Pesquisa em Artes Cênicas : Textos e Temas

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Narciso Telles organizador

PESQUISA EM

ARTES CÊNICAS Textos e Temas

Rio de Janeiro, 2012

© Narciso Telles (Org.)/E-papers Serviços Editoriais Ltda., 2012. Todos os direitos reservados a Narciso Telles (Org.)/E-papers Serviços Editoriais Ltda. É proibida a reprodução ou transmissão desta obra, ou parte dela, por qualquer meio, sem a prévia autorização dos editores. Impresso no Brasil.

Projeto gráfico, diagramação e capa Sheila Neves do Rêgo Imagem da capa Memorial de Silêncios e Margaridas. Dramaturgia: Luiz Carlos Leite e Narciso Telles Atuação: Narciso Telles Direção: Mara Leal Foto: Luana Diniz (Magrela)

ISBN 978-85-7650-358-3 Comitê Editorial – Publicações GEAC Prof. Dr. André Luiz Carreira (UDESC) Prof. Dr. Arão Paranaguá de Santana (UFMA) Prof. Dr. Fernando Manoel Aleixo (UFU) Profª Dra. Mara Lucia Leal (UFU) Profª Dra. Maria Beatriz Mendonça (Bya Braga) (UFMG) Prof. Dr. Mário Ferreira Piragibe (UFU) Prof. Dr. Narciso Larangeira Telles da Silva (UFU) Prof. Dr. Paulo Ricardo Merisio (UNIRIO) Prof. Dr. Rogério de Oliveira Santos (UFOP) Profª Dra. Vilma Campos Leite (UFU)

Revisão Nancy Soares Produção Editorial Thaís Garcez Esta publicação encontra-se à venda no site da E-papers Serviços Editoriais. http://www.e-papers.com.br E-papers Serviços Editoriais Ltda. Rua Mariz e Barros, 72, sala 202 Praça da Bandeira – Rio de Janeiro CEP: 20.270-006 Rio de Janeiro – Brasil

CIP-Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

P564 Pesquisa em artes cênicas : textos e temas / Narciso Telles, organizador. - Rio de Janeiro : E-papers, 2012. 138p. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7650-358-3 1. Artes cênicas - Pesquisa - Brasil. 2. Artes cênicas - Estudo e ensino - Brasil. I. Telles, Narciso, 197012-6656.

CDD: 792.0981 CDU: 792(81)

SUMÁRIO

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Prefácio

Fernando Aleixo 13 Apresentação

Narciso Telles 15 Pesquisa como construção do teatro

André Carreira 35 Ter experiência da arte: para uma revisão das relações teoria/prática no contexto da nova teatrologia

Marco de Marinis 45 Paragens de um artista-docente-pesquisador

Narciso Telles 59 As artes circenses e a pesquisa no Brasil

Mario Fernando Bolognesi 69 A pesquisa em teatro: a questão da palavra e da voz

Silvia Davini

111 A pesquisa nas artes do corpo: método, linguagem e intencionalidade

Milton de Andrade 123 A pesquisa qualitativa em artes cênicas: romper os fios, desarmar as tramas

Adilson Florentino

Prefácio

Fernando Aleixo Ator e Professor do Programa de Pós-graduação em Artes da UFU

Este livro apresenta um conjunto de artigos que constitui uma importante contribuição para pensarmos a pesquisa em artes cênicas na contemporaneidade. Cada texto desenvolve um ponto de vista específico e, ao mesmo tempo, constitui um todo ancorado nas experiências fundadoras dos conceitos-pesquisas aqui apresentados. Neste sentido, para a apresentação de alguns pontos sobre a pesquisa em artes cênicas, levantados neste livro, farei o uso provisório de um “entre parênteses”. Penso ser importante proceder assim: recentemente muitas foram as superações conceituais e práticas envolvendo confrontos entre a arte e a ciência e entre a pesquisa acadêmica e a criação artística. E, portanto, acredito que qualquer abordagem generalista poderá desconsiderar problematizações importantes para o entendimento de conquistas e, também, de novos enfrentamentos necessários. Segundo as palavras de Teixeira Coelho, “um conceito raramente surge à luz do dia “tal qual”, pronto, definido e acabado”

(apresentação do livro “Sobre Performatividade”, publicado pela Letras Contemporâneas no ano de 2009). Acredito que o conceito de “pesquisa em artes” está situado exatamente nesta definição de inacabado, indefinido e em constante movimento de construção. Me ocorre neste ponto (da difícil tarefa de definição sobre a pesquisa nesta área) a metáfora da liquidez apontada por Lucia Santaella na abordagem sobre as linguagens líquidas. Assim, observo que muitas tentativas de formulação de conceitos acabam escapando das mãos, escorrem líquidas e caem em transformação: “os líquidos se movem facilmente. Eles fluem, escorrem, esvaem-se, respingam, transbordam, vazam, inundam, borrifam, pingam, são filtrados, destilados,…” (Bauman. Modernidade Líquida). Observamos o que considera Lucia Santaella: “Já não há lugar, nenhum ponto de gravidade de antemão garantido para qualquer linguagem, pois todas entram na dança das instabilidades. Texto, imagem, e som já não são o que costumavam ser. Deslizam uns para os outros, sobrepõem-se, complementam-se, confraternizam-se, unem-se, separam-se e entrecruzam-se. Tornaram-se leves, perambulantes. Perderam a estabilidade que a força de gravidade dos suportes fixos lhe emprestavam.” (SANTAELLA, Lucia. Linguagens líquidas na era da mobilidade, 2007. p. 24)1

Esta mobilidade do conceito e do entendimento sobre o que é a pesquisa em arte surge, dentre outras possibilidades, de um acúmulo histórico paradoxal: as experiências constituintes de uma espécie de contorno conceitual chegaram até nós carregadas de estreitas comparações com referências, parâmetros e estruturas de pesquisas de outros campos do conhecimento como, por exemplo, os das ciências exatas, sociais e das tecnologias. Observase, ainda hoje, um certo desconforto nestas comparações quando estas se debruçam sobre a concepção – que muitas vezes se pretendem definitivas – de princípios, metodologias de investigação

1. As referências citadas no prefácio são de fontes de obras já publicadas e dos artigos que compõem este livro.

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e análise, delimitação de hipóteses e objetivos e, ainda, divulgação e aplicação direta de resultados alcançados, além, é claro, das condições de distribuição de recursos e investimentos. No entanto, cabe um destaque sobre a experiência de trabalhos artísticos no âmbito da academia e das práticas criativas de artistas e coletivos. Estes reivindicaram, no percurso já construído, especificidades próprias do campo das artes cênicas e atingiram, assim, importantes ganhos que possibilitam uma compreensão, se não mais confortável, mais delimitada e capaz de evidenciar as diferenças, as tensões e as aproximações entre os distintos campos do conhecimento. Ou melhor, o acúmulo destas pesquisas colaborou com uma certa mudança no padrão do olhar para este campo de pesquisa. Consideremos as palavras de Maffesoli: “É indispensável recuar um pouco para circunscrever, com a maior lucidez possível, a socialidade que emerge sob nossos olhos. Esta, por mais estranha que seja, não pode deixar ninguém indiferente […] Mas resta ainda saber apreciá-la em seu justo valor. E isso não poderá ser feito se o que está em estado nascente for medido com base no padrão daquilo que já está estabelecido.” (MAFFESOLI, Michel. Elogio da Razão Sensível. 1998. p. 11)

A especificidade da pesquisa em artes cênicas em relação a outros campos do conhecimento é ainda esclarecida por outra distinção: entre a arte e a ciência, considerando aqui o sentido metodológico e não de relevância. O teatro não é uma manifestação lacônica, fechada no “em-si-mesmo”. Sua prática é, essencialmente, complexa e transdisciplinar. A questão apresentada, com efeito, no âmbito da pesquisa é que a análise necessária não poderá ser regrada na quantidade, tampouco na classificação pautada na compartimentação de estilos, formas, gêneros e características técnicas e estéticas. A questão será melhor abordada pelo procedimento do relativismo e da subjetividade, o que impõe outras muitas dificuldades de dimensionamento e precisão. Mas acredito que é justamente nesta dificuldade que está o

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fundamental ponto para o pesquisador: a liberdade de ocupar uma espécie de “não-lugar” (melhor definido como lugar-expandido) permite o rompimento de fronteiras e, consequentemente, o trânsito em diferentes campos do conhecimento e em distintas experiências da vida humana. A bem dizer, não falei aqui ainda do aspecto processual e coletivo da pesquisa em artes cênicas. Uma maneira significativa de problematizarmos a pesquisa é instalar parâmetros que permitam a análise da criação no contexto da própria criação, ou seja, sem comparações com parâmetros outros que não os próprios determinados pela obra ou processo. O campo da pesquisa aqui abordado permaneceu sob muitos aspectos em meio às lutas conceituais e disputas de visões de mundo (acadêmica, científica, artística etc.). Para melhor compreendermos o divórcio gerador de certas dicotomias, André Carreira apresenta em seu artigo que compõe este livro uma metáfora do casamento “para se refletir sobre o lugar e os sentidos da pesquisa em artes cênicas no âmbito acadêmico”. Esta área de pesquisa em consolidação põe em jogo, por exemplo, a aptidão do teatro de dar conta de colocar diferentes princípios e procedimentos de construção de pensamentos e conhecimentos em uma mesma experiência, em um mesmo processo criativo. Neste sentido, considerando a definição de Carreira, pesquisar passa ser a criação de “espaços de diálogo com as diferentes tramas do fazer teatral, construindo olhares que inquiram e que reflitam desde uma posição cuja especificidade contribui para a produção de uma tensão transversal ao eixo criação – fruição”. Antes mesmo da visão dicotômica entre criação e investigação acadêmica está o “dualismo” entre teoria e prática. Sobre este ponto De Marinis nos proporciona uma reflexão sobre a aproximação ciência-teatro, chamando-nos a atenção para a necessidade de fuga das armadilhas dos conceitos estabelecidos e, ainda, para uma revisão “radical das relações entre a teoria e a prática e, antes ainda, das noções mesmas de teoria e de prática no caso do teatro”. Do mesmo modo, Milton Andrade em seu artigo sobre a pesquisa nas artes do corpo apresenta questões atuais sobre o con-

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texto da pesquisa que nos permite retornar, assim, ao mesmo nível que se situavam os questionamentos sobre a cisão entre ciência e arte, objetivo e intuição, mente e corpo, inteligível e sensível, acadêmico e artístico: “como lidar com o logos acadêmico científico (comunicante), quando se trabalha com uma forma de produção simbólica ambivalente, como a linguagem do corpo (que, por natureza, “corrompe” o próprio discurso)”. Com efeito, certas hegemonias ou “padrões do olhar” são colocadas em discussão. Sobretudo, como nos adverte Jorge Dubatti em seu livro “Filosofía del teatro II: cuerpo poético y funcíon ontológica”, é a partir da prática do teatro que podemos pensar a pesquisa e o conhecimento sobre o teatro: “‘regresar el teatro al teatro’ […] el teatro es un ente complejo que se define como acontecimiento, un ente que se constituye historicamente en el acontecer”. É justamente no compartilhamento reflexivo de uma prática que o pesquisador Narciso Telles nos apresenta suas “paragens”: detalhamento de um percurso de construção ativa da pesquisa em artes cênicas, onde podemos observar relevantes problematizações que nos permitem compreender que os “cânones da pesquisa científica e suas estruturas metodológicas determinaram a forma compreensão do fenômeno artístico aceito no “mundo acadêmico”, seguindo modelos hegemônicos que balizam o sistema de produção do conhecimento”. Deste modo, para uma visão mais concreta e ativa dos movimentos construídos a partir dos embates destas indagações e questionamentos, ou, para a “encarnação” dos amplos sistemas e conceitos envolvidos na pesquisa, a experiência prática, material, concreta, palpável, corporificada, faz-se necessária. Neste sentido, a apresentação do mapeamento da pesquisa sobre o circo e suas especificidades no âmbito nacional, realizado por Mário Bolognesi e, ainda, a cartografia das vocalidades em performance realizada por Silvia Davini, nos fornece subsídios para dimensionarmos a pesquisa enquanto vivência e experiência sensível. Nas palavras de Michel Maffesoli no seu livro “Elogio da Razão Sensível” compreendemos que a “encarnação” é a possibilidade de “enriquecer o saber, de mostrar que um conhecimento digno deste nome só pode estar ligado ao objeto que é seu”.

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Contudo, caso o foco se volte para aspectos quantitativos e qualitativos das pesquisas em artes cênicas, verifica-se claramente um significativo incremento da produção que impacta tanto nas reflexões prático-teóricas, como nos trabalhos de estudos de linguagens, de composição e criação. A esse propósito, cabe destacar as frentes abertas com o aumento significativo e recente dos cursos de graduação nas universidades brasileiras e, sobretudo, dos programas de Pós-graduação em artes. Considerando as palavras do artigo sobre A pesquisa qualitativa em artes cênicas, de Adilson Florentino: “Há um considerável universo teórico e metodológico para desenvolver a pesquisa qualitativa no campo das artes cênicas a partir da diversidade de tradições analíticas ancoradas, principalmente, nas ciências sociais. Na tensa relação entre ciências sociais e artes cênicas se dá a gestação de um espaço inter e transdisciplinar que ainda não está suficientemente explorado, mas que permite suscitar diversas reflexões.”

O aspecto qualitativo, no entanto, em acordo com o autor acima citado, merece um exame atento, pois concentra interferências de questões variadas a serem consideradas: epistemologias; metodologias (por vezes aplicadas na avaliação de resultados e impactos sociais das pesquisas em arte); definição de metas quantitativas que, muitas vezes, se dá de modo comparativo entre diferentes realidades e condições de investimento; critérios de aplicação de recursos e de condições de execução de projetos; visibilidade das conquistas alcançadas e aproximação dos resultados ao cotidiano do cidadão etc. Como já apontado, a questão da quantidade e da qualidade na pesquisa em arte, quando diagnosticada no contexto atual da área, fornece um pano de fundo sobre o qual se destaca o amplo crescimento dos trabalhos artísticos-acadêmicos. Mas a ampliação da quantidade não é um simples movimento de reacomodação das prioridades e dos – já apontados acima – investimentos; ela precede uma mudança radical na dinâmica do pensamento

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contemporâneo, cuja remodelagem nas diferentes áreas reivindica interdisciplinaridades, porosidades, subjetivações, reinvenções, holismos, entre outras tendências presentes. Mas essa característica não pode dissimular o fato de que o rigor metodológico recai sobre os trabalhos nas áreas das artes cênicas, a saber, a de certas categorias constituintes do que tenho denominado saber sensível: intuição, impressão, sensações, imaginação etc. Não apenas a definição destes termos não são fechados, mas a ampliação dos parâmetros, a flexibilização dos conceitos e dos padrões que estabelecem uma mudança de plano: o que está em questão é a complexidade que envolve a pesquisa em artes cênicas e o modo pelo qual os próprios procedimentos se referem uns aos outros na construção das dinâmicas da criação. Digo com isso que o processo de criação estabelece seus próprios procedimentos e sentidos abordados; ou seja, por exemplo, os conceitos de corporeidade e de jogo poderão ser definidos no próprio contexto em que são aplicados e, consequentemente, adquirirem outras definições em outros processos. Especificamente, destaca-se o que aponta Narciso Telles em seu artigo Paragens de um artista-docente-pesquisador: “A experiência como atitude metodológica do pesquisador EM artes, se configura como uma posição do sujeito-pesquisador frente ao fenômeno artístico que determina um olhar/escrita específica sobre seu objeto de estudo, no qual elementos de subjetividade estão presentes na própria estruturação da pesquisa e também no processo de análise do material”. Deste modo, além da contribuição para um mapeamento de ações sobre a pesquisa em artes cênicas, além do acréscimo de novos conceitos, dinâmicas e experiências, além da possibilidade de reflexão sobre o tema à luz de práticas de importantes pesquisadores da área, este livro tem ainda por tarefa situar este campo da pesquisa em relação ao conjunto das áreas de pesquisa no Brasil, considerando a sua especificidade, pois certamente uma realidade permanece aberta: ainda há muito caminho a ser percorrido na luta por políticas de investimentos mais justas e equilibradas entre as pesquisas dos diferentes campos do conhecimento.

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Apresentação

Narciso Telles

A pesquisa em Artes Cênicas no Brasil vem, nos últimos anos, em pleno processo de expansão e consolidação. Os diversos Programas de Pós-graduação na área espalhados pelo país possibilitam a ampliação e a diversificação de estudos em investigações no campo das artes cênicas (teatro, dança, e circo, especialmente). O mundo da pesquisa em Artes, das ideias e das práticas, torna-se cada vez mais complexo e as classificações em eixos temáticos são essencialmente controvertidas. Neste livro optamos por um desfile de textos e temas que podem orientar o leitor nas discussões metodológicas e epistemológicas da pesquisa em artes cênicas. O eixo norteador de nossa proposta para o leitor é contribuir com o debate sobre as múltiplas possibilidades de entendimento das teorias e práticas de investigação que têm se ampliado nos últimos tempos nos contextos nacional e internacional. Desafiamos o leitor para a seguinte provocação: exercitar a crítica e a reconceptualização das tendências e perspectivas que atravessam os textos aqui reunidos. Os fios condutores que conectam o conjunto da obra têm como espaço de interseção a preocupação com a pesquisa e,

mais diretamente, com a formação do artista-professor-pesquisador de artes cênicas no Brasil. Portanto, diante da diversidade temática que a produção do conhecimento está submetida atualmente, nos cabe como pesquisadores, professores e profissionais de teatro a tentativa de elaborar um mapeamento, pelo menos provisório, das principais linhas de pesquisa desenvolvidas pelos “atores acadêmicos” que atuam no espaço das universidades, investigando o fenômeno teatral. A reunião de textos de pesquisadores brasileiros e estrangeiros pretende oferecer ao leitor a utilização de um caleidoscópio para o qual confluem diferentes teorias e práticas que têm como foco a pesquisa em Artes Cênicas em suas nuances e matizes.

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Pesquisa em artes cênicas

Pesquisa como construção do teatro

André Carreira1

Apesar de que atualmente na pesquisa em artes cênicas o problema da relação entre a abordagem artística e a investigação científica parece superado, ainda persistem no âmbito acadêmico tensões entre o fazer e o pesquisar2. Essa questão impulsionou a escritura deste texto, que tem como objetivo discutir quais as reais possibilidades de relação entre pesquisa acadêmica e os processos criativos das artes cênicas.

1. Professor da Universidade do Estado de Santa Catarina, pesquisador CNPq, diretor do Grupo Experiência Subterrânea. Autor dos livros Teatro de Rua (HUCITEC) desenvolve pesquisa sobre o teatro de grupo e procedimentos de interpretação teatral. [email protected] 2. Alguns autores apontam a distinção entre o que seria uma pesquisa e a pura especulação. Neste sentido, é interessante observar o que Silvio Zamboni afirma no livro A pesquisa em Arte, opõe a pesquisa ao que ele considera especulação: “o indivíduo que faz especulação está consciente da vacuidade de sua proposta, está solto e descompromissado com qualquer situação que exija uma resposta; ele tenta sem saber o que conseguirá, e ele mesmo não sabe firmemente o que pretende conseguir (...) Por não considerar a especulação como método de pesquisa, não quero dizer que ela não tenha validade no processo global de produção artística. (...) Na ciência, esse tipo de procedimento especulativo e casual tem participação muito mais reduzida do que na arte”. (2006, p. 54)

Essa união é um casamento que seria possível somente como resultado de um compromisso matrimonial carente de paixão? Ou como desejamos, isso poderia representar um vínculo estreito entre dois conhecimentos que muitas vezes parecem divergentes? A metáfora do casamento parece apropriada para se refletir sobre o lugar e os sentidos da pesquisa em artes cênicas no âmbito acadêmico, pois a mesma tem sido incrementada e tem estreitado vínculos com a criação artística que circula pelo país. Aprofundar nossas reflexões sobre isso é importante para o desenvolvimento do campo da investigação, e é particularmente significativo para a consolidação de referências que contribuam com as trocas acadêmicas nas quais tomamos parte cotidianamente. A premissa que orienta este texto é que a criação e a investigação são atividades inseparáveis e complementares no fazer artístico, pois como afirma o pesquisador espanhol José Antonio Sanchez, “não existe pesquisa sem criação, e a criação sem pesquisa não é arte”3. Ambas são construções de conhecimento, mas, quais as fronteiras de cada uma dessas ações? Como reconhecer na pesquisa do artista em sua sala de ensaio elementos que sejam comuns aos da formulação de campos conceituais? Como relacionar o rigor que se busca com os estudos teóricos, e a livre construção de discursos que caracteriza a arte? Para oferecer uma resposta a tais questões devemos negar a existência de uma divisão taxativa, e certamente simplória, entre artistas e pesquisadores. Não se pode supor que os primeiros fariam a arte, e os outros produziriam os conhecimentos que seriam organizados e estruturados segundo os cânones da pesquisa científica. Na arte estas fronteiras são bastante frágeis, e ambos os lados se interferem mutuamente. No entanto, é preciso reconhecer que o lugar dos pesquisadores, que não está divorciado dos criadores, tem suas particularidades, dado que a função fundamental da pesquisa acadêmica

3. Afirmação realizada em sessão do Seminário Internacional Las artes escénicas como práctica de investigación (la transformación de los espacios acadêmicos y artísticos – 1990/2010)

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é produzir novos olhares sobre os objetos artísticos, sobre suas histórias, seus procedimentos e, finalmente, sobre suas conexões com outras práticas culturais. Pesquisar é criar espaços de diálogo com as diferentes tramas do fazer teatral, construindo olhares que inquiram e que reflitam desde uma posição cuja especificidade contribui para a produção de uma tensão transversal ao eixo criação – fruição. Esta pesquisa deve ser encarada como parte dos mecanismos de construção da arte enquanto campo, pois representa um instrumento que estabelece relações múltiplas entre o fazer e o fruir, impulsionando tanto os processos de criação como a contextualização das obras e dos procedimentos. Mas nas ocasiões nas quais a pesquisa em arte é investida de uma formalidade que a aproxima dos modos operatórios da ciência, quando esta é qualificada como acadêmica, ambas as atividades parecem distanciar-se. Nossa reflexão deve considerar que o contexto imediato da pesquisa em artes cênicas no Brasil é o de uma universidade inserida em uma “tradição” acadêmica que reivindica, a partir da segunda metade do século XX, os procedimentos de ensino e pesquisa “homologados” principalmente pelos padrões dos campi norte-americanos, segundo um modelo baseado em estudos de graduação, mestrado e doutorado, e na quantificação da produção intelectual como instrumento básico da avaliação. Esta universidade incorporou – a exemplo de um fenômeno que vemos atualmente em vários sistemas de ensino da Europa e da América Latina –, a arte nos seus bancos, o que exigiu uma articulação de formas de construção de saberes que até então estavam bastante separadas do nosso cotidiano imediato. Abandonando o modelo dos conservatórios, no Brasil se investiu, desde os anos 1970, na formação artística no âmbito das universidades. Isso representou uma relativa democratização do conhecimento – pois ampliou a oferta de cursos –, e, ainda que de uma forma oblíqua, também significou um reconhecimento dos valores do saber artístico como algo digno do ensino superior. Neste sentido, deve-se considerar que a formação universitária não só incrementa o status do profissional, como amplia as possibilidades de que o trabalho deste profissional encontre

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espaços laborais em escolas, e em outras instituições, além do próprio fazer criador. Posteriormente, houve o investimento em cursos de Pós-graduação e o incremento da pesquisa em artes cênicas. O aumento do fluxo de artistas que se fizeram professores universitários, e o crescimento do número de estudantes de Pós-graduação em artes cênicas4, também fez com que as nossas reflexões sobre questões metodológicas se ampliassem, ocupando nossa atenção como um problema fundamental para o desenvolvimento do campo da pesquisa ao que pertencemos. Mas esse processo não se deu sem explicitar contradições entre o fazer artístico e os procedimentos acadêmicos tradicionais. Isso fica mais evidente quando refletimos sobre a pesquisa em arte e, em particular, quando nosso assunto é a pesquisa em artes cênicas, uma arte do momento, uma arte que tem a efemeridade como “substância”. Basta observar o debate sobre procedimentos de avaliação da produção acadêmica levado a cabo no país nos últimos anos, para se perceber como as duas tradições têm pontos de atrito. Outro signo dessa tensão é o fato de que ainda não temos na universidade brasileira um claro consenso de como instrumentalizar e avaliar trabalhos de conclusão de curso que tenham a forma de objeto artístico. Ainda predomina entre os programas de Pós-graduação a valorização do texto escrito como matéria de avaliação. Assim, mesmo quando se aceita o espetáculo como alternativa da dissertação ou da tese, aparece a demanda de um “memorial descritivo” como documento um tanto mais “sólido”. Mas isso ainda carece de um maior desenvolvimento sobre as funções tanto do produto artístico quanto do documento escrito. Sabemos que a pesquisa em artes cênicas é herdeira das pesquisas do campo da literatura e da linguística, dado que antes de ser abordado em sua dimensão espetacular o teatro foi considerado centralmente como texto dramatúrgico. Por isso, uma “ciência do teatro” foi inicialmente estruturada como leitura do

4. Na metade da década de 90 existiam três programas de Pós-graduação na área, hoje são seis cursos de mestrado e quatro de doutorado em artes cênicas e teatro, um mestrado em dança, oito mestrados e três doutorados em artes com linhas de pesquisa relacionadas às artes cênicas.

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texto, para depois ser entendida como estudo do texto espetacular e de seu funcionamento. Com isso, as abordagens da semiótica ganharam valor entre nossas pesquisas dando relevo às obras de autores como Roland Barthes, Anne Ubersfeld, Patrice Pavis. A possibilidade de se construir teorias para as operações da cena contribuíram para uma significativa transformação dos estudos teatrais. Isso deve ser relacionado também com os estudos sociológicos, onde podemos destacar o trabalho de Jean Duvignaud, e com as propostas da antropologia de onde provém a produção de Victor Turner. As atuais abordagens da pesquisa em artes cênicas se relacionam de diferentes maneiras com o fenômeno da polifonia que Barthes atribuía à “máquina cibernética em funcionamento” que seria o teatro. Esta polifonia deve ser associada à noção de teatralidade proposta por Josette Feràl, que afirma que somente existe o acontecimento da teatralidade a partir do posicionamento do olhar de quem observa desde a condição de “espectador”. O lugar da produção é então definido pelo espaço que se estabelece “entre” o espetáculo e o espectador. O acontecimento é o objeto concreto de nosso estudo, e isso demanda a construção de modos de aproximação que considerem as diferentes dimensões do fenômeno cênico. Consequentemente, as formulações teóricas sobre o teatro têm buscado instrumentos de pesquisa que possam dar conta dessas dinâmicas. E isso implica visitar campos muito diversos de conhecimento, inclusive o território da ciência. Exatamente por isso, ao situarmos os horizontes de uma pesquisa em artes cênicas que se reconhece como partícipe no campo científico é muito importante evitar um discurso generalista que considere científico tudo aquilo que se faz sob os auspícios da universidade. O simples uso dos elementos do código acadêmico não confere a nenhum discurso a categoria de científico, pois considerar científico aquilo que se arma do formalismo e das normas é realizar uma simulação, cuja consequência última não pode ser mais que o mero cumprimento de regras institucionais. Em tempos onde o próprio conceito de ciência se remodela de forma intensa, e as certezas mais firmes são colocadas em dúvida, é apropriado considerar essas questões como um impulso

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para ampliar o novo universo de estudo das artes da cena, especialmente no momento em que buscamos uma integração entre os dois polos já mencionados. A revisão da noção de ciência encontra em Paul Feyerabend, autor do conhecido Tratado contra o método, um olhar questionador que considera que “a ciência está muito próxima ao mito do que qualquer filosofia científica se inclinaria a admitir. A ciência é uma das muitas formas de pensamento desenvolvidas pelo homem e não necessariamente a melhor” (1997, p. 447). “A ciência é uma construção humana, uma narrativa que criamos para explicar o mundo a nossa volta”, e neste sentido nunca esteve totalmente separada do pensamento mítico (GLEISAR, 2010, p. 25). Podemos perceber que a busca de uma teoria do campo unificado na Física – uma teoria que explique ao mesmo tempo o funcionamento da mecânica clássica de Newton e da mecânica quântica, isto é, uma “teoria do tudo” como a chama o físico Marcelo Gleiser –, está profundamente relacionado com nossas arraigadas certezas unificadoras. Acreditamos, miticamente, em uma verdade a ser desvendada e isso não deixa de contaminar nossa ciência (2010). Se até no terreno da ciência uma verdade única está em dúvida, o que dizer de objetos artísticos e seus processos? Devemos estar atentos então ao perigo da associação a um cientificismo que procure fazer desse objeto volátil algo mais durável, por meio de identificações forçadas, que utilizam ferramentas científicas que estão além das necessidades do próprio teatro. Antes de buscar parâmetros que possam ser horizontalizados como norma, seria acertado tomarmos alguns referentes que permitam o aprofundamento dos intercâmbios de procedimentos entre os campos. A volatilidade e multiplicidade dos objetos cênicos faz com que os mesmos resistam às generalizações teóricas. Toda abordagem que busque tais generalizações encontrará dificuldade de funcionar plenamente neste contexto de diversidade de formas e modos, que é próprio do teatro da contemporaneidade. A especificidade de cada espetáculo propõe um diálogo carregado de subjetividade em um ambiente onde os cânones não funcionam mais.

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De todos os modos, ainda que no terreno da arte não possamos trabalhar estritamente com os princípios metodológicos básicos das ciências, isto é, que não possamos articular olhares solidamente estruturados a partir do trinômio: hipótese – verificação – confirmação, não significa afirmar que a arte não produza conhecimentos compartilháveis. Como afirma Silvio Zamboni “tanto a arte como a ciência acabam sempre por assumir certo aspecto didático na nossa compreensão de mundo, embora o façam de modo diverso: a arte não contradiz a ciência, todavia nos faz entender certos aspectos que a ciência não consegue fazer” (2006). As práticas artísticas formulam conhecimento porque são pensamento sobre o mundo, são construções de mundos. Como afirma Zayas de Lima David Locke em seu estudo A ciência como escritura, defende a afinidade entre ciência e literatura. Situando a linguagem científica dentro da linguagem, com seus modelos que substituem ou formulam o real como concepção “atua metaforicamente”; a linguagem literária funciona produzindo o exemplo particular da regra geral “atua metonimicamente”. Consequentemente, “ciência e literatura comporiam um sistema biaxial de coordenadas, uma estrutura mediante a qual situaríamos o real da experiência” (1997, p. 260). Neste sistema, a literatura não teria um “controle exclusivo da imaginação, a expressividade, a persuasão ou a criatividade”; e a ciência “patente sobre a verdade, a fiabilidade ou a funcionalidade” (264).

Fazer arte é construir novos saberes sobre o Real e, portanto, é frequentar territórios que costumam pertencer unicamente ao pensamento das ciências. É importante discutir quais os canais que conectam os polos do fazer artístico e dos procedimentos acadêmicos, e delimitar como estas dinâmicas diversas podem se relacionar. Perguntar sobre procedimentos de pesquisa em artes cênicas é buscar vias a partir das quais ambas as práticas possam se interferir mutuamente. Neste sentido é oportuno observar que as abordagens de ordem filosófica contribuem para

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aproximações ontológicas, que ajudam a compreender as matrizes do fazer teatral, ao mesmo tempo em que sugerem “formas de trabalho que propõem um compromisso vinculante, estreitando a distância entre objeto e pesquisador” (CARREIRA/CABRAL, 2006, p. 16). Essa discussão se fez mais relevante nas últimas duas décadas devido a que o crescimento desta área de conhecimento fez mais complexas nossas formas de abordar a pesquisa, ampliando o horizonte de trabalho e diversificando as ações institucionais. Se em algum momento “pesquisa no teatro” se referia, majoritariamente, a projetos de releitura de textos dramáticos e de suas circunstâncias de produção, saltamos do campo da literatura para o campo da cena como prática. A história que escrevemos hoje em dia é principalmente a história dos fenômenos da cena como experiência compartilhada entre artistas e espectadores. A diversificação do campo se deu a partir da relação com áreas do conhecimento tão variadas como a sociologia, linguística, antropologia, e até mesmo a física. O reconhecimento do espetáculo como objeto obrigou a pesquisa em artes cênicas transpassar a fronteira da literatura de forma tão radical, que até mesmo pesquisas que têm como foco a literatura dramática estão obrigadas a encontrarem relações de significação com as operações da cena como elemento central. Cada vez mais, temos uma relação estreita entre os que ensinam nas universidades e os que fazem teatro nos palcos e nas ruas. A arte tem tomado os espaços da universidade o que implica na visita aos modos do pensamento universitário como forma de expandir os territórios do saber artístico. No âmbito da pesquisa universitária os artistas se encontram tensionados entre o impulso da criação – considerada como pesquisa de linguagem –, e os procedimentos “científicos” que caracterizam as normas da academia. O mandato da teorização exerce uma pressão contraditória com as dinâmicas mais fortes dos processos de criação artística. Neste contexto, o criar, regido apenas pelos processos de construção de saberes que se relacionam ao próprio objeto artístico, deve atender à demanda da estruturação de um pensamento organizado que proponha

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um campo teórico, e estabeleça relações para além do próprio objeto artístico. O problema estaria colocado então em como ocupar esses espaços universitários e produzir pesquisa no campo das artes cênicas preservando os elementos estruturais do saber artístico? Como realizar uma tarefa que nos coloca, inevitavelmente, em dois lugares de forma simultânea, sem esquivar essa contradição? Os artistas que habitam o território da universidade estão obrigados a formular respostas para essas questões, pois é necessário descobrir, ou inventar formas de trabalho contaminadas por elementos de ambos os referentes. Não seria possível ignorar o discurso científico – organizador de um paradigma lógico –, para reforçar apenas procedimentos subjetivados do fazer artístico, nem tampouco seria operacional adaptar forçadamente a pesquisa em arte ao molde cientificista. A aproximação do teatro à universidade trouxe para o primeiro a possibilidade de aprofundar o registro das experiências de criação, e assim poder ampliar as reflexões técnicas. A prática da sistematização representa para os criadores um instrumento que permite revisitar experiências próprias e alheias. As pesquisas têm cumprido um papel fundamental na releitura da história do espetáculo, e desta forma têm ampliado as possibilidades de análise de procedimentos de criação espetacular. Essas práticas de pesquisa permitem que o fazer artístico adquira novas perspectivas e que, sobretudo, veja dilatada sua relação com diferentes interlocutores. Mas, o mais importante neste processo foi a convocatória à reflexão filosófica sobre o teatro. A pesquisa universitária propõe o aprofundamento da discussão sobre lugar do teatro na cultura, e as correspondentes repercussões estéticas dessas abordagens. Essa pesquisa produz reflexões que vão além dos espaços ocupados tradicionalmente pela reflexão ocasional dos criadores, em particular dos renovadores da cena contemporânea, e mesmo pela crítica jornalística. Desta forma, se amplia o circuito dedicado ao debate sobre os fenômenos do teatro com a criação de dois ambientes que operam simultaneamente.

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É exatamente essa simultaneidade que nos obriga a repensar o lugar da pesquisa teatral relacionada com o pensamento científico, no que diz respeito aos seus vínculos com a própria produção criativa em artes cênicas. Talvez, em lugar de supor um quadro definido de uma ciência das artes cênicas seria necessário situar nossa tarefa em relação ao pensamento dos criadores (atores, diretores e público), para, a partir disso, articular nossos olhares com essas múltiplas formas de ver o teatro. O que importa nesta reflexão levada a cabo na universidade é o teatro ou a dança como coisa, como experiência cujo testemunho coincide com o viver o espetáculo como artista ou espectador. A produção do objeto artístico deve ser considerada o elemento axial ao redor do qual se articulam as diferentes práticas de pesquisa. Isso implica afirmar que se pesquisamos estamos realizando o campo da arte, estamos definindo a arte como conhecimento que tem diversas facetas entre as quais se incluem tanto o criar como o refletir. Conceituar é outra dimensão do ato criativo. Deve-se lembrar de que por mais que o artista não esteja obrigado a produzir um esforço teórico, e por mais caótico que seja seu processo criativo, ele sempre articula um pensamento que sustenta e justifica sua obra artística. Quando a academia dirige seu olhar para os trabalhos dos artistas do teatro se cria um diálogo com essa zona de produção intelectual que vai além da obra como objeto de fruição. Esse é então um elemento a ser explorado quando refletimos sobre as metodologias de pesquisa em artes cênicas. Como afirmado anteriormente, o teatro é um “entre”, é um acontecimento que se dá entre os artistas e os espectadores, é uma prática compartilhada. Ele existe como uma experiência – no sentido que dá a este termo Bergson –, que sempre será da ordem do experimentado e do lembrado. Algo que ocorre como intercâmbio cultural, e se inscreve na memória, e desde ali continua funcionando (1990). Pesquisar esse objeto será, direta ou indiretamente, construir condições para a produção deste evento como acontecimento, e também será buscar registros da memória. Os produtos que resultam das pesquisas (artigos, livros, palestras e até espetácu-

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los) devem ser compreendidos como parte desse processo de construção de olhares que adquirem significado dentro desse ambiente da experiência da produção, e recepção do espetáculo, que de algum modo comporão o olhar que se enfrenta à cena. A pesquisa em arte não tem a capacidade de produzir resultados quantificáveis. Seu objeto de trabalho tem como suporte a experiência subjetiva – o que acontece no processo de trabalho do ator, e no fenômeno da recepção não é repetível. Pode ser estudado e até compreendido, mas não pode gerar leis que sejam aplicáveis com vistas a alcançar resultados específicos. Não é isso que pretende a arte. Seu mandato é a construção de processos intersubjetivos para a criação de novos objetos da cultura, novas falas sobre o mundo, e a geração de territórios estéticos. A arte pode ser compreendida como uma fala que nos lembra quem somos. Merleau-Ponty diz que: “o artista é aquele que fixa o drama no qual todos somos ativos, ainda quando não temos noção disso” (1990, p. 108). É preciso estar alerta para perceber que quando nossa pesquisa se vincula somente ao campo da própria pesquisa, isto é, quando produzimos objetos que apenas encontram espaços de circulação entre os próprios pesquisadores, podemos estar nos divorciando daquilo que é fundamental na nossa atividade. Nestas circunstâncias, esta ruptura seria resultado de uma autorreferência de um modelo de academia que se alimenta de seus próprios produtos, o que nos conduz de forma quase imediata ao território da mercadoria da produtividade universitária. Enfraquecem-se então os vínculos sociais dessa produção, que seria originalmente da ordem do pensamento sobre a criação, o que reforçaria a dicotomia pensar-fazer. Nestas condições, imperaria a lógica simplificadora segundo a qual os artistas fariam, e os pesquisadores universitários teorizariam, e se abriria uma brecha irremediável entre os dois polos do fazer artístico. Ainda que seja arriscado afirmar quais deveriam ser os sentidos da pesquisa, dado que um elemento fundamental do desenvolvimento científico é a liberdade de trabalho dos investigadores, é lícito discutir esse assunto. Consciente do risco de toda norma que estabelece limites, cabe refletir se uma teoria que não

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encontre ressonância no fazer criativo, não cumpriria apenas a simples função de existir, transformando-se somente em uma peça no mecanismo burocrático das universidades, das agências de fomento, e de um funcionalismo que representa a morte da pedagogia e do questionamento. As dissertações e as teses ganham uma dimensão mais complexa quando sua realização representa um espaço de formação para seu autor e um instrumento de diálogo com práticas e experiências dos outros. Ainda que isso se dê de forma capilar com o terreno da criação. Pela especificidade de se tratar de uma pesquisa em artes da cena, nossa produção deveria ter a ambição, como o teatro artaudiano, de “contaminar como uma peste” aqueles que fazem a arte, já sejam como espectadores ou como artistas. Por essas razões, quando refletimos sobre metodologia de pesquisa devemos considerar em primeiro lugar as conexões existentes entre o pesquisar e as falas da cena, as tensões e aproximações do investigar com o criar. Ao mesmo tempo, devemos abordar a pesquisa como um ato de criação artística, construindo nosso olhar de investigação com um olhar de alguém que cria a própria noção de teatro. Devemos ter a ambição de intervir no curso das experiências criativas, e compartilhar com estas, procedimentos e visadas. É necessário aprender com quem realiza, e dividir com estes, formas de leitura do objeto criativo. Isso pode ser muito importante limitando olhares autoritários, que têm a vocação para encontrar nos objetos estudados aquilo que se procura previamente. No entanto, assumir tal atitude não deveria implicar um servilismo ao fazer artístico. A pesquisa não precisa adquirir a forma de uma investigação aplicada para estar conectada com o ambiente da prática. O elemento central é evitar que a mesma só proponha interface com a própria produção de objetos de pesquisa se deslocando irremediavelmente do território da arte. Discutir isso é uma tarefa para os pesquisadores na hora de delimitar seus objetos de estudo. É preciso identificar os tecidos de inter-relação com as diferentes formas do fazer teatral, ainda que seja fundamental não restringir essa reflexão a um pragma-

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tismo funcionalista que situe os projetos de estudo ao formato da pesquisa aplicada. A preocupação por discutir as operações da pesquisa em artes cênicas, suas relações com as práticas artísticas não precisa nos conduzir a um ponto extremo de um conhecimento servil ao registro da história, ou à contextualização das obras criativas. Retomando o problema da identificação de quais são os possíveis caminhos que relacionam o ambiente da pesquisa como o território da criação, vemos que no caso das artes cênicas, este tipo de conexão pode-se dar de forma direta. Uma boa parte dos objetos de pesquisa prática está tão intrinsecamente relacionada com o grupo humano diretamente comprometido com o processo laboratorial, que os resultados obtidos repercutem quase que exclusivamente na produção artística daquele grupo. Isso, no entanto, não invalida a investigação, pois no nosso campo se trata de realizar pesquisas experimentais que têm como principal foco a gestação de novas poéticas. Esse é nosso lugar preferencial, ainda que não exclusivo. No campo das ciências médicas, ou da física, é difícil que um objeto de pesquisa se circunscreva ad infinitum nos quadros da própria fala acadêmica, que circule e repercuta apenas entre pesquisadores. Os desdobramentos em áreas aplicadas é quase uma decorrência do próprio processo de produção de novos conhecimentos, e das dinâmicas de associação com questões não respondidas no terreno concreto do dia a dia. Um procedimento experimentado por uma equipe de um laboratório poderá não ter aplicação prática imediata, mas certamente cruzará com as inquietações de outro time de pesquisa podendo vir a responder uma pergunta ignorada pela primeira equipe. Isso é uma prática comum em campos de pesquisa nos quais as conexões entre diferentes investigações promovem a elaboração de respostas para problemas socializados no ambiente dos pesquisadores. Entre aqueles que pesquisam o teatro esses processos se dão de forma muito diferente. Apesar de compartilharmos referências teóricas, fontes e objetos, entre nós do teatro e da dança, não existem práticas de compartilhamento de problemas de pesquisa de forma tão estendida. Nossos objetos costumam ser mais particula-

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res. Nossas práticas de intercâmbio de pesquisa costumam não explicitar problemas comuns a serem abordados por diferentes equipes de pesquisadores com o fim de se alcançar uma solução coletiva, e uma validação compartilhada. Um exemplo que podemos tomar é o caso das reflexões sobre o teatro contemporâneo. A delimitação de formas de um teatro que se define por procedimentos diversos do drama moderno ganhou uma nomenclatura proposta nos últimos anos pelo pesquisador Hans Thiers Lehman – “teatro pós-dramático”. O livro homônimo do professor alemão instalou entre os pesquisadores brasileiros a discussão sobre o campo conceitual que delimitaria aquele teatro que se formula como uma cena contemporânea. A partir dessa proposta teórica nosso ambiente fez escolhas conceituais, e até desenvolveu projetos de pesquisa, mas isso nada tem a ver com a circulação de um problema teórico compartilhado, explicitamente proposto junto à comunidade de pesquisadores, ao redor do qual diferentes grupos se estruturam para responder teoricamente e experimentalmente, buscando formalmente a validação das hipóteses, pois não há respostas comuns a serem alcançadas. Na nossa área as proposições conceituais funcionam muito mais como provocações que promovem discussões, estimulam a reflexão ao redor de ideias que não têm a vocação de se transformarem em axiomas para futuras pesquisas. Usamos conceitos como balizas para novas abordagens. Como afirmam Fernando Pinheiro Villar e José Da Costa, no texto “Operando nas fronteiras: três apontamentos sobre perspectivas metodológicas” referindo-se ao objeto de estudo das artes cênicas: [A] amplitude de objetos de estudo implica também numa multiplicidade de possibilidades de abordagens metodológicas que se movimentem nesse terreno em permanente expansão, que é a arte contemporânea e seus conceitos, hipóteses, teses e anti-teses relacionadas. (...) Tanto nas poéticas quanto nas teorias, a transformação da

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linguagem cênica em permanente devir desafiam taxonomias seguras. (p. 131)5

A função fundamental da pesquisa é fabricar o Teatro. É desarticular e reconstruir nossa noção do que é o Teatro. Pesquisamos para fazer o Teatro, não para conservá-lo, ainda que pesquisando-o, nós o preservamos. Mas mesmo quando se faz pesquisa histórica o que predomina é a fabricação de novas ideias e possibilidades para o Teatro, pois o que se dá são processos de releituras, reescrituras do Teatro como fala. O que é construir uma noção de Teatro? É, basicamente, ler as diversas experiências criativas descobrindo como a própria linguagem da cena reformula seus princípios e suas articulações, tanto com as outras linguagens artísticas quanto com os processos gerais da cultura. Essa é a esfera onde o pesquisador pode representar um papel central, dado que a especificidade de sua tarefa permite a intervenção direta na formulação de noções, conceitos e hipóteses que constituem uma “fala” particular sobre o Teatro. Essa fala é especial porque sistematiza o pensamento que circula ao redor do discurso artístico, contextualizando-o e criando tensões com os projetos dos criadores. A sistematização que os estudos teatrais propõem, além de estabelecer uma história das artes cênicas, permite que os realizadores percebam possíveis relações com a trama dos processos de criação e a formulação de projetos técnico-estéticos. Por isso, toda pesquisa implica experimentar um atrito com a tradição. Ainda que a pesquisa constitua parte da tradição, ela se caracteriza por fazer com que aquela se desloque em novas direções. Só nessa perspectiva podemos entender a prática investigativa como algo central na produção do Teatro como fenômeno cultural complexo. Cada nova versão sobre o Teatro que nasce das pesquisas exige reposicionamento tanto da cena quanto dos olhares dos espectadores e dos críticos. As intervenções no sistema de ideias e formas que compõem o Teatro – já

5. PINHEIRO VILLAR, Fernando e DA COSTA, José. In CARREIRA, André e outros (Org.). Metodologias de pesquisa em Artes Cênicas (Memória ABRACE IX). Rio de Janeiro: Ed. 7 Letras. 2006.

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venham da criação, como da pesquisa –, determinam ajustes na nossa compreensão dos significados dessa arte, bem como suas relações com os outros fenômenos da cultura. Por isso, pode-se dizer que pesquisar é produzir espaços de interação nos quais operam criadores, pesquisadores, acadêmicos e o público mais ou menos especializado. O universo da pesquisa teatral oriunda das universidades é complexo e múltiplo. Entre os milhares de livros, e entre as centenas de teses e dissertações que se produzem sobre o Teatro na atualidade, muitos estão fadados ao completo esquecimento como produtos – talvez alguns sobrevivam na estante de alguma mãe cuidadosa. Mas mesmo, frente à hipótese do esquecimento, deve-se reconhecer que certamente todos esses trabalhos tiveram alguma importância em seu processo de produção, constituíram momentos de intercâmbio, geraram falas sobre o Teatro, e representam traços de algum processo de formação. Estes textos foram parte de experiências, que com suas diferentes perspectivas e contextos, implicaram na fabricação do nosso saber teatral. O ato de realizar o esforço de pesquisa, a prática de construção desse conhecimento, tem um valor intrínseco que vai além do produto final. Isso não implica dizer que os produtos não tenham importância, mas sim reconhecer e valorizar o ato da pesquisa como prática cultural. De outra maneira, seria impossível considerar os processos de criação como investigação. É necessário aprimorar nosso olhar para poder contemplar como a criação também pode contribuir modulando os procedimentos de pesquisa. Muitos são os procedimentos empregados na busca da compreensão do objeto artístico; muitas são as abordagens metodológicas utilizadas. As opções são variadas, mas pode-se dizer que apesar dessa diversidade uma premissa básica que devemos considerar é que é importante se pesquisar criando espaços de diálogo. Investigar estabelecendo processos de compartilhamento aproxima a pesquisa do fazer teatral. Deixando de lado a pretensão de encarar a pesquisa em artes cênicas como uma possibilidade real de elucidar novos proble-

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mas e completar de forma cabal lacunas do conhecimento organizado, poderemos compreender melhor o próprio processo de investigação como objeto de estudo. Isso é assim, porque no nosso campo a pesquisa interfere – como processo e como produto – nos rumos criativos da cena. Considero importante encarar a pesquisa como processo coletivo. Ainda que não se possa afirmar que o trabalho com coletivos é essencial para a produção de uma pesquisa em teatro, dado que se podem ver muitas produções relevantes que resultam do mergulho individual de um pesquisador sobre um tema, o exercício com o coletivo tem características que redimensionam o próprio saber produzido. O trabalho compartilhado traz para a pesquisa tanto a ampliação das possibilidades de questionamento do objeto abordado quanto a intensificação do processo de aprendizagem daqueles envolvidos no projeto investigativo. O cruzamento das experiências faz com que a ação dos investigadores dialogue de modo polivalente com um objeto multifacetado. Assim, pode-se supor uma replicação do modo de recepção do espetáculo teatral dentro do projeto de pesquisa. Ainda é interessante dizer que sempre que pesquisamos considerando uma perspectiva dialógica entre a investigação e a criação, poderemos relacionar melhor as diversas falas que constituem o sistema das artes cênicas. Considerar o processo de criação de um elemento central de estudo, e entender o fazer artístico também como pesquisa, supõe intensificar nossa percepção dos processos individuais e subjetivos. A arte é sempre uma promessa de conexão entre o individual e o coletivo, e esse é o território ao qual nossa pesquisa pertence, ou deveria pertencer para sermos fiéis ao nosso objeto de estudo. Ainda que nosso modelo de Pós-graduação enfatize a relação de tutoria na qual os pares orientadores/orientandos são fundamentais nos projetos de pesquisa, vários desenvolvimentos mostram que a interferência de diferentes vozes propõe tensões criativas que não somente multiplicam as possibilidades dos projetos como definem os processos como eixo e foco da inves-

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tigação. Assim, esta recuperaria aquilo que é basal no teatro, isto é, a experiência, o compartilhar, viver o entre. Trabalhar no contexto de grupos de pesquisa é articular tramas de intercâmbio nas quais devem interferir todos os participantes como igualdade de oportunidades. Quando se trabalha com um grupo onde um estudante de iniciação científica pode dialogar diretamente com mestrandos, doutorandos e doutores experientes se ampliam as possibilidades de que o objeto de estudo seja permanentemente redimensionado. As facetas de um objeto de pesquisa são definidas pelos olhares que se depositam sobre o mesmo, e só a diversidade de perspectivas pode produzir as tensões necessárias para que o objeto seja o suficiente estimulante para gerar falas que animem novos processos de pesquisa (acadêmica ou artística). Finalmente, cabe reafirmar a noção de que a pesquisa é elemento fundamental da fabricação da arte teatral, mesmo quando saibamos que não podemos pretender chegar a verdades absolutas.

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Ter experiência da arte: para uma revisão das relações teoria/prática no contexto da nova teatrologia1

Marco de Marinis2 Tradução: André Carreira

Devo advertir que faz algum tempo que já não me interesso quase pela semiótica do teatro no sentido estritamente disciplinar do termo (se tal sentido existe verdadeiramente, por outro lado). Meus interesses atuais se dirigem para uma nova teatrologia que se esforça por ser multidisciplinar e experimental ao mes-

1. Este texto reproduz comunicação apresentada em uma mesa redonda sobre o futuro da semiótica do teatro que teve lugar em Atenas em janeiro de 1994. Alguns fragmentos desta comunicação foram, no entanto, utilizadas em uma carta aberta a Eugenio Barba em resposta a uma sua. (Barba De Marinis, 1994). Tradução do espanhol por André Carreira. Texto também publicado no livro La Puesta en Escena en Latinoamérica: teoría y práctica teatral, organizado por Osvaldo Pellettieri e Eduardo Rovner, Galerna/GETEA, Buenos Aires, 1995. 2. Professor de História da Cenografia e História do Teatro e do Espetáculo no Departamento de Música e Espetáculo da Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Bolonha. É autor de diversos livros, entre os quais Teatro e Comunicazione (1977), Semiotica del Teatro - L‘Analisi Testuale dello Spettacolo (1982), Il Nuovo Teatro 1947-1970 (1987) e Mimo e Teatro del Novecento (1993).

mo tempo (De Marinis, 1988). Nesta nova teatrologia a semiótica representa simplesmente um componente, ainda que muito importante, porque é ela, enquanto ciência da significação e da comunicação, a quem se confia a tarefa de proporcionar o marco teórico geral e, consequentemente, funcionar como epistemologia metadisciplinar dos estudos teatrais. A reflexão que eu quero propor nesta ocasião se inscreve no centro dos meus interesses teóricos atuais e – ainda que ela não seja explicitamente semiótica – aborda nada menos que as questões que, segundo creio, deveriam ser importantes para quem se ocupa da análise semiótica do teatro no sentido estrito do termo. Tomo como ponto de partida uma carta muito importante escrita por Constantin Stanislavski em fevereiro de 1937, um ano antes de sua morte. A carta está dirigida a Aleksej Ivanovic Angarov, membro da Cheka, polícia política, que havia reclamado – a propósito do seu livro O trabalho do ator sobre si mesmo – a obscuridade de termos como “intuição”, “inconsciente” etc. exigindo que Stanislavski respondesse “concretamente às pessoas sobre o significado do sentimento artístico”. Aqui estão os fragmentos mais importantes da resposta do grande ator e diretor russo: Meu livro não tem pretensões científicas. Meu fim é exclusivamente prático. Quero ensinar aos atores principiantes uma correta aproximação à arte. A terminologia que eu adotei neste livro não foi inventada por mim, mas sim pela prática, pela linguagem dos formados e dos principiantes. Eles mesmos, no transcurso do trabalho, encontraram as definições de suas sensações artísticas. Sua terminologia é válida em porque é compreensível para todos os que entram em contato com a arte. (Stanislavski, 1988, p. XV)3

Quero deter minha atenção (e a do leitor) sobre a pequena frase final de Stanislavski: “para todos os que entram em contato com a arte”. De certa forma, meu artigo pode ser enfocado como um ensaio de interpretação dessa expressão. 3. Texto traduzido por Fausto Malcovati.

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Sobre a carta de Stanislavski, e em particular sobre a pequena frase que acabo de assinalar, Eugenio Barba já dirigiu sua atenção no seu livro A Canoa de Papel, no centro de uma reflexão sobre a natureza particular da linguagem dos artistas-teóricos. A tradução que ele propõe da frase em questão é ligeiramente diferente daquela que eu encontrei na edição italiana do livro do grande diretor: “Sua terminologia é válida porque ela é compreensível para todos aqueles que têm experiência na arte” (Barba, 1993: 208)4. Eu não tenho ainda a possibilidade de revisar o texto em russo, mas proponho adotar a versão de Barba porque é mais válida e mais ambígua (e pode resultar útil à discussão, como se verá posteriormente). Em todo caso, o objetivo que Stanislaviski se propõe ao escrever esta carta a Angarov é muito claro: defender seu trabalho da acusação de misticismo (acusação perigosa naqueles tempos...), precisando que os termos que ele utiliza não têm nenhuma pretensão científica, se trata de jargão de trabalho que emprega às vezes expressões obscuras, inclusive esotéricas, mas para se referir a coisas muito concretas e muito precisas – assim sendo bem compreensíveis “para todos que têm experiência da arte”. Sem nenhuma dúvida Stanislaviski pensa aqui nas pessoas do teatro, em todos aqueles que trabalham em nível prático no teatro, e em primeiro lugar nos atores. Este episódio, junto a outros semelhantes que concernem a Meyerhold, Artaud e Grotowski, serve a Barba para abordar a espinhosa questão dos equívocos e mal-entendidos que a linguagem dos artistas-teóricos não cessa nunca de provocar nos historiadores do teatro e nos teatrólogos. A principal razão deste mal-entendidos lhe parece muito clara: Quando Stanislaviski fala de “inconsciente”, Meyerhold (a propósito de palavras) do “bordado sobre a trama dos movimentos” ou Craig da “ÜberMarionette”, os equívocos não nascem da falta de precisão ou do caráter metafórico da expressão, mas do fato de que somente algumas poucas pes-

4. Grifo de De Marinis.

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soas, entre as que escutam ou lêem, têm experiência da arte5. (Ibid, 209)

Nestes casos – escreve Barba então – “se torna mais difícil compreender a referência técnica, concreta, circunstanciada, dessas expressões que se tornam metáforas volúveis”. Mas, o que Barba entende por “ter experiência da arte”? No seu livro há outro momento no qual a questão se coloca de uma forma mais precisa: se trata da conclusão do capítulo II, intitulado Definição. Aqui, propondo justamente a definição de “Antropologia Teatral”, afirma que uma das vantagens dessa nova aproximação ao teatro reside no fato de permitir superar esse tipo particular de etnocentrismo “que observa o teatro sob o ponto de vista somente do espectador, isto é, do resultado”, e negando assim o ponto de vista complementar do processo criativo dos atores e dos outros práticos (ibid., 25). Segundo o diretor ítalo-dinamarquês, fundador do Odin Theatret, esse tipo de etnocentrismo tem muitos condicionamentos, e além disso condiciona a pesquisa histórica sobre o teatro: A compreensão histórica do teatro está normalmente bloqueada e esgotada pelo feito de ignorar a lógica do processo criativo, e pela incompreensão para com o pensamento empírico dos atores, isto é, a causa da incapacidade de superar os limites estabelecidos pelo espectador. (...) Comumente (...) que escreve a história do teatro enfrenta com os testemunhos que surgem de improviso, sem ter uma experiência suficiente dos processos artesanais dos espetáculos. Consequentemente, corre o risco de não fazer da história mais que amontoado de deformações da memória. (Ibid., p. 26)

Está totalmente claro que neste texto, o sintagma “ter experiência suficiente dos processos artesanais do espetáculo” não representa nada mais que o equivalente da fórmula stanislaviskiana “ter experiência da arte”.

5. Grifo de Barba.

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Então, para Barba, o historiador do teatro, e, em geral, o teatrólogo, deve “ter experiência da arte”: o que significa, segundo ele ter uma experiência profunda do trabalho da criação teatral e em primeiro lugar do trabalho do ator, indo além dos resultados, os espetáculos, aos quais se limita necessariamente a experiência do espectador comum, para referir-se aos processos que os produzem. No entanto, não fica claro à primeira vista, qual é a natureza, quais são os caracteres dessa experiência direta dos processos artesanais da criação teatral que o historiador do teatro deveria adquirir. Se trata somente de uma experiência passiva, enquanto “observador participante” (segundo a fórmula elaborada sobre o campo da antropologia cultural), ou se trata também de uma experiência ativa prática? Ou ainda mais, do conjunto de uma e da outra? É difícil encontrar uma resposta precisa a respeito no livro de Barba. Não obstante, conhecendo-o desde faz muito tempo, e trabalhando com ele desde muitos anos para a ISTA (International School of Theatre Anthropology), posso afirmar com certo grau de segurança que ele pensa nos dois tipos de experiência ao mesmo tempo. No entanto, agora, eu gostaria de abordar esta questão de uma maneira um pouco mais sistemática, partindo do ponto de vista que fixamos com a ajuda de Barba (e de Stanislavski): não se pode ser um bom ator historiador ou um teórico do teatro, sem ter, ou haver tido, também uma experiência técnica (artesanal) dessa arte. A questão a ser colocada é então a seguinte: que tipo de experiência técnica? Dito de outro modo é possível compreender uma técnica teatral, e em particular a técnica do ator, sem exercer ou sem havê-la exercido diretamente, isto é, sem haver tido também, de alguma maneira, uma experiência ativa? A comparação com outros campos artísticos poderia nos ajudar, possivelmente: ■

Alguém pode compreender um afresco de Miguelangelo ou um quadro de Picasso sem ser pintor ou, ao menos, sem haver feito uma experiência ativa das técnicas?

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Alguém pode compreender a técnica ária-recitado na ópera italiana sem ser cantor ou músico?



Alguém pode compreender a montagem cinematográfica sem ser diretor ou técnico de montagem?



Alguém pode compreender a técnica narrativa de Joyce (Ulisses) sem ser escritor?

Generalizando mais, eu me pergunto: é possível compreender uma arte, falar e escrever sobre ela, estudar o ponto de vista histórico e teórico, sem ser também um produtor ou ao menos, um praticante aficionado dessa arte? Colocada assim a questão, segundo eu creio, não pode ter, em primeira instância, mais que uma resposta afirmativa, cuja razão teórica repousa sobre a distinção entre o conhecimentocompreensão, por um lado, e o uso, por outro lado; dito de outro modo, entre saber e saber fazer, e entre competência passiva (conhecimento sem uso) e competência ativa (conhecimento com uso). Ou desde um ponto de vista teórico, enquanto que o saberfazer implica o conhecer, o conhecer não implica no saber-fazer. Por outra parte, a experiência cotidiana nos mostra normalmente a dissociação entre conhecimento e uso, entre saber e saberfazer, sobretudo no caso de códigos e convenções especializadas, muito técnicas, muito difíceis, como são geralmente aquelas que pertencem à arte do ator (para todas estas distinções, ver De Marinis (1982, 160-196). Uma primeira conclusão já se apresenta. Não existe um único tipo de experiência e de compreensão do teatro, existem vários, e ao menos, três tipos: 1. a experiência-compreensão do artista de teatro, e, em particular, do ator, fundada sobre uma competência ativa, mais ou menos explícita; 2. a experiência-compreensão do espectador comum, fundada sobre uma competência passiva e quase implícita, intuitiva (dito de outra maneira não teórica, em termos teóricos);

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3. a experiência-compreensão do teatrólogo, fundada principalmente sobre uma competência passiva mas fortemente explícita (teórica). Antes de precisar os traços específicos da experiência-compreensão do teatrólogo, gostaria de propor uma advertência. As experiências-compreensões que acabo de definir representam as três maneiras diferentes de fazer teatro. Se trata aqui de uma questão muito importante. Pode-se fazer teatro não somente produzindo espetáculos, senão também vendo-os, estudando-os, escrevendo sobre o tema, analisando seus contextos, investigando seus processos etc. O que se disse também a propósito de uma certa subestimação do espectador (comum) na antropologia teatral de Barba e no trabalho de alguns historiadores que se remetem a ele (por exemplo, cf. Barba-Savarese (Eds.) 1991). O espectador não é um ator fracassado, mas sim um dos protagonistas da relação teatral (da mesma maneira em que não se pode evidentemente considerar ao leitor como um escritor fracassado). Mas se ver teatro é um dos muitos modos de fazê-lo, então “ter experiência de arte” não significará unicamente praticá-la diretamente, de maneira ativa, senão também, justamente contemplála, estudá-la etc. Posso então voltar à experiência-compreensão do teatrólogo e a seu propium, que consiste fundamentalmente no fato de dever dar conta dos outros dois tipos de experiênciacompreensão: aquela do artista de teatro, e em particular do ator, e aquela do espectador comum. Como? Essencialmente fazendo sua história, isto é, inserindo-os em um contexto mais amplo, seja horizontal (sincrônico), seja vertical (diacrônico). Voltando à questão da qual partimos (o que significa para o historiador-teórico do teatro, para o teatrólogo, “ter experiência da arte”, se pode responder em seguida de uma maneira mais analítica. Para ele, “ter experiência da arte” significa ao mesmo tempo: 1. ter experiência do processo teatral: o que por sua vez implica: a) conhecer e seguir o trabalho do ator (e de outros práticos);

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b) ter experiência também de práticas diretas do trabalho do ator (e de outros práticos); 2. ter experiência do resultado teatral, isto é: a) experimentar espetáculos enquanto espectador; b) ter experiência da recepção dos espetáculos, estudando os espectadores comuns. Para concluir com esse tema, estou de acordo com Barba e com os teatrólogos que se valem da antropologia teatral sobre o fato de sublinhar a importância, para o historiador e o teórico do teatro, de uma experiência (inclusive prática) dos processos teatrais, e em particular do trabalho do ator, mas recuso uma certa subestimação de sua parte, da experiência do produto espetacular e da recepção do espectador (comum). Generalizando, não estou de acordo (e já disse várias ocasiões: ver por exemplo, De Marinis, 1988, p. 120-121; 1992, p. 189) com respeito à separação demasiado rígida, dicotômica, que Barba e outros parecem postular entre processos e produto e suas lógicas respectivas. 5. Em minha opinião, as possibilidades atuais de propor uma aproximação científica ao teatro, que possa escapar das armadilhas e dos atoleiros das aproximações propostas anteriormente, estão ligadas em grande medida a uma revisão radical das relações entre a teoria e a prática e, antes ainda, das noções mesmas de teoria e de prática no caso do teatro. É aqui onde reside, segundo meu ponto de vista, a contribuição mais fecunda da ISTA, alcançada em sua oitava sessão (v. Vários, 1994). Em um artigo publicado faz quatro anos na revista Teatro e Storia com o muito sugestivo título de Carta sobre uma ciência dos teatros, Ferdinando Taviani (um dos colaboradores mais próximos de Barba e a ISTA) afirmava: uma ciência dos teatros, para transformar de ideia em trabalho, deve poder agrupar a análise teórica com a experiência daqueles que fazem teatro. (....) Toda ambiguidade de uma ciência possível dos teatros resulta do fato de recusar a combinação da pesquisa sobre as técnicas com a pesquisa histórica,

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sem se contentar com escapatória oferecida por uma “história das técnicas” (Taviani, 1990, p. 172-173)

Dois anos depois, outro membro da ISTA, Nicola Savarese, retormou à proposição de Taviani agregando as seguintes palavras: Não é suficiente relatar os fatos se os fatos não respondem às questões e às dúvidas e às dúvidas profissionais que propõem e propuseram aqueles que praticam o teatro (Savarese, 1992, p. 451)

Combinar a pesquisa sobre as técnicas com a pesquisa histórica: esse programa poderia ser adotado como uma das divisas (e dos desafios) para a nova teatrologia, mas é absolutamente evidente que será possível unicamente sob a condição de proceder a uma revisão radical não somente das relações teoria/prática, mas também, e imediatamente, dos próprios conceitos de teoria e de prática no terreno do teatro. Dito de outro modo, esta revisão não poderá se limitar a empurrar os teóricos para as experiências práticas diretas e, vice-versa, a incitar os práticos (os artistas) a adquirir uma maior consciência teórica e cultural. Pelo contrário, esta dupla revisão deverá implicar também, e especialmente, no esclarecimento da dimensão prática do fazer que é próprio da teoria teatral enquanto tal, e reciprocamente da dimensão que é própria, ao menos implicitamente, do trabalho prático ao menos de uma maneira implícita.

Referências bibliográficas BARBA, Eugenio. La canoa de carta. Trattato di antropología teatrale. Bologna, Il Mulino, 1993. BARBA, Eugenio e DE MARINIS, Marco. “Due lettere sul pre-espressivo dell’atore. Il mimo e I rappoti fra pratica e teoria”. In: Teatro e Stoira, p. 16, 1994. BARBA, Eugenio e SAVARESE, Nicola. The secret art of the performance. A Dictionary of Theatre Anthropology. London, Routledge, 1991.

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DE MARINIS, Marco. Semiotica del teatro. L’analisis testuale dello spettacolo. Milano, Bompiani, 1982. __. Catire il teatro. Lineamenti di una nuova teatrologia. Firenze, La Casa Usher, 1982. __. A scuola di teatro con Faust. In: Techniche della representazione e storiografia. Bologna, Synergon, 1992. SAVARESE, Nicola. Teatro e Spettacolo fra Oriente a Occidente. Bari, Laterza, 1992. STANISLAVISKI, Constantin. Il Lavoro dell’attore sul personaggio. Bari. Laterza, 1988. TAVIANI, Ferdinando. Letterza su uma scienza del teatri. In: Teatro e Storia, 9. 1990. VARIOS. The Tradition of ISTA. FILO. Londrina, 1994.

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Narciso Telles1

todo texto é um prólogo (ou um esboço) no momento em que se escreve, e uma máscara mortuária alguns anos depois, quando não é outra coisa a não ser a figura já sem vida desta tensão que o animava. (LARROSA, 2002, p. 133)

Como pesquisamos? Para quem escrevemos? Como escrevemos? Estas questões e outras tantas que podem surgir ao longo de uma prática de pesquisa foi e têm sido objeto de reflexão em vários Congressos e reuniões científicas da Associação de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas (ABRACE). Preocupados em construir um diálogo entre experiências diversas na pesquisa em Artes Cênicas como possibilidade de compreender melhor nos1. Ator e professor do Curso de Teatro e do Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), pesquisador do Núcleo de Criação e Pesquisa Teatral e membro do Coletivo Teatro da Margem. Dirigiu recentemente o espetáculo “A Saga no Sertão da Farinha Podre” (2010). Autor do livro Pedagogia do teatro e o teatro de rua (Mediação, 2008) e organizador (com Adilson Florentino) do livro Cartografia do Ensino do Teatro (EDUFU, 2009). Pesquisador Pq-CNPq.

so compromisso intelectual e político, os pesquisadores laçaram seu olhar para as pesquisas realizadas nas universidades e a recepção destas pelo seu público-alvo, artistas e professores. Retomo aqui tal questão como uma preocupação que tenho como artista-docente-pesquisador, especialmente quando o objeto de minhas investigações se situa na área da pedagogia do teatro e processos criativos, num constante processo de pesquisa [e orientação] em que a relação entre prática e teoria é recolocada e problematizada.

Primeira Paragem: o [não] lugar da pesquisa Os projetos de pesquisa que desenvolvo estão localizados no Curso de Teatro (bacharelado e licenciatura) e no Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Federal de Uberlândia. Este último, criado em 2007, constitui-se na classificação da CAPES como um programa misto, pois congrega pesquisadores das áreas de Artes Cênicas (teatro e dança), Música e Artes Visuais. Possui uma única área de concentração ARTES e duas linhas de pesquisas: processos e práticas em Artes & Fundamentos e reflexões em Artes. A linha de processos e práticas em Artes, à qual estou vinculado, congrega pesquisas ligadas à visualidade, à plástica, ao corpo, à atuação, ao texto e à música, articulando reflexão, processos de criação, ensino e aprendizagem. A minha trajetória como pesquisador em Teatro, passou de investigações sobre a história do espetáculo e da atuação para pesquisas centradas em dois eixos: a) improvisação: procedimentos e conceitos e b) relações de [trans]formação do artista cênico em vários espaços e práticas. Assim, meus projetos são:

Aprender a aprender: os viewpoints como procedimentos de atuação e jogo Os viewpoints como procedimentos de criação foram desenvolvidos pela diretora norte-americana Anne Bogart, compostos

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por Pontos de Vista (Viewpoints), divididos em duas categorias (tempo e espaço), que o performer aciona para desenvolver seu trabalho. O presente projeto de pesquisa visa verificar e analisar a utilização destes procedimentos no jogo atorial e sua viabilidade no processo de aquisição de repertório para a criação de espetáculos e performances e para as práticas de ensino do teatro. A investigação envolve processos teórico-práticos por meio de estudo de fontes bibliográficas e de experimentação prática desenvolvida através de exercícios de improvisação e composição com alunos do Curso de Teatro (Licenciatura e Bacharelado) e em espetáculos do Coletivo Teatro da Margem.

Artista-Docente: modos de formar, maneiras de agir Parte I: Práticas Latino Americanas O objeto desta investigação são as práticas de ensino do teatro desenvolvidas por artistas e professores nos diversos espaços de formação formal e [in]formal. Nessa primeira etapa, a pesquisa estará centrada em experiências realizadas na América Latina na busca de compreender o processo de formação do artista cênico latino americano a partir da experiência da Escola Internacional da América Latina e Caribe (EITALC) e seus desdobramentos contemporâneos no campo da pedagogia do teatro. Estes projetos abrigam um coletivo de pesquisadores em vários níveis de formação: pesquisadores PIBIC-Junior (ensino médio); PIBIC (CNPq e FAPEMIG), PINA/PROEX (Iniciação Artística) e mestrandos junto ao Programa de Pós-graduação em Artes da UFU. A questão que alimenta estas pesquisas gira em torno do que podemos considerar Pesquisa EM Artes, seus modos de escrita e registro, suas possíveis fontes, seus métodos e teorias. Neste percurso podemos já tecer alguns apontamentos: um primeiro seria um campo de tensão entre [ou diálogo] arte e ciência. Na área de artes, especialmente artes cênicas, uma primeira geração de pesquisadores veio de outros campos do conhecimento, ciências humanas, letras, filosofia entre outros. O olhar sobre o fenômeno artístico era formulado por estes campos em observa-

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ção à arte. Daí que os primeiros estudos estavam centrados nas áreas de história e crítica literária. Estes pesquisadores tiveram decisivo papel para o início e consolidação dos estudos teatrais nas Universidades Brasileiras e na criação dos programas de Pósgraduação em Artes [Cênicas]. Porém, os cânones da pesquisa científica e suas estruturas metodológicas determinaram a forma de compreensão do fenômeno artístico aceito no “mundo acadêmico”, seguindo modelos hegemônicos que balizam o sistema de produção do conhecimento. Paralelamente, a própria ciência, ao longo do século XX, também começou a discutir os seus parâmetros de construção do conhecimento. A ciência pós-moderma ao colocar “em xeque” alguns elementos constituintes da ciência clássica, oferece ao campo das Artes uma ampliação de modos de pesquisa “acadêmica”. Boaventura Souza Santos em seus escritos tem discutido a constituição de um novo paradigma em relação à ciência moderna; segundo o autor, o paradigma emergente recoloca novas bases para o conhecimento científico, que não pode ser apenas um paradigma científico, tem de ser um paradigma social. Nesta “nova” perspectiva epistemológica, as principais características são: a) Todo o conhecimento científico-natural e científico-social: perde-se o sentido da oposição entre real e construído. Assim como, a distinção entre sujeito/objeto sofre uma transformação; b) Todo o conhecimento é local e total: a ciência pós-moderna trabalha, não sobre a ótica da especialização e disciplinarização, mas na perspectiva de pluralidade/transgressão metodológica, na qual os acervos metodológicos são recolocados em diversos contextos de pesquisa; c) Todo conhecimento é autoconhecimento: ressalta-se a importância do sujeito-pesquisador na produção do conhecimento. A presença/voz – situação/posição do pesquisador é algo significativo para o conhecimento científico;

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d) Todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum: a ciência pós-moderna sabe que nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional: só sua configuração. Assim, entende que existe um diálogo entre os saberes (cotidiano/prático e o científico/analítico). As características do paradigma emergente apontadas por Souza Santos (1998) podem nos auxiliar na discussão da pesquisa EM Artes, pois permitem um alargamento da compreensão e das qualidades da pesquisa artística fundada no sujeito-criadorpesquisador, muitas vezes ancoradas nas suas questões éticas, estéticas e técnicas, mas também nas relações entre a produção artística de outros sujeitos, como é o caso das pesquisas em teatro aplicado. Florentino ao considerar o teatro “como objeto de conhecimento” dá a este campo artístico um estatuto epistemológico não cientificista, mas na pluralidade de olhares/práticas/escritas que os pesquisadores podem ter. O discurso teatral, a função teatral e a prática teatral se relacionam de modos diferentes em cada uma das questões acima, porque as respostas produzem distintas visões sobre o teatro, ou seja, produzem diferentes concepções de teatro. (2009, p. 10)

Esta pluralidade de temas, métodos e enfoques pode ser verificada nas publicações da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas (ABRACE) e já apresentam o alargamento da pesquisa em Artes Cênicas e seus diálogos e tensionamentos com a pesquisa científica.

Segunda Paragem: a Prática Pensamento na pesquisa em Artes [Cênicas] Nesta paragem focalizo meu olhar para o que tenho chamado de Prática Pensamento do pesquisador em Artes [Cênicas]. Tal ideia pode ser vista por dois aspectos: um da intrínseca relação

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entre o pesquisador e o material de análise, sem distanciamento científico e de outro modo pelas pesquisas que tem na prática artística seu início e fim, muitas vezes, sem alusões explícitas ao campo teórico acionado. O primeiro aspecto já foi por mim mencionado em texto anterior sob o título “A experiência como atitude metodológica” (TELLES, 2008, p. 19). Cito aqui alguns pontos do texto que considero relevantes para a compreensão do meu [não] lugar de artista-pesquisador. A experiência como atitude de pesquisa poderá proporcionar ao pesquisador e pesquisados a possibilidade de pertencer-se uns aos outros e ao mesmo tempo poder-ouvir-se-uns-aos-outros. O pedagogo Jorge Larrossa Bondía define o termo experiência como, “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, o que acontece, ou o que toca”. E continua: “a cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece” (2002, p. 21). Para ele o sujeito moderno encontra-se submerso no mundo da informação, o excesso de opinião, da falta de tempo e excesso de trabalho. Por sua vez, o sujeito da experiência [...] se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua recepção, por sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se [...] de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade fundamental, como uma abertura essencial. (BONDÍA, 2002, p. 24)

Neste sentido, este sujeito se expõe à vulnerabilidade e ao risco na construção de seu saber. Para Larrosa, o saber da experiência é aquele que se dá entre o conhecimento e a vida humana, ou seja, é o que adquirimos na medida em que respondemos ao que nos acontece ao longo da vida. Diz ele: O saber da experiência tem a ver com a elaboração do sentido ou sem-sentido do que nos acontece,

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trata-se de um saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de uma comunidade humana particular [...] Por isso, o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal. [...] O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. Não está como o saber científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). (Ibidem, p. 27)

Esta noção também está presente nas reflexões do teatrólogo Marco De Marinis. De Marinis enuncia, pelo menos, três tipos de experiência-compreensão no campo teatral: 1. a experiência-compreensão do artista de teatro, e em particular do ator, fundada sobre a competência ativa; 2. a experiência-compreensão do espectador comum, fundada sobre uma competência passiva e quase implícita, intuitiva; 3. a experiência-compreensão do teatrólogo, fundada principalmente sobre uma competência passiva mas fortemente explícita (teórica). (MARINIS, 1995, p. 60) A tipologia da experiência-compreensão, apresentada pelo teatrólogo Marco De Marinis, apresenta-se como uma perspectiva de trabalho investigativo na área da pedagogia do teatro, tomando-se como referência a experiência-compreensão do artista-docente fundada sobre a competência ativa, ou seja, pelos meandros do saber-fazer-ensinar teatro e suas dinâmicas. Neste trabalho, nosso objeto de investigação se localiza no lugar da prática, pois todos os processos de ensino-aprendizagem aqui analisados estão focados no trabalho prático e técnico do ator. A experiência e o seu explicar são conceitos também acionados pelo biólogo do conhecimento Humberto Maturana em seus estudos sobre o conhecimento e a linguagem. Maturana chama

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atenção para o fato de que frequentemente juntamos o explicar com a experiência que queremos explicar: “explicar é sempre propor uma reformulação da experiência a ser explicada de uma forma aceitável para o observador” (2001, p. 40). Assim, a experiência para ser explicada necessita de uma reformulação que garanta sua aceitação como tal. Para explicar a experiência, Maturana observa dois caminhos: o da objetividade-sem-parênteses e o da objetividade-entre-parênteses. No primeiro caminho explicativo agimos como se fosse válido em função de uma referência a algo que existe independente de nós. Aceitamos que “existe uma realidade transcendente que valida nosso conhecer e nosso explicar, e que a universalidade do conhecimento se funda em tal objetividade” (p. 46). O segundo caminho é defendido pelo autor como o mais indicado para explicar a experiência, pois “colocando a objetividadeentre-parênteses, eu dou conta de que não posso pretender que eu tenha a capacidade de fazer referência a uma realidade independente de mim” (p. 47). Este percurso explicativo não trabalha com a existência de uma verdade absoluta nem de verdades relativas, mas com a existência de muitas verdades em campos distintos. A explicação da experiência sempre se ancora em práticas experienciais, na observação de um dado fenômeno e na nossa leitura deste ato, pois a experiência ocorre no fazer. “O que se faz, simplesmente acontece” (p. 57). Nesta explicação, múltiplos domínios de realidade são acionados, construindo um caminho explicativo a partir das coerências das práticas experienciais do observador, ou seja, a análise de um processo no qual estamos inseridos como partícipes é demarcada pelo conjunto de atividades vivenciadas por nós na experiência. Esta vivência é única para cada pessoa e possibilita que cada um possa fazer uma explicação diferenciada sobre uma dada experiência. Se ampliarmos esta ideia, podemos admitir que a experiência constitui um caminho viável para a pesquisa teatral a que nos propomos, na medida em que viabiliza a aquisição corpóreosensorial dos procedimentos de atuação propostos pelos grupos investigados. Pretendemos, ao procurar explicar um conjunto de

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experiências vividas pelo pesquisador, contribuir com os processos de investigação teatral no qual o pesquisador se encontra corporalmente envolvido e cujos objetivos estejam vinculados à análise das ações cotidianas existentes em processos de criação e/ou de ensino-aprendizagem. Cientes deste campo de tensão, operamos o conceito de experiência, na perspectiva de um trajeto de indissociabilidade entre pesquisa acadêmica, prática pedagógica e prática artística. Esta noção possibilita a compreensão e a percepção das dinâmicas cotidianas engendradas nestes objetos de análise, pois focalizam as relações existentes entre um experimentador/agente e as zonas de experiência/ação, em seus aspectos espaciais, organizativos e de vivência corpóreo-sensorial. A experiência como atitude metodológica do pesquisador EM Artes, se configura como uma posição do sujeito-pesquisador frente ao fenômeno artístico que determina um olhar/escrita específica sobre seu objeto de estudo, no qual elementos de subjetividade estão presentes na própria estruturação da pesquisa e também no processo de análise do material. A [IM] parcialidade do pesquisador é explícita durante o curso da pesquisa. São as escolhas do artista-pesquisador que vão configurá-lo como sujeito da pesquisa. Não defendo, com isto, que nas pesquisas EM Artes que objetivam a criação de um objeto artístico (espetáculo, figurino, cenário etc.), como dissertação ou tese, não dialoguem com outros campos e/ou artistas, não correndo o risco de ficar no ensimesmamento.

Terceira Paragem: o processo colaborativo na pesquisa em Teatro No percurso como artista-pesquisador fiz a opção por desenvolver minhas pesquisas no âmbito de um grupo de pesquisa. Esta escolha definiu os procedimentos de trabalho e a rotina de pesquisa de que participo. Ao concluir meu doutoramento em Teatro (2007) e retornar, depois de quatro anos, para minhas atividades docentes, resolvi criar um grupo de pesquisa a partir do

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Projeto docente. Naquele momento 11 alunos de graduação em Teatro e um das Artes Visuais mostraram interesse em participar de encontros semanais práticos-teóricos sobre os temas em questão. Surge aí o Coletivo Teatro da Margem, grupo que agora abriga também estudantes de Pós-graduação no exercício coletivo de pesquisa. Nossa estrutura de trabalho está organizada em dois momentos: os ateliês de criação, no qual as atividades práticas da pesquisa são colocadas, resultando espetáculos, demonstrações de trabalho e exercícios abertos de improvisação & encontros de discussão bibliográfica, nos quais os textos (produzidos ou não pelos pesquisadores) são colocados em discussão e dialogam com as questões levantadas nos ateliês. Cada pesquisador tem seu projeto próprio de pesquisa que estão articulados ao projeto “guarda-chuva” do professor orientador. Nos ateliês, muitas vezes, a coordenação fica a cargo de um aluno de graduação ou Pós-graduação e, eu, participo na condição de artista das atividades propostas. Tal postura – ética, política e estética – me coloca também em questão, pois todo o processo de criação ou ensino/aprendizagem é composto por inúmeras variáveis que tanto o artista quanto o professor não determina a priori. Aqui aparece um outro ponto fundamental para minha trajetória: a não dissociabilidade entre criação, ensino e pesquisa em teatro. Se colocar como pesquisador, neste caso, é correr riscos e não pretender buscar a “verdade científica”, ou mesmo comprovar hipóteses. Nossas pesquisas partem de questões que podem ser resolvidas en-cena ou não, nossas fontes são estes encontros, nosso repertório. El repertorio, por otro lado, tiene que ver com la memória corporal que circula a través de performances, gestos, narración oral, movimiento, danza, canto – em suma, a través de aquellos actos que se consideran com un saber efímero y no reproducible. (TAYLOR, 2003, p. 3)

Do processo de coleta e seleção do material até a organização dos próximos encontros e leituras passamos por um pro-

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cesso de “seleción, memorización o intenalización, y transmisión” (TAYLOR, 2003, p. 4). O exercício do ser/estar na pesquisa realizada nos ateliês é feita pelo pesquisador, quando este traz à consciência as vivências corpóreo-vocais, que acontecem apenas no momento presente, em que este se encontra envolvido no fazer/ensinar do grupo de pesquisa. Mas como registrar EM TEXTO, este tipo de pesquisa? Esta é a questão para os pesquisadores que têm a [sua] prática artística como lócus de investigação. Como bem nos lembra Lévi-Strauss “[...] onde o observador é da mesma natureza que o objeto, o observador, ele mesmo, é uma parte de sua observação” (In: MINAYO, p. 14). A pesquisa etnográfica tem como característica principal o contato direto e prolongado do pesquisador com as pessoas ou grupos selecionados para estudo. Tal metodologia coloca o pesquisador como o principal instrumento de coleta e análise dos dados. Uma outra característica importante é a preocupação do etnógrafo em dar ênfase ao processo, àquilo que está ocorrendo, e não ao produto. Assim, o pesquisador deverá apreender este movimento por meio de um trabalho de campo intenso, minucioso e atento. A chamada etnografia pós-moderna aciona estes mesmos pressupostos re-formulando a escrita etnográfica clássica numa gradativa diluição das fronteiras que separam o “sujeito” do “objeto” de pesquisa, o que possibilita a construção de um discurso dialógico e polifônico na análise do objeto em questão, assim como uma mistura entre a escrita científica e literária ou a própria dissolução entre eles. (GONÇALVES, 2008, p. 155) Nessa perspectiva a prática etnográfica se aproxima dos processos de criação artística, pois torna-se possível a análise de processos nos quais o pesquisador em artes pode se colocar ao mesmo tempo como artista e como investigador. Para Gonçalves o texto etnográfico faz “com que reflitam também a sombra das inúmeras mãos que não os escrevem, mas participam, em vários níveis, da sua construção (p. 157). Daí seu uso por diversos cam-

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pos de conhecimento, abarcando “o ‘significado’ que as pessoas dão às coisas e à sua vida.” (LÜDKE & ANDRÉ, 1986, p. 12) Na pesquisa que desenvolvi analisando as práticas pedagógicas teatrais, acompanhei ativamente oficinas de teatro de rua ministradas por cada agrupamento. Minha atividade não foi constituída apenas de observação de uma determinada relação de ensino-aprendizagem; tive uma participação efetiva, na medida em que me coloquei na condição de aluno em atividade, vivenciando com/em meu corpo os exercícios e atividades propostas em cada coletivo teatral para a formação de atores. (TELLES, 2008) Após a conclusão desta etapa de pesquisa, iniciei minhas atividades no Programa de Pós-graduação em Artes da UFU, orientando dissertações cujo percurso metodológico se dava pela prática artística do discente-pesquisador. Ali propunha que a experiência como atitude metodológica e a escrita etnográfica conduzissem o olhar sobre o objeto ou sujeitos investigados. Nesse percurso de orientação, ainda em andamento, tenho percebido que as relações entre teoria e prática estão sendo revistas, ao invéz de serem campos separados e incomunicáveis na produção do conhecimento em artes cênicas, tornam-se momentos correlatos no movimento da pesquisa. Ora a teoria mobiliza a prática, ora a prática rever a teoria e assim sucessivamente.

Paragem Final: [in]conclusões O percurso que faço como pesquisador e orientador tem me colocado questões em torno da construção do conhecimento na área de Artes Cênicas, especialmente em Teatro, me levando a propor re-visões nos métodos mais clássicos da pesquisa acadêmica e também entendendo este processo como um exercício criativo em diálogo com o objeto de investigação. Uma delas é o processo de escrita. Michel Foucault em A Ordem do Discurso levanta a hipótese que a produção discursiva é engendrada por uma gama de procedimentos que a localizam dentro de um corpo social e que torna esta produção algo mediado por estratégias e táticas de poder.

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Nos procedimentos de exclusão são destacados: a interdição que impede que o discurso seja “libertário” em seu enunciado, pois não podemos dizer de tudo em qualquer circunstância; a separação e a rejeição que localiza os discursos em suas autorias garantindo ou não sua legitimidade perante o ouvinte. Temos ainda a vontade de verdade que “apoiada sobre um suporte e uma distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos uma espécie de pressão e como que um poder de coerção” (FOUCAULT, 1996, p. 18). O discurso verdadeiro deve se libertar do desejo e do poder não podendo reconhecer esta vontade de verdade que o atravessa. Nos procedimentos internos ao discurso, são mencionados: o comentário que dá visibilidade ao que estava escondido no texto primeiro, o autor e a organização das disciplinas cria os limites para a criação do discurso de forma em que estes e suas regras sejam sempre reatualizadas. Foucault aponta ainda um terceiro grupo de procedimentos que possibilitam o controle dos discursos, que “determinam as condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim de não permitir que todo mundo tenha acesso a eles” (p. 36). Ou seja, só compreenderá o discurso aquele que dominar seus mecanismos de decifração. A própria escrita já determina tais mecanismos, pois estrutura-se com base em sistemas de coerção, no qual cada indivíduo deverá ser instrumentalizado para adentrar na ordem do discurso. Tal papel em nossa sociedade é realizado pelo sistema educacional que se fundamenta na “política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com saberes e os poderes que eles trazem consigo.” (p. 44). Mais do que levantar hipóteses para uma possível comprovação, me proponho a levantar problemas, perguntas que possam nortear minha pesquisa artístico-acadêmica e colocar os pressupostos teóricos que utilizo nas análises empreendidas. Assim que re-conheço o meu trajeto artístico e de pesquisador. Problematizando as práticas e formas da Pesquisa EM Artes, podemos apresentar tanto as especificidades deste campo quanto suas aproximações com outras áreas do conhecimento.

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Referências bibliográficas ANDRÉ, Marli Eliza. A etnografia da prática escolar. Campinas: Papirus, 1996. BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre experiência e o saber de experiência. In: Revista Brasileira de Educação. São Paulo, n. 19, p. 20-28, jan./ fev./mar./abr., 2002. CARREIRA, André; CABRAL, Biange; RAMOS, Luiz Fernando; FARIAS, Sérgio Coelho (Org.). Metodologias de pesquisa em Artes Cênicas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. FLORENTINO, Adilson. A problematicidade epistemológica do saber teatral. In: TELLES, Narciso; FLORENTINO, Adilson (Orgs). Cartografias do ensino do teatro. Uberlândia: EDUFU, 2009, p. 09-16. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. MARINIS, Marco de. Ter experiência em arte: para uma revisão das relações teoria/prática no contexto da nova teatrologia [tradução de André Carreira] In: TELLES, Narciso (org). Pesquisa em Artes Cênicas: textos e temas. Rio de Janeiro: E-Papers, 2012. MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org.) Pesquisa Social. Teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2003. SILVA, Vagner Gonçalves da. Entre a poesia e o raio X: uma introdução à tendência pós-moderna na antropologia. In: GUINSBURG, Jacó; BARBOSA, Ana Mae (Org.). O pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 144-158. TAYLOR, Diana. From the Archive and the Repertoire: performing cultural memory in the Américas [tradução não publicada Marcela Fuentes] Durham: Duke University Press, 2003. TELLES, Narciso. Pedagogia do teatro e teatro de rua. Porto Alegre: Mediação, 2008.

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As artes circenses e a pesquisa no Brasil

Mario Fernando Bolognesi2

Abordar o tema das pesquisas em artes circenses, no Brasil, requer atenção a dois universos específicos e complementares: o primeiro deles diz respeito à prática artística, que envolve o ensino e a pesquisa de números e habilidades circenses; depois, os estudos que tematizam o circo, que têm por base a própria prática artística, presente ou passada, de natureza reflexiva, pedagógica, histórica, teórica etc. Muitas companhias circenses, tanto as empresariais quanto as familiares, ainda desenvolvem em seu ambiente interno a pesquisa de novos números, bem como o ensino do ofício circense aos mais jovens. A prática cotidiana e o convívio grupal e familiar ainda permitem a manutenção de um modelo de formação (toda formação envolve ensino e pesquisa) que se fundamenta na ex2. Bolsista em Produtividade e Pesquisa, nível 2, do CNPq. Professor Titular do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus de São Paulo (SP). Tem experiência na área de Artes/Teatro/Circo, com ênfase em estética, encenação, interpretação e dramaturgia, atuando principalmente nos seguintes segmentos: circo brasileiro, palhaços, comédia e cômico circenses.

periência concreta da profissão. A empiria predominante nesta modalidade permite um aprendizado minucioso que é constantemente testado, desde tenra idade, no próprio espetáculo. O momento espetacular se transforma em experiência e aprendizado, provocando a incorporação e/ou a rejeição de gestos, movimentos, posturas, evoluções, sonoridades etc. Fora do ambiente do circo itinerante se desenvolve igualmente uma gama significativa de pesquisas artísticas, espontâneas e/ ou incentivadas por organismos públicos. Os praticantes, aprendizes e pesquisadores que a elas se dedicam não são, no geral, oriundos do meio circense. Originários majoritariamente do teatro ou da dança, a procura pelas artes circenses amplia o leque de possibilidades cênicas. As pesquisas artísticas investem, em sua maioria, na aproximação da técnica e da habilidade circense com os recursos cênicos que compõem a prática do teatro e da dança contemporâneos. Os recursos conhecidos e praticados recebem novas concepções cenográficas, coreográficas, dramatúrgicas e de encenação. O foco, portanto, está centrado em uma maneira diferenciada de se conceber e construir um espetáculo circense, propício a ocupar tanto os picadeiros dos circos quanto os palcos dos teatros, ou mesmo o espaço público das ruas e praças. No geral, esses artistas procuraram a formação circense um pouco tardiamente, o que dificulta, em parte, o avanço no aprendizado das técnicas e habilidades circenses as mais sofisticadas, que são intrinsecamente ligadas e condicionadas ao físico e, também, à idade. Nesse aspecto, as escolas de ensino das artes circenses, que se tornaram realidade, no Brasil, a partir da década de 1980, têm papel de destaque no incentivo a novas formas de concepções espetaculares, bem como na pesquisa e no ensino de técnicas arrojadas, que claramente aludem ao avanço da arte circense. As iniciativas educacionais das escolas e dos próprios artistas circenses procuram avançar os limites técnicos e artísticos conhecidos e praticados em sua modalidade e resultam em números e espetáculos que se disponibilizam ao público apreciador, por meio de apresentações e temporadas diversas, em ambientes variados. Quando os números criados se voltam ao picadeiro,

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eles tanto podem se inserir em espetáculos já existentes, levados adiante por companhias constituídas, quanto podem propor espetáculos novos, com olhares diferenciados acerca das artes circenses. Basta um mínimo esforço de historicidade para reconhecer que as artes circenses na atualidade avançaram e reconquistaram os seus liames com as outras artes. As pesquisas que se enquadram na segunda modalidade, a saber, aquelas de natureza escrita, no Brasil, estão em franca expansão. Elas se desenvolvem, fundamentalmente, a partir de três instâncias promotoras: universidades, programas governamentais e espontâneas. As primeiras vinculam-se a instituições universitárias de ensino e pesquisa e envolvem professores, pesquisadores, alunos de graduação, de mestrado e de doutorado. As segundas decorrem de programas vinculados a políticas públicas, oriundas, portanto, da iniciativa governamental, acionadas nacionalmente por intermédio da Fundação Nacional de Artes – Funarte, ou pelas secretarias, departamentos e outros organismos de cultura, nos âmbitos estadual e municipal. Iniciativas particulares de admiradores e/ou praticantes das artes circenses se encaixam na terceira vertente. Em todas essas três instâncias, no entanto, encontram-se pesquisas de teor prático-artístico, didático-pedagógicas e histórico-teóricas, quando não, todas, ou duas delas, conjugadamente. Ou seja, no rol das pesquisas encontram-se aquelas diretamente vinculadas à investigação de linguagem artística, que resultam na montagem de novos números e atrações, às vezes resultando em descrições técnicas, as pedagógicas, voltadas para a sistematização do ensino das artes do circo, e as de natureza histórico-teóricas, destinadas ao registro e à reflexão das habilidades circenses no âmbito maior das artes e da cultura. Os trabalhos investigativos, oriundos das universidades e outras instituições de pesquisa, transformam-se em dissertações, teses, trabalhos de conclusão de curso e são disponibilizados ao público por intermédio das bibliotecas das instituições que as incentivam, ou então se tornam acessíveis através da internet. Nem todos os trabalhos estão disponibilizados na rede mundial de computadores, quer seja porque a universidade não se asso-

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ciou a programas dessa natureza, quer seja porque o autor não autorizou tal forma de publicação. Algumas pesquisas acadêmicas se transformam em livros, ou capítulos de livros, disponíveis no formato papel, ou, mais recentemente, no formato digital. Outras resultam em artigos, que são publicados em revistas especializadas de difusão científica e cultural. As pesquisas fomentadas por programas de governo nem sempre encontram formas apropriadas de se tornarem públicas. Delas resultam trabalhos monográficos que ampliam o acervo bibliográfico e arquivístico das instituições promotoras. Nesse aspecto, o acesso a elas torna-se um tanto quanto dificultado, uma vez que nem ao menos passam a compor qualquer base de banco de dados bibliográfico que oferecem diretrizes de busca mais apropriadas. Algumas das pesquisas fomentadas por organismos governamentais, contudo, nos últimos anos, receberam publicação no formato papel e, com isso, alcançam um público leitor mais amplo. Quanto às pesquisas próprias da terceira vertente, ou seja, aquelas de iniciativa pessoal, advindas de um envolvimento particular do pesquisador com o circo, só são possíveis de se conhecer quando se transformam em livros, algumas vezes financiadas por organismos públicos, ou por exclusivo investimento de seus autores ou de colaboradores. Mas, se as edições de livros e revistas inviabilizam a difusão desses estudos, os meios digitais vieram a suprir essa dificuldade. A organização e manutenção de endereços eletrônicos na rede de computadores, que se voltam exclusivamente ao circo, tornaram-se uma realidade e oferecem informações acerca do estágio atual da arte no país. De qualquer forma, o mercado editorial privado ainda não despertou maior interesse para o potencial crescente da temática circense, não obstante o resultado positivo de algumas publicações resultantes de incentivos públicos, universitários e/ou de outros órgãos governamentais. No que tange ao perfil dos pesquisadores, de um modo geral, dado o tom memorialista predominante (mas não exclusivo), as pesquisas espontâneas são efetivadas por artistas, técnicos, empresários ou admiradores das artes circenses, cuja dedicação e

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envolvimento com a arte demandaram a necessidade de fazer conhecer, ao público externo, saberes específicos das artes do picadeiro. Os pesquisadores incentivados por programas públicos de fomento e os vinculados às universidades apresentam um perfil misto e envolvem tanto artistas praticantes quanto estudiosos da arte circense, quando não as duas situações a um só tempo. Quanto aos assuntos abordados no interior dos grandes temas (o circo e as artes circenses) os estudos realizados no âmbito acadêmico se voltam – majoritária, mas não exclusivamente – às abordagens dos palhaços. Algumas razões podem ser apontadas para isso: a) o palhaço se aproxima das investigações próprias das artes cênicas – campo de investigação relativamente sólido no país; b) a personagem cômica que se consolidou no espetáculo circense é objeto constante de apropriação pelos mais diversos interesses sociais e culturais, desde a absorção comercial do tipo, com vistas à propaganda e difusão de marcas e produtos, até sua adoção como elemento de humanização de relações frias, objetivadas e distanciadas, como as do ambiente hospitalar, dentre tantas outras; c) a presença crescente do palhaço em espetáculos teatrais, notadamente os de ruas e praças, mas também os de palco em ambientes fechados, também serve de estímulo ao estudo. Muitas dessas pesquisas, no entanto, se voltam a experiências particulares de atores-pesquisadores, que desenvolvem a personagem com vistas à criação teatral. Nelas, o tom pessoal da descoberta termina por prevalecer. No âmbito universitário, contudo, diversos outros temas circenses ganharam interesse. A inserção do circo na comunidade e seu entorno, transformando-se, ainda que temporariamente, em casa de difusão cultural e de lazer é tema relevante para pesquisas nas áreas da sociologia e da antropologia. O circo-teatro vem recebendo destaque em dissertações e teses, abrangendo desde o levantamento dramatúrgico e modos de encenação, como também estudos dedicados a artistas que se consagraram na modalidade. O circo, como motivo maior de programas de ação social, também recebe a atenção dos estudos acadêmicos e trafega em áreas fronteiriças de investigação, recorrendo, portanto, à

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pedagogia, à antropologia, à sociologia, à política e às artes. Outra área que desperta interesse de pesquisadores universitários é aquela voltada ao estudo das especificidades técnicas e artísticas das habilidades circenses e, nesse caso, a interface dos estudos em artes com os do corpo e da educação física são evidentes. Boa parte das pesquisas desenvolvidas por praticantes e simpatizantes do circo, desprovidas de incentivo público, se voltam à narrativa de saberes específicos, construídos, preservados e ampliados no ambiente exclusivo da vida artística itinerante. Constituem-se, predominantemente, de exposição escrita de uma cultura oral e mnemônica, cuja prática é sedimentada no convívio grupal. As memórias circenses se associam à explanação pública de termos e conhecimentos técnicos específicos, que dizem respeito a números artísticos, a aparelhos e instrumentos de execução de números, à casa de espetáculo, à moradia, ao contato e convívio com a sociedade externa, às relações com os poderes constituídos etc. As pesquisas incentivadas por organismos e programas governamentais, no geral, são aprovadas por comissões julgadoras que atestam a importância e a capacidade do proponente em desenvolvê-las. Neste âmbito, os assuntos se proliferam e tem-se desde levantamentos estatísticos de circos itinerantes (parciais, é verdade, pois falta fôlego e vontade política suficientes para um amplo senso no setor), até consolidação de centros de memórias e pesquisas, passando por estudos que se dedicam a descrições pormenorizadas de técnicas circenses específicas, ou mesmo estudos históricos de grupos, companhias e trupes etc. Dado o quadro heterogêneo que se apresenta, é mais do que natural que haja disparidades entre essas três grandes modalidades estruturantes das pesquisas. Mas, desde já se deve assegurar a validação delas, bem como apontar, a despeito da expansão, para a ainda reduzida produção na área, tanto porque as universidades e instituições de pesquisa brasileiras estão longe de atender a toda a demanda que lhes bate à porta, ou porque as verbas alocadas nos programas de incentivo público não são suficientes para cobrir a contento a pluralidade da arte circense que anseia por investigação, ou então porque os custos para edição de obras

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particulares restringem ainda mais a atuação dos pesquisadores espontâneos. As disparidades, no entanto, acionam o terreno fértil do diverso, na medida em que os conteúdos e suas respectivas formas de abordagem apresentam diferenças notáveis. É claro que um olhar ortodoxo imediatamente passaria ao julgamento de valores e apresentaria um quadro de trabalhos aceitáveis e outro descartável. Esse julgamento se centraria em valores que, dados como sólidos pelo avaliador, se converteriam em ponto de partida para selecionar, ao seu juízo, o joio do trigo, quase sempre norteado por paradigmas que são alçados à condição de normas e regras. Antes de tudo, configura-se em idiossincrasia o avaliar comparativamente pesquisas forjadas em condições de desigualdade estrutural, formal, metodológica, de formação e informação dos pesquisadores, dos objetivos propostos para cada uma delas etc. Contudo, se para os casos incentivados e para os espontâneos não cabe a cobrança do rigor metodológico e teórico, mesmo porque nem sempre seus pesquisadores têm formação epistemológica para seguir o perfil acadêmico – o que não seria desejável, na medida em que induz a certa padronização das formas de saberes –, o mesmo não se aplica às pesquisas forjadas no âmbito das universidades e institutos de pesquisa. Nestas, o rigor metodológico e teórico necessitam de realce, uma vez que pretendem ocupar lugar de destaque no conhecimento consolidado acerca do assunto. As pesquisas desenvolvidas no âmbito universitário, que se transformam em monografias, teses e trabalhos de conclusão de curso, recebem a orientação de um profissional experiente, portador de título de mestrado ou doutorado e, ao final do processo, passam pelo crivo de uma banca avaliadora. Nos dois primeiros casos – teses e monografias – pesquisadores externos à unidade geradora da pesquisa necessariamente participam da constituição das bancas. Os trabalhos de conclusão de curso são avaliados por professores da própria instituição. Os critérios de análise, em todos os casos, realçam a importância do assunto, as formas de tratamento, envolvendo aporte teórico e metodológi-

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co, bem como a contribuição da pesquisa, nos diversos níveis, para o avanço do conhecimento acumulado. Aquelas que não são submetidas a bancas (artigos, capítulos e livros), no geral recebem avaliação por parte do conselho editor da revista e/ou da editora promotora da publicação, depois de um parecer externo ao conselho, que aponta as qualidades e os problemas do trabalho e indica (ou não) a publicação. Nos organismos governamentais que incentivam a pesquisa em artes circenses o procedimento é inverso: é constituída uma comissão de avaliação dos projetos apresentados. Depois de aprovado, o resultado final – a pesquisa desenvolvida e finalizada – não recebe nenhuma espécie de avaliação. O julgamento dos projetos leva em conta, sobretudo, a pertinência da proposta e a capacidade do proponente em desenvolvê-lo. Critérios teóricos e metodológicos não são relevantes para a aprovação ou rejeição das propostas. Tais diferenças são significativas, pois partem de pressupostos diversos e almejam resultados cujo interesse nem sempre são convergentes. O poder público tem o anseio quase que imediato de visibilidade de suas ações. Ele contribui para o registro das artes circenses sem se ater à solidez histórica, teórica e metodológica do trabalho incentivado. As instituições de pesquisa, por seu lado, não se atêm a uma política de visibilidade e evidência política e buscam a consolidação e o avanço do conhecimento na área. Para tanto, o tratamento do material empírico, a atualização bibliográfica, a base histórica de sustentação da análise e o suporte teórico são requisitos fundamentais para a consolidação da pesquisa. Assim, portanto, delineia-se a diversidade antes apontada. Evidentemente, no que diz respeito às formas de validação das pesquisas, não foram abordadas aquelas de cunho prático-artístico, mas tão somente as didático-pedagógicas e as histórico-teóricas, em duas das modalidades incentivadoras: programas públicos de incentivo à pesquisa em circo e as iniciativas levadas a cabo no interior das universidades e demais instituições de pesquisa. Aquelas oriundas da terceira instância, as espontâneas, não passam por qualquer instância de avaliação formal. Sua validação

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(ou rejeição) acontece na vivência prática, na adoção (ou não) do conhecimento produzido para nortear novas investigações. Uma avaliação geral das pesquisas circenses, no Brasil, aponta para a fragilidade do conhecimento histórico. A investigação de natureza histórica, absolutamente necessária – porque se transforma em base para os demais estudos – tem recebido atenção dos pesquisadores (em maior quantidade no ambiente universitário, mas também nos programas institucionais), mas ainda há muito a se avançar. A sua carência se manifesta no conhecimento precário do circo universal, bem como do brasileiro. A tendência atual em estabelecer uma polaridade entre o “circo tradicional” e o “circo contemporâneo”, por exemplo, necessita de uma sedimentação conceitual e ela só se consolidará na medida em que os conhecimentos históricos se tornem sólidos e diversificados. O mesmo problema se estende à tentativa de se diferenciar, no campo das teatralidades, a dicotomia entre “clowns” e “palhaços”, vigente entre muitos praticantes e pesquisadores atuais. Assim, sem uma história consolidada (nem ao menos uma história de tom positivista se consolidou, dedicada a descrever, de forma abrangente, artistas, companhias, números, atrações variadas etc.) os estudos acadêmicos avançam e certamente apontarão para tal lacuna. Se a história de fatos e autores não se efetivou, o que dizer de uma história do circo fundada em matrizes artísticas e estéticas, que procura ampliar o sentido do fazer circense e, portanto, inseri-lo contextualmente na articulação com as outras artes, com a política, com a educação e com as formas sociais de prática da cultura e do lazer? Eis um grande desafio a ser enfrentado.

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A pesquisa em teatro: a questão da palavra e da voz

Silvia Davini1

A saúde vocal é um pré-requisito indispensável para o trabalho de atuação. É nessa base que se sustenta o trabalho intensivo que os atores desenvolvem ao longo de sua formação e carreira profissional. Porém, no caso das Artes Cênicas, é indispensável a consideração da saúde vocal para além do coloquial, situandoa no contexto da produção de voz em altas intensidades e com flexibilidade tímbrica que a cena demanda. É importante notar também que, enquanto pré-requisito, a saúde vocal não necessariamente se estabelece no foco de pesquisa no campo das Artes Cênicas. Muitas são as dimensões conceituais e metodológicas que se abrem ao nos aproximarmos dos problemas que gravitam no campo da produção da voz e da palavra em cena. Nesse contexto, o Grupo V&C trabalha na definição de redes conceituais, técnicas 1. Ph.D. em Teatro pela University of London, Queen Mary College (2000), e graduada em Música pelo Conservatório Municipal de Buenos Aires. Foi professora do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília.

e metodológicas, que considerem o treinamento para a performance no campo das artes como uma instância de flexibilização do corpo para a produção de sentidos em cena. Nosso campo de pesquisa começa no primeiro contato com o texto teatral e nos processos de preparação e treinamento vocal para a cena, mantendo o foco de interesse ao longo dos processos de montagem. Situados no campo da estética, apontamos à definição de uma posição que, longe de procurar legitimação no discurso científico, seja capaz de estabelecer uma relação dialógica com ele. Nossa consideração da cena como performance teatral acentua uma mudança de foco na abordagem conceitual do corpo de quem atua e a incidência das tecnologias sobre ele. Falar de performance teatral afina nossa ideia de atuação no sentido de apresentar, fazer presente, atualizar. Essa aproximação ao performativo/não representacional da cena nos afasta das noções de interpretação ou representação. Pretendemos assim afastar nosso campo da “literalização” operada pelos Estudos Teatrais com relação à palavra no teatro, aproximando-nos da noção de palavra enquanto ato. A função reprodutora que tem adquirido o treinamento vocal para a cena, e a indefinição entre as dimensões técnica, metodológica e estética na formação de atores e cantores tampouco têm contribuído para a consideração da voz e a palavra em performance como campo de pesquisa conceitual e estética específico. Não pretendo neste escrito expor questões referentes aos nossos projetos de encenação. O ainda escasso desenvolvimento das pesquisas na área me convoca para apresentar algumas questões, interesses e resultados vinculados a pesquisas em andamento sobre as vocalidades na cena contemporânea. Porém, antes de entrar no tema, creio necessário propor algumas reflexões preliminares.

Conceito, pré-conceito e “discursos automáticos” A experiência permite questionar uma prática dada. Os questionamentos possibilitam a formulação de problemas e certa capacidade de predição a respeito deles, habilitando a formulação de

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hipóteses. Basicamente, uma teoria surge de uma hipótese comprovada com bons resultados. Formular uma hipótese implica poder predizer e/ou explicar com exatidão algum problema, suas causas e consequências. Por isso, o tempo verbal de uma hipótese é sempre um condicional. Quando verificado, o tempo será o presente e a formulação condicional da hipótese se tornará afirmativa; então poderemos falar de teoria. A pesquisa é o processo de verificação de uma hipótese. Se afirmarmos que sem hipótese não há pesquisa nem teoria, podemos pensar a prática metodológica e a prática conceitual como fases indissociáveis de um mesmo processo de pesquisa. Porém, os preceitos que sustentam boa parte do que chamamos de “teoria” no campo do teatro não se vinculam explicitamente a hipóteses. De fato, frequentemente, argumentamos com base em pressupostos cujo aparente consenso universal é dissipado ao primeiro questionamento que, além de transmutar em incerteza aquilo que parecia certo, tende a multiplicar as perguntas. No caso das vocalidades em performance, podemos começar perguntado: O que é a voz? E a palavra? Onde elas se dão? Essa primeira série de perguntas se multiplicará em, por exemplo: O que é o corpo de quem atua e o que significa no contexto da cena? Quais os limites entre a personagem, a pessoa, e quem atua? O que é uma personagem? Entre outras, nos levando, em última instância, a explicitar o que entendemos por teatro. De um modo geral, associamos o pré-conceito a diversos tipos de intolerância e discriminação, religiosa, racial ou de gênero, por exemplo. Manifestando-se em atitudes hostis e irreflexivas, o pré-conceito se apoia em argumentos superficiais e insuficientes. Leva à generalização precipitada de experiências pessoais ou sociais que, de acordo com os exemplos acima, se traduzem em ofensas de diversos graus contra grupos religiosos, étnicos ou categorias de gênero respectivamente. Mas, enquanto ideias ou opiniões mais ou menos vagas, concebidos a priori, sem maior conhecimento ou ponderação, o que são nossos “pressupostos” senão “pré-conceitos”? Enquanto pressuposto, o preconceito elude questionamentos e argumentos, circunscrevendo-se ao domínio das crenças.

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Assim, questioná-los pode vir a explicitar o valor ideológico de discursos que, de outro modo, continuariam articulando-se “automaticamente”. Os questionamentos abrem a possibilidade de alguma definição. Afastando-nos do preconceito, o exercício de definir nos aproxima do conceito. Identificar e descrever uma realidade dada, contemplando seus diversos aspectos e manifestações, envolve a necessidade de assumir posições, simbólica, ideológica e politicamente. Inclusive, trabalhar no sentido de uma definição pode revelar que o arcabouço conceitual que sustenta um dado pressuposto pouco ou nada tem a ver com o que ele parece querer indicar. A dominância que tem adquirido nas últimas décadas, no campo das Artes Cênicas, essas “mecânicas de pensamento” ou “discursos automáticos”, tem estendido os pressupostos até questões cruciais como, por exemplo, a voz, o corpo, a personagem. Tal situação sugere a necessidade de revisar nossos referentes conceituais e metodológicos e expõe o valor político da prática conceitual. Porém, para formular questionamentos produtivos precisamos de dados que somente podem surgir de uma experiência adequadamente conduzida e registrada. Assim, realizar análises de discurso dos textos de maior influência no teatro contemporâneo pode constituir-se em um bom ponto de partida para produzir esse tipo de dados, ao revelar o arcabouço conceitual que sustenta a produção artística e acadêmica no campo das Artes Cênicas. Como falamos indica como pensamos. Revelar os argumentos que sustentam as “mecânicas de sentidos” dominantes pode contribuir para dissipar elementos ingênuos, mágicos ou místicos, do discurso teatral contemporâneo e, em consequência, restaurar muito da potência simbólica e política do teatro. Uma análise de discurso pode ser realizada para comprovar uma hipótese ou para produzir dados que, mais tarde, podem contribuir para a formulação de problemas e/ou hipóteses. Da mesma forma que o trabalho sobre uma hipótese, um procedimento que produza dados se enquadra no campo da pesquisa e requer, portanto, a aplicação rigorosa de procedimentos sistemáticos. Podemos afirmar então que, como qualquer pesquisa, a pesquisa em Artes Cênicas requer de rigor; não de “rigor cientí-

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fico”, mas da produção de um pensamento situado a partir de referências que definam o que entendemos por Artes Cênicas. Não existem métodos ou procedimentos intrinsecamente adequados ou inadequados para abordar um problema dado. Em cada caso, a definição da metodologia a ser implementada responde às opções conceituais consideradas como referência; daí a impossibilidade de dissociar conceito e método. Regular a pesquisa em Artes Cênicas pela lógica da ciência constitui uma transferência discursiva direta; a importação de uma gramática constituída de acordo com referenciais aceitos socialmente como válidos, com a finalidade de legitimar o próprio discurso. Longe de dar conta das peculiaridades das questões que nos ocupam, tal operação contribui para apagar os contornos, já difusos, do lugar das Artes na contemporaneidade. No meu livro, Cartografias de la Voz en el Teatro Contemporaneo, exponho os resultados de minha análise de discurso dos textos de Johan Sundberg1, Cicely Berry2, Kristin Linklater3, dedicados à voz em performance, oferecendo dados para, entre outras questões, detectar limites e articulações entre os universos das Artes e das Ciências. Situado no universo do canto, Sundberg parte da constatação de que no campo da voz um único fenômeno pode ser nomeado de diversas formas, para concluir que se trata de um problema terminológico. Sua hipótese é que, portanto, a aplicação rigorosa e sistemática da terminologia referente aos campos da engenharia mecânica e eletrônica e às ciências exatas deveria ser suficiente para superá-lo. Porém, ao admitir que as emoções possam

1. Sundberg (1936) é Ph.D. em Musicologia e professor de Acústica Aplicada à Musica no Department of Speech, Music and Hearing do Royal Institute of Tecnology, em Estocolmo. A voz cantada e a interpretação musical têm sido seus objetos de pesquisa desde 1970. Sua abordagem da voz é a mais cientificista. 2. Formada na Central School of Speech and Drama de Londres, onde também deu aulas, Berry tem dirigido o Departamento de Voz da Royal Shakespeare Company desde sua criação. Muito próxima profissionalmente de Peter Brook, seu trabalho inaugura uma abordagem na preparação vocal para atores. 3. Linklater é formada em Interpretação Teatral na London Academy of Music and Dramatic Art – LAMDA. Desde 1963 reside nos Estados Unidos e, desde 1997, leciona Artes Teatrais na Columbia University, New York. Seu trabalho se aproxima das tendências vinculadas às novas terapias nos Estados Unidos.

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ter incidência sobre a voz, Sundberg demonstra que a terminologia aplicada é insuficiente para nomear a voz em performance. Se bem é verdade que a falta de código terminológico impossibilita a pesquisa no campo da voz em performance, também é verdade que a transferência terminológica proposta por Sundberg resultará na abordagem da voz como uma máquina. Afinal, repito, como falamos é como pensamos. Diferentemente de Sundberg, que opera uma transferência terminológica intensiva e extensiva, nos textos que se ocupam da preparação vocal de atores, é frequente que o discurso científico apareça sinteticamente, e orientado para o campo das ciências da saúde. Os textos que se seguem a este primeiro momento não apresentam pontos em comum com a breve exposição sobre fisiologia da voz, de acordo com a medicina Ocidental. Tal operação sugere que o papel do discurso da ciência nesses textos é o de legitimar o próprio discurso com os argumentos de autoridade da medicina, neste caso. Entre muitas outras, as publicações de Berry e Linklater ilustram esta outra atitude com relação às ciências. Nesses casos, o científico exerce uma função de outorgar autoridade a textos que, explicitando um desejo de permanecer próximos da prática, apresentam indefinição conceitual. Tal imprecisão resulta na prevalência, implícita nesses textos, de ideologias dominantes. O Teatro Antropológico realiza um outro tipo de esforço: o de procurar uma legitimação da cena outorgando-lhe status científico recorrendo a discursos vinculados a disciplinas do campo das ciências sociais, como é o caso da antropologia, a semiótica e os estudos da performance. Tal operação discursiva, à qual me referirei abaixo de forma um pouco mais pontual, tenta colocarse além da legitimação, procurando uma aproximação da cena à ciência. Porém, nesse esforço, perde-se o foco no que entendo que seja o genuíno interesse das Artes Cênicas: o discurso e o fato estético. Colocar as Artes Cênicas em diálogo com o discurso das Ciências, exatas, da saúde, humanas ou sociais, requer, em primeiro lugar de situá-las solidamente em seu próprio campo. Uma posição dialógica requer de dois polos bem definidos de interlocução. A ciência, no seu campo bem definido, avança hoje a

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lugares que vêm inclusive a reafirmar certas correntes de pensamento filosófico. Na década de 1960, enquanto nas Artes Cênicas o foco se voltava para o teatro de laboratório e sua procura última por raízes ancestrais e transcendência, os desenvolvimentos da física quântica operavam um diálogo intenso com diversos campos da ciência e com a filosofia. Hoje, o trabalho de António Damásio sobre as emoções vem a confirmar, da perspectiva da neurociência, a filosofia de Baruch Spinoza, provando simultaneamente duas questões que creio relevantes. Em primeiro lugar que, pelas suas características, o pensamento filosófico pode se antecipar cronologicamente em muito ao científico. Em seguida, que para estabelecer qualquer tipo de relação entre diversos campos de conhecimento se requerem de posições sólidas situadas em campos bem definidos. Não se abarca o fato estético nem a partir da ciência nem a partir do pensamento ingênuo. Em sua potência e sutileza, o fato estético define o lugar e o interesse, o problema e o assunto das Artes. O pensamento ingênuo tende a tomar como literal o que é metafórico e como metáfora o que é literal e, finalmente, transformá-lo todo em slogan. A recente apropriação de certos temas no pensamento de Deleuze e Guattari no campo da pesquisa em Artes Cênicas ilustra essa mecânica. Para Deleuze, um conceito é como um tijolo. Para além do que “essencialmente” possa “ser”, um tijolo pode, de acordo com como seja usado, contribuir com a construção do castelo da razão ou quebrar alguma de suas janelas. Um conceito se define não pelo que “é”, mas pelo “como é” implementado, e será útil enquanto mantenha sua produtividade no contexto de um discurso dado. Conceitual e metodologicamente, o pensamento de Deleuze e Guattari é pragmático. Assim, o marco conceitual e metodológico de uma pesquisa é definido como uma “caixa de ferramentas”. A vigência de conceitos, procedimentos e métodos será mantida enquanto eles se mostrem produtivos. Tal postura implica na necessidade de um intenso contato com o conceitual e metodológico, que nos habilite a redesenhar ou roteirizar conceitos e métodos de acordo ao “como” desejamos argumentar a respeito de uma hipótese dada. Assim,

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para nos servir dos recursos disponíveis precisamos, em princípio, conhecê-los ao ponto de sermos capazes de redesenhá-los e, inclusive, de propor estratégias de linguagem que deem conta de abordar os problemas que a Arte coloca. Porém, a pragmática de Deleuze e Guattari é frequentemente entendida como a legitimação de uma liberdade sem restrições. Um artista adquire liberdade na medida em que controla os sentidos que produz. Portanto, o difundido ideal de uma liberdade irrestrita não passa de uma ilusão improdutiva. Consolidar um discurso envolve a necessidade de rigor e definição, seja no campo das Artes ou das Ciências. Em lugar de legitimar o discurso das Artes a partir dos pressupostos da Ciência, seria interessante caracterizar melhor ambos os universos, no sentido de propiciar uma relação dialógica entre as Artes e o discurso científico contemporâneo de ponta, objetivo para o qual é preciso abandonar o terreno do pensamento ingênuo. De fato, um artista é capaz de enunciar algo de novo não porque a ciência legitime seu discurso, mas porque está em posse dos saberes, do conhecimento e das tecnologias disponíveis no seu próprio tempo e lugar. Pesquisar e pensar são, enfim, práticas conceituais e, por tanto, como qualquer prática, requerem de rigor e método. Assim, qualquer processo que implique alguma permanência em torno de uma atividade, qualquer procura “estética”, não abriga necessariamente a possibilidade de constituir-se em pesquisa. Transitar por terrenos desconhecidos, sem mapas nem bússolas, pode nos levar a andar em círculos. Da mesma forma, sem definição de constantes que permitam a percepção das variáveis surgidas no processo, as propostas experimentais em Artes Cênicas muitas vezes resultam novas somente em aparência, limitando assim as possibilidades de caminhos, em lugar de multiplicá-las. Para que o exploratório sirva a um processo de treinamento ou de produção artística é preciso considerar algum referencial de base, tendo em vista os resultados desejados em performance, ou seja, é preciso que se constitua em pesquisa. Para constituir-se em dados de pesquisa, as sensações e percepções dos atores em treinamento e performance precisam deixar de ser trânsitos mais ou menos erráticos pelo próprio corpo.

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Adequadamente formulados e definidos, dessas experiências podem surgir os dados, pontos de partida de qualquer pesquisa, e não em um fim em si mesmos. Da combinação desses dados primários surgem os primeiros questionamentos. A potência e produtividade dessas perguntas definirá a formulação do problema a ser abordado a ser abordado em pesquisa. Assim, com a formulação de perguntas, começa a prática conceitual que na hora de se tornar pesquisa se estruturará metodologicamente. Examinados em sua perspectiva histórica, os problemas sugerem possíveis hipóteses, mais tarde afirmadas ou não com relação aos dados, fatos e/ou argumentos. Em princípio, nenhum procedimento ou instrumento é descartável enquanto seja produtivo às hipóteses consideradas numa pesquisa dada. A consolidação de uma prática conceitual e metodológica pode contribuir para a superação do esgotamento das vertentes experimentais do século passado no campo das Artes Cênicas e nutrir uma produção teatral original. Em qualquer campo das artes, um trabalho de composição não necessariamente se constitui em obra de arte. Se bem os artistas também compõem, o fazem a partir de um lugar no qual se apropriaram das tecnologias, conhecimentos e saberes que circulam em sua época e, desde ali, bem instalados no próprio tempo e espaço, enunciam algo de novo. Materializados em obras, esses discursos promovem sentidos e afetos para além da situação existencial dos seus autores. Um trabalho artístico não está destinado exclusivamente a “entendidos”, mas é capaz de promover relações dialógicas com os públicos em diversos níveis e ao longo do tempo. Assim, a obra de arte promove redes de sentidos que serão tecidos pelo público, proporcionalmente com a densidade do referencial que cada pessoa ou grupo seja capaz de disponibilizar.

Um pouco de história De aparência inovadora, o discurso das tendências de laboratório no teatro da segunda metade do século XX se apoia numa base conceitual “eclética”, que frequentemente atualiza um repertó-

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rio de ideias de raiz essencialista, vinculáveis ao que Deleuze e Guattari identificam como “pensamento cansado” no marco da tradição ocidental, fato este que expõe sua fragilidade epistemológica. Traduzidos em diversas línguas, os livros de Brook e Barba têm exercido enorme influência no campo dos estudos teatrais e da cena contemporânea, estendendo seu ideário, como veremos adiante, para âmbito da preparação vocal de atores. Os trabalhos de Brook e Barba se vinculam a uma estética de uma presença imanente, que busca transcender a história e escapar à determinação cultural e temporal. Para Marvin Carlson, estas, como todas as propostas que clamam por uma abordagem fenomenológica não semiótica do teatro, se manifestam na busca de um sentido de plenitude e de liberação de valores externos, na ênfase na presença e nas sensações físicas, e em sua rejeição à teatralidade (qualidade narrativa, discursiva e mimética do teatro tradicional/ocidental). Vinculáveis ao modelo moderno de presença, tendências como as propostas por Brook e Barba, continua Carlson, têm se tornado cada vez mais problemáticas no contexto das teorias pós-estruturalistas (CARLSON, 1996, p. 134). Porém, diferentemente do repertório mais fenomenológico da atitude moderna, as noções de presença pura em Brook e Barba compartilham com a noção clássica de presença suas suposições a respeito de uma verdade primária, universal e “autenticante”, situadas para além dos parâmetros de tempo e espaço e, portanto, a-histórica. Tal ideia de presença implica representar em lugar de apresentar, contrariando as demandas do teatro contemporâneo, propostas inclusive pelo mesmo Barba, sobre o corpo performativo do ator, e sua ênfase no processo em lugar de nos resultados. Brook e Barba compartilham dessa abordagem imanentista do ator e de sua presença vocal, patente nas noções sobre a natureza dominantes em ambos, no ideal de um ator invisível em Brook, e na proposta das ações vocais e nas noções do préexpressivo e o pré-cultural em Barba, por exemplo. Enquanto que em Barba o treinamento contempla, em sua primeira fase, a aquisição de habilidades, aproximando-se a uma ideia clássica da técnica, em Brook, o treinamento se define como um pro-

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cesso hermenêutico, cuja finalidade é desvelar a presença imanente/natural do ator, coincidindo basicamente com a segunda fase na evolução do treinamento do Odín, dirigido à presença do ator. Como veremos adiante, em diversos graus, Berry e Linklater compartilham do discurso de Brook e Barba. O ideal de Brook de um teatro que transcenda as culturas na procura de uma condição humana universal, para além de qualquer divisão de raça ou classe, é definido por Patrice Pavis como transcultural. Barba pretende alcançar universalidade através do pré-expressivo, que aponta a um suposto território corporal comum, ainda não modelado no âmbito das tradições culturais; proposta esta definida por Pavis como pré-cultural (PAVIS, 1992, p. 20). Ambas as buscas coincidem na procura de uma essência humana “universal” (invisível, em Brook; anatômica, em Barba), objetivo este que, pelo seu nível de abstração, permanece inapreensível no trabalho de ambos. Considerando ainda que tanto Brook quanto Barba elaboraram suas propostas a partir do trabalho que desenvolveram com atores, no caso de Brook, ou com grupos treinados em diversas modalidades cênicas, no caso de Barba, cabe questionar a validade do transcultural e do pré-cultural na formação integral de atores. Barba concentra-se nos “comportamentos sócio-culturais e fisiológicos” dos atores, examinados através das diversas culturas (BARBA e SAVARESE, 1991, p. 8). Ele localiza os fundamentos da performance não na situação de sua atuação, ou seja, seu marco cultural e histórico, senão na busca de um nível básico de organização no corpo do ator, que designa com o nome de nível pré-expressivo. Essa operação resulta no reconhecimento, por parte da audiência, de qualquer comportamento como performance. De acordo com Barba, a resposta dos espectadores ante a performance se dá, não porque atores e audiências compartilham referências culturais, senão como resultado a estímulos “fisiológicos, pré-culturais e universais”, tais como o equilíbrio e as tensões dirigidas (CARLSON, 1996, p. 19). Esse grande esforço no sentido de abrir um espaço à parte da cultura, não aspira a conduzir o teatro aos limites, tanto ou mais estritos, do fisiológico? É possível concretizar em performance

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o pré-expressivo, o pré-cultural ou o transcultural? É produtiva uma reflexão a respeito da formação de atores no século XXI sem consideração alguma sobre a incidência da evolução da tecnologia no corpo humano e os seus sistemas perceptivos? Se, como afirma Richard Knowles, espaços vazios são espaços ótimos para serem ocupados por ideologias dominantes, a quais demandas responde a proposta de pensar no teatro como uma arena vazia para um ator invisível? Essas são somente algumas das perguntas que surgem do exame das propostas de Brook e Barba. (KNOWLES in BULMAN, 2005, p. 92-112) Sob promessas de subversão, ruptura e superação dos modelos estabelecidos no teatro, as propostas surgidas das tendências vinculadas ao teatro de pesquisa ou laboratório da segunda metade do século XX, diversas em aparência, confluem conceitualmente em diversos pontos. Partindo de uma estrutura conceitual radicalmente binária, desenvolvem uma ideia do ator como entidade individual e a-histórica. Seus pressupostos de uma verdade ou uma presença universal vinculáveis, em um primeiro momento, às tendências modernas e fenomenológicas ressoam, como já foi indicado, com ecos etnocêntricos e conservadores. Assim, o caso do teatro de pesquisa ilustra como a fragilidade conceitual redunda no descontrole ideológico e conceitual dos discursos. No desejo de liberar o teatro europeu da segunda metade do século XX da saturação de convenções que nele detectam, Brook e Barba operam, alternativamente, por saturação ou por negação. Em todos os casos, o resultado é a falta de código que resulta em, por exemplo, confundir uma sequência vocal ou de movimento com uma “partitura”, e na fuga da palavra em performance. Voice and the Actor, de Cicely Berry, publicado em 1973, foi o primeiro livro de uma serie que influiria profundamente a atuação contemporânea em língua inglesa do repertorio Shakespeareano a partir de uma nova abordagem em relação à voz e a palavra em cena. Naquele momento o treinamento vocal para atores concentrava-se na adequação de acentos e estilos. Os textos de Berry indicaram alternativas para esta abordagem. Questionando seu suposto elitismo, as propostas de Berry refletem as tendências que, desde a década de 1960, procuraram uma democra-

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tização do teatro. Richard Knowles nota que os textos de Berry operaram uma mudança crucial na atuação contemporânea em língua inglesa. Influenciando, mais ou menos diretamente, docentes e estudantes de teatro, preparadores vocais e atores, encontram sua motivação inicial na encenação realizada por Peter Brook de Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare (KNOWLES. In: BULMAN, 2005, p. 92). Voice and the Actor pode ser visto como um texto fundacional em relação às abordagens de trabalho vocal em inglês para atores que podemos identificar como pós-Brook. E é através do ideário de Brook que tais abordagens passam a influenciar o fazer teatral na América Latina. Porém, se a gravitação das propostas consideradas é intensa, a dominância de Constantin Stanislavski no campo da formação de atores e da atuação é reconhecida criticamente pelas preparadoras vocais vinculadas à abordagem pós-Brook. Os atores hoje ainda são formados, treinados, de acordo com os estilos de atuação produzidos a partir do sistema Stanislavski. Apesar de sua extensiva utilização desde os inícios do século XX, a proposta de Stanislavski corresponde a um momento, a uma época, a um lugar determinado no mapa da nossa cultura Ocidental. A transferência direta dos conceitos formulados por Stanislavski aos processos de treinamento e ensaio de hoje sugerem que eles tenham algum valor prescritivo. Porém, a percepção de atores e audiências articula-se a partir de noções de corpo, de sujeito, de tempo e espaço que têm sofrido alterações profundas desde os inícios do século XX até hoje. Esta incidência de diversas propostas vinculadas mais ou menos diretamente ao sistema Stanislavski na formação contemporânea, aponta a reproduzir uma estética de atuação, cristalizando estilos. A esses cânones de estilo, cristalizados no tempo, resultantes de modos de treinamento formulados em tempos e lugares outros, denomino “históricos”. Enquanto reprodução de estilo não poderíamos chamar a tais propostas de técnicas (DAVINI, 2002, p. 59-73). A técnica está diretamente vinculada a princípios que, atualizados em performance, se manifestam sempre que se atingem resultados desejados. No âmbito da produção de vocalidades,

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estes resultados podem vincular-se à produção de voz em altas intensidades, ao domínio da diversidade tímbrica, às habilidades musicais, prosódicas, discursivas ou narrativas. A técnica formula-se em relação ao material, interfere nele. Cantores e atores incorporam técnicas, interferindo diretamente sobre o material (neste caso o próprio corpo) com o fim de produzir resultados desejados. Com base no Princípio Dinâmico dos Três Apoios, configuramos uma rede de técnicas para a produção de voz em altas intensidades, aplicável ao processo de treinamento para cena. Nessa proposta, certos fundamentos de diversas técnicas corporais se articulam a outros, vinculados a técnicas tradicionais de canto. Já no campo da performance do texto, meios de reprodução de som e imagem integram-se ao processo de ensaio com dispositivos de análise estilística, constituindo o que chamo a técnica de Micro-Atuação. Se bem que em suas origens os procedimentos introspectivos configuraram estratégias eficazes no sentido de superar estilos extremadamente representativos, ingênuos ou caricaturais de atuação, a prolongada reincidência neles nutre hoje uma intensa confusão entre a pessoa, o ator ou a atriz, e a personagem, cujas marcas se deixam sentir na performance do texto e também no marcado estreitamento do imaginário que resulta do cotidiano dos atores e diretores como referência principal e iniludível, para além do alcance do imaginário dos autores e das personagens por eles propostas. Procedimentos de improvisação ou paráfrase, que apontam à apropriação do texto por parte do ator, têm contribuído também para outorgar uma progressiva opacidade ao autor no teatro contemporâneo. A personagem como entidade fixa, surgida de uma biografia unívoca, trabalhada a partir de tudo o que nunca será concretamente apresentado em cena, a literalização/desvocalização do texto teatral, resultam também da ideia da personagem como um “sentir” que, sem âncoras técnicas, se confunde na pessoa. Liberado da ideia de uma identidade taxonômica, o “corpo ressoante”, o mais humano dos corpos, não naufraga nas profundezas do sentido enquanto conteúdo; ele é capaz da fluidez necessária

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para deslizar-se na superfície do texto, dessa geografia que “dá” forma, e nela, sedimenta múltiplos sentidos.

O cartográfico na abordagem das vocalidades na cena contemporânea Em Deleuze e Guattari, uma cartografia, assim como um mapa ou um plano de consistência, refere-se ao corpo sem órgãos (CsO), objeto da esquizoanálise. Assim, cartografias supõem questões tais como: qual é o plano de consistência, o CsO da vocalidade no teatro produzido em um tempo e lugar determinados? Com quais linhas se fusiona? Quais são suas linhas? Em torno de quais mapas as vocalidades estão em processo de ordenar-se ou de re-ordenar-se? Que linhas abstratas desenharão essas vocalidades, e a que preço para todos e para cada um dos envolvidos nos processos abordados? Qual é sua linha de fuga? Que linhas atravessam, cortam, se estendem ou se resumem nelas? Estão rasgando-se? Podem se quebrar? Estão territorializando-se ou desterritorializando-se? (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 203). A diferenciar da pesquisa etnográfica, centrada na descrição, o cartográfico supõe a consideração das percepções e sensações que o campo explorado desata no corpo dos cartógrafos, superando assim a distância objeto/sujeito. Nosso referente para a proposta de cartografar vocalidades em performance se dá nas pesquisas realizadas entre 1996 e 2000. Essas cartografias surgem de minha intensa exposição à produção teatral apresentada na Grã-Bretanha e Espanha, entre 1996 e 1997, e em Buenos Aires, entre 1998 e 1999, particularmente de março a julho e de outubro a dezembro de 1998. Essa imersão intensa e cotidiana na produção teatral, que frequentemente me levou ao teatro mais de uma vez por dia e/ou várias vezes na mesma peça, me permitiu definir os dois grandes vetores em relação aos quais se ordenavam as cartografias das vocalidades em performance nos palcos portenhos no final do século XX: o sobre-código europeu e a decodificação capitalista, sobre os quais voltarei mais adiante. No desejo de delimitar um campo que permitisse abordar a questão das vocalidades na performance teatral contemporânea

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em toda sua complexidade, potência e sutileza o trabalho foi desenvolvido a partir de três grandes eixos conceituais: a Produção, a Reprodução e a Representação de voz e palavra. O foco dessas cartografias se dá na economia vocal-verbalauditiva, uma economia de experiência, que escapa aos mecanismos de controle do visual. Proponho abordar os textos teatrais como mapas instáveis e sempre efêmeros da experiência da vocalidade em performance, considerando a “performatividade” da produção, reprodução e representação de voz e palavra em suas dimensões estéticas e políticas. Estas cartografias não supõem descrições ou medições. Tampouco se vinculam a estruturas que, com a finalidade de prevenir a fuga, sempre constituem sistemas fechados. Uma cartografia não leva em conta elementos ou agregados, sujeitos, relações ou estruturas; mas se ocupa de detectar lineamentos, sentidos atravessando grupos e indivíduos. Uma cartografia inclui o desejo, é imediata, prática e política. Uma cartografia não persegue um problema ou procura uma aplicação: as linhas que dela surgem podem ser linhas de vida, de uma obra artística, de uma sociedade, dependendo do sistema referencial do qual se parta. Como a esquizoanálise, para Deleuze e Guattari, una cartografia é “a arte do novo” (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. 204). Um território de vocalidade não é somente um lugar onde uma mesma linguagem é compartilhada. É um lugar onde existem códigos comuns, onde elementos individuais ou coletivos de singularização são compartilhados; um lugar onde podemos falar de um eros de grupo (GUATTARI, 1996, p. 63-64). Pensar em indivíduos como discursos remete a um controle ético; pensálos como fluxos de desejo os remete a uma ética do ato. Essa instância performativa de singularização transforma um paradigma ético em estético. O corpo em performance, entendido como lugar, dá conta desse paradigma estético, dessa ética do ato. Aos lugares, contrapõem-se os não-lugares que, de acordo com Marc Augè, são espaços onde não é possível reconhecer singularidades, relações ou histórias comuns, espaços novos no planeta, atravessados por indivíduos solitários e silenciosos. Nos não-lugares, os códigos e as regras remetem ao seu uso imedia-

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to. Em sua antropologia da supermodernidade, Augè declara que lugares e não-lugares são definidos de acordo com suas contingências sociais e históricas. Um lugar pode devir um não-lugar, e vice-versa; assim como um aeroporto não é o mesmo para um passageiro que para alguém que trabalha nele. Os não-lugares são a expressão de três fenômenos: “[…] a aceleração da historia, o encolhimento do planeta e a individualização dos destinos” (AUGÈ, 1998, p. 87-88 e 36). Os não-lugares apresentam modos peculiares de produção de voz e palavra. Em um aeroporto, uma voz desincorporada e maquínica reproduz o estilo das vozes produzidas por computadores, dando instruções ou informações aos passageiros, deixa pouco espaço para a ambiguidade. Nos supermercados não há oportunidade de conversar sobre a qualidade de algum produto ou para negociar seu preço, como acontece numa feira, por exemplo. A informação indispensável tomou o lugar das dimensões existenciais da voz e da palavra (GUATTARI, 1993, p. 113114). Os não-lugares de vocalidade são territórios de informação ou instrução, uniformizadas sob a forma de um continuum ou um vacuum vocal. Os lugares de vocalidade são territórios de negociação, conversação e ambiguidade, que propiciam platôs de intensidades vocais. Para Deleuze e Guattari, se atinge um platô quando as circunstâncias se combinam para levar uma atividade a uma intensidade culminante que não é imediatamente dissipada após um clímax. A intensidade é sustentada o suficiente como para deixar uma imagem perdurável de seu dinamismo, que pode ser reativada ou injetada em outras atividades (DELEUZE e GUATTARI, 1996, p. xiv). As cartografias das vocalidades no teatro, realizadas em Buenos Aires nos dois últimos anos do século XX, podem servir para ilustrar alguns pontos importantes para compreender o trabalho realizado, metodológica e conceitualmente. O “sobre-código europeu” e a recente expansão da “de-codificação capitalista” estabelecem vetores referenciais que definem um mapa cultural mutante das vocalidades no início do século XXI, nutrido e “performado” em seu território urbano e em seus palcos teatrais. Esses vetores estabelecem direções, sentidos, que constituem lu-

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gares e não-lugares de vocalidades nos palcos e para além deles. Estas cartografias das vocalidades na performance teatral pretendem revelar lugares peculiares de vocalidades que nos palcos de Buenos Aires fazem, ou não, rizoma com a cidade. A um estilo original, definido e coeso, vinculado à tragédia, à poesia e, mais particularmente, ao repertório de Federico Garcia Lorca, foram se sobrepondo através do tempo camadas códigos. Rastros de vocalidades surgidas de outros repertórios, estilos de épocas diversas foram estabelecendo estratos vocais que sedimentaram ao longo da segunda metade do século XX o estilo, saturado e estabilizado, que identifico como “sobre código europeu”, que se impõe como padrão do bom uso da palavra no teatro em Buenos Aires. Os meios de comunicação de massas operam uma decodificação nas vocalidades, um processo de desincorporação, caracterizando em termos de estilo uma vocalidade lânguida, que se reproduz como que por inércia. Estes estilos vocais que identifico como “decodificação capitalista” se impõem hoje como paradigma, como resultado imediato do papel central dos meios na cultura contemporânea, ao tempo que constituem um problema específico no teatro. A frequente presença nos palcos de dispositivos tecnológicos, como é o caso dos microfones, acentua a reproduzir de vocalidades em cena de acordo com esse padrão vocal dominante. No teatro do final do século XX, em Buenos Aires, o processo de sobreposição e sedimentação de estratos, que resulta no mencionado sobre-código europeu, e o processo de erosão estilística, que resulta no estilo vocal em performance que chamei de decodificação capitalista, que surge da imposição dos estilos de fala gerados pela mídia e os meios de comunicação de massas em geral, dominantemente coloquiais e altamente restritos nos seus parâmetros de intensidade, timbre, frequência e articulação, serviram de coordenadas para as minhas cartografias da voz e da palavra nos palcos portenhos. Em relação a esses eixos dominantes fui localizando todos os estilos que encontrei vigentes nos palcos da última metade da década de 1990, em Buenos Aires. Certamente, um estudo similar em outro lugar requereria

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da definição de outras dimensões como referenciais, distintas daquelas estilísticas dominantes em Buenos Aires. Ressaltando a eficácia política das pragmáticas, Deleuze e Guattari definem a teoria como uma “caixa de ferramentas” onde “o que interessa são as circunstâncias” (DELEUZE e GUATTARI, 1988, p. xiii-xv). Para além dos “universalismos”, essa postura pragmática a respeito da teoria tem sido produtiva para superar as situações surgidas destas cartografias; no entanto, no desejo de superar o binarismo teoria/prática, prefiro falar de prática conceitual. De fato, qualquer pesquisa demanda a produção de dados que possam fundamentar argumentações e futuras ações que ofereçam alternativas para algumas contingências que considero chave com relação à produção de voz e palavra em performance, expandindo suas ressonâncias éticas e estéticas, e definindo seus relativos desenhos conceituais. Assim, entendo que, longe de sugerir que em pesquisa tudo é válido, Deleuze e Guattari sugerem que não há por que se ater a modelos, recorrendo aos instrumentos e procedimentos que nos permitam gerar os dados desejados. Focalizando na performatividade da produção de voz e palavra no teatro contemporâneo, as cartografias da vocalidade dos atores na performance teatral se nutrem do desejo de iluminar um lugar que foi se tornando ignorado, como resultado das estratégias totalizantes da visibilidade. Diversos espetáculos, assim como os dados surgidos de um vasto material de imprensa, artigos críticos e publicações especializadas, das entrevistas realizadas a 55 profissionais vinculados à produção teatral e à formação de atores e do questionário aplicado a um total de 200 estudantes de teatro, constituíram as fontes desta pesquisa. As entrevistas foram realizadas em Paris, Londres e Manchester no período de abril de 1996 a setembro de 1997, Rio de Janeiro, nos meses de novembro e dezembro de 1997, e Buenos Aires, entre janeiro de 1998 e julho de 1999. Delas surgiu a amostra de 19 entrevistas que apoiaram diretamente a tese de Ph.D. que resultou dessa pesquisa, que mais tarde foi publicada em Buenos Aires sob o título Cartografias de la Voz en el Teatro Contemporaneo: el caso de Buenos Aires a fines del siglo XX. Os espetáculos e

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o material gráfico considerados nessa pesquisa foram apresentados e publicados, respectivamente, nos mesmos períodos e cidades em que se realizaram as entrevistas. Alguns dados surgidos das entrevistas e de fontes bibliográficas foram organizados e cruzados em três Quadros de Dupla Entrada que permitiram caracterizar os papéis profissionais de diretores, autores e preparadores vocais na Europa e na Argentina. O questionário aplicado foi desenhado para abordar a perspectiva dos estudantes de teatro com relação à voz e à palavra nos processos de formação e na performance teatral. Duzentos questionários foram aplicados em duas das escolas de teatro mais importantes de Buenos Aires: a então Escuela Nacional de Arte Dramático (ENAD) e a Escuela Teatral de Buenos Aires (ETBA). Hoje integrada ao Instituto Universitario de Arte (IUNA), a então chamada Escuela Nacional de Arte Dramático (ENAD) é una instituição pública, que oferece cursos de quatro anos de duração em Atuação, Dramaturgia e Pedagogia Teatral, em regime de jornada integral. A Escuela Teatral de Buenos Aires (ETBA), fundada e dirigida desde sua inauguração pelo diretor Raúl Serrano, é uma das escolas privadas de teatro mais tradicionais de Buenos Aires, e oferece cursos de atuação de três anos de duração, em regime de jornada parcial (turno noturno). Cada uma dessas escolas tem uma matrícula de aproximadamente 200 alunos e oferecem diplomas oficiais. Os dados surgidos da amostra de 139 questionários que foram efetivamente respondidos por estudantes de teatro em 1999 somaram-se também às fontes desse estudo. Um Quadro de Variáveis ordenou os cruzamentos que geraram 12 Tabelas que, por sua vez, informaram 22 Quadros de Dupla Entrada. Longe de contrariar o perfil cartográfico da pesquisa em questão, os dados assim produzidos (quantitativa e qualitativamente) e, posteriormente, organizados permitiram explicitar as principais tendências na preparação vocal nas instituições consideradas e na produção teatral dos últimos anos do século XX na Europa e em Buenos Aires. A definição das vocalidades dos atores como territórios a serem cartografados, nos coloca perante uma situação onde não há distância entre voz e corpo, ou entre palavra e ação, situação

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esta que desencoraja todo tipo de binarismo conceitual, suprimindo inclusive a distância sujeito/objeto. Desde o início do processo de ensaio, os corpos dos atores afetam e são afetados ao serem expostos a um texto e a toda a rede de relações estabelecidas através das mecânicas da produção teatral. Os corpos dos atores constituem um plano de consistência, um palco para esses múltiplos afetos, fonte de devir em performance. Desse ponto de vista, podemos afirmar que há muitas cenas, virtuais e concretas, em cada cena apresentada. Porém, a cena ocorre, em primeiro lugar, no corpo de quem atua. No marco de nosso trabalho, o corpo em performance é considerado o primeiro lugar de produção de significado no teatro. O trabalho efêmero dos atores em cena é, a cada momento, resultado de um processo contínuo, no qual seus corpos são afetados pela intervenção de mestres e diretores, em seu papel de mediadores na formação e na produção teatral, respectivamente. Os corpos dos atores operam resistências a essas mediações, que também afetam as relações entre os distintos papéis profissionais que colaboram na produção teatral. O texto em si mesmo, que somente é completamente realizado em performance, também opera resistências e serve como terreno para as intervenções de atores, diretores e mestres. A relevância desses papéis profissionais e dos textos teatrais se dá em uma relação estrita com a autonomia de cada ator e seus resultados em cena. A produção teatral é, basicamente, uma prática colaborativa, que envolve a interação de diversos papéis profissionais. Esses papéis não permanecem necessariamente iguais, em termos de poder, através do processo de produção, manifestando também mudanças em diversos momentos sociais e históricos. Localizar esses papéis profissionais, cruciais para a produção teatral no atual contexto cultural, oferece informação valiosa que nos permite entender o tratamento dado à vocalidade na cena contemporânea, servindo também como base para discriminar as tendências que são peculiares a cada caso abordado. Cartografar as vocalidades em performance implica definir, em princípio, os sujeitos de agenciamento, cujo trânsito pelo plano de consistência da cena contemporânea, em um momento e

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um lugar determinados, define vetores, direções, intensidades. Assim, da relação estabelecida entre os papéis fundamentais que colaboram na prática teatral (diretores, mestres e preparadores, autores e atores) surgem as tendências dominantes na produção teatral ocidental contemporânea. Os papéis do diretor e do preparador vocal surgem da prática teatral do século XX. Nessa circunstância específica, os diretores frequentemente desenvolvem funções de autoria, enquanto que o papel do preparador vocal fica, na maioria das vezes, restrito a um treinamento situado fora do âmbito de qualquer processo criativo. De um modo geral, os atores desenvolvem seu trabalho em diversos âmbitos e, em consequência, o perfil de sua produção muda de acordo com as demandas de cada circuito. As diversas contingências em que desenvolvem sua experiência profissional se materializam em marcas inequívocas nos corpos dos atores. Porém, os mecanismos de produtividade ou improdutividade com relação à vocalidade na performance teatral contemporânea excedem os limites de um circuito, uma instituição em particular ou um movimento determinado. Para entender o lugar da vocalidade na prática teatral contemporânea ocidental, examinei publicações relevantes sobre o trabalho de alguns dos diretores e mestres mais influentes no final do século XX. Delas, surgem algumas informações gerais que refletem o papel idiossincrático de diretores e preparadores. Knowles indica que a forma em que são hierarquizados os papéis profissionais na prática teatral contemporânea responde a uma lógica de gênero. Do seu ponto de vista, a preparação vocal tendeu a ser definida no século XX como uma posição secundária e dependente da posição de liderança, independente e criativa, do diretor (KNOWLES in BULMAN, 2005, p. 92-112). Os atores reformulam e redefinem seus estilos em interação com outros atores e com suas audiências. O problema se coloca quando essa interação se debilita e, consequentemente, a dinâmica de negociação que estabelece a cena se fragiliza, fixando estilos. Em uma situação onde operam diversas camadas de códigos simultaneamente nas vocalidades dos atores, é difícil chegar a ouvir a potência vital da voz ou o significado sedimentado

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na forma dos textos teatrais. Não existem estilos inquestionáveis, existem estilos eficazes. Se a performance perde sua eficácia, o problema não estará nos meios de comunicação massivos, no público, no mercado ou na indústria cultural; o problema se localizará, sem dúvida, entre os atores e o seu público. Novos estilos vocais emergem da interação, da exploração dos estilos, a ressonância, o timbre e a linguagem, que cada sociedade produz, não da reprodução de modelos vocais prefixados ou cristalizados no tempo. Hoje, parece mais urgente desvelar por que os principais fluxos de vocalidades em cena quase não são percebidos inclusive pelos profissionais vinculados ao teatro. Assim, a problemática da voz e da palavra se expande para a dimensão acústica da cena como um todo.

A dimensão acústica e as origens do teatro O termo grego théatron ( ) refere-se ao lugar físico do espectador e, comumente, é traduzido como “lugar onde se vai para ver”. Porém, existem algumas evidências que podem levar a inferir que tal tradução possa estar limitando a noção de teatro no Ocidente. Com capacidade para abrigar um público de até 40 mil espectadores, os anfiteatros gregos encontram um similar, enquanto a suas proporções, na cultura contemporânea nos estádios de futebol. Apesar de suas dimensões e de tratar-se de anfiteatros a céu aberto, até hoje é possível constatar que de qualquer lugar das arquibancadas é possível escutar com fidelidade qualquer som produzido no palco, até os de intensidades mais baixas. Mesmo com uma estrutura arquitetônica capaz de garantir uma resposta acústica perfeita, jarros com água eram distribuídos em diversos lugares das arquibancadas para controlar ainda, mais e melhor, a definição sonora na recepção do público. Porém, não acontece o mesmo com a qualidade da visão, que é alterada proporcionalmente à distância dos lugares nas arquibancadas com relação ao palco. Em sua obra de juventude, A Origem da Tragédia na Música, Friedrich Nietzsche argumenta a respeito do teatro como “lugar de visões”. Nietzsche situa a origem de tais visões na música. No

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entanto, tendemos a fazer um vínculo direto entre a “visão” e o olho, desconsiderando que a imagem não é um fenômeno exclusivamente visual, mas também acústico. Longe de entendê-lo como “lugar onde se vai para ver”, creio que Nietzsche se refere ao teatro como “lugar de visões transfiguradoras”, cuja origem se dá na música. De acordo com esse argumento, são essas “visões”, em princípio, acústicas, as que provocam comoção e compaixão entre público e atores. Se considerarmos que esse movimento e essa paixão coletiva é o objetivo último e múltiplo do teatro, poderemos melhor compreender as implicações estéticas, simbólicas e políticas de restaurar o espaço da Dimensão Acústica da cena, sobre o qual tem avançado a Dimensão Visual. As evidências fornecidas pelos remanescentes arquitetônicos dos teatros gregos e pelo pensamento de Nietzsche nos permitem argumentar no sentido de restaurar a intensidade acústica do teatro. Para tal fim, nosso ponto de partida nos processos de encenação é sempre tudo aquilo que soa em cena. Isto não significa que o visual não seja também intensamente trabalhado, mas que começar pelo que “soa” garante o espaço requeridos pelo conjunto dos fenômenos acústicos em performance. A performance teatral se situa na confluência das dimensões visual e acústica da cena, atravessadas de forma mais ou menos variável por diversos tipos de estímulos, sinestésicos, olfativos ou tácteis, que contribuem para acentuar ou completar certos processos de significação. A esfera da voz e da palavra, do entorno acústico e da música constituem a Dimensão Acústica da Cena, que se define numa superfície de 360° composta em diversos planos fixos e móveis. Da articulação da ampla rede de relações estabelecidas pelos comportamentos acústicos nessas três grandes esferas surge o desenho acústico de cada peça, cuja definição sempre se dá em relação à percepção humana. Pela sua capacidade de produzir voz, palavra e movimento, o corpo em performance torna-se o “palco” primeiro; lugar de intersecção entre as duas grandes dimensões da cena, a visual e a acústica (Davini, 2006, p. 309). Consideramos a voz como uma produção do corpo capaz de gerar sentidos complexos, controláveis em cena. Nessa perspec-

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tiva, a voz é equiparável com o que entendemos por movimento. Porém, por permitir a articulação da palavra, a voz alcança maior definição de sentidos do que o movimento. Já a vocalidade em performance é compreendida como resultado da produção de voz e palavra por parte de um grupo dado, em um tempo e lugar determinados, ou seja, em um contexto coletivo e em sua contingência social e histórica. Nesse contexto, a “palavra” é entendida como “palavra proferida”, e a “palavra escrita” como “letra”, ou seja, a representação gráfica/visual da palavra, que é, em primeira instância, um fenômeno acústico de sentidos. Tais definições resultam em uma abordagem que aproxima a cena da pragmática, e a distância da literatura, diferenciando-se assim das posturas conceituais predominantes no universo dos estudos teatrais. Assim, o campo das vocalidades surge da performatividade das línguas, na produção de voz e palavra por parte de um grupo humano dado em um tempo e lugar determinados (Davini, 2007, p. 9). No âmbito da Dimensão Acústica da Cena, a música compreende tudo o que se constitui em diversas formas de discurso musical em performance, organizado de modos mais ou menos tradicionais, através de parâmetros de frequência, intensidade, timbre e volume mais ou menos definidos, e considerando inclusive a ausência de som ou ruído. Todos aqueles fenômenos acústicos em uma performance teatral que, afetando diretamente a produção de sentido da cena, não pertencem à esfera da voz e da palavra nem se constituem em discurso musical, mesmo respondendo aos parâmetros do som ou do ruído, constituem a esfera do entorno acústico. Paisagens sonoras mais ou menos figurativas, diversos tipos de sons referencias, tais como a campainha de um telefone ou os sinos de uma igreja, ou sequências incidentais que vêm acentuar um ponto específico da cena, tais como um som de pratos percutidos, ou alguma intervenção sonora que remeta a certo estilo, clima, época ou obra, são intervenções acústicas no entorno acústico da cena. Da definição específica dessas três esferas surge o desenho acústico peculiar de cada performance.

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Para abordar a Dimensão Acústica da cena é preciso considerar as fontes sonoras disponíveis em cada caso. Instrumentos musicais acústicos ou eletrônicos, meios de reprodução de áudio ou dispositivos digitais oferecem diversos modos de produção de som; da mesma forma que os atores podem ser considerados também em sua função de fontes sonoras móveis ou fixas, de acordo com a resolução de cada cena. Em sua dissertação de mestrado “A Produção de Sentido a partir da Dimensão Acústica da Cena”, César Lignelli aborda amplamente a questão, a partir de duas experiências de montagem cênica realizadas pelo Grupo V&C: O Naufrágio4 e Santa Croce5. Nesse trabalho, Lignelli contribui também com uma análise dos Problemas de Aristóteles que elucida várias questões cruciais para compreender o papel do som, da letra e da palavra no teatro ocidental. De um modo geral, os deslocamentos acústicos em performance se concretizam de três modos. O “mecânico”, que envolve o deslocamento da fonte sonora no espaço cênico, por exemplo, no deslocamento dos atores enquanto falam ou cantam em cena. O deslocamento “técnico” do som se dá pelo tipo de emissão vocal ou definição tímbrica das vozes ou instrumentos, modificados através de diversas técnicas que, trabalhando sobre a frequência, intensidade, articulação, timbre, vibrato etc. do som produzido, produzem diversos efeitos de espaço e tempo na percepção do público. Por último, os deslocamentos “virtuais” são produzidos através de meios digitais quando o som (que surge da mesa de som, ou das vozes transferidas à mesa de som através de microfones), descreve trajetórias no espaço cênico de acordo com software especificamente desenhado para esse fim. Alguns destes deslocamentos acústicos ou “espacializações” operam-se em tempo deferido (pré-gravados) e outros em tempo real, ou seja, pela operação do equipamento no momento da cena. Considerando inclusive os espaços posteriores e superiores em relação ao público, a abordagem da Dimensão Acústica da Cena atenua a ideia de um centro hegemônico de atenção, fre4. Instalação cênica a partir do texto de teatro estático de Fernando Pessoa “O Marinheiro”, em versão integral e trechos de “A Tempestade”, de William Shakespeare. 5. Peça surgida da modulação de sete contos de Luigi Pirandello.

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quente hoje no teatro, e permite considerar a dinâmica da voz e a palavra em performance para além da letra e do olho. A noção clássica do espaço físico, dominante na preparação vocal para atores, é assim superada; sendo as definições específicas do som, da voz e da palavra em performance as instâncias que definem o espaço de performance na percepção da audiência, ao invés de considerar o espaço físico como principal determinante do tipo de emissão vocal possível para aquela situação de performance (Davini, 2000, p. 262-3). A consideração do acústico como ponto de partida para a produção de sentido em performance abrange um espectro de questões que vão da materialidade do som até a sua percepção por parte da audiência. Esta abordagem do som em performance pretende explicitar uma região da cena frequentemente preterida no teatro contemporâneo, “modelando” a personagem a partir da “topologia” do som, da voz e da palavra em cena, e, em seguida, de sua definição visual, de forma que o visual não “atropele” sua existência acústica. Nesse processo, o texto teatral se constitui no mapa instável da cena, que contém as pistas para a encenação. Restaurar em performance a experiência de tempo e espaço indicada no texto requer procedimentos que partam da consideração da Dimensão Acústica da Cena, o que por sua vez define o tratamento visual de cada peça.

O corpo ressoante e as novas vocalidades em performance A continuidade e a relativa distância dos mercados que promove o ambiente acadêmico tem pautado o trabalho do Grupo de Pesquisa Vocalidade & Cena6 – V&C desde o ano 2000. Para além da lógica binária “objeto/sujeito”, nosso interesse é cartografar e constituir territórios de vocalidade no campo das Artes Cênicas. A produção artística e conceitual do Grupo V&C se concentra na

6. Endereço para consulta sobre o Grupo V&C na Plataforma Lattes do CNPq http://dgp.cnpq.br/buscaoperacional/detalhepesq.jsp?pesq=0441547558844838 www.vocalidadecena.blogspot.com

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configuração de sentidos, no processo que vai da abordagem do texto até sua concretização na voz e na palavra em performance. As pesquisas articuladas pelo Grupo se plasmam no Programa O Corpo Ressoante, que sustenta nossa formulação de uma proposta conceitual e técnica para a formação de atores. No início desse processo colocamos questões para as quais já ensaiamos algumas respostas possíveis: Desde sua criação, em 1989, estudantes e professores do Departamento de Artes Cênicas da UNB, declaram, de forma unânime, que a preparação vocal é uma instância primordial e iniludível na formação de atores. Porém, o espaço destinado aos assuntos vinculados à voz nos planos de estudo dos cursos de formação em Artes Cênicas é, até então, muito restrito. A falta de profissionais atuando nesse campo específico assim como o escasso material bibliográfico disponível sobre o tema eram as razões apresentadas quando se questionava essa parca presença da preparação vocal na formação dos atores. Quais seriam os fatores determinantes de semelhante falta de profissionais, de produção e de visibilidade na formação dos atores numa área considerada tão significativa? (DAVINI, 2007, p. 13).

Hoje, podemos afirmar que aquilo que, no campo do teatro contemporâneo, é identificado com frequência como a “crise da palavra”, nada mais é do que a falta de propostas objetivas e concretas de trabalho, que abordem o corpo em performance como produtor não somente de movimento, mas de “voz e palavra em movimento”. Assim, envolve uma ideia ampliada de gestualidade que considera as produções de sentido acústicas e visuais no corpo dos atores em cena. Diferentemente da técnica, um “procedimento” é uma instância processual que consiste na aplicação das técnicas sobre um material dado, tendo sempre em vista o resultado desejado. O procedimento situa-se então entre a técnica e a enunciação estética, ou entre a técnica e a verificação de uma hipótese. A

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técnica disponibiliza os meios para interferir em um material. Aqueles atores e cantores que disponham de um maior número de meios eficientes e os apliquem adequadamente terão, em princípio, mais possibilidades de produzir um discurso estético em performance, capaz de distanciar-se da reprodução de estilos e, no caso da voz e da palavra, abrindo possibilidades de produzir novas vocalidades em cena. Se a técnica aponta à produção de novas vocalidades em performance, é indispensável que mantenha independência em relação ao discurso estético ao qual se aplica. Pelo contrário, proporcionalmente à proximidade que se estabeleça entre técnica e estética, os estilos vocais se tornarão mais reprodutivos e miméticos. Já os procedimentos implementados em processos de ensaio apresentam um vínculo claro com o discurso estético da cena. A definição e diferenciação clara das dimensões técnica, metodológica e estética, possibilita a formulação de um treinamento capaz de multiplicar as possibilidades de processamento dos materiais. No caso de atores e cantores, não há distância entre material e discurso, entre atores e pessoas, constituindo-se todas essas instâncias no próprio corpo em performance. Na segunda metade do século XX, o teatro de pesquisa e laboratório reage aos estilos consolidados em cena e as convenções resultantes dos mesmos. Longe de indicar saídas produtivas em termos estéticos e estilísticos, tal atitude se define como uma “reação exploratória” onde estética e técnica se mimetizam. A base técnica na formação de atores deve prepará-los para fazer diversas opções estéticas ao longo de suas carreiras. Servindo exclusivamente a uma proposta estética, as tendências de laboratório não se constituem em propostas produtivas para a formação de atores na contemporaneidade. As notícias remanescentes de um projeto artístico que aponte à formação de atores capazes de se desempenhar em diversos estilos estéticos surgem da trajetória de Michel Saint-Dennis. A proposta de Saint-Dennis consistia em uma formação intensiva nas mais diversas modalidades. Em suas escolas ensinava-se a esgrima e distintas modalidades de luta conjuntamente com técnicas corporais e de dança, enquanto que a voz e palavra eram abordadas a partir de técnicas vo-

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cais, de canto e de recitado. Assim, podemos afirmar que SaintDennis pretendia atingir seu ideal de all round actors a partir da adição de modalidades e estilos no processo formativo. Porém, conceitualmente falando, Deleuze e Guattari notam que a multiplicidade não resulta da adição de unidades, mas da eliminação no pensamento do conceito de unidade. Assim, continuam, pode-se expressar a multiplicidade através de fórmula (n-1). Consequentemente, a procura de Saint-Dennis não trilhou um caminho adequado. Apontando a flexibilizar o corpo e propiciar a coordenação e controle na produção de voz, palavra e movimento, o Princípio Dinâmico dos Três Apoios configura um coeficiente comum que poderia conduzir à formação de atores de perfil estético múltiplo. Capazes de optar por um caminho estético, tais atores seriam também capazes de produzir novas vocalidades em performance. É sobre essa hipótese que se estabelece o Projeto “O Treinamento de Atores: a procura de um lugar de autonomia entre a técnica e a estética no teatro contemporâneo” através do qual vem desenvolvendo Sulian Vieira sua pesquisa de doutorado na Universidade de Brasília. A peculiaridade das propostas apresentadas neste Programa O Corpo Ressoante consiste em retirar da preparação para a cena tudo aquilo que implique reproduzir estilos consolidados em performance, no desejo de configurar novos modos de atuação. As estratégias apresentadas possibilitam a abordagem tanto de trabalhos inéditos, quanto de peças do repertório teatral dos mais diversos períodos, gêneros e estilos. Dessa maneira, propomos uma via de superação para o impasse gerado pelos modelos vigentes no campo da produção teatral contemporânea, desenvolvidos no período pré-industrial no século XX. No desejo de configurar estilos de atuação que não contrariem a sutileza e a precisão requeridas para que a voz e a palavra retomem sua potência afetiva, tantas vezes plasmada na história do teatro ocidental. O grupo aborda a atuação como um tornar presente/atualizar/produzir, distanciando-se da perspectiva do atuar como representar/interpretar/reproduzir. Esta abordagem corresponde à ideia das personagens como “lugares de fala”, de forma que a

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existência delas se dá não somente pelo que dizem, senão por “como” dizem o que dizem. Ao definir as personagens como “lugares de fala” nos afastamos das abordagens introspectivas e psicologistas, para potencializar suas possibilidades dinâmicas nutrindo o lugar da voz e da palavra em cena. Tal abordagem pede por um trabalho conceitual prévio que permita uma reconsideração das ideias dominantes de sujeito, de tempo e de espaço e, portanto, de personagem, no teatro de um modo geral. Com o objetivo de produzir e organizar dados que contribuam com nossa argumentação a respeito da personagem como “lugares de fala”, Fernando Martins está desenvolvendo, como parte do seu projeto de pesquisa de Mestrado “Teatro, Técnica e Desejo – Roteiros Conceituais para a configuração da cena teatral” um “roteiro conceitual” a respeito das noções de personagem nas obras de Constantin Stanislavski e Jerzy Grotowski. Se a análise de discurso permite explicitar o arcabouço conceitual, por vezes implícito, em um discurso dado, os roteiros conceituais são procedimentos de pesquisa que buscam explicitar as definições com relação a um conceito dado através da obra de diversos autores ou historicamente, propiciando assim a produção, organização e cruzamento de dados de pesquisa. O roteiro conceitual que vem sendo desenvolvido por Martins possibilita um contato intenso com os conceitos de corpo, voz, palavra e texto. A rede conceitual que se estabelece a partir de um percurso dessas características habilita um território favorável de contato com as dimensões técnicas e estéticas da atuação e, em consequência, com as propostas de treinamento de atores difundidas através das publicações desses autores traduzidas ao português, cujos discursos ecoam hoje, de alguma forma, em diversas propostas de encenação e preparação de atores. Também com referência ao conceito de personagens como “lugares de fala”, Ana Terra Leme da Silva desenvolveu sua pesquisa de mestrado através do Projeto “Lugares de Fala e Escuta no Teatro de William Shakespeare: Ressonâncias de um Percurso Feminino”, cujo objetivo foi revelar como as pistas para a performance da personagem estão na forma do texto teatral. Esse

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projeto foi desenvolvido a partir da consideração de três personagens femininas na obra de William Shakespeare: Lavigna, de Titus Adronicus; Rosalinda, de Como Gostais; e Marina, de Péricles, Príncipe de Tiro. O sistema de representação da palavra pela escrita e a proliferação dos meios de reprodução audiovisual são considerados como instâncias que informam a percepção e a subjetividade contemporâneas e, portanto, a produção de vocalidade em suas diversas manifestações. Neste contexto, o Grupo V&C vem desenvolvendo os dois projetos de pesquisa em nível de Iniciação Científica a seguir. Dalcroze: Evidências de uma Tradição Interrompida objetiva o levantamento de dados a respeito da obra de Jacques Dalcroze, com a finalidade de estabelecer algumas hipóteses a respeito da influência do seu método na formação de atores, cantores e músicos em geral, e das causas que interromperam essas propostas, estabelecendo assim um diálogo com a pesquisa em andamento desenvolvida por Sulian Vieira. Levantando dados sobre o sistema de notação formulado por Dalcroze, este projeto dialoga com o Projeto Códigos Escriturais e Performance, cujo objetivo é levantar dados a respeito da evolução da notação musical e da letra a partir do século XX com a finalidade de estabelecer uma comparação entre ambos os processos que, por sua vez, sirva à argumentação sobre a necessidade de pautar um código de notação mais abrangente do que a letra, código representacional da literatura, capaz de dar conta das dimensões acústica e visual da cena.

Eixos transversais Corpo e subjetividades contemporâneas Aborda o universo conceitual em relação ao “corpo humano” no campo dos estudos da performance, com ênfase na relação humano/não humano, para consideração das correntes de subjetividades e os seus resultados no campo da performance teatral contemporânea.

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Novas vocalidades em performance Considera a incidência do treinamento de atores em relação à estabilização e/ou formulação de estilos de atuação, assim como o papel desses estilos na consolidação e/ou configuração de novos gêneros em performance e a incidência da técnica nesses processos. Detectar novos estilos de atuação na performance contemporânea, com foco na produção de voz e palavra e na apropriação de meios tecnológicos, e estudar os problemas e possibilidades surgidos de sua implementação em cena.

Técnicas, métodos e procedimentos Define recursos metodológicos e procedimentos adequados ao referencial conceitual do Programa para subsidiar as pesquisas realizadas no âmbito do Grupo.

1 - A Letra: representação visual da palavra Apropriação e Flexibilização: A partir de nossa definição da “palavra escrita” como “letra” e da “palavra proferida” como “palavra”, podemos identificar uma série de fenômenos na fala dos atores que se configuram a partir do contato deles com o texto teatral. Como resultado desse contato dos atores com o texto através da leitura, as leis gramaticais da escrita tendem a colonizar a fala, reduzindo suas capacidades afetivas e sua configuração de sentidos em cena. Assim, propomos estratégias que tendam a superar a restrição operada pelos códigos escriturais sobre a palavra, restaurando o seu espaço em performance, e os sentidos configurados em sua geografia e, enquanto evento acústico, dissociando os diversos parâmetros de som na voz e na palavra. Leitura: Procuramos uma intensa aderência à proposta do autor através da leitura, com o objetivo de revelar na voz e na palavra os sentidos sedimentados na forma do texto. A abordagem pragmática do texto permite identificar as “cenas-chave” e, nelas, os “blocos de sentidos” e, por sua vez, neles, as “palavraschave”. Tais referências permitem detectar os “gestos vocais” sugeridos pelo autor e o “mapa de tempo” da peça e de cada perso-

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nagem. Chamo de “cenas-chave” aquelas cenas nas quais, uma personagem determinada se manifesta em toda sua magnitude, ou opera uma transformação decisiva com relação a uma “cenachave” anterior. Para identificar “cenas-chave” é preciso considerar o texto teatral completo, e a personagem como um todo no contexto da peça, contribuindo assim para aproximar o ator da proposta do autor. Os “blocos de sentidos” são aqueles trechos onde se conclui uma ideia. As “palavras-chave” são aquelas cuja recepção por parte do público deve ser garantida. A localização das “palavras-chave” define o desenho dos gestos vocais de cada “cena-chave”. Modulação: Inspirados em procedimentos originados no campo da música modal e tonal, chamamos de modulação ao processo, através do qual, mudamos a dominância de um “modo” de enunciação sobre outro. A modulação do texto não é uma adaptação, mas um mecanismo através do qual, a partir de um texto dado, explicitamos e valorizamos um modo, antes implícito ou em potencial. Este procedimento inicia-se em uma intensa aproximação ao texto do qual se parte, seja este de autor ou originado na tradição oral, para fixá-lo, em última instância, em uma nova organização.

2- A Voz: as altas intensidades vocais e o Princípio Dinâmico dos Três Apoios Atores são fontes sonoras em movimento; assim, passamos a formular uma técnica que, apontando a atingir as altas intensidades vocais, dê conta das demandas da produção de voz, palavra e movimento simultaneamente, uma vez que as técnicas tradicionais não contemplam estas três instâncias. De acordo com o Princípio Dinâmico dos Três Apoios, a produção voz em altas intensidades, em toda a extensão dos registros e com alguma flexibilidade tímbrica, se dá a partir da coordenação dos apoios dos pés sobre o chão, do ar sobre a região pélvica e da voz na região da epiglote. Essa atividade é estimulada quando organizamos o corpo ao longo de seus Eixos Longitudinal e Transversal expandidos. Isso demanda flexibilidade de

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tônus muscular, além de uma técnica respiratória para sustentar as altas intensidades vocais e, simultaneamente, a produção de movimento. O objetivo desta técnica é definir o lugar no nosso corpo onde somos capazes de produzir todos os sons: do mais grave ao mais agudo, do mais ao menos intenso, e a mais ampla gama de vogais. Baseada no Princípio Dinâmico dos Três Apoios, nossa proposta estabelece um diferencial decisivo em relação às técnicas vocais tradicionais, que se restringem a dois desses apoios, e às de movimento já que, ao considerar também a produção de voz, a qualidade dos apoios no chão também se otimiza ao minimizar o atrito.

3- A Palavra: Micro-Atuação e modulação de textos teatrais A personagem como “lugar de fala” se define não só pelo que diz, senão por como diz o que diz em cena. A técnica da MicroAtuação surge da hipótese de que trabalhando intensivamente sobre cenas-chave de qualquer texto teatral é possível resolver a performance da personagem em toda sua extensão. A Micro-Atuação se vincula assim à nossa abordagem pragmática do texto teatral e à noção de personagem como “lugar de fala”. A MicroAtuação aponta a destacar as diversas “camadas” de produção de sentidos no corpo dos atores na hora de performar um texto. Uma vez memorizada e flexibilizada a cena chave, e definida a gestualidade vocal nela, o processo se dá nas seguintes etapas: ■

Ensaio da cena;



Registro em Áudio do texto;



Zoom, que consiste na realização de três registros audiovisuais da cena que apontam a separar a



atividade fonatória da performance;



Crítica, dos registros audiovisuais realizados;



Registro Final.

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4- A Performance: processos de encenação a partir da Dimensão Acústica da Cena Na tradição do teatro ocidental, o espaço físico da cena define a produção acústica em performance. Diferentemente, trabalhamos com a ideia de que é a produção acústica em performance que define o espaço acústico na percepção da audiência. Assim, desenvolvemos e aplicamos recursos mecânicos, técnicos e tecnológicos que funcionam como referenciais da encenação, em suas dimensões acústica e visual. Em diversos planos, fixos e móveis, se estabelecem relações de sentidos entre as esferas da voz e a palavra, do ambiente acústico e da música em performance, definindo o que chamamos a Dimensão Acústica da Cena. Neste momento, desenvolvem-se as propostas que objetivam a aplicação de resultados de pesquisa em contextos institucionais, como é o caso do sistema educacional, presencial e a distância, e em contextos urbanos contemporâneos, como é o caso do projeto de pesquisa de doutorado “O Som, a sala e a cena: uma cartografia de contextos escolares”, que César Lignelli está atualmente desenvolvendo atualmente na Universidade de Brasília. § Certamente, a arte precisa de artistas. Situados no próprio tempo e espaço, os artistas, enquanto enunciadores, desvendam o lugar do novo, do original. Porém, não só de artistas vive a arte. Desenvolvendo uma ampla gama de papéis, os profissionais vinculados, neste caso, às Artes Cênicas, são tão responsáveis pela dinâmica dos processos históricos ao longo dos quais se produzem os discursos estéticos. Nesse contexto, a pesquisa em Artes Cênicas tem hoje o desafio de abrir espaços de reflexão coletiva em áreas que têm sido pouco consideradas ao longo das últimas décadas, como é o caso das vocalidades em performance. É a partir da prática de pesquisa que pode ser restabelecida e estimulada a circulação de conhecimento e saberes e a exposição aos mais diversos dispositivos tecnológicos. Dessa circulação, poderemos promover propostas que restaurem à voz e à palavra, enquanto ato, seu complexo lugar de potência e sutileza.

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A pesquisa em teatro

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A pesquisa nas artes do corpo: método, linguagem e intencionalidade

Milton de Andrade7

As metodologias de pesquisa no campo das artes do corpo trazem frequentemente para o campo da epistemologia questões fundamentais sobre atitudes e procedimentos envoltos na problemática da linguagem e da intencionalidade. A fusão e a sobreposição de campos interpretativos na dialética vital corpo-mundo, que podem parecer óbvias a alguns e que na prática acadêmica parece ser negada por muitos, estão na raiz da problemática entorno das metodologias aplicáveis à pesquisa na dança, nas artes do movimento, e no teatro (pelo menos àquele teatro que tem o corpo como principal projeto semântico). É através desta dialética que a ação do pesquisador se carrega de intenção e sentido, e que são colocadas sobre um mesmo plano

7. Milton de Andrade é docente do Departamento de Artes Cênicas e do Programa de Pós-graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), formado em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), com Mestrado e Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade de Bolonha (Itália). E-mail: [email protected].

a atitude ativa do olhar de quem pesquisa e a prática artística de um corpo sujeito/objeto de conhecimento. Nas artes do corpo, o pesquisador somente tem acesso ao mundo da ação e dos “comportamentos cênicos” através de um espaço que se desdobra a partir de si como realidade material dotada de intencionalidades, já que o corpo humano é abertura original e intencional ao mundo: A intencionalidade do corpo humano, a sua originária abertura ao mundo, o seu ex-por-se, e esperar indicações do mundo para si, é atestado, acima de tudo, pela sua estrutura anatômica. Nós somos eretos não pela mecânica do esqueleto ou pela regulação nervosa do tônus (estas são consequências, não causas), mas porque estamos empenhados no mundo. Quando este empenho se reduz, quando diminui a apreensão ao mundo, o corpo se abandona, cotidianamente no sono e, no final, na morte, quando se torna objeto puro, coisa entre coisas, imobilidade, não gesto, silêncio, não palavra, corpo como o concebe a anatomia da ciência. Não é a alma que se foi, mas é o mundo que não existe mais, ou existe somente como terra que o acolhe e o sela (GALIMBERTI, 1996, p. 65).

O corpo da ciência clássica é “corpo morto”, corpo/coisa em repouso de intencionalidades; um objeto perfeito, idealmente estável, propício ao distanciamento intelectual e à estabilização de campos de análise e à comprovação de hipóteses de presença. É o corpo do teatro anatômico1. “No cadáver a mão revela si mesma, enquanto que no corpo [vivo] revela os objetos que toca, a resistência, a adversidade das coisas.” (GALIMBERTI, 1996, p. 66). É o empenho intencional no mundo que oferece o diferen-

1. Os teatros anatômicos foram anfiteatros construídos nas universidades européias a partir do século XVI para as lições científicas de medicina. Eram constituídos por uma cátedra, onde se instalava o docente, uma mesa central, na qual o cadáver era dissecado, circundada esta por uma platéia em degraus circulares, elípticos ou octogonais com parapeitos, dos quais os estudantes podiam observar os procedimentos e as demonstrações das aulas de anatomia.

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cial anímico do corpo humano, o sentido gestual, o logos profundo e o verbo corporal. Apesar do corpo humano também ser, no campo das artes (em vertentes ideologicamente afins com um abstracionismo extemporâneo), objeto ou “vítima” de negação da organicidade e de aniquilamento ficcional da subjetividade, a intencionalidade parece ser um ponto estável e constante na problematização da pesquisa artística, tanto no que diz respeito aos estudos da linguagem nas práticas compositivas, quanto aos exercícios pedagógicos e historiográficos. Não existe no campo da pesquisa nas artes do corpo “objeto não-intencionado”; e, se não existe “objeto não-intencionado”, não existe “objeto” de estudo vazio de ordem representativa psicofísica, de desígnio e de desejo. Esta é uma primeira plenitude, que deve ser necessariamente aceita pelo pesquisador2. Os atos do pesquisador e do pesquisado se entrelaçam na lógica do desejo. E se a falta está na base do desejo (não posso desejar o que não me falta, se quisermos seguir as pistas de Lacan), tal falta (a ausência do objeto que completa o meu corpo) gera um espaço potencial no qual ocorre a constituição do mundo criativo, simbólico e representacional. O corpo do pesquisador e seus “objetos” de estudo se encontram juntos neste espaço potencial e compartilhado, que Winnicott (2000) chama de espaço transicional. É neste espaço virtual, intersubjetivo, área compartilhada entre o eu-não-eu-Outro que se dá a prática da pesquisa. O desejo faz a história por rupturas (não por aceitação ou comprovação das verdades ou falsidades), é núcleo de resistência, de contradição e estranhamento, e na linguagem do corpo porta o eros, a fecundidade e o rumor da língua (BARTHES, 1988). O desejo corrompe, é também pulsão criadora, formadora e deformadora, leva a atos criativos de uma língua voltada à diferença, à alteridade (outro-ser), à multiplicidade. Como significante incontrolado, que irrompe na ordem do significado estabelecido, torna impossível qualquer adequação a um modelo. E, no ato da pesquisa metódica e da sistematização criteriosa

2. E esta obviamente não é uma particularidade exclusiva à área das artes.

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acadêmica, esta source language – nascida do desejo e da autêntica e originária necessidade de propagar-se – deve se render, ao menos em parte, à exigência unitária e à disposição hierárquica das palavras, à concisão redutiva da forma discursiva, à tentativa de reconduzir o diverso ao idêntico, podendo aí recair-se num estado de dead language, no qual uma simbólica rica e articulada é transformada numa lógica pobre, porém comunicante. Esta parece ser a mais elementar das questões de método na pesquisa em artes: como lidar com o logos acadêmico científico (comunicante), quando se trabalha com uma forma de produção simbólica ambivalente, como a linguagem do corpo (que, por natureza, “corrompe” o próprio discurso). Tal questão nos leva a uma aporia, uma dificuldade em parte insolúvel, que a fenomenologia procura amenizar, ao vincular sujeito psicológico, lógica da linguagem e ontologia (aquilo que dá os atributos essenciais ao “ser”, vivência, no existencialismo de Heidegger, o Dasein – ser num certo lugar). A problemática de método, que tange o onipresente desejo e a intencionalidade do corpo, tem se deslocado de sua origem ontológica (o ser em si), para se traduzir num dilema de linguagem (fora de si), ou se preferirem, de metalinguagem. Como “escrever” e descrever uma linguagem (a do corpo e a do movimento), fazendo jus ao jogo simbólico de intencionalidade e ambivalência presente no cerne dos fenômenos estudados? Como manter a fertilidade da língua originária e não ceder à iconoclastia científica? As respostas vêm sendo dadas pelas inovações que, bem ou mal, as artes trazem ao “discurso científico” na segunda metade do século passado e na virada ao século XXI. Nascem práticas e linguagens de mediação, através de uma espécie de restauro da literatura científica, na qual a imagem e a vida dos símbolos passam a fazer a ponte entre o incognoscível da arte e o discurso da ciência, dando conta das ambivalências dos processos dinâmicos do corpo, do movimento e das artes em geral. Teses e dissertações são elaboradas com critérios e linguagens que, sem perder o necessário rigor de método e a propriedade autoral, mantêm a aderência à essência e à vida do fenômeno estudado.

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E o que significaria tal aderência? Em quais níveis de “sobrevida” do fenômeno o pesquisador caminha? Quais os modos de manter-se numa relação contemporânea de mediação cultural, cientificidade e pertinência à vida? Numa perspectiva fenomenológica, os procedimentos e a linguagem do pesquisador deveriam fazer do documento (seu “objeto de desejo” e de análise) um corpus dinâmico e circunstanciado. O sentido documental é restaurado não como indício de um tempo passado, mas como um fenômeno presencial cujas relações ainda não foram estabelecidas, ou percebidas. E, neste sentido, o pesquisador cria, através da restauração documental, o movimento necessário ao liame (vínculo) com a vida do fenômeno estudado. Ele vive e “presentifica” os movimentos que descreve. Sem esta atualização concreta do sentido, a pesquisa e a linguagem do pesquisador podem se tornar estéreis, burocráticas, catalogadoras e, quando presas nas cronologias epocais, permanecem paradoxalmente sem lugar no seu tempo: não nos faltam exemplos de “histórias universais” das artes, que ao pretenderem traçar a cadeia da verdade cronológica dos fatos, perdem a essência do sentido, que se dá sempre pelo movimento de re-presentificação descritiva do fenômeno. Neste processo de re-presentificação fenomenológica cria-se sempre uma fenda subjetiva (o que pode parecer extremamente provocador para alguns e para outros, angustiante) na qual a realidade histórica dos fatos se mistura com um campo que somente pode ser entendido como ficcional, pois é também terreno de criação imaginária. A forma ficcional sempre permaneceu excluída ou marginalizada do mundo “adulto” da ciência por uma questão em parte ideológica e em parte semântica. Ideológica, pois o discurso da ciência pretende-se asséptico a qualquer intervenção do imaginário. Semântica, pois, numa visão estreita e redutora, se entende ficção como simulação, aquilo que não é verdadeiro ou não corresponde à “realidade”. Porém, sabemos (e temos que admitir) que o ato ficcional é também um ato engenhoso e imaginativo fundamental para que se dê força de verdade e “eloquência

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corporal” (körperliche Beredsamkeit)3 ao método e ao discurso. Nesta direção, a pesquisa em artes, em particular a historiográfica, necessitaria do despojamento discursivo e da assimilação inventiva própria de um manejo original e próximo da técnica literária e audiovisual, com um grau de detalhamento imagético que confira e restitua a tridimensionalidade própria do fenômeno. É esta descrição a posteriori imagética e pormenorizada (este relato de fatos memoráveis) que conduz o ato de se compreender o que se descreve, para assim descobrir o sentido e garantir a validade da extração e da interpretação do pesquisador4. Na pedagogia do movimento os problemas de linguagem e intencionalidade se tornam fatos de interação e assimilação, já que a ação educativa é um fenômeno de interação corporal mediado pela prática da troca e das leituras que são feitas dos corpos em relação de reciprocidade e de conhecimento mútuo. O corpo se carrega de intenções, aprende e apreende, por “empiria circunstanciada”, por imersão no mundo. São os objetos do mundo que indicam ao corpo suas possibilidades. “As possibilidades do meu olhar não me são indicadas pelas leis da ótica, mas pela proximidade ou pela distância das coisas, pela sua beleza ou pela sua repugnância.” (GALIMBERTI, 1996, p. 70). Assim como ter as regras do jogo não garante o saber jogar, conhecer leis anatômicas e fisiológicas, obviamente, não é suficiente para se mover. Há que se ter um campo de experimentação através do qual os objetos do mundo liberam a potência operativa do corpo. Não posso querer entrar no mar somente depois de, em teoria, “aprender” a nadar: a água é o mundo em relação ao qual o meu corpo se sente e se torna potência operativa. Este 3. É curioso lembrar que talvez o primeiro a utilizar tal termo tenha sido o filósofo e dramaturgo alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) no auge do iluminismo alemão, quando se discutia a necessidade de se rever os padrões literários e o papel do gesto corporal no teatro burguês. Sobre este argumento vide nossa pesquisa de doutoramento Affetto e azione espressiva nell’arte dell’attore: studio sul rapporto corpo-anima nelle teorie di J. Jakob Engel, François Delsarte e Rudolf Laban. Dipartimento di Musica e Spettacolo (DAMS), Università degli studi di Bologna, 2002. 4. Surge aí talvez uma curiosa perspectiva metodológica de extração do sentido que seguiria analogicamente a forma de revezamento doc.fiction (documento + ficção), que já há tempos foi apropriada pela área do documentário audiovisual e da própria literatura documental.

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é um princípio óbvio e cotidiano, que nem sempre é respeitado na pesquisa acadêmica. O ato interpretativo segue um princípio similar de operatividade intencional no mundo do sentir, do agir e do conhecer: “No plano do conhecer, a primeira característica do objeto é a de aparecer. O homem não cria o real. Ele o recebe como uma presença. Sua percepção se abre ao mundo. Percepção finita. Toda visão é um ponto de vista.” (JAPIASSU, 2008, p. 9). E todo ponto de vista é a vista de um ponto: “Ler significa reler e compreender, interpretar. Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam.” (BOFF, 1998, p. 3). Querer ver somente segundo as leis da ótica, querer nadar sem que seja banhado o corpo, trabalhar sem que sejam moldadas as mãos, interpretar sem deixar pistas do caminhar e entender o homem não por aquilo que o constitui homem são vícios comuns na prática acadêmica: especulações do ego cogito sem um fundo de operatividade motivada. Deve-se, portanto, admitir a empiria primária como base do conhecimento corporal e, portanto, ponto de partida ou de transição a qualquer aprendizado gerado por uma pesquisa ou busca de conhecimento sistemático sobre o corpo. Este é um argumento que tange diretamente a questão e o dilema do dualismo – que se eterniza não somente no campo da metodologia da pesquisa científica, mas em quase todos os movimentos da história da mentalidade da cultura ocidental – o dualismo entre “teoria” e “prática”, “corpo” e “mente” (binômios de antinomia que, em última consequência, se equivalem). No modelo científico cartesiano, que, por mais que seja debatido e criticado, continua a prevalecer na cultura acadêmica ocidental, toda produção de sentido não é mais buscada na relação do corpo com o mundo. O corpo e o mundo é que recebem o seu sentido das cogitações do ego. “Nascida do homem no mundo, a ciência é assim levada, com Descartes, a esquecer a própria origem, e, por efeito de seu embasamento metodológico, a colocarse como aquele equivalente geral capaz de fixar o sentido exato daqueles objetos que eram para ela o corpo e o mundo.” (GALIMBERTI, 1996, p. 40). Substitui-se a ambivalência do símbolo

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pela equivalência do signo, separa-se o sujeito cognoscitivo e o mundo a ser conhecido, o conhecimento é visto como representação de um sujeito-sem-mundo, e o corpo passa a ser o “servo mudo”, uma plataforma de aplicação, sobre a qual se procuram as leis “genuínas” deste objeto silencioso da ciência. O texto Os intelectuais e o poder – publicado na Microfísica do Poder como diálogo de Foucault e Deleuze –, apesar de ser datado e percorrido por questões ideológicas de um tempo de revisão da dialética marxista, continua sendo talvez um dos instrumentos mais eficazes na elucidação de tal relação (teoria-prática). O que Deleuze propunha, nos idos anos 70, é que, na crítica à ciência como equivalente geral, não seria justo considerar a prática como uma aplicação de uma teoria totalizadora (assim como não é justo entender o corpo como instrumento comandado por uma mente soberana). Segundo Deleuze, seria mais adequado conceber-se a prática como um conjunto de revezamentos de uma teoria a outra; da mesma forma que a teoria seria desenvolvida através de alternâncias entre práticas. Tais processos dialéticos se dariam, sempre de forma parcial e fragmentada, por meio de “lateralidades” entre teorias e práticas, que permitiriam a descoberta de zonas de contato e a localização (em oposição à totalização) de conteúdos e formas interpretativas significativas. Ou seja, seria descabido pretender um corpus teórico coeso e totalizante (a Teoria com letra maiúscula) para que seja justificada ou explicada uma prática (minúscula e singular) que é sempre local (ação num campo determinado de tensões espaço-temporais). O mesmo se aplicaria à dialética corpo-mente. Não seria justo acreditar que um processo de interações corporais (sempre singular e localizado) seja gerado ou explicado por um projeto totalizador de amplificação simbólica, intelectual e teórica. Tais sugestões epistemológicas nos fazem entender que o pesquisador em artes pode tornar o próprio exercício de composição artística a base analógica do movimento de pesquisa e de escritura acadêmica, tanto por motivo de semelhança (quando o método e o texto acadêmico assemelham-se, contaminam-se e, em parte, confundem-se com a própria linguagem artística),

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quanto por motivo de dependência causal (quando a produção acadêmica não pode existir sem o próprio ato de composição artística). Existe aí (e isto vai somente depender da qualidade e do comprometimento do pesquisador com a arte e a vida) uma dimensão analógica, um modo contínuo e gradual, entre a prática da composição artística e o discurso da proposição científica. Além da analogia com o próprio ato de compor, o método do pesquisador se sobrepõe de lateralidades com as quais compara, mede e confere sua experiência com a prática e os procedimentos de composição de Outros-autores ou ainda com os processos de recepção de um Outro-espectador. Cumpre ainda ressaltarmos, a título de síntese e conclusão aos propósitos deste capítulo, uma fundamental tríade à ação da pesquisa nas artes do corpo, tríade pela qual, como hipótese, tem nos guiado e dado “positividade” ao nosso raciocínio e modus operandi de autor-pesquisador: historiar, educar e compor são ações que podem conviver num ato de pesquisa sincrético, formando um plano fundamental de constituição da subjetividade e da identidade do artista pesquisador. Tal plano se estende além das questões de ferramentas e métodos de pesquisa para instalar-se no território da consciência e do espírito crítico. “Recuperar a dimensão histórica do homem exige muito mais do que uma reforma metodológica.” (RICOEUR, 2008, p. 117). A historicidade (a qualidade do que existe, não na instantaneidade do momento ou na eternidade das ideias, mas no comprometimento com o tempo histórico) garante ao pesquisador a necessária transversalidade espaço-temporal do fenômeno corporal. Permite que não sejam “reinventadas as rodas”; que não se busque a funcionalidade do novo, sem que se conheçam as trajetórias comuns, as parábolas cíclicas e as formas divergentes das funções históricas. Permite-nos entender o tempo, o percurso e os motivos pelos quais o corpo ofereceu-se ou resistiu a inserir-se na economia política como força-trabalho, à economia da libido como fonte do prazer5, à economia médica como organismo a

5. Vide Lyotard, J. F., Economie libidinale, Paris: Ed. De Minuit, 1974.

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ser curado, à economia religiosa como carne a ser redimida, à economia dos signos como suporte de significação (GALIMBERTI, 1996, p. 291). Entender que, num momento incerto de nossa civilização, o corpo passa a ser desejado não pelo que é, mas pelo que indica (e aqui se instaura a cultura do espetáculo). O ato de educar é verificador da concretude e da validade do conhecimento corporal em relação a um real interesse, percebido e sentido como retorno à situação plena e originária do desejo pelo novo, pelo Outro-desconhecido. É, em última análise, a revitalização do “impulso epistemofílico”, conforme teorizam os psicanalistas, como sede pulsional de saber e compreender (cujo primeiro objeto, segundo Melanie Klein, seria a mãe, e, a partir daí, o próprio corpo, o interior do próprio corpo). Educar é recuperar o mundo, a morada do corpo, é sair da neutralidade afetiva (que deixa sempre o corpo isolado, na angústia), para povoar o corpo de sensações íntimas, secretas e, ao mesmo tempo, decodificadas e compartilhadas. É transformar ideias em coisas, coisas em materiais, materiais de trabalho e retrabalho, cujo significado dissolve a opacidade solitária da carne. O ato de compor é para o pesquisador o exercício pleno de habilidades que lidam com a instabilidade gestual, a incerteza e a precariedade improvisacionais, a lógica da linguagem e a ilogicidade do sentido, os excessos semânticos do corpo e sua resistência à codificação; é também ato de verificação da solidez da forma e da concretude de sua intencionalidade. Permite a verificação da interação e da contaminação entre a intenção perceptiva e os parâmetros das convenções da percepção. A relação especular, implícita em todo processo de composição, que oferece sempre uma imagem reflexa/refletida do corpo, mostra no processo de composição que o corpo está sempre além, em realidade, é sempre diverso, da imagem sígnica produzida: revela ao pesquisador o drama narcísico da impossibilidade de se ver e se conhecer nos reflexos dos espelhos. “Olhos contra os olhos. Soube-o: os olhos da gente não têm fim. Só eles paravam imutáveis, no centro do segredo. Se é que de mim não zombassem, para lá de uma máscara. Porque, o resto, o rosto, mudava permanentemente.” (GUIMARÃES ROSA, 2001, p. 67).

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A pesquisa qualitativa em artes cênicas: romper os fios, desarmar as tramas

Adilson Florentino6

Há um considerável universo teórico e metodológico para desenvolver a pesquisa qualitativa no campo das artes cênicas a partir da diversidade de tradições analíticas ancoradas, principalmente, nas ciências sociais. Na tensa relação entre ciências sociais e artes cênicas se dá a gestação de um espaço inter e transdisciplinar que ainda não está suficientemente explorado, mas que permite suscitar diversas reflexões. Neste ensaio reflexivo apresento uma visão panorâmica dos principais paradigmas, metodologias e orientações teóricas que inspiram a investigação qualitativa no campo das artes cênicas. A pesquisa qualitativa abre um espaço nos diferentes modos de análise dos problemas relativos ao campo das artes cênicas

6. Professor, pesquisador, mestre em Educação (1992) pela Uerj e doutor em Teatro (2006) pela Unirio. É professor no Departamento de Interpretação Teatral da Escola de Teatro e do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

numa perspectiva social e cultural e pela adoção de diversos procedimentos como a análise de conteúdo e a análise do discurso. A abordagem qualitativa em artes cênicas parte do pressuposto básico de que o universo cênico é construído de símbolos e significados. Nesse sentido, a intersubjetividade constitui uma peça chave na investigação qualitativa e o ponto de partida para captar de forma reflexiva os diferentes significados estéticos e sociais. A realidade estética das artes cênicas pode ser percebida como estando repleta de significados compartilhados de modo intersubjetivo. O destaque é atribuído ao sentido intersubjetivo. A pesquisa qualitativa pode ser encarada com a intenção de obter uma profunda compreensão dos significados e das definições das situações-problemas apresentadas pelos sujeitos, mais do que a produção de uma medida quantitativa de suas características básicas. Por esse motivo, a pesquisa qualitativa é interpretativa. Consiste no estudo interpretativo de uma situação-problema no qual o pesquisador é responsável pela produção de sentidos. Todavia, há de se levar em consideração que o problema principal enfrentado contemporaneamente pela pesquisa no campo das ciências sociais e das ciências humanas em geral e de suas metodologias têm sua gênese na dimensão epistemológica, pois gravita em torno do conceito de “conhecimento” e de “ciência”, bem como da confiabilidade científica de seus produtos, ou seja, o conhecimento da verdade. Historicamente, essa situação produziu, sobretudo na segunda metade do século XX, o aparecimento das correntes pós-modernas, pós-estruturalistas, o construcionismo, o desconstrucionismo, a teoria crítica, a análise do discurso e as análises que formulam a teoria do conhecimento. Essa heterogênea riqueza de perspectivas exige do pesquisador uma imensa sensibilidade quanto ao uso de procedimentos metodológicos aliada à perspicácia para poder captá-los, bem como exige um profundo rigor, sistematicidade e criticidade, entendidos como critérios básicos da cientificidade exigida no campo acadêmico.

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Seguindo as pegadas reflexivas de Gadamer (2007), no contexto de circunscrição da experiência humana total, uma vivência com certeza imediata, como a experiência da arte, do teatro e até mesmo da história, expressa uma verdade que não pode ser constatada pelos meios disponíveis da metodologia científica tradicional que requer o uso da racionalidade lógica. Em contraposição, a experiência total requer o uso de um processo afetivo. Do ponto de vista da psicologia das inteligências (Gardner, 1994), o sistema cognitivo e afetivo não constitui dois sistemas totalmente distintos, eles formam um único sistema, a estrutura cognitivo-afetiva. Por isso, torna-se compreensível a união da estrutura lógica e estética que são responsáveis pela vivência total da realidade experienciada. Às vezes pode ocorrer a predominância de uma estrutura sobre a outra conforme pode ser verificado no cotidiano e no comportamento das pessoas. Os pressupostos fundamentais para a exitosa solução desse problema se dá em Aristóteles (2005), na sua obra Metafísica, quando exorta que o ser nunca se dá a ninguém em sua totalidade, senão somente segundo determinados aspectos e categorias. Portanto, todas as realidades, incluindo as realidades humanas, são poliédricas e multifacetadas e algumas delas só podem ser capturadas em um dado momento específico. O problema radical que aqui está em debate reside no fato de que o aparato conceitual clássico da racionalidade científica de viés rigoroso pela sua objetividade, determinismo, lógica formal e verificação (Popper, 2000), resulta insuficiente e não consegue dar conta das realidades, principalmente, surgidas ao longo do século XX, como o mundo subatômico da física, as ciências da vida e as ciências humanas. Para enfrentar os problemas produzidos por essas realidades há que se trabalhar com conceitos inter-relacionados e capazes de gerar explicações globais e unificadas. Essa nova sensibilidade também se revela nas metodologias qualitativas de pesquisa e viria a significar o estado da cultura após as transformações que atingiram as regras do jogo da ciência, da literatura e das artes que predominaram durante a denominada “modernidade”, nos três últimos séculos (Santos, 2000).

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Os principais autores dessa nova sensibilidade no campo do conhecimento, tais como Foucault (2007) e Habermas (2002), diferem entre si em alguns eixos, porém, podem ser perspectivados nesses autores certos pontos de interseção como a ruptura com a hierarquia e valores tradicionais, o baixo apreço pela formação de um sentido universal, a desvalorização pela ideia de modelo e sua valorização, em troca, à racionalidade crítica, à verdade “local”, ao uso dos fragmentos e à ênfase no primado da subjetividade e na experiência estética como modo de produção de saberes. Faz-se mister, amiúde, a internalização de um pensamento sistêmico-ecológico (Bertalanffy, 2008), ou seja, pensar em termos de relações, processos e contextos, pensar em termos de um enfoque dialético, inter e transdisciplinar no qual a rede de relações do conhecimento interatua com tudo e se define por aquilo que é em troca de um modo linear, causal e unidirecional de pensar. A natureza constitui um todo polissêmico que se revolta quando é reduzida a seus elementos estruturantes no modo de pensamento científico tradicional. Essa revolta é produzida precisamente porque na redução ocorre a perda das qualidades emergentes do todo e da sua ação sobre cada uma das partes. O todo polissêmico que constitui a natureza global impõe ao pesquisador contemporâneo a adotar uma metodologia inter e transdisciplinar a fim de investigar a riqueza das interações estabelecidas entre os diferentes subsistemas estudados pelos diversos campos disciplinares. A perspectiva inter e transdisciplinar exige o respeito da interação entre os sujeitos/objetos de estudo das diferentes disciplinas e exige lograr na interlocução de seus campos a configuração de um espaço de interseção lógico e coerente. Isso implica para cada campo disciplinar a revisão, reformulação e redefinição de suas próprias estruturas lógicas. Esse itinerário já está sendo percorrido pelas metodologias que adotam um enfoque hermenêutico, etnográfico e porque não dizer qualitativo, cujo eixo fronteiriço é o do tipo estrutural-sistêmico.

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A pesquisa qualitativa em artes cênicas trata de investigar a natureza profunda dos fenômenos que constituem esse campo de estudos, a sua estrutura dinâmica e suas diversas práticas de atuação e de reflexão. Não obstante, o conjunto de vertentes metodológicas e de pressupostos filosóficos que constitui o escopo da pesquisa qualitativa atualmente não é suficiente para fazer frente à afirmativa de que essa abordagem investigativa está atravessando uma crise de legitimidade e de respeitabilidade e, por isso, exige que os seus pesquisadores estejam submersos numa tarefa de autorreflexão permanentemente. Motivado pela tarefa de vir a contribuir com essa crítica reflexiva, problematizo no presente ensaio as questões relativas à pesquisa qualitativa em sua dimensão polissêmica. A pesquisa qualitativa não constitui uma unidade monolítica porque seu estatuto é resultante da construção de diferentes matrizes filosóficas e epistemológicas. Assim sendo, sinto a necessidade de interrogar sobre os diversos modos com os quais a pesquisa qualitativa se manifesta nos diferentes campos das ciências humanas e sociais com o objetivo de tentar situar o espaço que ela ocupa nas artes cênicas. Para Bogdan & Biklen (2006), as divergências operadas nas perspectivas da pesquisa qualitativa ou investigação qualitativa podem estar situadas em diferentes níveis de análise, entre os quais: 1. Nível epistemológico: nesse nível se inserem as diferenças e contradições existentes entre as correntes utilizadas e os modos pelos quais os pesquisadores assumem a sua relação com a realidade investigada; 2. Nível filosófico: esse nível abrange as diferentes concepções que os pesquisadores sustentam em relação aos critérios de verdade, objetividade e validade; 3. Nível metodológico: aqui tomam lugar as polêmicas produzidas em relação aos procedimentos de coleta e análise de dados;

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4. Nível conceptual: refere-se aos diversos modos de conceber o problema da pesquisa; 5. Nível teleológico: aqui se acenam as discrepâncias relativas às decisões tomadas sobre os objetivos da pesquisa. Diante das divergências apresentadas, por que se torna pertinente problematizar o enfoque qualitativo da pesquisa no campo das artes cênicas? Entre as razões argumentativas que poderiam defender a emergência da abordagem qualitativa no campo das artes cênicas se encontra o pressuposto da insuficiência do método experimental clássico (hipotético-dedutivo), apropriado às ciências físicas e naturais, ao estudo do contexto específico tanto das ciências sociais quanto das artes em geral. A constituição dos campos das ciências sociais e das artes cênicas possui múltiplas dimensões que não conseguem ser exploradas pelo modelo clássico de pesquisa científica. Já a abordagem qualitativa é capaz de refletir tanto a realidade social como a realidade cênico-dramatúrgica na extensão de sua complexidade. Independentemente do modo de sua abordagem (qualitativa ou quantitativa), toda pesquisa gravita em torno de dois pontos básicos de atividades e que estão relacionados com a consecução de seus objetivos; consistem: 1. coletar toda a informação necessária e suficiente para alcançar os objetivos ou solucionar o problema em questão; 2. estruturar toda a informação em um todo coerente e lógico, ou seja, construir uma estrutura lógica, uma perspectiva ou uma teoria que organize a informação. Uma questão de grande relevância se destaca nessa consideração, a saber, esses dois pontos básicos de (1) coletar dados e (2) categorizá-los e interpretá-los não acontecem sempre de modo sucessivo, mas se entrelaçam continuamente no tempo de sua produção. Com efeito, o método básico de toda ciência consiste na observação dos dados ou fatos e a interpretação de seus significados. Todavia, a observação e a interpretação são procedimentos inse-

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paráveis; torna-se inconcebível que um procedimento ocorra sem o outro de maneira isolada. Toda investigação científica trata de produzir um conjunto específico de métodos e técnicas para efetuar observações sistemáticas e garantir a sua interpretação. Geralmente, no começo de todo processo investigativo há o predomínio da coleta de dados sobre os procedimentos de categorização e interpretação; porém, à medida que esse processo atinge um determinado estágio, os procedimentos de categorização e interpretação ganham força e a coleta de dados se torna mais escassa por ter atingido o seu objetivo no contexto da pesquisa. A abordagem qualitativa da pesquisa caracteriza-se por um enfoque dialético e sistêmico, bem como está fundamentado em um marco epistemológico. A existência de um pressuposto epistemológico constitui uma exigência necessária à proporção que atribui sentido ao uso da metodologia, das técnicas e dos critérios de interpretação. A abordagem qualitativa de pesquisa está, portanto, fundamentada na teoria do conhecimento e na filosofia da ciência que refuta o modelo especulativo de investigação, de cunho positivista, no qual o sujeito cognoscente é visto como um espelho e totalmente passivo, assim com uma câmera fotográfica. Em contraposição, a abordagem qualitativa está apontada para a perspectiva dialética que considera o conhecimento como resultante entre o sujeito (interesses, valores, crenças) e o objeto de investigação. Se não fosse desse modo inexistiria a questão da objetividade da pesquisa. O objeto de estudo, especificamente no campo das artes cênicas, é visto e avaliado pelo nível de complexidade estrutural ou sistêmica produzido pelo conjunto de variáveis estéticas que lhe dão configuração. No entanto, torna-se importante a observação de que a presença do marco epistemológico não deve delimitar a busca do investigador; ele constitui apenas um referencial cujo objetivo é demonstrar até o presente momento tudo o que se tem feito para tornar nítido o fenômeno que é o objeto da pesquisa. A existência do marco epistemológico na pesquisa qualitativa serve para

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evidenciar o estado da arte do objeto de estudo no campo ou na área de conhecimento a ser investigado. Assim sendo, a circunscrição do marco epistemológico deve fazer referência ao estatuto da pesquisa no campo das artes cênicas e de seus principais modos de produção de conhecimento, tais como autores, teóricos, perspectivas conceituais, métodos empregados, conclusões, recomendações, interpretações, práticas e reflexões a que chegaram. Os usos do marco epistemológico na pesquisa qualitativa não devem ser determinantes e nem devem impor ou definir, a princípio, uma visão teórica, conceitual e interpretativa que sirva para enquadrar o objeto de estudo em questão. Seu uso deve servir para estabelecer um conjunto de possíveis interpretações que fundem as bases para a construção de um saber elaborado e relacionado às necessidades, interesses e valores em jogo no espaço-tempo da pesquisa. Segundo a perspectiva de Geertz (1997), no entrecruzamento das culturas se verifica toda a construção de um saber local cujo marco epistemológico orienta o percurso etnográfico no sentido do entendimento das diferenças pelo uso de uma hermenêutica da cultura. Nessa mesma perspectiva, a noção de conhecimento emancipatório em Habermas (1987), que contrapõe a investigação-ação ao conhecimento instrumental de cunho dominador, coincide com o ponto de vista que estou a afirmar de que os usos do marco epistemológico na pesquisa qualitativa devem emergir sob a forma de conhecimento crítico-reflexivo e não como teoria da ciência. A perspectiva do conhecimento emancipatório visa estabelecer uma relação interativa, crítica e socialmente construída entre sujeito-objeto, bem como produzir uma profunda reflexão articulada com a práxis e com a negociação coletiva que tecem as malhas da pesquisa. Moscovici (1978), ao considerar o estudo das representações sociais como um modo de conhecimento social específico, natural, de sentido comum e prático que se constitui a partir de

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nossas experiências, saberes e formas de pensar que recebemos e transmitimos pela tradição (processos de educação e comunicação social), lhe dá uma dimensão epistemológica em oposição ao conhecimento científico clássico. Corroborando a afirmativa de que todo processo investigativo (quantitativo ou qualitativo) é constituído por duas etapas básicas: “a coleta de dados” e “a estruturação das informações”, no que diz respeito à pesquisa qualitativa, a sua primeira parte é orientada por vários conceitos que passarei a examinar adiante. No que concerne aos objetivos da pesquisa, alguns podem ser gerais e outros específicos, mas todos eles devem ser importantes para o estudo em questão. Às vezes torna-se mais conveniente formular somente objetivos gerais e formular os mais específicos durante a démarche investigativa. Os objetivos hão de determinar, em parte, as escolhas das estratégias e dos procedimentos metodológicos. Na abordagem qualitativa de pesquisa a hipótese assume uma certa especificidade. Não há necessidade de se formular uma única hipótese, porque esse tipo de investigação está aberto a todas as hipóteses potenciais e a expectativa é a de que a melhor hipótese emerja do próprio estudo dos dados e naturalmente vai impondo sua força persuasiva. Há necessidade de uma ampla adesão a todas as hipóteses que vão ganhando consistência no percurso da investigação. As hipóteses assumem um caráter provisório e vão se transformando durante o processo da pesquisa para não estreitar o campo de visão do estudo em análise. Todavia, diante do desiderato conceitual até aqui problematizado em torno da pesquisa qualitativa, uma indagação se faz mister: “Qual seria a unidade de análise ou o objeto específico de estudo de uma investigação qualitativa?” Seria a nova realidade emergente da interação das partes constituintes de um dado fenômeno? Ou seria a busca dessa estrutura com sua função e significado? A resposta estaria enredada no pressuposto que defende que não seria lógico estudar as variáveis de um fenômeno isolada-

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mente, definindo-as inicialmente e tratando logo de encontrá-las. Na investigação qualitativa há necessidade de compreender inicialmente e ao mesmo tempo o sistema de relações no qual as variáveis ou propriedades se encontram inseridas, circunscritas ou encaixadas e da qual produzem o seu próprio sentido e função. Por isso, se considera improcedente definir as variáveis de modo operacional, pois as ações em si dos fenômenos, fora de seus contextos, não teriam significado algum ou poderiam ter muitos significados. As variáveis necessitam estar situadas em seus contextos históricos e culturais específicos. As atividades em si podem não ser fenômenos humanos. O que as torna atividades humanas é a intenção que as animam, inspiram e orientam, é o significado que possui para o ator, é o propósito que abriga, a meta que persegue. Desse modo, na investigação qualitativa não há categorias prévias, nem dimensões, variáveis ou indicadores a priori. Se o pesquisador possui essas categorias em sua mente é porque ele as formulou da transposição de outros estudos investigativos. Já as verdadeiras categorias dos estudos sob a abordagem qualitativa emergem no próprio processo de recolhimento das informações. O trabalho de campo da pesquisa qualitativa é trilhado por alguns critérios que merecem ser sublinhados porque diferem notadamente de outros modos de investigação. 1. O primeiro critério se refere ao lugar no qual o pesquisador há de buscar a informação e os dados de que necessita; os dados necessitam ser capturados no seu ambiente natural e deve ser nesse lugar que o pesquisador toma a decisão de escolher com quem há de falar, por exemplo. 2. O segundo critério exorta que a observação não deve deformar, distorcer ou perturbar a verdadeira realidade do fenômeno investigado. Também não deve descontextualizar as informações e os dados coletados a fim de isolá-los de seu contorno natural. Há aqui a exigência de que a informação seja coletada de modo mais completo possível com ênfase nos detalhes, matizes e aspectos peculiares sobre linguagens, costumes, rotinas etc. Uma questão importante que aqui se

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deslinda é o fato do pesquisador qualitativo não entrar no estudo de campo possuindo um conjunto explícito de hipóteses para serem verificadas; essa situação o coloca na posição de não saber previamente quais os dados que serão mais importantes daqueles que não serão. 3. Como terceiro critério está a ênfase de que os procedimentos utilizados necessitam ser repetidos frequente e sistematicamente. Todo esse processo necessita ser minuciosamente registrado pelo uso de diferentes recursos que garantam a precisão no registro dos dados. 4. Em quarto lugar está a ênfase de que como a pesquisa qualitativa trabalha com diversos tipos de informação, cabe ao pesquisador selecionar aquela informação que maior relação estabelece com o problema em questão e que possa contribuir para a construção das estruturas significativas que motivam as condutas dos sujeitos da pesquisa. 5. Finalmente, convém assinalar que o observador interage com o contexto observado e, portanto, afeta a realidade observada, diminuindo sua apreciação objetiva. O pesquisador qualitativo não tem medo de ser parte integrante da situação estudada e de que sua presença possa “contaminar” os dados, pois ele considera impossível recolher dados absolutos ou neutros. Ele é consciente de que constitui um dos atores da cena; ele não segue o modelo científico das ciências naturais clássicas, mas sim o modelo da física moderna que leva em conta a relatividade dos fenômenos e o princípio da incerteza, nos quais o efeito perturbador da observação sobre aquilo que é observado se integra no processo de investigação, estudo e na reflexão teórica que é produzida. Na abordagem qualitativa, o método específico a ser escolhido e empregado depende da estrutura do que vai ser estudado. Há nessa abordagem a existência de diversos métodos. No que concerne ao campo das artes cênicas, o levantamento feito na pesquisa, sob a minha coordenação, intitulada “O conhecimento teatral em cena – a análise de dissertações de mestrado e teses

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de doutorado (2004-2006)”, revelou que no Programa de Pósgraduação em Artes Cênicas (PPGAC), da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), quase todas as pesquisas de vertente qualitativa empregaram dois tipos de método, o método etnográfico e o método de investigação-ação. O método etnográfico é o preferido pelos pesquisadores que querem conhecer um grupo específico cuja visão de mundo está dotada de um significado peculiar. O método de investigação-ação é aquele indicado quando o pesquisador quer conhecer uma determinada realidade, mas, sobretudo, quer intervir, participando como coinvestigador em todas as etapas do processo da pesquisa. Ainda fazendo referencia à pesquisa acima mencionada, os instrumentos mais utilizados da pesquisa qualitativa nas dissertações e teses de doutorado do PPGAC da Unirio gravitam em torno da observação participante e da entrevista semiestruturada. Eu pude analisar que a maioria desses estudos levaram em conta duas técnicas muito valiosas: a triangulação de diferentes fontes de dados, de diversas perspectivas teóricas, de vários observadores e de diferentes procedimentos metodológicos, bem como, as gravações de vídeo e de áudio. O uso dessas técnicas permitiu observar e analisar os dados repetidas vezes e com a colaboração de diferentes sujeitos da pesquisa. O que concretamente o pesquisador deve fazer para submergir e fazer revelar em um processo de observação participante? A resposta a essa indagação pode ser assim sintetizada: o pesquisador qualitativo deve tratar de responder as perguntas “quem”, “o que”, “onde”, “quando”, “como” e “por quê” alguém realiza algo. Esse conjunto de indagações converge suas atividades para situarem os dados mais significativos que fornecerão a interpretação dos fatos e acontecimentos circunscritos no estudo investigado. A análise dos fatos e acontecimentos revela e anuncia a estrutura ou padrão sociocultural de um sistema mais amplo no qual se insere porque podem ser considerados como imagens que refletem as estruturas dos grupos, como permanecem existindo e porque perpetuam a sua existência.

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Como as anotações de campo nunca conseguem ser pormenorizadas, elas devem ser abreviadas e esquematizadas. Portanto, convém aplicar o detalhe e a ampliação no mesmo dia ou no dia seguinte a fim de que não perca a sua capacidade informativa. Um modo prático desse fazer consiste em gravar um amplo comentário, bem pensado, das anotações feitas. Essas anotações concretas e situacionais se converterão em um testemunho real da honestidade e objetividade do estudo pesquisado. Assim sendo, a observação constitui um procedimento empírico por excelência; consiste basicamente em fazer uso dos sentidos para observar os fatos, a realidade social e as pessoas nos seus referidos contextos cotidianos. Para que a observação tenha validez no processo de pesquisa, há necessidade de que tenha uma intenção precisa, seja ilustrada com um objetivo determinado e seja orientada por um corpo de conhecimento. Todavia, também há limites que podem comprometer a observação e são decorrentes da própria projeção do pesquisador observador, principalmente em três situações: 1. quando o observador confunde os fatos observados com a interpretação desses fatos; 2. quando há influência do observador sobre a situação observada; 3. quando há o perigo do observador elaborar generalizações não válidas a partir de observações parciais. No que diz respeito à entrevista na abordagem qualitativa, ela deve adotar o modo de um diálogo coloquial ou entrevista semiestruturada e deve ser complementada com outros procedimentos escolhidos em função da especificidade do objeto investigado. A grande relevância, as possibilidades e a significação do diálogo como método de conhecimento dos sujeitos da pesquisa estão fundamentadas, principalmente, na natureza e qualidade do processo de investigação. À medida que o encontro avança, a estrutura da personalidade do interlocutor começa a tomar for-

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ma na mente do investigador; adquirem-se as primeiras impressões com a observação de seus movimentos; segue a audição de sua voz e depois a comunicação não verbal que é direta, imediata e de grande vigor na interação face a face. Tudo isso conduz a uma ampla gama de contextos verbais por meio dos quais é possível tornar nítido os termos, descobrir as ambiguidades, definir os problemas, evidenciar a irracionalidade de uma proposição, eleger os critérios de juízo e recordar os fatos necessários. O contexto verbal permite motivar o interlocutor, elevar o seu nível de interesse e colaboração, reduzir os formalismos, os exageros e as distorções da realidade, estimular a sua memória e dar-lhe a ajuda necessária para explorar, reconhecer e aceitar as suas próprias vivências inconscientes. Em cada uma dessas possíveis interações pode se tomar a decisão da amplitude ou do estreitamento de como o problema deve ser pontuado; se uma questão de estudo deve estar estruturada na sua totalidade ou permanecer aberta, bem como até que ponto uma possível resposta ou solução há de ser insinuada. Nessa perspectiva, a entrevista passa a ser uma arte; logicamente, as atitudes que intervêm nessa arte que constitui a entrevista são suscetíveis de serem aprendidas e ensinadas. O propósito da entrevista, na abordagem qualitativa, é obter descrições do mundo vivido pelas pessoas entrevistadas a fim de se chegar a lograr interpretações fidedignas do significado que os fenômenos descritos assumem no contexto em que estão inscritos. Retomando uma questão reflexiva, a epistemologia qualitativa está fundamentada em um conjunto de princípios que se articula com as seguintes consequências metodológicas: 1. O conhecimento é resultante de uma produção construtiva e interpretativa e não constitui um somatório de fatos definidos pela verificação imediata do momento empírico. O seu caráter interpretativo é produzido pela necessidade de atribuir sentido às expressões do sujeito estudado. A interpretação é um processo no qual o pesquisador integra, reconstrói e

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apresenta em construções interpretativas vários indicadores obtidos durante a investigação que não teriam sentido se fossem vistos apenas de modo isolado como simples constatação empírica. A interpretação é um processo diferenciado que dá sentido às manifestações do objeto de estudo e as relaciona com momentos específicos do processo geral orientado para a construção teórica. 2. O processo de produção do conhecimento nas ciências humanas e sociais é interativo. As relações investigador-investigado em um determinado contexto são a condição para o desenvolvimento do processo de pesquisa. A interação é uma dimensão relevante para a efetivação dos processos de produção de conhecimentos. A consideração da interação na produção de conhecimentos autentica valor especial aos diálogos nos quais eles se estabelecem e nos quais os sujeitos da pesquisa se implicam emocionalmente e compromentem a reflexão em direção a um processo que produz informações de grande significado para a investigação. 3. A significação da singularidade assume um caráter legítimo na produção de conhecimentos. O conhecimento científico na abordagem qualitativa não se legitima pela quantidade de sujeitos pesquisados, mas pela qualidade de sua expressão. A informação dita por um sujeito concreto pode converter-se em um momento significativo para a produção de conhecimento, sem que tenha de repetir necessariamente em outro sujeito. O número de casos a ser considerado na pesquisa qualitativa tem a ver, sobretudo, com as necessidades de informação que vão sendo definidas no curso da investigação. Esses três pontos podem ser sintetizados em um único ponto que diz respeito à centralidade da ética na pesquisa que converge para o sujeito. O sujeito é dimensionado como o eixo central da ação investigadora. Esse é o ponto que sintetiza a complexidade particular da pesquisa qualitativa. Se o campo do teatro e das artes cênicas constitui um campo de formação de profissionais, de professores e de pesquisadores, e, portanto, envida esforços em produzir os seus próprios conhe-

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cimentos pela intervenção do processo de pesquisa, bem como construir uma realidade a partir de seu próprio ponto de vista, torna-se imprescindível a mediação de um tipo de investigação cuja visão há de permitir a aproximação de um modo mais significativo da compreensão e explicação da relação sujeito-objeto que esteja na centralidade e fronteira de seu interesse.

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