Referenciais da Filosofia Africana: Em busca da intersubjectivação 9789024796526

Já no período mais sombrio da história dos negros, mais concretamente durante a escravatura nos Estados Unidos, encontra

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Referenciais da Filosofia Africana: Em busca da intersubjectivação
 9789024796526

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REFERENCIAIS DA FILOSOFIA AFRICANA: EM BUSCA DA INTERSUBJECTIVAÇÃO

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REFERENCIAIS DA FILOSOFIA AFRICANA: EM BUSCA DA INTERSUBJECTIVAÇÃO José P. Castiano prefácio de Rogério J. Uthui

Colecção Horizonte da Palavra

Esta obra foi publicada pela UDEBA, Universidade de Desenvolvimento da Educação Básica na Província de Gaza, Moçambique.

F i c h a

t é c n i c a

Título: REFERENCIAIS DA FILOSOFIA AFRICANA: EM BUSCA DA INTERSUBJECTIVAÇÃO Autor: José P. Castiano



Revisão: Hipólito Segulane, José Tomo, Nilza, Gerson Muchevo



Tiragem: 1500 exemplares



1ª edição, Agosto 2010 Capa: Publifix, Lda.

Foto da capa: José P. Castiano

Paginação: Publifix, Lda.



Impressão: Kadimah - Cape Town



Registo: 6423/RLINLD/2010



ISBN: 9789024796526



Sociedade Editorial Ndjira, Lda.



Uma editora do grupo Leya



Av. Julius Nyerere nº 46, r/c., Maputo



Email: [email protected]



www.editora-ndjira.blogspot.com



www.leya.com

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Índice

Prefácio (por Rogério José Uthui) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Parte I Objectivação e Subjectivação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

Parte II Referenciais de Objectivação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Referencial I: As Etnociências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Referencial II: A Etnofilosofia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A Ontologia da «Força Vital» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Filosofia por trás da Religião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A Crítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A Crítica Radical . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Crítica da «Crítica» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Parte III Referenciais de Subjectivação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Referencial III: A Afrocentricidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Referencial IV: O Ubuntuismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Da Descolagem Conceptual à Descolonização . . . . . . . . . . . . . . . . .

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Parte IV Referenciais de Intersubjectivação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Referencial V: A Liberdade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Referencial VI: A Interculturalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A Construção de Espaços de Intersubjectivação . . . . . . . . . . . . Universidade como Espaço de Intersubjectivação . . . . . . . . . . . . . . .

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Devo profundo agradecimento a muitas pessoas que deram suas contribuições materiais e espirituais que, no seu todo, tornaram a presente obra possível. Queeneth Mkabela chamou a minha atenção para o afrocentricidade e o ubuntuismo como referenciais teóricos e práticos ensinando-me a celebrar o espírito das coisas africanas. O reitor Rogério Uthui, que tem uma impressionante predisposição para um bom debate, tomou os destinos da nossa Universidade Pedagógica declarando que quer fazer dela, uma das melhores em África. Com Severino Ngoenha e Filimone Meigos fiz longos passeios peripatéticos na linda marginal de Maputo e demonstraram ambos que uma amizade pessoal pode ser também edificante para a academia. Devo às colegas Felizmina Mathombe, «dona» Alexandrina, Valéria, Tânia, Conceição, dona Arlinda, Khensani, Celeste, Sr. Fernando, Sr. Carlos e Sr. Bernardo muita cumplicidade, reconfortante paciência e compreensão silenciosa sempre que tive de «sumir» para reflexões e leituras (recordam-se dessas ocasiões?). As colegas da DC, Amélia Lemos e Paula Cruz, foram pacientes e cúmplices dos meus sumiços e, em silêncio, via nelas um olhar benévolo e profundamente reconfortante. A delegação da UP-Montepuez proporcionou uma semana de reflexão naquelas maravilhosas terras quando me convidou para uma palestra sobre Diálogo entre Culturas; pois, foi lá onde escrevi as páginas derradeiras deste livro. As minhas irmãs, os meus irmãos e familiares Belinha, Genito, «tia» Paulina, Sandra, Florêncio, Elsa, Simão, Isabel, Manuel, Dó, Agostinho e outros proporcionaram, cada um deles e sempre que nos encontrámos, momentos agradáveis de reflexão sobre aspectos culturais e políticos; as suas opiniões sobre esses

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assuntos iluminaram mais do que poderão imaginar algumas das ideias defendidas neste livro. Os meus filhos Jubel, Zildo e Ivandro estiveram sempre presentes em cada parágrafo que escrevia; na verdade, enquanto escrevia, imaginava a tentar explicar-lhes cada parágrafo. Agradeço à Nilza, ao Tomo, ao Sengulane e ao Gerson por terem-se prontificado a rever o manuscrito e por o terem feito de forma muito responsável. Os meus pais deram-me o prazer e a responsabilidade de nascer nesta maravilhosa África, continente do futuro. Não teria começado um livro com este tema sem aqueles incidentes que, embora curtos e breves, fazem-nos aceitar o desafio que os mesmos nos colocam. É este o caso de uma pergunta disparada por Hildizina Dias (a «caçadora de paradigmas», como eu em silêncio a chamo) que, na verdade, me estimulou a pensar durante anos sobre o assunto que acabei por responder neste livro e em alguns artigos. Dizem que há paradigmas científicos em África ou paradigmas africanos — disse ela um dia olhando atentamente para mim — Não os vejo; onde estarão? Engoli em seco porque não tinha resposta, pelo menos naquela altura, para lhe mostrar os «paradigmas» africanos no sentido de Kuhn, que ela certamente empregara. Pensei ser óbvio ela não os puder «ver», porque não os há, pelo menos enquanto africanos ou da ciência africana. Justamente naquele sentido eu não podia responder. Mas apressei logo uma resposta para mim mesmo: «quem deve procurar estes paradigmas somos nós mesmos, trata-se de uma responsabilidade intelectual nossa!» O certo é que eu acabei não procurando «paradigmas» africanos. Adoptei o termo «referenciais». Também acabei reduzindo as minhas reflexões não para a Ciência Africana, mas confinando-as apenas para a área da filosofia africana. Talvez esta pergunta da Hildizina esteja a pairar no seio de muitos dos nossos intelectuais… Para responder a esta e outras questões que trato neste livro tive o apoio de alguns colegas que me emprestaram seus livros quase que «eternamente». Este é o caso de Paulus Gerdes e Emília Afonso, ambos à frente do Centro de Estudos Moçambicanos e Etnociências (CEMEC) da UP. Agradeço-lhes também os «debates» informais iluminantes sobre algumas das posições minhas defendidas neste livro. Um abraço carinhoso a todos os colegas da Universidade Pedagógica pelo vosso maravilhoso espírito de luta e justiça social.

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É aos meus estudantes dos cursos de licenciatura e de mestrado em ensino da filosofia (alguns deles são colegas no Departamento de Filosofia) que devo a motivação para este livro. Algures em 2007, convidaram-me para uma palestra onde, do nada (porque não era o tema e nem vinha a propósito), comecei a defender a necessidade de, nós docentes de diferentes cadeiras, difundirmos cientistas africanos como um dos caminhos para desenvolver o gosto pelo pensamento e ciência produzidos por africanos. Na referida palestra, eu apelara os docentes universitários para que se esforçassem em incluir obras científicas escritas por africanos em cada uma das cadeiras que leccionam. O que diferenciava uma aula de filosofia, de sociologia, de matemática ou de outra disciplina qualquer a decorrer em Moçambique e, digamos, duma aula a decorrer numa capital europeia? — perguntava eu. E, como resposta, apelava: devemos começar por introduzir temas sobre África e, o mais importante, autores africanos nos nossos planos de estudos. Ou seja, temos de começar a introduzir no debate académico, nas nossas universidades, obras escritas por pensadores e cientistas africanos para dar a oportunidade ao nosso estudante de confrontar-se com referenciais teóricos africanos, defendia eu. Depois da palestra, colegas docentes, sobretudo estudantes, chamaram-me à responsabilidade, dizendo mais ou menos assim: nós não conhecemos africanos que escreveram sobre isto ou aquilo e nem temos textos [em português] que podem suportar teoricamente as nossas teses. Na impossibilidade de eu poder apresentar textos que saciassem a fome que eles diziam ter em conhecer o pensamento filosófico africano [em português], pensei em responder resumindo alguns referenciais que achei serem suficientemente sistematizados. Este livro, portanto, pretende dar respostas não acabadas aos estudantes de filosofia e aos colegas docentes que buscam referenciais «africanos» e que, na base deles, pretendam embarcar num diálogo intersubjectivo. É a minha contribuição no combate pela intersubjectivação da filosofia profissional africana!

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Prefácio Por Rogério José Uthui

«…Na verdade imaginava a tentar lhes explicar o sentido de cada parágrafo…» refere o autor nos agradecimentos aos seus filhos, quase a começar…ou a concluir. E aqui reside, talvez, o primeiro choque com que nos deparamos ao ler o livro «Referenciais da Filosofia Africana: Em Busca da Intersubjectivação» de José Paulino Castiano (J. P. Castiano como gosta de ser chamado). É que o livro é escrito na tentativa de «explicar» aos filhos menores de idade, o significado de cada parágrafo e ao mesmo tempo, tentar alinhar uma perspectiva teórica para a ciência do conhecimento africano. A exposição, desenrolada aqui com objectivo duplo, de atingir tanto o estudante iniciado em filosofia (ou outras ciências), como os «filósofos profissionais», obriga de certa maneira a seguir a metodologia das conversas socráticas, com discurso de método de permeio numa mistura com uma desorganização organizada sui generis, como a ciência do caos. A propósito do caos. Sou físico de formação e aceitei de bom grado o desafio de prefaciar um livro não clássico, como é o de filosofia africana, sem a avaliação prévia necessária, da confusão que iria trazer, nem das dificuldades que iria enfrentar. Assim, e para diminuir o caos, irei escalonar as minhas ideias em secções. Aviso desde já que serei longo porque leigo na matéria.

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Do Autor O perfil académico de José Castiano é o de um pensador irreverente. Professor de História de sua formação básica, formado na Faculdade de Educação — I, da Universidade Eduardo Mondlane (presentemente temos o que se pode chamar Faculdade de Educação II), cedo passou pelas escolas de distritos de Sofala, Manica, Inhambane, etc. tendo tido oportunidade de olhar para aspectos essenciais do dia-a-dia das populações rurais de Moçambique. O percurso académico posterior incluiu, a Licenciatura em Filosofia (Universidade de Greifswald) e o Doutoramento em Sociologia (Universidade de Hamburg), ambos com a especialidade na área de educação. A origem modesta talhou-lhe o carácter, a frequência da altaroda do conhecimento mundial aguçou-lhe o método e o contacto permanente com a Natureza e as populações rurais, disponibilizou-lhe o objecto de estudo científico. J.P. Castiano é desde 2005 Director Científico da Universidade Pedagógica, onde contribui com opiniões importantes para o desenvolvimento do ensino de pós-graduação e da investigação na instituição e no país. Talvez esta seja a sua maior contribuição para o estabelecimento de conhecimento novo e para o protagonismo científico que merecidamente detém. Na reforma do currículo para o ensino básico de há 5 anos atrás, o Ministério da Educação e Cultura introduziu uma inovação: inspirando-se numa ideia geralmente aceite em todo o mundo e num discurso político mais virado para a auto-estima e valorização do nacional, decidiu-se que uma percentagem substancial do tempo lectivo passaria a ser dedicada a aspectos de currículo local. Se a ideia foi oportuna, já a sua implementação não tem sido conseguida sem muitos desafios. E os desafios residem, em primeiro lugar, na definição de quão locais são os aspectos que, muitos professores empreendedores na matéria consideram prioritários entrarem sob essa umbrella: os locais geográficos?, o clima?, a fauna?, os contos?, os provérbios, as técnicas de cultivo?, o que mais? Os desafios estendem-se ainda para as outras áreas ou conceitos, ou ainda, permito-me o estrangeirismo, approaches: quem é a fonte

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principal desse conhecimento? Como se transmite? Para quê transmiti-lo? E, talvez, a pergunta vencedora…O que é que o aluno, o(a) comunidade/aldeia/país ganham em introduzir esse currículo local? Acredito que os problemas de défice epistemológico nesta área que o J.P. Castiano cedo abraçou para tema central de sua «investigação-para-a-vida» impeliram-no a procurar, viajar, conversar com velhos, jovens e comunidades, criar redes de investigadores nacionais, regionais e internacionais (incluindo fazer parte do corpo editorial da INDILINGA, uma Revista de Sistemas de Conhecimentos Indígenas, sediada na Universidade de Kwazulu Natal). E, acredito, que, em tentando sistematizar os inúmeros «objectos» de valor extraordinário para a sua colecção de currículo local, incluindo a omnipresente gonadzololo — planta afrodisíaca muito usada na zona central do país, Castiano esbarrou-se neste défice teórico subjacente a toda a vontade política de trazer a perspectiva local para o currículo global da escola primária (uma perspectiva glocal como diz o próprio autor). Assim, este livro aparece para dar cobro à falta de um quadro teórico e, até, para legitimar a iniciativa pragmática de estudo de conceitos e práticas locais no ensino. Não nos admiremos, pois, se dentro de pouco tempo, nos aparecer um livro teórico-pedagógico sobre o currículo local citando extensivamente o presente livro. Será, definitivamente, uma grandiosa contribuição epistemológica para a filosofia do ensino ou, mesmo, para o ensino da filosofia.

Da Objectivação e Subjectivação O autor recuou para os primórdios do Renascimento Africano, com a luta pela abolição da escravatura no século XIX naquela que foi, talvez, a maior nação esclavagista — os Estados Unidos da América — para começar a análise da génese e, porque não, do genótipo da primeira tentativa de inscrição de qualquer referencial africano no livro humano do conhecimento da modernidade. Nesta análise J. P. Castiano fundamenta a necessidade que desde sempre se sentiu de legitimar o discurso do escravo, neste caso um

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discurso abolicionista, através da subjectivação, ou seja, da colocação do próprio escravo no centro do discurso, ou, melhor ainda, como o sujeito do discurso. Pegando o para o exemplo concreto de Moçambique, o autor não esconde o seu desalento com a forma como se processou o processo de objectivação no nosso país. Analisando o trabalho do incontornável Padre Henri Junod, missionário suíço que viveu longos anos do final do século XIX e inícios do século XX no sul de Moçambique, Castiano questiona i) o método etnográfico, ao pôr em causa a apropriação de conhecimento alheio (popular) pelo missionário, chegando ao cúmulo de influenciar a taxonomia vegetal e animal da região; ii) o plágio e o baixo rigor científico da obra de Junod, em termos modernos, baseado no facto de não reconhecer a existência prévia de qualquer saber e, de forma individualista, e de desprezo até, pelas principais fontes de saber que ele investiga; iii) o espírito aventureiro científico de Junod ao interferir inclusive na taxonomia social, geográfica e política da região: inventou usos e costumes comuns a certos grupos e até criou tribos e etnias (a «tribo» tsonga, no caso). Neste capítulo introdutório, Castiano coloca a questão pós-moder na que se atribui ao surgimento de uma certa geração cheetah de novos africanos, pouco interessados em serem objectivados, no sentido de «…não permitirem que alguém escreva a sua história de momento ou, mais interessante, que alguém mantenha o seu futuro refém do passado histórico dos libertadores». Esta é uma citação do livro do economista Africano Ayittey. Embora Castiano defenda mesmo a intersubjectivação (falaremos mais adiante desta ideia), uma achega apenas a esta tendência pósmoderna de certos economistas e politólogos tentarem dar um novo curso à história Africana (de novo uma tentativa de objectivação), ao tentar de forma muito radical fazer a ruptura, baseados em análises econométricas, entre o estágio actual de desenvolvimento do continente negro e o seu passado de continente-colónia. A perspectiva, para mim, é bastante clara, e persegue três principais objectivos: i) retirar a culpa do colonizador pelo atraso sócio-económico africano; ii) desacreditar e demonizar os governos africanos pós-independência e, acima de tudo, iii) desvalorizar os movimentos de libertação e os nacionalistas africanos de meados do século passado,

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afim de preparar um terreno mais fértil com a geração cheetah, para uma cultura global. Em suma perpetuar uma terceira morte da nação africana, se assumirmos que a primeira morte deu-se aquando da escravatura (com a desnaturalização e morte nalguns casos física), a segunda com a inédita Conferência de Berlin em que a régua e esquadro se destruíram nações (e não tribos) e agora a tercerira, que é a aculturação e a negação do EU, pelos tais cheetah.

Dos Referenciais de Objectivação Castiano aponta dois referenciais ou, até, duas tendências importantes da objectivação, isto é, do estudo dos assuntos africanos (povos, etnia, clãs, culturas, religiões, crenças, etc.): as etnociências e a etnofilosofia. A tendência unanimista, isto é, generalizadora de certas características que se atribuem a certos grupos sociais africanos, é a prática comum, senão o método de trabalho destes referenciais. Mais ainda, a tentativa de se olhar para a sociedade africana com «óculos europeus», constitui, talvez, a maior fraqueza destas disciplinas científicas. O autor explora e questiona de forma bastante metódica e filosófica vários aspectos adjacentes a toda a argumentação apresentada: Até que ponto os estudos africanos são realmente africanos? Por serem feitos por africanos ou por serem sobre África? Porquê a aberrante distinção entre sociologia e antropologia? A antropologia, que literalmente significa «estudo do homem», se estabelece como o estudo da sociedade do homem atrasado, do africano. O próprio termo já deve ser visto numa perspectiva de objectivar os «atrasados». O método adoptado, é ainda mais desolador: há uma notória «pressa» científica em agrupar ou seja, descobrir características semelhantes, atribuir um nome e rotular os povos africanos. Os dois approaches assumem-se antagónicos, ao tentar, claramente, minimizar, desconsiderar e ridicularizar o atrasado, por um lado e, por outro, de sobrevalorizar, idolatrar, humanizar. Por exemplo, a análise do reverendo Mbiti sobre as religiões africanas, colocaas num patamar romântico e humanista exagerado ao descortinar as «suas cinco principais características»: associadas às tradições,

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«eternas» (este termo é meu, para referenciar que uma vez membro dessa religião, nunca te reconverterás), não expansionistas, naturalistas, não messiânicas nem apocalípticas. A tentativa maviosa de inscrever nas ciências naturais positivas o conhecimento local existente e em uso pelas diferentes comunidades, ocorre com deturpações claras de método científico e de objecto de análise. Castiano questiona o real papel das etnociências e, pior ainda, o real objectivo ao tentar descortinar os conhecimentos, julgados latentes pelos etnocientistas, existentes nas comunidades. A célebre «Escola Moçambicana» de Etnomatemática liderada pelo Pro fessor Paulus Gerdes é também posta em causa. Até que ponto as ciências positivas, convencionais, ocidentais de uma maneira geral, não se chamam também «etno», tendo em conta que, nalgum instante, surgiram de um certo lugar geográfico e depois se afirmaram universalmente através de um processo muito longo que inclui, interalia, a satisfação de uma grelha cada vez mais sofisticada de legitimação. Para as ciências convencionais existe uma série de instituições dedicadas (desde universidade, academias de ciências, agências de registo de patentes e etc.) que legitimam o conhecimento e o catalogam devidamente, enquanto que para as etno-ciências, restamnos apenas dois métodos: o livro do etno-cientista escrito à lupa da ciência ocidental ou, mais importante talvez, a aplicação incondicional de um certo conhecimento por uma certa comunidade. A questão da medicina tradicional esclarece melhor este problema: um nyanga é bom se tiver muita afluência de pacientes para o consultarem. E, já agora, será que a tentativa de se formalizar a AMETRAMO (Associação Moçambicana de Médicos Tradicionais) e as práticas de medicina tradicional em Moçambique pode ser vista como um esforço (neste caso encomendado por círculos de poder) para legitimá-la usando as instituições da ciência convencional? A generalização de D’Ambrosio de que «… o programa das etnociências não deve se limitar ao estudo do conhecimento em si, mas sim alargar-se para o tipo de estudos que contemplem sobretudo a dinâmica cultural na qual esses conhecimentos se desenvolvem e dos quadros conceptuais internos usados em cada cultura…. », é bastante oportuna. No referencial da etnofilosofia, Castiano navega através de um naipe variado de obras e autores de diversas épocas, desde Tempels,

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o fundador, com a sua teoria de «Força Vital», John Mbiti e o tratado sobre as religiões africanas e a filosofia, para terminar num «close-up» sobre o «Struggle for Meaning» de Hountondji. Neste referencial, Castiano mostra-se inconformado com esta perspectiva de inscrição do conhecimento africano e tranquiliza-se com a crítica-crítica de «Hountondji II», que estabelece uma fundação muito importante que Castiano mais tarde usa para apoiar o seu nóvel paradigma de intersubjectivação. A grande contribuição epistemológica deste capítulo, considero como sendo a periclitante chamada de atenção para a necessidade de uma análise cuidada do discurso moderno dos clichés globalizantes tais como: desenvolvimento; desenvolvimento sustentável; objectivos de desenvolvimento do milénio; pobreza; pobreza absoluta, só para citar alguns e a forma como eles se enquadram no discurso mais nacional e aglutinante como: unidade nacional, pátria, povo moçambicano, etc. Um eminente antropólogo, por sinal missionário, radicado no Niassa há mais de 30 anos, tendo estudado um dos dialectos do Emakhuwa, e tendo traduzido a bíblia, organizado uma colectânea de contos nessa língua (não me recordo dela), teria chegado à conclusão de que, nesse dialecto, o conceito de «riqueza» não existia. Ora a perspectiva moderna de associar o desenvolvimento ao desempenho económico, à acumulação de riqueza e melhoria do índice de desenvolvimento humano, pode ser ab initius posta em causa por este pequeno clã falante desta língua… e, até que ponto a pulverização sistemática de estudos sociais direccionados a pequeníssimos grupos da população, ou seja, a micro-etnografia feita até ao nível das «dez casas» pode contribuir para melhor conhecermos o Povo Moçambicano e sua cultura ou, pior ainda, para adicionar um bloco de unidade no edifício da Nação Moçambicana?

Dos Referenciais de Subjectivação O afrocentrismo e o ubuntuismo aqui apresentados como referenciais de subjectivação baseiam-se em pressupostos bem diferentes. Enquanto no primeiro, segundo Asante, se «… colocam ideias africanas no centro de qualquer análise que envolve a cultura e o comportamento

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africanos», o segundo é um movimento mais aberto, que acomoda sem remorsos valores «estrangeiros» de forma construtiva. Estes dois referenciais e exactamente na sequência em que são analisados no livro, mostram claramente a sequência lógica do desenvolvimento do conhecimento africano, tendo em conta o passado de colonização e marginalização secular do continente. Não espanta, pois, que o afrocentrismo seja coetâneo do proto-nacionalismo e do nacionalismo africanos, fases muito importantes na longa luta pela libertação de África. Assim, os referenciais de subjectivação na filosofia africana são, de facto, uma teorização das diferentes fases de tomada de consciência e de acção para a liberdade do continente. Tão somente. O contrário, de resto, seria de estranhar. Vladimir Lenine, fundador do Estado Soviético, quando indagado, certa vez, porque motivo os fundamentos da filosofia libertária do operariado na sociedade capitalista, o marxismo, haviam sido desenvolvidos por filósofos «burgueses» respondeu mais ou menos nos seguintes termos: «nos palácios pensa-se de forma diferente do que nas palhotas», ou seja, o desenvolvimento mais amplo, menos militante, se quisermos, do pensamento científico, só será possível depois de vencermos a fase das necessidades básicas: da fome e da pobreza em geral, da liberdade política e da liberdade intelectual. Apenas a liberdade política é uma realidade para toda a África, porém, a pobreza é ainda um grande desafio para todos e, em alguns países, mesmo a liberdade intelectual não foi conseguida. Para este quadro dominado por muitas prioridades básicas em África, o ubuntismo, genuinamente africano que é, tem razões muito mais fortes para se impor: A fraqueza «fundamental» que Castiano aponta da ausência de «… um texto ou um conjunto de textos fundadores (do ubuntuismo, entenda-se)…» é talvez uma força, uma vantagem pois isso atesta para a sua origem popular, como o são os provérbios, contos, canções, etc. e, portanto, facilmente assimiláveis por todos e mais provavelmente expressando a sabedoria popular; Sendo ele originário do movimento de consciência negra, da teorização dos propósitos dos movimentos de libertação da África do Sul e da influência de intelectuais africanos na diáspora durante o regime

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de apartheid, o ubuntuismo é, na sua essência, uma espécie de Pentatêutico de Moisés para os sul-africanos, o Livro das Leis Divinas da Bíblia. Tendo origens claramente tradicionais o ubuntu mostrou-se uma teoria muito válida para remendar o tecido social da África do Sul pós-apartheid através do princípio de reconhecimento da culpa individual e perdão colectivo que caracterizou a Comissão de Verdade e Reconciliação dirigida pelo emblemático Arcebispo Desmond Tutu.

Da Intersubjectivação Pois claro. A escola moçambicana de Filosofia Africana, neste livro retratada por J.P. Castiano e Severino Ngoenha, sendo ela de estabelecimento mais recente, beneficia-se claramente de todo o manancial teórico secular das diferentes escolas bem como do facto de os seus precursores terem tido protagonismo privilegiado nas principais transformações político-sociais ocorridas no país desde a independência em 1975. Ela desenvolve uma visão mais pragmática para a Filosofia. Ngoenha introduz o «paradigma libertário» da Filosofia Africana, caracterizando a existência do Homem africano como um permanente processo de procura pela liberdade e apelando para uma ciência filosófica mais interventiva para o processo de desenvolvimento. Castiano, sem discordar deste pressuposto, especifica as quatro liberdades que a Filosofia Africana deve atingir (o essencialismo ou unanimismo, a religião, debate da validação ou não da oralidade e, por fim, a língua). Em suma, a Filosofia Africana deve-se libertar de ser africana. Ele vê como único caminho para a Filosofia Africana a criação de espaços de intersubjectivação, através da abertura a um diálogo sistemático intercultural filosófico. Desta maneira a escola moçambicana é pela «glocalização» da Filosofia tornando-a, ao mesmo tempo, mais interventiva a nível social e epistemológico. Ela deve se debruçar sobre os problemas actuais de desenvolvimento do continente.

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Um Ganho Marginal das Teorias «Castianianas»: um Olhar às Teorias Globais de Desenvolvimento para o Continente Africano Facto 1: Fukuyama declarou o fim da história, assumindo que todos os grandes debates que haviam surgido ao longo do desenvolvimento da sociedade humana haviam se esgotado e marcou o início de uma nova era. Facto 2: A partir de meados da década 70 do século passado, as profundas crises económicas, salientando-se a grande crise de endividamento acelerado dos países do terceiro mundo, fruto do desenvolvimento da economia de mercado e da adopção incondicional do modelo de desenvolvimento sócio-económico baseado nas leis do mercado, levaram os economistas a pensarem em modelos de recuperação (reajustamento económico) únicos e padronizados, para vencer as crises. Facto 3: Em 1982, na Conferência Anual do Banco Mundial, declarou-se a morte de outras quatro categorias: a ideologia (ao se constatar que havia acabado a afronta que as teorias marxistas e outras faziam ao capitalismo); o desenvolvimento (no sentido anteriormente acolhido de que o desenvolvimento era resultado de uma planificação pelo estado, direccionada ao crescimento económico. Assumiu-se que, dali em diante, o mercado livre seria o único modelo que sobreviveria); a inflação (tendo em conta que as hiper-inflações de três ou mais dígitos na América Latina e de dois dígitos na maior parte dos países desenvolvidos haviam sido controlados e trazidos para apenas um dígito graças ao ajuste automático do mercado) e a geografia (com a eliminação de todas as barreiras de deslocação física e com a aparente convergência a nível dos ideais gerais do mercado em todo o mundo). Estes factos justificaram a imposição tácita (e nalguns casos forçada) de um único modelo de desenvolvimento para o mundo, baseado em indicadores econométricos e independente das diferentes realidades sociais, económicas, políticas e geográficas dos países. O continente

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Prefácio 23

Africano entrava assim para mais uma longa etapa de objectivação. Aliás, como sempre. Os modelos padronizados de reajustamento económico das instituições de Bretton Woods mostraram-se pouco mais que inválidos para solucionar qualquer problema de recuperação económica nos países em desenvolvimento. Em Moçambique, por exemplo, guardamos ainda na memória e são visíveis no dia-a-dia os efeitos da morte ditada ao sector industrial de caju e à expressiva indústria ligeira. Noutros lugares do globo a iconização do mercado falhou e colapsaram alguns dos símbolos do capital. Nos países de mercado livre nacionalizaram-se bancos…! Nos países em desenvolvimento, para se atingirem os objectivos de desenvolvimento do milénio, as economias deverão imprimir um crescimento económico ininterrupto da ordem dos dois dígitos, coisa que, sinceramente, não irá acontecer em muitos dos países visados. Assim, este conceito de desenvolvimento deve estar desajustado: o desenvolvimento não pode ser analisado apenas como uma empresa tecnocrática. Parafraseando Robert Mugabe que diz que «…o ensino superior é um assunto sério demais para o deixarmos nas mãos dos professores apenas…», querendo dizer que é necessário abrir as universidades ao diálogo com toda a sociedade para a definição da agenda do ensino superior, o conceito de desenvolvimento é sério demais para se reduzir à perspectiva econométrica de todas as teorias existentes. O contexto, a história, a cultura, os valores, são categorias que, quando trazidas para o conceito de desenvolvimento, contribuem para a legitimação e estabilidade, tornando-se em parâmetros importantes na competitividade do país na economia global. A intersubjectivação da Filosofia Africana aqui proposta por Castiano e a necessidade de ela ser interventiva e resolver os problemas actuais com que o continente se depara, de acordo com Ngoenha, são aqui chamados para, sem paixões, ajudar no desenho de um projecto de desenvolvimento real da África… que irá trazer consigo também, o desenvolvimento da própria FILOSOFIA MUNDIAL.

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PARTE I

OBJECTIVAÇÃO E SUBJECTIVAÇÃO

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Já no período mais sombrio da história dos negros, mais concretamente durante a escravatura nos Estados Unidos, encontramos referenciais de objectivação e de subjectivação. Ambos referenciais procuram dar conta do lugar do negro-escravo na sociedade norte-americana. Pois, se por um lado temos abolicionistas brancos que procuram representar os interesses dos escravos na sua luta para serem livres do sofrimento e da humilhação que o homem branco-esclavagista lhes submetia, encontramos, por outro lado, uma parte dos abolicionistas brancos a fazerem esforço em incluir, nas suas manifestações anti-esclavagistas, os próprios escravos e ex-escravos «fugidos». Os escravos e ex-escravos são incorporados nas manifestações organizadas pelos abolicionistas num esforço de emprestar autenticidade às reivindicações nas quais o escravo é o objecto e as suas condições de vida são objectivadas em discursos elaborados. Se, por um lado, os abolicionistas brancos em inúmeras reuniões e manifestações repudiam as condições desumanas sob as quais os negros escravos vindos de África vivem e se solidarizam com a «causa negra», por outro lado, esses homens e mulheres que sofrem ou tinham sofrido na sua alma e pele a humilhação de serem escravos, numa sociedade em que todas as outras cores são homens livres, fazem um esforço teórico em serem sujeitos na elaboração de um discurso cuja legitimação provinha da pretensa autenticidade original de pessoas sofredoras. Trata-se, portanto, de esforços de subjectivação que homens e mulheres fazem, mas somente à medida que o espaço para contarem as suas heroicidades lhes é dado e controlado pelo abolicionista. O discurso do esforço de subjectivação, nestas circunstâncias de

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controlo, deve obedecer às regras e à ordem preestabelecidas. Não restam dúvidas que os escravos ou ex-escravos convidados para falarem nas manifestações dos abolicionistas apresentavam-se como autênticos, como a prova, como sujeitos das narrativas sobre as condições em que vivem. Não restam dúvidas que as condições de vida dos escravos são péssimas. Eles são submetidos, nesta altura, às condições mais miseráveis e desumanas que a mente humana pudera um dia imaginar (e que «não vamos esquecer o tempo que passou»), como nos conta o escravo Frederick Douglass(1). Segundo ele os escravos trabalham durante todo o dia nas plantações, são chicoteados várias vezes sem razão plausível. No Verão e no Inverno, não interessa, andam quase sempre descalços. Eles possuem, para todo o ano, uma calça de linho, (1)

Frederick Douglass (1818-1895) é um escravo negro nascido em Tuckahoe (Maryland) nos Estados Unidos. A mãe, Harriet Baley, é também uma escrava pertencente ao Capitão Aaron Anthony. Nunca conhecera o seu verdadeiro pai. Segundo ele, este teria sido «provavelmente um white man” ou a sua mãe nunca quisera revelar quem era o seu pai. Frederick desconfia, no entanto que fosse o próprio capitão. Entretanto, como é ‘norma’ nesses dias, os filhos dos escravos assumem o nome do seu senhor. Assim, o nome completo dele era Frederick Augustus Washington Bailey, nome dado pela sua mãe e que mais tarde ele cortara o apelido Bailey mudando para Douglass. Em 1825, com apenas sete anos, Frederick foi vendido a um novo senhor (Hugh Ault) como escravo doméstico. Aqui teve a sorte de ser ensinado o alfabeto pela esposa do seu novo dono (o que depois foi interrompido abruptamente porque, segundo o seu dono, «if you teach that nigger how to read, there would be no keeping him. It would forever unfit him to be a slave. He would at once become unmanageable, and of no value to his master. As to himself, it could do him no good, but great deal of harm. It would make him discontented and unhappy» [Douglass 1982,78]). Ele conta que, depois do alfabeto, aprende a ler e a escrever com os miúdos brancos alunos a quem ele aliciava para tal. Enfurecido por ele ter aprendido a ler e a escrever, o seu dono manda-lhe para as plantações na Filadélfia. Após algumas tentativas falhadas, Frederick consegue escapar, em 1838, para o norte (Nova York), onde, já como um homem livre, torna-se um membro activo de um grupo abolicionista dos negros da escravatura. Transformou-se num leitor muito activo para a Massachusetts Anti-Slavery Society, em nome da qual viajou para muitos estados e para a Inglaterra para falar sobre o abolicionismo. Escreve a sua autobiografia intitulada Narrative of the Life of Frederick Douglass, an American Slave e, em 1847, começa uma carreira de jornalismo editando e publicando os seus próprios jornais. Na sua autobiografia, ele classifica o facto de ter aprendido a ler e a escrever como sendo o início de uma «caminhada da escravatura para a liberdade».

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uma camisa e um casaco leve que pouco serve para se protegerem do frio. Eles dormem no chão. A sua alimentação é constituída quase sempre por mush (grãos de milho fervido) e poucas vezes por carne. Os escravos estão constantemente sob o perigo de serem vendidos a novos donos, dos quais tomam o seu «novo» nome, dado que este é um sinal de pertença ao seu dono. O consolo encontram nas canções do período nocturno, muitas das quais com letras de duplo sentido e, por trás das quais, expressam o seu sonho de liberdade. As suas angústias são expressas em narrativas orais e dramáticas, uma vez que não sabem ler e nem escrever (Douglass 1982, 71 pp.). Para o público, no entanto, são os brancos abolicionistas que, por solidariedade, articulam de forma escrita e oral, as dramáticas e humilhantes condições em que os negros escravos vivem. Os negros escravos, as suas condições de vida, a sua desumanização são objecto nos encontros e nos escritos dos brancos abolicionistas e que, por isso mesmo, são considerados «progressistas». Entretanto, os próprios abolicionistas brancos, cedo se dão conta que faltam as vozes internas dos próprios escravos, e que faltam também testemunhos vivos dos próprios escravos, para complementar às suas vozes e escritos. Na óptica dos abolicionistas, os negros deveriam ser incorporados nestes encontros e manifestações, já que a sua presença ao vivo daria «credibilidade» e autenticidade aos seus esforços de lutarem contra a escravatura. W. M. Lloyd Garrison — um abolicionista que escrevera o prefácio do Narrative — conta que, quando participou na Convenção Anti-Escravatura em Agosto de 1841 em Nantucket, não pôde esconder a sua «alegria» ao saber que Frederick Douglass, em pessoa, iria prestar um testemunho sobre a escravatura: «(Douglass) era uma pessoa desconhecida para quase todos os membros daquela agremiação; mas, tendo escapado recentemente da sua casa-prisão no Sul, sentindo a sua excitante curiosidade para perceber os princípios e as medidas do abolicionismo — do qual, enquanto ainda escravo, ele havia ouvido vagamente falar — ele foi induzido para participar na convenção.» (Cfr. Douglass 1982,33) A participação em carne e osso dos próprios escravos nas convenções e manifestações organizadas pelos brancos abolicionistas

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empresta uma tónica realista ao movimento, tanto mais que os participantes, muitas vezes, se fazem em lágrimas ao escutar os eloquentes e estarrecedores relatos sobre o tratamento desumano a que o negro-escravo está submetido por parte do seu «senhor» branco. Garrison confessa: «Nunca esquecerei a sua [de Douglass] primeira intervenção na convenção — a emoção extraordinária que provocou na minha alma — a impressão poderosa que criou num auditório muito cheio, completamente levado pela surpresa — os aplausos que se seguiram do início até ao fim da sua intervenção. Penso que nunca odiei a escravatura tão intensamente como naquele momento.» (Cfr. Douglass 1982,34) Escutar as histórias da escravatura pela boca do próprio ex-escravo fugido era algo «especial» e muito mais convincente. A manifestação seria também uma espécie de palco de representação, um espaço de apresentação de discursos de objectivação e de subjectivação. Neste processo, os próprios escravos tomam consciência de que deveriam ser eles próprios a contar ao mundo da época e ao posterior sobre o seu sofrimento, e não outros. Até que isso não sucedesse, o abolicionismo liderado pelos brancos continuaria a correr o risco de ser pretty much the same (Douglass 1982,8). Havia que incluir uma narrativa crítica a partir dos próprios afro-americanos para não continuar a ser a «mesma coisa». Assim se explica o surgimento, entre 1820 e 1860, de narrativas escritas pelos ex-escravos e publicadas em diversas edições americanas2, tendo estas sido traduzidas para outras línguas como o alemão, o céltico, etc. São narrativas que dão conta desta instituição peculiar americana, a escravatura, na sua complexidade, nos seus efeitos físicos e psicológicos e exigem, de forma inequívoca, a abolição da tirania. O padrão das narrativas dos ex-escravos é quase comum: começa-se por descrever as atrocidades da escravatura, (2)

Refiro-me especialmente às obras The Interesting Narrative of the Life of Olaudah Equino or Gustavus Vassa, the African publicada em 1789, A Narrative of Moses Roper’s Adventures and Escape from American Slavery publicada em 1837, The Narrative of William Wells Brown e The Narrative of Solomon Northup estas últimas publicadas em 1847. Estas narrativas foram vendidas aos milhares, ainda naquela altura.

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logo descreve-se a «longa e heróica marcha» da fuga dos escravos para a liberdade e, finalmente, explica-se a natural aderência e dedicação aos princípios e objectivos do abolicionismo. Os relatos que o escravo Frederick Douglass e outros escrevem, indicam que os negros americanos tomam consciência de si no sentido de que não devem continuar a ser meros objectos das acções libertadoras dos brancos abolicionistas; em outras palavras, não podem continuar eternamente a ser objectivados se quisessem ser livres à semelhança das outras raças vivendo nas Américas. Eles próprios, numa fase primária, prestam suas declarações oralmente (como «testemunhos» vivos) e depois, constroem a sua própria narrativa crítica, ou seja, passam a ser sujeitos na construção do discurso sobre a sua condição de existência social e política como escravos. Mais uma vez, reparamos que de um esforço de objectivação passou-se para um esforço de subjectivação da condição material e intelectual dos afro-americanos. É esta a tendência geral na forma como os africanos entram na chamada História Universal? E será que a subjectivação é o fim? Como é que a filosofia africana, como uma disciplina que pretende resumir o tempo no conceito (emprestando a definição hegeliana) ou, se quisermos, uma filosofia que o seu trabalho é o de criar conceitos, como pretendem Deleuze e Guatari, se deu conta destes referenciais narrativos na sua evolução e que lugar estatutário ocupam hoje estes referenciais de objectivação e de subjectivação? São algumas perguntas que me inquietam ao longo deste livro. Ainda para lá da história no tempo colonial, desta vez o «palco» não é dos abolicionistas americanos mas sim Moçambique, deparamo-nos com o mesmo cenário de objectivação sobre como os nativos africanos vivem e pensam, pelos europeus, desta feita missionários. Um exemplo bastará. E vamos pegar o exemplo de Henri-Alexandre Junod, um missionário suíço que estuda e divulga a mensagem da missão suíça em Moçambique e na África Austral nos séculos XIX e XX. Junod não é somente missionário como também interessa-se pelas línguas locais, pela geografia, pela botânica e fauna e, enfim, pelos hábitos e costumes dos povos desta região austral africana. Junod tem um particular prazer em coleccionar borboletas e plantas da região outrora conhecida

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como Delagoa Bay (hoje Maputo, depois de ter sido Lourenço Marques). Hoje ele é conhecido como tendo «descoberto» muitas plantas «novas» durante os anos que viveu nesta região. Ele é também reconhecido como um dos pioneiros da exploração botânica da região da África Austral, chegando a corresponder-se com muitos botânicos famosos da sua época. (Harries 2007,150). A dedicação de Junod pelas espécies das plantas faz-lhe merecer ser perpetuado na denominação de uma boa parte delas. Tal é o caso do género Junodia Praxis e é também o caso de cerca de trinta plantas diferentes, incluindo a Gladiolus Junodi. Na floresta do que é hoje a Marracuene é atribuído a Junod ter descoberto «lagartas raras e um grande número de escaravelhos da madeira» e uma «variedade de árvores e arbustos». Conta-se que foram necessários somente sete anos para Junod poder reunir cerca de 184 espécies diferentes das 200 espécies de borboletas, mais de metade da totalidade das espécies que na altura se crê que a África Austral poderia ter. Ele dá nome a 479 espécies de escaravelhos, entre os quais o Psammodes Junodi, gafanhotos e louva-a-deus. Esta actividade teria sido tão intensa que muitos insectos e plantas ostentam hoje o nome de Junod, o da sua esposa, o das muitas estações missionárias da Missão Suíça, etc. Enquanto o museu de História Natural de Neuchâtel lhe envia frascos, instrumentos de dissecação, cianeto e redes, Junod fornece de volta a este museu uma imensa variedade de animais, insectos, moluscos, em troca de «alguma remuneração» (Harries 2007,154). Nos registos do museu nota-se que Junod, somente em 1911, teria enviado uma preciosa colecção de Hemiptera e, em 1912, 187 insectos do género Orthoptera e Hymanoptera. Conchas do mar, ovos e ninhos, ouriços-do-mar, cobras, lagartos, rãs, um crocodilo e vários mamíferos também fizeram parte da encomenda enviada por Junod para Neuchâtel. Como seria possível que um só homem pudesse ser capaz de recolher tantos ouriços, ovos, ninhos e outros animais e plantas por aí fora? A resposta é muito simples: Junod não podia prescindir da ajuda e dos bons préstimos dos nativos que vivem na região e que a conhecem muito bem. Estes prestam mais do que «ajuda» ao nosso cientista. Conta-se que, por exemplo, num belo dia de 1891, «um dos assistentes trouxe-lhe uma magnífica borboleta Swallowtail» e que

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este «tinha apanhado a borboleta na floresta de Morakwene [hoje Marracuene]»; Junod rapidamente mandou-a para a África do Sul para a sua identificação e classificação. Esta borboleta foi baptizada pelo nome Papilio Junodi, conhecida hoje por Swordtail de Junod (Harries 2007,152 p.). Conta-se ainda que em Rikatla ele tem mais dificuldades em descobrir espécies raras, mas em dois anos, ele treina «nativos inteligentes» que lhe auxiliam a reconhecer insectos exóticos e a descobrir os seus habitats. Entretanto os «nativos inteligentes» não eram colectores cegos. Eles possuem os seus próprios nomes pelos quais denominam os insectos e a sua própria forma de classificação dos escaravelhos e outros animais. E, o que parece ser mais importante para Junod, os nativos possuem uma certa «noção de ordem» nesta classificação dos animais. Junod fica particularmente fascinado com a semelhança da classificação nativa com a europeia em géneros e espécies de animais e plantas. Vejamos como nos conta Harries: «Junod descobriu que os indígenas tinham muito que ensinar aos cientistas europeus sobre a utilidade das plantas. Em diversas ocasiões ele convidou os nativos para o seu museu onde, em troca de uma moeda, eles lhe forneciam os nomes locais e os usos das plantas. (…) Junod reconheceu que os adivinhos (aqueles que prediziam o futuro), e gobelas (os habilitados em fazer exorcismos aos espíritos maus) possuíam um conhecimento complexo dos animais e plantas usados no desenrolar das suas profissões. Junod admirava especialmente as mulheres velhas e os nangas, ou curandeiros especialistas, cujo conhecimento das propriedades medicinais, nutricionais e mágicas das plantas constitui uma forma rude de classificação.» (Harries 2007,156) Até hoje existe no museu etnográfico em Neuchâtel uma «farmacopeia ronga»! Até hoje a glória de ser «sábio» e «cientista» cabe a Junod: quem se interessará pelo papel dos numerosos informantes, adivinhos, gobelas, «nativos inteligentes»? Serão eles também sujeitos do conhecimento ou simplesmente intermediários, mesmo sabendo que informaram muito bem sobre os escaravelhos da sua terra? Hoje não conhecemos os nomes dos «nativos inteligentes» e nem

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sabemos exactamente em que cada um deles teria contribuído para a elaboração teórica e para as descobertas do seu grande mestre e cientista Junod. Como vimos acima, as referências a estes homens e mulheres são sempre breves, sem nomes. Sabe-se apenas que são «informantes» do grande mestre. Se nos permitirem uma breve comparação, Livingstone também é considerado pela historiografia eurocêntrica como o grande conhecedor do vale do rio Zambeze que até hoje, em sua homenagem, existe uma cidade na República da Zâmbia que ostenta o seu nome. Ele teria oferecido o espólio (em termos de conhecimento e objectos materiais) à rainha da Inglaterra. No entanto, o que não é dito, é que ele andava com cerca de cem «informadores» e «ajudantes» locais que lhe iam alertando sobre os perigos, mostram caminhos da sua marcha e ajudam a identificar coisas valiosas do vale. Estes informantes ficam anónimos na História. Se existem alguns relatos com os seus nomes nos livros de história, estes estão nas notas de rodapé. Regressando a Junod, é sabido que ele dedicara muito do seu talento a escrever sobre os usos e costumes dos bantu. Como ele recolhia informações sobre esta matéria? Encontramos aqui, de novo, o mesmo método de usar informantes. José F. Feliciano, que em 1996 prefacia o livro de Junod, classifica o método de trabalho de Junod por «antropologia social moderna», isto é, trabalho de campo prolongado por vários meses, observação participante e com recurso a «informadores locais». Junod, a propósito, escreve: «os meus documentos não são livros: são testemunhas vivas, os indígenas...». Os informadores principais, segundo o próprio mestre Junod (1996,23pp.), são três: o primeiro é «um ronga de Nondrwana» chamado por Spoon e que domina a «arte de deitar os ossinhos», tem imaginação muito viva e um sentido mitológico mais desenvolvido que qualquer um dos outros informadores. O segundo informador é Tobana, uma personagem importante no clã Mpfumu. Este possui conhecimentos profundos dos usos da corte e do tribunal. Pela boca deste Junod informa-se sobre o «sistema tribal dos Rongas». O terceiro é um homem de nome Mankhelu, filho mais velho de Xiluvana, antigo chefe do clã Ncuna. É ao mesmo tempo general do exército, médico principal do curral real, um dos conselheiros do rei, adivinho convicto, sacerdote da família, que domina, portanto,

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«as concepções obscuras do espírito bantu». Mankhelu domina também a «técnica de deitar os ossinhos» e é bom «fazedor de chuvas». Para além desses três «informadores» de qualidade, Junod usa os fiéis da missão de Xiluvana para os seus estudos. Como conhece bem a língua, Junod pôde compreender a maior parte das coisas que lhe diziam. Junod diz que uma das vantagens que tem com os fiéis assenta no facto de estes terem sido «pagãos» antes de terem sido convertidos para a igreja. Daí que estes adultos haviam praticado os ritos sobre os quais são interrogados: «podiam descrevê-los melhor do que os pagãos sem educação, pois encontravam-se já a uma certa distância de vida antiga e podiam julgá-la de maneira mais independente», ajuíza Junod (1996,22). Entre os fiéis da missão é Viguet (nome de um professor de teologia de Lausannne que o «velho» recebera no baptismo), que fora chefe duma aldeia «Tsonga» (nome de «tribo» do sul da África que o próprio Junod «inventara»), quem dá informações sobre os mistérios da vida familiar e sobre as cerimónias de iniciação. Há ainda outros velhos informantes como Maewew (poeta), Simeão Gana, Mbhoza, etc. Os alunos também são tomados como fontes de informação: todas as terças-feiras Junod organiza uma reunião «durante a qual um deles devia contar uma história, descrever um costume, ou então contar um conto indígena.» Junod conseguiu, através destas «reuniões», coleccionar mais de cem contos locais. Aqui também as mesmas perguntas se colocam: o saber do velho Viguet (do qual hoje não se sabe o seu nome original), os poemas de Maewew, os saberes do Simeão Gana, Mbhoza, Makhelo, Tobana e mais outros, onde estarão hoje fossilizados? Claro que por trás da sabedoria de Junod e divulgados pelos inúmeros livros de Junod. O saber destes informantes está, de certeza, por aí espalhado ou como notas de rodapé. Esses velhos e jovens foram objectivados, ou seja, tornados objectos embora na sua condição de sujeitos do conhecimento. Dito doutra forma, eles nunca foram apresentados como sujeitos do seu saber sendo-lhes reservado o lugar de aparecerem como ilustrações (em forma de fotos), como «provas» da autenticidade das informações contidas nos Usos e Costumes e noutros escritos divulgados por antropólogos missionários e coloniais. Por mais boa

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intenção que Junod tivesse (e teve) essas figuras dos «nossos» sábios são testemunhas da existência de uma sociedade primitiva atrasada (ainda fora da história do espírito humano, como diria Hegel) para lá da Europa, sociedade essa que interessava estudar, conhecer, enfim, objectivá-la. O termo objectivá-la é empregue aqui em dois sentidos: no primeiro, tornar a sociedade primitiva objecto de estudo; no segundo, é que mesmo ela não existindo, tinha que ser construída tornando-a real, objectiva. No livro Africa Unscheined o economista africano Ayittey defende duas teses cuja novidade não reside tanto no seu conteúdo mas sim, quanto a mim, na constatação que ele faz da existência de uma nova «classe» de africanos a quem ele deposita a esperança de serem sujeitos do desenvolvimento em África. Ele chama essa nova classe por cheetah generation (Ayittey 2004, XIX). Segundo a primeira tese de Ayittey, os problemas africanos devem ser resolvidos por eles próprios e esses devem deixar de culpar constantemente ao Ocidente pela existência desses problemas no seu continente. De facto, para Ayittey, não se justifica continuarmos hoje a olhar para os erros que nós próprios somos responsáveis como sendo ainda efeitos da escravatura, do colonialismo ou do neocolonialismo. Continuarmos a apresentar a África como vítima de um conluio colonial e neocolonial é praticar uma «ortodoxia externalista», diz ele. Esta ortodoxia já perdeu a sua legitimidade e validade como um discurso a que se deve prestar alguma atenção. Na sua segunda tese Ayittey repara que a África deve ser desenvolvida pelos africanos usando o seu próprio modelo de desenvolvimento, e não um modelo copiado dos Estados Unidos, nem da Rússia e nem de um outro país qualquer. Embora todo o seu livro procure demonstrar a classe camponesa africana e as suas formas de vida rural como a fonte a partir da qual o novo modelo africano de desenvolvimento deverá ser reinventado, Ayittey constata que nas zonas urbanas a geração dos cheetah é muito diferente da geração libertadora. Ele escreve que esta nova geração não tem nenhuma relação com o velho paradigma colonial, não se interessa muito que lhe seja sempre recordado as condições da escravatura pelas quais os seus antepassados passaram e muito pouco se interessa pelo que os nacionalistas pós-coloniais como NKrumah,

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Kenyatta ou Kaunda projectaram para a África. Os cheetah têm a certeza de uma coisa: que os líderes actuais são corruptos e que os sistemas de governação que estes líderes montaram em África violam sistematicamente os direitos humanos. Como nasceram já numa África independente, não têm interesse em ser permanentemente recordados que houve um sistema colonial ou mesmo escravatura em África. De que lhes servirá isso afinal? Por isso não entram no «jogo» do discurso que pressupõe haver um conluio dos antigos colonialistas e imperialistas para, seja como for, prejudicarem o desenvolvimento do continente negro. Não têm tempo e nem energias para pensarem em termos de teorias conspirativas contra África. Esta mesma geração não se senta e espera que o Ocidente faça algo para e por ela. Também não fica sentada à espera que o Gover no-do-dia faça algo por eles. Não esperam que o emprego lhes seja dado pelo Governo, por uma ONG ou ainda caia do céu. Lançam-se diariamente à rua para começarem um pequeno negócio, apertam-se diariamente nas ruas da cidade para conseguirem vender qualquer coisa, lutam para estudarem nas escolas nocturnas e formar-se nas faculdades, preocupam-se por ensinar às pessoas como devem sobreviver neste «mundo selvagem». Na verdade eles nasceram na selva onde cada um luta diariamente para sobreviver. É uma geração de empreendedores que vêm o seu futuro não hipotecado na política, senão nas suas próprias mãos e no trabalho árduo. Estes são os sujeitos do seu próprio destino. Não permitem que sejam objectivados nos dois sentidos: que alguém escreva a sua história de momento por eles e que alguém mantenha o seu futuro refém do passado heróico dos libertadores. O mais importante é que estes mobilizam a tradição ou a modernidade somente à medida que uma ou outra oferecem um leque de possibilidades de progresso e sobrevivência. O saber e o seu uso, para eles, só têm sentido se lhes coloca no ideal do progresso. O erro da hippo generation — assim chama os cheetah à geração dos «velhos» libertadores que hoje se transformou em capitalistas, traindo eles os seus propósitos iniciais — é não ter a coragem de confiar nos mais jovens a liderança das nações africanas. Por causa do discernimento que esta geração tem em usar as oportunidades para sobreviver, porque de facto estes não olham os meios para atingirem

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os seus fins, a geração dos hippo teme que não tenham bebido suficiente os valores nacionalistas que orientaram o processo das lutas de libertação. Essa geração nova dos cheetah representa também um novo esforço de subjectivação. Paradoxalmente, não é nesta geração e nos seus ideais que a filosofia profissional africana busca a sua inspiração para as suas lucubrações intelectuais. Os olhos da filosofia africana estão virados, pelo contrário, ou no passado tradicional tentando reformulá-lo em função do presente, ou no ocidente onde pensa encontrar os modelos para o pensar filosófico e o seu ensino formal. Com este livro queremos celebrar o esforço de intersubjectivação como uma nova perspectiva do que-fazer filosófico que está no interior da própria filosofia africana. A procura deste esforço de intersubjectivação é feita a partir do interior dos próprios esforços de objectivação e de subjectivação. Estes últimos são também aqui celebrados como referenciais da filosofia profissional africana na sua marcha de auto-inscrição na história universal do pensamento filosófico. Ao fazer isto, pensamos prestar a estes esforços de criação de uma significação simbólica africana (objectivação, subjectivação e intersubjectivação) a devida homenagem que merecem na academia africana. É um lugar que estes referenciais devem ocupar para além das linhas divisórias conceptuais e das diversas críticas que eles têm sofrido ao longo dos tempos e por parte de diversos pensadores. A tendência na elaboração intelectual-académica africana, pelo menos no que diz respeito às ciências sociais e humanas, e à filosofia em particular, sobre a sua condição de existência na história do pensamento, nos últimos três séculos, é caracterizada por tentar conferir autoridade simbólica ao imaginário colectivo africano. O que esteve sempre em causa é, no fundo, a busca da liberdade e o reconhecimento do sujeito africano como actor social e da sua própria história; ou seja, esteve sempre em jogo a legitimidade do filósofo africano em ser quem elabora o discurso sobre a significação simbólica que dê conta do reconhecimento dos africanos como actores da sua história e da sua identidade como africanos. Este livro dá conta de como este esforço pela captação do espírito africano no contexto geral da história universal, esforço este feito pelos africanos e pelos pensadores europeus em África, jogou aos africanos ora como simplesmente objectos

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de estudo, ora destacou-os como sendo sujeitos da sua própria história e suas próprias formas de pensar. A pretensão subjacente do livro vai, porém, mais longe: mostrar que ao mesmo tempo que se faz este esforço, há simultaneamente um esforço de intersubjectivação que acompanha aqueles. Assim, a intersubjectivação como referencial não deve ser entendida como um ponto de chegada da filosofia profissional africana. Ela esteve sempre intrínseca. O que este livro faz é recontar a filosofia profissional africana, a partir da perspectiva dos esforços de intersubjectivação. No centro das reflexões da filosofia africana sobre a sua condição de existência na história e na época contemporânea, ou seja, no centro das diferentes formas das tentativas da «auto-inscrição» (Mbembe 2001) dos intelectuais africanos na história universal, repousam três eventos-eixo: a escravidão, o colonialismo e a globalização. Nestes eventos-eixo o intelectual africano — mesmo que, nestas duas últimas entre como membro da elite — participa como uma espécie de porta-voz da condição dos africanos na história da humanidade como escravos, colonizados e globalizados. É, assim, natural que a preocupação fundamental e o eixo do que-fazer filosófico (oral e escrito) seja a fundamentação da liberdade, ou seja, o «paradigma libertário», como sustenta Ngoenha (2005). Em relação a estes três eventos-eixo nasceram duas tendências académicas referenciais (quasi paradigmáticas) na filosofia profissional africana. A primeira tendência referencial da auto-inscrição africana na história do pensamento filosófico, que chamamos de objectivação, nasce da ideia de que, como consequência da escravidão, da colonização e da globalização, o Eu-africano se alienou a si mesmo a ponto de se tornar estranho ao seu próprio corpo. O discurso sobre a condição da sua própria existência, o discurso sobre sua identidade enquanto africano, é feito, entende-se, a partir do lugar que a história ‘universal’, elaborada predominantemente numa perspectiva do Ocidente, o reserva. É essa a base do eurocentrismo no qual o africano sofre um duplo processo de objectivação: por um lado, como objecto da História (e não sujeito), construído pela historiografia moderna; por outro, pela retomada desse mesmo discurso por parte das elites académicas africanas. O Ocidente, nesta historiografia, apresenta-se como uma posição de localização histórica e científica, como o centro referencial do

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saber tecnocientífico e axiológico. O centro epistémico é ocupado sucessivamente pelo senhor dos escravos, pelo colonizador e finalmente pelo globalizador. Este sujeito apropria-se de todas as -referências simbólicas e tecnocientíficas, incluindo as que encontrara nas colónias, reelaborando-as e disseminando-as de acordo com o lugar e o estatuto que reserva ao ‘outro’ africano, como escravo, colonizado e globalizado. A segunda forma auto-referencial da filosofia profissional africana tenta contrapor-se à criação eurocentrista e externa do discurso sobre a condição de existência do africano na «história universal», refugiando-se num discurso do imaginário tradicional, de nostalgia em relação aos antepassados e de idolatria às chamadas tradições africanas. Mais do que isso, esta forma auto-referencial busca e rebusca a sua legitimidade nessas tradições a partir das quais prefere e escolhe elaborar as suas significações e fixar identidades homogeneizantes. Trata-se, desta feita, do referencial da subjectivação. Este referencial tenta recentrar o sujeito africano perante a sua história e a si mesmo. O afrocentrismo e o ubuntuismo apresentam-se neste livro como os esforços de subjectivação ou seja de recuperação das tradições e dos valores africanos ‘depositados’ nas comunidades africanas tentando construir e, por vezes, reconstruir um discurso ‘autenticamente’ africano. No entanto, por mais paradoxal que pareça, mas nem por isso surpreendente, ambas tendências referenciais (objectivação e subjectivação) na filosofia profissional africana representam, no fundo e como dissemos acima, um esforço de negação do estatuto de inferioridade, de periferia e de subalternização do negro-africano na história; ao mesmo tempo é um esforço de afirmação que procura revelar a necessidade assim como o imperativo da subjectivação do pensamento a partir dos imaginários tradicionais locais. Os dois referenciais da filosofia africana representam ainda, socorrendo-me no camaronês Eboussi-Boulaga (1977), a crise do Muntu em identificar-se com a sua própria História (alienação) e a desconfiança na sua própria capacidade de produção de um saber relevante ao seu meio. Representam a oscilação entre a objectivação e a subjectivação do Muntu perante as dinâmicas da transformação. A exaltação do moderno e do tradicional representa a expressão da crise interna da

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identidade, uma crise ontológica e epistemológica do Ser africano3 (Mamdani 1997,152). Para mim, filosofia é diálogo argumentativo. Ou seja, filosofia só ganha sentido e significado se ela for elaborada num contexto de um diálogo intersubjectivo. Entretanto, para que a filosofia possa evoluir, ela, entanto que processo, deve ser efectivada na forma de diálogo entre sujeitos; esta interacção entre os sujeitos ou diálogo deve ser na base tanto de textos escritos como orais. No caso de textos orais, estes devem ser transcritos para incluí-los no diálogo argumentativo. Mas a existência de textos escritos não é uma razão suficiente para excluir os textos orais do debate argumentativo. Pelo contrário, os textos que deveríamos puxar para o diálogo argumentativo devem ser, como única condição ou critério, textos críticos. Porque filosofia é, pela sua natureza, um diálogo crítico intersubjectivo. Vejo os textos filosóficos como sendo o resultado de uma apropriação individual, sistematizada mas sobretudo crítica dos diferentes argumentos expressos no espaço de diálogo. Assim, para mim, o texto é filosófico se, desde o ponto do seu autor, esse mesmo texto (escrito ou oral) trata de questões consideradas como sendo «fundamentais» para avançar o mesmo diálogo e, desde o ponto de vista dos outros participantes no debate, o mesmo texto é visto como tratando questões fundamentais para a análise dos fenómenos, processos ou interpretações em causa. O que estou a sublinhar é que um texto filosófico é sempre resultado da intencionalidade do autor em escrevê-lo como tal, mas também ele se torna realmente filosófico quando os destinatários, os contra -arguentes, leitores ou ouvintes, o aceitam como filosófico ou têm a impressão que está «cheio de sabedoria» ou ainda que ele «trata de questões fundamentais» da vida. O texto filosófico, para além de reconhecer ou tomar conta dos outros textos filosóficos escritos e orais sobre o mesmo assunto, deve (3)

Sobre a crise ontológica e epistemológica Mamdani (1997,52) escreve: «Ontologically we need to ask: What is Africa? A multiplicity of ‘races’? Who is an African? A racial being? (...) If to transcend the legacy of colonialism this racial identity and to humanize fully construct of A ‘ frican’, and if this is not to turn into mere posture, do we not need to ask: What is the historical process that makes of us, Africans. The ontological question is tied to that of epistemology. To do African Studies is to be profoundly subversive of the tradition of African studies. It is to redefine the study of Africa as a study of ourselves in a post-apartheid world».

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também reflectir uma atitude crítica perante o assunto em causa. E, para mim, uma atitude crítica é aquela que vê/interpreta a realidade não como algo absoluto ou como uma necessidade, mas como contingência, ou seja, uma alternativa da sua forma de aparição (do alemão: Erscheinung) perante as nossas categorias de entendimento. Daí resulta que a essência de uma crítica filosófica é a de apresentar sempre alternativas de interpretação, de discursos sobre uma determinada realidade social, cultural, política e económica. Se eu quiser ser resumido, a filosofia tem, por um lado, um momento contemplativo hegeliano de Zeitgeist (espírito da época), ou seja, o «resumo do tempo (histórico) no pensamento» e, por outro lado, um momento crítico marxiano de ímpeto para «transformar a sociedade». Qualquer destes momentos é igualmente importante para o crescimento do debate argumentativo filosófico. Não é por acaso que Marx, criticando a filosofia de Hegel, por ele considerada «contemplativa», proclama que die Philosophen haben die Welt nur... interpretiert, es kommt drauf an, sie zu verändern, ou seja, os filosófos, até agora, limitaram-se a interpretar o mundo, o desafio agora é transformá-lo. Marx reconhece, sem dúvida, que para que a filosofia possa contribuir no processo da construção de um mundo melhor, a contribuição da própria filosofia deve ser feita após uma profunda reflexão e interpretação da singularidade do «seu» tempo histórico; dos «tempos da filosofia», diria Ngoenha. Pelo que foi sugerido anteriormente resulta que aquele que tenha a pretensão de escrever um texto filosófico pesa sobre ele uma tripla responsabilidade. Em primeiro lugar ele tem a responsabilidade teórica de escolher os assuntos que pretende pôr ao debate e daí reflectir sobre o que foi e é dito por colegas filósofos seus sobre o mesmo assunto; esta é uma responsabilidade que se impõe ao autor obrigando-o a entrar num diálogo argumentativo com os outros de forma fiel, honesta e justa em relação aos argumentos esgrimidos pelos outros. Ele deve ter a certeza máxima que compreendeu os argumentos do outro para poder, de seguida, expor os seus. Em segundo lugar, o autor do texto filosófico deve ter a responsabilidade de clarificar o seu ponto de vista e argumentar a favor dele usando os recursos intelectuais e culturais ao seu alcance; os seus pontos de vista devem ser acerca das questões que ele escolher como sendo fundamentais para o

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debate com os outros. O filósofo deve ter a certeza sobre os pressupostos básicos da sua argumentação e clarificá-los no texto escrito ou oral. Em terceiro lugar, o autor do texto filosófico tem a responsabilidade social no sentido de que, o que ele escreve ou diz, deve aparecer como sendo relevante para os contemporâneos e para as futuras gerações; acho que quando um autor se põe a escrever um texto que pretende ser filosófico tem sempre um público a sua frente com o qual dialoga. Na maior parte, o público são outros académicos e, muitas vezes, os seus próprios estudantes. Os textos que resultaram no livro Discurso Filosófico da Modernidade de Habermas, os textos que fazem parte do livro African Religions de Mbiti, a própria obra da Filosofia da História, Fenomenologia do Espírito, de Hegel, ou ainda o texto Tempos de Filosofia de Ngoenha, em todas estas obras os seus autores confessam que escrevem para os estudantes e em debate com eles; então a responsabilidade social resulta daí mesmo: que o autor saiba que já não será dono absoluto do seu texto ou da sua fala e que será duplamente responsabilizado, pelo texto que escreveu (ou pelo que disse) e pelo conjunto de interpretações orais e escritas que daí resultarem. Assim, para mim, o autor do texto filosófico pode reclamar a elaboração do texto ou da fala, mas já não pode reclamar a autoria individual do pensamento nele expresso. Pois, o pensamento expresso no texto ou oralmente, para ser filosófico, deve dar conta dos outros pensamentos, melhor, deve evoluir dos textos e ditos dos outros textos e ditos aceites como filosóficos. Este último público de estudantes explica a metodologia que utilizo na escrita deste texto: em certas partes, o texto é escrito em forma de diálogo com os autores em estudo, particularmente com Asante, Hountondji, Ngoenha, Wiredu, Mbiti, Oruka, Ramose e outros que constituem referências principais para suportar as minhas ideias. Na verdade, em muitas partes do texto eu estava a conversar, estava em diálogo com os autores: procuro perceber os seus pontos de vista, em algumas circunstâncias recorrendo às suas biografias para iluminar certas formas de pensamento e ideias que defendem, noutras circunstâncias adiantando a minha opinião ou contrastando com algumas opiniões de outros filósofos e pensadores. Foi por esta razão que decidi usar o «nós» na escrita deste livro, ao invés do «eu» (como Hountondji prefere escrever nos seus textos) ou a terceira pessoa

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(como Ngoenha). O «nós» pareceu-me suficientemente adequado e plausível por uma convicção que, de resto, procuro defender neste livro com o termo intersubjectivação. O «nós», efectivamente, parte da convicção de que o conhecimento não se constrói no cogito individual, como Hountondji parece em algum momento querer sublinhar, mas sim do diálogo com os outros, mesmo que aparentemente estejamos a cogitar sozinhos no nosso canto. Acredito que o crescimento intelectual filosófico é somente possível quando dois ou mais sujeitos entram numa interacção «intersubjectiva». Naturalmente que esta interacção só é efectiva quando seguida ou entremeada por momentos de reflexão individual. Mas é o momento e o espaço de intersubjectivação que é fundamental para o desenvolvimento da filosofia, creio. É esta crença no poder do diálogo intersubjectivo que tento fundamentar e defender neste livro. E é esta crença que me impeliu a escrever «nós», daqui em diante.

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PARTE II

REFERENCIAIS DE OBJECTIVAÇÃO

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Os diferentes povos africanos, enquanto olhados como colectividades — sejam elas chamadas por «tribos», «etnias», «clãs» ou outros nomes construídos — foram e são objecto de estudo das ciências sociais, naturais e humanas. Em muitos casos, como defende Hountondji (2008), o estudo das questões africanas foi e está confinado nos chamados Centros de Estudos Africanos. Estas ciências, independentemente da sua natureza, poucas vezes resistiram à tentação de tratar os chamados «assuntos» africanos numa perspectiva unanimista, ou seja, supondo que todos ou quase todos os falantes de uma determinada língua africana pensam mais ou menos da mesma maneira, adoram e obedecem aos mesmos deuses, acreditam nos mesmos princípios, seguem, sem poder de resistir, os mesmos rituais tradicionais, etc. Esta tem sido uma posição epistémica de partida de quem, de forma aberta ou velada, põe como sua tarefa estudar «povos primitivos» como seu objecto. Assim o fizeram os primeiros antropólogos e assim procedem ainda hoje as diversas correntes etnocientíficas que estudam os saberes nas «culturas locais» ou tentam descobrir pedaços de conhecimentos científicos aparentemente escondidos por trás das práticas e dos artefactos culturais. Esta forma de «pesquisar» os povos africanos é objecto de muita paixão, mas também de muita crítica. Muita paixão porque, sem dúvida, através de muitos estudos, em especial dos estudos da área da antropologia e das etnociências, foi e são ainda fixadas e inventadas muitas tradições ou são supostamente «descobertos» muitos «conhecimentos científicos» implícitos entre os aldeões. Estas «descobertas» científicas no seio de povos indígenas não deixaram de ser fascinantes

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para os próprios cientistas assim como o eram e são para o público consumidor, na sua maioria ocidental, desta maneira de produzir conhecimento pretensamente científico. Noutros casos, porém, esta forma de «fazer» ciência tem merecido muitas críticas que questionam principalmente as razões de se estar a «desenterrar» os saberes, os hábitos e os valores julgados tradicionais num contexto considerado por desactualizado na África moderna e progressista. De que nos servirá hoje saber, por exemplo, que em África já havia uma geometria muito «avançada» na época antiga no Egipto, que o grande Zimbabwe teve uma arquitectura e técnicas de construção admiráveis ou que o computador foi inventado por um africano? Será que é suficiente, para cultivar a motivação, a autoestima e o orgulho dos africanos hoje no campo das ciências, «desenterrar fantasmas» do passado? No fundo, estas questões levantam o problema do sentido e do significado destas «ciências» que, na perspectiva hodierna, nos parece estarem circunscritas ao velho paradigma de tentar demonstrar que «os africanos também tiveram e têm ciência», à semelhança de outros povos, em particular dos ex-colonizadores europeus. Entretanto, urge perguntar com Hountondji, quão «africanos» são os ditos «estudos africanos»? Por exemplo, responde o próprio Hountondji, por história africana entende-se normalmente o discurso histórico sobre África, e não necessariamente um discurso histórico proveniente de África ou produzido por africanos. Na mesma ordem de ideias, a sociologia ou a antropologia africanas significam a sociologia ou a antropologia de África enquanto genitivo objectivo, ou seja, um discurso sociológico ou antropológico sobre África e não uma tradição sociológica ou antropológica desenvolvida por africanos em África. Da mesma forma, a linguística africana é entendida como o estudo de línguas africanas e não necessariamente um estudo feito por africanos. Para ilustrar esta sua opinião, Hountondji termina com um exemplo, quanto a nós, muito claro: «imaginemos», «escreve ele» um grupo de académicos africanos que estudem Japonês, por exemplo, ou Inglês, Alemão ou Português. Deles não se dirá que estão a contribuir para o desenvolvimento de uma tradição de uma investigação linguística em África, mas sim que estão a produzir uma linguística japonesa, inglesa, alemã ou portuguesa» (Hountondji 2008,151).

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Criticadas ou adoradas o que é certo é que a antropologia colonial, a etnofilosofia e, mais recentemente, as diversas etnociências objectivaram e continuam a objectivar aquilo que os seus praticantes pensaram e pensam que esses «povos» ou «culturas» são e sabem. Ou seja, objectivam a subjectividade dos sábios e outros especialistas que encontram e entrevistam nas colectividades e culturas tradicionais. Na maior parte dos estudos, os sujeitos destes conhecimentos permanecem anónimos e silenciosos nos relatórios de campo ou nas obras científicas que se publicam como resultado dos estudos e estadias no «campo». O que fica desses povos e culturas são afirmações objectivantes tais como: «os Akan pensam assim», «os Tsonga acreditam que a chuva é símbolo de isto ou daquilo», «entre os Macuas é comum fazer-se e cumprir-se estes ou aqueles ritos», ou, como recentemente tive a ocasião de ouvir um antropólogo a defender que entre os falantes de uma língua do Norte de Moçambique não existe a ideia da «riqueza», razão pela qual, diz o mesmo antropólogo, estes falantes não se preocupam muito pela sua evolução material. Ora, estas asserções são objectivações que os antropólogos e os etnocientistas fazem ao que pensam ser as características, hábitos e saber de certos povos que estudam. Como fizemos menção acima, nesta segunda parte do livro vamos analisar dois referenciais de objectivação, nomeadamente as etnociências e a etnofilosofia. O nosso ponto de vista é que, apesar de todas as críticas levantadas, estes referenciais (e o debate em seu redor) contribuíram significativamente para a edificação do que chamamos hoje o conjunto do pensamento africano. Na base destes referenciais foram feitos muitos estudos africanos que estão nas prateleiras de muitas bibliotecas do mundo. O nosso objectivo principal nesta parte do estudo é, portanto, celebrar o contributo destes referenciais no conjunto das ditas ciências africanas. Defendemos na quarta parte deste trabalho, no entanto, a tese segundo a qual, o que de facto as etnociências (incluindo a etnofilosofia) têm como desafio fundamental, é abrir espaços de intersubjectividade (ao processo de criação dos «espaços» chamaremos por intersubjectivação) para interagirem com os saberes que julgam encontrar nas ditas culturas locais e criarem, a partir desta interacção, referências epistémicas novas. Defendemos que o cientista africano que beneficiara de formação

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académica formal não deve tratar estes saberes simplesmente como seu objecto de estudo, mas sim cultivar uma abertura epistemológica suficiente para, a partir dos quadros epistémicos sugeridos pelos sábios das diversas culturas, modificar os seus próprios pressupostos teóricos. É este o sentido do exame que vamos fazer em seguida às etnociências e à etnofilosofia: celebrá-las como referenciais de objectivação dignas de um espaço no processo de intersubjectivação da filosofia africana.

Referencial I: As Etnociências Celebremos, primeiro, as etnociências na sua condição de referencial teórico que procura auto-inscrever-se na história do pensamento africano, ou, como Masolo (1995; 2000) defende, na busca da identidade africana. Na sua origem, o movimento das etnociências tem muito a ver com a evolução da antropologia. E nos seus métodos e conteúdos também. Na Inglaterra por exemplo, o nascimento da antropologia como uma disciplina independente dentro da British Association for the Advancement of Science (BAAS), em 1884, é precedido por «muitas dificuldades» relativamente à sua validação enquanto conhecimento científico próprio. A razão dessas dificuldades é muito simples: os estudos etnográfico-antropológicos são apresentados, dentro da Association, nos encontros dos biólogos, geólogos, geógrafos ou ainda dos botânicos. A Association já existia, no entanto, desde 1831. Quando J. C. Pitchard e T. Hodgkin, naquele ano, apresentam os seus trabalhos antropológicos, é sob a égide da Zoologia e da Botânica. Embora na altura o termo «etnociência» ainda não tivesse sido formalmente introduzido na burocracia académica e universitária, na realidade essas «ciências» já se dedicam a explorar as características dos «outros povos» fora da Europa, ou seja, dos «povos nativos», cada uma na perspectiva metodológica da sua disciplina (Sillitoe 2004,10p.). No dicionário etnológico de Panoff e Perrina4 define-se etnociência como «(...) o ramo de etnologia, que se dedica a comparar os con(4)

Segundo a página electrónica http://www.ime.unicamp.br/~lem/publica/ /e_sebast/Etno.pdf. (consultada a 06/11/2008).

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ceitos positivos das sociedades exóticas com os que a ciência ocidental formalizou no quadro das disciplinas constituídas». Esta definição, no entanto, nos sugere colocar as seguintes perguntas: O que são conhecimentos «positivos»? O que seria então um conhecimento «negativo»? O que seria uma «sociedade exótica»? Existe uma ciência ocidental diferente de outras ciências, digamos oriental, austral, africana, etc.? Portanto, não há dúvidas que os termos «positivo» e «exótico» denotam uma posição eurocentrista e preconceituosa, típica do início do século passado, imbuída nas correntes de natureza positivista. A primeira disciplina a ser prefixada por etno foi a botânica. Isto acontece em 1895. Depois seguiu-se a etnozoologia por volta de 1914. Mas o termo genérico «etnociências» foi então cunhado por George Peter Murdock em 1950. As etnociências juntam, então, disciplinas como a etnolinguística (considerada como instrumental para explorar os saberes indígenas), a etnobotânica, a etnozoologia, a etnoastronomia, etc. Segundo Hountondji, de facto, o termo etnociências é usado, na altura, especialmente por um grupo de etnógrafos da Universidade de Yale que estava ávido em lançar uma «nova etnologia», como sinónimo de folkscience. O prefixo etno — que se refere à etnia — quer sublinhar que se trata do tipo de saberes de um determinado grupo de pessoas que comungam a mesma cultura, que tem uma língua própria, hábitos e costumes comuns, etc. Ou seja, um grupo de pessoas com características específicas que o diferencia dos outros grupos. Assim, a ideia básica da etnociência parte do pressuposto que cada grupo lê o mundo, i.e. constrói o seu conhecimento sobre os fenómenos naturais e sociais e as respectivas perspectivas de interpretação, de forma diferente em relação a outros grupos culturais. «Etno» refere-se então aos sistemas de conhecimentos e cognições típicos de uma dada cultura. Em geral a etnociência propõe-se «descobrir a ciência que está oculta» ou que está implícita nas culturas. Em Moçambique, o ramo mais desenvolvido das etnociências actualmente é o da etnomatemática. Segundo Gerdes (2003,505), que nos oferece um relato circunstanciado do desenvolvimento da etnomatemática, os primeiros estudos histórico-etnomatemáticos moçambicanos começam em 1978 com o projecto de pesquisa

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denominado Conhecimentos Empírico-Matemáticos das Populações Bantu. Mais tarde, em 1989, este projecto teria sido desdobrado em dois projectos distintos: o da etnomatemática e o da história da matemática em África. Desde o seu início em Moçambique, os estudos no ramo da etnomatemática e da etnociência em geral, estão ligados aos estudos curriculares, isto é, à sua aplicação no ensino5. Lamentavelmente até agora só foi ao nível universitário (UEM, UP e ultimamente a Universidade Católica). Os temas abrangidos são: sistemas africanos de numeração, história da numeração falada, fontes escritas e orais da numeração e contagem nas línguas nacionais, métodos populares de contagem, etc. A colectânea Explorações em Etnomatemática e Etnociência em Moçambique (1994) veio alargar o campo de estudos para as etnociências em geral ao incluir áreas da etnofísica (Interpretações Tradicionais de Trovoadas e Relâmpagos em Catembe, Perspectivas em Etnofísica), da etnoquímica e etnobiologia. Na tentativa de definir a etnomatemática, Gerdes (1989) escreve que esta: «tenta estudar as ideias matemáticas nas suas relações com o conjunto da vida cultural e social». Vemos nesta definição a inclinação das etnociências estudarem os conteúdos científicos ‘depositados’ nas culturas locais. Antes (1987) o próprio Gerdes cunhou de «Matemática Oprimida» aquela desenvolvida em países em vias de desenvolvimento, onde pressupunha a existência do elemento opressor: sistema de governo, pobreza, fome, etc. Em 1987, Gerdes, Craher e Harris utilizaram o termo «matemática não -estandartizada» para diferenciar a etnomatemática da matemática académica. Outro termo usado por Gerdes (1995) foi «matemática escondida ou congelada», quando estudava elementos geométricos e de cálculos nas cestarias produzidas em diferentes regiões de Moçambique. Mais tarde, porém, é o próprio Gerdes (2007,189pp.) que arruma vários conceitos «provisórios» de etnomatemática que foram propostos por oposição à matemática académica/matemática (5)

Isso deve-se, sem dúvida, ao facto de Gerdes, considerado o pai da etnomatemática em Moçambique (já há expressões como a «Escola Moçambicana da Etnomatemática») esteve sempre ligado ao Ensino Superior como Director da Faculdade de Educação e, mais tarde, como Reitor da Universidade Pedagógica de Moçambique.

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escolar. São eles: matemática nativa, sóciomatemática de África, matemática informal, matemática no ambiente sociocultural (africano), matemática espontânea, matemática oral, matemática oprimida, matemática não padronizada, matemática escondida, matemática congelada, matemática popular, matemática do povo, matemática codificada em sabedoria e matemática implícita e não profissional. Porquê é que as ciências académicas não se chamam também por etnociências? Ou por outra, porque é que, partindo do pressuposto que todo o conhecimento é cultural e que ele nasce num contexto perfeitamente localizável, a etnomatemática não se chama simplesmente «matemática africana», «matemática bantu», «matemática americana» e por aí em diante? Donde vem o direito de chamar, por exemplo, «filosofia» aos estudos feitos por Platão na República que se debruçava sobre os gregos e por «etnofilosofia» (termo que, como veremos, foi cunhado por Hountondji e que, por sua vez, teve inspiração em Nkrumah) ao estudo realizado por Mbiti e Kagamé entre os povos africanos? Tentando procurar respostas para este dilema, Gerdes (2007, 191 p.) parece confinar a definição da etnomatemática ao «domínio da investigação» com a função de reflectir «a consciência da existência de muitas matemáticas, em certa medida específicas de determinadas (sub)culturas» (it. meu). Sendo assim, ou seja como domínio da investigação, ela pode ser considerada como a parte das etnociências que estuda as ideias científicas de povos «não letrados»; esta definição de «etnociências» pode concluir-se a partir da compreensão de Gerdes, a partir da sua definição sobre a etnomatemática. Assim, considerando a etnomatemática como um domínio de investigação, Gerdes prefere falar de movimento etnomatemático para expressar exactamente o envolvimento de uma parte de matemáticos profissionais em investigar os fenómenos matemáticos, e por extensão, os fenómenos científicos na sua relação directa com o meio cultural. Como um movimento, a etnomatemática teria o seguinte programa: primeiro, alargar o conceito de matemática onde se incluem o contar, localizar, jogar, etc.; segundo, enfatizar os factores socioeconómicos na sua disseminação; terceiro, considerar a matemática como uma actividade universal no sentido de que todo o homem e cultura

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têm conhecimentos matemáticos específicos; ou seja, ela é um produto cultural; quarto, desmistificar a aparência quase geral que existe, segundo a qual a matemática escolar/formal tem a sua origem ocidental e, portanto, é importada, enquanto na realidade ela tem uma origem africana ou asiática; quinto, reconstruir o pensamento matemático que tenha resistido à marginalização colonial e ocidental; quinto, oferecer alternativas e estratégias de incorporar os conhecimentos etnomatemáticos no currículo escolar e sétimo, desenvolver uma perspectiva teórica crítica na educação matemática, influenciada pela pedagogia do oprimido de Freire (Gerdes 2007,194 pp.). O desenvolvimento da etnomatemática a partir dos anos 70 em Moçambique é, sem dúvida, devido ao papel de Paulus Gerdes. Nas suas palavras, diz ele que explora mais o ramo simétrico-geométrico, ramo este que Gerdes considera ter permanecido esquecido nos livros da história da matemática de muitas culturas. O que Gerdes faz com a «sua» pesquisa é fechar este «esquecimento» ao tentar compreender as formas do pensamento geométrico envolvidas nos artefactos culturais, pensamento este «implícito» nos padrões seguidos no fabrico de esteiras, cestos, porta-moedas, etc. São vários aspectos desta perspectiva analisados e divulgados por Gerdes, tais como «aspectos da aritmética e ornamentação geométrica nos cestos» de diversos povos, análise de «padrões-de-fita entrecruzadas por mulheres» no Congo, «cestaria e geometria na cultura Makhuwa» em Moçambique e estudos comparados de «quadrados dentados concêntricos e de padrões planares compostos de quadrados dentados concêntricos». O segredo do desenvolvimento deste ramo de investigação parece ter sido o facto de os cientistas envolvidos terem privilegiado a criação de espaços de debate e de troca de ideias, que mais adiante, neste livro, denominamos como espaços de intersubjectivação — em volta de um «mestre». É nestes espaços onde as ideias dos mestres ou ícones de uma determinada área têm a possibilidade de ser debatidas, desenvolvidas, modificadas, iluminadas em novos ângulos ou mesmo, não poucas vezes, desafiadas. Talvez seja por isso que podemos admitir a ideia de que a etnomatemática seja um movimento e não exactamente uma corrente de pensamento. No caso de Moçambique, o próprio Gerdes encubou, em seu redor, discípulos como é o caso de M. Cherinda, A. Ismael, D. Soares, A. Mapapá, M. Baloi, F. Lobo,

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A. Matonse, C. Pires e outros em Moçambique. Alguns deles continuam a esforçar-se em investigar nos diversos ramos das etnociências. Outros limitam-se a abraçar simplesmente a carreira da leccionação, sem, no entanto, fazerem aportes substanciais para além do seu trabalho de doutoramento, ou ainda, o que seria desejável, sem (ainda) dar aportes que desafiam a estrutura básica cultivada pelo «mestre». Há falta de um debate epistemológico em volta das etnociências, ou seja, não se equacionam as condições dos seus resultados enquanto conhecimento «científico», mas sobretudo não se equaciona o estatuto epistemológico do sujeito do conhecimento dito tradicional no quadro da produção científica geral. Voltaremos a este assunto mais adiante no capítulo da intersubjectivação. Em 1995, um grupo de docentes, que podemos considerar como os precursores da etnomatemática e das etnociências em Moçambique, sob a direcção de Gerdes, publica uma colectânea de artigos de várias áreas das etnociências. A colectânea intitula-se por Explorations in Ethnomathematics and Ethnoscience in Mozambique. Baloi (1994) escreve, nesta colectânea, um artigo onde pretende aferir o grau de crenças tradicionais entre os estudantes de física. Ele chega à conclusão de que «99% dos estudantes daquela disciplina acreditam genuinamente ou são influenciados por formas tradicionais na interpretação que fazem sobre os fenómenos físico-naturais», especificamente trovoadas, faíscas, arco-íris, e outros. Para confirmar esta conclusão, Baloi fez também um estudo de campo sobre as interpretações dos mesmos fenómenos na Catembe e em Marracuene tendo chegado às mesmas conclusões, desta feita no que concerne à população rural habitante naqueles locais. O seu artigo, porém, tem uma nota positiva que interessa destacar: Baloi menciona os nomes de os todos seus «informantes» a quem entrevista, evitando assim, mas somente em parte, uma generalização excessiva de termos como «os Rongas acreditam que as trovoadas são provocadas para causar infortúnios». No entanto, ele cai na armadilha de não subjectivar os conhecimentos ou as interpretações, ou seja, não informa que o fulano X disse isso e aquilo e, em contrapartida, o sincrano Y não concordara com isto e aquilo. Em outras palavras, Baloi não mostra as diferenças de interpretações entre os aldeões que entrevistou ficando a vaga impressão de que «todos» acreditam nas forças sobrenaturais

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que estejam por trás da ocorrência das trovoadas e outros fenómenos naturais. Entretanto, o movimento da etnomatemática espalha-se pelas Américas, Ásia, Oceânia, Austrália, Europa e África, segundo nos conta Gerdes. A considerar pelo seu objecto de estudo, nas Américas estudam-se os sistemas numéricos, as representações numéricas na arte da pedra, sistemas de calendários, a utilização de números em contos e ritos e alguns aspectos da geometria entre os índios, povos indígenas daquele continente. No sul das Américas, no Brasil, também há estudos relacionados com a «matemática na vida quotidiana» das populações das favelas, em camponeses sem terras, em jogos de crianças, entre os índios, etc. O próprio Gerdes dirige um estudo sobre a aritmética e a decoração geométrica dos cestos de índios do Brasil. O ramo da matemática educacional também desenvolveu-se muito nos Estados Unidos, sobretudo tendo em conta os contextos (multi)culturais e os conhecimentos matemáticos de grupos profissionais (vendedores de roupa e alfaiates, como exemplos). Olhando-se com um pouco mais de atenção, com estes estudos matemáticos nas favelas ou no quotidiano, abandona-se um pouco o terreno da definição clássica de cultura. Pois, neste caso, já introduzimos os elementos classe e estatuto social na ideia de cultura e não necessariamente a língua como critério básico para definir o etno. Em África, em particular, desenvolvem-se também diversos estudos tais como a contagem, a medição, o cálculo do tempo, etc. Também encontramos estudos sobre as ideias matemáticas entre os caçadores San no Botswana, sobre os sistemas de numeração africanos na Nigéria, no Burundi, no Botswana, no Ruanda e em outros países. Gerdes informa-nos que a Universidade de Ahmadu-Bello na Nigéria é aquela que é «muito dinâmica na estimulação da investigação etnomatemática». Em todas as regiões é notória a organização em equipas dos seguidores do movimento da etnomatemática e o seu envolvimento na organização de conferências regionais, continentais e até mesmo internacionais onde se debruçam sobre diversos temas matemáticos, melhor, etnomatemáticos (Gerdes 2007,196pp.). Na etnofísica, é o mesmo Baloi que continua hoje com os embriões que lançara antes e que fizemos referência; assim, na Universidade Pedagógica, sob a direcção do Baloi e Cupane, reemerge um

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grupo de pesquisa neste campo. Por exemplo, num seminário sobre a pesquisa no campo das etnociências organizado pelo Centro de Estudos Moçambicanos e Etnociências (CEMEC) desta Univer sidade, este grupo de investigadores apresentou um tema sobre Tecnologia Tradicional no Exemplo de Instrumentos de Caça. Eles partem da hipótese de que, descrevendo os casos específicos de algumas armadilhas tradicionais conhecidas localmente (limitam-se a Maputo analisando instrumentos denominados por lithaka, nxthamu e nteve e outros de Tete como ukonde, cemphe, candandari, mulapu, diva, thinga, chibambu e ulimpo), tratadas como «tecnologias indígenas», podem estabelecer uma relação de analogia/transferência com as suas aplicações técnicas modernas, ou seja, «tecnologias modernas». Ambos e a sua companhia de assistentes pensam ter demonstrado, por exemplo, que as competências cognitivas e as habilidades que se requer para aprender a fazer armadilhas (nomeadamente desenhar esboços e fabricar) no âmbito das tecnologias indígenas, são as mesmas que um estudante precisa dominar para desenhar e montar, por exemplo, um circuito eléctrico de um relé electromagnético, desta feita no ensino formal. As lições ‘etnocientistas’ que se podem tirar deste estudo são, de certo modo, óbvias. O que estaria no centro das atenções, neste caso, é aquilo que se chamou por «formas de conhecimento» e não exactamente o conteúdo ou as habilidades exigidas para o fabrico de um e outro artefacto tradicional ou moderno (reconhecer a estrutura, montar, desenhar e representar esquematicamente). Com estes exemplos pensa-se ter demonstrado que o que as etnociências deveriam fazer é buscar evidenciar as competências cognitivas que são accionadas tanto num caso como no outro, submetendo o conteúdo a essas competências. Porque, argumentam, quando as formas do pensamento que estão na base de um determinado conteúdo (neste caso das armadilhas ou dos circuitos eléctricos) estão claras, por consequência os conteúdos que se escolhem para que se alcancem as respectivas competências tornam-se irrelevantes. Dito de outra forma, na educação o que é importante são as competências e a escolha dos conteúdos para atingir determinadas competências é um aspecto secundário. Assim, conteúdo «relevante» para a aprendizagem do aluno é aquele que deriva do seu meio cultural, social e material. Como o trabalho foi

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apresentado tendo como epicentro o ensino da física numa perspectiva chamada de «culturalmente sensível», o grupo conclui que um professor que seja culturalmente consciente tem maior autonomia em escolher conteúdos de ensino que também sejam culturalmente mais adequados para abordar as matérias na sala de aulas. Pensa-se que os alunos tenham maior motivação na aprendizagem da física por estarem a tratar assuntos respeitantes ao seu imaginário cultural. Estas breves conclusões, embora tiradas do campo da etnofísica, parecem estar a corroborar com as de Gerdes. Este, como dissemos, procura fundamentar a possibilidade da existência e a necessidade da pesquisa das etnociências pela busca e descrição das «formas de pensamento científico» (traduzidos em termos educativos seriam «competências») nas diversas culturas. Cultura é entendida, neste caso, na sua dimensão antropológica positivista. Ou seja, o estudo das etnociências baseia-se na análise das tecnologias ou formas de conhecimento científico que estão por trás dos artefactos. Até aqui, pela forma como expusemos as etnociências, notamos que elas se dedicam e se limitam ao nível da interpretação de factos e de processos verificáveis. O problema está no facto de que este mundo cultural que as etnociências tomam como campo de pesquisa, está carregado de asserções com considerandos metafísicos de cariz tradicional. Por outra, coloca-se a questão da validação destes considerandos metafísicos que escapam aos olhos dos etnocientistas, ou melhor, conteúdos que são decantados pelos critérios positivistas que dominam os procedimentos das etnociências. Sobre este problema voltaremos mais tarde. Há, porém, cientistas que se dedicam às etnociências procurando reflectir para além dos conteúdos da própria ciência assim como para além dos artefactos que manuseiam nas pesquisas do campo. Isto é, para além dos considerandos que se limitam aos factos e processos. Estes invadem, assim, o campo da epistemologia. D’Ambrosio (2008), por exemplo, defende que o ponto de partida para os estudos (etno)matemáticos deve ser colocado no questionamento sobre o conceito de matemática e o respectivo objecto de estudo. Ou seja, para ele é tão importante estudar a história da matemática (conteúdos) como também a filosofia da própria matemática (epistemologia). Ele nota que, em relação à história das etnociências (da etnomatemática em particular), a análise de memórias, práticas, monumentos e outros

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artefactos onde estejam inscritos vestígios ou documentos históricos, depende muito da forma de interpretação que, por sua vez, depende da ideologia subjacente, isto é, de uma forma de filosofia da história. Pois, para ele, houve «distorções» causadas por dois processos subsequentes: as «descobertas» europeias e a consequente colonização dos povos não-europeus. Ambos processos tiveram como resultado a marginalização de todo tipo de conhecimento produzido por pessoas e estudiosos que provêm dos países considerados periféricos. Portanto, a contribuição destes países na história das diversas ciências e no desenvolvimento tecnológico é vista como sendo marginal, embora seja hoje inegável a sua contribuição para o avanço daquelas. Assim, para ele: «Ao historiador das ciências e da tecnologia cabe, não apenas, o relato dos grandiosos antecedentes e consequentes das grandes descobertas científicas e tecnológicas, mas, sobretudo, a análise crítica que revelará acertos e distorções nas fases que prepararam os elementos essenciais para essas descobertas e para a sua expropriação e utilização pelo poder estabelecido.» (D’Ambrosio 2008,34) Nesta citação notamos a preocupação do autor em procurar submeter o avanço da ciência ao tribunal da crítica no intuito de trazer à luz conhecimentos marginalizados que no entanto teriam sido, num contexto de poder, apropriados pela ciência ocidental, ou pelo menos não fazem parte do edifício da construção dos saberes considerados como sendo de natureza científica. A intenção do tribunal da crítica a que as ciências «normais» são submetidas permanece a de evidenciar as etapas do desenvolvimento (destas mesmas ciências) nas quais os conhecimentos produzidos pelos pensadores e sábios pertencentes aos povos marginalizados foram «queimadas» da historiografia da produção do saber. D’Ambrosio, considerado o pai da etnomatemática, diz-nos que é exactamente por isso que foi projectada a etnomatemática: buscar entender o fazer e o saber matemático de culturas marginalizadas. Assim, para ele, intrínseco a este programa está também a «exposição mútua de culturas» (D’Ambrosio 2008,35). Segundo o mesmo, o

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programa da etnomatemática não deve limitar-se ao estudo do conhecimento em si. Ele deve sim alargar-se para o tipo de estudos que contemplem sobretudo a dinâmica cultural sob a qual estes conhecimentos se desenvolvem assim como alargar-se também para o estudo dos quadros conceptuais internos usados em cada cultura. Isto é, o programa das etnociências deve alargar-se para o estudo das «categorias (teóricas) próprias de cada cultura». O mesmo D’Ambrosio, vai mais longe afirmando que a «disciplina denominada Matemática (…) é, na verdade, uma Etnomatemática que se originou e se desenvolveu na Europa, tendo recebido importantes contribuições das civilizações do Oriente e da África» (2008, 38). Assim, falar da matemática em contextos culturais diversos implica analisar, por exemplo, conceitos usados para a quantificação e classificação, números e formas, relações e inferências. Claro que este estudo não é válido por si mesmo, dizemos nós. Há sempre um fim que pode ser considerado de político em tudo isto. E este momento manipulável (político por isso mesmo) pode verificar-se, por exemplo, na passagem necessária do concreto para o abstracto. Para ensinar o número dois em contextos culturais diferentes, por exemplo e tendo em conta que o «dois» é um símbolo abstracto, não é a mesma coisa se objectivamos o número dois em duas maças e/ou duas batatas-doces. Este momento de «exemplificação» é culturalmente manipulável. A exemplificação, portanto não é neutra, como a primeira vista parece ser. Ela carrega em si relações de poder. D’Ambrosio mostra desta forma a sua inclinação para defender o «texto multicultural» intersubjectivo, assunto que voltamos a debater no último capítulo deste livro. Por enquanto basta dizer que, quanto a nós, vemos muita possibilidade de textura intercultural a partir dos avanços da etnomatemática no campo da intersubjectivação. Entretanto, podemos, desde já, adiantar o seguinte: o estudo das categorias específicas de cada «cultura», como D’Ambrosio correctamente nos sugere, deve ser seguido por uma introspecção reflexiva da própria ciência em causa, seja ela matemática, biologia, física, filosofia, etc. Ou seja, ao exercício da compreensão das categorias usadas em contextos culturais, deve seguir-se uma reflexão epistemológica interna no seio de cada ciência no sentido de aferir até que ponto as

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ditas «categorias próprias de cada cultura» desafiam o próprio quadro conceptual ou os pressupostos epistemológicos de cada ciência. Efectivamente, como veremos na última parte deste livro, as categorias culturais que se engajam no debate, podem sugerir novos modelos e perspectivas de interpretação. A condição básica é, porém, o mantimento de uma «abertura epistemológica» da ciência normal para com estas sugestões a partir das culturas consideradas marginais aos sistemas de conhecimento formais. Hoje, pelo mundo fora, são vários os ramos das etnociências. Estas para além da etnomatemática, já incluem a etnomusicologia, a etnomedicina, a etnopsicologia, a etnohistória, a etnopsiquiatria, etc. Existem, por exemplo, estudos na etnomedicina sobre os conceitos nativos de doença, sofrimento, dor, cura e daquilo que se considera «bem-estar». Há estudos etnopsicológicos sobre a importância das diferentes emoções nas diferentes sociedades e sobre a maneira como as crianças aprendem a senti-las. Da mesma forma até há estudos etno-estéticos sobre a mitologia, a música, a arte, a tonalidade e o ambiente da vida quotidiana. Em cada um dos ramos mencionados existe uma extensa produção que constitui uma verdadeira reserva de dados interessantes e louváveis em termos científicos. No entanto deve colocar-se as seguintes questões que consideramos, antes de tudo, fundamentais: qual é o sentido destas disciplinas? Qual é o seu uso real? Qual é o benefício que têm as populações locais destes estudos sobre os seus saberes? Ou só beneficiam as sociedades ocidentais e ao próprio estudioso e pouco as populações locais detentoras destes mesmos conhecimentos? Ou por outra e questionando ainda mais a fundo: constituem as etnociências verdadeira alternativa metodológica e em termos do conteúdo do saber coleccionado para o processo da reapropriação do saber pelos seus produtores locais? Mesmo com boas intenções, como as que expusemos acima pondo D’Ambrosio como seu proponente, as etnociências não escapam às garras do poder político. Efectivamente, as etnociências unem-se com o político no acto da ‘descoberta’ ou redescoberta das culturas ditas locais. Estas, anteriormente olhadas como marginais e não favoráveis aos programas sociais desenvolvimentistas, são, de repente, descobertas como tendo algo a dizer no contexto destes mesmos programas

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de desenvolvimento e na chamada ciência normal. Isto determina que alguns estudiosos comecem a prestar maior atenção, ou melhor, a procurar coerência e lógica interna existente nos saberes locais, aparentemente muito comprometidos com o que chamamos atrás de «considerandos metafísicos». Assim, torna-se fácil o novo papel instrumentalista das etnociências relativamente às políticas desenvolvimentistas, nomeadamente o de procurar encontrar um sistema no conjunto dos saberes locais para que sejam mobilizáveis para os programas sócio-políticos. De facto, as etnociências, pela forma como são praticadas em Moçambique (e em África em geral), ainda continuam marginais em relação à prática académico-científica, embora os seus proponentes estejam cada vez mais a serem convidados para exporem os resultados dos seus estudos ao nível internacional. Não obstante a isso, os estudos das etnociências e os seus resultados continuam a ser encarados como produtos exóticos e folclóricos, pelo menos por uma boa parte da academia, e com um certo sentimento de ironia por parte da política educativa. É uma situação em que «todos» reconhecem a importância da sua introdução no sistema do ensino e em outras áreas como medicina, direito, agronomia, mas quando se tratar de dar passos concretos no desenho de estratégias para a sua implementação, as reticências por parte das políticas sectoriais aumentam. Um outro elemento que concorre directamente para o aumento das «reticências» é a prevalência de uma certa visão antropológica, segundo a qual os saberes locais são uma espécie de «ciência popular». Esta visão ainda não foi ultrapassada por uma boa série de intelectuais e cientistas africanos. Eis algumas das razões que sustentam este juízo: a primeira é que ainda reina a ideia de um «saber local depositado nas comunidades», ou seja, a ideia de um saber «colectivo» que supõe que toda a comunidade cultural «sabe» a mesma coisa. Os indivíduos detentores dos saberes (fabricadores de cestos e outros artefactos) que as etnociências estudam e procuram captar, poucas possibilidades têm de emergir para além do local em que vivem e acima do seu millieau ou ecossistema cultural. As etnociências ainda apresentam o conhecimento no jeito de «ciência sem cientistas». Até este ponto o etnocientista é apenas uma espécie de «colector» dos saberes locais/tradicionais, sem mencionar individualmente (em

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alguns dos casos somente reconhece colectivamente) a fonte das suas informações. Até que, na mente do etnocientista, o que ele recolhe são «informações» e não exactamente saberes ou conhecimento. Uma outra razão, adiantada desta feita por Hountondji (2002, 35), é que as etnociências não colocam, em primeira linha, a «questão da verdade» quando estão perante os ditos saberes locais/tradicionais. O que fazem é descrever e deixá-los intactos. Sob este ponto de vista, as etnociências inscrevem-se, portanto, no projecto inicial da Antropologia (o estudo de outras culturas) e não conseguem, por isso, deixar de beneficiar às sociedades ocidentais porque é para esses países para onde fluem os resultados conseguidos pelas etnociências nos seus estudos etnográficos. Parte do conhecimento acumulado na etnomatemática e educação, por exemplo, parece ser mais conhecida, depositada e usada em universidades e escolas do estrangeiro que pelas escolas moçambicanas. Dito doutra forma: a escola moçambicana ainda não se apropriou, para o seu próprio benefício, dos resultados das pesquisas em diversas áreas das etnociências. Por isso, a questão quem se beneficia realmente da etnociência deve ser claramente respondida, dizendo que são as sociedades do ocidente. Se repararmos na forma como as diversas etnociências pretendem produzir o conhecimento seja ele matemático, filosófico ou em relação à natureza e à sociedade, facilmente notamos que ele se inscreve no quadro conceptual e teórico da produção científica ocidental; assim também estudos científicos são feitos com base em referenciais teóricos da chamada ciência universal e a sua respectiva disseminação é condicionada ao domínio das línguas da herança colonial. Um desafio que se coloca às etnociências é o de chamar para os espaços de debate académico (universidades, institutos de pesquisa, conferências, seminários, etc.) aos detentores dos saberes ou especialistas «étnicos», locais ou tradicionais em diversas áreas do saber. Só assim, pensamos, é que os diversos ramos das etnociências serão capaz de descentrar-se dos referenciais eurocêntricos abrindo espaço para que os detentores dos saberes tradicionais se exponham por si mesmo e, com isso, desenvolvam a capacidade de argumentação e do uso da palavra nas áreas onde o etnocientista, ora se apresenta como fiel e único intérprete, ora como porta-voz das

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comunidades epistémicas locais, perante a comunidade científica inter- e transnacional.

Referencial II: A Etnofilosofia Um ramo particular, diríamos mesmo um ramo especial, das etnociências é a chamada etnofilosofia. Este ramo das etnociências é especial porque, combatido por uns, venerado por outros, os pensadores africanos não conseguem desembaraçar-se dele, exactamente por este apelar ao seu passado. Vamos, em seguida e à luz da ideia e do desenvolvimento da chamada filosofia africana em geral, mostrar como os diversos povos africanos foram «objectivados» por estudos que vamos chamar de etnofilosóficos. Assim, se seguirmos a cronologia proposta por Karp & Masolo (2000,1p.), a filosofia africana conheceu três fases de elaboração. A primeira, que começa nos anos 70, tem como seu centro de atenção a crítica de como as categorias coloniais são reproduzidas inadvertidamente pela forma como as várias correntes da etnofilosofia tentam dar-se conta dos conteúdos filosóficos existentes nas culturas africanas; por outro lado a filosofia africana, nesta fase é tida como tentando argumentar em torno do nacionalismo africano procurando fundamentar os supostos valores africanos a partir de culturas específicas. Na segunda fase, que os autores situam nos anos 80, acreditam que a filosofia africana empenha-se em desenvolver uma filosofia da cultura, termo que ambos emprestam de Kwame Appiah, filosofia esta que tenta resgatar os recursos culturais existentes nas culturas africanas, mas ao mesmo tempo ser críticas em relação a essas mesmas culturas. Desta feita os tópicos da filosofia africana passam a girar em torno do exame das chamadas tradições africanas assim como do papel dos intelectuais africanos na esfera pública. Também pertence a esta fase o escrutínio da relação entre os sistemas de conhecimento chamados indígenas e seu papel em relação no desenvolvimento de cada país e do mundo em geral. Os autores localizam a terceira fase nos anos noventa, nos quais a política do conhecimento representa o epicentro da reflexão filosófica. Esta viragem inscreve-se no esforço

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que a filosofia africana faz em responder e teorizar a crise dos estados pós-coloniais. Como se depreende desta cronologia proposta por Karp & Masolo, directa ou indirectamente a questão da postura da filosofia africana em relação às ditas culturas africanas permanece em todas as fases. Entre outros assuntos permanentes destacam-se os seguintes: qual é o estatuto dos saberes indígenas, que se supõe estarem «implícitos» nas culturas africanas, no quadro do desenvolvimento da ciência moderna? Assim também, e derivado disto, pergunta-se sobre o estatuto dos detentores desses saberes — chamados sábios — no quadro da intelectualidade africana e no quadro das instituições formais académicas. Esta parte pretende reexaminar o estatuto que tivera as reacções críticas dos filósofos africanos, formalmente treinados, em relação à etnofilosofia. Porém é importante notar, logo de partida, dois aspectos. O primeiro, que o termo etnofilosofia não provém dos seus praticantes, senão que foi popularizado — e não ‘cunhado’ como muitos sustentam — e definido pelo filósofo de Benin Paulin Hountondji, nos seus escritos críticos a este empenho filosófico; a estas críticas voltaremos mais adiante. O segundo aspecto refere-se ao significado e ao sentido do termo estatuto. No contexto da nossa análise, esse termo não é usado em termos de ‘regulamento’ que rege um Estado, sociedade ou uma corporação qualquer, como vem definido em qualquer dicionário. Este termo é aqui empregue como um recurso para analisar até que ponto essas críticas dirigidas às primeiras tentativas feitas pelos filósofos africanos em «extrair» conteúdo filosófico a partir de diversas esferas culturais, como sejam da religião (Mbiti), da linguagem (Kagamé), etc., têm para o desenvolvimento duma ou da(s) filosofia(s) dita(s) africana(s). Portanto, trata-se aqui, de facto, de aferir uma espécie de impacto que estas críticas têm no desenvolvimento deste ramo das etnociências. Assim, o nosso objectivo, que pode ser considerado de político, é de defender a continuidade da prática da etnofilosofia, mas considerando os elementos críticos internos e inerentes a própria filosofia e despidos do pressuposto de estarem «implícitos» nas culturas. Enfim, não somos apologistas da posição de «descobridor» assumida pelo etnocientistas, mas sim da posição epistémica de um dialogador, num esforço para a intersubjectivação.

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Uma terceira nota preliminar é também importante: trata-se de aclarar a nossa ideia de filosofia. Se voltarmos ao sentido etimológico da palavra filosofia é «amor pelo saber». No entanto, nós fazemos uma tónica especial no termo amor e não assim tanto no termo saber. Assim, devemos deixar clara a nossa posição logo a partida: que não existe saber ou conhecimento sem que haja o sujeito deste mesmo saber ou conhecimento. E isto é válido tanto para as culturas ditas modernas como também para as culturas ditas tradicionais africanas. O que isto quererá dizer? Quer dizer que o mais interessante para nós é a actividade de filosofar, ou seja, a procura (ou amor pela busca) desse saber que implica uma certa clareza metodológica e uma certa constância no que-fazer filosófico, do que propriamente na chegada a um saber acabado. Examinemos agora, em breves linhas, a chamada tradição etnofilosófica. E aqui emprestamos a definição de Appiah (1997,138) que considera etnofilosofia como sendo uma «tentativa de explorar e sistematizar o mundo conceptual das culturas tradicionais de África.» Esta definição, segundo o próprio Appiah continua a dizer, adopta logo a partida, uma abordagem «folclorista» porque tenta, nas suas palavras, «compilar a história natural do pensamento popular tradicional sobres as questões centrais da vida humana.» (Idem) Como etnofilósofos são apontados Placide Tempels, Marcel Griaule, Alex Kagamé e John Mbiti, cada um tendo-se proposto em fundamentar a existência de filosofia nas culturas africanas usando caminhos diferentes.

A Ontologia da «Força Vital» A autoria do texto considerado como «fundador» da etnofilosofia é atribuída ao padre belga Placide Tempels. Este escreve a Filosofia Bantu. O texto de Tempels tem sido, ao longo das fases do desenvolvimento da filosofia africana, um pretexto recorrente por parte de vários filósofos africanos, para promoverem uma forte discussão sobre a essência do que hoje se considera por filosofia africana. É um dos textos que mais influencia este debate dividindo toda uma geração de pensadores africanos entre pró-tempelsianos e anti-tempelsianos.

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Para uma melhor conversa sobre este autor, entretanto, comecemos por um pequeno resumo do seu pensamento: para Tempels, a palavra ‘filosofia’, no caso dos povos bantu, pode ser substituída por ‘metafísica’ ou ‘ontologia’. De facto, ele usa indiscriminadamente esses três termos. A tese principal de Tempels destaca a existência de um pensamento metafísico entre os povos bantu. Segundo ele, a concepção da vida entre os bantu está centrada num valor cardinal que ele julgou encontrar nesses povos, nomeadamente a força vital. Na ideia de Tempels a força vital é espécie de uma realidade invisível que está por trás de todas as coisas que existem mas que esta força é suprema no homem. Porque este homem pode reforçar a sua força vital usando as outras forças vitais tanto dos homens como das outras criaturas ou coisas. Portanto, os termos tempo, mudança, azar, sorte, morte, vida, etc. são concebidos pelos bantu, segundo Tempels, a partir de uma realidade metafísica, força vital, que está presente em todos esses casos. O que é particular aqui é que, como dissemos, o homem pode interferir na interacção entre as diferentes forças vitais. E a capacidade de interferência do homem depende do conhecimento que ele tem sobre as várias formas de interacção entre as diferentes forças vitais. Assim, conhecimento equivale ao saber ou poder influenciar a direcção da interacção entre as forças. Concretizando: seguindo este raciocínio de Tempels, o detentor, ou o sujeito do saber nas sociedades bantu, é aquele que domina, no sentido de poder manipular, a relação entre as forças. Ainda segundo esse raciocínio, a categoria força é comparável à categoria «ser» (Sein ou Being na tradição filosófica ocidental). Tempels pensa assim ter demonstrado, recorrendo à comparação, que os bantu possuem uma ontologia, uma metafísica, enfim um pensar filosófico. Vamos tentar compreender este autor por passos. Placide Tempels começa por colocar-se a seguinte pergunta básica: por onde deve começar aquele que genuinamente pretende estudar e compreender os «povos primitivos»? (Tempels 1959,17) E a resposta que Tempels dá-se a si mesmo é simples e complexa ao mesmo tempo. É simples porque diz que «todo aquele que queira estudar os povos primitivos ou évolués deve desistir da ideia de chegar a conclusões cientificamente válidas enquanto for capaz de perceber a sua metafísica», ou seja, a

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sua ontologia. (Tempels 1959,16) Por outras palavras, para Tempels antes de se fazer qualquer estudo linguístico, sociológico, antropológico, psicológico, jurídico ou ainda de uma outra ciência qualquer, é preciso estudar a ontologia, a cosmologia, a lógica, enfim a filosofia que provavelmente está «escondida» por detrás do comportamento, dos valores e das ideias dos povos primitivos. Até aqui a resposta parece muito simples e clara: que o estudo da filosofia dos «povos primitivos», na sua versão metafísica, deve preceder qualquer outro estudo em outras áreas científicas. Entretanto, esta resposta, que parece simples, torna-se complexa se olharmos para as intenções de Tempels, intenções estas que, em grande medida, são ditadas pelo contexto histórico em que a sua obra foi escrita. E vamos tentar reduzir a complexidade do pensamento tempelsiano. A obra foi publicada pela primeira vez em 1945 no Congo, colónia belga com o título La Philosphie Bantoue 6. A preocupação do colonizador belga era, portanto, melhor dominar aos povos primitivos africanos do Congo. A dominação deveria ser de tal forma que, para ser efectiva, tinha necessariamente que compreender o lado físico e espiritual do «homem primitivo». Placide Tempels quer demonstrar com a obra que, para melhor dominar ao homem colonizado, se deve primeiro começar por dominar a sua alma, a sua mente. Pois, pergunta-se ele, quantas pessoas totalmente civilizadas podemos encontrar entre os nativos do Congo? (Tempels 1959,19). E Tempels responde àquela pergunta anotando a existência de muitos africanos «materialistas» que, na sua óptica, não perderam as suas tradições ancestrais mesmo depois de terem entrado em contacto com a civilização ocidental: the majority, however, remain “muntu” under a light coating of white imitation, a maioria, contudo, permanece muntu mesmo que pareçam estar a imitar o homem branco, diz-nos Tempels. O muntu pode falar em belga, pode comer como ele, pode vestir-se como o homem branco, pode sentar-se à mesa e comer com faca e garfo como o seu colonizador, pode até ter lido muitos livros (6)

Em algum momento neste livro discutiremos, baseado em Hountondji, a confusão linguística entre os termos «filosofia» e «sistema de pensamento» a que o título desta obra nos conduz.

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ocidentais, ou mesmo ter vivido na Europa por algum tempo, mas o que vai ser decisivo para dominá-lo é conhecer a alma deste muntu porque The gulf dividing Africans and Whites will remain and widen so long as we do not meet them in the wholesome aspirations of their own ontology (Tempels 1959,18), ou seja, o fosso da divisão entre os africanos (negros!) e os brancos (europeus!) vai permanecer ou mesmo aumentar enquanto nós (europeus, é claro) não dominarmos a sua ontologia. Tempels submete, assim, o missionarismo ao seu papel de auxiliar o Estado colonial para melhorar a administração do território e das almas que habitam este mesmo território. Só assim se pode compreender a «confissão» que Tempels faz na introdução da Philosophie Bantoe: todos os missionários, magistrados, administradores coloniais, indivíduos que ocupam postos de direcção, «todos nós falhamos» por ainda não termos alcançado a alma «deles» (africanos). Esta «falha», a de não terem começado por explorar a ontologia bantu, teve como consequência o poder limitado em ensinar ao bantu a assimilar os ensinamentos dos brancos, especialmente os de ordem espiritual. Limita-se assim o crescimento intelectual do bantu para ele ascender à categoria de civilizados: «somente se nós partirmos da verdade, do bom e do estável nos costumes dos nativos estaremos capazes de guiar os africanos em direcção a uma verdadeira civilização bantu.» (Tempels 1959,19) E Tempels vai ainda mais longe ao asseverar que as igrejas podem ter uma arquitectura nativa, podem introduzir as melodias africanas na liturgia, podem usar vestimentas inspiradas localmente, mas a dominação real só se efectivará «quando adaptarmos o nosso espírito aos espíritos deles». Vemos, pois, que a via de conhecer a filosofia bantu para dominar a sua alma e assim auxiliar às pretensões de dominação branca sobre os povos africanos, é muito complexa. Exige uma interpretação mais detalhada. Porém, a missão de Tempels é muito clara: é a de demonstrar ao ocidente que os povos primitivos bantu possuem um sistema de pensamento; e todo aquele que deixar transparecer que estes povos não têm filosofia, estaria, na prática, a excluir estes homens e mulheres da categoria de seres humanos. A «nossa missão» é destacar os elementos do pensamento bantu, classificá-los e sistematizá-los «de acordo com

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o sistema ordenado e com as disciplinas intelectuais do mundo ocidental» (Tempels 1959,14). Em suma, o bantu e a sua ontologia deviam ser introduzidos na ordem conceptual e religiosa do saber ocidental. Mas para isso tinha primeiro que ser elevado à categoria de um homem também pensante. Elevar ao bantu para uma categoria de homem pensante deve começar, segundo Tempels, por mostrar a sua metafísica. Isto porque para Tempels, a metafísica estuda a realidade que existe em todas as coisas e em todos os seres; é a metafísica que permite chegar a uma realidade comum de todas as coisas; e para chegar a esta realidade comum será necessário, de acordo com Tempels, «eliminar todas as formas da realidade que pertencem à uma categoria singular do Ser»; é imperioso ainda deduzir os elementos que explicam a natureza do real, do Ser. Neste caso trata-se de encontrar o elemento que constitui a base da ontologia bantu. Para Tempels este elemento é a força (Tempels 1959,34). A noção ‘força’ corresponde para o bantu o mesmo que a noção ‘Ser’ para o europeu. Isto explica porquê é que, aos olhos do nosso autor Tempels, a ontologia bantu apresenta-se como sendo fundamentalmente dinâmica e, pelo contrário, a ontologia europeia seja estática. «Nós podemos conceber a noção transcendental do ‘Ser’ separando-a do seu atributo, mas o bantu não pode fazê-lo com a ‘força’. ‘Força’ no seu pensamento é um elemento necessário do ‘Ser’. Não existe nenhuma ideia entre os bantu do ‘Ser’ divorciado da ideia da ‘força’. Sem o elemento ‘força’, ‘Ser’ não é concebível.» (Tempels 1959,34) Assim, onde o europeu vê o ‘Ser’ ou pensa nele, o homem bantu pensa em ‘força’, diz-nos Tempels. Mas esta força não é um atributo do ‘Ser’ necessariamente: just as we have, so have they a transcedental, elemental, simple concept: with them «force», with us «being», ou seja, tal como nós (os europeus) temos, também eles (os bantu) possuem um conceito transcendental, elementar e simples: para eles «força», para nós «Ser» (Tempels 1959,36). Entretanto, existem vários tipos de forças: divina, celestial, animal, humana, vegetal, a dos objectos materiais e a que emana dos

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minerais. Mas a força que emana do homem, do muntu, esta é «vital». Aliás, tendo em conta que força é para o bantu o que Ser é para o europeu, então resulta daí que o ‘Ser’ humano é, para o bantu, uma «força vital». Por isso Tempels conclui que «muntu significa força vital»; aliás, o muntu é uma força vital para o bantu. Vital force is the reality which, though invisible, is supreme in man, isto é, a força vital é a realidade que, embora invisível, é suprema no homem. Somente a força vital é que está dotada de inteligência, diferentemente das outras forças. Aliás, inteligência ou sabedoria, como veremos, significa a capacidade do homem usar a sua força vital para influenciar às outras criaturas. Bintu, ou seja ‘coisas’ (na língua Sena pinthu), são também forças (ou seja: fazem parte do Ser), mas não estão providenciadas de razão. Deus, «o grande muntu», não as dotou da força vital, isto é, da razão, da inteligência. Da mesma forma que todo o Ser é força, a categoria força inclui todo o Ser, desde Deus, os homens (vivos e defuntos), os animais, as plantas e os minerais. Tempels reconhece, entrementes, que os bantu não usam na sua linguagem quotidiana a categoria «força» significando «Ser». Bem pelo contrário, usam-na aplicada às coisas. Mas mesmo assim, diz-nos Tempels, ela é susceptível de ser deduzida como uma categoria metafísica ou como uma abstracção filosófica (1959,36). Neste passo, com esta ‘confissão’ tempelsiana, notamos que, de facto, Tempels está a objectivar o pensamento metafísico dos bantu. Pois, ao admitir que eles próprios não usam como categoria metafísica, isto é, como um elemento comum por trás de todas as coisas, Tempels está a dizer-nos que esta é uma dedução sua. É ele que está a extrair e a abstrair o conceito de força como categoria fundamental da ontologia bantu. Embora querendo falar a partir de uma visão bantu (Tempels compreende-se a si mesmo como uma espécie de mensageiro do genuíno pensamento bantu para o ocidente), o que ele acaba fazendo é uma objectivação dos bantu. Entre os bantu não existe o conceito ‘Ser’ imaginado como substâncias que estejam lado a lado com outras substâncias de uma forma autónoma e independente. O estado normal das forças é o de estarem a influenciar-se mutuamente numa relação ontológica. Esta relação das forças é comparável à relação de causalidade nos termos da filosofia europeia porque o bantu vê a relação causal entre dois fenómenos

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como estando a emanar da natureza própria das coisas criadas por Deus. Uma força superior vai sempre influenciar a uma força inferior. A observação, melhor o estudo, da forma como essas forças actuam na natureza das coisas é o que, segundo Tempels, constitui as «ciências naturais» para os bantu. Assim, ciência não seria mais nada do que o estudo sobre as forças e sobre a sua mútua influência. Aquilo que os europeus chamam de «magia» africana, não passa de uma imaginação sua perante a incapacidade de compreender a ontologia bantu das forças. Se o europeu abandonasse a ontologia do Ser e adoptasse a ontologia das forças — e esta mudança de posição epistemológica não tem nada a ver com o primitivismo destas sociedades — seria já capaz de não achar tão ilógicas e supersticiosas as explicações que recebe dos nativos sobre determinados fenómenos naturais. Esta parece ser a conclusão a que chegamos quando lemos Tempels, especialmente no seu papel de porta-voz fiel da «filosofia bantu». Há uma clara hierarquia entre as forças, diz-nos Tempels. Acima de todas as forças está Deus, o grande espírito criador de todas as forças, pois Ele dá a existência, o poder de sobrevivência e de aumentar a própria força a todas as criaturas vivas e não-vivas. Depois de Deus os bantu imaginam a existência dos pais fundadores dos seus diferentes clãs, os archipatriachs, a quem Ele teria transmitido a Sua força vital com o poder de influenciar o futuro todo. Estes constituem o principal elo de ligação entre o homem e Deus, segundo Tempels. Os archipatriacs são considerados divinos porque, sendo imortais, são uma espécie de seres espirituais; já não têm nomes próprios. A esses seguem os mortos do clã que servem de ligação entre os pais fundadores espiritualizados e os vivos; é através destes últimos que a influência às gerações vivas é feita. Tempels imagina que a seguir estão os homens-vivos que, por sua vez, estão estruturados segundo uma hierarquia de forças também muito bem definida: o «mais velho» do clã ocupa a parte superior porque é este que garante a ligação entre os antepassados e os vivos. Este lugar do mais velho é ocupado obedecendo às leis divinas, e não humanas. É o mais velho que reforça a sua «tribo» e todas as forças inferiores, nomeadamente dos animais, das plantas e dos minerais. Segundo o nosso padre Tempels, esta hierarquia divina rígida entre os bantu explica a razão porque os nativos nunca chegaram a reconhecer os

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chefes impostos pelos governos coloniais, continuando a confiar e a obedecer ao seu «mais velho» na direcção das questões fundamentais da sua «tribo». Embora a vida esteja centrada no homem, os bantu, segundo Tempels, têm um respeito profundo pelos mortos, porque in the minds of bantu, the dead also live, isto é, na mente do bantu, o morto também vive (é um morto-vivo, dir-nos-á Mbiti mais adiante). Os bantu acreditam que estes mortos ainda não perderam a sua força vital por formas que continuam ainda naquele estado de existência a influenciarem a vida dos vivos já que eles supostamente parece possuírem maior conhecimento sobre os segredos da vida e a forma como as forças interagem entre si. A partir desta sua posição pedestal de morto-vivos têm o maior poder de intervenção na vida dos vivos embora, note-se, com uma força vital diminuída por serem defuntos. Na interpretação de Tempels, o homem branco é visto pelos bantu como um novo fenómeno que não estava previsto na sua hierarquia ontológica das forças; porém e não obstante a isso, ele foi incorporado na hierarquia bantu como um «grande mestre das forças naturais» dado que ele domina a tecnologia; esta tecnologia teria «impressionado» tanto ao bantu chegando a admitir que o homem branco fosse «mais velho», por isso uma força superior que supera a força vital de todos os africanos; a tecnologia é assim comparada com o «feitiço», ou seja, uma capacidade muito extraordinária de influenciar outras forças que ultrapassa a capacidade de todos os feitiços dos africanos. Na escala mais baixa na hierarquia das forças estão os animais, as plantas e os minerais que, segundo Tempels, teriam sido criados por Deus somente na perspectiva de estes servirem para aumentar a força vital do homem enquanto este estiver vivo. Assim, aqueles são concebidos somente na sua condição de forças ao serviço da força vital, o mesmo que dizer ao serviço do homem. Neste ponto Tempels pensa ter descoberto as leis ontológicas da sua teoria de interacção entre as forças. No fundo, como dissemos, são leis que ele impõe aos bantu. A primeira lei é que o homem, não importa se morto ou vivo, pode directa ou indirectamente aumentar ou diminuir a força de um outro homem. A segunda lei reza que a força vital do homem vivo pode influenciar directamente às forças

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inferiores (animais, plantas e minerais); daí segue a terceira lei que Tempels formula: o ser racional (espírito ou vivos) pode agir indirectamente sobre os outros homens comunicando a sua força vital às forças inferiores referidas acima. Esta acção é considerada como «efectiva» salvo casos que se tentar aplicar sobre um outro ser humano vivo que possua uma força vital maior. Isto quer dizer que, para os bantu e segundo o porta-voz da sua filosofia Tempels, as forças inferiores nunca por si mesmas podem agir sobre as forças superiores a si mesmas na hierarquia geral das forças. Deve sempre haver uma força superior à sua (neste caso um homem com poderes para tal) que deve comandá-los para perpetuarem os seus empreendimentos. Daqui deriva uma importante conclusão de Tempels: que, entre os bantu, um sábio é aquele que domina a verdade, ou seja, domina as formas de influenciar as outras forças. Assim, um verdadeiro conhecimento é ontológico no sentido que resulta do conhecimento das leis ontológicas das forças; é uma inteligência das forças, da sua hierarquia, coesão e interacção. E quem pode dominar estas leis são somente os mais velhos. Os jovens não podem saber nada sem o auxílio dos mais velhos. Por isso, conclui Tempels, o jovem pode estudar ou procurar a verdade por si mesmo, pode até ler muito, mas ele chegará somente ao conhecimento e não à sabedoria. O estudar ou ler muito não significa o mesmo que sabedoria; só leva ao domínio da técnica, mas não ao conhecimento da interacção ontológica das forças. Chegamos assim ao que se designa por curandeiro. Para Tempels, este não é mais do que alguém que possui uma clara visão sobre as forças naturais e da forma como elas interagem entre si. É um homem que tem o poder de seleccionar as forças da natureza para influenciar (aumentar ou diminuir) a força vital dos outros homens. Mas este somente pode fazê-lo após ter sido iniciado, isto é, instruído neste sentido. A instrução do iniciado começa, porém, depois de o seu tutor ter a máxima certeza que este não vai usar o conhecimento que tem das forças que actuam na natureza em prejuízo dos outros homens ou da comunidade. Parece-nos que todo este exercício de Tempels foi para chegar à seguinte pergunta que ele mesmo formula e responde positivamente: têm os bantu um conhecimento que possa ser considerado racional, isto é, não mágico? Equivale a perguntar se eles têm filosofia no

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sentido de eles terem um pensamento que pode ser considerado críctico. Pois claro que, pensa Tempels, os bantu (também) são racionais: então não preparam armadilhas para caçarem? Não entrelaçam as cordas para fazerem os seus cestos? Não escolhem os melhores instrumentos para a caça? E não preparam os seus assaltos aos animais que precisam para caçar? Enfim, não usam uma certa lógica humana para planificar estas actividades todas? Embora nestas actividades os bantu nunca abandonem as suas crenças em forças metafísicas, isto porém não significa que eles sejam irracionais. Na perspectiva tempelsiana, o facto de os bantu acreditarem nestas forças e agirem na base delas não nos pode autorizar a falar de «magia» em vez de «razão» pois eles «sabem muito bem» que o aprontar uma boa canoa ou armadilha de caça ou um outro objecto qualquer, depende tão-somente das suas próprias capacidades e não duma força metafísica exterior a si mesmo. A ontologia bantu apoia-se, por isso, numa forte observação da natureza donde deduz a possibilidade para o seu uso. É desta filosofia baseada na observação que eles (os bantu) derivam as suas acções sobre a natureza e a sociedade. Se é assim, isto é, se os bantu têm uma filosofia, então eles são críticos. Para Tempels é inconcebível falar-se de uma filosofia que não seja crítica (Tempels 1959,60). Isto não significa que eles estejam correctos em todas as suas observações: «é totalmente outra questão verificar se as suas observações foram feitas correctamente ou não; ou se as suas deduções têm ou não erros de raciocínio. Um sistema de filosofia pode ser chamado por ‘crítico’ mesmo que tenha sido provado como falacioso», remata-nos Tempels. Pois, os bantu chegam a conclusões razoáveis dentro do seu sistema filosófico, e é neste contexto que devemos considerar ser um sistema crítico. Então «nós não compreendemos a causalidade no contexto da nossa metafísica do Ser e o bantu também no âmbito da sua metafísica das forças? Então porquê considerar o sistema ocidental como crítico e o dos bantu acríticos irracional?», pergunta-se Tempels com eloquência na defesa da sua filosofia bantu. Depois de atribuir uma filosofia aos bantu, Tempels, no seu último capítulo e depois de desenvolver a psicologia e a ética bantu derivadas da sua ontologia, explora a possibilidade de usar esta filosofia

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bantu para melhorar a missão de civilizar o bantu: […] we shall be obliged to revise our fundamental ideas on the subject of “non-civilized people”: to correct our attitude in respect of them, somos (nós europeus) obrigados a revisitar as nossas ideias fundamentais sobre o sujeito dos «povos não-civilizados» para corrigir a nossa atitude a seu respeito, propõe-nos ele (Tempels 1959,109). Com a sua ontologia o padre Tempels pensa ter capturado a alma do bantu. Restaria agora cumprir a última missão: civilizá-lo. Por outras palavras, tornar a colonização dos «povos primitivos» mais dócil. Para isso há a necessidade de acreditar que os «povos primitivos» não são uma tábua rasa. Eles já possuem uma matriz ontológica de pensamento a partir da qual podemos pensar nas melhores formas de aproveitar para o «nosso» propósito de trazê-los para a civilização; também teremos que deixar o pressuposto pedagógico de que «estamos» a tratar com «crianças grandes» às quais devemos educar. Para o padre Tempels civilizar significa dar atenção ao homem africano e não em primeira linha à industrialização, à introdução de uma economia a moda europeia ou ao aumento da produção pois estes podem concorrer para a destruição da civilização africana que importa conservar a todo custo. Um verdadeiro projecto de missão civilizacional põe à frente de tudo a educação do espírito humano, neste caso dos bantu: «... é um crime contra a educação impor à raça humana uma civilização desprovida de filosofia, da sabedoria prática ou de aspirações espirituais; seria ainda uma maior ofensa desprover aos povos do seu património, em que somente na posse do qual poderia haver um ponto inicial para uma civilização mais elevada.» (Tempels 1959,113) Mas, podemos encontrar na sabedoria bantu um ponto de partida estável a partir do qual se pode construir uma civilização bantu? Pergunta-se padre Tempels. É claro que podemos encontrar este ponto de partida: a própria força vital constitui este ponto dado que a finalidade última a partir da qual todo o muntu dá sentido às suas acções é o aumento (ou ainda a protecção) da sua força vital! Pela força vital ele está disposto até a morrer, se for necessário: então não

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usa ele as raízes, os amuletos e os rituais espirituais para aumentar a sua força vital? Não será essa uma prova suficiente para concluir que o muntu nunca estará disposto a abandonar a sua ontologia para abraçar uma outra que lhe é imposta? Os brancos já deveriam ter notado que o muntu, independentemente do massivo investimento na economia e na missionação cristã, não está disposto a abandonar a sua filosofia de vida. Também os brancos já deveriam ter notado que o muntu conserva basicamente os seus valores cujo substrato são as leis ontológicas que expusemos acima. A força vital permanece o único elemento básico da vida do muntu. Mesmo que existam os que correm atrás dos bens materiais que a civilização europeia traz, ou os que andam a procura do conforto daquela civilização, o que este quer é, no fundo, ser tratado com respeito e dignidade e não como um monkey (macaco), conclui o nosso Placide Tempels. Para Tempels os europeus brancos não deveriam esquecer um pormenor importante, nomeadamente que desde a sua chegada à África, os bantu enquadraram-nos a partir da única perspectiva que se lhes oferecia: a sua ontologia de forças. Isto é, a partir dela, consideraram os europeus como seres superiores porque estes dominam as forças da natureza uma vez terem demonstrado a sua superioridade tecnológica. Então, o que o bantu pôde querer, no fundo, é partilhar com o homem branco esta sabedoria para ele poder aumentar a sua própria força vital. The natural aspiration of the Bantu soul was therefore to be able to take some part in our superior force, isto é, a aspiração natural dos bantu foi, portanto, poder ser capaz de tomar uma parte da nossa (dos europeus) força superior. Portanto, o que os bantu vão de certeza receber com um sentimento de gratidão muito profundo é a «nossa sabedoria» que, na perspectiva dos bantu, será «a nossa capacidade de aumentar a força vital.» (Tempels 1959,116) Mas por outro lado, se o branco quiser ter algum sucesso na sua missão de civilizar aos povos bantu, deve apresentar-lhes o que oferece em troca, nomeadamente a educação e a missionação, como algo que pode aumentar a força vital dos bantu. A Weltanschauung, os ideais da vida, o sistema moral ou qualquer outra coisa que «quisermos» que os bantu aceitem, deveriam ser ligados à ideia do aumento da força vital.

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Em suma: The Bantu can be educated if we take as starting point their imperishable aspiration towards the strengthening of life, ou seja, os bantu podem ser educados [civilizados] se nós tomarmos como ponto de partida a sua aspiração permanente em fortificar a vida! Enfim: a fórmula para civilizar os bantu já foi encontrada, e encontrada pelo nosso Placide Tempels. Podemos perguntar ao padre Tempels se os próprios bantu conhecem esta fórmula final: «Não!», teria respondido o ilustre missionário: «se perguntares a um muntu normal na rua se já ouviu falar de qualquer coisa chamada de força vital, naturalmente ele virar-se-á para ti e fará uma cara surpresa». Mas, e esta é a ideia que o padre Tempels nos parece querer a todo custo dizer, este mesmo muntu vai comportar-se em todas as fazes da sua vida individual e na comunidade como se estivesse a obedecer às leis ontológicas da força vital. Ou seja, a fórmula científica (filosófica, neste caso) está basicamente «implícita», «escondida», «congelada» por trás do seu comportamento à espera que um etnofilósofo (ou um etnocientista hoje) a venha desvendar, revelar e contá-la para a comunidade científica. Será o caso e o momento para voltar a perguntar: quem de facto está a filosofar? O padre Tempels que descobriu a fórmula para o cumprimento da missão de civilização ou o muntu que se comporta na base de uma fórmula para ele desconhecida mas que se manifesta «implicitamente» no seu comportamento? Após o texto fundador da etnofilosofia de Tempels, publicado, como dissemos, em 1945, surgiram várias outras tentativas de confirmar a ideia de Tempels. Marcel Griaule escreve, nesta senda, a obra Dieu d’eau, entretiens avec Ogotommêli publicada três anos mais tarde, em 1948. Trata-se de um texto que contempla uma longa entrevista que Griaule, etnólogo francês, fez ao velho Ogotommêli membro do povo Dogon do sul do Mali. Nesta entrevista o velho Ogotommêli faz incursões sobre a cosmologia, a metafísica e religião dos Dogon. Encontramos nesta obra de Griaule (ou de Ogotommêli?) a tentativa de equivaler a obra de Tempels entre os Bantu, desta feita, porém, relacionando com as regiões culturais da África Ocidental particularmente do Sudão, dos Camarões e do Chade. Segundo Griaule, ou por outra, segundo Ogotommêli tal e qual como é transcrito, a existência só pode ser compreendida a partir da

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existência de Amma que é o Deus supremo e o princípio geral de todas as coisas do universo e do movimento. Este terá criado o Nommo que é a palavra, a água e o calor ao mesmo tempo. Provavelmente o calor seria o responsável pelo desenvolvimento do movimento ou da mudança das coisas. Sem querer entrar muito nas incursões de Ogotommêli, notamos aqui que o Nommo apela à teoria cosmogónica de Anaximandro que justificou racionalmente a existência de todas as coisas a partir do Apeiron. De novo, notamos em Griaule três aspectos que podemos tornar frutíferos para o nosso propósito: primeiro é a metodologia de demonstrar a existência da cosmogonia a partir de um apetrecho conceptual fundacionista grego. A segunda: de facto quem é o autor dessas ideias? Será, Griaule que transcreveu a entrevista e a publicou em forma de livro? Ou será Ogotommêli, o «sábio» da cultura Dogon (que por sinal morreu pobre)? A terceira: levanta-se a questão até que ponto o saber de Ogotommêli está em si ao nível da conceitualização filosófica (crítico), ou coloca-se apenas ao nível da descrição dos costumes e tradições com alguns momentos explicativos.7 Esta última questão levanta uma outra ainda mais premente, e que, por extensão, deverá ocupar o trabalho prático da filosofia num contexto das culturas africanas, nomeadamente qual é a posição do filósofo (neste caso exemplificado em Griaule) ao «transcrever» o discurso dos sábios e letrados (neste caso exemplificado por Ogotommêli)? Deverá o filósofo que transcreve assumir uma posição conceptual da filosofia puramente académica na qual ele foi treinado seguindo o questionamento cosmológico, epistemológico e ético? Ou assumir uma posição que implica adoptar um quadro conceptual que de alguma forma, emerge a partir do discurso de Ogotommêli (etnofilosofia)? Só para adiantar uma outra posição do filósofo que seria possível nós assumirmos como filósofos (como aliás, como veremos, Kwasi Wiredu assume). Esta seria induzir «situações e espaços narrativos» nos quais o próprio Ogotommêli se viria na necessidade de entrar num diálogo crítico intersubjectivo. Ora, este último aspecto discutiremos mais adiante, na última parte deste livro. (7)

Mais tarde, neste livro desenvolveremos aquilo que, por hipótese de trabalho chamaremos como níveis de narrativas científicas que são, também por hipótese, (1) descritivo, (2) explicativo ou explanatório e (3) justificativo ou conceitual-crítico.

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Devido à similitude do projecto metodológico e epistemológico de Alexis Kagamé em relação a Tempels não iremos alongar muito na análise deste. Segundo Masolo (1995,84pp.), Kagamé pertence a uma geração intelectual africana que se impôs a si mesma a tarefa de dar maior fundamento às hipóteses levantadas por Tempels: descobrir o Sein nos Bantu, desta feita, através da análise das categorias da linguagem. Nas suas obras de maior impacto — La Philosophie Bantoe, Ruandaise de l’être (1956) e La Philosophie Bantu Comparée (1976) — Kagamé busca as categorias filosóficas que expressam o Sein na estrutura linguística dos povos Bantu. Ele «descobre» uma estrutura similar em todas as línguas Bantu que gravita em torno da radical Ntu, pensando com isso ter descoberto o conceito equivalente ao Sein ou Being. Em volta dessa radical Kagamé desenvolve uma série de ilações de ordem metafísica, ética, psicológica até mesmo teológica. No quadro deste ensaio Kagamé só nos interessa por aquilo que foi considerado fulcral no empenho filosófico em contextos culturais africanos: que é o problema da comparação conceptual a partir de substratos linguísticos diferentes. Assim, em relação à pergunta anteriormente posta (nomeadamente se o filósofo deve ou não recorrer a uma posição intrínseca ou extrínseca na busca dos conteúdos filosóficos nas culturas) Kagamé, em nosso entender, opta pelo enxerto do conceito académico ocidental Sein ou Being numa tradição cultural linguística diferente, que é a Bantu, ao equivaler a radical Ntu a toda discussão ontológica em volta do Ser.

Filosofia por trás da Religião A mais citada obra na academia africana do reverendo John S. Mbiti é, sem dúvidas, African Religions and Philosophy, publicada em 1969. É importante perceber que esta obra foi concebida e escrita sob o pano de fundo das aulas de filosofia que o autor dava nas universidades de Makerere (Uganda) e de Hamburg (Alemanha). Isto explica, por um lado, a fragmentação do texto em vários capítulos e temas na tentativa de dar uma ideia geral da forma como os africanos pensam filosoficamente a partir dos conceitos e práticas tradicionais religiosas; explica também, por outro lado, o imperativo de

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ser filosoficamente etnocêntrico: Mbiti tinha de demonstrar aos estudantes europeus que os africanos têm uma outra forma de pensar e de conceber o mundo em que vivem; enfim, esta mistura de público europeu e africano torna compreensível a tendência de Mbiti em expor a filosofia africana duma forma muito folclórica, mesmo que escondida por trás de práticas religiosas. Como que antevendo as críticas etnofilosóficas (particularmente a crítica unanimista de Hountondji) que iria ser feito responsável pelos seus colegas, Mbiti começa ele próprio por ser muito apologético: logo nas primeiras páginas do African Religions ele assevera que, na sociedade africana, há muitas práticas e crenças religiosas, porém não formuladas sistematicamente sob forma de dogmas na base das quais esperamos que um africano aceite seguir. As pessoas simplesmente assumem as ideias e observam as práticas em família e em comunidade. No entanto, avisa-nos Mbiti (1969,3), quando ao longo do seu texto diz que esta ou aquela sociedade ou comunidade «acredita» nisto ou naquilo, ou, quando «pratica» este ou aquele rito não significa que todos os membros naquela sociedade ou comunidade subscrevam a tal crença ou pratiquem o mesmo rito. De facto não pode haver unanimidade alguma na prática dos ritos nem nas crenças e nem ideias, alerta-nos Mbiti. A falta de unanimidade nas práticas e nas crenças explica-se, segundo Mbiti, pelo facto de não haver nas religiões africanas credos a serem recitados; em contrapartida os credos estão escritos nos corações das pessoas individualmente e cada um vive o credo da sua religião provavelmente de forma diferente. Só que, esta pequena ‘desculpa’, não lhe fez escapar da nossa classificação de ter sido um dos principais construtores do referencial de objectivação no quadro da auto-inscrição dos africanos na história do pensamento. Vamos por partes. Segundo Mbiti (1969,2), filosofia africana refere-se à compreensão, atitude da consciência, lógica e percepção por trás da maneira como os povos africanos pensam, agem e falam em diferentes situações da vida. Essa definição da filosofia africana justifica-se, segundo Mbiti, pelo facto de os sistemas filosóficos que os diferentes povos africanos seguem não terem sido ainda formulados. O trabalho de um filósofo africano, deduz-se, é o de ser capaz de formular pensamentos

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filosóficos, que podem ser encontrados na religião, nos provérbios, nas tradições orais, na ética e na moral de uma determinada sociedade. Para Mbiti os provérbios devem merecer uma atenção especial porque o seu conteúdo filosófico é principalmente contextual ou situacional. Embora a ideia com que se fica quando se lê as críticas feitas a Mbiti (Masolo e Ngoenha) é que aquele (Mbiti) confunde religião com filosofia, não conseguindo separar ambas conceptualmente, no entanto, pensamos nós, que o próprio Mbiti (1969,1p.) tenta sim diferenciar os dois conceitos, se lermos com atenção devida o seu texto. Para ele, religião pode ser discernida em termos de crenças, cerimónias, rituais, etc. No entanto, segundo Mbiti, o pensamento filosófico não é facilmente destacável. Filosofia refere-se à forma como os povos africanos compreendem os diferentes aspectos da vida. A filosofia está «por trás» do pensamento e da acção de toda a pessoa e o estudo das religiões tradicionais traz-nos para essas áreas da vida dos africanos onde, através da palavra e da acção, poderemos estar em condições de discernir a filosofia «escondida». Para descobrir esta filosofia escondida teremos que fazer um grande trabalho de interpretação do que podemos estar a observar e a ouvir, assevera-nos Mbiti. Assim, Mbiti estava profundamente convencido que os conteúdos filosóficos nas culturas africanas revelam-se por baixo dos conceitos, práticas e linguagem das religiões tradicionais africanas. Segundo ele, a experiência africana com as religiões é o espaço privilegiado para derivar a cosmovisão dos africanos em relação à vida, em relação às entidades metafísicas e também em relação aos valores principais que orientam os africanos. Para ele, religião é parte da herança africana que remonta a séculos da história humana em África. Daí que ao formular conceptualmente a experiência religiosa estamos necessariamente a encarnar não só o presente dessa experiência como também e, sobretudo, uma grande parte da carga do passado tradicional e — quanto a nós inexplicavelmente (sobre este aspecto voltaremos mais abaixo) — uma pequena parte do futuro. Porquê será que Mbiti «escolhe» a religião para fonte das suas lucubrações filosóficas, ou seja, a esquina a partir da qual se deve procurar discernir os conteúdos filosóficos no meio de tudo o que os africanos pensam, dizem e fazem? Em nossa opinião, esta escolha pôde ser por duas razões. A primeira é a mais óbvia e não precisa de muito

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fundamento: é a de que Mbiti é reverendo e teólogo e ensinara a cadeira Religião Comparada, como dissemos atrás, nas universidades de Makerere e de Hamburgo. A segunda razão é, porém, a mais profunda e por isso a mais interessante. Mbiti (1969,4p) adianta, a partir do estudo comparado sobre as religiões, cinco particularidades na forma como os africanos se manifestam religiosamente. Sobre a primeira particularidade já fizemos referência quando definimos a filosofia na sua óptica: Crenças e práticas não devem ser separadas nas tradições africanas. Esta particularidade deriva do facto que destacamos acima, nomeadamente da sua opinião de que as religiões africanas não estão escritas nos papéis (à semelhança da religião cristã, por exemplo), mas sim nos corações, nas mentes, na história oral, nos rituais que as pessoas praticam. E, consequentemente, as personagens religiosas não são padres, mas sim os rainmakers (fazedores-de-chuva), idosos que orientam as cerimónias e mesmo reis. Toda a gente tem, em algum momento, uma carreira religiosa, escreve Mbiti referindo-se com «toda gente» aos africanos. Assim, estudar as religiões africanas não é somente estudar as ideias que os africanos provavelmente têm sobre Deus e os espíritos; é também e sobretudo estudar a jornada de vida de cada indivíduo que é o responsável formal para a orientação das diferentes cerimónias que fazem parte da vida de uma comunidade. A segunda peculiaridade das religiões africanas, adiantada por Mbiti, é a de que elas não têm, à partida, a pretensão de serem universais. Confinam-se à comunidade que servem, seja ela de dimensão «tribal» ou «nacional». Cada religião está ligada à terra, à comunidade e a um contexto determinado. Assim também a sua propagação para comunidades para além do seu contexto original é quase difícil, mesmo que algumas ideias possam duma ou doutra forma influenciar comunidades circunvizinhas. No entanto, para a sua plena propagação faltaria às religiões africanas um missionário ou missionários que tivessem na sua mente este horizonte, como vimos na primeira particularidade. Na perspectiva de Mbiti, no contexto das religiões tradicionais africanas, «um indivíduo não prega a sua religião para um outro». Contudo propagam-se. A propagação das religiões tradicionais africanas não se faz, contrariamente ao que acontece no caso das religiões universalistas, de forma intencional, senão espontaneamente

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através de migrações, dos casamentos, das conquistas, etc. A partir desta peculiaridade Mbiti tem a certeza de que estará a ser fiel ao pensamento contextualizado, ou seja, que diz respeito à sociedade ou comunidade em estudo. A terceira particularidade das religiões africanas descrita por Mbiti é muito curiosa: é que, segundo ele, não existe conversão de uma religião para uma outra. Isto explica-se porque, como já nos referimos atrás, cada comunidade tem a sua própria forma religiosa de se manifestar e estas manifestações decorrem ao longo de todos momentos principais da vida. Assim, «exportar» determinada religião de uma comunidade para uma outra implicaria também exportar todo um modo de vida. O membro de um conjunto de crenças religiosas «nasce» na respectiva comunidade; não se «converte» para passar a pertencer a ela. Em jeito de ironia Mbiti acrescenta dizendo que os europeus que se dizem convertidos para uma determinada religião africana, o que fazem de facto é somente observar alguns rituais africanos (como por exemplo deitar bebida no chão para venerar os antepassados [que antepassados?]) e pensam estar assim a pertencer àquela religião; seguir rituais não é converter-se. Com esta característica Mbiti mostra uma outra face do que comummente se denomina por «naturalismo» das religiões africanas. Pois, o naturalismo delas não reside somente no facto de procurar simbolizar deuses nos seres naturais tais como montanhas, árvores, animais, etc.; para Mbiti, implicitamente, o naturalismo deve-se também ao facto de que os membros de uma determinada religião ‘nascem’ nelas e ninguém (nenhum africano, compreenda-se) pode mudar de religião, ou seja, ir professar uma outra religião tradicional, neste contexto. O homem africano nasce naturalmente religioso e está condenado àquela religião professada pela comunidade em que ele porventura terá a sorte ou o azar de ter nascido. Desta forma de compreender o naturalismo religioso dos africanos (a partir do nascimento dos seus membros) deriva a quarta particularidade das religiões africanas, segundo Mbiti: não pode nascer, no seu seio, nenhum fundador e muito menos um reformador. Os que têm o privilégio de ser considerados como uma espécie de fundadores são, de facto, os heróis, os líderes e outras pessoas que tenham granjeado uma certa fama em outras esferas da vida política, social ou do

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saber. Ou seja, independentemente de uma pessoa (neste caso um herói ou um líder ou ainda um rei) ter feitos religiosos ou não, ele é automaticamente integrado na história do mundo religioso da comunidade em que ele vive. Em alguns casos esses líderes políticos ou heróis, obtêm um estatuto quase-divino no quadro das ideias e práticas religiosas tradicionais. Os seus feitos são vistos como estando a cumprir uma missão mandatada por Deus. Um último aspecto — a quinta e última particularidade — é que, dito de forma mais simples, nas religiões africanas não existe paraíso no qual teremos uma vida plena e nem um inferno onde teremos uma «vida horrível depois da morte». Dito de forma mais complexa, Mbiti diz-nos que, embora em todas as tradições religiosas africanas exista a ideia de uma vida após a morte física, esta crença, porém, não leva aos africanos a cultivarem a esperança de um futuro glorioso para além da vida que levam aqui na terra. Assim, para os africanos, viver aqui e agora (mas de uma forma honrosa e boa) torna-se muito mais importante e interessante para a ética religiosa. Mesmo a vida espiritual após a morte é concebida, de certa forma, numa perspectiva materialista: os antepassados mortos ainda comem e bebem connosco, intervêm nas nossas vidas e falam connosco; às vezes são mesmo capazes de nos visitar em casa. As tradições religiosas africanas estão mais preocupadas com o Homem do passado e do presente e muito pouco com o Homem do futuro. Não há, portanto e segundo Mbiti, nas religiões tradicionais africanas uma espécie de esperança messiânica, ou o contrário, uma visão apocalíptica. Deus, na perspectiva destas tradições segundo Mbiti, está numa relação utilitarista e pragmática com o Homem africano, e não numa relação rigorosamente ético-espiritual. Pensamos que nesta última peculiaridade reside a razão fundamental pela qual Mbiti escolhe a leitura da filosofia a partir da religião (melhor dito, da religiosidade) africana. É uma troca muito grande dos termos: o que Mbiti talvez tem no horizonte, na nossa interpretação, é mostrar que, na perspectiva das religiões tradicionais africanas, é Deus que deve servir ao Homem e não o Homem servir a Deus, segundo a tradição cristã e islâmica. O Homem africano recorre a Deus quando O precisa para justificar as suas actividades ou actos; dito em outras palavras, o pensamento religioso no contexto africano,

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seria o reflexo de práticas e de desafios que o homem tem na vida e não em primeira linha um caminho para um futuro melhor e prodigioso no paraíso colocado para além das nossas vidas. Nesta ordem de ideias, o «salto» que Mbiti parece fazer da religião para a filosofia — o que Ngoenha e outros filósofos africanos criticam — está, tomando a perspectiva de Mbiti, mais que justificado: a religião africana constitui uma fonte para aferir as formas particulares de reflexão dos africanos sobre as questões cruciais da sua vida individual e comum, intelectual e espiritual. Não admira, pois, que Mbiti declare no African Religions o seu método como sendo simultaneamente «descritivo» e «interpretativo». Seguindo a tradição etnográfica, ele mostra, primeiro, como os africanos fazem as suas cerimónias e ritos, ou ainda como estes seguem as suas tradições milenárias (descrição) para, segundo, ele próprio mostrar ou evidenciar que conteúdos filosóficos estariam por trás destas tradições (interpretação). Este caminho para a objectivação dos africanos podemos considerá-lo como sendo «clássico» porque é notável que o mesmo tem sido largamente seguido por pensadores e intelectuais africanos. Primeiro deve dizer-se como o africano faz as coisas de uma forma «diferente», para depois justificar que ele pensa assim (ou ainda pior, que ele também pensa assim!). Passemos agora a examinar o conceito a partir do qual Mbiti objectiva, incrusta, inscreve a forma como os africanos pensam, agem e falam dos seus projectos: o conceito de tempo. O conceito de tempo é central para Mbiti. A noção do tempo, pode deduzir-se, é a placa giratória de toda a obra African Religions. Por isso é que Mbiti, no seu capítulo inicial, The Concept of Time, começa por esclarecer este conceito. De novo, porém, para a compreensão do conceito de tempo em Mbiti, teremos de começar a examinar a sua ideia de religião. Religião, esclarece-nos Mbiti (1969,15), é um fenómeno ontológico. Isto quer dizer que, a vida do indivíduo e da comunidade, na perspectiva tradicional africana, está, em todas as suas fases e dimensões, intimamente inserida na religião e guiada por ela. Pois, a religião está presente desde o período pré-natal até depois da morte. O Homem tradicional africano vive num universo religioso. Tanto o mundo como todas as actividades do homem são vivenciadas e experimentadas a partir do seu significado religioso (religiosidade): os nomes das

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pessoas têm um significado religioso. As pedras e outros objectos não são somente objectos vazios, mas sim religiosos. O som do batuque fala uma linguagem religiosa. O eclipse do sol ou da lua não é somente um fenómeno natural, mas um fenómeno que fala para a comunidade que o observa, avisando sobre uma possível calamidade. O ponto é que, diz-nos Mbiti, para os africanos, toda a experiência de vida é um fenómeno religioso, o homem africano é um Ser que vive profundamente num universo religioso. No entanto, continua Mbiti, o que distingue a religiosidade africana é o seu antropocentrismo, diferentemente do teocentrismo divulgado pelos missionários europeus espalhados por toda a África. Isto não quer dizer que os africanos não (re)conheçam Deus. Bem pelo contrário! Deus é visto como uma entidade que está na origem (génese) do Homem e das coisas em volta deste. Ele é o criador de tudo e, nesta perspectiva, Ele ocupa o primeiro lugar na ordem ontológica africana. Abaixo de Deus encontramos os espíritos que são uma espécie de seres super-humanos cuja proveniência, no entanto, é atribuída a seres humanos que morreram «faz muito tempo». Depois dos espíritos, i.e., em terceiro lugar, mas não por isso o menos importante, está o Homem. Nesta categoria Mbiti inclui os homens vivos e os ainda-por-nascer. O Homem está no centro da chamada Ontologia africana. Na quarta posição encontramos os animais e plantas (seres biologicamente vivos que não sejam humanos) e que são considerados como fenómenos naturais. Na quinta e última posição estão os fenómenos e os objectos inanimados que, juntamente com os animais e plantas, proporcionam o ambiente em que o Homem vive, providenciam meios de existência ao Homem. Todas estas categorias ontológicas formam um sistema solidário que não pode ser interrompido ou cortado, continuamos a interpretar Mbiti. O que mantém este sistema a funcionar, duma forma ordinária e solidária, é aparentemente uma força, poder ou energia que permeia todo o universo ontológico. Deus é a entidade que controla, em última instância, esta força, mas os espíritos têm acesso a uma (ou em) parte dela (não esqueçamos que estes pertencem a pessoas mortas já «faz muito tempo»). No entanto, poucos homens têm a capabilidade de conhecer como estas forças agem podendo, a partir deste conhecimento, manipular ou

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usá-la a seu favor ou ainda a pedido de um outro homem a favor dele. Estes homens também podem usar estas forças para o bem ou para o mal da comunidade inteira. Estes homens são os curandeiros, feiticeiros, adivinhos, pastores, etc. dependendo dos casos e do tipo de forças que dominam. Chegado a este passo Mbiti começa por tentar estabelecer a relação entre esta Ontologia e o sistema religioso para justificar a sua proposta antropocêntrica. Para estabelecer esta relação Mbiti pensa que é central perceber o conceito africano de «tempo» que, segundo ele, é básico para perceber os restantes conceitos religiosos e filosóficos dos africanos; segundo ainda Mbiti, esta noção ajuda-nos a perceber as crenças, as atitudes, as práticas e, de forma geral, a entender a vida não só tradicional como também a moderna dos africanos. Mbiti explica que a noção de tempo, entre os africanos, refere-se a uma espécie de um conjunto de eventos que ocorreram no passado, os eventos que (provavelmente) estão a ocorrer no presente e aqueles eventos que estão imediatamente por ocorrer. O que não ocorreu ou o que não vai ocorrer imediatamente, portanto os eventos não contidos no conjunto, são simplesmente «no-time», diz-nos Mbiti. Entretanto, aquele tipo de eventos que se tem a certeza absoluta de que irão ocorrer, e isto particularmente no campo dos fenómenos naturais, portanto inevitáveis, caem na categoria de «tempo potencial» (potential time). De acordo com Mbiti, a consequência mais significativa desta forma de classificar os eventos ou fenómenos naturais e sociais, é conceber-se o tempo como um conceito bi-dimensional, com um passado longo, um presente e virtualmente sem futuro. Ou seja: «O conceito linear do tempo no pensamento ocidental, com um passado indefinido, presente e um futuro também indefinido, é praticamente inexistente no pensamento africano. O futuro [no pensamento tradicional africano] é virtualmente ausente porque os eventos que estão nele ainda não aconteceram, ainda não foram compreendidos, portanto não podem constituir tempo. Se, contudo, eventos futuros dão-se como sendo certa a sua ocorrência, ou fazem parte do ritmo inevitável da natureza, eles constituem somente o tempo potencial, e não o tempo actual.» (Mbiti 1969,17)

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Por isso, diz-nos Mbiti, o tempo actual implica e contém automaticamente o passado. O tempo, entre os africanos, move-se em direcção ao passado e não ao futuro, como é o caso na concepção ocidental. Esta orientação bi-dimensional do tempo (presente e orientação para o passado) domina a forma como o africano compreende-se a si mesmo enquanto indivíduo, como ele compreende a sua comunidade cultural e o compreende o universo como um todo. O tempo deve ser primeiro «experienciado» para que ele faça sentido para o africano. Assim, por exemplo, um indivíduo só pode ser efectivamente compreendido na medida em que se desvendar a sua história, isto é, revelar a sua ligação com os seus antepassados. Uma pessoa só o é como tal quando tem toda a carga dos seus antepassados consigo. A pessoa não é qualificada em termos do seu futuro ou do que provavelmente está a preparar para o seu futuro, simplesmente porque estes eventos ainda estão por ocorrer. Portanto, segundo Mbiti pensa perceber os africanos, não tem muito sentido qualificar uma pessoa na base de um futuro hipotético, «ainda por vir». Para compreendermos a noção de tempo que Mbiti julga ter desvelado entre os africanos, na sua dimensão cronológica, há dois conceitos importantes a explicar: são os conceitos do Sasa e do Zamani. O Sasa cobre o período-presente; é o período de preocupações imediatas durante o qual se cruzam as existências individual e colectiva das pessoas que estão vivas no mundo material; podemos entender o Sasa como o período da experiência pessoal com a sua própria existência. Nesta perspectiva, o futuro (no sentido de ser algo por vir) seria extremamente breve e imediato. Isto é assim dado que, explica-nos Mbiti, qualquer «evento futuro», para ter algum sentido e significado, deve ser imediato porque as pessoas devem ter a certeza que ele vai ocorrer. Os eventos, para fazerem parte do Sasa, ou seja, para fazerem algum significado ou terem algum sentido, devem estar quase a ocorrer, ou estarem no processo da sua realização; ou ainda devem estar no horizonte da experiência actual. Quando, pelo contrário, intui-se que um evento está num futuro longínquo, então ele estará fora do horizonte experimental, assim também não faz parte da realidade. Este provável evento está para além do real, isto é, do Sasa. Não faz sentido pensar nele. Resumindo: o Sasa abrange o tempo que, visto no sentido ocidental e linear, é o «período-agora», ou seja, o período que

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está «perto», onde o «perto» e o «agora» incluem igualmente um certo futuro (imediato). O Sasa não é matematicamente e nem é numericamente mensurável. Quanto mais velha a pessoa for, mais longo é o seu Sasa. Uma comunidade tem também o seu Sasa, que é maior que o Sasa individual. Abreviando: Sasa é o período em que é possível o indivíduo e uma determinada comunidade tomar a consciência da sua existência e, na base dela, projectar-se para o futuro e para o passado. Temos assim uma dimensão temporal completa (futuro imediato, presente dinâmico e passado ‘experienciado’ [vivido]). Mbiti chama-o também de Micro-Time (Idem,22). O importante neste conceito mbitiano é a dimensão ‘experienciada’ ou ‘vivenciada’ do tempo Sasa. Entremos agora no domínio do Zamani. Este conceito, como dissemos, é também importante para a teoria de Mbiti. Ele volta a abordá-lo no capítulo final do African Religions para explorar o contexto dimensional no qual os africanos procuram encontrar novas identidades (African personalities). O Zamani, traduzido para uma concepção ocidental de tempo, contempla somente o passado. Entrementes, na perspectiva africana e segundo Mbiti, é um passado que, em si mesmo, contém o seu próprio passado, presente e futuro, mas numa escala longa quase inter minável. Assim, diz-nos Mbiti, em algum momento o Zamani sobrepõe-se ao Sasa, sendo este, uma parte daquele. Expliquemo-nos: antes de os eventos serem incorporados no Zamani, eles devem ter tido a sua realização e actualização no Sasa. Zamani vai para além do Sasa e projecta-se para um período em que nada mais pode acontecer. É um tempo final de tudo, sejam fenómenos naturais ou eventos sociais, em que tudo é absorvido. Mbiti assim resume a relação entre os dois termos: «Ambos, Sasa e Zamani têm qualidade e quantidade. Pessoas referem-se a ele como grandes, pequenos, curto, longo, etc., em relação a um fenómeno ou evento particular. Sasa liga geralmente os indivíduos ao ambiente imediato. É o período de vida consciente. Por seu lado, Zamani é o período do mito, dando a sensação de fundação ou ‘segurança’ para o período do Sasa» (Mbiti 1969,23).

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O Zamani congrega em si todas as criaturas por formas a dar uma sensação de harmonia no universo das coisas e do Ser. Estas duas diferentes noções de tempo têm, de acordo ainda com Mbiti, consequências na conceitualização (africana) de História, da vida humana e da morte/imortalidade. De acordo com ele, a História «anda» para trás, isto é, do Sasa para o Zamani, do momento experienciado para um longo período em que nada pode ser experienciado. Na concepção tradicional africana, a História não se move para frente, ou seja, para um futuro de progresso ou para o «fim do mundo como tal». Daí que, pode inferir-se, não haja muito espaço, entre os africanos, para ideias ou noções de felicidade, de liberdade, de progresso e do desenvolvimento. Da mesma forma que não há ideias ou noções apocalípticas do mundo e de fatalidade. Não existem «tempos de ouro» implantados no futuro e nem é possível imaginá-lo. O tempo de ouro está somente no Sasa. Portanto não pode também existir um futuro radicalmente diferente do que o que actualmente está a ser vivenciado e experienciado no Sasa. Isso explica, segundo Mbiti, a «dificuldade que os africanos tradicionalmente têm em planificar o futuro da sua comunidade e de nutrir ideias de uma esperança messiânica». Isso explica também a causa porque o Zamani é colocado no domínio mitológico sem, no entanto, conter mitos apocalípticos que evoquem a destruição ou degeneração do mundo no futuro. Em relação à vida humana o esquema é o mesmo: baseia-se no Sasa de cada um que inclui fenómenos ‘experienciados’ tais como nascimento, puberdade, ritos de iniciação, casamento, procriação, envelhecimento, morte e entrada na comunidade dos espíritos. Na comunidade o ritmo do Sasa também gira em volta das experiências que as pessoas fazem nos ciclos da actividade económica relacionada com o trabalho na terra (período de lançar sementes, do cultivo, da colheita, da secagem e outros) e da caça. Os momentos-âncora do Sasa dos individuais e das comunidades são marcados por via dos ritos e das cerimónias (religiosas). Estas emprestam uma sensação de harmonia em torno de todos estes eventos que dão corpo e sequência ao tempo. A morte e a imortalidade também são explicadas por Mbiti a partir dos mesmos conceitos (Sasa e Zamani). O desaparecimento

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físico de uma pessoa é, na perspectiva tradicional africana, uma passagem paulatina do Sasa para o Zamani. De facto, quando uma pessoa morre, a sua passagem pela vida terrena é recordada pelos familiares e amigos que a conheceram, chamando-a pelo seu nome, recordando o seu carácter, o seu modo de pensar e seus feitos. Em alguns momentos, a pessoa morta «aparece» perante os adultos vivos que o conheceram (nunca perante crianças!). Mbiti denomina esta «pessoa» como the living-dead; esta é uma pessoa que desapareceu fisicamente, mas que vive ainda na memória das pessoas vivas que a conheceram; o living-dead influencia a vida e o comportamento das pessoas-vivas, com particular incidência nos filhos e noutros membros da família da pessoa «desaparecida». A imortalidade da pessoa é mantida, neste caso, pela continuidade física dos seus progenitores que vão transmitindo as qualidades dos fisicamente desaparecidos aos mais novos. Os mais velhos seriam, nesta lógica, os que têm o maior Sasa e, por isso, os que têm a memória mais longa dos living-dead. Com o passar do tempo o living-dead passa para um tempo para além do Sasa. Esta passagem é atingida, segundo Mbiti, quando numa comunidade já não existem pessoas vivas que se recordam do living-dead pelo seu próprio nome. Então completa-se «em pleno» o processo da sua morte e entra no reino da «imortalidade colectiva». Este é um estado espiritual em que o living-dead deixa de ser propriedade de uma família e passa para a comunidade de espíritos que já não têm influência directa nos vivos. Esta comunidade de espíritos está entre Deus e os homens. Portanto, para além desta comunidade de espíritos ninguém mais pode alcançar. É por isso, conclui Mbiti, que nas religiões africanas, as actividades e orações estão focalizadas nas relações entre os vivos e os espíritos dos defuntos. Dissemos que, para Mbiti, o conceito de Zamani explica a tendência actual da filosofia africana de se orientar para o passado, ou seja, de buscar os seus fundamentos na Identidade, mesmo que seja para projectar e fundamentar a Liberdade. Assim, para ele, tanto a negritude como as correntes que advogam a personalidade africana, o socialismo africano entre outras que surgiram, estão, na verdade, a projectar este futuro no quadro do Sasa. Por outras palavras, o que Mbiti nos quer dizer é que, o facto de a filosofia africana ter desprendido, até agora, muito tempo e energias da sua auto-inscrição na

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história universal do pensamento filosófico, buscando a sua identidade enquanto filosofia no passado, constitui uma clara demonstração da sua teoria sobre a tendência africana em projectar-se mais longamente para o passado, e pouco para o futuro. Não obstante ao facto de estarem ainda muito amarradas ao Sasa, acrescenta Mbiti, há nessas correntes um esforço muito grande no sentido de projectarem o futuro. Ele conclui também que, na busca do futuro, a filosofia deveria basear-se na religião dado que esta tem uma grande influência na nossa vida enquanto africanos. Sobre o papel da religião na intersubjectivação iremos debater no último capítulo deste livro, tanto mais que filósofos actuais, como Ngoenha (Cfr. 1993,137 pp.)8, reconhecem o papel especial que as igrejas podem ter nos processos sociais e políticos actuais dos nossos países, sobretudo no campo do cultivo de certos valores como tolerância, paz e reconciliação, valores estes vistos como muito importantes se tivermos em conta a diversidade cultural nos países africanos, como Moçambique. No quadro da dissertação que vimos fazendo em torno da etnofilosofia como referencial de objectivação, Mbiti interessou-nos por dois aspectos: primeiro, e este é um aspecto comum a todos etnofilósofos, é o recurso à estratégia de explicar a filosofia a partir do que ele considera uma esfera fundamental da cultura africana, a religião. Um segundo aspecto, embora não directamente relacionado com Mbiti, mas derivado dele, é o facto de a sua teoria sobre as religiões africanas apontar momentos críticos em relação às tradições africanas, consubstanciadas no seu conceito limitado sobre o tempo. De facto, se adoptarmos a óptica de Mbiti, olhando para a «sua» noção de tempo entre os africanos, haveríamos de perceber as dificuldades que aparentemente as tradições africanas têm em projectar o desenvolvimento económico, social e político; enfim em projectar devidamente o seu próprio futuro, o seu sonho de sociedade que vá para além de «programas de eliminação da pobreza absoluta». Embora reconhecendo (8)

Ngoenha dedica-se à questão «futuro» da África («qual é a melhor maneira de pensar o futuro?») confrontando, nos últimos capítulos do seu livro Das Inde pendências às Liberdades, os modos de equacionar esse futuro por via da profecia (ou seja, por via da religião) e por via da utopia (ou seja, por via da filosofia).

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este objectivo (acabar com a pobreza) como sendo nobre, ele carece, no entanto, de uma clareza de projecto de sociedade que se quer construir. Radicalizando a tese de Mbiti podemos inferir que a confrontação excessiva com o passado e as tradições culturais no contexto africano, faz com que aparentemente haja dispêndio de muita energia intelectual, energia essa que poderia ser melhor investida se a mesma fosse para além das estratégias de resolução de problemas hodiernos do continente. A era do sonho africano parece ter chegado ao fim. Assim este questionamento nos obriga a pensar qual pode ser o sentido e o significado da pesquisa etnofilosófica e, por extensão, de todas as pesquisas nas etnociências. Uma das críticas fundamentais ao movimento da etnofilosofia, que pretende ser «radical», vem do filósofo moçambicano Severino Ngoenha. Mas a crítica que despoletou um movimento crítico desusado em torno da etnofilosofia e, por dilatação, em torno de toda a questão do conceito e identidade da filosofia africana, veio do filósofo do Benin, Paulin Hountondji. Examinemos, primeiro, estas críticas à etnofilosofia dado o lugar merecido que esta ocupa no debate sobre o desenvolvimento posterior da filosofia africana.

A Crítica Mas antes de nos concentrar no criticismo posterior de Hountondji, notemos a reacção crítica sistemática em relação ao livro de Tempels, e por extensão à etnofilosofia, feita anteriormente por Crahay. Este escreve já em 1956: «Vamos falar com franqueza: se não queremos comprometer o grande projecto de filosofia em África, confundindo o uso técnico deste termo com o seu uso vulgar, e reduzir a filosofia para uma simples visão do mundo, temos que reconhecer que até agora não existe nada que se possa considerar de filosofia bantu. O que existe certamente é uma visão do mundo coesa e original particular dos bantu, o cérebro da sabedoria.» (Crahay, cfr. Mudimbe 1988,156)

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Vemos, neste parágrafo, que Crahay denuncia Tempels afirmando que filosofia implica reflexão intelectual que não deve ser confundido com uma Weltanschauung, isto é, uma visão sobre o mundo que nos rodeia. Filosofia reflecte sobre a experiência humana, sem no entanto reduzir-se a ela. Tempels teria, segundo Crahay, confundido as duas coisas tratando-as indiscriminadamente no seu livro. Crahay nega assim que a Bantu Philosophy de Tempels mereça um lugar nas prateleiras de filosofia. Tendo como ponto de partida esta obra de Tempels, Crahay interroga-se sobre as condições e possibilidades da existência de uma filosofia africana. Interroga-se, portanto, sobre a legitimidade do título de Tempels: merecia ele ser chamado de «filosofia»? Crahay não se interroga sobre a pertinência e a importância da obra tempelsiana mas antes, como nos diz Mudimbe (1988,155), o que lhe interessa é mostrar os limites da obra de Tempels. Segundo Crahay, Tempels vulgarizara o sentido do termo filosofia ao confundir o vivido e o reflectido, entre a vida dos bantu e as suas reflexões, denominado filosofia ao vivido e não se concentrando particularmente nas reflexões dos próprios bantu. Embora tratando com termos metafísicos, ontológicos e psicológicos, Tempels não teria sido muito rigoroso no tratamento conceptual dos termos. Para Crahay filosofia é uma reflexão que apresenta características precisas. A filosofia, segundo ele, é explícita, é analítica, exerce uma crítica e autocrítica radical e é sistemática; ao mesmo tempo ela é aberta, sustenta-se na experiência humana e, como tal, relevante para os próprios homens. Partindo desta definição de filosofia, o que Crahay de facto critica é que não podemos e nem devemos supor haver uma espécie de filosofia implícita, imediata e intuitiva, como Tempels nos quer fazer engolir no caso dos bantu. A linguagem filosófica não é da experiência, mas sobre a experiência. De facto, o que Tempels faz não é filosofia; ele, com o seu livro, mostra apenas a «possibilidade» de existência de uma reflexão de índole filosófica em África. Enfim, Tempels não distingue entre uma «visão do mundo» (Weltanschauung) e a prática da filosofia (Cfr. Mudimbe 1988,156). Crahay, devido às suas propostas relacionadas com a chamada «descolagem conceptual», vai interessar-nos mais adiante. Por agora deixemo-lo descansar.

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Vejamos antes o que fica e ficará inscrito na história da filosofia africana como sendo «crítica unanimista», crítica esta formulada pelo filósofo do Benin, Paulin Hountondji. Desde já, porém, é necessário aclarar a nossa posição básica: é imperativo aclarar duas consequências opostas provocadas pela chamada crítica unanimista de Hountondji no desenvolvimento posterior da filosofia africana. Se por um lado, e nisso reside o lado positivo das consequências, os problemas levantados por Hountondji em relação à etnofilosofia, e às etnociências em geral (Hountondji 2008,149pp.), provocaram uma onda de reflexão sobre o que deve ser filosofia africana e o seu papel no contexto de desenvolvimento, por outro, e este é o lado negativo em nosso ver, inibiu, de certa forma, o desenvolvimento de reflexões filosóficas, particularmente de carácter oral e tradicional, que, sem essa crítica teriam sido hoje a base do «diálogo de racionalidades» que Hountondji, nos últimos tempos, tanto reclama a sua falta. Em outras palavras, a nossa avaliação é a seguinte sobre a intervenção de Hountondji no debate: reorientou positivamente o projecto de desconstrução do discurso ocidental sobre África no qual os africanos entravam como mais ou menos um prolongamento da ciência e filosofia ocidentais, acrescentando o prefixo etno para ganhar a sua legitimidade neste debate. Mas isto somente é o lado positivo da moeda. Por outro, o que é uma pena, não podemos calcular o atraso que sofreu o projecto de construção de um quadro conceptual, ou pelo menos de um debate em torno de novos quadros conceptuais, sugeridos pelas elaborações tradicionais, a partir do qual os filósofos africanos alimentariam um debate em torno de questões ontológicas, epistémicas e éticas baseadas na reavaliação daquilo que Ngoenha chama de «imaginários culturais colectivos» dos nossos povos. Talvez Hountondji, neste último sentido, tenha adiado bastante a passagem de testemunho de uma geração de filósofos africanos da desconstrução para uma geração de filósofos da construção. Mas, ressalvamos, Hountondji só pode ser feito responsável pelo que escreveu e não pela história da interpretação das ideias que muito claramente escreveu e defendeu com uma admirável capacidade de acrescentar argumentos em volta dessa crítica unanimista. Após esta breve nota introdutória sobre a nossa posição, passemos, agora, a conversar com Hountondji sobre a sua crítica unanimista

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baseados, primeiro, na obra The Struggle for Meaning. Esta é uma espécie de autobiografia intelectual de Hountondji, onde ele narra as circunstâncias em que chegou às ideias centrais da sua longa carreira intelectual como filósofo, portanto uma espécie da versão norte-americana de the making of. Nesta obra Hountondji faz uma confissão interessante quando escreve: «O meu método em todos os casos [da escrita e apresentações dos seus artigos e livros] foi sempre o mesmo. O método consistiu, em primeiro lugar, em tomar nota da questão apresentada reconhecendo a sua espontaneidade e a sua legitimidade aparente, depois mostrando desconfiança através da exploração dos paradoxos, e depois, finalmente, formulando, por trás das questões mal formuladas, o problema real» (Hountondji 2002,84). Este é o caminho seguido por Hountondji para desconstruir o discurso da etnofilosofia e seria por ele seguido fielmente na sua carreira. Vamos, em seguida, seguir este método no percurso de Hountondji I (que corresponde à primeira fase da crítica) e de Hountondji II (que corresponde ao período da auto-reflexão e do alargamento de parte dos seus argumentos). Talvez faça sentido, antes, olharmos para algumas notas biográficas de Paulin Hountondji. Não restam dúvidas que a obra deste filósofo do Benin marca uma viragem na página da historiografia da filosofia africana não só devido à já mencionada crítica unanimista da etnofilosofia, mas também pela simplicidade e brilho dos seus argumentos nos seus textos. Provavelmente será raro encontrar, na literatura filosófica africana, um estilo de escrita ao mesmo tempo simples e profundo, conversador e erudito. Não admira pois que a sua obra African Philosophy se tenha tornado uma espécie de «bíblia dos antietnofilósofos», como diz Mudimbe (1998,158). Segundo este autor o lugar que merecidamente Hountondji ocupa no pedestal da filosofia africana deve-se a vários factores: Hountondji estudara na École Normale Supérieure, uma das mais prestigiadas instituições de ensino do mundo, situada em Paris na não menos famosa rue d’ulm. Esta escola produziu alguns dos cérebros mais brilhantes do nosso tempo como por exemplo Merleau-Ponty, Jean-Paul Sartre, Raymond Aron,

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Althusser. Uma outra razão é que ele trabalhou em contextos diferentes que estimularam o seu pensamento e a sua carreira académica: nas universidades do Benin, da Alemanha, da França e Zaire. Foi, por algum tempo, ministro da educação no seu país. Hountondji milita também em várias organizações internacionais de filosofia e científicas em geral. Uma delas é a CODESRIA, um espaço privilegiado de disseminação de ideias pela África e pelo mundo em geral. Actualmente retirado, dirige um centro de pesquisa no Porto Novo, uma cidade próxima de Coutonou a capital do Benin. Comecemos, como dizíamos, pela análise da essência da crítica hountondjiana à corrente de ideias e metodologias que o próprio Hountondji popularizou no debate filosófico como sendo a Etnofilosofia9, para depois vermos a dimensão das consequências da sua intervenção. Comecemos por analisar primeiro, com Hountondji, os conceitos em causa, nomeadamente os de etnofilosofia e de filosofia africana. Por etnofilosofia Hountondji entende como sendo «trabalho etnológico com a pretensão de ser filosófico» (1996,34), ou seja, diz-nos ele, uma forma popular do Weltanschauung pertencente supostamente aos africanos. Assim sendo, para o filósofo do Benin, os etnofilósofos Tempels, Kagamé, Mbiti e outros, longe de estarem a prestar um serviço no domínio da filosofia, o que fazem é uma recolha etnográfica de dizeres populares arrumando-os, após a recolha, em «caixas clássicas da filosofia» como sendo a cosmologia, a ontologia, a epistemologia, a ética, etc., com o intuito de mostrar ao mundo que os africanos também sabem filosofar. Esta noção de etnofilosofia — que muitos críticos de Hountondji classificam por «elitista» e, quanto a nós, com alguma razão — compreende-se se a ligarmos à noção de filosofia africana que Hountondji (9)

Neste ponto julgamos ser importante fazer notar que Hountondji procura salientar não ter sido ele a introduzir o termo etnofilosofia no debate. Hountondji defende-se, no prefácio à edição inglesa do African Philosophy, na sua publicação em segunda edição de 1993, dizendo que o termo «etnofilosofia» é «mais antigo» do que transparece no debate. Ele afirma aí que, após a primeira publicação do seu artigo onde toma a crítica unanimista da etnofilosofia nos meados da década de 70 do séc. XX, leu a autobiografia de Kwame Nkrumah onde este confessa que, depois de ter completado o seu mestrado em filosofia na Universidade da Pensilvânia em 1943, matriculou-se num curso que era denominado Etnofilosofia.

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nos dá. E são duas definições sobre filosofia ligeiramente modificadas que vamos encontrar em Hountondji. A primeira, a tal que é considerada como sendo «elitista» pela crítica que se seguiu, é dada na versão inicial do artigo escrito em 1969 e publicado em 1970 na revista Diogène intitulado An African Literature. Como o próprio título diz, Hountondji escreve: By ‘African philosophy’ I mean a set of texts, specially the set of texts written by Africans and described as philosophical by their authors themselves, ou seja, «Por ‘filosofia africana’ entendo o conjunto de textos, especialmente o conjunto de textos escritos por africanos e considerados como sendo filosóficos pelos seus próprios autores» (Hountondji 1996,33 [it. meu]). Esta definição, como dissemos, trouxe muitos problemas e debate no seio dos africanos que até então se consideravam filósofos, mas que Hountondji entende que são no fundo «etnógrafos com a pretensão de ser filósofos». E aí começa, pois, o problema. Pela definição do próprio Hountondji, um texto mereceria estar nas prateleiras da filosofia africana se os autores cumprissem duas condições básicas: serem africanos (uma definição geográfica) e terem a pretensão de escrever um texto «filosófico». Ora, uma olhada aos títulos dos chamados etnofilósofos basta para ver que muitos cumpriam estes requisitos: Mbiti tem no título do seu livro o termo African Philosophy assim também Kagamé, Tempels e outros mais. Então, sob este ponto de vista, estes etnofilósofos cumprem os dois requisitos para que o que escreveram seja considerado, por definição do próprio Hountondji, como textos com o direito de pertencerem às prateleiras de «filosofia africana». Aliás, ainda hoje e independentemente da «expulsão» declarada por ele, estas obras ocupam com pleno direito as prateleiras de filosofia africana nas bibliotecas e mediatecas espalhadas pelo mundo fora. Este aspecto (i)lógico, ou seja, definir e aplicar limitadamente a própria definição, é o lado menos problemático da ‘inibição’ (redução de muitos filósofos à categoria de etnólogos) que este artigo provocara no desenvolvimento do pensamento africano. Voltaremos a este aspecto mais adiante. Antes, porém, examinemos a ‘reparação’ ou o ligeiro recuo que o nosso autor Hountondji faz à sua própria definição. A definição melhorada — portanto, a segunda — foi escrita pelo autor no prefácio à segunda edição da sua obra African Philosophy, em 1996, ou seja, cerca de três décadas e meia mais tarde. Ele escreve:

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Much controversy would have been spared if I had written more cautiously, “By ‘African philosophy’ I mean the set of philosophical texts produced (whether orally or in writing) by Africans”, ou seja, «(M)uita controvérsia seria poupada se eu tivesse escrito com mais cuidado, que «por filosofia africana entendo o conjunto de textos filosóficos (sejam eles orais, sejam escritos) produzidos por africanos».» (Hountondji 1996, xii) Logo no parágrafo seguinte, o autor continua ainda muito apologético, ao reconhecer: «A minha frase inicial (do artigo de 1969) não tinha, de facto, um significado profundo. A intenção não era colocar a questão: sob que condições um texto é filosófico? Eu tinha como única intenção, por razões de clarificação, colocar duas questões inevitáveis antes de testar a solidez da resposta proposta: (1) qual é o modo de existência da filosofia? Resposta: a do texto ou de um conjunto de textos (‘set of texts’), a de parte ou partes de um discurso explícito. (2) O que significa ‘africano’ na frase ‘filosofia africana’? Resposta: alguma coisa africana é o que foi feito por africanos.» (Hountondji 1996, xii) A questão para Hountondji, naquela altura do florescimento da etnofilosofia, não era, segundo ele próprio, «escapar» à discussão sobre os conteúdos que os que ele chamara por etnofilósofos arrolavam nas suas obras e que estavam a fazer furor no seio dos filósofos africanos; a intenção, ele confessa, foi sim «começar um debate» sobre a identidade da própria filosofia africana (I had to postpone it, «tinha de adiar [o debate]», diz ele referindo-se ao debate sobre os conteúdos que a chamada etnofilosofia propunha). No entanto, Hountondji, pelo menos no domínio da sua pretensão, tinha razão: ele queria libertar a filosofia africana das amarras da tradição oral, do tradicionalismo, isto é, do hábito de uma filosofia africana que, logo à sua nascença e à semelhança da tradição, só transmite consenso. Queria impedir o desenvolvimento de uma filosofia africana que, no seu entender, estava prestes a crescer com uma imagem anti-filosófica e contraditória com a própria definição de filosofia: uma que não contém em si mesma a possibilidade de debate crítico em torno dela própria, de uma filosofia de «todos os africanos». Em outras palavras, a intenção

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de Hountondji era «desmistificar o conceito de uma África» homogénea no pensamento. De qualquer forma, anos mais tarde Hountondji apresenta-nos uma definição de filosofia africana menos «elitista» que, desta feita, já inclui «textos orais», ou seja, uma literatura filosófica oral (oratura); esta que os filósofos formalmente treinados como Kagamé, Griaule, Mbiti e outros teimaram em trazer, com muito labor diga-se de passagem, em texto escrito. Uma pergunta a este passo é, a nosso ver, pertinente: o que terá mudado? O que terá impelido ao grande pensador a honestamente mudar de posição que ele próprio classifica de ‘ligeira’ mas que, quanto a nós e como dissemos na nota introdutória, teve consequências algo problemáticas no desenvolvimento do debate sobre o nascimento da filosofia africana? Mas antes de prosseguirmos, voltemos ao texto original para reexaminar em que consiste a entretanto famosa crítica unanimista10 que Hountondji faz ao movimento da etnofilosofia dentro da filosofia africana. De facto Hountondji queria «aprofundar» e «alargar» para o campo da filosofia o criticismo que Aimé Césaire já havia submetido à obra Bantu Philosophy do padre Placide Tempels. O criticismo de Césaire é, porém, limitado porque situa-se apenas no domínio da «política». Senão vejamos. Césaire havia já denunciado que Tempels tinha «desviado» a atenção do mundo inteiro dos problemas políticos fundamentais dos povos bantu colonizados ao «elevá-los» para um patamar em que já possuem uma «fantasia filosófica», bem longe da realidade deprimente da exploração e da humilhação. Tempels, na óptica de Césaire, teria desviado as atenções do público dos problemas reais dos bantu para uma dimensão metafísica, inventando, ele (10)

O termo «unanimismo» foi emprestado de Jules Romains, escritor francês, que usara-o para significar duas coisas: primeiro, para estigmatizar a tendência de uma ilusão da existência de ‘unanimidade’ a que somos tentados quando lemos qualquer história intelectual de uma determinada cultura; segundo para significar «a exploração ideológica desta ilusão» para qualificar ou fazer juízos sobre o presente e deduzir o futuro, ‘confessa’ Hountondji mais tarde na obra The Struggle for Meaning publicada em 2002 na sua versão inglesa (título original em francês: Combats pour le Sens: Une Itinéraire African).

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próprio, as categorias ontológicas que julgava pertencerem aos povos bantu, mostrando que mesmo pobres e oprimidos, estão também, à semelhança dos seus homólogos europeus, aptos para pensarem filosoficamente, embora eles próprios inconscientes deste facto. Esta crítica de Aimé Césaire apresenta-se plausível, mas não suficientemente profunda, na óptica de Hountondji. Ela ignora, de facto, o problema teórico por trás da ‘descoberta’ ontológica de Tempels. Segundo Hountondji (1996, 37p), a ideia de emitir uma auto-inscrição segundo a qual existiria, entre os povos bantu, uma ‘filosofia escondida’ à qual todos eles, inconsciente e colectivamente, aderem, não é posta em causa por Césaire nos seus escritos: The theory therefore remained much alive, a teoria, por conseguinte, permaneceu bem viva, diz-nos Hountondji. Pois, para este, a filosofia africana não poderia continuar a se auto-inscrever na história do pensamento universal com aquela face que a etnofilosofia estava a tentar desenhar e disseminar: a de uma filosofia que consiste numa busca imaginária de algo imutável, colectivo, comum a todos os africanos, que está de forma latente e escondido no seu subconsciente. Assim, «desmistificar» a filosofia, libertando-a do espectro tradicional, apresenta-se para Hountondji ser a tarefa mais urgente para aquele momento histórico. Não era ainda tempo para se perder em debates supérfluos. Era preciso libertar a filosofia das amarras de um tradicionalismo sem sentido para o seu próprio futuro. Hountondji (1996,60) escreve o seguinte sobre o «mito do unanimismo primitivo»: a crença de que nas sociedades primitivas, ou seja, nas sociedades não-ocidentais, toda a pessoa está quase sempre de acordo com a outra. Como consequência, segue-se que nestas sociedades não pode haver nunca crenças ou filosofias individuais, mas somente sistemas colectivos de crenças. A palavra ‘filosofia’ é então usada para designar cada sistema de crenças. Este é, digamos, Hountondji I. O Hountondji II já admite que a filosofia pode conter textos orais. Voltemos então à pergunta que nos pusemos um pouco mais atrás: o que terá ocasionado esta viragem nas suas concepções? A resposta a esta pergunta deve ser dividida em duas partes: a primeira diz respeito às releituras posteriores que Hountondji faz ao «conjunto de textos» escritos pelo etnofilósofos; a segunda tem a ver com as críticas, ou melhor, o aceso debate que a sua definição provocara.

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Quanto à primeira parte Hountondji esclarece, no seu livro The Struggle for Meaning, publicado em 2002, no capítulo The Time for Rereadings, que a atenuação que faz sua tese inicial «de alguma forma exagerada» teve dois factores: o primeiro factor que, graças à (re)leitura posterior de comentários sobre a obra de Tempels, particularmente da leitura de Fr. Smet deu-se conta que o título original (que o próprio Tempels dá à sua obra) em holandês Bantoe-filosofie «poderia muito bem ter sido compreendido como ‘pensamentos filosóficos dos bantu’ no qual ‘filosofia’ não teria o sentido de ‘realidade dada numa cultura estudada, mas como uma grelha de leitura, um modelo de interpretação livremente escolhido pelo analista» (Hountondji 2002, 198). Para completar esta ‘salvação’ às intenções do Padre Tempels, Hountondji diz-nos também que, das leituras que faz ao mesmo Smet, notou que o ambiente político em que Tempels escrevera a sua obra causou muitos transtornos ao próprio. Deu-se conta que Tempels dedicou-se genuinamente na defesa dos direitos políticos e ao bemestar dos africanos tendo provocado a ira dos colonizadores belgas. Nestas circunstâncias havia que relativizar os qualificativos que fizera a Tempels… Por outro lado, a releitura de outros etnofilósofos tais como Alexis Kagamé, Kwame Nkrumah e Senghor foi na base de «novos olhos», segundo o próprio Hountondji. É uma leitura que, desta vez, não tem como objectivo examinar, nos textos destes filósofos, os elementos que o fizessem revelar a filosofia por trás dos costumes e provérbios, mas sim visava descobrir «elementos para uma avaliação objectiva das constantes nas nossas culturas». Hountondji pretendia agora «ver», nestes textos, elementos da herança milenar neles contidos para assim poder criticar livremente. Embora reconhecendo que, sob este ângulo, a releitura da etnofilosofia dera-lhe luz para poder apreciar o seu valor intrínseco na colecção de provérbios, na descrição das formas de pensar, este porém não era o domínio da filosofia. Uma pesquisa ao pensamento africano com uma orientação metodológica positivista-antropológica só poderia ser um primeiro e necessário passo para o posterior cogito filosófico. Hountondji julga assim ter começado uma etapa de nova leitura dos textos etnofilosóficos, desta vez, não com o intuito de revelar as formas pelas quais estes petrificam as culturas africanas, mas sim para

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mostrar «porquê e em que sentido o etnofilósofo está correcto»: era preciso prestar atenção às regularidades culturais («cultural constants»), às continuidades que foram objectos de interesse por parte dos etnofilósofos, assegura-nos ele. Como resultado da releitura, Hountondji confessa que decidira então juntar uma pesquisa que abraçasse a parte empírica (pesquisas de campo) com a parte transcendental. Tinha que mergulhar profundamente nas culturas mantendo a «cabeça de fora» porque, justifica-se Hountondji (2002,205), procurar as nossas raízes culturais nunca foi e nunca será tornar essas mesmas raízes uma casa-prisão, em África e em nenhuma parte do mundo. A segunda parte da resposta à questão que estamos a debater, a saber, o que terá originado a relativização do conceito da etnofilosofia? tem a ver com o facto de que, após esta sua definição sobre filosofia africana, ele sofrera três tipos de críticas dos seus parceiros filósofos africanos. Uma boa parte de filósofos duvida a natureza eminentemente geográfica da definição de filosofia africana que Hountondji defende, dizendo que a nacionalidade ou a pertença ao continente africano não pode ser uma condição suficiente. Havia, segundo estes, que assegurar-se que o filósofo defendesse uma causa africana. Como poderemos dizer que um determinado texto pertence à filosofia africana se o autor escreve totalmente sobre Descartes, Kant ou Hegel e debate assuntos relacionados por eles? Será que só pelo facto de ele ter nascido africano é a condição suficiente para tal? Estas e outras perguntas semelhantes são colocadas ao filósofo de Benin. O segundo grupo de críticas ataca a parte da definição hountondjiana que submete à intenção do autor para se classificar um texto como filosófico: desde que o classifique por si mesmo como sendo filosófico! Também aqui, alguns pensadores africanos defendem que esta não é uma condição suficiente. É necessário também que esse texto, argumenta-se, se submeta ao teste dos outros filósofos. O nosso autor estava a ser muito subjectivista, acusa-se. Mas a objecção mais forte, segundo o próprio Hountondji, contesta o facto de ele ter excluído a literatura oral. Aqui é que teria sido o cúmulo do elitismo desta definição, argumenta-se. Ele ignora, com esta sua posição, o manancial e potencial de sabedorias populares e culturais que estariam nas cabeças e mentes dos velhos nas aldeias e

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mesmo nas cidades. Sobre este aspecto, Odera Oruka, como veremos mais adiante, distingue «sábios filosóficos» (sages) de «filósofos». Hountondji defende-se destas críticas apresentando dois argumentos: o primeiro sustenta que, embora aquela seja logo a primeira frase do seu artigo e tivesse uma estrutura formal de uma definição, trata-se simplesmente de uma «declaração preparatória» e não de uma definição em tanto que tal; o segundo argumento que ele apresenta é que aquela frase deve ser lida mais por aquilo que ela quer rejeitar do que o que supostamente afirma: não poderia continuar a permitir que a auto-inscrição da filosofia em África na história do pensamento fosse confundida com uma simples literatura filosófica africana. Ou seja, a frase pretende, naquela altura em que foi escrita, «cortar radicalmente» a ideia de que saberes implícitos, escondidos, congelados existem supostamente nas mentes de todos os povos bantu, como propalam os etnofilósofos. Portanto, aquela «definição», que no fim de contas não o é, pretende chamar atenção para não se pôr no mesmo saco textos literários, por mais saberes que estivessem por trás deles, com textos críticos filosóficos. Não tem, na altura, a intenção de excluir toda a literatura filosófica oral, mas sim de sublinhar a importância do texto escrito para o desenvolvimento do debate filosófico em África. Olhando o desenvolvimento da filosofia num plano mais amplo, o Hountondji II é aquele que se desculpa por ter «exagerado» a sua definição: ele escreve que I would probably not use the same words today (Hountondji 1996, xii). Mas a desculpa veio tarde! Em nossa opinião, pelo carácter central que a crítica unanimista ocupou no debate filosófico após a sua publicação; ela provocou, pois, uma viragem nesse debate de tal natureza radical que os filósofos passaram a digladiar-se entre eles à busca da sua própria identidade. Passou a ser central debater-se sobre o conceito duma filosofia africana do que a desenvolver-se uma agenda de carácter metafísico, epistemológico, ético, etc. da filosofia. O efeito daquela «definição», que ao fim e ao cabo acabou não sendo, foi perverso mesmo em relação ao que Hountondji, ele próprio, pretendia, nomeadamente «alargar» e aprofundar a crítica que Césaire faz à etnofilosofia; Césaire denunciava, recordamos, o desvio que Placide Tempels fizera dos problemas políticos (opressão, emancipação, colonialismo, etc.) para dedicar-se à caça de uma ontologia latente dos povos bantu. Hountondji também queria, ao denunciar

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o unanimismo primitivo em que caíra a etnofilosofia, no fundo, lutar pelo pluralismo de ideias, pela democracia. Só que não foi essa a consequência deste debate sobre a identidade da filosofia que Hountondji, com a sua crítica fundamental, provocara. Em contrapartida, ele provocou o início de uma época de uma filosofia que passara a olhar mais para o seu próprio umbigo do que para os problemas sociais, uma época de auto-justificações sobre o que merece ou não ser considerado como «texto filosófico» ou passar a fazer parte das prateleiras da filosofia africana. Enfim, iniciou uma época de maior distanciamento entre filosofia académica africana e a filosofia africana dos sábios que deveria partir de um quadro conceptual usado por individualidades e sábios iletrados vivendo nas zonas rurais e urbanas. Ninguém, talvez, poderá fazer contas de quantos novos filósofos abandonaram a pesquisa filosófica a partir das culturas tradicionais com receio de serem «acusados» de estarem a abraçar a causa unanimista. Ficou, em nossa opinião, adiado para mais tarde o desafio da «descolagem conceptual» defendida por Crahay, que fizesse emergir uma filosofia africana já livre da carga das tradições. Hountondji reduziu a filosofia à intenção do autor em classificar o seu próprio texto como sendo «filosófico»; ele reduziu a filosofia à análise do seu conceito, à epistemologia, denuncia o filósofo moçambicano Ngoenha, mais tarde. «O que importa doravante, não é procurar uma filosofia africana, mas antes uma reflexão sobre a possibilidade de pensar filosoficamente a nossa realidade africana» (Ngoenha 1993, 8), este é o sentido da «crítica radical» à etnofilosofia que podemos ler na obra de Severino Ngoenha, a quem vamos interpretar, a seguir.

A Crítica Radical A base da interpretação da crítica ngoenhiana à etnofilosofia vai ser a sua obra Filosofia Africana: das Independências às Liberdades publicada em 1993. Nesta obra Ngoenha entende que o compromisso da filosofia é com o «futuro» — ele chama de «missão futuro» — e não com o passado. Assim, «[é] ... legítimo que nos interroguemos sobre o lugar da filosofia na problemática da construção do futuro». O futuro para ele afigura-se como um conjunto de projectos, de possíveis, de

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esperanças, de liberdades. É preciso dedicarmo-nos ao futuro porque senão o nosso futuro será igual ao passado. A tarefa, portanto, é desmistificar o futuro. Mas para isso é necessário, antes, desmistificar o passado. Nas suas próprias palavras, a questão que aborda neste livro é: «que relação existe entre o passado que constitui o objecto das nossas querelas, e o futuro que constitui a pedra angular do nosso deveser filosófico?» (Ngoenha 1993,102) O compromisso com o tema ou projecto «futuro» encontramo-lo já em Ngoenha na sua primeira obra escrita durante os anos 1990 e 1991, publicada em Maio no ano seguinte, intitulada Vico e Voltaire: Duas Interpretações Filosóficas da História do Século XVII. Este livro também é tema da sua tese de doutoramento. Especializado em Filosofia Moderna, a formação intelectual de Ngoenha foi feita entre a Itália (Roma) e França (Paris). Na Itália estuda teologia e filosofia nas Universidades Urbaniana e Gregoriana. Depois de se dedicar a Vico vai para Paris onde usa a apetrechada biblioteca do Centro Europeu de Investigação Interdisciplinar para ler em francês as obras do seu segundo autor: Voltaire. É nesta obra onde Ngoenha começa a preocupar-se com o sentido e o fim da história. Confrontando-se com problemas da Filosofia da História apresentados na perspectiva de Vico — que nas suas palavras faz uma «demonstração civil racional da providência divina na história social» — e na perspectiva de Voltaire — a quem Ngoenha ‘acusa’ de ter secularizado a teodiceia, ou seja, fazendo da teologia da história a «matriz directa da filosofia da história» (Ngoenha 1992,206), Ngoenha sublinha várias vezes que a leitura da história só faz sentido se indagarmos esta mesma história a partir da historicidade do homem de hoje e do futuro; aqui também encontramos, embora escondido por trás dos autores que interpreta, luzes daquilo que ele mais tarde irá com mais nitidez chamar de «paradigma libertário». Curiosamente Duas Interpretações foi a única obra que Ngoenha escreve tendo em vista a história universal. As obras seguintes11 são (11)

De entre as várias obras de Ngoenha contam-se Vico e Voltaire: Duas Interpretações Filosóficas da História do Século XVII (1991), Por uma Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica (1992), Filosofia Africana: das Independências às Liberdades (1994), O Retorno do Bom Selvagem (1996), Mukatchanadas (1997), Axiologia e Educação em Moçambique (2000) e Os Tempos da Filosofia, Filosofia e Democracia em Moçambique (2004).

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todas no domínio da filosofia africana ou sobre Moçambique, a sua pátria. Embora nos seus tempos de estudante em Roma vivesse entre estudantes da África Ocidental, especialmente da Nigéria, que já lhe falavam de temas e filósofos africanos, embora estes mesmos estudantes, na sua maioria, escrevessem temas sobre a filosofia africana e Ngoenha já na altura se quisesse envolver no debate africano, teve que ver o seu sonho adiado porque o seu tutor insistira para que «adiasse» esse seu ímpeto legítimo: tinha antes que ler muito bem a tradição filosófica ocidental, para depois dissertar sobre filosofia africana. «O desvio foi muito bom para o meu crescimento intelectual» — disse-me Ngoenha numa manhã quente de Março à beira-mar em Moçambique, horas antes de partir para a Suíça onde leccionava Filosofia da Interculturalidade na Universidade de Lausanne. Com a sua insistência no projecto futuro, Ngoenha deixa logo claro que o reexame do que é a etnofilosofia assim como das críticas que esta corrente filosófica foi recebendo, deve ser feito em função de um projecto futuro de sociedade. Em outras palavras, Ngoenha parece querer dizer que não vamos escavar as nossas tradições, costumes passados, lendas, sabedorias, etc. somente por um puro exercício intelectualista. Ele nota que, contrariamente à preocupação das sociedades africanas com a construção de futuro mais aberto, a filosofia africana aparece mais preocupada em escavar uma direcção contrária. A etnofilosofia é a expressão máxima desta viagem para o passado. Mas não são somente os etnofilósofos que caem nesta armadilha. Segundo Ngoenha, mesmo os seus críticos mais acérrimos como Towa, Hountondji e Eboussi-Boulaga não ficaram «totalmente livres» da tentativa de olhar mais para o passado: qual é a razão desta dedicação da filosofia africana pelo passado? Porque é que a reflexão filosófica, que se quer voltada ao futuro, deve necessariamente gravitar em torno de um discurso etnológico? Eis a preocupação central de Ngoenha neste livro. A missão da filosofia africana é, portanto, reinterpretar o estatuto da modernidade e da tradição em função do projecto (futuro) de sociedade. É em conformidade com este projecto futuro Ngoenha decide fazer uma «crítica radical» à etnofilosofia. Ngoenha começa por classificar como «pensadores críticos» a Franz Crahay, Eboussi-Boulaga, Marcien Towa e finalmente Hountondji. Segundo Ngoenha (1993,89), para Hountondji vai o mérito de

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ter sido o primeiro a fazer uma «crítica sistemática» à etnofilosofia. A partir desta crítica a que Hountondji submete à etnofilosofia, Ngoenha constata que a noção de filosofia africana tem uma «mudança teórica fundamental», porque a filosofia deixa de ser uma visão colectiva do mundo — como queriam os etnofilósofos — para passar a ser uma espécie de trabalho laborioso de análise de textos escritos por africanos e africanistas e considerados por eles próprios como sendo textos filosóficos. «A definição da filosofia africana como literatura filosófica africana, serve para libertar o projecto de uma história de filosofia africana, um projecto que seria impossível na linha de orientação da etnofilosofia», conclui Ngoenha avaliando positivamente a crítica hountondjiana. Entretanto Ngoenha assevera que a crítica desses «pensadores críticos», particularmente a hountondjiana, à etnofilosofia, embora seja «salutar no quadro da luta contra a negritude, porém não é radical (it. meu)». E considera que a definição de filosofia em Hountondji inscreve-se ainda numa «orientação eurocêntrica». Apoiando-se em Amady Aly Dieng, Ngoenha assevera que «[...] o uso do termo etnofilosofia por [...] Hountondji é a consequência lógica da sua falta de atitude crítica para com a orientação eurocêntrica da filosofia universitária». Em primeiro lugar, na sua argumentação em oposição a Hountondji, Ngoenha acha que «resta saber se esta literatura deve ser entendida no sentido rigoroso da palavra ou se nela se deve incluir, para além do número de textos escritos, também, a palavra não escrita», ou seja, a tradição oral (Ngoenha 1993,90). Se assim for, então não podemos apelidar de «filosofia» os «mitos» dos povos Dogon, Diola, Yoruba, Serere, Bantu, etc. O que Ngoenha parece estar a questionar é a seguinte pergunta que ele próprio classifica como sendo um «problema complexo»: será que o facto de, na tradição oral, o espírito estar de tal maneira preocupado em preservar, que é incapaz de uma atitude crítica, retira todo o estatuto que a literatura oral pode possuir de portadora de elementos filosóficos? Para Ngoenha, a literatura oral não exclui por si toda a possibilidade de se exercer uma atitude crítica, reconhecendo, porém que seja um facto que a literatura oral «fecha a crítica num espaço limitado» que concorre para uma cultura tradicionalista. Mas Ngoenha pensa

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também que isto não significa que a filosofia como uma actividade intelectual não seja possível numa sociedade de tradição oral (Ngoenha 1993,92). Os contos morais, as lendas didácticas, os aforismos africanos, os provérbios, podem e devem, segundo Ngoenha, servir de «documentos filosóficos», ou seja, como pontos de partida para uma reflexão crítica e livre e, a partir daí, descobrir-se uma «nova estrutura teórica para a história da nossa filosofia» (Idem). Assim, segundo o nosso autor, o facto de não haver (melhor: de não ter havido) uma transcrição não tira a possibilidade de estas sabedorias terem um valor intrínseco filosófico, afinal Sócrates entrara na história do pensamento filosófico porque alguns dos seus discípulos se preocuparam em transcrever o que ele somente andou a dizer! No entanto, Ngoenha (1993,93) assevera-nos que a existência de uma filosofia africana depende, em primeira linha, da existência de filósofos africanos que escrevem. Ela não vai existir na base da recolha de «migalhas» filosóficas espalhadas pelas tradições africanas. Porque no momento que houver textos escritos, estes poderão se submeter ao exercício de uma actividade crítica séria e sistemática. A transcrição dos saberes em textos aparece assim como sendo um momento necessário para aquilo que Ngoenha chama de «necessidade de libertar o discurso» (Idem). Está assim claro que, para Ngoenha, uma filosofia africana é um projecto de futuro. Pensamos ter compreendido que, para Ngoenha, o importante não é ater-se ao facto de ser texto escrito ou texto oral que fundamenta a filosofia africana, mas sim a criação de condições para a abertura de espaços críticos, para espaços de um verdadeiro debate em torno dos problemas africanos. Ele mesmo classifica de ser um processo «aberto e descontínuo», este processo do nascimento da filosofia africana. Pois, para Ngoenha, a filosofia «é uma investigação perene, que se faz através de textos, os quais nos permitem e servem de elementos de confrontação e de discussão quer entre nós africanos, como com o resto do mundo» (it. meus). Partindo deste conceito de filosofia, a crítica mais profunda à etnofilosofia, que pensamos ter entendido da obra de Ngoenha, reside no facto de ela ser apenas uma «dilatação» e não uma «superação» ao conceito de filosofia (Ngoenha 1993,94). Pois, ao limitar-se a interpretar

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as instituições, os costumes, as crenças, as lendas, os contos e os mitos, e em procurar identificar a ligação, a coesão, a estrutura dos sistemas de pensamentos indígenas, o que de facto a etnofilosofia faz é estender («dilatar») o conceito ocidental de filosofia para passar a incluir formas de pensamento locais tradicionais, enfim a esfera da cultura, quer sejam os mitos, a religião, a arte, a poesia, etc. Esta dilatação do conceito de filosofia que a etnofilosofia faz teve uma consequência, no nosso entender grave: a inclusão de obras literárias, provérbios, mitológicas, etc. no conjunto de obras filosóficas africanas. Alargou-se o volume de textos considerados como sendo de natureza filosófica, sem no entanto proceder-se à «ruptura epistemológica» que deve haver entre o pensamento tradicional e a filosofia, ruptura esta, necessária. Uma segunda crítica importante que Ngoenha faz à dita etnofilosofia — desta feita apoiando-se em Marcien Towa — é que ela, ao enveredar por uma via de facilidade para fazer economia de tempo em técnicas e nos métodos da sua investigação, acaba não sendo nem etnologia e nem filosofia: «Com efeito, a etnofilosofia expõe objectivamente as crenças, os mitos, os ritos depois bruscamente, esta exposição objectiva é submetida numa profissão de fé metafísica sem se preocupar em confutar a filosofia ocidental, nem fundamentar a razão da sua adesão ao pensamento africano. Por conseguinte, a etnofilosofia acaba traindo ao mesmo tempo a filosofia e a etnologia, pois o etnólogo descreve, expõe, explica, mas não se compromete quanto ao fundamento do que expõe e explica. Ela trai também a filosofia porque a pedra angular que lhe permite fazer uma escolha entre as diferentes opiniões é antes de mais a pertença ou não à tradição africana, enquanto que a exposição filosófica é sempre uma argumentação, uma demonstração e uma confutação.» (Ngoenha 1993, 95) De facto, em nome do projecto de africanidade, a etnofilosofia, em termos metodológicos, ficou dogmática abandonando o sentido crítico que é a essência da filosofia. É assim que Ngoenha, apoiandose em Marcien Towa, advoga que (também) a filosofia africana deve

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retomar o «valor intrínseco» da filosofia (i.e. no sentido europeu) para se libertar do passado. Por valor intrínseco entende-se a universalidade ou o carácter universal da filosofia enquanto um livre pensar crítico e imparcial e, a partir daí, reflectir sobre o papel que deve desempenhar em relação ao destino dos africanos. Por último, Ngoenha usa Eboussi-Boulaga para retomar a questão do porquê tanto «entusiasmo repentino» da filosofia africana em reivindicar uma filosofia especificamente africana. Reformulando a questão nós diríamos: Porquê este exercício exagerado de auto-compreensão e auto-justificação? Vamos seguir os passos de Ngoenha na sua interpretação do «crítico» da etnofilosofia, Eboussi-Boulaga; Ngoenha usa-o para mostrar que a etnofilosofia é um «projecto falhado e encalhado no passado». Assim, Eboussi-Boulaga, referido por Ngoenha, concluíra que, de facto, a etnofilosofia é um conjunto de textos escritos cujo público escolhido são os homens da ciência ocidental (entnólogos, antropólogos); o etnofilósofo luta por ser reconhecido como tal pelo ocidente. E é nisso que ele acumula o seu mérito: em trabalhar, acumular, arquivar o material tradicional sob a forma de filosofia, usando categorias filosóficas aparentemente escondidas nos mitos, nos provérbios, nos contos, etc. Estes conteúdos filosóficos estão lá escondidos à espera de serem desvelados pelo etnofilósofo. Com a etnofilosofia, o sentido de filosofia passou a ser o de desvelar, tornar visível o que está escondido, cunhando tudo o que julga descobrir com uma terminologia semelhante. A etnofilosofia mais se parece com um jogo de busca de semelhanças entre os provérbios, lendas, mitos tradicionais com a filosofia ocidental, no qual o sujeito desta «filosofia escondida» é anónimo: É uma filosofia sem filósofos. Pois, não é o sábio que está no que-fazer filosófico, senão o próprio etnofilósofo que traduz o que ouve em filosofia. O sábio africano é aquele que sempre filosofou sem saber que o está a fazer. Assim, a relação do homem africano com a filosofia ficou condenada com o passado edílico, inquestionável e incapaz deste muntu se projectar para o futuro ou mesmo sem este futuro que as sociedades africanas tanto reivindicam serem donos. Neste passo, Ngoenha recorre-se à grande tese de Eboussi-Boulaga, segundo a qual a etnofilosofia representa a «crise do munthu»:

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«Com este tipo de projecto, a etnofilosofia não fez se não revelar que a filosofia africana não é outra coisa que a ‘crise do munthu’. Os seus filósofos não fazem se não usar uma linguagem abstracta, sem um real conteúdo histórico e sem lugar de referência preciso. Portanto, é necessário superar este tipo de filosofia.» (Ngoenha 1993, 99) Portanto, o projecto de «superar» a etnofilosofia como projecto de filosofia africana é levado a sério por Ngoenha. E ele realiza esta superação em dois passos. O primeiro passo, segundo Ngoenha, é um itinerário crítico, metódico e dialéctico. Ou seja, a tomada de consciência de como usufruir das nossas tradições tomando o cuidado de não cair no etnologismo. A tradição deve ser uma espécie de «utopia crítica e mobilizadora do presente» com vista à realização da liberdade do homem africano. Por isso a tradição deve inscrever-se num quadro de um movimento para a autonomia. Falar da tradição como utopia crítica é, para Ngoenha, falar duma tradição que não é inimiga da modernidade, ou seja, não limitá-la a uma projecção do passado, mas idealizar o seu lugar no presente e futuro do homem africano. Devemos pôr a tradição ao serviço da liberdade, da emancipação e «transformá-la num instrumento para fugirmos da nossa situação actual.» (Cfr. Ngoenha 1992, 99 p.) A fuga da tradição para o futuro, ou seja, a submissão da tradição em função de um projecto futurista passa, para Ngoenha e como o segundo passo, pela «crítica da crítica»; isto é, pela confrontação crítica com os críticos da etnofilosofia. Para esse segundo passo Ngoenha apoia-se em Ollabiyi Babalola Yai, Amady Aly Dieng, Ngoma Binda e em Tshiamalenga Ntumba. Apoiando-se em Babalola Yai, Ngoenha afirma que é preciso uma «discussão radical» com Hountondji porque ele, apesar da crítica que faz, tem uma definição eurocêntrica de filosofia que, por isso, «responde negativamente à questão da existência de uma filosofia africana» (Ngoenha 1993,101) Pois, para Hountondji, a filosofia é um conjunto de textos intencionalmente escritos e classificados como sendo filosóficos. Ngoenha responde que «[...] a intenção não faz filosofia» (Ngoenha 1993,102). Em segundo lugar, o filósofo de Benin submete o projecto filosofia como resultado de análise de um discurso sobre a

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ciência, porque a filosofia para aquele só será possível enquanto reflexão em torno dos problemas e temas específicos da ciência. O que Hountondji faz, para Ngoenha, é a redução da filosofia à epistemologia (discurso sobre a ciência). Ngoenha critica esta redução no quadro da sua pretensa «crítica radical» à etnofilosofia e aos seus críticos. Por fim, para Ngoenha, e desta feita apoiando-se em Binda, defende que não faz sentido a crítica unanimista que Hountondji faz à etnofilosofia. Pois, que não exista uma unanimidade de pensamento numa sociedade, «é uma verdade banal» e não tem um fundamento rigorosamente filosófico. Criticando esta ideia de unanimismo, Ngoenha termina dizendo que embora se deva reprovar o facto de Tempels ter considerado o pensamento dos Luba-Shanbakadi como sendo de todos os bantu é preciso, porém, reconhecer «um conjunto de traços comuns a todos os homens da área cultural Bantu». Para além disso, é preciso também uma discussão radical com Towa. Na óptica de Ngoenha, Towa não hesitara estender a tese de Hountondji tentando mostrar que os «textos» de filosofia existiram já no antigo Egipto (posição que Appiah não partilha). O Egipto abrira o caminho para a filosofia africana, tendo em conta não só a sua influência para o logos grego, mas também e sobretudo pelo desenvolvimento da ciência naquele reino africano. Para Ngoenha, este caminho crítico de Towa é uma imitação e «imitar um modelo não é filosofar». Chegamos assim a um ponto com o qual introduzimos Ngoenha, nomeadamente que a crítica que os «críticos» Hountondji e Towa fazem à etnofilosofia é «salutar», porém não radical. Porque o uso do termo etnofilosofia por ambos, e para esta crítica Ngoenha apoia-se em Aly Dieng, é consequência lógica da falta de uma «atitude crítica» por parte deles para com a orientação europeia universitária do conceito de filosofia. Ao serem a-críticos abandonam o terreno da própria filosofia. Senão vejamos: quando estudamos os poemas parnasianos ou os mitos pré-socráticos fazemos etnofilosofia? pergunta-se Ngoenha apoiando-se nas interrogações adiantadas por Tshiamalenga Ntumba. Ngoenha pensa ter assim denunciado a falta de coerência destes críticos ao cunharem unilateralmente de etnofilosofia ao que os africanos fazem ao estudarem os seus provérbios, mitos, dizeres, etc. e não fazerem o mesmo quando se trata de filósofos europeus que estudam as suas próprias culturas.

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Na «investida» final contra os críticos da etnofilosofia (crítica da crítica), Ngoenha apoia-se na chamada corrente hermenêutica africana. Esta corrente propõe a interpretação da filosofia africana a partir da confrontação com a religião, com os mitos e com a questão da língua. Aqui trata-se de uma releitura da tradição «[...] não para reconstruir o pensamento antigo como tal, mas para reactualizá-lo dentro do contexto dos novos sistemas de maneira a torná-lo presente de uma maneira eficaz» (Ngoenha 1993, 105). Para os hermeneutas africanos, toda a filosofia que se pretenda como tal não deve começar por outro canto senão pela interpretação das tradições africanas. Não se dar conta das tradições seria uma atitude muito irresponsável para com a África moderna. No entanto, esta confrontação com a tradição deve ser tomada como um património africano, isto é, deve ser feita tomando em conta a África presente.

Crítica da Crítica Vamos, de seguida, fazer um breve esboço da crítica da crítica à etnofilosofia e, por extensão, às etnociências; entretanto, antes disso, é necessário notar que, pelas conversas tidas anteriormente com as obras de Hountondji e Ngoenha sobre as suas críticas à etnofilosofia e às etnociências, procuramos destacar que ambos almejam libertar a filosofia das amarras de um pensar que se quer filosofia, mas que de facto, e eles aqui têm razão, trata-se de uma antropologia que quer (re)inventariar os hábitos e costumes dos povos africanos e apresentálos como sendo «filosofia africana». E isto, segundo ambos, amarra a filosofia africana ao passado e não consegue, segundo uma boa tradição europeia de filosofia, contribuir para o «projecto futuro», como Ngoenha gosta de dizer. Entretanto uma crítica é legítima: no seu projecto crítico, os críticos não souberam ou não puderam elevar-se para além de desconstruir o discurso etnocêntrico e unanimista da etnofilosofia e das etnociências e entrar num diálogo com as culturas que eram o objecto de estudo dos etnofilósofos e objecto de crítica dos críticos. Explicamo-nos: o que os críticos fizeram foi elaborar um discurso crítico a

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partir de fora, ou seja, de um quadro conceptual e de uma cultura filosófica eminentemente ocidental, sem quererem entrar no debate sobre as propostas de conteúdos e dos conceitos que, enfim, as etnofilosofias propunham. Fizeram sim um debate intercultural, mas não argumentam a partir de uma posição intracultural. E, por isso mesmo, acabaram por violar as regras do próprio debate intercultural entre uma filosofia com carga ocidental com uma filosofia que queria despontar como africana. Mais precisamente, a filosofia dos críticos não é feita do interior, senão do exterior, com insuficiente base cultural a partir da qual ela poderia emergir como um saber próprio no debate. Desconstruíram, chamaram a atenção para a liberdade da pseudo-filosofia africana, sem no entanto (ainda) construírem um quadro conceptual interculturalmente estruturado. Pois, como nos assevera Mudimbe: «A crítica filosófica à etnofilosofia não é o reverso da escola de Tempels e Kagamé. Ela é um discurso político sobre filosofia com o fim de examinar os métodos e as condições para praticar filosofia em África. Como uma tendência, ela deriva as suas convicções do seu estatuto como um discurso que está firmemente ligado à tradição filosófica ocidental como uma disciplina e às estruturas académicas que garantem institucionalmente as práticas filosóficas aceites. Como tal, a crítica à etnofilosofia pode ser compreendida como subsumindo dois pressupostos: por um lado a reflexão sobre os limites metodológicos da escola de Tempels e Kagamé e, por outro lado, as práticas e obras africanas sustentadas pelos sujeitos e tópicos ocidentais […] [trad. minha]» (Mudimbe 1988, 154). Na verdade, as razões para explicar essa falta de base cultural dos críticos são muito complexas. Vamos adiantar algumas razões para que o que parecem ser as explicações das ‘deficiências interculturais’ dos críticos. Em primeiro lugar, os críticos parecem estar a fazer um esforço genuíno por contextualizar a filosofia, mas ao mesmo tempo notamos que há um excessivo uso ‘colonizado’ da razão ou da racionalidade. Esta fé na razão ou na racionalidade na sua dimensão de reflexão filosófica nos parece não lhes deixar ver a possibilidade de um filosofar

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aparentemente irracional existente nas comunidades locais. Neste sentido falamos do uso ‘colonizado’ da razão. De facto, no imperativo de, como justificam, universalizar a filosofia africana no sentido de ela poder, junto às outras filosofias continentais, também oferecer alternativas de respostas aos problemas ‘mundiais’, tornam-se presos em procurar fundamentar uma filosofia africana na base de cânones da racionalidade e não das racionalidades. É uma obsessão racionalista de apresentar a filosofia como uma reflexão sistemática e crítica. Ou por outra, é a pressa de chegar a uma filosofia africana que também seja racional que, por razões de credibilidade, se sente obrigada a dialogar primeiro com a filosofia ocidental e, em segundo lugar, com o quefazer filosófico ‘escondido’ por trás das culturas africanas e dos seus sábios. Trata-se de uma filosofia crítica que parece estar a ser preguiçosa em pensar para além das fronteiras da racionalidade, embora, reconheça-se, alguns dos seus representantes, como é o caso de Hountondji ultimamente, estejam a fazer esforço em dialogar com os saberes chamados «endógenos». Desta feita, os críticos procuram sim apresentar propostas interessantes de gerir a diversidade cultural dentro do continente africano, mas a sua pretensão pan-africana não lhes permite digerir esta mesma diversidade a partir de dentro das culturas. Em segundo lugar, a filosofia dos críticos parece ser uma filosofia envergonhada. Pois, se por um lado esforça-se por mostrar soluções ou alternativas de interpretação da realidade social e intelectual africana, por outro, é notória a sua inconsistência, até mesmo recusa, em querer elevar-se a partir do mesmo «imaginário cultural colectivo» dos mesmos povos que tem a pretensão de querer libertar; e esta vergonha nota-se pela sua metodologia académica de insistir num debate a partir de textos escritos, quase recusando-se ao trabalho de transcrição do texto oral, à boa maneira platónica que, graças a isso, conseguimos saber o que Sócrates andava a apregoar pelos mercados de Atenas. Curiosamente, esta insistência no cultivo de uma cultura filosófica escrita, realiza-se num contexto cultural em que a palavra apresentase como sendo a que mais alcance tem. Enfim, os críticos reconhecem que existem ‘colegas’ de filosofia nas aldeias, mas não chamam esses mesmos colegas para a mesa do debate, à semelhança dos etnofilósofos. Estes, ao menos falavam em nome dos colegas nas aldeias. Podemos,

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portanto, sustentar que os críticos fogem à intersubjectivação da filosofia profissional africana. O que explica a vergonha? É sem dúvida a insistência em filosofar numa língua que uma boa parte do seu público não domina. Nos seus textos, a título de exemplo, está cheio de itálicos de palavras e conceitos das línguas grega, latina, alemã, francesa e pouco encontramos algumas ‘distracções’ suas em incluir conceitos de línguas endógenas. Isso nos faz mostrar que o seu público preferido é o público internacional e não os seus próprios povos. Porém, não queremos dizer com isso que devemos começar a escrever e filosofar em línguas africanas, uma exigência que não seria realista. O que se busca aqui são as possíveis causas da aparente ambiguidade dos críticos em tomarem posições culturais a partir das quais poderiam argumentar e participar na globalização. Que será de um filósofo que não encarna o imaginário conceptual a partir do ponto de vantagem que a sua cultura lhe põe à disposição, perguntamos com a ajuda de Asante. Portanto, a terceira constatação crítica é o facto de os críticos ainda serem extrovertidos em relação ao seu público. Porque, forçados pelas circunstâncias históricas da educação colonial francesa, inglesa e portuguesa, o seu público é exterior (e não interior) então tem dificuldades em sistematizar o que se desenvolveu como a filosofia Yoruba, Zulu, Banyaruanda, Sena da mesma forma que articulam facilmente com os termos da filosofia grega, clássica alemã, francesa ou americana. Ou seja, dialogam com as filosofias das culturas dominantes, mas têm dificuldades em tomar conta das filosofias dominadas. Mais uma vez: fecham-se assim ao horizonte mais aberto intra- e intercultural horizontal. Filosofam pela vertical e não pela horizontal pois isto é inerente ao próprio esforço de dupla desconstrução crítica em relação ao domínio ocidental e ao tradicionalismo que parece desbotar das etnofilosofias e etnociências. Os asiáticos parecem ter tido mais sorte. A experiência intercultural africana ainda permanece um projecto adiado para uma pretensiosa filosofia africana. A emergência de uma filosofia africana baseada e inspirada nas culturas ficou adiada devido à emergência de ‘libertar’ a filosofia da sua colonização. Auto-colonizou-se! Enfim, os críticos não conseguiram auto-inscrever-se como uma proposta concreta de uma corrente filosófica africana, ou seja, não se

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profilaram como uma «escola» filosófica com um discurso próprio alternativo que ultrapassasse a «crítica» que exercem à etnofilosofia. Bem pelo contrário, com as suas críticas adiaram o processo de amadurecimento do imaginário colectivo e individual para se apresentarem como «filosofias». Os críticos, na verdade, adiaram o processo de amadurecimento do diálogo intercultural concentrando os seus esforços na desconstrução das «ameaças» etnocêntricas na filosofia africana. A emergência de um novo horizonte conceptual viria vincar, no entanto, com o afrocentrismo e a filosofia ubuntu, uma nova aventura que muitos filósofos apressaram-se por adjectivar por uma espécie de «nova» etnofilosofia.

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PARTE III

REFERENCIAIS DE SUBJECTIVAÇÃO

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Olhando para o futuro da Igreja, referindo-se ao regime racista do apartheid na África do Sul, dizia Desmond Tutu nos inícios da década de 60: «Prevaleça ou não a política do apartheid, o povo africano vai, nos próximos 20 anos, ter que começar a criar seus próprios líderes tanto na esfera eclesiástica como noutras. Eu tenho esperança de que haverá um dia em que estudantes africanos de teologia vão sentar em frente de docentes africanos de teologia, respondendo perante um director africano. Se esse dia chegar […] será o prelúdio para coisas maravilhosas.» (Cfr. Allen 2006,71) Tutu advoga, com estas palavras, que «coisas maravilhosas» haveriam de acontecer em África, i.e. não só na teologia mas em todas as esferas. Estas coisas maravilhosas passariam, segundo ele, necessariamente pela presença de africanos como actores principais e não como simples objectos. Numa leitura pouco mais atenta pode ver-se que Tutu reclama duas coisas: primeiro que nós africanos até então tínhamos sido somente «objectos» da história e, segundo, é um imperativo que nos tornemos «sujeitos» da nossa própria história. Ou seja: a um esforço de objectivação deve passar-se para um esforço de subjectivação. O discurso moderno sobre as ciências impôs uma lógica dicotómica que se pretende ser universal segundo a qual o conhecimento é uma espécie de dança entre o sujeito cognoscente e o objecto a ser conhecido. Sob o ponto de vista da história das ciências humanas e

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sociais (filosofia, teologia, antropologia, história, geografia, sociologia, etc.) a imagem criada foi a de que os povos primitivos são o objecto de estudo. Interessava saber como o outro pensa, age, reage, vive, etc. Entretanto, esta mesma história do pensamento e das ciências está repleta de exemplos que ilustram a tentativa deste objecto revoltar-se da sua condição de objectivado. O desejo de se auto-inscrever nesta história como sujeito discursante sobre a sua própria condição é tão velho como o desejo do sujeito que se quer cognoscente. Em outras palavras, a história de narrativas científicas da objectivação dos africanos na história é tão velha como a história das narrativas de subjectivação, nas quais este mesmo sujeito africano revela-se a si mesmo como tal e nega ter sido «descoberto». Neste capítulo conversamos com dois referenciais de subjectivação que achamos suficientemente «paradigmáticas» e actuais como formas da auto-inscrição dos africanos na história do pensamento: tratase dos referenciais da afrocentricidade e do ubuntuismo, sendo, sob o ponto de vista geográfico, o primeiro originariamente da diáspora nos Estados Unidos e o segundo da região austral africana, mais particularmente da África do Sul. Entretanto, esta dispersão geográfica quanto à sua origem não significa que ambas não se tenham influenciado. Como veremos, textos importantes do ubuntuismo fazem referências, alguns de forma explícita e outros de forma implícita, à corrente afrocêntrica. Porque o nosso método é de «conversação» com os textos e autores, e não propriamente o da exposição histórica dos pensamentos, escolhemos dialogar com aqueles que conviemos serem os «representantes» destes dois referenciais da auto-inscrição na história do pensamento.

Referencial III: A Afrocentricidade Antes de nos embrenharmos na afrocentricidade vamos, em breves linhas, descrever o ambiente teórico que o antecede nos Estados Unidos, país onde esta corrente se desenvolve. A filosofia afro-americana foi marcada por complexos contextos sociais, envolvendo particularmente várias formas de descriminação

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racial a que os negros americanos, descendentes dos escravos, eram submetidos. Melhor, esta filosofia é marcada pela resposta e pela negação àquela condição e pela busca de estratégias de luta contra a inferiorização social do negro. Não admira, pois, que o problema da busca da identidade dos afro-descendentes seja recorrente nos seus textos. O debate em torno da identidade pode compreender-se na perspectiva de dar conta da situação de ambiguidade e ambivalência dos negros entre serem «africanos» e serem «americanos» ao mesmo tempo. A forma de abordar e resolver as tensões resultantes desta ambiguidade e ambivalência foi, naturalmente, variando consoante os indivíduos. Contudo, independentemente da posição, o problema constante na filosofia afro-americana é a busca de resposta sobre como assegurar a liberdade individual e da «raça negra» numa sociedade que não parecia estar disposta a reconhecer o negro. A filosofia afro-americana é uma filosofia nascida na luta contra duas formas de descriminação: contra a descriminação racial que marca a sociedade americana e contra a sua descriminação no seio da própria filosofia americana; pois, quando se fala de «filosofia americana» refere-se praticamente à contribuição dos filósofos americanos brancos com o pragmatismo ou com o funcionalismo e quase nunca aos filósofos afro-americanos que ainda continuavam a lutar com a sua própria identidade. Como dissemos, a primeira presença africana no país «onde tudo é possível» foi marcada pela sua escravatura e, intrinsecamente, pela luta para alcançar a liberdade individual e colectiva dos negros. Ser uma «pessoa livre» era um objectivo básico dos negros por volta de 1850. Frederick Douglass é talvez o escravo mais conhecido na luta pela abolição da escravatura que, como referimos na introdução ao livro, eternizou as suas amargas experiências em livro. É óbvio que as estratégias para alcançar a almejada liberdade eram diferentes no seio dos diversos movimentos afro-americanos. Essas diferenças são particularmente visíveis na intelectualidade negro americana no período que vai desde 1880 e 1915: a estratégia «acomodacionista» de Booker T. Washington contrasta a de um W.E.B. DuBois que iniciara o Movimento Niagara para contracenar com os efeitos de Washington e exigir uma «cidadania americana total» para os americanos afro-descendentes.

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Em termos de movimentos dos negros de maior expressão na promoção dos direitos civis para os negros são incontornáveis a National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), que nascera da separação do Movimento Niagara, e a National Union League. Ambos movimentos foram formados em 1909 e 1910 respectivamente visando usar meios legais (protestos) para exigir a observação dos Direitos Civis em particular os que dizem respeito à educação, ao emprego e à habitação condigna. Apesar dos avanços na economia americana — em grande parte fruto da industrialização e do crescimento da classe média americana — poucos negros conseguiram subir na escala social. Mas é no seio desta pequena elite negra da classe média que voltam a desenvolverse, entre 1940 e 1960, os grandes movimentos dos «Direitos Civis». A sua estratégia agora está entre a «assimilação» e a «acomodação». Os assimilacionistas afro-americanos partiam de um pressuposto segundo o qual na federação dos Estados americanos já se havia desenvolvido condições políticas, sociais, económicas e culturais suficientes e apropriadas para a integração efectiva (assimilação) dos afro-americanos e, portanto, as organizações afro-americanas deveriam assimilar estes objectivos gerais da sociedade americana sem exigir especificidades baseadas na cor, raça, cultura e religião. Os negros, tal como outros grupos sociais e culturais, devem obedecer à política «oficial» e aceitarem ser assimilados por eles. Por seu turno, os acomodacionistas tiveram uma agenda diferente. Reunidos em torno dos ideais de Booker Washington, estes assumem que a melhor estratégia para a sua integração não era desafiar directamente a hegemonia política e económica dos brancos porque estes já estavam estabelecidos; os negros só poderiam avançar adoptando estratégias mais subtis de preparar aos afro-americanos para assumirem, a longo prazo, a liderança política e económica; o que os negros deveriam fazer é formar e exercitar um bom carácter e assumir responsabilidades através da educação; através da educação os negros chegariam, «honestamente» ao topo da política e da economia. A estratégia de DuBois era diferente. Intelectual brilhante, DuBois propõe o que Outlaw chama de «integração pluralista» (Outlaw, s.d., 27). Este seria um tipo de integração social que manteria a diversidade étnica, política e económica de cada grupo. Para DuBois, os negros

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deveriam poder articular e apropriar-se da sua identidade baseada na sua «raça», sendo a raça para ele um conceito principalmente histórico, social e cultural e pouco ou nada mesmo de natureza biológica. Naturalmente que classificar o pensamento destes homens assimilacionistas ou acomodacionistas por «filosófico» é um risco porque eles próprios, exceptuando DuBois, não tinham recebido uma educação filosófica e, quando articulavam estas estratégias, não o fizeram com base na prerrogativa filosófica. Embora o primeiro afro-americano a doutorar-se em filosofia (Leroy Locke) surgisse somente em 1918 (pela Universidade de Harvard), de facto só podemos falar do florescimento de uma filosofia afro-americana nos anos 70 do século XX. É neste período em que surgem tentativas de articular uma filosofia que fosse Black ou AfroAmerican. Mesmo no seio da American Philosophical Association (ASA) o reconhecimento de uma disciplina especial denominada por Africana Philosophy só viria a efectivar-se em 1987. Isto apesar de todos esforços individuais e colectivos dos seus membros. Esse representa o reconhecimento de um campo discursivo específico dos praticantes afro-americanos de filosofia. As formas de divulgação desta filosofia são fundamentalmente duas. Através dos livros e nas universidades negras. Os livros paradigmáticos desta altura são sem dúvida Philosophy Born as Struggle: Anthology of Afro-American Philosophy from 1917, uma colectânea editada por Leonard Harris e a obra Afro-American Philosophers, uma colectânea produzida por Percy Johnston. Os artigos inseridos nestas duas colectâneas são produto de leituras nas sessões especiais da ASA. A segunda forma é nas universidades negras como a Tuskegee University e a Morgan State University. Naturalmente que existem várias outras obras de filosofia afroamericana cujos autores são Robert Williams, George Garrison, Cornel West, Charles Frey, etc. que surgem entre 1970 e 1980. Mas o mais estranho é que estes autores escrevem sem incorporar o manancial filosófico que cresce no continente que eles reclamam pertencer: o continente africano. Estes filósofos afro-americanos escrevem sem dar-se conta do debate entre os seus discípulos em África ou na diáspora. A distância com a situação e a condição de vida dos africanos em África pode ter condicionado esta lacuna; por outro lado, podemos

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colocar a hipótese de que o espírito americano de auto-suficiência pode ter tomado conta também dos afro-americanos. Afinal estes filósofos vivem nos Estados Unidos (e não em África), onde tudo parece valer para se manter a autonomia do indivíduo. É na tentativa de recuperar esta lacuna, nomeadamente o isolamento da filosofia afro-americana do debate dos seus colegas filósofos africanos em África ou na diáspora, que se deve compreender as incursões teóricas de Molefi Asante. A Afrocentricidade e a Africologia que ele propõe são produtos de uma tentativa de recentrar África e o seu debate epistemológico na inteligência americana, particularmente na teoria literária, sociologia, história, arte, música e retórica. Afrocentricidade é, como veremos, um conjunto de princípios que nos deve guiar, assim crê Asante, como africanos se quisermos articular ou produzir conhecimento de natureza científica em qualquer área. Também como veremos, o seu «inimigo» declarado é a forma eurocêntrica de fazer ciência que predomina entre os afro-americanos. Mais do que uma filosofia, a afrocentricidade, por isso mesmo, é uma crítica ideológica e uma sociologia do conhecimento com elementos de filosofia entrementes. Vejamos em detalhes. A afrocentricidade como corrente de pensamento nasce na América do Norte e é liderada por Molefi Asante, o seu principal mentor. Este pertence à Temple University onde lecciona. Porém, segundo ele próprio, os pressupostos históricos para o florescimento da afrocentricidade como uma linha epistemológica estão ligados às figuras de Cheikh Anta Diop e Martin Bernal. Para Anta Diop a origem e o berço da humanidade assim como a emergência da civilização do mundo devem ser procurados em África. O Egipto é a mãe da civilização mundial. A civilização egípcia é especificamente negra. Ela evoluiu e floresceu de tal forma que se tornou reconhecível como a base do humanismo de toda África. Por conseguinte, a África não é só a origem da civilização como também o berço do desenvolvimento social, cultural, científico e político. Anta Diop aponta como sendo características comuns de toda África o matriarcado, a espiritualidade, o humanismo e o pacifismo. Estas e outras ideias estão plasmadas no livro The African Origin of Civilization. Nele repisa que seria no Egipto e na África Antiga, sobretudo na cultura faraónica, onde os africanos do século XX podem encontrar a sua inspiração e o

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suporte político, cultural, científico e sobretudo psicológico que necessitam para lutarem pelo desenvolvimento do seu continente. Ainda segundo ele, o lugar que a Grécia ocupa na história do pensamento científico filosófico, deveria ser ocupado pelo Egipto Antigo12. No entanto é Martin Bernal, de origem britânica, que desenvolve e aprofunda a tese diopiana de recentramento do Egipto Antigo na História Universal das civilizações. Bernal publica, em 1987, o primeiro dos dois volumes do seu livro Black Athena. Bernal distingue o que chama de «modelo antigo» do «modelo ariano» da interpretação da história da antiguidade grega. No modelo antigo de interpretação da história nota-se a grande influência das culturas africanas e asiáticas, principalmente a egípcia e a fenícia, na civilização grega13. No entanto, como resultado de uma reinterpretação racista da história, o modelo antigo é substituído pelo modelo ariano. Este modelo, segundo Bernal, teve duas fases. Na primeira, desde a revolução francesa até a primeira metade do século XIX, os historiadores ingleses, franceses e alemães, mas sobretudo os últimos (por isso que ele denomina de ariana), esforçam-se por mostrar uma Grécia romântica, com ideias originais, autónoma, criativa, dinâmica, mas sobretudo branca. É assim que, deliberadamente, académicos europeus de renome elaboram uma historiografia onde a Grécia é o berço da civilização universal e do pensamento filosófico 14. O mesmo autor afirma que, a partir (12)

Hountondji, no livro The Struggle for Meaning, conta uma história interessante acerca de um dos encontros que teve com Cheik Anta Diop. Diz ele que, numa conferência em Copenhaga, depois de ele ter apresentado uma comunicação sobre a crítica unanimista que fez à etnofilosofia, Diop, que era um dos assistentes, levantou-se da cadeira e foi ao quadro onde apresentou, em detalhes, as origens egípcias de todo o quadro conceptual e da temática filosófica na Grécia Antiga. (13) Bernal escreve sobre o modelo: “The Ancient Model in Antiquity treats the attitudes of Greeks in the Classical and Hellenistic periods to their distant past. It considers the writings of authors who affirmed the Ancient Model, referred to Egyptian conquest of the Argolid and Phoenician foundation Thebes” (1987, 22). (14) Referindo-se ao resumo sobre o capítulo Hellenomani I: The Fall of the Ancient Model, Bernal escreve: «Although racism was always a major source of hostility to the Ancient Model and became a mainstay of the Aryan one, it was matched in the 18th and early 19th centuries by an attack on the significance of Egypt from Christians alarmed at the threat of the religion or ´wisdom` of Egypt. These Christian attacks challenged Greek statements about the importance of Egypt, and boosted the independent creativity of Greece in order to diminish that of Egypt.” (Bernal 1987, 31).

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sensivelmente de 1880, o modelo ariano entra na sua segunda fase, a «extremista». Nesta, no seu entender, há «negação sistemática» de qualquer influência africana ou asiática na civilização grega. Segundo Bernal, entre 1880 e 1945 dá-se a final solution, a solução final. Por esta data, mais exactamente em 1980, são publicados dois artigos pelos alemães Julius Beloch e Salomon Reinach nos quais reclamam abertamente que a civilização grega era puramente «europeia», enquanto os fenícios, não teriam contribuído em nada para o desenvolvimento da cultura helénica (Bernal 1987, 34).

A Afrocentricidade de Asante Molefi Kete Asante, cujo nome original cristão é Arthur Lee Smith, dedica uma boa parte da sua obra teórica para fundamentar gnoseológica e axiologicamente a ideia da afrocentricidade. Entre várias publicações onde ele expõe a afrocentricidade destacam-se The Afrocentric Idea (1987, reeditada em 1998), e Kemet, Afrocentricity, and Knowledge (1990). Em seguida, vamos expor a obra de Asante baseando-nos na ‘conversa’ em volta destas duas obras, que julgamos fundamentais. Aliás, a retórica de Asante em todas as suas obras é tão repetitiva e circular que, consideramos, bastam estas obras para ter uma ideia precisa da sua teoria. Para uma melhor compreensão, vamos expor a teoria de Asante dividindo-a em três partes. Na primeira parte apresentamos um Asante que quer desconstruir os «mitos eurocentristas» dos quais os intelectuais africanos, segundo ele, devem livrar-se por meio do que ele rotula por «acções libertadoras»; na segunda parte apresentamos a essência da afrocentricidade entanto que corrente epistemológica; e na terceira parte procuramos mostrar a recepção desta corrente pelos intelectuais africanos, a ‘passagem do testemunho’, da África Austral, particularmente da África do Sul, e como estes intelectuais adoptam a afrocentricidade como fundamento para a chamada filosofia ubuntu. O objectivo central da exposição que vamos fazer da teoria de Asante é o de mostrar o caminho que ele percorreu para aquilo que ele ostensivamente chama de «crítica radical» à tradição eurocêntrica

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da prática científica, tradição esta que ele classifica de ser «ideologia». Esta ideologia eurocêntrica, nas suas palavras, manifesta-se numa máscara universalista nas áreas da comunicação intercultural, retórica, filosofia, linguística, psicologia, educação, antropologia e história. Segundo Asante, a sua crítica é radical no sentido de que ela sugere uma «viragem», ou seja, uma perspectiva alternativa nas formas de interpretação até aqui disponíveis: it is about taking the globe and turning it over so that we see all possibilities of a world where Africa […] is subject and not object, ou seja, trata-se de levantar o mundo e rodá-lo de tal sorte que vejamos todas possibilidades do mundo em que África é o sujeito e não mais o objecto. Por outras palavras, Asante pensa que, ao fazer esta reviravolta, não só providencia uma perspectiva de interpretação radicalmente nova dos fenómenos, como também cria uma outra realidade (Asante 1998, 1p). Para consubstanciar a necessidade desta crítica radical, Asante parte da ideia de que a produção teórica actual, muito particularmente nas ciências sociais, está poluída por mitos espalhados pelo eurocentrismo, tanto mais que a maioria dos cientistas sofrera uma espécie de lavagem de cérebro eurocentrista durante a sua formação nas universidades e outras instituições de ensino. Essa «lavagem do cérebro» teve como resultado a criação de certos mitos que não os permitem ver para além das lentes eurocêntricas. Os «mitos euroncentristas» preponderantes nas práticas científicas são, segundo Asante, o universalismo, a objectividade e as tradições clássicas (Asante 1998,10). Esses mitos fazem com que uma boa parte de teóricos africanos, e também europeus, continuem a usar formas e métodos «provincianos» de interpretação da realidade fenomenológica, sem, no entanto, eles próprios estarem conscientes disso. Daí que a afrocentricidade deva, primeiro, tratar de desmistificar esta forma tradicional de interpretar os fenómenos naturais, políticos, sociais e culturais, para depois apresentar uma teoria radicalmente diferente e nova, ou seja, a afrocentricidade. Iniciemos a leitura do chamado mito do universalismo. Este consiste, em poucas palavras, em produzir interpretações ‘científicas’ sobre os fenómenos da realidade com uma pretensão originária de estas interpretações serem válidas para todas as regiões culturais, portanto universais. Para Asante, os cientistas de todas as áreas, são,

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no fundo, uma espécie de produtores de diferentes interpretações dos fenómenos naturais, sociais, políticos e culturais. Assim, estes produtores de interpretações científicas, vestidos de lentes eurocentristas por defeito de formação universitária também eurocêntrica, produzem-nas a partir de uma pretensão universalista e, por isso, não estão dispostos e nem estão em condições teóricas de ‘localizar’ as suas interpretações. O termo «local», com o qual nos vamos confrontar mais adiante, é muito importante para compreender a teoria afrocêntrica de Asante. Para já basta indicar que o termo «local» serve para designar os referenciais culturais, a partir dos quais, segundo Asante, qualquer cientista deve produzir as suas propostas de interpretação da realidade e dos seus fenómenos. Para Asante, o mito do universalismo eurocêntrico manifesta-se em diversas áreas tais como nas metodologias de pesquisa, na filosofia, na história, na literatura, etc. Nos métodos de pesquisa científica, o mito do universalismo manifesta-se na tradição positivista. Para Asante, o positivismo é uma «situação intelectual terrivelmente triste» para os cientistas. O positivismo, para o nosso autor, é uma posição filosófica iniciada por Saint-Simon e Auguste Comte no século XIX e que ainda até hoje perdura como o modo predominante de interpretação da realidade e é na base dos seus postulados que qualquer interpretação nova deveria ser classificada por ‘científica’. Positivismo significa, para ele, simplesmente o que existe e que deve ser aceite tal e qual como é; é uma posição que nega ir para além do dado, para um patamar desconhecido como é o caso das posições inspiradas pela teologia ou pela metafísica (Asante 1990, 3). O positivismo fechou as portas às interpretações alternativas da realidade fenomenológica; ele implantou uma visão de sociedade tão mecânica e estruturada que todo o conhecimento produzido no contexto actual, para que ele seja considerado verdadeiro, ético e científico, tende a ser controlado e dominado por interpretações positivistas. Qualquer asserção, para ser considerada como de natureza científica, precisa de poder demonstrar com factos ou provas, sem os quais cai fora do círculo científico. A esta forma positivista de interpretação de factos e de administração da prova, não interessa o «local cultural», a partir do qual o cientista produz as suas interpretações, observa Asante a partir da sua posição afrocêntrica.

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Assim, por insistir numa posição universalista, o positivista não reconhece, e nem está disposto para tal, a posição ou o «local cultural» eurocentrista em que se encontra submerso. Desta forma, não admira que, devido a sua tendência de universalizar a validade das suas interpretações, o positivista tenda a não reconhecer o discurso do ‘outro’, ou mesmo a excluir todo o discurso científico que aparentemente esteja fora dos seus princípios. Por isso, o discurso positivista pode ser considerado como sendo hierárquico, na sua essência. Asante defende que esse discurso hierárquico (a «retórica») positivista possui três características: controla o território da retórica através da definição, estabelece ritos de iniciação auto-perpétuos e sufoca discursos opostos (Asante 1998,34). Estas três características emprestam ao discurso positivista uma natureza dominante em relação aos discursos de natureza diferente da sua. Asante acha que a definição tem um papel central na prática científica no contexto eurocentrista. Pois, segundo ele, o debate, naquele contexto, não pode ocorrer se os termos da comunicação (ou seja, as definições) não estiverem claras entre os arguentes. Em outras palavras, a definição cria a ordem no discurso, na argumentação. Mas, prossegue Asante, o estabelecimento de uma ordem na base da definição pode criar um curto-circuito para posições opostas, a não ser que estas, por alternativa, criem condições para modificarem os seus próprios termos para entrarem no debate. Uma outra alternativa de as posições alternativas ou oposições poderem ser incluídas no debate, portanto não serem excluídas, é a de manipularem os padrões de comunicação para este efeito. Assim, ao exigir a definição dos conceitos em causa, o positivista não só estabelece a ordem segundo a qual se hierarquizam as interpretações diferentes, como também determina os termos da discussão, o seu resultado assim também concentra nas suas mãos o poder. As condições epistemológicas para o seu domínio sobre os outros discursos estão, logo à partida, controladas, conclui Asante. Uma vez a ordem que o discurso deve tomar estar já estabelecida, também estão automaticamente criadas as condições para que a perspectiva eurocêntrica da ciência tenha o poder de «exterminar» as outras perspectivas. Mas este poder, na opinião do nosso autor, não é visível à vítima, enquanto esta continuar como vítima. Assim actua o discurso da definição: it prevents choice, evita a

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escolha. A imposição de uma visão e o extermínio do outro deve ser confrontado a partir dos seus fundamentos teóricos, conclui Asante (1998, 35). O estabelecimento de ritos de passagem que se auto-perpetuam (self-perpetuating initiation) é a segunda característica da retórica científica eurocêntrica. O que isto quer dizer? O cientista é iniciado na sua ‘educação’ com a obrigação de ter um cometimento com a verdade que se lhe apresenta como algo fixo, sagrado. Ele é obrigado, assim, desde logo, a aderir a uma determinada posição intelectual. Assim, as regras do discurso estão formalmente preestabelecidas para qualquer nova pessoa que quer iniciar uma carreira científica, independentemente da natureza da sua mensagem. Aquele que não obedecer às regras (portanto, sendo percebido que está a faltar à verdade) será imediatamente eliminado dos locais dos discursos científicos e do direito de emitir mensagem que tenham aquele poder. Este está condenado a ficar na audiência, para sempre calado, mesmo que grite. E, supondo mesmo assim que o nosso iniciante na ciência continue a gritar da audiência para o pódio, o iniciado que não obedeceu às regras da verdade (entendida no sentido eurocêntrico, é claro), a sua posição será sempre hierarquicamente inferior dentro da ordem do discurso preestabelecido. O rito de iniciação científica é estrutural e não individual; ou seja, explica-nos Asante, pode ser possível que um iniciante da audiência grite tanto que consegue fazer passar os seus pontos de vista ou teorias como sendo verdadeiros e, assim, ele passar para o lado do pódio, será desta feita a sua vez de impor as suas regras às outras vozes opostas. Este, outrora iniciado nos ritos, superou a pessoa ou as pessoas, mas não a estrutura do discurso. Aqui se vê, mais uma vez, a razão pela qual Asante acha que a crítica ao eurocentrismo deva ser radical, isto é, deve incidir sobre a estrutura da retórica, e não sobre os indivíduos. Daí que seja importante ao iniciado da audiência, neste caso ao afrocentrista, perceber que a sua vantagem estrutural lhe é proporcionada se ele discursar a partir da sua localidade, ou seja, do seu «local cultural» (culturalidade). Este não deve cair na «armadilha» do positivista em querer discursar a partir da sua posição porque nunca romperá o círculo, a ordem. Se não romper o círculo estabelecido, o nosso iniciado irá sempre discursar a partir de uma posição africanista e não afrocêntrica. Sobre a diferença

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que Asante faz entre o discurso científico africanista e o discurso científico afrocêntrico, uma diferença que parece crucial para ele, voltaremos mais adiante. Por agora basta adiantar que o africanista é aquele que discursa sobre a África usando lentes do eurocentrismo enquanto o afrocentrista o faz a partir dos valores que o seu «local cultural» lhe permite fazer. A terceira característica do discurso hierárquico positivista, segundo Asante, é a de sufocar os discursos opostos (stifling of opposing discourse). Para percebermos esta característica deve retomar-se o que foi dito anteriormente, nomeadamente, o facto de a obediência ao rito de iniciação por parte do iniciado (para evitar ser excluído) ser uma questão estrutural e não individual. Assim, partindo desta característica, Asante explica que em todas as instituições a posição no poder não é permanente; daí que elas procuram garantir a sua existência permanente através da «denúncia a todos os pontos de vista que se opõem através da confrontação directa, ou através de subterfúgios (ataques indirectos) ou através da criação da ilusão de que a oposição tem canais de expressão abertos, canais que, na realidade, são controlados pela ordem estabelecida» (Asante 1998,36). Em muitos casos o discurso científico dominante pura e simplesmente procura ignorar o outro, isto é, argumentando que não existe oposição, que o que está em causa é simplesmente ‘uma questão de perspectiva’ e não de essência. Não admira, pois, que o discurso eurocêntrico na historiografia tenha silenciado ou ignorado o outro, declarando-o simplesmente como «primitivo». Nesta ordem de ideias, o primitivo está hierarquicamente numa ordem inferior, o que quer dizer que não é capaz de reconhecer e discursar em torno da verdade, não cumpre com os ritos de iniciação científica e que o seu discurso, no fundo, não é oposto ao moderno, mas simplesmente atrasado historicamente (pré-histórico). Para além disso, como na visão eurocêntrica a prossecução da verdade é uma questão moral, então o primitivo, por não ter a capacidade desenvolvida de reconhecer a verdade, aparece sempre como um amoral. Assim, a sua inferioridade se perpetua, enquanto continuar a operar no círculo e na ordem estabelecida pelo mito da universalidade do discurso científico espalhado pelo eurocentrismo. A liberdade do discurso denominado por «africanista» só será assim possível se este

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romper o cerco da ordem do discurso e montar uma estrutura que permita também ele discursar a partir do seu «local». Asante dá-nos vários exemplos de leitura onde, segundo ele, se aplica o mito do universalismo eurocêntrico. Na literatura, por exemplo, o mito do universalismo está patente nos escritores de origem ocidental, porquanto que, quando escrevem, tendem sempre a considerar o romance como uma forma universal de expressão, esquecendo que este não existe em muitas culturas como a forma representativa predominante (Asante 1998,3). Um outro exemplo dado por Asante é no âmbito do discurso feminista moderno. Segundo ele, predomina nesta esfera a fundamentação marxista sobre as desigualdades sociais com base no sexo; pois, segundo o marxismo, as desigualdades entre o homem e mulher são produto da ordem estrutural capitalista-industrial onde uma força de trabalho mais flexível (os homens) é que tem maior capacidade de criar capital do que as mulheres. Esta explicação, embora considerada parcialmente correcta, segundo Asante, peca por tentar impor-se como a única explicação universal para as desigualdades entre ambos os sexos. A crítica radical usando uma perspectiva afrocêntrica seria, na óptica de Asante, olhar para este fenómeno a partir de valores tradicionais africanos como a harmonia, a justiça, a equidade e não a partir de uma perspectiva de oposição dos contrários, da dicotomia entre o homem e mulher, como o marxismo pretende propor de uma forma universalista etnocêntrica. Se alguma coisa perdeu-se, recorda-nos Asante (Idem, 8), essa coisa é a capacidade de evocar a centralidade cultural tradicional africana na análise dos fenómenos sejam de natureza social, sejam de natureza política; isto é, teríamos sido desviados da nossa própria plataforma básica que é o nosso espaço cultural. Esta plataforma darnos-ia a possibilidade de mostrar que a afrocentricidade tem tanto de validade de explicação ou de interpretação dos fenómenos como a tem a forma de interpretação eurocentrista, incluindo, por exemplo o marxismo. A segunda «acção libertadora» da afrocentricidade, a qual Asante faz repetidamente questão de sublinhar, é a desconstrução do mito da objectividade, mito este espalhado e defendido pela ciência e exportado pelo ocidente para os outros locais culturais. São dois pressupostos básicos que estão por baixo da chamada «objectividade

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científica». O primeiro diz respeito à existência, no acto ou no processo do conhecimento, de dois elementos para que haja a produção do conhecimento científico: o sujeito e o objecto de conhecimento, o cognoscente e o conhecido; o segundo pressuposto, e é este que interessa a Asante, é que o sujeito «mantém uma distância mental» do sujeito de estudo (Asante 1990, 111). Essa distância que o sujeito deve a todo custo manter é a fonte da objectividade. O cientista deve no máximo evitar que preconceitos, ideias preconcebidas, crenças suas e outros ídolos interfiram no processo do conhecimento. Para o nosso autor, porém, este segundo pressuposto constitui uma ilusão. Porquê deveria um pesquisador querer manter esta distância mental com o seu objecto de análise? Esta separação ou distância, embora desejável na perspectiva metodológica afrocêntrica, ela porém deve ser vista como sendo «transitória». Talvez o termo apropriado não seja distância mas sim «descentramento», adianta Asante. Mesmo nos próprios eurocentristas, quando lidos atentamente, notase quase sempre existirem valores por trás dos seus textos. O problema central reside no facto de o eurocentrismo tentar fazer com que a objectividade científica seja considerada um critério universal para a prática científica, numa situação em que a própria ciência tem dificuldade em enquadrar, em interpretar e sistematizar os dados empíricos de realidades culturais diferentes, especialmente como a africana. De facto toda a ciência é um conjunto de asserções com a pretensão de serem objectivas. Ou seja, toda a ciência reduz-se a uma questão de discurso, no qual o mensageiro (o cientista) tenta fazer passar a sua mensagem como sendo verdadeira e objectiva. No entanto, segundo Asante, citando Daudi (Cfr. Asante 1998,39), todo o conhecimento é político, não porque o conhecimento tem sempre consequências políticas ou possa ser aproveitado politicamente; é simplesmente porque ele é sempre gerado sob determinados condicionalismos sociais e políticos, ou seja, num contexto de poder ao qual o cientista não se pode excluir. Qualquer acção humana, incluindo a ciência, é um acto político, ou melhor, é politicamente condicionado. De facto, como vimos no ponto anterior, o eurocentrista usa um discurso hierarquizante que tem como fim controlar os outros discursos vindos da periferia, sob a capa do universalismo da objectividade.

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Asante (1998,24) resume dizendo que, numa leitura mais atenta, o que muitas vezes se considera objectividade, não é mais do que uma «subjectividade colectiva europeia». A terceira «acção libertadora» que o afrocentrista deve encetar é a destruição do mito eurocêntrico das civilizações clássicas do pensamento, da Grécia Antiga em particular. A tese básica desta acção libertadora pode ser resumida da seguinte forma: a humanidade desenvolveu-se primeiro em África e é por isso que os africanos têm uma espécie de prioridade cosmológica e cronológica sobre os outros grupos humanos; a primeira civilização do mundo é a egípcia, a que Asante denomina de Kemet. Esta é uma civilização especificamente negra, porque os seus fundadores teriam vindo do Sul do continente; a cultura civilizacional egípcia é a base para fundamentar hoje a existência de uma única cultura dos africanos, isto é, Kemet forma o referencial para a esfera de valores espirituais e da tecnologia comuns de todo o continente; de facto, segundo Asante apoiando-se em Diop, as invenções egípcias devem ser a fonte para compreender o desenvolvimento científico da Grécia Antiga e, desta forma, de toda civilização contemporânea; a unidade espiritual e cultural da África de hoje deriva da fonte inicial do Egipto Antigo e estende-se para os negros na diáspora nos Estados Unidos. Asante pensa que a propagação da cultura egípcia para o resto da África tenha sido uma «difusão», enquanto a propagação da cultura e do saber da África para a Grécia Antiga e para a Europa tenha sido um «roubo». Consequentemente, segundo o mesmo autor, ao longo da história houve conspiração por parte das academias do Ocidente para sistematicamente apagar-se da história do pensamento e esconder a contribuição dos académicos africanos no que diz respeito aos saberes e valores, ou então, quando não puderam esconder, optaram pela inferiorização e marginalização desses saberes e valores. Por isso, para Asante, é importante reapropriar as fontes originais dos saberes e dos valores africanos para ganhar forças e inspiração na luta contra todas as tendências de marginalização e de subalternização do lugar que África ocupa na história universal do pensamento. Ele fundamenta a necessidade de encarar a afrocentricidade como sendo principalmente uma espécie de «atitude» básica para resgatar e reavaliar a experiência da África com a (sua) história universal e com o pensamento no seu geral.

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O que é o Egipto afinal? Como se justifica que ele seja o berço da civilização humana e não a Grécia Antiga? Porquê se torna importante hoje para os afrocentristas sublinhar a necessidade de voltar à Grécia para se afirmar como corrente? Vamos abordar estas questões a partir do livro Kemet, Afrocentricity and Knowledge de Molefi Kete Asante. Em termos gerais a obra Kemet está dividida em três partes: «interiores», «anteriores» e «exteriores». Na primeira parte (interiores) Asante expõe as referências intelectuais da teoria afrocêntrica; é onde Asante expõe os fundamentos — daí o termo «interiores» — cosmológicos, epistemológicos, axiológicos, estéticos, políticos e metodológicos da afrocentricidade. Discutiremos estes aspectos mais adiante. A seguir, na segunda parte dos anteriores, são expostas as civilizações antigas africanas, com o Egipto no centro das quais, para mostrar os antecedentes da afrocentricidade. Na parte final (exteriores), Asante dedica-se a analisar particularmente o problema da liberdade do negro, a partir de uma perspectiva da educação afrocêntrica. Para compreender o Egipto e o seu papel na teoria afrocêntrica de Asante, vamos dialogar com os «anteriores». E, como tivemos ocasião de referir anteriormente, esta ‘tese’ de Asante em re-centrar o Egipto na história clássica é uma continuidade do que Anta Diop e Martin Bernal já fizeram. O que é de facto novo em Asante é a fundamentação mais filosófica que este empresta à sua escrita sobre o Egipto: «A origem de toda a especulação africana na religião, arte, ética, costumes morais e estética são derivadas do sistema de conhecimento encontrado no Egipto Antigo. E até certo é esta origem, mais do que a grega, que tem um impacto mais profundo no mundo ocidental», defende Asante (1990,47). O legado dos egípcios ao mundo é, pois, muito mais profundo do que a história nos ensina. Em primeiro pode notar-se ao nível dos principais conceitos que usamos hoje. Se por um lado os conceitos como meteorologia, biografia, biologia, geologia, aeronáutica, astronomia, filosofia, teoria, comédia, etc. são geralmente derivados, na sua maioria, do seu uso na Grécia Antiga, também não é menos certo que a história da ‘dívida’ desta Grécia para com a língua usada na civilização antiga faraónica está pouco contada. Segundo Asante, a

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herança egípcia penetrou na que hoje se chama de civilização ocidental, penetração esta que se faz através da Grécia, particularmente nos campos da literatura, da oralidade, da poesia, dos rituais de enterro dos mortos, dos mitos da procriação, etc., isto tudo para além do campo da história das ciências e da tecnologia. Quem pois não conhece as famosas pirâmides (ou, no mínimo, nunca ouviu falar deles) e os templos do vale dos reis que orgulham todos os africanos hoje? Também, como africanos, sentimos o ritmo original inspirado pelo Egipto nas danças e na música, na literatura e até na natureza calma e respeitosa da interacção entre os africanos quando estão em conversa e em outras circunstâncias. Da mesma forma os costumes como os festivais, as cores, a vibração, o apelo à dieta alimentar, o movimento e tudo isto que fazemos para nos comunicarmos com os deuses, faz-nos recordar as longas cerimónias ao longo dos bancos do rio Nilo. Nas ciências o Egipto, contrastando com os bárbaros do Este europeu, é o berço na arte, astronomia, geometria e filosofia, particularmente da ética. Os povos do Kemet parecem ter pensado em todos os aspectos da actividade humana, pois devemos a eles não só as bases da ciência como também os pensamentos sobre formas de organização social como a monarquia e os respectivos ritos éticos, religiosos, educacionais, etc. que envolvem este tipo de organização política. O legado do Egipto estende-se até ao campo da simbólica e de ícones como sinais supremos. Enfim, remata-nos Asante, há uma «misteriosa perfeição e beleza» que devemos ao Egipto Antigo e que «estampa» o que chamamos hoje a civilização africana. O que a Grécia explorou mais do Egipto foi porém o campo de ideias, particularmente o das ideias filosóficas. Começa-se, por exemplo, pelos nomes dos deuses gregos que foram ‘emprestados’ do Egipto, seguindo-se também os conceitos, as conexões entre os conceitos e até o ambiente, a atitude e o temperamento mítico-reflexivos que acompanham as sessões de debate destes temas mitológicos. O que é que, segundo Asante, teria contribuído para que a Civilização Egípcia se tornasse tão central para as civilizações mundiais posteriores? São dois factores naturais: a água que corre no rio Nilo e o sol. Estes dois factores, no entender do nosso autor, estão no centro da compreensão das áreas como a cosmologia, a medicina, a religião, a organização social e naturalmente a agricultura.

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Graças ao rio Nilo o Egipto se tornou uma civilização. Este rio atravessa hoje vários países e culturas, como sempre o fizera. As áreas que o rio atravessa sempre transmitiram um senso de «segurança», «estabilidade» e «optimismo» ao mundo antigo. A atmosfera e a geografia ao longo do Nilo providenciaram um isolamento apropriado para as reflexões. Os grandes projectos de irrigação, ou seja, os projectos de «gestão da água», podem ser considerados como os primeiros projectos nacionais para o desenvolvimento da agricultura numa escala maior. Não admira pois que se tenham desenvolvido ciências como a matemática, a geometria juntamente com a agrimensura e a estética em volta do Nilo. Por sua vez, o sol também joga um papel importante para a compreensão da Civilização Egípcia: a sua intensidade, o calor, a luz, são relacionadas directamente não só com as actividades económicas agrícolas e de transporte ao longo do rio, mas também com a cosmologia, construção de templos, medição do tempo, posições éticas, a justificação dos rituais, etc. O culto ao sol, realizado na Heliópolis, «Cidade do Sol», ocupava o centro dos rituais egípcios. Em volta das cerimónias ao sol (o nascimento, a sua ‘viagem’ pelo céu durante o dia, o entardecer e o pôr-do-sol, a noite, a intensidade da sua luz, etc.) estruturaramse simbologias diferentes: cores, estátuas, hieróglifos, hierarquias paroquiais, enfim, todo um sistema religioso e simbólico que daria azos ao desenvolvimento de pensamentos filosóficos sistemáticos. Todos estes rituais e o que simbolicamente representam estão minuciosamente colectados por Asante na perspectiva de demonstrar a precedência do Egipto às civilizações actuais (Cfr. Asante 1990, 54 pp.). No entanto fica a questão: para que nos serve hoje ressuscitar estes ‘fantasmas’? Segundo Asante há duas razões básicas para que o afrocentrista permita-se a este ‘recuo’ na história: a reconfirmação (reconfirmation) e o desligamento (delinking). Por reconfirmação, Asante quer dizer que todo o estudioso ou cientista africano deve comprometer-se intelectualmente com a ideia diopiana da unidade do pensamento africano; especialmente ele deve mostrar o seu comprometimento para com os símbolos e conceitos básicos surgidos no Egipto Antigo da mesma forma como o faz qualquer «filósofo» formalmente educado que começa por aprender a filosofia ocidental a partir dos conceitos e em debate com os considerados «primeiros filósofos» da Grécia

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Antiga. Por outras palavras, Asante exige que todo o pesquisador africano ‘confirme’ a sua aderência à afrocentricidade abordando qualquer tema que estiver a pesquisar usando, como sua fundamentação teórica, o arsenal intelectual oferecido pelo Egipto Antigo. O Egipto deve ser a sua fonte a partir da qual deriva todo o pensamento e comportamento. O desligamento significa, por seu lado, que estudos de fenómenos e processos que ocorrem em África ou nas regiões onde vivem africanos na diáspora, o estudo principalmente da história da África e a abordagem de todas as ciências deixam de ser simplesmente apêndices ou anexos do projecto intelectual moderno eurocêntrico, isto é, cessam de ser periféricos e marginais para passar para o centro. É preciso ‘desligar-se’ do centro, melhor do que se considera como centro da produção científica moderna — o Ocidente. As duas razões para iniciar qualquer estudo a partir da «nossa» civilização clássica africana estão interligadas e podem aumentar rapidamente o auto-conhecimento da nossa história, aumentando assim a nossa auto-estima como africanos, sujeitos do nosso passado e presente. Ambas, ou seja a reconfirmação e o desligamento, constituem a condição para a recuperação da dignidade dos africanos, sobretudo o orgulho sobre a nossa auto-inscrição na história da humanidade, somando e inventariando os aspectos positivos e as conquistas dos africanos nas diversas áreas da ciência. Asante dá, em seguida, exemplos da aplicação da re-confirmação e do desligamento nas diversas áreas das ciências, dando particular ênfase à linguística, literatura («oratura») e mitologia/filosofia. É nestas que Asante pensa ser o lugar onde os africanos podem buscar os fundamentos para a sua auto-inscrição positiva na história intelectual; ou seja, daquilo que ele chama de «presença africana na história» intelectual (Asante 1990, 57). Assim, qualquer estudo sobre África deve ‘confirmar’ a sua afrocentricidade começando obrigatoriamente pelo estudo na língua do Egipto Antigo, à semelhança do que acontecia com o estudo do latim em épocas anteriores que era obrigatório, especialmente para quem quisesse estudar as humanidades. Assim se deve proceder na astronomia, geografia, história, e assim por diante. Só desta forma é que poderá configurar-se, a partir da sua origem e fundamento, um quadro conceptual afrocêntrico que seja válido para ser aplicado no resto das ciências. Esta parece ser, quanto a nós, a

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contribuição de Asante para o debate que, no continente africano e entre os filósofos africanos, ficou conhecido por «descolagem conceptual» iniciado por Crahay. Sobre esse voltaremos mais tarde no último capítulo. Para já basta dizer que Asante confunde língua e linguagem, pois, quanto a nós, para filosofar ou fazer ciência não importa em que língua se faz. Por seu lado, o desligamento deve começar por desmistificar e depois por recentrar o Egipto na história. É preciso desmistificar, por exemplo, o mito de que a Grécia é o berço do saber universal mostrando como muitos sábios gregos tiveram o ímpeto de viajar para o Egipto porque consideravam, naquela altura, este território como a fonte do saber e do conhecimento. E a história está repleta de exemplos de helénicos e persas que atravessaram o mar para serem iniciados nos templos egípcios em diversas matérias. Entre esses sábios contam-se figuras como Homero e Orfeu, mas também Tales de Mileto, Pitágoras, Solon e Platão. Tales, por exemplo, teria aprendido a astronomia e a geometria no Egipto Antigo. Ao reescrever a história devolvendo o lugar central do Egipto nela, estaremos ao mesmo tempo, segundo Asante, a lutar contra a tentativa dos historiadores antigos e modernos em dividir o continente africano e os africanos por isolarem o Egipto do resto da África; ou seja, defender que o Egipto é uma civilização clássica para os africanos como o é a Grécia para os europeus, é defender a unidade africana. Passemos agora para o segundo momento onde expomos a teoria da afrocentricidade. Na Afrocentric Idea Asante escreve que, na aventura da afrocentricidade, não se encontra sozinho: as suas fontes de inspiração são as ideias de David Walker, W.E.B. DuBois, Ida B. Wells, Cheikh Anta Diop e George James. Ele confessa que se considera «diopiano» (Asante 1998,xv). Mais adiante porém, ele reconhece que recebe um ímpeto teórico de Wade Nobres (que se concentrou no estudo do estado e condições psicológicas dos oprimidos) e de Maulana Karenga (que, segundo Asante, interessou-se em desenvolver teorias de reconstrução cultural dos oprimidos [Asante 1998, 20]). De facto, os livros de Asante são, em algum momento, demasiadamente recorrentes a estes autores. Afrocentricidade significa literalmente «colocar ideais africanos no centro de qualquer análise que envolve a cultura e o comporta-

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mento africanos» (Asante 1998,2). Assim, a afrocentricidade, para além de se ver a si própria (melhor, na óptica de Asante) como uma teoria de ciência, auto-inscreve-se também e sobretudo como uma fundamentação axiológica ao pretender, ostensivamente, ser a fonte de inspiração para guiar o comportamento e o estar-entre-outros dos africanos. O conceito de place15, local, posição cultural e epistémica a partir do qual o cientista argumenta, é central para a afrocentricidade, porque o local é o contexto no qual se situa o discurso. Na nossa interpretação, para Asante, o place é uma categoria que informa não somente a posição epistemológica mas também a posição ética do filósofo. O afrocentrista, diz-nos Asante, olha para o local a partir do qual o saber é produzido como o elemento fundamental pois é donde ele deve derivar e orientar todas as suas preocupações intelectuais. Todo o conhecimento é resultado da ocasião do encontro entre o seu sujeito e o place. Este deve dar-nos a orientação necessária para derivar dele os ideais e os valores que estarão no centro da pesquisa científica. Daqui deriva que o afrocentrista não deve questionar-se sobre a centralidade dos ideais e valores africanos, mas sim procurar dizernos de que valores se trata (Asante 1990,5). O que Asante propõe-nos aqui é que não devemos questionar a nossa identidade como africanos, porque este é um dado adquirido, mas, como africanos, devemos estar conscientes de que é a partir desta identidade que devemos começar a fundamentar as nossas preocupações científicas. Entretanto, reconhecer apriori a nossa identidade significa manifestá-la no que-fazer científico. E a forma de manifestá-la é usar códigos, paradigmas, símbolos, motivos, mitos africanos na escrita científica com o objectivo de reforçar a centralidade dos ideais e valores africanos no exame de dados que, no processo da pesquisa, recolhemos. Ou seja, o afrocentrista nota-se não só pelo apelo que faz aos valores africanos, mas sobretudo pelo uso consciente e sistemático da simbologia africana e outros elementos culturais. Ele demonstra ser africano, para além de anunciar sê-lo. Pensamos que estas são as estratégias centrais com as quais Asante pensa estar a desafiar o eurocentrismo: não pondo em debate a (15)

Num outro momento Asante emprega indiscriminadamente os conceitos «posição», «lugar», «espaço» e «termo» para significar o mesmo.

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identidade, e exigindo ao mesmo tempo a manifestação desta identidade através do uso consciente dos símbolos africanos disponíveis na história. A posição cultural e o uso dos seus símbolos para fazer ciência é importante, porque desta forma diferencia-se um africanista dum afrocentrista. Um africanista realiza «Estudos Africanos», ou seja, faz estudos sobre África usando lentes eurocentristas. Uma pessoa que estuda a economia da Tanzânia numa universidade qualquer não pode ser considerada como afrocentrista: de facto, esta pessoa é um economista com conhecimentos sobre a Tanzânia nos quais aplica pressupostos e métodos económicos aprendidos naquela universidade àquele país africano. Em contraste, um afrocentrista usa a experiência africana e os valores culturais que o place põe à disposição para analisar o mesmo fenómeno. Nesta perspectiva ele sempre estará em condições de encontrar «novidades» num local ou numa perspectiva científica na qual o africanista poderá dizer que não há nenhuma. Segundo Asante, os resultados conseguidos a partir de uma perspectiva afrocêntrica serão tão «profundamente revolucionários» no campo do conhecimento, que serão, de facto, novos conhecimentos (Asante 1990,8). A novidade, portanto, só pode ser possibilitada pelo uso das vantagens que o place nos dá. O place informa-nos sobre as questões cosmológicas, epistemológicas, axiológicas e estéticas que o afrocentrista deve assumir perante o questionamento de todos os fenómenos que pretende analisar. Nas questões cosmológicas deve ter-se em conta a posição dos africanos no mundo perguntando-se, por exemplo, qual é a posição das culturas africanas na confrontação com o cosmo? Quais são os símbolos da orientação africana no seu relacionamento com o cosmo? Esta forma de questionar levar-nos-ia a temas concretos da cosmologia tais como a questão das percepções sobre o lugar que a raça negra ocupa na sua relação com as outras, a questão das tendências comuns dos africanos em termos de percepções, atitudes e predisposições psíquicas (informadas pela cultura), a questões do género e libertação da mulher analisando as percepções sobre o lugar reservado para ela, a partir do place, e finalmente a questões que derivam da posição social objectivadas em classes sociais. Ou seja, se percebemos bem, o que Asante propõe-nos aqui, não é uma análise de questões cosmológicas

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colocadas pela filosofia clássica, que lhe parecem colocadas numa perspectiva demasiado universalista, mas sim localizá-las por formas a podermos tornar perceptível o lugar que os africanos ocuparam e ocupam no mesmo cosmo. A noção do place é aplicada também na axiologia. As questões axiológicas têm a ver com a noção da verdade. Aqui sublinha-se que a verdade não deve ser entendida no seu atributo de ter um carácter de universalidade «não localizada». Bem pelo contrário, ela deve estar submetida ao local, ou seja, às questões éticas uma vez que o que se considera verdade é sempre funcional ao contexto e não absoluta no sentido de universal. O que é bom é verdadeiro e não ao contrário. Portanto, a verdade submete-se ao bem. Portanto, um afrocentrista informa-se primeiro sobre o valor ético de um facto ou atitude para a comunidade, por exemplo. Ele não pergunta primeiramente se é verdadeiro, pergunta-se sim, se é bom ou belo. Localizar significa isto mesmo: dar primazia ao axiológico em relação ao saber em si. Em suma podemos dizer que, na perspectiva epistemológica, a intencionalidade da afrocentricidade, tal e qual o seu fundador Asante parece pretender mostrar, teria nascido da consciência sobre a necessidade, por um lado, de desmarginalizar os saberes produzidos por académicos africanos e da necessidade, por outro, deles próprios obterem o monopólio na produção dos discursos sobre o sentido e os significados da realidade histórica e contemporânea africana. Embora a afrocentricidade possa ser considerada, pela sua génese e essência, uma denúncia crítica contra objectivação exógena do lugar e estatuto do africano na História, de facto, como dissemos já anteriormente, ela é uma tentativa de subjectivação do ser africano. Isso percebe-se quando Asante exige que qualquer empreendimento científico ou análise que se queira fazer sobre os fenómenos africanos, para ser coerente, deve ser feito a partir das posições epistemológicas do afrocentrismo; assim também ele prescreve o que o cientista deve fazer e por onde deve começar a olhar o seu objecto de análise. Esta é a consequência do posicionamento científico informado pela afrocentricidade. Ainda na mesma perspectiva, isto é, o nível da ciência, o objectivo da afrocentricidade é fundar uma ciência baseada nos valores africanos, recorrendo a um quadro conceptual também genuinamente africano. Esta intencionalidade pode comparar-se com a alegoria da caverna

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platónica na qual a afrocentricidade é a luz que desacorrenta os africanos da contemplação eterna das sombras para a contemplação do mundo real, das ideias e da essência das coisas. Acredita-se que todos os africanos partilham elementos culturais comuns: «nós temos um único sistema cultural africano que se manifesta na diversidade [...] nós respondemos ao mesmo ritmo do universo, às mesmas sensibilidades cosmológicas, à mesma realidade geral da história» (Asante 1998,104). Explorar a possível passagem do testemunho da afrocentricidade para a filosofia ubuntu, que tem o seu epicentro na África do Sul e é abraçada por outros filósofos da África Austral não foi uma tarefa fácil. Há poucas evidências de ligações institucionais e pessoais entre os defensores da corrente afrocentrista americana e os cultores do ubuntuismo, embora a suspeita de ter havido contactos físico e intelectual entre eles não possa ser deixado totalmente de fora. Para já vamos explorar algumas ligações individuais destes contactos para, após termos olhado mais detalhadamente para a filosofia ubuntu, explorarmos as evidências conceptuais da passagem do testemunho.

Referencial IV: O Ubuntuismo Enquanto o afrocentrismo, que discutimos anteriormente, parece ser baseado numa negação-desconstrutiva (subjectivação-desconstrutiva) do outro ocidental (ou mesmo até estar obcecado com esta negação), parece-nos que o ubuntuismo ou a filosofia ubuntu, que vamos expor, aparece como uma afirmação-construtiva do eu (subjectivaçãoconstrutiva). Pensamos que a filosofia ubuntu-africana aparece com um horizonte teórico que dá uma certa consistência na justificação ontológica, epistemológica e ética para a subjectivação, ou melhor, para o movimento da subjectivação. Na nossa exposição usaremos indiscriminadamente os termos «ubuntuismo» e «filosofia ubuntu». A respeito da filosofia ubuntu como referencial devemos reconhecer, logo de início, uma fraqueza fundamental: a ausência de um texto ou de um conjunto de textos que se podem considerar como fundadores e incontornáveis para o seu estudo. Existe sim uma série de pequenos artigos, alguns que valem a pena ter em conta, porque

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tentam sistematizar o pensamento que passou a ser cunhado como «filosofia ubuntu», e, ao lado deste, existem também textos que só usam o termo ubuntu de forma ‘oportunista’ porque, digamos, sem muito conteúdo que se pode adjectivar de filosófico, mas é usado o termo a todo o custo. Parece-nos justo construir a nossa conversa em torno do ubuntuismo a partir de três pontos: as avenidas da sua divulgação hoje onde exploramos de forma ligeira as possíveis zonas de contacto com os americanos negros; em segundo lugar olharemos para as origens desta filosofia estabelecendo a sua ligação com o movimento da Consciência Negra de Steve Bico e em terceiro lugar ressaltarmos os aspectos essenciais ontológicos e éticos da filosofia ubuntu. Por último, esta jornada vai dar-nos o direito de fazer uma pergunta que nos parecerá óbvia: não será o ubuntuismo uma nova etnofilosofia? As origens do ubuntuismo não são muito fáceis em seguir. Como iremos constatar mais adiante, esta falta de claridade deve-se por um lado à grande mistura entre os propósitos dos movimentos de libertação na África do Sul em ressaltar as condições desumanas que os negros vivem no tempo do apartheid, a tentativa de se intelectualisar a necessidade de libertação do negro, a partir de uma base mais ou menos teórica que acabou por ser o movimento do Black Consciousness liderado por Steve Biko; e finalmente a possível influência que intelectuais sul-africanos tiveram durante o seu tempo na diáspora. Entre os intelectuais sul-africanos que expõem a filosofia ubuntu hoje, alguns o fazem de forma directa (Desmond Tutu, Ramose, Mkabela, Luthuli, Goduka, Moiketsi Letseka, Pitika Ntuli, etc.) e outros que o fazem de forma mais ampla e indirecta referindo-se mais aos valores ubuntu no contexto da filosofia africana (Higgs, Vilares, etc.). Embora de forma lateral, importa perguntarmo-nos sobre os possíveis contactos, individuais e institucionais, entre a Black Theology dos Estados Unidos, o Black Counsciesness na África do Sul e o florescimento do ubuntuismo no mesmo país. Num artigo publicado em homenagem aos 50 anos da morte de Steve Biko, Mbeki reconhece, embora sem o desenvolver, ter havido uma certa ligação «filosófica» entre o movimento do Black Counsciousness e os movimentos negros nos Estados Unidos (Mbeki 2007, 24).

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Também numa entrevista pessoal16 feita por nós a dois filósofos sul-africanos (Mkabela e Higgs) reconhecem ter havido «algum» contacto entre os sul-africanos e os negros americanos, embora mostrando-se muito relutantes em mostrar uma influência teórica muito directa. Ambos preferiram mostrar que a África do Sul moveu-se em direcção à filosofia ubuntu mais por pernas próprias do que pelos seus colegas americanos com mais experiências em teorizar a situação do negro. Mkabela, por exemplo, admite que tenham havido ligações mais pessoais tanto mais que o seu mentor PC Luthuli, que nunca pisara a América, escreve muito do Black Oriented Education e defende a necessidade de uma Philosophy of Life baseada em «valores africanos» tivesse lido muito Asante e outros. No entanto, segundo ela, «traços muito fortes» existiram com a América no seio daqueles que lá estudaram e viveram. Tal é o caso de Herbert Vilakazi, Maphalele e Pitika Ntuli. Estes, por volta dos meados dos anos noventa, dissertavam em público sobre a afrocentricidade e o renascimento africano. No entanto ela admite também ter havido muito contacto entre o movimento negro americano e o sul-africano somente após 1999, quando foi lançado o movimento do African Renaissance (à frente do qual estão Pitika Ntuli e Sbu Ndebele, ambos pertencentes antes ao Pan African Congress [PAC]). Este é o espaço político que precipita a divulgação do ubuntuismo como base de valores africanos para o renascimento de um continente inteiro. Os encontros do African Renaissance realizam-se anualmente com uma forte participação de negros americanos que cruzam o mar para conviver no seu continente-mãe com os outros «irmãos». É aqui onde os termos «passado comum», «valores compartilhados», «africanidade» «ubuntu» e outros vão preparando caminho para uma filosofia mais elaborada, sem no entanto deixar de ser política. A divulgação dos ideais africanos e da identidade toma maior celeridade no meio académico, quando Pitika Ntuli consegue através do African Renaissance, financiamento do primeiro número da revista (16)

A entrevista decorreu em Março de 2009 em Livingstone, Zâmbia, à margem de um seminário de pesquisa. O que se segue são informações colectadas destas entrevistas.

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científica Indilinga: The African Journal of Indigenous Knowledge Systems, cuja editora-em-chefe é ainda hoje a Q.N. Mkabela. Esta revista pretende ser a plataforma científica para a divulgação do conhecimento indígena africano e contém sempre uma série de textos que tentam aplicar os valores ubuntu nas diversas áreas tais como a política, a gestão empresarial, a pesquisa, etc. Entretanto, segundo Mkabela, o que teria contribuído originariamente para o posterior desenvolvimento do pensamento e dos representantes do que mais tarde seria o ubuntuismo foi o que ela chamou de Community of African Thought. Este grupo de intelectuais baseou-se na Zululand University, mais conhecida por Ngoye, uma universidade para os negros e localizada na profunda área rural do Kwazulu Natal. O grupo reunira no seu seio historiadores (Maphalala, Jabulani), sociólogos (p.e. Vilakazi), filósofos (p.e. Joe Ndaba) e estudiosos da religião. Estes chegaram a formar uma comunidade de pensadores em volta dos escritos de Luthuli. É pela pena de PC Luthuli que são escritos os livros Philosophical Foundation of Education e Black Oriented Education que, como dissemos, muito timidamente falam de ubuntu, mas falam de uma «filosofia da vida baseada em valores africanos». Mais tarde, o mesmo Luthuli escreve com Mkabela, nos finais dos anos noventa, o livro Towards an African Philosophy of Education, que mais valeu pela fundamentação que dá à educação a partir de valores africanos. Neste contexto revisita-se muito as teorias da Pedagogia do Oprimido de Freire. Vilakazi continuou a explorar também o pensamento africano em várias palestras e artigos, principalmente na sua vertente política da construção do estado democrático pós-apartheid a partir de uma combinação de valores africanos e do marxismo ortodoxo. Pitica era um activista cultural que casou muito bem os valores culturais com a luta política do movimento do African Consciousness. É importante realçar que este grupo, durante os seus estudos na era do Apartheid (isto é, princípios dos anos noventa), anda pela Universidade dos Zulus a ler livros «mais ou menos proibidos» de Asante, Odera Oruka, Ngugi Wa Thiongo e até mesmo a pedagogia da libertação de Paulo Freire. Particularmente a leitura deste último parece ter tido uma grande influência no grupo. A South African Society of Education (que mais tarde tentaram transformar o «South»

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com o adjectivo «Southern», mas sem muito sucesso), uma organização que reúne professores e docentes universitários negros, seria um dos palcos para a divulgação dos «valores africanos» através da educação. Embora os temas privilegiados não tivessem, à primeira vista, muito a ver com o ubuntuismo (a sua agenda era mais constituída por debates em torno do ensino em línguas maternas, educação multicultural, educação religiosa, currículo adaptado, etc.), foi este no entanto o primeiro palco de lucubrações de carácter filosófico em torno da educação do negro na base dos «seus» valores. Uma outra avenida de contactos com os americanos, que nos foi informada pelo professor Philip Higgs, pode ser explorada através do Institut for African Studies da Cornelia University nos Estados Unidos. Este instituto é dirigido pelo Professor Cassie Lomumba e se interessa muito pelo que se passa em África chegando a organizar «expedições» de negros americanos para a África do Sul. A acrescentar a este instituto está o papel da Internacional Society for Comparative Education, uma sociedade americana que se reúne duas vezes por ano e convida scholars da educação da África do Sul. Philip Higgs, professor na University of South Africa (UNISA), participara duas vezes nas reuniões. Moiketsi Letseka e Ramose, tendo sido este último, por algum tempo, chefe do departamento de filosofia, também fazem parte do grupo da UNISA. O Letseka estudara em Londres e Ramose, depois de cerca de 40 anos na Bélgica, acabou exilando-se no Zimbabwe onde publicara o seu livro-mãe African Philosophy through Ubuntu (1999). Sobre este livro conversaremos mais adiante. Este grupo da UNISA, graças aos meios que tem à sua disposição, convida professores de renome em filosofia africana destacando-se Kwasi Wiredu. Este visitou a UNISA em 2002 a partir dos Estados Unidos, Universidade de Michigan onde trabalha. Esta «geração» que descrevemos atrás é a que mais ou menos tenta, nas suas diversas versões, divulgar a filosofia ubuntu como parte da filosofia africana e universal. Entretanto não seria justo passar para os assuntos directos do ubuntuismo como filosofia sem antes celebrarmos e prestar tributo ao movimento e, de certo modo, pensamento da Black Counsciousness. Na verdade, foi este pensamento de Steve Bantu Biko que viria a inspirar politicamente e teoricamente os cultores do ubuntuismo, de que nos referimos acima.

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Biko nasceu em Tylden, Eastern Cape, África do Sul, em 1946. Por razões da sua intensa actividade política, mais concretamente na denúncia do apartheid como um regime de discriminação sistemática do negro na África do Sul, Biko não chega a terminar o curso de medicina que frequenta na Universidade do Natal, no seu campus de Wentworth em Durban, uma secção reservada para os estudantes ‘não-europeus’. No mesmo ano da sua matrícula (1966), Biko filia-se ao National Union of South African Students (NUSAS), uma organização então dominada por estudantes brancos. Frustrado com esta organização, Biko funda, com outros estudantes negros, a South African Student’s Organization (SASO), cuja missão primeira é combater o complexo de inferioridade dos estudantes negros. Em 1972 Biko abandona a Universidade e começa a trabalhar como activista para a Black Community Programs em Durban. No mesmo ano lança a Black People’s Convention (BCP) cuja bandeira é promover a consciência negra. Em 1973 Biko foi proibido falar em público, publicar artigos nos jornais e viajar para fora da sua aldeia natal. São os estudantes organizados em torno da SASO e da BCP que, em Setembro de 1974 e não obstante às dificuldades de articulação política naquele tempo, organizam uma manifestação conhecida por Viva Frelimo Rally que visa celebrar o reconhecimento da FRELIMO como Governo legítimo de Moçambique. A manifestação foi banida pelo ministro da justiça do regime do apartheid. Embora ela tenha sido realizada e culminara com a prisão de muitos líderes do BCP. Em Setembro de 1977 é preso e torturado até a morte. Este assassinato provoca fortes manifestações de repúdio ao nível nacional da África do Sul e internacional. A fonte espiritual do movimento Black Consciousness é, sem dúvida, a Black Theology (Teologia Negra); esta surge para dar conta da situação precária vivida pelos negros nos Estados Unidos da América. O representante proeminente desta teologia é James H. Cone, professor de teologia na Union Theological Seminary em Nova YorK que publica, em 1969, o livro-fundador da Black Consciousness intitulado Black Theology and Black Power. Em 1975 ele volta a publicar uma nova obra com o título God and the Oppressed. É através da University Christian Movement (Movimento Cristão Universitário [UCM]) da África do Sul que a Teologia Negra americana ganha maior inserção no seio dos negros sul-africanos com formação.

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A UCM foi formada em 1967, dando aos negros a grande oportunidade de se reunirem e debaterem sobre a sua situação de oprimidos e sobre as estratégias para a libertação. A UCM funcionava nas instalações universitárias. Em 1968, na conferência realizada em Stutterheim, a UCM consegue reunir 40 negros estudantes representando todos os campus universitários principais que albergavam estudantes negros. Steve Biko representa a SASO. Nos meados de 1970 a UCM designa Sabelo Stanley Ntwasa com o mandato especial de encorajar aos estudantes negros sul-africanos a estudarem e a escreverem sobre a Teologia Negra. O resultado foi a publicação, em Londres, do livro Black Theology: The South African Voice editado por Basil Moore em 1973. É neste livro que Biko contribui com o artigo Black Consciousness and the Quest for a True Humanity. Uma outra linha de inspiração intelectual da Black Consciousness constituem as leituras da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. Embora banido, este livro circula nos bolsos de estudantes que se emprestam e organizam-se em sessões de leitura e interpretação. A mesma sorte também mereceram os livros de Franz Fanon, particularmente Os Condenados da Terra e Peles Negras, Máscaras Brancas. Os estudantes negros interessavam-se por tudo o que pretendia analisar a situação do oprimido para poderem compreender e explicar a sua própria situação. O que é então a Black Consciousness, isto é, a «Consciência Negra»? É numa série de artigos compilados num livro chamado por I write what I like (na verdade foi sob este título que o próprio Biko publicou as suas crónicas entre 1969 e 1972) que encontramos a definição. Vamos concentrar-nos mais em três dos seus artigos, nomeadamente The Definition of Black Consciousness, Black Consciousness and the Quest of True Humanity e What is Black Consciousness? todos incluídos no livro mencionado. Biko começa por recusar a «tese» daqueles que ele chama por «brancos liberais» segundo a qual o maior problema da África do Sul é o sistema do apartheid e que, portanto, a sua «antítese» é uma posição de luta «não-racial». Biko acha que o não-racismo é uma definição ambígua. Para ele a tese, portanto o ponto de partida para a luta, estava mal formulada porque os brancos liberais desejavam dizer aos

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negros que a integração racial seria a melhor saída. Para Biko a Black Consciousness define a situação de forma diferente: a «tese» não é o apartheid, mas sim o racismo branco que era muito forte; daí que a «antítese» deve ser uma forte solidariedade entre os negros que são vítimas do racismo branco. E a Black Consciousness tem por missão fazer crescer a solidariedade entre os negros: aumentar a sua consciência sobre a sua condição de vítimas da opressão branca. Os negros devem dar-se conta que a sua condição de oprimidos não é resultado de um «engano» casual, senão que é um acto deliberado dos brancos. Portanto, a libertação do negro não vai ser possível por via da moralização do branco para corrigir o seu erro. Segundo Biko, a própria ideia da integração parte de um pressuposto enganoso. A teoria moralista da integração assume que tudo está bem com o sistema; somente há alguns aspectos que devem ser corrigidos na sua gestão. Biko teme que o termo «integração não-racial» estivesse a esconder (ou fosse transformar-se) uma «assimilação» dos valores brancos pelos negros. A luta da Black Counsciousness deveria começar por aqui: erradicar alguns conceitos falaciosos das mentes do homem negro, sendo a ideia da integração a cardinal nesta erradicação. Daí que Biko define a Black Consciousness como uma «atitude da consciência» e «uma forma de vida» que mobiliza tudo o que de positivo pode emanar do «mundo negro». A sua essência é a união de todos os «irmãos» negros em volta da causa que está por detrás da sua condição de oprimidos: a cor da sua pele. É a blackness da sua pele que dita a condição de eterna servidão dos negros. Então a filosofia da Black Consciousness deve basear-se no group pride, ou seja, no orgulho dos negros enquanto grupo. Liberdade é a habilidade de não deixar definir-se a si próprio através de um outro grupo poderoso, mas sim somente a partir da própria relação com Deus e a natureza circundante. Liberdade deve ser a capacidade de o homem negro testar as suas próprias possibilidades de desenvolvimento usufruindo de tudo o que a natureza lhe oferece. E para alcançar este direito de ser livre, o homem negro deve poder recorrer a todos os meios ao seu alcance. Num extracto do seu julgamento em Maio de 1967 respondeu da seguinte forma sobre a Black Consciousness:

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«Basicamente penso que a Black Consciousness refere-se ao homem negro e à sua situação, e eu penso que o homem negro encontra-se submetido às duas forças neste país. Em primeiro lugar ele é oprimido pelo mundo exterior através de uma maquinaria institucionalizada, através de leis que o restringem de fazer certas coisas, através de difíceis condições de trabalho, através de salários baixos, através de condições de vida muito difíceis, através de uma educação muito pobre, esses são todos aspectos exteriores ao próprio negro; e, em segundo lugar, e este nós vemos como o mais importante, o homem negro desenvolveu ele mesmo um certo estado de alienação, ele rejeita-se a si mesmo precisamente porque ele julga que tudo o que é do branco é bom, noutras palavras, ele associa o bom ao branco.» (Biko 2004, 110 p.) [trad. minha] Se a arma mais potente que podemos encontrar nas mãos do opressor é, portanto, a própria consciência do oprimido que se inferioriza e se aliena, então a luta deve começar por despertar esta mesma consciência. Pois, segundo Biko, se alguém está livre no coração, nenhumas algemas feitas por um outro homem podem prendê-lo à servidão, mas se a mente desse alguém é manipulada e controlada pelo opressor, então o oprimido não terá possibilidade de enfrentar o poder do opressor. Biko admite que o conceito de «valores» deve ser desmontado, sobretudo a tendência constante dos brancos em mostrarem que ser negro é ser automaticamente de um estatuto social inferior; ou seja, é preciso combater o complexo de inferioridade mostrando que a «nossa» cultura, a «nossa» história e formas de vida não são inferiores só porque os europeus assim o querem. Para Biko, os missionários brancos estão na vanguarda desse processo de inferiorização do negro, porque eles propalaram a ideia de que vinham «civilizar e educar» aos negros; então, só assim pensa alguém que crê na existência de sociedades primitivas. Um dos textos que procura, de forma bastante sistemática, orientar o leitor a compreender o que é a filosofia que reclama ser adjectivada por ubuntu é do filósofo sul-africano Mogobe Ramose, professor de filosofia africana, publicado em 1999, em Harare, a capital do

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Zimbabwe. Este conjunto de textos foi compilado num livro chamado African Philosophy through Ubuntu; no fundo, os textos levam-nos a adoptar uma perspectiva ‘ubuntuista’ ao descrever áreas diferentes como sejam a religião, a medicina, o direito, a política, a ecologia e a globalização. Vamos usar, em seguida, a estrutura deste texto como referencial dos esforços de subjectivação. Ramose começa por querer demonstrar que o ubuntu é a base ou fundamento da filosofia africana17. Esta base ou fundamento deve ser procurada na Ontologia, na Epistemologia e na Ética ubuntu-africana que, segundo Ramose (1999, 49), são aspectos de uma e da mesma realidade. Para ser sistemático, comecemos pela parte da Ontologia dita africana. Segundo o nosso autor, o termo ubuntu é composto por duas palavras, o prefixo ubu e a raiz ntu (ubu-ntu). O termo ubu evoca a ideia de Ser em geral. É um Sein (Ser) indiscriminado antes da sua Erscheinung (manifestação), ou seja, de manifestar-se ou aparecer numa forma concreta ou de um modo concreto de existência como uma entidade particular. Mas, mesmo como Sein indiscriminado, a sua tendência é de se manifestar incessantemente numa forma e modo concretos. Neste sentido, o ubu está sempre orientado para se manifestar no ntu. Por isso, a separação feita acima do termo ubuntu, é somente ao nível linguístico e não ontológico. Sob o ponto de vista ontológico não há nenhuma divisão entre o Ser e o Aparecer, entre o Sein enquanto essencia e da Erscheinung enquanto suas formas de aparição concretas. (Esta separação só existe na concepção e tradição cartesiana, dualismo que Ramose quer refutar como sendo válido para a Ontologia ubuntu-africana). Não há, pois, uma separação radical entre eles e nem se pode pensar estarem em oposição. A separação sugerida antes é simplesmente no campo da língua. Pelo exposto, resulta que ubu-ntu é a categoria epistemológica e ontológica fundamental no pensamento dos povos bantu, expressando o ubu uma compreensão generalizada da realidade ontológica do Ser enquanto Ser, e o ntu assumindo formas e modos concretos de existência num processo contínuo. (17)

Geograficamente, Ramose localiza o espaço de influência da filosofia ubuntu do Deserto Núbio até ao Cabo da Boa Esperança e do Senegal a Zanzibar. Ramose adopta a posição de Tejada (Ramose 1999, 50).

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Na óptica de Ramose (1999,51), há ainda que diferenciar o termo ubu do termo umu nas línguas bantu. Enquanto o ubu expressa o Ser na sua forma mais geral, o umu expressa o Ser mais específico que, junto ao ntu, portanto umuntu, expressa um Ser específico, o Ser humano — enquanto político, religioso e sobretudo enquanto uma entidade moral. O que destaca o umuntu é, entre outras, a sua moralidade, a sua experiência e a sua sabedoria sobre verdades. Em outras palavras, na caracterização do Ser humano está no centro não o acto de o ser, mas sim a sua actividade como homem. Isto é o mesmo que dizer, a forma como se comporta e o poder que tem em penetrar nas verdades da vida usando, a sua experiência. Voltemos ao termo ubuntu. Segundo Ramose, o ubu pode ser visto como algo parecido como o das Werdende (o que está para aparecer), se emprestarmos um termo usado na filosofia alemã. Ou seja, implica uma ideia de movimento constante e eterno, enquanto o ntu seria das Gewordene, ou seja, o que temporariamente apareceu ou tornou-se. Um, no entanto, não pode conhecer a sua existência sem o outro. Assim, esta característica de existência precária e temporal não nos deixa poder falar de ubuntuismo, porque o ismo, segundo Ramose (1999,51), «daria a impressão errada de que estamos a tratar verbos e nomes como fixos e como entidades separadas que existem de forma independente» entre elas. Ao nível estritamente linguístico, o ismo iria sustentar-se numa estrutura baseada na separação entre o sujeito, o verbo e o objecto, separação essa que é impensável se adoptarmos uma perspectiva ubuntu-africana. Aqui está a explicação do chamado holismo na epistemologia (formas de conhecimento) africana. Passemos, assim, para a segunda parte da filosofia ubuntu-africana, ou seja, da epistemologia. Nesta óptica, o ponto de partida com que Ramose nos coloca é interessante: sem a palavra do umuntu, o ubu- estaria condenado ao silêncio total. Assim, a palavra do umuntu está irremediavelmente ligada ao ubuntu, para expressar as condições de existência do ubuntu. Em outras palavras, toda a actividade expressiva e comportamental do umuntu (ser humano) é uma busca de relevar e revelar a condição de existência do ubuntu e, tanto no domínio da epistemologia assim no da ontologia, tem o seu foco directo no ubuntu. Digamos que o umuntu tem um compromisso naturalmente

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indissociável com o ubuntu. Só assim se compreende a expressão africana Eu sou porque tu és, que sublinha que a nossa existência como indivíduos só se pode compreender através dos outros membros da comunidade; a nossa humanidade só é possível manifestar-se ao reconhecermos a humanidade dos outros. Portanto, um comportamento humano é a base das relações entre os homens. Do referido acima derivam características éticas do ubuntu. Comportar-se de uma forma humana significa, portanto, em primeira linha, respeitar ao outro, ser indulgente, paciente, ter atitudes correctas e orientar toda a nossa energia para o outro (altruísmo). A asserção «aquele é um homem» significa sobretudo o seu lado ético: que ele se comporta com humanismo, respeita os outros, escuta os outros, é paciente, cultiva o perdão e a compreensão entre os homens. Por outras palavras: não basta a existência do Ser (humano) para ser reconhecido como humano. É necessário que o Ser se torne, portanto que apareça como humano para termos o ubuntu. Porque o juízo ético sobre alguém é que determina a sua posição social e legal. A pessoa deve estar constantemente, através do seu comportamento, a provar que possui ubuntu. Este último aspecto pode ser reformulado para fundamentar o princípio da política em termos de filosofia segundo o qual, a fonte e a justificação da acção do soberano é o seu povo. O soberano deve ser julgado a partir do seu ubuntu, ou seja, da forma respeitosa, carinhosa, afável e desinteressada como ele trata os seus súbditos. Numa perspectiva do ubuntu não há justificação para que soberanos ou pessoas com poder possam ter atitudes autoritárias e desumanas para com os outros. De acordo com esta forma de ver as coisas, a esfera da política e do direito (enquanto acto de legislar) devem ser justificadas a partir do princípio ubuntu. Aliás, devem encontrar no ubuntu o seu fundamento e sua constante inspiração. Será o ubuntuismo uma reedição da etnofilosofia? Esta questão de olhar para o ubuntu como a «reedição contemporânea da etnofilosofia» foi sugerida, de novo, pelo próprio Hountondji em Dezembro de 2006 aquando da sua estadia na Universidade Pedagógica em Maputo. Perguntado o que ele achava da filosofia ubuntu ele disse que esta era, em parte, uma reedição do que Senghor e outros africanos fizeram ou tentaram fazer nos anos 50 do século XX ao fundarem o movimento

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da negritude. É uma forma de etnofilosofia na sua versão unanimista. Mas, segundo o próprio Hountondji, com uma grande diferença: enquanto a etnofilosofia e a negritude foram produzidas pelos seus autores dentro de uma lógica de «extraversão», a filosofia ubuntu não é. Ela é introvertida no sentido de que o seu endereço já não é somente o exterior, mas também o desenvolvimento das próprias culturas africanas da África do Sul. Para ilustrar a introversão deste discurso, vamos ‘conversar’ com uma professora universitária de origem Xhosa, Ivy Goduka. Dela vamos explorar um artigo deveras interessante, intitulado African/ /Indigenous Philosophies: Legitimizing Spiritual Centered Wisdoms within the Academy (2000,63pp.). Goduka considera-se uma indígena Xhosa, proveniente da província sul-africana de Eastern Cape. Nas palavras dela, ela reclama ser «uma intelectual indígena, uma curandeira (izangoma), uma visionária (imboni), uma filósofa (ikncuba buchopo), uma sonhadora (umphuphi) e uma mulher Xhosa bem versada nas formas de conhecimento indígenas [...]» e em certa maneira uma iniciada em filosofias indígenas e sabedorias espirituais, como ela própria chama o que reclama praticar (Goduka 2000,65). No artigo referido ela considera que, como intelectual Xhosa, deve usar o seu direito de ser uma voz indígena africana para, como ela diz, falar do seu coração e do coração dos outros velhos (ooKhokho) da sua aldeia natal, kwaManxeba, eHeshele. São velhos que segundo ela são depositários (custodians) da sabedoria espiritual. Ela reclama o direito da sua língua, isiXhosa, o seu modo de pensar, de falar e de escrever, a sua cultura e os seus valores espirituais, que estão enraizados no que ela denomina por indigenous epistemes, serem validados na academia e universidades como tendo um estatuto próprio, autónomo e autêntico. Partindo deste ‘direito’ Goduka quer apresentar alguns princípios da filosofia indígena africana dos bantu Xhosas, dos seus saberes espirituais e das suas concepções sobre o mundo. Esses princípios, pensa ela, devem ser incluídos na academia praticada nas universidades, isto é nos currículos e nas pedagogias. Embora ela reconheça que o continente africano seja imenso, não só em termos do seu tamanho, mas também e sobretudo no que diz

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respeito às culturas, às línguas faladas e à diversidade étnica, Goduka insiste que existe também uma unidade que é fundada na nossa forma de conceber o mundo, na relação espiritual para com o ambiente assim como nas práticas cultural-religiosas dos africanos. Partindo deste ponto, a sua intenção é, portanto, formular os princípios que formam o substrato das filosofias indígenas africanas e da sabedoria espiritual, seguindo aquilo que Cheikh Anta Diop chamara por profound cultural unity dos africanos por baixo da aparente diversidade das suas culturas. Ela chama-nos ainda a atenção de que os princípios das filosofias comuns (shared philosophies), da sabedoria espiritual e das concepções sobre o mundo que as culturas africanas partilham, dependem, na sua definição e aplicação, da vida, do acesso à terra e outros recursos, da língua e cultura dos grupos específicos. Por outras palavras, as comunidades são influenciadas pelo grau de assimilação individual ou grupal com relação às tradições culturais europeias. O que Goduka nos quer dizer é, que na sua formulação e aplicação, os princípios (que vamos evidenciar em seguida) dependem profundamente, por um lado, do ambiente social e natural em que cada comunidade epistémica vive e, por outro do grau de exposição a que cada indivíduo ou grupo foi sujeito às instituições modernas de socialização, particularmente da educação, religião e medias. O primeiro princípio sublinha que a responsabilidade individual pela interioridade (for one’s innerself) é uma jornada para a auto-purificação (journay to self-healing). É um princípio que, segundo Goduka, mostra o caminho individual para uma paz interna connosco mesmo e começar assim com a autopurificação. Ou seja, e isso é o que este princípio parece querer fazer transpirar, antes que o indivíduo possa entrar e começar relações (saudáveis e significativas) com os outros, deve estar em paz com eles e perceber a nossa responsabilidade com eles; cada um deve primeiro aprender a viver a sua vida interna de forma saudável, pacífica e apaixonada. No plano moral, este princípio implica conhecer as imperfeições individuais e tentar superá-las. No plano do corpo e da saúde individual, significa comer, dedicar um tempo específico para o repouso, exercitar e meditar. Acima de tudo evitar (ou mesmo abster-se) o consumo (excessivo) do álcool, fumar e consumir drogas que podem destruir a vida social.

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O segundo princípio repisa a responsabilidade colectiva em cuidar a mãe terra. Este princípio deriva do facto de haver uma compreensão geral de que a Natureza é o resultado da criação do Grande Espírito e que os nossos antepassados nos legaram essa Natureza. Entre as oferendas dos antepassados contamos as plantas medicinais que servem para os momentos em que estamos saudáveis ou estamos doentes. Goduka anota que há uma grande diferença no princípio que os europeus e os africanos seguem para cuidar a terra como elemento da Natureza: enquanto aqueles acham que a terra pertence às pessoas, nas culturas africanas as pessoas pertencem à terra. Assim, nas nossas culturas as pessoas não possuem a terra; pelo contrário, procuram viver em harmonia com ela. «Nós não nos podemos separar da terra, das plantas, das árvores, dos minerais, das pedras e outras coisas que são parte da nossa Natureza», remata-nos Goduka, certamente referindo-se aos Xhosas. O terceiro princípio revela que há inter-relação, inter-conexão e interdependência entre os homens e as criaturas vivas e não-vivas. É o princípio que, segundo Goduka, nos diz que não há nada que existe que seja ou esteja isolado. Em contrapartida, segundo este princípio, tudo está relacionado com todos os seres vivos e não-vivos. Este princípio se pode verificar nas relações no seio das famílias africanas onde a unidade de linhagem é horizontal (inclui membros da família alargada e do mesmo grupo étnico) e vertical (inclui os espíritos dos antepassados já mortos, os vivos e os que estão-por-nascer). À família pertencem ainda certos acidentes criações da mãe Natureza como árvores, plantas, animais, etc. Por trás desta noção alargada de família, segundo Goduka, está a noção mais ampla da realidade como uma unidade de coisas em interrelação, inter-conexão e interdependência entre os produtos da criação (seres humanos, seres vivos, plantas e animais e também seres não-vivos). A outra dimensão da unidade que tem grande impacto nas nossas vidas (que está implícita na concepção sobre a família exposta acima) é a inter-relação entre as forças vitais e espirituais dos antepassados, independentemente de serem considerados malignos ou benignos, com os actos e valores morais dos vivos. O quarto princípio sublinha que as identidades individuais e familiares não estão separadas do contexto sociocultural e espiritual. Identidades

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não são algo baseadas numa categoria abstracta da auto-consciência. Pelo contrário, elas são constituídas em relação a um certo número de crenças, padrões comuns de comportamento assim como certas expectativas e práticas culturais. A famosa sabedoria popular africana I am because you are [eu sou porque tu és] reflecte, segundo Goduka, a base racional para fundamentar a inter-relação entre as categorias diferenciadoras (raça, classe, género, etnicidade e outros), entre o sujeito e o objecto e entre o racional e o intuitivo. Da mesma forma, o indivíduo e a comunidade estão estreitamente relacionados culturalmente, socialmente e espiritualmente. Goduka ilustra isso mostrando que os nomes cristãos que a maioria de nós recebeu não têm significado para a nossa herança cultural, a nossa ancestralidade e identidade cultural. Não fazem parte do nosso património cultural. Neste ponto lembro-me de um incidente que testemunhei que parece dar algum sentido a este princípio formulado por Goduka. Foi em Dezembro de 2005 quando Hountondji estava em Maputo. Encontrávamos fora da sala de conferências quando ele perguntou pelo nome de um colega meu da universidade que nos acompanhava. F. Meigos, respondeu o meu colega. Este apressou-se a justificar dizendo que, na realidade o nome verdadeiro tradicional é Kanda. Notei que ele ficara embaraçado por o nosso filósofo não ter conseguido vislumbrar a proveniência familiar africana pelo nome. Significava que havia o sentimento de que uma parte da sua identidade havia sido roubada por causa do nome? A Natureza, as criaturas vivas e não-vivas são o fundamento da realidade espiritual. Assim reza o quinto princípio das filosofias indígenas africanas e da sabedoria espiritual que Goduka anuncia-nos. Ela crê que o elemento básico dessas filosofias é a ideia de que o espírito está no seio da existência de todas as coisas. O espírito existe na Natureza, nas coisas vivas e assim também nas coisas não-vivas. Deste modo, as filosofias indígenas africanas têm como temática básica do seu filosofar a vida e a natureza do espírito que se move dentro de nós e em nossa volta. Para a nossa autora, as culturas e as tradições africanas rodam em volta do estabelecimento da comunicação com as várias formas da manifestação da espiritualidade. A linguagem, o pensamento, as rezas, os sonhos, os rituais, as danças, o desporto, o trabalho, a

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arte, entre outras acções humanas são consideradas como diferentes formas de manifestar a espiritualidade. Goduka chama finalmente atenção para a importância e necessidade de os intelectuais africanos engajarem-se seriamente no desenvolvimento destes princípios, porém, de acordo com a sua origem cultural. E defende que, qualquer engajamento intelectual que façamos para com a nossa própria cultura indígena e para com a sabedoria espiritual nela contida, temos de estar conscientes do facto que, implicitamente, estamos a fazer uma confrontação com as experiências históricas individuais e colectivas que fizemos e fazemos com a supremacia dos sistemas colonialistas, capitalistas, imperialistas, racistas e opressores do passado e do presente. A dominação teria, segundo ela, culminado com o aniquilamento do nosso direito de ser indígena, ou seja, com a negação da existência das nossas culturas, dos nossos valores espirituais, perca da nossa terra e das nossas identidades. A dominação negou sobretudo o direito das nossas crianças aprenderem hoje a nossa cultura, as nossas tradições espirituais e outras coisas nas escolas e nas universidades. Em suma, segundo Goduka, o africano sofre hoje as consequências históricas da negação e do genocídio do seu corpo, intelecto e espírito. O intelectual que estudar as filosofias e os saberes espirituais indígenas deverá, portanto, ter sempre na mente o contexto de dominação do passado e do presente. Entretanto achamos importante a este passo fazer constar que, recordando ao comentário de Hountondji sobre a filosofia ubuntu e sobre o renascimento africano da África do Sul, esta forma de discursar no mínimo não é extrovertida, senão, como também já fizemos questão de deixar anotado e pelo menos nos seus objectivos, introvertida. Consideramos esta ser uma proposta muito interessante em direcção á solidificação de uma epistemologia que tenha como base os saberes locais. Mas, adiantamos desde já, que ela peca pela demasiada tendência ao tradicionalismo, ou pelo menos por estar adjacente nestas posições um tradicionalismo nas culturas africanas (neste caso a Xhosa) não tomando em conta o quanto mesmo ela evoluiu e se transformou. A tradição, ou melhor a sua preservação, não pode ser um objectivo em si. A sua preservação e prática deve saber mostrar, usando argumentos e na prática, que os saberes

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diversos oferecem melhores soluções para os problemas da África hodierna. Um outro aspecto crítico destas ideias de Goduka reside no facto de que, implicitamente, a autora considera que o «saber espiritual» está nas mãos dos velhos, dos ookhokho. Por agora basta responder que, nas nossas visitas de estudo pelas aldeias, encontramos considerável parte de jovens detentores de saberes locais/tradicionais; estes jovens conhecem essas tradições com mais segurança que os velhos. Na África de hoje, já não basta ser velho para ser detentor de saberes válidos ou relevantes para o desenvolvimento da própria cultura e civilização africanas. Uma boa parte da literatura ubuntu tem vindo a destacar, porém, a sua dimensão ética, como são os casos de Broodryk (2002), Nyaumwe & Mkabela (2007), Mkabela & Luthuli (s.d.). De acordo com Broodryk (2002, 26), por exemplo, o ubuntuismo define-se como uma cosmovisão tradicional africana baseada nos valores de um humanismo intenso, carinho, partilha, respeito, compaixão e os respectivos valores associados, valores esses que visam assegurar uma vida comum feliz e humana no espírito familiar. Valores seriam, nesta óptica, os fundamentos básicos de forma como uma pessoa acha que a sua vida e a dos outros deveriam ser vividas, influenciando as escolhas, as atitudes e os objectivos de cada indivíduo na comunidade. Assim, para Broodryk (2002, 32) existem valores fundamentais do ubuntuismo e outros valores associados. Os valores fundamentais são o humanismo (valores associados: calor, tolerância, compreensão, paz, humanidade), carinho (valores associados: empatia, simpatia, ajuda mútua, caridade, amizade), altruísmo (valores associados: oferta incondicional, redistribuição, abertura, atitude de «mão aberta»), respeito (valores associados: cometimento, dignidade, obediência, ordem, predisposição para cumprir normas sociais) e compaixão (valores associados: amor, coesão, informalidade, perdão, espontaneidade). Nesta perspectiva ética, o ubuntuismo põe muita ênfase na educação insistindo que as crianças devem ser educadas a dar o pouco que possuem aos outros e que só dando é que receberão de volta. Deve assegurar-se a cultura da partilha e da compaixão nas crianças. Elas devem também ser educadas a amar o próximo, mostrando

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carinho e um amor respeitoso aos parentes, aos membros da família alargada, aos amigos e aos mais velhos. Na educação ubuntu constitui um ritual muito importante introduzir às crianças a todos os membros da família alargada desde muito cedo por formas a que elas conheçam e respeitem a cada um deles na base do conhecimento que tenham do lugar de cada um na hierarquia familiar. Este carinho e respeito revelam-se nos gestos (abraços, sorrisos, cumprimentos, preocupação pela saúde da pessoa e dos seus familiares, etc.). A criança deve também ser ensinada a dar-se conta da presença de outros membros da família e da comunidade, celebrando esta presença, ou seja, mostrando muita alegria pessoal ao vê-los. Expressões como hoyo-hoyo, sabuwonani, etc. são demonstrativas da devoção com que os membros de uma comunidade reconhecem e celebram a presença de uma pessoa visitante ou que se cruza com eles no caminho. Um outro valor, deveras muito importante e que uma pessoa ubuntu presa em cultivar com devoção, é a capacidade de perdoar. Perdoar pressupõe o exercício de empatia e de simpatia para com o outro. O perdão é tido como divino. Ele parte da ideia de que todos cometemos erros, mas estes devem ser vistos como lições para o ser humano não repeti-los. O perdão está muito ligado à tolerância, pois é uma das condições básicas para uma vida em comum entre pessoas de diferentes origens mas que se reconhecem e celebram o facto de serem humanos acima de tudo. É interessante constatar como é que, no caso sul-africano e mesmo após a queda do apartheid, esses valores ubuntu foram mobilizados para despoletar o espírito ‘nacional’ do povo sul-africano na reconciliação com o passado racista da minoria branca para com a maioria negra. De facto, apelou-se aos valores tradicionais do ubuntu que a Comissão da Verdade e Reconciliação, dirigida por Desmond Tutu, tivesse algum sucesso na árdua tarefa de introduzir princípios de uma justiça restaurativa e não restituitiva ou de retaliação. Efectivamente, o modelo de reconciliação sul-africano baseou-se em três passos fundamentais, dos quais dois (primeiro e último) são acções/atitudes que deveriam ser tomados pelos perpetradores e beneficiários do regime racista do apartheid (confissão/reconhecimento da culpa e restauração) e o segundo passo é uma acção que deveria ser tomada pela vítima (perdão).

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Assim, em primeiro lugar, os responsáveis pelo apartheid deveriam confessar os seus males: «aqueles que perpetraram o mal devem estar prontos para dizer ‘ferimos pessoas ao cometer injustiça, tirando-vos das vossas casas e terras para os homelands, ao dar aos vossos filhos uma educação inferior, por negar-vos a vossa dignidade, os vossos direitos humanos», diz Desmond Tutu (Cfr. Allen 2006, 342). Em segundo lugar, as vítimas estão perante o imperativo de perdoar dado que os agressores «são também filhos de Deus e eles precisam da nossa ajuda para que recuperem a humanidade/humanismo que perderam. Sim, de facto essas pessoas são culpadas de monstruosidades, de coisas diabólicas, mas estas coisas não os convertem necessariamente em monstros e demónios. Se se tivessem convertido em tais, significaria que eles não poderiam ser chamados à responsabilidade pelos seus males. Os monstros não têm responsabilidade moral», escreve Tutu (Idem,355). Neste passo apela-se muito ao ubuntu no sentido de compaixão e reconhecimento do próximo na sua qualidade de um ser humano porque, quem não consegue perdoar, não é humano. A terceira acção pertence, como indicamos, de novo ao agressor. Os que cometeram erros no passado devem estar em condições de restituir. Tutu diria: «Se eu roubei a tua caneta, não posso resistir em dizer ‘por favor perdoa-me’. Se ainda tenho a tua caneta e eu estou realmente arrependido, eu tenho que ser genuíno em mostrar o meu arrependimento restituindo a tua caneta» (Idem, 342). Portanto, não é a restituição do objecto roubado ou da acção perpetrada que estão em primeira linha, mas sim a restauração de uma situação de convivência humana entre pessoas que se odiavam. Há ainda outro aspecto que se sublinha como sendo um valor que foi facilitado pelo espírito ubuntu. É que a reconciliação não implica evitar a confrontação entre as pessoas que estiveram em campos opostos. Em outras palavras, reconciliação não significa fazer pazes com o mal, com a imoralidade, com a injustiça, com a opressão e nem com o vício. Pelo contrário, reconciliação implicava exercer o dom da palavra ao seu mais alto nível, apelando para a profunda qualidade humana existente tanto no opressor como no oprimido, porque ambos precisam de ser libertados da opressão. O ubuntu apela ao humanismo. Segundo Tutu, este termo apela, em última instância, o que distingue homens dos animais: a qualidade

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de ser humano. Embora pareça ser uma tautologia, esta expressão quer sublinhar que, uma pessoa com ubuntu: «[…] é conhecida como tendo qualidades de compaixão e de ser gentil, que usa as suas energias em nome dos fracos, que não tira vantagem pessoais da fraqueza dos outros mais fracos; em suma, a pessoa com ubuntu tem caridade, trata aos outros como eles verdadeiramente são: seres humanos. Se faltam estas qualidades ao homem, mesmo que seja um chefe, falta-lhe a integridade fundamental para ser um ser humano. Tu podes ter muitos bens, podes ter muito poder e uma boa posição social, mas se tu não tens ubuntu, não tens quase nada». (Cfr. Allen 2006, 165) É importante sublinhar, do nosso lado, que estas qualidades éticas defendidas em nome do ubuntu, constituem o alicerce para o princípio de uma ‘nova’ forma de justiça: a restaurativa. Esta, sublinha-se, é uma prerrogativa de um tipo de justiça da jurisprudência tradicional africana na qual a preocupação central não é a retribuição ou a punição do infractor, mas sim e no espírito do ubuntu, curar as chagas, focalizar as iniquidades, as desigualdades, enfim, a restauração das relações e dos valores humanos quebrados. É um tipo de justiça que procura reabilitar a vítima e o predador; a este último, compreendese, deveria ser-lhe dada a oportunidade de ser reintegrado na comunidade que ele, com os seus actos bárbaros no passado, ofendera. Numa avaliação rápida podemos dizer que, para este caso, os valores defendidos pelo ubuntu foram mobilizados para equipar as pessoas a fim de poderem olhar para os seus torturadores e opressores do tempo do apartheid como «humanos» e para poder perceber por eles próprios que os seus antigos torturadores e opressores precisam de ajuda das antigas vítimas para poderem recuperar a sua humanidade temporariamente perdida. Os mesmos valores empoderaram aos sobreviventes das torturas dos agentes do apartheid a tomarem o controlo das suas vidas, a tomarem iniciativa sobre a sua própria vida, ao invés de se vitimizarem eternamente. Enfim, esta experiência criou condições para inscrever-se na história do mundo, uma experiência africana na aplicação dos seus valores e princípios inspirados no ubuntu para resolver os problemas modernos. Mas como é isso possível?

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Como resposta, Nyaumwe e Mkabela (2007, 153) parecem ter, no nosso entender, alguma razão ao resumirem da seguinte forma o ubuntuismo hoje. Na essência — escrevem eles — ubuntuismo constitui ambas as coisas, uma descrição factual do estar-com-outros e um código de conduta que procura articular o respeito e a compaixão para com o outro. A filosofia moral ubuntu, sublinham ainda, é funcional para as pessoas vivendo em comunidades precisamente por causa do seu poder em criar a cooperação e unidade entre as pessoas. Num artigo intitulado Revisiting the Traditional African Cultural Framework of Ubuntuism, publicado no Indilinga, uma revista científica que se notabiliza por publicar o conhecimento indígena africano, Nyaumwe e Mkabela (2007,152pp.) têm como propósito reexaminar o quadro conceptual da filosofia ubuntu à luz dos desafios modernos. Mais precisamente, procuram mostrar que, longe de os valores tradicionais que constituem o âmago duma tal filosofia estarem «ultrapassados», estes mesmos valores podem constituir um repositório de recursos conceptuais mobilizáveis para o aprofundamento das democracias modernas em África. Ainda mais exactamente, procuram mostrar que a máxima do ubuntu que diz munhu munhu ngewane (xiXona) e umuntu ngumuntu nbantu (xiZulu) [«uma pessoa o é somente no seio das outras»] pode ser hoje muito bem reabilitada para resolver os problemas modernos. Ao fazerem isto, propõem estender o ubuntu da dimensão da moral — que temos enfatizado até agora — para uma outra, nomeadamente a da filosofia social. Advogam que, em vez de se cair no tradicionalismo, é necessário que esses valores sejam incorporados no discurso sobre a África pós-independência, mostrando a sua validade como alicerces sobre os quais a África moderna se pode erguer. O primeiro passo que vêm para este propósito é fazer com que os africanos, sobretudo os jovens, tenham a oportunidade de apreciar os valores culturais africanos para eles próprios poderem encantar-se, fazerem as suas escolhas e orientarem conscientemente a sua conduta social a partir desses valores. Ou seja, acham que o desconhecimento dos valores africanos é o factor principal para que haja a impressão generalizada entre os próprios africanos de que esses valores (entre os quais destacam o humanismo, o colectivismo, a cooperação, o carinho

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para com o outro e o respeito) não são válidos ou mobilizáveis para reconstruir uma sociedade africana baseada nele. Segundo Nyaumwe e Mkabela, os valores democráticos que se devem defender hoje nas sociedades modernas, nomeadamente a inclusão, a negociação, a transparência e a tolerância, não estão em contradição com os valores e as práticas tradicionais nas comunidades africanas. Pelo contrário, o indaba ou o hurukuro, (ou seja, o exercício da palavra nas comunidades africanas) promovia a capacidade de buscar consenso para decisões colectivas, embora o teor do consenso aqui não seja necessariamente baseado no ponto de vista da maioria, como é a norma nas democracias ocidentais. O consenso, nas condições africanas, é procurado sempre com o objectivo último de alcançar uma maior coesão entre os membros de uma comunidade, e não de dividilos em bancadas de ‘maioria’ ou da ‘minoria’. Esta coesão é confirmada pelas expressões como tiri tose, sisonke, simunye, ou seja, «estamos juntos». Este valor de coesão não deve ser deixado morrer em nome da democracia. À luz da filosofia ubuntu pode-se sempre lembrar aos nossos parlamentares hoje, a necessidade de cultivar este valor. Um outro valor que pode ser recuperado, na óptica dos dois autores, é o espírito de cooperação entre os membros de uma comunidade e sociedade. Efectivamente, segundo eles, a morte, na óptica desta filosofia prática, é considerada como um fenómeno sagrado e, como tal, toda a comunidade deve respeitá-la e participar nas cerimónias quando ela acontece. Porque morrer é considerado como o meio através do qual uma pessoa passa a ser um antepassado, então esta passagem deve ser compartilhada, cuidada e celebrada não só pelos vivos como também pelos mortos. Assim, quando a morte ocorre numa família, toda a comunidade une-se para prestar ao morto uma mudança de casa decente para que, uma vez como antepassado, a pessoa que ‘partiu’ possa continuar a cuidar dos vivos. E este ‘cuidar’ pode assumir várias formas: por exemplo, quando se evocam os antepassados para providenciarem chuva para uma boa colheita, para proporcionarem boa saúde aos vivos (especialmente aos recém-nascidos), entre outras orações. A solidariedade social e o espírito da ajuda mútua são também praticados pela forma como, nas comunidades africanas e no espírito ubuntu, os mais jovens e prósperos membros tomam conta dos mais

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fracos, especialmente dos velhos e das viúvas. Aos velhos é lhes atribuído automaticamente um status social elevado, sendo tratados com respeito em todo o lado. É frequente haver jornadas colectivas (teamworking) para a construção de casas para as viúvas e prestar visitas organizadas e periódicas para saber da sua saúde. Estas actividades solidárias que juntam pessoas próximas e voluntárias para ajudar aos mais fracos na construção ou nas actividades agrícolas, são denominadas, em algumas línguas Bantu por mushadirapamwe, shosholoza, ilima (Nyamwe & Mkabela 2007, 155). As jornadas de solidariedade social descritas acima não são só organizadas para ajudar aos mais fracos (velhos e viúvas). São também organizadas por grupos de famílias num determinado período de actividade económica como a sacha, o plantio ou a colheita; o ilima, por exemplo, é organizado por um grupo de pessoas que vão de machamba em machamba para se entre-ajudarem em tarefas árduas, de acordo com um calendário rotativo preestabelecido. A divisão de tarefas neste contexto comunitário fascina aos dois autores que temos vindo a citar. Por exemplo, em preparação do ilima, as ‘velhas’ preparam bebidas tradicionais para se beber conjuntamente. A bebida tradicional deve ser consumida em conjunto porque é considerada como sendo força de união dos membros da comunidade, vivos e não-vivos, sendo particularmente um sinal de agradecimento para estes últimos. Os não-vivos são os primeiros a provarem, gesto que se concretiza com o entornar uma parte dela para os defuntos. Os cunhados ou os que estão em perspectiva de o ser devem dirigir os trabalhos para mostrarem qualidades de afinco ao trabalho, honestidade, perseverança, etc. As mulheres cuidam da bebida e da comida. Há rituais próprios que cada membro deve cumprir. Este espírito ubuntu de entreajuda, solidariedade, hospitalidade, simpatia e empatia é levado para o Ocidente pelos emigrantes africanos, sejam eles trabalhadores ou estudantes. No estrangeiro é frequente os africanos organizarem encontros independentemente da sua proveniência em termos de país. São essas actividades comunitárias, inspiradas pelo espírito ubuntu, que possibilitaram o crescimento da consciência duma África unida e o consequente nascimento de movimentos independentista à escala continental nos anos 60, reclamam Nyaumwe e Mkabela (2007, 157).

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Entretanto, continuam os nossos autores e com razão, voltar aos valores tradicionais tal e qual como foram descritos anteriormente, «não é prático». A maioria dos africanos de hoje já não vive segundo os princípios e formas de vida comunitárias, mas, como resultado da modernização, segundo formas de vida muito individualizadas. Porém, a solução que advogam, parece ser contraproducente com o propósito que têm: acham que se deve restaurar a filosofia moral do ubuntu para, segundo eles, «mostrar às gerações mais jovens os benefícios do ubuntu por forma a poderem começar a apreciar a contribuição da filosofia moral africana para com a humanidade e misturar estes com os aspectos positivos da cultura ocidental» (Nyaumwe & Mkabela 2007, 161). Para esse desafio vêm a escola como sendo a instituição pela qual se deve começar a educar os mais jovens no espírito ubuntu. Os autores não adiantam ‘fórmulas’ mais abertas em termos de como aplicar estes valores na perspectiva da democracia moderna. Não adiantam, por exemplo, propostas práticas sobre a forma como se deve organizar um parlamento ou uma assembleia inspirada no indaba (conselho, reunião, assembleia). Também não dizem nada sobre como mobilizar pessoas para actividades parecidas com o ilima no contexto da fábrica ou de um bairro citadino. No entanto, o seu ponto mais sugestivo é o de querer mostrar que, numa fase preliminar, deve-se romantizar os valores tradicionais inspirados pela filosofia ubuntu para permitir aos mais jovens tomarem consciência dos seus benefícios e recorrerem a eles para enfrentarem o individualismo exacerbado das sociedades capitalistas modernas. Fixemos isto: romantizar os valores tradicionais é uma fase necessária para o desenvolvimento da filosofia moral africana!

Da Descolagem Conceptual à Descolonização O projecto de Tempels pode ser considerado como sendo duplo: em primeiro lugar, mostrar aos europeus que os africanos têm filosofia levando-os a conhecer a alma dos bantu e estimular os estudos etnográficos no interior da África. Em segundo lugar, Tempels queria iniciar ou iniciou, de forma implícita, a elaboração de um quadro conceptual da filosofia bantu (estudo da força vital), embora apoiando-se

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numa ontologia bantu comparada com o estudo da ontologia da filosofia europeia (estudo do Ser enquanto Ser). De facto, Tempels elabora toda a chamada filosofia bantu nas vertentes metafísica, ética, epistemológica, política, a partir do conceito central de força vital. Nesta perspectiva pode-se considerar que Tempels teve o mérito de iniciar implicitamente em torno daquilo que mais tarde se viria a cunhar de «descolagem conceptual» da filosofia africana. Voltemos agora a acordar Crahay. Este certamente não queria opor-se a este projecto quando, a 19 de Março de 1965, pronuncia um discurso em Kinshasa que meses mais tarde foi publicado na revista Diogenes sob o título Le Décollage Conceptuel: Conditions d’une Philosophie Bantoe. Crahay queria sim mostrar as condições para o nascimento, descolagem, da filosofia africana. Antigo estudante de filosofia e de psicofisiologia na Universidade de Louvain em Paris e de Liège, onde ele obteve o doutoramento em filosofia em 1954, Crahay ensina lógica e filosofia moderna europeia nos anos 60 numa universidade católica em Kinshasa. Crahay, como dissemos algures neste livro, acha que o Padre Tempels confunde «filosofia» e a Weltanschauung dos bantu. Além disso Crahay vê na obra de Tempels somente uma possibilidade de «descolagem» da filosofia africana; entretanto, a obra de Tempels, ainda não é filosófica africana e nem podia ser. Como ainda dissemos, para Crahay, somente estamos perante uma filosofia, quando há um discurso de reflexão sobre a experiência humana, mas não a descrição da própria experiência. Para Crahay são cinco as condições e as possibilidades para a existência da filosofia africana. Primeiro: deve haver um corpo de filósofos e intelectuais africanos a viver e a trabalhar num ambiente cultural africano mas abertos ao mundo; ou seja, para que a filosofia exista e se desenvolva é preciso que hajam filósofos entusiasmados em criar e recriar a filosofia; «filosofia só vive com e em filósofos», como diria Ngoenha. Segundo: é preciso usar bem, mas de uma forma crítica, as reflexões da filosofia académica ocidental, porque através da sua prática e paciência poderia promover-se em África um pensamento filosófico que cruze todas as culturas africanas. Terceiro: fazer um inventário dos valores africanos, mesmo que, numa primeira fase, incluam atitudes, categorias e símbolos; o inventário deve porém ser

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selectivo, isto é, somente aqueles valores devem ser tomados em conta à medida que eles «dariam que pensar». Quarto: temos que fazer uma ruptura radical entre a consciência reflectiva e a consciência sobre os mitos; isto permitiria introduzir a dicotomia necessária para a descolagem conceptual; de facto, a diferenciação entre o sujeito e o objecto do conhecimento, entre o Eu e o Outro, entre o natural e o sobrenatural, no interior da prática filosófica africana permitiria esta tornar-se analítica e reflexiva, o que a etnofilosofia não conseguiu. E quinto: os africanos devem escolher claramente as suas opções em termos de sistemas filosóficos adequados aos problemas africanos; este foi o caso, por exemplo, a escolha do marxismo como sistema filosófico para ser o suporte das lutas em África. Assim, segundo a interpretação de Outlaw (s.d.,24), Crahay critica Tempels por não ter escrito um livro sobre a filosofia, mas sim um livro com o «ímpeto» de ser filosófico. Tempels teria ficado na intenção de apresentar uma versão africana de filosofia, sem o conseguir. Aceitar que Tempels escrevera um livro de filosofia bantu, seria admitir que não havia filosofia, ou pelo menos, admitir que esta encontrava-se implícita e imanente, mas não explícita e analítica, antes de Tempels a ter «descoberto». Para Crahay, para que falássemos de uma filosofia africana, seria necessário que os filósofos africanos se dissociassem de cinco elementos que até lá eram partes constituintes na forma e no conteúdo do pensamento africano que se apresentava a si mesmo como sendo filosófico. São as seguintes dissociações que Crahay impõe como condições necessárias para a «descolagem conceptual» da filosofia africana: em primeiro lugar Crahay exige da filosofia a dissociação do sujeito do objecto através da reflexão; isto é, Crahay exige uma dissociação entre o «Eu» e o «Outro». Em segundo lugar a dissociação do natural e do supernatural, da acção de natureza técnica da acção da fé, do concreto e do abstracto ou ainda do objecto do nome dado ao objecto. Em terceiro lugar a dissociação entre o conceito de tempo e de espaço. Em quarto lugar Crahay pretende que haja uma dissociação da liberdade corporal que deve evoluir para um conceito natural de liberdade, ou seja, para um conceito de liberdade que seja a síntese da liberdade corporal, a faculdade de decidir e a assumpção da responsabilidade

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individual sobre as próprias acções no que diz respeito às possíveis consequências da acção que sejam racionalmente previsíveis. Por último e em quinto lugar a dissociação do culto do colectivo para o culto da diferença. (Cfr. Outlaw, s.d., 25) Crahay temia que Tempels, ao declarar que teria encontrado a essência da filosofia bantu, não havia porém cumprido com estas condições para que a filosofia africana pudesse descolar conceptualmente. Mais do que o conteúdo da crítica de Crahay, principalmente no que diz respeito à importante chamada de atenção para se diferenciar entre filosofia e Weltanschauung, aquele histórico artigo seu fica na história da filosofia africana por ter iniciado uma análise mais filosófica em torno da obra de Tempels; Crahay preparou assim o caminho para uma crítica mais sistemática da etnofilosofia que teria como paradigma a crítica unanimista de Paulin Hountondji. Ao mesmo tempo, este artigo de Crahay teria o impacto de abrir um debate ainda mais amplo que ocupou muitos filósofos africanos durante um tempo considerável a despenderem energias para encontrar uma resposta: é o debate em torno da pergunta se existe uma filosofia africana e quais seriam as suas tendências. É o debate sobre a identidade da própria filosofia africana, debate este que acabaria por desaguar num movimento de auto-reflexão, de autoconsciência e da auto-inscrição da filosofia africana no contexto universal do pensamento filosófico. Este debate ocupou toda uma geração que se preocuparia em cunhar as formas da auto-inscrição da filosofia africana na história universal do pensamento filosófico. É neste debate que Odera Oruka, por exemplo, inscreve como referenciais, quatro «tendências» (trends) da filosofia africana, nomeadamente a etnofilosofia, a sagacidade filosófica (philosophic sagacity), a filosofia nacionalista-ideológica e a filosofia profissional-académica. Por seu lado e ainda no âmbito deste debate, a dupla Semet e Nkombe inscrevem também quatro tendências da filosofia africana: a ideológica, a tradicional, a escola crítica e a sintética-hermenêutica. Embora ainda haja outras tentativas de agrupar ou de tipificar as tendências/referenciais da filosofia africana — por exemplo, as propostas de Mudimbe e de Masolo — no contexto do nosso assunto de momento, a descolagem conceptual da filosofia africana, ficaremos por aqui.

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Quase trinta anos antes do pronunciamento de Crahay expondo as condições e as possibilidades para a descolagem conceptual da filosofia africana viria a nascer em Gana, em 1931, Kwasi Wiredu, o filósofo que pensamos ter levado a sério o projecto proposto por Crahay. Wiredu lê os seus primeiros livros de filosofia ainda na escola primária. Interessa-se pela lógica pois, nesta tenra idade, lê The Essentials of Logic de Bernard Bosaquet. Mais tarde lê o livro que talvez mais o influenciou na sua vida e nas suas concepções filosóficas: Os Últimos Dias de Sócrates, um livro que contém quatro diálogos escritos por Platão. Estuda filosofia ocidental na Universidade de Gana, a partir de 1952. Porém, por curiosidade individual, descobre na mesma altura a sua paixão pela filosofia africana. Wiredu prossegue os seus estudos em filosofia analítica mais tarde na Universidade de Oxford. Gradua-se em 1960 com o tema Knowledge, Truth and Reason. Wiredu gosta de ler David Hume, John Dewey e Immanuel Kant, entre outros, é claro. Escusa dizer-se que pertence à geração de filósofos africanos como Hountondji, Mudimbe, Eboussi-Boulaga, Odera Oruka, com os quais se ombreia hoje no patamar da filosofia continental. Kwasi Wiredu, como dissemos, dedica-se a temas da filosofia africana, especialmente na área da lógica e epistemologia. Viria a ser conhecido pela sua paixão por um tema específico dentro da filosofia africana: o que ele mesmo chama de conceptual decolonization, ou seja, a descolonização conceptual da filosofia africana. Com este seu projecto filosófico de descolonização conceptual Kwasi Wiredu coloca-se acima e para além do debate já obsoleto sobre se existe ou não uma filosofia africana. Ele usa todas as ferramentas filosóficas, especialmente a lógica, a filosofia da linguagem e a epistemologia para mostrar que é preciso «descolonizar» a forma de filosofar dos africanos para que uma verdadeira filosofia africana possa abrir alas no panorama intelectual. Wiredu reconhece que o projecto é «longo» e «complexo» porque, para além de abranger todas as culturas africanas, ele terá que fazer uso de todas as disciplinas, a começar pela língua em que fazemos ciência. A descolonização conceptual não se deve limitar à filosofia, senão que deve abraçar as disciplinas tão vitais como a história, estudos literários, antropologia, e outras consideradas como ciências

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ideográficas. Aqui, como é lógico, interessa-nos a versão filosófica do projecto. Vamos basear-nos, para expor Wiredu, num pequeno mas muito significativo artigo seu, Toward Decolonizing African Philosophy and Religion, publicado na revista on-line African Studies Quarterly18. Logo no primeiro parágrafo do artigo Wiredu define o que é descolonização para ele: By decolonization, I mean disvesting African philosophical thinking of all undue influences emanating from our colonial past. Ou seja, por descolonização quero significar o desvestir o pensamento filosófico africano de todas as influências que parecem quase infinitas do passado colonial. E Wiredu repisa que o elemento mais importante é considerar que a influência do passado colonial é «quase infinita» porque não seria possível (e nem desejável) rejeitar tudo deste passado, baseando-se na simples justificação de ser uma «herança colonial», portanto que tudo dela deveria ir ao lixo. Para Wiredu o ponto de partida para a descolonização deve ser procurado na língua. É na língua que começa o problema, e muito mais exactamente na língua de instrução dos africanos que foi diferente das línguas vernaculares. Africanos foram forçados (não escolheram) a estudar as ciências por via das línguas coloniais, e é naquelas línguas que os intelectuais africanos continuam ainda hoje a produzir conhecimentos científicos. Ao estudar filosofia em inglês, por exemplo, o africano, em termos conceptuais, «ocidentalizou-se». Independentemente se ele se debruça sobre a filosofia europeia ou se estuda assuntos africanos da filosofia, este africano que o faz em Inglês, «desafricanizou-se» no que diz respeito à articulação dos termos filosóficos. Por isso, diz-nos Wiredu, uma descolonização na filosofia é necessariamente um empreendimento conceptual. A descolonização conceptual não deve ser entendida somente como uma doutrina crítica ao colonialismo; a parte mais importante do projecto é exactamente o esforço de conceptualização, embora aquela seja necessária. A noção «crítica» é usada por Wiredu para significar em primeira instância um «exame da validade» e pouco «exame da invalidade» na aplicação de conceitos (18)

Por se tratar de uma versão baixada da internet, usam-se as referências das páginas correspondentes.

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filosóficos em línguas europeias em contextos de culturas africanas. Segundo Wiredu: «isso sugere que, ao examinar as formações conceptuais no nível do discurso técnico [da filosofia], os filósofos [africanos] devem também manter um olhar crítico nas intimações conceptuais das línguas nativas nas quais eles trabalham» (Wiredu s.d., 2). Não admira esta posição de Wiredu: ele centra o que-fazer da filosofia, enquanto disciplina académica, na análise e no exame de conceitos e de quadros teóricos; ou seja, no exame crítico na forma como certos conceitos são aplicados tendo em conta o meio cultural. Assim, a duplicidade do empreendimento crítico do filósofo africano coloca-se, por um lado, na perspectiva da sua obrigação como filósofo profissional e, em segundo lugar, na perspectiva de ser um filósofo africano, membro de uma comunidade linguística, que, portanto, quer e deve exercer a sua disciplina a partir do quadro conceptual que esse seu meio cultural sugere. Do que foi sugerido acima, resulta que, para Wiredu, African philosophy consists of both a traditional and a modern component, isto é, a filosofia africana é composta por elementos tradicionais e modernos. O imperativo para a descolonização, como consequência, é aplicável para as duas direcções, nomeadamente para a filosofia africana profissional e para a filosofia africana de inspiração tradicional (como o ubuntuismo, por exemplo). Entretanto, se aceitarmos que filosofar nas condições africanas é necessariamente passar pela análise conceptual, então teremos de admitir que é precisamente aí que o continente africano está em desvantagem comparado à filosofia europeia. Segundo Wiredu, na filosofia contemporânea praticada em África há pouco ensino das cadeiras de lógica, da filosofia da matemática e da filosofia das ciências. Também são poucos os filósofos que se especializam nestas áreas. Esta é uma desvantagem «cardinal» para desenvolver a tradição de análise de conceitos, um empreendimento que a filosofia africana deveria tomar a sério. Assim, Wiredu acha que a saída é «domesticar» essas áreas da filosofia, ou seja, sem importá-las do ocidente, mas ter uma atitude intelectual mais aberta para absorver o máximo a tradição do ocidente nestas áreas. A lógica, em particular, haveria de contribuir imenso na avaliação dos argumentos esgrimidos pelos nossos velhos nas aldeias em

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termos de validade das suas asserções. Porque, segundo Wiredu, os princípios da lógica da não-contradição (non-contradiction) e o da exclusão do meio (excluded middle), estão ambos patentes nas disputas que os velhos nas aldeias fazem (ele dá exemplos do povo Akan do Gana). Não obstante a isso, não existe em Gana, e por extensão em África, um estudo formal da lógica. Daí resulta que, na tradição filosófica africana, não se desenvolveu o hábito do estudo da lógica como uma disciplina formal; esta lacuna afecta, por sua vez, as iniciativas de estudos filosóficos das culturas particulares a partir da perspectiva da lógica. Assim, um dos passos principais para a descolonização seria o de «domesticar», no sentido de apropriar-se, estas disciplinas para serem bem dominadas pelos filósofos africanos. Wiredu insiste muito na possível confusão de se considerar «descolonização conceptual» com a atitude comum em alguns filósofos africanos, segundo a qual deveríamos abandonar todas as disciplinas filosóficas que recebemos do ocidente. Pelo contrário, a descolonização implica também uma espécie de «confirmação» da aplicabilidade de conceitos ocidentais no seio dos sistemas de pensamento africanos. Encontrar esses momentos de «confirmação» prova, pelo contrário, a existência de elementos do pensamento que cruzam todas as culturas (cross-cultural elements), enfim a existência de categorias universais nas culturas africanas. Wiredu dá um exemplo do elemento transversal às culturas, que portanto tem uma validade universal. Tomemos a lógica, convida-nos ele. Se, por exemplo, a forma mais simples requerida de condicionalidade para definir a relação entre a premissa e a conclusão de um argumento válido deve envolver a noção da necessidade, esta forma será da mesma maneira em todas as culturas, incluindo as africanas. Ele não imagina, portanto, haver qualquer cultura sob a face da terra, onde não exista a exigência de haver necessariamente coerência entre a premissa e a conclusão para provar a validade de um certo argumento. Como se pode depreender, a questão principal em Wiredu não está em rejeitar (então é africanista) ou a aceitar (então é uma mente colonizada) a aplicabilidade ou não dos conceitos ou do quadro teórico ocidental. A chave da questão para Wiredu é o desenvolvimento duma atitude centrada na «devida reflexão», ou due reflection, que se

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deve fazer sempre antes de aceitar-se um determinado conceito ou quadro teórico explicativo. Para o caso de estudos no campo da filosofia africana, Wiredu pensa que chegou o tempo para investir a sério na sua descolonização. É preciso, segundo ele, realizar estudos intensivos sobre os elementos culturais que jogam maior importância na estruturação das significações na Weltanschauung africana. E nisto, o estudo da língua é fundamental. Seria uma pura quimera esperar que alguém possa estudar filosofia num determinado grupo cultural, sem dominar bem a língua que é falada por esse mesmo grupo. Não obstante a isso, Wiredu não fecha as portas para o estudo da filosofia de um determinado grupo cultural aos não-falantes da língua em causa. Mas, e esse é o seu ponto principal, não é possível falar de filosofia africana sem fazer análise de conceitos; e isso obriga o filósofo a confrontar-se com as questões linguísticas, nem que sejam simplesmente de tradução. Um segundo passo, que parece ressaltar de Wiredu, é o que ele menciona como sendo necessário fazer-se «estudos pluralísticos» em torno de certos conceitos fundamentais, nomeadamente «pessoa», «vida-depois-da-morte», «Deus», «espírito» e «moralidade», portanto a metafísica. Embora «trazidos», enquanto conceitos, por religiões europeias, verifica-se uma proliferação de estudos pluralísticos tais como «Noção de Pessoa nos Yoruba», «Concepção Akan de Deus», etc. Desses estudos deve resultar o enriquecimento da filosofia com as diferentes formas de conceitualização das entidades metafísicas em causa. Entretanto, admite Wiredu, os conceitos fundamentais referidos acima são apenas preliminares e secundários. São preparatórios para o debate da grande questão. A verdadeira grande questão para o debate que deve tomar primazia nos estudos pluralísticos é a da noção de verdade e da sua validade. Para Wiredu esta questão é de crucial importância na filosofia africana. E para chegar a esta questão temos, de novo, de reexaminar os conceitos básicos da filosofia, em particular a noção do «Ser». Ora, quanto a esta questão, é-nos dito por Tempels que o que é «Ser» para a ontologia europeia, para a ontologia africana bantu é «força vital». Daí surge uma «verdade» placativa de Tempels: Ser é força e força é Ser!

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Wiredu diz que tentou traduzir esta expressão que Tempels acha de cardinal para a sua língua, o Akan, e o resultado foi «zero»: the thesis cannot be expressed in my language, namely, the Akan language spoken in Ghana and in Ivory Coast, isto é, esta tese não pode ser expressa em Akan, língua falada no Gana e na Costa do Marfim (Wiredu s.d.,6). Kagamé teria tido o mesmo resultado ao tentar traduzir o mesmo para a língua bantu banyaruanda. Porque? Porque naquelas línguas (akan e bantu) o equivalente ao Ser requer sempre um complemento que indaga «ser o quê?» ou «estar aonde?». Assim parece ser impossível defender uma ontologia bantu ou akan baseada em qualquer coisa equivalente ao «Ser» na concepção europeia. Assim, chegamos a uma «verdade ontológica» que estava somente na cabeça de Tempels, uma verdade que, pelo contrário, é simplesmente impossível expressar na língua akan. No entanto, o pior ainda vem aí: é que ao expressar esta «verdade» Tempels inscreve-a na história da filosofia como se ela servisse para todos os africanos. Os africanos são inscritos como se tivessem um unanimismo filosófico, no mínimo no que diz respeito à ontologia. É desta forma que Wiredu defende que «todos os africanos que disseminem a tese defendida por Tempels sem confrontar-se com os aspectos conceptuais, estão simplesmente a publicitar a sua mentalidade colonial no seio de todos aqueles que têm olhos para ver» (Wiredu s.d.,6). Wiredu dá este exemplo de Tempels para mostrar que a descolonização conceptual na filosofia africana que defende, não deve empurrar-nos ao outro extremo: o do unanimismo dos povos africanos. Bem pelo contrário, ela deve orientar-nos para a diversidade dos sistemas de pensamento entre os africanos ao mesmo tempo que nos mostra o caminho para a universalidade. Aqui está, pensamos, o ponto de partida do qual nos iremos servir para defender a necessidade da intersubjectivação na quarta parte deste livro. Pois, no seu afã de fugir do quadro teórico da filosofia ocidental, tanto os referenciais da objectivação (parte II) como os referenciais da subjectivação (parte III) não puderam evitar cair num certo unanimismo. A proposta de descolonização conceptual de Wiredu dá-nos pistas fundamentadas para a busca de referenciais da intersubjectivação no seio da própria etnofilosofia, no seio, digamos a título de exemplo, da filosofia ubuntu.

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As «pistas» para a defesa da intersubjectivação tornam-se sobretudo mais claras se tivermos em conta a seguinte posição de Wiredu. Ele assevera que o facto de chegarmos à conclusão de que a noção existencial «Ser» não existe e não é adaptável ao meio linguístico dos Akan e dos bantu, não significa necessariamente que estas não precisem deles; esta impossibilidade pode significar que estas línguas precisam de ser «suplementadas» por expressões metafísicas mesmo que fornecidas pelas línguas europeias. Afinal não incorporamos nas nossas línguas conceitos tais como «internet», «website» da electrónica nas línguas africanas ou outras? Porquê deverá ser diferente no quefazer filosófico? Esta possibilidade de abertura dos sistemas de pensamento para a incorporação de conceitos de outras culturas e formas de pensamento diferentes (com o objectivo de se enriquecer culturalmente, nos conceitos em particular), é a possibilidade, dizemos, para um alinhamento intercultural ou, se quisermos, para a fundamentação dos referenciais da intersubjectivação na filosofia africana. Um outro ponto de Wiredu nos parece importante sublinhar quando falamos da descolonização conceptual. Partindo do mesmo princípio que nós chamamos de «abertura», Wiredu não põe de parte a possibilidade de existência da «filosofia comunal». Defender, por exemplo, que os Zulu ou os Sena têm esta e aquela concepção de verdade, não quer necessariamente dizer que todos os Zulu ou Sena que apanhemos na rua vão responder todos da mesma forma à pergunta «o que é a verdade?». Segundo Wiredu, essas crenças filosóficas comunais são resultado de consensos, da junção de hábitos durante muito tempo que se teriam sedimentado na mente das pessoas individualmente nas comunidades, dos pensadores locais em particular. O trágico para África é que a história dessas ideias perdera-se no tempo com os seus respectivos produtores não havendo hoje rastos devido à cultura da oralidade. Perante esta «tragédia» Wiredu acha que é da responsabilidade dos filósofos africanos contemporâneos cavar debaixo das crenças comunais para descobrir uma espécie de racionalidade adjacente. Parecendo paradoxal, sobretudo se tivermos em conta que esta é quase a mesma justificação da etnofilosofia, esta posição justifica-se porque, ainda segundo Wiredu, os modelos de exposição na filosofia

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africana estabelecidos por escritores como Tempels, que directamente ou indirectamente trabalhou em prol da colonização da mentalidade africana, descreve a filosofia comunal africana como um dado adquirido, inquestionável para a consciência africana. Uma outra razão para que nos dediquemos às filosofias comunais é a mais nobre (para nós): trata-se de estudar o pensamento daqueles indivíduos que mais contribuem para o dito pensamento comunal. São pessoas singulares que pensam sobre diferentes matérias da vida comunal, tentando dar sentido à história e à vida das suas comunidades. Os seus pensamentos possuem, sem dúvida, um valor acrescentado ao empreendimento da descolonização conceptual. Wiredu termina com as seguintes palavras: «[…] nós em África não temos outra opção senão incluir nos nossos projectos, com urgência, o programa da descolonização de perseguir o universal pela via do particular» (Wiredu s.d.,9). Wiredu chama isso de strategic pluralism, pluralismo estratégico, isto é, partir de estudos particulares para demonstrar a universalidade de todas as culturas, ou melhor, a possibilidade da universalidade de todas as culturas, as africanas incluindo, é claro! Sanya Osha é um dos maiores conhecedores da obra de Wiredu. A sua mais recente grande obra publicada em 2005, sob a chancela da prestigiada Council for Development of Social Science Research in Africa (CODESRIA), leva o título sugestivo de Kwasi Wiredu and Beyond. Nesta obra Osha aborda criticamente o pensamento de Wiredu a quem que ele rotula de «talvez o maior filósofo africano em vida com a possível excepção de Paulin Hountondji e V.Y. Mudimbe» (Osha 2005,iii). Quase toda a obra de Osha centra-se em expor e em apresentar o alcance do projecto teórico de Kwasi Wiredu de «descolonização conceptual». Para Osha, o engajamento de Wiredu com a descolonização conceptual «estende o âmbito do discurso filosófico em África para além do debate já gasto sobre a existência ou não da filosofia africana» (Idem). Não obstante a este patamar que Osha coloca a contribuição filosófica de Wiredu no pensamento africano, ele faz também críticas assinaláveis no que diz respeito aos limites do seu pensamento, particularmente em relação ao caminho que este toma para dar exemplos da descolonização conceptual na filosofia africana.

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Comecemos pelo fim. Embora parecendo apenas de passagem, Osha chama atenção que o que Wiredu tenta vender como descolonização conceptual não passa apenas de uma, nas suas palavras, «recontextualização conceptual»; a proposta de Wiredu em reexaminar os conceitos como condição para a libertação da filosofia africana é um exagero denominá-la de descolonização. No máximo é um reexame sobre as distorções que a introdução das teorias ocidentais no contexto cultural africano provocara, portanto apenas uma recontextualização. Os argumentos que Osha apresenta são vários e complexos. Vamos tentar resumi-los. Osha começa por destacar a diferença entre a descolonização na perspectiva dos seus principais mentores políticos (Franz Fanon, Kwame Nkrumah, Leopold S. Senghor, Julius Nyerere e Sekou Touré) e na perspectiva teórica que Wiredu defende. Efectivamente, Fanon e os outros desenvolveram o termo descolonização num contexto de dominação colonial e em que se debatiam com a necessidade de libertar fisicamente o continente e as pessoas vivendo sob aquela dominação. Logo, por esses «tios espirituais» da descolonização estarem engajados numa luta anti-colonial, é óbvio que usem este conceito com uma carga de violência física. Para além disso, a descolonização estava investida pelo projecto pan-africanista de Unidade Africana, daí que o seu mandato tivesse fortes cores políticas. Todo o arcabouço intelectual ou filosófico de um Fanon ou de um Nkrumah foi usado para ir ao encontro daquilo que era a prioridade continental: a libertação física da terra e dos povos. Em Wiredu a descolonização torna-se um projecto intelectual, isto é, conceptual. Embora nobre, este projecto intelectual, para Osha, tem o seu lado problemático nos seus argumentos (Osha 2005,65pp.). Quais são esses problemas? Osha começa por atacar o argumento central de Wiredu, segundo o qual, a descolonização deveria começar por reanalisar a adequação dos conceitos ocidentais, quando impostos em culturas africanas, tomando como ponto de partida a língua akan à qual Wiredu pertence. Wiredu faz uma análise linguística dos significados que tomam os conceitos «verdade» (The Concept of Truth in the Akan Language) e «mente» (The Akan Concept of Mind), explorando as diferentes significações que eles ganham nas culturas africanas (akan) e no ocidente (inglês). Sobre este «vai-e-vem» de Wiredu, Osha acha

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que ele cai numa espécie de «hesitação epistemológica» em vários momentos da sua análise. Segundo Osha, o que de facto Wiredu faz é uma simples comparação de conotações destes conceitos em inglês e na língua Akan, duas línguas que Wiredu domina muito bem (ele é Akan do Gana e estudou em Oxford). Mas daí para frente Wiredu não chega a «nenhuma real significação universal», como ele pretende, diz-nos Osha. Osha defende que Wiredu perdera a coerência na sua argumentação por ter minimizado os factores distintivos da cultura oral e da cultura escrita; Osha aponta que as diferenças entre estas duas culturas tendem, no geral, a ser minimizadas pela maioria dos escritores africanos no seu afã de demonstrar que toda a África tem uma cultura que a identifica como continente, mas diferente da europeia. Em primeiro lugar está a diferença na documentação. Nas culturas orais africanas o arquivo de informações e do conhecimento é feito em forma de reflexão discursiva com todos os seus constrangimentos da oralidade, enquanto no contexto europeu é de forma «inter-textual». Assim, o pensador africano pós-colonial, quando confrontado com os estereótipos da escrita colonial, reage violentamente contra o que considera de conceitos ocidentalizados ou modernos; erradamente, muitas vezes considera-os somente como produtos do colonialismo e do ocidente; assim, compreende-se facilmente a queda que o escritor pós-colonial tem em adoptar uma posição «nacionalista» ou «etnofilosófica». O resultado deste posicionamento é o que vemos em Wiredu: um emaranhado de «análises conceptuais» que acabam por ficar muito aquém do almejado porto-destino, a descolonização. Para Osha as estruturas conceptuais filosóficas ocidentais embrenharam-se de tal forma nas diversas formas da consciência africana que o assunto da descolonização conceptual torna-se muito mais complexo e que, portanto, vai para além do simplismo de Wiredu. Um segundo problema da descolonização conceptual pela forma como Wiredu o trata é visto por Sanya Osha como um problema do seu «limite»: «onde podemos estabelecer o limite?» — pergunta-se Osha. A descolonização acaba com a descoberta das dissonâncias conceptuais, quando aplicadas no seio dos povos outrora oprimidos ou fica totalmente satisfeita com uma resistência à epistemologia nos moldes conceptuais europeus? Porque Osha tem a certeza que Wiredu toma

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partido pela segunda opção, então ele conclui que este, com o seu projecto de descolonização conceptual, alinha, tal como o fazem Fanon e companhia, numa «subversão» contra o ocidente, embora desta feita de natureza epistémica. Então, concluímos nós, Osha quer mostrar que Wiredu está a cumprir uma agenda política também. De facto, lendo atentamente os textos de Wiredu, ele parte e declara esta agenda política, usando a filosofia. Pois, como dissemos antes, o fim último de Wiredu é a possibilidade de encontrar os lugares conceptuais comuns, ou seja, a possibilidade da universalidade das culturas; um outro fim adjacente de Wiredu, mas que para nós é de extrema importância, é o enriquecimento das culturas africanas com conceitos que, embora não havendo no domínio das suas línguas, são importantes para o seu próprio desenvolvimento. Osha continua a sua incursão, tentando mostrar que a noção de due reflection, tão central para o projecto de Wiredu, é também problemática. O problema reside no facto de que, segundo Osha, qualquer tentativa de reflectir sobre a pertinência do uso de conceitos provenientes do ocidente, terá que obedecer a métodos que requerem evidências empíricas, para serem resolvidas. Dito de forma mais simples, Osha parece querer dizer que teríamos que recorrer a perguntas ou entrevistas, neste caso, a um grupo significativo e representativo dos Akan, para ‘comprovar’ a aderência dos falantes desta língua às diferentes interpretações dos conceitos em causa. Para Osha, portanto, este tipo de estudos não coaduna com apriorismos, com pré-juízos. Por isso é que Osha fala de «recontextualização» ao invés de «descolonização» conceptual ao projecto de Wiredu. Dando prosseguimento às suas incursões no mundo do pensamento de Wiredu e recolocando a questão dos limites, Osha remata a sua argumentação mais ou menos como se segue. Wiredu chega à conclusão que os Akan não concebem a mente como uma entidade que pertence à pessoa! Ou que o conceito de «criação» como o acto em que Deus cria o mundo a partir do Nada não existe entre os Akan! Ou ainda que a noção de «natureza» pura e simplesmente não existe and so what? Onde queremos chegar com esta constatação? Ou melhor: para onde queremos ir após esta conclusão?

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PARTE IV

REFERENCIAIS DE INTERSUBJECTIVAÇÃO

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“O problema real não é falar sobre África, mas falar entre africanos». É com este apelo que Hountondji dá o remate final à sua crítica unanimista à etnofilosofia no artigo History of a Myth inserido na African Philosophy (Hountondji 1996, 54). Naturalmente que ele se refere aqui ao debate de natureza filosófica, aquele que deve ocorrer entre os filósofos africanos. Para compreendermos este apelo, devemos lembrar o carácter restritivo daquilo que ele considera literatura filosófica, após ter revogado ligeiramente a sua noção inicial de filosofia africana no prefácio que escreve à segunda edição do mesmo livro19. A ideia de que a condição para o crescimento da filosofia africana é a comunicação e o alargamento do debate também é defendida por Severino Ngoenha. Para este a nova filosofia africana «deve ser procurada filosofando em equipa entre os africanos e com os filósofos de outras raças e continentes» (Ngoenha 1993, 109). Esta nova filosofia que Ngoenha defende é aquela que está comprometida com a verdade, uma filosofia que faz uma «nova apropriação das verdades já conhecidas e presentes. Esta nova filosofia da procura das verdades antigas e actuais só pode ter como método a discussão em colaboração e não individualmente», assevera Ngoenha (Idem). (19)

Recorde-se que a primeira edição do African Philosophy de Hountondji foi publicada, em francês, em 1976. Aqui referimo-nos ao prefácio à versão inglesa publicada 1984. Neste prefácio Hountondji sente-se na ‘obrigação’ de rectificar ligeiramente a definição inicial à luz de críticas feitas e de novos conhecimentos a que ele chegara. Estas modificações são retomadas, mais tarde, no livro Strugle for Meaning.

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Nós concebemos por intersubjectivação o processo em que, como o filósofo de Benin reclama, os sujeitos do conhecimento entram em diálogo, em debate, em concordância e em discordância. Partimos da ideia central que, como dissemos algures, filosofar é estar a caminho e não propriamente a chegada a um fim, a um acordo. Para nós a essência do que-fazer filosófico reside na «caça aos mitos» da época; isto equivale ao mesmo que dizer que a essência da filosofia é a de desmistificar ideias ainda não acabadas, preconcepções, processos, etc. Desmistificar significa, neste contexto, trazer à luz elementos novos, ou elementos que até então estavam no substrato de qualquer fenómeno ou processo. Filosofar é um processo de clarificação de argumentos a favor da melhoria das condições da própria existência humana. É a criação intersubjectiva de novos conceitos e quadros teóricos que estejam mais ajustados à vida comum colectiva no presente e no futuro. A clarificação de posições só se faz em debate com outras posições, com outros argumentos. Aliás, o próprio argumento trazido ao debate, só pode ser respeitado como tal, portanto como sendo algo diferente de uma opinião não aprofundada, só e somente à medida que este mesmo argumento toma em conta outros argumentos integrando-os no seu seio. O argumento, para ser considerado válido como tal, deve conter os argumentos contrários ou, no melhor dos casos, aqueles argumentos que iluminam certos aspectos até então subentendidos. Assim, um filósofo é, de certa forma, um mensageiro de outros pensamentos e argumentos, mas que ele os integra e reelabora na sua argumentação. Um filósofo é aquele que esclarece-se e esclarece os argumentos dos outros, antes mesmo de esgrimir os seus. Está em constante diálogo consigo mesmo e com os outros. Digamos: O processo de confrontação de argumentos é um processo de intersubjectivação em que dois ou mais sujeitos arguentes entram em debate, interagem entre eles, integram-se mutuamente. O processo da intersubjectivação da filosofia africana passa necessariamente pela criação de valores e atitudes que levem ao reconhecimento do outro como um interlocutor válido, como um sujeito com dignidade e conhecimento. Há intersubjectivação quando o Eu reconhece o Outro e está predisposto a escutar, a argumentar com este Outro. Por isso vejamos antes quem é esse Outro no contexto do pensamento africano. O discurso que dá conta da luta

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pelo auto-reconhecimento do Eu é elaborado em torno de um eixo único: a sua liberdade. Por isso que Ngoenha e outros filósofos africanos não hesitam em reconhecer a busca da liberdade como a essência do pensamento político filosófico africano: «a busca da liberdade está intrinsecamente ligada ao pensamento africano», diz Ngoenha. Entretanto, em nosso ver, o discurso filosófico africano que se concentra na liberdade como paradigma, embora certo, centraliza-se demasiado no Eu. É urgente que a filosofia africana, e aqui referimo-nos especialmente à filosofia profissional ou académica africana, torne-se intersubjectiva, centrando-se no Outro também. A filosofia africana precisa de descentrar-se do sujeito. Mais exactamente, ela precisa con centrar-se no Outro que argumenta a partir de uma posição culturalmente diferente. Cultura, avisamos desde já, não é compreendida aqui de forma essencialista, isto é, na sua acepção antropológica de língua, religião, hábitos, lendas, etc. A nossa acepção de cultura é filosófica, ou seja, como «segunda natureza» do ser humano. Assim, a filosofia africana deve ser futuramente construída tendo em conta a necessidade de reconhecer como o Outro (também) constrói a sua segunda natureza. Para que a filosofia africana académica possa abrir-se para dialogar com o Outro, ela própria deve dar um passo em frente. Ela precisa desenvolver uma atitude filosófica para com as tradições no sentido de ver e aprender com que conceitos e referenciais as tradições em causa constroem a segunda natureza. Numa primeira fase, explicaremos como a filosofia africana deve completar a sua própria liberdade, libertando-se do seu próprio passado. Porque, na nossa opinião, a filosofia africana, seja ela olhada a partir do lado dos que idolatram as tradições, como é o caso das etnociências, do afrocentrismo, do ubuntuismo, etc., tanto pelo lado dos que querem e lutam por ela libertar-se destas tradições, em ambos os casos, todavia, as tradições continuam a ser referências. Então, se é assim, urge perguntar, o que a própria filosofia tem no seu interior que não a deixa conviver «em liberdade» com as suas próprias tradições? Ao responder a esta questão, pensamos poder completar o passo que o paradigma libertário ainda não deu: pensar os mecanismos de libertar a própria filosofia do passado. Até agora, os defensores deste

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paradigma sustentam, e com razão, a liberdade do homem africano a partir do horizonte da sua condição de historicidade (escravo, colonizado, globalizado). Libertemos, pois, a própria filosofia africana, primeiro. Entretanto, a libertação da própria filosofia africana precisa de ser concluída pela «abertura» conceptual que ela deve fazer em relação às culturas locais também cunhadas como sendo «endógenas» por Hountondji. Só depois de ela própria libertar-se de todos os preconceitos internos, estará em condições de deixar-se deleitar pela riqueza conceptual que as tradições e as culturas milenares diversas insistem em ensinar aos filósofos profissionais na academia africana. Na segunda parte tratamos da interculturalidade como condição para a plena liberdade do que-fazer filosófico africano. A atitude intercultural dialogante vai completar a intersubjectivação da filosofia africana por tentar sugerir uma «abertura» conceptual e não uma «descolagem» ou «descolonização» como querem Crahay e Wiredu, respectivamente. No fundo, a necessidade de intersubjectivação é um problema político que se tornara um imperativo a ser reflectido e fundamentado do ponto de vista filosófico. Por isso, a intenção secundária deste capítulo é abordar o problema do fechamento ao diálogo com o Outro, aos argumentos dos outros, fechamento este que parece estar a ameaçar as nossas sociedades africanas no processo da sua democratização e desenvolvimento sócio-económico.

Referencial V: A Liberdade Falamos de liberdade como uma condição que unicamente o ser humano possui, o de agir livremente. Este agir livremente significa sempre «consciência da necessidade», isto é, a liberdade de agir na base do conhecimento que possui sobre as leis que condicionam a sua acção perante a Natureza (por exemplo a lei da queda livre dos corpos), para agir consoante a sua fantasia (tempo livre), agir consoante a sua vontade (decisão sem constrangimentos); também podemos falar em liberdade, quando falamos da possibilidade do ser humano poder agir sem coerção ou impedimento, poder determinar-se a si mesmo com base na sua consciência e, acima de tudo, após uma

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reflexão. É por causa desta «consciência da necessidade» que o ser humano possui a possibilidade de liberdade. Um aspecto importante da liberdade é o da consciência que, normalmente, consubstancia-se na capacidade e no direito natural que o ser humano possui de poder expor e defender as suas opiniões, sejam elas de ordem religiosa, política, ou outras. Dito isto vamos abordar, de seguida e rapidamente, o problema da liberdade como uma necessidade de reconhecer o Outro como ser humano que é também «livre» como Eu. Este aspecto da liberdade é o que está na causa da opressão do Outro quando o Eu não reconhece ao Outro enquanto ser humano. Neste caso falamos da falta de humanismo, se quisermos recuperar o ubuntuismo neste lugar. Há duas formas ou dimensões principais de reconhecimento do Outro: trata-se do Outro colectivo, portanto como uma categoria social, e o Outro individual, portanto como uma categoria ontológica, enquanto ser humano antes de ser um ser social. A confusão entre estes dois Outros tem originado, quando pretendemos dialogar sem os distinguir como deve ser, «debates poluídos» na nossa praça pública. Esta poluição sucede principalmente por não se discernir com alguma clareza a relação entre estes dois Outros. São questões ligadas ao tratamento das identidades que serão em seguida problematizadas usando os vários pontos veiculados no actual debate sobre as multi-, inter-, e pluriculturalidades, enfim, questões sobre a intersubjectivação. Quando falamos do Outro colectivo referimo-nos à ideia construída de «identidades sociais colectivas» que são baseadas na religião, gender, cultura étnica, «raça», sexualidade, etc. É a este tipo do Outro colectivo que os etnocientistas e os etnofilósofos se referem nas suas pesquisas. Estas identidades colectivas, como assinala Appiah (1994,166p.), são de «algum modo heterogéneas» dado que a sua importância não é igualmente atribuída pelas pessoas que as ostentam ou as defendem. Assim, a identidade baseada na religião requer a adopção de uma crença e o seguimento das práticas e rituais adjacentes à religião escolhida. Por seu lado, as identidades com base no gender e na orientação sexual (homo- ou heterosexualidade) dependem da natureza que outorga somente dois tipos diferentes e impõe normas e padrões de comportamento e de vestir próprias. As identidades

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colectivas de «raça» e cultura têm outra origem comum: é que são construções feitas pelo homem a partir de elementos objectivos diferentes particularmente da cor ou tonalidade da pele (no caso das «raças») ou da língua e hábitos e costumes e outros (para o caso das identidades étnico-culturais). No mundo de hoje, porém, as tendências em fixar e politizar as identidades colectivas baseadas na religião (extremismo) e na cultura (etnocentrismo) de uma forma essencialista merecem a nossa maior atenção. Somente desta forma é que se pode explicar o facto de o prémio Nobel Amartya Sen, em particular no livro Identidade e Violência, tenha dirigido correctamente um veemente ataque às teorias essencialistas do «choque civilizacional» de Samuel Huntington. Neste livro Amartya Sen tenta demonstrar, usando argumentos bem elaborados, como as identidades essencialistas baseadas em dicotomias religiosas entre o Cristianismo e o Islamismo podem ser perigosas para a paz no mundo; ele também demonstra que a identidade baseada na religião é apenas uma forma ou dimensão das diversas identidades que estão disponíveis no mundo actual; de facto, diz ele, cada homem assume sempre uma identidade «híbrida» e, muitas vezes, a identidade que ele mais escolhe está ligada à sua profissão, nível de escolarização, bairro onde habita, clube de desportos que adere, e raras vezes está confinada às características religiosas ou etnolinguísticas. O facto de haver tendência exagerada de se destacar estas duas identidades (religiosa e étnica) no mundo de hoje, mostra como estas são propensas a uma manipulação política por parte de alguns dirigentes mundiais, particularmente com interesses hegemónicos. As identidades sociais são construídas paralelamente com a identidade individual de cada ser humano; de facto, cada ser humano pode ser classificado como moralmente bom, inteligente, carinhoso, invejoso, perspicaz, tolerante, problemático ao mesmo tempo que esse mesmo ser humano é negro, branco, asiático, muçulmano, cristão, homossexual, homem, mulher, etc. Embora as duas identidades se cruzem num mesmo indivíduo, não existe porém nenhuma relação de causalidade directa entre ambas. Ou seja, em nossa opinião, a relação entre as duas dimensões é pouco definível, não é lógica. Por exemplo, o facto de uma pessoa decidir ser católica, não faz dela, por princípio, mais inteligente ou menos inteligente, mais simpática ou menos

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amável por causa desta decisão. Da mesma forma que uma família por decidir seguir os preceitos religiosos muçulmanos, não fará dos seus membros moralmente melhores que aquelas provenientes de famílias hindus, animistas, etc. Assim também o esquema funciona em relação às etnias: encontramos nas etnias Ibo, Sena, Macua, Ndau e por aí fora uma distribuição igual de pessoas ambiciosas ou bondosas como em quaisquer outras etnias e nacionalidades europeias. Se o caso fosse o contrário, então seria válido dizermos que os membros desta ou daqueloutra etnia são «preguiçosos», «avarentos», «trabalhadores», «inteligentes», etc. Da mesma forma que, entre os colonialistas portugueses nem todos (talvez muitos deles) não fossem pessoas más, avarentas ou vingativas. Fazer este tipo de relação directa entre ambas dimensões de identidade seria uma das maiores absurdidades do nosso tempo. Por isso não iremos ocupar-nos mais acerca da relação possível entre as duas identidades. Interessa-nos, entretanto, explorar as condições em que as identidades colectivas entram numa relação intersubjectiva, sem restringir a intersubjectivação a uma relação entre culturas, estas entendidas no sentido antropológico. Em outras palavras, sem nos limitar à definição antropológica da cultura, embora considerando esta como parte principal para o diálogo intersubjectivo, interessa-nos aqui, tão-somente fundamentar as condições históricas do diálogo com o Outro. E vamos tratar este Outro na sua dimensão histórica (historicidade) e na sua dimensão subjectiva (como gnosis). Para as condições históricas africanas o Outro será o asiático que primeiro visitou e instalou-se no nosso continente e o Outro-europeu que veio para ficar e dominar a terra e os homens, ambos enquanto identidades colectivas. Desde muito cedo o Eu-africano teve que conviver com vários Outros que chegam pelo mar adentro, ou seja, viu-se na circunstância histórica de ser hospitaleiro do Outro que vinha carregado de produtos de troca e das suas próprias instituições religiosas e políticas. Comecemos, portanto, pela dimensão histórica do encontro do Eu-africano com os Outros. O primeiro foi o Outro árabe e depois seguiu-se o Outro-europeu; actualmente o Outro é o concidadão e o epistémico. Vamos traçar este percurso de investimento do Eu para reconhecer os Outros.

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O Eu-africano reconhece o Outro-asiático num primeiro momento pelo interesse deste nas trocas comerciais. Quando este Outro-asiático chega à costa do Oceano Índico, traz na sua bagagem especiarias da Ásia e outras mercadorias (às quais os portugueses chamaram por «quinquilharias» para mostrar a superioridade do seu «negócio»). O interesse para o encontro entre ambos estava claro: negociar. O valor máximo que este Outro-asiático traz é a troca de «quinquilharias». Esta torna-se uma relação baseada na troca de objectos e ela objectiva-se a partir da posse destes objectos e não muito mais que isso. É por isso que este Outro deixou, sem impor (porque se tivesse imposto deixaria muito mais vestígios), muitos rastos da cultura material que vai desde a comida, passando pelo vestuário e até a arquitectura. De facto, as populações africanas, particularmente as do litoral oriental, conservam ainda hoje muitos vestígios da presença asiática: fortalezas, nomes, roupas, comida, línguas, religião que convivem lado a lado com as construções, com os nomes, com a moda, com a culinária, com as línguas e religiões locais africanas. O Eu-africano soube, sem muito esforço, integrar o Outro-asiático no seio da sua própria cultura. O Eu-africano mostra assim que a sua civilização é uma das mais elevadas em termos de «abertura» para com as outras culturas. O Eu-africano, neste primeiro encontro com o Outro-asiático, não só comprou as mercadorias, mas também absolveu e adoptou a cultura e as instituições que estavam por trás destas mercadorias. É assim que encontramos hábitos, costumes e até línguas e religiões de origem asiáticas entre os povos habitantes na costa do Oceano Índico. O Eu-africano teve, neste primeiro encontro multi-cultural, muita abertura para as coisas e as culturas de fora. Esta abertura do Eu-africano para com as línguas, culturas e instituições dos Outros visitantes é a marca particular do encontro entre culturas que em nenhum outro continente podemos encontrar com esta magnitude. A abertura do Eu-africano foi de tal ordem que rapidamente se transformou em inter-cultural. Foi a primeira prova de encontros de intersubjectivação: os povos africanos souberam abrir as suas casas e instituições culturais para acomodar, hospedar e até mesmo apropriar-se dos outros hábitos e costumes até então alheios. O Outro-asiático visitante não confundiu esta abertura cultural, esta hospedagem natural do Eu-africano,

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vendo-a como uma declaração de inferioridade das suas instituições locais, das suas línguas e religiões. Assim, o Outro-asiático pôde fixar-se nas terras africanas passando a fazer parte do Eu. Este encontro dialogante de intersubjectivação com o Outroasiático foi interrompido por um outro encontro que veio logo a seguir. Trata-se do encontro com o Outro-europeu. Este novo encontro foi de natureza política e não comercial. O novo Outro-europeu introduz no encontro duas noções que poluíram o diálogo de parceiros intersubjectivos: são as noções de propriedade privada e de nacionalidade. São estas duas noções que mudaram por completo o ambiente natural de diálogo entre as culturas passando agora para uma espécie de diálogo que era, de facto, um monólogo. Rousseau tinha razão quando, no seu Discurso sobre as Desigualdades, sustenta que o primeiro passo, a acção mais primitiva que provocou as desigualdades entre os homens, foi dado quando pela primeira vez um homem cercou um pedaço de terra e gritou: isto é meu! De facto, o Outro-europeu, quando chegou, viu imensa terra africana aparentemente desocupada e, na sua mentalidade de apropriação, pensou que não pertencia a ninguém. Primeiro foi ao longo da costa onde foi demarcando pedaços de terra deixando sinais de que ele teria por lá passado. Depois começou a exploração do interior seguindo ora os rios, ora os traços do ouro, ora o traço dos escravos. Por onde passou, foi demarcando, dividindo, apropriando-se das terras e das suas gentes. Foi dizendo: Isto é nosso! Referindo-se com o termo «nosso» à sua nação portuguesa, francesa ou inglesa. E a divisão das terras africanas entre os Outros europeus ocorreu à força. Com a sua força brutal, com o seu exército, com a sua aparente superioridade científica, o Outro-europeu foi medindo, foi montando igrejas, postos de observação, fortalezas, foi olhando e classificando os solos, as plantas, os animais, os minerais, o homem, os costumes, enfim tudo caiu debaixo da sua lupa e cruz. Começaram assim as campanhas de conquista e de ocupação. O Eu-africano transformara-se de um parceiro comercial, primeiro em escravo, depois em trabalhador forçado colonizado e por fim em subdesenvolvido. O Outro-europeu foi substituindo o «primitivo» pelo «civilizado» porque assim achava ser a sua missão nos tristes trópicos. Para civilizar o Eu-africano, o Outro-europeu usa o ferro nas

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mãos do soldado e a cruz nas mãos do missionário numa aliança promovida pelos estados europeus. Civilizar significa, na visão do Outro-europeu, que o Eu-africano deveria abandonar os seus espíritos, as suas línguas, as suas tradições, os seus hábitos, as suas instituições e religiões para passar a aderir mais facilmente às instituições e culturas europeias. Era preciso dominar o corpo e a alma, primeiro do escravo e depois do colonizado. E, como Biko nos fez ver, e de certa forma também Franz Fanon, a parte mais dramática e profunda da dominação foi a «alienação da consciência». Para melhor dominar criaram-se ao mesmo tempo uma maquinaria institucional através da qual se restringiram as liberdades fundamentais ficando estas reservadas aos cidadãos europeus coloniais e, o mais importante, através dos diferentes elementos do aparelho ideológico (sistema de educação, religião, informação, etc.) o Outro-europeu criou condições para que o Eu-africano rejeitasse-se a si mesmo, inculcando neste o sentimento de inferioridade. Este sentimento leva ao Eu-africano a rejeitar-se a si mesmo negando as suas próprias tradições e instituições. Há um processo de inversão de valores no fim do qual, segundo Biko, encontramos um Eu-africano que, na sua condição colonial, considera «que tudo o que é do branco é bom»; noutras palavras, o critério para a Sittlichkeit (moralidade, urbanidade) pode vir somente do Outro-europeu. A inferiorização do Eu-africano a ponto de aliená-lo da sua realidade é a parte mais profunda da dominação que constituiria o substrato para que ele renegue a sua própria identidade. Assim, o Eu-africano é declarado «cidadão» de uma outra comunidade portuguesa, francesa, inglesa ou outra qualquer de origem europeia, locais onde aquele nunca esteve. Mas é um cidadão de segunda classe, apesar do processo de assimilação, no qual a Igreja foi o braço direito do Estado. Para o caso de Moçambique, o Estatuto Missionário, que viria a ser publicado a 5 de Abril de 1941, especifica que «as missões católicas portuguesas são consideradas instituições de utilidade imperial e sentido eminentemente civilizador». Ainda de acordo com ele, a Igreja Católica em Moçambique passa a ser a «moralizadora do indígena» no processo da sua assimilação. O «Ensino Indígena» — entregue completamente às mãos da Igreja Católica — passa a ser o meio

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através do qual o Outro impõe ao Eu-africano a sua moral e a sua identidade nacional; o Outro-europeu determina que o ensino deve «civilizar e nacionalizar o indígena por meio da língua portuguesa e gradual apreensão da doutrina e moral cristã»; «moralização» é o abandono da ociosidade e a inculcação do espírito do trabalho nos futuros trabalhadores e artífices para que produzam o suficiente para as suas necessidades básicas e para suportar os respectivos encargos sociais. «Nacionalizar» significa que o Eu-africano deve abandonar todas as formas da sua identificação tradicional e passar a comportar-se na base dos padrões morais e éticos de um cidadão de segunda classe. Para que o Eu-africano abandone a sua identidade, o Outro-europeu passa a obrigar-lhe a aprender e falar oficialmente o português, inglês ou francês conforme for o caso, a participar nas actividades religiosas, a cantar o hino nacional e as canções da metrópole colonial, a aprender a moral e a doutrina cristã e outras actividades que vêm reforçar e consubstanciar a política nacionalizadora e missionária. Eduardo Mondlane comenta em Lutar por Moçambique: «Os portugueses acreditam que há mais probabilidade de um africano (de Moçambique) se tornar português completo se ele for católico» (Mondlane 1975,70). O Outro-europeu apropria-se das outras identidades, pior, institucionaliza esta alienação por decretos. Só assim é que se compreende que em 1917 o Outro-europeu promulgue a Lei do Indigenato. Esta lei define literalmente como «indígena» o «[…] indivíduo da raça negra ou dela descendente que pela sua ilustração e costumes não se distingue do comum daquela raça». Para este deixar de ser indígena o Eu-africano, no caso de Moçambique e outras colónias portuguesas, deve abandonar tudo o que o «não o distingue do comum daquela raça», ou seja, alienar-se a si mesmo e assimilar o ser-português. É desta feita que os requisitos para deixar de ser indígena e passar a ser considerado, por lei, como «assimilado» são fixados: abandonar os seus usos e costumes «pretos», falar, ler e escrever português, ser monógamo e ter uma profissão que garanta o seu sustento e dos que dele dependem. Para além disso, o Eu-africano agora assimilado, deve apresentar «documentos comprovativos» de ter deixado a sua condição de indígena; tais como um atestado passado pelo administrador onde este confirma todos os requisitos formulados anteriormente,

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uma certidão de instrução primária de primeiro grau, uma certidão de casamento civil ou de compromisso futuro para a monogamia. Ao mesmo que o Outro-europeu introduz no Eu-africano o conceito de Nação pela via da assimilação, ele vai também inculcando a ideia de que as identidades encontradas em África circunscrevem-se a «tribos» e «etnias». As supostas tribos e etnias não têm formas de se reconstruírem e ocuparem um espaço no contexto legal da criação da «cidadania» colonial, assim pensa o Outro-europeu. Este constrói a tribo e a etnia como espaços identitários marginalizados duma forma ambivalente: por um lado constrói um discurso que mostra o carácter retrógrado destas referências identitárias; e ao mesmo tempo mantém esta identidade latente para despertá-las quando seria necessário «dividir para reinar». Em suma, os encontros pré-coloniais do Eu-africano com o Outro-asiático são de carácter material, tendo sido baseados no respeito mútuo dos sujeitos. Em contrapartida, o encontro entre o Euafricano e o Outro-europeu traduziu-se em dominação do corpo e da alma. Não existe espaço para o reconhecimento da dignidade do Euafricano. Por isso que o Eu-africano começa a pensar em mudar os meios para reconquistar o seu reconhecimento, a sua dignidade, enfim a sua liberdade como sujeito da sua história e pensamento. A liberdade do Eu-africano torna-se um valor intrínseco à sua própria existência como sujeito no contexto da escravatura e na condição de colonizado. A liberdade que se clama não tem somente um sentido material de luta pela sua independência económica e pela sua autonomia política em proclamar a sua própria identidade. A liberdade que se quer vai muito mais além da independência e da autonomia20: é a liberdade epistémica. Ou seja: a liberdade do sujeito africano de falar por si, de construir o seu próprio discurso sobre a sua condição de existência. É a liberdade de ser livre em negociar a sua entrada na modernidade. Trata-se da liberdade de ter o direito de ser sujeito da sua história e do pensamento sobre si mesmo, que, quanto a nós, é o primeiro passo para o referencial da intersubjectivação. (20)

No fundo este é o tema a que Severino Ngoenha se dedica no seu já em si sugestivo título Das Liberdades às Independências. Este livro é uma história do pensamento africano seguindo o chamado paradigma libertário.

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No campo da exigência da liberdade física e económica, o Euafricano prepara-se hoje com muito afinco para a sua liberdade epistémica. Esta nova batalha libertária é expressa da seguinte forma por Meneses num artigo introdutório do caderno Epistemologias do Sul: «No norte global, os ‘outros’ saberes, para além da ciência e da técnica, têm sido produzidos como não existentes e, por isso, radicalmente excluídos da racionalidade moderna. A relação colonial de exploração e dominação persiste nos dias de hoje, sendo talvez o eixo da colonização epistémica o mais difícil de criticar abertamente» (Menezes 2008, 5). A luta pela liberdade epistémica do Eu-africano desafia hoje o paradigma moderno das ciências. Este paradigma, como nos diz Sousa Santos (2008,15pp.) é caracterizado por «perguntas fortes» que recebem também respostas aparentemente fortes ao modelo da ciência moderna cheia de certezas. O paradigma «emergente», segundo o mesmo autor, é caracterizado por «perguntas fortes» e por «respostas fracas» aos problemas epistémicos. O Eu-africano, na luta pela sua liberdade epistémica, desafia, hoje como nunca o fez na condição colonial, com mais abertura e ousadia ao paradigma das epistemologias do Norte. A liberdade epistémica tornou-se um tema sério no seio da filosofia africana. Mas, neste ensaio, não nos preocupa a relação Norte e Sul e como é que ela é tratada na filosofia africana. Estamos concentrados sim na análise dos pressupostos para a autolibertação da própria filosofia africana. Tanto Hountondji como Ngoenha justificam o fundamento da filosofia africana a partir do horizonte da luta pela liberdade; embora ambos fundamentem esta liberdade a partir de perspectivas diferentes, todavia não são antagónicas. O aspecto comum em ambos é, porém, o de unicamente admitirem que um projecto pode ser considerado filosófico africano, quando ele revê o passado e as tradições africanas unicamente na condição deste projecto ser feito em função do futuro. Ou melhor: quando o passado e as tradições são chamadas para o campo filosófico somente enquanto subordinadas à «missão futuro melhor», como Ngoenha chama à utopia filosófica. A condição de olhar para trás é, pois, quando essas lucubrações filosóficas, estão intrinsecamente ligadas à melhoria da vida das populações africanas em função de projectos sociais.

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Para Hountondji, the great issue at stake in the critique of ethnophilosophy, the principal objective, is the liberation of the future [a grande questão em jogo na crítica à Etnofilosofia, o principal objectivo, é a libertação do futuro] (Hountondji 2002, 125). Ou seja, a filosofia e os filósofos africanos têm que se libertar da carga do passado a que a etnofilosofia lhes submetera; o intelectual africano deve ser liberto do imperativo de se dedicar somente a assuntos etnológicos e seus derivados. E também deve ser liberto para poder abordar temas filosóficos que eram de tradição da filosofia ocidental. Assim se compreende que Hountondji veja essa sua crítica como um projecto de libertação do futuro da própria filosofia. A etnofilosofia estava a fechar-se ou a confinar o desenvolvimento da filosofia num ghetto, num beco sem fuga para o futuro. O projecto libertário hountondjiano contém várias dimensões da «libertação da filosofia futura». A primeira dimensão é a da «desmistificação» da ideia sobre África e sobre os africanos. A África tinha que ser reduzida a aquilo que ela de facto é: apenas um continente com características meramente de natureza geográfica; da mesma forma, africanos são aqueles que nasceram no continente africano. A concepção dominante de África e dos africanos, uma concepção em que dominam o mito e a mitologia, tinha que ser «demolida» para restabelecer a «verdade simples e óbvia que África é, acima de tudo, um continente, e que o conceito de África é empírico e geográfico, mas não metafísico» (Hountondji 1996,66; 2002, 126). A África, para Hountondji, é um continente e não um sistema de valores ou uma corrente de pensamento apriori. A determinação predominantemente metafísica da África, como queria a etnofilosofia, condenava a África a um passado e constitui um «obstáculo para a libertação dos africanos». A recusa a um congelamento de uma África que se define metafisicamente é o primeiro passo de libertação da África e dos africanos. A segunda dimensão da libertação corresponde à libertação do conceito de filosofia, desdogmatizando o próprio conceito. A busca da filosofia africana deveria ser feita numa perspectiva histórica e não sistémica, ou seja, filosofia deveria ser definida na dimensão da sua história e não de um sistema filosófico fechado. Colocando a filosofia africana numa perspectiva histórica (e não sistemática), Hountondji pensa estar certo que iria deslocar a filosofia de uma concentração no

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seu passado idílico para o futuro. Para que ela, a filosofia africana, possa ir para além dos aspectos fenomenais na sua auto-inscrição na história universal do pensamento, é necessário que ela própria se desdogmatize. Desdogmatizar seria libertar a filosofia para que ela vá para além da análise de mitos, de crenças e das tradições; e tenha a «coragem para um novo começo», escreve Hountondji. A terceira dimensão libertária da crítica hountondjiana à etnofilosofia apoia-se na sua tese subjectivista da filosofia. Segundo Hountondji, «libertar a filosofia do futuro significa também devolver ao indivíduo os seus direitos e responsabilidades, possibilitá-lo a aprender a pensar de novo por si mesmo em vez de buscar refúgio, como a etnofilosofia convida-o a fazer, por trás dos pensamentos dos antepassados» (Hountondji 2002, 128). Hountondji mostra uma obsessiva necessidade de eliminar qualquer vestígio de um pensamento colectivo e destacar o sujeito como o ser pensante. O projecto de inscrição da filosofia africana, na perspectiva de Hountondji, é o de subjectivação no qual o indivíduo toma a responsabilidade das suas opiniões e, nas suas palavras, em que o indivíduo «alimenta debates autênticos baseados numa confrontação livre de ideias e na busca da verdade […]» (Idem). A defesa de um futuro pluralista, a quarta dimensão hountondjiana da libertação do futuro da filosofia africana, procura afastar os preconceitos do unanimismo que tendem a induzir a ver-se a África sub-sahariana como uma sociedade primitiva ou semi-primitiva, onde todos estão sempre de acordo com os outros. Esta tendência de minimizar as mudanças internas em África, de mostrar uma África essencialmente unida, que nem sequer coloca a possibilidade de haver um pluralismo ideológico no nosso continente, tinha que ser também combatida intelectualmente. Os etnofilósofos queriam manter um sistema de pensamento próprio dos africanos cuja característica principal é a ausência de diferenças no passado, no presente e no futuro. Pior do que isso, essa forma de ver a África sem mudanças tendia a ser um modelo teórico que os próprios africanos subscreviam nas diversas formas da sua auto-inscrição na filosofia universal. Hountondji vê o valor da sua crítica à etnofilosofia na contenção dos filósofos africanos perante o que ele chama de unanimist temptation, a tentação do unanimismo. A sua crítica veio alertar os africanos a resistirem à tentação

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unanimista a que muitos africanos estavam a cair, quando tentavam escrever sobre a África. A crítica hountondjiana veio, em quinto lugar, libertar o próprio filósofo africano, compreendido na sua dimensão geográfica. Ou seja, apoia e inclui na filosofia africana a investigação de temas da filosofia europeia pelos africanos. A filosofia deixa de estar confinada a temas supostamente africanos, mas que na verdade não são mais do que temas que respondiam ao projecto antropológico da (neo)colonização epistemológica. Para ser reconhecido como um filósofo «autêntico», o africano não tinha mais que se dedicar somente aos eternos hábitos, costumes, provérbios, etc. supostamente dos africanos. Mesmo que seja somente na tentativa genuína de sistematizar o pensamento filosófico escondido nesses hábitos, costumes, provérbios, etc. o filósofo africano deve ser liberto para poder dedicar-se livremente a Platão, Husserl ou a um outro qualquer pensador europeu ou asiático, sem correr o risco de deixar de ser considerado como «filósofo africano». Assim, o filósofo africano liberto de se limitar aos temas africanos, ganhará uma dimensão universal no seu pensar, o que lhe colocará à altura do que os seus colegas são de facto: pensadores livres, no sentido de que perseguem os seus interesses cognitivos sem considerandos regionais, étnicos, religiosos ou linguísticos. Hountondji resume muito bem o seu projecto libertador dizendo que, na verdade, teve que lutar em duas frentes ao tentar explorar a possibilidade de uma filosofia africana autêntica e livre: uma frente era lutar contra os defensores da etnofilosofia e a outra frente era a ideologia da superioridade europeia que estava profundamente impregnada no debate sobre a filosofia africana. Estas duas frentes poluíam o debate (Hountondji 2002, 137). E ainda poluem! Este projecto libertário da filosofia africana de Hountondji é continuado e, quanto a nós, radicalizado, por Ngoenha em todas suas obras, com particular insistência na obra Os Tempos da Filosofia. Vamos expor o que ele chama de «paradigma libertário» do pensamento africano baseando-nos nesta obra já que é nela onde pensa ele ter fornecido «os fundamentos para um pensamento libertário da filosofia africana». Ngoenha expõe os «fundamentos» usando como pano de fundo o processo intricado da construção da democracia em

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Moçambique. A pergunta, à qual procura respostas naquela obra, é «que significa lutar pela liberdade hoje?». Convém iniciar dizendo que o conceito de filosofia em Ngoenha baseia-se mais em Marx, embora ele comece por discutir a visão contemplativa e comedida de um Hegel, que comparava a filosofia com a coruja que só vem depois de «tudo acontecer», ao entardecer. Die Philosophie kommt in der Dämmerung, diz Hegel. Para Ngoenha porém, e desta feita seguindo de perto as pegadas de Marx, a filosofia deve ser interventiva: a filosofia não só deve interpretar o Mundo — o que Hegel já teria feito — mas ela deve sobretudo transformar o Mundo procurando oferecer aos homens as melhores alternativas ao alcance para interpretar e para agir sobre a sua própria História. Isto equivale dizer que um filósofo digno de tal nome deve sempre perguntar-se sobre o seu papel diante dos processos nacionais e continentais de África e do mundo. Ngoenha defende o intervencionismo do filósofo no debate nacional de tal forma que chega a escrever: «digo muitas vezes que lamento ter nascido tarde e não poder ter aderido naquela luta [de libertação nacional de Moçambique] que continua nos meus olhos justa». Ao escrever Os Tempos da Filosofia Ngoenha tem como intenção desafiar aos intelectuais a trazerem suas reflexões sobre as questões fundamentais relativamente ao «novo» sentido que pode ter hoje «lutar pela liberdade» num quadro em que todos os países africanos estão politicamente livres e suposto estarem a construir a democracia. Ele pergunta-se: Como devemos militar e lutar por este sonho de liberdade? Quais são as nossas armas e quem são hoje os inimigos da liberdade? Quais são os constrangimentos de hoje à liberdade dos africanos e qual é o papel da filosofia na maximização das liberdades democráticas dos indivíduos e dos povos assim como na sua participação política? Para Ngoenha, a filosofia africana é chamada a mostrar as luzes que iluminem o caminho dos povos africanos para a maximização dos campos das suas liberdades políticas, sociais e económicas. Aliás e segundo ele, se há uma filosofia que desde o seu surgimento tem como sua essência a «busca da liberdade», esta é a filosofia africana; é tanto assim que Ngoenha declara que ela sempre foi marcada por um paradigma libertário. Vejamos nas suas próprias palavras:

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«Se existe um substracto filosófico que está na origem axiológica de Moçambique é, sem dúvida, a busca da liberdade. Aliás, a busca da liberdade caracteriza a história de África no último século. Se quisermos ser mais exaustivos, diremos que desde a sua criação-invenção (para parafrasear Mudimbe), através de um processo de apropriação identitária geneticamente exógena, a África, nascida nas diásporas, caracteriza a sua existência pela busca da liberdade.» (Ngoenha 2005, 34) Com estas frases, Ngoenha quer transformar a condição da existência da africanidade num problema filosófico. Ou seja, ele sugere-nos abordar a condição de existência dos africanos hoje a partir de numa perspectiva filosófica. Isto significa abordar as questões intrínsecas que impedem aos africanos o gozo das suas liberdades fundamentais porque, para Ngoenha, «o valor máximo que deve orientar as nossas acções [enquanto filósofos] é a liberdade». Ele explica o que denomina por «paradigma libertário» nos seguintes modos: «O substrato filosófico do pensamento africano é, sem dúvida, a busca da liberdade, devido à situação categorial de oprimido/escravo/colonizado/subdesenvolvido na qual os povos africanos se encontram a seguir ao encontro/choque com o ocidente [...]». (Ngoenha 2005,74) E mais adiante, no mesmo livro, Ngoenha volta a precisar mais este seu pensamento: «As diatribes da história africana, as vicissitudes existenciais primeiro e do pensamento em seguida, deram à política africana, mas também à sua filosofia um cunho muito particular a que eu chamo de libertário [destaque meu]. A natureza dos estados africanos (se quisermos ir mais longe diremos negros), quer sejam os da Serra Leoa e da Libéria, primeiro, e depois, os do Gana e Congo são, na essência, libertários: contra a escravatura primeiro e contra o colonialismo em seguida, aos quais durante séculos os negros estiveram submetidos. A filosofia africana emerge deste fundo comum de busca de liberdade. Se existe um paradigma [...] do pensamento e da filosofia africanos como eles se desdobraram historicamente, esse paradigma chama-se a busca da

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liberdade. Não de uma liberdade metafísica ou moral, mas de uma liberdade política. Não podemos pensar a África nem sob o ponto de vista político, nem filosófico perdendo de vista o paradigma libertário que deve ser a referência e o critério de julgamento das nossas lucubrações intelectuais e das nossas opções políticas.» (Ngoenha 2005, 75) Ngoenha radicaliza esta sua proposta de paradigma do pensamento africano propondo que a «busca da liberdade» seja o elemento ou critério avaliador sobre a pertinência das reflexões filosóficas no contexto africano hoje; ou seja, qualquer lucubração de natureza filosófica deve ser julgada como tal a partir da conclusão sobre em que medida estas reflexões filosóficas «alargam» ou não o campo da liberdade dos africanos. Por isso Ngoenha quase que ‘obriga’ a todo o filósofo africano que se quer dignar deste nome a abordar assuntos relacionados com a construção da democracia no continente africano e no mundo. Ele afirma: «As nossas reflexões e opções em torno do liberalismo e da democracia devem ser subordinadas a esta busca secular da liberdade. Devem ser analisadas não em função da dinâmica mundial (mesmo se não a podemos ignorar), mas subordinadas à nossa busca secular e histórica. Só na medida em que um regime político, um sistema económico, colaboram para incrementar a esfera paradigmática da nossa busca histórica é que eles podem ser avaliadas positivamente.» (Ngoenha 2005, 75 p.) Pensamos assim que o singular em Ngoenha é o facto de ter elevado a busca da liberdade como o valor mais alto do que-fazer filosófico no contexto do nosso continente africano e nos contextos particulares nacionais. Em nosso entender, ao estabelecer uma espécie de criteologia deste género para a avaliação do que é ou o que deve ser uma reflexão filosófica africana, Ngoenha, para além de radicalizar o critério, também politiza-o. O que ele de facto faz é submeter a toda uma empresa filosófica na história dos africanos e hoje ao que ele chama de «valor intrínseco» do filosofar, ou seja, o valor da liberdade. Uma causa muito nobre, mas precisa de ser ainda reenchida de

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conteúdos que respondam aos problemas filosóficos colocados por diversos referenciais da auto-inscrição dos próprios filósofos africanos na história do pensamento filosófico do seu continente. Estando parcialmente de acordo com o critério «busca da liberdade» como condição básica e primária da busca filosófica no contexto africano sugerido por Ngoenha, vamos, em diante, responder a este desafio alargando o campo das liberdades necessárias à filosofia africana tornando frutíferas as preocupações sugeridas pelos referenciais da objectivação (etnofilosofias e etnociências) e pelos referenciais da subjectivação (afrocentricidade e ubuntuismo). As preocupações sugeridas pelos referenciais de objectivação e de subjectivação precisam de respostas elaboradas a partir de uma perspectiva do paradigma libertário. Estas preocupações são intrínsecas à própria filosofia africana. Encontramos filosofia por trás do essencialismo da ontologia como a de Tempels? Ou a filosofia africana deve continuar presa à busca ontológica para afirmar a sua identidade especial como nos é sugerido pelo ubuntuismo? Ou vamos buscar a filosofia por trás da suposta extrema religiosidade dos africanos, como nos propõe Mbiti e, como parece sugerir o nosso colega Manuel Moto com o termo «teologia filosófica» (Cfr. Moto 2008,183pp.)? É uma exigência existencial da própria filosofia africana estar presa às religiões africanas e importadas? Será que a filosofia não pode existir, melhor libertar-se da religião? Estaremos condenados, enquanto africanos, a procurar filosofia por trás dos mitos, provérbios, hábitos e costumes dos povos e sábios locais? O filosófico africano só poderá advir dos mitos e provérbios não importando se o seu conteúdo é uma continuidade ou uma ruptura com o mito? Teremos filosofia a partir do escrutínio dos conceitos «filosóficos» em línguas vernaculares segundo o que Kagamé nos parece querer sugerir? Ou ainda podemos falar de uma filosofia africana que nascerá da missão platónica de transcrever os dizeres dos chamados «sábios filosóficos» como Oruka queria? Pensamos que, ao mesmo tempo que a filosofia procura revelar as fronteiras às liberdades políticas dos cidadãos nacionais e africanos (como Ngoenha sugere), ela mesma deve, simultaneamente, combater os constrangimentos internos (no interior da própria filosofia) à sua

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própria liberdade. O combate contra os constrangimentos à sua própria liberdade vai permitir que a filosofia africana esteja pronta para o exercício da intersubjectivação. E é na busca destas liberdades intrínsecas à própria filosofia africana que pensamos alargar e aprofundar o desafio colocado pelo paradigma libertário da filosofia. Isto leva-nos às cinco liberdades intrínsecas que condicionam a existência de uma filosofia africana. Para ser mais exacto, são liberdades que condicionam a existência de uma filosofia crítica africana. Comecemos pela primeira: a necessidade da filosofia africana libertar-se do essencialismo ou do unanimismo (como Hountondji chama à tendência das etnofilosofias buscarem a essência do pensamento colectivo africano). Com efeito, o primeiro passo libertário da filosofia africana é libertar-se a si mesma da propensão de tender a dedicar-se a assuntos que as seguintes frases nos sugerem: «os africanos pensam assim», «os yoruba acreditam que…», «a essência da ontologia dos sena/ronga/ /macua é esta», «os bantu acreditam que…», etc. A filosofia deve manter-se vigilante a este tipo de busca filosófica onde uma comunidade ganha a capacidade de pensar, o que é filosoficamente uma aberração. É certo que um colectivo pode agir de certa forma e essa sua acção coordenada ser informada por certos hábitos e costumes, certas crenças colectivas e mesmo certos ideais políticos comunitários. O problema da etnofilosofia reside, no fundo, no facto de não ter conseguido isolar a acção ou as acções coordenadas do pensamento individual dos membros de uma determinada comunidade linguística ou territorial. Por supostamente ou realmente um grupo de pessoas comungar os mesmos hábitos tradicionais ou crenças religiosas não advém daí que todos eles pensam da mesma forma. Em cada grupo e em cada situação há sempre vozes diversas ou mesmo críticas à forma como as coisas são feitas. Mesmo os «velhos» supostos de estarem em condições de orientar certas cerimónias e/ou ritos de iniciação, religiosos, familiares, etc. manifestam discordâncias nas suas interpretações sobre os mesmos fenómenos e processos. De outra forma não se justificariam os «longos» debates que antecedem o início de certas cerimónias. De facto, o unanimismo existe somente na cabeça do (etno)filósofo. Hountondji tem razão ao querer libertar a filosofia do seu passado e olhar para a filosofia em termos de «projecto futuro», tal como Ngoenha faz com a sua «missão futuro» da filosofia. O essencialismo

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só amarra a filosofia a um passado idílico, sobretudo se esse passado não for desenterrado somente na medida em que ele apresenta soluções para os problemas modernos ou encerra alternativas válidas de pensar a projecção de uma utopia social. Se encontrarmos no passado fórmulas para melhorar e alargar o debate político entre os moçambicanos, ou entre os africanos em geral, pois vejamos como aplicar estas mesmas fórmulas no aprofundamento das nossas jovens democracias; se encontrarmos na tradição ou nas culturas locais formas efectivas de comunicação para a prevenção de doenças como a malária, o SIDA, as diarreias, etc. pensemos pois em como, usando tecnologias modernas de comunicação, podemos melhorar essas formas locais de comunicação para fazer chegar a mensagem de forma mais clara para mudar o comportamento das pessoas; se estivermos de acordo que os valores tradicionais nas comunidades conduzem à situações em que as pessoas são mais solidárias, mais respeitosas, mais humanas, pois pensemos então o que significa usar estes mesmos valores como substrato para desenhar as nossas instituições políticas de forma mais solidária, mais humana e mais justa; se viver na palhota sem acesso à água canalizada ou potável, sem energia, sem divisões que garantam a privacidade individual, etc. é um atributo da pobreza, não chamemos então «pobre» à arquitectura africana também, ou seja, «modernizemos a palhota» mantendo a forma, melhorando as condições de vida dentro da ordem arquitectónica que nos é sugerida pela tradição; também podemos pensar em modernizar os nossos padrões estéticos a partir das interessantes «descobertas» da etnogeometria, dos padrões nos cestos e nas esteiras tradicionais; há muitos outros exemplos que se podem dar para demonstrar como devemos olhar para as tradições, desenvolvê-las sem cair no essencialismo ou no unanimismo, ou melhor, libertando-nos da tentação ao essencialismo que seja cego ao projecto futuro intrínseco da filosofia. Passemos para a segunda dimensão da qual a filosofia africana deve-se livrar: a religião. Mbiti, como vimos, propõe que vejamos a religião em África como estando intricada num conjunto de práticas e não com o que está escrito nos papéis em forma de doutrina. A religião, segundo ele, está escrita nos corações, nas mentes, na oralidade e nos rituais das pessoas. Consequentemente, os nossos padres em África são os fazedores da chuva, são os mestres-de-cerimónias,

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confundem-se com os reis, enfim, são os detentores de saberes especiais nas aldeias. O africano está assim «condenado» a ser religioso porque, sendo a religião um conjunto de práticas intricadas naturalmente em todas as actividades do quotidiano, não há como o africano poder escapar dessas actividades. Entretanto se, segundo Mbiti, a filosofia africana deve procurarse por trás da religiosidade naturalista do homem africano, resulta daí que para ele a filosofia reduz-se às reflexões sobre o significado e o sentido destas mesmas práticas, reflexões estas que passam necessariamente por ser informadas pela religião. Nesta ordem de ideias, a tarefa da filosofia segundo Mbiti nos propõe seria, primeiro, descrever as práticas religiosas dos homens africanos e, segundo, interpretar estes mesmos a partir da visão religiosa dos africanos. Porém é o mérito de Mbiti que também o condena. De facto, o seu mérito foi o de procurar relacionar, ou melhor explicar, a filosofia a partir duma esfera fundamental cultural humana que é a religião; neste sentido constitui um mérito, porque não busca uma essência ontológica inventada como Tempels o fez. Mas ao mesmo tempo encontramos em Mbiti uma confusão grande entre o conceito de religião, suas práticas e justificações das mesmas e o conceito de filosofia como reflexão crítica sobre os factos e práticas. A filosofia africana não deve estar presa às profecias religiosas. Como sublinha Ngoenha no livro Das Liberdades às Independências, se adoptarmos uma visão futurista, a religião faz profecia e a filosofia utopia. Isto significa que a filosofia deve-se «libertar» da religião para que a própria filosofia não se veja na contingência de espalhar profecias e se concentre em elaborar utopias. A filosofia africana deve libertar-se de ser considerada africana pelo facto de estar a debater com muita insistência sobre a tradição. Ela, enquanto filosofia, deve tratar de questionar assuntos; enquanto africana deve tratar assuntos que dizem respeito (mas que não se limitam) à África. Nós pensamos que já é momento para a filosofia africana libertar-se a si mesma do debate tradicionalista. O debate tradicionalista é aquele que tende a mistificar em vez de desmistificar, tende a idolatrar os hábitos e costumes tradicionais, em vez de questionar a contemporaneidade dos valores que estariam no seu substrato; enfim, é um debate poluído pelo misticismo. Para a filosofia africana avançar

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um pouco mais na sua própria liberdade (porque está presa ao debate tradicional) ela deve acender o fogo libertário interno que queime os mitos que a prendem ao tradicionalismo e assim poder concentrar-se na busca de respostas a assuntos que dizem respeito ao futuro. Quando falamos da filosofia africana, coloca-se sempre o problema do papel da oratura dos sábios africanos para a criação de um sistema filosófico. Quando falamos de oratura ou, mais precisamente de filosofia que é praticada de forma oral, referimo-nos à pratica da filosofia que está situada nos espaços intersubjectivos dos sábios africanos. Historicamente este espaço refere-se ao pensamento das pessoas que vivem nas zonas rurais e que não possuem uma escolarização formal e moderna e, por consequência, não têm a possibilidade de escrever o seu texto. No entanto, embora não o escrevendo, esses sábios têm uma palavra a dizer sobre diferentes questões que se levantam em torno do sentido da vida. E dizem-na em forma de oratura. Para a compreensão mais clara sobre a distinção entre o sábio e o filósofo recorremos à famosa distinção feita por Kant, quando afirma que Wissenschaft ist organisiertes Wissen, Weissheit ist organisiertes Leben, ou seja, ciência é conhecimento organizado, enquanto sabedoria é vida organizada. Aqui estão claros os pontos do cruzamento e do distanciamento entre o cientista e o sábio. O ponto do encontro é a «organização», ou seja, ambos pensam a vida ou o conhecimento de uma forma estruturada. A sua preocupação é organizar a vida e o conhecimento (sobre ela). O que os distancia é o objecto da sua organização: enquanto um está preocupado pelo conhecimento o outro está mais preocupado pela vida. De facto surge aqui uma questão, nomeadamente, a de saber se poderá existir conhecimento que, em primeira linha e em última instância, não se preocupe pela vida humana. Assim, podemos aproveitar Kant para definir que um sábio é aquele que se preocupa por conhecer a melhor forma de organizar a vida de uma determinada comunidade. Quando falamos de «organizar a vida» não quer dizer que o seu conhecimento se limite ao tema vida. Muitas vezes ele vai para além disso. Mas o termo organizar a vida quer significar que o sábio faz da vida o objecto principal do seu pensamento não se limitando, porém, a parar por aí. O que, de facto, pode distinguir estes sábios dos filósofos profissionais é o facto de eles usarem maioritariamente a oratura para se comunicarem.

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Em torno da problemática da oratura se tem levantado muitas questões a saber: os dizeres orais ou provérbios africanos podem ser considerados filosofia ou não? Ou é filosofia o conjunto de textos da interpretação filosófica da oratura que deve fazer parte do corpus da filosofia africana? Ou ainda ambas? Qual é o papel do filósofo africano profissional perante estes dizeres? Transcrevê-los ao estilo de Griaule? Interpretá-los com base na ordem discursiva formalmente estabelecida da filosofia como uma disciplina académica, seguindo, desta feita, as pegadas de Tempels e Kagamé? Ou entrarmos num diálogo intersubjectivo entre os sábios e os filósofos profissionais? Por isso, a terceira dimensão libertária que a filosofia africana deve empreender consigo mesma diz respeito à libertação do debate sobre a oratura nas culturas africanas e sobre o seu papel. Em relação a isto, os filósofos africanos têm tido dois pressupostos: por um lado filósofos africanos que defendem que o debate filosófico pode ser feito somente ou fundamentalmente na base de textos escritos. Recordemos aqui a sua definição de filosofia como um «conjunto de textos» escritos com a intenção de serem filosóficos por parte do autor e que sejam aceites ou classificados pelos outros como legítimos para irem parar nas prateleiras da filosofia. Por outro temos filósofos africanos que bem entendem que a «verdadeira» filosofia africana está «escondida» por trás dos provérbios, dizeres, contos, lendas africanos. E que, portanto, a verdadeira filosofia está na oratura; daí que um exercício importante de resgate da filosofia escondida ou implícita deveria ser feito pelos filósofos profissionais. Este exercício de resgate tem sido feito de duas formas: através de uma transcrição textual de entrevistas (caso do velho Ogotommêli feita por Grioule) ou então através de um exercício de interpretação daquilo que julgamos haver nessas culturas que tenha um sentido filosófico. Este último é o caso de Tempels, Kagamé e outros, cunhados como sendo da corrente etnofilosófica. Embora achando que, de facto, Hountondji teve um ponto importante ao insistir no texto escrito, achamos porém que esta insistência tem a ver com a forma de filosofar, sem dizer muito o conteúdo do acto de filosofar. Sobre os conteúdos pensamos encontrar melhores propostas e melhor oportunidade de genuinidade se adoptarmos uma inclinação da etnofilosofia. Assim, o filósofo profissional africano,

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quanto a nós, para elaborar o seu sistema, deve inspirar-se nos textos da oralidade cultural presentes nos dizeres, sem porém limitar-se a eles. Mais, a parte da oralidade que deverá ser o ponto de partida do filósofo que pretenda desenvolver a filosofia africana, deverá ser aquela que expressa um sentido crítico em relação à situação e não aquela que somente reproduz. Mais ainda, o filósofo profissional deverá ser capaz de chamar ao debate o detentor dos saberes para que ele próprio seja capaz de expressar os seus argumentos. Ou seja, o filósofo profissional tem, quanto a nós, uma dupla responsabilidade (ou um duplo sentido hermenêutico) em relação aos saberes filosóficos tradicionais: uma transcrição interpretativa desses saberes com base no cânone e métodos analíticos da própria filosofia (o que acarreta certos momentos de objectivação) e criação fóruns de disseminação dos saberes onde os detentores dos saberes filosóficos tradicionais podem mostrar a sua argumentação, inclusive ter oportunidade de desenvolvê-la. Chamaremos a estes fóruns espaços de intersubjectivação. O grande debate aqui e que faz parte da filosofia africana é a forma como esta se vai elevar (libertar-se) para acima do mito da oralidade. E neste sentido a Sage Philosophy, tal e qual foi formulada por Odera Oruka, constitui um bom exemplo que podemos chamar à memória aqui. Segundo Oruka, a palavra Sage Philosophy refere-se ao «homem ou mulher sábio». Esta mulher ou homem podem possuir, segundo ainda Oruka, uma oralidade filosófica que pode ser feita mesmo por uma pessoa que não tem noção de Filosofia e que nunca viu a porta da escola. Com base no carácter de expressão oral do pensamento africano, os europeus teriam visto os africanos como não sendo capazes de filosofar. Uma vez que a Filosofia requer rigor, pensamento racional, os europeus, especialmente no tempo colonial, pensavam que os africanos não eram capazes de criar um sistema filosófico. Oruka faz menção ao livro Not yet Uhuru, publicado em 1967, onde Oginda Odinga, conta que encontrara-se com um europeu que lhe dissera: «Olha Odinga, a tua cabeça não está feita para pensar; ela só serve para cumprir ordens». Isto é um exemplo da atitude herdada e que no fundo ainda mantemos; esta atitude explica, em parte, a maneira como tem sido encarado o papel da oralidade pela maioria dos filósofos profissionais africanos ligados ao ensino nas universidades.

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Odera Oruka, considerado como sendo o fundador desta corrente filosófica em África, defende que, nestes termos, embora a oralidade tenha existido há muito tempo em África, ela é hoje encarada, especialmente no seio dos filósofos africanos, de uma «nova» forma. O que impulsionou esta nova forma de encarar mais seriamente estes saberes nos anos 1990 foi sem dúvida a conferência sobre o meio ambiente no Brasil em 1992 onde o conhecimento dos chamados «povos indígenas» foi objecto do interesse do mundo, particularmente entre os investigadores da filosofia, na investigação tecnológica e nas ciências naturais. A partir daí os investigadores interessam-se em saber o conhecimento dos «povos indígenas» em várias áreas que abarcam os seus costumes, as suas tecnologias, a sua ciência entre outras. O que é novo na sage philosophy é a sua ênfase na verdade e na crítica contida no saberes tradicionais destes homens e mulheres que não foram à escola e que se podem encontrar espalhados no campo e nas cidades por toda a África e em outras partes do Mundo. Embora a investigação tenha iniciado com Oruka no Quénia, hoje a filosofia oral é tida como uma das fontes principais para uma filosofia africana. Nas suas investigações sobre a oralidade filosófica, Oruka seleccionou aquelas pessoas sábias que nunca tinham frequentado escolas modernas formais porque ele achava que o pensamento expresso por elas não sofrera nenhuma influência europeia e assim se poder defender o seu pensamento como sendo genuinamente africano. Antes do desenvolvimento da sage philosophy em África, o estudo e a pesquisa sobre o pensamento africano era realizado segundo os modelos de análise e conceitos europeus. Agora com a emergência dos projectos de pesquisa nesta área, cada vez mais filósofos profissionais africanos chegam à conclusão que «de facto aqui está um exemplo típico da contribuição africana para a Filosofia». Oruka, defendendo esta forma de praticar filosofia, sustenta que «as mesmas pessoas quando se confrontam com os conteúdos da sage philosophy notam que ela não é menos filosófica, menos racional ou ainda menos profunda do que a filosofia clássica europeia que antes tinham aprendido». Nos nossos contactos com os filósofos profissionais ainda notamos a presença de uma certa «desconfiança» que têm para com a oralidade como fonte para o seu empreendimento filosófico. Esse temor

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explica-se de duas formas: por um lado, porque o seu treino próprio como profissionais de filosofia não foi feito na base de textos orais tradicionais. Portanto explica-se aí uma certa atitude de afastamento. Por outro lado, a perspectiva de serem chamados como novos etnofilósofos parece ser de pouco agrado. Isto só mostra que a «batalha» para libertar os profissionais de filosofia africana do mito da oralidade ainda é muito longa. O conforto de argumentar com textos escritos sobrepõe-se, hoje, ao desconforto de ter de aprender filosofia com um sábio que não foi à escola e que fala uma língua que o nosso filósofo profissional não domina. Mas o que é um sábio que deve ser o «colega» de debate para o filósofo profissional? O sábio é uma pessoa geralmente idosa que detém um conjunto de conhecimentos que o autoriza a emitir juízos sobre o verdadeiro, sobre a moralidade, sobre o estético e a espiritualidade na sua comunidade ou sobre a vida em geral; é uma pessoa que, usando esta autoridade conferida pelos seus conhecimentos, geralmente influencia naquilo que pode ser considerado certo ou errado, decente ou indecente, bom ou mau. É uma pessoa que, embora na sua linguagem fale em nome de todos, como filósofos profissionais somos capazes de notar que, o que diz carrega uma dose muito grande de pensamentos autónomos. Num sábio, embora note-se um certo apego pelos provérbios, lendas e contos na sua oratura, é possível aperceber-se da existência uma certa independência de espírito nas suas lucubrações. O facto de o sábio recorrer aos provérbios, lendas, contos e a «frases feitas», deve ser visto pelo filósofo profissional como um ímpeto igual ao seu de «citar» aos colegas para fundamentar as suas ideias. A diferença é que aquele não cita nomes, mas tão-somente pensamento. Portanto, a recorrência às lendas, provérbios, contos e outras formas de oratura que os sábios muitas vezes fazem, não se trata nada menos e nada mais que do mesmo espírito e atitude filosóficos que empurra este para a busca da fundamentação das coisas. O saber do sábio é tão abrangente que atinge assuntos da espiritualidade, da religiosidade, da ética, da estética, da medicina mas também das relações públicas na condução de cerimónias. E esse acumular de diversos conhecimentos numa só pessoa só é possível se esta mesma pessoa é devota pelo saber e pela reflexão, tal e qual como o filósofo profissional. Ou ainda, como geralmente sucede, o sábio

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pode ser mais devoto na busca desinteressada do saber que o nosso filósofo profissional africano. A questão «espíritos» na filosofia africana deve ocupar, em seguida, a nossa atenção. E isto por várias razões. Uma delas é o facto de que, quando falamos da filosofia africana, muitas vezes o adjectivo «africana» é conotado com um determinado grau de tradicionalismo, em alguns casos de curandeirismo, ou pelo menos de não imaginarmos um filósofo africano que não tenha dedicado uma parte das suas energias intelectuais a lidar com os médicos tradicionais, líderes de cerimónias religiosas tradicionais, fazedores de chuvas, mágicos e outros nomes diminutivos que os colonialistas foram criando para designar aos nossos especialistas de vários domínios e campos do saber. Parece que o mundo fora e dentro da África ainda não se libertou de se ver tentado a conotar filosofia africana com um certo grau de obrigação a que os filósofos deste continente dediquem uma parte considerável do seu empreendimento filosófico com questões ligadas directa ou indirectamente ao espiritualismo. Você acredita que haja espíritos? parece ser uma pergunta publicamente (e por decência) sempre não-feita quando falamos da possibilidade da existência duma filosofia africana. Podemos falar de filosofia africana sem algum dia termos de responder esta pergunta (mesmo que não a façam de forma explícita, e sim implícita)? A esta questão Oruka dá uma resposta interessante quando considera que ele estaria ainda à busca de razões suficientes da possível causa porque é que ele não deveria acreditar nos espíritos: «talvez farias um serviço brilhante para as pessoas se me desses a razão ou razões porque eu não deveria acreditar neles!» (Oruka, 1997,215). No fundo, esta resposta (que não o é) visa «libertar» os filósofos profissionais africanos que têm um certo temor em enfrentarem questões da religião, da metafísica e sobretudo de espiritualidade; de sentiremse envergonhados quando são questionados sobre esses assuntos. De facto, enquanto filósofos africanos, não somos obrigados, de cada vez que abrirmos a boca, a falar de espíritos e dos nossos antepassados. E nem seria isso desejável. Odera Oruka pensa que é neste ponto (ocupar-se com os saberes ancestrais e espiritualistas) em que a filosofia africana institucionalizada deve vislumbrar mais oportunidade do que embaraços de si

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mesma. Para ele o filósofo africano não deveria perder o seu tempo e energias tentando encontrar uma boa razão para justificar a sua recusa em pronunciar-se sobre aspectos do espírito. Pelo contrário, Oruka no quadro do seu projecto da sage philosophy, vê isso como uma oportunidade de se desenvolver este ramo específico da filosofia, nomeadamente a que trata de uma filosofia «sobrenatural». Para nós, a espiritualidade constitui um agenciamento das acções humanas às entidades metafísicas. Como tal, a espiritualidade não deixa de ser um discurso construído de justificação e, em alguns momentos, de fundamentação dessas mesmas acções. No entanto, falar de «ter sido atacado pelos espíritos» no contexto africano parece ter uma conotação negativa, uma coisa não boa para o ser humano porque desestabiliza o ego. Esta tendência de interpretação é, porém, contrária à religião cristã que considera o espírito como sendo «santo». É possível construir uma filosofia verdadeiramente africana, usando como veículo uma língua originariamente não africana? Poderíamos imaginar um Sócrates ou um Platão a tratar os problemas da democracia grega numa outra língua? Se filosofia é criar conceitos (Deleuze & Guatari), ou resumir o tempo no conceito (Hegel), ou ainda é interpretar para transformar o mundo (Marx), estará o filósofo africano a sê-lo pensando, escrevendo ou orando numa língua importada? Embora estas questões sejam importantes e precisem de respostas claras por parte da filosofia que se pretende africana, em nossa opinião, elas não devem ocupar um lugar central e nem os filósofos deveriam continuar a perder muita energia com elas. De facto, elas são de natureza elitista, isto é, são angústias que revelam os problemas do filósofo africano (e não da filosofia em si) pelo facto de este ter tido uma educação filosófica formal em língua de origem europeia. Por este facto, o filósofo africano profissional não vai poder apreender o tempo no conceito, nem vai puder criar conceitos em nenhuma língua africana. No entanto o filósofo não vai precisar necessariamente de resolver estes problemas para que ele possa interpretar e transformar o mundo em que vive, como pretende Karl Marx. Assim, chegamos à quarta dimensão libertária intrínseca à própria filosofia africana: trata-se do problema linguístico. Este problema linguístico parece ser o que a corrente hermenêutica da filosofia

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africana quer pôr em frente aos nossos olhos. Como dissemos, na marcha para a sua própria libertação, a filosofia africana não deve perder muitas energias com o problema linguístico, não que este não seja importante para a sua libertação. Heiddeger já teria dito que a linguagem é a casa do homem, para destacar a importância não da língua mas da forma como a usamos para o que-fazer da filosofia. Isto quer dizer que é a palavra que é fundamental para que se possa ter o direito de morar numa casa filosófica. Mas, achamos nós, o acto de filosofar, isto é, o acto de submeter a realidade ao tribunal da crítica, é independente da língua em que o fazemos. O que interessa, como Heiddeger diz, é a linguagem não a língua em si. Pelo contrário, a filosofia africana deve libertar-se e libertar os africanos da fixação no problema linguístico como condicionante para o desenvolvimento político, social, económico e intelectual do continente. Ao insistir neste problema, a filosofia africana está a recalcar um problema exterior ao continente e a si mesma, enquanto disciplina. Pois, é certo que a língua foi, por exemplo, determinante para a formação e unificação duma Alemanha fragmentada em feudos. Foi a partir de Martinho Lutero, traduzindo a Bíblia usando o Hochdeutsch, que a nação alemã se unificou, isto é, que ela se reconheceu como tal. Antes, a Alemanha era um conglomerado de feudos isolados que falava e escrevia em dialectos diferentes. É graças a esta unificação linguística que também se passa a reconhecer todo o património cultural e intelectual anterior e posterior à tradução da Bíblia, como pertencendo unicamente à «nação alemã». A criação de uma única língua, neste contexto, foi importante para a comunicação e a interacção entre os intelectuais que outrora se consideravam de diferentes origens e convocá-los para um debate nacional. Assim, tivemos uma acção unificadora da língua. Em outras palavras, ela foi a base para a intersubjectivação no seio da sociedade alemã posterior a Lutero. Mas temos também, em África, exemplos contrários, embora o fenómeno seja o mesmo. Os missionários europeus, quando chegaram nas diferentes regiões da África (e em muitos casos ainda hoje), o seu «primeiro» acto foi traduzir a Bíblia para as diferentes línguas locais. Num primeiro momento, este acto parece ter sido tomado com o objectivo de trazer a mensagem de Deus para mais perto dos crentes.

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Também foi esta a justificação de Martinho Lutero. No contexto africano, o resultado também foi construir proto-nações a partir do que eles próprios chamaram por «tribos» ou «etnias». É este o caso, por exemplo, de Henri Junod que literalmente cria a tribo ou etnia tsonga na região sul de África ao traduzir a Bíblia para uma língua que ele próprio criativamente chamou de tsonga ou tonga (veja Ngoenha na obra Axiologia e Educação) A partir destes escritos (que incluem também cadernos de cânticos religiosos e livrinhos de natureza científica, sobretudo nos campos da biologia, botânica, geografia) primeiro os crentes e depois os «nacionalistas» começaram a reconhecer-se como sendo da chamada etnia tsonga. Enfim, para sermos claros, a insistência de Asante sobre a necessidade de se desenvolver uma filosofia africana baseada na língua ou nas línguas africanas é simplesmente um absurdo. Não é a língua senão as formas como fazemos o uso da linguagem o ponto mais importante para a intersubjectivação. Como aliás já se demonstrou, há muitas obras que estão nas prateleiras da filosofia africana nas diferentes bibliotecas e que estão escritas tanto em português como também em inglês, francês ou numa outra língua qualquer de origem europeia.

Referencial VI: A Interculturalidade Antes de prosseguir com esta segunda parte da intersubjectivação, convém fixarmos dois reparos, nomeadamente sobre o método e sobre o conceito. Tal como fizemos no referencial da liberdade, vamos abordar a interculturalidade usando o método de crítica ao interior da própria filosofia. Ou seja, vamos analisar os factores ou elementos que são os constrangimentos intrínsecos e extrínsecos à abertura intercultural da própria filosofia africana. Relativamente ao conceito de «cultura», como já tivemos ocasião de dizer acima, não vai aqui ser usado na sua versão antropológica. Ou seja, cultura aqui não é entendida a partir de bases antropológicas positivistas como língua, religião, hábitos e costumes, contos, provérbios, danças, etc. para definir uma região cultural. Esta definição seria restrita demais para os nossos propósitos. Pelo contrário, cultura é entendida aqui como a «segunda natureza» humana, isto é, o processo

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da criação de formas de conhecimento, das técnicas e de formação de habilidades que visam garantir que o ser homem possa viver, procriar-se e educar aos seus sucessores, enquanto seres humanos. Entendida desta maneira, a cultura é a experiência crítica que o homem faz com a Natureza circundante e com os outros seres humanos e sociedades. Este prisma de definição da cultura serve para precisarmos mais a noção interculturalidade. A interculturalidade constitui o conjunto de atitudes e predisposições necessárias para um envolvimento mútuo de dois ou mais sujeitos na troca das suas experiências subjectivas, críticas e por si vivenciadas (enquanto indivíduo ou grupos sociais) com os outros. Assim, é importante sublinhar que por interculturalidade não entendemos um determinado estado fixo de relações, mas sim um processo de formação de atitudes e predisposições nos sujeitos por forma a torná-los aptos para o debate entre as culturas. Todavia, para um diálogo intercultural podemos adoptar uma atitude filosófica. Dussel escreve no texto Transmodernidade e Interculturalidade, texto este que escreve em resposta às posições de FornetBetancourt: «O diálogo intercultural […] não é apenas, nem principalmente, um diálogo entre os apologistas de suas próprias culturas, que intentariam mostrar aos outros as virtudes e valores de sua própria cultura. É, antes de tudo, o diálogo entre criadores críticos de sua própria cultura. […] Mas, também, não é sequer o diálogo entre os críticos do ‘centro’ metropolitano com os críticos da ‘periferia’ cultural. É, antes de tudo, um diálogo entre os ‘críticos da periferia’, um diálogo intercultural Sul-Sul, antes de passar ao diálogo Sul-Norte.» (Dussel 2004, 199 p.) Como pode ser facilmente notável, Dussel sustenta um conceito de cultura que é exactamente o que pretendemos evitar: o de limitar o conceito de cultura a uma perspectiva antropológica. Porque ele inclui esta categoria antropológica de cultura, quando diz que «não é apenas […] um diálogo entre os apologistas de suas próprias culturas». Este trecho faz claramente alusão a línguas, religiões, ou outros elementos antropológicos quaisquer.

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Desta definição de interculturalidade interessa-nos, todavia a segunda parte, nomeadamente onde ele intersubjectiva a definição ao tratar o diálogo intercultural como sendo «entre críticos». Deste modo torna-se claro que pegamos essa citação para fazer frutífero o aspecto que está na base da nossa definição de filosofia, ou seja, o aspecto da dimensão da «crítica», frisado por Dussel. Dussel intersubjectiva o conceito de cultura ao salientar que se trata de um «diálogo» entre os críticos. É todavia este aspecto que aqui vamos aproveitar para mostrar o que a filosofia profissional, após libertar-se dos seus constrangimentos intrínsecos referidos no ponto anterior (referencial libertário), e após libertar-se do que chamamos «debate tradicionalista», deve fazer para promover um diálogo intersubjectivo entre os «críticos» da filosofia africana profissional e os da filosofia tradicional, filosofia esta que circula na forma oral. E há muito trabalho que a filosofia profissional pode e deve fazer. A filosofia africana profissional tem a responsabilidade epistémica de se abrir para o conjunto de saberes de natureza filosófica sugeridas pelas tradições africanas. Esta abertura implica, sobretudo, que a própria filosofia africana profissional deva pôr um ponto final ao mito, segundo o qual os sábios tradicionais passam a vida a idolatrar as tradições ou que são essencialmente e apenas guardiãs dos usos e dos costumes tradicionais não desenvolvendo, por consequência, competências reflectivas e críticas em relação ao próprio acto do filosofar. Os filósofos profissionais africanos devem, pelo contrário, convencerse que os seus colegas tradicionais são também críticos em relação à sua realidade natural, social e espiritual. Há exemplos que atestam isso. Oruka demonstrara como um dos sábios que investigara era muito crítico em relação a algumas práticas rituais de iniciação e de como, usando o seu sistema tradicional de justificação, defende a igualdade entre o homem e a mulher. Quando falamos de responsabilidade epistémica queremos referir-nos à necessidade e o dever que a filosofia africana profissional tem em construir e, em muitos casos, inventar espaços de intersubjectivação nos quais os sábios das filosofias tradicionais possam fazer circular e desenvolver as suas posições críticas e, sobretudo, as suas utopias sociais. Nesses espaços, eles deverão, portanto, poder ir para além de serem simples apologistas do direito costumeiro, dos hábitos

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e costumes, das crenças colectivas ou ainda de simples mestres-decerimónias. São espaços onde esses sábios deverão ser encorajados a articular aquilo que chamamos o primeiro nível do exercício da crítica: aquela que é dirigida às próprias formas de interpretar a realidade social do seu próprio meio. Nesses espaços serão ouvidos os seus argumentos em relação às suas tradições, hábitos e valores. Mas não podemos esperar muito mais que isso, supomos. Provavelmente estes sábios não poderão estar em condições ainda de passarem ao segundo nível de crítica: trata-se do nível onde reflectem sobre os próprios pressupostos teóricos, isto é, passarem para uma espécie de metateoria. Este, como veremos, será o trabalho dos filósofos profissionais africanos. Porém, a própria filosofia africana profissional terá de fazer o seu trabalho de casa, antes de entrar num diálogo que pretende ser intersubjectivo com os saberes tradicionais. Ela deve procurar esconjurarse da tendência que tem em querer dominar, controlar, seleccionar, redistribuir e, enfim, impor as regras de jogo sobre aquilo que deve ser considerado por saber filosófico nestes mesmos espaços. Esta é a condição para que ela mostre estar madura para a intersubjectivação nestes mesmos espaços. Que significa, pois, esconjurar-se da necessidade de se impor? Significa que a filosofia africana profissional deve deixar de predeterminar as condições pelas quais se produz um discurso para que seja considerado como filosófico. Michael Foucault que passou quase toda a sua vida científica a analisar as diversas formas em que é feita a produção do discurso numa sociedade, previne-nos sobre três formas na base das quais um tipo de discurso exclui os outros concorrentes. E vamos servir-nos dessas formas que ele nos propõe para expor como é que a filosofia africana profissional hoje exclui às formas discursivas tradicionais, adiando assim a sua prontidão para um diálogo intersubjectivo entre os críticos. As três formas pelas quais um discurso exclui o outro da praça ou espaço de debate são a «interdição», a «oposição entre o racional e o louco» e a «oposição entre o verdadeiro e o falso» (Foucault 1971, 10 pp.). Foucault considera estas três formas como sendo «procedimentos externos» porque funcionam como sistemas de exclusão em relação aos outros. Para além desses, Foucault adiciona outras três

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formas que ele identifica como sendo «procedimentos internos» de exclusão que são o comentário, o autor e a disciplina. Comecemos pelos três procedimentos externos dos quais a filosofia africana profissional deve esconjurar-se para que ela própria esteja apta para o diálogo intersubjectivo com as sugestões do quefazer filosófico vindas dos sábios. A forma elementar de exclusão que os filósofos africanos profissionais mais usam é a interdição, isto é, tirar o direito aos seus colegas sábios de dizerem tudo e em quaisquer circunstâncias; justifica-se que não é qualquer um que pode ser cientista e, por extensão, filósofo. Este, para subir ao grande palco das instituições de ensino e outras, para exercer o direito à palavra que pode ser classificada por filosófica, deve apresentar credenciais académicas. Hoje em dia, alguns destes sábios já são «autorizados» a apresentarem-se como «doutores» nos jornais onde anunciam, nas páginas de publicidades, o que são capazes de fazer (curar doenças de diversa ordem, depressões, infertilidades, etc.). No entanto são interditos de entrarem nas instituições públicas (escolas, hospitais, tribunais, etc.), embora possam contribuir lá com o seu saber — alguns deles, diga-se de passagem. O sistema formal de qualificações não prevê equivalências para as suas qualificações e nem os quadros nacionais profissionais prevêem as suas qualificações. Embora uma grande parte da sociedade recorra aos seus préstimos para resolver vários tipos de perturbações individuais e colectivas, esses sábios são «interditos», na linguagem de Foucault, de aparecerem nos espaços públicos. É essa a forma mais elementar e simples de os excluir. Cada vez que caminhamos de um âmbito tradicional para o formal, passando pelo informal, a grelha que serve de rede de interdições torna-se mais complexa, mais excludente em relação ao conteúdo do discurso tradicional e em relação ao seu sujeito. Existe uma segunda forma de exclusão do discurso considerado periférico ou tradicional. Trata-se da «oposição razão e loucura”, como a chama Michael Foucault. «[O] louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros», diz-nos o nosso autor. A sua palavra é muitas vezes considerada nula e não é acolhida, não tendo verdade nem importância. Os procedimentos instituídos encarregam-se de excluir a sua palavra, de ser suspeitada como possível blasfémia, de

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não ser escutada como sendo verdade; enfim, de ser considerada como palavra de louco. Foucault diz que todo este discurso do louco não desaparece, mas continua a provocar «ruído». Por isso, diz ele, que é no teatro onde o louco apresenta-se e representa, pois aí tem a possibilidade de representar o papel da verdade mascarada (Foucault 1971, 11 p.). Assim procede também o filósofo africano profissional. Criou procedimentos para que a palavra do sábio tradicional fosse logo rejeitada, mal ela seja proferida num espaço público. A filosofia profissional já criou rituais para declarar a maior parte do que vem da tradição como sendo «supersticioso», ou no mínimo suspeito. É uma palavra que somente ouve-se em surdina, às escondidas, ao cair da noite. Há um grande aparato profissional para não deixar que o sábio tradicional possa desenvolver o seu discurso ou para que caia no ridículo. Dois colegas meus (um de filosofia e outro da física, hoje doutorados) contaram-me que quando manifestaram perante os seus potenciais tutores a intenção de escreverem teses sobre África no campo da etnofilosofia e da etnofísica, respectivamente, foram rejeitados com a explicação de que não se tratava de filosofia ou de ciência. Foram recomendados a esquecer aquela intenção de olharem para a tradição como campo de estudos… pelo menos até que terminassem os seus graus universitários. Foram declarados «loucos» no sentido de Foucault! Portanto, o que é encarado por «louco» não é só o sábio tradicional mas também todo aquele que, embora treinado formalmente, pretenda estudar questões ligadas à tradição. A filosofia africana académica é «racional»; pelo contrário, a filosofia que emana dos saberes tradicionais é «irracional», é de loucos (no sentido de Foucault empregamos este termo). No entanto, é o próprio filósofo profissional que volta e meia pretende ouvir, em surdina, a palavra dos sábios da tradição. Como o próprio Foucault diz, ao louco se lhe atribui «estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de pré-anunciar o futuro, o de ver com toda a ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber». Não queremos com isto ser apologistas de que o saber tradicional diz-nos muito sobre o futuro. Dizemos sim que ele é declarado «louco» antes mesmo de ele poder dizer qualquer coisa à filosofia profissional. É assim que são tratadas as áreas da

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medicina tradicional, a do direito costumeiro, a da filosofia e por aí fora. Senão, qual é a universidade que lhes abriu as suas portas? Há todavia uma terceira forma de exclusão do discurso periférico tradicional: a oposição entre o verdadeiro e o falso. Segundo Foucault (1971, 15), é nos séculos XVI e XVII, sobretudo na Inglaterra, onde se criam os critérios para a oposição entre o verdadeiro e o falso nas ciências: «antecipando-se aos conteúdos actuais, desenham-se planos de objectos possíveis, observáveis, mensuráveis, classificáveis». Foi nesta altura que se impôs o critério da experiência laboratorial para verificar ou falsificar o discurso científico. Foucault acrescenta que a oposição entre a verdade e o falso institucionaliza-se. É o suporte institucional que reforça todas as práticas e os procedimentos para encontrar e declarar a verdade. Para isso reforçam-se as instituições como sejam as escolas, o sistema de livros, o sistema editorial dos textos, as bibliotecas, os laboratórios, etc. No caso da filosofia africana, e seguindo esta forma de proceder, a oratura (provérbios, contos, mitos, crenças colectivas, etc.) toma o lugar do falso. Para que ela seja considerada como verdadeira, deve ser escrita e ser submetida ao tribunal da lógica. Os argumentos tradicionais são declarados, muitas vezes, pouco sólidos ou mesmo sem nexo. Em suma, a interdição, a oposição entre o racional e o tradicional mais a oposição entre o verdadeiro e o falso funcionam como mecanismos de exclusão do discurso filosófico tradicional; mais do que isso, fecham a filosofia africana académica ao diálogo intersubjectivo com a sua própria possibilidade de existência. Esses são os procedimentos externos da filosofia africana que fecham as suas portas à oratura tradicional africana. Estes procedimentos virados para o exterior completam-se, no entanto, com os procedimentos intrínsecos ao próprio acto do quefazer filosófico africano académico. São eles — e aqui recorremos à Ordem do Discurso de Michael Foucault — o «comentário», o «autor» e a classificação das «disciplinas». Comecemos pelo comentário. O pressuposto do qual Foucault parte para caracterizar o comentário como procedimento interno de exclusão é que todas as sociedades têm dois discursos: primeiro, estão «os discursos que se dizem ao correr dos dias e das trocas, e que

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passam com o acto mesmo que os pronunciou». Este é o tipo de discurso que é efémero, do dia-a-dia, do quotidiano ou de «narrativas menores». Segundo, existem as «narrativas maiores» que são os discursos que contam-se, repetem-se, propõem fórmulas e rituais perenes. São narrativas que «estão na origem de certo número de novos actos de fala que os retomam, os transformam ou falam deles». Segundo Foucault, estes discursos podem ser textos fundadores religiosos ou jurídicos, podem ser também textos literários ou científicos. O característico destes discursos é, no entanto, que se recorre sempre a eles para justificar ou legitimar o desenvolvimento de novos pensamentos na área que se escreve ou se diz. São narrativas ou discursos fundacionais. Mais adiante Foucault (1971, 19) alerta-nos que esta diferenciação não é constante e nem absoluta, pois, muitas vezes alguns textos que porventura fizeram parte das narrativas maiores podem, de repente, confundir-se com os dos textos das narrativas menores. Porém, o facto de haver uma permuta de lugares ou, mais precisamente, de estatutos, ou ainda o facto de alguns deles desaparecerem, não significa que o «jogo» entre ambos deixa de existir. Permanecem sempre tipos de discursos com funções diferentes. O que seria, entretanto o comentário? Segundo Foucault, o comentário é aquele que permite dizer algo para além do próprio texto (fundador), mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado (Idem, 21). Assim, o comentário é periférico, pertence ao efémero, à «sombra» (e não à «ideia») platónica. Não será isso que se verifica na prática da filosofia institucionalizada? Às narrativas maiores pertence todo o cânone da filosofia ocidental (europeia e americana, mas sobretudo a europeia) e o discurso das filosofias tradicionais pertence às narrativas menores e toma a função de comentários. Sem dúvida que, quando fazemos programas e cursos de filosofia nos países africanos, duma forma aberta ou simulada, os saberes endógenos, tradicionais e locais permanecem como exemplos periféricos da filosofia, ou seja, com um estatuto subalterno e marginal. Se a própria disciplina da Filosofia Africana é dada, em muitos casos, como uma cadeira somente, então imaginemos o lugar que é reservado aos saberes indígenas e tradicionais originários de cada cultura africana. Mesmo nos casos em que os cursos de filosofia

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adoptem uma abordagem em que a Filosofia Africana é tratada transversalmente, e não como uma disciplina, aí os assuntos da filosofia tradicional também têm a função de «comentários». Isto é, permitem reforçar o lugar de narrativas maiores aos textos fundadores da filosofia, que são os ocidentais. É isso que Kagamé fez ao «encontrar» as categorias aristotélicas no sistema do pensamento dos banyaruanda; é isto também o que Tempels fez ao tentar mostrar que os bantu possuem (também) uma ontologia comparável à europeia e por aí fora. Passemos, em segundo lugar, para o autor. Foucault chama de autor «não […] o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de coerência» (Idem,22). Assim, existem domínios (das narrativas pequenas) onde o autor do discurso não existe ou é apagado. O discurso que este pseudo-autor formula é considerado como «conversa» do quotidiano, como um discurso proferido por um «louco». Este «autor» fica no anonimato dentro de uma colectividade. Mas, ao lado deste, existem áreas por excelência onde a presença do autor é exigida. São as áreas da literatura, da filosofia e das ciências. Em alguns casos, a partir do século XVII particularmente, a menção do autor de um discurso não serve somente para indicar o dono da obra; esta menção serve para dar um nome às teorias com um corpo coerente (marxismo, por exemplo) ou a um teorema (teorema de Pitágoras, por exemplo), ou ainda a uma linha de pensamento (kantianismo, por exemplo). Assim, o autor é aquele que indica a direcção em que devem ir as interpretações, que dá «nós de coerência» aos comentários que se fizeram, que se fazem e que se irão fazer. Na verdade, diz-nos Foucault, existe uma relação íntima entre a regra do comentário e o princípio do autor. É que enquanto o comentário impede que o discurso seja feito ao acaso dado que o comentador deve mencionar a origem do seu comentário, ou seja, deve, de certo modo e em certa medida, «repetir» o discurso fundador, por seu lado, o princípio do autor disciplina o acaso e o caos pelo imperativo da identificação do autor que emite a fala. Ambas, portanto, são instâncias controladoras daquilo que se diz e limitadoras do que se deve dizer.

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Neste aspecto sobre o autor não precisamos de alongar muito ao adoptar a ideia para a nossa realidade. Pois, é notável que a oratura, forma privilegiada em que circula o texto das filosofias tradicionais africanas, não tem, aos olhos do etnofilósofo, seus próprios autores. A etnofilosofia e as etnociências fazem circular a imagem de existência de filosofias, ciências africanas de carácter colectivo (filosofia sem filósofos, ciência sem cientistas). Os autores tradicionais ficam diluídos, anónimos por trás dos provérbios, dos contos, das lendas, das canções. O que sucede é ainda pior: o etnofilósofo e o etnocientistas não se vêem obrigado a mencionar os autores dos saberes que recolhem, porque, doutra forma, a sua menção poderia tirar-lhe o mérito de serem eles que pensam e escrevem. É este o mecanismo pelo qual o autor tradicional desaparece na sua qualidade de sujeito que prescreve significações, que reflecte criticamente sobre a sua condição. O mecanismo de exclusão do «autor» tradicional funciona de duas maneiras: o autor etnofilósofo não menciona o colega tradicional reduzindo-o à condição de «informante» e o filósofo profissional africano redu-lo à periferia e, desta posição epistémica, incapaz de fornecer grandes sistemas de pensamento com significações próprias. O princípio de disciplina, juntamente com o do comentário e do autor, vem completar o conjunto dos procedimentos internos de exclusão ou de fuga da filosofia africana profissional à possibilidade de interculturalidade. A disciplina define-se como «um domínio de objectos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos» (Foucault 1971, 24). Assim, a disciplina como um corpo de ideias e argumentos sistematizados parece estar a opor-se ao princípio do autor, porque todo o corpo de conhecimento constitui uma espécie de um sistema anónimo. O corpo de conhecimentos que compõe a disciplina apresenta-se como sendo mais fiel aos métodos que ao conjunto de autores que edificaram os conhecimentos mais fundamentais da respectiva área. O princípio da disciplina também parece opor-se ao do comentário no seguinte aspecto: uma disciplina privilegia «aquilo que é requerido para a construção de novos enunciados». Aliás, essa é a condição de existência contínua de uma disciplina: ela deve permitir a possibilidade de, indefinidamente, formularem-se novos lances.

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Foucault alerta-nos, e com razão, que nem tudo o que é dito e escrito sobre o objecto de uma disciplina faz parte desta mesma disciplina. Assim, nem tudo o que é dito e escrito sobre a doença pertence à medicina da mesma forma que nem tudo o que é dito e escrito sobre as plantas pertence à disciplina de botânica. A mesma analogia sobre a zoologia que não integra para o seu seio todo o saber que circula sobre os animais. Ora, o aspecto focado no parágrafo anterior levanta o problema do critério da exclusão do conhecimento que não é chamado para o interior de cada disciplina. Por outras palavras, as perguntas que podemos lançar são: porque é que todo o corpo do que é dito sobre as doenças pela medicina e o seu médico tradicional não passa a pertencer automaticamente à medicina? Porque é que o conhecimento dos herbanários tradicionais não pode pertencer ao corpo de conhecimento da disciplina de botânica? Ou ainda: porque é que as posições que existem nos provérbios, nos contos, nos chamados usos e costumes, etc. não podem fazer parte dos capítulos da filosofia como sejam a ética, epistemologia e/ou metafísica, isto é, passarem a incorporar-se como parte integrante da filosofia praticada nas instituições formais? Enfim, qual é o critério de exclusão? Os clássicos da epistemologia, a esta pergunta, responderiam que seria preciso que estes saberes, para pertencerem à categoria de ciência, devessem cumprir certos requisitos e certas condições epistemológicas, requisitos e condições essas que, no fim de contas, deveriam fazer acreditar de que o que é dito ou escrito é verdadeiro ou é certo. Foucault dá o exemplo do século XVII para ilustrar este aspecto. A partir do fim daquele século, para uma proposição passar a ser do domínio do conhecimento chamado «botânica», deveria referir-se à estrutura visível da planta, às semelhanças com as outras plantas, etc. Foucault conclui dizendo que é «[n]o interior dos seus limites [que] cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas; mas ela repele, para o outro lado das suas margens», todo o saber que esteja fora dos seus limites; em outras palavras estipula-se que «uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina». Aparentemente, cremos que uma expressão deve ser certa/verdadeira ou errada/falsa para fazer parte do corpo de conhecimentos

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de uma determinada disciplina. Portanto, os erros não fazem parte do conhecimento considerado integrável nas disciplinas. Na verdade a condição para que uma expressão seja incorporada numa disciplina é o facto de esta expressão ter estado «no verdadeiro», antes de ser declarado verdadeiro ou falso. O exemplo de Mendel pode ilustrar: ele, no século XIX dizia a verdade quando introduziu a ideia do traço hereditário como objecto da biologia. Mas não foi acreditado porque estes traços não eram muito visíveis, ou por outra, por serem discretos. Como diz o próprio Foucault: Mendel dizia a verdade, mas não estava «no verdadeiro» do discurso biológico da sua época. A disciplina, neste caso a biologia, passa a ser um princípio de controlo da produção do discurso por ter a pretensão de definir por si mesma o seu território do que vale ou não vale e, ao mesmo tempo, por ela estar em condições de, sempre que lhe convier, actualizar as regras que quer seguir ou os conteúdos que quer abordar. Assim, foi possível chamar todo o (ou parte do) pensamento filosófico que não proviesse dos profissionais como sendo «selvagem», «primitivo», «tradicional», «ilógico» e por aí fora. A filosofia criou também condições para que fosse «intercultural» somente à medida que um determinado pensamento tradicional fosse reforçar a sua própria estrutura interna, ou seja, fosse simplesmente um comentário. De facto, o que temos hoje na filosofia africana académica são «regiões do discurso» que se abrem e se fecham às novidades sugeridas da tradição. Num primeiro momento fecham-se declarando «errado» ao conhecimento que emana das entranhas tradicionais ou tratando como «loucos», «primitivos», «selvagens» os seus autores. E num segundo momento a filosofia profissional abre-se quando precisa de se legitimar a si mesma como filosofia africana a partir dos imaginários supostamente colectivos das comunidades epistémicas locais. Este último foi e é o caso das etnociências e da etnofilosofia. De facto, fizeram o papel de comentários à filosofia ocidental.

A Construção de Espaços de Intersubjectivação O que dissemos até aqui sobre a necessidade da filosofia africana fundar-se no (e fundamentar o) diálogo inter- e multicultural precisa

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de ser completado por uma reflexão mais pragmática. Esta reflexão deve ser capaz de responder à questão do espaço epistémico no qual o diálogo da intersubjectivação pode ser exercido duma forma sistemática. Para nós está claro que, insistimos, é na educação, especialmente a formal. Todos os moçambicanos passam (ou deverão passar) pela escola. É lá onde podem e devem preparar-se para o diálogo inter- e multicultural. Para isso devem primeiro ser confrontados com textos culturais que lhes dê a firmeza ontológica a partir da qual podem entrar com pés firmes nos círculos dos debates subsequentes, nomeadamente o inter- e o multicultural. Assim, na universidade deve-se confrontar os estudantes com textos culturais, interculturais e multiculturais, com os três níveis de intersubjectivação ou diálogo. Mas antes de explorarmos isto, vejamos as tentativas anteriores em criar-se espaços de encontro entre as culturas. Ora, esta breve excursão pelas condições epistémicas com base nos quais a filosofia profissional africana pode construir a sua própria liberdade leva-nos intrinsecamente a recolocarmos a questão inicial de todas as perguntas filosóficas: afinal o que é filosofia? Duma forma breve podemos recordar que filosofia é pensamento crítico. E, como dissemos, o que interessa não é tanto o pensamento como «resultado» mas sim como «processo», então o mais importante, quando falamos em filosofia, o que interessa cultivar, são as atitudes e os pressupostos (conhecimento filosófico) necessários para o desenvolvimento do pensamento crítico. Assim, o termo «crítica» ganha muita centralidade no que-fazer filosófico. Resumidamente, entendemos por crítico o tipo de pensamento que não reduz a realidade à necessidade, isto é, formulando positivamente, o tipo de pensamento que concebe a realidade como possibilidades ou alternativas de existência desta mesma realidade. Dito isto, se seguirmos o nosso propósito de auto-reflexão, isto é, reflectirmos sobre as condições epistémicas da própria filosofia africana para criar e desenvolver espaços de intersubjectivação e de interculturalidade, então teremos de repensar na questão como é que a filosofia africana pode abrir-se no sentido de deixar enriquecer os seus pressupostos a partir das referências teórico-conceptuais sugeridas com base nos contextos culturais para que ela própria se possa

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renovar ou, em outras palavras, criar uma «nova filosofia africana» conforme sugere Ngoenha. O nosso objectivo, portanto, é usar o carácter auto-reflexivo da filosofia para criarmos aquilo que Foucault chama de «sociedades de discurso sem territorialização». Neste ponto, alinhamos com Wiredu que vê a possibilidade de interculturalidade na análise e comparação de conceitos. Mas, acrescentamos, no processo de criação de espaços de intersubjectivação e da interculturalidade, vemos o papel da filosofia no contexto africano, antes de tudo, como um desafio metodológico que propriamente o de apetrechar o mundo da teoria com novos quadros teóricos e com conceitos comparados. Portanto, a questão que doravante nos vai preocupar é: como abrir a filosofia africana para a sua própria riqueza conceptual a partir dos imaginários culturais e dos saberes tradicionais? Nos momentos de contacto da filosofia (africana) com os saberes locais tradicionais podemos encontrar três níveis de interpretação: o nível de interpretação de factos e processos, o nível do encontro e o nível crítico-crítico. Estes níveis estão ligados, correspondentemente, aos referenciais de objectivação (etnociências, etnofilosofia), de subjectivação (afrocentrismo, ubuntuismo) e de intersubjectivação. Vejamos o primeiro nível. Este é o nível em que o filósofo profissional (formalmente treinado numa universidade), muitas vezes jovem, vai a uma comunidade cultural (urbana ou rural) e vê-se «obrigado» a confrontar-se com os eventos, factos e processos sociais. Então ele vê-se obrigado a assumir uma posição metodológica da antropologia positivista à moda de um Junod, Tempels, Mbiti e outros. Esta posição obriga o filósofo a descrever primeiro os eventos, factos e processos que observa ou toma conhecimento. O momento descritivo numa investigação filosófica em contextos culturais africanos aparece como sendo necessário porque existe um pressuposto básico espalhado pelas etnociências, incluindo a própria etnofilosofia, de que os elementos científicos estão «implícitos» por trás das actividades do dia-a-dia ou sazonais nas comunidades. Ou seja, é a partir de uma «decrição cerrada» (segundo Geertz) das danças, dos festivais, das cerimónias e ritos de nascimento, de iniciação, de casamento, de morte, etc. que podemos inferir o Weltanschauung dos falantes de uma certa língua/etnia ou dos seguidores de certas religiões tradicionais.

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A descrição dos factos, eventos e processos responde à questão «como?». No entanto o nosso filósofo formalmente treinado não pode limitar-se à questão «como?», senão que deve avançar para a questão «por que?». Ou seja, é necessário passar da simples descrição para a interpretação desses mesmos eventos, factos e processos. Em termos de método de investigação, neste passo não basta a observação desses mesmos fenómenos. É preciso complementar com a «conversa» ou entrevistas. A conversa é a troca de pontos-de-vista e visa compreender o significado e o sentido que os actores ou os observadores-participantes de determinados eventos, factos e processos dão aos mesmos. A conversa busca, portanto, compreender os pontos de vista das pessoas. Normalmente, o nosso jovem filósofo (sugerido pelo método popularizado por Griaule e aperfeiçoado paradigmaticamente por Odera Oruka) vai procurar conversar ou entrevistar com os chamados sábios ou sages. Por trás desta escolha está a crença de que em comunidades rurais e tradicionais existem pessoas, geralmente idosas, que dominam as tradições e os seus ritos, mas também dominam o conjunto das interpretações locais sobre os fenómenos que o filósofo quer investigar. Então, o nosso filósofo organiza normalmente encontros individuais ou colectivos para saber «como é que eles pensam» sobre determinados assuntos de ordem colectiva. É precisamente na preparação das entrevistas ou das conversas que começa a emergir o segundo nível que conviemos chamar como sendo de «encontro»21. À primeira vista, a conversa ou a entrevista decorre para que o nosso filósofo aperceba-se dos tipos de conhecimentos que ele consideraria de «tácitos», ou seja, ele busca o tipo de conhecimento que se pressupõe ser «baseado na experiência» dos actores e observadores-actores. Assim justifica-se perguntar sobre o «por que» que as coisas ou eventos são feitos assim e não doutra forma. No entanto, à medida que pergunta, o nosso jovem filósofo

(21)

Os níveis que a seguir se descreve foram denominados por «métodos da apropriação» num artigo do autor deste livro African Traditional Knowledge and Education Today inserido numa colectânea organizada por P. Hountondji (Cfr. Castiano 2009).

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cedo dá-se conta que as respostas que recebe estão carregadas de justificações que pertencem mais ao domínio da metafísica que do mundo físico. O nosso filósofo dá-se conta que as justificações apresentadas pelos sábios ou sages para os fenómenos naturais e sociais, tais como nascimento, doença, morte, falta de chuva, riqueza, etc. estão carregadas daquilo que chamei por «considerandos metafísicos» que, aparentemente, estão no domínio da especulação. Dizíamos que os problemas começam na preparação das conversas, isto é, na elaboração das questões que deverão nortear a conversa colectiva ou individual com as pessoas. O problema é que estas questões devem ser em si mesmas filosóficas, ou, na melhor das hipóteses, devem ser capazes de inspirar respostas com possibilidade de serem aceites como sendo filosóficas. Doutra forma, as respostas encontradas não serão validadas como sendo filosóficas pela academia ou pela faculdade de filosofia. Significa então que o nosso filósofo, quando está a preparar a conversa, deve organizar as perguntas ou questões segundo o cânone e temas da filosofia clássica, isto é, questões que podem levar a respostas enquadráveis nos domínios da metafísica, da ética, da gnoselogia, da epistemologia, da filosofia política, da lógica, etc. Expresso em outras palavras, o nosso filósofo deve saber colocar questões filosóficas. E é aqui onde se justifica falarmos de primeiro «encontro» entre naturezas diferentes de saberes. O nosso filósofo treinado formalmente opera com conceitos sejam eles Deus, religião, ética, axiologia, dever, bem, conhecimento, ciência, validade, legitimação, democracia, etc. É legítimo que ele opere com estes conceitos de forma apriorística, porque fazem parte do seu treino como filósofo profissional. São esses conceitos que servem de «caixas» onde cairão os pontos-de-vistas dos sábios ou sages entrevistados quando o nosso filósofo for a escrever o «seu» texto filosófico. Em termos mais simples, ele pôr-se-á a questão «das respostas ou dos pontos-de-vistas que eu tive, o que é ou pode ser considerado como filosófico?», ou seja, «o que, destes pontos-de-vista dos sábios e sages, pode ser considerado como metafísico, ético, epistemológico e por aí fora?». O que está em jogo é que os conceitos aprendidos no treinamento formal de filosofia na universidade irão constituir o substrato epistémico para enquadrar os pontos-de-vista recolhidos, sob pena de o resultado não ser considerado como «filosófico».

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É neste momento que começa um «jogo de cintura» entre os conceitos clássicos da filosofia e o que até agora consideramos como sendo os «pontos-de-vista» dos sábios e sages. E esse jogo de cintura ocorre na «cabeça» do filósofo. O ponto e o dilema é: como validar no contexto institucional formal (numa universidade, por exemplo) os saberes e pontos-de-vista carregados de «considerandos metafísicos» provenientes de contextos culturais tradicionais? Assim, neste jogode-cintura, como dissemos ajudados por Foucault, os saberes vindos dos contextos culturais ficam sujeitos aos «procedimentos de exclusão». É desta forma que estes saberes passam para a categoria de «comentários» pertencentes às narrativas menores e, concomitantemente, o autor tradicional passa para o anonimato (ou pior, a este autor tradicional «não é exigida a sua presença» no quadro dos referenciais teóricos). A regra é determinada, até agora, pelo cânone da filosofia clássica profissional e os saberes tradicionais são relevados para a categoria de comentários. E os comentários servem, ainda neste caso, para confirmar a regra. No entanto, até aqui, a nossa investigação filosófica já ganhou muito no sentido de fazer um esforço de integrar os saberes locais nas «caixas» criadas pela tradição filosófica. Mas não ganhou o suficiente. Até aqui a filosofia profissional deu somente o primeiro passo do nível do «encontro» intercultural entre ambas as formas de existência do saber, nomeadamente o de combinar o quadro teórico e conceptual filosófico (podemos alargar a ideia para as diferentes disciplinas académicas) com os saberes contextuais culturais tradicionais/locais. Para que a filosofia profissional africana ganhe mais espaço de intersubjectivação será necessário entrar no segundo nível do encontro intercultural: o do diálogo intercultural. O que caracteriza este diálogo do tipo intercultural é possibilidade da abertura conceptual por parte da própria filosofia, ou seja, uma abertura da própria filosofia profissional africana para mudar ou adoptar «novos» quadros teóricos que podem estar a ser sugeridos pelos contextos culturais. Assim, a questão que nos colocamos nesta abertura deve ser a seguinte: até que ponto o que conviemos ser «comentário» desafia a regra? Em termos mais simples, podemo-nos, enquanto filósofos, perguntar em que medida as respostas encontradas nos saberes locais/tradicionais escondem propostas de reformulação destes mesmos problemas e

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até que ponto estas mesmas propostas «escondidas» desafiam os modelos teóricos e as suas respectivas perguntas. Com este tipo de questões, pensamos estar a colocar no tribunal da crítica o problema da validação dos saberes locais no contexto institucional (universitário). São questões que põem em causa o modelo universalista da validação do conhecimento científico elaborado pelo paradigma da modernidade. E, como Boaventura Sousa Santos sugere, as «epistemologias do sul» estarão em condições de oferecer «respostas fortes» às «perguntas fortes» colocadas pela modernidade. Para falar com Foucault, o «comentário» pode começar a alcançar o estatuto de «regra» no contexto da filosofia africana institucionalizada. E, por último, para falar com Lyotard na sua obra Condição Pós-Moderna, é neste ponto onde as micronarrativas encontram-se com as metanarrativas para estabelecerem um diálogo intercultural. Pelo facto de, no nível do encontro que descrevemos, haver a possibilidade da abertura conceptual por parte da filosofia profissional africana e tomar a atitude de deixar-se sugerir novas significações para os seus conceitos clássicos, podemos classificar este de primeiro passo da crítica autoreflexiva da filosofia africana. É um primeiro passo para a crítica, porque a filosofia profissional africana, embora abrindo-se para outros conceitos, mantém o seu horizonte conceptual. O que se verifica é apenas uma espécie de comparação de conceitos, sem no entanto haver a síntese desejada. É como se a filosofia profissional africana dissesse aos saberes tradicionais: «olha, critica-me sim, e até faz algum sentido o que dizes, mas mesmo assim não vou mudar». É nessa situação em que se puseram os referenciais da subjectividade (afrocentrismo e ubuntuismo). Ganharam o «direito» de criticar e até de desafiar a filosofia profissional institucionalizada, inclusive ganharam o direito de serem reconhecidas como formas (marginais) de conceptualização filosófica, mas ficaram no ghetto, na periferia das instituições. O afrocentrismo e toda a conceptualização ubuntu, de facto, são tolerados, e não integrados no sistema da filosofia profissional africana. Não têm ainda o estatuto de paradigmas na «arquitectura dos saberes» estabelecidas institucionalmente. Em todo o caso, se a filosofia profissional africana der este passo de abertura conceptual intercultural (de facto, como vimos, os trabalhos de Kwasi Wiredu e de outros hermeneutas apontam para esta

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direcção), o nosso propósito filosófico de auto-reflexão e da auto-crítica (que é a condição da sua libertação e da interculturalidade da filosofia africana), pode estar muito perto, todavia ainda por alcançar. Precisamos de dar um passo ainda mais ousado em direcção ao último nível da atitude de uma interculturalidade filosófica. Chamemos a este último nível de crítica-crítica. O nível da crítica-crítica, como o nome diz, compreende uma dupla crítica. A primeira é metodológica e é dirigida às práticas das etnociências e da etnofilosofia. Fazendo frutíferas as críticas unanimistas de Paulin Hountondji à etnofilosofia e os seus derivados, esta crítica metodológica assenta no pressuposto que todo o conhecimento tem uma elaboração subjectiva, ou mais precisamente, na sua elaboração pertence a um sujeito determinado. Uma outra questão é debatermos o que é um sujeito. A resposta pode ser encontrada em dois extremos: um, nas noções de inclinação individualista e outro, nas noções de inclinação mais comunitarista-colectivista. Mas, mesmo no quadro dessas noções colectivistas ou comunitaristas tais como descrevemos no ubuntuismo, o saber como resultado de uma elaboração de significações simbólicas é o resultado da elaboração individual dos membros de uma determinada comunidade e não de uma deliberação colectiva. A diferença que esta elaboração individual nas sociedades mais comunitaristas ou tradicionais com a noção individualista predominante em sociedades capitalistas mais avançadas é que o saber elaborado individualmente anonimiza-se naquelas e individualiza-se nestas últimas. Naturalmente que o factor principal que leva à anonimização do saber em sociedades onde predomina uma visão mais comunitarista do sujeito deve-se à falta de predominância da cultura da escrita. Esta tem como consequência a falta do registo da propriedade intelectual de um determinado saber a circular ou a ser executado. Mas, e nisto reside o primeiro ponto autocrítico da filosofia profissional africana, o processo na anonimização e a falta de registo da propriedade intelectual, não é uma justificação plausível para que o nosso filósofo profissional tome uma atitude unanimista em relação aos saberes que ele investiga ou recolhe. Nas suas investigações o nosso filósofo deve recolher os pontos-de-vista críticos expressos pelos sujeitos das comunidades culturais. O etnocientista ou o etnofilósofo deve, na elaboração do seu trabalho, «citar» o texto escrito ou oral

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resultado da entrevista com os sábios ou sages. O nosso filósofo deverá reduzir, e a meta é mesmo eliminar, expressões unanimistas tais como «entre os Makua acredita-se que Deus é …», ou «a noção de justiça entre os Ajaua é …» ou ainda «os Banharuanda não têm noção de riqueza …» nos seus escritos. Ao invés de Makua, Ajaua, Banyaruanda deverá escrever o nome do emissor do juízo, como de resto faz quando se trata de citar os textos escritos. Todavia, não basta tão-somente mencionar e identificar o sujeito que emite os juízos no seu texto. De capital importância para o desenvolvimento da filosofia africana seria colocar opiniões ou pontos-devista diferentes em confrontação, isto é, destacar os pontos críticos individuais sobre o mesmo assunto e pô-los em debate, mostrando o alcance explicativo e significativo dos juízos emitidos pelos sábios sobre vários assuntos que afligem as comunidades ou dos «temas geradores» (SIDA, religiosidade, moralidade, democracia, regras de convivência, etc.). De resto, é assim que o nosso filósofo profissional é treinado ou procede, quando se trata de fazer referências aos manuscritos de Marx, Heidegger, Derrida e outros. Porquê não faz o mesmo quando estiver perante textos orais? Uma escrita filosófica africana que (também) cultive a tradição de mostrar os pontos divergentes ou críticos nos juízos emitidos individualmente pelos sábios ou sages não matará somente a tendência unanimista espalhada pela etnofilosofia e pelas etnociências. Esta escrita, estará também contra a tendência de mistificação e glorificação dos próprios saberes tradicionais. Ao individualizar a fonte da elaboração de um determinado saber, o nosso filósofo estará a dar um passo em frente no sentido de tirar o carácter místico com que cientistas africanos e europeus olham para certas práticas e ritos tradicionais africanos. Passa-se do domínio da «mistificação» para o predomínio da «explicação» do sentido e significado das práticas ou ritos em causa. Determinados juízos emitidos em certos contextos culturais africanos, quando escritos sob o prisma subjectivado, já não são transmitidos como sendo um «certo número de crenças que predominam numa dada colectividade» (como é prática dos etnocientistas e dos etnofilósofos em particular), mas sim os pontos-de-vista de determinados actores sociais (sábios ou sages) que sobressaem dos outros pontos-de-vista porque têm o poder de elaborar um texto oral sobre o sentido e o significado das coisas.

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O último nível é o de (auto)reflexão meta-teórica. E este deve decorrer no seio da própria filosofia profissional africana. Neste nível, o nosso filósofo responde à questão em que medida os conceitos e as significações apreendidas dos outros pontos-de-vista desafiam o quadro de conceitos da filosofia profissional africana e em que medida há aí sugestões referenciais paradigmáticas alternativas. Por outras palavras, trata-se, a este nível, de uma «batalha» de validação de conceitos e significações de origem tradicional, sem necessariamente significar uma substituição de uns conceitos pelos outros. De facto, a este nível, não interessa a proveniência de um determinado conceito. O que interessa é o potencial explicativo deste conceito em relação à realidade ou problema em causa. O que é ainda mais interessante, de facto, é a capacidade de cada conceito mobilizar os argumentos que sejam mais fortes para compreender os eventos, factos e processos. A filosofia profissional africana abre-se para uma crítica conceptual que, por sua vez, abre novos horizontes conceptuais. Concluindo: uma verdadeira interculturalidade filosófica é aquela que opera com o nível de conceitos. A batalha filosófica é aquela em que as armas são argumentos e conceitos. Se a filosofia africana se quer desenvolver como pensamento crítico, e assim seguir o que caracteriza a filosofia em geral, ela deve cultivar dois pressupostos: o primeiro, ela deve estar apta para a criação de espaços de intersubjectivação, isto é, espaços de diálogo que se baseiam no reconhecimento do outro ou outros como sendo também e de igual modo sujeito(s) do conhecimento; o segundo, ela deve abrir-se para um diálogo intercultural filosófico, isto é, um diálogo em que se baseia no potencial crítico e autocrítico sugerido por outras culturas no sentido do enriquecimento conceptual mútuo. O que escrevemos até agora tem em vista duas perspectivas práticas para o filósofo profissional africano. Por um lado, visa alertá-lo e dar-lhe ferramentas para que mantenha uma vigilância epistemológica cerrada por ele estar numa posição social e epistémica privilegiada na circulação do saber. Pois, ele está entre a chamada ciência moderna e os chamados saberes tradicionais. Por outro lado, a nossa perspectiva é de organizar um formato adequado para a criação de espaços de intersubjectivação nas instituições de educação, em particular na universidade.

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Vigilância Epistemológica O conceito de dupla crítica (crítica-crítica), que desenvolvemos atrás, é inspirado no conceito «dupla hermenêutica» do sociólogo inglês Giddens no domínio da sociologia do conhecimento. Este concebeu como tarefa do sociólogo e, por extensão, da sociologia, a dedução de conceitos intermédios que dêem conta do «mundo sistémico», no qual, entre outros elementos simbólicos, inscreve-se a ciência, e, ao mesmo tempo, dê conta também do «mundo da vida», ou seja, o quotidiano. No fundo, a dupla hermenêutica, tal e qual como é desenvolvida por Giddens, visa intermediar conceptualmente a aparente dicotomia entre as explicações e interpretações macroteóricas e as explicações e interpretações microteóricas sobre a dinâmica social. No contexto do que estamos a expor até aqui, aplicamos a dupla crítica para dar conta ao sentido duplo do papel do intelectual africano perante o desafio da busca do seu lugar e sua identidade na história da humanidade (chamemos sua auto-inscrição) assim como na elaboração de referenciais de significação da experiência africana para com os fenómenos da escravatura, do colonialismo e da globalização. Assim o intelectual africano encontra-se na condição de simultaneamente ter que ser o intérprete e crítico de duas tradições diferentes — embora não necessariamente divergentes — na forma da produção do saber, estando ele próprio treinado profissionalmente, segundo o cânone da tradição académica ocidental. A primeira crítica — chamemos-lhe de desconstrução — é crítica em relação ao discurso tradicional ocidental sobre o lugar de África perante a escravatura, a colonização e a globalização. E nisto o afrocentrismo e o ubuntuismo são referenciais teóricos intelectuais muito fortes. O intelectual deve, por um lado, (re)interpretar o discurso de natureza hegemónica da ciência moderna e ser capaz de desconstruir este discurso por formas a mostrar tanto aquilo que ele comporta em termos de positividade (oportunidades), assim como em termos de negatividade (riscos). O exercício de desconstrução das meta-narrativas (Lyotard 1989) é tão necessário hoje, quanto mais que no contexto da globalização os riscos são principalmente transmitidos pela via argumentativa (Beck 1981) em que o conhecimento, o saber, o domínio dos meios de comunicação jogam um papel fundamental. Quem

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pode globalizar as percepções sobre os riscos (e nesta base tirar vantagens materiais) são os que dominam esses meios. A segunda crítica — chamemo-la de construção — relaciona-se com a necessidade de o intelectual africano garantir que a sua produção seja responsável em relação às comunidades epistémicas locais. É neste contexto que se coloca o desafio que Vilakazi (1999,200pp.) lança, quando fala da necessidade de uma «revolução cultural» no seio da elite intelectual. Ele considera que o grande desafio para os intelectuais instruídos africanos é o de se vestirem de coragem para mudarem a sua posição perante as tradições locais africanas aceitando-as como fontes para a construção dos seus referenciais teóricos e académicos; eles devem desvestir-se do ocidentalismo, irem para uma comunidade africana nas áreas rurais com o objectivo de aprenderem os princípios e padrões da sua própria civilização, a partir dos detentores dos saberes ancestrais. Vilakazi coloca, assim, o desafio ético antes do desafio epistemológico. Ou seja, ele vê que a primeira libertação do intelectual africano deve ser em relação aos preconceitos culturais que ele transporta em si para depois adoptar uma perspectiva afrocêntrica, esta já na sua vertente epistemológica. Na «revolução cultural» de Vilakazi, a ética precede a criação de referências epistemológicas de raiz afrocêntrica. O que é significativo, nesta segunda hermenêutica, é poder compreender a necessidade de um intelectual (filósofo) tomar responsabilidade e compromissos sérios perante as comunidades epistémicas locais e a partir das quais vai tentar deduzir o mais fiel possível os referenciais teóricos que estariam por trás desses saberes. Ao adoptar a dupla hermenêutica o intelectual posiciona-se numa situação de «vigilância epistemológica». Pois, por um lado, no exercício da desconstrução, ele está atento à forma e aos caminhos como são construídos os argumentos sobre riscos globais; também mantém vigilância sobre os mecanismos de reprodução do estatuto subalterno dos saberes tradicionais no contexto da produção universal do saber; denuncia as formas de perpetuação da condição marginal dos saberes produzidos localmente e dos detentores destes mesmos saberes e revolta-se contra a condição de simples colector e fornecedor de dados que depois irão ser tratados e teorizados pelos pesquisadores ou em instituições de pesquisa no exterior de África.

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Por outro lado o intelectual está vigilante contra as tendências de fixação das tradições e dos saberes locais num mundo auto-referente, que se legitima a si próprio, e acrítico. Está vigilante às tendências de romantismo, de misticismo, de idolatria em relação aos saberes tradicionais. Na segunda hermenêutica, o intelectual está vigilante aos argumentos tradicionais de autoridade do tipo «é assim porque sempre assim fizemos» ou «é assim porque o mais velho assim pensa». Mas não para por aí. O intelectual também assume uma atitude ao reavaliar os seus próprios pressupostos teóricos usando, para isso, a crítica conceptual que pode estar sugerida por outras formas culturais da Weltanschauung. A vigilância, em ambos os casos, é em função do melhor argumento, em função da melhor oferta para a solução de um determinado problema, ou também em função de uma conceitualização mais adequada da realidade a que se quer referir. A pertinência da primeira crítica resulta do facto de a prática académica africana ter de superar a posição até agora assumida de ser apenas um «fiel» tradutor das teorias produzidas em contextos alheios, ou seja, ao invés de exercer a sua função de interpretação do exterior para o seu povo, limitar-se praticamente à sua «tradução». A pertinência do segundo sentido hermeneuta reside na necessidade de superar o facto de, como afirma Vilakazi, a prática académica em África se ter tornado «irrelevante» para o desenvolvimento das culturas africanos porque, a partir de uma posição cultural endógena, não consegue elaborar conceptualmente a realidade africana para ser capaz de entrar num diálogo comunicativo e que não se refugie em argumentos de autoridade e auto-referenciais.

Universidade como Espaço de Intersubjectivação A segunda crítica, portanto a que se refere à construção conceptual e teórica é, quanto a nós, a mais interessante. No entanto, ela deve passar necessariamente pela fase etno-antropológica de acumulação de estudos empíricos de campo e pela fase de sistematização dos saberes tradicionais. Ao mesmo tempo, esta fase é de «luta» pela aceitação, afirmação e legitimação no contexto institucional (universidades,

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por exemplo). Não podemos entrar no universal sem estar firmes. Esta firmeza nos é garantida pelo trabalho de casa que se tiver feito. Ora este tem sido o problema básico com que se debate a produção dos saberes em África que possam merecer o adjectivo «científico», nomeadamente, o problema de se legitimar para, sem recurso a prerrogativas exógenas, serem tomados como válidos no seio das academias nacional e internacional. O objectivo final é o de estabelecer uma cadeia circular de legitimação dos saberes na qual nos extremos estão as duas tradições de práticas académicas, nomeadamente a formal/moderna (predominantemente escrita) e a local/tradicional (predominantemente oral). A legitimação e a validade do conhecimento produzido, seja no contexto institucional moderno, na base da cultura escrita, seja no contexto institucional tradicional, na base da cultura oral, é feita num espaço coabitado por ambas comunidades epistémicas sobre temas e problemas comuns. Como participantes, os detentores dos pontos-devista e dos saberes tradicionais locais ver-se-ão partilhando benefícios para a manutenção e desenvolvimento do seu capital cultural e de conhecimento. O desafio é desenvolver na universidade fóruns e mecanismos de levar o conhecimento localmente legitimado para fóruns mais abrangentes de legitimação global. Até agora a prática é que o conhecimento produzido nas universidades e nas instituições de pesquisa, para se afirmar, deve ser levado aos fóruns de carácter nacional e internacional em forma de exposição, apresentações orais e publicações científicas com revisão de pares. Esta não é uma prática nova. Porém, a novidade que propomos, é aquela que deve ser observada quando se organizam fóruns científicos nacionais e internacionais: eles devem abrir as suas portas para os portadores dos conhecimentos narrativos dos seus colegas «pesquisadores» do contexto local/tradicionais. Estes devem ser convidados a expor as suas ideias e conhecimentos no seio da comunidade científica global, numa ronda de diálogo circular. Se é certo que as etnociências e a etnofilosofia preocuparam-se até hoje em identificar os «sábios» das comunidades, estes porém, sempre foram tratados tendencialmente como uma espécie de fontes primárias para a recolha de dados e menos como interlocutores válidos na troca de conhecimento (diálogo intercultural).

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Para além de novas formas de legitimação, um segundo elemento deve concorrer para a formação de uma academia africana sólida: trata-se da escolha deliberada de modelos e ídolos africanos nos programas de ensino universitário e outros. De facto, como em todas as actividades, o homem cultiva modelos a seguir, cultiva os seus heróis. Aqui trata-se, portanto, de desmarginalizar cientistas, invenções e ideias africanas no contexto universal da narrativa histórica. Desmond Tutu, líder religioso da África do Sul, dizia nos inícios da década 60 o seguinte: «Eu tenho ansiedade do dia em que estudantes africanos de teologia vão sentar-se em frente de docentes de teologia também africanos, sendo dirigidos por um director africano. (Allen 2006, 71) De facto, o que pode impedir o desenvolvimento da ciência em África, sobretudo entre os jovens pesquisadores, pode ser a falta de oportunidades de se confrontarem teoricamente com modelos ou ídolos africanos na história e de hoje. Esta falta é devida, em parte, à marginalização deliberada dos negros africanos na História em geral, e na História das descobertas científicas em particular. A falsificação deliberada ou não de factos históricos que reportam tanto a heroicidade como a participação positiva dos negros na História do progresso da humanidade e na das descobertas científicas, não cria momentos para que os jovens cientistas de hoje criem ídolos. Para além disso, a ausência de dados sobre os seus feitos empurra os negros cada vez mais para a periferia da História, perdendo referências para o seu orgulho. Alguns exemplos de marginalização podem servir de ilustração deste ponto. O escritor sul-africano Peter Abrahams (2000,55) relata, no seu livro autobiográfico, The Coyoba Chronicles, sobre a questão do racismo contra os negros no século XX , que durante a segunda Guerra Mundial toda a França era pelo general De Gaulle por este ter lutado heroicamente contra a ocupação nazi. No entanto, o grande aliado de De Gaulle e dos aliados na luta contra a ocupação nazi na África Equatorial, o general negro Félix Eboulé, que mais tarde foi o primeiro governador negro de todos os departamentos franceses do «ultramar» na África Equatorial, não merecera nem uma nota de rodapé nos anais da História francesa e universal (Idem, 65). No entanto, Abrahams conta que, na busca que fez em enciclopédias

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americanas da História, editadas em CD-ROM, não encontrou nem uma vez sequer mencionado o nome de Eboulé. Ele nota também que não encontrou nenhuma referência a George Padmore, uma personalidade negra importante na esfera política do período da Guerra-fria. A perspectiva da escolha sobre o que deve ser incluído ou não na História da Humanidade tem desfavorecido maioritariamente os negros, dando-se uma imagem deliberada de que estes nada inventam, não têm heróis e, em suma, pouco contribuíram para o desenvolvimento científico e para a Liberdade da Humanidade em geral. Por seu lado Sertina (1999, 305 pp.) no seu artigo The Lost Sciences of Africa dá uma descrição deslumbrante acerca dos conhecimentos que os africanos possuíam e possuem desde há muito tempo nas áreas diferentes. Por exemplo, na comunicação escreve que os africanos dominavam a técnica de, através de tambores, imitar ritmicamente a linguagem humana, de modo a estabelecerem uma comunicação à distância. Segundo este autor, não eram poucas vezes em que os chamados ‘exploradores’ (quanto a nós, aventureiros) europeus, chegavam a uma região recôndita, e se apercebiam que os nativos já tinham informações circunstanciadas da sua chegada, dos seus objectivos, da quantidade de pessoas assim como outros dados transmitidos pelos chamados ‘métodos tradicionais’. Estas técnicas surgiram antes da descoberta do telégrafo por Morse. Na metalurgia, o antropólogo Peter Schmidt está convencido que há mais ou menos 2000 anos os africanos que viviam nos arredores do Lago Victória na Tanzânia produziam alumínio de carbono; neste artigo ainda se dão exemplos da astronomia avançada no Quénia e Mali, da matemática (o uso de números) no Congo e entre os Yoruba, da arquitectura e engenharia no grande Zimbabwe. Também se mostram os avanços dos africanos na navegação, na agricultura, na medicina assim como na escrita. Quanto à medicina, Sertina escreve que ela esteve mais desenvolvida que em qualquer parte do mundo. A medicina africana não só tem valor acrescentado pelo uso das plantas para a cura, mas sobretudo pela combinação que faz com a psicoterapia e com os conhecimentos variados da anestesia, vacinação e técnicas de cirurgia entre os bunyoro da África oriental (particularmente nas operações que são conhecidas hoje por «cesarianas»). Os bantu tinham há já muito tempo a sua própria aspirina usando uma planta

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que contém ácida salícico, um ingrediente activo na conhecida aspirina de hoje. Estes e outros feitos e inventos estão praticamente apagados da História, tanto nas universidades em África como na Europa. Assim, as novas gerações de docentes nas universidades africanas vão perdendo os referenciais que os poderiam estimular na planificação curricular e nas suas pesquisas ou seja, poderiam ser uma espécie de «paradigmas» para a realização dessas pesquisas sejam elas de campo ou bibliográficas. Pior, esta falta de referenciais provoca um sentimento de inferioridade ao ficar-se sem argumentos para contrapor uma tese que alegue que de África ainda não saiu invenção ou ideia de vulto para a ciência dita universal. Para diminuirmos cada vez mais estudantes e docentes universitários à busca de «paradigmas africanos». ### De resto seria plausível recordar que, como disse Rousseau algures, um cidadão é apenas um escravo que um dia fugiu da casa do senhor. O «senhor» estará sempre a espreitar a oportunidade de ele fazer com que o escravo-em-fuga volte para casa a fim de ser escravizado de novo. Recordamos o que disse o senhor do escravo Frederick Douglas: «Se ensinares o negro a ler, não terás formas de o manter como escravo. Ele nunca aceitaria jamais continuar a ser escravo. De repente, ele seria incontrolável, logo sem nenhum proveito para o seu senhor». Este «senhor» estava consciente da força do «feitiço do branco»22 (ciência) para a libertação da humanidade e para a devolução do ubuntu a todo o ser humano, seja ele outrora «senhor», seja ele outrora escravo; seja ele outrora colonizador ou colonizado; seja ele hoje globalizador, seja ele globalizado. Estejamos vigilantes! Numa troca de palavra com o filósofo sul-africano Philip Higgs em Bergem (Noruega), longe de África, após ele ter lido o manuscrito, virou-se para mim e perguntou:

(22)

Termo usado pela mãe de Eduardo Mondlane referindo-se à necessidade de ele ir estudar para dominar a ciência para libertar ao seu povo.

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«what are you left with, it you emancipate African Philosophy from being African»? (O que fica depois da emancipação da filosofia africana de ser africana?) Eu respondi: «you are left with African Philosophers» (ficam os filósofos africanos)! Penso que esta conversa resume todo o livro.

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Literatura

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