Filosofia africana: Da sagacidade à intersubjetivação, com Viegas

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José P. Castiano

Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação .

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Índice

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Dedicatória ...... ... ........... ...... .... .... ......... ...........·:\ ... ...'. .. ..... ·7 Agradecimentos .. ... ................... ... ....... ... ,.. ... .. .... ... :.......... 9 Introdução .... ......... .. ................ .... ................ ...... :.... ..... .... 13

FI C HA TÉCNI CA Titulo: Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas Autor: José P. Castiano

Parte I: Porquê Entre-Vistas com Viegas? ...................

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A Sagacidade em Viegas.. .... ....... ........ ... .......................... Educador Humanista "Universalocal" ..... ........ .. .... ......... · Filosofia ou Filosofias? .............................. :..... :.... :.:... ....... Sagacidade: Uma Sabedoria Proverbial ou Filosófica? .. . Foi Viegas um Sage Filosófico? .......... .... ................ :.:..'..... Aculturar a Filosofia e Modernizar Tradições -. ... ;.......... Contra o Tradicionalismo Cultural ........ ~. . . ... . . . ................ ...... Resistindo à Tentação Antropológica ............ .~: ..:...... .. .. .

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Colaboraçào: Arão Armindo Come ; Adérito Adriano Miguel e Santos Chaguala Revisão do Texto: Albino Chavale

Parte II: Entre-Vistas Sagaciosas com Viegas .............. 65 Entre-Vistas I ..... .... ...... ................................ ,.. .. .. ;'. ...... :...' 66 Autobiografia do Jovem-Antigo ... ... :.. .. :.:... ..... :.. :~ .. .:·.. .'.... . 67 Sobre a Religião e Reconciliação .. ... .... .' ... ...... ..... ... .... :.:::... 77 Sobre a Paz e a Justiça .. .................. :........ ........ :... :.: ....... :. · 84 Sobre a Religião Cristã e o seu Papel ...... ... ..... ........ .,;..... 86

Editora: Educar, Universidade Pedagógica - Maputo Co-ediçào: ISOED, Instituto de Investigação Social e Educação Fotos: José P. Castiano Capa: Jubel D. Castiano ArTanjo Gráfico e Paginação: Publifix Edições ·Impressão: Publifix Edições Tiragem: 1500 exemplares Registo: 8396/ RLINLD/ 2015 Copyright: © Reservados todos os direitos.

t: e.xpressamente proibida a reproduçilo total ou parcial desta obra por qualquer mero.rnclurndo a lotocópia e o tratamento informático, sem a autorização expressa dos titulares dos direitos. PubliFlx Av. Agostinho Í\leto N.º 70 1O, 1.º Andar Tel/Fax: +258 21 314382 Email: [email protected]: [email protected] www.publifix.co.mz Maio de 2015 - Maputo - Moçambique

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Entre-Vistas II .. . .. . .. . .. .. . . .. .. . . . . . .. . .. .. .. .. .. .. .. . .. .. .. .. .. . ... . .. .. .. .. 111 Uhuru, at least: Sobre a Liberdade .... .......................... .. 111 Liberdade como Escolha entre o Bem e o Mal ....... ....... 118 Sobre a Educação e Valores ...... ........ ...... .. .. .... ..... .......... : 134 Sobre o Lugar da Mulher e da Criança ............. :.. .. ..... ... ,138 Sobre a Convivência Inter-Religiosa: "Somos pa_cíficos, · não passivos" ........ ..... .. ....... ......... ................ ... ... .·... .. ........ 141, Sobre o Projecto "Aldeias Comunais" ............... ;............. 146

Entre-Vistas III

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Ensino e Religião ......... ... ...................................... ... ........ A Frelimo é como um Homem: Transforma-se .... ....... .. Democracia Multipartidária .... .... .. .. ................................ Sobre a Identidade e a Unidade Nacional .. ....................

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Parte III: A "Quarta Entre-Vistas" .............................. 173

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Parte IV: A Morte e o Reviver do Ubuntuismo ........ l 75 Este trabalho foi escrito no âmbito do projecto lvlodernizando Tradições registado no Centro de Estudos Moçambicanos e Etnociências [CEMECJ da Universidade Pedagógica [UP].

A Morte do Indivíduo ··· ··· ····································!······ ···· 176 A Morte Social ··········· ········· ········ ······································ 183 Sobre a ''.Nobreza de Espírito" ...... .. .............................. . 189 O Proprium do Humanismo Ubuntuista ...... .. ........ .... .. . 192 O Fim? ···· ··································· ·· ·· ·································· 196

A realização do trabalho de campo para este livro em Nampula foi facilitado pelo projecto Barómetro da Educação Básica em Moçambique do Instituto de Investigação Social e Educação [ISOEDJ, financiado pelo Mecanz'smo de Apoio à Sociedade Civil [MASCJ .

Referências Bibliográficas ........ .... ................................ 209 Anexos O Ensino de .Valares Culturais: Exemplo da Cultura Makuwa (por: Alberto Viegas) ..................... 213 Reflexão sobre Filosofia Social (por: Alberto Viegas) .. . 223 Obras e Títulos Honoríficos de Alberto Viegas .... ......... 23 7

A produção final deste livro foi financiad a pela Dele~ gaçãó de Nampula da Universidade Pedagógica, no âmbito

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da realização da Conferência Alberto Viegas: Modernizando Tradições, na UP Nampula, Maio de 2015, organizada em homenagem ao 1.º aniversário da morte de Alberto Viegas .

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Dedicatõria Aos actuais e futuros estudantes de filosofia, que não perdoam - todavia compreendem - as minhas "ma tendências" sage-filosóficas; espero, com este livro, ter conseguido proporcionar uma proposta teórico-metodológica aos que acreditam e buscam as condições de existência de uma filosofia moçambicana aculturada, todavia carecem de propostas de fundamentação das possibilidades de uma existência universalocal [ou "globalocal", como escreve Alberto Viegas] da mesma. Mas sobretudo que saibam resistir às tentações do tradicionalismo ["filosofia africana dedica-se somente sobre feitiçaria, curandeirismo, proverbialismo, misticismo, etc."] e do antropologismo [textos descritivos sobre cultura, hábitos e costumes, religião, etnia, mitos, etc. com pretensão de serem filosóficos] quando o assunto na mesa for filosofia africana, em particular filosofia moçambicana.

- Devemos resi'stfr à idàa da possibilidade etnofilosófica da existência de uma filosofia moçambicana sem filósofos, i.e., sem os seus sujeitos discursantes!

Dedico também ao Mário Viegas, o filho.

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Agradecimentos É urgente entrevistar o velho.' Porquê mio o telefonas para ele vir cá? Ainda temos uma hora aqui ... - era o Rogério Uthui a estimular-me a realizar a que seria então a primeira das entre-vistas, aproveitando a estadia na UP Nampula e no fim de mais uma "reitoria aberta". É mudo pouco tempo para o que quero! -foi a minha resposta, um pouco vaga . Se eu tivesse aceite, talvez a quarta das "entre-vistas" se tivesse realizado ... Quero agradecer ao Uthui pelo estímulo e apoio, por vezes silencioso, contudo compreensível e providente, a este projecto de preservação do património intelectual desta nossa comunidade de destino: Moçambique.

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O César Cumbe, o tal de" escritas urbanas", emprestou me o famoso e moderno gravador, este instrumento prestável e sobre o qual não se cansava de me perguntar conseguiu trabalhar com ele?- após cada regresso de Nampula. Obrigado, César, por ter sido tão palite no teu discreto perguntar-de-volta.

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Quando duas semanas depois regressei à Nampula para, finalmente, iniciar as primeiras "entre-vistas", foi debaixo da umbrela das jornadas de investigação social e educacional e sob o olhar condescendente dos meus colegas mais chegados do ISOED: o suspeicioso e interrogativo olhar de Severino Ngoenha, a admiração do Manuel Zianja e os comentários profundamente ingénuos, mas nem por isso pouco geniosos, de Félix Mulhanga. Obrigado colegas "confidentes" .

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Contudo, para chegar ao César, tive que passar pela colega e investigadora do CEMEC, Emília A. Nhalevilo, a quem agradeço pelos estímulos recebidos, pois, é no CEMEC

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Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viega·s

José P. Castiano

onde se aloja o projecto "Modernizando Tradições" n:o qual etl--··- · contrei muitos pré-textos metodológicos acerca da "necessidade e urgência de perguntar aos velhos" sobre as tradições vivas deste país em busca de respostas do ainda-por-vir.

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A Universidade Pedagógica, Delegação de Nampula, foi ex celente em todo o tipo de apoio que facilita a vida nestes. casos : alojamento , sala para as entre-vistas, finalização do livro, etc. O Mário Jorge Brito, o José Baptista, a Ermelinda: Mapasse, o senhor Iapissa e o Felizardo Pedro foram excelentes por terem ido, muitas vezes , para além d.o que deviam nos apoios prestados . Kina Xocuru! , A "dupla" Stélia Muianga e Valéria Zandamela-Zava1C '"·,:. -- --. minhas assistentes científica e técnica respectivamente, ve~~ tilaram um ar fresco no meio do trabalho árduo e conjunto. De alguma forma elas entenderam a urgência e a emergência das entre-vistas com o Viegas e, por isso, fizeram o "trabalho escondido" , implícito e importante, em momentos e tempos de inspiração. Em qualquer escrita há aqueles a quem nós secretamente dizemos : se não fossem eles ... ! Estes "eles" são três estudantes de sociologia, nomeada~ente o Arão Armindo Come ' o Adérito Adriano Miguel e o Santos Chaguala que se deram o trabalho de transq-ever o texto-mãe do gravador; agradeço todos vocês pelos olhares duvidosos que me lançavam e pelos vossos domingos e noites a "trabalhar". Ao Bento Rupia coube a sorte de tê-los apresentado. Ao "irmão" Mário Alberto Viegas, que teve a grande " sorte " de ser o filho único e amigo confidente do seu próprio pai "jovem-antigo", mas EJ.Ue teve o "azar" de- ouvir o velho chamar-me também, por vezes, meu filho!. Obrigado Viegas-filho por teres gentilmente facilitado o acesso aos argui-

vos do teu pai mas sobretudo por teres autorizado espiritualmente esta entrada na tua rica privacid_a de . Acho que ._.... minha . não tinli.as como não me deixar entrar ... Há outras "duplas" que me foram valiosas : nomeadamente Albino Chavale e Orlanda Gomane, Dulce Pereira e Stélia P. Novo, o Simão Capece e o "primo " Agostinho Sacatúcua. Eu deleitei-me em deleitá-los com alguns trechos deste texto, enquanto escrevia. O Chavale, sob o pretexto de correcção do texto, discretamente, sugeria melhorias. Na verdade, os reais benificiários são os "meus" descendentes: Ivandro, Zildo e "mano" Jubel que aturaram o "velho" , cada um à sua maneira. Especialmente ao manoJubel de quem recebi muito apoio, sempre dis c:Eeto e modesto, durante as minhas crises informáticas, infelizmente cíclicas. Minha profunda gratidão à Queeneth Mkabel.a que tratava de me recordar que ainda tinha uma 1 tarefa a cumprir com o velho Viegas; mas sobretudo agradeço-a por nunca ter-se esquecido do conselho que o Viegas dera um dia durante uma palestra pública: que ela deve aprender a observar que, quando o marido regressa do trabalho ou de qualquer viagem ela não deve "olhá-lo pela cara", porque esta é a mesma com que saíra antes, e não altera. Deve sim "olhá-lo pela barriga", visto que é esta que pode aumentar e diminuir de volume, consoante as circunstâncias, indicando se comeu algo ou tem fome 1 • Pois é, a cara é sempre a mesma, mas a barriga pode estar cheia ou vazia e, para além disso, a alegria e a felicidade, se de algum lado provêm, é mesmo da barriga ... 1

Cfr. Viegas, A.:. O Ensino de Valores Culturais: O Exemplo da Cultura Makuwa. Título da palestra durante a Conferência sobre os Saberes Locais e Educação organizada pelo CEMEC em Maputo, Setembro de 2009. Viegas foi o convidado para proferir a comunicação de i:i.bertura. Decidí incluir o texto completo na parte final deste livro, dada .a .sua importância.

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Finalmente um n 'dakhuta, khanimambo aos colegas da UP pelo Mitsein heideggeriano ...

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Um espectro paira sobre a filosofia africana contemporânea2 e, por consequência, a filosofia moçambicana: é o "fantasma" das tradições africanas expressas pelos seus guardiões e embaixadores culturais - os "filósofos" pela sagacidade. Estes são a'}ueles que usam a riqueza da sua cultura-de-base para interpelarem à humanidade inteira . O seu público é glocal ou glocalocal. Isto é, interpelam o global a partir do local, interpelam os problemas globais enriquecendo-os com soluções locais. Trazer o seu saber para o espaço público e académico, é o-que-há-por-fazer da filosofia contemporânea moçambicana, se esta tem a pretensão de sê-lo com legitimidade; é o maior desfio da imer-subjectivação . E Viegas é apenas o início .

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Quando o assunto é a sagacidade filosófica, como veremos, não se trata de buscar ou explorar a sabedoria de ·- um analfabeto ou semianalfabeto: pode ser também ele um letrado . Não se trata apenas de ocupar boras de conversas com um velho: embora geralmente seja nele que encontramos a sagacidade. Não se trata de fazer entre-vistas com um homem: há muitas mulheres que o são porque geralmente são observadoras e guardiãs da cultura. Não se trata de um homem ou uma mulher que vive no campo, numa vila recôndita, longe da civilização: o sagaz ou a sagaz pode também viver na cidade e cultivar o urbanismo, como aliás é o caso de Viegas. 2

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Parnfraseo Karl Marx e Frederich Engels no início do tex to O Manifesto Comunista: "Um espectro paira sobre a Europa: o especcro do comunismo ". Algumas vezes a palavra alemã G'espenst rrac.luz-se por "fancas1na", no lugar de "espectro".

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Há uma "longa marcha" ainda por fazer para o cresei: - ·mento da filosofia africana em geral, e da moçambicana em particular. Todavia, ela, a filosofia africana vai crescer entorpecida se não escutar os "colegas" da sagacidade filosófica e se não for aos espaços públicos onde eles cultivam e divulgam a sua filosofia . E quando nos aproximarmos dos sagazes, nós os filósofos profissionais vindos das academias, devemos desmistificar a ideia de que corremos em busca de "fundamentos últimos" ou de quaisquer espiritualidades por trás e por debaixo da africanidade da nossa filosofia. Devemos ir ter com os sages para debater temas contemporâneos e estar atentos ao discurso crítico por eles cultivado . ~

É imperioso, para o crescimento da filosofia africarf~, desmistificar-se esta ideia de buscar seus "fundamentos tradicionais", ideia que uma boa parte de filósofos africanos defende, como Ondó> por exemplo, colocando-se na linha tradicionalista da filosofia africana fundamentada por Anta Diop e outros afrocentristas. Trata-se sirri, de ir discutir com eles assuntos contemporâneos da experiência intercultural africana com o pensamento, valores e instituições da modernidade ocidental e oriental. Mas mais do que isso, trata-se de construir espaços de intersubjectivação donde dar-nos-emos conta dos olhares críticos e vigilantes destes coleg.as filósofos, guardiões das culturas locais . Trata-se, sobretudo, de descentrar o debate no seio da filosofia intercultural que se põe a si própria fronteiras ao dirigir o seu olhar de interacção para o Outro do Ocidente ou Oriente, e pouco ou quase nada para a diversidade nas culturas filosóficas locais. 3

Ondó, E.N . (2001) : Sín tesis Sistemática de la Filosofia Africana. 2ª edición . revisada. Alternativas/ ediciones carenas . Centro de Estudios Africanos , Universidad de Murcia . Espanha.

Enfim, quando aproximarmo-nos aos sagazes filósofos, trata-se ge. desenvolver a dimensão horizontal [nossa .iriter -relaçã~ entre as culturas locais] da interculturalidade filsÓc fica, junto à dimensão vertical [nossa relação com o Qcidente ou o Oriente], esta última dimensão já bastante desepv~lvida no ambiente académico africano. Para que a filosofia afric~­ na cresça e se legitime enquanto tal, a "grande escolha:' est~ entre tecer um diálogo intercultural simultane~mente hprk

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zontal e vertical ou perecer. O espectro da sagacidade filosófica que teima em pairar sobre a filosofia africana tem, porém, uma longa história de mistificação e desmistificação de si mesmo. TemI,Jels e Oruka sã~, talvez, os marcos fundamentais desta história: da mistificação do espectro da tradição [o primeiro] e da tentativa de sua de;mistifi.cação [o segundo]. Oruka, porém, ,re-mistificou porque perguntou aos sages sobre temas que ele achava serem somente eles os competentes: sobre os e_spíritos, sobre as lógic~s po~ detrás da cultura lua e outras do Q~énia. Ele, com as suas entrevistas, empurrava-os para - isto é, cpnde~ nava o~ sages a - serem eminentes. c~mpetentes s~q~e su"as tradições, e quase nada sobre temas contemporâneo11 que apoquentam a África e o Mundo. O que nos deve interessar nos sages é, todavia, interrogar assuntos contemporâneos sobre ~ experiência africana com a modernidade. Concomitantemente, o meu piscar de olho para o Viegas é sobre assuntos da nossa historici,d,ade co"ntemporânea moçambicana. E ele responde a esses assuntos_a partir da sua cultura makuwa. Porém, paulatinamen~e fui descobrindo que a cultura makuwa era, para ele, aP~nas um (mas um bom) pret~xto par~ atingir_o univer~ª14~~f!Pº< Deixei-me surpreender, nas entre-vistas ~om, Vi~ga~, _pelq seu olhar crítico expresso por debaixo das suas . histó~ias ' e

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O livro fecha com dois artigos do Viegas, sendo um sobre a filosofia de educação de valores e um outro sobre filo-

provérbios locáis. Deixei-me também deleitar pelo seu método de interpelar a universalidade inspirando-se na cultura makuwa ...

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sofia ·social africana. Sinto-me na obrigação de dizer o seguinte acerca do

Basicamente, este livro aproxima-se aOdera Oru~a pela . via do método da sagacidade por ele usado e afasta-se dele pelos conteúdos dos quais me interesso em saber dos sages. Não estive à procura de mundos antigos e nem ulti:a-passados. Estou à prÔcura de passados-vivos e suas respostas e propostas aos problemas de hoje. Como disse algures, busco nos sages soluções locais aos problemas humanos de hoje e do futm~o. Por isso, pergunto-me, na primeira parte, sobre as razões que me levaram a entrevistar Viegas. A breve resposta é simples: encontrei nele a sabedoria filosófica. Na segunda parte transcrevem-se as entre-vistas sobre temas contemporâneos da nossa 'historicidade moçambicana: desde a Independência até à democracia multipartidária, passando pela religiãb. Na' terceira e última parte interrogo-me sobre as razões da morte social e da falta de "nobreza de espírito" sobretudo dos intelectuais. Isto sempre com Viegas como o exemplo do engâjamento intelectual pelas causas que abraçou; enfim, como exemplo da intersubjectivação. Termino a terceira parte com uma proposta de modernizar a filosofia prática do ubuntú; modernizar significa, neste contexto•, fundamentai: uma nova ética ubuntuísta que lhe tire do gheÚo '~m que se meteu voluntariamente por cllltivar valores 'qu~ t~m a sua lógica numa perspectiva comunitária de '\lida; consequ'entemente redutora; pois, quando já vamos num conte~to d.é."viver juntos" numa nação, mais cosmopolita e Ôhde 'â. êtica . de tidadania é chamada, o ubuntuismo já não ehcoiitra resppstas adequadas. · , i' '

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Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

motivo que me levou a escrever este livro: - Sobre os saberes locais só oiço por parte de colegas na academia apelos para a sua "integração", "consideração", "inclusão" ou ainda "valorização" no contexto da educação. Os pedagogos fa;em mais ruído neste sentido. Todavia poucos "fazem" os próprios saberes locais; ou seja, há muito poucos intelectuais que na realidade os incluem, integram, ·valorizam na sua acção pedagógica ou nas aparições públicas. E os poucos que optaram por esta abordagem - e aqui tiro o chapéu aos etnomatemáticos moçambicanos - preferem extrair o saber deixando o sujeito deste saber de fora. Foi contra isto que me revoltei na obra Referendais da Filosofia Africana por trás do conceito "intersubjectivação" . Neste livro tento contribuir para fazer sobressair o su .1

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~ jeit.o por trás do "informante" ~u do "fa~tasma" na filosofia

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o Parte l: PORQUÊ ENTRE-VISTAS COM VIEGAS?

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Logo de início, uma pergunta óbvia: porquê entre-vistas com Alberto Viegas? A resposta mais próxima à pergunta é a seguinte: cada encontro com ele, cada vez que eu o escl).tava, ficava fascinado pela sabedoria que ex~bia. ~pquanto o escutava, era como se eu fosse ao encontro d~ mió.4a_ própria ignorância sobre os segredos do mundo qu,e nos '.~pdeia: : Ele tinha a capacidade de expressar pensamentos myito ÇOtl1; plexos escolhendo palavras mais simples qu~ er_à:. possível ouvir de alguém. Recordo-me que, a primeira e a únic.a vez que o filósofo moçambicano Severiric) Ng~e~ha ·o esc'ú tara a dissertar sobre o tema O Ensiná d~ °Val;rJ~ C~ltur~i~: :o

Exemplo da Cultura Makuwa nu~a ~onferêncià' oigani~~~ da pelo CEMEC sobre Saberes Locais e Ed_ucaç5o ; nô -full :

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da sua apresentação e também fascinad~ com:à suá'·r~tóri-~~) aproximou-se do Viegas e disse-lhe, co~ um ~orriso 'abêrt~;

-Ô Viegas, acabaste de me converter para a etno-filosó/;,a!"

A Sagacidade em Viegas

Mas era mais do que fascínio o. que eu sentia .. Eu tinha a certeza que aquelas respostas que dava às_qtiestõ.es que lhe colocavam, em público ou em privado, tinham um sentido muito profundo, se assim quisermos, quase comparáveis' áo que Platão sentira em presença de Sócrates. O motivo prin---::cipal para as entre-vistas foi esse impulso p~atónico, e sobretudo orukiano, em registar ou "resgatar" [como se diz agora

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futuros sobre os sábios e os sages - e aqui colocamos o Viegas exemplarmente - deverão poder mostrar qual é, nos contos , o texto-produto que é transcrição de "contos populares" do interior das culturas particulares e quais as partes dos textos constituem utopias dos seus sages individualmente.

no brasileirismo] os saberes locais e endógenos, para posteriormente servirem de matéria no ensino do nível universitário e outros, mas sobretudo na educação dos moçambicanos mais ~i.ovos. A minha intenção, porém , não era apenas para, depois das entrevistas, introduzir estes saberes em forma de "apêndices" ou de mais um "exemplo local" na estrutura e ordem científicas formais pré-estabelecidas pelo cânone pretensamente universal. Como iremos notar no texto, há pensamento crítico no substracto das suas respostas, substracto este que, vindo a ser matéria de análise e lucubrações de forma sistemática e na perspectiva intercultural, poderia constituir-se em um embrião do referencial da intersubjectivação no tratamento da filosofia africana em Moçambique. Sobre esta matéria já tratei num dos meus livros anteriores. 1

Por outras palavras, as entre-vistas reproduzidas na segunda parte deste livro poderão servir, futuramente, como material de "discursos de primeira ordem" para alimentar "discursos de segunda ordem" - sendo estes últimos de natureza filosófica - segundo se entende numa perspectiva da hermenêutica africana. Há, portanto, muitas perguntas; mas sobretudo há análises que se podem e devem ser desenvolvidas em cima das ideias expressas nos textos das entre-vistas, desta feita numa perspectiva da filosofia africana em geral , e a moçambicana em particular.

Uma segunda razão para as entre-vistas resulta do facto de o Viegas não ter sido somente um sábio no pretenso sentido africano, nomeadamente o de ser uma "biblioteca viva". Muitas vezes, porém, por trás do sentido biblioteca viva está a idefa de que "não sabe escrever" ou "não escreve". Viegas éscrevia e o fazia muito bem! Ele cultivou um estilo de escrita p~culiàrmente africano: escondia o comportamento das pessoas e os valores societais que pretendia criticar através dos seus contos e fábulas por trás dos animais que "falam" e emitem juízos. Estes abundavam nas suas histórias, como aquela sobre O que nos dizem certos animais? Caberá, no entanto, aos analistas literários de forma geral, e aos filósofos em particular, a tarefa de, futuramente, diferenciar entrce o texto que é fiel aos contos populares da sua cultura de base makuwa e confrontá-lo com as partes do texto que reflictam a utopia de Viegas, como pensador. Ou seja, estudos

A terceira razão prende-se com o facto de o Viegas ter sido mestre de uma retórica que fascinava seus ouvintes de tal sorte que se prendiam às suas palavras, sem sentirem cansaço; era um exímio cultor de um método próprio e inovador .. : quando dissertava sobre temas diferentes que se propunha · .~.,- abordar e ajudar-nos a iluminar; de facto, era um orador e escritor muito cuidadoso e metódico: punha o peso necessário em cada palavra e não era de se perder em adjectivos . Mesmo quando introduzia piadas nos seus discursos , estas encaixavam que nem uma luva no tema em causa. Em numerosas ocasiões nos sentimos desconcertados pela simplicidade com que esmiuçava assuntos complexos e _delic_ados da nossa vida, usando como pretexto de aprox1maçao ao tema 0 ângulo da cultura makuwa . O seu método era usar a cultura de base [makuwa] para se dirigir ao nacional e ao universal.

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Saberes Locais na Academia: Condições e Possibilidades da sua Legitimação. Editora Educar, CEMEC, UP. Publifix, Maputo

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Mas há uma quarta razão pela qual estas entre-vistâS"' com o Viegas tiveram lugar [por esta estar em último ·lugar aqui, não significa, todavia, ser a menos importante; de facto, é a razão fundamental]: ele reflectia e abordava sobre temas contemporâneos da política e da sociedade a partir da sua utopia axiológica, muitas vezes, como dissemos acima, por trás dos animais. Assim, criticava comportamentos errados, não verdadeiros, a partir do que considerava deve!:_~ser os valores ideais sob os quais a comunidade e a sociedade moçambicana deveriam conviver. Para além disso, Viegas, como filósofo, endereçava os seus textos a toda uma comunidade universal e não apenas ao seu povo makuwa. Aliás""'°o.< povo makuwa e as suas diversas formas de expressar os v:tlo-- .. :. ~~ res societais, constituía o place - no sentido empregue por Molefi Asante de "lugar", "local" ou "ponto de partida" de vantagem epistemológica - a partir do qual Viegas se dirigia a toda uma comunidade humana universal para expressar o seu ponto de vista epistémico e axiológico. Sob este ângulo podemos afirmar que Viegas era sobretudo um homem de reflexões filosóficas de natureza ético-comunitária e social com incursões políticas sobre assuntos contemporâneos que o inquietavam .

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ser analfabeto da vida, visto que no ambiente rural nada saber,á fazer para a sua sobrevivência e para o . seu .. bom ~~Íacionamento com os membros da comunidade onde for a viver. :./

Sendo assim, onde é que deve estar o centro de vali; dação dos saberes? Até aos tempos actuais os saberes têm sido validados partindo do ponto de vista do moderno, isto é, do lado literário. Para este lado, todo aquele que ~ão sabe ler e escrever, ou seja todo aquele que não tem conhecimento literário, é considerado como sendo um analfabeto. Esta forma de analisar e definir os fenómenos sociais corresponde à verdade no seu sentido absoluto? Perante tal situação das coisas, há toda necessidade dé existir uma estreita aliança entre os saberes literários e os saberes socioculturais, um casamento entre' O rtiodernb e o tradicional, tomando o ensino ou a educação num sentido de globalocalidade, isto é, ter em cohsideração o aspecto global e local, não apenas um contexto ." De imediato, três aspectos deste escerto ~os conduzem para o carácter universal do seu adressat. O primeiro, está mesmo no título onde se ressalta que a cultura maku\s.;a ser~ ve apenas de exemplo para olhar o ensino de valores para um contexto mais amplo da educação. segundo, ressalta a forma como ele, comparativamente, define o ·conceito do analfabetismo: contextualizando-o ·de forrha -a:rialítka. O terceiro, olhando para o sentido mais 'global, dó ;local, que inclui a criação de um conceito próprio dó ·Viegas ~ ;o de

[ . . . ] "Portanto, para o homem rural o analfabeto é aquele que não sabe fazer estas coisas reais e necessárü1s na sua vida e que não conhece as normas morais da sociedade . O saber ler e escrever nada diz para o seu viver lá no ambiente geográfico concreto em gue ele se encontra enquadrado. Neste contexto, um sábio universitário pode

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A título de exemplo, veja-se a citação que se segue, retirada do seu texto O Ensino de Vt1,lores Culturais do qual já fiz referência 2 :

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Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação corri Yiegas

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"globalocalidade". Nas entrevistas dirigidas por Oruka no cont~xto d~ sage, philosophyabuntlam t~mas-corn ênfase da esfera ~~t~físi~~- ca, ou ~eja, temas ligados à Deus, à religião, aos · ritv,ais d,~

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morte, etc. Eis, ainda hoje, uma tendência que _noto entre _?.,S

O texto completo está inserido, em anexo, neste livro. \

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jovens filósofos africanos que vão ao encontro dos "velhos". Estes são tendados a indagar os velhos concentrando o seu interesse cognitivo em somente informar-se sobre o que entendem ser tradições, costumes e rituais que respondam ao questionamento sobre como se fazia antigamente? Mesmo que procurem abordar sobre temas contemporâneos, nas questões que estes jovens filósofos colocam os velhos para darem respostas, está subjacente a intenção de saber sobre o aspecto de como se fazia antigamente responder-se-ia à questões contemporâneas, ou seja, como faria a minha avó perante este facto? Estes podem ser problemas de carácter individual [como é o caso de doença] , de fórum familiar [tais çomo divórcio , infertilidade, etc.] ou de índole sociocomunitário [pensemos nos conflitos, na baixa produtividade, na fome, na gestão populacional, etc.]. E, nisto tudo, fazem uma confusão tremenda entre o passado e o ultra-passado. Pois, aquele ainda exerce influência sobre os nossos valores e acções enquanto o ultra-passado já o faz na forma e conteudos de contra-valores.

\Filosofia Africana: da Sagac idade à lntersubjectivação com Viegas

Falei com o velho Viegas na 5 .ªFeira antes de ele nos "despedir)) [isto é, falecer]. Eu venho falar consigo para saber do programa do funeral, porque não posso faltar. Quando nos encontrássemos, ele me tratava por "meu filho"- Ele, sempre que publicava alguma coisa, tratava de me informar. Uma vez, vendo que ele traúa debaixo do seu sovaco um conjunto de folhas dactilografadas, mas sobretudo cheias de rabiscos à mão, eu lhe pedi que m'os mostrasse e ele, de forma educada, respondeu: "Eu escrevo para educar aos meus filhos e gosto de ed~car quando tenho alguma coisa escrita e dizer - está aqui [o livro], vai ler.1 Por isso espera até que este livro [referia-se o manuscrito que trazia no sovaco] esteja pronto e publicado para eu te oferecer". Dias depoú ele me hgou e me perguntou se eu possuía 100 M eticais: "Meu filho - disse ele ao telefone ainda - encontrei na rua o meu livro à venda [referia-se ao livro Educação Tradicional Makuwa : Ritos de lmáação publicado pelo Centro Catéquico Paulo VI, Anchilo, Nampula 2012] e cada exemplar custa 100 Meticais". Veio pessoalmente busrnr o dinheiro e foi comprar o livro para me oferecer. Desde então ando sempre com o livro e está aqui hoje comigo .

Educador Humanista "Universalocal"

Começo, de seguida, pelo retrato humanista universalocal do Viegas, depois abordar a sua "sagacidade filosófica" para, num ponto mais abaixo desta parte, enquadrá-la no cômputo geral dos debates que animam a filosofia africana contemporânea. Quando, a 2 de Junho de 2014, estava à espera para deslocar-me à Çatedral de Nampula, onde iria assistir o decorrer das cerimónias fúnebres, aproximou-se de mim um dos funcionários da Residencial da Universidade Pedagógica 0 senhor Iapissa - que narrou o seguinte episódio:

Este episódio, parecendo banal, mostra , porém, o quão profundamente humano e descomplexado era o Viegas. Pois, a ele, todos, num gesto de reconhecimento da sua simplicidade, chamavam "professor", "velho Viegas", ou " papá Viegas": Nunca ensinava ou falava de assuntos sobre os quais antes não tivesse reflectido profundamente; e esta reflex ão era acompanhada pela escrita; escrever, para ele, era como o acto de conceber uma "carta axiológica" para educar ao seu povo makuwa e moçambicano ; ensinava, sem humilhar 0 próximo, investindo bastante energia em evitar colocar-se ., na posição de um sábio - que, de resto, era - e colocar ao

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Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

outr o numa posição de aluno - que, na verdade, érani'o-; · · E nsinava p elo exemplo não apontando o dedo p ara "tu fa zeres o que e u digo ". Mas fazia sempre questão de divulgar o que sabia o u sobre o resultado das suas reflexões. Era uma espécie de um peregrino palestrante sobre os segredos dos assuntos que a nós nos poderiam parecer complex os e embaraçosos de abordar.

de 1>aída seguro para afirmar-se na moçambicanidade ·e na africanida_,d,$!. Aliás, este aspecto metodológico de apelar ao universâl, baseando-se nas ofertas da sua •cultura origin~h, é obje;cto de reflexão algures nas entre-vistas.

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Como afirmei acima, de fa cto, Viegas era um sábio; ma·s mais do que isso, era um sábio filosófico . Discutirei estas categorias mais adiante, ao interpretar as suas ideias com mais cuidado e à luz dos desafios da filosofia contemporânea tradicional. Entretanto - um alerta preliminar e, aliás, a vida e pensamento demonstraram isto - teremos que re~u~ - . •sar permanentemente a tentação de apresentá-lo ou reduzi-lo à categoria de utn "sábio makuwa" . Eu era um dos que assim pensava antes das entre-vistas , confesso. Notei, ao longo das entre-vistas que, sob a capa da sabedoria e contos makuwa ' ele ia crescertdo em mim como um sábio inter- e transcultural, e mesmo com a pretensão de atingir uma dimensão universal nas respostas que dava aos desafios contemporâneos da política e cultura moçambicanas.

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Um exemplo sobre este último assunto: no seu livro Lunga: À Guisa de um a Retrospectiva ele conta como, aflito, recebera ajuda de um cidadão da religião muçulmana, após esta ter-lhe sido recusada por um "irmão branco católico" como ele próprio fora . Diz ele que este episódio lhe fez " transcender as fronteiras da côr da pele, da etnia e da pertença religiosa," para simplesmen te buscar uma dimensão universal do humanismo. Assim, a cultura makuwa era para ele apenas um ponto de partida seguro para falar,s em etnia, raça, género e nem religião, para os nossos corações e nossas mentes . A cultura makuwa era' para ele o ponto \

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Um segundo ex emplo: na comunicação sobre · 0 "Papel da Universidade no Desenvolvimento da Comunidade na Universidade Pedagógica em N ampula (2013), o Viegas contou uma história que bem testemunha a sua sagacidade filosófica: chegar ao universalismo a partir de um ponto onde ele tinha os seus pés bem firmes. Este ponto firme é a sua cultura makuwa. A história trata de. um macaco que, n.{im belo domingo pela manhã, julgou ter salvo um peixe que aparentemente se estava a afogar na água ~m que nadava. Entretanto, para nós humanos racionais , é claro que. o pGixe estava a "afogar-se" somente na óptica do pobre macaco, por este não saber nadar, mas sóbretudo/ 's upõe-s·e, não raciocinar. Para "salvá-lo", o nosso macaco retirouOo peixe da água do lago para a terra firme. E o macaco ; ao ver o peixe mexer-se fora da água abrindo o máximo a boca na tent ativa desesp~rada para respirar, pensou que este tratava de ·lhe mostrar o seu contentamento e que aquele gesfo de abrir a boca lutando pela sobrevivência, indicava um sorriso. Tendo-se afastado do peixe, satisfeito porquê·acàbàra .de "salvar uma vida", mais tarde, quando regressava, o macàco decidiu passar pelo local para "visitar" o seu amigo a quem "salvara" do afogamento pela manhã; Dá-se conta que este morrera. Mesmo assim se afasta assobiando, com·a sua cons• ciência tranquila porque, pensou, "pelo menos morreu· feliz · o coitado do peixe". Não é necessário dizer que ~ macaco representa a universidade e o peixe a comunidade .. Ou melhor: O Viegas chamava aos unlversitáriosp or .ign ofuhtes por procederem como "macacos"' p~lo men~s ·p~la f~rma

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'F,ilosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

como se comportavam diante das comunidades . Compare-se a sua definição .de "analfabeto" na citação do seu texto nas páginas precedentes. ~

sua vez, em "espontânea" e "dirigida" . Aí compreendi que, o que Viegas tratava em adaptar e adaptar para a retórica da sua oratura nos espaços das universidades, dos ministérios e dos colóquios internacionais quando era convidado , era o que ele entendia por educação tradicional "informal dirigida" ["aquela que, sem distinção do género, era de igu al modo dirigida para a transmissão das normas e valores d a convivência comunitária " , escreve Viegas no livro Educação Tradicional Makuwa dos Rapazes e Raparigas]. Portanto , ele esforçava-se por universalizar o seu particular.

Ambas histórias mostram o sentido crítico, acompanhado por um humor são, que ele detinha ao transmitir o seu saber e suas reflexões sobre os fenómenos: ·simples, lógico e deixava espaço paú a auto-reflexão - senão como interpretar o que ele define como sendo "globalocalidade"J?

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Para além disso, Viegas, mais do que transmitir os seus pensa~entos, obrigava aos seus ouvintes (e obriga ainda hoje aos seu.s \.eh.ores) a pensarem por s\. mesmos, a sU.!:\:YteenC..e-

rem~se de forma crescente ao longo · da sua oratura e, neste

caso, do se~ texto escrito. Este é um asPecto que notaremos nas entre-vistas, Admirado pela atenção que os seus ouvintes sempre lhe prestavam, uma vez lhe perguntei "qual era o seu segre d o para despertar tanto interesse quando falava?" [os filósofos

cha~am a es~e do~

por retórica], ao que ele, em resposta, sorriu par~ mim, dizendo: é a cultura makuwa, meu filho.' A

form_a con:o eles dizem as coisas e transmitem os seus valores E! .a minha fonte de inspiração.

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Evidentemente que ' na altura , eu na-o perceb.1 b em o que queria dizer . A resp os t a, essa, so- mais . tarde apareceu . diante d~ mim, tão claramente, quando li o livro que o senhor Iapissa, o tal da Residencial Universitária da UP N tl . .d am pt a, tim1 amente me entregara. Ele escreve, neste livro sobre a educação tradicional makuwa dividindo -a por ''" ~ t l" "t ' , in arma e ormal , . A educação informal subdivide ele, por 3

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Este esforço, aliás, fica bem patente no seu artigo R eflexão sobre Filosofia Social onde argumenta que os africanos possuem também História e Filosofia, mesmo que recusad as pelo Ocidente. Ele afirma que a filosofia african a caract eriza-se por estar "aliada à prudência, virtude que nos ensin a a ter cautela nas afirmações e nos actos" . No que diz respeito particular à filosofia makuwa, outro intento que procura d emonstrar, Viegas afirma que estas.e manifesta pela aplicação de "provérbios, adivinhas, contos . e fábulas na resolução d e ~ litígios que ... surgem entre os homens em geral." O leitor .... _: pode ler directamente este artigo inserido neste livro . P ortanto, aqui o Viegas tenta demonstrar a universalidade e a particularidade - a universalocali"dade - da filosofia africana e a de um povo concreto, o niakuwa . Estas posições não são obras de um sábio somente; são obras do que chamamos aqui por sagacidade filosófica. Ou seja, a sua retórica era produto de uma reflexão profunda , sim, de uma decisão reflectida e metodológica , tomada por cima das categorias por ele encontradas na educação tradi cional makuwa. É a arte de se tornar um sábio universal sem ter deixado, no entanto, de ser fiel à uma cultura particular -··" •de origem , onde, repito, tinha os seus pés firmes .

A e~pressão "globalocalidade" é usada por Viegas num d contidos em anexo t . N h os textos " 1 l"d d " E nes e 1ivro. goen a p refere usar "glocal" ou g oca i .ª ~ . u uso o ~ermo "universalocal " e "universalocalidade" como ad1ecnvo e substanuvo respectivamente .

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Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Vie gas

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de _uma filosofia africana ou de várias "culturas filosóficas" africanas?' E,"ainda mais do que isso, coloca-se º 'problema das condiçÕes e das possibilidades da produção _pe uni dis" curso filosófico que se quer e pretende africano , _o u seja, que pos~a dar con~a da ambiguidade - se toma;mos ~i;nlinha de conta a "oscilação" entre o dito moderno e o dito tradicional - com que esta filosofia se vê confrontada para a. validação

Ele ensinou-nos que a umca forma de entrarmos n ó -·--

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universal hoje, é com os pés bem firmes nas nossas culturas par ticulares. Estas devem proporcionar-nos referências básicas, sem as quais entramos no dito mundo global, logo de partida, argumentativamente a perder ou perdidos. A reflex ão consciente sobre a metodologia e sobre a retórica sob as quais descansam as culturas ditas tradicionais africanas é um dos grandes desafios dos jovens filósofos africanos contemporâneos, e deve tomar-se a sério. Este desafio coloca-se particularmente com mais acutilância àqueles que se dediquem a encontrar novas roupagens na dita sagacidade filosófica iniciada por Odera Oruka; sobretudo porque hoje os próprios-- ·~: .~ ..~ sucessores desta escola filosófica parecem começar a pô-la d ci - -,, ~~

e legitimação públicas do seu discurso . Se e~trarmos pela via da unicidade na cultura filosófica ~fricana torna-se evidente perguntarmo-nos .sobre as_.condi: ções e as possibilidades da sua existência ú11Íca e unificadíJ.. Trata-se de uma questão do propium da filosofia africana no universo da filosofia em geral, ou seja, da sua particulárídade e identidade na construção de um saber que se conv:encio-' nou designar por filosofia. Então se coloca o problema ~a historicidade da · filosofia africana no âmbito dà . cons:th1ção do pensamento filosófico na História da húmanidade_, ·_·

lado sem razões aparentes ;4 Por isso se impõe, a partir das raízes e luzes lançadas pelo jovem-antigo Viegas, reflectir sobre a questão "filosofia africana " hoje. A vida e o pensamento de Viegas, mais do que oferecer, impõe-se-nos como a ocasião de renovação do discurso sobre a filosofia africana com roupagens universalocais, e, sobre tudo, como possibilidade e condição da intersubjectvação.

Filosofia ou Filosofias?

A questão filosofia africana hoje, particularmente quando pensamos no seu ensino como uma cadeira universitária, já não é se ela, a filosofia africana, existe ou não . Assim colocada, a questão já se encontra desgastada. O problema de hoje é o âa sua uniciâade ou diversidade, ou seja,fala-se

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Como iremos ver, alguns filósofos afriea"nos busfilci'sófj_a afrkana a partir do campo da cultura milenária e dan·esp~C·" tivas tradições. Os que defendem a especificidade o\Tc historicidade do 'pensar filosófico africano - tanto os ·que· sublinham à liberdade, com os que o fazem pela via da cultuiá - ·orientam a sua busca para um certo sentido e significado qué sejam comuns aos africanos. Buscam o espírito unifica-' dor cÍue justifique um lugar próprio da filosofia africanà no conce~to da filosofia mundial, mesmo que esta busca se justifique ultimamente -"-p glos probJemas_de furido_"_ou p~ los "substractos mentais culturais ou filosóficos" - como

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Conferir em O I nt er-Munth u, livro a publicar pelo autor, no capítulo sobre a Escola de N airobi. \

' É a questão da sua sistematização trazida para o terreno didáctico.

!_ . ") José P. Castiano

F.'ilosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

pretende Ngoenha no seu livro sobre o fenómeno da biopolítica em Moçambique6.

No entanto, seria ousado e, de certo modo , exagerado falarmos de "clivagens" linguístico-epistemológicos entre es tas duas tendências, que levariam a uma espécie de cisão de vida ou morte. O facto de, infelizmente, as grandes obrasfundadoras da filosofia africana terem sido escritas nestas duas línguas não é suficiente para classificarmos ambas, na base disso, como sendo "paradigmas" ou "correntes" da filosofia africana. Um estudo mais aprofundado no interior destas duas tendências.poderia deixar surgir muitas aproximações temáticas que se cruzam entre elas e poria rapidamente de lado uma classificação do género, isto é, baseada em línguas coloniais.

Portanto, não se\ ra.ta de evidenciar uma cronologia da história do pensamento filosófico africano, senão de sub~e­ ter esta cronologia ao crivo dos problemas que se avizinham . problemas que estão a caminhar do futuro para 0 presente: Ou 's eja, uma presentificação de utopias.

._ ~e: to~avia, optarmos pela via da sua diversidade, que alias e mtnnseca ao próprio debate filosófico, então encon-

tramos, consequentemente, diversas formas de sistematização. A_ ·di~isão: que parece mais óbvia é aquela que obedece, em primeira lmha, ao carácter regional-linguístico, .tirando o· [des]pro_veito do facto de que a colonização europeia sobre o contmente africano, em muitos casos, fez-se coincidir com a c.o lonização epistémica. Assim se fala de uma filosofia africana anglófona, francófona e, ultimamente, lusófona. A primeira vista parece tratar-se da língua como 0 denominador comum para a unificação das filosofias. Ou seja, por trás das línguas francesa, inglesa e portuguesa procura-se derivar um_ deteArm~nado proprium destas filosofias africanas a partir da 1~flu:nc1a recebida das respectivas metrópoles europeias. Assim, a filosofia africana anglófona se atribui um certo empiricismo resultante, obviamente, dos debates e inclinações filosófi~as da ~otência colonizadora [Inglaterra] e pelo facto de multas filosofas provenientes dos países africanos anglófonos terem sido treinados naquele contexto ou terem seguido teorias produzidas naquele contexto. Da mesma forma atdbµi-se uma certa inclinação para debates identit_ários-existencialistas à filosofia africana francófona devido ao ~egad_o dos d~bates na França em torno da sua língua, nac10nal1dade e certo sentido revolucionário. 6

Cfr. N~oenha, S.E. [2013]: Intercultura, uma Alternativa à Governação Bzopolztzca? Publifix/ISOED, Maputo . p.23 .

No caso da filosofia africana, dita lusófona, pode efectivamente notar-se que a língua não constitui um elemento suficiente que determina a direcção futura do debate e muito menos o seu Roten Fade na ligação com o passado, não o ultra-passado. Como escrevemos (com Ngoenha) no primeiro número d'O Curandeiro: Revista Moçambicana de Filosofia, "a Coruja da Minerva chegou tarde nos países africanos :-- de língua portuguesa, porém não tarde o suficiente para não -. _: fazer parte da construção de um-novo saber filosófico africano". A chegada "tardia" da filosofia africana, pelo contrário, determinou para que esta, nos países lusófonos, não fosse refém dos já "envelhecidos" temas sobre a sua exis.t ência ou não e sobre seu pretensioso tradicionalismo e relação com o passado, ternas esses levantados pelas etnofilosofias e suas congéneres africanistas . Como escreve Groys no seu tratado dedicado ao que chama por "antifilosofia", o filósofo é um homem simples da rua , que se perdeu no mercado global das verdades, e agora procura encontrar uma placa de saída .7 Para o caso 7

Groys , B. [2013]: Introduçiío à Antifilosofia . EDIPRO . São Paulo. p . 8 .

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Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

da :filosofia africana, Ngoenha refere-se à sua característicâ '"···· de ser "incerta", "inacabada", "instável" e mesmo de "equivocidade" como sendo o mais importante e precioso nela. É uma :filosofia em perigo de morte ou que vive perigosamente, escreve eleª; ou ainda, como dizia Mário Viegas, especificamente para o caso da :filosofia moçambicana, ela sofreu muitos "KOs" ao longo da sua curta existência. Embora fosse geral para a filosofia em África, este carácter precário e perigoso da sua existência e crescimento foi ainda mais doloroso nos países africanos de expressão portuguesa; isto determinou a sua chegada demasiadamente tardia por estas regiões linguísticas.

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Não obstante esta classificação da filosofia africana se~ - . :. •• guindo as regiões repouse sobre um pressuposto formalmente correcto [línguas, cultura formal colonial], no entanto diz muito pouco sobre os seus conteúdos específicos e, de consequência, ainda menos sobre seus métodos. Concordo com a crítica levantada contra Oruka, segundo a qual, a então tornada "clássica" divisão da :filosofia africana por ele defendida, em quatro direcções ou tendências [trends], é mais de natureza metodológica que sobre os conteúdos que essas mesmas correntes aportam para 0 debate no interior das filosofias praticadas em África. Todavia é preciso ter em mente que, quando Oruka apresenta as quatro tendências da filosofia africana, em Agosto de 1978 no 16.º Congresso Mundial de Filosofia em Dusseldórfia na Alemanha, referia-se simultaneamente aos conteúdos e métodos sem no entanto preocupar-se em distinguir especificamente uns dos outros. )

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Cfr. Ngoenha, S. [2013 ): lntercultura, Alternativa à Governação Biopolítica? ISOED/Publifix. Maputo. p.43.

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As quatro . direcções .ou tendências orukianas, então anunciadas! §;;í..o: a :filosofia profissional, a filosofia política ideológica,. a etnofilosofia e a sagacidade filosófica. Escusamos dizer que ele próprio - Oruka - pretendia anunciar, naquela Con/erênáa, o nascimento da sua própria corrente, a sage philosophy. No entanto, foi e é esta sistematização que é seguida em muitos países africanos - assim também pelas poucas universidades europeias em que se lecciona filosofia africana - para ensinar ou abordar, ou melhor classificar . . . as correntes. da filosofia africana. Até certo ponto, estas cor, "··: rentes .são tratadas ' como sendo "escolas de filosofia". Não . . esqueçamos que, no entanto, naquela época e contexto em que Oruka escreve, havia uma suspeição g~ral sobre a existência ou não, em África, de um pensamento parecid~ coll). :filosofi~. Portant~, estávamos perante uma reacçãó africana ao cepticismo europeu acerca da sua exist~ncia e perÚn,~nc~i1 à qual Oruka e os seus contemporâneos procuravam. contrapor respondendo afirmativamente. Resulta daí, o factc;i de estes textos terem sido comparativos e se preocupassem el.Jl encontrar semelhanças com elementos e direcções das :fil,osofias nascidas em contexto europeu - Oruka mesmo comp~ra os sábios que entrevista com Sócrates pelo factb, de este nunca ter posto em papel o que pensava.

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Desta forma, o que é importante fixarmos nesta divisão orukiana é a tentativa em superar, sem no entanto deitar fora, a etnofilosofia, particularmente do modo como foi propost..a; por Tempelsem Bantu Philosophy. Corria-se o.risco,temfa Oruka, de a crítica unanimista de Hontoundji - que não tole~ rava facto de Tempels tentar impingir uma antrop.ologia de carácter colonial disfarçada e revestida em termos de :filosofia africana ["uma antropologia com pre tensões filosóficas"n os termos dele] - poder impedir o desenvolvim~nto de uma

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filosofia africana que tivesse em conta os "nossos Sócrates" .ou sábios, mas sobretudo o risco de se matar a dimensão filosófica que ·se encontrava por trás das sabedorias contextuais. Portanto, .os Jour trends de Oruka devem compreender-se no quadro daquele debate, o da necessidade de "provar" a existência autónoma duma filosofia africana. Repito, tratavase, para Oruka, de não deitar fora os nossos Sócrates por causa da crítica unanimista hountondjiana.

À esta tentativa de sistematização seguiram-se outras procurándo encontrar "filosofias" de diferentes rumos, porevestidas da mesma ancestralidade, a partir de uma mesma mãe: África. Em African Philosoph:y: ln Search of its Identity, Dimas Masolo começa por caracterizar o debate em torno da filosofia africana como uma reacção às dúvidas do Ocidente em relação à nossa capacidade de pensar racionalfnente. Daí que ele sistematiza o debate sobre a filosofia africana, condiciona mesmo a sua génese e identidade, como sendo- respostas à esta inquietação visceral expressa no dis curso sobre a ciência. Masolo chama a isso the rationality debate [debate de racionalidades] e, a partir desta base, divide as respostas em logocentristas e emotivistas, classificando-as como dois sistemas ou campos em luta pelo controlo sobre a identidade que a filosofia africana deveria tomar 9 • Escusa dizer que os emotivistas aceitam a singularidade da filosofia africana em desenvolver-se a partir de outros elementos do pensamento - desde que não fossem estritamente orientados pelo logicismo - tais como provérbios, lendas, contos,

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Dimas Masolo escreve: The birth o/ the debate on African philosophy is historically áúociaied with two related happenings: Western discourse on A/rica and the African response to it. Linhas depois acrescenta: At the center o/ this debate is the concept of_reason, a value which ,is believed to stand as the great divide between the civilized and u,;civilized [savage], ·the logical and the mystical. ln: Masolo, D. A. [1995]: African Phzlosophy in Search o/ Identity. East African Educational Publishers. Nairobi. p .l.

·~ilosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Vieg8s

hábitos. Enfim, admite-se também que a literatura e a oratura sejam consideradas fontes de extracção da filosofia no contexto específico africano. Numa recente publicação, W. Lajul 10 fala em criticai dimensions, referindo-se ao que comummente se considera como correntes na filosofia africana. Ele prefere o termo "dimensões críticas" porque, na sua óptica, a filosofia africana tem a ver com reflexões crítiéas sobre a "exp~riência africana" relativamente ao seu passado e presente. Assim, filosofia africana é um "programa" com vista à uma construção e reconstrução, à reinvenção do passado africano e à criação de uma gnosis para chegar à soluções de problemas concretos que afectam a vida e a existência em África. Deste modo justifica-se falar de "dimensões críticas" e não de "correntes", segundo Lajul. Para ele, as dimensões críticas da filosofia africana são divididas em tradicional e moderna - trata -se de um conceito que nos recorda o que Oruka chama por "culturas filosóficas". Nesta óptica de Lajul, as filosofias tradicionais africa'." nas seriam aquelas que, duma ou doutra forma , põern muito ... .: peso na questão "herança"; ou seja, uma verdadeira filosofia que mereça ser africana, deveria buscar as suas raízes no contexto próprio cultural africano, ou por outra, na forma específica africana de pensar o mundo e agir sobre ele, sobretudo antes de ser contaminada pelas formas exógenas de saber e agir. Assim, a fonte da filosofia africana deveria ser procurada nas ditas tradições africanas, isto é, nos seus provérbios, cantos, mitos, dizeres, etc. que as animam.

.. 10

Lajul, W .: [2013]: Africcm Phzlosophy. CrúicC1l Dimensions. F o unrnin Publishers. Oxford, UK.

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Por seu lado, a filosofia africana moderna, diz-nos Laju l; é aquela que deriva as suas lucubrações do que chama "problemas do presente" africano . O passado já não teria muito a dizer a nós os modernos, segundo esta dimensão crítica. Assim, esta dimensão ocupa-se em analisar a África política, . social, económica e religiosa de hoje. Adoptando esta perspectiva, nos haveria de interessar encontrar soluções para os problemas, por exemplo , da democracia liberal, da educação, da economia do tipo liberal assim como do desenvolvimento ou ainda sobre as possibilidades de uma convivência inter-religiosa no nosso Continente hoje. Mais do que despender energias na busca da compreensão filosófica do ~real a partir das "raízes" e "heranças" egípcias ou dongons ; só -·:, .· para mencionar algumas civilizações africanas antigas. Desenterrar esqueletos dos armários etiópicos ou das pirâmides faraónicas não é e nem procura ser o apanágio da filosofia contemporânea africana. Por baixo da dimensão crítica da filosofia tradicional africana encontramos , agora sim, trends ·[tendências] tais como e etnofilosofia, a sagacidade filosófica e a filosofia literária ou artística. Por seu lado, por baixo da dimensão crítica da filosofia moderna africana encontramos a filosofia nacional-ideológica, a hermenêutica, a filosofia profissional e o que ele chama por equalisation philosophy [filosofia da "igualização " ]. Esta última tendência mencionada - a filosofia africana da igualização - faz justiça ao seu próprio nome: é caracterizada e informada pela ideia de que os europeus, no fundo, não acredítam que exista uma filosofia africana; e, por isso

mesmo, alguns filósofos africanos, por intuírem esta descrença, orientam a sua escrita e saber procurando demonstrar a sua existência a partir da perspectiva de sua comparabilidade "[igualização]" com as filosofias eUrbpeiás. Entendem como sua missão subjacente retrazer determin.ados tenias 'e categorias da filosofia africana pretensamente· similares colli os temas e categorias elaborados no contexto das culturas filosóficas ocidental-europeia e americana desde os mitos; oráculos, até aos elementos e categorias da racionalidade. Quando, por exemplo, se trata de mitos, os igualitaristas tentam demonstrar, a todo o custo, que "na Europa também existem mitos", ou seja, que estes não são exclusivos para os africanos . Da ~esma forma, quando se trata de categorias pretensamente ocidentais - exemplifi9.uemos a "substância" em Aristóteles - os igualitaristas procúrani, desta feita, encontrar elementos semelhantes no interior dás ctJturas filosóficas dos povos bantus, iorubas, e por aí em diante.

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Abstraindo-me de qualquer juízo . de valor, que pode ver-se algo positivo neste empreendim~nto: o esforç9 igualitarista-comparativo pode pôr à disposição dos filósofos africanos alguns subsídios para aproxipiar-se à universalidade da filosofia e, para além disso, constituir-se como . bom pressuposto na busca de uma filosofia intercultural, c;omo aliás é o caso de Odera Oruka na medida em que este defende a intuição como o conceito básico das epistemologias adjacententes à todas culturas filosóficas do universo . Sobre este assunto, a intuição e o seu papel na filosofia do mínimo em Oruka, volto a desenvolver mais no livro O Inier-Mun~

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Sagacidade: Uma Sabedoria Proverbial ou Filosófica?

. Serão provérbios [e outras formas de expressar o pensamento fundan)ental por via de contos, adivinhas,· axiomas, etc.] uma forma de filosofar tipicamente africana? Esta é uma questão que o cidadão c;on:mm africano, mas sobretudo estudantes iniciantes de filosofia, se colocam. Filósofos profissio~ais e outros académicos poderiam achar esta questão - que cada ano se renova - bastante ingénua por de~ons­ trar cer.Eº tradicionalismo, já ultra-passado. No entanto, 'ela é somente ingénua à primeira vista. Uma verdadeira atitude filosófica africank, penso, deveria estimular-nos para pe~sar sobre âs causas da persistência desta pergunta no nosso meio. Ou seja, perguntar-se: porque é que cult~ralment~ desconfiamos que, por trás dos provérbios e estas outras formas de expressar sabedoria, exista "algo de filosófico"? Slavoj Zizek, embora não fosse o seu tema principal tratar de provérbios como forma de filosofia, expressou, todavia:, algum cepticismo em relação · aos provérbios em poderem constituir-se como fontes para extrair qualquer conteúdo filosófico : Ele denomina provérbios como uma das categorias de muitas "tautologias profundas" que inundam b nosso quotidiano e que usamos "quando não sabemos o que dizer; mas queremos mostrar que somos profundamente sábios'-'. ·De facto, como ele diz, tautologias ta,ís como "vida é vida", "tudo o que nasce tem que morrer" ou "um dia vais pagar pelos teus erros" ou ainda "quanto mais alto se sobe, maior são às consequências na queda", podem ser atribuídas a qualquer acontecimento ou fenómeno com que nos deparamos nas nossas vidas 11 • 11

Zizek, S. [2013]: O Ano em que sonhámos perigosamente. Relógio D' Água. Lisboa, Portugal.

Filosofia Africana: da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

Aqui demos exemplos de provérbios, mas também poderíamos estender para mitos, lendas, contos e todas estas expressões que pensamos que nos ensinam muito mais sobre a existência do que wna grande lição discursivamente bem elaborada. Apesar deste cepticismo de Zizek quanto aos provérbios, existem várias.posições de filósofos africanos que mostram grande persistência em regressar ao "o que é nosso" em termos de filosofia, referindo-se à capacidade "nata" dos africanos em expressarem a profundeza do pensamento sobre a sua própria experiência no [e existência com o] mun do circundante através de provérbios, mitos, contos e outras formas de oratura. Pensa-se que, por trás ou no substracto destas formas de oratura, podem deduzir-se sistemas profundos de pensamento comparáveis aos grandes sistemas filosóficos do Ocidente. O expoente máximo desta linha de pensamento é T empe1s que chega à conclusão de que o ser é para a filosofia rnetafísica europeia como a/orça vital o é para os povos bantu. Esta conclusão é deduzida por Tempels a partir da análises ~ de dizeres, de mitos e sobretudo das ditas crenças dos ba. ,.,....; lubas do Congo-Belga em amuletos e outras formas "tradicionais" de expressarem o seu pensamento mais profundo.12 Um outro exemplo é o próprio Oruka, mas também Sodipo e outros filósofos de Kinshasa, que se puseran1 a entrevistar pessoas nas aldeias e cidades - não somente velhos e homens, mas também jovens e mulheres - que eram por eles seleccionados como sendo sábios, para deles "extfiür" conteúdos filosóficos.

12

Tempels, P. [1945]: The Bantu Philosophy. Présence Afrinaine. Paris.

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Dessas investigações saíram resultados interessantes" que pretendem mostrar o quão filosófico podem ser os africanos, particularmente os iletrados. Muito mais além do que mostrar a existência da filosofia nestes meios tradicionais es' pe1~avam, com investigações deste tipo, fundamentar e, em muitos casos mesmo, fundar uma filosofia africana .a partir destas manifestações e espaços tradicionais da entrega desinteressada ao saber.

de tecnologias] ou não, da qual dependem,0s r~sidentes da comunid_açle~m que vive porque ele é o guardião dos segre" dos [oraculares] mais profundos desta mesma comunidade. Mistérios e surpresas ou aconteciment~~ 4ie~perados que podem afectar a vida da comunidade, enco~i:'ram g~ralrrt.ente respostas no sage. No entanto, assevera-n6s Q;uka, ;,_ãq ~e pode confundir um sage com um profeta; este tem ..como " ' dom principal pré-dizer o futuro de uma de~e~minada comunidade; a profecia pode ser feita por.simples ~divinh~~ ção ou baseada na experiência, isto é baseada na. observaçã~ da sequência de acontecimentos. Por exemplo, da ~hu~a que se segue aos. rel~n;ipagos, ou da probabilidad~ de . 'um-p~ríodo de seca por ausência de chuvas . -

Para o caso de Oruka, o livro Sage Phzlosophy: Indigenous Thinkers and Modern Debate on African Phzlosophy, publicado em 1991, pretende ser um "clássico " da exposição do pensamento "genuíno?' dos africanos que ainda não ~~ ·~ . tinham recebido demasiada influência filosófica ocidental e ' nem da vida racionalizada imposta pelos estilos de vida da modernidade. Pois , neste livro, para além da transcrição de partes dos diálogos [eu chamo por "entre-vistas" devido ao carácter conversador, mais do que de perguntas o~ questionários] que Oruka foi levando a cabo com os sábios, também estão contidos textos de filósofos africanos "profissionais" - . parte que no livro é intitulada por "crítica" - como P. O. Bondurin, D . N . Kaphagawani, Lausana Keita, L. Outlaw, A. S. Oseghare e incluindo um texto do austríaco C. M. Neugebauer.

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Por trás desta aparente formalid~de pura de Oruka, em incluir sábios endógenos e filósofos profissionais numa mesma obra, está algo mais profundo e copernicano na forma de olhar para a força e energia destas sabedorias da vida: a sua sagacidade filosófica. Pois, para Oruka, é preciso diferenciar um simples sage de uma pessoa que possua sagacidade filosófica e estes dois, por sua vez, não devem ser ~onfunaidos por um profeta. Um sage é uma pessoa sábia numa comunidade que pode ser alfabetizada [em termos de educação formal e \

......

Por seu turno, a categoria sagacidade filosófica, que nos interessa, diz respeito, para Oruka, unicamente àqueks sages preocupados pelos problemas éticos e empíricos fundamentais, que sejam relevantes para a continuidade da respectiva comunid~de e que, por via disso, demonstri::m capacidade de oferecer soluções alternativas aos problem~s fundamentais dela mesma. Portanto, preocupações éticas estão no , substracto da sagacidade filosófica, segundo a concepção orukiana [e eu acrescento as preocupações didáctico-metodológicas]. De facto, colocar as preocupações éticas no centro das preocupações profundas de um sage é o · mesmo que dizer que o homem, ou melhor' as condições existenciais, são o objecto primordial das suas lucubrações. Os provérbios e ·o resto seriam axiomas que pretendem interpretar ou prescrever, em primeira linha, o comportamento e os princípios da acção dos habitantes da comunidade ou sociedade em qüé vive o sage. O Q_ue se pode chamar de "coerção" qui ess·es provérbios e outras formas exerce~ em cada membro p'âra a sua observância no seio familiar, comunitário e nã esfera

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civil, pode também conceber-se como sendo formas de ga.rantia da harmonia social na respectiva comunidade. Aliás, Emile Durkheim já nos ensina isto.

"a relação entre homem e mulher na família e comunidade" dada a suposta superioridade masculina, etc ..

Oruka, nos seus escritos, faz questão de sublinhar que estes sages filósó:ficos existem em todas as sociedades.porque sem' eles, qualquer sociedade corria o risco de desmoronar-se por conflitos internos ou devido ao doITJ.Ú!Ío de outras sociedades . sobre da. A soci~dade não saberia defender-se moralmente e com dignidade se não tivesse os seus próprios sages. E não interessa, segundo ainda Oruka, que eles ou elas ·sejam classificados por "filósofos" como Lenine, por "guerreiros" como Ódinga, ou por "chefes do estado" como Nyerere, ou que tenham sido profissionalmente um agrónomo como é o caso de Amílcar Cabral, ou ainda um físico nuclear como o foi Cheik Anta Di'op. Ou seja, é o que está implícito nesta afirmação', um sage filosófico africano não tem necessariamente de ser analfabeto e que; por via disso, não tenha sido ainda submetido à uma educação formal ocidentalizada. Ele pode também ser um letrado.

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No entanto, se deixarmos para trás questões metodológicas da sagacidade filosófica e também as questões abordadas sob~e a diferenciação entre um simples sábio, µm profeta e a sag~cidade filosófica, e penetrarmos nas questões que se colocam para eles responderem nestas entre-vistas, pode perguntar-se com uma certa justiça: os temas escolhidos implicam que os sábios não seriam capazes de formular juízos próprios e fundamentados sobre assuntos políticos contemporâneos? De facto, as temáticas abordadas por Oruka nas suas perguntas andam em volta de assuntos como:. a concepção sobre "Deus como um ente supremo", "á -~arte como um fenómeno natural" e como afecta a vida das pessoas e

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Parece que aos sages só se colocam questões metafisicas sem.se importar, aparentemente, pela actualidade da vida de uma comunidade-mor política: a vida e história da nação . [Neste passo, tenho que lançar uma ressalva e não deitar toda a culpa por cima de Oruka; e a razão é simples: ele teria manifestado a preocupação de "a vida ser muito curta" e, por isso, ele sentia que· o tempo da sua própia vida não seria suficiente para que pudesse abordar todas as questões que se propunham à sage philosophy. No entanto, a lacuna por ele levantada continua]. A mesma questão - ou seja , a da actualidade do pensamento dos sages em relação ao rnun'do [político e axiológico] de hoje - pode e deve ser colocada também à recente publicação feita pelo Padre e filósofo l~zio Bona na sua obra MuntuísmoD. Não terá o munthu algo a dizer a um ~undo cada vez mais global que se deixa consumir por problemáticas biopolíticas, se .não apenas sobre problemas espirituais e da ética comunitária? O que faz com que os intelectuais, sobretudo os filósofos africanos que se preocupam com. as questões contern porâneas africanas, não creiam na capacidade de os sages formularem discursos em torno das suas experiências com a modernidade em África é a confusão que fazem em não distinguir o passado do ultra-passado, como aliás i ~1 me referi algures . Há tradições que assim as chamamos não porque estejam ultra-passadas, mas porque simplesmente pertencem ao passado quanto à sua génese e origem, apesar de os

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u Bano, E. [2014]: Muntuísmo: A Ideia da Pessoa na Filosofia Aj1·1cana Contemporânea. Universidade Pedagógica, Editora Educar, Séries Maxixenses , Maxixe .

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princípios adjacentes, sobretudo os de natureza axiológica, ' ".,.._,_ continuarem a "viver" e serem funcionais para as comunidades africanas, dado garantirem um ambiente de harmonia e solidariedade social. Por exemplo, em algum momento no texto das entre-vistas inseridas neste livro, Viegas mostra o quanto a chegada paraquedística do multipartidarismo num ambiente rural, não alfabetizado, cria mais desavenças do que o espírito de "viver juntos" em harmonia social e num clima de não-violência. E, por isso, no interior de determinadas tradições pode descobrir-se um grande potencial para aferir soluções práticas, mas sobretudo para possibilidades interpretativas relativamente ao nosso futuro imediato e lon- ;-' '"'.~ ··--·· gícuo, enquanto uma comunidade de destino, como maçam- ; - .·. ·• bicanos. Sobre este ponto de modernizar tradições abordarei mais adiante com exemplos ilustrativos. Mais do que isso, os intelectuais são chamados a terem a suficiente e necessária humildade intelectual, para se deleitarem com a · sabedoria [não necessariamente filosófica] que esses sages possuem e têm por comunicar. E neste empreendimento, a abertura para a oralidade é de extrema importância. Se continuarmos a basear-nos, seja para as nossas aulas , seja para as sessões de aconselhamento nas chamadas "consultorias estratégicas" para o desenvolvimento , apenas em livros, então teremos que estar ccrnscientes de estarmos a deixar, na periferia, uma boa parte da produção intelectual local sob a qual se poderia construir e constituir [novos] referenciais endógenos. E, para isso, mais uma vez, não necessitamos de estar "zangados" com o Ocidente. Já perdemos energias intelectuais suficientes em manobras de "de-construção" , de "adaptação", de "esclarecimento" de quão feio é e " como age o inimigo", o pretencioso Ocidente. Precisamos de descobrir, isso sim , a beleza e a feieza endógenas.

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· As "escolas de pensamento" filosófico moçambicanas; . ainda-por:vir~ somente merecerão este nome se e quando fo-

rem capazes de aurir-se do espírito por trás dos valores 'e dás práticas tradicionais endógenas. E sobretudo a~ Jegitimação teórica e societal dependerá do quão capazes serão estas es~ colas se deixarem iluminar por configurações teóricas que os desideratos e substractos culturais tradicionais parecem sugerir-lhes. É um empreendimento que os filósofos profissionais moçambicanos-terão que fazer, não sozinhos a''. partir dos seus gabinetes e departamentos universitários, senão que em diálogo intersubjectivo com os sages. da nossa:praça. Deveremos olhar para este diálogo como um empreendimento para o enriquecimento das nossas reflexões fi.losóficas académicas' mediante o risco que corremos de a filosofia continuar empobrecida e culturalmente insípida.

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O clamor aqui é a necessidade de o intelectual rp.oçarp;, bicano ser responsável pela construção d~ qu~- ~hariiei p~r "espaços de intersubjectivação" 14 • Defendo, por isso, qu,e um saber-moçambicano, ou por outra, um discurso sobre escolas de pensamento moçambicano a construir, estaria mutilado de espírito, e de consequência mutilado de sua legitimação no espaço público e académico, se ele mesmo continua'r a ter o Ocidente como Deus e não considerá-lo apenas como um saber como outro qualquer elaborado em outros contextos para responder aos próprios desafios . Oruka teria iniciado, no contexto queniano, este movimento da nova filosofia africana que toma a sé.tio a cultura tipicamente filosófica do interior das culturas. No entanto, 14

Cfr. _Castiano,_ J.P .: [2010]: FilosoM_ Africana: Em Busca âe Intersubjectivação. Ndjira. Maputo. Veja também: Castiano, J.P. [2014]: Saberes Locais e Academia: Condições e Possibilidades de sua Legitimação. Editora Educar/ CEMEC. Universidade Pedagógica, Publifix, Maputo. J

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neste ímpeto de "interrogar aos mais velhos", teremos que levar a sério as críticas levantadas pelos próprios discípulos de Oruka. Um deles, Owakah, teme que Oruka tenha praticado uma filosofia bastante "permissiva" e, por isso, constituir uma ameaça para o futuro da filosofia africana. Isto porque, no seu entender, a metodologia usada por Oruka para entrevistar aos sages "convida" metodologias das ciências sociais, sobretudo a antropologia, para o interior da filosofia-. This is un-philosophical, conclui ele. Owakah vê em Oruka também uma certa imprecisão de critérios na sua definição do que deve ser filosofia africana e, a partir desta, emergem dificuldades sérias na identificação de um verdadeiro sage qÍJe não se confunda demasiado com umfolk sage [sábio no sentido popular].

o contexto estritamente cultural em que ele se inscreve como "sábio" reconhecido pelas pessoas imediatamente próximas, para se redimensionar, primeiro à uma escala nacional ou nacionalista e, depois à escala maior universalista .

Foi Vieg~ um Sage Filosófico?

Pot trás dos temores que Owakah propõe em não se confundir um. sage com um profeta, expostos anteriormente, está a pergimta crucial para nós: foi Viegas apenas um sábio popular ciu·a ·dimensão do seu pensamento e ·sua acção teriam ultrapássado esta categoria por formas a estarmos legitimados em classificá-lo como um filósofo sagaz? Para interrogar com Zizek: não serão, os contos, fábulas, dizeres, etc. do Viegas, simples tautologias ou axiomas que de filosofia nada p_os.sue~?, .T erá me1:ecido Viegas um lugar na prateleira dos qpe doravai;ite v~mos considerar filósofos moçambicanos ou não? J>ara mim ficpu clarn que o critério fundamental para um sábio ser cón.siderado por filosófico, pelo menos n~ contexto da culturalidàde africana, é o facto de ele poder transcender

E Viegas tem, de longe, esta característica-base, nomeadamente a de ter transcendido o contex to restrito da oratúra e da literatura populares makuwa, se tivermos em linha de conta o seu pensamento e prática discursiva . Aliás , o seu público era a universalidade que encontramos em qual quer ser humano, embora falasse a partir do referencial axiológico e epistémico que mais dominava: a sua própria cultura makuwa. Uma outra razão importante para elegê-lo como filosoficamente sagaz diz respeito ao facto de Viegas ter desen volvido uma reflexão metodológica independente em. torno da sua retórica, corria aliás ele próprio responde algures ao longo das entre-vistas. Quando lhe perguntei sobre o "segredo" de ser tão eloquente, ele não perdeu tempo em responder que desenvolvera o seu método de organizar e expor :: as suas intervenções em público tornando frutífera a forma proverbial e tradicional makuwa que é usada para responder às inquietações axiológicas que os jovens colocam ou sentem, particularmente durante o período de aprendizagem , nos ritos de iniciação. Ele prosseguiu explicando-me que o ·seu papel foi "somente" ter levado este método tradicional de construir a oralidade aos grandes palcos nacionais e internacionais. E que o seu mérito reside no facto de ter aclop__!:ado e adaptado os valores por trás das fábulas e dos provérbios contextualizando-os segundo as características do público ao qual de cada vez se dirigia. Portanto, Viegas desenvolvera, conscientemente, uma espécie de técnica própria de abordar os variados temas sobre os quais era constantemente solicita·~ ., do para revelar o seu pensamento .

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Um sábio pode ter, e muitas vezes tem, um dom natural "''~--., para fazer discursos belos e eloquentes; neste cas·o; porém, não se trata apenas de um dom. Porque quando há uma reflexão cuidada em desenvolver um método e técnica específicos de retórica, estamos em presença de uma sagacidade filos'á:fica. Num simples sábio existe uma certa eloquência espontânea e muitas vezes surpreendente; contudo, num filósofo sagaz, como é o caso de Viegas , existe uma certa pre: visibilidade crescente de dados que acompanham ao ouvinte em direcÇão à conclusão ou à mensagem principal; esta "previsibilidade do ouvinte" torna-se possível por haver um método reflectido de abordar os assuntos; embora ambos [o sábio -~·~, -- -,. , e o filosoficamente sagaz] abordem os temas com elegância e ; eloquência, acresce-se ao filósofo a capacidade de, antecipadamente, ter reflectido sobre o melhor caminho [ascendente!] na sua argumentação e a de alimentar novas pistas para a reflexão em torno do tema. E isto fazia Viegas com muita elegância metódica. É certo que o seu passado de professor primário, como ele confessa nas entre-vistas, o conduziu a este tipo de reflexão. Uma última razão pela qual defendo que Viegas merece estar na prateleira da sagacidade filosófica reside no facto de ele, como aliás já estava bem vincado na criteriologia adiantada por Oruka, ter possuído o mof'al commitment, tanto na sua vida pessoal como na passagem de testemunho para o público que o ouvia. A moralidade, o civismo, a justiça, o respeito e a humildade constituíam todos uma cadeia dos valores básicos, como pessoa, e fazia deles o tema principal das suas interrogações. Ele se bateu para que estes valores fizessem pane do conteúdo social dos_seus ensinamentos, mas antes lutara para que eles fizessem parte de si mesmo, como pessoa, na sua conduta pública. Uma "conduta pública

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coerente e humana" foi a característica escolhida por Oruka!par~ "eleger" um s4bio na cultura filosófica africana porque, como ele bem dizia, ~ão era possível que uma comunidade classificasse alguém em possuir wisdom se esta pessoa não tivesse uma conduta pública e privada humana e justa. Uma pessoa ·s em ubuntu não é pessoa, comporta-se como se fosse um anii:nal - escreve Desmond Tutu para ressaltar o critério ético para a classificação de um sábio na perspectiva ubuntuísta. Seguindo este critério ubuntuísta de selecção, isto é; com base em atributos éticos exigidos de um filósofo~ podemos imaginàr ~ lugar que seria reservado a u~ N 'ietzsch'e que se revoltava contra todos os valores ou a um Diógenes que irritava a todos ao meio-dia à procura d~ ' um hon}em na praça pública de Atenas com a sua lanterna'. O Sócrates, que como se suspeita, tornara-se filósofo da praça para éVitar as intempéries da sua esposa Xantipa, também dificilinente'séria considerado como tal num meio rural africano, ·pelo ~iiriples facto que a sua vida era interpelar pessoas ·coni-pergün:tás incómodas para o seu gosto. Da mesma forma, sÓ•patâ:cÍar mais um exemplo, nos seria difícil seleccionar Aristóteles como filósofo, sabendo que ele foi autor da ·Política e d tutor principal de Alexandre, o homem que mandou invadir'· o Norte de África ... E eu acrescento: um sábio não precisa ser necessariamente um "herói", mas precisa de ser profundamente justo. A sabedoria inclui não somente o conhecimento, mas também e sobretudo uma atitude e acção orientada pelajusteza. No fim de cada dia, na almofada, teremos que ter a certeza se tr~tamos a toda a gente duma forma justa. Isto nos tranquiliza. Portanto o "saber saber..2'_[eonheçinu~rüo] se-submete ao "saber viver com os outros" [ética].

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Aculturar a Filosofia e Modernizar Tradições

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Uma razão, digamos mais prática, para a realização destas entre-vistas com Viegas tem a ver com .a fase iniçial de um programa de pesquisas que pretensiosamente denominamos "Modernização de Tradições" alojado no Centro de Estudos Moçambicanos e Etnociências. Este programa pretende ser continuidade, na sua componente "prática", da filosofia da intersubjectivação proposta no livro Filosofia Africana: Em Busca da Intersubjectivação 15 e continuada, numa versão mais resumida, no livro Os Saberes

Locais na Academia 16 • No centro do projecto está a urgência e a emergência da necessidade de o discurso académico-filosófico - o tal discurso que Oruka populariza como sendo de "filosofia africana profissional"-, disponibilizar alicerces ou fundamentos das possibilidades e condições para uma crítica [inter]cultural baseada em materiais endógenos e, por outras palavras, trata-se de, a partir do discurso crítico cultural de primeira ordem [desenvolvido por sábios culturais ou da sagacidade filosófica no qual servimo-nos do Viegas como exemplo], emergir paulatinamente um "discurso de segunda ordem" [Owakah] em sede dos filósofos profissionais 11.

15

Castiano, J.P. 2010. Ndjira, Maputo.

16

Castiano, J.P. 2013 . Editora Educar, UP/CEMEC.

17

Esta ideia é recurrente em Owakah, por formas que é, pela primeira vez aprofundada na sua tese de doutoramento sob O~~ka cujo título é

A Critique o/ the Culture o/ Philosophy: Challenges and Oportunities for Philosophy in A/rica. PhD Thesis . University of Nairobi. 2006.

\ Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivação com Viegas

Ora, o que tenho a pretensão de chamar "crítica cultural" deve, na ideia do grupo de investigação sobre a modernização de tradições, começar por indagar o próprio conceito cultura. E este questionamento deconstrutivo deve ser feito , primeiro, a partir duma perspectiva filosófica intercultural para, logo de seguida, olhar, numa perspectiva de reconstrução e, finalmente, para as possibilidades e .as condições do seu uso enquanto conceito operativo, desta feita no quadro duma filosofia cultural.; torna-se, por isso, urgente entregarmo-nos ao laborioso empreendimento de fundamentar metodologias apropriadas para uma investigação crítico-filosófica sobre assuntos e fenómenos que interessam ou deveriam interessar à filosofia africana contemporânea no seio dos sages, considerando as suas culturas filosóficas.' ª Para o caso vertente do contexto contemporâneo moçambicano, seria perguntarmo-nos sobre os dossiers da democratização, como sejam, o papel dos partidos políticos como possibilidade de representação dos interesses das culturas e povos, o intricado processo de reconciliação, o ecu~· menismo no contexto tradicional africano e as perspectivas do seu aprofundamento, o conceito de educação e suas intricadas ligações com as culturas modernas e tradicionais e , enfim, o estatuto axiológico da educação e da política. Estes temas nos interessavam sacar do pensamento do Viegas e o leitor os verá sobejamente reflectidos nas entre-vistas .

18

Sobre este assunto de "culturas filosóficas" consultar sobre tudo o debate que Bruce B . J auz levanta em Philosphy in an African Place (Lexington Books, 2009 , UK) . Onde - pergunta-se ele apoiando-se em Derrida - a questão do direito à filosofia tem lugar? É a questão do place onde a filosofia se cultiva a as condições e possibilidades necessárias para ela poder florescer.

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Deixem-me, no entanto, iniciar pela desconstrução do>- -~. conceito cultura. Este, historicamente, é um conceito usado, a partir da expansão colonial europeia moderna, seguindo duas acepções que a História Moderna tratou de diferenciar: uma acepção de origem euro-ocidental e uma outra que podepos considerá-la afro-ameríndia. Entretanto, aqui interessa a primeira acepção dado que julgo ter sido "reservada" pelo Ocidente para o seu uso quase exclusivo no contexto da historicidade africana. Quando se refere ao contexto euro-ocidental, "cultura" é, de forma leviana, usada permutativamente com o conceito "civilização". Nesta acepção euro-ocidental, por exemplo, ·~·~ ·­ descrever um "homem de cultura" significa o mesmo que.; uma "pessoa civilizada"; em termos do saber, um homem de cultura é aquele que é educado formalmente e tem um domínio científico acima da média, tanto em matérias gerais como quando se trata de matérias específicas da sua área de formação; em termos éticC:,s, refer~-se a alguém que se comporta segundo as conveniências sociais duma classe burguesa ou que pertence ao grupo da nobreza; sob o ponto de vista político é, em termos kantianos, um cidadão "iluminado" que saiu da menoridade na qual ele estava amarrado por culpa própria" 19 ou seja, selbstschuldigt. Não é, pois, por acaso que, no caso alemão, o Kuftusministeriúm [trad. "Ministério da Cultura"] refere-se ao ministério q~e se ocupa, ao mesmo tempo, da educação, da ciênda e da tecnologia; em fim, do ensino "superior" e investigação. Nestes termos, a ciência, assim como a educação, são tratadas como sendo aspectos particulares dum campo mais amplo que é a cultura; no caso, t9

Kant, I. [1784]: \fias ist Aufkláºrung? Berlinische Monatsschrift. December Heft 1784. Berlin. p. 481-494 . ln: www.uni-postdam.de/u/ philosophie/texte/kant/aufkaer.htm. [Consultada a 26 de Outubro de 2014].

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Filosofia Africana : da Sagacidade à lntersubjectivaÇão

com Vif3gas •

esta é observada no seu sentido profundo ·de .cultura científica ou c::u.Jturn de pesquisa. Neste sentido ainda, o termo. cultura assume a acepção de valores necessários para que a pesquisa científica floresça socialmente, tais como o afinco pelo trabalho, espírito de questionamento, atitude que priorize a exactidão e precisão no tratamento dos dados ou argumentos. · Daí qUe, quando falamos de educação, trate-se. sobretudo de uma formação para o espírito hutriarío adâptàr~se à cultura da época, o que Hegel bem chamou por ZeitgeiSt. Ou seja, trata-se de, através da educação, cúltivar-se ti.m cer~ to número de valores supremos que se julga oiientarem a sociedade moderna, representada pela "elite da corte" : Con ~ sidera-se que o homem moderno deve beneficiarcse duma formação superior em termos do saber e de valores para viver num mundo civilizado. Ele deve ser salonfáhig, uma expressão alemã para designar capacidades e competências que o homem moderno necessita domesticar para poder estar e ser em "salões" - aqui empregue no sentido de espaço público - onde se fazem alianças políticas e económicas entre os membros da nomenclatura citadina. A contrastar esta acepção euro-ocidental, conhecemos uma acepção historicamente "reservada" para o caso da África e dos ameríndios, produto da alteridade intrfuseé:a às aventuras europeias das navegações ao encontro ["cle'scbbert~"] do .ÓÚc tro na modernidade. Pois, como sustehta Enrique 'Dussel, o ano de 1492 marca a data simbólica :não das '.'d~scobert'as"' do Oriente, América e África, mas ·sim' cio "én~obrimerifo do outro". Este outro é um não-civilizado, incúltci; atrasado, portanto, "selvagem"-:--A- "-cultunr"- destes-.povos -fofricanos; asiáticos e ameríndios] se torna, aos olhos :da ~ntropologia e

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etnografia coloniais, reduzida a "hábitos e costumes" ou simplesmente uma moralidade reduzida em "tabus", i.e., sem reflexões por cima de$tes. A Europa outorga-se a si mesma a "missão histórica" [Marx] de civilizar estes "povos atrasados", sem história. A expansão colonial decorre assim sob o manto de uma "missão civilizadora" para a qual se convoca a cruz [igrejas] ao lado da espada [poder real]. Na bagagem que .enche os navios, não só se trazem armas mas também a bíblia, a religião, enfim, a "civilização", a cultura messiânica. Os viajantes não são somente marinheiros em nome d' El Rei, aventureiros à caça de fortunas fáceis, senão também missionários para captarem, melhor capturarem, a "alma" do negro.

De uma tradição iluminista do terrno cultura, que aliás não desaparece ainda hoje quando aplicada ao Ocidente, passase para uma noção "tradicionalista" de cultuta, esta aplicável apenas para os povos do Sul. Hoje herdamos esta dicotomia de cultura enquanto conceito: no contex to euro-ocidental ela está ao serviço da civilização, da ciência e do progresso, enfim, do desenvolvimento; em contrapartida, no contexto africano, falar de "cultura", evocamos as tradições, os h á bitos e os costumes que- devem ser adaptados ao desenvolvimento ou " superados" para criar espaços para a moderniza ção das sociedades africanas; em alguns casos até apela-se ao seu abandono como condição para se aderir ao desenvolvimento.

É assim que as aventuras etnográficas - e os estudos

Para mim, trata -se de perseguir um modelo e conceiro de cultura baseados na intersubjectivação cujo marco funda mental é supervinir a construção de espaços onde indivíduos [sages e filósofos com formação profissional] possam trans cender as barreiras tradicionais de cultura, principalmente entre as formas académica e não-académica de cultivar a fi~ losofia africana. É aderir à Bildung humboldtiana em termos de uma formação humanística do Homem cujo objectivo consiste em "cultivar a humanidade" no homem, ou simplesmente o "cidadão-do-mundo" [Citizen o/ the Wo;ld], para usar um termo emprestado de Martha Nussbaum 2º.

antropológicos . adjacentes, que nascem e se instituem em Sociedades Geográficas criadas nas capitais europeias com o propósito de se dedicarem ao estudo dos ditos povos nãocivilizados - se impõem como o propósito fundamental de poder aconselhar [hoje diríamos "assessorar"] a marcha da conquista e administração dos territórios coloniais ora "descobertos". Como deixaria implícito o missionário belga Placid Tempels em Bantu Philosophy, o conhecimento da alma, da essência dos povos bantus - que ele pensa ser a "força vital" - deveria ter precedência à dominação territorial e política; i~to ~quivale o mesmo dizer que, antes de "civilizar" o n~gro à imagem e semelhança do Ocidente, dever~e-i~ pr~s~der à inventariação dos hábitos e costumes destes povos, enfim da sua Sittlichkeit [moralidade] e ontologia.

É, pois, neste contexto que a acepção afro-ameríndia do termo "cultura" se aliena da sua "original" euro-ocidental de "civilização" para assumir, desta feita no contexto africano, a significação de "tradição", "hábitos e costumes" locais.

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Para esta autora, o cidadão-mundo é aquele que possui a "habilidade de admirar e amar a diversidade humana" e que, para isso, deve ter corno pressuposto transcender identidades diferenciadoras construídas tais como as baseadas na raça, sexo e orientação sexual, etnia, nacionalidade 20

Nussbaum, M . [2003]: Cultivating Humanity: A Classical Defense of Re/orm in Liberal Education. Harvard University Fress. Cambridge, Massachusetts . Londres , Inglaterra. p . 50-84.

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e religiosidade. Martha Nussbaum considera que ser cida-"' -~­ dão-do-mundo é uma espécie de um convite para tornar-nos, de certa maneira, "exilados filosóficos" das nossas próprias formas de encarar a vida; significa poder emigrar para um ponto-de-vantagem do outro e poder colocar questões que o out:rci deveria colocar sobre o seu sentido e função das coisas. Esta atitude precisa de uma "distância [cultural] crítica", conclui Nussbaum tomando como referência um filósofo da Antiguidade, o solitário e impertinente Diógenes. Algures, no texto sobre as entre-vistas neste livro, pode apreciar-se esta capacidade de Viegas ser um cidadão-do-mundo quando ele consegue lançar olhares como um outsider, e não como umf--·-::~ ·: - "insider, cultural religioso. No livro Lunga, à Guisa de uma· . " ,.. Retrospectiva, conta dois episódios a partir dos quais passou a olhar para indivíduos da Religião Muçulmana - uma religião que não era sua e nem na qual foi educado - como simplesmente humanos, antes de serem membros daquela crença. Isto apesar do espírito de ódio que alguns prelados católicos tentavam espevitar contra os muçulmanos. Nas palavras de Martha Nussbaum: We should recogni-

ze humanity - and i'ts fundamental ingredients, reason and moral capacity - wherever ü occurs, and gives that community of humanity our first allegiance. Nós não deveríamos permitir que as diferenças de nacio;alidades ou classes ou étnicas, ou mesmo de género, erguessem barreiras entre nós e os nossos companheiros seres humanos viventes - são palavras que caiem como uma luva em Viegas.

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Contra o Tradicionalismo Cultural

....- "' É, pois, a partir da suspeita da dualidade conceitua! de cultura - referida acima - que formulo a hipótese ~egundo a qual, mesmo tratando-se do caso africano, "cultura" é U1Jl discurso endógeno/indígena sobre as justificaÇões é as razões plausíveis - enfim, sobre "valores" subjacentes a_cções políticas, culturais e sociais - para sustentar a maputcénção dos chamados ritos, hábitos ou costumes locais. Esta definiçã() positiva de cultura como valores permite o reconhecimento de Viegas como um "homem de cultura " . Pois, ele conseg~~ elevar e adaptar aspectos culturais makuwas para um"con ~ texto moderno sem, no entanto, deixar de crÚ:ié'a r .aq~eles aspectos que considera negativos, se bem que, muitas vezes, o faz escondendo-se por trás das fábulas. Ele consegue olhar os aspectos negativos da própria cultura, como por exemplo, a relação entre homem e mulher. De facto, d éultura qu~ :Vie~

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gas assume é aquela que foi sendo elaborada por ele mesmo por cima dds tradições, e não as próprias tradições núas e cruas como elas se lf:e apresentavam. Por outra, ao ·assumir esta .d imensão crítica sobre as suas próprias tradiçõ~s, Viegas ultrapassa a dimensão meramente descritiva e discursiva; e até mesmo defensiva, a que um simples sábio geralmente assume quando confrontado com valores e práticas de outras · culturas, ou quando confrontado com a resistência dos mais jovens em assumirem cegamente aqueles valores e seguirem os ritos adjacentes. A estas duas últimas atitudes de sábios n _ão-filosóficos, classifico eu por tradicionalismo cultural: tràta-se de uma atitude de defender e promover cega e .ac~i­ ticamente os hábitos e ritos de uma determinada .cultura sem se colocar a pergunta sobre os valores que ºestejam rio seu

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substracto e muito menos, o que é pior, sobre as. p0ssibilidades e condições da sua "modernização" perante os desafios novos ou contemporâneos.

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Assim, importa desconstruir, em primeiro lugar,_o con- , ceito "cultura" do seu legado antropológico colonial sem, no entanto, cair na falácia de um relativismo cultural cego. A adopção de uma perspectiva do relativismo cultural levarnos~ia a uma posição conservadora e· não evolucion:ista do conceito "cultu'ra"; no fon da estrada, se seguís~emos a perspectiva de um relativismo cultural, adaptaríamos políticas culturais exóticas ou folclóricas de "conservar por conservar" aquele ou este hábito ou prática "cultural", sem equacionar a sua ~ctualidade e muito menos a sua actualização. A posição básica a defender é a seguinte: as "-r aízes" [culturais] só servem como tal, somente e só na medida em que .constituem o veículo das águas profundas para tornarem o tronco da árvore m.ais frondoso, as folhas mais verdes e as flores poderem dar frutos. Doutra forma não se justifica o "regresso" às raízes da tradição e à cultura, regresso este que é alegado, muitas vezes, por posições tradicionalistas de africanos pouco atentas na armadilha em que se metem. O conceito de cultura deve, assim, ser des-tradicionalizado. Mas mais do que isso, modernizado. O termo "modernizado" quer referir-se à necessidade da transcendência cultural a que me referi acima. Em segundo lugar e como consequência, o conceito de cultura deve ser diferenciado dos conceitos "hábitÓs" e "costumes" nas suas acepções tradicionalistas [o que é diferente de "tradicionais"]. Na p .e rspectiva intersubjectiva de tratar, metodologicamente, os élementos culturais nos ~studos críticos culturais '

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importa diferenciar o nível discursivo-justificativo sobre os hábitos e costumes do nível das suas respectivas práticas. Pois, uma coisa é o discurso sobre as "razões" e os "valores" para se adaptarem certas práticas como "hábitos" e "costumes" culturais e outra coisa é o "ritual" concreto que se faz para o respeito dos ditos hábitos e costumes. Só para exernplificar: uma coisa é a justificação para .a prática e o consequente ritual do Lobolo [no sul de Moçambique] ou J-Iarusi21 [no Norte entre os.makuwas], e uma outra é o próprio ritual ou prática em torno das mesmas cerimónias. Um outro exemplo: uma coisa é a razão que se dá para as cerimónias e rituais da ,cerimónia dita pita kufa [xiSena, que significa "entrar e morte"] ou Okela Npani [em makuwa, que significa "substituir/herdar o falecido"], e uma outra coisa são as cerimónias que se elaboram em torno destes rituais tradicionais. Para continuar com o exemplo da cerimónia pita kufa e em relação ao discurso crítico, podemos anotar o seguinte debate: como manter o seu "espírito'', i.e. os valores adjacentes ao pita kufa [estamos a falar· da protecção social da ,~viúva, garantia da educação equilibrada dos filhos órfãos do :.w.~; pai, etc.] transformando, no entanto, a prática de relações sexuais entre a viúva e o seu cunhado, ou seja, o irmão do falecido durante a ceritnónia? E_sta distinção torna-se ele extrema importância uma vez que a prática pita kufa foi identificada c~mo sendo um dos factores para o aumento das infecções relacionadas com DTS, HIV /SIDA. É neste debate sobre a modernização das tradições que surgem "vozes críticas" [termo emprestado ao filósofo su1-afri~ano Philip Higgs] do interior dos sujeitos discursantes locais sobre as 21 Harusi significa literalrnente "virgem"; no sentido mais lato está patente ~ regra :am à.ou.'t>:o'5 \u.ga>:e.'5 ma'5 v\.vem :ao..u.~,

disseram não, "esses maK.uwas são tribalistas, I?-ão n~s. que-

rem a nós porque não somoSdaqu'i, não querem o_fiilanq porque não é daqui, querem um makuwa"; aí forj~rçi~ linguagens, criaram problemas, convenceram os que ~i~~a~ .dê .

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Maputo a dizerem "estes não querem este por não ser daqui e ·nós queremos este" . Um punhado de pessoas, seis ou cinco pessoas, mas porque o ·que vale nestas coisas não é o número, é a possibilidade de convencer. os outros, por isso nem sempre a maioria vence. Convenceram aqueles ali, "pronto! vocês são tribalistas", está ver, estamos a tratar aqui da nossa vida, que nos chamamos de tribalista, ofendemo-nos, o. que é isso? Quem vai sair daqui satisfeito? Não puseram aquele ali, naquela escolha restrita passou uma pessoa em detrimento daquilo que nós queríamos. O que é que aconteceu? Não passou, pode não ser daqui, é que não têm imagem boa perante a população. Não têm boa forma . Não têm dignidade, ele como pessoa não tem problema. JP.C.: Como se explica, imagina, o que ~ca não é uma boa coisa? A.V.: Sim, chumbou. E todos foram para aquele que era novo. JP.C.: Independentemente de saberem que ele é bom ou não? A.V.: A consequência é que não teve apoio na campanha. Não teve e ele tínha sido vereador e durante o m;ndato dele , tirava produto desses vendedores da rua. Produtos comestíveis . levava para cadeia. Indivíduo que preparou produtos dele para vir ganhar uma quinhenta, era arrancado, esse é que devia ser presiden_te? Até disse-se assim "se for presidente o que vai ser?" )

J .P.C. : Nós tínhamos falado do conceito Liberdade, já falamos disso directa e indirectamente também. O .que é que acha? Qual é a diferença que existe entre o conceito Liberdade,[disse agora em makuwa é Liberdade de it para onde quiser quando se traduz] e o conceito de Liberdade que nós podemos derivar da religião, porque falamos um pouco que é a possibilidade de escolher entre o bem e mal que o homem tem, essa é a liberdade máxima, e conceito Liberdade que talvez lê ou vê assiste do Ocidente, que é mais ou menos o

que estava a falar de que para o Ocidente é mais no sentido de escolha, de expressar, escolher nas eleições e de escolher seu partido, de dizerem Liberdade de palavra . A pergunta é: Quais são as diferenças entre os tipos de Liberdades? É pergunta um pouco abstracta. A.V:: Está meio difícil de facto. J.P.C. : O foco do que estou perguntar é qual é o seu conceito de Liberdade. A.V.: Mas o conceito de Liberdade é aquilo que eu expliquei aqui não tenho mais . J.P .C. : Inclina-se mais para o makt1wa de Liberdade em termos de movimentos de fazer o que quer, ou inclina-se para o religioso, ou ainda inclina-se para Liberdade .. . A .V. : Isso é segundo a vista da pessoa eu vejo assim, se conhecesse plenamente o problema europeu havia de fazer comparação, mas eu não vou comparar com uma coisa que não conheço! Só sei que há muita coisa da Europa que estamos a imita r aqui. J .P .C.: Agora vou perguntar doutra forma, o que é para si ser livre? A.V.: Para mim ser livre é isto: deixar-me pensar como quero, exteriorizar o m.eu pensamento como quero, portanto Liberdade de me expressar, sem receio de ninguém; mas .hoje quando eu quero falar eu tenho que pensar porque es _:_._... - -:",_;ses hão-de ir contra; e, de facto, s-e alguém lev antasse e foss e contra aquilo que eu disse , não que seja infalível aquilo que eu digo , mas que me convençam como deve ser, e não só por porque sabe falar, porque é mais do que eu, isto para m.irn não é dar liberdade ao outro. J.P. C.: Acha que nas socie dades tradicionais, lá onde nasceu e viveu , ex iste este g rau de Liberdade? Não estamos a falar do coloníalisrno, mas no contexto tradicional. A.V.: Plenamenre não , porque há aque le conceito de que perante os mais velhos os mais novos não têm palavra; isso não é dar Liberdade ao jovem , depois nós mesmos contrariamo-nos. Existe um provérbio que diz: " saber as coisas não é ter nascido há muito tempo, é passar por

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onde estas coisas estão" . J.P.C .: O que quer dizer com isso?~--­ A .V. : Quer dizer "viver", eu nasci, cresci aqui, conheço as coisas daqui; o Castiano é meu filho, nasceu depois, mas passou por onde viu outros acontecimentos . Então sabe aquilo e não sabe aqui, até pode saber aqui e aquilo, lidar com aquilo lá, todavia tem que me deixar falar; portanto não há Liberdade absoluta lá. Falam os mais velhos do que jovens, falam mais homens do que as mulheres [no contexto tradicional].

Sobre a Educação e Valores

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...........,_. J.r.. e .: A .V .:_P ara 1mprov1sar Nós vimos que a educação são valores, então valores ·significa que há certos grupos culturais que priorizam mais um T)

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valor do que outro, então é neste sentido que estava a pedir

f~armos ·s~bre isso da próxima vez. Então muito obrigado, nos vamos mterromper por aqui, essa conversa vai ter quatro partes, a próxima parte não sabemos quando é que vai ser. A.V.: "Será da próxima vez ... " [riso]

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Parte III: A "Quarta Entre-Vistas" A "quarta entre-vistas" nunca mais se realizou porque o jovem-antigo Viegas veio a falecer duas semanas depois . No fim de uma bela e calma tarde, o filho dele, o Mário, telefonou-me dizendo: "O teu sábio acabou de nos deixar" . Cada vez que me reco~do desta data me emociono desmedidamente e me pergunto: o que ele teria dito mais? Só me recordo muito bem do seu sorriso, meio apagado e enigmático, quando nos apertámos a mão, na despedida à porta da Universidade Pedagógica de Nampula , Campo de Napipíne, pronunciando: "a próxima vez ... quem sabe?" Ele já pressentia o fim da jornada! Enquanto escrevia e relia o texto, ia apresentando as minhas dúvidas sobre o que ele me teria ainda dito a mais na quarta das entre-vistas, se esta tivesse acontecido. Assustou.~ me a ideia do pressentimento da proximidade da morte . Por -~~-·-: ..-~ algum momento, mesmo por_ váóos, parei para entender o significado. O trecho da entrevista, que volto a reproduzir a seguir [última parte das entre-vistas rn intrigou-me durante noites adentro. O que quereria dizer ele? Haveria de voltar a i$SO, de certeza, na "próxima vez" ... se esta tivesse tido lugar. J

].P.C.: Mais alguma coisa que pode ter esquecido? A. V.: Há um provérbio que está ligado com a educação que diz [ern língua makuwa: wahaawa ohzittukelele] "quando sofreres, não te enforques.'", quer dizer podes encontrar-te em problemas difíceis de resolução, mas não é problema [suficiente] p~ra te matares ou para te suicidares, não é solução . ,, Um dia, quem sabe lá, há qualquer coisa que te espera e que tu não sabes, se te enforcares vais perdê-la. Isso para incutir

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coragem no sofrimento, o valor da coragem nas vicissitudes "" da vida. ].P. C.: E porquê está dizer isso? A . V.: Em geral todos nós precisamos de coragem; você está a sofrer aqui, andar dum lado para o ~utro a investigar isto, a falar com o fulano, não é sofrimento isto? Mas você faz com gosto. Por isso- que no fim vou diz'e r: hei, se você não me oferecer meu li"vro, eu passei noites sem dormir, mas passou a pensar em quê? Há outros que dizem isto ~

Parte IV:

A MORTE E O REVIVER DO UBUNTUISMO · 175,

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O "livro" está aqui! Gosto de educar quando tenho algo já feito - foi o que me ensinaste ...

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Este episódio levou-me a reflectir sobre um tema que, embora falado na esfera privada familiar é pouco ou quase nada abordado pela filosofia profissional em Moçambique - a morte! A morte pode ser tratada sob o ponto de vista individual na família, sob o ponto de vista do que chamarei "morte social" e no sentido de ferir o espírito de uma nação inteira. Na esfera familiar sente-se muito o desaparecimento físico da pessoa por conta do consequente vazio emocional e afectivo deixado. Na morte social estamos confrontados com uma retirada voluntária, particularmente dos intelectuais de uma sociedade, do espaço público e do engaja).11ento por uma causa. Por último, muitas vezes se fere o e~pírito da comunhão de destino naeional por mortes provocadas por guerras injustificadas, como foi o caso recente em Moçambique .

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A morte de um indivíduo, e todo o ritual em volta dela, é um dos momentos e espaços da vida pública mais importante em África. É o momento da reconciliação familiar que, num contexto mais alargado, pode abranger a vida comunit ária e nacional. É um espaço de celebração dos feitos e .s abedorias assim como da bondade do desaparecido; neste momento e espaço ele é quase levado à categoria de um "herói" familiar, local ou mesmo nacional, dependendo da dimensão da pessoa e da estatura que é atribuída ao desaparecido. Por isso, o mostrar-se presente nos funerais revela-se de grande importância tanto em termos éticos, como em .termos de ganhos políticos e mesmo para negociações de carácter de

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business. Contactos futuros, lobbies, representatividades d e todos os géneros, encontramos nestas ocasiões.

É lá onde a religiosida de, a oratura, a retórica, a estética do momento, a sagacidade, aparec~m sublima das no seu maior luxo e plenitude. De facto, é um momento de reflex ão próprio. É uma ocasião escolhida para expressar a dor e o brilho, a luxuosidade. Mas sobretudo é um dos espaços culturais onde se reflecte e se manifesta a sagacidade filosófica . Ultimamente, nas ciàades sobretudo, é um local e espaço intercultural, onde a cultura europeia se mistura com a afri cana, e os ritos e filosofias de diferentes culturas moçambicanas se encontram . Diria mesmo : é um espaço d e intersubjectivação. Por isso, a morte é um espectro ainda pordes-encantar na filosofia africana, na sua dimensão metafísica . Po r es tas razões, os filósofos moçambicanos deveriam prestar mais atenção a este fenómeno, até agora mais explorado pela an tropologia, um pouco menos pela sociologia e sob retud o bastante politizado. A filosofia moçambicana parece estar '~ ainda a temer debruçar-se sobre este fenómeno, um espe ctro na vida de cada um de nós. Severino Ngoenha conta, no livro Intercultura, Alternativa à Governação Biopolítica? que, seu primo Sitói, tem o hábito de dizer qu e "faltar a um funeral , p ara um african o, é pior que faltar ao serviço" [cito de memória, sem ter a certeza]. Uma colega minha mostrava, num certo dia, o coI?-_flito que tinha consigo mesma para atender a dois funerais que iam realizar-se ao mesmo tempo: de um familiar e de um "camarada" do partido . Aliás, do lado do "camarada" não se tratava sequer de um funeral. Tratava-se da "missa de um ano" - uma "boa" ocasião para mostrar-se politicamente correcto e atender às redes do poder .

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. Fllooofia Afrlcanac da Sagaoldade à lntecoubjectlvação

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Mas o dever ético . de se fazer presente aos funerais ou ,,-em momentos de tristeza dos outros, expressa algo ainda mais profundo em nós: a existência de uma filosofia que se baseia ou tem o seu ponto de partida na ética. "Uma filosofia deve emergir da ética", ouvimos dizer como seu ponto de partida. Essa parece ser a perspectiva que está a ser cultivada pelo ubuntu quando insiste na ideia segundo a qual-;-ocarácter colectivo do seu princípio - "eu sou porque tu és e nós somos porque vós sois" - deve dar luz à um discurso de natureza filosófica que abranja outras áreas da mesma filosofia; por exemplo, a epÍstemologia deveria tomar em conta este princípio da primazia dos valores: fazer ciência tendo ~- ,,,_ em conta e a partir da base dos valores comunitários. Ou J seja, a axiologia tem precedência sobre a epistemologia. [Um exemplo é quando um filósofo tem a obrigação fundamental de partir do valor justiça ou liberdade para deduzir as outras partes ou capítulos da filosofia; Oruka, por exemplo, partia da necessidade de uma "ética mínima" perante a fome para formular toda a suá filosofia do mínimo] . Queeneth Mkabela, num artigo intitulado Ubuntu as an Axiological F1'amework for Human Rights Education, insiste na necessidade de os valores culturais derivados do ubuntu servirem de única plataforma e "guia" para se formularem filosofias africanas. Segundo ela, ethical and cu,.ltural values of ubuntu

should guide African philosophies.1 Acho que este ponto de olhar a vida dum homem, não sobretudo a partir do que saiba ou soube, mas a partir de como " eticamente " ele viveu, parece ser umversal-:-Perante a morte de alguém, nós celebramos o seu contrário: a forma como ele 1

Mkabela, Q .N. [2014]: Ubuntu as an Axiological Frameworkfor Human Rights Education . Comunicação durante o Congresso da Association of A/rican Studies United Kingdom [ASAUK] , Brighton, Inglaterra, Setembro 2014.

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vive~, celebramos a sua vida, sobretudo se ela se preencheu de engaJamehtos sociais e de uma certa transparência ética M k R ld .ar . ow an s; em O Filósofo e o Lobo, expressou duma forma sunples e directa: "Julgo sempre as pessoas pela forma como tratam os mais fracos"2. . Pois, no funeral de Viegas, nós estávamos lá para 0 julgarmos de acordo com a forma como ele tratou aos outros em geral, mas fundamentalmente como ele tratou aos mais frac~s: seus alunos durante a sua vida como professor; seus sobrmhos, filhos; seus estudantes; seus subordinados; pess_oas clesfavorecidas; pessoas com fome de comida e saber. E n~s~as ~írcunstâ~cias, isto é, perante o sofrimento, 0 mal e a Injustiça, que s~ "manifesta" o espírito do ubuntuismo da pessoa africa~a. _Viegas tratava as pessoas com gentileza, sem. n~ entanto sigm4car falta de rigor. O que quero destacar aqm, e que as socie'f ades africanas tradicionais estão mais

pre~ar~das ~'ara acei~ar ~s características. correspondentes a um filosofo [poderia dizer-se a "função social de filósofo"] a uma pessoa que, em vida, tenha posto ênfase numa conduta moral sã do que propriamente a quem "sabia tudo" . . Esta forma de encarar a morte [com~ uma celebração da vida levada pelo falecido] contrasta profundamente pela forma de olhar a morte "sob o olhar da eternidade"· pois sob olhar_da eternidade [do tempo, por exemplo] os ~eres huma~ nos sao ~penas uma pequena parte entre as outras espécies. Concomitantemente, o ser humano é um ser-entre-os-outros que, como estes, irá desaparecer sob o olhai desta -mesma eternidade, sem ter deixado rastos: "uma espécie que não anda por cá há muito tempo e, ao que tudo indica· também não irá ficar por cá por muito mais tempo". Aliás e~ta forma "fria" de a filosofia do Ser encarar a morte dá c~erêJ:?.da ao 2

Rowlands, M. [2008] : O Filósofo e o Lobo. O que a selva nos pode ensinar . sobre o amor, a morte e a felicidade. Lua de Papel, Lisboa. p. 103.

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que Epicuro dizia sobre a morte: não nos pode fazer mal. Enquanto estamos vivos a morte ainda não aconteceu e, por isso, não nos pode fazer mal. Depois, a morte não pode ser má, pelo menos para quem morre. Para ele es ist vollbracht.

"projectos de vida", ou seja, com o f uturo. Se concebermos a filosofia como numa perspectiva de utopia ou de escrutínio do futuro - como aliás o paradigma político-filosófico libertário da nossa praça moçambicana nos relembra sempre - a "presença" da morte não se torna uma ocasião de celebração das realizações , senão uma angustia de " dei xar coisas por fazer". A percepção da infinidade por trás dos grandes projectos de melhoria e lutas sociais como "justiça social", "libertação:', "acção afirmativa", " renascimento africano", "socialismo", etc., para além de se reconhecerem como objectivos nobres aos quais a humanidade não deveria desistir de projectar para o futuro dela mesma, sobretudo quando estamos perante a presentificação da morte, porém, esta percepção se apresenta em forma de angústia. O cronos, que tudo devora, parece também não ter piedade para com os justos e bons. Podemos até dizer que angustia mais a estes que vivem pensando em "salvar a humanidade" e passam. a vida a levantar as cruzes dos outros, do que aos "maus" a quem lhes interessa somente o "hoje" e o " aqui" .

Não há coisa mais absurda que esta forma epicuriana de conceber a morte para uma cultura e mente informada e formatada pelo contexto cultural tradicional africano, pelo ubuntuisrno em particular. Pois, repito, o valor da morte está na forma como conduzimo-nos pela vida adentro. !

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No entanto, de qualquer das formas, a morte nos aparece como um "jogo humano" com o tempo: com o passado, o presente e o futuro; no qual o "presente" é a própria morte física [em potência, à espreita] mesmo sem ainda estar fisicamente "presente". Digo "presente" porque ela se presentifica constantemente durante a nossa condução da vida, sendo cada ve~ mais ."pres·e nte" com a idade. Assim, ein "presença" da morte o passado da pessoa morta se presentifica como de "realizações'' boas e só assim tem ou ganha sentido o facto de ele ter' vivido. Ao exaltar o passado ético da pessoa, o ubuntuismo está, na verdade, a construir um discurso ético sobre o projecto de vida da pessoa humana. Trata-se de uma ocasião, mais do que de um "espaço" formalizado, para a elaboração e manifestação do discurso axiológico sobre o

munthu. Sob o olhar do ubuntuismo, a morte é uma ocasião, portanto, para a reflexão sobre os projectos de vida do morto, aqueles que ele terminou e deixou por realizar e que "os que ficaram, sobretudo os mais novos, devem continuar". Assim, contrari.amente ao que uma mão-cheia de filósofos pronssionàis deixam subentender, a relação com ci passado da pessoa que .nos deixou, se torna uma relação com os

. Martin Heidegger retratava a cada um de nós, os " ain-,,. ~: da-vivos", como "seres-em-direcção-ao-futuro" . Ou seja, so mos vivos porque nos direccionados para um futuro que ainda não existe, mas que, de alguma forma, ajudamo.s, com as nossas vidas, a construir. Deixa no ar a ideia de que há uma existência suprema, ou por outra, de que há uma forma de existência melhor, à qual a vida de cada um de nós é somente um "fragmento da totalidade", para usar a linguagem do crítico literário moçambicano, Francisco Noa, numa intervenção por ocasião do lançamento do seu livro sob o mesmo título em Maputo. Por minhas palavras, diria que Heidegger concebe que a nossa "presença-no-mundo" é somente expli, cável pela temporalidade dos nossos planos e projectos. Ele .~

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escreve que "[O] fundamento ontológico da ex~stencialidade ...da pre-sença é a temporalidade. A totalidade das est~uturas do ser pre-sença articuladas ... só se tornará existencialmente compreensível a partir da temporalidade" 3 • A vida não teria sentido sem essa sensação de temporalidade presente em nós desde que nascemos e que, paradoxalmente, também nos faz sentir a-permanentemente presença da morte. Contrariamente a muitos, eu penso que nós experimentamos a morte em cada minuto da nossa vida porque sabemo-la presente, enquanto possibilidade e condição para vivermos. A questão, pois, que aliás nos é permanentemente colocada pela perspectiva ubuntuísta, é: o que fazemos com a temporalidade, com o fragmento que é o nosso pedaço na ; vida que nos separa do nascimento até à morte? Traçamos e perseguimos os nossos próprios planos? Ou passamos a vida a obedecer a um plano "superior" [traçado por Deus ou pelos antepassados] ao qual somos ou nos vemos como simples servidores? Ou, ainda, passamos a obedecer a outro tipo de planos e projectos idealistas, ma~s mundanos, mas nem por isso menos nobres, como a ideia da liberdade, do renascimento africano, do socialismo e coisas de género?

A Morte Social ~·· ... A minha resposta à pergunta é clara: ~a ;,í~a s~:n en;a~ jamento "por qualquer coisa" não faz justiça ao .contexto da época em que vivemos em que causas por abraçar abunda~< ou por outra, não faltam. Há, de facto, muitas . causas por . abraçar e lutar; e sobretud~ devemos, nos os int~lect:uais, te~ "nobreza de espírito" ao abraçar tais cau~as .. E ~meu princípio, para .esta nobreza espiritual, é claro: não precisamo; d~ ser heróiS [neste engajamento], precisa~os é de ser ju;J0 5:Precisamos de ter a certeza que estamos a ser justos em tudo o que fazemos. Apesar de tudo, a nobreza de espírito não é o -suficiente, embora fundamentalmente ·necessária: mais do que de "espírito" é preciso uma nobreza na acção pelos mais fracos e contra a pobreza material [da maioria] e de espírito [de alguns].

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Há numerosos processos e fenómenos que acontecem hoje, sobre os quais é difícil encontrar uma explicação e muito menos é fácil falar sobre elas, mas" que é difícil permanecer-se calado. A presença permanente da possibilidade da morte social, por exemplo, é uma delas que fica à espera do nosso engajamento, s'obretudo enquanto intelectuais e académicos.

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Acho que é nisto que se resume, no fim do dia:, a mensagem do jovem-antigo Viegas nas nossas entre-vistas e nos seus _escritos. Durante as entre-vistas, ele estava constantemente a "esquivar-se" em formular juízos acabados sobre ._), 1 fenómenos e processos, mas sobretudo _s obre pessoas e ·ac...{; tores concretos que se envolveram no processo de revoluç~o e de transformação sociais. Contudo, ao mesmo tempo e no mesmo espaço, ele não se esquivav~ quando se tratasse de mostrar comportamentos que não lhe pareciam justos. Ser justo não implica tolerar injustiÇas. Lemos ~cima como ele se ind~gnou - é quem ouvisse a gravação sentiria esta in?d ignação na sua voz que, de repente, se torna alta e áspera - ,,_,) contrastandp com o facto de ter- a t€;ndên€-ia de falar em-voz ---7-~~ 1

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Heidegger, M. [1999]: Ser e Tempo. P~rte II. Editora Vozes. Petrópolis 2000 . p . 13. '\

Com~arar com a Introdução ao livro .Pensamento Engajad; [com Severino Ngoenha]. 2009, Universidade Pedagógica, Editora Educar. Maputo.

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baixa e vagarosamente - quando falou de um colega seu dos seminários e professor de Nampula que, regressado a Nampula após anos na "c'a pital", esquecera como se rezava e, pior, pretendia ter um tradutor para a sua própria língua materna, o makuwa.

Esta aparente indirecção do "progresso " atingiu já os nossos países africanos. Já não é somente um fenómeno europeu ou americano. Não é por acaso que o automóvel tornou-se o símbolo da entrada na corrida para o progresso. Possuir um automóvel, mesmo que sej a um a potencial sucata importada do Japão - o que chamamos por "dubaizinhos" - e que sabemos a sua morte cá é um problema do futuro presente, o que importa é estarmos em movimento . E também não é por acaso que os eternos engarrafamentos matutinos na rota Matola-Maputo e vice-versa se torn am irritantes a dobrar porque nos dão a sensação de estarmos parados no tempo, de nada andar. Quem já não disse "isto não pode mais continuar assim" no engarrafamento? E qu e "este Governo não está a ver con10 estamos a sofrer? " e m ais coisas. Aquele movimento que não é movimento dos enga rrafamentos pode ser a futura fonte de manifestações sociais . De facto, o que vai irritar é a ambiguidade entre estar vivo em movimento e a morte de estar parado: p ar ar é morrer!

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Uso, agora, a ocasião criada por Viegas, para reflectir em torno do engajamento pela vida e contra a morte, no seu sentido social, dos iritelectuais. Porque é que estes se retiram da vida activa polítiCa e social e não se engajam por causas nobres, usando o seu saber? Porquê morrem voluntariamente em vida? Os tempos de hoje, a ontologia de hoje, não parecem ser favoráveis para atrair pessoas que abraçam causas que vão para além do "eu" e muito menos que vão para além da nossa própria morte. l?arece ser não-tempo para engajamentos altruístas. São "tempos difíceis" . O filósofo alemão Peter Sloterdijk, no seu livro A Mobilz'zação Infinita, nos alerta para a particularidade da pósmodernidade: são tempos de uma mobipdade infinita. O que interessa é estar em movimento, numa corrida frenética, mesmo que não se saiba o destino . Nas palavras de Sloterdijk: " ... o conceito de progresso não significa [mais] uma simples mudança de. posição , na qual um agente avança de A para B. Progressivo, na sua essência, é somente aquele 'passo' que leva o incremento da ' capacidade de dar passos' . Isto fornece a fórmula de processos de modernização: progresso é movimento para o movimento , movimento para mais movimento, movimento para uma capacidade de movimento incrementada" 5 •

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Sloterdijk, P . [2002] : A Mobilização Infin ita: Para uma Crítica da Cinética Política. Relógio d' Água. Filosofia. Lisboa. p . 32-33 .

Se na pré-modernidade o saber sobre o destino do proera atirado a um Deus, na modernidad e o homem se ·, ,,.~:acha assaz em dominar o seu destino [liberdade] graças ao seu domínio do saber tecno-científico que lhe dá a ceneza do progresso. Porém , na pós-modernidade, coIT10 d~z Sloterdijk, a " utopia cinética" se torna autónoma devido à aber tura para muitos destinos, ou para nenhurn fund amental. Estamos todos num comboio da história - estar dentro é em movimento que aparenta não ter des0 que interessa tino nenhum, interessando apenas em "explodir os velhos mundos". Todos sabemos que o comboio da história caminha rapidamente para a autodestruição, mas não o podemos ~gresso

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parar. Na pós-modernidade predomina a "cultura p~ica" , ~· ~roduto das catástrofes que se aproximam; viver_nos Já a experiência da morte da humanidade que se aproxima. ·

. A pobreza, a fome, convoca-nos ·a todos para uma pergunta fundamental, que aliás toca o domínio da ética: .estará o pobre autorizado a roubar ou a ir contra otltras normâs éticas, para salvàr a sua vida? Pois, como diz Anke Graness no seu livro sobre justiça global em Oruka, " .. .. Armut ste-

De facto, para nós moçambicanos, as nossas calamidades ou catástrofes, que provocam a experiência da morte, nã~ são de qualquer dimensão pós-histórica, pós-metafísica, 186 ----;-u pós-qualquer-coisa. As nossas calamidades são. bem materiais, vivas na carne de muitos, e que provocam incertezas concretas, no nosso dia-a-dia, de continuar a viver: a fo~e e as guerras. Pois, quem não presentifi.ca a sua morte social, e bate em retiráda db espaço público, perante a ameaça da fal- ..~,,. ta de comida ou perante o espectro de uma guerra-por-vir? ; · _- _ . Somente uma nobreza de espírito e da acção pode devolver 0 necessário engajamento pelo movimento do devir melhor. Os automóveis, esses que nos dão a sensação de estarmos em movimento e de participação no progresso, são, de facto uma fuga para a frente perante a realidade da pobreza e da orne, visível através do vidro, no exterior imediato. Porque a fome nua e crua representa um "desafio ético": viramos a cara e nos concentramos [demasiadamente] na estrada em frente? Ou abrimos o vidro e oferecemos uma moedinha às centenas de crianças e velhas "da rua" que constantemente nos batem no vidro do carro em qualquer semáforo? Ou ainda, chegados ao serviço, procur';imos constantemente, através do nosso engajamento pessoal e colectivo, alargar as condições para que mais pessoas usufruam os benefícios que

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a modernidade e o tlrogresso trazem consig-"º'-'-'---------~

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Pan, Deus greg; da hora do meio-dia, quar:do as sombras são · m~s curtas e 0 mundo se esmaga no chão sucumbmdo perante o Sol. Tu o se põe a descoberto nesta "experiência pânica" porque cada um, num fenesim louco, vai procurando uma sombra .

llt die Moeglichkeü des Zusammenhalts menschlicher Gé, meinscha/ten au/ der Probe. Armut /uehrt zur Fráge nach den v;raussetzungen menschlicher Gemeinschaft und nach den Bendingugen der Moeglichkeit moralischen Han,dels" 7 ; ou seja, a pobreza põe à prova a possibilidade de sobrevivência das comunidades humanas. A pobreza leva a perguntar: mo-nos sobre as-· [prékondições da comunidade humana e sobre a co~dição da possibilidade da acção moral huml;lna. Ou, podemos ainda radicalizar a questão: é o pobre ainda membro pleno da sociedade moçambicana, neste caso? O que se pretende qustionar é se ele está em condições de fazer escolhas políticas, mas sobretudo da sua sobrevivênda, que sejam "racionais"? Pode ele ser feito responsável quando sai à rua e revolta-se contra a violência que a abundância de comida nas montras das pastelarias representa para o seu lar vazio? Pode ele ser feito responsável pela violência que voca a violência no seu lar resultado de banquetes govern~, mentais, de casamentos pomposos televisados, de tempos em tempos, pela nossa querida STV? São banquetes televisados~ durante o dia todo, nacionalmente, onde até há "código de indumentária" e recepção com champagne ~ apei;~tivos, mas olhados por espectadores famintos e sem ma.te~ial es~cgl_?r! ~.,.--

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Graness, A. [2011]: Das Menschilche Minimum. Globale. Gere· maiQ~, co~o o ~é o espaço nacional. Pois, as exigências éticas de cariz llbu~­ tuista co~o amabilidade, franqueza, condesc~ndência ~~ so- . bretudo afabilidade no trato com o Outro são perc~p~íveis como sendo boas e justas num contexto c~munitário. TC>davia limitado à" comunidade" onde as rel~ç6es são "quentes" ; como definiu o sociólogo alemão Ferdinand To~nnies. ,·: ..

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Porém, num contexto de uma "sociedade" - onde segundo o mesmo TQennies as relações são "frias" - mais aberta e de espaço público com dimensão de Nação, onde é preci~ . so exercer cidadania activa, no lugar de "amor ao próximo" , o esfo.çço por se apresentar humilde pode ~epresentar o que chamamos acima de "morte social" ou falta de engajamento. Num contexto em que a palavra não se dá, mas toma-se, os nosSQS valores ubuntuistas, cultivad1).s ao extre~o, podem tornar-se rapidamente em eximir-se da responsabilidade de se manifestar e de agir. Pois, o que significaria ser humilde num parlamento? Levar "muito tempo" a reflectirrEnquanto o que se exige de um deputado é exactamente o contrário? Agir e rapidamente antes que os outros, da bancada contrária,

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passem pela frente . Exige-se sim, neste contexto de cidadania, escutar criticamente. Ou seja, exige-se sim a compreensão do Outro tal como no ubunt'u, mas complementariamente, exigese uma compreensão sim, que seja sobretudo crítica.

'Foi a vez de Viegas deixar-nos não uma obra qualquer, mas uma grande obra. Se estudarmos com mais cuidado os seus ditos e escritos, de certeza teremos respostas cada vez mais claras do que ele teria dito e escrito se tivesse partido mais tarde.

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Naturalmente que Viegas não se conformou c~m um delimitar ético virado para a sua comunidade de origem e pertença. Transcendeu o makuwismo (et1~ocentrismo) para um espaço de dimensão nacional e universal através da primazia que deu à ética, revelando-se sábio. Por isso , mais do que a um panteão dos sages, ele pertence ao panteão dos filósofos africanos. Teremos "perdido" muitos Viegas na riossa história.mo - . çàmbicana? Não importa. O que porém doravante imp~rta é não os perdermos mais. E nisto a filosofia moçambicana profissional é convocada a mudar. Basta de apelos d~ tipo "é predso valorizarmos ... " ou "é necessário integrarn1'os ... " e arregacemos as mangas ao trabalho de intersubjectivação. Basta de sabedorias sem sábios e de uma filosofia ·africana tradicional sem filósofos, interdialoguemos !

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