade e recentemente revalorizados a partir das dimensões da sua historicidade e da vida social das coisas, nos termos de Appadurai e Kopytoff (2008, [1986]). Nos termos do histórico de nossas associações, opinou-se igualmente sobre a temática colocada em tela desde a formação das agremiações criadas a partir de 2011, na indagação de quem poderia participar e fazer parte do GT História da África e depois da ABE-África? Ou, em termos similares, o quanto os estudos diaspóricos poderiam ser considerados estudos africanos? Debate intenso e agora reatualizado pela organização dos volumes IX e X da História Geral da África, intitulados respectivamente História Geral da África Revisitada e África Global e suas Diásporas, que parecem trazer uma orientação mais consensual a esta discussão. Como disse, os acalorados debates envolveram numerosos estudiosos, do Brasil, da Europa, dos Estados Unidos e da África que, ao fim e ao cabo, começaram a trocar informações, como também indicações bibliográficas e disponibilizando arquivos em pdfs de textos importantes, clássicos e de difícil acesso — um dos resultados positivos da polêmica. Em síntese o que quero enfatizar é que as questões pairam no ar e evidenciam a atenção compartilhada entre professores e professoras, pesquisadores e pesquisadoras de História da África às problemáticas de ordem metodológica e teórica e, mais do que isso, de que as reflexões se mantém pautadas pelas conjunturas sociais dos tempos contemporâneos, implicadas e sensibilizadas pelas agendas das lutas antirracistas e antipatriarcais, posicionando-se cada vez mais contra a hegemonia do pensamento e das premissas epistemológicas impostas pelo Norte. Nessa abertura gostaria de colocar alguns pontos que surgem a partir da minha experiência como pesquisadora e professora, procurando contribuir para a discussão de alguns pressupostos metodológicos e didáticos, que atualmente são consensuais, e apresentar algumas das experiências que tive ao longo desses anos. Sou professora de História da África na Universidade de São Paulo (USP) desde 2003 e, desde 2010, responsável também por uma disciplina integrada ao curso de licenciatura e de formação de

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146 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) professores denominada História da África e dos Afrodescendentes no Brasil — conteúdos e ferramentas didáticas para a formação de professores do ensino médio e fundamental no Brasil. As duas disciplinas inserem-se nos dispositivos e na promulgação da lei 10. 639/03, ampliada pela lei 11.645/08, e neste sentido, ao refletir sobre as questões relativas ao ensino e à pesquisa em História da África gostaria de fazê-lo de forma integrada aos estudos afro-diaspóricos. Em razão de meu envolvimento experiente, retomo uma trajetória que compartilho com numerosos colegas que ensinaram e orientaram desde os primeiros tempos da lei 10.639/03, tempos de muita correria e de ansiedades no sentido de atender as urgências decorrentes de sua implantação. Passados os períodos das aflições e exatamente em razão da celeridade do processo de formação de novos profissionais, passamos a contar com uma extensa produção em História da África, teses e dissertações que contemplaram diferentes períodos e sociedades africanas e que certamente nos autorizam a considerar a significância da produção acadêmica brasileira. Os dados a respeito da evolução dos estudos sobre África feitos no Brasil são relativamente conhecidos e tiveram alguns momentos característicos; grosso modo, um primeiro movimento abarcando o período de 2003 a 2012, na produção descrita por Márcia Guerra (2012), em sua tese de doutorado e depois dados referentes aos tempos mais recentes, obtidos num levantamento que vem sendo realizado por integrantes do Grupo de Pesquisa Ana Gertrudes Mulher da Terra: uma história social dos grupos subalternos do Sul global (África e Brasil) — grupo que lidero junto com Juliana Magalhães e inscrito no Diretório dos Grupos de Pesquisa CNPq (http://dgp.cnpq.br/ dgp/espelho grupo/5247222190007629) A partir deste processo de consolidação da produção acadêmica na área e da experiência mais sólida de professores e professoras dedicados e dedicadas ao ensino de História da África, o que se percebe é que alguns pressupostos foram se tornando cada vez mais consensuais. Considerando os sentidos de uma disciplina que se iniciou tardiamente, acompanhando as inovações ocorridas em outros campos da ciência histórica e abarcando outros universos que não os europeus e outros agentes que não o homem europeu branco, revelou-se a capacidade da História da África em ampliar horizontes e retirar da ciência histórica os limites dos tradicionais

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conceitos heurísticos que foram produzidos em razão da dominação imperial (FEIERMAN, 1987; MBEMBE, 2018). Como decorrência, as reflexões trazidas pela disciplina se reproduzem num intenso questionamento sobre a característica eurocêntrica de nossos programas e dos currículos dos departamentos de História, que se expande aos currículos dos outros níveis escolares, remetendo-se à contribuição da área na desconstrução da epistemologia ocidental e contribuindo ao processo de descolonização das mentes e dos saberes, para usar as palavras de Ngugi wa Thiong´o (1986). Especificamente em nossa disciplina, o esforço começa pela reorganização de um arcabouço conceitual e vocabulário controlado próprios da ciência histórica e aplicados ao ensino e à pesquisa de História da África, importante para quebrar a craca imperial e evolucionista que teima em permanecer e impregnar a abordagem dos temas. Iamara Nepomuceno, professora das classes do ensino fundamental de um Instituto Federal, e integrante do GP Ana Gertrudes de Jesus, ficou satisfeita com a possibilidade de renomear, no planejamento dos currículos de sua escola, os caçadores-coletores por especialistas da floresta, baseada agora nas indicações de africanistas do porte de Jan Vansina (1990), Kairn Klieman (2003), e com isso poder trabalhar com a complexidade das sociedades tradicionais, revendo os pressupostos impingidos a elas (FARIAS, 2020 [1974]) e quebrar a “ilusão unânime”, como ensinou Houtondji: A etno-filosofia baseava-se, entre outros pressupostos, na ideia de que, nas sociedades de pequena escala ou sociedades primitivas, como são chamadas, vigorava total unanimidade, com toda a gente a concordar, por assim dizer, com toda a gente. Além disso, essa pretensa unanimidade era vista como uma virtude, e o desacordo como algo mal e perigoso. A este duplo pressuposto dei o nome de ilusão unânime. Em contraposição a isto, chamei a atenção para virtude do pluralismo enquanto fator de progresso e para o fato de não só a África moderna como também a chamada África tradicional terem vivenciado o pluralismo ao longo dos tempos e em vários domínios. (HOUTONDJI, 2010, p. 125)

A História da África e da Diáspora, a história das comunidades ditas tradicionais, alimenta, dia a dia, a luta rotineira e imperativa para nos “desacostumarmos do racismo” e também do

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148 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) evolucionismo que teimaram em se impor, muitas vezes veladamente, como paradigmas esdrúxulos da modernidade. Atualmente desfrutamos de outras vantagens: a começar pela disponibilidade (inclusive em obras traduzidas para o português) dos recentes trabalhos de pensadores e filósofos africanos que, numa larga tradição da escrita contra hegemônica, trataram especificamente de desvelar as imagens sobre a África, trazendo à tona as especificidades de sua história — e aqui menciono ao lado de Paulin Houtondji, Hampate Bá, Achille Mbembe, Valentin Mudimbe e Elísio Macamo que teremos o privilégio de ouvir daqui um pouco. Bem como, e como decorrência dos pensadores citados, a revalorização dos intelectuais ativistas das décadas de 50 e 60 que inovaram os estudos africanos a partir da perspectiva dos nacionalismos africanos, dos movimentos de independência na África, e das lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos e na Europa — Cheik Anta Diop, Franz Fanon, Aimée Césaire, Edward Du Bois, Marcus Garvey, entre tantos outros (BARBOSA, 2021). Sem deixar de sublinhar a importância da coleção História Geral da África, promovida pela UNESCO, resgatando e impondo a historicidade do continente (BARBOSA, 2012; PAIVA, 2017) e a atuação dos intelectuais brasileiros e brasileiras que introduziram, entre seus projetos, e na escrevivência de nossas autoras pretas, o tema e a concepção de quilombismo — síntese da identidade comunitária e do pertencimento que anima até hoje os movimentos negros: Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Leda Martins, Suely Carneiro, Djamila Ribeiro, entre muitas outras. Ainda pensando no lugar da História da África no campo das Humanidades, além da possibilidade da quebra dos pressupostos eurocêntricos, outra contribuição advém do caráter interdisciplinar da área e do recurso a uma complexa variedade de fontes vindas e tratadas a partir das ferramentas metodológicas múltiplas, trazidas pela História Oral, pela Arqueologia, pela Antropologia e pela Linguística Histórica. Mas aqui resguardando a premissa de que nem sempre as fontes diversas dialogam harmonicamente entre si; muitas vezes divergem, se contradizem e impedem que se tenha o horizonte de uma certeza histórica, ou se uma verdade tangível, como ensinou Farias em seus colóquios:

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História da África em Perspectiva: Ensino e Pesquisa 149 Durante muito tempo acreditou-se que seria possível reunir todos os dados que se pôde obter das fontes escritas, das fontes orais, e da arqueologia, e se colocar tudo junto numa espécie de soma aritmética. Isso se revelou inviável, porque, ao invés de se juntarem pacificamente e de colaborarem para nos dar, no fim de tudo, um grande panorama de conhecimento histórico, essas diferentes categorias de fontes subvertem-se umas às outras e se contradizem frequentemente. Então um tipo de criticismo mais sofisticado teve que ser introduzido pouco a pouco com alguma dificuldade a partir da década de 1970, deixando para trás uma excessiva esperança que havia nos anos de 1960 a de que reunindo fontes orais e escritas, e arqueologia se chegaria a uma visão panorâmica muito rica e bem detalhada do que tinha acontecido no passado africano (FARIAS, 2003, p. 4).

Por outro lado, se a História da África nasceu interdisciplinar, e ressurge na variedade de fontes de diferente natureza, ela favorece o tratamento didático de seus conteúdos a partir das interações com as áreas das Humanidades, como sabem muitos dos apresentadores e apresentadoras desse seminário. Nesse sentido, os documentários são bem-vindos, da mesma forma que romances e filmes de escritores e escritoras africanos e de cineastas conceituados. Nada melhor do que apreender a historicidade das aldeias ibos, a complexidade de seus habitantes, e os choques provocados pela chegada dos europeus por meio da leitura dos romances de Chinua Achebe, sobretudo da trilogia referente aos tempos da independência e da construção da nação e de suas críticas literárias ardidas e necessárias aos ícones da literatura colonial (ACHEBE, 1977). Nada mais contundente sobre a violência colonial do que a visualidade trazida pelo documentário Concerning Violence, do diretor sueco Göran Olsson (2014), em que são sobrepostas imagens da época do colo¬nialismo e dos movimentos de libertação, aos trechos da escrita de Franz Fanon sobre a violência absoluta do colonialismo (FANON, 1979 [1961]), e ainda contar com a abertura de Gayatri Spivak, chamando a atenção sobre as ausências femininas na produção da historiografia sobre a época colonial — presença tão explicita nas imagens dramáticas do documentário —, ou ainda, nos retrocessos das políticas pós-independência. Lacunas que a produção africanista brasileira vem buscando sanar (ZAMPARONI, 1999; MAGALHAES, 2016; NEPOMUCENO, 2019, SANTOS, 2021, entre outros estudiosos e estudiosas). Mas gostaria de direcionar também algumas dessas reflexões para as experiências que tive como professora de História da África no Brasil e dos Afrodescendentes em atividades e propostas que

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150 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) decorreram diretamente da minha formação como historiadora da escravidão. Transcorrido mais de vinte anos da elaboração da dissertação de mestrado e da tese de doutorado, noto agora que alguns temas desses estudos foram adquirindo nova densidade na medida de minha aproximação com a História da Diáspora e da África. Consigo visualizar cada vez mais o sentido e a pertinência das referências e das matrizes africanas para os processos de resistência à escravização e para a formação de uma identidade escrava que se alimentava com as visões de mundo, com as tradições e cosmogonias africanas, ocidentais e dos povos da África Central (THORNTON, 1988; MILLER, 2011; SLENES, 1991/92, 2007; ALPERS, 2005; PARÉS, 2006, 2016). Nesse movimento, colocou-se de forma gradativa, mas evidente, a possibilidade de reler as cartas de Teodora da Cunha Dias (WISSENBACH, 2012) sob a perspectiva de sua visão de mundo africana, banto, em diálogo e conversas noturnas com a ancestralidade conga. “Eu tive um aviso de noite/ vinha e me falava que cumprisse a promessa que prometi de voltar para minha terra/ essa conga que fala comigo diz que se eu morrendo aqui não cumprirei promessa que nem eu só.” Numa outra direção, acredito que a formação como historiadora social da escravidão trouxe maior sensibilidade para focalizar, entre outros temas, a história da África Central no século XIX, privilegiando os protagonismos dos africanos e das africanas, os trânsitos e os deslocamentos, na maior parte das vezes compulsória, recorrendo às autobiografias e às narrativas históricas que deixam à mostra a condição precarizada e vulnerável de mulheres e crianças africanas sujeitas às ondas incessantes das caravanas escravizantes, de um lado, e de outro a vivência de múltiplas formas de sujeição na busca por proteção (WISSENBACH, 2021). Nesses tempos de pandemia escutei algumas frases e colocações que de certa forma me tocaram, algumas positivamente e outras, com alguma inquietação. A primeira delas, ao ouvir um historiador expressar suas preocupações com aquilo que ele chamou da reedição dos “africanismos”, um modismo nas produções acadêmicas brasileiras relativas ao estudo das expressões culturais afro-brasileiras e as insistências com África que para ele deveriam ter sido superadas. Ouvi também de outro historiador, e no sentido contrário, colocações a respeito das interpretações generalizantes ou globais que reeditam abordagens sistêmicas, fazendo silenciar novamente as experiências históricas individuais e locais, subsumindo a renovação

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metodológica e teórica trazida tanto pela Micro-História, quanto pelos Estudos Subalternos. Dizia ele que determinadas vertentes e pressupostos da História Global lhe parecem ser “narrativas míticas que deixam de lado projetos alternativos de poder”. Na minha trajetória como professora e nas relações com os estudantes que frequentaram as aulas de História da África e dos Afrodescendentes no Brasil uma das melhores opções que tomei foi a de introduzir nestes cursos as excursões didáticas, nos moldes em que fazem nossos colegas da área de Geografia e da Antropologia, com a realização de trabalhos de campo em comunidades indígenas e quilombolas. Em grande parte, inspirada pelas atividades e projetos desenvolvidos por Hebe Mattos, Martha Abreu e equipe, junto ao LABHOI/UFF e pelas indicações dadas pela História Pública em como lidar com passados sensíveis, dando visibilidade aos lugares de memória da história dos escravizados e escravizadas: A estratégia de dar visibilidade a estes temas através da visitação dos locais de memória não só consolidava novas formas de rememoração, para públicos que desconheciam ou se recusavam a falar desse passado, mas também abria caminhos de sustentabilidade para os grupos que sofriam o peso do estigma de serem descendentes dos antigos escravizados. (…) Para além da divulgação científica, a história da escravidão e do tráfico, ao se tornar pública, possibilitava também reparação moral, reforço da autoestima e construção de sustentabilidade econômica para os detentores de todas essas histórias e patrimônios (MATTOS, ABREU, GURAN, 2014, p. 258).

Gostaria de finalizar a apresentação falando um pouco sobre essas minhas experiências. As excursões didáticas em direção às comunidades remanescentes de quilombos começaram a ocorrer em 2011 e envolveram o contato dos estudantes com quilombos localizados nos estados do Rio de Janeiro, em Minas Gerais e em São Paulo. Entre outras comunidades, estivemos nos quilombos do Vale do Ribeira paulista — Ivaporunduva, Mandira, Pedro Cubas, e mais recentemente nos quilombos do vale do rio Turvo. Em Minas Gerais, visitamos o quilombo do Açude, de Dona Mercês, na Serra do Cipó e do Mato do Tição, de Dona Divina; as comunidades em torno de Milho Verde e, em volta de Diamantina, a roça de Pedro de Alexina (figura central do documentário de Rodrigo Siqueira — Terra deu terra come,

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152 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) de 2010). Estivemos também, em outras ocasiões, nos quilombos semiurbanos do Congado e do Reisado mineiros na periferia de Belo Horizonte: a comunidade dos Arturos e a irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Justinópolis. No Rio de Janeiro, no Vale do Paraíba Fluminense, fizemos um roteiro que envolveu a cidade “imperial” de Vassouras, a fazenda de Santa Clara, suas senzalas e a sala de castigos apresentadas aos estudantes pela fala insensível de representante desse mundo em ruínas, e finalmente a participação no jongo de São José — para lavar sensibilidades ultrajadas principalmente no caso de nossos alunas e alunos afrodescendentes. Inicialmente percebi essas atividades como uma forma de aguçar a sensibilidade histórica dos estudantes no sentido de compreender, historicamente, outras formas de organização do mundo dos ex-escravizados e ex-escravizadas e seus descendentes, entrando em contato com as narrativas das donas da história destas comunidades e dos guardiões de suas tradições. Ditão e Tiolé de Ivaporunduva, Chico e Nei Mandira, Pedro de Alexina, dona Mercês e dona Divina, Nilce de Pontes Pereira dos Santos, da Barra do Turvo, expressão de mulher quilombola que, tal como as demais lideranças mencionadas, estendeu os ensinamentos, as experiências e as lutas de sua comunidade para dimensões regionais, nacionais e internacionais. Mas, a partir de certo momento, dirigi especificamente os ganhos dessa experiência aos alunos e alunas afrodescendentes que tendem a aumentar cada vez mais na Universidade de São Paulo em razão das políticas de ação afirmativa e das transformações que acarretam no perfil demográfico da universidade e nas novas demanda que impõem: novas problemáticas, novos autores e autoras, novos protagonistas. As excursões didáticas oferecem a oportunidade do contato desses jovens com histórias pregressas e, nos termos ditados por Maria Odila da Silva Dias (1984), a aproximação com projetos e saberes históricos que existiram, mas que não foram hegemônicos, e que se instituíram na contramão da modernidade que se pretendeu homogênea (WISSENBACH, 1998). Assim, se, nos enredos de uma história oficial dos centros industrializados dominado pela ótica do progresso do capitalismo selvagem, seus antepassados foram considerados marginais e as estruturas sociais que organizaram foram vistas como anomias, na história dos quilombos, das comunidades ditas remanescentes, dos bairros rurais negros, eles e elas quilombolas propagaram e propagam projetos alternativos

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baseados em outras formas de organização, constituindo outros meios de [sobrevivência, baseados na solidariedade de parentes, do convívio com os mangues e as matas no interior dos quais estão estabelecidos. Experiências que não foram apreendidas nos quadros do desenvolvimento histórico, subsumidas por uma história única, como ensejou denunciar Chimamanda Adichie (2019 [2014]). Referências ACHEBE, Chinua. An Image of Africa: Racism in Conrad’s ‘Heart of Darkness’. Massachusetts Review. 18. 1977. ADICHIE, Chimamanda N. Os perigos de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. ALPERS, Edward A. ‘Mozambiques’ in Brazil: Another Dimension of the African Diaspora in the Atlantic. In: CURTO, José C; SOULODRE-LAFRANCE, Renée. Africa and Americas: Interconnections during the Slave Trade. African World Press, 43–69, 2005. APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas — as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Tradução. Rio de Janeiro: EdUFF, 2008. BÂ, Amadou Hampaté. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (coord.) História Geral da África. I. Metodologia e Pré-História da África. São Paulo, UNESCO; Ática; 1980. BARBOSA, Muryatan S. A razão africana — breve história do pensamento africano contemporâneo. São Paulo: Todavia, 2021. CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios na Constituição. Novos estudos. CEBRAP, São Paulo, v. 37, n. 3, 429–443, 2018. DIAS, Camila Loureiro; CAPIBERIBE, Artionka. Os índios na constituição. São Paulo: Ateliê Editorial, 2019. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984. FANON, Franz. Os condenados da terra. Tradução. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2ª. edição, 1979. FARIAS, Paulo de Moraes. Sahel, a outra costa da África. Palestra, Departamento de História, Casa das Áfricas, março de 2003. FARIAS, Paulo Fernando de Moraes. Comércio mudo: mito e evidência histórica. Afro-Ásia, 61, 2020, 325–356. Tradução de: Silent Trade: Myth and Historical Evidences. History in Africa, Madison, n. 1, 1974. FEIERMAN, Steven. African Histories and the Dissolution of World History. In: BATES, Robert; MUDIMBE, V. Y. e O´BARR, Jean. Africa and the Disciplines. The Contributions of Research in Africa to the Social Sciences and Humanities. Chicago; Londres, University of Chicago Press, 1984.

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História da África em Perspectiva: Ensino e Pesquisa 155 PEREIRA, Luena Nascimento Nunes. O ensino e a pesquisa sobre África no Brasil e a lei 10639. Revista África e Africanidades, São Paulo, ano 3, n. 11, 1–17, 2010. RIBEIRO, David William. Caminhadas indígenas, quilombolas e afro-diaspóricas: mobilizando as políticas culturais e a produção do conhecimento por narrativas plurais da História (1988–2020). Tese Doutorado, Programa de Pós-graduação em História Social, FFLCH/USP, 2021. SANTOS, V. S. Mulheres africanas no mundo Atlântico. Afro-Ásia, Salvador, n. 64, p. 618–626, 2021. SIQUEIRA, Rodrigo (dir.). Terra deu terra come. Documentário, 2010. SLENES, Robert W. “Malungo, ngoma vem!” África coberta e descoberta no Brasil. Revista USP, São Paulo, 12, 48–67, 1991/1992. SLENES, Robert. “Eu venho de muito longe, eu venho cavando”: jongueiro cumba na senzala centro-africana. In: LARA; Silvia H.; PACHECO, Gustavo. Memória do jongo. As gravações históricas de Stanley Stein. Vassouras, 1949. Campinas (São Paulo): Cecult; Folha Seca, 2007. THIONG´O, Ngugi wa. Decolonising the Mind: The Politics of Language in African Literature. Londres: James Currey, 1986. THORNTON, John. On the Trail of Voodoo: African Christianity in Africa and the Americas. The Americas, 55, 261–78, 1988. VANSINA, Jan. Paths in the Rainforests. Toward a History of Political Tradition in Equatorial Africa. Madison: University of Wisconsin Press, 1990. ZAMPARONI, Valdemir. Gênero e trabalho doméstico numa sociedade colonial: Lourenço Marques, Moçambique, c. 1890-1940. Afro-Ásia, 23,145-172, 1999. WISSENBACH, M. C. C. Conectando sertões e oceanos: trânsitos intercontinentais, vulnerabilidade social e centros de poder na África Central (2ª. metade do século XIX, com especial referência a Katanga). In: FERREIRA, Roquinaldo; REGINALDO Lucilene. África margens e oceanos. Perspectivas de História Social. Campinas: Editora Unicamp. 2021, pp. 141–177. WISSENBACH, M. C. C. Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade possível. In: SVECENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil. República: da belle époque à era do rádio. São Paulo: Cia das Letras, 1998. WISSENBACH, M. C. C. Sonhos africanos, vivências ladinas. Escravos e forros em São Paulo (1850–1880). São Paulo: Ed. Hucitec, 1998. WISSENBACH, M. C. C. Teodora da Cunha Dias: construindo um lugar para si no mundo da escrita e da escravidão. In: XAVIER, G; FARIAS, J. e GOMES, F. Mulheres negras no Brasil escravista e do pós-Emancipação. São Paulo: Selo Negro, 2012.

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Ensino e Pesquisa: diálogos por uma “Descolonização das Mentes” Entrevista com o Professor Ngugi wa Thiong’o Por Moisés Corrêa e Núbia Aguilar. Brasil, 10/08/2021

Professor, gostaríamos de agradecer mais uma vez pela oportunidade desta entrevista. Sobre a importância da trajetória de formação para o desenvolvimento do pensamento intelectual, o senhor poderia compartilhar conosco sua experiência e o desenvolvimento das reflexões realizadas ao longo de sua carreira? Quais foram as principais influências e desafios dentro da relação entre a pesquisa e o ensino? Ngũgĩ: Eu nasci e cresci no Quênia colonial. O Quênia, como o Brasil, foi colonizado por sujeitos brancos. A educação da minha geração, nasci em 1938, foi colonial em todos os sentidos possíveis. A jornada para qualquer conhecimento começava com a Inglaterra e a Europa. Fomos ensinados que a África foi descoberta por alguns exploradores europeus. Até mesmo nossos próprios corpos eram marcados por nomes europeus, por exemplo, eu costumava usar o nome “James Ngugi” antes de retomar o meu nome: Ngũgĩ wa Thiong’o. Mas, o pior era nos fazer pensar que os idiomas europeus, no meu caso o inglês, eram as fontes de todo o conhecimento. Minha jornada, em direção ao “meu eu”, começou com o questionamento sobre a suposição de que a Europa era a fonte de todo o conhecimento. Foi o que mais tarde chamei de “Descolonização da Mente”. Em Decolonising the Mind, a ideia central do seu livro foi a articulação prática entre as realidades em África e a busca por um processo de desco¬lonização das mentes. Como o senhor formulou este conceito e quais são as implicações para a compreensão do desenvolvimento dos colonialismos e seus legados nas sociedades pós-independentes?

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Ngũgĩ: A linguagem é a chave para a descolonização da mente. E a descolonização da Mente é a chave para a descolonização econômi¬ca, política e cultural. Uma mente algemada é uma mente que não consegue ver a real conexão entre o colonialismo e o esgotamento de nossos recursos naturais pelo Ocidente. Tentei dizer tudo isso em meu livro Decolonizing the Mind. Qual seria, sob sua perspectiva, a importância das representações, construídas em diferentes escritos, para a compreensão dos movimentos sociais durante o período colonial e pós-colonial da África? Como poderíamos pensar neste aspecto para a construção de estudos sobre as sociedades africanas? Ngũgĩ: A Europa (ou o Ocidente) nos deu acesso aos recursos de seus sotaques. Demos a eles acesso aos nossos recursos. Sotaques que deram acesso: esse ainda é o problema na África hoje. O senhor também produziu obras literárias. Como possibilidade de contato com diferentes aspectos sociais, como é avaliada a importância das obras literárias desde os movimentos de tradução até o contato com realidades representadas nessas narrativas? Ngũgĩ: Eu descrevo a tradução como a linguagem comum das línguas. Todos os idiomas, africanos, asiáticos, europeus etc. podem doar-se umas às outras por meio das traduções. Um de seus livros traduzidos no Brasil, “Um Grão de Trigo”, tem como pano de fundo o processo de independência do Quênia. Mugo e Kihika são personagens deste romance. Quais foram as inspirações para escrever sobre esta temática e construir os personagens? Ngũgĩ: Eu tentava entender a era pós-colonial. Lembre-se, publiquei o romance em 1967, literalmente quatro anos depois que o Quênia reconquistou sua independência. Era possível sentir muitas tendências perturbadoras no novo Quênia. Eu li Frantz Fanon, “Os Condenados da Terra”. O livro “abriu meus olhos”. As políticas de identidade foram uma marca epistemológica para a construção de narrativas nas sociedades africanas ao longo do século XX. A partir delas, ocorreram vários desdobramentos, como os processos de

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158 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) independência. Como o senhor analisa o desenvolvimento das áreas que abrangem os Estudos Africanos? Ngũgĩ: Os Estudos Africanos devem incluir todos os aspectos que envolvem a África hoje: econômico, político e cultural. Devemos estudar o livro de Rodney: How Europe Underdeveloped Africa. É por isso que a questão das línguas africanas é tão central para qualquer estudo significativo do continente. Existe, atualmente, uma diferença entre os conceitos de colonialidade e pós-colonialidade apontados por diversos estudiosos. Como esse debate se encaixa em suas reflexões e como influencia nas produções dedicadas às regiões da África? Ngũgĩ: África pré-colonial; África colonial; e a África pós-colonial: devemos estudar todos esses períodos. Fluindo pelo colonial e pós-colonial está a questão da descolonização. Dentre as contribuições contemporâneas da literatura e do teatro, após esse período que estamos atravessando com o Covid-19, o que o senhor destacaria como importante para termos relações sociais que coloquem em prática a descolonização das mentes para além das áreas acadêmicas? Ngũgĩ: Eu gostaria de compartilhar um poema que escrevi sobre a era Covid. Aqui está: Dawn of Darkness135 Por Ngũgĩ wa Thiong’o 24 de março de 2020 Eu sei, eu sei, Ameaça os gestos comuns da união humana O aperto de mão, O abraço Os ombros que damos um ao outro para chorar A vizinhança que consideramos natural Tanto que costumamos bater em nossos peitos Gritando sobre individualismo rude, 135 Uma resposta a Doggerel pela vizinha Janet DiVincenzo e ofertas por Mukoma wa Ngugi, da Universidade Cornell, e Naveen Kishore da Editora Seagull, Calcutá, Índia.

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Desprezando a natureza, até mesmo pondo veneno nela, enquanto Alegar que a propriedade tem todos os direitos legais da personalidade Murmurando gratidão por nossas ações nos deuses do capital. Oh, como agora eu gostaria de poder escrever poesia em inglês, Ou todo e qualquer idioma que você fala Para que eu possa compartilhar com você, palavras que Wanjikũ, minha mãe Gĩkũyũ, costumava me dizer: Gũtirĩ ũtukũ ũtakĩa: Nenhuma noite é tão escura que, Não vai acabar no amanhecer, Ou simplesmente, Cada noite termina com o amanhecer. Gũtirĩ ũtukũ ũtakĩa. Esta escuridão também vai passar Devemos nos encontrar de novo e de novo E falar sobre escuridão e amanhecer Cantar e rir talvez até abraçar Natureza e criação presas em um abraço verde Celebrando cada pulsação de um ser comum Redescoberto e amado de verdade À luz da escuridão e do novo amanhecer. No Brasil temos, desde 2003, uma lei (10639/03) que define como obrigatório o ensino da História da África e Cultura Afro-Brasileira. Gostaríamos de saber como, para o senhor, posiciona-se o diálogo entre ensino e pesquisa sobre a África e quais são os possíveis impactos deste tema, interseccionado com a dimensão política assumida. Ngũgĩ: Isso é muito importante. A maioria das pessoas no Brasil possui origens africanas. No entanto, é importante conhecer as histórias e culturas dos povos indígenas brasileiros, aqueles que viviam neste território antes de o Brasil ser colonizado por Portugal. Mas o principal é fazer conexões e interconexões entre todas essas linguagens e culturas. Devemos nos opor à hierarquia entre línguas e culturas e abraçar uma rede de dar e receber igual entre as línguas e culturas de todos os povos.

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Sobre os organizadores

Moisés Corrêa da Silva é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. A sua pesquisa se centra na trajetória histórica da fortaleza de São João Baptista de Ajudá entre os séculos XVIII e XIX. Foi estagiário-pesquisador do Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro. Já atuou profissionalmente na Pinacoteca do Estado de São Paulo, no Museu da Pessoa e em iniciativas independentes que visavam à promoção da História da África e da cultura afro-brasileira, através de propostas pedagógicas. Atua como professor e orientador educacional na Educação Básica. Núbia Aguilar é mestre em História pela UniRio. Possui Graduação em História pela Universidade Federal Fluminense e atualmente cursa o Doutorado em História Social na USP. Pesquisa sobre a população sul-africana em Joanesburgo durante o período do Apartheid.

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Sobre as autoras e os autores

Eduardo Antonio Estevam Santos possui graduação em Estudos Sociais - História pela Universidade Estadual de Santa Cruz (1999), Mestrado (2009) e Doutorado (2014) em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor do Instituto de Humanidades e Letras, campus dos Malês/Ba, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB-BA). Membro do Grupo Internacional de Estudos da Imprensa Periódica Colonial do Império Português - GIEIPC-IP. Atualmente desenvolve estudos e pesquisas sobre a história e a historiografia da imprensa angolana oitocentista. Raissa Brescia dos Reis é professora Adjunta-A de História da África no Instituto de História da Universidade Federal Do Rio De Janeiro. Doutora e Mestre em História Social da Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal De Minas Gerais e Doutora pela Université De Bordeaux Montaigne. Suas áreas de interesse e trabalho transitam no campo da história intelectual e política da África de expressão francesa no século XX, voltando-se principalmente para o Movimento da Négritude e do Pan-africanismo, por meio da revista Présence Africaine, assim como para as independências dos países oeste-africanos. Taciana Almeida Garrido de Resende possui graduação em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (2011) e mestrado em História pelo Programa de Pós-Graduação da mesma instituição (2014). Concentra seus interesses nos estudos sobre História Global e Transnacional, Relações Internacionais do Brasil com países africanos e políticas do Terceiro Mundo no período da Guerra Fria. É

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162 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) professora efetiva do Instituto Federal de Minas Gerais e atualmente possui pesquisa de doutorado em andamento sobre a Conferência Tricontinental de Havana. Felipe Paiva Soares é graduado em História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), mestre e doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente leciona história da África e diáspora africana nesta mesma instituição. Tem experiência na área de História, com ênfase em História da África, atuando principalmente nos seguintes temas: África Contemporânea; Historiografia; Colonialismo e Lutas de Libertação. Franck Gilbert Ribard possui graduação em Sociologia - Université de Toulouse-Le Mirail (França,1992), Mestrado em Antropologia Social e Histórica da Europa — Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (França, 1993), Doutorado em História — Université de Paris IV-Sorbonne (França, 1997). Pós-Doutorado na Université Toulouse — Jean Jaurès (2013–2014, França). Atualmente é professor associado da Universidade Federal do Ceará. Tem experiência na área de História, com ênfase em Antropologia Histórica, atuando principalmente nos seguintes temas: relações inter-étnicas, negro, memória da escravidão, festa, relações atlânticas, História da África. Mariza de Carvalho Soares é professora de História da África, diáspora atlântica e escravidão. Tem doutorado em História pela UFF (1997). Fez pós-doutorado na Vanderbilt University/EUA (20032004), depois complementado por dois meses na Yale University através de uma fellowship do The Gilder Lehrman Center for the Study of Slavery (2007); e dois meses na Stanford University onde ocupou a Cátedra Joaquim Nabuco no Center for Latin American Studies (2008). Entre outras publicações no Brasil e no exterior é autora do livro Devotos da Cor (Civilização Brasileira, 2000) publicado nos Estados Unidos como People of Faith (Duke University Press, 2011, prêmio BRASA 2011). Aposentada em 2010 atuou como professora do PPGHIS/UFF até 2018 e atualmente é professora visitante no PPGH/Unifesp. Entre 2005 e 2012 foi Member and Collaborating Scholar e Network Professor junto ao Harriet Tubman Institute (York University, Canada). De 2006 a 2009 dirigiu o projeto Acervo Digital Angola Brasil-PADAB (edital Pró-África/CNPq 2006) incorporado ao

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IHGB em 2007. Foi coordenadora do Convênio UFF-York University/ Canadá (2006-2010). Foi coordenadora do NEAF-Núcleo de Estudos Brasil-África (2008-2012) vinculado à Assessoria Internacional da UFF. Foi Professeur Visitant na École des Hautes Études en Sciences Sociales-EHESS, França (um mês, 2010). Ocupou a cátedra Tinker Visiting Professor na University of Chicago/CLAS (Spring 2015). De 2016 a 2019 foi consultora do projeto “Marfins Africanos no Mundo Atlântico? financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia/ Portugal, (2016-2019). Desde 2005 coordena o segmento Brasil do Slaves Societies Digital Archives/Vanderbilt University. Entre 2014 e 2018 foi pesquisadora colaboradora do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ onde foi curadora da coleção africana e da Nova Sala África da exposição de longa duração, reinaugurada em 2014 (Kumbukumbu: África, memória e patrimônio). Entre 2016 e 2019 organizou a Coleção Panair do Brasil, doada ao Museu Histórico Nacional, com exposição temporária da coleção (julho-outubro/2019). Em 2019, publicou “Diálogos Makii” (Chão Ed.), onde transcreve e analisa importante manuscrito do século XVIII sobre a vida de escravos Makii na cidade do Rio de Janeiro. Maria Cristina Wissenbach é professora Associada (Livre-Docente) do Departamento de História FFLCH/USP. Desde 2016, é coordenadora da área de História da África e responsável pelas disciplinas História da África séculos XI e XIX, e História da África e dos Afrodescendentes no Brasil, nos cursos de Bacharelado e Licenciatura, atuando também como orientadora no Programa de História Social da mesma instituição. Possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (1973), mestrado e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1989 e 1997), estágios de pós-graduação no CECULT / Unicamp e estágios de pesquisa no exterior. Foi uma das fundadoras da ABE-África, Associação Brasileira dos Estudos Africanos e sua presidente na gestão 2014–2016; associada participante da formação do GT África da ANPUH (2011), compôs a coordenação nacional do GT entre os anos de 2011 e 2013. Entre 2013 e 2017 coordenou o Projeto de Mobilidade Internacional entre a USP e a UEM (Moçambique) e o Projeto Moçambique lá e cá, em parceria com o Centro Cultural Brasil Moçambique, da Embaixada Brasileira de Maputo. Coordenadora do Grupo de

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164 Moisés Corrêa da Silva & Núbia Aguilar (Orgs.) Estudos Ana Gertrudes de Jesus, mulher da terra: por uma história social dos grupos subalternizados do sul global (África-América), criado em 2019 junto com Juliana de Paiva Magalhães, grupo que reúne professores e pesquisadores de graduação, pós-graduação e pós-doutorado. Editora da Revista de História da USP, entre 2013 e 2015, compõe a Comissão Editorial da mesma desde 2015 até a gestão atual. Bolsista Produtividade em Pesquisa, CNPq, nível 2. Autora de “Sonhos africanos, vivências ladinas. Escravos e forros em São Paulo, 1850-1880” (Hucitec 1998 e 2010) e “Práticas religiosas, errância e vida quotidiana no Brasil, finais do século XIX e inícios do XX” (Intermeios e Programa de História Social, 2018). Trabalha com temas relacionados à história da África entre os séculos XVIII e XIX, ao envolvimento das sociedades africanas no tráfico atlântico e índico de escravos e aos relatos de viajantes na África Centro-Ocidental e Centro-Oriental temas sobre os quais possui artigos e capítulos de livros. Atua também nas áreas de especialização: escravidão e tráfico, história social de São Paulo, história da medicina e sua relação com o comércio de escravos. Ngugi wa Thiong’o (nascido em 5 de janeiro de 1938, Limuru, Quênia) é considerado um dos principais escritores da África Oriental. Seu livro Weep Not Child (Não chore, criança), de 1964, ocupa lugar importante nas publicações em inglês escritas por africanos. Suas experiências, durante o período do colonialismo e lutas por independências, influenciaram sua formação e produções que passaram a ser expressas em línguas bantu do povo kikuyu do Quênia. Ngugi recebeu o diploma de bacharel da Makerere University, Kampala, Uganda, em 1963 e da Universidade de Leeds, Yorkshire, Inglaterra, em 1964. Depois de fazer um trabalho de graduação em Leeds, ele atuou como professor de inglês na University College, Nairobi, Quênia, e como professor visitante de inglês na Northwestern University, Evanston, Illinois, EUA. De 1972 a 1977, ele foi professor sênior e presidente do departamento de literatura da Universidade de Nairobi.

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Outubro de 2022

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que incide sobre estes temas abre a possibilidade de ampliar este

campo que se encontra em pleno desenvolvimento no Brasil. Estabelecer diálogos entre as pesquisas que se desenvolvem e as práticas de ensino tangencia caminhos que as preocupações dentro da História da África percorrem. Realizar uma obra que conecta diferentes pessoas, ideias e pesquisas possibilita trocas importantes para a construção de um conhecimento plural, que se estende sobre aqueles que se interessam sobre a história do continente. Por isso a intenção é trazer debates que pensem a respeito de pesquisa e ensino, duas vias com impacto direto na sociedade. Aqui, se apresentam textos que fomentam as discussões sobre a História da África, olhares e abordagens que discutem diversos períodos da história africana, assim como possibilidades para se pensar sobre o ensino dessa história.

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MOISÉS C. FONSECA DA SILVA | NÚBIA AGUILAR MORENO

ensino e pesquisa da história da África na atualidade. A reflexão

ISBN 978-65-5412-054-8

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A

proposta deste livro busca contribuir para as discussões sobre o