Fundamentalismo Religioso Cristão - Olhares Transdisciplinares

Table of contents :
Prefácio
Introdução
I. Fundamentalismo Religioso Cristão : em Busca de um Conceito
II. Iluminismo: Luzes e Sombras de uma Ideia.
III. A Astronomia Moderna e as Interpretações da Bíblia: novas teorias da origem e do fim do mundo
para novas teorias para o mundo
IV. Arqueologia Bíblica: a cultura material como discurso fundamentalista religioso cristão
V. A Bíblia como Literatura e suas Implicações para a Reflexão Teológica
VI. O Nascimento do Fundamentalismo Cristão nos Estaddos Unidos: das origens ao Caso Scopes
VII. A Resistência
VIII. Identidades e expansão do fundamentalismo de matrizes protestantes (décadas de 1930, 1940 e
1950)
IX. Evangelicalismo na Segunda Metade do Século XX: O “Esquecimento“ das Ideias
Fundamentalistas e a Cristalização do Evangelicalismo
X. “Palavras de Morte e Não de Vida“: O Estudo dos Fundamentalismos e seu Acesso ao Primeiro
Testamento
XI. Fundamentalismo Cristão na Perspectiva Protestante
XII. A Intolerância Religiosa e a sua Tipificação - Uma Análise de Casos Concretos
XIII. O Imaginário Radical Diante dos Racismos e Fundamentalismos: Esboço do Cenário Brasileiro
Denominado Evangélico
Biografia dos Autores
Índice Onomástico
Bibliografi

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Fundamentalismo Religioso Cristão Olhares Transdisciplinares André Leonardo Chevitarese Juliana B. Cavalcanti Sérgio Dusilek Tayná Louise de Maria 1° edição

Rio de Janeiro 2021

Fundamentalismo Religioso Cristão - Olhares Transdiciplinares 2021 Klínē Editora® Rua Maria Amália,591, Tijuca - Rio de Janeiro – RJ - Brasil [email protected] | [email protected] | www.klineeditora.com RJ - Brasil Coordenação Editorial Felinto Pessôa de Faria Neto Leonardo Gonçalves Martins Raphael Botelho Conselho Editorial Daniel Brasil Justi (UNIFESSPA) Marta Mega (UFRJ) Mônica Selvatici (UEL) Osvaldo Ribeiro (UNIDA) Diagramação e Projeto Gráfico Alberto Cavalcanti Capa Juliana Cavalcanti Raphael Botelho Revisão e Preparação dos Originais Felinto Pessôa de Faria Neto

C530 Chevitarese, André L; Cavalcanti, Juliana B.; Dusilek, Sérgio; de Maria, Tayná Louise Fundamentalismo Religioso Cristão. Olhares transdisciplinares/ André L. Chevitarese, Juliana Cavalcanti, Sérgio Dusilek, Tayná Louise de Maria (organizadores). – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Klíne, 2021. 249 p., 16x23cm 1. Fundamentalismo Religioso; 2. Transdisciplinariedade; 3. Cristianismo CDU 29.22 CDD 230.220

SUMÁRIO Prefácio Introdução I. Fundamentalismo Religioso Cristão : em Busca de um Conceito II. Iluminismo: Luzes e Sombras de uma Ideia. III. A Astronomia Moderna e as Interpretações da Bíblia: novas teorias da origem e do fim do mundo para novas teorias para o mundo IV. Arqueologia Bíblica: a cultura material como discurso fundamentalista religioso cristão V. A Bíblia como Literatura e suas Implicações para a Reflexão Teológica VI. O Nascimento do Fundamentalismo Cristão nos Estaddos Unidos: das origens ao Caso Scopes VII. A Resistência VIII. Identidades e expansão do fundamentalismo de matrizes protestantes (décadas de 1930, 1940 e 1950) IX. Evangelicalismo na Segunda Metade do Século XX: O “Esquecimento“ das Ideias Fundamentalistas e a Cristalização do Evangelicalismo X. “Palavras de Morte e Não de Vida“: O Estudo dos Fundamentalismos e seu Acesso ao Primeiro Testamento XI. Fundamentalismo Cristão na Perspectiva Protestante XII. A Intolerância Religiosa e a sua Tipificação - Uma Análise de Casos Concretos XIII. O Imaginário Radical Diante dos Racismos e Fundamentalismos: Esboço do Cenário Brasileiro Denominado Evangélico Biografia dos Autores Índice Onomástico Bibliografia

Prefácio Tempos como esse em que vivemos impõem urgentes e necessárias reflexões sobre fenômenos históricos de longa duração. Um deles, o fundamentalismo, que se poderia pensar como algo marginal na história da cultura ocidental, irrompeu com incomparável força nestas últimas décadas e na atual conjuntura, lavando-nos à constatação de que era uma realidade mais central do que imaginávamos. Trata-se de uma construção histórica e social que não se esgota numa definição ou num conceito, na medida em que só se pode captá-lo na sua historicidade, nas formas como se reinventou nas distintas temporalidades. Daí a pluralidade de olhares que a presente obra traz ao ajudar na compreensão de um termo que se tornou popularizado e utilizado até para estigmatizar alguém caracterizado como intolerante, radical, negacionista, anti ciência, moralista, inflexível nas opiniões e inclinado a algum tipo de violência, seja física, seja simbólica. O fato é que, assim como o termo fascismo, o seu uso se faz necessário e inevitavelmente se refere ao aspecto negativo de uma dada mentalidade política e religiosa, mas deve sempre ser compreendido nos seus limites históricos e sociais. O fundamentalismo não se constituiu como um fenômeno atemporal, antes se reinventou a partir de sujeitos, instituições, grupos sociais e condições favoráveis à sua plausibilidade e funcionalidade, no devir das mudanças e das transformações sociais. Nascido no contexto religioso e teológico estadunidense, extensão das heranças europeias da modernidade e do Iluminismo, o fundamentalismo seria a negação e, paradoxalmente, o subproduto desse complexo processo cultural. O acirrado embate entre as verdades da crença religiosa e os estatutos postos pelo racionalismo científico, gerou, no âmbito das ideias e das ações, comportamentos enrijecidos, por um lado, e tentativas de diálogo, por outro. O que estava e ainda está em causa ou em pauta seria o estatuto do que seja a verdade nas distintas esferas da fé e da razão, do conhecimento e da experiência, entre a observação e o senso comum, entre a análise e a mera opinião. Ser fundamentalista representa uma dada atitude de defesa, de trincheira, de apologética, de conservação e de reação ante a uma ameaça, ora real, ora imaginária, de

perigos tidos como devastadores da ordem, do dogma, da base de autoridade para a verdade. Não é sem razão que sua estruturação teológica se deu no período coincidente à primeira grande guerra, uma guerra de trincheiras. Contudo, o fundamentalismo estadunidense mobilizou-se para adquirir argumentos e força intelectual para superar vexames públicos sofridos, a exemplo do julgamento de Scopes em 1925. Apropriou-se de bases científicas a fim de comprovar suas verdades, sobretudo as afirmadas pelas escrituras, objeto de uma leitura literalista dos seus eventos desde uma hermenêutica que tratou o livro como autoridade sagrada e não como literatura, sujeita a mudanças culturais e a processos civilizatórios. Paradoxalmente, o pensamento fundamentalista valeu-se do seu outro ameaçador, a ciência, a fim de legitimar-se como verdade. Em outras palavras, a ciência serviu aos interesses desse discurso como base de autoridade comprovadora de seus pressupostos, a exemplo das descobertas arqueológicas. O texto escrito resultado da revelação adquire e incorpora a ciência como referente material de sua autoridade, a fim de manter-se como atemporal, a-histórico. É possível, entretanto, pensar em experiências próximas ao que se denomina fundamentalismo, antes dessa configuração histórica específica, embora central na história do ocidente, e também no modo como ele se desprendeu e se deslocou para outras esferas, regiões, crenças e experiências que não estavam demarcadas como cristãs protestantes ou evangélicas. Antigas matrizes religiosas históricas monoteístas ou não apresentaram formas semelhantes de exclusivismo, de dogmatismo e de intolerância, na tentativa de fixação de suas ortodoxias. Por sua vez, sobretudo após a segunda grande guerra, os conflitos civilizacionais, a descolonização, as independências africanas e na Ásia, a mundialização do capital, as revoluções culturais e o conflito da guerra fria, criaram as condições para uma universalização dessa atitude reapresentada em culturas e políticas de outros povos, ganhando espaço na mídia internacional que as denominou de fundamentalistas, principalmente categorizando assim os grupos radicais islâmicos. Ao considerar ainda o contexto estadunidense é preciso identificar também as resistências a esse fenômeno ideologicamente ligado a grupos financeiros financiadores de suas empreitadas. Vozes internas e

externas denunciaram seus reducionismos e estreitamentos em relação aos pressupostos da fé, das confissões, da figura de Jesus Cristo e das escrituras sagradas. Ao mesmo tempo, os desdobramentos de uma cultura religiosa oriunda do etos da religião civil norte-americana, geraram formas outras como o chamado que ora procura se distanciar, ora se refugia no fundamentalismo. Foi essa configuração religiosa e cultural vinculada ao processo de mundialização do capital que, por meio de agentes e instituições, aportaram no Brasil e na América Latina, trazendo seus valores, atores, literaturas, discursos, igrejas e dólares, junto com o germe de uma politização reacionária como resultado da teologia. O atual cenário coloca a urgente tarefa de se repensar a condição humana em suas conquistas, avanços e retrocessos civilizacionais, diante das atitudes de intolerâncias e de violências de várias formas, desde os feminicidios, os racismos e as agressões a cultos afro-brasileiros, tendo como matriz uma dada postura e mentalidade religiosas. Em tempos de necropolítica e de necrocalvinismos, a presente coletânea reúne textos de especialistas que contribuem para o debate, a decifração e a compreensão do que estamos passando como sociedade, ainda mais agravado em tempos de pandemia. Espero que a sua leitura inspire aos leitores e às leitoras para o enfrentamento corajoso, democrático e dialogal de tudo daquilo que nos desumaniza, porquanto gerado pela barbárie do capital. Lyndon de Araújo Santos. Rio de Janeiro, 27 de Agosto de 2020.

Introdução Este livro traz dois objetivos desafiadores, comumente não enfrentados em obras publicadas sobre esta temática: tomou-se a experiência fundamentalista a partir de uma perspectiva histórica; e optou-se por construí-lo em bases transdisciplinares, de modo que o leitor pudesse entrar em contato com diferentes intelectuais oriundos das áreas de História, Teologia e do Direito. Desde o seu início, os organizadores entendiam este livro como sendo urgente e necessário. Ele se faz urgente pelo avanço nefasto do movimento fundamentalista cristão em diferentes partes do globo, no geral, e no Brasil, no particular. Enfatizasse aqui o seu elemento nefasto, na medida em que o combustível que o faz mover é composto pela aversão à democracia e pelo ódio ao diferente. Convém chamar atenção aqui: não há limites para aqueles que desprezam à democracia e vivem de semear o ódio religioso, pois se já não bastassem ser intolerantes, eles ainda ensinam o outro a ser e a praticar a intolerância; e se já fosse bastante suas ações, elas ainda descambam para a prática de várias modalidades de crimes, como homicídio, lesão corporal, crime à liberdade individual e contra à honra. Este livro se torna necessário, especialmente por produzir debates, ao mesmo tempo em que também se insere naqueles que estão em curso, a fim de construir melhores definições sobre: fundamentalismo; grupos fundamentalistas; e as “origens” de tal movimento. Por este motivo, continua na ordem do dia promover análises e discussões sobre este movimento religioso, cuja capilaridade pode ser sentida nos mais diferentes espectros de nossa sociedade. Torna-se imperativo lançar luzes sobre o fundamentalismo religioso cristão, por causa de três fatores: (i) o fator político. Percebe-se uma fortíssima inserção de discursos religiosos nas Casas Legislativas brasileiras, desde o início do século XX até os dias atuais; (ii) o fator social. Há uma estreita relação entre falas de destacadas lideranças religiosas brasileiras e ações reais, pautadas em discursos e/ou atitudes de ódio; e (iii) o fator científico. Os grupos fundamentalistas cristãos

manifestam-se quase sempre contrários às ideias científicas negam ou colocam em dúvida suas certezas bíblicas. O livro Fundamentalismo Religioso Cristão conta com a participação de quinze intelectuais brasileiros, os quais produziram treze capítulos inéditos. André Leonardo Chevitarese e Tayná Louise de Maria (capítulo I) apresentam conceitualmente o que vem a ser fundamentalismo religioso. Eles pensam o conceito na História, logo, suas discussões ganham uma dimensão que, apesar de envolve, acaba também por transcender a própria a experiência religiosa cristã. Chevitarese e de Maria fundamentam suas discussões em duas forças temporais (sincronia e diacronia) que não apenas atuam initerruptamente, como também gestam o movimento fundamentalista. Uma vez que analisam o processo em sua longa duração, a começar pelo século XVI – onde definem o conceito de “ocidente” –, passando pela importância do Iluminismo e da laicização dos saberes – embasados agora na teoria do conhecimento –, até se debruçarem na curta duração, onde analisam eventos pontuais – especificamente situados nas últimas décadas do século XIX e primeiras décadas do século XX. Este capítulo torna-se um bom ponto de partida para se iniciar a leitura do livro, pois ele dá elementos chaves para se compreender que o movimento fundamentalista é formado por uma ideologia pautada não só na reação, mas que contém em si um elemento camaleônico, fazendo-o sempre oscilar entre a estabilidade e a mudança, a fim de defender fortemente seus princípios religiosos. Lair Amaro (capítulo II) apresenta os séculos XVII e XVIII como pontos de mudança paradigmática na História, quando as bases religiosas judaico-cristãs, constitutivas daquilo que se convenciona chamar de “Ocidente, são fortemente contrapostas diante da ciência e de seu pressuposto ancorado na teoria do conhecimento. Utilizando-se das análises de Pinker e de Todorov, Lair Amaro analisa como o Iluminismo instaurou novas finalidades ao agir humano. Carlos Ziller Camenietzki (capítulo III) parte de um interessante estudo de caso, a vida do presbiteriano William Whiston, situado no final do século XVII, matemático e professor de Filosofia Natural da Universidade de Cambridge. Ziller explicita como homens de saber

conviviam com a dualidade entre Ciência e Bíblia e se sentiam pressionados em buscar soluções que mediassem estes dois universos distintos. O autor traz uma interessante ideia de que o professor Whiston precisa ser estudado em seu período histórico, pois naquele momento a Bíblia ainda era a principal fonte de inspiração, até mesmo para cientistas. Ele diz que este estudo de caso não pode ser visto como algo retrógado, pois era muito comum pessoas eruditas reunirem dois conhecimentos que hoje podem ser considerados como díspares. Juliana Cavalcanti (capítulo IV) analisa como os cristãos se comportaram após a teoria do conhecimento questionar, e até mesmo ambicionar o lugar do argumento divino. Neste capítulo, o leitor perceberá como os religiosos, pressionados em defender suas crenças, criam a chamada “Arqueologia Bíblica”, no século XIX. Desde o seu início, este tipo de arqueologia tinha (e continua ainda hoje tendo) por objetivo fortalecer o argumento religioso, fincado em bases fundamentalistas, na defesa da verdade bíblica. Marcio Simão de Vasconcellos (capítulo V), situando também as suas discussões no século XIX, coloca em evidência a Escola Teológica Alemã e o impacto por ela trazido ao dizer que a Bíblia, livro sagrado para muitos, era uma forma de literatura. Rodrigo Farias de Souza (capítulo VI) concentra a sua discussão nas primeiras décadas do século XX. A sua análise aborda a primeira fase do movimento fundamentalista religioso cristão nos Estados Unidos. Ele explica o porquê de a Teoria das Espécies ter se tornado o principal “inimigo” dos cristãos, bem como contempla uma interessante discussão sobre como muitas das principais lideranças evangélicas organizaram e sistematizaram o fundamentalismo, o qual, inclusive, acabou por produzir o célebre julgamento do professor John T. Scopes, conhecido como The Monkey Trial, em 1925. Élcio Sant’Anna (capítulo VII) traz uma discussão sobre o que ele chamou de “fundamentalismos” e suas relações com o Antigo Testamento. O seu ponto de partida é o estudo de um caso brasileiro – o Batalhão de Operações Especiais da PMERJ –, muito embora o leitor também encontrará uma discussão sobre as religiões da Era Axial.

Jefferson Ramalho (capítulo VIII) estuda o fundamentalismo religioso protestante desde as suas origens clássicas até o recorte de tempo de 1930 até 1950. Ele analisa o contexto em que seu deu a expansão da ideologia após o The Monkey Trial, quando a teologia liberal ganhou mais força. Mas os fundamentalistas, apesar de terem sofrido pesadas críticas durante este período “cada vez mais se uniam para propagar suas mensagens de conversão religiosa aos seus valores, ou seja, aos fundamentos da fé cristã segundo as suas percepções”. Ramalho fala não apenas de um “novo” movimento fundamentalista, onde o discurso está mais relacionado aos valores morais do cristão, como também analisa como se manifestou/manifesta a ideologia fundamentalista no Brasil. Ivan Dias (capítulo IX) traz a origem o Evangelicalismo, tomado “como uma alternativa ao aparentemente moribundo fundamentalismo do início daquele século [XX]”. Após o “isolamento produtivo”, que aconteceu durante as décadas de 1920 a 1940, Dias, de forma bem clara e detalhada, usa a historiografia para ler eventos e notas que ajudaram a formação do Evangelicalismo. Sérgio Ricardo Dusilek (capítulo X) joga uma interessante luz nas tensões internas do cristianismo do século XX, demonstrando que o movimento fundamentalista cristão não foi unanime entre os cristãos. Dusilek traz argumentos que foram usados para resistir a ideologia fundamentalista, em particular os de Harry Emerson Fosdick. Este teólogo norte-americano foi, se dúvida, um dos maiores opositores ao fundamentalismo religioso cristão. Elizete da Silva (capítulo XI) apresenta uma belíssima análise acerca das origens do fundamentalismo no protestantismo brasileiro. Ela destacou momentos no século XX que impactaram a política, especialmente nas últimas décadas do século XX. A sua ênfase recaiu nas análises de documentos ligados às igrejas Presbiteriana e Batista. Carlos Gustavo Direito (capítulo XII), de forma muito original, analisou processos em que a intolerância religiosa foi vista como um “não-dito” nas classificações criminais. Ele explica que atitudes ilegais de fundamentalistas religiosos não se limitam apenas à intolerância religiosa, mas a outras modalidades de crimes, como homicídio, lesão corporal, crime à liberdade individual e contra à honra. Alexandre de Carvalho Castro e Élcio Sant’Anna (capítulo XIII)

enfocaram a relação entre fundamentalismo e racismo. Eles partiram do conceito de “imaginário radical” de Castoriadis para analisar o cenário brasileiro. Desde o início, os organizadores tinham em mente que o objetivo maior do livro era o seu leitor. De fato, a nossa esperança está depositada no ganho do leitor na descoberta e no conhecimento de um movimento religioso que não para de crescer em nosso país. Que ele possa, ao término de cada capítulo, parar e pensar acerca do nosso tempo presente. Na verdade, a nossa esperança é a de que o leitor, ao terminar o livro, tenha uma visão crítica dos riscos reais por que passa a nossa democracia, sob ataque diário dos fundamentalistas religiosos cristãos. Que este leitor possa ser mais uma voz crítica a dizer sobre a importância do respeito ao diferente, seja este diferente no âmbito da religião, da diversidade de gênero e da diversidade cultural. Rio de Janeiro, Setembro de 2020 Os Organizadores

I. Fundamentalismo Religioso Cristão : em Busca de um Conceito Tayná Louise de Maria André Leonardo Chevitarese1 I. Este conceito deve ser construído e compreendido na História, jamais fora dela. É no seu âmbito que o pesquisador pode observar duas forças temporais interagindo e gestando o fundamentalismo religioso cristão: elas até podem ser lidas isoladamente, mas a definição plena do conceito que aqui se quer propor só se estabelece quando tomadas na sua inteireza. As duas forças temporais que atuam na elaboração deste conceito são a diacronia e a sincronia. A primeira delas age na longa duração histórica, especialmente a partir do século XVI, ao fazer o cristianismo se confundir com os pilares do que se convenciona chamar de “Ocidente”. A segunda força temporal opera na curtíssima duração, particularmente entre as décadas de sessenta do século XIX e a de vinte do século XX, quando alguns importantes acontecimentos2 históricos foram capazes de sistematizar ideias, as quais deram liga e serviram como uma espécie de bússola a indicar a direção correta a ser seguida por alguns grupos cristãos. Estes acontecimentos podem ser sistematizados em quatro encíclicas papais de 1864, 1891, 1893 e 1907; nas conferências bíblicas de Niágara; na Assembleia Geral Presbiteriana de 1910; na publicação de uma série de livros, produzidos originariamente entre 1910 e 1915, em doze volumes, conhecidos como Os Fundamentos (The Fundamentals); e no Movimento Pentecostal. Portanto, é na diacronia e na sincronia históricas que os princípios constitutivos do fundamentalismo religioso cristão se revelam mais claramente. Estes quatro acontecimentos históricos não devem ser lidos como exclusivamente religiosos, como se fossem isentos de uma dimensão política. Historicamente falando, ao menos na percepção dos autores deste capítulo, nenhuma experiência religiosa foi (é e será) capaz de se

organizar sem externar a sua visão sobre a vida que a cerca, de como o mundo é gerido, de como as relações entre os indivíduos são construídas. A política não deve ser aqui pensada como a responsável por macular uma experiência religiosa em particular, como se tal experiência pudesse surgir imaculada, sem contato com o mundo. Quando se pensa na constituição dos princípios que orientaram (e ainda orientam) o fundamentalismo religioso cristão, as ideias que o embasaram foram propostas por lideranças religiosas, algumas delas com fortes conexões na política nacional3. Tais ideias constitutivas do referido movimento, eivadas de valores éticos e de princípios morais, instauraram críticas às experiências políticas geridas por outros grupos políticos, com estes últimos sendo lidos não apenas como “inimigos do Deus cristão”. Foram estes “fundamentos da verdadeira fé cristã” que determinaram (como ainda determinam) a forma de se ler a Bíblia, a fim de respaldar as suas ações práticas e de dar sustentação e “alimento espiritual” aos seus apoiadores. Por fim, mas não menos importante, não deve ser perdido de vista, que o longo processo de tecedura diacrônica envolvendo a (autoproclamada) ortodoxia cristã e “Ocidente” foi de tal ordem bem costurado que ainda hoje se torna praticamente impossível dissociá-los. O processo de amalgamação os tornou uma só substância. Esta tecedura constitui-se no chão histórico onde a sincrônica atua no processo de sistematização de princípios caros ao movimento fundamentalista religioso cristão. Mas, há um detalhe aqui que convém ser destacado: o conceito “fundamentalismo religioso cristão” está sempre em movimento, alterando-se ininterruptamente, a fim de continuar sendo o que ele sempre foi. Ele pode e deve mesmo ser assumido como detentor de características camaleônicas, por trazer em si elementos maleáveis e flexíveis, como forma de facilitar seu processo de adaptação à cada conjuntura histórica. II. Como observado, a diacronia é uma das forças temporais que atuam na construção do conceito “fundamentalismo religioso cristão”. Toma-se aqui “Ocidente” não como um dado natural, mas como um constructo, um conceito assim constituído: (a) por princípios estéticos, filosóficos e políticos advindos de uma cultura mediterrânica fortemente

helenizada; (b) por princípios éticos e morais cristãos consolidados em duas corpora literárias: a revelatória, conhecida como Bíblia judaica e cristã; e a patrística; e (c) por um longo processo, cujo início se deu com as descobertas marítimas de novos continentes a partir do século XV até a sua sistematização no Iluminismo do século XVIII. Vê-se aí ser instaurado um novo paradigma, capaz de produzir rupturas e, por conseguinte, tensões entre o antigo e o novo, na medida em que promove a ideia de um mundo em movimento. Referimo-nos aqui às ideias preconizadas pela Revolução Francesa4, tais como liberdade; secularização; construção do sujeito, senhor de si e dos seus atos; e teoria do conhecimento. Ao tomar por base este novo paradigma, que explicita a violenta tensão entre História e letargia teológica, é possível sistematizar, a partir de Scott (2004: 73), a querela5 entre criacionistas e evolucionistas (ver Quadro I): Quadro I. Dois Diferentes Modelos Explicativos. Criacionistas

Evolucionistas

A natureza permanece largamente estática O universo como possuidor de uma história: o atual cosmo, o planeta Terra e os seres depois dos eventos da criação de Deus vivos que nele habitam seriam diferentes do cosmo, da Terra e da vida passados

Observa-se, assim, que o conceito de Ocidente6 traz em si uma interessante tensão, norteada por elementos contraditórios, que se expressam em três grandes frentes: 1ª. As descobertas de novas terras – América e Oceania – provocaram rupturas nas narrativas criacionistas de Gn 1-2. Em outras palavras, colocaram em xeque o modelo teológico explicativo de criação do ser humano7, de animais, de plantas e do mundo8. Agrega-se a isso as descobertas de fósseis animais no continente europeu9 e da estratigrafia10. Estas duas evidências implicaram uma reavaliação da datação religiosa para a criação do mundo, ainda baseada no calendário judaico, que em pleno século XVII datava-o em cinco mil e quatrocentos anos. Os novos dados, daquele século, empurravam a datação da formação da vida e do próprio planeta para milhões de anos atrás11; 2ª. A teoria do conhecimento se tornava o fio condutor da pesquisa, onde tudo passava a ser regido pelo critério da verificação. Já não havia mais espaço para uma discussão entre a experiência religiosa e as novas informações científicas. Interessante observar que no bojo destas novas

exigências do que seria lido e encarado como conhecimento científico, vê-se surgir na Alemanha o hipercriticismo bíblico, pautado pelo contínuo peso racional junto ao pensamento teológico. Esta característica se fez notar a partir da segunda metade do século XVIII, perpassando todo o XIX, impactando as pesquisas de inúmeros pensadores: referimo-nos aqui, por exemplo, a Hermann Samuel Reimarus (1694-1768), Friedrich Schleiermacher (1768-1834) e David Friedrich Strauss (1808-1874). Enquanto Reimarus tornou-se pioneiro nos estudos sobre o Jesus Histórico, coube a Strauss produzir neste campo de pesquisa os maiores incômodos junto ao público cristão não necessariamente acadêmico de língua alemã e inglesa12. Quanto a Schleiermacher, como bem destacaram Dreher (2002: 65-67) e Sheehan (2005: 223-240), a sua percepção acerca do pensamento religioso, em geral, e da fé cristã, no particular, foram tão radicais e impactantes, que até mesmo os seus críticos se viram obrigados a falar dele. A teologia de Schleiermacher, na sua forma mais simples, era como Karl Barth escreveu bem mais tarde: uma “teologia do sentimento, da consciência”, aquela que considerava a intuição de Deus como sendo sua mais alta aspiração. Neste ponto, em particular, pode-se citar, pela sua relevância, a distinção feita por Schleiermacher (Op. Cit. em Sheehan, 2005: 205) entre religião e Escrituras, aliás uma distinção que jamais alguém tinha ousado fazer: Você é capaz de desprezar os imitadores insignificantes que derivam sua religião totalmente de outra pessoa, ou se apega a um documento morto pelo qual juram e do qual tiram provas. Toda escrita sagrada é apenas um mausoléu da religião, um monumento que existia um grande espírito que não existe mais... não é a pessoa que acredita em uma escrita sagrada que tem religião, mas apenas aquela que não precisa de nada e provavelmente poderia fazer uma para si mesma. Se inicialmente tais ideias estavam restritas ao próprio ambiente teológico alemão, rapidamente elas foram traduzidas por eruditos e estudantes universitários ingleses e de lá chegaram nos Estados Unidos13 (Beale, 1986: 78-80; Lienesch, 2007: 18). Em linhas gerais, este hipercriticismo alemão preconizava que narrativas de milagres deveriam

ser expurgadas da Bíblia, assim como a Teologia não deveria ser tomada como um conjunto de proposições teológicas derivadas da Escritura ou da autoridade da Igreja; 3ª. Os princípios teológicos, até então balizadores da sociedade europeia, estão sob forte ataque, especialmente no decorrer do século XIX, seja pelo avanço do liberalismo – através das faces da laicização, da crescente industrialização, da urbanização, do forte apelo ao consumo de bens e mercadorias –, e do surgimento de novas ideologias, tais como o socialismo e o anarquismo. Agrega-se aí a enorme acolhida dada pela ciência às teses darwinistas, empurrando ainda mais para o limbo a percepção teológica cristã (por exemplo: criacionista e milenarista) do mundo. Os enormes avanços científicos fizeram a Europa se destacar no cenário mundial no século XIX, tornando-a vanguarda em todas as áreas do conhecimento. Pode-se dizer que do ponto de vista da ordem mundial, houve mesmo um grande desequilíbrio na composição das forças. As nações europeias, especialmente, mas não exclusivamente, Inglaterra e França, destacaram-se de tal forma, que num curto intervalo de tempo, um fosso intransponível abriu-se entre elas e os demais países de todos os continentes. Não deve ser perdido aqui de vista o aprofundamento da revolução industrial na Inglaterra no século XIX, com a sua ênfase no consumo. Como que revestindo toda essa noção de bem-estar social e material e de progresso científico e tecnológico, o conceito de civilização não apenas reforçava internamente a ideia aos próprios europeus de que o caminho por eles trilhados era o mais acertado, como também lhes instaurava uma noção de alteridade extremada, pautada em pares binários: europeus/não-europeus; brancos/não-brancos; verdade/mito; religião cristã/magia; cristãos/ateus; progresso/atraso; cultura/incultura; ciência/fé; ordem/barbárie; ideias liberais/ideias milenaristas. Muito embora as críticas feitas pela Modernidade à Teologia tenham sido duríssimas, elas não questionaram o fato de a religião cristã pertencer a Europa, de o cristianismo se confundir com esse continente, de ele ter sido protagonista de importantes conquistas europeias. Mas, ao mesmo tempo, esta mesma Modernidade respaldou experiências avessas aos ideais cristãos mediados por uma concepção europeia, tais como o

comunismo, o anarquismo e o consumismo preconizado como uma das facetas do liberalismo do século XIX. Bem entendido, as críticas científicas constitutivas da Modernidade estavam prioritariamente circunscritas (i) aos círculos teológicos cristãos; (ii) a uma ciência ditada pela Teologia; e (iii) às leis e à sociedade serem norteados por valores éticos e morais teológicos. O conceito de civilização trazia no seu cerne cinco pressupostos básicos: 1º. A identificação do cristianismo como a única e verdadeira religião, em oposição a todas as demais, lidas como falsas e/ou simples expressões do primitivo pensamento mágico; 2º. Concomitantemente, o processo de laicização da esfera pública, com seu forte apelo à ciência, encontrava terreno fértil. Vê-se aí, não só pelo seu modelo de explicação e análise, as teses darwinistas, que se colocavam fortemente em oposição ao criacionismo bíblico (Scott, 2004: 74,81-82 – ver Quadro II), ganharem enorme aderência nos ambientes intelectuais e acadêmicos (Scott, 2004: 91); Quadro II. Duas Diferentes Percepções sobre a Formação do Universo. Criacionistas Evolucionistas Ele se formou repentinamenteEle seria o resultado de um longo processo Sua origem é recente Sua origem é muito antiga Ele é imutável Ele é mutável

3º. A superioridade do europeu em face aos demais grupos humanos. No bojo dessa percepção racista, valores eugênicos eram reforçados, a fim de se manter a pureza racial europeia. Neste ponto, em particular, Scott (2004: 93) chama atenção para o fato de o militarismo alemão e teorias de superioridade racial e eugênica terem sido lidas pelos cristãos americanos conservadores como estando diretamente relacionados à aceitação da evolução pelos alemães no final do século XIX. Na realidade, porém, as visões alemãs de evolução14 eram muito diferentes daquelas de Darwin (ver Quadro III): Quadro III. Evolução na Visão de Alemães e de Darwin. Alemães Darwin Rejeitavam a seleção natural como um mecanismo de A seleção natural como um mecanismo mudança biológica e social de mudança biológica e social Opunham-se à evolução, por meio da seleção natural, pois ela Evolução pela seleção natural implode rompia com a inevitabilidade do triunfo teutônico qualquer ideia de triunfo racial Criticavam a seleção natural por romper com o pressuposto de A seleção natural lida com a seleção dos

que qualquer povo venha a ser inevitavelmente superior a todos os outros

mais aptos em termos de um ambiente particular.

4º. A ideia de nação como base para a construção da identidade nacional, incluindo aí mito de fundação; um povo, uma só cultura; uma raça, um só sangue; e 5º. A necessidade de se levar para todos os continentes a noção de progresso, bem-estar e valores europeus, incluindo, com isso, a obtenção, por meio de conquista militar, de novos mercados. Este processo de expansão territorial, mais conhecido como imperialismo europeu, mostra o seu esgotamento, em oposição às necessidades cada vez maiores de mercados consumidores, no início do século XX, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Este fato representou um forte impacto social: taxas de mortalidade15, assim como o número de feridos e mutilados alcançavam cifras jamais vistas na História. Muitos cristãos norte-americanos, nas suas mais diferentes confissões, interpretaram esse quadro de terror como o mundo sendo posto de ponta à cabeça, pois não tinha ordem, nem Deus (Scott, 2004: 92). Não deixa de ser interessante notar que o darwinismo, e não à ideia de civilização, foi lido como o grande vilão, o responsável por todos esses males. Em uma sociedade que caminhava a passos largos para o secularismo, falar dele era mais convincente para a maioria das pessoas (Lienesch, 2007: 70). Além do mais, por se tratar de uma teoria expansiva, todos os males cabiam no seu interior: das heresias contemporâneas à imoralidade da I Guerra Mundial (Lienesch, 2007: 70). O darwinismo era descrito pelos fundamentalistas como (a) aquele que nega a existência de um Deus pessoal e revelador; (b) destruidor da moralidade humana; (c) criador da guerra de todos contra todos16; (d) avesso à democracia (Lienesch, 2007: 71,84). Em suma, na década de 20 do século XX, o significado do termo evolução estava a milhas e milhas distantes das teorias desenvolvidas por Darwin ou Spencer. A palavra havia se tornado um símbolo de tudo o que estava errado com a nação americana naquela década (Lienesch, 2007: 85). Os antievolucionistas arguiam que a narrativa bíblica da história da criação era base de toda a crença cristã (Lienesch, 2007: 86). A arguição poderia ser demonstrada pela seguinte equação: sem Adão

→ não haveria a queda do homem → sem a queda do homem → não haveria expiação → sem a expiação → não haveria salvação. III. A sincronia é a outra força temporal que atua na construção do conceito “fundamentalismo religioso cristão”. Buscar-se-á aqui apontar alguns momentos históricos decisivos, devido à sua forte repercussão na elaboração do pensamento fundamentalista cristão. Ao longo do século XIX, evangélicos e católicos conservadores caminharam com alguns obstáculos e, por isso, tornaram-se inquietos com as tendências liberais em suas igrejas e com a cultura vigente (Lienesch, 2007: 8). Por muito tempo, esses problemas quase não foram notados, pois seus protestos tendiam a ser específicos, restritos às suas próprias igrejas, além de raros. Este movimento começa a ganhar alguma aderência, à luz de algumas poucas bandeiras que o aglutinava, durante a segunda metade do século XIX e as três primeiras décadas do século XX. Podem ser aqui destacados cinco momentos decisivos. 1º. As Encíclicas Papais. Pode-se listar ao menos quatro encíclicas que impactaram a formação do movimento fundamentalista cristão: (i) “Quanta Cura17”, publicada pelo Papa Pio IX em 8 de dezembro de 1864. A esta encíclica papal, deve ser anexado um segundo documento, denominado de “Syllabus de Erros”. O que chama atenção nestes dois textos são os discursos reprovadores em relação às ideias modernas18, consideradas heréticas, tais como, por exemplo: o comunismo, o socialismo, o indiferentismo, a separação entre Igreja e Estado e o liberalismo19. (ii) “Rerum Novarum20”, publicada pelo Papa Leão XIII em 15 de maio de 1891. Ela faz a defesa da propriedade privada, além de reforçar a crítica ao socialismo e ao anarquismo. Ao mesmo tempo, ela converge com a demanda do movimento operário, fazendo-lhe coro às exigências dos operários. No entanto, para efeito deste trabalho, um aspecto pouco enfatizado nas discussões relativas ao fundamentalismo é a crítica papal

ao consumo desenfreado, lido aqui como uma ação desumana do capitalismo, o que redundou na intensificação da desigualdade social. Em contraste ao consumo, vê-se o Papa valorizar a caridade e as atitudes em favor do próximo. É possível ver aqui uma crítica ao próprio liberalismo, especialmente no que concerne à valorização do individualismo, com possível ênfase no egoísmo. (iii) “Providentissimus Deus21”, publicada ainda durante o pontificado de Leão XIII em 18 de novembro de 1893. Ela chamava atenção da comunidade católica para o criticismo bíblico. Como resposta, o pontífice reforçou como “norma suprema” os ensinamentos da igreja católica, deixando claro que Deus seria o único autor das Escrituras. Portanto, se Deus, o ser perfeito, foi quem escreveu a Bíblia, como esta pode possuir erros e contradições? Por isso, é preciso, segundo Leão XIII, seguir a analogia da fé para que não se tenha uma interpretação ilegítima do livro sagrado. Esse discurso foi de encontro com os estudos que investigavam a Bíblia à luz pelo prisma científico (Sheehan, 2005, especialmente part II, pp. 93-217). (iv) “Pascendi Dominici Gregis22”, publicada no pontificado de Papa Pio X em 8 de setembro de 1907. Ela voltava a reprovar o Modernismo23, entendido aqui, de acordo com Dreher24 (2002: 64), como “as mais variadas ideias e teorias científicas, como a teoria da evolução e os avanços nos estudos relativos à Bíblia e apoiados na crítica textual”. Ao longo do referido documento, lê-se os principais personagens modernistas que podem “contaminar” a doutrina católica, como o filósofo, o leigo engajado nas atividades da igreja, o teólogo, o historiador, o crítico, o apologista e o reformador. O Papa Pio X conclui que dois sentimentos são a causa do Modernismo: o amor às novidades, na medida em que o ser humano rompe com tradições e se abre ao que é novo25; e o orgulho, que pode ser lido como sinônimo de soberba, um dos sete pecados capitais. 2º. As Conferências Bíblicas de Niágara. Ainda na segunda metade do século XIX, em 1875, sete homens criaram um grupo para discutir a Bíblia (Beale, 1986: 23). Desde o início eles tinham por objetivo debater temas relacionados ao campo milenarista, entre os quais destacam-se: profecias; o papel do Espírito Santo na igreja; a segunda vinda de Cristo; e a necessidade de se

conhecer as escrituras. Muito embora se reunissem anualmente, foi em 1878, em Niágara, que este grupo de estudiosos ficou mais conhecido, pois, naquele ano, eles tiraram um credo (Niagara Creed) composto por quatorze tópicos (Beale, 1986: 375-379). Para efeito deste capítulo, quatro tópicos interessam especificamente, pois relacionam as teses milenaristas a uma percepção de mundo fundamentalista: inerrância bíblica (tópico I do credo); reafirmação de um Deus trino, como Senhor do mundo (tópicos II, IV, VI, VII do credo); crítica à materialidade (tópico XII do credo); e milenarismo com sua dimensão teleológica (com maior ênfase no XIV tópico do credo). Alguns autores, como Sandeen (1970), não consideram uma forte ligação entre as conferências de Niágara e a controvérsia fundamentalista vivenciada no início do século XX, pois tais conferências possuíam um caráter eminentemente milenarista. Contudo, cabe afirmar que as conferências de Niágara se opunham ao crescimento do Modernismo, bem como a outras ideias modernas que impactavam a igreja cristã. Em suma, diferentemente do que pensa Sandeen, esses grupos não estavam isentos dos impactos que a Modernidade estava trazendo, incluindo aí as ideologias liberal, comunista e anarquista. Implica dizer, havia a necessidade de discussão e estratégias de lideranças estratégicas frente a um mundo lido como de ponta a cabeça. Por isso, pode-se afirmar, mesmo que as lideranças de Niágara se apresentem, num primeiro momento, como milenaristas, eles fazem parte de um campo marcadamente fundamentalista., com uma crítica implícita às ameaças modernas. 3º. A Assembleia Geral Presbiteriana (doravante AGP) em 1910. Ela ocorreu em maio de 1910 e trazia como marca indelével um tom de reação (i) à teologia liberal, cujos contornos podem ser delineados pelo seu caráter de relativização das narrativas bíblicas; e (ii) à violenta laicização do mundo moderno, com ênfase cada vez maior nos ideais científicos e liberais. Em suma, ao acreditarem estar vivendo numa era de dúvidas e incertezas, nota-se claramente um recrudescer no tom de suas respostas. Reforça-se claramente a crença que a igreja era a única testemunha verdadeira, que se mantinha de pé, firme, na luta contra os chamados erros na fé. Na prática, o seu principal objetivo era o de dar testemunho da verdade revelada por Deus.

Nesta linha, a AGP produziu um credo, em forma de declaração, onde reafirmava princípios julgados como necessários, indispensáveis e fundamentais à fé cristã: (i) o Espírito Santo inspirou as Escrituras, portanto ela é inerrante; (ii) Jesus nasceu de uma virgem, concebido pelo poder do Espírito Santo, sem pecado; (iii) Jesus se sacrificou para fazer a justiça divina e para reconciliar o mundo com Deus; (iv) Jesus ressuscitou, ascendeu aos céus, e está sentado à direita de Deus; e (v) Jesus retornará. (Lienesch, 2007: 10). Ainda nesta linha de reafirmação de princípios considerados fundamentais à vida do crente, aconselhou-se, ao final da AGP, que todos tivessem cuidado, especialmente os pais e professores, para que não fossem advertidos pela igreja por expandirem dúvidas e negações da fé. Ao contrário, esperavam-se deles a preservação e o ensino da palavra de Deus às crianças. Percebe-se aqui claramente o que estava em jogo para os participantes da AGP: a luta em preservar algo que estava sendo ameaçado, isto é, a verdadeira fé cristã. 4º. Os Fundamentos. A publicação da obra Os Fundamentos entre 1909 e 1915. Tratava-se de uma série de doze livretos, com noventa artigos, financiada por dois grandes empresários norte-americanos cristãos conhecidos como Lyman e Milton Stewart (Lienesch, 2007: 8; para mais detalhes, ver: Sandeen, 1970: 190). O objetivo da obra era evidente: educar os crentes nos princípios fundantes do cristianismo, como forma de se manterem firmes diante das ameaças advindas do pensamento liberal e crítico à Bíblia, especialmente no interior das igrejas cristãs norte-americanas. Os autores de cada um daqueles noventa artigos eram importantes pregadores influentes, formados nas fileiras mais conservadoras da teologia cristã. Os seus objetivos eram o de expandir uma visão geral da Bíblia, com noções básicas da fé cristã, como, por exemplo: o pecado; o dispensalismo26; e a graça. Ao analisar os artigos publicados, é possível encontrar vinte e nove sobre os ensinamentos bíblicos, outros trinta e um sobre a defesa da doutrina e outro grupo de trinta artigos que tem como tema os testemunhos pessoais, ataques a outras crenças e discussão direta entre ciência e religião, sendo esse último tema apenas de quatro artigos. De acordo com Sandeen (1970), os Fundamentos serviram para

defender e subsidiar o movimento religioso diante do seu principal inimigo: a ciência moderna. Ela foi tomada como a origem dos principais ataques às crenças cristãs. Contudo, Sandeen (1970) acredita que os Fundamentos não atingiram o objetivo proposto inicialmente: o de enfrentar a ciência moderna. Aqueles livros, por não lidarem diretamente com o embate entre ciência e religião, falharam. Daí o autor (Sandeen, 1970: 206-207) argumentar que “cruzada” dos Fundamentos só se mostrou evidente em retrospectiva. De fato, o impacto pode ter sido mínimo. Contudo, é importante ressaltar dois pontos: (i). Embora tenha somente quatro artigos que enfrente diretamente o embate ciência e religião, os outros oitenta e seis artigos nascem da vontade de enfrentar a teoria do conhecimento em desenvolvimento desde o século XVI. Ao resgatar pontos essenciais bíblicos, enumerar cinco questões fundamentais da fé como forma de defesa a crença cristã, este grupo se mostra opositor a algo, e esse algo seria a ciência; (ii). Não diria que Os Fundamentos falharam, pois é evidente que a série instaura um antes e um depois, pois: (i) os livros serviram como uma resposta ao criticismo bíblico construído ao longo de todo o século XIX, especialmente na Alemanha. Muito dos argumentos dos autores que criticaram diretamente o conhecimento científico, o relacionaram à uma “falsa ciência”, especialmente por ela ainda não ter sido provada; e, como contrapartida, fizeram uma defesa da Bíblia, ao demonstrarem, à luz dos seus argumentos, que ela não conteria erros. Para esses autores, a Bíblia seria a “ciência verdadeira”. (ii) seu público estava espalhado pelo território americano, divididos em denominações, fragmentados em congregações, esses cristãos não se davam conta que compartilhavam ideias semelhantes (Lienesch, 2007: 9). Se viram iguais após partilharem da mesma leitura: um conjunto de doze livretos. Os Fundamentos não apenas nomearam o movimento (Lienesch, 2007: 9), mas acabaram definindo uma identidade comum, ao proclamarem artigos de fé, comunicar um estilo próprio de discurso e também definir diferenças entre eles e os que não integravam o movimento, para se diferenciarem dos cristãos liberais (Armstrong, 2001: 202, 203). Contudo, este movimento é marcado por sua ideologia, mais do que a identidade (Lienesch, 2007: 9).

5º. O Movimento Pentecostal. Convém destacar que este Movimento não é comumente considerado27 quando se analisa o pensamento fundamentalista cristão no século XX. Enquanto os quatro primeiros momentos destacados foram forjados em ambientes europeu e norte-americano, cujas elites gestoras eram em sua quase totalidade formada por pessoas brancas, cuja formação educacional e científica se assentava em bases racistas, uma parte considerável do movimento pentecostal foi gestada e formada por negros norte-americanos, que experimentavam em suas vidas cotidianas toda sorte de violência imposta pelo racismo institucionalizado a partir de leis governamentais. O Pentecostalismo28 também reagiu à Modernidade, muito embora as suas críticas tenham sido diferentes daquelas oriundas de outras experiências cristãs mais tradicionais. Ele combateu a racionalidade trazida pela Modernidade não em bases doutrinais e/ou dogmáticas (Armstrong, 2001: 209), mas pela ênfase numa antiguíssima experiência cristã, recordada no livro de Atos dos Apóstolos29. Esta forma de responder à Modernidade não deixava também de ser uma crítica aberta às igrejas cristãs tradicionais (católica, protestantes e evangélicas), lidas e/ou pensadas como que fossilizadas no tempo e espaço, imobilizadas por seus dogmas e excesso de racionalização teológica. Coube a Charles Fox Parham30 os créditos pela disseminação do Pentecostalismo, em especial pelo movimento que ele criou e se tornou conhecido como Fé Apostólica e suas Missões, constituídas pela adesão de igrejas independentes. No entanto, não deve ser negligenciada a importância de um dos seus antigos estudantes31, William Joseph Seymour, que aliás assistia as aulas sentado numa cadeira no corredor, do lado de fora da sala. Seymour era filho de ex-escravos, pastor de uma igreja interracial, apesar da vigência das Jim Crow Laws32. Ele e sua comunidade foram os responsáveis pela famosa experiência pentecostal ocorrida na “rua Azusa, 312”, em 1906. Kgatla (2016) também tem razão ao lhe atribuir a fundação do pentecostalismo moderno33, pois foi ele, muito mais do que Parham, quem realizou a hibridização daquele movimento, reunindo em um mesmo espaço brancos e negros, dando novos contornos à experiência religiosa cristã norte-americana.

Em linhas gerais, o Movimento Pentecostal tinha por objetivo propagar a salvação pela fé; a santificação do cristão; a cura como parte da redenção; as previsões pré-milenaristas; e o batismo pelo Espírito Santo, manifesto através da glossolalia. Suas ações missionárias ultrapassaram rapidamente as fronteiras dos Estados Unidos, chegando aqui no Brasil, através da Congregação Cristã, em 1910, e da Assembleia de Deus, em 1911. Pode-se perceber, como um balanço preliminar, a partir destes cinco momentos situados entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX, as primeiras grandes sistematizações, trazidas pelos mais diferentes campos confessionais cristãos, não de maneira uniforme, mas por ações individualizadas, de ideias pautadas na reação à Modernidade, a um mundo que alicerçava as suas bases na secularização. Instigados pelas suas lideranças religiosas, muitos cristãos sentiram-se encorajados a seguir por uma direção que julgavam ser a mais acertada: uma direção que parecia a princípio ser exclusivamente religiosa, mas que logo ganhou também contornos políticos, impactando fortemente as relações sociais, motivando o envolvimento daquelas próprias lideranças religiosas e/ou de leigos, por elas respaldados, a atuarem abertamente na política em nível local e/ou nacional. IV. Ao longo do século XX, a começar pela primeira década, os autores que analisaram o fundamentalismo mostraram como esse movimento religioso reagiu ao que ele entendia ser um mundo perdido, dominado pela crença na ciência moderna, lida como uma heresia34. Tal grupo surge entre o final do século XIX e início do século XX, sendo denominado de literalista, pois toma as narrativas bíblicas no seu sentido literal ou absoluto (Scott, 2004: 82). O fundamentalismo fez uma oposição maior à teoria da evolução, gerando forças ao movimento antievolucionismo. (Lienesch, 2007: 69-70). Como exemplo disso, já nos anos vinte do século XX, o movimento religioso se adapta e, de acordo com seu contexto, diante de um suposto inimigo comum a suas crenças. Ao resgatar a Bíblia e a torná-la inerrante, eles arregimentam forças em todas as regiões dos Estados Unidos para se colocar contrários às teses evolucionistas. Encontra-se aí o grande inimigo a ser derrotado pelos religiosos. Toda agitação estava

em torno do perigo que a teoria da evolução representava, especialmente nas escolas, por se tratar da educação das futuras gerações, pois ela poderia diminuir e/oumesmo destruir a fé religiosa dos estudantes35 (Lienesch, 2007: 73). Daí a necessidade de a AGP aconselhar professores e pais a se preocuparem com o ensino de seus filhos e estudantes, de maneira que os jovens não perdessem a fé. Por isso, os cristãos, deste movimento, tiveram como alvo a educação escolar, por acreditarem que os professores seriam mais eficazes na preservação das ideias cristãs nas vidas dos estudantes, e por reconhecerem que esses docentes possuíam contato com inúmeros alunos. Ademais, seria nesse momento, na vida do jovem, que a evolução poderia se tornar algo errado, para que não fossem contaminados pelas teses evolucionistas posteriormente, nas universidades36. Inicialmente, a preocupação estava vinculada ao mundo universitário, os professores eram contratados por suas produções acadêmicas, mesmo em universidades financiadas pelas igrejas. Tornou-se um lugar que tinha como objetivo o conhecimento científico, e por isso, virou sinônimo de Modernismo, ceticismo e ateísmo (Lienesch, 2007:69). Contudo, por motivos já explicitados, preferiram centralizar seus esforços na educação básica. Por parte do movimento, havia preocupação e incredulidade em relação ao ensino das teses darwinistas nas escolas e universidades, pois essas teses tornaram-se sinônimo de questões relacionadas ao ateísmo, agnosticismo e infidelidade. Esta repulsa poderia ser explicada pela associação feita entre os resultados trazidos pela Primeira Guerra Mundial e a teoria evolucionista, como também pela percepção que os esses religiosos tinham de que o darwinismo colocaria em risco o futuro da humanidade, especialmente no que tange à teoria da seleção natural, cujo princípio básico consistia na sobrevivência única do mais forte. Não apenas essa relação, como também a ideia de que a ciência, desenvolvida naquele período, teria sido responsável por produzir um enorme número de mortes através da criação de armas e gases tóxicos (Armstrong, 2001: 203-204) . O movimento agiu também no campo da política, pressionando algumas Casas Legislativas dos Estados Unidos, com o intuito de barrar o que eles entendiam ser ideias agnósticas e ateístas no processo de aprendizagem escolar37. Talvez o caso mais célebre tenha sido aquele no

Estado do Tennessee, onde foi sancionada a Butler Act em 1925. Naquele Estado, proibiu-se o ensino de qualquer teoria que negasse o criacionismo em todas as instituições de ensino. O grupo partiu para o ataque, buscando o embate entre ciência e religião. Foi justamente aí que ele ganhou maior visibilidade, se apresentando para muitos cidadãos norte-americanos, por um lado, e ao mundo, no geral. John T. Scopes, um professor de escola pública do Estado do Tennessee, foi acusado de violar aquela lei. O seu julgamento, conhecido como The Monkey Trial, não se limitou a uma simples acusação do Estado contra um simples cidadão, mas seus protagonistas e espectadores cristãos foram envolvidos na crença de que ali naquele tribunal delineava-se uma batalha espiritual, onde a verdade divina, revelada em Gn 1 e 2, deveria ser protegida de todas as teorias hereges. Apesar de ter saído derrotado do Julgamento do Macaco, John T. Scopes recorreu da decisão à Suprema Corte, onde acabou por ser absolvido em 1927. Já o Movimento Fundamentalista Cristão sofreu uma grande derrota, especialmente entre os seus antigos apoiadores (Armstrong, 20L01: 206): como eles não queriam ser lidos como conservadores, intolerantes, atrasados e autoritários38, aquele movimento que se apresentava bastante forte e aguerrido, lentamente foi deixando de ser destaque, chegando mesmo a quase sumir por completo. Levou um certo tempo até que ele começasse a sair das sombras, ressurgindo com algumas características diferentes daquelas do início do século. Estas diferenças são responsáveis para que nós, os autores deste capítulo, vejamos o surgimento de um neofundamentalismo39 como uma segunda onda. Entre as décadas de 1930 a 1960, ele manteve-se distante da sociedade, inserindo-se na contracultura norte-americana. Neste período de ressurgimento, os neofundamentalistas criaram escolas cristãs, seminários e faculdades teológicos e se fizeram presentes em emissoras de rádio e de televisão (Beale, 1986: 251-260; 261-262; 341351; Silva e Barbosa, 2019: 45-46). Não sem sentido, foi exatamente neste período que os chamados “televangelistas” apareceram com toda a força40, como por exemplo: Billy Graham, pastor batista que se tornou mais conhecido devido à organização de uma “cruzada evangelística” em 1952 que terminou com um culto público nas escadarias do Capitólio (Dias; Barbosa, 2019: 49); Pat Robertson, pastor pentecostal, advogado

e ex-candidato à presidência dos Estados Unidos. Ele fundou a rede de televisão TBN e apresentou o programa The 700 Club; Jim Bakker, um televangelista e empresário, organizou um programa televisivo com sua esposa Tammy Bakker até 1989 denominado The PTL Club; e Jerry Falwell, conhecido por ser o principal televangelistas dos EUA. Ele iniciou seus encontros em uma fábrica abandonada, no Estado da Virginia, em 1956. Após três anos, sua igreja, a Thomas Road Baptist Church, contabilizou aproximadamente dezoito mil membros, com sessenta pastores associados, alcançando milhões de fiéis por meio de trezentos e noventa e dois canais de televisão e seiscentas emissoras de rádio. A renda daquele império era de aproximadamente sessenta milhões de dólares por ano (Armstrong, 2001: 308-309). Enquanto o movimento fundamentalista estava isolado, o governo norte-americano, a partir da segunda metade do século XX, se apresentou como mais forte, interferindo nas legislações estaduais. Por meio não apenas da Suprema Corte, como demais instituições públicas e científicas, ele foi capaz de derrubar toda uma legislação considerada antidemocrática41. Diante dessas atitudes federais, os cristãos fundamentalistas acreditaram que a “religião verdadeira” estaria sendo destruída pelo “humanismo religioso”. Por isso, a partir dos anos trinta, eles criaram escolas cristãs, bem como Associações de caráter estadual e nacional de escolas de educação cristãs para defendê-las no plano das esferas públicas. Acordaram também que seria o momento de romper com o isolamento social, passando a se inserir na política, como forma de combater aquele tipo de humanismo em defesa das leis cristãs (Beale, 1986: 343; Armstrong, 2001: 301). O neofundamentalismo se caracteriza também por um esforço maior em dialogar com o liberalismo, especialmente na sua vertente relacionada ao consumo de bens42. Apesar de não articular de maneira explícita um novo embate com a ciência e o liberalismo, o neofundamentalismo possui como ameaça outros ideais mais relacionados com a política, pois reagem contra as “leis humanas” em oposição às “leis divinas”, como discussão de gênero e sexualidade, imigração, estado laico, democracia e liberdade religiosa. Este novo embate ainda possui como base os cinco pontos essenciais do

Movimento Fundamentalista Cristão; ainda estão na luta por educação religiosa cristã em escolas públicas e ainda são contra ao consumo exagerado. A partir disso, é muito comum a presença de neofundamentalistas (tal como fizeram os fundamentalistas que os precederam) na política. Usam este meio para defenderem suas ideias religiosas e se protegerem daquelas consideradas inimigas da Bíblia. Os neofundamentalistas, apesar de terem nascido e se beneficiarem da democracia, anulam e/ou negligenciam e/ou ainda ignoram, a partir das suas ações políticas, tudo aquilo que forem contrários às suas percepções de vida e de mundo. Os propositores de tais ações, lidos aqui como um pequeno grupo de indivíduos, provavelmente movidos por princípios pautados na teoria política das elites43, não reconhecem a democracia liberal, muito menos aquela pensada em base socialista, pois entendem que o mal da sociedade está no excesso de participação. Por reconhecerem que a desigualdade é um fato natural e que a democracia é impossível de ser alcançada, quando têm a chance, propõem leis excludentes, que a curto ou médio prazos, fortalecem a intolerância religiosa44, respaldando de maneira direta e/ou indireta a eliminação de experiências religiosas que lhe são contrárias, bem como de vidas humanas que pensam o sagrado de forma diferente. V. Não é raro encontrar em trabalhos teológicos interessados no estudo do fundamentalismo cristão definições conceituais voltadas exclusivamente ao âmbito religioso. Assim, por exemplo, Beale (1986: 3) diz: Idealmente, um fundamentalista cristão é aquele que deseja alcançar pelo amor e compaixão as pessoas, que acredita e defende toda a Bíblia como a Palavra de Deus absoluta, inerrante e plena de autoridade, e que permanece comprometido com a doutrina e a prática da santidade. [...] Fundamentalismo não é uma filosofia do cristianismo, nem é essencialmente uma interpretação das Escrituras. Não é nem uma mera exposição literal da Bíblia. A essência do Fundamentalismo é muito mais profunda que isso – é a aceitação e a obediência

incondicional às Escrituras. Nota-se claramente na passagem citada o quanto Beale trata o fundamentalismo como um tipo de experiência religiosa sem qualquer vínculo com a sociedade, como se tal percepção não tivesse suas raízes no campo da política e/ou das relações sociais. A sua definição parece pressupor a ideia do fundamentalista como um homo religiosus, que vive cercado por uma redoma45 sem manter qualquer tipo de vínculo e/ou relação com o mundo exterior. Para nós, os autores deste capítulo, o homo religiosus não existe do ponto de vista histórico46, pois não há ninguém que não esteja inserido no mundo, aliás um mundo que envolve e reveste tudo e todos, que instaura relações e proporciona meios e critérios de valores a cada um dos seres humanos, fazendo-os sempre se posicionar criticamente diante do mundo. Logo, o fundamentalismo religioso é uma resposta crítica dada por um tipo de cristão, o fundamentalista, às escolhas feitas pela sociedade, escolhas essas que ele julga não serem acertadas, condizentes e adequadas às suas crenças e percepções de mundo. Assim, como forma de ultrapassar esses limites conceituais estreitos, produzidos por um tipo de teologia confessional, lança-se mão aqui de um conceito composto por seis vetores, os quais, quando reunidos, definem o que aqui está sendo chamado de fundamentalismo religioso cristão: (i) Ele se apresenta como um movimento ideológico de matriz conservadora, quando não reacionária, cujo campo de ação se dá no interior das igrejas e para além delas, pois o fundamentalismo religioso cristão atua fortemente na esfera pública (ver item I); (ii) A sua ideologia está pautada na reação. Implica dizer, ele nunca será vanguarda. O fundamentalismo religioso cristão reage a um mundo que, ao se movimentar, provoca fissuras em suas bases teológicas. Tais rompimentos têm suas origens nas tensões entre o antigo e o novo, uma vez que este último, ao romper com a dimensão teleológica cristã e seus contornos milenaristas, traz a noção de progresso e a de um tempo contínuo e infinito47 (ver item II); (iii) Ele reúne um enorme espectro de experiências cristãs que reagem à Modernidade, contudo o fundamentalismo religioso cristão é bastante heterogêneo, faltando-lhe unidade e identidade teológica (ver item III).

(iv) Ele traz no seu cerne uma aversão à democracia. Por acreditar estar vivendo em um mundo completamente desorientado, perdido e sem Deus, o fundamentalismo religioso cristão reage à secularização, a um mundo regulado pela razão, onde as igrejas perdem cada vez mais espaço e poder de decisão, sendo forçadas a se submeter às decisões do poder público, cujo dever é proporcionar a liberdade religiosa e a separação entre Igreja e Estado (ver itens III e IV). (v) O fundamentalismo religioso cristão lança mão de meios políticos para propagar suas ideias, com a clara intenção de impor medidas que venham proibir, restringir e/ou invisibilizar às demais minorias religiosas (ver itens III e IV). (vi) Ele apresenta um caráter camaleônico, pois está em movimento desde o século XVI, sendo afetado constantemente pelas forças diacrônica e sincrônica (ver item IV). Apesar de reagir às inúmeras pautas pontuais ao longo do processo histórico, o fundamentalismo religioso cristão nunca foi capaz de produzir qualquer vitória duradoura. 1 Gostaríamos de agradecer aos professores Carlos Alberto Ivanir dos Santos, Felinto Pessoa de Faria Neto, Gabriele Cornelli, Kleber Lucas Costa e Lair Amaro dos Santos Faria que aceitaram ler os originais deste capítulo. Deixamos claro, porém, que possíveis falhas ou omissões são de nossa inteira responsabilidade. 2 Tais acontecimentos não devem ser vistos como orquestrados, mas tomados isoladamente por diferentes confissões cristãs, cada uma delas, a sua maneira, buscando responder a uma mesma conjuntura histórica que julgavam ser hostil à fé cristã. 3 Por política nacional entende-se a ação, em diferentes instâncias políticas, de lideranças religiosas em inúmeros países situados no “Ocidente”. Tais ações não necessariamente ocorreram e/ou ocorrem no mesmo tempo e espaço, mas foram e/ou continuam sendo importantes nichos de atuação para buscar a transformação da sociedade, de acordo com as suas visões de mundo. 4 Considerar aqui os impactos causados ao catolicismo pelas decisões (i) da Assembleia Nacional Francesa (1789-1792), (ii) do jacobinismo extremado de Maximilien Robespierre (de 5 de setembro de 1793 a 27 de julho de 1794) e (iii) da prisão em 1809, seguido de um longo exílio, do Papa Pio VII por Napoleão. 5 Há uma tendência em se pensar a controvérsia criacionismo/evolucionismo como “Deus fez” versus “processos naturais fizeram”. Conforme Scott (2004: 73) observou, esta é uma falsa dicotomia, já que para muitas pessoas religiosas cristãs a criação divina seria o resultado de Deus operando por meio do próprio processo natural. Em outras palavras, uma distinção mais acurada entre criacionismo e evolucionismo situa-se sobre “o que aconteceu” mais do que “quem fez”. 6 Com seu corolário obviamente definindo o que seria “Oriente”. 7 Convém lembrar aqui de Isaac de La Peyrère (1594/1596-1676) e do seu enorme esforço em tentar superar a chamada “lacuna criacionista” bíblica. A sua obra Pré-Adamismo (Praeadamitae), publicada em 1665, fala de duas histórias de criação: a primeira, em Gn 1, falaria dos pré-adamitas (nativos

americanos, polinésios, aborígenes australianos e todos os demais não mencionados na Bíblia); a segunda história, em Gn 2, diria respeito a criação de Adão e Eva. Como muito observou Scott (2004: 76), essa visão teológica de La Peyrère gerou mais problema do que solução, como, por exemplo: se esses pré-adamitas estariam ou não isentos do pecado original? Eles estariam inseridos no projeto salvífico de Deus por meio de Seu filho Jesus? 8 Conforme chama atenção Scott (2004: 75), Europa, África e Ásia eram mencionadas na Bíblia, mas América e Oceania, tomados aqui como o Novo Mundo, não; dessa forma, a Bíblia não continha todo o conhecimento de animais (por exemplo: gambás, lhamas) e plantas (por exemplo: tabaco, tomate, batata e milho). Novas questões foram então colocadas: as espécies recém-descobertas tinham sido criadas ao mesmo tempo em que aquelas conhecidas? Elas tinham desaparecido em alguns lugares? 9 Ainda de acordo com Scott (2004: 75), no início do século XIX, o anatomista francês, Georges Cuvier determinou que ossos fósseis encontrados na Europa eram, na verdade, suficientemente similares às formas vivas para serem classificados como mamíferos ou répteis, apresentando fortes similaridades com elefantes e outras espécies conhecidas. Contudo, esses mesmos ossos eram suficientemente diferentes, tornando claro que eles vinham de espécies que não existiam mais. O desaparecimento dos grandes répteis (dinossauros) e de certos mamíferos, tais como o mamute e os tigres de dente de sabre, eram inexplicáveis. A noção de alguns “tipos” terem sido extintos era teologicamente problemática por causa da implicação de que a criação poderia não ter sido tão perfeita. Ao mesmo tempo, ela gerava problemas para o conceito de pecado original de Adão e Eva. 10 As descobertas de William Smith, que no final do século XVIII recebeu a tarefa de inspecionar o espaço rural inglês, a fim de prepará-lo para a escavação de um sistema de canais, impactaram fortemente o conhecimento em três aspectos: (a) diferentes níveis estratigráficos continham diferentes fósseis. Smith poderia classificar um estrato se ele conhecesse que tipos de fósseis ele continha; (b) quanto mais profundo fosse um estrato, mais diferente eram os fósseis de plantas e animais. Parecia lógico que as camadas mais baixas eram mais antigas do que as camadas mais altas. Assim, havia animais mais velhos que diferiam daqueles mais recentes, e animais extintos que viveram há muitos anos atrás; e (c) estimativas poderiam ser feitas na quantidade de tempo para um vale erodir ou para uma cadeia de montanhas se elevar. Em alguns meios começou-se a se admitir que a natureza era dinâmica na sua essência, ao invés de estática como pressupunha o pensamento criacionista (Scott, 2004: 76-77). 11 Diferentemente dos dados do século XXI que datam os primeiros hominídeos entre 3,9 e 4,2 milhões de anos e o nosso planeta em aproximadamente a 4,5 bilhões de anos. 12 No caso do público cristão de língua francesa, este papel coube a Ernst Renan (1823-1892). 13 A ida de tais obras para os Estados Unidos se deve em grande parte, se não no todo, como forma de subsidiar outras possibilidades de pensar a experiência cristã, contrapondo-se assim às ideias fundamentalistas que já se encontravam por lá bastante arraigadas. 14 Bem entendido, críticos à teoria da evolução existem desde o século XIX, porém, como um movimento, o antievolucionismo só apareceu mais tarde, isto é, na década de 1920 (Lienesch, 2007: 8; Scott, 2004: 91). Ele deve ser pensado como um produto do protesto religioso (com forte implicação política) que viria a ser chamado de Fundamentalismo. Convém observar que a cunhagem deste termo foi feita pelo editor batista Curtis Lee Laws em 1920 (Lienesch, 2007: 34). 15 Pode-se agregar aí também a denominada gripe espanhola, que dizimou milhões de indivíduos nos anos seguintes à Primeira Guerra Mundial. 16 Tal como foi pensada a Primeira Guerra Mundial. 17 https://w2.vatican.va/content/pius-ix/la/documents/encyclica-quanta-cura-8-decembris-1864.html, consultado no dia 15 de março de 2020, às 14h48.

18 Pode-se admitir aqui que o desfecho à toda reação católica à agenda modernista, que foi objeto de violenta crítica na encíclica Quanta Cura e no Syllabus de Erros, se deu no Concílio Vaticano I (18691870), por meio de duas importantes decisões: o episcopado universal do papado e a infalibilidade do Bispo de Roma. 19 Para as críticas contidas explicitamente ao Liberalismo, ver “Syllabus”, Teses 77-80. 20 http://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerumnovarum.html#_ftn16 consultado no dia 18 de março de 2020, às 17h41. 21 http://www.vatican.va/content/leo-xiii/es/encyclicals/documents/hf_lxiii_enc_18111893_providentissimus-deus.html Consulta feita no dia 24 de fevereiro de 2020, às 17h. 22 http://www.vatican.va/content/pius-x/pt/encyclicals/documents/hf_p-x_enc_19070908_pascendidominici-gregis.html consultado no dia 03 de março de 2020, as 16h. Esta encíclica, sob muitos aspectos, reforçava o Decreto “Lamentabili”, do referido pontífice, datado de 3 de julho de 1907, que versava sobre os erros do “Modernismo”. 23 Sob o papado de Pio X, especialmente a partir de 1 de setembro de 1910, todos os clérigos, pastores, confessores, pregadores, superiores religiosos e professores em seminários filosóficos-teológicos católicos tiveram que prestar um juramento antimodernista. Esta obrigação só foi rescendida pelo Papa Paulo VI em 1967. 24 Dreher (2002: 64), ao definir Modernismo, diz ser ele uma forma romano-católica de fundamentalismo. Não deixa de ser interessante notar que a reação ao Modernismo não ficou restrita ao seio catolicismo romano, aliás como o referido autor muito bem salientou em seu livro. Implica dizer, a sua definição se aplica ipsis litteris a outras confissões cristãs, como as protestantes e as evangélicas. Sob muitos aspectos, pode-se dizer, que a crítica ao Modernismo é a forma cristã de fundamentalismo e não apenas a romano-católica. 25 Pode-se entender aqui por “novo” o criticismo que possibilita diferentes leituras bíblicas. 26 Trata-se de uma doutrina teológica cristã baseada em crenças apocalípticas, onde há uma leitura interpretativa da história que é dividida, segundo a doutrina, em épocas até o reinado definitivo de Jesus. 27 Pode-se pensar, por um viés conjectural, que o motivo para tal desinteresse esteja no fato de a quase totalidade dos autores que estudam o Fundamentalismo cristão estar inserido em algum campo confessional – seja católico e/ou protestante e/ou ainda evangélico. Por esta dimensão religiosa, eles tenderiam a não reconhecer o pentecostalismo como uma experiência religiosa cristã válida e/ou merecedora de atenção. 28 A origem moderna desta experiência religiosa é comumente associada a Ch. F. Parham em Topeka, Kansas, em 1901 e/ou relacionada W. J. Seymour em Los Angeles, California, em 1906. Pode-se admitir, no entanto, que suas raízes sejam bem mais antigas, possivelmente remontando ao século XVIII, quando, nos Estados Unidos, um pequeno grupo reagiu às ideias iluministas, voltando-se para experiências religiosas pautadas no êxtase religioso e na transcendência (Cunha, 2011: 4). 29 O Livro de Atos (2:1-12) fala da descida do Espírito Santo sobre os discípulos e discípulas de Jesus durante a festa de Pentecostes. Todos, repletos deste Espírito falaram em línguas (glossolalia). Parham entendia a experiência religiosa de Pentecostes como xenolalia, isto é, falar uma língua conhecida (Anderson, 2005: 53). Para uma análise envolvendo os problemas relacionados à glossolalia no material neotestamentário, ver: Chevitarese (2016: 89-98). 30 Este religioso, acusado de ser homossexual, era um fanático racista, adepto das teorias supremacistas norte-americanas, sendo simpático às causas da Ku Klux Klan. Parham também proclamava a superioridade espiritual e racial da raça anglo-saxônica branca, a partir de uma identificação do trono de Davi com a família real britânica, (Anderson, 2005: 52-55; Campos, 2005: 104).

31 As questões raciais estando na base das críticas de Parham a Seymour, ver: Anderson (2005: 53-54). 32 Jim Crow Laws eram leis estaduais que institucionalizaram o racismo nos EUA. Elas vigoraram entre os anos de 1876 e 1965, impondo a segregação racial em todas as esferas públicas, penalizando e restringindo os direitos civis de pessoas negras. 33 Sobre este aspecto, convém apontar aqui uma interessante observação de Kgatla (2016): “as experiências religiosas de Seymour representam uma fusão consistente de componentes africanos e do novo mundo que persistiram exatamente nas igrejas mais próximas das massas negras”. 34 Especialmente a Teoria das Espécies de Charles Darwin. 35 Na década de 20, do século XX, nos EUA, cerca de quatro milhões de estudantes estavam matriculados no ensino médio (Lienesch, 2007: 73). 36 Acreditava-se que os professores universitários, influenciados pela política de investimento à pesquisa, estavam propícios a ensinar as teses de Darwin. (Lienesch, 2007: 74). 37 Segundo Hannon (2010), não se sabe ao certo em quantos Estados a campanha anti-evolução se fez presente, contudo Nelkin (1982) diz que houve trinta e sete projetos de lei ante evolução pelos estados, como por exemplo: Arkansas, Missouri, Georgia, Carolina do Sul, Minnesota, New Hampshire, West Virginia e Kentucky. Destes trinta e sete projetos, entre 1921 a 1929, os anti-evolucionistas obtiveram vitórias no Tennessee (em 1925), Mississippi (em 1926), Arkansas (em 1928) e Texas (em 1929). Lienesch (2007) nos diz que durante a década de 20, quarenta e cinco iniciativas anti-evolução foram propagadas pelo movimento fundamentalista, tendo no Estado do Tennessee, a legislação mais vigorosa. 38 No Brasil, O Julgamento do Macaco foi visto por uma perspectiva negativa. Para um detalhamento acerca da recepção deste tema, ver: Maria (2019). Para uma leitura mais ampliada deste processo, ver: Armstrong (2001). 39 Denominamos de neofundamentalismo o movimento que ressurge como oposição às ideias Modernistas. Neste livro, alguns autores optaram por utilizar o termo “evangelicalismo” como forma de diferenciar daquele movimento fundamentalista do final do século XIX e primeiras décadas do século XX. 40 Naquele momento, os neofundamentalistas se tornaram seguros em suas empreitadas por alguns motivos, sendo o principal deles o econômico. O sul dos EUA, região conhecida por concentrar o maior número de conservadores cristãos, recebeu grandes investimentos tecnológicos e industriais, o que impactou positivamente a vida econômica de milhares de fiéis que ali residiam, resultando, assim, no crescimento econômico de muitas igrejas evangélicas. Naquele período também algumas lideranças religiosas se firmavam na mídia. Assim, por exemplo, em 1979, uma pesquisa Gallup mostrou a existência de aproximadamente 1300 emissoras de rádio e de televisão evangélicas que alcançavam em média 130 milhões de pessoas, com lucros entre 500 milhões a bilhões de dólares. Para um aprofundamento Armstrong (2001: 300). 41 inação de cor, religião e sexo, ocasionando futuramente o fim da Jim Crow Laws, em 1965, e respaldando a inserção de muitas mulheres no mundo do trabalho a partir de 1964; (c) as chamadas “leis de sodomia” – medidas criadas para impedir várias práticas sexuais, inclusive a homossexualidade – começavam a ser revogadas pelos Estados a partir da década de 1960. Aqui, em particular, vale a pena destacar as denominadas “revoltas de Stonewall em 1969; (d) orações religiosas das escolas públicas em 1962 (Engel v. Vitale); e (e) leitura bíblica também nas escolas públicas em 1963 (Abington v. Schempp); e (ii) a Associação Americana de Psiquiatria em 1973 deixou de considerar a homossexualidade como doença. 42 A maior parte do catolicismo e setores minoritários do protestantismo permanecem críticos ao incentivo desenfreado ao consumo de bens e de mercadorias.

43 Recomenda-se aqui a importante análise feita por Miguel (2002: 483-511). 44 Para uma excelente análise acerca da prática de intolerância religiosa entre fundamentalistas cristãos contra experiências religiosas minoritárias ou não na história brasileira, ver: Santos (2019). 45 Entendida aqui como sendo a sua própria comunidade religiosa. 46 Opomo-nos aqui a uma ideia cara a Eliade (1992) – cujos trabalhos no campo da história das religiões comparadas continua a constituir um importante manancial de caminhos para novas pesquisa: a de que as sociedades tradicionais, em oposição à moderna, tenham produzido o homo religiosus. Não há dúvida que em tais realidades históricas, a natureza dominava amplamente a cultura e os fenômenos naturais eram muitas vezes lidos como manifestações inequívocas do divino, fosse ele deus e/ou deuses. Admitimos, enquanto autores deste capítulo, que este homo religiosus deva ser entendido como um indivíduo tão repleto de deus e /ou de deuses, que nada que acontecia na sua vida e/ou no seu espaço de atuação social não fosse por ele lido e interpretado como a manifestação inequívoca do divino. Portanto, compreende-se aqui que a existência de uma tal pessoa era bastante significativa em sociedades tradicionais. Mas, a nossa discordância a Eliade, e a todos que com ele comungam de tal ideia, se dá no fato de (i) a ideia de uma compartimentação do sujeito histórico é contemporânea e não de sociedades tradicionais; (ii) se o homo religiosus existisse, ele também se faria presente entre nós contemporâneos; e (iii) que tanto nas sociedades tradicionais, quanto na moderna, ele nunca existiu na sua completude, pois não se tem notícia de ele ter vivido numa redoma. Voltamos a insistir: um sujeito histórico recortado em compartimentos sociais é uma ideia contemporânea. Em outras palavras, ele não era (nem é) “vinte e quatro horas” do seu dia homo religiosus. Esta mesma leitura também se aplica a todas as outras categorias, como por exemplo: homo oeconomicus, homo juridicus, homo politicus... Para o uso de homem divino como uma categoria de análise bem mais rica e interessante do que a de homo religiosus utilizada por Eliade, ver: Justi (2017). 47 Convém enfatizar aqui que a noção de progresso e de tempo infinito descartam por completo toda e qualquer possibilidade de intervenção de agentes a-históricos na História.

II. Iluminismo Luzes e Sombras de uma Ideia. Lair Amaro de Faria “Mais do que nunca”, assinala Steven Pinker, “os ideais da razão, da ciência, do humanismo e do progresso necessitam de uma defesa entusiasmada”. Com efeito, ele conclui, é mister dimensionar o perigo que advém quando não damos “o devido valor às realizações do Iluminismo”. Nesse mesmo diapasão, Tzvetan Todorov salienta que o século XX, testemunha de duas guerras mundiais, regimes totalitários na Europa e para além dela e das consequências mortíferas das inovações tecnológicas, aparentou desmentir as esperanças formuladas pelos filósofos das Luzes e, por conseguinte, fez emergir a suposição, quase uma verdade, que “as ideias trazidas por palavras como humanismo, emancipação, progresso, razão, livre arbítrio, caíram em descrédito” (Todorov, 2008: 23). Assumindo, portanto, como ponto de partida o apelo de Pinker e o lamento de Todorov, convém traçar os caminhos por meio dos quais o Iluminismo veio à lume, sem perder de vista, por outro lado, que ao clamar por uma “defesa entusiasmada”, o professor de ciência cognitiva aponta para um possível esvaziamento de sentido dos princípios iluministas em uma sociedade que eles próprios deram forma e conteúdo. Importa sublinhar, no entanto, que inexiste um momento exato em que se possa afirmar que o Iluminismo foi instaurado. Ele não tem certidão de nascimento tampouco uma cartilha na qual se possa ler alguma espécie de juramento ou credo. Com efeito, labora em erro quem supõe que o Iluminismo teve um fundador ou que consistiu em um movimento harmônico e unificado em torno dos mesmos princípios. Como salienta um entusiasta das Luzes, aquela foi uma época “mais de debate do que de consenso; de assustadora multiplicidade, aliás” (Todorov, 2008: 14)48. Assim, convencionou-se situar o Iluminismo adentrando no cenário europeu no final do século XVIII, contudo, incorreremos em um equívoco se olvidarmos que as suas ideias estavam embrionárias na

Revolução Científica e na Idade da Razão que se dão no século XVII e que tais ideias permaneceram em vigor quando o liberalismo clássico atingiu seu apogeu, ou seja, na primeira metade do século XIX (Fortes, 1985: 23). Acima de tudo, porém, cumpre sublinhar que se uma certa memória acerca dos iluministas os reconhece como portadores da “luz” que espantava as trevas da ignorância, estes albergavam, mesmo que inconscientemente, um projeto de poder. Curiosamente, no entanto, salta aos olhos a constatação de que essa tese passa ao largo das considerações de Pinker e Todorov, para citarmos apenas dois dos mais destacados pensadores contemporâneos que dedicaram seu tempo para escrever sobre aqueles baluartes da civilização ocidental49. Ambos, a propósito, também não concedem espaço em suas considerações a respeito do Iluminismo para um processo de reconstrução do passado operado por historiadores e que, como assinala John Robertson (2015), alçou a Época das Luzes a patamares ímpares em virtude de demandas do presente. Robertson observa que as experiências traumáticas vividas na Segunda Guerra impuseram sobre historiadores e críticos literários a necessidade de oferecer à Europa um passado melhor. Por assim dizer, menos sombrio. Nesse sentido, em vez dos nacionalismos e das doutrinas racialistas do século XIX, os intelectuais remontaram a um então muito mais atrativo século XVIII e descobriram o Iluminismo. Esse processo de reconstrução histórica ensejou, consoante Robertson, a constatação de não haver condições mínimas para se pensar em um Iluminismo ou em “o” Iluminismo. Consequentemente, muitos pesquisadores acordaram que a maneira mais adequada de se referir àquele contexto devia ser “Iluminismos”. O que, como ficará demonstrado, não é uma escolha de Todorov e Pinker. Assim, vejamos como Todorov (2008: 14) se pronuncia: (...) reconhecemos sem muita dificuldade a existência do que se pode chamar de projeto das Luzes. Três ideias se encontram na base desse projeto, as quais nutrem também suas inumeráveis consequências: a autonomia, a finalidade humana dos nossos atos e, enfim, a universalidade.

No que tange à autonomia, Todorov explica que se trata do reconhecimento da necessidade imperiosa de emancipar-se de toda tutela que, de fora para dentro dos sujeitos, impõe determinativamente o que se deve pensar. Com efeito, o que se almeja é a liberdade para examinar, questionar, criticar e poder, com isso e por isso, pulverizar a sacralidade de qualquer dogma ou instrução. Importante enfatizar, ademais, que essa proposição dos iluministas, consoante Todorov, implicava afrontar qualquer autoridade que tivesse como traço principal o sobrenatural. Logo, é quase desnecessário dizer, a maior parte das críticas era dirigida à religião. Contudo, é bom não se deixar ludibriar, já que os iluministas não advogavam o ateísmo, mas a “religião natural, o deísmo, ou uma de suas numerosas variantes” (Todorov, 2008: 16)50. Mais à frente, Todorov assinala que o projeto das Luzes tinha em mente que os homens estruturariam suas leis e normas sob novas bases, expulsando, por sua vez, a magia e a revelação. Com efeito, o abandono “à certeza da Luz descida do alto” resultaria em um estado de coisas no qual “a pluralidade das luzes” seria a tônica à proporção que essas seriam difundidas “de pessoa para pessoa” (Todorov, 2008: 16). Importante destacar, para reflexão crítica posterior, como Todorov enxerga a disposição dos filósofos das Luzes em democratizar o conhecimento (Todorov, 2008: 17): Os promotores desse novo pensamento queriam levar luzes a todos, pois estavam convencidos de que serviriam ao bem de todos: o conhecimento é libertador, eis o postulado. Favorecerão assim a educação em todas as suas formas, desde a escola até as academias, e a difusão do saber, por publicações especializadas ou por enciclopédias dirigidas ao grande público. Muito embora essa fosse a pretensão dos filósofos iluministas, como salienta Todorov, é curioso que falte em sua apologia das Luzes qualquer ressalva ao “todos” que ele utiliza no fragmento acima. Com efeito, temos a impressão – que pode estar equivocada – que os atuais comentadores do iluminismo romantizam o passado e, por seu lado, atuam como agentes de um processo de enquadramento de memórias. Isso o dizemos porque estamos nos embasando em não tão recentes críticas desenvolvidas por feministas e não feministas dirigidas a um dos

expoentes do Iluminismo, Jean-Jacques Rousseau. Assim, no pensamento rousseauniano homens e mulheres não tinham a mesma natureza e, por esse motivo, não deviam receber a mesma educação. Em suas próprias palavras (Rousseau, 1992: 430): Uma vez demonstrado que o homem e a mulher não devem ser constituídos da mesma maneira, nem de caráter nem de temperamento, segue-se que não devem receber a mesma educação. Seguindo as diretrizes da natureza, devem agir de acordo, mas não devem fazer as mesmas coisas: o fim dos trabalhos é o mesmo, mas os trabalhos são diferentes e, por conseguinte, os gostos que os dirigem. A citação acima não retira a validade da proposição de Todorov em torno da pretensão dos iluministas de colocar em funcionamento uma ampla mobilização para, de uma forma ou de outra, fazer a educação chegar a “todos”. Afinal, Rousseau postula uma educação franqueada tanto aos homens quanto às mulheres. No entanto, essa educação não deve ser a mesma para uns e para outros51. Mais que isso, o autor de O Contrato Social peremptoriamente declara (Rousseau, 1992: 463): A procura de verdades abstratas e especulativas, dos princípios, dos axiomas nas ciências, tudo o que tende a generalizar as ideias não é da competência das mulheres, seus estudos devem todos voltar-se para a prática: cabe a elas fazerem a aplicação dos princípios que o homem encontrou. Mas isso foi uma digressão aqui inserida a fim de pontuar que olhos atentos e sensibilidades aguçadas perceberam que, mesmo muito bemintencionados, os corifeus das Luzes eram fruto de sua época e, por conseguinte, não estavam acima do bem e do mal52. Voltemos a caminhar seguindo os passos de Todorov. O Iluminismo, segundo o crítico literário, instaurou novas finalidades ao agir humano. Ou seja, os homens não se sentem mais obrigados a tudo fazer tendo em vista Deus. É o bastante, agora, agir aqui neste mundo, encontrando um sentido para a existência terrena, desviando a preocupação com a vida após a morte para uma busca da felicidade possível enquanto se está vivo.

Convém ressaltar que o agir humano, sob o Iluminismo, encontrava uma restrição diretamente relacionada à noção de que todos os seres humanos possuem direitos inalienáveis. Direito à vida, direito à integridade de seu corpo. Em decorrência desse fator, a pena de morte e a tortura tornavam-se uma aberração. Por conseguinte, decorreria dos princípios iluministas o axioma de que “o pertencimento ao gênero humano, à humanidade universal, é mais fundamental ainda que o pertencimento a determinada sociedade” (Todorov, 2008: 21). Que engendra, com efeito, a terceira e última das ideias que dão lastro ao Iluminismo: a universalidade. Com todo o seu entusiasmo por aquele movimento de ideias, Todorov clama que tal universalidade fomenta o combate pela igualdade entre os gêneros, a luta pelo fim da escravidão, o reconhecimento da dignidade dos pobres, dos excluídos, dos marginais. Implica dizer, fazer acontecer o melhor dos mundos possíveis. Todorov frisa que os viajantes e sábios daquele período, agora informados pela noção de universalidade, mudam seus entendimentos acerca dos povos longínquos com quem travam contato ou tomam conhecimento. A multiplicidade de formas que a civilização pode assumir, ele aventa, desperta o senso no homem do Iluminismo de que não há mais como confundir a sua tradição com a ordem natural do mundo. Todorov, ao que tudo indica, apaga da história moderna todo e qualquer traço de etnocentrismo que, porventura, haja ocorrido quando do contato entre esse genérico homem do Iluminismo e as sociedades que jamais souberam da sua ocorrência53. Entretanto, cumpre não esquecer que, na obra aqui sendo escrutinizada, Todorov se encarregou da tarefa de iluminar o Iluminismo, ou melhor, tirar o véu que cobre seu espírito. Afinal, compartilhando dos mesmos receios de Pinker, ainda não nasceu outro movimento que a ele se iguale. Razão de sobra, portanto, para manter vivo o seu generoso legado. Legado este que fica inegavelmente patente pelo fato de a democracia ter se tornado um “modelo querido ou desejado em todo lugar” e de os “direitos universais do homem” serem “considerados como um ideal comum” (Todorov, 2008: 23). Luiz Fortes, professor de História da Filosofia da USP, em um livrinho de vulgarização do conhecimento histórico voltado para um público extra acadêmico, explana sobre o Iluminismo – no singular,

ainda que reconheça tratar-se de uma “multiplicidade de pontos de vista doutrinários heterogêneos” (Fortes, 1985: 14) – e aponta que a sua característica mais marcante é uma “profunda crença na Razão humana e nos seus poderes” e que tal crença implicava “esperar que cada homem, em princípio, pense por conta própria” (Fortes, 1985: 9). Esse pensar por conta própria, isto é, utilizar a Razão, visava a provocar e a estimular a curiosidade intelectual do homem daquele período a fim de que a Fé, jogada para escanteio, não mais fosse a detentora da última palavra54. Corolário dessa característica central do Iluminismo, a Razão não deveria admitir qualquer autoridade que, acima dela, lhe ditasse o caminho a seguir. Ela se colocava, portanto, como o árbitro final de todas as coisas. Soberana e livre, qualquer limite ao seu emprego constituía um atentado de lesa-humanidade. A emancipação da Razão impulsiona, por conseguinte, os luminares do movimento a desbravarem um terreno já conhecido, porém sob novas orientações. O passado é esse lugar. O estudo do pretérito lhes mostra um arsenal significativo de conhecimentos adquiridos e que, bem manuseados, poderá ser útil ao bem-estar geral. Ensejando, enfim, o achado de uma nova ideia reguladora, a saber, a ideia de Progresso. Convém, no entanto, ter clareza do que essa ideia queria afirmar para os iluministas. Consoante Pinker, labora em erro quem supõe que a crença iluminista no progresso se confunde com a romântica crença oitocentista segundo a qual forças, leis, lutas, poderes evolutivos, impulsionariam a humanidade sempre para o alto e avante. Todorov, reiterando o pensamento de Pinker, recorre a Rousseau para demonstrar que a crença de que a História segue como o cumprimento de um objetivo, ou seja, que é teleológica, não se coaduna com o Iluminismo. Com efeito, a espécie humana, para Rousseau, não está em uma marcha para o progresso, mas conserva uma capacidade de se melhorar e aperfeiçoar o mundo, sem que, no entanto, haja qualquer garantia de sucesso nessa jornada. Assim, a observação do passado assegura que é em vão que se pode alimentar alguma esperança em um progresso linear da humanidade. Mesmo com tudo isso, as Luzes sofreram críticas acerbas por seus contemporâneos e seus pósteros. Como sublinha Todorov, os baluartes

do Iluminismo e suas ideias foram contestados em virtude do fato de terem colocado “o homem no lugar de Deus como fonte de seus ideais, a razão de cada indivíduo (...) em vez das tradições coletivas, a igualdade em vez da hierarquia, o culto da diversidade em vez da unidade” (Todorov, 2008: 34). À medida em que Todorov orientou-se pela premissa de que o Iluminismo e os iluministas necessitam ser preservados das injúrias que sobre eles foram e são lançadas, seu próximo movimento é destacar a recriminação que se faz em torno de um suposto fornecimento de bases ideológicas para o colonialismo europeu do século XIX. “Um olhar um pouco superficial sobre a história das ideias”, ele assinala, “poderia, com efeito, nos fazer crer que o pensamento das Luzes preparou as futuras invasões” (Todorov, 2008: 36). Para Todorov, não é relevante que Condorcet projetasse um Estado universal homogêneo obtido por meio da intervenção dos europeus. Antes, a empresa colonial europeia quando toma emprestado, explicitamente, discursos e o ideário do Iluminismo tão somente prova o prestígio que esse movimento intelectual ainda goza entre os agentes da colonização. Assim, contrariando os detratores das Luzes nesse quesito, Todorov aventa que foram os movimentos anticolonialistas que, de fato, se apropriaram dos princípios iluministas, pois inspiraram-se nas ideias de “universalidade humana, a igualdade entre os povos e a liberdade dos indivíduos” (Todorov, 2008: 38). Consciente, portanto, dos questionamentos lançados em torno da relevância atual do Iluminismo e de seus ideólogos55, Todorov se esforça para convencer seus leitores que, apesar das funestas e sombrias contradições que obnubilam tanto o presente quanto o futuro, não é de bom tom ignorar as Luzes. Para ele, as dificuldades que perpassam a humanidade e trazem angústias a todos podem ser sanadas com apoio nos princípios iluministas. Com a condição de compreender que não são todas as propostas dos filósofos das Luzes formuladas no século XVIII que devem ser acolhidas, pois, o mundo – obviamente – mudou. Sua sugestão, com efeito, consiste em uma verificação minuciosa do Iluminismo a fim de refunda-lo. De acordo com as suas próprias palavras (Todorov, 2008: 29):

Preservar a herança do passado, mas submetendo-o a um exame crítico, confrontando-o lucidamente com suas consequências desejáveis e indesejáveis. Fazendo isso, não arriscamos trair as Luzes; ao contrário: a verdade é que as criticando, continuamos fieis a elas, e colocamos em prática seu ensinamento. Em seu repensar pretensamente refundador das Luzes, Todorov faz a alegação de que as ideias exaradas pelos filósofos do Iluminismo são universais. Implica dizer, para ele, antes da revolução suscitada por esse movimento intelectual europeu do século XVIII, identificam-se seus traços e ecos em tempos e locais muito, mas muito distantes. Todorov encontra evidências do universalismo das ideias iluministas na Índia do século III a.e.c., no Islã dos séculos VIII ao X, na renovação do confucionismo ocorrida na China e na África, no bojo das lutas emancipatórias entre os séculos XVII e XVIII. Em virtude desse fato, Todorov, então, interroga suas leitoras e seus leitores: se essas ideias estavam em circulação em diferentes civilizações e em tempos tão distintos, por que motivos elas prosperaram justamente na Europa? Quais os diferenciais que possibilitaram esse lugar de destaque no proscênio mundial? A multiplicidade dos Estados estabelecidos no continente europeu, em primeiro lugar. Assim, atestando esse dado, nada como recorrer a David Hume e sua opinião sobre a China (Todorov, 2008: 139): Na China parece existir um fundo considerável de cortesia e de ciência do qual poderíamos esperar que, em tantos séculos tivesse eclodido alguma coisa mais perfeita e mais acabada do que aquilo que realmente já surgiu. Mas a China é um vasto império falando uma única língua, regido por uma lei única, unido pela mesma maneira de viver. Por conseguinte, Todorov nos leva a inferir, aquilo que seria a força da civilização chinesa, constituiu-se em sua maior fraqueza e uma barreira à emergência dos princípios iluministas em seu solo. A multiplicidade de Estados, por sua vez, engendrou a pluralidade, por exemplo, de religiões e religiosidades. Nesse sentido, Todorov traz

para a reflexão de suas leitoras e de seus leitores, as elucubrações dos próprios filósofos das Luzes. Em Voltaire, por exemplo, ele encontra a seguinte assertiva: “Se só houvesse na Inglaterra uma religião, seria de temer-se o despotismo; se houvesse duas, elas cortariam a garganta uma da outra; mas há trinta, e elas vivem em paz e felizes” (Todorov, 2008: 140) e em Montesquieu, mostra-se útil para seu argumento destacar que, à medida que as inúmeras religiões inculcam em seus fiéis boas regras de conduta, “o que haveria de mais capaz de animar esse zelo do que sua multiplicidade?” (Todorov, 2008: 140). Por fim, Todorov expõe o que para ele seria a lição magna das Luzes. A saber, fazer nascer a unidade da pluralidade. Em sua elegia do Iluminismo, ele não tergiversa por um segundo sequer e presta uma homenagem quase comovente (Todorov, 2008: 148): As Luzes são a criação mais prestigiosa da Europa, e elas não poderiam ter visto o dia sem a existência do espaço europeu, ao mesmo tempo uno e múltiplo. Mas o inverso é igualmente verdadeiro: são as Luzes que estão na origem da Europa, tal como a concebemos hoje. De modo que se pode dizer sem exagero: sem a Europa, nada de Luzes; mas também: sem as Luzes, nada de Europa. Resta-nos, portanto, após todas essas considerações de Pinker, Todorov e outros, enunciar uma derradeira indagação: Por que importa estudar ainda hoje os Iluminismos? Como uma resposta possível, cumpre conhecer a história de uma mulher: Ayann Hirsi Ali. Ayaan Hirsi Ali nasceu na Somália, em 1969. Ainda criança, em virtude da militância política de seu pai, teve que deixar o seu país. Ela e sua família passaram pela Arábia Saudita, pela Etiópia, até se estabelecerem no Quênia. Como foi criada em uma família islâmica, viu-se forçada a casar-se com um primo distante, no Canadá. A jovem, no entanto, escolheu enfrentar sua família, as tradições, a religião e fugiu para a Holanda. Nesse país, ela engajou-se em um trabalho como intérprete de muçulmanas que passavam por situações parecidas com as dela. Por conseguinte, ela atraiu a ira de pessoas dos mais distintos espectros religiosos e políticos. Com palavras e textos como armas, Hirsi Ali denuncia os maus tratos sofridos pelas mulheres mulçumanas ao redor

do mundo. Mais uma vez atacada por descontentes, ela refugia-se, por fim, nos EUA. Em seus escritos, a autora declara que o islã precisa de um Voltaire que convide os muçulmanos a se libertar das superstições, a usar a mente e não a emoção, para constatar, como ele o fez no século XVIII, que ‘Nada pode ser mais contrário à religião e ao clero do que a razão e o senso comum (Hirsi, 2008: 59). Quaisquer que sejam as críticas aos Iluminismos e aos seus responsáveis, o testemunho de Hirsi Ali constata que, não obstante suas sombras, as Luzes ainda podem fazer a diferença no mundo. 48 Robert Darnton, por outro lado, rejeita essa constatação e pondera: “A vida intelectual floresce igualmente em várias áreas favorecidas do continente, especialmente nos Países Baixos (...); no norte da Alemanha (...); e na Itália (...). Mas o verdadeiro berço das Luzes é Paris” (DARNTON, 2001: 23). 49 Foi preciso emergirem os estudos pós-coloniais para que o Iluminismo e suas consequências para os povos subalternos viessem a ser reavaliado. 50 Robertson frisa que há muitas visões clichê acerca das atitudes dos iluministas para com a religião, postulando que o mais coerente é reconhecer um espectro amplo de posicionamentos. 51 Todorov volta a tocar nesse ponto mais adiante sem, novamente, adicionar qualquer ressalva: “Também a escola, destina-se a ser subtraída ao poder eclesiástico para se tornar um lugar de propagação das Luzes, aberta a todos, portanto gratuita, e ao mesmo tempo obrigatória para todos” (TODOROV, 2008: 19). 52 Luiz Fortes igualmente alberga essa concepção, asseverando que os iluministas sonhavam em “intervir nos acontecimentos e desenvolver uma intensa atividade pedagógica e civilizatória” (FORTES, 1985: 28), sem, no entanto, ressalvar os recortes de gênero e de raça. 53 O ponto de vista de Todorov é, até certo ponto, compreensível, pois cumpre reconhecer que a sua leitura das Luzes não dialoga com os estudos pós-coloniais. Com efeito, se assim Todorov o fizesse, talvez ele ponderasse sua fala e admitisse, com Achille Mbembe, que “o negro e a raça têm sido sinônimos no imaginário das sociedades europeias. (...) a aparição de uma e de outra no saber e no discurso modernos sobre o homem (e, por consequência, sobre o ‘humanismo’ e a ‘humanidade’) foi, se não simultâneo, pelo menos paralelo; e, desde o início do século XVIII, constituíram ambos o subsolo (inconfesso e muitas vezes negado), ou melhor, o complexo nuclear a partir do qual se difundiu o projeto moderno do conhecimento – mas também de governo” (MBEMBE, 2018: 12). 54 Cumpre destacar, com o próprio Fortes, que nos países de maioria protestante, “as igrejas reformadas participaram, (...), da tendência no sentido de favorecer a valorização da Razão, do livre exame das Escrituras e de se contrapor ao domínio absoluto do dogma e da fé” (FORTES, 1985: 18). 55 É de suma importância deixar registradas as críticas proferidas pelos fundadores da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Max Hokheimer, em “Dialética do Iluminismo”, segundo as quais em sua ambição de reordenar o conhecimento humano para o benefício da humanidade, a filosofia do Iluminismo criou novos instrumentos de dominação tanto tecnológicos quanto políticos.

III. A Astronomia Moderna e as Interpretações da Bíblia: novas teorias da origem e do fim do mundo para novas teorias para o mundo Carlos Ziller Camenietzki Um dos grandes problemas da vida religiosa dos povos emerge com muito vigor nas confissões reveladas. A existência de um texto que traz aos fiéis a moral, os fundamentos das crenças e os modos de sua organização, impõe uma homogeneidade bastante grande na vida comum. De fato, revelar a Verdade aos humanos em um texto, um escrito, também é uma forma de fixá-la. As coisas certamente andam bem, quando a língua e os costumes em que a confissão foi revelada mantêm-se com poucas e pequenas variações. Mas quando a revelação insiste em permanecer viva por muito tempo, por gerações e gerações, por séculos e séculos, ao ponto de desaparecerem os falantes da língua que revelou a fé, a moral e os modos retos de proceder, tem-se um problema de difícil resolução. Afinal, será necessário traduzir as línguas mortas nas línguas faladas e vivas dos povos; será também necessário adaptar ou ocultar aqueles elementos que ficaram em desuso ao longo de tantos séculos, buscando preservar aquilo que se considera o ensinamento mais importante. A Revelação cristã é dependente daquela judaica e decididamente não foi escrita na língua que consolidou a expansão do cristianismo, o latim. Em princípio, nada de grave, bastam boas traduções e o problema fica resolvido. No entanto, essa Revelação seria complementada por textos escritos há quase dois mil anos, em línguas que não eram apenas aquela da primeira. Examinando mais minuciosamente: a Verdade do povo hebreu seria traduzida ao latim e, com a decadência dessa cultura a partir do fim do Império Romano, desta última às línguas vernáculas modernas. Com isso, problemas próprios e decorrentes de haver uma Revelação, se agravam sensivelmente. Afinal, há um escrito ao qual recorrer quando

algo efetivamente novo se apresenta e esse texto é muito antigo, tão antigo que até a língua com que foi escrito já não é mais falada por ninguém. Recorrer a uma Revelação antiga para enquadrar algo novo não é procedimento simples. Some-se a isso o fato do cristianismo ocupar largo território na Europa, onde as populações viviam tradições e culturas bastante diferentes e em perpétua transformação. Expressa muito bem esse problema a distinção viva ainda hoje entre o cristianismo latino e o helênico cuja separação ocorreu há muito e muitos séculos. As confissões não reveladas, ao contrário, não dispõem de um texto ao qual recorrer diante dos dilemas culturais e morais que a vida coloca ao longo de tempos tão dilatados. Elas buscam resolvê-los sem recorrer a uma verdade antiga e fixada em um escrito. Mas essa tensão própria das confissões reveladas ficou especialmente evidente quando os trabalhos das sociedades expandiram o conhecimento do mundo para muito além daquilo que se tinha como certo e aceito universalmente. Comprova isso o forte impacto nas populações cristãs, sobretudo urbanas, da primeira chegada de europeus ao Caribe, da primeira circunavegação do globo e das novas teorias filosóficas sobre a reorganização do céu. É claro, nos tempos em que a Revelação foi feita, nada disso era sequer imaginável. Mas o próprio cristianismo também se transforma, e não é indiferente que na época das grandes inovações na cultura e na moral pública, os cristãos do Velho Mundo largaram sua unidade confessional e eclesiástica pela exaltação de interpretações variadas do que seria a Revelação. A interpretação passou ao primeiro plano56. Vivia-se uma tensão vigorosa entre o que se estava conhecendo do mundo e aquilo que se conhecia havia séculos. As tradições filosóficas de então buscaram apoio e fundamento no texto revelado, e as alternativas de inovação sustentavam-se naquilo que se podia constatar e interpretar com as alternativas filosóficas recuperadas da Antiguidade pagã. O processo vem sendo estudado há mais de dois séculos e meio e envolve episódios significativos como a condenação da obra de Copérnico por católicos e por luteranos, o processo de Galileu, a execução de Miguel Servet em Genebra e a de Giordano Bruno em Roma etc.

É curioso registrar que nesses casos emblemáticos, os condenados eram eles mesmos cristãos e em boa parte eram sacerdotes. Entre esses citados Bruno e Copérnico eram sacerdotes ordenados. Mas se as novas teorias e invenções contraditavam o que se acreditou ser a Revelação, não se pode negar que esse problema ocorria mais por ausência de referência no texto revelado do que por uma confrontação direta com o escrito. É bom lembrar que Copérnico não afirmou que Lázaro continuou morto embora o fundador do cristianismo tivesse se empenhado em reavivá-lo! Galileu nunca afirmou que o Mar Vermelho não se abriu para a passagem do povo de Moisés e Bruno nunca sustentou que o corpo do Cristo não subiu aos céus! Dessa forma, não é deslocado afirmar que aquilo que se disputava era basicamente a interpretação do texto revelado e não o que o texto efetivamente dizia. Um bom exemplo disso é a utilização de algumas passagens bíblicas relativas ao movimento dos céus que foram largamente utilizadas contra o heliocentrismo nas décadas que seguiram a publicação da obra central de Copérnico: “Josué falou ao Senhor no dia em que ele entregou os amorreus nas mãos dos filhos de Israel, e disse em presença dos israelitas: ‘Sol detém-te em Gabaon, e tu, ó Lua, no vale de Aialon’. E o Sol parou e a Lua não se moveu até que o povo se vingou de seus inimigos” (Josué 10: 12-13). Ainda aqui o que é dominante é a interpretação porque não se tratava de discutir o movimento da Terra ou aquele do Sol, e sim de manter a luz do dia e retardar o início da noite para que o exército de Josué pudesse exterminar seus inimigos no retorno dos hebreus à Terra Prometida. Outro exemplo que é bom lembrar refere-se aos esforços de diversos estudiosos da natureza em refletir sobre passagens das Escrituras em busca de acerto e compatibilização com aquilo que estudavam do mundo. O próprio Isaac Newton, e muitos outros insulares ou não, desenvolveu sua reflexão sobre passagens importantes da Bíblia que estavam em debate no seu tempo57. No entanto, para todos esses filósofos, continuava central a ideia de que a Revelação não é astronômica, como bem indica uma citação famosa usada por diversos

autores do início do século XVII: “a Bíblia nos ensina como se vai para o céu, e não como vai o céu”. Paralelamente, reavivava-se uma antiga tradição, datando de uma época importante da organização eclesiástica, que buscava entender o texto sagrado como algo que orientaria os cristãos na vida em comum, e não em algo que lhes imporia o entendimento do mundo natural. Santo Agostinho, por exemplo, talvez o mais importante dos padres da Igreja, discutia a interpretação da Bíblia e seus problemas ainda no século V! O assunto era tema de outros responsáveis religiosos e acabou gerando longa controvérsia aproveitada tempos depois pelos filósofos da época de Copérnico, de Galileu e de Newton. Se, enfim, os investigadores dos céus aceitavam que as contradições entre passagens bíblicas e aquilo que eles descobriam no mundo eram basicamente problemas de interpretação, isso implicava então a busca por modos de compatibilização entre os resultados de seus trabalhos de investigação do mundo e os trechos bíblicos correlatos. Afinal, os astrônomos dos séculos XVI ao XVIII eram todos bons cristãos, frequentavam as missas, ou os cultos, e temiam em primeiro lugar por suas almas. O esforço, porém, não era coisa que resultaria facilmente. A grande rearrumação da vida religiosa dos povos em praticamente toda a Europa colocou problemas bastante importantes acerca do entendimento daquelas coisas que a Revelação revelou, além das severíssimas questões relativas à estrutura eclesiástica. A título de exemplo, o Papa Sixto V em 1588 lançou a bula Immensa Aeterni Dei, de reorganização do Estado do Vaticano, estabelecendo quinze congregações permanentes, entre elas uma que seria responsável pela interpretação das resoluções do Concílio de Trento, reformulando a congregação criada por Pio IV logo após o encerramento do Concílio (Cherubini, 1692: 619). O entendimento e a interpretação dos decretos da Reforma Católica precisavam estar assegurados diante do grande turbilhão religioso da época. Se os problemas enfrentados na reorganização eclesiástica e religiosa dos povos tinham essa monta, interpretar as Sagradas Escrituras e as antigas normas da vida em comum era tema que se impunha com mais vigor ainda a todos os cristãos. De fato, a aplicação da Reforma Católica necessitou de uma

congregação permanente de cardeais que guiasse a interpretação de seus decretos nas décadas seguintes à conclusão do Concílio. É fácil perceber que estava em questão o entendimento dos decretos da grande Reforma Católica por parte dos membros da Igreja Católica. E se esse problema se revelou importante logo após a conclusão do Concílio, o que se poderá dizer do próprio texto bíblico, escrito havia séculos quase todo em língua extinta, em linguagem que combinava a narrativa histórica a outras formas variadas de expressão? De fato, por mais que a exegese bíblica oferecesse resultados animadores, o problema principal permanecia: era necessário interpretar o texto sagrado à luz das transformações nos costumes e no conhecimento do mundo. Por outro lado, para aqueles que estudavam o céu físico, encontrar acomodações entre o que descobriam e o que se considerava ser parte da Revelação era tarefa da maior urgência, e não apenas em terreno católico, também nos domínios da Reforma. Convém ressaltar que se trata aqui de exigência que não se colocava sobre os estudiosos, era algo que partia deles próprios. Não era uma imposição de organizações eclesiásticas aos estudiosos, ao contrário, era sobretudo uma preocupação essencial dos próprios sábios. Um bom exemplo desse empenho pode ser visto em soluções apresentadas por astrônomos para a compatibilidade entre passagens bíblicas específicas e as novas teorias do mundo que estavam em construção nessa época conturbada. No entanto, o estudo dessas realizações não é coisa nova ou sequer recente. Ao longo dos tempos, alguns episódios importantes se transformaram em casos exemplares que atraíram as atenções. É certo que o exame desses casos sempre acaba por limitar um pouco a análise, tendo em vista que os inúmeros trabalhos produzidos ao longo do tempo sobre esses episódios deixaram marcas indeléveis em sua interpretação: qualquer análise que se faça da condenação de Galileu ou de Bruno faz aparecer uma multidão de contestadores e de inflamados defensores de teses antigas58. Dessa forma, para evitar o que é espinhoso, o presente estudo vai se concentrar no período de poucas décadas após a publicação da obra de síntese de Isaac Newton, na Inglaterra, em 1687, especificamente na obra de um matemático e pastor presbiteriano que defendia a nova Física newtoniana.

Ocorre que ao final do século XVII, depois das estrepitosas inquietações intelectuais e sociais inglesas, os homens de saber se puseram a buscar soluções que eles acreditavam essenciais para a confirmação de suas teorias sobre o mundo, em primeiro lugar, sua capacidade de explicar passagens bíblicas modelares. O esforço, é claro, não se restringiu aos filósofos insulares nem mesmo aos reformados. No continente, diversos pensadores e homens da Igreja também se dedicaram ao exame dos mesmos problemas, conforme se verá a seguir. Em particular, importa aqui a obra de um astrônomo e matemático, apreciador das novas teorias do mundo, que ocupou o cargo de professor de Filosofia Natural depois do afastamento de Isaac Newton da Universidade de Cambridge em 1701: William Whiston (1667-1752). Trata-se de um matemático erudito que, como quase todos de sua geração, também se dedicava aos grandes problemas religiosos de seu tempo. Após completar sua formação matemática, sábio newtoniano, ele permaneceu em Cambridge até 1693, quando se voltou à Igreja Presbiteriana e acabou se ordenando pastor em 1695. Alguns anos depois, Whiston abandonou a carreira eclesiástica para assumir as funções de Professor de matemática na Universidade onde prosseguiu os ensinamentos de seu mestre e interagiu com os mais importantes filósofos ingleses da época: Robert Boyle, Edmond Halley, John Locke, Samuel Clarke etc. No entanto, seu posicionamento em matéria religiosa acabou por impor seu afastamento de Cambridge e limitando sua entrada na Royal Society, mas não arrefeceu seu ardor teológico. Whiston ainda traduziu Flavius Josephus ao inglês e escreveu diversos textos e prognósticos sobre o povo judeu. Sua obra mais importante, A New Theory of the Earth from its Original to the Consummation of all Things (Whiston, 1696) contou grande impacto insular e boa projeção no Continente; foi debatida animadamente com leitores e críticos na Península Ibérica, na França, na Alemanha e em outras regiões. Whiston publicou diversos outros trabalhos que lhe consolidaram a fama de homem de ciência e de teólogo heterodoxo que procurava na reflexão matemática e astronômica bons argumentos em defesa de sua interpretação bíblica59. Ainda no terreno da Astronomia, ele se integrou ao esforço europeu em obter uma técnica segura de obtenção da longitude em alto mar. Definitivamente,

ele não era um sábio de gabinete. A nova teoria da Terra que ele propunha buscava harmonizar os ditos bíblicos às teorias newtonianas do mundo. É importante notar que esse esforço de adaptação entre o novo conhecimento do mundo e a Verdade Revelada não foi exclusivo das religiões reformadas. No Continente, em domínio católico, diversos sábios deram mãos ao trabalho para assegurar a coexistência pacífica da Bíblia com os novos saberes. A título de exemplo, em meados do século XVII, o professor de matemática do Colégio Romano da Companhia de Jesus, Athanasius Kircher, ele mesmo jesuíta, escreveu grossos volumes de grande sucesso sobre a Torre de Babel (Kircher 1679) e sobre a Arca de Noé (Kircher 1675). É possível encontrar diversos livros escritos por toda a Europa ao longo do século XVII tratando desses temas e de outros autores, relativos a passagens bíblicas mais ou menos conhecidas e citadas. Whiston, em seu primeiro tratado de maior importância, publicado em 1696, apresentava um entendimento da criação do mundo compatível, segundo ele, com a nova Física que emergia vigorosa na Inglaterra e que tomaria o resto da Europa nas décadas que seguiram. Tratava-se de mostrar que a teoria de Newton não contraditava a obra dos seis dias, tal e qual descrita na Bíblia, nem o dilúvio ou a consumação do mundo, previstas nos profetas e no Apocalipse de S. João, e mais, ele avançou uma teoria que atribuía à passagem de um cometa um papel de primeira grandeza nesses eventos bíblicos. O sentido geral de sua intervenção era assegurar que a narrativa da criação do mundo exposta no livro da Gênesis era verdadeira, real e perfeitamente compatível com suas ideias sobre o mundo natural. No início do livro, ele apresenta uma proposição que é a síntese da obra: The proposition therefore which shall be the subject of this dissertation, and includes the whole point before us, shall be this: the Mosaic creation is not a Nice and philosophical account of the origin of all things; but an historical and true representation of the formation of our single Earth out of a confused Chaos, and of the successive and visible changes thereof each day, till it became the habitation of mankind (Whiston, 1696: 3). O matemático tentava atribuir uma concretude ao relato de Moisés,

sobretudo a partir das passagens consideradas obscuras pelos teólogos e filósofos do seu tempo. O esforço concentrava-se na ideia de que a nova Astronomia poderia resolver os espinhosos e eternos problemas de uma Revelação que já durava, naquela época, bem mais de dois mil anos. Whiston buscou apoio naquilo que foi um dos primeiros grandes sucessos da filosofia de Newton: a análise dos cometas, sua natureza, composição e trajetória60. A ideia que transparece de sua obra sobre a Criação é a centralidade dos cometas na conformação do mundo, buscando na teoria desses corpos celestes, que foi um grande motor da transformação da Astronomia, as novas explicações do que dizia o livro da Gênesis. A opção era engenhosa e envolvia a exegese bíblica e o prestígio da nova física newtoniana e alongava-se ainda a trechos do Novo Testamento relativo ao Apocalipse, que foram abordados com a mesma estratégia astronômica e cometária. Whiston aborda a criação de forma bastante direta, considerando o que poderiam ser as características físicas da massa disforme do caos inicial: fluidez, turbulência, escuridão etc. Assim, desordenados, os átomos do ar, da água, da terra e do fogo se encontravam aproximados e agitados em perpétua confusão. Com isso, ele crê encontrar semelhanças físicas prováveis com a atmosfera que cerca os cometas: “the ancient Chaos, the origin of our Earth, was the atmosphere of a comet” (Whiston, 1696: 69). O raciocínio prossegue considerando a forma da Terra e, para abreviar esta exposição, Whiston pondera que a revolução anual seria congênita e avança a hipótese: “the annual motion of the Earth commenc’d at the beginning of the Mosaick Creation; yet its Diurnal Rotation did not till after the fall of man” (Whiston, 1696: 79). Trata-se claramente de um esforço de compatibilização da nova Astronomia de Newton com a narrativa da criação exposta no livro da Gênesis. Talvez Whiston esperasse favorecer a nova Astronomia com uma solução original de um problema bastante importante para os defensores dos movimentos da Terra: o silêncio da Bíblia. Afinal, os estudiosos dos céus daquele tempo eram todos muito ciosos de sua fé. A passagem que mais importa no momento é relativa ao dilúvio e a Arca. Aqui, o autor avança sua hipótese de que após a criação do mundo e a queda de Adão, os planetas e os cometas giravam em círculos perfeitos ao redor do Sol e esse ordenamento teria se degenerado em

elipses e parábolas pelas mesmas causas próximas que provocaram o dilúvio. Ele prossegue com análises da cronologia para datar precisamente a época em que a grande cheia teria dizimado a humanidade, deixando apenas Noé, sua descendência e os seres vivos que entraram em sua arca. Apoiado na tese de Halley e Newton e de outros astrônomos de seu tempo sobre o caráter perene dos cometas, Whiston busca aproximações entre a data precisa do dilúvio e a passagem de um cometa, avançando a hipótese de que o dia em que as águas começaram a cair coincidiu com a passagem da Terra por perto de um desses objetos celestes. Mais especificamente, pela passagem no rastro celeste do cometa, em sua atmosfera. A proximidade com o astro alterou substancialmente os parâmetros do movimento da Terra, causando a excentricidade da órbita e colocando o Sol em um dos focos da elipse. E mais, os vapores do cometa teriam alterado os ares da Terra, provocando as chuvas descomunais que produziram o dilúvio. Whiston não era um doutrinador, era matemático e a hipótese é apresentada com cálculos e resultados montados nas regras da astronomia de seu tempo. Depois de ter assentada a hipótese da passagem de um cometa no dia do dilúvio, ele se detém no caráter celeste da enorme quantidade de água que caiu sobre o mundo: “this vast quantity of Waters was not deriv’d from the Earth or Seas, as Rains constantly now are; but from some other superior and coelestial original” (Whiston, 1696: 198). Whiston descreve o dilúvio e seus efeitos, os quarenta dias de chuva intensa, a destruição das plantas e de toda a vida na Terra, acentuando sempre seu caráter excepcional. O matemático também acessa argumentos astronômicos e astrológicos tradicionais para explicar aquilo que ele acreditava serem os grandes acontecimentos do mundo, como a teoria das grandes conjunções, já antiga de alguns séculos quando ele escrevia e que perdia prestígio aceleradamente. Dizia ele: “the deluge and conflagration are referre’d, by ancient tradition, to great conjunction of the heavenly bodies, as both depending on, and happening at the same” (Whiston, 1696: 211)61. Nova Astronomia, é claro, mas sem deixar de lado aquilo que as tradições astrológicas poderiam agregar ao seu raciocínio, sem, contudo, nada ceder ao “encantamento do mundo”, tão frequente entre os sábios daquele tempo.

A explicação para uma quantidade tão grande de água cair sobre a Terra está na passagem do planeta pela atmosfera de um cometa: This has been already explain’d in effect, in the hypotesis hereto relating; where it was prove’d that a comet on that very Day here nam’d pass’d by the Earth; and by consequence began those rains which for the succeeding forty days sapace continued without any interruption (Whiston, 1696: 303). Afinal, toda essa água não poderia vir apenas da evaporação dos rios, lagos e oceanos. O autor propõe que a matéria da cauda, ou da atmosfera, do cometa teria se combinado aos vapores terrestres quando o cometa passou perto da Terra, horas antes do início do dilúvio. Então, os vapores do cometa se teriam condensado na atmosfera terrestre o precipitado em grande quantidade provocando as chuvas excepcionais de quarenta dias que produziram a grande cheia destruidora da vida na superfície terrestre. Whiston não poupa esforços em detalhar o máximo que consegue os efeitos do dilúvio na conformação dos continentes e das montanhas, buscando justificar os seus argumentos sobre o recomeço da vida depois do fim das chuvas. O argumento efetivamente não é bom do ponto de vista astronômico. Mesmo na época de Whiston, se poderia saber a massa do cometa em comparação à da Terra e apenas isso já seria suficiente para afastar essa hipótese. Considerando o que se conhece hoje acerca desses objetos celestes, a passagem da Terra nas proximidades da trajetória de um cometa gera apenas uma chuva de estrelas cadentes que nada mais são do que grãos de poeira que ficam ao longo do seu percurso e que queimam por fricção, emitindo luz, quando entram na atmosfera. A obra acessa outros diversos temas e aproveita para discutir também uma diminuição no tempo de vida dos homens após o dilúvio. Ele registra que a duração média da vida dos patriarcas antediluvianos seria de oitocentos ou novecentos anos, e depois das chuvas ela teria se reduzido progressivamente até os tempos médios atuais: But besides, ‘tis to be consider’d which I take to be the principal thing, that seeing the corrupted Atmosphere, with the pernicious steams arising from the newly acquir’d Chaotick Crust, or sediment of the waters, and

their unhappy effects on the fruits, as well as living creatures upon the Earth, must be allow’d the occasion and cause of the shorthing of humane life” (Whiston, 1696: 337). A redução do tempo de vida seria imposta pela degeneração provocada pela entrada da matéria caótica do cometa em toda a vida na Terra, nos vegetais, animais e humanos. As partículas do cometa vindas com a água acabariam se depositando nas encostas e no solo, passando daí aos vegetais, animais e ao homem. Assim, a redução do tempo de vida estaria associada aos malefícios produzidos pela matéria caótica do cometa sobre os homens. Whiston prossegue explicando a conformação do mundo depois do dilúvio e os variados efeitos da sedimentação sobre as montanhas, cavernas, vales, mares etc. A exposição é interessante, mas um pouco dissociada dos propósitos presentes. Completando a sua nova teoria da Terra, Whiston avança uma curiosa hipótese que veio a gerar controvérsia animada com astrônomos de toda a Europa. Ele apresenta uma síntese antes da exposição completa do argumento: “As the world once perish’d by water, so it must by fire at the conclusion of its present state” (Whiston, 1696: 368). O raciocínio é assemelhado a uma simetria que tira partido da oposição entre a água e o fogo. Assim, a próxima destruição do mundo seria promovida novamente pela ação de um cometa que provocaria a consumação de todas as coisas por imensos incêndios por toda a Terra: As we have given an account of the Universal Deluge from the Approach of a Comet in its descent towards the Sun; so Will it not be difficult to account for the general conflagration from the like approach of a Comet in it ascent from the Sun. For ‘tis evident from what has been already explain’d, that in case a comet pass’d behind the Earth, tho’ it were in its Descent, yet if it came near enough, and were it self big enough, it wou’d so much retard the Earth’s annual motion, and oblige it to revolve in an ellipsis so near to the Sun in its perihelion, that the Sun it self wou’d scorch and burn, dissolve and destroy it in the most prodigious degree; and this combustion being renew’d every Revolution, wou’d render the Earth a

perfect Chaos again, and change it from a planet to a comet for ever after” (Whiston, 1696: 368). A passagem do cometa na descendente da eclíptica em direção ao sol teria gerado o dilúvio, e outra passagem na ascendente vindo do sol queimaria toda a Terra e a faria passar à condição cometária, alterando sua órbita e todos os seus movimentos. Agora, quase ao final de sua obra, Whiston apresenta seu entendimento astronômico do Apocalipse, sempre buscando afastar a crença astrológica e as interpretações das grandes conjunções como causas dos acontecimentos maiores da humanidade. De fato, ele seguia as teses mais comuns das confissões reformadas quanto à Astrologia, expostas muito claramente no opúsculo de Calvino contra a Judiciária62 (Calvino, 1549). Mas o matemático também era pastor presbiteriano, como foi indicado mais acima, e esta sua confissão, ao final do século XVII, mantinha sua forte proximidade à doutrina calvinista, especialmente acerca do tema da Providência Divina, tão caro a todos os cristãos desde os primeiros séculos. De fato, Whiston não poderia, ou não conseguiria, assentar suas conjecturas astronômicas sobre o Dilúvio e a consumação do mundo sem apresentar alguma solução para a espinhosa questão do governo do mundo por Deus: Tho’ the passing by a Comet, and all those effects of it in the drowning of the world, of which we have so largely discours’d hitherto, be no to be stil’d in the common use of the word Miraclulous; (tho’ in no very improper sense, all such events may have that Appellation, of which before) yet is there the greatest reason in the World to attribute this mighty turn and catastrophe of nature, to the Divine Providence, and the immediate, voluntary, actual, interposition of God; and that in these ensuing particulars, and on these following accounts; which I shall be the shorter upon, as having in the place fore-mention’d explain’d my mind somewhat largely about things of this nature” (Whiston, 1696: 357). De fato, Whiston se nega a tratar a passagem do cometa como um milagre, ainda que a atribua à Divina Providência, por escolha voluntária de Deus. A recusa em aceitar a ação divina como milagre encontra

fundamento na ideia bastante calvinista, e também presbiteriana, do governo do mundo por Deus. Caracterizar os acontecimentos naturais extraordinários como ação específica e intencional de Deus, um milagre revertendo a ordem normal das coisas, realmente não se pode reconhecer como tese aceitável para Calvino ou para teólogos calvinistas63. Ocorre que o reformador de Genebra entendia a Providência Divina com um sentido muito mais extenso do que os teólogos de outras confissões costumavam fazer. Deus não enviaria o cometa naquele momento em que houve o dilúvio como uma intervenção que se poderia chamar de excepcional, porque a Providência governa absolutamente tudo o que ocorre no mundo, o normal e o anormal: nada do que acontece poderia ser excepcional. Para essa Teologia, não há nenhuma intervenção divina extraordinária: tudo o que ocorre é feito da Providência. No que respeita as relações com Deus, o mundo inteiro, tudo, é governado por sua infinita sabedoria e poder. Aquilo que é extraordinário e nos parece uma inversão do curso normal das coisas, mais se deve à nossa ignorância e incapacidade de conhecer os desígnios de Deus, que uma alteração real na ordem do mundo, um milagre ou uma intervenção divina específica. Whiston segue de perto essa ideia, conforme se pode ver na obra que analisa o pensamento do religioso matemático (Force, 1985). Assim, o problema fica deslocado do terreno dos fenômenos, dos acontecimentos, para aquele do conhecimento. Ele sai da ontologia e se desloca para a epistemologia. Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, Whiston não apresenta seu raciocínio como uma verdade definitiva, ou como uma teoria comprovada ou comprovável. Ele organiza seu livro indicando problemas de interpretação bíblica diante da nova Astronomia newtoniana, apontando hipóteses e apresentando o que acreditava serem soluções prováveis para os problemas que analisou. Ele sabia perfeitamente que suas afirmações não eram teoremas demonstrados, ou conclusões apodícticas, conforme assume claramente no seu volume. No entanto, isso não lhe impediu de avançar suas ideias e nem limitou as vigorosas críticas que lhe foram feitas na Inglaterra e mesmo no Continente. Afinal, um tema desses não tinha sido inaugurado por Whiston, nem tão pouco suas referências filosóficas eram consensuais

no debate sobre essa matéria. Ele rebateu boa parte de seus contestadores reafirmando o que dissera no seu primeiro livro, publicando outras obras em sua defesa e reiterando suas posições64. Afinal, tratava-se de um assunto central para si e tema fundamental de seu entendimento do mundo. Em uma sua obra sobre a compatibilidade das ciências matemáticas e os ditos bíblicos, publicada em 1717, o autor reitera e desenvolve seus argumentos, elaborando uma síntese sobre essa matéria: But to wave farther preliminaries, some of the principal reasons which make me believe the Jewish and Christian revelations to be true, are these following. I. The reveal’d religion of the jews and Christians lays the Law of nature for its foundation; and all along supports and assists natural religion; as every true revelation ought to do. II. Astronomy, and the rest of our certain mathematic sciences, do confirm the accounts of scripture; so far as they are concerne’d. (Whiston, 1717: 259). Para ele, como para diversos outros filósofos da natureza, já se colocava como uma urgência a apresentação de uma solução que pudesse avançar na compatibilidade entre a narrativa bíblica e o conhecimento astronômico. A antiga Astronomia geocêntrica, com sua radical oposição entre a Terra e o céu, com esferas cristalinas carregando planetas, seus epiciclos e deferentes, e sobretudo com seus cometas atmosféricos já não conseguia mais sustentar suas teses diante das observações telescópicas e das análises matemáticas do final do século XVII. Por isso mesmo, as teses de outrora de pouco serviam para a interpretação da criação e da consumação bíblicas. Uma parte expressiva do problema, como é fácil perceber, estava na exigência de considerar a narrativa de Moisés como algo que descrevia verdadeiramente a criação do mundo e do homem, como se o dito das águas se separando para dar lugar a Terra fosse parte efetiva, física, da formação da casa comum dos homens. Mas essa ideia ainda demoraria muito tempo para se dissolver, sobretudo entre os religiosos das confissões reformadas. Os católicos adotaram majoritariamente uma

solução que lhes dava mais horizontes de compatibilidade: é preciso interpretar os ditos bíblicos sobre a criação, considerando que a linguagem adotada é simbólica e o escrito foi composto para a compreensão comum dos homens. A análise desse esforço de Whiston ajuda a compreender a extensão das dificuldades que os novos astrônomos do século XVII enfrentaram para ter suas teorias aceitas e debatidas. De fato, aquela era uma época em que a Revelação sempre falava mais alto, mesmo entre os sábios. No entanto, é importante registrar que essa característica não se apresentava de forma alguma com algo retrógrado, voltado apenas para salvar o que já não mais poderia ser salvo. Ao contrário, era algo que acompanhava muito seriamente toda investigação do mundo natural. Aquele não era um tempo em que o homem de ciência pudesse pensar em deixar Deus do lado de fora de seu laboratório. No entanto, no tempo de agora, quando a imagem do mundo já se encontra largamente assentada em todos os recantos eruditos, o esforço de Whiston mais se assemelha a uma operação de aproximação de um tipo de interpretação literal da Bíblia aos enormes sucessos da ciência. Como se a lógica do final do século XVII se apresentasse invertida, trezentos anos depois. O sucessor de Newton, visto pelos olhos do nosso século, se aproxima daqueles que tentam localizar precisamente o ponto de atraque da Arca de Noé, ou o ponto exato do Mar Vermelho em que o povo de Moisés atravessou com seu povo, ou ainda a parte do mundo em que a Torre de Babel foi edificada. Mas os séculos que nos separam de sua obra são tantos argumentos que nos permitem ver a dissociação de seu trabalho desses empenhos “arqueológicos”. Ao final do século XVII era perfeitamente cabível esse esforço, na aurora do século XXI, isso soa vão. E mais, se aproxima de uma ideia de que as sociedades não se transformam, de que a moral não se transforma, de que as formas da vida em comum não se transformam, como se os objetos físicos a que a Bíblia faz referência e as metáforas que utiliza fossem testemunhos de seu significado para os homens. 56 Já há algumas décadas o problema da interpretação na Época Renascentista e Barroca vem sendo objeto de reflexão por parte dos estudiosos. Cf. (Canziani, Zarka 1993). 57 Cf. o volume de Newton publicado postumamente: Observations upon the prophecies of Daniel and

the Apocalypse of St. John. Os textos de Newton relativos a temas religiosos vêm despertando interesse nos eruditos de tempos mais recentes. 58 Os estudos e as controvérsias sobre alguns desses casos exemplares são tão numerosos que impossibilitam o exame integral de toda essa produção. Ademais, o entendimento dos casos de Galileu Galilei e de Giordano Bruno, por exemplo, já estão de tal forma sedimentados que estudos inovadores encontram embaraços para se viabilizar. O caso Galileu chegou a ser reavaliado pelo próprio Vaticano nos anos oitenta do século passado por uma comissão instituída pelo Papa João Paulo II, revelando uma surpreendente intenção de atualidade. 59 Em 1717, Whiston publicou o livro Astronomical Principles of Religion Natural and Reveal’d em que expande os argumentos de sua obra de 1696. 60 É necessário ter em mente que grande parte do esforço de Isaac Newton na formulação de sua teoria deu-se sobre as análises das trajetórias dos cometas Sua obra central, Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, dedica longas páginas à análise desses objetos celestes. 61 A Astrologia desfrutou de enorme prestígio nos séculos anteriores à Época Iluminista. Em particular, a passagem de um cometa era percebida como grande alteração na ordem celeste e anunciadora de importantes alterações na vida dos homens. Nos tempos anteriores a Whiston, difundiuse largamente uma teoria das grandes conjunções que postulava um reordenamento do mundo devido ao alinhamento dos planetas e da Terra. Ambos os problemas foram objeto de inúmeras publicações ao longo dos séculos XVI e XVII. Em particular, para o que interessa aqui, o tema da consumação do mundo foi especialmente importante nas previsões para o ano de 1524 Cf. Zambelli, 1986. 62 Calvino publicou em Genebra um pequeno tratado questionando qualquer eficácia da Astrologia. Para ele, os astros não podem autonomamente fazer nada no mundo, dada a extensão de sua ideia da Providência. O texto de Calvino conheceu uma tradução inglesa em 1561 e certamente era conhecida pelos insulares interessados na matéria. 63 A análise das teses de Calvino acerca do problema da Providência Divina é bastante numerosa. No entanto, o exame direto do texto do reformador de Genebra ainda se apresenta como opção bastante consistente cf. sua obra central: Institutio Christianae Religionis. 64 A título de exemplo, Whiston, 1698 e Whiston, 1700.

IV. Arqueologia Bíblica: a cultura material como discurso fundamentalista religioso cristão Juliana B. Cavalcanti I. De imediato, seguem as manchetes abaixo: “Anel de 2.000 anos que pode ter sido de Pôncio Pilatos é identificado. Artefato foi encontrado na década de 60, mas só agora inscrições foram reveladas” (Folha de São Paulo, 3 de Dezembro de 201865) “Templo de 3 mil anos descoberto em Israel põe em xeque textos da Bíblia. Segundo especialistas, edifício religioso data da mesma época que o Templo de Salomão, em Jerusalém, o único que podia ser usado pelos fiéis da época, de acordo com o Livro Sagrado” (Revista Galileu, 05 de Fevereiro de 202066) Ambas as chamadas acima são bastante corriqueiras nos meios de comunicação. Esse tipo de matéria quase sempre usa e abusa de um tom sensacionalista com o intuito de tentar responder a seguinte problemática: os textos bíblicos teriam veracidade histórica? Para isso a descoberta arqueológica é colocada como decisiva para se apontar uma solução. Esse tipo de reportagem também revela a concepção que o senso comum tem do que é a Arqueologia, ou melhor, de para que ela serve, que é: a cultura material comprovando toda a documentação literária, em especial com eventos ou personagens situados na Antiguidade67, como é o caso do Cristianismo e do Judaísmo. Essas ideias sobre o que se convencionou em chamar de Arqueologia Bíblica também esbarram na história do campo, quando no transcurso do século XIX e nas primeiras décadas do XX indivíduos de diferentes países ocidentais, em sua maioria europeus, se lançaram a regiões do Norte da África, Israel e Ásia Menor com o intuito de “localizar lugares mencionados na Bíblia e mapear a geografia da região” (Clíne, 2009:

13). Neste sentido, enquanto área a Arqueologia Bíblica foi gestada dentro de um cenário de: (i) Ambiente racionalista em que se enfatizava um forte ordenamento da natureza e uma erudição bem organizada que aderisse a metodologias bem definidas para testes e verificação; (ii) Profundas críticas à religião e à infalibilidade bíblica e da Igreja, haja vista que a Igreja, a religião e as definições convencionadas sobre a vida foram agregadas como um dos novos objetos de análise dos estudiosos. Até então esses elementos eram considerados como não verificáveis. Isso propiciou, no momento de criação da disciplina, uma nova forma de estudar a Bíblia, evidenciando por meio da cultura material a comprovação de suas narrativas; (iii) O Oriente como espaço de constante interesse do Ocidente por ser o berço do Cristianismo. Isso nos permite traçar paralelos com as Cruzadas, em que discursos e campanhas foram criados como pretexto para a invasão dessas regiões, que estavam nas mãos dos “infiéis”68. Em contexto de Modernidade, o principal meio de validação foi a pauta científica que visava a localizar os sítios neo e veterotestamentários, ao estudo do solo e seu potencial mineral, à investigação do modo de vida da população local e à averiguação de novas rotas comerciais entre o Ocidente e o Oriente (Silberman, 1982: 4-5). II. Assim, podemos afirmar que as bases da Arqueologia Bíblica se inserem dentro de um recorte específico: a Modernidade e a formação de discursos fundamentalistas em defesa da fé cristã. Isso nos leva ainda à necessidade de nos questionarmos e buscarmos compreender melhor quais foram as intenções e os interesses desses exploradores e de seus patrocinadores. Boas pistas nesse quesito nos foram dadas, respectivamente, por William Frend (1996: 91) e Gabriela Rodrigues (2001: 1): Se a história da pesquisa arqueológica nos sítios cristãos primitivos no Norte da África é exclusivamente uma história da França e de ambições e estudos franceses, o estudo de remanescentes similares na Ásia Menor foi dividido por franceses, australianos e alemãs, bem como

franceses. O contexto político de surgimento dessa disciplina relaciona nacionalismo, imperialismo, colonialismo. Trata-se de um período em que os recém-constituídos Estados nacionais se aproveitaram das histórias de glória dos Impérios do passado para constituir as suas próprias memórias. Como se percebe acima, ambos os autores nos atentam para uma íntima relação estabelecida entre os Estados nacionais modernos e a cultura material, isto é, o passado como elemento legitimador da História daquela nação. Esse dado nos remete ao conceito de tradições inventadas, que pode ser resumido da seguinte maneira (Hobsbawm, 2006 (1983): 9): Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. Assim, o conceito de tradição inventada nos permite vislumbrar os usos da Arqueologia Bíblica no seu contexto de formação: (a) O Oriente como o provedor de fontes culturais, religiosas e linguísticas capazes de definir Ocidente “com sua imagem, ideia, personalidade, experiência contrastantes” (Rodrigues, 2011: 6): As primeiras intervenções arqueológicas foram realizadas por teólogos, religiosos e engenheiros, primariamente, interessados em localizar os ambientes mencionados na Bíblia e mapear a geografia da região, como foi o caso do pastor americano Edward Robinson (1856: 31), que em diário de viagem comentou: (…) Meu primeiro motivo fora a simples recompensa de sentimentos pessoais. Como no caso da maioria dos meus compatriotas, em especial, da Nova Inglaterra, as cenas da Bíblia deixaram uma profunda impressão sobre minha mente desde a mais tenra idade; e, depois, nos anos da

maturidade, a história da raça humana. De fato, em nenhum país do mundo, talvez esteja mais amplamente difundido tal sentimento do que na Nova Inglaterra. Em nenhum país, são as Escrituras mais bem conhecidas ou estimadas em maior grau. Desde os primeiros anos, a criança de lá é acostumada não apenas a ler a Bíblia para si; mas também ler ou ouvi-la nas preces matinais e vespertinas da família, todos os dias na escola do povoado, na escola dominical e na aula de Bíblia, e nos ministérios semanais do templo. Donde, tão logo ela cresça, os nomes Sinai, Jerusalém, Belém, a Terra Prometida, vêm associados a suas mais tenras recordações e seus sentimentos mais sagrados. Com tudo isso, no meu caso, aí veio, em seguida, a se juntar um motivo científico. Eu considerei por muito tempo a preparação de uma obra de Geografia bíblica; e desejei satisfazer-me com observações pessoais no tocante a diversos pontos sobre os quais não pude encontrar nenhuma informação nos livros dos viajantes. Nesse sentido, eles tiveram um comportamento análogo aos arqueólogos e cientistas sociais do século XIX, que escavaram localidades italianas e gregas com textos clássicos com o intuito de comparar os achados com a documentação literária, de forma a validar o discurso textual e levando ao estabelecimento de Escolas de Arqueologia na Europa Ocidental69. em outras palavras, a esperança desses missionários era provar que Lucas, por exemplo, era tão histórico quanto Homero. Ao fazer tal operação, esses exploradores estariam garantindo a “limpeza” dos remanescentes materiais e espaciais judaico-cristãos deteriorados ou islamizados. Assim eles estariam retomando algo que seria seu por direito cultural-religioso, uma vez que essas áreas escavadas eram altamente islamizadas desde o projeto desastroso do imperador Romano IV de expansão territorial para o leste na Armênia, que levou à sua derrota decisiva frente aos turcos otomanos em Manzikert. O resultado foi uma completa mudança da vida religiosa e política, em que, gradualmente, entre os séculos XII e XIII, os otomanos

e seus aliados turco-otomanos seminômades assumiram localidades anteriormente cristãs, penetrando como uma maré humana, isolando70 e destruindo cidades e vilas cristãs outrora prósperas. Quando Constantinopla caiu, em 1453, regiões como a Ásia Menor já haviam passado do cristianismo para o islã. Em outras palavras, todos os exploradores envolvidos em mapear as áreas mencionadas na literatura neo e veterotestamentárias buscaram encontrar mecanismos que validassem um remanescente material como judaico ou cristão. No caso daqueles que escavaram a Palestina, o que se observou foi uma preocupação em reconhecer os processos de mudança fonética pelos quais os topônimos árabes modernos correspondentes passaram. Em suas análises, eles incorporavam desde o estágio de contato entre as duas línguas até a entrada, por empréstimo, “dos antigos topônimos hebraicos na língua árabe antiga e, dessa última, por evolução fonética, até a sua forma moderna” (Rodrigues, 2011: 34), sendo isto peça-chave para a correta identificação, segundo eles, de cidades bíblicas: (…) Os nomes hebraicos dos lugares continuaram correntes em sua forma arameia muito tempo depois do período do Novo Testamento e se mantiveram na boca das pessoas simples, a despeito do esforço feito por gregos e romanos para suplantá-los por outros derivados de suas próprias línguas. Depois da conquista maometana, quando a língua arameia aos poucos deu lugar ao aparentado árabe, os nomes próprios dos lugares, que os gregos jamais conseguiram curvar à sua ortografia, encontraram aqui uma rápida aceitação e, desde então, continuam a viver sobre os lábios dos árabes, seja cristão ou muçulmano, citadino ou beduíno, invariavelmente até os nossos dias, quase na mesma forma em que também nos foram transmitidos nas Escrituras hebraicas. (Robinson and Smith, 1856: 255) De forma similar atuaram os exploradores voltados para os remanescentes materiais do cristianismo antigo. Trabalhos como Historical Geography of Asia Minor (1890), de W. M. Ramsay, enfatizaram a necessidade de conhecer o contexto de avanço e de

declínio das instituições do império bizantino para poder “polir” a gradual islamização da Ásia Menor entre os séculos XII e XIII. Com isso, seria possível acessar o que seria “puramente” grego e estabelecer paralelos culturais, linguísticos e imagéticos com o “sistema de vida cristão” medieval, que seria um perpetuador do modelo cristão primitivo. Cabe ainda ressaltar o aspecto missionário desses religiosos (pincipalmente protestantes), como foi o caso das instituições inglesas Church Missionary Society (CMS)71 e a London Jews Society72, que também enviaram diversos missionários para a Palestina, Norte da África e Ásia Menor com o intuito de promover a salvação e o retorno dos povos no interior das regiões otomanas à educação, à religião (como foi o caso dos cristãos coptas) e aos costumes ocidentais. Por suas práticas, ambas as instituições incomodaram bastante as autoridades locais e o Vaticano; a primeira ao distribuir a mulçumanos Bíblias traduzidas, e a segunda por ter fomentado a conversão de judeus ao cristianismo como mecanismo de restauração da Palestina e a “promoção do bem-estar espiritual dos judeus” (Frey, 1851: 2, Apud Smith, 1981: 276). Neste sentido, elas se inserem dentro de um quadro maior em que grupos cristãos protestantes, sobretudo os imersos em um discurso milenarista, acreditavam que regiões como Jerusalém deveriam estar preparadas para o retorno do messias (Silberman, 1982: 30): Nos anos seguintes, o número de viajantes cresceu consideravelmente, mas esse ímpeto exploratório não era mais o carro-chefe. Missionários protestantes, preocupados com a situação dos cristãos na Terra Santa, promoveram a maioria das viagens do período. No fim do século XVIII, havia, entre alguns protestantes, uma crença de que o fim do mundo se aproximava. O lançamento do livro The Signs of the Times, do clérigo anglicano James Bicheno, em 1792, teria acentuado as preocupações milenaristas, e a Terra Santa, palco central do Armagedom, deveria estar preparada para a volta de Jesus Cristo (1982: 28-30). A onda de exploração que se seguiu à invasão de Napoleão à Palestina mostrou claramente o

quanto permanecia por ser feito lá, se a Jerusalém Celeste houvesse, de fato, de se manifestar dentro do curso da existência atual. Os relatos dos primeiros exploradores confirmaram cada detalhe da pobreza, da opressão e das garras aparentemente intratáveis da ignorância que recaíam sobre toda a população do país. Não apenas os muçulmanos “fanáticos” e os judeus “cabeças-dura” teriam de ser convertidos, mas também os cristãos locais, amarrados aos ensinamentos dogmáticos das Igrejas católica e ortodoxa. (b) O assenhoreamento do passado por nações, principalmente, europeias: Em 1865 foi criado o Fundo de Exploração da Palestina (FEP), com sede em Londres, logo após a conclusão do Ordnance Survey of Jerusalem. Tinha como objetivo a exploração e o registro das características da topografia e etnografia da Palestina Otomana, o que levou ao projeto Survey of Palestine, que tinha como missão pesquisas expedicionárias e coleta de informações militares. A equipe era composta por engenheiros reais (provenientes do Gabinete de Guerra do governo britânico) e seus integrantes tinham obrigação de enviar relatórios quanto à necessidade de recuperação e modernização da região. Mais claramente, as pesquisas financiadas pelo FEP pretendiam mapear a geografia de toda a Palestina, pois como declarou o arcebispo de York na reunião inaugural do fundo em 1865: “Este país da Palestina pertence a você e a mim, é essencialmente nosso. (...) Queremos caminhar pela Palestina, em toda a extensão, porque essa terra nos foi dada.” Além disso, o arcebispo utilizou como justificativa e explicações para o FEP o seguinte argumento: “Se você realmente quer entender a Bíblia, você deve também entender o país em que a Bíblia foi escrita pela primeira vez”. De igual forma foi o patrocínio feito pelo também fundo britânico Asia Minor Exploration Fund (“Fundo de Exploração da Ásia Menor”), as pesquisas de W. M. Ramsay. A ideia de Ramsay era tecer um trabalho detalhado de remanescentes materiais e reconhecimento geográfico no terreno do império otomano, principalmente depois do

Tratado de Berlim73 (1878), com o intuito de entender a personagem Paulo e a missão da igreja primitiva. Seus resultados tiveram profundo impacto sobre católicos e protestantes de toda a Europa, levando à construção e consolidação de uma leitura universal cristã sustentada até 1894, quando se instaurou uma acalorada disputa entre católicos franceses e protestantes alemães quanto à igreja de Roma e aos aspectos “pagãos” encontrados nas epígrafes descobertas por Ramsay. O fato é que as motivações de ambos os fundos britânicos ao patrocinar exploradores e pesquisadores para áreas de domínio otomano evidenciam um breve resumo do aspecto religioso das intenções dos britânicos (Cline, 2009: 15-16). (c) A cultura material como instrumento do discurso colonialista por parte de nações ocidentais para obtenção e permanência de ocupação de territórios do Oriente74: Contudo, não podemos nos limitar aos aspectos religioso e nacionalista dos incentivos realizados, sobretudo, por fundos europeus, haja vista as crescentes disputas por território entre a Grã-Bretanha e a França em contexto de estágio inicial de colapso do Império Otomano. Isto é, motivações geopolíticas levaram os britânicos a criarem caminhos por meio da exploração da Palestina a fim de obter uma vantagem geográfica75 sobre a França, que também enviou para a região em 1867 o epigrafista Charles Clermont-Ganneau, que diferentemente dos americanos e britânicos estava mais interessado nos escritos antigos do que em arquitetura ou geografia. Outro aspecto que deve ser observado é como as nações europeias formaram coligações com as autoridades locais como mecanismo de garantir e expandir suas fronteiras. Esse foi o caso das viagens do pastor americano Robinson, que beneficiaram a presença egípcia na Palestina e as reformas proclamadas pelo governo otomano em 1839, as chamadas Tanzimat. Em 1841, os Impérios Britânico e Austríaco ofereceram ajuda militar, o que permitiu a vitória otomana sobre Mohammed Ali e a reconquista do território Palestino. Em troca, aproveitaram para estender seu poder no Oriente Próximo e ameaçar a França, ligada ao Egito, na disputa pelo Canal de Suez (Silberman, 1982: 46). Como resposta a pressões internas e externas foram mantidas, durante o Tanzimat, as medidas egípcias em prol das igualdades legal e social

(incluindo não muçulmanos). Apesar de isso não ter implicado no fim dos impostos estatais para cristãos e judeus, houve nesse mesmo contexto a nomeação de cônsules europeus em Jerusalém e uma rápida expansão de seus poderes. Eles eram tão influentes quanto um paxá (governador de província otomana), detendo direitos legais e administrativos sob a sua jurisdição. Nesse sentido, esses cônsules eram mais poderosos que os europeus instalados nos portos de Jaffa e Haifa, que estavam limitados a questões comerciais. O primeiro consulado foi o britânico, em 1838, e depois dele rapidamente surgiram representantes da Prússia, França, Estados Unidos, Áustria, Rússia, Itália, Espanha, Grécia e Pérsia. A presença desses países e a crescente disputa entre eles resultaram em profundas modificações nas estruturas políticas, sociais e econômicas do Império Otomano, acelerando o processo de perda de seus territórios. Tais reduções são tão expressivas que ao compararmos as perdas ocorridas entre os anos de 1807 e 1829 e as estabelecidas na década 1830 o que se consta é que as reduções mais do que dobraram, alterando assim significativamente o quadro geopolítico e inclusive ampliando as áreas limítrofes do continente europeu. Este foi o caso da Tessália, que passou a pertencer à Grécia em 1881 após longas negociações. A partir disso, britânicos e alemães começaram a intervir a favor dos protestantes e dos judeus palestinos. Os russos, por sua vez, pelos gregos e os árabes ortodoxos, que reivindicaram as possessões da Igreja Ortodoxa local. Por fim, os franceses, principalmente, pela Igreja Católica. Com o Tratado de Berlim os franceses foram oficialmente nomeados “protetores” da Igreja Católica Romana na Palestina.76 Cabe aqui acrescentar que, embora Jerusalém não fosse uma área importante para o governo otomano, essa cidade se viu como o centro de interesses europeus e foi por excelência o palco das transformações. Neste sentido, nos parece ser possível afirmar que a força motriz da Arqueologia Bíblica era a “fé religiosa” (Rodrigues, 2017: 97), uma vez que o passado, inventado, recriado e adaptado, foi empregado como discurso legitimador dos elementos que compunham os Estados-Nação ocidentais: a democracia e o Cristianismo. Em outras palavras, “se Grécia e Roma antigas foram escolhidas como as raízes clássicas da civilização ocidental, a Palestina, ou melhor a “Terra Santa” tornou-se a

fonte espiritual” (Rodrigues, 2017: 100). Exposto isso, nos voltaremos agora para um estudo de caso: a descoberta da cidade de Dura-Europos (e nela da primeira casa-igreja) na década de 1920. Nosso intuito, mais claramente, será observar de que maneira as expedições, a literatura produzida e as ações do governo francês sobre o território sírio configuram claros exemplos dos usos da Arqueologia Bíblica, descritos anteriormente. Em outras palavras, nossa preocupação a seguir será de demonstrar como Dura-Europos pode servir de modelo para se perceber que na gênese da Arqueologia Bíblica ocorreu um forte vínculo com um ambiente religioso, empresarial e político imperialista, ou como colocou Gabriela Rodrigues (2011: 7), nosso objetivo será: (...) explorar o contexto de diversidade de interesses em que a disciplina foi se constituindo, motivada ora por potências imperiais buscando tesouros, grupos religiosos esforçando-se para comprovar materialmente a Bíblia, ao mesmo tempo em que promoviam a evangelização de “pagãos”, céticos tentando promover a laicização da disciplina, grupos políticos procurando justificar seu direito à terra. III. Dura-Europos, a cidade-forte romana, foi descoberta em 1920 por uma companhia militar britânica que encontrou uma parede com um afresco (mais tarde conhecido como o templo “dos deuses de Palmira”) enquanto marchava para a sede em Abou Kemal. A assistência arqueológica foi rapidamente solicitada pelos militares e o arqueólogo americano James Henry Breasted (orientalista da Universidade de Chicago) foi designado para lá. Em cinco dias, em conjunto com os militares, ele escavou o afresco de Konon e identificou as ruínas como as de Dura a partir de uma outra pintura. A escavação, ainda que curta, rendeu uma publicação em que Breasted comparou o estilo das pinturas descobertas com dois mosaicos da Basílica de San Vitale, em Ravenna, considerados grandes ilustrativos do estilo bizantino na época de Justiniano. Mais claramente, por meio do rigor da frontalidade das figuras, vestuários estilizados, olhos fixos e ornamentos luxuosos, Breasted chegou à conclusão que Dura seria um primeiro elo entre a arte helenístico-romana do Oriente Antigo e a arte bizantina do sexto século

(Hopkins, 1979: 3-4; Kaizer, 2016: 2). Após o sucesso da obra, a Académie des Inscriptions et Belles-Lettres organizou uma expedição entre os anos de 1922 e 1923 para Dura77 sob a supervisão científica de Franz Cummont, contando com destacamento militar francês e membros da própria academia de inscrições. O objetivo era explorar, copiar e relatar as pinturas surpreendentes encontradas pela primeira vez pelas tropas britânicas. Em suas duas curtas temporadas trabalhando com tropas do exército, Cummont completou o trabalho no templo dos deuses de Palmira (o edifício que continha as pinturas). Além disso, ele escavou uma torre adjacente que fazia parte do muro da cidade, alguns túmulos, revelou um templo dedicado a Zeus Theos no meio da cidade e explorou um edifício fortificado com traços helenísticos. Em 1926 Franz Cummont publicou os resultados da escavação no livro Fouilles de Doura-Europos (Hopkins, 1979: 17-22). Com o fim da Revolta de 1925 e 192678 foram retomadas as expedições, mas em parceria entre franceses e americanos, mais especificamente entre a Universidade de Yale e a Academia Francesa. Foram realizadas oito campanhas entre os anos de 1928 e 1937. Em todas as expedições boa parte da equipe era composta por beduínos e armênios livres, que aparecem em muitas das fotografias de campo (Figuras 1 e 2).

Figura 1: Homem de pé na entrada do bloco B2, 1932-1933, sexta temporada.

Figura 2: Homem de pé dentro do Arco de Trajano, fora das muralhas da cidade de Dura, 1930-1931, quarta sessão.

Olhando atentamente as fotografias é perceptível o choque entre culturas e o colonialismo reforçado pela postura do Mandato Francês, que buscou uma construção particular da vida diária romana, tais como: a criação do Instituto Francês de Investigação e da Direção Geral de Antiguidades, o lançamento da Revista Síria, a realização de eventos científicos e exposições (entre elas a exposição sobre a Síria no Louvre, em 1923), incluindo a primeira conferência mundial sobre arqueologia síria realizada em 1926. Além disso, as instituições anteriormente citadas foram decisivas para a emissão de decretos para a partilha de cultura material descoberta entre as várias missões e previam ainda o nascimento do Museu Nacional de Damasco. Este último foi aberto com um foco especial no período clássico, enquanto itens pré-clássicos foram colocados no Museu de Aleppo (Baird, 2011: 430-431). Neste sentido, as ações do domínio francês em conjunto com os registros (imagéticos e textuais) dos exploradores geravam uma reinvenção, um estranhamento e mesmo um controle sobre o passado, pois: (a) os remanescentes romanos e gregos se tornavam o passado por excelência da Síria; (b) o reforço cultural e a consequente oposição entre o que seria tipicamente “Ocidental” e “Oriental” justificavam o resgate dos elementos ocidentais em ambiente orientalizado; e (c) as fotografias, ao apresentarem a população local inserida na paisagem explorada, tornavam ambas como objeto de estudo, conhecimento e controle

colonial europeu. Em outras palavras, podemos afirmar que (Baird, 2011: 432): Na Síria, como no norte da África, os franceses haviam se encontrado numa região onde as fronteiras antigas e modernas eram as mesmas. Ao tirar fotografias arqueológicas com pessoas nelas, a Arqueologia tornou-se um método de viajar no tempo nesses períodos. Como Trachtenberg escreveu sobre fotografias da Guerra Civil Americana, essas imagens se tornaram “o equivalente a ter estado lá”. As escavadoras, colocando pessoas que equiparavam com os antigos no quadro, podiam ir para aquele passado, que foi feito para olhar como se estivesse na cúspide do desaparecimento. Isso fez do “verdadeiro” passado da Síria algo possuído pelo estrangeiro, o arqueólogo. Mas, como com toda a recriação histórica: quanto mais autêntico ela tenta ser, mais reflete a situação contemporânea. Dentro desse contexto, a descoberta da mais antiga casa-igreja foi recebida com bastante euforia, pois com esse remanescente material Dura-Europos se consagrava como um excelente modelo das bases culturais e religiosas da civilização ocidental. Boas evidências quanto a relevância desse achado se encontra no artigo produzido pelo historiador classicista americano C. Bradfort Welles79, publicado em 1959 e intitulado “The Hellenism of Dura-Europos”. Abaixo segue um trecho que selecionamos do texto (Welles, 1959: 24): Mais importante ainda, Dura-Europos preservou para a posteridade a imagem de um assentamento selêucida do interior. Não uma grande cidade como a Seleucia no Tigris, mas uma cidade de guarnição, essencial para administração e vida econômica. Tal como deve ter existido em números consideráveis nos satrapias superiores. Esta é a maneira pela qual Dura pagou sua dívida com seu patrono real. Esta é a importância de Dura para estudantes modernos do helenismo. Era helenística, não helênica, e sua contribuição para o grande o desenvolvimento cultural da

Antiguidade não era grande. Podemos considerar a conquista helênica como a maior, mas se isso for por meio da razão e de nosso gosto. É o helenismo que nos deu nossa religião e era no mundo helenístico do Oriente em que o grego conhecia o semítico e o iraniano. Ali que foi a fonte do nosso cristianismo, não o Egito ou o litoral do Mediterrâneo. Precisamos saber tudo que possamos sobre o reino dos selêucidas, sobre as fortunas do helenismo na Síria, na Mesopotâmia e no planalto iraniano e é aqui que Dura entra como nosso único fornecedor generoso. Dura era pequena e pobre, mas tal como a viúva da parábola, mesmo na pobreza nos deu tudo o que tinha. Nesse texto, C. Bradfort Welles sistematizou suas principais ideias e conclusões sobre Dura. Ele foi e ainda hoje é o principal autor quando se pensa em população ou mesmo diversidade na pequena cidade-forte. A escolha se deve pelas seguintes razões: (1) Charles Bradford Welles foi um classicista e fez parte da equipe arqueológica que esteve em sítio durante as intervenções francoestadunidenses. O mesmo foi um dos editores responsáveis pela produção de uma série de volumes de literatura primária sobre a cidadeforte (relatórios preliminares e o relatório final sobre papiros) e secundária (artigos e capítulos publicados entre as décadas de 1940 e 1950), corroborando assim para um determinado olhar que ainda, em muitos aspectos, se perpetua em publicações recentes sobre Dura. (2) Welles identificou Dura dentro do seu contexto histórico (ou de atividade como forte desde o período selêucida até o romano) como uma cidade “pequena e pobre” ou como inexpressiva. Fez de igual forma quando, em outro momento do mesmo artigo, afirmou: “apesar de qualquer significado regional, Dura não era uma cidade importante na Antiguidade. Como pode ser visto a partir de sua ausência quase completa de fontes escritas contemporâneas fora do próprio sítio” (Welles, 1959: 28). No entanto, Dura no momento da redescoberta passou a ser considerada como a Pompéia do deserto, parafraseando M. Rostovtzeff.

A razão para isso se deveu a descoberta da casa-igreja, o que segundo C. Welles tornou a cidade uma referência mister para se estudar o cristianismo, a tal ponto que Welles comparou Dura com uma parábola neotestamentária: “(...) mas como a viúva da parábola, mesmo na pobreza nos deu tudo o que tinha”. O dado material da presença cristã na cidade foi tão impactante que ela pode ser percebida na literatura produzida sobre Dura. A começar por ser uma das poucas experiências religiosas que recebeu um olhar mais cuidadoso. Em conjunto com a sinagoga foram as únicas a receberem relatórios finais para abordarem em pormenores sobre o espaço religioso. Além disso, é perceptível o tema da igreja de Dura entre intelectuais interessados nos cristianismos do século I-IV EC, sendo apontada como a primeira evidência material das ἐκκλησία comentadas nas epístolas paulinas (Cavalcanti, 2016; White, 1991). (3) A fala de C. B. Welles revela as primeiras motivações para a escavação do sítio: “Esta é a maneira pela qual Dura pagou sua dívida com seu patrono real. Esta é a importância de Dura para estudantes modernos do helenismo. Era helenística, não helênica (...)”, sinalizando e inserindo, assim, as escavações de Dura-Europos com o momento histórico em que intelectuais, militares e empresários ocidentais estavam com os olhos voltados para o Oriente em busca de remanescentes gregos (um dos basilares ocidentais), combustíveis fósseis e outras formas de riqueza, bem como o reconhecimento geográfico para perpetuação do imperialismo sobre essas áreas, como transparecem arqueólogos como Clark Hopkins, que em seu diário de campo relatou as dificuldades enfrentadas para se obter financiamento para dar continuidade as escavações durante o período da Grande Depressão (Hopkins, 1979: 121): Confesso que sentimos uma necessidade urgente de descobrir descobertas impressionantes naquele período da Grande Depressão. Mesmo o entusiasmo de Rostovtzeff e a elucidação ansiosa do novo edifício cristão em Dura encontraram-se com reações decepcionantes entre os estudiosos clássicos. Estes estavam mais preocupados com a Grécia e a Roma do que com o cristianismo

primitivo e com apenas uma resposta moderada dos caciques americanos, mais interessados na interpretação moderna da Bíblia do que nas antigas representações bíblicas e antigos achados. A descoberta de uma casa dedicada ao culto cristão no período anterior a Constantino, admitiram, era esplêndida e incomum - sim, até mesmo única. Mas parou por aí. Além disso, é importante ressaltar a distinção apresentada pelo autor sobre a cidade: ser “helenística” e não “helênica”. A razão para isso aparece nas páginas seguintes, quando Welles define o impacto da presença romana sobre Dura-Europos (Welles, 1959: 25): Dura foi reconstituída como um município romano e colônia com uma cúria, mas os βουλευταί (senadores) têm nomes romanos, iranianos ou semíticos de um novo tipo. A antiga população de Dura sobreviveu em parte, mas foi em grande parte inundada pelos recém-chegados do oeste. O que isso fez com o helenismo de Dura? Entre os remendos e papiros encontrados na cidade há vários fragmentos literários. Exceto pelo escritor cristão Taciano, os únicos autores que foram identificados foram Heródoto e Apiano, e nada parece ser métrico. Eles são a evidência para o helenismo de Dura, mas muitos pertencem certamente ao terceiro século. Além disso, não há como provar que foram escritos na cidade ou terem estado na cidade antes da ocupação romana. Apenas um pergaminho em grande parte ilegível que parece um glossário foi certamente produzido na cidade por volta do ano 100 EC. Este pode ter sido um livro escolar. Os pergaminhos e papiros fornecem evidências de dois tipos e que é relevante para o nosso propósito. Um é gramatical e o outro paleográfico. A partir da citação acima o que se constata é que a população de Dura-Europos, que era de base grega, foi profundamente afetada com o domínio romano. Ao se tornar uma colônia romana apenas parte da comunidade primária teria sobrevivido, sendo possível mapeá-la por alguns remanescentes textuais. Com isso, percebe-se que o autor não

trabalhou com a possibilidade de uma romanização, uma vez que o padrão cultural continuou, para ele, sendo grego e os romanos não foram capazes de se impor, optando por se “misturar” com os outros povos. Isso fica ainda mais evidente em seu clássico artigo “The Population of Dura-Europos” (1951). Mais especificamente, Welles propôs que em Dura-Europos houve uma continuidade da administração cívica e da classe dominante da era selêucida. A base argumentativa dele se encontrava no estudo de nomes utilizados no último século de existência de Dura. A partir disso, ele formulou uma estrutura social pautada numa aristocracia com cidadania grega (tenaz e capaz de tornar a cultura grega prevalecente), contrastada pelos “nativos” (indivíduos que portavam nomes irarianos ou semíticos). Haveria ainda uma população étnica e grega chamada Europaioi que desapareceu nas últimas décadas de existência da cidade. C. Welles chamou de onomástica o que ele pensava serem “grupos raciais (races)80 na cidade nos primeiros e segundos séculos de nossa era” (1951: 255). Aqueles com nomes aramaicos, ele assumiu como sendo os “nativos” que se contrastavam com a elite greco-macedônia. Aqueles com nomes “celíacos” e aramaicos misturados eram “meias raças” e os indivíduos que tinham nomes tanto gregos como semíticos, como em PDura 19, foram apontados como casos excepcionais. Além disso, ele defendeu que graças a esse redutivo perfil linguístico e onomástico diversificado para vários grupos limitados a categoria racial dentro da cidade, que no período romano a cidade tornou-se “uma mistura contendo alguns iranianos, gregos e latinos, mas muitos elementos semíticos” (Welles, 1951: 270). Os nomes dos militares romanos também fazem parte de suas observações. Para Welles os nomes estavam tão misturados que a “raça”, no sentido da nomenclatura, estava perdida. A partir disso, ele chegou à seguinte conclusão (Welles, 1951: 274): (...) num curto espaço de meio século de toda a tragédia do império romano, que, ao tentar combinar a civilização com a segurança, acabou conseguindo perder as duas coisas. A perda lendária de uma classe dominante grega talvez imaginada em Dura foi assimilada a uma perda de civilização, e os fragmentos do helênico permaneceram

patéticos. A tese de C. Welles nos parece muito problemática, primeiramente, por adotar o conceito de “raça”, que é próprio de um ambiente colonialista e reforçado ao longo da Segunda Guerra Mundial. Em segundo lugar, por dialogar com uma percepção ocidental, que aparece no século XIX, sobre os pilares do espaço urbano: (i) A conceituação de Droysen para helenismo: Em 1833 Droysen publicou o livro “Alexandre, o Grande” (Geschichte Alexanders des Grossen). A obra é fruto de um contexto em que diferentes nações europeias viam os helenos como uma classe superior em termos culturais, o que talvez justifique a fala do autor prussiano sobre as campanhas macedônicas (Droysen, 2010 (1833)): Esclarecer esses povos, ajudá-los a quebrar as cadeias da superstição, despertar neles o desejo da inteligência, habituá-los ao manejo das ideais, em suma, emancipá-los e conferir-lhes uma identidade histórica – tal é tarefa que o helenismo determinou para si na Ásia e, aliás, terminou por cumprir (...). (Droysen. Alexandre, o Grande, 2010 (1833)). O passo acima deixa claro uma leitura marcadamente imperialista de Alexandre para com os povos orientais, traçando nesse sentido uma virada conceitual na definição de helenismo. Se antes o conceito se restringia a “pertencer a cultura grega” ou “para falar da Grécia”, com Droysen a figura de Alexandre se torna central. Pois é a partir dele que se dá “a amalgamação das culturas do Ocidente e do Oriente Médio sob os auspícios da educação grega durante o reinado de Alexandre e o início do cristianismo” (Koester, 2012 (1995): 43). Dessa forma, por meio de Alexandre se iniciava um processo de unificação fruto de um “progresso” que estava permeado de elementos civilizatórios, do racionalismo e da autonomia democrática, mas também intimamente ligado a dimensão de providência ou do cumprimento dos desígnios divinos. (ii) A obra “A cidade antiga” de Fustel de Coulanges, publicada em 1864.81 É importante deixar claro que não se trata de um estudo sobre cidade

antiga, mas sobre cidade-estado. Esse ponto é importante ser evidenciado, pois a pólis ou a città englobavam o espaço urbano (ásty) e o meio rural (chorá, ville), elementos que não se fazem presentes na obra de Fustel. Ele se dedicou as origens da propriedade privada, do Estado e as “revoluções” dentro de um Estado antigo. Sua tese central estava calçada no tripé família, religião e propriedade, que depois era transportado para uma unidade de parentesco maior, a gens. Por fim, para o Estado mais primitivo, como é possível perceber abaixo (Coulanges, 2006 (1864): 84): Há três coisas, que desde os tempos mais antigos, encontramos consolidadas e estabelecidas nessas sociedades gregas e italianas: a religião doméstica, a família e o direito de propriedade - três coisas que tinham no começo uma relação manifesta e parecem ter sido inseparáveis. A propriedade privada existia na própria religião. Toda família tinha seu lar e seus antepassados. Esses deuses só podiam ser adorados pela família e só protegiam a ela, era sua propriedade. Para Fustel a rede família-gens-Estado era claramente uma sucessão histórica e que estava diretamente ligada as suas inclinações políticas, religiosas e sociais: a crença no arianismo. Tal elemento é tão latente em sua escrita que fez com que M. Finley (2003 (1981): 10) afirmasse que “a cidade antiga é uma ilusão, em sua maior parte, visto que Fustel sustentava estar revelando um padrão de evolução ariano único”. A base para isso estava em evidenciar as origens do Cristianismo. Para ele as bases dessa religião estavam na santificação de tumbas de ancestrais e a crença de que a alma dos ancestrais poderia ter vida eterna, como é possível ver abaixo (Coulanges, 2006 (1864): 20): Essa religião dos mortos parece ter sido a mais antiga que existiu, antes de adorarem Indra ou Zeus, homem adorou seus mortos, pela primeira vez o homem teve a ideia do sobrenatural, acreditou em coisas que transcendiam, talvez a morte foi seu primeiro grande mistério e elevou seu pensamento do visível ao invisível, do humano ao divino. Mais do que tecer um processo evolutivo do politeísmo para o

Cristianismo, o autor francês ponderou que a morte era o fio condutor da relação entre religião e propriedade privada. A sustentação de sua hipótese estava centrada na apresentação de casos em que o sacerdote do culto era justamente o pater famílias, exercendo assim uma dupla função na sociedade. A partir desse compartilhamento de cargos se estabelecia a questão dos bens, do parentesco e claro do Estado, pois fora dessas atividades poderia se agregar uma terceira: o rei. IV. Com base nisso, podemos afirmar que o ambiente de descoberta e as primeiras expedições e produções sobre Dura-Europos se revelam como belíssimos exemplos de como a Arqueologia Bíblica funcionou como um elemento central de análise na construção do “outro oriental” justificado pelo “desenvolvimento científico pós-Iluminismo”, dado que verificou-se a atuação conjunta de militares, empresários, políticos, religiosos e acadêmicos com o intuito de mapear e estudar o território sírio, tornando Dura, após a sua redescoberta, parte de um discurso colonialista franco-americano. Para isso foram decisivos os remanescentes materiais de base grega e romana que atrelavam Dura as bases fundantes do ocidente, tendo a casa-igreja como o ponto religioso para reforçar esse aspecto, ou como colocou G. Rodrigues (2011: 6): As ciências ajudaram a definir o europeu como o ápice do desenvolvimento evolutivo e os outros povos, menos avançados tecnologicamente, os “bárbaros” ou “selvagens”, como seu contraponto. A diversidade era compreendida como inferioridade, logo, estava dado o pretexto cultural para o imperialismo e para o colonialismo. Além disso, deve-se reforçar que o que transcorreu em Dura-Europos e em outras cidades da Ásia Menor, do Norte da África e da Palestina no contexto de formação da Arqueologia Bíblica foi resultado de um forte posicionamento religioso de base fundamentalista em defesa da veracidade da Bíblia, colocada a prova com a Modernidade. Assim, por vezes, os relatórios e demais produções realizadas nesse ambiente devem ser lidos com cautela pelos cientistas sociais. Tais cuidados talvez expliquem as razões que levaram muitos intelectuais a sugerirem as expressões Arqueologia do Oriente Próximo e Arqueologia do Cristianismo Primitivo, com o intuito de propor: (i) uma distinção com a

Arqueologia produzida no século XIX e primeiras décadas do XX, trabalhada aqui, e (ii) evidenciar que a Arqueologia enquanto ciência detém suas teorias e métodos, sendo contrária a movimentos ou concepções que ainda hoje insistem em enxergar a Arqueologia como uma ferramenta de comprovação de textos, discursos e pautas militantes e conversadoras. 65*Agradeço a leitura e contribuições de Luiz Felipe Menezes, Mariana Gino, Mariana Pernambuco e Marcelo Feijó. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2018/12/anel-de-2000-anos-que-pode-ter-sido-de-ponciopilatos-e-identificado.shtml. Acessado em: 01/04/2020. 66 Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Arqueologia/noticia/2020/02/templo-3-mil-anos-descobertoem-israel-poe-em-xeque-textos-da-biblia.html. Acessado em: 01/04/2020. 67 Para uma discussão detalhada quanto à relação entre História e Arqueologia, ver: Finley, 1989 e Meneses, 1998. 68 Com o fim das Cruzadas as regiões bíblicas, em especial a Palestina, caíram no esquecimento. Apenas com a Batalha do Acre (1799) que o interesse por essas áreas foi reaquecido, com a justificativa de que elas eram muito familiares, mas pouco conhecidas por serem controladas pelo Império TurcoOtomano (Silberman, 1982: 4). 69 Pincipalmente após as descobertas de Schliemann no local de Tróia, em 1871, estimularem o apetite por aventura e descoberta. 70 Como no Norte da África e na Síria, em que a chegada de islâmicos resultou no abandono e na formação de vastas áreas em ruínas, haja vista que eles optaram por se instalar em localidades adjacentes, mas separadas da população cristã remanescente. 71 Fundada em 1799, a CMS foi uma sociedade britânica composta por cristãos da Comunhão Anglicana, principalmente, e outras denominações protestantes. A ideia original da missão veio de Charles Grant e George Uday, da Companhia das Índias Orientais, e do reverendo David Brown, de Calcutá. Eles enviaram uma proposta em 1787 a William Wilberforce, então jovem membro do parlamento, e Charles Simeon, um jovem clérigo da Universidade de Cambridge, com o intuito de formar uma associação que representasse as várias denominações evangélicas. Com a nomeação de Josiah Pratt para secretário, o movimento se ampliou e estabeleceu missões em diferentes regiões. O reverendo William Jowett foi o responsável pelas missões no Egito e na Turquia Otomana, tendo como foco em ambos os casos a tradução da Bíblia para o idioma dos povos autóctones, e acabaram sendo expulsos pelas autoridades locais por isso. Para a Palestina foram destinados Edith Eleanor Newton e Frederick Augustus Klein, que conseguiram mais êxito quando se voltaram para missões médicas (CLINE, 2009: 30-32). 72 Entre os principais líderes desse movimento estava o fundador da associação: Joseph Samuel C. F. Frey. Ele foi um judeu ortodoxo polonês que se converteu ao cristianismo em 1798, logo após um missionário tê-lo demonstrado um suposto cumprimento das profecias do Antigo Testamento no Novo Testamento, e que se mudou para a Inglaterra em 1801 com a London Missionary Society. Como missionário dessa organização, ele teve a ideia de solicitar autorização para pregar aos judeus que estavam em Londres com o intuito de tirá-los das condições deploráveis em que eles viviam por não estarem plenamente integrados à sociedade inglesa, uma vez que não gozavam da mesma fé. Em agosto de 1808, Frey se separou da London Missionary Society por acreditar que era necessário um trabalho de pregação unicamente voltado à conversão dos judeus (SMITH, 1981: 275-276). 73 O Tratado de Berlim determinou o estabelecimento de um regime de controle da administração

interna do império, de forma a garantir que os europeus mantivessem o mínimo aceitável de direitos, em especial quanto à “liberdade religiosa”. 74 Por Oriente estamos partindo das ideias de Edward Said (2007) para afirmar que, em termos culturais e ideológicos, essas nações se definiram como distintas das áreas por elas colonizadas, sendo a cultura material alvo de resgate e mesmo uma relíquia que comprovaria o seu direito de ocupar, conhecer e conquistar. 75 As pesquisas britânicas da década de 1870, conduzidas pelos engenheiros reais sob a liderança de homens como o capitão Charles Wilson, o tenente Claude Conder e o tenente Horatio H. Kitchener, resultaram no mapeamento de praticamente toda a Palestina. O trabalho deles foi publicado como 26 volumes de memórias, um enorme mapa, planos arquitetônicos e fotografias. 76 Um bom exemplo de conflito desse quadro foi a Guerra da Crimeia, em que entre os interesses russos estava a península dos Balcãs, entre o Mar Negro e o Mediterrâneo. O que levou o czar em 1853 a invocar o direito de proteção dos lugares sagrados para os cristãos em Jerusalém e a invadir os principados otomanos na atual Romênia. 77 Paralelamente as campanhas de Cummont, autoridades francesas designaram outros arqueólogos, principalmente franceses, para as demais regiões que estavam sob seu controle. Entre esses especialistas temos as atuações de Claude Schaeffer buscando remanescentes da Idade de Bronze nas regiões de Ras Shamra e Minet el-Beida, ou ainda Maurice Dunand buscando exemplos de escritos de alfabeto antigo na Babilônia. No entanto, dentre os principais interesses estavam mapear e deter proteção de culturas materiais cristãs e islâmicas antigas. Ver: Hopkins, 1979: 9-10. 78 No ano seguinte, 1925, a revolta de Druse contra o controle francês explodiu pelas terras do deserto. Foram enviadas duas poderosas colunas francesas para suprimir as ruínas destruídas e os insurgentes avançaram do sul até Damasco. Eles não conseguiram pegar a cidade, mas ocuparam a maior parte do país vizinho. Em setembro, os líderes da drusa foram acompanhados por líderes nacionalistas em outras partes da Síria e a rebelião se espalhou. Finalmente, os franceses foram forçados a reconhecer que sua tentativa de governar Levante pela lei marcial era um fracasso. A guerra arrastou-se para 1926, com os arrabaldes de Damasco sob fogo e aldeias descascadas por armas de campo e queimadas por mercenários franceses. Finalmente, em agosto de 1926, a paz foi restaurada com a suspensão da lei marcial, seguida da nomeação de um novo comissário francês com experiência administrativa civil, Henri Ponsot. Este último desejava alcançar um acordo real com os árabes e seus sírios líderes, o que permitiu novas intervenções arqueológicas. Ver: Hopkins, 1979: 12-13; Deguilhem, 2002: 457-459. 79 Um dos editores dos volumes dos relatórios finais de Dura-Europos. 80 Todas as vezes em que aqui for empregado o conceito de raça, estaremos apenas reproduzindo o termo utilizado por Welles e a ser contextualizado nas linhas a seguir. 81 Atribuída ainda hoje como a primeira obra moderna a falar em cidade como sendo o lugar no qual atuavam as instituições e circulavam ideias e pessoas.

V. A Bíblia como Literatura e suas Implicações para a Reflexão Teológica Marcio Simão de Vasconcellos Introdução Do ponto de vista histórico, a Modernidade pode ser compreendida como um período de profundas mudanças sociais, econômicas, políticas, religiosas, culturais e epistemológicas que marcaram a sociedade europeia a partir do século XVI ec. e que se estenderam até o início do século XX. Tal período se caracterizou pelo desenvolvimento de uma consciência humana autônoma, baseada em preceitos racionalistas que, supostamente, seriam capazes de dar conta de todos os fenômenos da natureza e da sociedade. Obviamente, como afirma Paul Gilbert, seria ingênuo imaginar que uma Europa adormecida desde a Antiguidade teria “despertado na alva dos Tempos Modernos, enquanto a noite teria sido somente um parêntese vazio. Do ponto de vista da duração histórica, tais interrupções são insensatas.” (Gilbert, 1999: 12). Contudo, em que pese esta afirmação, em comparação com o período medieval, a Modernidade de fato representou uma profunda alteração de paradigma na compreensão do mundo; uma brusca mudança de época que revelou o caráter obsoleto dos alicerces que fundamentavam a Idade Média e que abriu espaço para novas percepções, capazes de dialogar com os novos tempos. Uma ruptura com o modelo medieval utilizado para leitura e compreensão do mundo que exigiu, por sua vez, o desenvolvimento de uma nova linguagem, atenta aos novos contextos culturais que se formavam rapidamente. Esse momento histórico também viu o desenvolvimento da crítica literária aplicada à Bíblia e das diversas reações que surgiram dessa prática. Em muitos sentidos, a relação entre o texto bíblico e o mundo recém-construído foi sendo marcada – inicialmente de forma gradativa, mas posteriormente num ritmo mais acelerado – por um abismo crescente que separou a interpretação da Bíblia da realidade cotidiana. A hermenêutica desenvolvida durante a Escolástica medieval,

profundamente especulativa e metafísica, se alterou para uma análise racionalista que, como veremos a seguir, caracterizou-se por ser fechada, dualista e, por conseguinte, igualmente divorciada da vida concreta. Vivenciamos, portanto, uma crise na hermenêutica bíblica e na própria teologia (cf. Dusilek e Dreher, 2018: 19) que exige uma autocrítica reflexiva, capaz de articular coragem e discernimento na experiência da fé cristã no mundo. Nesse sentido, é preciso refletir, tanto do ponto de vista da prática hermenêutica e exegética, como da leitura teológica, sobre a compreensão da Bíblia como literatura, afirmada na Modernidade, e as implicações dessa percepção para a vida da igreja, bem como as múltiplas reações, tanto católicas como protestantes, que esse entendimento gerou. Para isso, importa apresentar uma leitura da Modernidade, principalmente a partir dos séculos XVIII-XX, para verificarmos como a Ciência se estabeleceu a partir da moldura proposta pelo Iluminismo e seus pressupostos, instaurando uma nova ordem de pensar e fazer a pesquisa científica e propondo a si mesma como opositora à teologia. O século XIX, em especial, torna-se o pivô do surgimento de novos movimentos hermenêuticos e exegéticos que geraram resistências por parte de grupos cristãos distintos. Vale lembrar, por exemplo, que o século XIX trouxe, no campo protestante, o princípio na inerrância bíblica e, no campo católico, o princípio da infabilidade papal. Ambas propostas fundamentalistas que trazem para dentro dos seus próprios discursos o princípio da verdade absoluta e que relacionam hermenêutica, exegese e homilética num mesmo e quase indivisível movimento. Nesse sentido, é preciso questionar: o(a) portador(a) da voz divina é, ele(ela) mesmo(a), divino(a)? A voz que é personificada na instituição religiosa é a expressão absoluta e idealizada do Deus que ela deseja representar? E mais: que implicações surgem do reconhecimento das Escrituras Sagradas como literatura para a reflexão teológica e para a vivência da fé cristã hoje? Qualquer tentativa de resposta a tais questionamentos necessita de uma perspectiva interdisciplinar entre Teologia, História e Literatura, a fim de construir um panorama a partir da alteridade. É o que buscaremos realizar a seguir. O paradigma moderno e a interpretação bíblica

Para descrever o novo mundo formado na Modernidade, é possível utilizar o termo paradigma, compreendido como estruturas reconhecidas universalmente “que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (Kuhn, 1991: 11). Para Kuhn, a alternância entre paradigmas funciona como motor que põe em movimento o desenvolvimento das ciências em sua forma amadurecida. (Kuhn, 1991: 32). A partir dessa definição, o teólogo católico Hans Küng compreende o momento que a teologia passa como uma crise, não de sintomas isolados, mas sim “uma crise dos fundamentos” (Küng, 1999: 150), isto é, uma crise de paradigmas. Aplicado ao universo da Teologia, o termo paradigma pode ser denominado como “esses grandes modelos hermenêuticos globais de compreensão da teologia e da Igreja, diante das profundas transformações de época [...] E a substituição de um antigo modelo hermenêutico por um novo pode ser chamada de mudança de paradigma” (Küng, 1999: 152). Nesse contexto, a hermenêutica torna-se um tema central e um dos principais campos de batalha usado por grupos distintos, tanto de caráter progressista como de caráter conservador. A Modernidade gerou uma cosmovisão pautada por uma nova antropologia que inseria o ser humano, ápice da criação divina, numa posição de centralidade no universo. Em certo sentido, podemos dizer que o Theos (Deus), representado pela Igreja enquanto instituição social, política e religiosa, foi sendo paulatinamente substituído pelo Antropos, o ser humano visto primeiro coletivamente e, cada vez mais, individualmente. Abordando os impactos dessa cosmovisão sobre a hermenêutica bíblica praticada na Modernidade, Barrera descreve A hermenêutica “moderna” corresponde a uma concepção do mundo em que o “eu” do sujeito pensante (cogito), e o universo físico-matemático desloca o cosmos sagrado do centro de toda referência. A epistemologia ou teoria do conhecimento substitui o mito e a metafísica, explicando já não a realidade objetiva, mas tão-somente como é possível o conhecimento do mundo objetivo. O sujeito pensante (res cogitans) se enfrenta ao objeto e ao mundo (res extensa). O racionalismo crítico da Ilustração termina

questionando o Deus dos teólogos e filósofos, e a crítica histórica do Romanticismo põe em interdição os textos nos quais se expressa a revelação Bíblia. (Barrera, 1999: 671). Houve também um crescente processo de desenvolvimento da autonomia no pensar. Na Idade Média, a produção de conhecimento “tinha seu centro e elite no seio das hierarquias estabelecidos pelo Vaticano” (Rocha, 2017: 45). Isso pressupunha controle severo de discursos alheios, o que, de fato, foi abundantemente praticado pela Igreja. Nesta perspectiva, o conhecimento humano servia apenas para “fundamentar, legitimar e difundir as verdades contidas nas Sagradas Escrituras e, portanto, para glorificar o Reino de Deus” (Rocha, 2017: 45). A fé, soberana sobre a razão, ordenava a construção do discurso e a produção do conhecimento, visando “estabelecer contato entre a fonte de todo saber, Deus, ilimitado, infinito, e eterno, e o homem, limitado, finito, temporal.” (Rocha, 2017: 45). Porém, como afirmamos acima, na Modernidade foram apresentadas novas formas de acesso ao mundo que, embora não negassem, a princípio, a fé, a inseriam em limites muito bem estabelecidos, no interior dos discursos religiosos. O mundo abandonava, aos poucos, o domínio divino e passava a ser considerado mundo dos humanos, passível de ser acessado pela experiência sensorial e pela razão. A definição do conhecimento deixou de ser fornecida exclusivamente pela teologia para se inserir num âmbito racional e científico (cf. Rocha, 2017: 47). A partir dessas premissas, René Descartes estabeleceu a dúvida sobre o mundo como marco inicial de toda sua filosofia: Por desejar então dedicar-me apenas à pesquisa da verdade, achei que deveria agir exatamente ao contrário (contrário em relação aos costumes e tradições) e rejeitar como totalmente falso tudo aquilo em que pudesse supor a menor dúvida, com o intuito de ver se, depois disso, não restaria algo em meu crédito que fosse completamente incontestável.” (Descartes, 2005: 61). Mas de uma coisa Descartes não podia duvidar: do fato de que era ele mesmo quem duvidava. Mesmo que tudo o mais fosse falso, “resta a certeza de que eu penso.” (Descartes, 2000: 62). Daí surge seu axioma

mais famoso: Cogito ergo sum, ou seja, Eu penso, logo sou. Portanto, na epistemologia que nasce na Modernidade, o pensar significa ser. Somos à medida em que pensamos; a existência se baseia na força da razão e esta é o bastante para compreender o mundo. Tal leitura revela-se profundamente dualista e redutora. Se, na Idade Média, a fé como princípio do pensamento criava hierarquia sobrepujando a razão, agora, no pensamento moderno, é a razão que recebe primazia. Isso dá continuidade a um dualismo antropológico, não mais neoplatônico, mas igualmente metafísico. Para Descartes, o corpo representa apenas “algo com extensão e que não pensa” e que, por isso, “minha alma, pela qual sou o que sou, é completa e indiscutivelmente distinta de meu corpo e que ela pode existir sem ele.” (Descartes, 2000: 320). A distinção que Descartes faz entre possuir um corpo e ser uma alma (razão, res cogitans) constitui a base para a afirmação de uma racionalidade estreita, que se consuma em certa dimensão da existência (alma/razão - res cogitans) que pode prescindir sem nenhuma hesitação de outras dimensões (corpóreo-afetivas – res extensa). Essa visão dualista reifica a razão em detrimento da corporeidade e de seus sentidos. (...) Neste sentido Descartes pôde reduzir o corpo à figura de uma máquina. (Rocha, 2017: 54). É essa compreensão dualista que fornece à razão um elemento de superioridade como a alma que pensa e que considera o corpo destituído da dignidade sagrada. Tal é o entendimento que pavimentará o chão da pesquisa científica – inclusive a reflexão teológica – durante muito tempo. Em outras palavras, o corpo (matéria) passa a ser pensado como objeto, e a alma (razão pensante) como sujeito que tem a liberdade e o direito de usar esse objeto conforme lhe apraz. Essa instrumentalização do corpo, lido de forma utilitária, dará à ciência dos séculos seguintes (especialmente após a Revolução Industrial) os argumentos e subsídios filosóficos necessários para criar uma relação de sujeito-objeto com a matéria criada e mesmo com a concepção de “verdade”. Nessa ótica, a natureza torna-se objeto a ser explorado, sem traços de sacralidade que a transformem em sujeito na relação. O próprio corpo humano é “coisificado”, numa relação espúria que o considera propriedade do ser

racional. Contudo, a perspectiva hermenêutica moderna e a compreensão da Bíblia como literatura devem menos ao racionalismo cartesiano e mais ao Positivismo Iluminista. O humanismo cartesiano ainda continuava orientado “para o conteúdo doutrinal e moral dos textos, numa perspectiva bastante dogmática, a-histórica e atemporal.” (Barrera, 1999: 676). “A visão histórica”, completa o autor, “não teve seus primeiros inícios até o final do século XVIII e alcançou seu desenvolvimento ao longo do século XIX, especialmente na Alemanha.” (Barrera, 1999: 677). De fato, em seu início, os intérpretes modernos da Bíblia consideravam o conteúdo do texto bíblico como verdade imutável de Deus. Posteriormente, contudo, graças também ao Romanticismo do século XIX que fez surgir uma consciência histórica, desenvolveu-se uma hermenêutica crítica que se beneficiava dos estudos filológicos, históricos e literários. “A crítica ilustrada e romântica desenvolveu os chamados métodos ‘histórico-críticos’, que tiveram imediata aplicação no campo bíblico” (Barrera, 1999: 682). De fato, O olhar científico toma o lugar da aproximação aos textos bíblicos do período do Renascimento e da Reforma e de seu olhar confiante em relação aos textos. Surgem perguntas pelas lacunas, incongruências e duplicações dos textos. Os intérpretes começam a analisar o que, do ponto de vista racional, é concebido como contradição. A confiabilidade histórica e a autenticidade transformam-se em palavras-chave da investigação, além de definirem a inter-relação entre leitor e texto. (Filho, 2011: 99-100) Assim, problematizam-se as narrativas bíblicas e investigam-se os processos redacionais dos textos na mesma proporção que se questiona a confiabilidade das Escrituras como fonte histórica. Os mesmos instrumentos de crítica literária aplicados a textos diversos foram igualmente utilizados na análise dos textos bíblicos. Um dos exemplos mais clássicos é a crítica feita à autoria mosaica do Pentateuco. Inicialmente proposta por Jean Astruc (1684-1766), no século XVIII, e sistematizada por Julius Wellhausen (1844-1918), a Hipótese Documental propunha a existência de quatro fontes ou documentos que, num longo processo redacional, deram origem ao Pentateuco. Embora

abundantemente criticada e, num certo sentido, até mesmo superada82, essa teoria ilustra a parceria entre história e exegese bíblica mencionada por Paulo Nogueira: As convergências e parcerias entre história e exegese bíblica não são novas. Elas construíam um caminho comum desde o século XIX, quando os estudiosos buscavam submeter o texto bíblico a uma rigorosa crítica histórica. O resultado foi a descoberta da falta de precisão dos textos como fonte para a reconstrução das origens do cristianismo devido ao caráter mítico e folclórico de sua linguagem. Esta questão passou a ser central para os estudos bíblicos: a relação entre história e linguagem. (Nogueira, 2012: 23). Transformado em objeto de análise, o texto bíblico é estudado a partir dos cânones iluministas da razão, da dúvida metódica e da metodologia científica. E não tardaram a surgir no cenário cristão, tanto católico como protestante, críticas ao uso de tais metodologias no estudo das Escrituras. Não é sem um toque de sutil ironia que Barrera afirma: “as discrepâncias existentes entre o livro dos Reis e o das Crônicas preocupam muito mais aos fundamentalistas protestantes que a qualquer judeu.” (Barrera, 1999: 685). Falaremos desse tema num tópico posterior. Contudo, vale nesse momento pausar a discussão para destacar o modo como a suposta oposição entre crítica exegética e interpretação teológica pode gerar profundos abismos entre o biblista e o teólogo, entre a prática da exegese e a atualização do texto para o cotidiano concreto da existência. Corre-se o risco de, muitas vezes, transformar a exegese bíblica numa série de exercícios acadêmicos teóricos e estéreis, sem vínculo com a vida, reproduzindo a denúncia de Luis A. Schökel: Os homens nos pedem pão e lhes oferecemos um punhado de hipóteses sobre um versículo do capítulo 6 de João (Jesus, o Pão da Vida); nos interrogam acerca de Deus, e lhes oferecemos três teorias sobre o gênero literário de um Salmo; têm sede de justiça e colocamos a sua frente uma inquirição etimológica sobre a raiz sedaqa (justiça)... (Schökel apud Wegner, 2002: 311). Do mesmo modo, Barrera apresenta sua leitura a respeito

dessa temática ressaltando a separação entre exegese e espiritualidade teológica como fator preocupante para a vida da fé em Cristo atualmente: O conflito da consciência ilustrada entre o mistério religioso, reduzido a dogma, e a verdade racional, entre a consideração da Bíblia como Palavra de Deus ou a redução da mesma a um mero documento histórico, ainda não encontrou um verdadeiro caminho de solução. Chamadas recentes para uma interpretação “pós-crítica”, ao invés de uma interpretação histórica, uma “espiritual” [...], ou à substituição de uma hermenêutica da suspeita por uma do consenso, aberta à transcendência [...] colocaram ainda mais em relevo a profunda insipidez na qual se encontram os estudos bíblicos, divididos entre a exigência crítica e a busca do sentido teológico. (Barrera, 1999: 686). As diversas metodologias exegéticas utilizadas para acessar o texto bíblico têm como fundamento a afirmação de que a Bíblia é também literatura. Em que sentido podemos conceituar a Bíblia como literatura e quais são as implicações desse fato? É o que veremos a seguir. Bíblia como literatura: conceituações e implicações para sua leitura e recepção A Bíblia é literatura. Embora simples, esta afirmação produziu muita resistência e rejeição por parte de muitos grupos no decorrer da história cristã. Na perspectiva de alguns, considerar a Bíblia como literatura implicaria numa redução de sua sacralidade ou mesmo na rejeição do texto como Escritura Sagrada. Subsidiando tal percepção, havia a crença de que, por ser Palavra de Deus, a Bíblia nunca poderia ser considerada um texto como qualquer outro. Para Antônio Magalhães, um dos primeiros teólogos brasileiros a desenvolver a relação entre teologia e literatura, tais obstáculos à compreensão da Bíblia como literatura “não existem nos autores de literatura, mas em muitos lugares da crítica literária e da teoria literária assim como no campo da teologia” (Magalhães, 2008: 16). Segundo o autor, um dos motivos para essa resistência deve-se ao fato de que “a Bíblia foi vista, por alguns, como livro da instituição religiosa e não como livro da cultura e de processos

civilizatórios complexos. (Magalhães, 2008: 16) A afirmação da Bíblia como palavra divina a torna, por pressuposto, um texto a-histórico, pelo qual o divino suplanta e, por fim, nega o humano na produção das narrativas bíblicas. Afirma-se o teor sagrado do texto, lido, contudo, numa perspectiva dualista que compreende ser necessário rejeitar o humano para defender a inspiração de Deus. Tal posicionamento sustenta-se na doutrina da inerrância bíblica, que, em sua formulação clássica, afirma a inexistência de quaisquer erros na Bíblia. Mesmo diante das descobertas da crítica textual como duplicações nas narrativas, incorreções geográficas e/ou históricas nos relatos, e a respeito da existência de múltiplas variantes textuais, provocadas por erros acidentais ou intencionais dos copistas, a inerrância foi mantida por muitos que a restringiram apenas aos autógrafos, isto é, aos originais da Bíblia (Lopes, 2004: 28). Contudo, uma vez que não temos acesso aos textos originais e, do ponto de vista metodológico, não é possível recuperá-los, a defesa da inerrância tornase muito mais uma questão de fé pessoal e nem tanto de reflexão acadêmica. Além disso, tal posicionamento hermenêutico revela uma postura de “guardião da Bíblia”, que impossibilita o reconhecimento da grande variedade de gêneros literários nos textos bíblicos e de suas diversas interpretações possíveis. A polissemia da Bíblia é ofuscada (ou mesmo intencionalmente escondida) em nome da univocidade da fé. A Escritura é compreendida quase que exclusivamente como fonte de doutrina teológica e/ou confessional. Ora, tal interpretação não leva em consideração o fato da Bíblia ser palavra de Deus em linguagem humana. “A Sagrada Escritura”, lembra-nos Konings, “é palavra de Deus, não no sentido literal, mas num sentido analógico. Quer dizer, é uma literatura humana, na qual – quando lida no contexto de determinada experiência e tradição religiosa – se reconhece a voz de Deus” (Konings, 2011: 155). Resistências à percepção da Bíblia como literatura também se fizeram ouvir por parte da própria crítica literária, ainda refém de um positivismo racionalista redutor; muitos críticos literários não reconhecerem “o tema da religião como constitutivo e estruturante de parte da literatura ocidental” (Magalhães, 2008: 16). Mas esse tema se

faz presente de forma abundante. Para citar apenas um exemplo, vejamos a correspondência temática entre o personagem Ivan Karamazov, de Fiódor Dostoiévski, e o personagem Jó, do texto bíblico: ambos expressam, com a linguagem cultural de seus autores, o drama diante do sofrimento do inocente. “Não falo do sofrimento dos adultos: estes comeram a maçã e que o diabo os carregue a todos. (...) Mas as crianças! As crianças!” (Dostoiévski apud Delumeau, 2007: 103), exclama Ivan. “Se uma calamidade mata subitamente, ele (Deus) se rirá do desespero do inocente”, blasfema Jó (Jó 9:23). Questionamentos profundamente teológicos, de ambos os personagens. De fato, transparecem, do Antigo ao Novo Testamento, narrativas literárias carregadas de teologia; ou afirmações teológicas expressas sob a forma de gêneros literários diversos. A interconexão entre essas frases revela o caráter relacional da teologia e da literatura. Longe de enfraquecer ou mitigar a teologia presente nas Escrituras Sagradas, esse fato a afirma como um repositório de diversas percepções humanas que combinam, paradoxalmente, percepções múltiplas sobre Deus, sobre a vida e sobre si mesmo. Há, no texto bíblico, uma qualidade profundamente literária que se revela também teológica. As Lamentações de Jeremias, por exemplo, são um lamento teológico sobre a destruição da Cidade Santa, provocada pelo pecado, aliado à afirmação da esperança que faz germinar nova maneira de ver e ser no mundo. E tudo isso delineado pela beleza literária que revela uma imensa saudade, nostalgia, tristeza e fé no futuro que Deus reserva a seu povo. Querer trazer à memória o que pode dar esperança é tema tanto da teologia como da literatura. E esse tema, vale repetir, é válido para toda a vida humana. Compreender a Bíblia como literatura traz importantes implicações à sua interpretação. Como ocorre com qualquer texto, todo leitor da Bíblia é, obviamente, também um intérprete. A análise de textos, a partir de uma metodologia específica, pressupõe a inserção do intérprete num determinado contexto histórico-cultural que delimita e orienta sua própria interpretação. Aliás, é exatamente isso que ocorre no processo de interpretação do texto bíblico. O texto não se apresenta como um fenômeno isolado, como um extraterrestre. Provindo de “nosso mundo antes

de nós”, abre caminho e produz um rastro de referências significantes nas mentes e na linguagem. Representa uma comunidade de pessoas que falam mediante as palavras que o texto lhes fornece, que veem o mundo na perspectiva que o texto abriu e que sonham com o mundo num jeito para o qual o texto deu as palavras. E, dialogando com o texto, eu entro nessa comunidade, nesse diálogo. (Konings, 2011: 176). Por isso, afirmamos a leitura do mundo como prática que precede a leitura do texto. Em outras palavras, a construção do sentido de um texto é antecipada pela disposição mental que possuímos do microuniverso cultural que habitamos. Assim, a experiência de ler um texto e a interpretação desse texto ocorrem simultaneamente, mas sempre a partir de um chão pré-definido no qual a pessoa vive. Por essa razão, é imprescindível defender a autonomia no processo interpretativo, processo que envolve gerar consciência histórica e percepção do mundo em que se vive. Da fusão de horizontes entre essas duas perspectivas, brota o sentido de um texto. Ler, vale lembrar, não é apenas decodificar os códigos linguísticos para formar palavras e frases; antes, a leitura está intimamente ligada ao fator existencial de cada indivíduo. Se o ato de ler não é a mera decodificação de um sistema de sinais (escrito, desenhado, esculpido em pedra, imagem e movimento), não basta uma análise formal do código em que foi cifrado, para torná-lo legível; se o universo de discurso importa para a significação, há que considerar o contexto de sua produção; se há ouvidos diferentes em cada homem, há que pensar nos efeitos que o dizer/grafar tem sobre os sujeitos, isto é, como se dá a recepção por parte do ouvinte/leitor. Cada um recebe a água vertida no receptáculo de que dispõe... (Yunes, 2002: 20) Aplicada ao texto bíblico, a afirmativa de Yunes tem total relação com métodos hermenêuticos e exegéticos praticados. A recepção do texto importa tanto quanto a(s) metodologia(s) usadas para interpretá-lo. Há uma reserva de sentido, numa narrativa, que possibilita múltiplas interpretações. Não existe, portanto, uma prática interpretativa que

produza um resultado unívoco a respeito da hermenêutica de um texto. A leitura unívoca de uma narrativa ignora, na maioria das vezes intencionalmente, outras possibilidades interpretativas igualmente legítimas. O número de interpretações possíveis está relacionado ao número de intérpretes que investigam o texto o que, claro, não rejeita critérios de discernimento para a prática hermenêutica. Por isso, pode-se afirmar que “leitura bíblica é releitura. É fazer reviver a palavra antiga a partir da tradição que ela criou para chegar até nós, na nova situação em que hoje nos encontramos”. (Konings, 2011: 179). Já podemos encaminhar a reflexão para a análise da interpretação fundamentalista. Antes, porém, vale destacar o uso da linguagem como mediação de experiências e percepções de mundo. O risco, aqui, é transformar esta mediação em moldura que cerceia e controla o pensamento alheio. É, como afirma Yunes, o risco de permitir que a forma de designar o mundo, pouco a pouco, se torne “o próprio mundo, ganhando uma transparência ilusória que beira a alienação. A língua desenha o mundo e não raro o aprisiona em seus clichês.” (Yunes, 2002: 53). O que Yunes descreve nesse trecho constitui um risco muito presente, sobretudo na prática exegética e teológica: confundir a expressão da experiência religiosa com a realidade em si. Ora, é preciso perceber que a realidade não cabe na linguagem. A realidade é polissêmica (tem diversos sentidos); o texto lido numa lente fundamentalista é unívoco, como veremos a seguir. Conceito e práticas hermenêuticas do fundamentalismo cristão O termo fundamentalismo não é unívoco. Ao contrário, o termo é utilizado com objetivos e conteúdos muito distintos e até mesmo contraditórios, O termo fundamentalismo pode aparecer “como sinônimo de conservadorismo, sectarismo e fanatismo; como movimento ou corrente amarrados a modelos culturais e religiosos do passado, fechados aos valores do mundo moderno e até mesmo às ciências.” (Oro, 1996: 23). Historicamente, o termo faz referência a um movimento de reação às descobertas científicas da Modernidade – incluindo-se a compreensão da Bíblia como literatura – que se produziu no interior de denominações cristãs no início do século XX. O fundamentalismo cristão tem sua origem ligada à escrita de uma série de livros chamada The Fundamentals, publicada a partir de 1909, que versavam sobre a fé

em confrontação às perspectivas da modernidade. Abordaremos, brevemente, sua formação histórica para, posteriormente, apresentar as concepções filosóficas e a cosmovisão que fornecem sustentação a sua prática, bem como as implicações que traz à vivência da fé em Cristo. Em sua análise dos movimentos de missão, Luiz Longuini Neto apresenta uma importante diferenciação entre o movimento evangelical e o fundamentalismo. “O movimento evangelical”, lembra-nos o autor, “é anterior ao movimento fundamentalista.” (Neto, 2002: 22). Apesar de terem pontos de partida em comum, há diferenças entre evangelicais e fundamentalistas: “o movimento fundamentalista é uma espécie de linha de frente, um grupo militante que nasceu dentro do movimento evangelical, vindo mais tarde a se radicalizar e a se distanciar deste” (Neto, 2002: 23). Por isso, “todo fundamentalista é um evangelical, mas nem todo evangelical é um fundamentalista.” (Neto, 2002: 23). Afirmamos, acima, que o racionalismo positivista da modernidade é dualista e fechado, pois “reduz a tarefa de percepção da realidade a uma só dimensão da existência humana: a razão concebida como consciência e sede do ser” e que, por sua dinâmica hierarquizante, “impede em última análise que nos realizemos como seres complexos” (ROCHA, 2014: 19). Paradoxalmente, embora tenha surgido como reação à leitura racionalista da fé, o fundamentalismo é igualmente racionalista. Sua perspectiva é formada pela mesma tensão entre razão e fé que caracterizou a modernidade. Como afirma Zabatiero, “o debate entre liberalismo (racionalismo) e fundamentalismo cristãos é uma das expressões desse conflito: como ser, simultaneamente, racional e cristão? A tendência chamada de liberal acentua o polo da racionalidade, enquanto a chamada fundamentalista acentua o da fé heterônoma.” (Zabatiero, 2011: 109). Nesse sentido, o fundamentalismo não é tanto uma recusa à Modernidade e ao novo tempo que surge no horizonte, mas antes o “alter-ego reprimido da Modernidade, a barbárie que se encobre nos monumentos da civilização.” (Zabatiero, 2011: 111). Como tal, o fundamentalismo seduz ao supostamente devolver ao cansado coração do ser humano moderno um chão firme sobre o qual se estabelecer: um refúgio das incertezas e dúvidas que surgem na caminhada; “seduz porque propicia um fundamento religioso inabalável – um deus controlável, não-arbitrário, sempre-presente, um Da-sein, mero existente

entre os existentes.” (Zabatiero, 2011: 112). Sobretudo seduz porque substitui os riscos do pensar alternativo pela segurança de fronteiras já devidamente conhecidas, exploradas e demarcadas, garantindo, por suposição de fé, a manutenção da pureza doutrinária (numa teologia de repetição sistemática) e a estabilidade da própria civilização cristã ocidental. Ao insurgir-se contra o modernismo teológico, o conservadorismo protestante pretendia estar reagindo a uma hipotética ameaça aos próprios fundamentos da civilização cristã, surgida em razão da incorporação ao trabalho teológico de métodos e técnicas julgados “alheios à fé”. (Mendonça e Filho, 2002: 114) Nesta lógica, não apenas a ortodoxia protestante estaria ameaçada, mas toda a cultura cristã que havia sustentado a civilização até aquele momento. Essa suposta ameaça à fé gerou uma teologia feita em trincheiras, não mais em fronteiras. Era preciso rejeitar ativamente os postulados da Modernidade, ignorando qualquer postura de autocrítica acerca dos próprios fundamentos. “A defesa do mito da civilização cristã ocidental, corporificada na cultura dos países protestantes dominantes, justificava a renúncia intransigente à racionalidade e às ciências.” (Mendonça e Filho, 2002: 114) A fundamentação filosófica, que sustenta o fundamentalismo enquanto interpretação literal do texto bíblico e prática de fé a partir disso, está baseada numa determinada concepção de verdade tida como universal e capaz de ser expressa, pela linguagem, a qualquer pessoa independente da cultura ou da época em que se vive. Nessa lógica, a verdade recebida é preservada pela memória sem qualquer alteração interpretativa; o texto bíblico é lido por meio de uma lente literalista que empobrece sua riqueza hermenêutica; e os possíveis conflitos entre a cosmovisão gestada pela Ciência e a produzida por essa leitura fundamentalista da Bíblia são solucionados, atabalhoadamente, com concordismos superficiais entre o texto bíblico e as afirmações científicas. Tal leitura fornece munição a posicionamentos fechados ao diálogo e à alteridade. Gera, como afirmamos acima, uma teologia de trincheiras, incapaz do diálogo com o diferente, aguerrida, militante e

doutrinariamente vigilante. Uma “hermenêutica”83 teológica cuja “rigidez inibe e castra qualquer espontaneidade, ainda que seja em nome da experiência primeira.” (Dusilek e Dreher, 2018: 62). Desse pressuposto de controle de discursos alheios – pautado na interpretação literal dos textos bíblicos – brota uma postura combativa, defensora de uma suposta pureza doutrinária contra os “desvios” defendidos por outros grupos. Destrói-se o discurso do outro em nome de Deus. “Daí a importância de constituir um grupo coeso alternativo às facções ‘apóstatas’, que ofereça ao crente a certeza da verdade, conduzindo-o pouco a pouco em seu processo de conversão e adesão radical e incondicional.” (Lima, 2009: 342). Assim, o diferente é demonizado na mesma proporção que a doutrina é afirmada, doutrina esta, aliás, elevada a um nível de atemporalidade que fornece sustentação ao mito da continuidade histórica. Nesses moldes, a doutrina ganha mais valor que a vida, numa reprodução quase literal do farisaísmo das elites religiosas, presente nas narrativas evangélicas. O ódio é (mal) disfarçado de defesa da ortodoxia e o interesse no cumprimento das exigências da Lei repudia a vivência da fé de forma contextual, vinculada ao chão histórico de homens e mulheres. Trata-se de um paradoxo pelo qual a “sã” doutrina causa insanidade emocional, mental, psíquica, afetiva ou mesmo física. Aliás, a afirmação de uma sã doutrina pressupõe a existência de uma doutrina insana, louca, distinta dos padrões pré-estabelecidos. Nessa lógica, o próprio Deus e seus supostos representantes são encarados como instrumentos de coerção e controle das consciências alheias. A teologia perde sua dimensão mistagógica, vinculada ao Mistério que é Deus, para se tornar apologética, geradora de um sistema teológico fechado em si mesmo. Ao substantivar-se e institucionalizar-se em forma de poder, seja sagrado, social, cultural e militar (como nos Estados Pontifícios de outrora), as religiões perdem a fonte que as mantém vivas – a espiritualidade. No lugar de homens carismáticos e espirituais, passam a criar burocratas do sagrado. Ao invés de pastores que se colocam no meio do povo, geram autoridades eclesiásticas, acima do povo e de costas para ele. Não

querem fiéis criativos, mas obedientes; não propiciam a maturidade na fé, mas o infantilismo da subserviência. O resultado é a mediocridade, a acomodação, o vazio de profetas e mártires e o emudecimento da palavra inspiradora de novo ânimo e de nova vida. As instituições podem tornar-se, com seus dogmas, ritos e morais, o túmulo do Deus vivo. (Boff, 2001: 28-29). Os dogmas cristãos, originalmente desenvolvidos como “expressões profundas e maravilhosas da verdadeira vida da igreja”, que relacionam sua piedade, devoção e crenças, foram, em variadas ocasiões, substituídos por “poderes repressivos destinados a produzir desonestidade e fuga” (Tillich, 2004: 23). Esse é o perigo que o fundamentalismo traz à teologia e à própria fé cristã: transformar sistemas teológicos em prisões, devido a uma identificação com o que se compreende como “resposta definitiva e final” (Tillich, 2004: 19) acerca de Deus e sua revelação. Nesse processo, a doutrina importa mais que os questionamentos reais e existenciais de homens e mulheres, silenciados pelo discurso totalizante e paralisador fundamentalista. Do ponto de vista bíblico e teológico, a leitura fundamentalista reduz o texto bíblico a um depósito de afirmações ontológicas sobre Deus, interpretadas por representantes hierarquicamente escolhidos e únicos autorizados a interpretar corretamente o texto para outros. Ignora-se o elemento simbólico, do mito e da poesia presentes nas narrativas bíblicas, transformando a Bíblia num substituto doutrinário para Deus. No lugar da encarnação – Deus encarnado – defende-se um Deus “enlivrado”, encaixotado em fórmulas e dogmas já estabelecidos e previamente aceitos como “verdade”. Aliás, vale perceber que determinadas definições de Verdade, sustentadas numa metafísica racionalista (igualmente utilizada pelo fundamentalismo como base epistemológica) serviram na história humana a alguns episódios muito terríveis e é nesse sentido que a tese de Karl Poper (1902-1994) deve ser entendida. Segundo este filósofo, o apelo à metafísica como lugar da verdade pode gerar propostas autoritárias e violentas. Comentando esta tese, Vattimo afirma que, para Poper, os inimigos da sociedade humana e da própria democracia são todos os teóricos que, “tendo saído, uma vez, da caverna em que vivem

os homens comuns e tendo tido a oportunidade de ver diretamente as ideias eternas das coisas (em suma, a verdade do ser e não mais apenas as sombras)”, sentem-se no direito de, retornando ao mundo, “guiar seus semelhantes, até mesmo, eventualmente, à força, ao reconhecimento da verdade.” (Vattimo, 2016: 19). Propostas heteronômicas são aplicadas, em nome da defesa da fé, sobre indivíduos ou grupos que destoam da melodia imposta. A noção de verdade que sustenta tais propostas é a verdade como objeto, estático, absoluto, imutável; algo que por assim dizer sempre esteve lá, à espera de ser descoberto por um grupo ou um indivíduo em particular a fim de ser imposto (inclusive com o uso da força) à vida dos outros. Esse é o risco do pensamento fundamentalista: A conclusão a que quero chegar é que a verdade como algo absoluto, como correspondência objetiva, entendida como última instância e valor de base, é um perigo, muito mais que um valor. Leva à república dos filósofos, dos especialistas, dos técnicos e, no limite, ao Estado ético, que pretende poder decidir qual seja o verdadeiro bem dos cidadãos, mesmo contra a opinião e as preferências deles. (Vattimo, 2016: 26). Paradoxalmente, a defesa da “verdade” absoluta, lida a partir da ótica metafísica, pode conduzir à exploração dos seres humanos. Nesse sentido, é preciso adotar uma postura de desconfiança crítica em relação ao indivíduo ou grupo que se afirmam como detentores da verdade. Nas palavras da filósofa Hannah Arendt (1906-1975), “Quem, em um contraste de opiniões, afirma possuir a verdade, demonstra uma pretensão de domínio.” (Arendt apud Vattimo, 2016: 28). Vale lembrar também que afirmar a incapacidade humana em dar conta da verdade em termos absolutos significa, apenas, o reconhecimento das limitações e condicionamentos históricos, culturais, sociais, econômicos, políticos, religiosos etc. que cercam o ser humano, inclusive em suas experiências de fé. Do ponto de vista teológico, isso significa afirmar o humano como lugar da revelação divina, como topografia da manifestação do Sagrado, com todas as implicações que essa proposta possa gerar. Dito de outra forma: desejar o monopólio de uma verdade tida como absoluta e inflexível acaba retirando da prática da fé o elemento humano que deve caracterizá-la. E, por fim, acaba

fazendo desta prática um instrumento de intolerância e perseguição aos discursos diferentes. Teologia é um discurso histórica e culturalmente condicionado. Tratase da sistematização de uma experiência de fé, sempre mediada pelo horizonte cultural de quem a vivência. Importa ressaltar esse fato pois, em grande medida, compreender ou não essa questão está intimamente ligada ao entendimento que se tem da Bíblia como texto sagrado e como expressão teológica de experiências de Deus. A Bíblia é palavra de Deus, contudo, ela o é em linguagem humana, pois não existe palavra de Deus pura; ela sempre é mediada para chegar ao ser humano. É preciso reconhecer, enfim, que espiritualidade cristã se concretiza não em doutrinas, ainda que estas sejam importantes, mas na experiência de encontro e de acolhimento em relação ao outro. 82 A partir da segunda metade do século XX, essa Hipótese Documental perdeu adeptos em função de muitos exegetas preferirem abandonar suas prerrogativas na busca de novos paradigmas de leituras do Antigo Testamento. Obviamente, contudo, isso não resultou num retorno à visão da autoria mosaica, mas antes produziu uma ênfase hermenêutica na forma final do Pentateuco, e nem tanto ao seu processo redacional. Como afirma José Luis Sicre, “isso, todavia, não impede que as Introduções ao Antigo Testamento dediquem um bom número de páginas a J, E, D e P. Reconheço que, às vezes, é preciso falar de tradições javistas, eloístas, sacerdotais e deuteronômicas, para deixar claro que o Pentateuco não é um bloco compacto e homogêneo. Nada, porém, de otimismo exagerado, para não cair em posições tão ingênuas como as de quem ainda pensa que Moisés escreveu o Pentateuco.” (SICRE, 1999: 90). Vale lembrar que os métodos histórico-críticos também foram aplicados ao Novo Testamento, obtendo como resultados as afirmações de pseudoepígrafes e de processos redacionais nas cartas neotestamentárias, bem como a Teoria das Duas Fontes aplicada aos evangelhos sinóticos. Cf., a respeito: MAINVILLE, Odette (Org.). Escritos e ambiente do Novo Testamento. Uma introdução. Petrópolis: Vozes, 2002: 161-196; WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. 3ª edição. São Paulo: Paulus; São Leopoldo: Sinodal, 2002: 108-111. 83 O uso de aspas no termo hermenêutica é proposital. Deseja-se afirmar, com isso, que não é possível aplicar o termo hermenêutica à postura fundamentalista pois falta a esta qualquer abertura e acolhimento às metodologias hermenêuticas e suas discussões. Como afirmam Dusilek e Dreher, “não é possível haver uma hermenêutica fundamentalista. Isso porque o fundamentalista não reconhece os avanços da filologia e da linguagem, tampouco o ‘surgimento de uma concepção inteiramente diferente de linguagem’ que fará ‘crescer uma tendência entre o significado figurado e o que se chama de significado ‘literal’” (Dusilek e Dreher, 2018: 62).

VI. O Nascimento do Fundamentalismo Cristão nos Estaddos Unidos: das origens ao Caso Scopes Rodrigo Farias de Sousa A Bíblia não é um livro a ser estudado da forma como estudamos geologia e astronomia (...); mas é um livro que revela a verdade, destinado a nos trazer a uma comunhão viva com Deus. Podemos estudar as ciências físicas e obter um conhecimento razoável dos fatos e fenômenos do universo material; mas que diferença isso faz para nós, como seres espirituais, se a teoria copernicana do universo é verdadeira, ou a de Ptolomeu? George F. Pentecost (Torrey, 1917: posição 21481) Atualmente, a palavra fundamentalismo costuma ser usada para designar uma postura específica frente à religião: literalista, intransigente, intolerante, antimoderna. No século XXI, depois dos atentados de 11 de setembro em Nova York, é muito provável que a primeira imagem que ela evoque nos países ocidentais seja a de muçulmanos extremistas, ostentando fuzis e fazendo ameaças em nome de Deus. Apesar desse estereótipo, o fundamentalismo tem uma origem bastante diferente: não as paisagens áridas do Oriente Médio, mas as cidades dos Estados Unidos; não as suras do Alcorão, mas os versículos da Bíblia; e não uma postura genérica de radicalismo religioso, mas um movimento específico, com identidade própria, nascido no protestantismo evangélico nos Estados Unidos em começos do século XX. Neste artigo, traçaremos uma breve história desse fundamentalismo original, desde o contexto histórico do qual surgiu até seu primeiro despontar no debate público dos Estados Unidos, em meados da década de 1920, com algumas considerações sobre seu “ressurgimento” no cenário americano décadas mais tarde. 1 – O contexto da modernidade: alta crítica, teologia liberal e darwinismo.

Hoje praticamente um sinônimo de “fanatismo” ou “entendimento literal e intransigente de uma doutrina religiosa”, o termo fundamentalismo nasce nos Estados Unidos do século XX de forma bem mais modesta do que seu sentido atual sugere. Ele denotava uma posição teológica que, até algumas décadas antes, era o padrão da maioria das denominações evangélicas. Se a partir de um determinado momento ganhou uma acepção popular como uma forma intransigente de conservadorismo, não foi por nenhum exotismo doutrinário propriamente dito, e sim pela mudança de contexto do cristianismo na era moderna, e do evangelismo84 americano em particular. A partir do século XVII, uma nova abordagem das Escrituras Sagradas abriu caminho para uma verdadeira revolução teológica. A princípio praticada por teólogos e filósofos, como Hugo Grotius (15831645) e Baruch Spinoza (1632-1677), ela se baseava na análise crítica dos textos bíblicos, apontando suas contradições e inconsistências internas, do que resultaram as primeiras teorias questionando as tradições a respeito da autoria dos textos (por exemplo, se Moisés era realmente o autor do Pentateuco, onde se narra a sua morte). Mais tarde, no século XVIII, esse tipo de investigação ganha corpo com a ascensão do racionalismo e a aplicação, por parte de estudiosos alemães, dos métodos de crítica documental histórica ao texto bíblico, agora tratado como uma produção humana e não uma revelação sobrenatural. Foi este desenvolvimento que ficou conhecido como a alta crítica bíblica85. Ela implicava, necessariamente, uma dúvida metódica em relação às fontes, a comparação com outros tipos de documento e a disposição para eventualmente contestar a veracidade da narrativa bíblica ou as interpretações tradicionais construídas a seu respeito. Produto do racionalismo iluminista, a alta crítica secularizava o texto sagrado, tratando-o como uma fonte no mesmo nível de tantas outras, pondo em questão sua autoridade dogmática, tal como era entendida. Essa guinada interpretativa logo ganharia expressão no campo teológico por meio de pensadores como Friedrich Schleiermacher (1768-1834), considerado por muitos o “pai” do que viria a ser conhecido como teologia liberal protestante86. Em obras como Sobre a religião (1799) e A fé cristã (1821), Schleiermacher tira o foco do aspecto sobrenatural do cristianismo e

tenta conciliá-lo com a razão iluminista. Na primeira, ele analisa a experiência religiosa em si — que afirma ser o verdadeiro objeto da Teologia —, distinguindo suas características comuns e um espectro de seu desenvolvimento que ia desde o fetichismo até fés mais elaboradas, como o cristianismo. Na segunda, que viria a ser seu trabalho mais importante, o autor questiona e reformula algumas das crenças cristãs mais tradicionais, como a existência de milagres (Deus atuaria pelas leis naturais), a queda de Adão e Eva (uma alegoria para uma predisposição inerente a toda a humanidade), a divindade de Jesus (que seria apenas um ser humano, porém possuidor de uma “consciência de Deus” muito poderosa) e as penas eternas (consideradas inconsistentes com a bondade e justiça divinas). Além disso, em consonância com a alta crítica, Schleiermacher via a Bíblia não como a tradicional revelação inerrante de Deus, mas uma compilação das experiências religiosas de seus autores, portanto passível de erros e imperfeições. Como se não bastasse, ele via o Novo Testamento como superior ao Antigo, e aquilo que havia de “inspirado” em ambos podia ser encontrado fora do texto bíblico, em outras manifestações do espírito humano, como nas artes e outros campos da cultura (Macgregor, 2019: 27-28). No fundo, o que Schleiermacher propunha, e se tornou um dos fundamentos da teologia liberal, era uma “mediação” entre a cultura moderna, particularmente a ciência, e a fé cristã, uma reinterpretação das crenças tradicionais à luz de conhecimentos novos, em vez de simplesmente submetê-los à autoridade do dogma (Tice, 2011). Nos Estados Unidos, no entanto, já havia uma espécie de liberalismo teológico autóctone quando Schleiermacher publicou seu livro sobre o cristianismo (Dorrien, 2001: xiv). Ali, portanto, influência alemã só chegaria mais tarde e seria menos decisiva. Embora já houvesse sinais de uma abordagem crítica da religião cristã entre os círculos mais cultos — vide a Bíblia de Jefferson, em que o patriarca americano editou o texto retirando os milagres e eventos sobrenaturais —, a articulação de uma teologia liberal americana, com características próprias em relação às suas contrapartes europeias, foi um processo que se estendeu por boa parte do século XIX. Figuras como o transcendentalista Theodore Parker (1810-1860), o teólogo Horace Bushnell (1802-1876) e os expoentes do movimento do Evangelho Social¸ Washington Gladden (1836-1918) e Walter Rauschenbusch (1861-1918), entre outros, levaram a teologia

liberal de uma marginalidade inicial ao prestígio, e mesmo a uma ascendência intelectual e acadêmica nos Estados Unidos. Marcada pelo otimismo em relação ao progresso humano, a ligação explícita entre a fé cristã e a tentativa de construir uma sociedade mais justa e virtuosa — expressa em movimentos como o de temperança87, o abolicionismo, o sufragismo, e o por direitos dos trabalhadores —, ela também se caracterizava por uma relação diferente entre o fiel e sua fé: em vez da autoridade externa da Bíblia ou do dogma, valorizava-se a racionalidade humana e a experiência religiosa (Dorrien, 2001: xv-xvi). Aquilo que Schleiermacher chamava de “consciência de Deus”, um estado psicológico aperfeiçoado pela relação com Jesus Cristo, e a ética se tornavam mais importantes que os aparatos formais de uma igreja ou a adesão aos dogmas “corretos”. Embora Jesus Cristo ainda tivesse um papel central nessa perspectiva, era o de um exemplo ético a seguir, muito mais que de um redentor sobrenatural e divindade encarnada. Milagres, profecias, demônios e outros elementos extraordinários da narrativa bíblica eram relativizados em prol de uma perspectiva mais humanista, no lugar de serem vistos como fatos a serem tomados literalmente. Inicialmente dispersa por denominações variadas e pregadores individuais, essa perspectiva modernizante da teologia cristã acabou por chegar também a alguns centros acadêmicos, como a Escola de Teologia de Chicago. Na virada do século, com a difusão de movimentos progressistas, o que antes parecia uma postura exótica de alguns pregadores e teólogos se tornou verdadeiramente uma escola de pensamento, presente nos seminários mais antigos e estabelecidos, com a respeitabilidade que a institucionalização e o diálogo mais direto com questões do presente, como o reformismo social, podiam trazer. Paralelamente a essa nova linha teológica, um outro fenômeno também contribuiu para mexer com o cristianismo tradicional: os avanços das ciências da natureza. Sobre isso, a concepção vigente entre os protestantes americanos era, a princípio, de que haveria uma convergência entre elas e as Escrituras. Assim, por exemplo, quando descobertas no campo da geologia demonstraram ser a Terra muito mais antiga do que os 6 mil anos supostamente informados pela Bíblia, a novidade podia ser acomodada nas ambiguidades do texto sagrado — os “dias” de Gênesis 1 podiam ser entendidos como períodos mais amplos

que unidades de 24h. Essa foi a postura, por exemplo, de muitos cientistas e leigos cultos, que nem por isso deixaram de se considerar bons cristãos. Isso não evitava que a crença literal na narrativa bíblica da criação continuasse a existir entre os cristãos mais conservadores e/ou menos instruídos — a diferença era que “essas pessoas raramente expressavam seus pontos de vista em livros e jornais. Daqueles que o faziam, só uma pequena minoria invocava o dilúvio para explicar o registro fóssil, a mais convincente evidência de uma Terra antiga”, isto é, com mais de 6 mil anos (Numbers, 2006: 30). No entanto, essas tentativas de conciliação foram se tornando cada vez mais difíceis com o passar do tempo. Não eram apenas as camadas geológicas e os fósseis, passíveis de serem engavetados nas entrelinhas de um versículo. Quando Charles Darwin publicou sua Origem das espécies, em 1859, e particularmente sua explicação para o surgimento da espécie humana em A origem do homem e a seleção sexual, em 1871, a ideia de uma convergência entre revelação divina e pesquisa científica já não parecia tão convincente. Agora não se tratava mais de mero detalhe “técnico” — se os “dias” do Gênesis tinham 24h ou 10 milhões de anos —, mas de uma questão teologicamente muito mais importante. Afinal de contas, a teoria lançada por Darwin de que o ser humano provinha do mesmo ancestral que macacos e gorilas — popularizada, erroneamente, como a de que “o homem descende do macaco” — tinha duas consequências imediatas sobre a religião. A primeira era invalidar a narrativa bíblica da criação do homem, e seu status como criação especial de Deus, com tudo que isso acarretava termos religiosos, como, por exemplo, a questão do pecado original. Outra era que o processo de seleção natural tal como descrito por Darwin prescindia da intervenção de uma inteligência criadora. Se, em 1859, ele ainda recorria a uma imagem bíblica (“Portanto, devo inferir por analogia que provavelmente todos os seres orgânicos que já viveram sobre a Terra descendem de alguma forma primordial, na qual a vida foi primeiro soprada”88), em seus escritos posteriores isso foi explicitamente rejeitado. Diante da sugestão do seu amigo, o botanista americano Asa Gray (1810-1888), para que reconhecesse “um início sobrenatural da vida na Terra”, Darwin anunciou, já em seu livro Variação de animais e plantas domesticados, de 1868, que, “‘por mais que desejemos, dificilmente podemos seguir a sugestão o Professor Gray em sua crença’ em uma

evolução guiada divinamente” (Numbers, 2006: 16-17). Desta forma, quando A origem do homem apareceu três anos depois, a teoria da evolução não apenas havia “rebaixado” o ser humano a um animal como todos os outros, como ousara também tirar de cena o próprio Deus. Houve resistências no meio científico, algumas com elementos religiosos, como a do próprio Gray, defensor de um evolucionismo teísta que admitia um “projeto” (design) por trás dos processos supostamente cegos (necessity) da seleção natural (Gray, 1876: cap. II, passim). Outras eram estritamente seculares, como a do suíço radicado nos EUA, Louis Agassiz (1807-1873), famoso por seus estudos sobre fósseis e a tese das eras glaciais. Agassiz defendia uma forma de “criação especial” sem compromisso com a narrativa do Jardim do Éden: a Terra teria sido povoada e despovoada várias vezes ao longo da sua existência, graças à ocorrência de grandes catástrofes planetárias que extinguiriam, a cada vez, todos os seres vivos existentes. No entanto, outros ressurgiriam em seguida, sem nenhuma continuidade em relação às gerações anteriores ao último cataclisma. E ao contrário da narrativa bíblica do dilúvio, as novas espécies não ressurgiriam a partir de um único casal primordial, e sim a partir de muitos indivíduos. Curiosamente, apesar da antipatia de vários cristãos para com essa perspectiva, seria ao prestígio científico de Agassiz que muitos opositores da teoria da evolução recorreriam durante os primeiros anos dos debates sobre o darwinismo (Numbers, 2006: 1920). Não obstante, a partir da década de 1870, mesmo críticos como Agassiz reconheciam que a teoria da evolução já contava com uma “aceitação universal”, ou quase, nos meios científicos. Em 1879, quando o jornal Independent desafiou um semanário rival e religioso, o Observer, a nomear apenas “três naturalistas ativos e de renome nos Estados Unidos — ou dois ([pois] pode achar um no Canadá) — que não sejam evolucionistas”, só havia dois nomes possíveis, o geólogo canadense John William Dawson e o seu colega de Princeton, Arnold Guyot. E mesmo eles faziam várias concessões ao evolucionismo, como a progressividade do registro fóssil, a antiguidade da Terra e a possibilidade de pelo menos um grau limitado de desenvolvimento orgânico das espécies. O criacionismo clássico das Escrituras, com sua Terra de seis milênios, criação a partir do nada das espécies em sua

forma atual e status especial para a humanidade, continuava popular nos Estados Unidos, sem dúvida, porém não mais entre os cientistas americanos (Numbers, 2006: 19).89 Fosse como fosse, tanto a teologia liberal, e sua base na alta crítica bíblica, como o evolucionismo representavam rupturas com a visão tradicional do cristianismo, tão cara a uma quantidade enorme de fiéis. No caso do protestantismo americano, em especial, eles constituíram um abalo na inter-relação, dada como certa até meados do século, entre fé, ciência, Bíblia, moralidade e civilização. Como profetizaria Oliver Wendell Holmes, o pai do famoso jurista homônimo, “A verdade está olhando de frente para o mundo cristão, de que as histórias dos velhos livros hebreus não podem ser tomadas como afirmações literais de fato” (Marsden, 1980: 17). À medida que esse tipo de ponto de vista, embalado na autoridade da ciência moderna, começou a se expandir para além dos muros das academias, ganhando visibilidade, começaram a surgir reações. No início, estas eram mais pontuais, descoordenadas e limitadas ao interior de cada denominação, mas por fim acabariam por gerar um movimento organizado, supradenominacional e com identidade própria: o fundamentalismo. 2 – A criação de um movimento O fundamentalismo nasce, portanto, como uma reação. Ele é uma resposta aos questionamentos dos séculos XVIII e XIX às fontes de autoridade da tradição protestante, notadamente ao preceito de sola Scriptura. Também não se distingue por novas doutrinas, mas por um novo amálgama das já existentes. Suas crenças básicas eram familiares a qualquer evangélico conservador da época: inerrância da Bíblia, tida como correta sobre qualquer assunto de que tratasse, fosse em história, moralidade ou ciência; a realidade do nascimento virginal de Jesus, seu sacrifício redentor e sua ressurreição, e a certeza de seu retorno90. No entanto, nas palavras de um de seus maiores estudiosos americanos, o historiador George Marsden (grifo nosso): A oposição militante ao modernismo era o que mais claramente separava o fundamentalismo de um número de outras tradições muito próximas e a ele relacionadas, tais como o envagelicalismo, o revivalismo, o pietismo, os movimentos de santidade, o milenarismo, o confessionalismo reformado, a o tradicionalismo batista e outras

ortodoxias tradicionais (Marsden, 1980:4). Ainda no século XIX, tensões entre cristãos conservadores e os mais liberais haviam crescido no evangelismo americano, incluindo até mesmo processos por heresia, como no famoso caso do acadêmico, pastor e teólogo do Seminário Teológico Union, de Nova York, Charles Augustus Briggs (1841-1913). Briggs, que ousou questionar a visão tradicional da autoridade da Bíblia em um discurso, foi suspenso de suas atividades, processado, absolvido e depois condenado novamente e expulso da Igreja Presbiteriana em 1893. Ele só conseguiu se manter no emprego depois que o Seminário, reagindo ao processo por heresia, cortou laços com a Igreja. Embora mais notório, esse estava longe de ser um caso isolado, mesmo numa denominação de destaque como a presbiteriana (Sandeen e Melton, 2016). Seu caso é instrutivo como um alerta contra a ideia, posteriormente consagrada no imaginário popular americano, de que as ideias e posturas conservadoras mais tarde ser associadas ao fundamentalismo eram características apenas de igrejas rurais de fiéis pouco sofisticados, fora dos grandes centros. Mas foi apenas no século XX que o movimento fundamentalista propriamente dito emergiria. Sua origem imediata está no projeto concebido em 1909 pelo milionário presbiteriano Lyman Stewart, que, junto com seu irmão, financiou uma série de doze livretos publicados entre 1910 e 1915, intitulada Os fundamentos: testemunho para a verdade. Coordenada inicialmente por A. C. Dixon e depois por Reuben A. Torrey, a série contava com 90 ensaios de 64 autores de diferentes denominações — entre clérigos, acadêmicos e escritores populares — e foi enviada gratuitamente para pregadores, missionários, professores de Teologia, instrutores da Associação Cristã de Moços e diversos outros membros do Establishment protestante tanto dos Estados Unidos quanto de outros países de língua inglesa. Calcula-se que a versão original tenha chegado aos 3 milhões de exemplares, mandados para cerca de 300.000 pessoas (Marsden, 1980: 118-9; Torrey, 1917: Prefácio). Entre dissertações sobre dogmas específicos, temas especializados como a alta crítica e testemunhos pessoais, o objetivo explícito da obra, desde o título, era a defesa dos elementos fundamentais da fé protestante contra uma vasta lista de perigos modernos, não só os citados na seção acima, mas também ideologias políticas, como o socialismo, a Igreja Católica

(“romanismo”) e novos movimentos religiosos, como o espiritualismo, o mormonismo, a ciência cristã e a Aurora do Milênio (hoje testemunhas de Jeová). O evolucionismo era citado em alguns dos artigos, sendo inclusive considerado “moribundo”, mas, em retrospecto, sem a repulsa apaixonada que teria mais tarde — a alta crítica é que era o alvo preferencial. Aliás, com algumas exceções, o tom predominante na obra era moderado, notando-se um esforço dos organizadores para que diferenças e polêmicas internas — como a doutrina do dispensacionalismo, que vinha crescendo no meio evangélico — fossem evitadas. Até mesmo para assuntos mais mundanos, como na abordagem sobre o socialismo, que despertava furor em muitos púlpitos, a linguagem adotada é de conciliação: por exemplo, o autor do único artigo específico a respeito, Charles Erdman, do Seminário Teológico de Princeton, um dos bastiões da resistência à teologia liberal, afirmava ser possível ao cristão ser socialista, desde que evitasse determinadas confusões e equívocos atribuídos ao que o autor chamava de “socialismo popular”. Tal meio-termo se tornaria impensável poucos anos depois. Isso porque o esforço de coalizão representado pelos Fundamentos, visando à defesa da teologia evangélica tradicional contra as diversas ameaças modernas e sem posicionamentos político específico, teria seu ponto de inflexão na Primeira Guerra Mundial. Nesse período, especialmente depois da entrada do país na guerra em 1917, a cultura dos Estados Unidos foi marcada por uma exacerbação de fenômenos como a xenofobia (especialmente contra os alemães, apelidados de “hunos”), a rejeição agressiva às ideologias “estrangeiras” de socialistas, comunistas e anarquistas (que originaria a primeira grande onda de perseguição a dissidentes ideológicos, o “Pavor Vermelho” de 1919), além da intolerância com pacifistas e críticos à guerra; e, por fim, o nacionalismo militante, jingoísta, frequentemente tingido de uma retórica religiosa e grandiloquente que equiparava o sucesso dos Estados Unidos na guerra à sobrevivência da própria civilização cristã. Não foram poucos os líderes religiosos que ecoaram em seus púlpitos e escritos a propaganda de guerra ultranacionalista então em voga — no que não estavam sozinhos, haja vista que eram as opiniões de grande parte da população no momento, inclusive teólogos liberais (Marsden, 190: 141-147). Essa mistura entre religião e política levou a situações curiosas, como a do teólogo liberal da Universidade de Chicago, Shirley

Jackson Case, que acusou os grupos pré-milenaristas, tradicionalmente opostos à guerra e aos governos em geral, de receberem dinheiro alemão para minar o esforço bélico americano; em resposta, o jornal prémilenarista The King’s Business tachou a acusação de “ridícula”, mas não se furtou a observar que era inegável que a “crítica destrutiva” vinda de Chicago vinha de “fontes alemãs” — acusação que logo se espalhou entre os opositores da teologia liberal, alguns dos quais não tinham pudores em relacionar a imoralidade da Alemanha beligerante à alta crítica e à teologia liberal originados no país (Marsden, 1980: 148). É justamente nesse momento de ânimos patrióticos acirrados e conspiracionismos xenófobos, quando a tradição apolítica de muitos grupos evangélicos cada vez mais dava lugar a uma mescla entre o sagrado e o profano, que o pastor batista William B. Riley fundou a Associação Mundial dos Fundamentos Cristãos, em 1919 (o termo fundamentalista surgiria somente no ano seguinte, em um jornal batista). De orientação pré-milenarista e interdenominacional, a organização expressava bem a nova orientação do fundamentalismo do pós-guerra: em vez do relativo afastamento do mundo profano enquanto se aguardava o retorno sempre iminente de Cristo, havia agora uma preocupação explícita com a condição da sociedade americana. O motivo era a ameaça representada não apenas por uma teologia desviada, mas por uma combinação de elementos religiosos e culturais: a teologia liberal, certamente, mas também o evolucionismo e até o comunismo. Preservar a fé não seria mais uma questão de igrejas e doutrinas, apenas, mas também de proteger o caráter cristão da sociedade americana, fosse em questões de moralidade pública — era a época da 18.ª Emenda, ou Lei Seca — ou, muito em breve, do currículo escolar. Essa seria uma característica duradoura do fundamentalismo americano, e uma que lhe proporcionaria uma aliança com um dos mais destacados líderes políticos da época: William Jennings Bryan (1860-1925). Três vezes candidato a presidente, expoente do movimento populista da década de 1890, ex-deputado e ex-secretário de Estado no governo de Woodrow Wilson, Bryan era um orador notável, um dos expoentes do Partido Democrata e um cristão ardoroso. Não era, propriamente, um fundamentalista, mas tinha uma visão pragmática do papel do cristianismo na sociedade. Depois de deixar o governo Wilson, em 1915,

Bryan diminuiu seu envolvimento com política, preferindo se dedicar à religião. Na sua residência na Flórida, comandava grandes reuniões semanais de estudos bíblicos, que podiam reunir até milhares de pessoas. Também viajava com frequência pelo país, em palestras, falando sobre a importância da Bíblia e da religião para uma civilização saudável, defendendo, particularmente, a proibição do álcool (Prohibition) e, até 1917, a oposição à entrada americana na I Guerra. Ao mesmo tempo, era defensor de várias causas progressistas, como o sufrágio feminino e direitos trabalhistas. Para ele, “os ideais de piedade cristã andavam juntos com os ideais da progressista e democrática nação americana [...], parte de um ramo otimista da herança evangélica” que tinha perdido parte de sua influência desde a Guerra Civil. Eram opiniões bastante comuns entre os evangélicos conservadores da época, que podiam ser abertos a ideias de reforma sem renunciar a sua ortodoxia religiosa. O que levou Bryan, um presbiteriano, a se associar à nascente movimento fundamentalista foi um ponto específico: o evolucionismo. Já em 1909, o próprio William B. Riley se queixara de que, “Todo pregador da hora presente é obrigado a lidar com a teoria da evolução. Seus advogados invadiram [nosso] reino” (Numbers, 2006: 51). Ao iniciar a década de 1920, o evolucionismo acabou sendo visto como a epítome da hostilidade moderna à fé cristã, especialmente porque, constituindo a esta altura um consenso científico, passara a integrar o conteúdo dos livros didáticos. Dessa forma, todo jovem estudante americano era exposto a uma objeção à narrativa bíblica, envolta na autoridade da ciência como uma verdade. Isso, para os fundamentalistas, era um erro grave que induzia os jovens à descrença e por isso tornou-se um foco de indignação em seus jornais, pregações, livros e panfletos. O resultado foi que, ao longo da década, “mais de vinte legislaturas estaduais debateram leis antievolução,e três — Tennessee, Mississippi e Arkansas —baniram o (seu ensino) das escolas públicas. Um quarto, Oklahoma, proibiu a adoção de livros didáticos evolucionistas” e um quinto, a Flórida, considerou o ensino da teoria darwinista como “impróprio” e “subversivo”. Até o Senado americano chegou a debater projetos de lei nesse sentido, mas não acabou por rejeitá-los” (Numbers, 2006: 55). Bryan juntou-se a essa cruzada em 1921. Um homem culto, com

várias formações universitárias, ele não era, porém, versado em Biologia e tampouco um estudioso acadêmico da Bíblia. Ele nem mesmo era um literalista, diferente de seus aliados nessa luta. Para Bryan, a questão maior era de manter os benefícios da fé para a civilização, o que o evolucionismo punha em risco. Sem a crença na Bíblia e na religião cristã, os jovens estariam expostos a uma degradação moral que podia até mesmo levá-los ao crime. E havia ainda uma questão de democracia, em que a história de Bryan com o populismo se fazia sentir: ele se queixava dos “cientistas elitistas que queriam ‘estabelecer uma oligarquia sobre 40 milhões de cristãos americanos’” e ditar a eles o que poderia ou não ser ensinado nas escolas. Cabia ao povo tomar esse tipo de decisão, como já tinha feito na questão da Lei Seca, aprovada em 1919 (Numbers, 2006: 58). O auge dessa batalha contra a teoria evolucionista veio em 1925, no Tennessee. Para testar a constitucionalidade da proibição do ensino da teoria evolucionista91, a recém-criada União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês) recrutou um professor da cidade de Dayton, John T. Scopes, que infringiu deliberadamente a proibição e por isso foi processado. A punição era apenas uma multa, mas a ACLU tinha interesse em dar a máxima visibilidade ao caso e para isso montou uma equipe de advogados que incluía o famoso Clarence Darrow (18571938), um agnóstico com experiência em julgamentos notórios. Além disso, vários estudiosos seriam convocados como testemunhas para validar a legitimidade da evolução como tópico científico e escolar. O lado da acusação, porém, também contou com um “astro”: ninguém menos que William Jennings Bryan, que viu ali uma oportunidade de pôr à prova seus argumentos antievolucionistas e fortalecer sua causa. Estava claro que o que menos importava no Caso Scopes, apelidado jocosamente de “O Julgamento do Macaco” (The Monkey Trial), era o réu. O processo era um verdadeiro bufê de interpretações e enquadramentos possíveis: ciência vs. religião, obscurantismo vs. progresso, a sofisticação urbana vs. o reacionarismo rural, entre outros, cada um deles à espera de um narrador competente. O mais memorável nessa tarefa foi H L. Mencken (1880-1956), escritor e jornalista célebre pelo seu humor cáustico. Implacável com Bryan, que tinha vindo para “um vilarejo de um cavalo só no Tennessee” e amava “os primatas

boquiabertos dos vales altos”, Mencken ajudou a eternizar o caso na memória popular como um choque entre a modernidade metropolitana e o reacionarismo fanático do interior ignorante. O estereótipo do fundamentalista como “caipira” e “atrasado”, ressentido dos homens da cidade, em vez de membro de um movimento religioso específico em oposição a certos aspectos da cultura moderna, se consagrava ali. “Os fundamentalistas estão em todo lugar onde o ensino é um fardo pesado demais para as mentes mortais (...). Eles marcham com a [Ku-Klux]Klan” e várias outras organizações típicas de interior, todas “as bandas rococós que as gentes pobres e infelizes organizam para trazer alguma nova faísca de propósito a suas vidas” (Marsden, 1980: 187-8). O processo terminou com a condenação de Scopes, cuja multa foi paga por um jornal da Baltimore (a decisão seria revertida mais tarde pela Suprema Corte estadual, com base numa tecnicalidade). Mas, para os antievolucionistas, foi uma vitória de Pirro. Já no final do julgamento, Darrow e Bryan concordaram em se interrogar mutuamente como testemunhas. Bryan foi primeiro, e Darrow o fuzilou com questões sobre contradições bíblicas e passagens que contrariavam o consenso científico, ao que o ex-secretário de Estado respondeu de forma defensiva e mesmo embaraçosa. O juiz do caso acabou encerrando os trabalhos sem que Bryan pudesse dar o troco, e esse último desempenho do grande orador acabou sendo seu canto de cisne na cena pública. Com 65 anos e diabético, Bryan morreria dias depois na própria Dayton, onde ainda tinha permanecido para fazer alguns discursos públicos e participar de atividades religiosas (Kazin, 2006: cap. 6). Otimista, planejava publicar um discurso final que o término antecipado do julgamento não lhe dera ocasião de usar, talvez sem saber que, em grande parte da imprensa nacional, sua biografia estava sendo para sempre associada ao anti-intelectualismo e ao obscurantismo. Em muitas narrativas sobre o fundamentalismo, a conclusão do Caso Scopes é vista como uma espécie de derrocada. Embora embates entre fundamentalistas e liberais ainda continuassem por alguns anos no seio de diversas denominações americanas, de maneira geral os primeiros seriam derrotados. Nas denominações centrais do protestantismo americano, embora houvesse opções teológicas mais ortodoxas que o liberalismo, muitos dos fundamentalistas propriamente ditos acabariam

por formar igrejas separadas, com quadros formados fora das universidades e seminários tradicionais. No lugar destes, optaram por criar “institutos bíblicos” e até instituições próprias de ensino superior, como a Universidade Bob Jones, fundada na Carolina do Sul em 1927. Essa “retirada” em relação ao Establishment protestante tradicional teria uma justificativa teológica na forma da doutrina de “separação de segundo grau” — “separação não apenas do pecado, da mundanidade e da apostasia, mas também de outros cristãos que estavam demasiado próximos dessas coisas” (Sweeney, 2012: posição 109). Assim, enquanto grande parte dos protestantes americanos, mesmo os evangélicos conservadores, manteve-se em diálogo com a cultura moderna — mesmo naquilo que impactava seus posicionamentos teológicos —, grande parte dos fundamentalistas seguiu outro caminho: o da recusa. Paradoxalmente, essa postura não os tornou irrelevantes. Alguns dos grandes evangelistas americanos do século XX começaram sua carreira como fundamentalistas, como Billy Sunday e Billy Graham. E a convicção de que o destino dos Estados Unidos dependia do caráter cristão de seu povo impedia uma retirada completa do espaço público, pelo contrário, às vezes era um incentivo na direção oposta. No pósSegunda Guerra, questões como a constitucionalidade das orações em escolas públicas e do aborto mobilizaram fundamentalistas, bem como vários outros grupos religiosos. E, em fins dos anos 70, movimentos como a “Maioria Moral” do pastor Jerry Falwell mostraram sua musculatura eleitoral ajudando na eleição do conservador Ronald Reagan para a presidência. A partir daí, a chamada “Direita Cristã” — que não se limitava aos fundamentalistas, mas na qual tinham um peso importante — se tornou um termo familiar no noticiário político americano, e uma força a ser reconhecida nos cálculos eleitorais. Ao mesmo tempo, disputas sobre currículos escolares em estados do Sul, incluindo a inclusão de teses criacionistas em pé de igualdade com a teoria evolucionista, continuaram, agora no contexto de guerras culturais entre conservadores e progressistas, durante os anos 1980 e 90. Se, como diz George Marsden, “um fundamentalista é um evangélico zangado com alguma coisa”, os Estados Unidos pós-Scopes continuaram um campo bastante rico em motivação (Marsden, 2006: 235).

84 No Brasil, evangélico é popularmente usado como sinônimo de protestante, sem maiores distinções. Historicamente, no entanto, pode-se dizer que o evangelismo ou evangelicalismo é uma corrente protestante com raízes no século XVIII, caracterizada pela centralidade da experiência da conversão individual (ou “renascimento”) e do papel de Jesus Cristo para a salvação, a aceitação da Bíblia como verdade absoluta e a ênfase no proselitismo. Os fundamentalistas de que trataremos constituem um subgrupo evangélico, caracterizado pela diferença de posicionamento frente a certos aspectos da cultura moderna, como se verá adiante. Cf. o prefácio de Sutton, 2014. 85 A alta crítica, hoje simplesmente chamada de crítica bíblica, estuda a autoria, fontes e composição dos textos, seus objetivos e público-alvo, bem como periodização e circunstâncias de redação. Trata, portanto, do texto em seu contexto histórico. Já a baixa crítica, atualmente crítica textual, preocupa -se com a transmissão e preservação dos textos, o estudo dos diversos manuscritos e outras questões internas. 86 A contraparte católica desse movimento seria conhecida como modernismo, formalmente condenada pelo papa Pio X na encíclica Pascendi Dominici Gregis, em 1907 (Cf. PIO X, 1907). Alguns autores, contudo, acabam usando o termo para também se referir às novas tendências intelectuais no cristianismo de maneira geral. Para evitar confusão, neste texto usaremos apenas “teologia liberal”, já que nosso foco é o protestantismo americano. 87 Nos EUA, designa-se dessa forma o movimento social contra o consumo de álcool, criado no século XIX e cujo feito mais notório foi a aprovação da 18.ª Emenda à Constituição, mais conhecida como “Lei Seca” (1919-1933).

88 Grifo nosso. 89 A bem da verdade, continua popular até hoje. Segundo pesquisa do Gallup Institute, divulgada em 2017, 38% dos adultos americanos acreditam que “Deus criou o homem em sua forma presente”. Tal número, que pode parecer muito alto à primeira vista, foi na verdade o mais baixo registrado desde que o instituto começou a fazer anualmente esse levantamento, em 1982. Vale observar que, conforme a mesma pesquisa, o índice de criacionistas entre pessoas com pós-graduação chega a 21%. Cf. Swieft, 2017. 90 Neste último ponto, havia uma divergência entre os protestantes americanos: havia aqueles que acreditavam que a vinda de Jesus aconteceria depois dos mil anos de paz anunciado no capítulo 20 do livro do Apocalipse, e que eram chamados de pós-milenaristas; e aqueles que criam que Jesus voltaria antes do citado milênio, chamados pré-milenaristas. Essa divergência implicava posturas diferentes frente ao mundo: os pós-milenaristas tendiam a ver os progressos humanos como um sinal da vinda do milênio, portanto eram mais abertos a propostas de melhorias da vida humana na Terra, como reformas sociais ou inovações científicas; já os prémilenaristas eram pessimistas, acreditavam que somente a intervenção direta de Cristo faria uma real diferença no mundo e tentativas humanas nesse sentido eram essencialmente fúteis. Esta última perspectiva é que acabaria por se consolidar entre os fundamentalistas, mesclada com doutrinas mais recentes, como o dispensacionalismo (a crença de que a revelação divina se divide em diferentes períodos, as dispensações¸cada qual com leis específicas) e o arrebatamento (segundo a qual, no fim dos tempos, Deus irá levar aos céus os cristãos vivos e mortos). 91 “Testar a constitucionalidade”, nos EUA, se refere ao uso de um caso judicial para provocar a Suprema Corte a avaliar se uma lei específica violaria os princípios constitucionais do país. É um recurso que, embora requeira tempo e dinheiro, foi responsável por vários marcos na história do país, como, por exemplo, o fim da segregação racial nas escolas públicas (Brown v. Board of Education, 1954).

VII. A Resistência Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek O Fundamentalismo é detentor de uma força avassaladora. Parte da explicação de sua força está no poderoso e vigoroso financiamento que recebe. Não é por outro motivo que quando se junta os recursos oriundos daquilo que se denomina hoje Setor de Óleo e Gás, com as reivindicações pré-milenaristas e a negação de teorias científicas, especialmente aquelas que apontam para uma dinamicidade da natureza em sua relação com as interferências humanas, entende-se o porquê desse fluxo de recursos. Para nós, o Fundamentalismo é uma ideologia que nasce embebida e embalada pela religião, mas que no final do século XX ganha um contorno, uma feição mais política, embora ainda se aproprie de elementos do discurso religioso para legitimar ações de um capitalismo predatório. Sua pauta religiosa é ortodoxa-moralista-heterônoma92, oriunda das trincheiras de grupos e lideranças religiosas que sentiram o escanteamento da religião por conta da evolução da ciência e do otimismo com a Razão, especialmente de meados do século XIX ao início do século XX. Esse escanteamento na percepção de Harry Emerson Fosdick (1878-1969) se devia a um duplo fator: em primeiro lugar, o discurso religioso que optou por pautar a relação com Deus na base do preenchimento, da resposta, do que Deus faz e não em quem Deus é; em segundo lugar, como consequência, a evolução da ciência fez com que cada vez menos o ser humano dependesse de respostas divinas, tornando tanto Deus “menos necessário”, quanto transformando a ciência numa “religião popular” (Fosdick, 1926: 140). No entanto, Fosdick ressalta que a ciência “não tem ocupado o espaço de Deus” (Fosdick, 1926: 140). Ao rejeitarem a proposta de tentativa de diálogo dos teólogos liberais (também chamados de “modernistas”) com esse novo momento cultural, os fundamentalistas cobriram a religião cristã com um denso véu. Mesmo assim, seus recursos não evitaram que o movimento experimentasse um arrefecimento ainda na primeira metade do século XX. Para os que vivemos a experiência oposta, qual seja, a do

recrudescimento do fundamentalismo, é difícil considerar a possibilidade de uma força contrária a este movimento que tenha alguma chance de sucesso. No entanto a história registra que houve uma forte resistência ao movimento fundamentalista, especialmente na década de 1920. Nosso objetivo nesse capítulo, no entanto, não será historiar os mais diferentes atores dessa resistência, mas sim os principais argumentos que foram usados de maneira satisfatória para resistir ao fundamentalismo. Trata-se de um texto construído por um teólogo a partir de outro teólogo. Ainda que tanto o historiador quanto o teólogo partam de relatos, de narrativas, nos parece haver uma distinção fundamental no trabalho de ambos: para o historiador, grosso modo, o relato determina a mensagem; já para o teólogo, a mensagem determina o relato. Não por outro motivo que você irá encontrar aqui uma preocupação em mostrar o pensamento resistente, e não um relato histórico e até mesmo descritivo dessa resistência. Nesse sentido é que focaremos nossa atenção no pensamento do teólogo estadunidense Harry Emerson Fosdick visando elencar seus principais argumentos daquele que foi considerado por muitos, como um dos principais opositores do fundamentalismo. 1. A Importância de Fosdick e a Resistência Fosdick foi pastor em Riverside, sendo um dos mais prestigiados pregadores e teólogos americanos na primeira metade do século XX. Sua percepção do labor teológico e homilético se espraiava numa clara perspectiva que caracterizou o liberalismo nascente e delineou o pósliberalismo: o diálogo com as demandas sociais e culturais, assim como com a ciência. Para Fosdick, a evolução científica não implicava numa necessária anulação do texto bíblico, nem tampouco numa ameaça, como os conservadores e fundamentalistas gostavam de apregoar93. Para o teólogo de Riverside a “ameaça” estava digerida ao pregador, ao teólogo, pois caberia a ele fazer um novo esforço hermenêutico objetivando reinterpretar o texto bíblico. Em sua concepção, sendo a ciência aferidora de uma forma de verdade (a científica) e a Bíblia aferidora de outra forma de verdade (a religiosa, espiritual), nos pontos em que havia algum tipo de interseção era premente a busca de um equacionamento. A essa postura, Fosdick (1961) chamou de “nova aproximação” do texto bíblico.

Logo se depreende que Fosdick, ao invés de estabelecer dimensões estanques (como os conservadores) ou mesmo de ataques sumários à Ciência (como no caso dos fundamentalistas num primeiro momento), buscou promover o diálogo entre a pesquisa acadêmica e a pesquisa bíblica. Para ele, a ciência podia iluminar as passagens bíblicas (Fosdick, 1961). Sua importância, no entanto, não é medida só pela qualidade de seu pensamento. Dois outros fatores são de importante destaque: o primeiro é o amplo reconhecimento que teve e tem, dos mais diversos setores e correntes teológicas, como uma das principais vozes contra o nascente94 fundamentalismo; o segundo é sua relação ministerial como presbiteriano e batista (Mendonça, 2001: 124 e Hordern, 2003: 75), os dois grupos que assumiram a proeminência na defesa do fundamentalismo. Foi uma resistência de dentro e é nessa qualidade que deve ser considerado. Diferentes obras, de diferentes correntes teológicas, inclusive fundamentalistas, atestam sua importância. William E. Hordern (2003) defensor do que seria uma espécie de “fundamentalismo ilustrado” (se é que isso pode existir), cita em seu texto a resistência de Fosdick. Roger Olson (2001), que estaria mais para um conservador moderado, ressalta a importância de Fosdick dentro da teologia liberal norte-americana. A pesquisadora e escritora inglesa Karen Armstrong (2001) menciona o histórico sermão de Fosdick pregado na North Baptist Convention em 1922, como sendo um dos mais importantes momentos de resistência. O professor Antônio Gouvêa Mendonça (2001) entende que a influência de Fosdick não ficou restrita a América, mas que ela se fez sentir, inclusive, na teologia brasileira. Em obras mais recentes, Fosdick também é lembrado devido a sua importância e singularidade (Dias e Barbosa: 2019). O outro aspecto do valor de sua análise é que ele faz a crítica a partir de dentro, o que demonstra que por todo tempo, mesmo embaixo dessa compactação que o fundamentalismo impinge mediante sua cooptação, sempre há uma dissidência95. A relevância desse fato se faz notar especialmente porque o fundamentalismo passou a ser associado posteriormente e predominantemente a “batistas dispensacionalistas separatistas” (Dias e Barbosa; 2019: 47). Nesse sentido, Fosdick mantém

a melhor perspectiva e postura batista a qual evita a aproximação com uma ortodoxia inflexível e rarefeita. No dizer de Walter B. Schurden (2018: 41), “os batistas não baseiam sua fé em credos”, conquanto tenham sido influenciados por alguns deles na sua formulação doutrinária. Segundo ele, “quando os credos substituem a Bíblia, nós perdemos tanto a Bíblia quanto a liberdade em sua abordagem” (Schurden, 2018: 42). Não é por outro motivo que o mesmo Fosdick lembrado pela academia é esquecido pelos batistas, tanto do Sul dos Estados Unidos, como pelos do Brasil. Outro fator de resistência foi a comunidade científica, bem como a repercussão da opinião pública. Já em 1920 houve o prenúncio do que seria o caso Scopes. Um professor de Baylor, Grove S. Dow passou a ensinar a teoria da evolução em sala de aula, a qual teve forte reação de John Franklin Norris, à época pastor da Primeira Igreja Batista de Fort Worth. O resultado da polêmica foi a renúncia do professor à sua cátedra e a exclusão do pastor e igreja da Convenção Batista Estadual do Texas (Dias e Barbosa; 2019: 39). Já no caso mais ruidoso, o professor de biologia no Tenesse, John T. Scopes foi acusado de ensinar a teoria da evolução em suas aulas. Seu julgamento, conhecido como Monkey Trial parece ter exaurido o movimento fundamentalista de então. Mesmo tendo vencido o caso no tribunal, o fundamentalismo foi exposto midiaticamente a um desgaste contínuo, gerando uma vergonha pública (Dias e Barbosa; 2019: 41). Tal desbastamento arrefeceu o movimento, embora alguns autores defendam uma espécie de recolhimento para posterior inserção (Dias e Barbosa, 2019). Digno de nota também é o que chamamos aqui de Retângulo da Resistência. A Riverside Church, igreja pastoreada por Fosdick, distava a duas quadras do Union Theological Seminary. Um lugar que, segundo Paul Tillich (2004) primava pela liberdade mediante a promoção de um pensamento dialético. Segundo Tillich (2004: 175), “muitos dos fundamentalistas não gostariam de ver seus futuros teólogos educados” num lugar como aquele. Foi no Union que Dietrich Bonhoeffer esteve num intercâmbio no início da década de 1930 e que marcou profundamente sua teologia. Embora o Union Theological Seminary fosse um privilegiado espaço

para a construção de uma teologia, ele não se envolveu diretamente no embate contra o fundamentalismo. Possivelmente porque as preocupações mais imediatas dos cristãos negros eram outras, como a luta contra o rascismo, por exemplo. Fundamentalismo era uma questão do fazer teológico pelos brancos (Bean, 2015). Entretanto, não há a menor dúvida de que ao lutar contra o rascismo, a Teologia Negra gestada no Union Theological Seminary concedia particular e imprescindível contribuição na luta contra o fundamentalismo. 2. O Fundamentalismo para Fosdick No processo de compreensão da resistência ao Fundamentalismo no seu berço protestante, em particular sob a perspectiva de uma das mais altissonantes vozes contrárias a este movimento ideológico, faz-se necessário o entendimento de como Harry Emerson Fosdick o interpretava. Para o teólogo em questão, o Fundamentalismo apresenta uma dupla incongruência: a primeira, dentro do espectro do próprio estudo da religião; a segunda, o que para ele é mais evidente, é o completo destoamento com a figura de Jesus, a própria razão constitutiva do cristianismo. Fosdick também assinala o argumento não original das postulações fundamentalistas, bem como seu caráter impositivo. 2.1 O Fundamentalismo como Incongruência Religiosa. Para Fosdick (1932), o Fundamentalismo norte-americano é incongruente e aflora dentro da religião. Sua incongruência se dava primeiramente na perda da finalidade da religião, uma vez que o fundamentalismo aponta para uma tentativa de salvar a religião cristã, diante de sua gradativa queda na América do Norte, e das forças consideradas ameaçadoras (dentre as quais a Ciência) a uma combalida expressão religiosa. Para ele, “quando as pessoas se propõem a salvar uma religião, há algo errado aí, uma vez que é a religião que busca salvar as pessoas” (Fosdick, 1932: 7). A consequência dessa postura era a perda da vitalidade96 da religião, de seu elemento dinâmico, de seu fator propulsor. A causa estava numa falha da Igreja Cristã na sua ênfase a forma e não à experiência. A defesa do modelo doutrinal, de uma ortodoxia sempre trouxe um arrefecimento à vida eclesiástica, um “sufocamento da vida que há na verdadeira religião” (Fosdick, 1932: 22). A própria Igreja de Éfeso, impressa nas páginas do Novo

Testamento, experimentou esse esfriamento do amor (Atos 20 e Apocalipse 2:1-7). Esse sufocamento não estava restrito a dimensão comunitária ou mesmo denominacional. A pretensão fundamentalista é a da padronização do indivíduo, de sua programação ou mesmo robotização. Ao se deixar moldar pelos “aspectos obscurantistas” do fundamentalismo, a religião perde sua mais autêntica força vital, que é a promoção de uma consciência livre e libertária, valor distintivo do legado protestante. A sujeição a elemento de manipulação da consciência alheia degrada a religião, transtornando-a a ponto de virar um “guia de escravos” (Fosdick, 1926: 209). Essa ênfase ortodoxa tem reflexo na história da Reforma, momento histórico para o qual muitos fundamentalistas procuram olhar. Não é por outro motivo que defendem uma “nova reforma”, mas não tanto aquela preconizada por Lutero ou mesmo radicalizada por alguns dos seus contemporâneos discípulos, como Tomaz Müntzer. O foco desse projeto é o resgate do primeiro grande neto da Reforma, a Ortodoxia, produzida pela segunda geração de líderes reformadores, dentre os quais se destaca Teodoro de Besa (Olson, 2001). Contra isso é Fosdick que nos lembra que “Cristianismo não é uma forma, mas uma Força” (Fosdick, 1944: 89). Não por outro motivo que a religião deve preservar a postura de diálogo com a vida, com a sociedade. Para Fosdick, ela começa a morrer quando se apega a problemas que não são as questões existenciais que incomodam as pessoas. Nesse momento ela se torna “decrépita”, pois se volta “para sua auto-sustentação, para defender seus dogmas e não para gerar um espaço de experiência real e vital com o divino” (Fosdick, 1932: 32). Aliás, o teólogo batista defende um triplo caminho para que a religião não caminhe para a tolice: a) manter o reconhecimento das leis da natureza; b) a valorização da renúncia pessoal, grande marca da experiência religiosa e a busca pela transformação do mundo e não a fuga dele (Fosdick, 1932: 124). O convite do teólogo era para a promoção do Reino de Deus e não para a preservação da denominação que encampa um grupo de igrejas. Na lógica do pastor estadunidense: ao enfatizar o Reino um grupo religioso cristão automaticamente se preservaria; ao tentar se preservar, o grupo se prejudicaria, lembrando assim a lógica de

Jesus presente no Evangelho segundo Mateus, capítulo 16, versos 25-26. 2.2 Incongruente com o próprio Jesus Cristo. A incongruência não se manifesta somente na forma ou mesmo na mudança de uma agenda, ou mesmo da constante promoção da perda da vitalidade da religião. Esta chamada incongruência reside no paradoxal indiferença-diferença com a razão maior de ser do cristianismo, a figura de Jesus de Nazaré. Indiferença porque a produção do pensamento teológico e defesa da ortodoxia pelo fundamentalismo se dá com absoluta desconsideração pela mensagem e vida de Jesus de Nazaré. Diferença por sua vez porque, ao desconsiderá-lo, a teologia que daí emerge tem sérias dificuldades de compactação com o ensino de Jesus. No dizer do teólogo: “a religião de Jesus é distinta da religião sobre Jesus” (Fosdick, 1926: 305). O que estamos sugerindo aqui a partir de Fosdick? Que o Fundamentalismo como elemento posterior da experiência religiosa, acabou enfatizando uma forma mais “domesticada” de religião, fruto da sua história, da sua tradição, do que o núcleo vivo dela que está, no caso do cristianismo, na experiência com o Cristo, e na vivência dos seus ensinos. Fosdick trabalha com uma perspectiva de não enquadramento múltiplo. Jesus não pode ser enquadrado por nenhuma perspectiva, ou corrente teológica, quiçá pelo Fundamentalismo. À Igreja Cristã para ele tampouco cabia o caráter validador do enquadramento de quem era ou não cristão. Segundo ele, “é possível estar fora das formulações oficiais da fé cristã e ser genuinamente cristão” (Fosdick, 1926: 34). Já no tocante à teologia, esta precisa resgatar a noção de progressividade da revelação a fim de ser mais cautelosa em suas formulações, coisa que os líderes judeus não entenderam e que os fundamentalistas insistem, numa certa dimensão, em ignorar.97 O teólogo estadunidense sacramenta essa incongruência, feita em nome e em defesa da fé cristã, mas que a prejudica pelo seu distanciamento do próprio Jesus. Sua declaração é lapidar e foi feita no auge do embate com o fundamentalismo, na pregação que fez na Convenção Batista do Norte em 1922 e cuja fala teve uma reverberação única. Na ocasião ele afirmou que: “você não pode encaixar Jesus Cristo no molde Fundamentalista” (Fosdick, 1978: 32). Ao dizer isso, o pastor-

teólogo deslegitimou, cortando pela raiz, o argumento fundamentalista. Não eram eles, os “liberais” que perderam Jesus de vista no seu labor teológico, mas os fundamentalistas que de tão preocupados com a moldura, com o enquadramento, retiraram Jesus do coração de sua teologia. 2.3 Incongruente como falta de originalidade Um outro aspecto apontado por Fosdick que devia ser considerado por aqueles que procuram defender o fundamentalismo é a falta de originalidade do seu argumento. A importância desse sublinho está no fato de que no campo da teologia cristã a originalidade é um elemento de distinção, quase “digitalização” do divino. O traço original é uma marca distintiva de Deus. No entanto, pontos defendidos pelo fundamentalismo também podem ser encontrados em outros sistemas religiosos. Nesse sentido é que o teólogo aponta para o problema primário do fundamentalismo: “suas doutrinas fundamentais também pertencem, em grande parte, há outros grupos religiosos” (Fosdick, 1932: 40). A noção de um fundador sacralizado por um discurso que o preserva desde o útero de sua mãe, com uma concepção não puramente humana e com um nascimento virginal não é exclusiva da narrativa cristã. Outros grupos religiosos ao longo da história também produziram narrativas que apontavam para esse mesmo aspecto, seja a partir dos seguidores que tentam extrapolar a validação da vida de seu mestre, seja através de crenças míticas infundidas em comunidades (ágrafas ou não) de que uma divindade desceria a terra em forma humana, nascendo de uma mulher (só para ficar num exemplo). O incrível dessa situação é que a originalidade cristã, segundo Fosdick, não estava ligada a ortodoxia cristã, mas sim ao caráter pessoal e antropocêntrico do cristianismo. A gravidade dessa pontuação está em seu caráter antitético. Uma das principais acusações do Fundamentalismo é que a Modernidade trouxe no seu bojo um forte elemento humanista98, que influenciou a prática cristã a qual teria se tornado menos cristocêntrica e mais antropocêntrica. Nesse sentido o fundamentalismo corre na contramão da prática de Jesus de Nazaré: este sacralizou a vida humana99; aquele quer sacralizar o Cristo, o credo, já que a defesa da depravação100 total do ser humano impede sua sacralização. Para Fosdick, “Jesus alocou o senso do sagrado na

personalidade e vida humana” pois “nada foi mais sagrado para ele” (Fosdick, 1932: 48). Na percepção de Fosdick, a qual não está distante da antropologia teológica de Ludwig von Feuerbach, o caráter antropocêntrico da fé cristã se faz não só pela compreensão, mas também pela comunicação. O sumário da vida cristã para o pastor de Riverside podia ser resumido “na interpretação do mundo espiritual em termos de personalidade e a interpretação da personalidade em termos de Cristo” (Fosdick, 1932: 58). Apropriando-se do pensamento tomista, o teólogo americano defende a compreensão de que a única forma de nomear as coisas divinas é a partir do empréstimo imagético e simbólico das coisas criadas, em que pese seu reconhecimento do limitado e fragmentado conhecimento sobre Deus. Foi a antropologia de Jesus e não sua teologia, que causou inúmeros embaraços com os judeus de seu tempo. O ensino de Jesus era sobre uma dignidade humana que ultrapassava as fronteiras e as barreiras étnico-religiosas. Para um povo que se percebia como escolhido por Deus, admitir que a vida de qualquer “gentio” era de igual valor ao melhor judeu, causava repulsa. Foi isso que o Mestre sentiu em Nazaré, segundo o relato do evangelista Lucas no capítulo quatro. Seu ministério quase foi abreviado, diante da tentativa de linchamento e homicídio que sofreu. O ensino de Jesus sobre Deus, em plena sinagoga, surpreendeu aqueles que ouviram falar de sua fama em Cafarnaum, e que o conheceram em sua meninice. Contudo, foi no ensino sobre o ser humano, especialmente ao apontar a inserção de Elias e Eliseu com pessoas que não pertenciam ao chamado “povo de Deus”, que Jesus experimentou aquilo que Fosdick chamou de despertar de uma “ira adormecida” (Fosdick, 1926: 32). Ensino esse que entre outras coisas ressaltou a importância da práxis religiosa como uma dimensão da vitalidade da religião. 2.4. Fundamentalismo como Imposição Ao longo dessas últimas páginas vimos mostrando como o pastor de Riverside enxerga o fundamentalismo. Cabe-nos agora finalizar esse processo jogando luz sobre aquilo que talvez seja a parte mais visível e paradoxal do Fundamentalismo: sua vocação para a imposição e sua

capilaridade, seu apelo. A vocação para a intolerância possivelmente está assentada para aquilo que Rubem Alves assinalou como a distinção crucial em termos de organização entre a Igreja Católica e a Protestante. Para o teólogo mineiro, a Igreja Católica se definiu pela noção de integridade, enquanto a Protestante pela valorização da verdade101. Ao se preocupar com a definição da verdade, o protestantismo valorizou a ortodoxia, o que “torna impossível a tolerância, sem a qual a liberdade e o livre exame não podem sobreviver” (Alves, 2004: 117). Não é por outro motivo que a educação fundamentalista se dá pela doutrinação, abolindo qualquer possibilidade de construção do saber ou mesmo de participação reflexiva, solidária e responsável. Um exemplo clássico dessa imposição, por necessidade diante de um mundo que piora cada dia mais, é a crença na literalidade da parousia (doutrina da volta de Jesus Cristo) (Fosdick, 1926), fato este destacado inclusive pelo recrudescimento da escatologia pré-milenista a partir “do fim da Primeira Grande Guerra” (Fosdick, 1932: 37). O teólogo estadunidense achava curioso que a revolução tecnológica teve a capacidade de mudar a visão da vida pela própria humanidade, mas foi impotente para alterar as “concepções sobre Deus fornecidas por sociedades antigas” (Fosdick, 1926: 91). Monarquia celestial, a figura de um trono, entre outras imagens de um mundo cada vez mais distante histórica e culturalmente falando, são exemplos evocados por ele para ilustrar essa inquietante dicotomia. Outro exemplo que trouxe muita repercussão é a compreensão da inerrância bíblica. Essa noção em meio ao tumulto criado pelo ensino da teoria da evolução102, fez ressurgir, para Fosdick (1926) a controvérsia entre ciência e religião. Para ele foi esse caráter impositivo do Fundamentalismo que gerou um “desagradável tempo de acalorada controvérsia” (Fosdick, 1926: 92). O argumento fundamentalista partia em defesa um Deus que não erra e não pode errar. O teólogo de Riverside por sua vez argumentou que a Bíblia não era um livro inerrante, nem tampouco seria necessário o uso do recurso de autoridade para dar valor ao texto. Na verdade, para ele, tal recurso enfraquecia o próprio texto. Já a capilaridade do Fundamentalismo se dá por diferentes motivos. O

primeiro deles está num elemento de deficiência do projeto educacional cristão. Para muitos, o cristianismo foi reduzido a um credo, ao modelo doutrinal cristão (Fosdick, 1944). Foi assim que aprenderam. Dessa feita, quando um grupo reafirma esse aprendizado ou mesmo se interpõe como aquele que representa o verdadeiro cristianismo, a identificação, pelos que foram assim doutrinados, é quase imediata. Dentro dessa mesma perspectiva, Fosdick (1932) atribui à passividade do homem moderno e sua inabilidade para lidar com esse tipo de pauta, devido a sua incredulidade, a capilaridade fundamentalista. Nesse caso, há um processo passivo e acrítico de assimilação do conteúdo. Além disso, destaca-se outro elemento nesse processo de assimilação passiva: o cansaço. Para Rubem Alves, o “momento emocional que vivemos, de desapontamento e cansaço, é que faz com que as respostas religiosas do tipo dogmático e final sejam muito mais atraentes” (Alves, 2004: 83). Outro fator de capilaridade é o tipo de resultado que essa variante de proposta religiosa produz. Segundo Fosdick, o resultado apregoado pela agenda fundamentalista encontra eco nas mais variadas pessoas, das mais diferentes classes sociais e até mesmo entre aqueles que “não possuem religião” (Fosdick, 1926: 201). Essa simpatia talvez seja um dos mais vigorosos indicativos de que o discurso fundamentalista tem caráter político com verniz religioso. Essa percepção da coloração cada vez mais política do Fundamentalismo pode ser vista no especial e sucinto retrato que Walter B. Schurden (2018: 45) faz sobre a forma de ação de tais grupos entre os batistas americanos: Um padrão crescente de restricionismo, documentado na história cristã em geral e tornado mais explícito na história dos Batistas do Sul dos Estados Unidos, funciona mais ou menos assim: primeiro, são feitas fortes afirmações em oposição a todos os credos, como a dos batistas na fundação da Convenção Batista do Sul dos Estados Unidos, em 1845: ‘Nós não construímos nenhum credo novo como nossa base; agindo, assim, em consonância com a aversão batista por qualquer credo além da Bíblia’ (Annual, 1845, p. 19). Em seguida, um grupo, como os fundamentalistas, emerge e clama por uma ortodoxia teológica estrita. Depois, tal grupo faz uma

conclamação pedindo uma declaração confessional, como os fundamentalistas entre os Batistas do Sul dos Estados Unidos fizeram em 1925, para proteger a ortodoxia. Por fim, eles demandam que tal declaração seja imposta sobre as igrejas para garantir a ortodoxia. A essa altura, os batistas já abandonaram a sua herança histórica. Para que possam se afirmar como batistas históricos, os batistas precisam ressuscitar sua tradição anticlerical e resistir a declarações que limitam o acesso à Bíblia e codificam o entendimento humano da teologia bíblica. 3. A Resistência em Harry Emerson Fosdick. A teologia construída por Fosdick como resistência ao Fundamentalismo pode ser qualificada como uma espécie de liberalismo penitente103. Sua formulação envolve uma abertura, um diálogo para com o mundo a sua volta, demandando o emprego da Razão, sem que se perca com isso a piedade. Por esse motivo que para ele era necessário ter cuidado com um “liberalismo árido, que troca os elementos da religião pelos da razão” (Fosdick, 1926: 265). Outro cuidado era para com a tendência de se desfazer da igreja ou mesmo do fiel que a freqüenta assiduamente. Tal postura era imprescindível, pois é “somente assim que a voz se faz ouvir para fora e os fantasmas desaparecem” (Fosdick, 1926: 276). Esse liberalismo penitente é capaz de inspirar uma ardente fé em Deus, assim como abrir a vida humana para a solidariedade e para a imaginação (Fosdick, 1926). Tal postura representaria uma atitude inteligente por parte do teólogo liberal, que era a pessoa mais habilitada, para o pastor de Riverside, a fim de evitar os partidarismos104 bem como manter a cordial aliança entre intelecção e religião. Para Fosdick foi o “crescimento dos liberais que não permitiu o controle das instituições religiosas pelo fundamentalismo” (Fosdick, 1926: 241). O objetivo não era criar uma nova expressão de fé, uma vez que os liberais “concordam com aquilo que é profundo e essencial à fé cristã” (Fosdick, 1926: 246); mas a modernização da fé cristã, uma vez que o cristianismo fora formulado num contexto pré-científico. Nesse sentido é que o liberalismo se distingue pelo livre espírito da inquirição, opondo-se à inquisição fundamentalista, procurando ver novos fatos e

elaborar os “princípios da fé cristã em termos convincentes e contemporâneos” (Fosdick, 1926: 245). Outra contribuição do liberalismo está no resgate daquilo que o teólogo americano chamou de “maiores objetos do Cristianismo, a saber: a criação de um caráter pessoal e de uma justiça social” (Fosdick, 1926: 247). Ao fazer isso o liberalismo assinala sua contribuição positiva visando manter a vitalidade da religião. Para o pastor de Riverside, a vitalidade cristã não residia na manutenção de diferentes programas pelas igrejas, visto que eles claramente destoam do “Cristianismo no seu início” (Fosdick, 1932: 7). Ao retratar um pouco da visão positiva de Fosdick sobre o liberalismo teológico e sua crucial contribuição para a resistência ao radicalismo teológico de então, buscou-se apresentar os alicerces da resistência de Fosdick. Seu pensamento, como alternativa sadia ao Fundamentalismo, será destrinchado em três fulcrais tópicos: sua visão positiva da Ciência; sua proposição daquilo que chamou uma “nova aproximação da Bíblia” (Fosdick, 1961) e sua visão sobre a tolerância. 3.1 Sim à Ciência; não à redução da Religião Fosdick era um entusiasta pela Ciência. Inserido no contexto do que foi inicialmente um pleno otimismo nas descobertas científicas, o pastor de Riverside a celebrou. Contudo sua celebração não envolvia uma apropriação acrítica. Ele não substituiu a Religião pela Ciência, mas buscou empreender um diálogo entre ambas. Sobre isso ele faz uma severa crítica aos modernistas (outro nome para os liberais, usado especialmente na primeira metade do século XX) que visam “reduzir a religião à elementos científicos” (Fosdick, 1932: 130), afetando inclusive religiosos e pregadores em suas homilias. Para o teólogo americano a melhor linguagem para a religião não é a científica, mas a oriunda da arte como, por exemplo, as imagens evocadas por Jesus ao falar das chamadas Parábolas do Reino (Fosdick, 1932: 137). Para Fosdick, o conhecimento não abole o mistério, antes pelo contrário o alimenta. Segundo ele, “quanto mais o homem sabe, maior é o sentimento de maravilha pelo mundo” (Fosdick, 1926: 158). Diante desta estupefação ele constata: “a ciência não fornece sentido como a religião” (Fosdick, 1926: 144). Mesmo porque a religião projeta um mundo, uma leitura possível e palatável de mundo, no que reside a

acusação de que ela não passaria de uma ilusão. Para Fosdick, nada mais verdadeiro do que apontar a religião como falsa, uma vez que ela sobrevive como o “mundo que o homem gostaria, imagina que teria que ser e que, pela imaginação, se impõe sobre a realidade” (Fosdick, 1932: 97). Seu entusiasmo pela Ciência em nenhum momento esfriou sua paixão pelo texto bíblico. Reconhecia que a Bíblia não era um texto científico, tornando inútil usá-la como instrumento de debate ou mesmo de discussão com um cientista, prática essa comum ao pensamento fundamentalista. Por mais paradoxal que seja essa ideologia procura em muitos momentos cientificizar o texto bíblico, ao mesmo tempo em que nega diversos elementos e provas científicas que se não contradizem frontalmente certas passagens da Bíblia, pelo menos forçam sua elaborada reinterpretação. No Fundamentalismo a apropriação das descobertas nas mais diferentes áreas da Ciência é seletiva105. No entanto, o caminho proposto pelo teólogo americano é o de “iluminar a Bíblia com a Ciência e não tornar a Bíblia um texto científico” (Fosdick, 1926: 51). 3.2 A Nova Aproximação da Bíblia Como propor um profícuo diálogo entre as luzes que a Ciência traz e o registro bíblico? Para o autor pesquisado, o caminho natural seria uma nova aproximação da Bíblia. Essa nova aproximação reconsidera os fatos e aponta para um positivo e importante aspecto da incredulidade: a preservação do ser humano para que não aceite ingenuamente o que não é aceitável (Fosdick, 1926: 214). Nesse sentido doutrinas106 tais como a inspiração verbal107, a inerrância das Escrituras, devem ser mudadas (Fosdick, 1961: 30). Para Fosdick a nova aproximação devolve o texto de volta, pois ao mesmo tempo em que resguarda a Inspiração pelo Espírito em todo o processo do fazimento do texto, enfatiza um olhar que preserva o todo da Bíblia nas partes lidas. Segundo ele, foi essa habilidade, qual seja, de perceber o todo nas partes é que a “igreja recentemente perdeu” (Fosdick, 1961: 29). A perícope passa a ser analisada, na nova aproximação, dentro da perspectiva formada por toda a revelação. Aqui a proposta de Fosdick se aproxima do modelo de interpretação figural proposto por Auerbach (1997), pelo que a intertextualidade interna, da

própria Bíblia, coloca mediante uma conexão espiritual tais passagens em dinâmico e interativo processo. A nova aproximação se torna necessária também pelo distanciamento cultural que as pessoas sentem ao ler o texto. Fosdick diz que “quando alguém se move para a Escritura com a mente acostumada aos caminhos modernos, ele se encontra num estranho mundo” (Fosdick, 1961: 34). É o elemento referencial que pode comprometer a melhor recepção do texto. O que Auerbach chamou de “diversificação das condições de vida”, Martin Heidegger de “multiplicação das referências” e Iuri Lotman de “distância cultural” (In: DUusilek e Dreher: 2018). É essa tentativa protestante de harmonizar as Escrituras com a mente moderna que faz com que “os caminhos para o pensar hoje” sejam “diferentes dos caminhos para o pensar ontem” (Fosdick, 1961: 90), exigindo essa nova aproximação. Para ele é possível usar um “método que privilegie tanto as bíblicas experiências duradouras quanto o uso de conceitos científicos bíblicos e trilhas do pensamento de Gênesis ao Apocalipse” (Fosdick, 1961: 60). Ao contrário dessa perspectiva, o pastor de Riverside via pregadores produzindo grandes pregações, mas sem qualquer incentivo à reflexão sobre o domínio da religião e, muito embora estejam carregadas de alento, tais pregações não abordam as reais questões da existência humana. 3.3 A Tolerância como Resistência Poucas coisas são tão contrárias ao ethos fundamentalista do que a tolerância. O espírito tolerante e o fundamentalismo não coabitam o mesmo corpo, nem ocupam o mesmo espaço. Herança da modernidade, a tolerância religiosa nasce como conquista das mais diferentes expressões religiosas cristãs, estendida posteriormente às demais expressões religiosas. No pensamento de Fosdick, a tolerância “não é uma fraqueza, e sim a mais elevada conquista da boa-vontade pessoal sobre todas as diferenças de opinião” (Fosdick, 1926: 227). Ela é o “espaço de amor para com a liberdade e as ideias divergentes, com igual esforço para entender e apreciar o divergente, e a vontade de incluí-lo na comunhão e trabalhar com pessoas de boa vontade” (Fosdick, 1926: 215). Essa conquista moderna não foi alcançada sem que muitos equívocos

fossem cometidos anteriormente. Inúmeros embates ocorreram dentro do próprio cristianismo. Voltaire sarcasticamente assinalou em suas Cartas Inglesas, por exemplo, que a Bolsa de Valores de Londres se tornara um espaço mais interessante para o diálogo inter-religioso do que os próprios locais de culto (Dusilek, 2016). A dificuldade com o exercício da tolerância primeiramente reside na pretensão de verdade que tais grupos religiosos possuem. No Fundamentalismo esta pretensão está bem marcada em sua rígida précompreensão (Fosdick, 1926: 111). Em muitos grupos antigos, havia a crença de que era a divindade, não a religião como solidificadora de visão, que mantinha o vínculo social, motivo pelo qual “não podia ser contrariada” (Fosdick, 1926: 221). A partir dessa premissa, a “religião passou a priorizar a uniformidade e desprezar a variedade e a diferença” (Fosdick, 1926: 221). Abre-se então o espaço para a noção de uma verdade religiosa inerrante, visto que fruto de uma revelação sobrenatural; bem como para a noção de infalibilidade do seu grupo religioso. Discordar, divergir, nesses casos equivale a assinar um atestado de heresia. Nesse momento é que a “tolerância passa a ser vista como uma ideia do Diabo” (Fosdick, 1926: 222). Incomodava ao teólogo americano o crescimento da intolerância no seu tempo. Ele listou pelo menos sete sinais dessa intolerância, ao seu tempo108: a) o ódio da Ku Klux Klan contra católicos, negros e judeus; b) as frequentes invasões à garantia constitucional da liberdade de expressão; c) o sério esforço para impor pela lei uma moral de costumes, a partir da agenda de um grupo; d) a tentativa de excluir o ensino da evolução do horizonte mental de todos os estados, pelo esquecimento do seu ensino nas escolas; e) o forte desejo e intenção fundamentalista por forçar uma unanimidade ortodoxa nas igrejas; f) de modo geral, um desgosto pela individualidade e pela independência intelectual; g) o desejo por modelar as mentes facilitado pela cultura de massa (Fosdick, 1926: 219 passim). Ele alertou para o cuidado no exercício da tolerância. Uma vez sendo ela fruto de um sentimento de superioridade, podia gerar um efeito reverso. Tolerantes que se acham superiores costumeiramente defendem seus preconceitos raciais, religiosos, ou de classe e o fazem forçando, de modo dogmático, sua visão através de sua habilidade e capacidade, até

que se torne num “agradável vício para quem a possui” (Fosdick, 1926: 216). Um interessante apontamento é o efeito reverso que a intolerância possui. Ela não é efetiva por diminui a causa que defende, produzindo um efeito contrário. Para Fosdick, ao atacar um herético você lhe confere audiência, ao condenar um livro, você o torna um Best-seller. Em suma: os atos de intolerância acabam se voltando contra o propósito de quem os comete, representando um verdadeiro suicídio da causa. O teólogo compara tais atos à “espada de Saul” (Fosdick, 1926: 226), primeiro rei de Israel, que ao se ver cercado pelo exército filisteu, se joga sobre sua própria espada, num ato suicida, evitando sua captura pelo exército inimigo. Por fim é importante ressaltar que a tolerância funciona como uma salvaguarda para o engano. Fosdick diz que é necessário salvaguardar o espírito de tolerância e liberdade cristã, mesmo porque as opiniões sobre determinados assuntos podem estar cheias de engano, mas o amor, combustível básico e força motriz do respeito a alteridade, nunca erra. Para o teólogo americano, o “amor nunca se engana” (Fosdick, 1978: 34). Conclusão Ao findarmos esse texto é preciso concordar com Fosdick de que infelizmente, “muito do atual cristianismo, ao invés de melhorar, tem piorado as pessoas” (Fosdick, 1926: 276). Talvez pelo fato de que “nunca tenhamos sido muito cristãos” (Fosdick, 1932: 63). O fato é que o fundamentalismo tem apresentado outro tipo de divindade para as pessoas, fazendo com que a mudança de vida, a experiência cristã, esse poder interior que irradia para a vida seja substituído por um assentimento intelectual. Ora, concordâncias não são capazes de produzirem significativas e radicais mudanças na vida das pessoas. Em termos de Religião, somente o contato com a divindade é que pode produzir essa conversão. Ao longo desse capítulo vimos como essa dimensão vital da religião, a que pulsa na intimidade das pessoas, foi respeitada por Fosdick como o parâmetro na construção de uma religião viva. Nesse sentido é que ele procura preservar a dinamicidade do fenômeno religioso através não só

da defesa de reformulações, como fez com sua “nova aproximação da Bíblia”, mas, sobretudo através do diálogo com a Ciência, bem como a preservação do espaço de diálogo com o diferente, com a alteridade. Para o pastor de Riverside, é necessário salvaguardar a tolerância. Tolerância esta que se mostra um apropriado caminho contra a postura excludente do Fundamentalismo, pavimentando a estrada para o resgate de um cristianismo que “mantenha os homens unidos e não afastados” (Fosdick, 1926; 284). Aliás, para Fosdick o futuro da própria Igreja Cristã, especialmente a de corte evangélico, estaria “ligado à sua capacidade de ser compreensiva” (Fosdick, 1926: 228). Mais do que apresentar a Resistência em si, uma lista de fatos históricos que apontam para essa resistência primeira ao fundamentalismo, o que se procurou elencar aqui foi o pensamento que resistiu, com relativo sucesso, ao fundamentalismo. Para isso, buscou-se no texto focalizar um dos principais atores dessa bem-sucedida resistência, a saber: o pastor da Riverside Church, Harry Emerson Fosdick. É com Fosdick que encerramos esse capítulo. Ao finalizar sua impactante mensagem na Convenção Batista do Norte dos Estados Unidos, o pregador de Riverside aponta para uma dupla necessidade: a busca de clareza interna para com as demandas contemporâneas do Cristianismo, bem como aquilo que denominou de “vergonha penitente” (Fosdick, 1978: 38), pois para ele a Igreja estava se voltando para temas insignificantes enquanto o mundo estava imerso em grandes necessidades. Longe de sugerir que não se deva debruçar sobre o Fundamentalismo, Fosdick lamenta que esse assunto tenha tomado tamanho vulto e ocupado tamanho espaço. Nós também. 92 Segundo Jean Louis Schlegel (2009: 14): “os fundamentalistas nos Estados Unidos defendem as políticas mais conservadoras: são a favor da pena de morte, da proibição do aborto, contra a liberdade de costumes e a permissividade ambiente, a favor de sinais visíveis de religiosidade na vida pública”. 93 Para Fosdick (1978: 28), “todo fundamentalista é conservador, mas nem todo conservador é fundamentalista”. 94 Conquanto seja simpático ao argumento de Karen Armstrong (2001) de que o termo possa ser aplicado a diferentes momentos da história que trazem as mesmas marcas, estou aqui trabalhando com a noção do Fundamentalismo como gestado nas conferências de Niágara (a partir do final do século XIX), nascido a partir da publicação, pelo Seminário de Princeton, da lista dos cinco dogmas essenciais e dos livretos The Fundamentals entre 1910-1915, e batizado por Curtis Lee Laws em 1920, na Northern Baptist Convention, ele que era editor do periódico batista “Watchman-Examiner” (Armstrog,

2001; Castro, 2003; Hordern, 2003). 95 Um exemplo clássico disso foi a “Carta de Goiânia”, criada por uma comissão nomeada pela presidência da Convenção Batista Brasileira (CBB) em sua centésima Assembleia na cidade de Goiânia no final de Janeiro de 2020, a qual não foi aprovada pelo plenário por ter conteúdo “esquerdizante”, sendo remetida ao Conselho da CBB para uma análise mais criteriosa. O detalhe é que a carta além de ter sido feita por uma comissão na qual ninguém era da “esquerda”, estava recheada de citações, versículos. 96 Fosdick associa a vitalidade da religião com sua essência, a qual é o “poder interior lançado adequadamente para a vida” (Fosdick, 1932: 15). Aqui ele faz uma irônica comparação: ele compara esse poder aos mais de 500.000 cavalos de força que as cataratas do Niágara possuem. No entanto é das conferências do Niágara que surge o proto-fundamentalismo. Ao fazer essa observação/comparação, Fosdick está dizendo que a força da Religião não estava nas conferências, mas nesse poder interior, nessa força vital que irradia a vida com energia, quando “aflora do subconsciente para o consciente as origens cósmicas da pessoa” (Fosdick, 1932: 19). 97 Jesus cria na revelação progressiva e os líderes judeus não entenderam isso. Fosdick também menciona que a diferença maior do texto bíblico para os demais livros tidos como sagrados em outras religiões é que a Bíblia, por ser parte de uma revelação progressiva de Deus, o que está contido nela, as questões culturais latentes e presentes, não estão em termos finais/cabais (Fosdick, 1978). 98 É interessante ressaltar que humanistas como Erich Auerbach, Edward Said, Northrop Frye e outros atribuem o humanismo, a dignidade e dignificação do ser humano aos evangelhos. 99 Para Fosdick: “sempre que a pessoa humana sofre algum tipo de abuso, debilidade, humilhação (...) é o cristianismo que está sendo negado” (Fosdick, 1932: 51). Ele também chama de “inimigos de Deus aqueles que toleram atos inumanos pensando que servem a Deus” (Fosdick, 1926: 38). Tais pessoas são incoerentes porque “estão dispostos a morrer pela fé, pelo credo, mas não estão dispostos a ter a mesma atitude pela humanidade como Jesus teve” (FOSDICK, 1926: 38). De forma irônica ele arremata: “alguns são os mais indesejáveis numa comunidade (...) caminham entre nós, crendo no seu deus” (Fosdick, 1926: 39 – grifo nosso). 100 Fosdick se posta contrário à noção calvinista da depravação total do ser humano. João Calvino, o reformador, buscando salvaguardar a obra da salvação somente na decisão e ação divina, estabeleceu esse pensamento que tirava do humano a possibilidade de contribuir para sua salvação. Ao contrário dos calvinistas, cujo pensamento é muito utilizado pelos fundamentalistas, Fosdick rejeita essa noção pois se o ser humano “não presta, só resta o credo. Mas para Deus presta e muito” (FOSDICK, 1926: 45). Como o ser humano conseguiria se relacionar com Deus sendo totalmente depravado, se para que tal relação aconteça é necessária a clara consciência de demanda por Ele? Afinal, “grandes crentes têm antes de tudo sede de Deus” (Fosdick, 1918: 37). Tal postulação calvinista impossibilita o reconhecimento da necessidade de uma salvação, a não ser que algo de bom tenha sobrevivido dentro da “alma humana”. 101 Fosdick corrobora com a análise de Alves e acrescenta mais dois domínios de valor espiritual: a bondade e a beleza, sendo esta última negligenciada pelo protestantismo, entre outros motivos, em virtude do movimento iconoclasta. Por isso a desvalorização com a arte e a imaginação. No entanto, o teólogo estadunidense nos lembra que Jesus não falou em termos científicos, mesmo porque ele em algum momento seria preterido pela própria evolução científica. Ele arremata: “o que permanece é a arte; as demais coisas mudam, passam” (Fosdick, 1932:141). 102 No seu livro The Meaning of Faith, Fosdick relata uma experiência que teve com um colega de graduação, o qual reencontrou tempos depois. Ele ficara vinte anos sem pisar numa Igreja, porque o ensino da Igreja sobre a criação destoava de suas aulas de geologia na faculdade. Ao procurar seu pastor à época, ouviu a seguinte resposta: “A Bíblia nos falou que a terra foi criada em seis dias” e emendou dizendo que deveria “aceitar isso pela fé” (Fosdick, 1918: 41). 103 Visando clarificar a compreensão da proposta liberal de Fosdick, destacamos o que para ele são os 3 grandes testes de um efetivo liberalismo criativo: “a) sua abordagem desde a expansão até o

aprofundamento da vida espiritual; b) sua habitação nas grandes afirmações e não nas negações; c) sua preocupação na construção de cidadãos do Reino de Deus” (Fosdick, 1926: 240). 104 Assim ele define o termo: “partidarismo é a habilidade para crer que tudo é ruim sobre o outro lado e tudo é bom sobre o próprio lado” (FOSDICK, 1926: 258). 105 Ao falar da seletividade fundamentalista, o professor Alexandre Castro (2003) assim se expressa: “a perspectiva fundamentalista norte-americana é de retorno ao princípio, ao passado, tipificado no grupo ‘founders’” (CASTRO, 2003: 28). Tal retorno “seleciona dados” (2003: 70) e “nega fatos históricos” (CASTRO, 2003: 62-3). 106 Aqui cabe uma nota explicativa. Na época de Fosdick florescia uma discussão sobre o papel do dogma. Adolf von Harnack, importante teólogo alemão, havia publicado seus volumes sobre “A História do Dogma”. Conquanto seja impossível a uma religião ser comunicada sem seus ritos e dogmas, como preconiza o filósofo da religião francês Augusto Sabatier (1912: 267), o que demonstra a necessidade prática de seu surgimento (1912: 278), é importante destacar que: 1) a raiz do dogma está na religião, ainda que sua força esteja em Deus (1912: 245); 2) o dogma surge quando uma sociedade religiosa se torna uma sociedade moral (1912: 250); 3) o dogma pode ser reformulado a qualquer tempo (1912: 252); 4) ao dogma está fadado o desgaste (1912: 257), uma vez que eles possuem história, o que prova sua mutabilidade (1912: 271); 5) a crítica do dogma, dentro de uma perspectiva cristã, deveria ser feita a partir da vida e do ensino de Cristo (1912: 311). 107 Para Walter B. Schurden (2018: 38): “a Palavra de Deus não se limita às Escrituras”. 108 O teólogo estadunidense notou que ao longo da história, certo grau de intolerância foi útil para cientistas, conquistadores, realizadores, os quais criam e perseguem cegamente o que acreditavam. Em contrapartida, os “suaves expositores da tolerância, dispostos a ouvirem toda opinião abaixo do céu, têm freqüentemente padecido debilmente de fraqueza moral nos seus tendões e coxas” (Fosdick, 1926: 217). Tal perspectiva tem mudado pois a “intolerância se tornou sinal de fraqueza e não de força” (Fosdick, 1926: 224), uma vez que cada vez mais pessoas a associam a uma “prática bárbara” (Fosdick, 1926: 223).

VIII. Identidades e expansão do fundamentalismo de matrizes protestantes (décadas de 1930, 1940 e 1950) Jefferson Ramalho Para estudarmos aquilo que temos identificado como a primeira expansão do fundamentalismo protestante, se faz necessário retomarmos, mesmo que de maneira muito breve, alguns elementos que compõem as identidades do protestantismo americano das primeiras três décadas do século XX. Ao falarmos em protestantismo americano, não fazemos referência apenas ao que ocorreria nos Estados Unidos da América (EUA), mas em todo o continente, no que inclui Américas do Norte, Central e do Sul. Mas, para a reflexão que propomos é importante delimitarmos nosso campo de observação. Por isso nos concentraremos naquilo que se sucederia nos EUA e, como efeitos diretos, no cenário religioso brasileiro. Apenas assim a nossa leitura fará sentido para nossos dias e contextos. Outro esclarecimento inicial, de ordem metodológica, correspondente à delimitação em nossa abordagem. Se vamos tratar do contexto cristão e, em particular, do protestantismo, não nos atentaremos, ao menos no presente trabalho, em questões relativas aos fundamentalismos vistos em outros universos religiosos, tais como o judaico, o islâmico, o hindu ou mesmo o católico-romano. Para tanto, há importantes e detalhadas pesquisas a respeito, já publicadas no Brasil, tais como as obras de Karen Armstrong (2001) e Pedro Lima Vasconcellos (2008). Neste capítulo, então, nosso objeto de observação se limitará em verificar algumas expressões fundamentalistas protestantes. 1 A gênese do Fundamentalismo no Protestantismo estadunidense O Fundamentalismo religioso e, em particular, o de matriz protestante, não se trata de um tema novo. Já existe muito publicado a respeito, mesmo no Brasil, tanto por autores brasileiros como por estrangeiros traduzidos para a nossa língua. Não queremos, portanto, como se diz popularmente: “chover no molhado”. Faremos, sem dúvida, uma retomada de leitura em obras importantes, mas queremos concentrar

nossos esforços em efeitos atuais daquilo que começou a ser gerado com a expansão fundamentalista dos anos 1930 a 1950. Já sabemos que o pontapé inicial do fundamentalismo protestante se deu com a reação ao liberalismo teológico originado e consolidado na Alemanha do século XIX. As obras dos teólogos liberais começavam a atravessar o Atlântico e, ao que tudo indicava, desembarcariam e conquistariam os EUA logo nos primeiros decênios do século posterior. Igrejas e seminários de diferentes denominações começaram a receber influência da também chamada teologia liberal; professores de seminários protestantes estadunidenses importavam pensamentos de reconhecidos teólogos críticos do século XIX e início do XX como Friedrich Schleiermacher, David Friedrich Strauss, Julius Wellhausen e Adolf von Harnack. Esse diálogo com a modernidade que a teologia liberal travara parecia um caminho sem volta, representando um fator bastante positivo para a atualização de estudos bíblicos e dogmáticos (Gibellini, 1998: 13-20; Tillich, 1999), caso não acontecessem reações impetuosas tanto na Europa como aquela que causaria maior impacto, nos EUA. Em linhas gerais, a teologia liberal priorizava uma reflexão crítica que relativizaria a tradição dogmática cristã, em especial aquela concernente às questões cristológicas, além de uma hermenêutica histórico-crítica e os seus respectivos resultados em estudos das narrativas bíblicas e, por fim, um olhar ético da religião cristã. Tendo como antecedentes intelectuais as filosofias de Immanuel Kant e Friedrich Hegel, bem como a teologia e o método hermenêutico do já citado Schleiermacher, a teologia liberal propunha uma interpretação mais racionalista dos textos bíblicos e também teria como proeminentes os teólogos Albrecht Ritschil e Ernst Troeltsch (Gibellini, 1998: 19; Mondin, 2003:24-29). A reação europeia à teologia liberal, porém, nasceria da pena de intelectuais como Karl Barth e Emil Brunner, que protagonizariam o que seria conhecido como neo-ortodoxia, uma espécie de teologia crítica que ao mesmo tempo não teria rompido com os parâmetros próprios da tradição reformada (Tillich, 1999: 215-246); na esteira desses teólogos da neo-ortodoxia podemos também incluir os estudiosos Rudolf Bultmann (Gibellini, 1998: 33-56) e Paul Tillich (Mondin, 2003: 103133). Esses estudiosos, de certa maneira, eram herdeiros da tradição

protestante originada no século XVI, mas se formaram a partir da teologia liberal da segunda metade do século XIX, unindo, portanto, crítica teológica e bíblica às suas profissões de fé e à devoção religiosa particular. Eram teólogos! A reação ao liberalismo teológico de maior impacto não seria, contudo, aquela resultante das eruditas obras de Barth, Brunner e Bultmann, mas aquela nascida pouco antes nos EUA a partir da publicação, entre 1909 e 1915, de um volume composto por doze panfletos intitulados The Fundamentals: a testimony to the truth [Os Fundamentos: um testemunho em favor da verdade]109, formulado por estudiosos conservadores como Reuben Archer Torrey, James Orr e Amzi Clarence Dixon como ampliação de ideias desenvolvidas por alguns presbiterianos que lecionavam na Universidade de Princeton. A produção e a distribuição dos panfletos The Fundamentals seriam financiadas pelos irmãos e empresários do setor petrolífero Milton e Lyman Stewart, fundadores do Bible College, em Los Angeles. Cerca de três milhões de exemplares desses panfletos foram distribuídos de forma gratuita em igrejas e seminários dos EUA, objetivando alcançar, a princípio, pastores, professores e fiéis a fim de, por meio deles, combater de maneira maciça a disseminação da teologia liberal em terras estadunidenses (Armstrong, 2001: 199). Há que se destacar que para estudiosos como Prócoro Velasques Filho, os panfletos conhecidos como The Fundamentals não podem ser considerados “a origem do movimento fundamentalista.” (1990: 122) Nessa obra escrita em parceria com Antônio Gouvêa Mendonça, intitulada Introdução ao Protestantismo no Brasil, Prócoro procura apresentar diferenças e aproximações entre o que chama de fundamentalismo e o que seria apenas o conservadorismo. A propósito, marcado por uma peculiar rigidez e uma intolerância que tipificariam o chamado fundamentalismo, este não seria mais que uma das principais variações do protestantismo conservador. Mais à frente, porém, o próprio Prócoro diria que “a corrente sob influência da escola teológica de Princeton, que priorizava a pureza doutrinária em relação à experiência religiosa, constitui-se em matriz do que veio a ser posteriormente o movimento fundamentalista.” (Mendonça; Velasques Filho, 1990: 123)110

Em linhas gerais, a obra The Fundamentals, além de atacar tanto a grupos religiosos específicos como católicos, mórmons e testemunhas de Jeová como ao avanço da ciência biológica evidente na teoria da evolução, de Charles Darwin, e a ciências mais flexíveis visíveis em diferentes correntes como o ateísmo e o socialismo, tinha como maior objeto de preocupação tecer críticas à teologia liberal por meio da afirmação de cinco princípios (ou fundamentos) inegociáveis da doutrina cristã protestante herdeira da Reforma do século XVI e, em grande medida, até mesmo da Patrística. Os cinco fundamentos seriam: 1) a infalibilidade e a inspiração das chamadas Sagradas Escrituras, ou seja, a Bíblia Sagrada composta por Antigo Testamento e Novo Testamento; 2) A divindade de Jesus de Nazaré reconhecido como Messias (Cristo); 3) O nascimento virginal de Jesus de Nazaré, gerado no ventre de Maria por obra do Espírito Santo; 4) A remissão dos pecados dos seres humanos por meio da crucificação de Jesus de Nazaré e 5) A ressurreição de Jesus de Nazaré como acontecimento no tempo e no espaço bem como a sua volta factual no fim dos tempos. Conjuntamente defendia-se que havia uma historicidade, uma realidade objetiva dos milagres operados por Jesus, segundo as narrativas dos chamados evangelhos. De maneira geral, esses eram os pilares, ou seja, os fundamentos inegociáveis da fé cristã de protestantes que não se identificavam com o diálogo proposto pela teologia liberal com as ciências de seu tempo e a filosofia pós-iluminista (Vasconcellos, 2008: 26-28). Armstrong entende que um dos episódios que impulsionariam esse processo que resultou na formulação dos panfletos The Fundamentals teria sido o discurso “O futuro da religião” proferido em 1909, pelo professor emérito da Harvard University, Charles Eliot. Graças à influência exercida pela teologia liberal em muitos protestantes estadunidenses, estes estavam aos poucos se voltando muito mais para as propostas de tendências como as do chamado Evangelho Social, de Walter Rauschenbusch, que se resumia no ato de servir ao próximo, e se distanciando das práticas litúrgicas, na crença tradicional em relação à chamada teologia do pecado e até mesmo da necessidade de se afirmar como adeptos de uma religião detentora da verdade. Logo, segundo Eliot, em pouco tempo não haveria mais qualquer necessidade de se existir igrejas, cultos, liturgias e tudo o que costuma estar relacionado a

tais categorias. Assustados com essa possibilidade, os cristãos conservadores reagiram e trataram de formular os referidos The Fundamentals (Armstrong, 2001: 198). Outro episódio de grande importância em meio a todo esse cenário de conflitos que resultariam na afirmação dos tais fundamentos e no combate enviesado à visão crítica que os teólogos liberais propunham, seria o chamado “Caso Scopes”. Em 1925 o até então desconhecido biólogo e professor John Scopes seria julgado e condenado em Dayton, nos EUA, por ter transgredido a uma lei que vigorava em diferentes estados do país. Scopes teria ensinado a teoria da evolução em detrimento da crença judaico-cristã na criação narrada no livro bíblico do Gênesis, segundo a qual Deus teria, em sete dias, criado o ser humano conforme sua imagem e sua semelhança e a todas as outras coisas e seres que compõem a natureza. Como punição, Scopes teve de pagar uma fiança, a qual seria depois assumida por uma entidade ligada à defesa das liberdades civis, chamada American Civil Liberties Union. Obviamente, a condenação de Scopes teria amplo apoio das diversas igrejas e instituições cristãs que se identificavam com aqueles fundamentos publicados nos panfletos The Fundamentals (Vasconcellos, 2008: 19-21; Armstrong, 2001: 205-207). 2. Expressões fundamentalistas protestantes a partir dos anos 1930 Já deixamos sinalizado que nosso recorte temporal compreende das décadas de 1930 a 1950. É importante lembrar, portanto, que em se tratando de EUA, além de todo esse embate protagonizado por protestantes fundamentalistas contra aquela teologia liberal acusada de levar muitas igrejas europeias à ruína, cresciam ainda discretamente à margem social grupos protestantes não muito dedicados às questões teológicas. Referimo-nos ao recém-nascido pentecostalismo. As primeiras igrejas pentecostais seriam décadas depois as grandes responsáveis por fortalecer e preservar o mesmo fundamentalismo teológico apresentado nos panfletos The Fundamentals. Outras questões e motivações de ordens políticas, econômicas, científicas, sociais e até religiosas – o ecumenismo viria a ser uma delas – levariam lideranças pentecostais a assumirem as mesmas doutrinas contrárias à teologia liberal no início do século, e, a partir dos anos 1960 contra outras tendências diversas que, em linhas gerais, colocariam em dúvida os

mesmos pressupostos daqueles panfletos. Por ora, contudo, os referidos pentecostais construíram suas histórias dando ênfase à crença nos chamados batismo com o Espírito Santo e cura divina, quase sempre à margem dos demais protestantes, os históricos (Mendonça; Velasques Filho, 1990: 11-59). Enquanto maior elemento retórico dos fundamentalistas protestantes a partir dos anos 1930 até fins dos anos 1950 destacaram-se as cruzadas evangelísticas e a considerável capacidade dos pregadores evangélicos de entrar nas casas das pessoas por meio do rádio e da televisão (Boff, 2002: 15). Eles eram marcados por um discurso enfático acerca do fim dos tempos, da volta de Jesus e da chamada escatologia dispensacionalista. Essa discursiva apocalíptica era herdeira das conferências protestantes do final do século XIX nos acampamentos bíblicos de Niagara Falls que reuniram teólogos e pastores dos EUA, do Canadá e da Inglaterra entre 1883 e 1895, da fundação de seminários como o de Dwight Moody, o Moody Bible Institute, em Chicago, no ano 1886, da publicação da The Scofield Reference Biblie pelo pastor Cyrus I. Scofield no ano 1909, em Dallas, e, claro, da própria publicação dos panfletos The Fundamentals (Vasconcellos, 2008: 25-31). Era necessário expandir o discurso fundamentalista protestante; não bastava expulsar os professores herdeiros da teologia liberal dos seminários e das igrejas (Armstrong, 2001: 202). Em muitos desses ambientes, mesmo depois da condenação de Scopes, haveria influente presença de cristãos adeptos das perspectivas teológicas liberais e até mesmo da teoria evolucionista. Para citarmos um caso, podemos lembrar daquilo que ocorreria com professores do Seminário Presbiteriano de Princeton que, identificados com os pressupostos dos panfletos The Fundamentals, preferiram sair daquela instituição, àquele momento predominantemente liberal e crítico, para fundar o Seminário de Westminster, contrário à crítica bíblica. Além desse e de outros seminários que trataram de compor um corpo docente mais conservador em matéria de teologia e de exegese bíblica, ganhavam força e forma diversas iniciativas, reunindo em eventos e congressos milhares de fiéis e lideranças provenientes das mais diferentes igrejas protestantes (Geering, 2009: 15-20). É importante salientar que a condenação de Scopes explicitou a

postura rígida e inflexível dos fundamentalistas, de tal maneira que esse episódio não significou a censura dos adeptos da teologia liberal em ambientes eclesiásticos. Teólogos liberais, ao contrário, assumiriam, em certa medida, a frente de muitas igrejas locais, além de influenciarem a formação teológica até de seminários católicos. A abertura, a atualização (aggiornamento) e o diálogo ecumênico, que seriam propostos a partir do Concílio Vaticano II, refletem bastante essa influência exercida, antes de qualquer coisa, pela originalmente protestante teologia liberal. O fato é que com o “Caso Scopes”, o liberalismo teológico não morreu em sua proposta de diálogo amplo com as ciências, mas tampouco morreu o fundamentalismo. Este, contudo, teve de se reinventar rapidamente (Armstrong, 2001: 206-211). O pentecostalismo, acerca do qual iniciamos o presente tópico, ainda representava no final dos anos 1920 e início dos anos 1930, como afirma Armstrong, (2001: 2008) uma espécie de rejeição popular da modernidade racional do Iluminismo. Enquanto os fundamentalistas retornavam ao que consideravam a base doutrinal do cristianismo, os pentecostais, que não se interessavam por dogmas, remontavam a um nível ainda mais fundamental: a essência da religiosidade primitiva que ultrapassa as formulações de um credo. Por esse motivo, o pentecostalismo não só alcançava as camadas mais pobres e iletradas da sociedade, que era público minoritário nas igrejas históricas, marcadas pela presença de pessoas mais elitizadas e estudadas, como também se revelava como uma nova face do fundamentalismo, uma vez que se negava, à sua maneira, dialogar com a ciência e, da mesma forma, passava longe de qualquer aproximação das correntes filosóficas modernas. Aliás, se havia uma coisa que não interessava ao pentecostalismo era filosofia. Em amplo diálogo com Harvey Cox (1995: 81), Armstrong (2001: 208-210) nos ajuda a observar que, enquanto os fundamentalistas clássicos tentavam obter certa cientificidade para seus discursos teológicos, atribuindo à experiência religiosa quase que uma identidade de caráter racional, os pentecostais se preocupavam com a experiência do sentimento, da mística, da espiritualidade e do êxtase (Mendonça; Velasques Filho,

1990: 46-55). Acusados por muitos fundamentalistas de serem fanáticos e supersticiosos, ainda que também exista o que podemos chamar de uma teologia pentecostal (Bonino, 2002: 59-61), os pentecostais tiveram de começar a encontrar uma afirmação de sua identidade. Para não mais serem considerados “o último vômito de Satã” (Cox, 1995: 75) e para também não serem associados aos liberais, nem considerados sectários, os pentecostais, com o passar dos anos, optaram por “aderir à linha-dura dos fundamentalistas e deixariam de dar primazia à caridade” (Armstrong, 2001: 211), passando a se identificar, ainda que muito superficialmente, com as bases doutrinárias dos panfletos The Fundamentals. Embora os protestantes adeptos da teologia liberal estivessem presentes, por vezes até liderando, nas congregações locais, havia um considerável número de protestantes adeptos da teologia de matriz fundamentalista. Foi nesse contexto que ganharia força o discurso escatológico pré-milenarista e a crença no chamado arrebatamento da igreja, propagado por meio de pregações transmitidas em programas de rádio e em emissoras de televisão e, é claro, de uma nova onda de faculdades teológicas estadunidenses. Existia nos anos 1930 cerca de cinquenta escolas de formação teológica e bíblica de orientação fundamentalista ou, ao menos, conservadora. Eram ambientes nos quais se rejeitava o estudo crítico da Bíblia. A tônica nesses seminários de formação de pastores era: se a Bíblia é a Palavra inspirada por Deus, ela não pode passar pelo crivo da crítica textual como se faz com outras obras literárias. Somava-se a isso o surgimento de grandes instituições de comunicação e publicidade. Alpha Rex Emmanuel Humbard e Granville Oral Roberts, além do pregador batista Billy Graham, se notabilizariam como os primeiros grandes televangelistas da metade do século XX (Ammerman, 1991: 32-33). As cruzadas evangelísticas que, na prática, seriam grandes concentrações de pessoas em amplos espaços tais como parques e estádios de futebol, representariam um marco dessa primeira importante expansão do fundamentalismo protestante, sinalizando aquilo que o escritor Lloyd Geering chamaria de “linha divisória evangélica” (2009: 60-62). Aliás, essas concentrações teriam sido a voz mais forte do

fundamentalismo protestante no período por nós delimitado, ou seja, as décadas de 1930 a 1950.111 Sem dúvida, o nome de maior projeção desde meados dos anos 1940 seria Billy Graham que, além de pastor batista e pregador em grandes encontros religiosos nas mais diversas partes do mundo, se tornaria conselheiro pessoal de diferentes presidentes estadunidenses, desde Dwight D. Eisenhower e Richard M. Nixon a Bill Clinton e George W. Bush (Graham, 1998; 2008). Naquele contexto imediatamente posterior à II Guerra Mundial, fundamentalistas cada vez mais se uniam para propagar suas mensagens de conversão religiosa aos seus valores, ou seja, aos fundamentos da fé cristã segundo as suas percepções. Como diz Armstrong, eles eram pregadores que “se sentiam forasteiros, empurrados para a periferia da sociedade, mas agora suas faculdades e emissoras lhes proporcionavam um refúgio num mundo hostil.” (2001: 245) Unidos por uma ampla rede que se formava através dessas emissoras, tanto de rádio como de televisão, os fundamentalistas encontraram à época do pós-guerra um grande desafio, mas ao mesmo tempo um terreno imenso e muito propício para lançarem as suas sementes (Pace e Stefani, 2002; Vasconcellos, 2008: 33). Concomitantemente, os valores morais desse novo fundamentalismo protestante de meados do século XX disseminava entre os crentes a preocupação em preservar-se sexualmente até o casamento, em vestir apenas roupas que não fossem causar algum tipo de escândalo e em envolver-se socialmente apenas com pessoas que não prejudicassem sua espiritualidade. Esse extremismo, em particular, fez brilhar os olhos de líderes pentecostais que, de modo radical, por décadas, proibiriam as mulheres de usarem calças e maquiagens, além de não permitirem que os fiéis tivessem televisão em suas residências, pois entendiam que esse aparelho os desviaria de sua fé (Dreher, 2007: 241-244). Vemos, com isso, que há ao mesmo tempo proximidade e distanciamento entre fundamentalistas e pentecostais. Embora unidos pelos fundamentos clássicos, enquanto os televangelistas se interessavam em conquistar a sociedade por meio das pregações transmitidas via rádio e televisão, os pentecostais ainda se manteriam muito resistentes a isso até começos dos anos 1960. O marco inicial desse cenário seria a Bob Jones University (BJU),

existente desde 1927 na Flórida, e que com o tempo se consolidaria na Carolina do Sul a fim de combater o ateísmo, o agnosticismo, o liberalismo teológico e o humanismo como chave de leitura bíblica. Em finais dos anos 1940 e início dos anos 1950, a BJU se tornaria o maior centro de formação de professores, pastores e pregadores estadunidenses com profissão de fé fundamentalista. Caracterizaria sua formação a busca por uma intensa autodisciplina em relação à fé, além de uma formulada apologética no sentido de defender a chamada infalibilidade bíblica e os fundamentos da fé cristã (Armstrong, 2001: 246). A questão política também passava a ocupar aqueles ambientes fundamentalistas. Aos poucos ficava claro que, para ser um cristão conservador era inadmissível ser sequer simpatizante de qualquer perspectiva próxima do chamado comunismo. Considerando que no mesmo período funcionava na União Soviética um regime genocida protagonizado por Josef Stalin, assassinando milhões de pessoas, tal antipatia pelo comunismo nos parece justificável. Eric Hobsbawm descreve com muita clareza o que foi esse período soviético: Stalin, que presidiu a resultante era de ferro da URSS, era um autocrata de ferocidade, crueldade e falta de escrúpulos excepcionais, alguns poderiam dizer únicos. Poucos homens manipularam o terror em escala mais universal. Não há dúvidas de que sob um outro líder do Partido Bolchevique os sofrimentos dos povos da URSS seriam minimizados, e o número de vítimas menor. Apesar disso, qualquer política de rápida modernização na URSS, nas circunstâncias da época, tinha de ser implacável e, porque imposta contra o grosso do povo e impondo-lhe sérios sacrifícios, em certa medida coercitiva. E a economia de comando centralizado que realizou essa corrida com seus “planos” estava, de maneira igualmente inevitável, mais perto de uma operação militar que de um empreendimento econômico. (...) Por mais difícil que seja de acreditar, mesmo o sistema stalinista, que mais uma vez transformou camponeses em servos presos à terra e tornou partes importantes da economia dependentes de uma força de

trabalho de entre 4 e 13 milhões de pessoas prisioneiras (os gulags) (Van der Linden, 1993), quase certamente desfrutava substancial apoio, embora, claro, não entre o campesinato (Fitzpatrick, 1994). (Hobsbawm, 1995: 371) Em meio a esse cenário e como resultado dessa tendência contra o comunismo entre protestantes fundamentalistas dos EUA, nasceria a Anticomunista Cruzada Cristã, criada por Billy James Hargis, um evangelista estadunidense, cuja popularidade atingiu seu auge exatamente nos anos 1950 e 1960, tendo suas pregações transmitidas por cerca de duzentas e cinquenta emissoras de televisão e por mais de quinhentas emissoras de rádio. Hargis fazia frequentes referências aos soviéticos, chamando-os de demoníacos e de monstros de olhos verdes, e afirmava que estadunidenses adeptos da teologia liberal eram esquerdistas que compunham uma espécie de organização formada também por outros grupos não necessariamente ligados à questão religiosa, cujo objetivo maior era transformar os EUA em uma nação comunista, ou, como ele próprio alertava, em uma América vermelha. Carl McIntyre, outro militante fundamentalista, chegava ao ponto de dizer que muitas igrejas protestantes já tinham passado a compor um grande plano satânico a fim de eliminar a fé cristã do território estadunidense. Para militantes como McIntyre e Hargis, todos que não concordassem com suas ideias delirantes eram adeptos de uma conspiração que pretendia transformar os EUA em uma ditadura comunista semelhante ao que acontecera com a nação russa a partir de 1917 (Armstrong, 2001: 247; Fuller, 1995: 137-138). O que parece marcar, portanto, esse fundamentalismo dos anos 1950 nos EUA é um intenso fanatismo. Para se diferenciar desse radicalismo, mas na essência defendendo os mesmos fundamentos, conservadores como Billy Graham identificavamse como evangélicos, em especial por causa de suas iniciativas de evangelização em massa. Algo, porém, os tornava inseparáveis – evangélicos e fundamentalistas –, que era a aversão aos avanços da ciência e do pensamento moderno quando estes representavam uma negação dos mitos cristãos. Tais avanços, segundo eles, tinham no fim das contas resultado em duas guerras mundiais que tiraram a vida de milhões de pessoas. Caberia à mensagem cristã, amparada nos

fundamentos bíblicos, fazer renascer a esperança que a humanidade perdera após ver tantas destruições consequentes da ação desse ser humano moderno e cientificamente evoluído. Coincidência ou não, Billy Graham inicia suas cruzadas de evangelização logo após o final da II Guerra Mundial e antes daquela que seria chamada de Guerra Fria. O ano em que ele sairia de vez do anonimato seria 1949, graças ao apoio e a influência dos jornalistas estadunidenses Henry Luce e William Randolph Hearst. A primeira cruzada de maior notoriedade internacional só aconteceria, porém, dez anos depois, na Austrália. A tônica da pregação de Graham era bem objetiva: Jesus é o único caminho para a salvação (Graham, 1998; 2008). Essa perspectiva converge de maneira direta com aqueles fundamentos panfletados décadas antes, nos EUA, em reação ao liberalismo teológico. Logo depois do fim da II Guerra Mundial, figuras como David Grey e Wilbur Smith teriam se notabilizado, escrevendo que as destruições iniciadas em 1939 e eventos específicos como as bombas atômicas teriam servido para comprovar que a melhor leitura a se fazer da Bíblia Sagrada não era aquela de matriz histórico-crítica proposta pelos teólogos liberais, mas a literal proposta pelos fundamentalistas, pois evidenciava a infalibilidade do texto sagrado, sobretudo, no que dizia respeito às predições acerca do fim dos tempos. As destruições provocadas pelo ser humano eram uma prova mais que suficiente de que Jesus estaria voltando, diziam os fundamentalistas pré-milenaristas da segunda metade dos anos 1940 (Armstrong, 2001: 248; Alencar, 2018). Não entraremos nos detalhes e aspectos teológicos que caracterizam as interpretações escatológicas dos diferentes grupos fundamentalistas dos anos 1930 ao final dos anos 1950. Antes, o que nos interessa aqui é destacar que foram esses grupos que representariam a face diversa do fundamentalismo protestante que antecedeu os anos 1960. Sendo plural, o fundamentalismo protestante das três décadas que nos interessam podem ser pensados a partir de três grandes matrizes, às quais identificamos como sendo a radical, a evangélica e a pentecostal. A radical, conforme vimos, tinha em perspectivas defendidas por figuras como McIntyre e Hargis suas principais preocupações, ou seja, continuar combatendo a teologia liberal ainda muito presente em igrejas locais e

seminários, além de enfatizarem que havia uma conspiração comunista querendo tomar o controle dos EUA. A matriz evangélica, também fundamentalista em termos teológicos, se mostrava representada por pregadores das massas como Oral Roberts e Billy Graham. A terceira e última matriz, a pentecostal, ainda muito à margem em relação às outras, crescia em número, sobretudo, nas periferias. O crescimento numérico das igrejas pentecostais no Brasil a partir dos anos 1960, por exemplo, se justifica no fato de que a população pobre brasileira era predominante, além de ser marcadamente negra e operária. Há, no entanto, uma atuação pentecostal antes dos anos 1960, em terras brasileiras, que pode nos servir para vermos o quanto essa vertente seria nas décadas posteriores a grande força motriz para que o fundamentalismo protestante não só ultrapassasse as fronteiras dos EUA, mas se consolidasse no Brasil, provocando certos efeitos e complexidades até os nossos dias. Já estamos entrando na terceira década do século XXI. 3. Fundamentalismos protestantes à brasileira Quando afirmamos que o fundamentalismo já existia na essência do protestantismo estadunidense queremos salientar que as diferentes igrejas que de lá vieram para o Brasil na segunda metade do século XIX já chegaram nesse território com uma proposta de colonização das mentes que aqui estavam. Era necessário não apenas contrapor àquela predominância da fé católica, mas marginalizar ainda mais e, com isso, intensificar uma visão preconceituosa que já existia para com as crenças e os ritos de matrizes africana e indígena. Rejeitando tais crenças e, por vezes, associando-as de maneira pejorativa às crenças, ritos e santos da tradição católica, o protestantismo nascente ganhava terreno. A conversão ao presbiterianismo do sacerdote católico José Manuel da Conceição é um exemplo emblemático desse processo. O mesmo se tornaria o primeiro pastor protestante nascido no Brasil (Mendonça, 1995: 185-187). Em se tratando de protestantismo, inclusive no Brasil da primeira metade do século XX, fundamentalismo e pentecostalismo são conceitos distintos. Fundamentalistas estão preocupados com a fundamentação teológica, quase racionalista, de suas crenças basilares. Pentecostais estão interessados em intensificar suas experiências de fé com os

chamados dons do Espírito Santo, em especial o chamado dom de línguas e o dom de cura divina. A identidade fundamentalista dos pentecostais só se tornaria evidente a partir dos anos 1960 em função de diferentes motivações: rejeição a tudo o que parecesse comunista – o contexto é o de Guerra Fria, de revoluções como a Cubana, de resistência ou adesão às ditaduras que se implantariam na América Latina –; aliança com algumas igrejas históricas no sentido de apoiar o processo de concretização dos regimes ditatoriais encabeçados por militares; dedicação à pregação, inclusive a partir do rádio, objetivando conversões em massa, tendo em vista uma convicção escatológica específica de que a volta de Jesus estaria muito próxima, realização de eventos e acampamentos conversionistas de jovens por parte de organizações paraeclesiásticas, entre outras tônicas que ganhariam força nas décadas posteriores (Mendonça; Velasques Filho, 1990: 46-59; Alencar, 2018). Não há motivos para nos estendermos em uma revisão da história do protestantismo no Brasil, porque já está claro que, em linhas gerais, ele sempre foi predominantemente conservador e, por influências estadunidenses já a partir dos anos 1930 e 1940, também seria fundamentalista. Sem dúvida havia nas grandes igrejas históricas figuras que eram contrárias ao fundamentalismo dogmático e eclesiástico de suas de denominações. O que preponderaria, no entanto, seriam as vozes radicais, contrárias a todo e qualquer diálogo com a modernidade, com a secularização, com tendências políticas de esquerda e, menos ainda, com interpretações mais críticas do texto bíblico. Essas igrejas, inclusive, não deixaram de perder fiéis, de maneira quase imperceptível, para as igrejas pentecostais que brotavam nas periferias. Não identificados com a liturgia e a identidade elitizada de igrejas históricas, os mais simples enxergavam nos cultos pentecostais um ambiente mais próximo de suas realidades, tanto na estética litúrgica como na pregação, tanto na dinâmica como na condição econômico-social dos chamados irmãos (Alencar, 2005; Passos, 2005). O pentecostalismo brasileiro, bastante marcado pelo apelo à conversão, à busca do êxtase em suas experiências com o que eles entendiam e ainda entendem ser o batismo do Espírito Santo sobre as pessoas e, claro, à crença na chamada cura divina, começou no Brasil a

partir da fundação de denominações que eram dissidências de igrejas históricas. A Congregação Cristã no Brasil, por exemplo, foi fundada pelo italiano Luigi Francescon, de origem valdense e ex-presbiteriano, no ano de 1910. Sua teologia e sua eclesiologia, portanto, eram derivadas da tradição calvinista, mas sua pneumatologia era pentecostal. A Assembleia de Deus seria fundada em 1911 por dois missionários suecos de origem batista chamados Daniel Berg e Gunnar Vingren, adotando desde o início uma teologia arminiano-wesleyana e uma eclesiologia batista. A terceira igreja pentecostal fundada no Brasil e que teria uma grande expansão seria a Igreja do Evangelho Quadrangular, entre 1952 e 1953. Sua origem, porém, ocorrera nos EUA alguns anos antes por iniciativa da jovem missionária metodista Aimee Semple McPherson, nascida no Canadá. Essa denominação começou suas atividades no Brasil após os pregadores Harold Williams e Raymond Boatright terem vindo ao estado de São Paulo para uma série de encontros organizados pela Igreja Presbiteriana Independente do Brasil (IPI). Os eventos começaram a se intensificar por meio de um movimento evangelístico conhecido como Cruzada Nacional de Evangelização. Eram armadas em terrenos baldios enormes lonas, semelhantes aos circos, e se promoviam cultos conversionistas e sessões de cura divina. A Igreja do Evangelho Quadrangular, a princípio, adotara a mesma teologia arminiano-wesleyana das Assembleias de Deus, mas uma eclesiologia derivada da tradição metodista (Mendonça e Velasques Filho, 1990: 46-53; Reily, 1993). Outras denominações pentecostais surgiram no Brasil antes dos anos 1960. Podemos citar a Igreja de Cristo Pentecostal no Brasil (1937), Igreja Evangélica do Avivamento Bíblico (1946) e, claro, uma de maior destaque, que seria a Igreja Evangélica Pentecostal “O Brasil para Cristo” (1956). Essa denominação, fundada pelo missionário de origem assembleiana Manoel de Mello, também derivou dos eventos organizados pela Cruzada Nacional de Evangelização. Além de conquistar uma quantidade significativa de fiéis, Manoel de Mello se articulara bastante com as questões políticas do Brasil, além de filiar-se ao Conselho Mundial de Igrejas e à Confederação Evangélica do Brasil. Esse seu perfil ecumênico o diferenciava em relação a ouros líderes pentecostais surgidos até 1960, época em ocorria o Concílio Vaticano II, mas não o suficiente para anular o perfil exclusivista e conservador da

teologia adotada por sua denominação, o que faria com que ela também compusesse, na prática, a formação de uma identidade evangélica fundamentalista dali para frente (Mendonça; Velasques Filho, 1990: 5254; Reily, 1993). As agências de cura divina, nascidas a partir dos anos 1960, cujo protagonismo seria exercido pela Igreja Pentecostal “Deus é Amor” (1962), fundada pelo missionário David Miranda, seriam o estopim para que o pentecostalismo brasileiro conquistasse cada vez mais um número considerável de fiéis, enquanto as igrejas históricas começavam a vivenciar seu declínio. Anos depois, como sabemos, o Brasil viveria uma ditadura militar, a qual teria em muitas das igrejas protestantes importantes aliados (Dusilek, Silva e Castro, 2017; Souza, 2014), o que não seria unânime (Faria, 2002). A antipatia pela chamada ameaça comunista era comum entre as elites políticas que promoveram o Golpe de 1964 e grande parte das lideranças religiosas identificadas com os valores do fundamentalismo iniciado com a distribuição dos panfletos The Fundamentals, décadas antes, nos EUA. Nesse sentido é que temos defendido a hipótese de que as décadas 1930, 1940 e 1950 foram decisivas para a formação dessa importante face do fundamentalismo protestante brasileiro: o pentecostalismo. Não que as igrejas históricas, em sua maioria, deixariam de contribuir nesse processo, mas de longe, com o passar dos anos, o pentecostalismo causaria efeitos bem maiores. O ápice dessa aproximação do pentecostalismo às vertentes políticas da direita conservadora no Brasil se dará a partir das inúmeras igrejas neopentecostais protagonizadas, por exemplo, pela Igreja Universal do Reino de Deus (1977), fundada por Edir Macedo, pela Igreja Internacional da Graça de Deus (1980), fundada por Romildo Ribeiro Soares, pela Igreja Apostólica Renascer em Cristo (1986), fundada por Estevam Hernandes e Sônia Hernandes, pela Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra (1992), fundada por Robson Rodovalho e Maria Lúcia Rodovalho, pela Igreja Mundial do Poder de Deus (1998), fundada por Valdemiro Santiago e, mais recentemente, pela Igreja Apostólica Plenitude do Trono de Deus (2006), fundada por Agenor Duque e Ingrid Duque. Somada a essas, há uma infinidade de denominações no Brasil que representam desdobramentos do pentecostalismo e do protestantismo histórico,

algumas já originadas de dissensões em igrejas neopentecostais, mas que em linhas gerais representam essa face do fundamentalismo religioso brasileiro (Silva, 2007; Mariano, 2005). As práticas mais comuns que nos dão suporte para que as identifiquemos como sendo fundamentalistas, tanto em termos teológicos como sociais, são: 1) a constante intolerância religiosa em relação aos locais de culto e até mesmo aos adeptos de religiões de matriz africana, ainda que por vezes se apropriem de práticas e ritos semelhantes àqueles dessas religiões, dando-lhes apenas um significado e uma roupagem cristãos (Silva, 2007); 2) a aliança ideológica com candidatos, muitas vezes das próprias denominações, em processos político-eleitorais municipais, estaduais e federais (Burity; Machado, 2006); 3) a defesa de determinados valores tidos como morais em detrimento de políticas públicas inclusivas que, na prática, acabam por resultar na legitimação de preconceitos e exclusão do outro (Cavalcante, 2010; Gouvêa, 2006). Uma reflexão mais aprofundada dessas questões fugiria da delimitação do presente capítulo, mas não temos dúvida alguma de que elas podem ser pontuadas enquanto efeitos de grandes proporções do fundamentalismo nascido no início do século XX e que começaram a se expandir a partir dos anos 1930. Conclusão Quando afirmamos que as cruzadas evangelísticas, as pregações por meio do rádio e da televisão e, sobretudo, o impulso pentecostal que perpassam as décadas de 1930, 1940 e 1950 representaram as principais identidades e dinâmicas de expansão do fundamentalismo protestante desse período, estamos visualizando tal hipótese a partir dos aspectos, tão bem explorados por Mendonça e Velasques Filho (1990: 130-131), que caracterizariam o fundamentalismo protestante desde a origem até nossos dias (D’avila-Levy; Cunha: 2018). A intolerância, o determinismo histórico e a rigidez doutrinária do fundamentalismo demonstram o seu caráter ideológico restrito, fechado, indisponível ao diálogo, à reflexão, a releituras. O reducionismo maniqueísta que tira não só a liberdade, mas também a responsabilidade do sujeito justifica o desinteresse de boa parte das denominações protestantes em relação às questões sociais, para se importarem apenas com o que julgam ser fundamental para a salvação da alma, a saber, a

devoção nas categorias espirituais, ainda que isso resulte em incoerência e em uma perda da historicidade de sua identidade. Somada à intolerância, podemos apontar também a unilateralidade teológica, que não aceita qualquer diálogo com interpretações que fujam das suas percepções relativas a ritos, dogmas e costumes. Tal comportamento evidencia o caráter sectário e exclusivista dos fundamentalistas protestantes que estão sempre dispostos à exclusão do outro que pensa ou crê de maneira diferente. Passamos a ter uma noção mais concreta da gravidade desse comportamento, ao vemos um cristão adotando, em nome de sua fé, posturas de violência e de defesa da tortura física e da punição letal dos que julga ser criminoso. Armstrong (2001: 249) não parece se equivocar ao dizer que os fundamentalistas, inspirados em suas leituras literais de certas narrativas bíblicas, se sentem legitimados a defender práticas genocidas. Agradecimentos Agradeço a Edin Abumanssur, Fernando Torres-Londoño, Gedeon Alencar, Ricardo Bitun, Ricardo Quadros Gouvêa, Ronaldo de Paula Cavalcante e Silas Luiz de Souza. Menciono o apoio institucional do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciência da Religião da PUCSP. A responsabilidade pelas ideias contidas neste capítulo restringe-se ao autor. 109 No Brasil foi publicada em 2005, por uma editora protestante chamada Hagnos, situada em São Paulo, uma versão dos panfletos The Fundamentals, editados por Reuben Archer Torrey. Essa edição brasileira foi intitulada Os Fundamentos: a famosa coletânea de textos das verdades bíblicas fundamentais. 110 Com duas fortes ênfases que seriam a hipótese da inerrância bíblica – a Bíblia deveria ser considerada inspirada por Deus –, além da chamada escatologia milenista (ou milenarista), o fundamentalismo se constituiria e, em alguns círculos, até se identificaria enquanto tal, a partir da Conferência Mundial dos Cristãos Fundamentalistas, realizada em 1919, mas não sem produzir divisões entre as denominações. Nem todos os protestantes aceitavam essa designação (Mendonça; Velasques Filho, 1990: 123-129). 111 Aqui há que se fazer uma ressalva. Embora esses grupos mais conservadores protagonizados por figuras como Billy Graham não se

identificassem como fundamentalistas, suas bases eram as mesmas do fundamentalismo que observamos até aqui, tendo como ponto de partida as defesas contidas nos panfletos The Fundamentals. Velasques Filho, contudo, apresenta-nos com precisão às diferenças e aproximações entre conservadorismo protestante e fundamentalismo (Mendonça; Velasques Filho, 1990: 111-131).

IX. Evangelicalismo na Segunda Metade do Século XX: O “Esquecimento“ das Ideias Fundamentalistas e a Cristalização do Evangelicalismo Ivan Dias da Silva Introdução: Os diferentes grupos protestantes nos EUA. Para uma compreensão maior das questões ligadas ao tema proposto, faz-se necessário levar em consideração a complexidade do segmento religioso Protestante americano. Os principais representantes do protestantismo nos EUA podem ser divididos em três grupos: os protestantes majoritários (mainline prostestants), os evangélicos112 – também chamados de “novos evangélicos” – e os fundamentalistas (Green, 2004; Burge & Djupe, 2018; Bradshaw, 2014). Os protestantes majoritários têm por característica não aceitarem a doutrina da inerrância bíblica113 e realizam uma abordagem mais liberal em questões sociais, políticas e teológicas. Já os evangélicos, surgidos na década de 1940, são os protestantes do norte e sul dos EUA que, como os fundamentalistas da década de 20, creem nos “fundamentos da fé” e na necessidade de recuperar a herança cristã da nação. Originalmente, muitos evangélicos postulavam o distanciamento das atividades políticas, enquanto outros segmentos desejavam fazer alianças de base religiosa e política mais ampla e eram, então, mais influentes politicamente. Já os fundamentalistas, originados em diversas denominações protestantes, possuem em comum a crença de que a América se encontra em um processo acelerado de perda de sua identidade cristã, e necessita mudar o seu curso. De forma sintetizada, pode-se afirmar que têm um compromisso com o ideal de uma nação cristã, baseada em princípios morais protestantes. Seu envolvimento político objetiva o cumprimento desta visão (Williams, 2010: 4).

As bases teológicas do fundamentalismo podem ser encontradas na obra The Fundamentals, dos teólogos da Universidade de Princeton, texto que, como sabemos, tenta estabelecer os chamados fundamentos da fé, ou seja, os elementos da doutrina tradicional, tidos como inquestionáveis, tais como a autoridade, inspiração e a absoluta veracidade da Bíblia, a deidade de Jesus Cristo, seu nascimento virginal, dentre outros (Torrey, 2005: 07). Uma contribuição a ser levada em consideração na qualificação do fundamentalismo é a de Karen Armstrong (2001: 10), para quem é importante compreendê-lo como um movimento inovador. Na sua avaliação “tem-se a impressão de que os fundamentalistas são inerentemente conservadores e aferrados ao passado, e, no entanto, suas ideias são essencialmente modernas e inovadoras.” Para Armstrong, se os fundamentalistas de fato almejaram “voltar ao ‘fundamental’, os protestantes norte-americanos agiram de um modo peculiarmente moderno”, pois, “absorveram o racionalismo pragmático da modernidade e, sob a orientação de seus líderes carismáticos, refinaram o ‘fundamental’ a fim de elaborar uma ideologia que fornece aos fiéis um plano de ação. Acabaram lutando e tentando ressacralizar um mundo cada vez mais céptico.” Seguindo avaliação semelhante, Almond, Sivan e Appleby (1995: 402), em um texto intitulado Fundamentalism: Genus and Species, afirmam que não veem O fundamentalismo nem como um ‘novo movimento religioso’ (no sentido técnico do termo) nem como simplesmente uma expressão ‘tradicional’, ‘conservadora’, ou ‘ortodoxa’ de fé, ou uma prática religiosa antiga ou pré-moderna. Preferencialmente, o fundamentalismo é um hibrido de ambos os tipos de modalidades religiosas, e pertence a uma categoria própria. Os primeiros a utilizar o termo “fundamentalismo” foram segmentos protestantes norte-americanos no início do século XX. Eles passaram a se autodenominar ‘Fundamentalistas’ para distinguirem-se de protestantes mais ‘liberais’, que, a seu ver, distorciam inteiramente a fé cristã. Eles [os fundamentalistas] queriam voltar às

raízes e ressaltar o ‘fundamental’ da tradição cristã, que identificavam como a interpretação literal das Escrituras e a aceitação de certas doutrinas básicas. Desde então se aplica a palavra ‘fundamentalismo’ a movimentos reformadores de outras religiões, o que está longe de ser satisfatório e parece sugerir que o fundamentalismo é monolítico em todas as suas manifestações. Na verdade, cada ‘fundamentalismo’ constitui uma lei em si mesmo e possui uma dinâmica própria. (Armstrong, 2001: 10) No seu começo o fundamentalismo norte-americano caracterizou-se por ser primariamente um movimento religioso e centrado em questões teológicas. Foi um movimento originado entre cristãos evangélicos norte-americanos, pessoas que professavam completa confiança na Bíblia, preocupadas que eram com a mensagem de salvação enviada por Deus para os pecadores através da morte de Jesus Cristo. Estes evangélicos estavam convencidos de que a sincera aceitação da mensagem contida nos Evangelhos era a chave para uma vida virtuosa na terra e para a vida eterna no céu. Sua rejeição significava seguir o caminho largo que levaria às “torturas do inferno”. (Marsden, 2006: 3) Dentro desta perspectiva, o típico fundamentalista norte-americano é definido pelo historiador George M. Marsden (1991: 3) como Um evangélico que milita em oposição à teologia liberal nas igrejas ou às mudanças dos valores culturais ou das convenções morais, como as associadas ao ‘humanismo secular’ (...) os fundamentalistas são um subtipo de evangélicos para os quais a militância é crucial à sua percepção (de mundo). Eles não são apenas conservadores religiosos. São conservadores que se posicionam e lutam contra seus opositores. Podemos inferir, portanto, que o fundamentalismo norte-americano constitui-se numa variação diferenciada do protestantismo evangélico, moldada de forma única pelas circunstâncias dos EUA no início do século XX. Dentre as mais comuns compreensões do fundamentalismo tem prevalecido a de vê-lo essencialmente como “a extrema e agonizada defesa de um meio moribundo de vida” (Marsden, 2006: 04). Esta explicação basicamente sociológica foi apresentada por oponentes do

fundamentalismo na década de 1920, e na geração seguinte o fundamentalismo passou a ser comumente considerado como uma manifestação de defasagem cultural que o tempo e o desenvolvimento educacional eventualmente eliminariam. 1. O “Esquecimento” das Ideias Fundamentalistas. Plantando a semente: duas décadas de isolamento produtivo (19201940) Nas primeiras décadas do século XX as denominações religiosas do norte dos EUA envolveram-se numa batalha intelectual denominada “controvérsia fundamentalista-modernista”. Na década de 1920 os modernistas alcançaram a vitória na Northern Baptist Convention e Northern Prebyterian Church, devido, majoritariamente, ao fato que muitos que defendiam uma posição central no conflito eram adeptos da teoria da “unidade em meio à diversidade”. Segundo esta teoria, as referidas denominações deveriam acolher os dois pontos-de-vista antagônicos, ou seja, o liberalismo e o fundamentalismo teológicos. Esta posição mostrou-se insuficiente, ainda que pragmática. O fato é que nas décadas de 1920 e 1930 os fundamentalistas reagiram de forma dividida ao modernismo. Muitos tornaram-se francamente separatistas, entendendo ser imperiosa a separação institucional, teológica e até mesmo física das denominações dominadas pelo liberalismo teológico. Esta orientação deu vida aos típicos fundamentalistas americanos, definidos pelo historiador George Marsden (2006: 4) como “cristãos evangélicos (…) que, no século XX, se opuseram militantemente tanto ao modernismo em teologia quanto às mudanças culturais que o modernismo endossava”. Em sintonia com tal avaliação, Marsden (1991: 1) sugere que “um fundamentalista é um evangélico que está zangado a respeito de algo”, e completa afirmando que isto “parece simples”, mas é uma definição “bastante fiel. Até mesmo Jerry Falwell já a adotou como uma breve definição de fundamentalismo, que repórteres costumavam citar”.114 Além desta definição informal, pode-se declarar, de uma maneira mais precisa, que o mesmo termo denota “um evangélico que é militante em oposição à teologia liberal nas igrejas, ou a mudanças nos valores ou costumes culturais, como os associados ao ‘humanismo secular’”. Ambas definições indicam que o “os fundamentalistas são um subtipo de

evangélicos, e a militância é crucial à sua posição. Os fundamentalistas não são apenas conservadores religiosos, eles são conservadores que desejam se posicionar e lutar”. Durante o final da década de 1920 havia uma opinião popular corrente segundo a qual o movimento fundamentalista estaria em franco processo falimentar, em virtude de sua voz ter praticamente desaparecido do espaço público. Marsden (1991: 61) declara que O fundamentalismo parecia estar em descontrole e a maioria dos observadores considerava que ele havia se queimado e iria desaparecer para sempre. Críticos geralmente haviam assumido que o fundamentalismo tinha sido, de maneira ampla, o produto da cultura rural, e que a partir da expansão da educação moderna anterior, ele perderia sua base social. Ao contrário dessa interpretação de matriz francamente secularista, o fundamentalismo protestante americano estava isolado, sim, mas não inativo ou realizando ações improdutivas. Como o próprio Marsden descreve, o movimento “não estava desaparecendo, mas se realinhando. Incapaz de controlar as maiores denominações do norte e a cultura política, os fundamentalistas continuaram a fazer aquilo no que eram melhores: evangelizar e organizar igrejas locais” (1991: 61). De fato, como indica Martin (1996: 17), “o cristianismo fundamentalista, realmente, atravessou um deserto, mas não havia sido sepultado”. A verdade é que o referido movimento estava em franco desenvolvimento, estendendo uma rede de organizações paraeclesiásticas, e estabelecendo uma série de enclaves que, de maneira silenciosa, mas efetiva, contribuíram para sua sobrevida e reestruturação nas duas décadas seguintes. Os calorosos debates internos versavam sobre temas como o papel feminino na liderança da igreja, a separação do mundo e a importância da erudição. Carpenter (1999: 76) afirma que o fundamentalismo nunca esteve estagnado ou agiu somente como um movimento reacionário. Antes, é um movimento que se baseia em “uma ‘teologia em evolução’, que está sujeita a debate e dissensão: uma teologia que se adapta à mudança dos tempos”. Como seu discurso não conseguia prevalecer nas denominações majoritárias do norte do país e nem influenciar diretamente a cultura

política, os fundamentalistas, no afã de difundir sua mensagem, utilizaram-se de meios diversos, tais como, por exemplo, movimentos de juventude (na forma de entretenimento alternativo e instrução espiritual), evangelização e abertura de novas igrejas e, talvez mais significantemente, apropriaram-se dos dispositivos da florescente indústria dos meios de comunicação de massa para difundir sua mensagem, especialmente através da poderosa nova mídia radiofônica, sobretudo, inicialmente, em sua dimensão local. Marsden (1991: 47,61) assinala que os fundamentalistas foram “mestres dos meios de comunicação de massa, e rapidamente se adaptaram ao rádio” com vistas à evangelização. De fato, principiando nas emissoras locais, os pregadores conservadores expandiram-se paulatinamente também para aquelas de alcance regional, e até mesmo nacional. Desta forma, tiveram acesso a milhões de radio-ouvintes, de forma comparável ao que os televangelistas fazem hoje. De acordo com este historiador americano, Certamente um dos mais notáveis desenvolvimentos na religião americana desde 1930 foi a reemergência do evangelicalismo como uma força na cultura americana. Provavelmente, era o menos provável de ser predito em 1930. Parecia que os fundamentalistas tinham sido vencidos nestas maiores denominações do norte do país, onde haviam surgido sérios desafios durante a década de 1920, e onde os progressistas estavam no controle. Tudo o que restou para ser feito, de acordo com as teorias sociológicas prevalecentes, foram operações de remoção. A religião conservadora morreria na medida em que a modernidade avançasse. O sul retrógrado se tornaria mais parecido com o norte industrializado. Os fundamentalistas tinham a sua própria versão da teoria, supondo que a secularização avançaria regularmente nas igrejas e na cultura até o retorno de Cristo. Poucos imaginavam que o sul ascenderia novamente para dar o tom da forma cultural religiosa de grande parte da nação (Marsden, 1991: 63-64). Não obstante o fato que durante os anos de 1925 a 1950 o movimento fundamentalista parecesse invisível para os que dele não faziam parte, a

partir da década de 1940 ele começou a dar provas contundentes de que não apenas havia sobrevivido, como também reemergiria como um movimento público extremamente próspero e influente. Marsden (Ibid.: 47, 64) ainda indica que o evangelicalismo de então consolidou-se através de uma “minoria cognitiva” que, no entanto, Emergiu como uma maioria sociocultural (...) Os reformadores neo-evangélicos do fundamentalismo estavam entre os primeiros a antecipar a possibilidade de um ressurgimento evangélico. Na verdade, na década de 1940, eles conversavam grandiloquentemente não apenas sobre tal retorno, mas também a respeito do ‘restabelecimento das teses e princípios fundamentais de uma cultua ocidental’ e, como declarou Carl Henry, ‘[como um] fundamentalismo recriado, levemente temperado, o cristianismo evangélico poderia ‘conquistar a América’115 A partir deste momento ocorre uma mudança no significado do termo “fundamentalismo”. Originalmente, ele era apenas o nome dado à ala conservadora militante da coalizão evangélica, que perdeu seu protagonismo inicial por volta da década de 1930. A partir deste momento, O termo ‘fundamentalismo’ começou a tomar um sentido mais limitado. Muitos fundamentalistas estavam abandonando as principais denominações protestantes, essencialmente aquelas associadas com a Federação Ecumênica (depois, Nacional) do Concílio de Igrejas. Tendo eles próprios feitos esta mudança, os fundamentalistas passaram a considerar a separação de tais denominações um teste da fé verdadeira. A mudança na terminologia foi ocorrendo gradualmente, mas, por volta da década de 1960, o termo ‘fundamentalista’ normalmente significava ‘separatista’ e não incluía mais muitos dos conservadores que faziam parte das principais denominações. (...). Os fundamentalistas, então, se tornaram uma autodesignação mais específica. Apesar de pessoas fora do movimento usarem o termo de forma

mais ampla para designar qualquer conservador militante, aqueles que se autodenominam fundamentalistas são predominantemente batistas dispensacionalistas separatistas (Marsden, 1991:3-4). Esta mudança de sentido do termo “fundamentalista” ocorreu em decorrência dessa cisão na ala conservadora militante evangélica, quando emergiu de dentro dela um movimento independente e separatista, bem definido no cenário religioso americano, e que fez questão de se diferenciar do grupo que integrava. Normalmente os fundamentalistas se orgulhavam de se autointitularem como tais, pois entendiam como extremamente necessária a separação daqueles que consideravam terem se corrompido na interpretação e prática da fé. 2. A Cristalização do Evangelicalismo: O frustrado sonho modernista da unidade evangelical. O erudito britânico David Bebbington (1989: 2-17) resumiu muito bem os elementos essenciais do Evangelicalismo, denominado de “quadrilátero de prioridades”, também conhecido como o “quadrilátero de Bebbington”, ou seja, conversionismo (experiência sobrenatural e transformadora de vida central à fé cristã), biblicismo (confiança na Bíblia como autoridade religiosa sobre outras autoridades), crucicentrismo (ênfase na crucificação de Cristo) e ativismo (crença de que os cristãos devem se engajar no mundo, em evangelismo, missões e de outras formas). De acordo com Hankins (2008: 35), cinco eventos teriam sido instrumentais para o surgimento e progresso do Evengelicalismo. O primeiro deles, a formação da National Association of Evangelicals (NAE), em 1942, que “se tornou o mais importante desenvolvimento no que um historiador denominou ‘um front unido evangélico’, que trouxe o renascimento do Evangelicalismo após o período fundamentalista (1925-1940) que seguiu a controvérsia fundamentalista-modernista”. A NAE ajudou a forjar uma identidade cristã pela qual foi possível ser um evangélico sem ser rotulado como um fundamentalista, embora muitos na cultura mais ampla, tanto à época quanto agora, não consigam distinguir a diferença (...) [Esta organização] era parte de uma tendência mais ampla na América do século XX que via os cristãos divididos

menos no que diz respeito à diversas linhas denominacionais – católicos, episcopais, metodistas, presbiterianos, batistas e assim por diante – e mais de acordo com [o fato de] alguém ser conservador ou liberal (Hankins, 2008: 37). Um segundo evento destacado por Hankins é o surgimento de um pequeno quadro de erutidos evangélicos, como Carl F. H. Henry, que compuseram uma vanguarda neoevangélica que cursou doutorado em respeitadas e prestigiadas universidades, como Princeton, Yale, Harvard e Universidade de Chicago. Doutor em Filosofia (1949) pela Universidade de Boston, assim como seus outros companheiros com graduação semelhante, concluíram que os fundamentalistas separatistas não se preocupavam com a cultura no todo, e reconheceram ser isso uma deficiência. Intentando liderar a modelação de uma resposta neovangélica às deficiências fundamentalistas, Henry escreveu dois livros: Remaking the Modern Mind (ainda antes de concluir sua tese de doutorado) e The Uneasy Conscience of Modern Fundamentalism. Na primeira obra ele defende que somente uma cosmovisão cristã rearticulada (sem os excessos do modernismo ou a fraqueza do fundamentalismo) seria coerente e capaz de resgatar a cultura decaída e prevenir o colapso da civilização ocidental. No segundo livro, o autor destaca que os fundamentalistas estavam perdendo a oportunidade de “desenvolver uma perspectiva ética que conduziria a uma reforma social e renovação cultural” (Hankins, 2008: 28). A revista Christianity Today teria servido como um terceiro importante componente do Evangelicalismo emergente. Criado em 1956, este periódico se tornou o mais influente órgão para a difusão das perspectivas dos líderes Evangélicos e logo evoluiu para tornar-se a mais popular e respeitável articulação teológica evangélica e das questões culturais e políticas. A quarta importante contribuição para desenvolvimento do emergente movimento evangelical foi a fundação em 1947 do Fuller Seminary, em Pasadena, Califórnia, que teria por objetivo treinar pregadores e produzir livros e material a ser publicado em periódicos teológicos. Ao ser inaugurado, o Seminário anunciou o evento como “o início de uma nova era para o Evangelicalismo”, que conduziria o movimento à vanguarda da vida intelectual da América.

Somando-se à NAE, Carl Henry, Christianity Today e o Fuller Seminary, “um quinto e fator final na emergência do neovangelicalismo não foi um projeto, mas uma pessoa – Billy Graham” (Hankins, 2008: 41). Carl F. Henry (1980: 1060) escreveu que durante a década de 1960 “sonhava com a possibilidade de que uma ampla aliança evangélica pudesse surgir nos Estados Unidos para coordenar efetivamente um impacto nacional no evangelismo, na educação, nas publicações e na ação sociopolítica”. Esta afirmação feita por Henry, um dos reconhecidos líderes do Evangelicalismo americano, resume a expectativa criada na década de 1960 de uma unidade das operações do movimento, que pudesse de alguma forma influenciar a sociedade como um todo. O ideal de Henry era que o grupo de reformadores evangélicos do fundamentalismo anterior pudesse ser eficaz na mobilização de “uma frente evangelical unida e coesa, reminiscente do apogeu do Evangelicalismo americano do século XIX” (Marsden, 1991: 63). Era necessário que houvesse um líder que pudesse, com seu carisma, catalisar essa unidade evangelical sonhada por Henry, unificando o protestantismo dos EUA, atraindo e representando os evangélicos, inclusive sua ala mais conservadora. Na Bíblia, o livro do Êxodo apresenta uma narrativa segundo a qual o povo de Israel, deixando para trás um longo período de escravidão no Egito, teria atravessado a pés enxutos o Mar Vermelho, sob a condução de seu líder, Moisés, rumo à Canaã, a terra que lhes teria sido prometida por Deus. Por analogia, poderíamos considerar William Franklin “Billy” Graham Jr.116 como um tipo de “Moisés”, pois ele, indubitavelmente, conduziu os protestantes americanos a um novo momento em sua história. Após terem sido relegados a um silêncio obsequioso durante o período de reclusão em seus enclaves internos, os evangélicos voltariam a ter destaque no cenário americano após terem decorrido 20 anos de indiferença pública. Essa transição teve a contribuição incontestável desse referido ator religioso. Billy Graham, jovem (aos 30 anos) e carismático pregador, surge em cena e torna-se popular em 1949, passando a atrair dezenas de milhares de ouvintes diariamente e contribuindo, de modo indireto, para o retorno e visibilidade do protestantismo no espaço público do seu país. Descrevendo bem essa etapa, Reynolds (2009: 404) afirma que O pastor que realmente trouxe o Evangelicalismo ao

destaque nacional foi Billy Granham, da Carolina do Norte, que desenvolveu um movimento reavivalista conhecido como Juventude Para Cristo. Com slogans como ‘Engrenado com o tempo, mas ancorado à Rocha’, as reuniões de Graham pautaram-se pelo uso da linguagem da cultura popular – música, a presença de celebridades, jogos de perguntas e respostas, e até mesmo mágicas – mas tudo conduzindo para a pregação do próprio Graham. ‘Nós usamos todos os meios modernos para captar a atenção do não convertido’, ele disse, ‘e, então, os acertamos entre os olhos com o evangelho’. Graham conquistou o apoio do magnata da imprensa escrita William Randolph Hearst, que gostou da mistura de patriotismo e moralidade. Hearst disse laconicamente aos jornalistas para ‘colarem no Graham’, e eles o fizeram. Graham tornou-se de fato uma figura nacionalmente conhecida em 1952, em consequência de uma cruzada [evangelística] de cinco semanas, em Washington, D.C., que teve seu encerramento nas escadarias do Capitólio – o primeiro culto religioso formal realizado naquele local. Surgindo como “herdeiro da coalizão fundamentalista original da década de 1920”, Graham poderia ter sido, certamente, o catalisador da unidade evangelical, sonhada por Carl Henry. No entanto, as expectativas de Henry frustraram-se, pois Graham, que desde a década de 1950 até este início do século XXI foi a figura-símbolo da corrente neoevangélica do protestantismo, não conseguiu atrair e representar a ala protestante mais fundamentalista, mais sectária. Para Hankins, Billy Graham, apesar de ser biblicista, conversionista, crucicentrista e ativista como os demais evangélicos fundamentalistas, tinha algo de muito diferente. Segundo este historiador, aquele pastor evangélico era um homem envolvido com a cultura religiosa dominante nos EUA, isto é, cultura ecumênica e pluralista, sendo ele mesmo um agente desta vertente cultural-religiosa. Hankins (2008: 7) assinala que Graham esteve sempre envolvido Com a cultura, sendo, senão mesmo, alguém da cultura.

Além do mais, cooperou em suas cruzadas com todo tipo de cristão – liberal, conservador, protestante, católico ou ortodoxo. É digno de nota que, a partir da década de 1950, alguns líderes militantes fundamentalistas tornaram-se críticos ferrenhos de Graham, e, algumas vezes, o atacaram violentamente. Em sintonia com Hankins, Reynolds (2009: 404) declara que Diferentemente dos antigos fundamentalistas, Graham e seus companheiros evangélicos tinham uma preocupação maior em salvar almas do que com a manutenção de uma pureza teológica. Assim sendo, não se recolheram no sectarismo, mas buscaram construir pontes com as principais denominações e com a sociedade americana como um todo. A consequência inevitável do confronto de tais pontos-de-vista e práticas discordantes foi que, finalmente, como assinala Marsden (1991: 62), Billy Graham havia decididamente rompido com os fundamentalistas separatistas, havia realizado incursões nas maiores denominações, se encontrava com a popularidade em alta e permanecia praticamente o único líder evangélico reconhecido [publicamente]. Considerando a complexa diversidade do movimento evangélico, não apenas em questões teológicas, mas também políticas e sociais, Carl Henry (1980: 1060) assevera que No início da década de 1970 a possibilidade de uma significativa aliança evangélica parecia ser mais remota, e por volta do meio da década havia se dissipado totalmente. Os obstáculos surgiram não apenas por causa das diferenças denominacionais, mas também em virtude dos objetivos opostos [que possuíam]. Ao invés de se unirem em torno de algo realizável, os evangélicos muitas vezes se furtaram a tomar a melhor decisão ainda que fosse para não fazerem nada. O fato é que, invés da tão sonhada unidade, o que se percebe, então, é

a diversidade no próprio campo evangélico protestante. Esta “incrível amplitude e diversidade da subcultura evangélica” (Krapohl & Lippy, 1999: 8) é descrita por diversos historiadores do protestantismo com o uso de metáforas, como “guarda-chuva”, “mosaico” e até mesmo “caleidoscópio” (Smith, 1986: 128). Estas figuras de linguagem são apropriadamente utilizadas para indicar que os cristãos conservadores não formam um grupo monolítico, coeso. Para a perplexidade daqueles observadores externos ao movimento, que consideram os fundamentalistas, os evangélicos e seus diversos matizes como um bloco amalgamado, na realidade eles “representam tendências distintas que estão frequentemente em conflito” (Cox, 1995: 62). Desta forma, extinguiu-se a aspiração por um movimento transdenominacional evangélico, que fosse uma proposta viável e unificadora do protestantismo americano, e uma alternativa reformadora do fundamentalismo. Como diz Marsden (1991: 76), “no final da década de 1970, ninguém, nem mesmo Billy Graham, podia reivindicar ser o mediador de uma coalizão tão dividida”. De fato, o Evangelicalismo dos EUA pode ser considerado uma unidade apenas em um sentido mais amplo, no que diz respeito às questões essenciais do movimento, ou seja, “de que a Bíblia é a única autoridade em religião e que o único meio de salvação é uma experiência transformadora de vida pelo Espírito Santo através da fé em Jesus Cristo” (Wacker, 1997: 17). No demais, este movimento comporta tradições amplamente independentes, e até mesmo divergentes. Já em relação ao Fundamentalismo evangélico nos EUA, com propriedade pode se afirmar que ele jamais esteve realmente inativo depois da década de 1920, mas se amoldou às transformações operadas na sociedade. Assim sendo, invés de ser meramente estigmatizado, ele deve ser considerado, sobretudo na sua forma atual, neofundamentalista, como um movimento cuja influência veio moldando o próprio Evangelicalismo contemporâneo (Silva e Barbosa, 2019: 249). Sendo assim, estavam enganados os que criam que o fundamentalismo morreria após o Scopes Trial117, e que o novo Evangelicalismo reinaria soberano no cenário da religião protestante norte-americana. Na

realidade, a influência fundamentalista só viria a ser sentida em sua plenitude a partir da década de 1980. 112 Os “protestantes majoritários” (mainlines) receberam esta nomenclatura porque foram a maioria protestante nos EUA até meados do século XX, mas atualmente constituem a minoria. Representam as denominações mainlines norte-americanas, dentre outras, as Igrejas Presbiteriana (EUA), Episcopal (EUA), Evangélica Luterana na América, Metodista Unida (EUA), Unida de Cristo, Discípulo de Cristo e a Convenção Batista Americana, que juntas compõe as chamadas “sete irmãs”. São exemplos de igrejas evangélicas clássicas norte-americanas, dentre outras, a Igreja Presbiteriana na América, a Convenção Batista do Sul dos EUA. Igreja Cristã Reformada na América do Norte, Igreja Presbiteriana Americana, Igreja Assembleia de Deus (EUA) e Igreja Luterana (Sínodo Missouri). Green, John. “Evangelical vs. mainline protestants”. https://www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/shows/jesus/evangelicals/evmain.html [29.04.2004] (acesso em 31.05.2020); Burge, Ryan P. & Dupr, Paul A. “What is a mainline protestant?”. https://religioninpublic.blog/2018/06/28/what-is-a-mainline-protestant/ [28.jun.2018] (31.05.2020) e Brsdshaw, William B. “Mainline churches: past, present, future”. Huffpost. https://www.huffpost.com/entry/mainline-churches-past-pr_b_4087407 [23.01.2014] (acesso em 31.05.2020) 113 Quando os cristãos mencionam a “inerrância da Bíblia” estão se referindo à convicção de que a Bíblia não contém ensinamentos falsos ou erro. Ou seja, a crença de que, em relação aos manuscritos originais, a revelação de Deus é perfeita e sem erro, doutrinariamente, historicamente, cientificamente e filosoficamente (Cf. Patterson, 2007: 58). 114 Jerry Lamon Falwell (1933-2007) foi um pastor fundamentalista evangélico e televangelista que durante a maior parte de seu ministério pastoral foi um batista independente. Ele foi o pastor fundador e presidente da Thomas Road Baptist Church, uma megaigreja situada em Lynchburg Vírginia (EUA) e da Liberty University, em 1979, na mesma cidade. Falwell foi também o co-fundador (com o ativista político conservador Paul Weyrich) e mais destacada liderança da organização norte-americana de lobby político, e de matriz evangélica denominada Moral Majority, extremamente atuante entre os anos de 1979, quando foi fundada, e 1989, ano de sua dissolução (Silva & Barbosa, 2019: 13,15). 115 O educador, autor e teólogo Carl F. H. Henry é amplamente conhecido com um dos principais pensadores evangélicos americanos. Foi o editor-fundador da revista Christianity Today. É autor de cerca de 35 livros - dentre eles The Uneasy Conscience of Modern Fundamentalism (1948) - muitos dos quais influenciaram decisivamente o molde do cristianismo nos EUA (Hankins, 2008: 37,38). 116 O pastor batista norte-americano William Franklin “Billy” Graham Jr. (1918-2018) foi destacado membro da Convenção Batista do Sul dos EUA, e conselheiro espiritual de diversos presidentes de seu país. Graduado pelo Florida Bible Institute e pelo Wheaton College tornou-se evangelista pelo Youth for Christ (uma organização que tinha por propósito alcançar jovens no ensino médio, superior e nas Forças Armadas). Tendo a oportunidade de viajar por todos os EUA pregando, bem como pelo continente europeu e Grã-Bretanha, “desenvolveu uma reputação nos círculos evangélicos como um dos mais dotados pastores jovens da geração” (Hankins, 2008: 41,42). Fundou em 1950 a Billy Graham Evangelistic Association, na suas chamadas “Cruzadas Evangelísticas” esteve em 185 países e alcançou um número de aproximadamente 210 milhões de pessoas. Graham, que já vinha padecendo de há anos de doença de Parkinson, câncer de próstata, fraturas no quadril e pélvis, faleceu em seu lar em 2018, aos 99 anos, (Barata, 2018; Balmer, 2004: 80). 117 O Processo Scopes consistiu no histórico julgamento de 1925 no qual o professor de biologia John T. Scopes foi criminalmente acusado de violar a lei estadual do Tennessee, ao ensinar a Teoria da Evolução. A questão central debatida no tribunal foi sobre a legalidade ou não do ensinamento de tal teoria em escolas públicas naquele estado da federação. A legislatura do Tennessee havia recentemente votado a ilegalidade desta prática. Apesar de ser um julgamento estadual, estavam em jogo as

implicações relativas à educação pública em outros lugares do país. A questão principal era se as juntas escolares ou governos estaduais tinham ou não legitimidade para decidir, com base em orientações religiosas, qual parte do conhecimento científico devia ser excluído do currículo escolar (Martin, 1996, p. 15).

X. “Palavras de Morte e Não de Vida“: O Estudo dos Fundamentalismos e seu Acesso ao Primeiro Testamento Elcio Sant’Anna O verdadeiro crente não pode descansar enquanto o mundo inteiro não se ajoelhar. Não é óbvio para todos, diz o devoto, que a autoridade religiosa está acima de todos e que aqueles que se recusam a reconhecer isso abrem mão do direito de existir? Christopher Hitchens Introdução. Os fundamentalismos de corte protestantes são um dos fenômenos político-religiosos mais vigorosos e persistentes que se manifestaram entre os séculos XIX e XXI. Na verdade, mesmo depois que já tivessem sido alvo de especulação e pesquisa pela literatura especializada, só recentemente passou ser objeto de preocupação de forma geral da sociedade contemporânea. Talvez, a sua discussão tenha alcançado seu ápice aqui no Brasil, nas eleições de 2018, com a confluência da ascensão da extrema direita ao imaginário popular e a aproximação de atores sociais de estrato religioso, mormente vindo daqueles meios que gravitavam à esfera do neopentecostalismo brasileiro e outros grupos conservadores. Este esforço consiste em dar uma contribuição a partir da antropologia da religião e outras iniciativas de suas cercanias, para entender a questão de como é, e quais são as razões pelas quais os fundamentalismos hodiernos têm se servido do Primeiro Testamento 118 nos dias atuais. Considerando os aspectos em que estes grupos têm se valido de acessar as suas Escrituras é importante saber: como o mecanismo de defesa de seu sistema de crenças tornou-se também ponta de lança de seu ataque à sociedade contemporânea como um todo? Foco-me nestas duas questões para entender de que maneira estes fundamentalismos buscam estabelecer um estágio hegemônico na cultura e sociedade brasileira para as próximas décadas. Por esta razão desejei tratar a temática a partir da

teoria de dois destacados antropólogos em suas obras sucessivamente: Jack David Eller em sua “Introdução à Antropologia da Religião” e Stanley Barrett em sua “Antropologia, guia do estudante...”, bem como também na etnografia de Carly Machado, entre outras fontes. Pensando na “ideologia fundamentalista”119 a partir da metáfora dos conflitos político-bélicos, é possível com bastante acerto dizer que os fundamentalismos de matizes evangélico-brasileiros têm utilizado em grande monta o Primeiro Testamento, livro sagrado de judeus e cristãos como armamento e munição para uma agência contundente em termos de discurso que não apenas “evangeliza”, como também se dispõe de forma apologética, a buscar, incapacitar e interditar pessoas de outros cenários, que assumem posicionamentos discordantes, não admitindo qualquer tipo de negociação. Por esta razão é importante mesmo que de modo esquemático, que se possa apresentar tipologias ou mesmo fenômenos que consigam tratar das diversas cores dos fundamentalismos pregressos e hodiernos, para que a compreensão dos grupos religiosos flamejantes, contemporâneos na sociedade brasileira. Um caso digno de nota. Há uma razão considerável agora em parar a fluidez do argumento que intentei até aqui. É necessário verificar a efetividade de movimentos fundamentalistas instalados hoje em dia, que têm suas raízes em outros cenários religiosos. Por isto, é interessante oferecer um exemplo de um caso etnografado de expressões religiosas presentes na cidade do Rio de Janeiro: o relato da Tropa de Louvor do Batalhão de Operações Especiais Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (BOPE) apresentado pela Profa. Carly Machado, em seu artigo, “Morte, perdão e esperança de vida eterna: ‘ex-bandido’, pentecostalismo e criminalidade no Rio de Janeiro”: Outras brigadas evangélicas formadas por homens convertidos circulam pelo Rio de Janeiro ‘lutando o bom combate e guardando a fé’. Mas alguns, além das suas Bíblias, carregam também seus fuzis. Esse é o caso da Tropa de Louvor, ministério evangélico do Batalhão de operações Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Rio de

Janeiro. Autodenominado ‘heróis anônimos’, o ministério Tropa de Louvor referência o início de suas atividades aos encontros da comunidade Evangélica do BOPE, oficialmente instaurada em 2007, cujas reuniões aconteciam na sede da corporação. Esses policiais evangélicos eram, àquela época denominados ‘caveiras de Cristo’. Criada em 2009, a banda fez em 2010 uma sequência de shows em comunidades atingidas pelas intervenções das UPPS entre elas o Borel, na Tijuca, Pavão – Pavãozinho, Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, e morro da Providência, na Gamboa. Em 2010 foi realizado o lançamento do CD do grupo, bem como diversas reportagens sobre suas atividades. (...) O lema do Bope é ‘Vitoria sobre a morte!’ Seu canto de treinamento é em seus versos: ‘Homem de preto, o que é você faz? Eu faço coisas que assustam Satanás. Homem de preto, qual é sua missão? Entrar pela favela e deixar corpos no chão’. (...) Entre os seus pedidos, o policial clama por sua honra e pede que nunca envergonhe sua fé, sua família e seus camaradas. Pede coragem, sabedoria, força e conclui: É pelo Senhor que nós combatemos/E a ti pertence o louro por nossas vitórias/Pois teu é o Reino, o poder e Glória para sempre/Amém! (...) (...) No que diz respeito a matar, a ideia da ‘encarnação do mal’ é decisiva na solução das tensões morais quanto às exigências da prática policial na perspectiva desses policiais evangélicos. ‘A luta não é contra a carne, mas contras as potestades’, afirma um dos sargentos da Tropa de Louvor. Atingir a carne è apenas um meio de atingir as potestades, os espíritos do mal. ‘Que Deus nos use como canal de bênção’. E essa bênção é sutilmente posicionada

entre matar ou atingir gravemente quem deve morrer para deixar viver ‘a quem de direito’. Essa é a missão do BOPE. (...) A missão do ministério religioso da Tropa do Louvor ainda vai além do trabalho secular da polícia da cidade: cumprida a missão do Bope, eles vão buscar as almas que esperam para ser salvas. ‘Estes homens aqui, treinados para tirar vidas, ‘silenciar o oponente’, esses homens agora ganham almas’. Daí os cultos nos locais ocupados pelo projeto de pacificação do governo do Estado do Rio de Janeiro. ‘Ocupação e oração’, nos termos da tropa. Depois de entrar com armas em punho, ‘salvando os territórios’ dominados pelo tráfico e ‘libertando-os’ dos opressores, os policiais entram nesses mesmos territórios com seus cânticos e uma mensagem de salvação para aqueles que ali ficaram e que podem se libertar também do julgo moral da criminalidade através da conversão a Cristo e ao Estado (Machado, 2015: 462-466). A narrativa acima pode perfeitamente ser vista como uma expressão do fundamentalismo no tecido social. Os policiais evangélicos estão atuando na cidade de Rio de Janeiro com base em uma premissa que não existia nas versões anteriores dos fundamentalismos que vieram a estar em voga. Estes fundamentalismos assumem as atitudes de plasmar a sua realidade com os valores de seu sistema de crenças. Por isto, estes mesmos atores sociais, religiosos não se abstêm de atingir seus objetivos neste contexto. Não acreditam em termos práticos em uma redenção futura, prometida numa pátria celestial. Ao contrario, existe um novo elemento que lhes faz ostentar uma crença de que são relevantes neste mundo. Não podem esperar uma “parousia” (a volta de Cristo) que lhes tire das mãos a capacidade de mudar este mundo aqui. Preferem acreditar que devem concentrar-se em “tarefas que dominam e que podem experimentar na vida aqui”. O que Zygmunt Bauman chamaria de “ideia de autossuficiência” (Bauman, 1998: 213). Este elemento novo, que talvez seja necessário investigar nas expressões históricas fundamentalistas do passado a fim de trazer luzes

para a situação vivida nos dias de hoje. Mas, além disso, só pude perceber este aspecto dos fundamentalismos atuais, após ter aprendido a lição dada por Stanly Barrett em seu guia do estudante à teoria e ao método antropológico intitulado por Antropologia, 2015. Depois de descrever a Antropologia americana e da Grã-Bretanha, Barrett diz que: “a distinção entre as disciplinas é insatisfatória e puramente analítica, portando não havendo dissociação entre crenças e comportamento no mundo real” (Barrett, 2015: 23-24). Ainda mais, não havendo necessidade de se propor um distanciamento entre o “sistema de crenças e o sistema social”. Desta maneira é que deve se perceber que os fundamentalismos contemporâneos estão entrelaçados com o tecido social, de modo que se possa abrangê-los dentro da dinâmica social, podendo talvez em um futuro próximo verificar se tais fundamentalismos obedeceriam dinâmicas internas de marcadores sociais tais como etnia, classe, gênero etc... Todavia, este é um elemento que deverá ser visto novamente em outra oportunidade. A semente dos fundamentalismos. O sociólogo israelense Shmuel Noah Eisenstadt em seu livro “Fundamentalismo e modernidade”, recorreu à ideia de Karl Jasper para falar do que em sua opinião representaria as raízes do que chama de fundamentalismo. Foi após a formação das comunidades religiosas da Era Axial é que se constituíram os movimentos que segundo ele, podem ser chamados de fundamentalistas (Eisenstadt, 1997: 11). Naquele contexto, “constituíram-se e institucionalizaram-se” novas visões ontológicas, que se aperceberiam da realidade dentro de uma estrutura de “tensão básica entre ordem transcendental e a ordem mundana” (Eisenstadt, 1997: 3). Isto teria acontecido em Israel, na Grécia antiga, na Índia, no Irã e até na China imperial. 120 Segundo Shmuel Eisenstadt esta nova configuração representava uma série de rupturas revolucionárias – rupturas que se colocam “entre as mais significativas da história da humanidade” (Eisenstadt, 1997: 3). Houve uma percepção dissonante vista como um “hiato entre ordem transcendente e a ordem mundana”. Certos elementos antes cristalizados foram se esmaecendo, tal como a figura do rei-deus, a encarnação “quer da ordem cósmica, quer da ordem terrena” (Frazer,1994), que perdeu seu prestígio para se tornar apenas um governante secular, perante uma

ordem superior (Eisenstadt, 1997: 5). Neste contexto não houve mais um rei, um mediador entre a ordem secular e a universal, tornando-se então, hegemônicos os grupos promulgadores de uma lei cósmica diante das quais até mesmos os governantes eram sujeitos (Eisenstadt, 1997: 5-6). Desta maneira, o tecido sociopolítico tornou-se mais tenso de maneira tal qual nunca fora. Uma contradição insuperável passou a ser vivida pelas sociedades da Era Axial (Eisenstadt, 1997: 8). As “utopias, escatologias, e as concepções de realeza juntamente com o surgimento de grupos sectários ‘evoluíram’ para formarem o que Eisenstadt chamou de ‘esferas de salvação’” (Eisenstadt, 1997: 13). É nesta conjuntura que passou a surgir magos, profetas e messias, pessoas que de alguma maneira buscavam precisar uma leitura do tempo e do além, que provocasse uma conjuminância entre as duas esferas sempre opostas.121 Estes foram elementos que perfazem as raízes e as sementes dos movimentos fundamentalistas da antiguidade: a) um hiato entre realidade transcendente e cotidiana; b) grupos moduladores da dissonância vivida pelas sociedades concretas; e c) e adoção de uma atitude contundente, mais adequada aos sectarismos protofunfamentalistas e posteriormente fundamentalistas. Fundamentalismos pregressos (protofundamentalistas). Com base nos elementos elencados acima é possível verificar que existem condições que puderam propiciar o surgimento de movimentos religiosos com viés político, que representam uma ruptura com o status da sociedade vigente, para entender os grupos protofundamentalistas também é necessário olhar para os grupos heterodoxos. Sem que se dê relevos aos grupos sectários de forma geral não se entenderá de que maneira estes grupos estão interagindo. Somente dentro de uma estrutura relacional é que se poderia entender o que seriam os grupos protoortodoxos.122 Alguns destes grupos podem ser facilmente verificados na história, outros precisam ser observados mais amiúde em sua trajetória (Campbell, 2004; Eliade; Couliano, 1994): Pré- XXVI a Axial VIII AEC

Índia Hinduísmo

Religiões da Era Axial China Persia Formas Culto dos Xamânicas ajudas e devas

Israel Javismo

Grécia Paganismo

Henoteísmo Era Axial

VIII a II AEC

Budismo Quietismo Sincrético

Politeísmos

Politeísmo

Monolatria étnica Judaísmo

Confucionismo Zoroastrismo Taoismo Racionalismo Monoteísmo Monoteísmo Quietismo Sincrético Bíblico

Racionalismo Racionalismo Monoteísmo Racionalista

Com base nas informações levantadas acima é possível entender a relação que Shmuel Eisenstadt e Karen Armstrong fazem entre a importância da Era Axial com os movimentos religiosos que apresentaram uma alteração nos seus fundamentos. Até mesmo grupos que são apontados como adotando uma prática monolátrica sofreram alterações em sua forma religiosa. Religiões que antes tinham um perfil politeísta dão uma guinada em suas convicções. Trata-se uma virada radical, uma mudança de paradigma significativa.123 Ainda deve ser dito, que segundo Joseph Campbell em sua obra Mascaras de Deus: mitologia ocidental, existe uma constante nestas modificações, todas as mudanças de formas politeístas para feições monoteístas, mesmo que estes monoteísmos não sejam totalmente coincidentes (Campbell, 2004; 202). Alguns estilos de reflexão e de vida são o que Campbell chama de monoteísmo sincrético (Zoroastrismo e Racionalismo ocidental), outros modos religiosos de “monoteísmos exclusivos” (monoteísmo bíblico - Judaísmo). O primeiro grupo é formado de religiões monoteístas sincréticas que “são mais inclusivas, cosmopolitas e abertos”. Já o segundo grupo é formado de monoteístas exclusivistas, que somente aceitam o deus cultuado pela própria comunidade, nomeados de étnicos (Campbell, 2004). Havia movimentos anteriores que tinham pretensões monoteístas como antigo culto de Marduk no Império neobabilônico que buscava uma proeminência através de estratégia diplomática e “generosidade” com vista a se tornar o “único Deus verdadeiro” (Whight, 2012: 114). Os deuses dos povos conquistados eram aglutinados em seu panteão. Exatamente como no caso do javismo étnico dos antigos hebreus, quando se menciona em diversas passagens uma “assembleia de ‘elohim”124. Até certo ponto na história da religião de Israel os deuses são postos em comparação a Jeová,125 indicando que se tratava de deuses de outros povos. Somente em data posterior é que as referências a outros deuses os mencionam como “falsos” ou “nada”. 126

Osvaldo Luiz Ribeiro em seu ensaio: “Seis teses sobre o fundamentalismo: provocações iniciais” adverte aos seus leitores que o fundamentalismo é muito mais antigo que a modernidade, remontando “primórdios da religião”. “Trata-se de uma reação da cultura prémoderna à cultura moderna” (Ribeiro, 2017: 146). Em sua 3ª tese afirma que este tem o elemento político que é “importado direto do monoteísmo” (Ribeiro, 2017: 149). Assim os impulsos do fundamentalismo devem seu dinamismo a “uma atitude religiosa milenar” que remontaria ao monoteísmo judaico (Ribeiro, 2017: 149150). O judaísmo teria surgido dentro da conjuntura da Era Axial. O interessante é que o historiador britânico Paul Johnson em sua História dos judeus dá uma data aproximada para o surgimento do movimento religioso. Segundo sua estimativa o profeta Jeremias seria o primeiro judeu (626-596 a.C) pois dele a religião que se desencadeou era “ da nova ortodoxia: o judaísmo” (Johnson, 1995: 89,97). É neste contexto que entre os judaítas começou a surgir um movimento contra-hegemônico, um movimento de resistência inspirado no carisma dos antigos profetas, desempenhado também por intermédio dos profetas-cantores (Zabatieiro, 1988: p.40.). Estes eram menestréis que receberam e encarnaram a consciência dos cativos (Sant’ana, 2007: 74). Por isto mesmo, poder-se-á falar de movimento de resistência acontecido entre os escravos (Sant’ana, 2007: 86). E é neste cenário que o monoteísmo imerge das vicissitudes dos cativos na Babilônia. Como escravos sagrados, os judaítas precisaram revisar o sentido a que foram constituídos em meio à escravidão promovida pela Babilônia que precisava ser desconstruído pela comunidade dos cativos. É desta maneira que a memória dos atos de Jeová na história foi revivida e remodelada; 127 o judaísmo tornou-se a repaginação do antigo javismo. O judaísmo se reorganizou em face às crises políticas que a nação de Judá vinha passando entre os anos 597-539 a.C. A partir do ano 621/20 a.C., houveram importantes acontecimentos que serviram para pavimentar o surgimento do judaismo durante a diáspora judaíta. Um dos fatos mais marcantes foi o décimo oitavo ano do reinado de Josias, exercido entre anos 638-608 a.C. O jovem rei Josias governou no lugar de seu pai, Amom (Beek,1967:101;

Metzger,1989:111; Crüsemann, 2001: 297-298 ). Este material parece ter alargado os propósitos do rei de modo que suas ações cirúrgicas ganharam um lastro de programa de governo de grandes proporções para todo o reino (Sicre, 1999:135-154). A reforma conduzida incialmente por Josias não havia empolgado o profeta Jeremias. O profeta é o primeiro a vaticinar que as elites de Israel poriam tudo a perder com a sua arrogância fugindo de Babilônia para o Egito (Galleazzo, 2006: 79). Por isto, este era tido como “executor do juízo de Deus, à espera do misterioso inimigo que vem do norte”. 128 Jeremias desenvolveu o discurso de que é necessário “uma relação inteiramente pessoal com Deus, (...) uma entrega profunda do homem todo a Deus...”, (Sellin; Fohrer, 2007: 551. 567). Um grupo revisionista da história de Israel adotou a opinião de Jeremias e reformou as narrativas de Israel. Esta escola foi chamada por pesquisadores de “movimento deuteronomista”, pela influência que a “Lei Deuteronômica” teve no período josiano de Judá (Lohfink apud Zenger, 2003: 169). Estes são elementos fundantes de um monoteísmo ético judaico. A norma deuteronômica conjugada à profecia de Jeremias, articulada a uma teologia gestada no cativeiro – a do Segundo Isaías (SANT’ANNA, 2007), são os fundamentos do protofundamentalismo judaico. É o “monoteísmo absoluto, excludente ou clássico mais contundente no período do pós-exílio” (Reimer, 2009: 49). Foi no mesmo período em que a composição definitiva da Torá se deu. E com isto a “Lei Deuteronômica” tornou-se o seu centro de gravidade visto em Deuteronômio 13,13-16. 129 É importante considerar que de posse da “Lei Deuteronômica” os monoteístas adquiriram seu sistema de crença que lhes permitiria fazer a sua leitura de mundo. Aqui é encontrado o elemento que levou a Antônio Magalhães afirmar que o monoteísmo trata-se de um “tipo de religião que traz consigo uma grande herança de antirreligião” (Magalhães, 2008: 112). Todo um “grande acervo ético é direcionado à exclusividade de seu Deus único” (Magalhães, 2008: 113). Todavia, ainda faltaria um elemento catalizador que lhes permitiria a publicização das leis de Israel.

Por volta do ano 450 a.C., segundo o Livro de Esdras,130 o rei Artaxerxes determinou a Esdras que de posse da “sabedoria do seu Deus” nomeasse magistrados e juízes para atuar sobre o povo de Judá. Com isto a lei de Israel teve o amparo da lei infinita persa (MILLES, 1997: 422). É neste período que a “Lei Deuteronômica” passou a ser sinônimo de a lei de Esdras - a Torá. Esdras se tornou o portador da lei dada por Deus (Crüsemann, 2001: 12, 156). Esdras foi apresentado como o grande Escriba, escrivão e intérprete da lei131, assumindo o papel de sua interpretação (Crüsemann, 2001: 156). O judaísmo passou a ser a religião da lei de Deus. Por isto as Escrituras judaicas são textos que na realidade funcionam como “arquétipos” de todos os fundamentalismos que surgiram entre os séculos XIX a XXI de matriz judaico-cristã. O rigor religioso destes grupos permanece na base destes movimentos que até hoje se estabelecem. Fundamentalismos clássicos. A pesquisadora Karen Armstrong surpreendeu os seus leitores quando mencionou o que chamou de Segunda Era Axial (Armstrong, 2001: 197). Na verdade, esta ideia de uma nova Era Axial é questionada pelo sociólogo Robert Bellah fazendo referência ao que alguns afirmaram que: “estamos no meio de uma segunda era axial”, onde continuou dizendo: “Talvez esteja cego, mas não a vejo”. As suas razões se dão em razão do fato que o próprio Karl Jasper não estava convicto desta ideia. E o que para Bellah era mais uma “crise de incoerência e uma necessidade de integrar (...) as dimensões surgidas desde a Era Axial” (Bellah, 2011: xix). Wofgang Schluchter, todavia, acredita que apesar de não haver um movimento cultural múltiplo na modernidade fundado em experiências paralelas em diversas culturas como se deu entre os anos 800 a 200 a.C., há no entanto um “princípio axial moderno”, “contra-hegemônico”, antieurocêntrico, ou o que Jasper chamava de “autotranscendência” (Schcuchter, 2017: 41). A própria modernidade estava se deslocando para esta direção, não sendo assim, uma ruptura com o passado. Talvez isto explique porque Zygmunt Bauman diga que “o fundamentalismo religioso é um filho legítimo da pós-modernidade” (Bauman, 1998: 228 – negrito E.S.).

Penso porém, que os fundamentalismos estariam mais próximos do que o britânico Antony Giddens diz ser uma “modernidade reflexiva”, uma “destruição criativa de toda uma era”, então a “vitória da modernização ocidental” (Beck, 2012: 12). Se para Karen Armstrong a religião que poderia se depreender daí seria “um empreendimento criativo de uma busca de fé moderna (e pós-moderna)” (Armstrong, 2001: 197), para Urich Beck pode ser mais uma “fé autodestruidora, reflexiva fruto da radicalização da modernidade” (BECK, 2012: 44). Diante do declínio do Ocidente e demais fatores, “os movimentos religiosos produziram versões mais radicalizadas” (Gideens, 1991: 4755; 2012: 281-282). É sempre bom lembrar que o termo “radicalização” também pode de vir a significar “ir em busca da raiz”. Nas primeiras décadas do século XX, as denominações de matriz protestante norte-americana, firmaram-se naquilo que consideravam que fosse o “mais fundamental na fé cristã, isto é, naquele mínimo de convicções”. Embora insatisfeitos com a designação fundamentalistas, pois preferiam serem chamados apenas de cristãos (Hordern, 1974: 64), havia entre esses o desejo de estabelecer uma autoridade suprema que viesse a dar conta das incertezas vividas pela média da população (Bauman, 1998: 228). O termo fundamentalismo foi utilizado pela primeira vez pelo Dr. C. C. Laws editor do periódico “Watchman-Examiner” (Hordern, 1974: 64). É importante vir a entender que a alcunha de fundamentalista, inicialmente não era tida como pejorativa (Nicodemos, 2011). Posteriormente, preferiu-se ser chamado de “Cristianismo conservador” (Hordern, 1974: 65). Não é possível deixar de mencionar também o material que se tornou a base doutrinal do fundamentalismo que é a obra “The Fundamentals: a testimony to the thuth”, [Os fundamentos: um testemunho para a verdade], [2005]. Trata-se de uma obra em doze volumes, com 90 ensaios, escritos por 64 autores entre os anos 1910 e 1915 pelo Instituto Bíblico de Los Angeles (Rodrigues, 2011: 19). Já no prefácio de The Fundamentals é dito que a intenção da obra é produzir: “a new statement of the Fundamentals fo christianity [uma nova declaração dos fundamentos do Cristianismo] (The Fundamentals, 1910: 11 – trad. E.S.). Na compreensão de Paulo Augusto Nogueira tratou-se de um

esforço de uma grande reforma do protestantismo (Nogueira, 2002: 35). O protestantismo na posição assumida pelo fundamentalismo já tinha se esgotado como esforço de retornar às bases do cristianismo. Segundo Willian Holdern, os fundamentalistas adotaram um programa de ação que tinha por objetivo retirar todos os agentes religiosos tidos como liberais teológicos de instituições eclesiásticas, seminários teológicos e estudantes postulantes à ordenação ministerial (Hordern, 1974: 65). A data marcante para a controvérsia fundamentalistas x liberais se deu no ano de 1929, quando o fundamentalismo foi rejeitado em diversos contextos das instituições religiosas como um todo (HORDERN, 1974: 65). Então John Gresham Machen, fundou com seu discípulo, Carl McIntire, em 1929 Westminster Theological Seminary – WTS, (Seminário Teológico Westminster - STW), na Filadélfia (Guimarães, 2014: 33). O antagonismo que o fundamentalismo imprimiu contra o chamado modernismo teológico foi bastante abalizado na Teologia Sistemática de Charles Hodge, catedrático do departamento de teologia da Princeton University, lançada em 1873 e 1874 (Armstrong, 2001: 168). Hodge afirmou que a “religião tem que lutar por sua existência contra uma vasta classe de cientistas” (Armstrong, 2001: 68). Citando Hodge, David Jack Eller afirma que “cada palavra das escrituras era literalmente verdadeira, e não alegórica ou simbólica” (Eller, 2018: 445). Segundo o que se sabe, Hodge foi o primeiro comentador cristão do pensamento darwinista, afirmando que “o sistema é totalmente ateísta, e, portanto não pode manter-se”. Além disto, Hodge reafirmou o que o texto de Gênesis 1,1 trata peremptoriamente a respeito da criação132 (Hodge, 2001: 609). As ideias inflamadas de Charles Hodge foram tomadas como norte para o pensamento conservador cristão, de modo que a sua obra passou a servir de base para a formação teológica dos anos vindouros, uma vez que dizia: “A tarefa do teólogo consiste não em buscar significados além das palavras” (Armstrong, 2001: 168 - negrito E.S), mas deveria “organizar o seu pensamento a luz da Palavra de Deus” (Armstrong, 2001: 168). Desta forma, Hodge pregou o primado da Bíblia sobre as compreensões humanas. Para os fundamentalistas o liberalismo conduziu a igreja há um passo

“do fracasso e à apostasia” (Nogueira, 2002: 35). Por isto, era necessário reverter a dependências dos instrumentais do pensamento moderno da leitura bíblica protestante. Para estes protestantes esta leitura deveria ser a “pedra fundamente” de todo o cristianismo (Nogueira, 2002: 32). Em 1964, Carl Mcintire se opôs abertamente ao descendente de irlandês, católico e liberal John F. Kennedy, apoiando o ultraconservador Barry Goldewater, seguidor do senador John McCarthy (Gallindo apud Guimarães, 2014). Entre os membros da Nova Direita estava Jerry Falwell o mais famoso pregador televisivo da época, que em 1979 criou a organização Nova Direita Cristã (NDC), chamada também de Moral Majority (Maioria Moral) (Guimarães, 2014: 34-35). Desde então este apoio dos Estados Unidos a Israel ficou claro na sua política internacional. A nação americana adotou uma visão de oposição às nações do Oriente Médio. A matéria de capa da revista Newsweek de 10 de março de 2003, no contexto da guerra contra o Iraque, foi “Bush and God”, que trás a imagem do presidente “George W. Bush, orando, cabeça baixa, olhos fechados” (Castro, 2003: 9). Alexandre Carvalho de Castro diz que aquela era a síntese do fundamentalismo do Século XXI. Naquela imagem, religião e política estavam indistintamente apresentados (Castro, 2003). Desta forma os fundamentalismos que se estabeleceram nos USA desde o século XIX têm sua base na leitura bíblica que visa resgatar uma cultura tradicionada e gestada no desejo de se apresentar ao mundo como únicos portadores da verdade que estabiliza a vida em meio as inseguranças do tempo moderno. Todavia é importante perceber que houve em determinado momento uma guinada no movimento fundamentalista estadunidense com consequências para o Brasil. Neofundamentalismos reformistas: Como já foi dito, a Bíblia é tanto alimento como mola de propulsão destes grupos, e ainda mais o Primeiro Testamento. Agora é forçoso ter em mente que os fundamentalismos na ambiência contemporânea, apresentam aspetos diferenciados que não devem ser confundidos sobre pena de não entender a sua utilização da Bíblia no espaço público. É possível criar um quadro de referência que ajude a fazer uma interpretação da atuação dos neofundamentalistas contexto atual, observável abaixo (Souza, 2017; Eller, 2018):

VIII AEC - XIX Décadas de 1910 – 1950 Década de 1960 - 2010

Neofundamentistas Monoteísmo Bíblico Fundamentalismos Clássicos Neofundamentalistas Reformistas Aberto Interdenominacionais Maioria Moral Guerra Cultural Pós-Milenaristas

Neofundamentalistas Reconstrucionistas Fechadl Separatista Nova Direita Cristã Educação Homes-Chooling Pré-Milenaristas

Olhando o quadro acima são observados dois grupos fundamentalistas que vêm se diferenciando através de sua trajetória. São eles os reformistas e os reconstrucionistas, que podem ser vistos como tendo base nos grupos protofundamentalistas com os contornos de uma religião axial. 133 Também os fundamentalismos clássicos a partir dos anos 10 e 20 do século XX, tais movimentos protestantes estadunidenses como as igrejas batistas do Sul, as igrejas batistas regulares, segmentos da Igreja Presbiteriana da América, as igrejas metodistas entre outros, que aqui foram chamados ou de fundamentalismos clássicos, ou estadunidenses (Nogueira, 2002; Rodrigues, 2017: p.19; Baptista, 2017: 177-193; Souza, 2017: 52). Para o entendimento do que ocorreu com surgimento do neofundamentalismo reformista é necessário aventar o que pode ser considerado como a segunda geração de professores e alunos do Westminster Theological Seminary –WTS, (Seminário Teológico de Westminster – STW). Uma nova geração de teólogos mudou o perfil dos grupos fundamentalistas dos Estados Unidos da América e as suas ações na esfera pública. Este foram os teóricos do neofundamentalismo, Francis Schaeffer e Gary North (Souza, 2017: 14). Roger Olson dividiu o fundamentalismo norte-americano em duas fases: 1) a primeira moderada; e a 2) a segunda de “caráter extremista e politicamente articulado” (Olson apud Malheiros, 2015: 258). Isaac Malheiro afirma que os neofundamentalistas superaram o primado da separação entre Igreja e Estado tão determinante dos “fundamentalismos originais” (Malheiros, 2015: 261). Estes não devem ser considerados como um movimento

exclusivamente teológico (Malheiros, 2015: 261). Estes grupos se viam ameaçados com o avanço de diversas tendências de moral-liberal que se estabeleciam em seu contexto e assustados com o “declínio das denominações protestantes mainstream” provocando ações de reconquistas por parte de igrejas fundamentalistas (mormente batistas do Sul), agora unidas em uma confluência com pentecostais e carismáticos (Mateo, 2011: 3). Segundo Andréa S. Souza um legado do Seminário Teológico Westerminster em sua teologia política foi desenvolvido a partir do teólogo reformado, holandês Conélius van Til, que pode ser assentado como sendo as correntes reformistas e reconstrucionistas (Souza, 2017: 4). Estas duas vertentes dos neofundamentalismos produziram uma releitura no ensinamento de van Til, uma atenuando as aplicações do pensamento vantiliano e a outra levando às últimas consequências de seu pensamento. Este antagonismo fundamentou a produção de uma agenda pública moral e política antes relegada a um segundo plano difuso pelos fundamentalistas clássicos. Entre os anos de 1960 e 1970 os neofundamentalistas assumiram uma estratégia de atuação no campo das “práticas culturais” com um movimento teológico e sociopolítico. Mas é necessário entender como movimentos a princípio separatistas, avesso a atividades “mundanas” foram se tornando ativistas atuantes no “plano público”? Francis August Schaeffer sendo pertencente a uma ala teológica e sociopolítica mais moderada da escola de Westminster, reinterpretou a dicotomia dura de Cornelius van Til, constituindo-se assim o representante principal de uma nova escola. Em Conerlius van Til, a separação entre o mundo cristão e não cristão encontrava-se bem marcada. Neste mesmo arcabouço onde a fronteira era tida como bem pronunciada, Schaeffer a via como borrada. Assim, os campos sociais, políticos poderiam ser avançados dentro uma estratégia de “guerra cultural” (Souza, 2017:80). Desta forma, a teologia de van Til sofreu um alargamento importante. Schaeffer foi um aluno de van Til em apologética cristã influenciada pela visão neocalvinista holandesa de Abraham Kuyper que admitia ser um sistema em que todas as áreas da vida estavam dentro do domínio de Deus. Por isto instituiu seu próprio pensamento articulado três aspectos:

“1) inerrância da Escritura; 2) a apologética pressuposicional; e 3) as crenças calvinistas aplicadas a todas as áreas da vida e do pensamento (Edwards apud Souza, 2017:80). Francis Schaeffer, neste ponto assumiu uma atitude antisseparatista, opondo-se a van Til, buscando promover “diálogos com grupos de atores antagônicos que poderiam absorver uma agenda moral no espaço público”. A ele não importava considerações sobre interesses difusos que poderiam sofrer algum tipo de repto, para o que considerava ser um bem maior. Esta aproximação a grupos de “fora” o colocou em rota de colisão com grupos mais conservadores. Por isto mesmo, Schaeffer se interessou em apresentar uma visão que abarcasse temas como filosofia, artes, música, cultural geral (Albiero, 2011: 12). Seu interesse não se dava em apenas em versar sobre estes temas, como também encontrar interlocutores que estivessem dispostos a dialogar. E com isto concebeu a percepção do “declínio do pensamento moderno através do abando das verdades universais” (Albiero, 2011). Francis Schaeffer criou um ambiente que pudesse exercer influência sobre diversos atores sociais, profissionais, estudantes interessados, e entusiastas por seu pensamento. Tal iniciativa se concretizou na instituição criada por ele e sua esposa Edith Schaeffer: o projeto L’Abri Fellowship (Abrigo) em 1955. Entre os jovens que participaram de seus encontros esteve o jovem Billy Graham (Mendes, apud Albiero, 2011: 25, n.13). Um dos conceitos mais importantes do pensamento de Schaeffer era o de “cobeligerância ou o novo ecumenismo” que materializou-se no espaço público americano”, e que também pode ser chamado de “interdenominacionalismo”. O que “pressupõe uma luta conjunta por valores, não representando a adesão de estimas alheias” (Souza, 2017: 100). O conceito está na raiz do lobby religioso que mais tarde será conhecido como Moral Majority liderado por Jerry Falwell, teleevangelista batista do Sul dos Estados Unidos, a mesma maioria moral que foi adotada pela New Religious Right - NRD (Nova Direita Religiosa, ou Nova Direita Cristã – NDC) nos anos de 1980 (Souza, 2017: 102; Silva, 2016: 48-137). Andréa Souza, citando Walter Capps (1990), afirma que foi Schaeffer quem persuadiu Jerry Falwell a deixar fundamentalismo separatista, para

ingressar na ala reformista do fundamentalismo. Falwell afirmou que Francis Schaeffer foi o articulador intelectual de sua liderança no movimento (Capps apud Souza, 2017: 105). É fácil perceber a dívida de diversos segmentos da cultura cristã têm com Schaeffer. Segundo Karem Armstrong vários teleevangelistas foram impactados por sua orientação (Armstrong, 2001: 168). Vários evangelistas eletrônicos iniciaram suas carreiras na década de 50 sob a influência dos reformistas: Billy Graham, Rex Humbard e Oral Roberts (Armstrong, 2001). Jerry Falwell disse mais tarde que Schaeffer o teria feito ver que não havia “um mandamento bíblico que proibisse que evangélicos de unissem a causas sociais” (Falwell, 1997: 386). Desta maneira Francis Schaeffer vinha convocando atores de diversos setores para a “cobeligerância”, a que se “engajassem e lutassem contra a cultura hegemônica, juntos”, de modo que as pautas conservadoras foram ganhando adeptos entre protestantes, católicos e outros religiosos (Silva, 2016: 153). E talvez um das suas obras mais importantes tenha sido “A Christian Manifesto” [Manifesto Cristão] de 1982. Este texto teria influenciado milhares de estadunidenses nas questões como aborto, com a tese de que os “cristãos não teriam que se envergonhar em se oporem abertamente a uma ‘cultura depravada’” (Banwart apud Silva, 2016: 153). Assim nasceu um programa de frentes e bancadas temáticas em que evangélicos, pentecostais e católicos se unificam para barrar posicionamentos presentes na sociedade. Na prática, Schaeffer foi dando feitios à fé conservadora nos termos de uma nova reforma e um reavivamento, onde a religião passaria a exercer um novo papel na esfera privada e pública. Uma guerra cultural estava se iniciando, uma guerra contra o que consideravam “heresias civis” o que era entendido como agressivo e que às comunidades religiosas tinham como insustentáveis como “os direitos dos gays, os casais homossexuais e, sobretudo, a legislação do aborto” (Malheiros, 2015: 6). Com o passar do tempo, algumas outras transformações foram acontecendo dentro do movimento. Os neofundamentalistas reformistas deixaram de lado o pré-milenarismo e adotaram o pós-milenarismo. Karina Kosicki Bellotti explica que Billy Graham participou desta mudança uma vez que mencionou que o antigo pessimismo do pré-

milenarismo foi abandonado em favor de um “otimismo semelhante ao do pós-milenistas moralistas do século XIX”. O pré-milenarismo é uma doutrina “arraigada no imaginário dos Estados Unidos deste os tempos de Darby” (Armstrong, 2001: 164). O pré-milenarismo não permaneceu tão relevante com seu “envolvimento político” (Ammerman apud Bellotti, 2019: 69-70). Esta mudança é de fundamental importância porque instrumentaliza a ruptura com o quietismo tão fragrante entre parcelas dos protestantes mais históricos. Isto permitiu que uma Direita Cristã se formasse e se aproximasse de uma mobilização entorno do Partido Republicano e pusesse em movimento uma série de organizações de caráter paraeclesiástico engajadas na batalha cultural e nos EUA e posteriormente aqui no Brasil (Bellotti, 2019: 70). Vários teleevangelistas reformistas tiveram seus programas de rádio e televisão distribuídos por toda a América Latina. Pat Robertson, Jimmy Swaggart e os Bakker durante um longo período estiveram em diversos cantos de todo o planeta (Bellotti, 2019), que segundo Karen Armstrong estes se gabavam de ter seus programas televisionados em 145 países (Armstrong, 2001: 398). E assim, estes televangelistas funcionaram como ponta de lança na luta cultural entre diversas nações. Desta maneira, pode ser visto que os neofundamentalistas reformistas assumiram uma agenda de “articulação religiosa e política como uma forma de fazer valer os valores cristãos” (Pace; Stefani, apud Panasiewicz, 2008: 7). Um outro elemento que precisa ser destacado é a chegada dos pentecostais ao movimento neofundamentalista. Segundo o pesquisador Saulo Baptista, os fundamentalistas históricos sempre tiveram aversão aos pentecostais. Em seu livro registra que para um interlocutor de uma igreja fundamentalista histórica: “nós combatemos o pentecostalismo, em todas as suas manifestações” (Baptista, 2017: 178). O que não se pode ser deixado de lado é o fato de que pentecostais já estavam alinhados aos neofundamentalistas dentro de processo comunicativo aos feitios da “cobeligerância de Schaeffer”. Jimmy Swueggart que é reconhecidamente pentecostal, já participava da cena neofundamentalista. Segundo Karen Armstrong, os pentecostais também se opunham “diametralmente ao fundamentalismo...” (Armstrong, 2001:

395). No entanto, Armstrong afirmou que Swueggert pregava, o que chamou de “religião do ódio” com ataques à homossexualidade, demostrando um rigor aos temas sexuais em geral. Ele e outros teleevangelistas já estavam em uma “cruzada ética” da Maioria Moral (Armstrong, 2001). Sobre o contexto brasileiro, Saulo Batista fala que os neopentecostais estavam em polêmica com as denominações protestantes de missão nos anos 1970. No entanto, a partir dos anos 80 os neopentecostais foram rompendo as barreiras impostas pelas outras denominações, a ponto de ganharem a disputa “pela identidade evangélica” (Baptista, 2013: 84). Assim os neofundamentalistas aglutinaram os neopentecostais em sua “guerra cultural em todos os níveis”. Estes mesmo neopentecostais, com DNA neofundamentalista, adotaram uma atitude contundente em sucessivas eleições a partir de 1988. Participaram de forma mais articulada de pleitos, de frentes e ações na sociedade brasileira (Baptista, 2017). Desta forma, começaram a adotar agora em instâncias de Estado, a sua agenda cobeligerante, atuando de forma organizada contra aquilo julgavam ser as mazelas da sociedade. A cobeligerância agora dos neofundamentalistas brasileiras, torna-se que estratégia de uma agenda organizada, demandando por parte desta mesma sociedade, na forma de outros setores aquilo que Michel Foucault chamou de “lutas transversais”, que Carolina dos Reis e Roberta B. Barbosa traduziram como lutas de “pautas antiautoritárias e democratizantes” (Foucault, 1999: 87-88; Reis; Barbosa, 2019: 89). Então isto explicaria porque no parlamento brasileiro, um deputado oriundo de fileiras neofundamentalista, pastor neopentecostal, usou seu twitter para divulgar a opinião a respeito de parcelas da população que seria visto como “africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé. Isso é fato...”. O mesmo deputado em data anterior teria afirmado, que se daria porque o referido personagem bíblico teria cometido o “primeiro ato de homossexualismo da história”. O jornalista Guilherme Balza noticiou estas declarações do referido parlamentar na Revista Época no dia 31/03/2011 13h37 (Balza, 2011). Assim o referido deputado tem uma agenda neofunamentalista, e seu seus pronunciamentos visam trazer o verniz bíblico conservador para seus projetos, discursos e para a sociedade brasileira.

Considerações finais. A pesquisa a qual me mantive envolvido interroga pelas razões e maneiras pelas quais os fundamentalismos hodiernos se serviam do Primeiro Testamento. Tal questão se mostra hoje relevante porque rastreia os mecanismos que os neofundamentalismos têm buscado intervir na sociedade atual. Mas o que não havia percebido é que ao contrário de ser uma tendência postural do indivíduo, o que se delineou na pesquisa é uma ação programática altamente organizada que impactou de forma determinante a cultura ocidental. O que talvez tenha sido indicado aqui, todavia, é que a história dos fundamentalismos não seja apenas somente um caso evolutivo, mas também de rupturas e revoluções. Assim é que de esta trajetória tenha sido feita de incrementos como é o caso da passagem do monoteísmo bíblico para os fundamentalismos clássicos estadunidenses, visto de forma simplista e “desde fora”. Entretanto não parece ser o caso destes últimos para as formas hodiernas presentes na sociedade norteamericana e sua consequente versão brasileira. O fato que é um neofundamentalismo peculiar se mostrou muito mais presente na esfera pública com importantes ações com vistas a transformações do panorama sociopolítico, adotando para si uma agenda de pautas morais e contraculturais que se inseriu de forma entranhável e entrelaçada na política norte-americana com uma interface bélica na atmosfera brasileira. Os neofundamentalismos reformistas tentam agregar vários segmentos de personalidades políticas, scholars acadêmicos, agentes religiosos e influencers de mídia de comunicação e sociais, atores de diversos naipes convocados a partir de um “Christian Manifesto” para uma “Guerra Cultural” muito bem jogada por estratos conservadores das sociedades atuais. É assim que Francis Schaeffer fulgurou como astro maior, estrategicamente radicado em um “Abrigo” (l’Abri) na longínqua Suíça, que revolucionou os fundamentalismos clássicos entendendo de forma brilhante, o que as esquerdas ocidentais já fizeram com competência: que uma revolução se faz melhor através de formação de “massa crítica”. A partir disto é que se pode notar que não somente na grandeza dos

números de evangélicos, católicos e religiosos de matiz conservadora apoiados que as estatísticas dos institutos de pesquisa de opinião revelam que há uma presença incisiva de agentes formadores em quase “todos os frontes” do tecido social. Estes influenciadores, cada um em seu segmento, têm participado de uma mesma guerra cultural nas mais variadas pontas da sociedade. E interessante perceber que Carly Machado em sua captura do cenário de protagonistas da segurança pública do Estado do Rio de Janeiro que ocupam sistematicamente as telas das TVs de todo o país. Nela é apresentado dentre os dispositivos do aparato governamental, um Batalhão de Operações Especiais – BOPE onde é apresentado como “Tropa de Louvor, ministério evangélicos do BOPE da Polícia Militar do Rio de Janeiro”. Este é apenas uma das diversas aplicações do neofundamentalismo que trava uma guerra cultural. Este é um braço cultural de uma luta muito mais encarniçada em que Bíblia e fuzis são mostrados como paridade de armas na guerra contra o mal. Assim a Comunidade Evangélica do BOPE é uma implementação talvez não pensada por Schaeffer, mas que com toda certeza se enquadra no contexto de “cobeligerância” de matriz reformista. Com uma dose de acerto, assim, o Primeiro Testamento, da mesma forma que a Bíblia, nesta ambiência sofreu rebaixamento programático para ser utilizado apenas como “palavras de morte e não de vida”, é visto decisivamente como uma forja contracultural, em que aqueles que não se encaixam precisam ser, ao deixarem-se ser, endireitados na vida. 118 Entre as duas partes das Bíblias cristãs o Antigo Testamento sofre depreciação. Assim, recai sobre a Bíblia hebraica uma compreensão inaceitável para os judeus. De olho nesta dificuldade alguns cientistas bíblicos começaram a propor uma nomenclatura menos problemática a judeus e cristãos. Estes têm preferido chamar o Antigo Testamento de Primeiro Testamento. Esta terminologia poderia desonerar a Bíblia hebraica do sentido de revelação ultrapassada. Além disso, ensejaria a ideia de complementaridade entre a Bíblia cristã e hebraica. Alguns outros mais próximos à tradição Judaica preferem chamar a Bíblia hebraica de Testamento Original e o Novo Testamento de Testamento Tardio. De maneira menos partidária, pode também chamar a Bíblia hebraica de Tanak. Este é um termo técnico aceito entre judeus e cristãos dentro da academia. Para o aprofundamento desta questão é bom ler: Bloon, Harold; Rosenberg, David. O Livro de J. Rio de Janeiro: Imago, 1992, Zenger, Erich et. al. Introdução ao Antigo Testamento. Bíblica – 38. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p.19-21 e Santt’ana, Elcio. Literatura e religião bíblica. Um acesso a partir das ciências da religião. São Paulo: Editora Reflexão, 2010, p.62-66. 119 É muito importante que se possa levar em conta que na discussão sobre a essência da religião, alguns poderiam ver apenas as “assertivas religiosas na arena política vistas como um disfarce para o

poder político” (Asad, 1988: 164). Talal Asad lembra que apesar das práticas e das crenças assumirem naturezas distintivas essência da política e da religião em muitas sociedades as duas possam se sobrepor e se entrelaçar. 120 Segundo o que se sabe por volta de 700 a 200 a. C, surgiram movimentos que foram “cruciais para desenvolvimento espiritual da humanidade”, porque é exatamente neste período que em vez de se ter uma devoção a deidades incorporadas, passou-se a venerar únicas transcendências universais Estas religiões eram respostas a diferentes problemas da humanidade. Estes novos sistemas religiosos e/ou filosóficos refletiam às novas condições econômicas e sociais: a) budismo e hinduísmo na Índia; b) o confucionismo e o taoísmo no Extremo Oriente; c) monoteísmo no Oriente Médio; e d) racionalismo na Europa (ARMSTRONG, 1994: 39; 2001: 12). 121 As fórmulas conhecidas até então, não se enquadravam mais nas novas circunstâncias que estavam postas. As soluções precisavam ser mais apropriadas à humanidade. E é isto que Karen Armstrong nomeia “paradoxalmente de fundamentalismo”, que poderia ser considerada como primeira versão do fundamentalismo (Armstrong, 2001: p.13). 122 O que pode se caracterizar como o que é chamado de ortodoxia, é o fato de haver estruturas organizacionais, com corpus de doutrinas definidas (Eisenstadt, 1997, p. 1-4). Desta maneira haveria grandes centros de tradição com compacidade política de monopolização frente a pequenos polos retentivos de ideologias periféricas (Gonçalves, 2007: p.6). 123 É o que Hans Küng assumiu no campo teológico as ideias de Thomas Kuhn em seu livro: “A estrutura das revoluções científicas”, por paradigmas como sendo “toda uma constelação de convicções, valores, técnicas etc., compartilhados pelos membros de determinada comunidade”, sendo desta forma a tal mudança configurando-se mais uma transformação “revolucionária do que evolutiva” (Küng, 1999: 159). 124 Êxodo 15,11.2; 18,10.11; 20, 3; Salmos 16,4; 86,8; 95,3, 136,2 138,1; 1Crônica 16,25.26 (BTB, 2018) 125 A grafia do nome do Deus de Israel é aqui utilizada nos termos que o faz a BIBLIA TRADUÇÃO BRASILEIRA (BTB), Introduções acadêmicas. São Paulo: Fonte Editorial/ SBB, 2018. Em 2018 a Fonte Editorial e a Sociedade Bíblica Brasil se associarão para a publicação da BTB, com a participação de diversos pesquisadores integrantes da Associação Brasileira de Pesquisadores Bíblicos que se esmeram para a produção de notas acadêmicas constantes daquela edição. Por razões normatização estilística e editorial a melhor grafia do nome foi preterida aqui (IHWH). 126 É possível considerar que monoteísmos de diversos naipes surgiram de forma geral nesta época, excetuando-se a forma transitória acontecida no Egito antigo durante o antigo reinado de Akhenaton (JACQ, 1978), a quem segundo Robert Wright chama de “Auxiliar de Aton” (Wright, 2012: 116). Então, parece que realmente o monoteísmo é um elemento capital para entender o que se deu nos idos da Era Axial nos termos tenho falado aqui. 127 “cortando em pedaços a Rahab, profanado o monstro marinho, e secado o mar, as águas do abismo grande’’ (Isaías 51, 9b.10 – BTB,2018 – negrito E.S.). 128 Jeremias 4.6,15s; 6,22 129 “Uns homens depravados saíram do meio de ti e perverteram os habitantes da tua cidade, dizendo: Vamos e sirvamos outros deuses que não conheces, indagarás, investigarás e, com diligência, perguntarás. Se for verdade, se for certo que tal abominação se cometeu no meio de ti, certamente, ferirás os habitantes daquela cidade ao fio da espada, destruindo-a completamente e bem assim tudo o que nela há, até os seus animais. 16 Ajuntarás todo o despojo dela no meio da sua praça e queimarás a cidade e todo o seu despojo como oferta inteira a Jeová teu Deus; ficará um montão para sempre; não se tornará a edificar” (BTB, 2018 – negrito: E.S.). 130 Esdras 7, 14. 25-26 131 Esdras 7,6 132 “No princípio criou Deus o céu e a terra” (BTB, 2018 – negrito: E.S.). 133 Em razão da delimitação adotada na pesquisa o neofundamentalismo reconstrucionista não será

alvo de estudo. Estes apesar de terem uma leitura bíblica muito similar a dos reformistas, assumem uma atitude no espaço público é diametralmente oposta a dos grupos em tela aqui. Os reconstrucionistas merecem ser estudados em um esforço que a sua importância requer, que só pode ser realizado em outra oportunidade.

XI. Fundamentalismo Cristão na Perspectiva Protestante Elizete da Silva Introdução Pretendemos analisar a inserção do fundamentalismo no Protestantismo brasileiro, destacando alguns momentos da sociedade brasileira no século XX e seus desdobramentos políticos, nas últimas décadas. Abordaremos a proliferação do movimento no País, especialmente, na Igreja Presbiteriana e Denominação Batista, numa perspectiva histórica. Entendemos o fundamentalismo como um pensamento teológico conservador que construiu discursos, representações, práticas religiosas e políticas. O Protestantismo que floresceu no Brasil tem vínculos estreitos com as Missões Estadunidenses. Metodistas, Presbiterianos, Batistas, Episcopais Anglicanos são grupos evangélicos originários do trabalho missionário dos EUA na segunda metade do século XIX. Os irmãos da outra América, como eram designados os evangélicos estadunidenses nas fontes da Convenção Batista Brasileira, além de trazerem as doutrinas protestantes, transplantaram para o País os problemas internos, como o denominacionalismo, o anticatolicismo e o fundamentalismo, que ora analisamos. O elogio do progresso dos EUA e o fascínio que o seu governo republicano exercia na elite política brasileira, já explicitados, desde o final do século XIX, por Ruy Barbosa e Tavares Bastos, por exemplo, tem a sua tradução protestante muito arraigada na mentalidade de setores majoritários dos grupos Batistas e Presbiterianos. Segundo Rubem Alves, um presbiteriano ecumênico, os EUA eram a “utopia implícita do protestantismo brasileiro” (Alves, 1979: 239). Abordamos o tema na perspectiva da História Cultural (Chartier, 1990) em interfaces com a História das Religiões que, por sua vez, auxilia a entender as apropriações do fundamentalismo no Protestantismo brasileiro, numa perspectiva de longa duração, que traz desdobramentos na História Recente do País. O conceito de campo

religioso auxilia no entendimento das relações com as instituições políticas (Bourdieu, 1979). O Fundamentalismo nos EUA. O conceito de fundamentalismo, não é uma criação islâmica como a imprensa divulgava por ocasião da caça ao Taliban. Suas primeiras formulações foram feitas pelo Protestantismo dos EUA, no final do século XIX, em oposição ao que se considerava como modernismo teológico e desvio das verdades bíblicas da fé reformada, preconizado pelos novos teólogos europeus e estadunidenses que se utilizavam da crítica histórica e dos novos instrumentos para interpretar a Bíblia. Pugnavam contra “o modernismo pernicioso” e o Evangelho Social que tinha uma proposta de releitura bíblica a partir dos problemas sociais. Numa conferência realizada em 1895, em Niagara Falls, teólogos conservadores estadunidenses, assumiram uma posição oficial contra as novas perspectivas interpretativas da Bíblia. No final desse encontro redigiram um documento que constitui as origens do fundamentalismo protestante. Era uma tendência teológica conservadora e que sofreu influências da ortodoxia reformada e dos avivamentos evangélicos ocorridos nos EUA anteriormente. Um movimento organizado tentando barrar a nova hermenêutica bíblica, reafirmando os fundamentos da fé. Entre 1909 e 1915, publicaram uma série de brochuras consideradas pelos autores elementos fundamentais da fé cristã e intitularam The Fundamentals a testimony to the Truth (Pace e Stefani, 2002). Os fundamentalistas defendem um retorno às verdades bíblicas, em torno dos seguintes princípios doutrinários: “a absoluta inerrância do texto bíblico; reafirmação da divindade de Cristo; Cristo nasceu de uma virgem; redenção universal garantida pela morte e ressurreição de Cristo; ressurreição da carne e certeza da segunda vinda de Cristo” (Pace e Stefani, 2002:28). Os principais inimigos eram: a Igreja Católica, o Socialismo, a Filosofia Moderna e a Teologia Liberal. “Num encontro da Northern Baptist Convention em 1920, Curtis Lee definiu fundamentalista como alguém que está disposto a recuperar territórios perdidos para o Anticristo e a lutar pelos fundamentos da fé” (Armstrong 2001:150). Durante a Primeira Guerra Mundial demonizam a Alemanha, considerada um país nefasto de onde procediam as doutrinas modernistas.

Presbiterianos e batistas formavam a maioria dos fundamentalistas nos EUA, os quais após intensa campanha, em 1919, organizaram um congresso em Filadélfia com mais de 6 mil evangélicos de todas as denominações e fundaram a World’s Christian Fundamentalist Association (WCFA), com a intenção de propagar suas ideias e práticas. A criação da homeschooling é desse período, quando pais evangélicos fundamentalistas resolveram escolarizar suas crianças para evitar as ideias científicas do darwinismo, que discordavam da leitura criacionista da Bíblia (Armstrong, 2001). O movimento fundamentalista dividiu igrejas e convenções eclesiásticas. Em 1920, um grupo liderado pelo Pastor Batista William Bell Riley se afastou da Convenção Batista do Norte, criticando o liberalismo teológico fundando a Bible Baptist Union. A Igreja Presbiteriana cindiu em função das querelas entre fundamentalistas e liberais. O Reverendo Carl McIntire abandonou sua comunidade fundou a Igreja Presbiteriana Bíblica e o Seminário Teológico da Fé, com a finalidade de formar pastores nos princípios fundamentais da fé. O movimento conservador foi abraçado por empresários, que passaram a financiar publicações e atividades proselitistas nos EUA e no exterior. No século XX, o principal divulgador dos princípios fundamentalistas foi o Reverendo Presbiteriano Carl McIntire, líder da organização fundamentalista Concílio Internacional de Igrejas Cristãs, criado em 1948, em oposição ao Conselho Mundial de Igrejas, de linha ecumênica e progressista. Calcados no princípio da inerrância bíblica condenavam qualquer exegese bíblica que buscasse uma contextualização dos ensinos das Escrituras, eram literalistas e ahistóricos na sua interpretação da Bíblia. Jean-Paul Willaime sugeriu que a busca do fundamentalismo pode ser uma demanda psicossocial: “Ao oferecer uma verdade religiosa bastante definida o fundamentalismo pode responder às aspirações psicossociais daqueles que, num mundo em profunda mutação, procuram referenciais estáveis” (Willame, 2000: 28). O final do século XIX foi um tempo de incertezas nos EUA, o que certamente favoreceu o ressurgimento de ideias apocalípticas, o reavivamento das doutrinas bíblicas e a certeza que só Deus salvaria a pátria e o mundo decaído pelo modernismo e o cientificismo materialista.

Fundamentalismo e Conservadorismo no Brasil A maioria dos missionários estadunidenses, que divulgou o Protestantismo na segunda metade do século XIX, no Brasil e continuou atuando no País no século XX, era originária do Sul dos EUA, região mais conservadora daquele país, conhecida como “cinturão da Bíblia”. Naquele momento, escravocrata, racista, biblicista e contrária às liberdades republicanas defendidas pelos nortistas. Esse conservadorismo foi introduzido nas diversas comunidades religiosas brasileiras pelos pioneiros protestantes. O Reverendo McIntire ultrapassou as fronteiras dos EUA em sua cruzada fundamentalista, conferenciando no Chile, Peru, Argentina e Coreia. Em 1959, no centenário da chegada do pioneiro presbiteriano A. Simonton ao Brasil, realizou palestras no País. Em São Paulo, no Teatro Municipal, segundo relato de biógrafos: “ a massa reuniu no sábado à noite e o tema foi a Verdadeira Reforma. O teatro tinha cinco balcões, com pessoas para todo o lado. Os nacionais estão aderindo de coração e se opondo ao Comité Missionário Presbiteriano” (Anderson e Rhoads, 2011: 152). Reverendo McIntire pregou em templos congregacionais, no Rio de Janeiro, a convite do Pastor Sinésio Lyra da Igreja Bíblica Congregacional, o qual fez questão de explicar ao articulista do jornal Correio da Manhã, em uma missiva: “pertenço a um Grupo de Igrejas Evangélicas Fundamentalistas do Brasil (não confundir com a Confederação Evangélica do Brasil que está ligada ao Concílio Mundial de Igrejas) ” (Correio da Manhã, 1959, ed.20358). Posteriormente, Lyra, considerado por McIntire “um santo e um soldado a nosso comando” (Anderson e Rhoads, 2011: 153), tornou-se presidente da Associação Fundamentalista Evangélica da América Latina (ALADIC). Em Recife, C. McIntire encontrou Israel Gueiros, professor do Seminário Presbiteriano do Norte e pastor da Igreja Presbiteriana de Pernambuco. Num debate no Seminário Presbiteriano, organizado por Gueiros, McIntire narrou o encontro com um egresso do Seminário de Princeton, provavelmente o Professor Paul Pierson: “o jovem falou em defesa de Barth, não pensa que o movimento ecumênico é tão terrível assim. Ele é um excelente exemplo da má influência do novo Princeton” (AAnderson e Rhoads, 2011: 153). Karl Barth, o teólogo da liberdade,

expoente da nova teologia foi um dos alvos dos ataques fundamentalistas, ao propugnar uma “teologia entre os jornais e a Bíblia”; teologizar sobre a realidade cotidiana do mundo (Silva, 2010: 75). O fundamentalista McIntire encontrou terreno fértil no Brasil, especialmente nos seminários, onde formavam-se os líderes protestantes. Ensinava-se uma teologia dogmática, engessada em outras realidades históricas. Prezavam-se as doutrinas, baseadas num biblicismo impedindo outras leituras. O emocionalismo, a “bibliolatria” aliados à uma tendência brasileira de pouco cultivo da leitura, certamente levavam a atitudes negativas de pensar a fé, de dialogar com a realidade. O teólogo Richard Shaull, que se tornou um dos líderes do ecumenismo no País, ao chegar ao Seminário Presbiteriano de Campinas, em 1952 relatou: “nos cursos de Exegese Bíblica, Teologia e História da Igreja, ao lado de instruções como pregar, usavam material em inglês, a maioria na linha do fundamentalismo e pietismo importados da América do Norte” (Shaull, 2003: 112). A intenção do Reverendo fundamentalista era atrair os brasileiros para a sua cruzada, denominada de “a Reforma do século XX”. Consideravase um enviado de Deus para salvar a Igreja Reformada das iniquidades do modernismo teológico O discurso de retorno aos fundamentos da fé atraiu vários setores protestantes no País. Israel Gueiros tornou-se a grande liderança brasileira na expansão do pensamento fundamentalista no País. Provocou um cisma na Igreja Presbiteriana e em 1956 fundou a Igreja Presbiteriana Fundamentalista em Recife e outro seminário. Deposto pelo Presbitério de Pernambuco em julho de 1956, os fundamentalistas formaram um presbitério com 1800 membros e se filiou ao Conselho Internacional de Igrejas Cristãs e à ALADIC. Um relato do Presidente do Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana, afirma que “McIntire chegou ao Brasil, com uma bolsa preta com 25 mil dólares, com a intenção de dividir a Igreja Presbiteriana do Brasil” (Cunha, 2001). A Igreja Presbiteriana do Brasil reagiu ao fundamentalismo, considerando o movimento como separatista, ao mesmo tempo se afastava do ecumenismo do Conselho Mundial de Igrejas. A primeira divisão na Convenção Batista Brasileira ocorreu em 1910

na Primeira Igreja Batista do Brasil, em Salvador, os fatores que propiciaram o cisma se vinculavam ao nacionalismo e as relações de poder entre os missionários estadunidenses e os brasileiros, que organizaram a Igreja Batista do Garcia e a Missão Batista Independente. A finalidade da Missão Batista Independente era criar um setor batista nacional “para que não se diga por causa do bairrismo, muitas vezes ou quase sempre justificado, inato em nós que a doutrina de Jesus, é um meio de exploração do estrangeiro” (Silva, 2017: 75). A Denominação Batista sofreu influências dos fundamentalistas. O governo eclesiástico congregacional facilitou a origem de duas atitudes: a adesão efêmera e a adesão de grupos persistentes, a exemplo dos Batistas Bíblicos e os Batistas Regulares. Os Batistas Bíblicos, oriundos do Baptist Bible Fellowship, que resultara de uma cisão nas fileiras do pastor fundamentalista J. Frank Norris, que estabeleceu uma igreja e um seminário em Missouri. Deslocou-se ao Brasil em 1945, o missionário Byron Macarthey e construiu igrejas em Recife, São Paulo e Rio de Janeiro. Para formar uma liderança local, o grupo “organizou institutos bíblicos em Campinas, São Paulo e em Pernambuco, apaixonados em escatologia e rigorosos em matéria de modas femininas ” (Pereira, 1982, p. 215). Uma tentativa efêmera de inserção institucional do fundamentalismo ocorreu em 1949, quando missionários estadunidenses da North American Baptist Association (NABA) do Texas, contatou os Pastores Ebénezer Cavalcanti e Alfredo Mignac. Ambos eram lideranças da Convenção Batista da Bahia e da Associação Batista do Brasil, naquele momento separadas da Convenção Batista Brasileira dirigida pelos missionários estadunidenses da Junta de Richmond. A NABA se diferenciava das demais agremiações atuantes no Brasil pela “afirmação fundamentalista e antimodernista, ao aceitar a doutrina bíblica exatamente como está nos textos sagrados, numa leitura linear e interpretação direta” (Teixeira, 2017, p. 90). Este setor Batista fundamentalista, liderado pelo Pastor Harald Morris, organizou o Instituto Teológico em Campinas, objetivando concorrer com os seminários Batistas do Brasil na formação do clero, que deveria seguir as doutrinas da North American Baptist Association (NABA). A liderança do Pastor Morris e a administração dos recursos financeiros

desagradou aos brasileiros. Passadas as querelas entre os nacionais e os missionários da Convenção Batista do Sul dos EUA, a harmonia retornou aos arraias batistas e oficialmente, em 1956, à sua linha teológica tradicional. Persistiram no seio da Convenção Batista Brasileira de forma naturalizada princípios fundamentalistas, como uma demonstração de ortodoxia e fidelidade. Pastor Ebénezer Cavalcanti, discorrendo sobre os Batistas e o ecumenismo se declarou como fundamentalista e conservador. Eram os Batistas infiéis que aceitavam o ecumenismo, “soa com sonido estranho para nós, os Batistas fundamentalistas, quanto à doutrina bíblica, conservadores quanto à teologia de base bíblica indiscutível e regulares quanto ao sistema eclesiológico de inspiração bíblica” (Silva, 2010: 38). A Denominação Batista Regular originou-se de igrejas que se separaram da Convenção Batista do Norte dos Estados Unidos, em 1932. A divisão aconteceu devido ao não conformismo com algumas práticas e doutrinas que consideravam equivocadas e mundanas O movimento Batista Regular foi organizado em General Association of Regular Batista Churches (GARBC) liderado por Howard C. Fulton. Na década de 1950 enviaram missionários ao Brasil, com a intenção de difundir suas doutrinas. A Igreja Batista Regular contou com esforços dos missionários Edward Guy McLain no Ceará, e Arlie Ross no Amazonas. Posteriormente, espalharam-se por todo o território nacional. Atualmente, os Batistas Regulares representam no Brasil mais de 40 mil membros. Contam com seminários e entidades assistenciais. Não participam de atividades cooperativas e são antiecumênicos. Tem uma editora, a qual publica literatura devocional e de divulgação. Para preservar a identidade doutrinária, organizaram em 1953 a Associação Nacional de Igrejas Batistas Regulares (AIBREB). Na Bahia, os Batistas Regulares organizaram a Primeira Igreja Batista Regular, em 1959, em Salvador, após intenso proselitismo do missionário Keneth Mitchel. “Espalharam-se por todo o estado fundando congregações e acampamentos” (Buck e Moraes, 2019: 30). Relevante para a expansão dos batistas regulares foi a atuação do Pastor Francisco Xavier Pessoa: por um tempo frequentou com a sua família a Igreja Evangélica Fundamentalista, em 1974 iniciou oficialmente a Denominação Batista

Regular em Feira de Santana. O líder do fundamentalismo batista, em Feira de Santana, Pastor Francisco Xavier Pessoa estudou no Seminário Batista Regular Bereanos, no Rio Grande do Norte. Foi ordenado, em 1956 e pastoreou igrejas na região potiguar e ao mesmo tempo ajudava ao missionário Valmar Mitchell no trabalho de pregação itinerante. Pastor Xavier era um talentoso pregador, organizou a Igreja Batista Maranata e a segunda Igreja Batista Regular Maranata, posteriormente mais duas congregações. Para formar os pastores fundou o Instituto Bíblico Maranata, em Feira de Santana (Buck, 2014: 6). As igrejas locais Batistas Regulares formam as Associações Regionais de acordo com a região do País. A AIBREB tem uma estrutura voltada para fortalecer e servir a igreja local, a observância da reta doutrina, conforme a Bíblia, separação e condenação do que é designado pelo grupo como mundanismo, heresias e erros teológicos dos católicos e demais protestantes. Nos Estatutos da Associação Nacional de Igrejas Batistas Regulares reza no artigo 33º: “Os Artigos de Fé e os Distintivos Batistas Regulares são irrevogáveis”. Os principais inimigos da fé, segundo os Batistas Regulares, são o romanismo, o modernismo, o ecumenismo e o pentecostalismo. Discordam da Teologia da Prosperidade dos neopentecostais, bem como do movimento de renovação carismática, que atingiu o protestantismo histórico e não adotam novidades litúrgicas. Fiéis ao fundamentalismo seguem a Bíblia literalmente, como regra de fé e prática e não aceitam leituras interpretativas. Segundo os seus Artigos de Fé: “Cremos que as Escrituras do Antigo e Novo Testamentos, como originalmente escritas, foram plenária e verbalmente inspiradas pelo Espírito Santo, e por isso, expressam toda a revelação divina sem nenhum erro. Igrejas Batistas independentes ou de tradição congregacional foram atraídas para o Movimento Batista Regular, a exemplo da Igreja Evangélica Unida da cidade de Feira de Santana, fundada em 1937 pelo casal Isobel C. Gillanders e Roderick M. Gillanders, missionários da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira, a primeira denominação protestante a se fixar na cidade (SILVA, 2010, p.162). As doutrinas fundamentalistas foram introduzidas na Igreja Evangélica Unida pelo

Pastor Antonio Fernandes Oliveira, que fez os estudos teológicos no Seminário Presbiteriano Conservador, em São Bernardo do Campo, aconselhado pelo Reverendo Sinésio Lyra da Igreja Bíblica Congregacional e fundador presidente da Associação Fundamentalista Evangélica da América Latina. O Pastor Antonio R. de Oliveira foi ordenado ao ministério em 1964 na Igreja Evangélica Unida de Feira de Santana. Assumiu a igreja neste mesmo ano, pastoreou a comunidade de 1964 a 2012, quando seu filho Roderick Fernandes assumiu o pastorado. Uma longa liderança, com muitos fatos e desdobramentos na estrutura eclesiástica. Em 1968, transformou a Igreja Evangélica Unida em Igreja Evangélica Fundamentalista, seguindo os princípios teológicos conservadores, que recebera no seminário. A Igreja Evangélica Unida, que congregava presbiterianos e congregacionais, sem perfil denominacional, passou a ser Igreja Evangélica Fundamentalista. No seu Regimento Interno, as mudanças doutrinárias de perfil conservador ficavam explícitas, a exemplo da inerrância bíblica: As Sagradas Escrituras foram escritas por homens divinamente inspirados e que são ricos tesouros da instrução celestial. Que todo o seu conteúdo é a verdade sem mescla de erro. Que ela é o padrão único e infalível, pelo qual a conduta humana, os credos e as opiniões devem ser julgados (REGIMENTO, 1995: 3) Segundo o missionário R. Buck, a “Igreja Fundamentalista mais antiga da cidade admirava a firmeza doutrinária e a dedicação ao trabalho de Deus do Pastor Xavier” (Buck, 2014: 60). A sua presença como membro da Igreja Evangélica Fundamentalista, em Feira de Santana foi decisiva para a filiação da referida instituição à Associação Nacional de Igrejas Batistas Regulares e passou a designar-se Igreja Batista Fundamentalista. A comunidade adotou as concepções doutrinárias do fundamentalismo, pleiteando uma maior pureza evangélica, ética e litúrgica. A Associação Fundamentalista Evangélica da América Latina (ALADIC) continuou realizando congressos, com temáticas escatológicas e conservadoras: Chile (1992), “Vigiai, Cristo está

retornando em breve”; Equador (1995), “Igrejas fiéis evangelizam, edificam e ficam firmes pela fé”; Guatemala (1999), “Maranatha, o Senhor está voltando”. Em 2012, aconteceu Campinas, o XXI congresso da ALADIC e o 18 Congresso Internacional do Concílio Internacional de Igrejas Cristãs fundados por C. McIntire. Em 2015, aconteceu em Recife o XXII congresso da ALADIC, com o tema “Vigiar para não cair no racionalismo, que é muito perigoso” e a presença de delegações dos EUA e de toda América Latina. Fundamentalismo e Relações sociopolíticas. Desde o seu nascedouro, o Movimento Fundamentalista forjou representações e práticas políticas nos EUA. Ao criticar o modernismo teológico e o cientificismo da sociedade, os fundamentalistas também buscavam intervir na ordem social. Consideravam o Evangelho Social e os sindicatos como diabólicos e um sinal do Anticristo. Lembrando o episódio do professor de Biologia Scopes que ministrava aulas, seguindo as teorias do darwinismo e por isso foi advertido em tribunal, Dreher concluiu que “para o fundamentalismo, a verdade religiosa é pressuposto para a ação política. Seu alvo é a sociedade perfeita” (Dreher, 2005: 9). Após a II Guerra Mundial, os fundamentalistas alinharam-se à direita. McIntyre aderiu à J. McCarthy contra o comunismo e alimentou o macarthismo entre os evangélicos. No rádio pregava: “ateus, e comunistas zombavam da Bíblia, desdenharam da vida, escravos do sexo e filhos dos monstros de olhos verdes” (Armstrong, 2017: 352). O fundamentalismo se ressignificou: a geração de 1960, incluindo o Pastor Batista Billy Graham e sua Associação Evangélica, absorveu o conservadorismo teológico, que desembocaria na década de 1970 na Nova Direita Cristã e na Maioria Moral, sob a liderança de Jerry Falwell, que combatia o liberalismo nos EUA. Era o “neofundamentalismo evangélico” (Martelli, 1995: 10). No Brasil reavivou o ódio ao comunismo, pois o Protestantismo brasileiro o identificava como diabólico desde a Revolução Russa, em 1917 e representavam a Rússia como o reino do terror, mandíbulas do inferno. “O perigo que ameaçava o mundo era o bolchevismo, o ateísmo e crimes, semeando a discórdia entre patrões e operários, além de perseguir as religiões “ (Silva, 2017: 35). A Confederação Evangélica do Brasil, com o apoio do Conselho

Mundial de Igrejas, fundou o Setor Igreja e Sociedade, em 1955, proposta ecumênica e voltada para os problemas do País. O grupo era liderado pelos presbiterianos Richard Shaull, Waldo Cesar e formado por várias denominações. Realizou quatro conferências nacionais sobre a responsabilidade social da Igreja (Silva, 2010). Os ecumênicos eram vistos pelos fundamentalistas como heréticos e comunistas. Reverendo Sinésio Lyra afirmou: “ a influência comunista está se fazendo em vários setores da vida nacional. Líderes do Concílio Mundial de Igrejas são agentes do comunismo, protestantes apóstatas, que vêm ludibriando igrejas evangélicas” (Correio da Manhã, 1959, ed.20358). O anticomunismo se confundia com o antiecumenismo entre os fundamentalistas. Em 1964, frente à Ditadura apoiada oficialmente pela hierarquia protestante, Reverendo João D. Araújo relatou que no mesmo dia do golpe, o Reverendo Israel Gueiros, líder fundamentalista, num programa na Rádio Clube Pernambuco “agradeceu a Deus pelos militares golpistas e denunciou que, havia uma cátedra de teologia marxista no Seminário Presbiteriano do Norte, e o professor era João Dias de Araújo” (Araújo, João Dias. Entrevista concedida à Elizete da Silva. Feira de Santana, 26 nov., 2013). Gueiros prosseguiu nas denúncias contra o Reverendo “acusado de incitar os jovens seminaristas às ideias comunistas”. Delatado, o Reverendo Araújo foi chamado pelo DEOPS para depor. A motivação para a delação de Gueiros contra Araújo foi o fato do mesmo ter escrito o panfleto “O Jovem Cristão e o Jovem Comunista”, o qual tinha o objetivo de alertar os evangélicos, que o Cristianismo era completo, não precisava de outras ideologias”. (Araújo, João Dias. Entrevista concedida à Elizete da Silva. Feira de Santana, 26 nov., 2013). Os professores ecumênicos foram expulsos dos Seminários Presbiterianos e destituídos dos presbitérios considerados modernistas, a exemplo do Presbitério de Salvador (Silva, 2010). Paul Pierson, professor do Seminário Presbiteriano em Recife, estranhou: “Eu sou do sul. Pertenço à parte mais conservadora da Virgínia. Fui educado da maneira mais ortodoxa...Sempre me considerei “sadio na fé”, porém, a ortodoxia conservadora destes irmãos brasileiros é tal que eu receio por minha pele ortodoxa” (Pierson, 1974: 98). A imprensa presbiteriana defendeu a “linha dura como um dos

objetivos eliminar da Igreja Presbiteriana do Brasil aqueles considerados inimigos do povo de Deus, principalmente ecumenistas e comunistas” (Villela, 2017: 34). Na ótica dos fundamentalistas batistas, o perigo vermelho era uma ameaça: “Até em nossas igrejas se produziu a infiltração. Existia a louca ideia de que era possível embarcar-se no mesmo barco dos comunistas para construir os mesmos ideais” (O Jornal Batista, 1964, p.3). Pastor Ebénezer Cavalcante escreveu Os Missionários Comunistas, reverberando contra a União Cristã dos Estudantes do Brasil (UCEB). Para os Batistas, estes jovens eram “missionários comunistas” infiltrados entre os verdadeiros cristãos para os enganar com promessas de uma sociedade justa. Segundo o articulista, a UCEB era “mais um órgão muito bem disfarçado do Comunismo Internacional (...) com os propósitos de arregimentação dos jovens evangélicos para os fins de comunização do Brasil” (Almeida, 2011: 110). Pensavam os evangélicos conservadores que os militares de 1964 foram instrumentos divino contra o “perigo vermelho”, que ameaçava a liberdade religiosa. Em Recife, fizeram um culto em ações de graças a Deus na Igreja Presbiteriana Fundamentalista, do Reverendo Gueiros. Em Salvador, Pastor Valdivio Coelho, capelão do exército e pastor da Igreja Batista Sião, promoveu culto pelo “milagre de Deus ter preservado o Brasil do comunismo”. O culto realizou-se no teatro Castro Alves, com a presença de centenas de militares da IV Região Militar e batistas agradecidos a Deus pelos militares. O fundamentalismo dos Batistas Regulares também se expressou politicamente. No contexto da Ditadura de 1964, em Feira de Santana, um dos motivos da filiação da Igreja Evangélica Unida à Associação das Igrejas Batistas Regulares foi o conservadorismo político. Conforme Sr. Antonio Alves da Silva, um cordelista membro da comunidade: “Apoiado o movimento/Contra a idéia comunista/A igreja muda o nome Para fundamentalista/Firme na base apostólica/Um novo ideal conquista” (Silva, 1999). O evangelicalismo conservador de Billy Graham e suas campanhas evangelísticas marcaram os protestantes brasileiros no último período ditatorial no País. Os livros do Pastor Batista estadunidense eram intensamente divulgados no Brasil. A obra Mundo em Chamas, de 1968

e publicada no Brasil pela Record traz uma mostra do pensamento neofundamentalista de Graham, no próprio título o mundo em chamas remete ao fogo apocalíptico que na sua visão tinha uma “explosão demográfica, cientificismo, iniquidade, imoralidade, novas teologias, cristianismo sem Deus e o comunismo ateu, que queria dominar o mundo politicamente “ (Graham, 1968: 248). Os livros de Billy Graham e seu pensamento conservador evangelical foi tão difundido entre os Batistas da Convenção Brasileira, que editoriais do Jornal Batista guardavam extrema similaridade de ideias. Não podemos afirmar quem copiou quem, porém Graham também escreveu sobre o poder revolucionário do Evangelho: Está-se processando em nossos dias uma revolução silenciosa e sem sangue. Ela não se apresenta com fanfarras, cobertura jornalística...está transformando o curso de milhares de vidas...homens de todas as raças e nacionalidades que encontram a Paz com Deus (Graham, 1968: 78). Os Batistas organizaram campanhas evangelísticas nas décadas de 1960 e 1970. O marco foi a pregação do Pastor Billy Graham no estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro em 1960, retornou em 1962, com multidões no estádio de Pacaembu, São Paulo. Em 1965, foi realizada a Campanha Cristo, a Única Esperança anunciada no ano de 1964 como revolucionária: Vai acontecer no Brasil em, 1965, outra revolução. Outra, mas esta branca, pacífica, sem sangue. Uma revolução espiritual, de dimensões nunca vistas na História deste país. Será uma revolução em profundidade. Será uma revolução de consciências (O Jornal Batista, 1964: 3). As Campanhas podem ser consideradas enquanto prática política... serviam para apoiar o governo que estabeleceu o Golpe Militar (Almeida, 2011: 53). O evangelista Billy Graham retornou ao Brasil em 1974 para mais uma cruzada evangelística, em plena Ditadura militar. O discurso neofundamentalista do Pastor Batista se concentrou no pecado pessoal e no moralismo. Em torno de 600 mil pessoas, não apenas batistas, mas evangélicos de outras denominações ouviram a oração “Deus abençoe o Brasil” Na ótica individualista do fundamentalismo, a

sociedade se transformará após a conversão de todas as pessoas aos princípios bíblicos, portanto só o Evangelho salvaria o Brasil, inclusive do comunismo. Dentre vários textos que combatiam o comunismo e o Evangelho Social, o livro do presbiteriano Antenor Santos de Oliveira: “Você Conhece o Comunismo? Mas Conhece Mesmo”, lançado em 1964, empolgou os batistas: “obra bastante atual, mormente à face dos acontecimentos de 31 daquele mesmo mês [março] um alerta sobre os perigos aos quais o Brasil estava exposto antes da vitoriosa Revolução de 1º de abril” (O Jornal Batista, 1964). As descrições das práticas dos comunistas também recorriam a imagens escatológicas e desqualificadoras, “transcendendo totalmente o terreno político para o campo específico da religião” (Almeida, 2011: 77). O Protestantismo brasileiro tem laços espirituais e ideológicos com os “irmãos da Outra América”. Os EUA, opositor do socialismo e mentor de golpes e governos militares na América Latina, também eram o “berço do Evangelho”, a nação evangélica que mandava missionários bemintencionados para o País. Na contemporaneidade, o neofundamentalismo atingiu o Pentecostalismo e os Neopentecostais. Recentemente, observa-se na sociedade brasileira uma simbiose entre a Teologia da Prosperidade e aspectos das doutrinas do conservadorismo evangélico, que por sua vez também pretendem intervir na política. A retórica neofundamentalista da politização do religioso pode ser uma das motivações da inserção dos neopentecostais na política seguindo a Teologia do Domínio. Um discurso semelhante a Maioria Moral, a agenda da família tradicional, contra o aborto, o divórcio e pró Israel, como povo eleito. Ressignificam-se o criacionismo, negando-se a ciência volta-se a ideia de escolarizar as crianças nos lares para que eles não sofram influências dos professores materialistas. A Frente Parlamentar Evangélica, que dá sustentação política ao Presidente Bolsonaro, quer dominar politicamente o País, típico de práticas autoritárias, que pensa ter a melhor religião os melhores valores. Os evangélicos fundamentalistas querem chegar ao poder e exercê-lo segundo suas doutrinas. Pensam que: “somente através de um tipo de governo em que a base seja os princípios bíblicos protestantes, será

possível a transformação social almejada. A proposta é de um governo teocrático” (Dias, 2009: 133). Na posse o Presidente Bolsonaro recebeu a benção do Pastor Pentecostal Magno Malta, que concluiu a sua oração, com o seguinte texto: “O Senhor ungiu a Jair Bolsonaro como um cristão na presidência, o Brasil acima de todos e Deus acima de Tudo! ” Contraditório num Estado laico desde a proclamação da República, um desrespeito às demais religiões do campo religioso brasileiro. Uma cerimônia evangélica semelhante realizou o Pastor Billy Graham na ocasião da posse do presidente dos EUA Bill Clinton. O fundamentalismo vem alimentando o racismo religioso na legitimação do Governo Federal, ao desqualificar e demonizar as Religiões de Matrizes Africanas. Protestantes ecumênicos presbiterianos, metodistas, batistas e luteranos criaram em 2016 um grupo de oposição designado como Frente Evangélica Pelo Estado de Direito, defendendo a Democracia contra a cassação do mandato da Presidenta Dilma Roussef e a instrumentalização política das Igrejas Evangélicas pelo voto de cajado\ neo-cabresto. Desenvolvem atitudes radicalmente opostas aos fundamentalistas evangélicos. Considerações Finais. O Fundamentalismo atingiu diversos grupos protestantes no Brasil dividindo igrejas e estruturas eclesiásticas. Oficialmente foi minoritário, porém persistiu como um sinal de ortodoxia e fidelidade aos princípios bíblicos na maioria das comunidades evangélicas de origem missionária e pentecostal de forma ressignificada em práticas e discursos, originalmente, fundamentalistas. Observa-se um avivamento do sagrado, recriações inovadoras ganham espaço e visibilidade em busca de espaço político. O avivamento não é um fato isolado, mas acompanha as mudanças sociopolíticas vigentes num mundo onde os paradigmas, a racionalidade, as promessas do bem-estar social desmoronaram e os homens estão a buscar sentido para suas existências em outra direção, numa dimensão espiritual, que é mais estável. O neofundamentalismo cumpre, simbolicamente, um relevante papel. O neofundamentalismo alinhou-se aos setores políticos conservadores do País defendendo valores tradicionais e o negacionismo científico, como um retorno anacrônico aos princípios bíblicos. Há um projeto de

poder que se nutre de visões teológicas impositivas, sem levar em consideração a pluralidade religiosa da sociedade. Se adequa perfeitamente ao conservadorismo ético e político, quando se opõe ao Ecumenismo, que leva em conta os problemas sociais e políticos do mundo e do Brasil.

XII. A Intolerância Religiosa e a sua Tipificação - Uma Análise de Casos Concretos Carlos Gustavo Direito Introdução. O presente artigo tem como objetivo analisar casos concretos julgados pelos tribunais brasileiros para definir a tipificação dos crimes de intolerância religiosa, partindo da premissa que os crimes típicos previstos nos artigos 208, 211 do Código Penal e 20 da Lei 7.716/89 (com as alterações da Lei 9.459/97) , por si só não representam toda a realidade dos ilícitos praticados sob o manto da intolerância religiosa. Não há pretensão de ser exaustiva a análise dos casos dentro de toda jurisprudência brasileira sobre o tema. Por isso a análise se limita algumas decisões ilustrativas dos tribunais brasileiros para demonstrar que o fundamentalismo religioso pode dar ensejo a crimes que perpassam desde violência doméstica até o crime de homicídio e que mesmo nos crimes típicos pode-se observar outros crimes correlatos. Logo a busca de material para pesquisa não pode se limitar aos termos comuns de liberdade religiosa e intolerância devendo ser a mais ampla possível e abranger todas as espécies de crimes que podem ter como motivação o fundamentalismo religioso. Note-se que nosso Código Penal tipifica dois crimes específicos em relação a intolerância religiosa, em seus artigos 208 (ultrage a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo) e 212 (vilipêndio a cadáver), assim como a Lei 7.716/89 em seu artigo 20 estabelece como crime punido com até três anos de reclusão praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, etnia, religião ou procedência nacional. O que se pretende mostrar é que no agir do fundamentalista podemos ter outros tipos de crimes de naturezas diversas, tais como homicídio (art. 121), lesão corporal (art. 129), crime à liberdade individual (art. 146) e crimes contra à honra (arts. 138, 139 e 140) todos do Código Penal e que por isso é importante identificar os motivos determinantes de tais crimes para que possamos ter uma real dimensão da correlação

entre crime e fundamentalismo, afastando-nos de pesquisar apenas nos crimes típicos de preconceito. Além do mais, demonstraremos em breve análise da jurisprudência a correlação direta entre fundamentalismo religioso e crime de intolerância religiosa. Isto é, ampliando um pouco o conceito de fundamentalista para enquadrá-lo naquele que busca impor sua verdade religiosa – ao invés de limitar tal termo a propagação da inerrância bíblica, temos que os crimes de intolerância religiosa são praticados por fundamentalistas. Apesar de que, isso deve ficar claro, ser fundamentalista por si só não constitui qualquer tipo de crime. Alguns pontos podem ser levantados como perguntas que se devem responder para adentrarmos a raiz da intolerância religiosa por conta do fundamentalismo. Logo, como deve ser investigado e interpretado crime diverso do preconceito religioso, mas que carrega no seu fundamento a intolerância religiosa contra a vítima? Qual o papel dos juízes na interpretação do fundamentalismo religioso como base para a prática de outros crimes? Existe uma imbricação entre o fundamentalismo religioso e a intolerância religiosa? Particularmente em duas situações concretas perante o I Tribunal do Júri da Capital do Rio de Janeiro tivemos o elemento do fundamentalismo como um dos fatores objetos das investigações e que não foram devidamente explorados como elementos tanto de preconceito investigatório em um dos casos como de fator determinante do crime como no outro caso. No primeiro caso houve por parte da defesa do réu acusado de homicídio qualificado contra os pais adotivos (processo 015087703/2007- RJ) a tentativa de anular o inquérito investigatório sob o fundamento de que haveria preconceito por parte do delegado cristão em relação ao réu que professava religião de matriz africana, sobretudo em relação a determinado “altar” que havia na casa do réu. Tal alegação não restou devidamente demonstrada para fins de anulação do inquérito em si e, por força das demais provas constantes, o réu acabou condenado pelo corpo de jurados pelo crime de homicídio qualificado. Todavia, é de se chamar a atenção a possibilidade de que uma investigação tenha como um dos seus fundamentos uma eventual intolerância à religião do investigado e que essa religião seja erroneamente interpretada como sendo naturalmente propensa ao cometimento de crimes. Tal fato

dificilmente é agregado a qualquer tipo de pesquisa que tente identificar no seio do Estado a intolerância religiosa, o que dificulta inclusive uma pesquisa séria sobre o assunto. No outro caso, o homicídio foi praticado em razão de uma discussão ocorrida em um bar/casa noturna sob fundamento de que o autor dos disparos encontrava-se em legitima defesa putativa, isto é que havia receio de que a vítima estivesse armada e fosse contra ele atirar por força dessa discussão. Nesse caso o autor dos disparos e as testemunhas relataram que a vítima se dizia “possuída” e que isso foi um dos fatores do início da discussão que acabou por resultar no evento morte (processo 0012163-14/2017 - RJ). Pelos depoimentos se percebeu uma prevenção contra vítima que alegava que estava “baixando o santo”, enquanto o autor do disparo se dizia cristão e por isso mesmo intercedeu na situação. Em ambos os casos vemos como tema de fundo uma eventual intolerância religiosa por parte do agente do Estado investigador, na primeira hipótese e por parte do autor do delito no segundo caso. Ocorre que nenhum desses dois casos concretos entrarão no cômputo de um eventual crime de intolerância religiosa e sequer serão objeto de pesquisa e aprofundamento. Logo a pergunta a que se faz é como identificar crimes que tem como uma das suas motivações a intolerância religiosa e como perceber essa imbricação entre o discurso fundamentalista e o crime de intolerância. Casos concretos julgados pelos Tribunais brasileiros. A intolerância, em regra, é fruto de um discurso fundamentalista que no seio da religião professada afasta a veracidade das demais religiões, avocando para a sua religião o monopólio da verdade. No final das contas, busca-se a detenção da verdade. Afirme-se que o termo fundamentalismo nasce nos movimentos conservadores evangélicos nos EUA do século XIX. Assim, Cleber A.S. Baleeiro explica que historicamente o termo fundamentalismo tem origem no protestantismo estadunidense do final do século XIX e início do século XX e fundamentalista era aquele que permanecia fiel aos imutáveis princípios da fé cristã. Podemos ainda identificar a própria questão da chamada intolerância religiosa no cisma cristão do século XVI no qual teremos a reforma protestante. Os modernos Estados Democráticos se fundaram

sob o manto da tolerância religiosa. Nas palavras de Cleber A.S. Baleeiro, “ser fundamentalista, nesse sentido, era estar ao lado do que seria verdadeiro, puro e justo, em contraposição às infidelidades, pecaminosidade e ignorância do restante das pessoas” (2013:17). Ora, o uso do termo se expandiu e hoje pode-se referir a vários tipos de fundamentalismo, sendo preferível, pois, a palavra fundamentalismos para definir o fenômeno, como defende o citado autor. Assim, definimos de forma abrangente situações que tem em comum a finalidade de restabelecer em sua religião a volta aos conceitos originários, mas ao mesmo tempo tem diferenças específicas de acordo com a sua proposta. Podemos falar, então, em fundamentalismo islâmico, católico, protestante, judaico e até hindu. Todavia, deve ser ressaltado que a terminologia originária vem do movimento protestante americano, mas, no meu modo de sentir, não pode ficar delimitado a ele. O que perceberemos na análise dos casos separados é que no Brasil os movimentos pentecostais e neopentecostais, juntamente com os conservadores católicos, incorporaram as ideias fundamentalistas para, sobretudo, repudiar as religiões de matrizes africanas, como sendo movimentos pagãos e não religiosos e atribuindo a sua religião o monopólio da verdade.. É de se destacar que nosso sistema jurídico pertence ao que denominamos de civil law, isto é o fundamento principal do nosso Direito é a lei, vide o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil. Nesse sentido, e com muita mais razão em se tratando de matéria penal, qualquer questão referente à intolerância religiosa, no campo criminal, tem que ser precedido de texto normativo que o caracterize como crime para que assim seja identificado. Note-se que o simples fundamentalismo por si só não pode ser considerado crime em razão da liberdade constitucional de credo e crença (art 5º, VI CFRB). Para que haja crime no exercício de premissas fundamentalistas tem que ocorrer uma violação direta da norma legal, seja do artigo 208 do Código Penal ou do artigo 20 da Lei 7716/89. O que nós estamos dizendo aqui é que mesmo que a intolerância não seja diretamente o crime alvejado devemos analisar outras espécies de crimes para saber se na sua substância uma das motivações não foi o preconceito religioso. Por exemplo, em caso julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo,

um pai foi condenado por agredir sua filha por discordância de sua crença religiosa. Nesse caminho, mesmo não havendo o cometimento de um crime específico de intolerância religiosa, a lesão corporal tipificada penalmente (art. 129 CP) teve como razão de ser a crença religiosa da vítima o que no meu modo de entender caracteriza uma violação ao direito de crença e culto. Apesar da ementa da decisão não explorar muito esse fato, podemos da leitura dela depreender que uma das causas determinantes do crime foi o preconceito religioso. Talvez tal fundamento poderia ter sido melhor explicitado na decisão em comento, inclusive para fins de estatística e cômputo futuro. Veja como ficou ementada a decisão referida: Apelação nº 0023951-37.2011.8.26.0196 - Voto: 7.118 (3) - Apelante: Ministério Público do Estado de São Paulo - Apelado: Daniel Raimundo Origem: 2ª Vara Criminal da Comarca de Franca Magistrado: Wagner Carvalho Lima Violência doméstica Lesão corporal Artigo 129, §9º, do Código Penal Higidez do quadro probatório Reforma da sentença absolutória Condenação Necessidade. Violência doméstica Lesão corporal de natureza leve Agressão da filha, mediante socos e tapas, pelo genitor, decorrente de divergência atribuída a crença religiosa Configuração Exercício regular de direito Reconhecimento Impossibilidade. Apelo ministerial parcialmente provido, com extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva. Então, um primeiro ponto que deve ser destacado é que muitas das vezes os crimes praticados por motivos fundamentalistas podem estar mascarados por outros crimes tipificados. No caso concreto foi lesão corporal leve em âmbito doméstico, mas poderia ser até mesmo um homicídio ou tentativa de homicídio entre estranhos por conta de divergência religiosa. Daí porque uma pesquisa que queira ser ampla sobre a investigação dos crimes de conteúdo religioso deve buscar os motivos dos demais crimes cometidos e para tanto é necessário que o sistema criminal destaque desde o momento do inquérito o que está por trás daquele fato-crime. Não há uma diferença ontológica entre o crime de intolerância e o crime praticado por razões de preconceito religioso,

mesmo que não seja tipificado como um crime de intolerância religiosa propriamente dito. Note-se que quando o crime praticado é diretamente tipificado como intolerância religiosa há destaque na decisão proferida pelo Tribunal. Podemos, por exemplo, analisar caso julgado ainda pelo Tribunal de São Paulo no qual na ementa fica devidamente consignado o caráter imbricado entre o fundamentalismo religioso e o crime de intolerância religiosa. APELAÇÃO CRIMINAL Nº238.705.3/– TJSPAPELANTES MINISTÉRIO PÚBLICO X SÉRGIO VON HELDER LUIZ – DESEMBARGADOR RELATOR GERALDO XAVIER (10.11.1999) – Apelante 1 pretende exasperação das penas e fixação do regime prisional para o semiaberto – Apelante 2 requer aplicação do Sursis – artigo 89, da Lei 9099/95, alega ausência de dolo e requer absolvição - Réu foi condenado a 2 anos de reclusão pelo delito previsto no artigo 20, da Lei 7716/89 e a 01 mês e 10 dias de detenção pelo crime do artigo 208, §único do CP. Painel probatório demonstra a culpabilidade do réu – manifestação contrária à idolatria e à adoração de imagens, pregação baseada em convicções e crenças hauridas de estudos da Bíblia – ferozes invectivas contra adeptos de outras religiões, semeadoras de intolerância de ódio, de desprezo, de discriminação e de preconceito. Atitudes e as palavras do apelante Sérgio extrapolam os limites da crítica e da pregação religiosa, resvalam na aversão a outros credos, no ânimo de atingir a dignidade de seus membros. Condutas que se projetaram no mundo exterior praticadas em Programa “Palavra de Vida”, da Rede Record de Televisão, transmitido ao vivo no dia 12/10/1995, com audiência de milhares de pessoas, em todo país e capazes de induzir e incitar os espectadores a sentimentos discriminatórios e preconceituosos em relação a católicos, à espíritas e a adeptos de seitas afro-brasileiras. Membros de outras denominações religiosas sentindo-se

discriminados pelas condutas do réu, chegaram a agredir fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus e atentar contra seus templos. Condutas do réu se subsumem aos três núcleos do tipo em comento. Não só praticou a discriminação e o preconceito de religião, como ainda induziu e incitou outros a fazê-los (...). Em ambos os casos, tanto na lesão corporal doméstica como na agressão as outras religiões praticadas pelo réu da ação supra citada o que temos é a mesma razão de agir: o fundamentalismo religioso que transforma o homem-religioso em um agente de crime seja na esfera privada contra pessoas da mesma família, seja na esfera pública como diante de uma enormidade de telespectadores de programa com cunho religioso como no caso acima visto. A busca pela imposição da sua verdade religiosa sobre as demais verdades é o elemento próprio do crime quando há excesso na sua propagação. Isso fica devidamente percebido quando por exemplo temos a tipificação de um crime de injúria qualificada. Com efeito, o artigo 140 do Código Penal tipifica o referido crime quando há uma ofensa à dignidade e o decoro da vítima, o que se está protegendo é a honra subjetiva do ofendido, sendo certo que o crime é qualificado quando há o emprego de elementos preconceituosos ou discriminatórios em relação, dentre outros motivos, à religião. Ora, somente aquele que considera que sua religião é a detentora da verdade pode pretender ofender alguém com uma afirmação depreciativa à religião do outro. Vide o caso julgado pelo Tribunal do Distrito Federal que consignou situação de ofensa à honra pessoal quando em reunião de condomínio a agressora faz referência a elementos relacionados à religião da vítima para ofendê-la. PENAL. PROCESSO PENAL. CRIMES DE INJÚRIA QUALIFICADA PELO PRECONCEITO RELIGIOSO E DE AMEAÇA, PRATICADOS CONTRA PESSOA IDOSA DURANTE REUNIÃO DE CONDOMÍNIO. AUTORIA E MATERIALIDADE DEVIDAMENTE COMPROVADAS PELO CONJUNTO PROBATÓRIO ENCARTADO NOS AUTOS. VALOR PROBATÓRIO DA PROVA TESTEMUNHAL. DOSIMETRIA.

1. A prova produzida nos autos demonstra que a apelante ofendeu a dignidade da vítima, fazendo referência a elementos relacionados a sua religião, de forma suficiente para caracterizar o crime de injúria qualificada pelo preconceito religioso, bem como enunciou expressão que foi bastante para intimidar a vítima e para configurar o crime de ameaça. 2. As declarações das testemunhas de Defesa durante a audiência inaugural e após, no decorrer da audiência de acareação, são oscilantes, o que reduz a credibilidade dos depoimentos e frustra o valor da prova testemunhal produzida pela Defesa como meio probatório, em face das demais provas dos autos. 3. Assim, não se afigura razoável recusar valor probatório aos depoimentos prestados pelas testemunhas de acusação, como elementos de convicção do magistrado do conhecimento para sustentar a sentença condenatória. 4. Recurso de apelação a que se dá parcial provimento, para redimensionar a pena privativa de liberdade imposta. 20170710085674APR - (0008157-76.2017.8.07.0007 Res. 65 CNJ). Note-se que nos 3 crimes vistos, lesão corporal, intolerância religiosa e injuria qualificada, temos o mesmo fundamento que é o desprezo de um praticante de uma religião por outra religião. A interpretação restritiva dos conceitos religiosos dá ensejo a uma forma distorcida de crença, que se foca na disputa entre a sua verdade e a verdade do outro. Essa disputa quando externada revela uma incompatibilidade do seu detentor em viver em uma sociedade plural, o que acaba gerando o cometimento de um crime de ódio. Conclusão. Buscamos 3 decisões corriqueiras nos tribunais brasileiros para demonstrar que o fundamentalismo é elemento subjetivo que constitui o crime de intolerância religiosa e crimes outros que escondem essa motivação. Ao invés de buscarmos as grandes questões debatidas pelos

nossos Tribunais Superirores, a ideia aqui é mostrar o tão comum que é – no dia à dia dos Tribunais – o julgamento de questões que envolvem a intolerância religiosa em suas demais formas de surgimento na esfera tipificada penal. Deveras, em artigo escrito sobre a demonização dos cultos afrobrasileiros pelos pentecostais, Ricardo Mariano busca em Bobbio os ensinamentos que asseveram que “o significado histórico predominante da noção de tolerância se refere ao problema de convivência entre confissões religiosas diversas, controvérsia suscitada pela ruptura do cristianismo católico com os cismas protestantes. As leis sobre liberdade religiosa e a tolerância recíproca entre os diferentes grupos religiosos são consideradas percussoras à democracia moderna (Habermas, 2003) (2007:120). Historicamente as próprias leis penais no Brasil traziam em seu tipo penal elementos de um conservadorismo católico (fundamentalismo) que criminaliza outras práticas religiosas, vide o artigo 276 do Código Penal do Império de 1830 que punia a celebração, propaganda ou culto de confissão religiosa que não fosse a oficial, que por força do caput do artigo 5º da Constituição Imperial de 1824 era a religião católica. È certo, ainda que o Código Penal de 1940, já sob a égide da República, manteve os delitos de charlatanismo (art. 283) e curandeirismo (art. 284) sob os quais o aparelho repressor do Estado agia para reprimir sobretudo a prática das religiões de matrizes africanas (vide artigo de Hédio Silva Jr. 2007:380). IMesmo durante a República as religiões de matriz africana foram perseguidas pelo próprio aparelho repressor do Estado, o que reverbera até os dias atuais. Com efeito, a atual Constituição da República estabelece que o Brasil é um Estado laico, assegurando a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, o livre exercício de cultos religiosos seguindo, assim, o pensamento mundial atestado pelo artigo XVII da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Isto significa dizer, em uma palavra, que não tolera qualquer tipo de preconceito religioso na vida civil brasileira, cabendo aos poderes do Estado garantir a convivência pacífica entre as diversas religiões que são professadas em solo brasileiro. Por este motivo, o Poder Judiciário deve ter sensibilidade para

identificar os crimes cometidos em nome de uma radicalização religiosa que tenta anular o outro para ter a primazia da fé. Ser fundamentalista, por si só, não fere nosso ordenamento jurídico e nem a ética pessoal, mas quando esse fundamentalismo se expressa de forma a injuriar, agredir e menosprezar as demais religiões existentes surge uma conduta típica que deve ser criminalmente punida. Existe, pois, uma clara imbricação entre o fundamentalismo e o crime de intolerância religiosa. Devendo as autoridades públicas ficarem atentas porque este crime pode vir mascarado com outra conduta delitiva. A busca de uma sociedade justa e equânime passa necessariamente pela convivência harmoniosa de todas as formas de religião. A religião é o retorno ao nosso passado e aos nossos ancestrais, respeitar o caminho escolhido por cada indivíduo para fazer esse reencontro é o fundamento da construção de um Estado de Direito.

XIII. O Imaginário Radical Diante dos Racismos e Fundamentalismos: Esboço do Cenário Brasileiro Denominado Evangélico Alexandre de Carvalho Castro Elcio Sant’Anna Os muitos fundamentalismos que existem são profundamente iguais entre si, embora paradoxalmente o sejam diferenciando-se permanentemente uns dos outros. Explico: os variados grupos fundamentalistas têm como irremediável denominador comum o ódio ao diferente. Assim, tal característica imanente os torna iguais. Cara de um focinho do outro. No entanto, como a verdade, para ser verdadeiramente verdadeira, deve ser exclusivamente minha, a verdade do outro precisa ser mentira, ainda que ele pense exatamente como eu penso. Desse modo, os fundamentalismos cristãos, os fundamentalismos judaicos e os fundamentalismos islâmicos, dentre outros hebetismos, são, ao mesmo tempo, a mesma coisa e, concomitantemente, coisas distintas entre si. Tais irônicos e paradoxais prolegômenos têm sua razão de ser porque problematizam o recorte temático do ensaio deste capítulo e o alcance de suas conclusões. O foco das considerações aqui apresentadas gira em torno, principalmente, do que alguém poderia tentar caracterizar como fundamentalismo cristão-evangélico-reformado-protestante-neopentecostal no Brasil do início do século XXI. Apesar de foco tão restrito, contudo, muitas questões levantadas provavelmente se aplicam a outros fundamentalismos, igualmente retrógrados e modernos, de outros lugares e épocas. Karen Armstrong marca o final dos anos 1970 como a época em que os fundamentalistas começaram a reverter o protagonismo histórico do processo de secularização, a fim de voltarem com a religião para o centro do palco. Há de se concordar com ela nesse negócio do centro do palco, mas não é possível esquecer que, há tempos, já vinham vaiando

da plateia e incendiando os camarins. Ela também enfatiza que o termo é equivocado, mas que não tem jeito. A noção descreve uma tendência que não pode ser invisibilizada dada sua enorme força de influência nas sociedades modernas, e a palavra “Fundamentalismo” veio para ficar principalmente porque “serve para rotular movimentos que, apesar de suas diferenças, guardam forte semelhança” (Armstrong, 2009). Assim sendo, no propósito de atenuar a impropriedade do termo, a argumentação apresentada neste capítulo irá optar pelo uso da noção “Fundamentalismos” em substituição ao termo no singular. Os reacionários são simulacros de si mesmos, mas não marcham em fila única. Se fosse o caso, inclusive, de se aludir a um conceito bíblico para descrevê-los, seria necessário chamá-los de “legião”, porque são muitos. Suas práticas discursivas estão nos programas da TV aberta, nas orações dos rádios, nos cultos das plataformas de streaming, nos pronunciamentos em câmaras legislativas e no vagar da pregação de vagão nos subúrbios ferroviários. A constatação é inequívoca: A igreja evangélica do Brasil — seja lá o que hoje em dia isso signifique — parece padecer de práticas inquisitoriais atávicas, razão de ser de tantos ódios sem perdão. Por séculos ecoa a pergunta: quando vier o Filho do homem, porventura achará fé na terra? Eco, aliás, pertinente diante do acelerado recrudescimento dos fundamentalismos protestantes. Contudo, já não pergunto mais para onde vai a estrada, pois como dizia Milton Nascimento, sei que nada será como antes, amanhã. Agora falando sério, Meus caros amigos, A gente vai levando. A Marieta manda um beijo para os seus, um beijo na família e nas crianças, mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui está... branca. Diretamente da bílis dos fundamentalistas, o racismo emerge em suas formas tradicionalmente veladas e a problemática racial sequer é cogitada nas igrejas, em seus multifacetados desdobramentos, pelos evanjeguélicos que atribuem necessariamente à cultura africana à pecha de diabólica e demoníaca. A violência simbólica fundamentalista, outrora restrita a ataques verbais e assassinatos de ideias, passou a dar lugar às práticas concretas de intolerância, inclusive com lapidação de crianças adeptas de religiões afro-brasileiras134. Se nem os fariseus de antanho ousaram jogar a primeira pedra, o que dizer dos fundamentalistas apedrejadores de hoje, que primam por chegar de véspera para não perderem lugar na

fila? Esboço do cenário brasileiro. A tentativa de analisar o fenômeno tem muitas possibilidades de entrada. Seria possível, por exemplo, indicar relações de proveniência histórica que remontam há cerca de um século. Isso porque, o uso originário do termo “fundamentalismo” tem suas raízes no apagar das luzes do século XIX, quando foi gradativamente se constituindo um segmento específico do protestantismo americano que se afastou da Teologia Liberal e veio a ser, ao longo do século XX, caracterizado como “fundamentalista”. Nesse contexto estadunidense, convém lembrar, o quadro foi sendo pintado aos poucos, em função das Conferências Bíblicas de Niágara (1883-1897) e, principalmente, em decorrência da publicação de uma pequena coleção de livros sob o título “The Fundamentals: A Testimony of the Truth” (1909-1915). A indicação desses registros, neste tópico do capítulo, porém, não propugna pelo rastreamento de um eventual “marco original”, mas, muito pelo contrário, busca apenas delinear linhas e contornos da construção de um cenário que permita uma análise efetiva da conjuntura. Maiores detalhamentos, diga se de passagem, podem ser encontrados na bibliografia que avalia o tema, vasta mesmo em língua portuguesa (Armstrong, 1994; Boff, 2002; Houtart, 2002; Armstrong, 2009). O caso é que “The Fundamentals”, evidente inspiração para cunhagem posterior do neologismo em inglês “fundamentalism”, realmente forneceu alguns aportes de indução ao movimento. Esse conjunto de uma dúzia de volumes, com dezenas de ensaios, escritos por vários autores diferentes, foi publicado trimestralmente com tiragem superior a três milhões de exemplares e distribuídos gratuitamente, uma vez que os livros contaram com o financiamento de capitalistas do petróleo. A coleçãozinha popularizou uma série de ideias que apresentava como os “fundamentos” da fé cristã, com ênfase principal na leitura literal do texto bíblico. Tais ações disseminadoras foram tão expressivas que implicaram, em meio a outras iniciativas, a criação da Associação Mundial dos Fundamentos Cristãos, em 1919. Tudo isso levou Curtis Lee Laws (1868-1946) a usar no jornal batista “Watchman-Examiner”, talvez pela primeira vez, em 1920, o termo “fundamentalismo” para descrever essa

tendência que ganhara corpo nos anos anteriores (McIntire, 1990). Nesse primeiro momento, o fundamentalismo se caracterizara por ser um movimento de contra-ofensiva a uma teologia, predominantemente européia, que lançava mão de um instrumental histórico-crítico para estudar a Bíblia. Uma vertente que deve ser ressaltada, no seio desse movimento de início de século XX, é o que se caracterizou como dispensacionalismo pré milenista (depois fragmentado em infinitas derivações e detalhamentos). Em linhas gerais, as ideias de John Nelson Darby (1800-1882) foram popularizadas nos Estados Unidos pela publicação da Bíblia de Scofild (1909), na qual Cyrus Ingerson Scofield (18431921) introduziu notas detalhadas sobre as dispensações da história e os períodos das profecias que supostamente se cumpririam no futuro milênio de Cristo, conforme leitura literal de textos apocalípticos. Esse destaque é necessário porque, com o desgaste da agenda fundamentalista, no contexto dos anos 1940, só esses pré-milenaristas ainda se denominavam “fundamentalistas” (Armstrong, 2009), tendo os demais abandonado tais trincheiras lamacentas para arvorarem designações como “conservadores” ou “evangelicals” (termo que, registre-se, não consiste exatamente no que é “evangélico” no Brasil) As influências desse momento inicial dos fundamentalismos no cenário brasileiro foram muito diminutas. Uma tendência na historiografia é identificar Alfredo Borges Teixeira, pela publicação de um livro em 1921 — Maranata — como “inaugurador” do Fundamentalismo no Brasil (Nogueira, 2002), mas isso parece impróprio por uma série de motivos. As igrejas protestantes brasileiras somavam pequeno número e o efeito maior somente seria sentido a partir dos anos 1970, ocasião em que já existiam desenvolvimentos históricos significativos no interior dos fundamentalismos (Dreher, 2002). A Segunda Guerra Mundial, o sionismo, o estabelecimento do Estado de Israel, a Guerra Fria e as disputas no Oriente Médio promoveram mudanças expressivas, ocorrendo modificações e incorporações no conceito do ‘fundamentalismo’ original (de fins do século XIX e início do século XX). A investida sobre a política em nome da religião, por exemplo, que não era muito pregnante no início, é um aspecto central nos movimentos

que ganharam novo impulso após a década de 1970. A “Maioria Moral”, particularmente, braço político da igreja eletrônica de Jerry Falwell, foi um ícone desse novo momento que conjugou, por um lado, a participação ativa na primeira campanha de eleição de Ronald Reagan, e, por outro, a busca pelo efetivo domínio da mídia (Evans, 1991). Nos anos 1990, novos contornos conduziram a uma situação onde o fundamentalismo do século XXI se tornou mais distante do movimento surgido no século XIX, cuja característica básica fora o debate mais focado em torno da teologia bíblica. Sem dúvida, embora alguns segmentos ainda guardem essas marcas mais antigas e já enraizadas, uma boa parte das atuais linhas mestras do movimento são bem diferentes do momento inicial. O que se vê nos EUA, hoje em dia, é algo bem distinto. O programa de ação não é mais tirar o ensino do criticismo bíblico dos currículos dos seminários, mas, sem meio termos, ocupar a Casa Branca e dar conta da governança do poder econômico no bojo do complexo industrial militar. Investigar a atual configuração do fundamentalismo, portanto, implica superar algumas abordagens que já ficaram para trás, mas sem deixar de perceber que a serpente troca de pele, mas continua tão peçonhenta quanto sempre foi. O veneno concentra a mesma toxidade em todo esse período. O que pode recorrentemente ser acompanhado no dia a dia da mídia, justamente porque os jornalistas e articulistas evidenciam o penetrante impacto sócio-histórico do pensamento fundamentalista na contemporaneidade. Como há vários estudos sobre a forma como as práticas discursivas dos fundamentalismos estadunidenses aportaram em terras tupiniquins (Castro, 2003; Baptista, 2017), basta dizer que os engendramentos teóricos articulados nos grandes centros passam a figurar em um quadro de relações absolutamente distinto ao botar o pé na periferia. Em outras palavras, o que aconteceu lá e então, não possui as mesmas dimensões dialógicas do que ocorre aqui e agora. Conforme dito algures, o Brasil não é para principiantes. O grande problema de configuração do cenário é que, na Terra de Vera Cruz, uma igreja fundamentalista é meio viúva Porcina: ela é sem nunca ter sido. O quadro é meio confuso e contraditório. Não existe a “Igreja Fundamentalista” (apesar de, como exceção que comprova a

regra, existirem gatos pingados que se autodenominam como tais, como a Presbiteriana Fundamentalista, por exemplo). Por outro lado, grupos evangélicos das mais diversas procedências — num espectro que vai da igreja burguesa de elite até a mais lumpemproletária — são de fato fundamentalistas, ainda que não sejam intitulados como tal e ainda rejeitem peremptoriamente o termo (Nogueira, 2002). No interior do ambiente evangélico brasileiro, o fenômeno dos fundamentalismos tende a ser considerado, pelos próprios líderes e pastores, como se fosse um dado periférico e exótico dentro do contexto eclesiástico. Ninguém se acha fundamentalista (nem racista… óbvio). O que se constata todavia, é que perspectivas fundamentalistas emergem como principais vozes dentro do protestantismo nacional, pois trata-se realmente de um pilar estrutural, embora pintado com o verniz do negacionismo. Não é o caso, na configuração de um cenário contextual, de circunscrever a discussão apenas em uma redoma religiosa. Na experiência brasileira, fundamentalismos religiosos e políticos são gêmeos xifópagos, principalmente depois das eleições de 1986, que visavam a Constituinte, quando vários parlamentares evangélicos foram eleitos. De fato, a Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988) contou com 33 deputados auto-referidos como evangélicos, praticamente o dobro de evangélicos até então eleitos para o parlamento nacional. Esse aspecto foi amplamente reverberado pela mídia, autora do epíteto “bancada evangélica”, e chegou a ser referido como a grande novidade da época, pelo então presidente José Sarney (Melo, 2018). Desde a legislatura de 1946-1951, a presença de protestantes havia chegando ao máximo de 17 cadeiras (na legislatura de 1983-1987). Particularmente entre os pentecostais, o crescimento foi ainda mais espantoso pois dentre os 33 constituintes evangélicos, 18 tinham origem pentecostal, sendo 14 vinculados à Assembleia de Deus (entre 1946 e 1987, apenas 5 mandatos haviam sido exercidos por pentecostais e nas duas legislaturas anteriores à Constituinte, os assembleianos haviam contado com apenas um representante). Desde então, porém, a coisa toda só piorou. Emendas fundamentalistas superficiais, inicialmente marcadas pela obrigatoriedade de a Bíblia ficar sobre a Mesa da Assembleia Nacional

Constituinte, deram lugar a uma agenda mais sombria que, no apoio célere ao fascismo, fez até Jesus subir numa goiabeira.135 Os fundamentalistas têm tomado para si a condição de atuar nas esferas políticas do poder público sob a premissa de promover a verdade de uma fé dita evangélica. A marca característica dessa dinâmica, entretanto, é um tipo de fisiologismo no qual se aproximam do poder para obter benefícios para igrejas, na base do “é dando que se recebe”. Desse modo, a redução da distância entre os recursos públicos e as necessidades das igrejas também tem tornado a vida no curral eleitoral cada vez mais tolerável. Ao longo das últimas décadas, portanto, os fundamentalistas brasileiros foram capazes de transformar sua expressividade numérica em poder político (Baptista, 2017). Por conseguinte, componentes religiosos e políticos passaram a ser indistintos nos fundamentalismos evangélicos porque, em última forma, representam a consequência lógica de um pensamento que alega possuir uma resposta para todas as questões da vida social (Rocha, 2014). A doutrina religiosa e a causa política, sem maiores dificuldades, se tornam uma e a mesma coisa. É fácil antever mecanismos de transposição. No âmbito eclesiástico, o fundamentalista opera uma gestão autoritária e totalitária do sagrado e do religioso, na qual as relações entre o líder e o rebanho de fiéis são de dominação-submissão (Oro, 2013). Os fiéis de um grupo fundamentalista absorvem do discurso reacionário, sem necessidade de reflexão e por efeito manada, aquilo que precisam obedecer, observar, praticar, e fazer. Ao migrar para a causa política, o político fundamentalista tende a repetir a mesma performance, aduzindo legitimidade, não pela defesa de ideais democráticos, mas pela suposta autoridade de líder pautado em trechos de um texto sagrado. Um exemplo de como isso eventualmente desemboca no racismo pode ser visto no conhecido fato de o pastor de uma igreja neopentecostal, que inclusive chegou a ser presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados do Brasil, ter declarado publicamente que os africanos são descendentes de um “ancestral amaldiçoado por Noé” e que sobre a África repousam maldições como o paganismo, misérias, doenças e a fome136. Os Fundamentalismos e a questão do racismo.

O delineamento da análise irá buscar em Cornelius Castoriadis (19221997) um referencial para elucidar a questão específica do racismo. Esse teórico grego por anos radicado na França, aliás, prefere o uso da noção de “elucidar” no intuito de fugir da inclinação a “explicar”, o que poderia pressupor a intenção e a possibilidade de se dizer a causa originária de um processo histórico, coisa que ele afirma não ser possível. Castoriadis (1991) usa uma expressão interessante — “imaginário radical” — a fim de elaborar a ideia de alguma coisa que seria a condição historicamente implicada em qualquer ação transformadora que incida sobre aspectos sócio-históricos. O social-histórico, nesse viés, é o resultado da percepção da sociedade como um evento único e, portanto, inscrito na história. Para conceber a sociedade como evento histórico, entretanto, há de se considerar que ela possa trazer algo de novo, sendo essa instância de produção daquilo que ainda não existe o que é chamada de imaginário radical (Rodrigues, 1998). Tal imaginário não representa a imagem de alguma coisa, em moldes psicanalíticos, como uma espécie de representação de uma realidade, mas alude ao que seria uma condição/possibilidade de se conceber/construir e fazer surgir alguma coisa que nunca foi instituída antes. Assim, buscar pautar-se pelo imaginário radical é acreditar na perspectiva de superação do já dado, do essencializado, do naturalizado, do instituído. A proposta é a de pensar a transformação histórica como criação exnihilo — “do nada”. Mas não “desde nada” ou “com nada”. O ponto de vista é que não há determinação de causa-efeito na eclosão do novo. Assim sendo, o que se estabelece é a necessidade de se entender o ser humano como dotado de autonomia (o que fundamentalismos calvinistas oportunamente negam) e, portanto, mediante a liberdade de escolhas e arbítrios, capaz de fazer coisas novas, criar e inventar o radicalmente novo. Castoriadis (1991) rompe com o pensamento grego-ocidental de que “ser” é “ser algo de determinado” para denunciar abordagens epistemológicas marcadas pela ilusão de que o mundo estaria organizado em função de uma dada racionalidade, o que permitiria, se fosse o caso, alguém descobrir a lógica dessa organização. Tendo isso em mente, é preciso chamar atenção para o fato de que o

imaginário produzido pelos fundamentalismos é visceralmente nãoradical. Eles não querem saber de nada novo. Qualquer pronunciamento, qualquer discurso, só pode ser enunciado com a condição sine qua non de que seja sempre a mesma coisa a ser dita. O elogio se dá pela circunstância da repetição do já-dito. O “novo” não está naquilo que se diz, mas, no máximo, no acontecimento do seu retorno, daquilo que se repete, que ocorre “de novo” (Castro, 2003). Logo, existem relações estreitas entre imaginário e ideologia. A ação ideológica se insinua frente ao imaginário pela necessidade de produzir uma legitimidade socialmente aceitável. É fundamental que as pessoas percam a consciência de sua criatividade, de seu poder criador, de sua capacidade instituinte. Utopias precisam ser prescritas e projetos de mudança exorcizados. A vontade de Deus é o conformismo social. Por conta disso, alguns autores chegam a indicar a existência de controvérsias acaloradas no interior das próprias tradições cristãs. Habermas (1993) é um dos que identificam debates entre as correntes fundamentalistas e as progressistas, que refletem sobre o desafio pluralista das sociedades modernas. Disputas essas que justamente giram em torno de distintas perspectivas de implantação, ou não, de coisas novas. Para ele, a tendência que leva a escolher modelos do passado como padrões da interpretação do futuro parece ser irresistível. Por isso aponta para o abandono de todas as certezas de uma ideologia que determina à história uma marcha forçada por caminhos já previstos. Daí sua constatação: as teorias não são capazes de transformar o mundo. O que nós necessitamos é de um pouco mais de práticas solidárias. Sem isso, não chegaremos a lugar algum e a própria ação permanecerá sem consistência, e sem consequências. Assim, Habermas (1993) nos apresenta a instigante questão: “deve-se prosseguir na linha dos ideais tradicionais, tentando construir um passado futuro, o futuro que o passado tinha projetado, ou ao invés disso, apreender simplesmente o futuro em categorias do passado, um futuro passado?”(p.10). Ao responder ao dilema, ele vê o mundo cheio de ricas e criativas tensões. Não garante o sucesso do agir responsável diante das diversas possibilidades, mas indica a necessidade de tentar. Por isso, traz luz às cavernas fundamentalistas, onde a letargia das

sombras abissais insiste em se mover num passado que emudece o futuro. Por conseguinte, como sistema de ideias que se referem ao conjunto da vida social, é possível enquadrar os fundamentalismos brasileiros na configuração típica de uma ideologia, pois suas proposições se referem à realidade, não para transformá-la, mas para mistificá-la, como uma forma de ilusionismo ou prestidigitação que permite ao fundamentalista evangélico dizer uma coisa e fazer outra, de modo aparentemente justificável. Destarte, no bê-a-bá fundamentalista, pregar é escamotear. Seguindo essa pista, este capítulo procura considerar a relação entre racismo e os fundamentalismos em termos que não são nem essencializados, nem essencializantes. Mas, ao contrário, condições passíveis de superação. Sem dúvida nenhuma, há um racismo estrutural na sociedade brasileira e nos fundamentalismos que nela comparecem. Mas o que já foi estruturado de um jeito pode sê-lo, em outro momento histórico, moldado de outra maneira. Aqui não se concebe um racismo Gabriela: Eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim. De fato, o que se procura é a tensão inerente inscrita naquilo que é instituinte e o que é instituído, no que é a história já feita e a história se fazendo (Castoriadis, 1991), ou seja, o entendimento do que pode significar o imaginário radical frente ao elemento social-histórico imbricado nas expressões dos racismos fundamentalistas. Sob a ótica do imaginário radical, a análise do racismo fundamentalista nas igrejas evangélicas reformadas, denominadas também muitas vezes de muitas outras maneiras, não se resume a fechar o caixão de corpos putrefatos que por aí walkingdead-perambulam sob alcunha de puritanos, santos, renovados ou o que quer que seja. Urge indagar por práticas imaginárias que substituam a soberania do Deus da supremacia branca e introduzam o novo, o inédito, o não-dado, a novidade, a boa nova. Castoriadis (1992) analisa especificamente o racismo no texto de uma conferência realizada em 1987 e depois publicada como capítulo de livro. Em sua visão, o racismo diz respeito à aparente incapacidade do sujeito se constituir como si mesmo sem excluir o outro. E mais, da aparente incapacidade desse mesmo sujeito excluir o outro sem desvalorizá-lo, o que resulta, em última instância, em decidir odiá-lo.

Nessa linha, vamos pensar no fundamentalista brasileiro. Diante do outro, diante da alteridade, existem 3 possibilidades de avaliação: 1) Considero o outro como superior, logo me submeto e há uma relação de dominação; 2) Considero o outro como igual, logo a relação é igualitária ou de equidade; 3) Considero o outro como inferior, logo o submeto e há uma relação de dominação. O fundamentalista brasileiro, partindo da premissa de que é o dono da verdade, tende a excluir imediatamente a primeira opção, não havendo sequer espaço para diálogo e troca de ideias; ou pela arrogância de quem se acha melhor mesmo e não quer perder tempo, ou pelo medo de quem é inseguro e teme ceder, consumido pelas dúvidas. A ideia de ver o outro como igual, o que seria a segunda opção, é bem rara porque se dará apenas na comunhão com outro fundamentalista. Contudo, trata-se de uma relação sempre em iminente processo de rompimento, pois bastará uma fagulha de mínima discordância para tudo se incendiar. A opção de considerar o outro como inferior, que é eminentemente racista, acaba por ser a mais frequentada, com consequentes relações de dominação. Castoriadis (1992), contudo, indaga: Por que essa suposta inferioridade do outro acaba por se tornar desprezo, ou pior, ódio e loucura assassina? Ha situações históricas em que a vida social sofre processos de deterioração. Há ocasiões, por exemplo, em que a economia não apresenta resultados esperados e a qualidade de vida se torna decadente, o que gera desemprego, caos urbano e cada vez mais fome e miséria. Com isso, a insatisfação das massas tende a crescer. Nesses casos, é necessário achar um bode expiatório, um grupo social ou étnico a quem responsabilizar. Sociedades complexas já têm seus bodes expiatórios definidos historicamente. Isso tudo simplifica o processo em termos de algo a ser naturalizado. Os brâmanes indianos têm os seus, os turcos tinham os armênios, e por aqui herdeiros da Casa Grande ainda ficam brandindo o chicote para as aldeias e a senzala. A ciência (há racismos científicos), a

tradição dos costumes e a vontade de Deus (olha aí os fundamentalistas) geralmente dão o aval para que tudo seja, por fim, legitimado. Os fundamentalistas racistas precisam do outro-diferente para responsabilizar e culpar. Não pode ser um outro-igualitário, há de ser o completamente outro. Eu preciso negar o outro, destruir o outro, que, no final das contas é o culpado por aquilo que eu passo. Estou desempregado, sem dinheiro, doente, com problemas, passando necessidades. Meu ressentimento vai crescendo até explodir: A culpa é do nordestino que recebe bolsa-família, do negro que estuda por cotas, do LGBT que é pervertido, da feminista que conseguiu espaço na sociedade, do meu porteiro que comprou uma televisão maior do que a minha, do filho do pedreiro que conseguiu ser engenheiro. Isso não pode ficar assim, eles precisam morrer! Castoriadis (1992) chega a citar Hannah Arendt para dizer que, para alguns, o intolerável no racismo é o fato de se odiar alguém pelo que geralmente esse alguém não é absolutamente responsável como, por exemplo, o lugar onde nasceu ou sua cor da pele. Tal contingência não é, no entanto, fortuita. O nazista sabe que o judeu será judeu sempre. O supremacista branco sabe que o negro jamais deixará de ser negro. Assim, o que dá suporte ao racismo é o fato de se escorar em características físicas e étnicas, portanto irreversíveis e constantes. Se o racismo se dirigisse para algo mutável, a pessoa poderia fazer uma alteração qualquer e deixar de ser alvo ou objeto da ação racista. Mas assim, o racista perderia o bode expiatório e como iria lidar com o ressentimento, com aquilo que ele odeia em si mesmo e projeta no outro? Por isso, o racismo não quer a conversão dos outros, ele quer a sua morte. O Jonas bíblico não queria pregar em Nínive para que os ninivitas não se convertessem (e aí tudo bem acabar na barriga do grande peixe). O fundamentalista brasileiro não quer a conversão do pecador, porque ele é predestinado para a perdição, precisa ser perseguido. Para o racismo, o outro precisa ser inconvertível. Para não concluir. O grande desafio, em toda essa discussão de racismos e fundamentalismos, é o da alteridade. Para Castoriadis (1991), o que

marca a história é a imprevisibilidade. Muitas análises sociais, inclusive sobre o racismo estrutural, partem da premissa que o mundo já está, desde sempre, firmado em alicerces inamovíveis. O que o construto do imaginário radical permite, no entanto, é a perspectiva engajada de que as pessoas têm diante de si a possibilidade de arrebentar o cadeado do porvir, porque o futuro não deve ser visto como algo a ser pensado, mas, principalmente, um horizonte a ser construído. Não seria adequado ignorar a dificuldade de transformar convicções, opiniões, estereótipos e preconceitos nos sentidos, significantes e significados enraizados na sociedade brasileira. Mas na medida em que a tarefa de interpretar a tecitura social é parte da tentativa de transformála, a perspectiva de elucidar as relações entre racismos e fundamentalismos deve se inscrever numa dinâmica mais ampla e consequente de transformação e emancipação. Segundo Castoriadis (1991), toda elucidação aqui empreendida é interessada, no sentido efetivo de que a discussão — no fundo, no fundo - não quis apenas dizer o que é, pela constatação de imbricações entre racismos e fundamentalismos. O propósito, muito pelo contrário, foi o de indagar o imaginário radical, pelo convite a se fazer o que não é (ainda...). 134 Em 14 de junho de 2015, uma menina negra de 11 anos foi apedrejada por evangélicos ao deixar um culto de candomblé na Penha, zona norte do Rio de Janeiro. A ocorrência foi registrada na 38ª Delegacia de Polícia (Brás de Pina) como lesão corporal e prática de discriminação religiosa. A avó da menina relatou: “O que chamou a atenção foi que eles começaram a levantar a Bíblia e a chamar todo mundo de ‘diabo’, e dizer vai para o inferno, Jesus está voltando”. Disponivel em http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/06/menina-vitima-de-intolerancia-religiosa-diz-quevai-ser-dificil-esquecer-pedrada.html; e em https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agenciaestado/2015/06/16/menina-e-apedrejada-na-saida-de-culto-de-candomble-no-rio.htm. 135 Fundamentalista que respondia pelo Ministério dos Direitos Humanos virou chacota nacional ao implementar políticas públicas reacionárias e publicizar, em 2018, uma história folclórica de transes. Disponivel em https://extra.globo.com/noticias/brasil/futura-ministra-damares-alves-diz-ter-visto-jesusem-cima-de-pe-de-goiaba-23300585.html. 136 O pastor e deputado federal Marco Feliciano, eleito inicialmente nas eleições parlamentares de 2010, com mais de 200 mil votos, é um exemplo típico de alguém que já foi acusado de racismo, homofobia, misogenia e, até, infidelidade partidária. O caso contra os negros é apenas um, de longa lista. Disponivel em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2011/03/31/deputado-federaldiz-no-twitter-que-africanos-descendem-de-ancestral-amaldicoado.htm.

Biografia dos Autores Alexandre de Carvalho Castro é Doutor em Psicologia Social, autor de pesquisas e estudos sobre práticas discursivas do fundamentalismo. Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais (PPRER) do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ). André Leonardo Chevitarese é Professor Titular do Instituto de História da UFRJ. Leciona e orienta no Programa de Pós-Graduação em História Comparada do IH-UFRJ e no Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do MN-UFRJ. Carlos Gustavo Direito é Juiz do I Tribunal do Júri do Rio de Janeiro. Professor PUC/RJ. Mestre e Doutor em Direito (UGFUVA/RJ). Carlos Ziller Camenietzki é Doutor em Filosofia pela Universidade de Paris IV – Sorbonne. Professor de História Moderna do Instituto de História da UFRJ. Elcio Sant’Anna é Doutor em Ciências Sociais, mestre em Ciências da Religião, e teólogo, atualmente tem pesquisado as narrativas de religiosos como linguagem de configuração social. Professor de Bíblia hebraica e de Religião e cultura da Amazônia na Faculdade Batista Equatorial – FATEBE, e participa do Grupo de Pesquisa Religião e Quadrinhos – ARTEMI. Elizete da Silva é Professora doutora, titular plena da Universidade Estadual de Feira de Santana. Coordenadora do Centro de Pesquisas da Religião. Vice coordenadora do GT História das Religiões da ANPUH. Ivan Dias da Silva é Doutor em Ciência da Religião (2016) pela Universidade Federal de Juiz de Fora – MG, com estágio doutoral sanduíche na Baylor University, Texas - EUA (2014-2015), período em que também foi pesquisador convidado no Southwestern Baptist Theological Seminary, Texas - EUA; Diretor do Seminário Teológico Batista Sul Fluminense (Volta Redonda - RJ). Jefferson Ramalho é doutor em História (UNICAMP), mestre em Ciência da Religião pela (PUC-SP), licenciado em História pelo Centro

Universitário Assunção (UNIFAI) e bacharel em Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. É professor na graduação em Pedagogia da Faculdade de Osasco e na pós-graduação em Religião e Cultura do UNIFAI. Realiza desde 2019 seu pós-doutorado em Ciência da Religião na PUC-SP. Juliana Batista Cavalcanti Miranda Tavares é Graduada em História (Licenciatura e Bacharelado). Mestra em História Comparada (IH/UFRJ) e atualmente faz doutorado na mesma instituição. Coordenadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER-IH/UFRJ). Tem experiência em Estudos de Gênero, História das Religiões (com ênfase em Cristianismo) e História Antiga. Lair Amaro dos Santos Faria é Doutor pelo Programa de PósGraduação em História Comparada (PPGHC) do Instituto de História (IH) na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e possui graduação (bacharelado e licenciatura) em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007). Marcio Simão de Vasconcellos é Doutor em teologia sistemáticopastoral (PUC-RJ); mestre em teologia sistemático-pastoral (PUC-RJ); especialista em Ciências da Religião (FATERJ); bacharel em Teologia (STBSB e UMESP). Membro do grupo de pesquisa Moradas (PUC-RJ). Rodrigo Farias de Sousa é Professor de História da América – Séculos XIX e XX do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é Bacharel em Teologia (STBSB/RJ-1998) e Ciências Contábeis (UNA/MG–1994); PósGraduado em História da Filosofia (UGF/RJ-2000); Mestre em Ciência da Religião (UFJF/MG–2015); Doutorando em Ciência da Religião (UFJF/MG). Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ). Professor no Seminário Teológico Batista Carioca e na Pós-Graduação em Ciência da Religião da FBMG. Tayná Louise de Maria é graduada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Comparada - IH/UFRJ, onde desenvolve pesquisa sobre fundamentalismo religioso. Pesquisadora do Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER).

Índice Onomástico A Arqueologia,11, 62,82, 221

B Bíblia,15,35, 48,60, 62, 84, 100, 116, 136, 151, 177, 187,199, 212

C cristão,9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 22, 25, 27, 28, 29, 31, 32, 34, 35, 47, 48, 49, 57, 63, 65, 66, 67, 69, 76, 77, 84, 89, 94, 95, 97, 104, 105, 106, 107, 108, 111, 112, 113, 118, 120, 124, 131, 133, 136, 138, 141, 143, 147, 148, 152, 153, 157, 158, 161, 162, 165, 175, 176, 177, 179, 182, 196, 198, 201, 202, 209, 210 Cristão,33, 109, 181, 195, 212

D deus,172 Deus,15, 16, 18, 21, 23, 24, 25, 28, 33, 35, 40, 42, 57, 58, 59, 84, 85, 86, 88, 89, 90, 91, 92, 96, 97, 98, 99, 100, 102, 103, 104, 105, 114, 115, 120, 121, 122, 123, 124, 126, 137, 140, 146, 147, 152, 159, 167, 171, 172, 173, 174, 177, 180, 188, 190, 194, 195, 196, 197, 198, 205, 214, 217, 218, 219

E Estado,18, 23, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 35, 42, 43, 44, 49, 63, 69, 70, 80, 81, 97, 98, 100, 101, 103, 105, 106, 108, 112, 117, 125, 133, 137, 146, 159, 166, 168, 177, 179, 180, 182, 183, 184, 191, 192, 198, 199, 201, 202, 203, 208 Evangelicalismo,7, 12, 150, 155, 156, 157, 158, 159, 160, 162, 163, 196

F Fundamentalismo,14, 15, 16, 22, 23, 29, 31, 32, 33, 34, 35, 94, 95, 96, 97, 98, 101, 106, 107, 109, 112, 117, 118, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 129, 131, 132, 133, 134, 135, 137, 138, 139, 140, 141, 143, 144, 145, 147, 148, 151, 152, 153, 154, 155, 156, 158, 159, 162, 163, 164, 165, 168, 169, 170, 172, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 190, 192, 193, 194, 196, 197, 198, 199, 200, 201, 202, 207, 208, 212, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 220

I Identidade,21, 27, 35, 79, 100, 106, 133, 139, 145, 146, 148, 151, 158, 183, 192 Igreja,19, 22, 23, 24, 25, 26, 28, 30, 32, 35, 49, 50, 51, 62, 67, 68, 70, 74, 76, 81, 84, 85, 86, 97, 103, 107, 108, 109, 112, 117, 119, 120, 123, 125, 126, 130, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 142, 144, 145, 146, 147, 152, 154, 155, 156, 157, 177, 178, 179, 182, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 192, 193, 194, 195, 196, 199, 205, 210, 212, 213, 214, 215, 218 Iluminismo,6, 10, 16, 36, 37, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 81, 84, 139 Intolerância,7, 8, 9, 12, 33, 99, 108, 123, 130, 135, 147, 148, 200, 201, 202, 203, 204, 205, 207, 208, 211

J Jesus,7, 18, 25, 51, 67, 89, 102, 103, 106, 118, 120, 121, 122, 123, 127, 136, 138, 143, 145, 151, 152, 163, 190, 214

L

Literatura,7, 11, 65, 70, 75, 76, 84, 87, 90, 91, 92, 94, 164, 192

M Modernidade,6, 19, 20, 24, 27, 29, 62, 63, 81, 83, 84, 85, 86, 94, 95, 96, 101, 111, 121, 129, 134, 139, 145, 151, 156, 169, 172, 175

O Ortodoxia,7, 15, 95, 97, 107, 110, 117, 119, 120, 121, 123, 125, 134, 172, 187, 191, 195, 199

R Racismo,12, 27, 198, 210, 215, 217, 218, 219, 220 Resistência,7, 84, 90, 91, 105, 108, 115, 116, 117, 118, 125, 126, 129, 131, 145, 172

S Scopes,6, 11, 30, 31, 100, 111, 112, 117, 137, 138, 163, 194

T Teologia,7, 9, 11, 18, 19, 20, 25, 26, 34, 58, 84, 85, 86, 90, 92, 95, 96, 97, 99, 101, 102, 103, 106, 108, 109, 116, 118, 120, 121, 122, 125, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 142, 144, 146, 152, 153, 154, 155, 173, 176, 179, 180, 187, 189, 190, 191, 192, 195, 196, 198

U Universidade,11, 30, 51, 71, 72, 109, 112, 135, 151, 158

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