Fenomenologia e Estruturalismo

Table of contents :
001
002
003
004
005
006
007
008
009
010
011
012
013
014
015
016
017
018
019
020
021
022
023
024
025
026
027
028
029
030
031
032
033
034
035
036
037
038
039
040
041
042
043
044
045
046
047
048
049
050
051
052
053
054
055
056
057
058
059
060
061
062
063
064
065
066
067
068
069
070
071
072
073
074
075
076
077
078
079
080
081
082
083
084
085
086
087
088
089
090
091
092
093
094
095
096
097
098
099
100
101
102
103
104
105
106
107
108
109
110
111
112
113
114
115
116
117
118
119
120
121
122
123
124
125
126
127
128
129
130
131
132
133
134
135
136
137
138
139
140
141
142
143
144
145
146
147
148
149
150
151
152
153
154
155
156
157
158
159
160
161
162
163
164
165
166
167
168
169
170
171
172
173
174
175
176

Citation preview

ates

~iE

e ates tes

filosofia

andrea bonomi

FENOMENOLOGIA E ESTRUTURALISMO ~\\"~

~

-

~ EDITORA PERSPECTIVA

~I\\~

Coleção Debates Dirigida por J. Guinsburg Conselho Editorial: Anato1 Rosenfeld (1912-1973), Anita Novinsky. Aracy Amaral. Augusto de Campos. Bóris Schnaider~ man, Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Dante Moreira Leite, Gita K. Guinsburrg, Haroldo de Campos. Leyla Perrone~ Moysés. Lúcio Gomes Machado, Maria de Laurdes Santos Machado. Modesto Carone Netto, Paulo Emilio Salles Gomes. Regina Schnaiderman. Robert N.V.C. NicaI. Rosa R. Krausz. Sábato Ma,galdi, Sergio Miceli. Willi Bolle e Zulmira Ribeiro Tavares.

Equipe de realização - Tradução: João Paulo Monteiro. Pa~ trizia Piam e Mauro Almeida Alves; Revisão: J. Guinsburg; Produção: Lúcio Gomes Macha-do; Capa: Moysés Baumstein.

andrea bonomi

FENOMENOLOGIA E ESTRUTURALISMO

~\\II~

~

~ EDITORA PERSPECTIVA

~I\~

© Andrea Bonomi

Direitos em Iingua portuguesa reservados à EDITORA PERSPECTIVA S.A. Av. Brigadeiro Luis Antônio, 3025 Telefone: 288-8388 01401 - São Paulo - Brasil 1974

Per Haroldo de Campos,

con la saudade di quattro milanesi

"Milano distendeva te Alpi immobili nella rugiada" (Oswald de Andrade)

São Paulo, 1973



SUMÁRIO

I. Percepção e Linguagem em Merleau-Ponty ..

9

............ fenomenológica . .........

21

2. Sobre o Problema Ontológico a. A redução

21

b. Filosofia existencial e ontologia

35

c. Estrutura, percepção e latência

42

3. O Regresso à Experiência Fenomêniea na Psicologia da Gestalt

69

7

4. A Idéia de "Normalidade": A Fenomenologia como Análise de Estruturas 5. Tendências do Estruturalismo

79 93

6. Implicações Filosóficas na Antropologia de Claude Lévi-Strauss

113

1. O problema do outro e a objetividade 114

2. O inconsciente

120

3. A idéia de estrutura . . . . . . . . . . . . . .. 122 4. Diacronia e sincronia

126

5. O pensamento concreto

129

6. Ainda sobre o inconsciente

137

7. Sobre o Problema da Linguagem em Husserl 141

Apêndice

8

163

I.

PERCEpÇAO E LINGUAGEM EM MERLEAU-PONTY

Segundo Merleau-Ponty, o problema da significação deve ser recolocado em sua matriz originária. Qual a relação entre a percepção e o mundo das operações Iingüísticas? Não mais de simples paralelismo: deve-se encontrar uma trama do sensível, uma configuração, uma ordem que possa prolongar-se na dímensão dos atos expressivos. É preciso, antes de tudo, anular o preconceito que faz do mundo perceptivo um universo de objetos, de individualidades espaço-temporais fechadas em si mesmas, maciças. O percebido não se dá nunca em si mesmo, mas em um contexto relacional: a figura (enquanto individuum da visão) é sempre figura9

-sobre-fundo e, como tal, é dotada de um horizonte interno e de um horizonte externo, é indefinidamente explicitável na multiplicidade de suas "propriedades" constitutivas e na multiplicidade de suas relações com o que a circunda. O delineamento da coisa, oferecendo-se sempre e somente através de Abschattungen, não é um acidente que uma percepção adequada seria capaz de cancelar, mas a própria estrutura do evento perceptivo. A lógica da visão é uma "lógica alusiva": vejo mais do que me é oferecido pela visão atual e analisável, vejo uma coisa onde há uma presença latente, constituo ativamente a coisa embora dela possua apenas certos lados. O preconceito objetivista tem sua razão de ser, enquanto assenta nesta atividade intencional que não se fecha em seus momentos constitutivos, mas vai além e põe objetos, como objetos para ver, tocar, manipular, etc. Este preconceito não deve contudo ocultar-me o operar concreto da percepção como substrato originário sobre o qual se construirá o mundo das objetividades, substrato que não é feito tanto de presenças maciças quanto de "reflexos", sombras, níveis, horizontes entre as coisas, os quais não são coisas nem são um nada mas, pelo contrário, são os únicos a delimitar os campos de variação possível na mesma coisa e DO mesmo mundo" (Merleau-Ponty, S., 1960, p. 202). O visível, o perfil ~efet!v"!!1enle experimenJªºº._nãQ.. _é a~õ- percepcionante visto que, na explicitação concreta

de suas possibilidades matrizes, este conjuga numa unidade articulada aqueles perfis que, para a análise abstrata, se dão apenas como aspectos descontínuos, oU como "índices", de um objeto. O corpo não Hdeduz" o objeto da percepção dos seus perfis mas percebe imediatamente estes perfis como perfis do objeto, articulações de um todo. Chegamos assim à primeira conseqüência relevante para os problemas aqui considerados: a unidade do objeto percebido não é algo de "pré-constituído" (não adere ao objeto como sua qualidade própria e Unaturar, uem si"), conta só como norma a ser realizada concretamente na praxis perceptiva. Voltando agora à questão inicial, a respeito da possibilidade de indicar uma diferença de essência entre a percepção e a ilusão, podemos constatar a inerência desta diversidade às estruturas respectivas de cada uma. Como se viu, a noesis, enquanto função intencional encarregada de unificar a multiplicidade das matérias sensoriais, se encontra numa relação de fundação recíproca oom esse estrato material: por um lado, ela constitui, com efeito, o elemento mais propriamente "farmante" no interior da Erlebnis, aquele elemento sem o qual nunca atingiria a apreensão do objeto como unidade sintética; por outro lado, e relativamente à percepção, esta tem seu único campo de aplicação nos conteúdos sensoriais ou Hprimário~', constituintes do estrato material. Desenvolvamos principalmente este segundo ponto, recorrendo brevemente às análises husserlianas de Ideen II. Uma primeira observação é que a diversidade intrínseca que

88

Husserl aponta entre o "fantasma" (ou seja, uma coisa captada em sua mera "forma", sem ser preenchida por uma série adequada de apreensões sensoriais) e a coisa plenamente perceptiva é constituída justamente pelo fato de a esta última pertencer inseparavelmente o estrato da materialidade sensorial. Mas o mais importante é que Husserl põe esta materialidade sensorial da coisa diretamente em relação com a dependência das circunstâncias. Isto é: o esquema sensorial da coisa (o conjunto das apreensões de forma, cor, etc.) é adequadamente preenchido quando as qualidades da coisa são experimentadas em sua dependência funcional do contexto, ou seja, em seu modo de comportar-se em relação à ação exercida pelo mundo circundante. A idéia de realidade liga-se aqui à de causalidade: [.. .] na apreensão da coisa o esquema não é percebido simplesmente como uma extensão preenchida sensivelmente, é percebido, pelo contrário, como o "testemunho" (a manifestação originária) de uma qualidade real, e, precisamente por isso, coroo estado da substância real num determinado momento do tempo. A própria qualidade só atinge uma datidade realmente preenchente e portanto originária, quando as séries funcionais chegam a um decurso originário em que as dependências das circunstâncias inerentes atingem uma datidade originária. são. por outras palavras, dependências causais [ ... l. As qualidades reais são eo ipso qualidades causais. Portanto conhecer uma coisa significa: saber por experiência como se comportará sob o efeito de um empurrão, de uma pressão, quando será vergada [... ]; ou seja: como se comportará no contexto de suas causalidades, em que estados virá a encontrar-se e de que modo se manterá idêntica em todos estes estados (Husserl, Id. II, 1965, II, § 15).

Mas não é suficiente: o "comportamento" da coisa nos confrontos com as outras coisas que constituem seu mundo circundante, e a cuja ação "causal" ela está sub-

metida, deve ser investigado também e principalmente numa sua modalidade peculiar, isto é, como comportamento em relação ao meu corpo percipiente, o qual não é manifestamente uma coisa como as outras, mas o lugar onde estão localizadas as apreensões (sensoriais) das relações entre as coisas. Nos confrontos cOm a coisa percebida o corpo não se limita a explicitar, com efeito, uma ação "causal" - mesmo que isto faça parte de suas faculdades (o corpo pode modificar eficazmente o "estado" e a forma de uma coisa através de uma ação fisica, assim como pode fazê-lo por exemplo uma fonte 89

de calor) - , mas mantém com ela relações motivacionais: isto na medida em que o corpo é um poder motor, um órgão livremente móvel no qual necessariamente estão localizadas todas as apreensões das qnalidades sensoriais da coisa, e que portanto tem a função de centro de orientação na exploração perceptiva, de"comportamento" originário em relação ao qual os "comportamentos" da coisa se configuram, visto que é justamente a orientação atuaI do corpo percipiente, ou sua postura,

ou seu movímento, que me leva a ter esta apreensão sensorial em vez de uma outra. Retomando agora nosso problema, e tendo presente estas últimas considerações, podemos observar: é manifesto que a "coisa ilusória" não se "comporta", isto é, não se encontra numa trama relacional de circunstâncias, e, correlativam"ente, não

suporta a mobilidade do corpo, desagrega-se logo que este começa a movimentar-se numa atitude :explorativa. Surge aqni com toda a evidência o caráter relacional da percepção, ou seja, o relativismo das coisas em relação

às "outras" coisas e em particular (de modo essencial) em relação ao corpo. O fato de eu, enquanto corpo móvel, ser obrigado a proceder à exploração da multiplicidade dos perfis da coisa para captar a coisa em toda a riqueza de suas relações funcionais com o ambiente demonstra que estas duas modalidades de relação estão intimamente ligadas e constituem, na realidade, uma única relação: para o corpo, como atividade "imóvel" de espelhamento, não haveria um mundo arti-

culado, captado na multiplicidade de suas relações constitutivas. Relativamente a nosso problema, segue-se aqui claramente que a diversidade entre a percepção e a ilusão é determinada no âmbito de suas respectivas estruturas, ou seja, no fato de estas estruturas serem ou não preenchidas (ou melhor: de por essência podekm ou não poderem ser preenchidas) por uma série concordante de apreensões sensoriais (onde é preciso ter em conta a relação deste estrato material seja com

a esfera das dependências funcionais, com a causalidade das "circunstâncias", ou com a mobilidade do corpo).

A "normalidade" da percepção se define portanto comO aquela estrutura ótima que estende a própria percepção. E é preciso sublinhar que o termo "ótimo" se refere aqui tanto às chamadas condições exteriores da percep-

90

ção, à dependência do percebido em relação a seu contexto relacional (por exemplo a relação entre a cor percebida e a iluminação), quanto às chamadas condições internas, pertinentes à situação intra-orgânica do corpo percipiente: situação que por Sua vez é polarizada para o funcionamento "ortoestêtico" do corpo percipiente, no qual a coisa é experimentada na unidade de uma síntese concordante, que é portanto um funcionamento a valer como norma para todo decurso perceptivo. A análise, aqui apenas esboçada, das estruturas perceptivas nos conduz assim - sem que seja preciso recorrer a critérios exteriores a essas estruturas - a uma possível fundação da idéia de normalidade, na qual a "norma" não é mais uma sedimentação ideológica, e sim uma regra operante - e sempre a realizar - no Íntelior do próprio processo de estruturação.

91

5.

TENDENCIAS DO ESTRUTURALISMO

Pretendo aqui indicar como, no panorama delineado por Piaget (1968), em termos talvez demasiado simplificados, surgem algnmas importantes questões epistemológicas. O discurso aqui desenvolvido não abrangerá todos os campos tomados em consideração por Piaget, limitando-se a dar algnns exemplos tirados do domínio das "ciências humanas", onde o conceito de estrutura se revela particularmente novo e relevante,

com uma referência especial à Lingüística (utilizando nisso uma indicação de Lévi-Strauss, A.S., 1958, p. 37). De resto, apesar desta limitação, não fugiremos a uma inevitável genericidade, aquela mesma que, como disse ironicamente, Vigotski, corre o risco de fazer do estru-

93

turalismo uma espécie de noite em que todos os gatos são pardos. O fato é que se insistiu propositadamente em certas "coincidências" interessantes do ponto de vista epistemológico, deixando de lado as divergências e os contrastes que animam o quadro, e que dão vida a uma dialética à luz da qual deveriamos nos perguntar se o termo estruturalismo ainda pode eventualmente ser utilizado sem dar origem a possíveis confusões e mal-entendidos fundamentais. Antes de maís nada, as considerações de Piaget contribuem para nos livrar de algumas falsas antinomias em que o debate sobre o estruturalismo freqüentemente se embrenhou. Podemos escolher, a título de exemplo, três dentre as mais conhecidas: sincronia/ diacronía, estrutura/gênese, objetividade/subjetividade. Da distinção metodológica entre análise sincrónica e análise diacrónica tem sido extrapolada uma oposição, quase ontológica, entre estático e dinâmico. Deste modo, umas das objeções fundamentais dirigidas contra o estruturalismo (principalmente contra o de derivação mais estritamente saussuriana) assentou freqüentemente na constatação de um dualismo irredutível entre sistema e história. Na realidade, as coisas se colocam de forma bem diferente, pois uma das funções da investigação sincrónica é precisamente permitir uma fundação da consideração histórica. Contra boa parte da tradição exegética que se dedicou ao Cours de Saussure (e que, como nota De Mauro 1, não podia deixar de ser desviada. por certos endurecimentos - às vezes verdadeiros mal-entendidos - devidos aos organizadores do texto), é

precisamente esta observação que se impõe de maneira evidente, tanto no plano da realidade como no metodológico. Sob o primeiro ponto de vista, é essencial o conceito de arbitrariedade: reconhecendo que o signo não 1. F. de Saussure, Corso di Unguistica generale, BaTi, Laterza, 1967. Um dos muitos méritos da edição italiana do Cours, organizada

por T. De Mauro, é justamente o de mostrar a incons.istência de algumas grandes antinomias, entre as quais a que está aqui em causa,

atribuídas indevidamente a Saussme com base numa leitura unilateral do texto (unilateralidade que, como se viu, vez por outra derivou do trabalho dos editores), enquanto a totalidade do discurso saussuriano se movimenta exatamente na direção contrária. Cf. a introdução de De MaurO e principalmente, para maiores detalhes, o conjunto das notas, nas Qua:s é amplamente utilizado o material manuscrito em via de publicação na edição crítica de R. Engler.

94

tem uma motivação ''natural'' (não depende das características próprias das substâncias fônica e psicológica), mas assenta numa atividade de articulação, de análise do contínuo em unidades finitas e delimitadas, Saussure criou os pressupostos para uma consideração de tipo histórico. Com efeito, se a comunidade dos falantes não está vínculada à matéria à qual dá forma, isto é, se não é determínada pela "natureza" dos meios que fornece, ela não está exposta a outra coisa senão suas próprias necessidades internas: necessidades sociais, e portanto em devir, na base das quais a temporalidade da língua não só é aceita, mas é até postulada. Está aberto portanto o discurso sobre a geratividade, sobre a possibilidade do "novo", ligada à necessidade, para o organismo, de enfrentar situações mutáveis. Se a função do siguo consiste em mediar a relação homem-natureza, subtraindo o primeiro a uma determinação direta por parte da segunda, então a atividade semiológica está, por essência, em devir. Para a falta de reconhecimento deste aspecto presente em Saussure tem talvez contribufdo em parte uma jnstificadíssima desconfiança em relação a toda forma de reducionismo, isto é, em relação às tentativas de extrair as modalidades de uma determinada ordem estrutural diretarnente das de uma outra (esquecendo-se, no caso em questão, de que o fato lingüístico tem uma especificidadQ estrutural própria, cujos traços não são "deduúveis" dos da ordem social), desconfiança que encontra em Sanssure uma das suas mais rigorosas formulações. Mas o fato de estas duas atitudes (reconhecimento da pertínência da língua ao conjunto da "vida social" e reconhecimento de sua especificidade estrutural) não só coexistirem, mas se implicarem reciprocamente em Saussure, é testemunhado, entre outras coisas, por aquela famosa página do Cours dedicada à Serniologia, na qual Saussure chega até a indicar nesta ciência (em cujo âmbito se insere a Lin~ güística) "uma parte da psicologia social" e na qual, por outro lado, afirma que "é tarefa do lingüista defínir aquilo que torna a língua um sistema especial no conjunto dos fatos semiológicos" (Sanssure, Ibid., 1967, p. 26). Na realidade, no fundo do discurso saussuriano há uma forte intuição, que será explicitada posteriormente, sobretudo no domínio antropológico: a da peculiaridade das operações exercidas pela cultura sobre

95

o dado natural. Mas retomemos o nosso discurso. Ao nível metodológico deve ser colocado em primeiro plano o conceito de imanência. Por consideração imanente entende-se aqui a explicitação dos nexos internos do sistema isolado, a deterrníuação de sua forma intrínseca, fazendo abstração das ligações que ele mantém com o exterior (quer se trate, na temporalidade, dos elementos pertencentes a um outro sistema anterior ou sucessivo, ou, na contemporaneidade, dos elementos inerentes a sistemas de uma ontra ordem). Isto é, o ideal de uma "inteligibilidade intrínseca" é o qne Piaget indica como distintivo do estruturalismo. Este princípio já é coerentemente desenvolvido, por exemplo, pelos teóricos da psicologia da Gestalt, em polêmica com a posição associacionista. Sabe-se como, do ponto de vista do atomismo, as estrutnrações atnais do campo perceptivo eram remetidas para a força construtiva de estrnturas anteriores ou, mais simplesmente, para o "costume" decorrente da acumulação quantitativa das experiências. Mas neste caso o problema da estrutura era adiado ao infinito, com esta dificuldade de princípio: para qne uma estrutura anterior possa agir sobre o campo perceptivo atnal, é necessário que este campo já esteja "formado" de maneira a tornar possível tal ação (de modo que eu possa exercer, por exemplo, a rememoração de uma certa figura já vista por outra figura semelhante que atualmente vejo: "semelhança" que só é possível se a figura atual já está estruturada). O que de qualquer modo põe em primeiro plano o problema da estrutura imanente: "Ninguém pretende negar o papel tremendamente amplo desempenhado pela lembrança na vida mental, mas ela só pode desempenhar esse papel porque o mundo sensorial é dotado, por si próprio, de atributos específicos suficientes que lhe vêm da organização. Um puro e simples mosaico de sensações seria incapaz de dar à lembrança as direções específicas certas" (Kõhler, P.S., 1961, p. 154). Atitude :Jne, no domínio da Antropologia, foi vigorosamente defendida por Lévi-Strauss no caso, por exemplo, dos sistemas de parentesco. Nesta circunstância também, diante da tentativa, própria da antropologia tradicional, de remeter uma determinada estrutura de parentesco para outras estruturas, Uvi-Strauss reivindica o primado (do ponto de

96

vista heurístico) da estrutura considerada em sua imanência: Era preciso procurar interpretar esta estrutura através de seus caracteres globais, antes de desmembrá-la numa multiplicidade de fragmentos cuja justaposição pode depender de uma interpretação histórica, mas permanece privada de significado intrínseco (Lévi-Strauss, S.E.P., 1967. p. 143).

Compreendida assim esta orientação, como pode afirmar-se que ela implica a eliminação, ou pelo menos o obscurecimento do fator temporal? Bem vistas as coisas, a exigência aqui implícita tem exatamente o sentido contrário, desembocado na exigência de uma análise estrutural da temporalidade e de suas modalidades de ação. Por outras palavras: a comparação dó elementos pertencentes a sistemas situados diferentemente no contexto temporal não pode deixar de assentar na consideração preliminar destes elementos no interior das respectivas estruturas imanentes, ou seja, dos sistemas de relações que, na contemporaneidade, correlatam os vários elementos, e à luz dos quais estes elementos adquirem seu sentido pleno, tornando-se assim disponíveis para a comparação. De outro modo, como seria possível evitar as mais fantasiosas aproximações? Esclarece-se assim o que pretendíamos dizer ao falarmos do "primado heurístico" da consideração sincrônica: sem ela a análise diacrônica não encontraria garantias para seu rigor. Proposição que postula sua inversa na medida em que (cf. Jakobson, P. Ph. H., 1949, pp. 333-336) o sistema, inclusive quando considerado na sincronia, não é nada de "estático", mas, como sublinha repetidamente

Piaget, é um sistema de transformações. ];, supérfluo acrescentar que o conceito de totalidadeé necessário mas não suficiente para definir uma análise estrutural. Que o todo seja algo mais do que a simples soma das partes, que as propriedades que ele possui enquanto conjunto não sejam redutíveis às das partes, é um princípio que tem uma longa história. Sem ir longe demais, considere-se a morfologia de Goethe: o conceito de organismo como um conjunto no qual cada elemento depende da configuração global a que pertence, organismo que, enquanto forma (ou "tipo"), é capaz de permanecer na variação das partes (d. Cas97

sirer, S.M.L., 1945, p. 105); considere.se também a função que a idéia de totalidade desenvolveu no vitalismo 2. Mas o qne é peculiar a uma orientação de tipo estrutural (inclusive, como observa Piaget, na multiplicidade dos contrastes nele distinguíveis) é uma atitude 'explicativa nos confrontos das estruturas. Isto é, não se trata de considerá-las simplesmente como "totalidades emergentes", como formas não analisadas a contrapor às entidades atómicas do associacionismo, do mecanicismo, etc., mas de analisá-las em sua constituição interna, segundo uma perspectiva relacional em cujo âmbito, e em última instância, é eliminada também a oposição entre sistema e elementos constitutivos, pois o conceito de estrutura opera em todos os níveis: mesmo as unidades mínimas só podem ser definídas em termos relacionais, ou seja, como formas (enquanto em von Ehrenfels, por exemplo, a forma é ainda algo que se sobrepõe do exterior aos dados sensoriais atómicos). Esta complementaridade da forma e do conteúdo (onde a forma se insere em estruturações superiores, tendo deste modo função de conteúdo, e onde, reciprocamente, o conteúdo apresenta sempre um caráter sistêmico, tendo portanto função de forma para os elementos subordinados) não pode deixar de recolocar o problema de uma dialética dos níveis ou, na terminologia hegeliana, da Aujhebung. Por outro lado, o questionamento de toda perspectiva atomística deveria necessariamente abranger o conceito de indução. O que interessa não é mais a acumu-

lação dos dados, mas sua "tipicidarle", princípio que encontramos coerentemente formulado, por exemplo, tanto no domínio da Psicologia - "O problema de uma estruturação sensata, de uma organização, de uma com-

binação recíproca das partes, de uma complementarização entre elas, etc., não está necessariamente ligado à consideração de muitos casos: pode ser visto e entendido em seu caso singular, examinando-se de modo de· 2. Evidentemente, a afirmação de que o todo não é a simples soma das partes. ou de que a forma é anterior a seus elementos, nada nos diz ainda quanto à estrutura interna desta forma e, sobretudo, quanto às modalidades precisamente sob as quais ela pode arlicaNle a estes elementos. Deste modo, a forma acaba por caracterizar-se como princípio regulador puramente externo. Sesue-se daí o fato de, justamente na medida em que é pressuposto mas não explicado, isto é, nio analisado em seus nexos constitutivos, o conceito do forma (ou de estrutura) se prestar a qualquer extrapolação.

98

talhado sua estrutura particular" (Wertheimer, P. P., 1965, p. 52) - quauto no domínio da Antropologia, onde Uvi-Strauss insiste na necessidade de limitar-se resolutamente à análise aprofundada de um número restrito de casos, e provar desta forma que. afinal de contas. uma experiência bem feita vale por uma demonstração (Lévi~ -Strauss, A.S.. 1958, p. 317).

Na Lingüística, como se sabe, foi em Hjehnslev que o conceito tradicional de indução foi submetido à crítica mais rigorosa. O que aqui importa sublinhar é que tal crítica implica: a) que os dados sobre os quais se exerce a teoria não são acumulados, mas "escolhidos";

b) que a teoria tem um caráter puramente formal, ou seja, não é determinada pelos objetos empíricos aos quais "se aplica"; c) que justamente na medida em que é formal, ela não incide sobre datidades fatuais, mas sobre puras possibilidades (cf. Hjelmslev, F.T.L., 1968, pp. 15-25). Esta relação entre formalização e possibilidades tem, como veremos em breve, uma importância essencial para o problema genético. Por enquanto, é oportuno insistir no fato de uma orientação de tipo formal (que encontramos em Lógica, por exemplo, nas críticas de Husserl ao psicologismo) remeter para o problema das invariantes, ou seja, puras possibilidades dotadas de um primado lógico em relação a Suas réplicas empíricas. Daí a idéia de uma álgebra da língua baseada naquelas "entidades sem desiguação natural", naquelas formas mínimas que Hjelmslev chama glossemas (Hjelmslev, Ibid., pp. 85-86), ou, na lógica husserIiana, a idéia de uma gramática das puras formas (cf. Husserl, R.L., 1968) '. Se se levar em conta a crítica do método indutivo (ou melhor: do absolutismo com o qual foi formulado e aplicado, o valor heurístico da indução, do conhecimento adequado dos fatos, etc., certamente não está em causa) não será surpreendente que, em muitos casos, uma formalização rigorosa desemboque no problema genético

(desaparecendo deste modo mais uma das falsas anti3. Podemos ver que esta aproximação não é forçada, inclusive em Br4Jndal. EL.G., 1943, p. 97, Vale a pena acrescentar também. que uma análise do significado lógico e metodo16gico do conceito husserliano de eidos (como invariante ou possibilidade pura) servirá pata separá-lo do todas as Ilações "essencialistas" que têm sido feitas e têm prestado tão bem a certas liquidações apre85adas. da fenomenologia (enquanto espiritualismo, idealismo. etc.).

99

nomias a que me referia uo início). O essencial é que o método rigidamente indutivo (tomado de um tipo particular de cientificidade, que teve no modelo mecanicista sua formulação mais conseqüente) pressupõe geralmente uma atitnde fisicalista, com dois corolários bastante importantes: a) utilização exclusiva do dado observável, captável no contexto dos acontecimentos exteriores; b) desconfiança de princípio em relação a qualquer referência às operações do snjeito, confinadas num reverso não investigável, ou investigável só em suas manifestações empiricamente perceptíveis. Mas, como se viu, aquilo que uma orientação estrutural põe em questão é tanto a auto-suficiência do dado (que agora só pode ser entendido como um conjunto de relações: crítica do substancialismo, que encontramos nas várias disciplinas e a todos os níveis), quanto a prioridade lógica e epistemológica do fatual sobre o possível (como pura invariante em relação à multiplicidade de suas réplicas empíricas). Mais uma vez, é em Saussure que encontramos uma formulação rigorosa deste princípio, com a distinção entre langue e parole (que, mesmo em meio a todos os mal-entendidos 4 que a acompanharam, revelar-se-ia extremamente fecunda, não só em

Lingüística - veja-se a referência que, de pontos de vista diferentes, lhe fazem Hjelmslev (F.T.L., 1968, pp. 82-88) e Chomsky (A.T.S., 1965, p. 4), com as respectivas distinções entre esquema/uso e competence/ performande mas também em outras disciplinas, começando pela antropologia de Lévi-Strauss (A.S., 1958, pp. 230 e ss.). Simplificando, poder-se-ia dizer que a relação entre langue e parole é precisamente a distinção entre um sistema de virtualidades abstraias e o conjunto de suas realizações empiricamente observáveis, entre forma pura e uso concreto. De onde a definição saussuriana de langue: Esta é [ ... ] um sistema gramatical em cada cérebro ou, mais exatamente, no to de indivíduos, já que a língua não é individuo singular... (Saussure, lbid.,

existente virtualmente cérebro de um conjun~ completa em nenhum 1967. p. 23; o grifo

é meu). 4. Antes de ma's o que fez desta distinção, metodológica e dialética, uma dupla de contrários que se excluem mutuamente no plano ontológico. Mal-entendido este facilitado não 56 pela formulação, mas pela própria articulação que os editores. deram ao texto de Saussure. Sobre este ponto, d. em particular a n. 6S de De Mauro, na edição italiana do Cours (cit., pp. 385-389).

zoo

Há mais: em Saussure podemos encontrar não apenas, como se sabe, o problema da langue como "sistema", como forma pura anterior, do ponto de vista lógico e epistemológico, a suas manifestações fatuais, mas também o problema genético: ligação que freqüentemente passou despercebida, o que constribuiu para radicalizar a dicotomia entre análise estrutural ou formal e análise genética, dicotomia cuja inconsistência é sublinhada repetidas vezes por Piaget. Em Saussure, como se dizia, ao mesmo tempo que se explicita o caráter puramente formal da língua, é colocado o problema de seu estudo genético. Vimos anteriormente que não é por acaso que Saussure considera a Lingüística uma parte da Semiologia - que, por sua vez, se inscreve na Psicologia - e insiste vigorosamene no caráter psíquico da língua (cf. Saussure, Ibid., pp. 23-24). Em termos muito simplificados, o esquema do discurso saussuriano poderia ser indicado desta forma: a consideração meramente formal da língua nos coloca perante um conjunto restrito de princípios de estruturação, e trata-se de ver como estes princípios ("psíquicos") se inserem numa atividade de estruturação geral que é peculiar à criação dos siguos, isto é, se inserem naquela atividade articulat6ria que é subjacente ao processo semiológico. Justamente por esse motivo, ele elucida claramente estes dois pontos: a) através da mediação da Semiologia (que é psicologia social na medida em que o signo não é um produto individual, mas decorre de um "liame social"), a Lingüística é englobada (com a condição fundamental, a que

DOS

referimos anteriormente, de não se escamotear

a especificidade estrutural da lingua) na Psicologia (Saussure, Ibid., p. 26), à qual compete estudar aquela atividade articulatória geral que constitui o fundamento de todo o sistema lingüístico historicamente determinado (onde se tem uma prefiguração da problemática psicolingüística)S; b) a questão das "origens" não é portanto redutível a uma perspectiva diacrônica, identifi5. Cf. G.A. Miller (P.S., 1967), principalmente as páginas iniciais do ensaio dedicado à psicolingUfstica c, sempre no mesmo ensaio, as

dedicadas à atividade combinatória: "Man is lhe only animaI to have a combltuttoriall;y productlve language". Mas é preciso dizer que em quase

toda a literatura psicolingiiistica americana Saus.sure é freqüentemente esquecido. Há uma referência importante em Diebold (S.P., 1967, P. 212), onde a distinção competence/per!ormance é referida à distinçio saussuriana liJnglUl/plUole.

101

cando-se com a das condições permanentes formais: uma das tarefas esseuciais da Lingüistica é "procurar as forças que de modo permanente e urtiversal estão em jogo em todas as línguas, e extrair as leis gerais a que podem ser reduzidos todos os fenômenos particulares da História" (Saussure, Ibid., p. 15). Trata-se evidentemente, em Saussure, de indicações programáticas, mas não é dificil ver nelas uma das direções de pesquisa que polarizam a situação atual das chamadas ciências humanas. O problema das "forças permanentes e universais" está, por exemplo, em primeiro plano na antropologia de Lévi-Strauss, e cabe notar que este problema não é colocado à custa das diferenças verificáveis entre os vários sistemas culturais, mas, pelo contrário, pressupõe-nas. Isto é, impôs-se a idéia do conjunto intercultural como sistema de desvios diferenciais, regido por um número limitado de princípios estruturais que, participando de diversas configurações, agem nas várias culturas. Estas propriedades gerais, manifestadas pelas diferenças interculturais, são o objeto próprio da Antropologia, pois esta procura justamente distinguir as constantes ligadas aos desvios diferenciais. Se a recolha "indutiva" de dados tinha levado a um certo tipo de relativismo cultural, a procura estrutural dos universais não nega. a especificidade das culturas (e portanto, no limite, sua relatividade), mas procura trazer à luz aquele fundo de identidades sobre o qual justamente as diferenças podem se des-

tacar: Por trás da diversidade aparentemente infinita dos modelos culturais há uma fundamental uniformidade (Linton, U.E.P., 1952, p. 646).

:e portanto esta idéia reguiadora que orienta a análise do antropólogo e lhe determina a posição estratégica que ele assume quanto à relatividade, pois no conjunto diacrítico oonstituido pelos vários sistemas culturais ele escolhe exatamente aqueles cuja divergênc'ia lhe parece mais acentuada, na esperança de que as regras metódicas que se lhe imporão para traduzir estes sistemas nos termos de seu próprio sistema, e reciprocamente, tornarão viSÍvel uma rede de constrições fundamentais e comuns (Uvi-Strauss, C.C., 1964, p. 19: cf. A.S., 1958, pp. 325 e 379).

102

Tudo isso não nos surpreenderá se pensarmos que uma rigorosa formalização, baseada no aspecto sistêmico do objeto investigado, leva à formulação de alguns princípios essenciais, que surgem precisamente na medida em que tal objeto perde sua substancialidade (ou, se se quiser, a espessura material que o sustenta) e configura-se como um emaranhado de relações redutíveis a um número restrito de traços fundamentais. Isto é, "formas" comuns, princípios de estruturação que dão vida às diferentes configurações, podem ser captadas por detrás da heterogeneidade das substâncias preparadas. Em Hjelmslev este assunto foi desenvolvido com um rigor tal que se postulou, como se viu, uma "álgebra lingüística" baseada num "cálculo" geral, sob a forma

de uma tipologia cujas categorias são as línguas singulares, ou melhor, os tipos lingüísticos singulares. E aqui é preciso prever todas as possibilidades, inclusive as que se encontram virtualmente no mundo da experiência, sem terem uma manifestação "natural" ou "atua!" (Hjelmslev, F.T.L., 1968, p. 113). Não é este o lugar

para delinear as dificuldades implícitas em semelhante atitude, pelo menos em seus aspectos mais extremos6 ; o que aqui interessa observar é qUe muito se caminhou - e não só, como se viu, em Lingüística - depois da conhecida afirmação de Bloomfield, segundo a qual "as únicas generalizações úteis, sobre a linguagem, são as indutivas". Certamente não é por acaso que o pro-

blema dos universais se coloca com urgência maior no interior das várias disciplinas justamente quando, graças à rigorosa aplicação do método "indutivo", dispomos de uma massa tal de materiais que até as generalizações mais audaciosas implicam todo um campo de verificabilidade. Afinal, a relação entre um Boas e um Lévi-Strauss (para citar um exemplo) é uma relação de reciprocidade, mais do que de oposição: o que deveria salvar-nos da tentação de criar mais uma absurda

antinomia. Mas, por outro lado, não se pode deixar de realçar um novo estilo teórico, baseado na exorci1..ação

do "fato" e no pressuposto de que, para proceder a teorizações coerentes, o mais necessário não é a quantidade de dados (e aliás a possibilidade de obtê-los em sua totalidade fica, em muitos casos, exclulda por prin6. Sobre H;eImslev em particular, d. Martinet tema de crenças, a conotação do fogo ou da água é benéfica para uns e maléfica para outros, a transformação lógica se impõe. Mesmo gozando de uma autonomia relativa (garantida pelo fato de as relações entre as várias manifestações de vida do grupo nunca serem relações de dependência mecânica, mas consentirem - através de uma longa série de mediações - um certo jogo), a dimensão mitica está relacionada com todas as outras: com a religiosa assim como com a econômico-social, etc.; e é exatamente com esta realidade estratificada que a investigação estrutural deve comparar seus resultados (C.C., 1964, pp. 199-202 e 337-342). Reencontramos 118

assim a idéia de fato social total que, como vemos, denota esse conjunto articulado tal qual é experimentado por mu sujeito concreto. Se por outro lado passamos a considerar a posição da subjetividade no interior da análise antropológica, constatamos que ela se encontra sempre presa nmua rede de relações inter-humanas. Já a este nível, antes mesmo da convergência metodológica, transparece a afinidade entre a Antropologia Estrutural e a Lingüística: em ambos Os casos a estrutura fundante é a da reciprocidade. Tal como a linguagem, o sistema de parentesco tem a função de instituir um campo aberto de comunicação, no qual cada sujeito só se define por sua situação em relação ao outro. Segundo Lévi-Strauss, é neste terreno que se dá a passagem da natureza para a cultura. Arrancando o individuo da sua mera constituição biológica, a proibição do incesto torna-o disponível para a coexistência; com a passagem da consangüinidade para a alliance, ele não se situa mais apenas em relação à família biológica, mas também em relação ao grupo, e a regra exogâmica tem justamente a função de assegurar a permanência do grupo, que ficaria seriamente comprometida se a família biológica se fechasse sobre si mesma e subtraísse seus individuos à circulação no seio do próprio grupo. Por detrás de sua conotação negativa, a proibição do incesto esconde na realidade uma norma positiva, pois a renúncia a encontrar o companheiro no âmbito da própria falUl1ia biológica siguifica ao mesmo tempo, para o sujeito, a reivindicação de introduzir uma outra mulher no grupo. E com efeito a regra exogâmica constitui o núcleo originário, ainda indeterminado, de toda forma de troca. Sob este aspecto, mesmo a propriedade se

define em termos de relação: o bem possuído (seja mua mulher, ou um objeto, ou mu sinal) é apenas o ponto de partida ou de chegada de uma constelação de relações, e não basta mais a necessidade de satisfação para defini-lo, mas um conjunto de relações significantes (por exemplo, com a idéia do dom, ou do sacrifício, ou do prestígio: em cada caso cOm momentos intersubjetivos) que ajuntam ao seu valor biológico ou econômico um valor semiológico. Se na linguagem os elementos constitutivos valem menos por suas propriedades intrínsecas

do que pelas relações que os ligam nmu sistema de desvios diferenciais, nos sistemas de parentesco as mu~

119

Iheres - isto é, os objetos e os instrumentos da comunicação se configuram como valores num conjunto de relações de reciprocidade, sustentado por princípios de oposição e correlação análogos aos que estão subjacentes à comunicação lingüística. Esta exigência de reciprocidade é preenchida, conforme as diversas configurações sociais, por formas de troca mais ou menos complexas (troca limitada ou generalizada, organização em metades, seções ou subseções, etc., segundo modelos ideais que não coincidem necessariamente com a realidade emoírica, mas que constituem sempre seu critério nQrmiJtivo, sua trama inteligível), formas que assumem seu sentido pleno à luz da estrutura relacionística inerente ao estado de sociedade. [As regras do parentesco e do matrimônio] são o próprio estado de sociedade, o qual modifica as relações biológicas e os sentimentos naturais, lhes impõe uma posição em estruturas que Os implicam em conjunto com outros, e os obriga a superar suas características primeiras (S.E., 1967, p. 555).

Em termos gerais, e antecipando aqui uma temática que será retomada mais tarde, é essencial salientar que a subjetividade não pode ser simplesmente definida em termos de sua relação com a natureza, visto que esta relação é sempre mediada pela cultura (T.O., 1962, p. 94), isto é, pelo conjunto das aquisições inter-humanas: o complexo das necessidades, das pulsões, das solicitações biológicas, etc., se constitui desde logo a um nível onde minha relação com o outro é operante. 2.

O inconsciente

Esta relação se instaura antes de mais nada no plano do inconsciente. O encontro entre subjetividades diferentes não se dá apenas nas instituições elaboradas conscientemente, tendo em vista um fim intersubjetivo. mas tem a sua gênese na pertença delas a uma estrutura comum, e universalmente válida, da atividade inconsciente. Ora, segundo Lévi-Strauss, a tarefa da Etnologia é justamente delinear os traços essenciais desta atividade, descobrindo aquelas leis universais que ligam sujeito cam sujeito e sociedade com sociedade. E é sempre através do inconsciente que se realiza o paradoxo, peculiar à Etnologia, de ser uma ciência objetiva

120

e subjetiva ao mesmo tempo, pois as leis do iuconsciente transcendem a dimensão subjetiva, são por assim dizer "externas" a ela e, ao mesmo tempo só podem ser

captadas no operar efetivo da subjetividade. Sob o fervilhar das diversas formas para que remete a atividade dos sujeitos, de cultura a cultura, a Etonologia isola as caiegorias recorrentes que constituem o fator primário de toda estruturação, o substrato comum sobre o qual poderá articular-se em seguida uma série de experiências diferenciais. Neste caso também, a Antropologia Estrutural recorre ao exemplo da Lingüística e, em particular, da Fonologia. A Fonologia, com efeito, lembra Lévi-Strauss citando Trubetzkói, mostrou a necessidade de passar do estudo dos fenômenos conscientes da linguagem para o dos fenômenos inconscientes, de descobrir aquele conjunto de leis elementares e universais que, na comunicação lingüística real, perma-

necem latentes. O uso da linguagem não implica no sujeito a tematização explícita, por exemplo, dos princípios de oposição e correlação que ele faz intervir no continuum fônico: pelo contrário, estes princípios operam a um nível muito mais profundo e representam a estrutura de base mais elementar - comum a tOCos os sujeitos falantes - sobre a qual toma corpo a complexidade dos fenômenos lingüísticos. O ato expressivo pressupõe portanto, em sua dimensão mais originária,

uma teleologia (Jakobson) operante mesmo antes de ser fixada pela reflexão, uma tensão para a significação e a comunicação que polariza o campo fonológico inteiro. Se, à luz destas considerações, passamos a tematizar uma outra ordem da realidade intersubjetiva, por exemplo a dos sistemas de parentesco, vemos que Deste caso também a estruturação se efetua antes de mais nada a um nível inconsciente e que o fim essencial é ainda o da comunicação. Ora o que caracteriza o objeto da Antropologia é justamente o fato de ser pré-reflexivo (a lei age na experiência concreta antes de ser fixada na objetivação científica) e intersubjetivo (o fim da estrutura é articular, diferenciar um continuum - seja o dos sons vogais ou o das mulheres - para permitir a significação, que assenta precisamente sobre um sistema de desvios diferenciais: e a significação é por sua vez o suporte de uma comunicação entre sujeitos). A procura das invariantes elementares que para Lévi121

-Strauss define a Antropologia se identifica assim com a procura de modelos estruturais que, em sua simplicidade e universalidade, podem fazer convergir soluções culturais diferentes e constituem um fundo sobre o qual se encontram a minha experiência e a do outro, a experiência do civilizado e a do "primitivo": Se [ ... ] a atividade inconsciente do espírito consiste em impor formas a um conteúdo e se estas formas são fundamentalmente as mesmas para todos os espíritos [... ] é necessário e suficiente atingir a estrutura inconsciente, subjacente a toda instituição e a todo costume, para obter um princípio de interpretação válido para outras instituições e costumes, com a condição. claro, de a análise ser levada bastante longe (A's., 1958, p.28).

A análise das estruturas inconscientes implica portanto um profundo trabalho de formalização, ao cabo do qual o conceito de estrutura adquire seu pleno valor heurístico. Mas qual é o significado desta formalização? O movimento até aqni esboçado vai, assim, se precisando: o problema do outro nos conduziu - através do problema da objetividade da investigação - ao do inconsciente como fundamento da intersubjetividade, como termo mediador numa comunicação: a partir daí, enfim, passamos a nos perguntar que significado tem e que posição ocupa no âmbito desta temática a idéia de estrutura. 3.

A idéia de estrutura

Antes de mais nada é necessário não cair na tentação de traduzir o conceito de estrutura através de fórmulas como "o todo não é a simples soma das partes" ou de identificá-lo simplesmente com a exigência de uma consideração das relações constitutivas do conjunto. Toda fórmula deste gênero resultaria aqui parcial e indeterminada, até se levar em conta tanto as motivações de fundo que levaram à constituição da investigação eslrutural como o alcance metodológico desta investigação. Na realidade a simples reivindicação de uma consideração totalizante dos fenômenos estudados ainda não uos esclarece a respeito das relações que devem existir, no interior do sistema em questão, entre os elementos constitutivos do próprio sistema (pois estes tanto podem ser concebidos nos termos de uma causalidade mecânica como nos de uma interdependência dia-

122

lética), assim como deixa em aberto o problema da relação que o modelo obtido mantém com a experiência concreta (trata-se de uma mera abstração teórica ou de um esquema já operante a um nível mais originário?) As páginas anteriores forneceram uma resposta, pelo menos parcial, a este segundo problema: a determinação do caráter inconsciente do modelo estrutural faz dele, não só uma instância analítica, mas também um princípio efetivo de articulação, de organização da atividade mental: veremos mais tarde que esta formulação esconde por sua vez um grande nó problemático. Convém portanto orientar o discurso para a outra questão e assumir como ponto de partida aquilo que já surgiu, embora marginalmente, de uma ordem diferente de considerações: isto é, o fato de, preliminarmente, a investigação estrutural visar à delimitação, através de uma tematização imanente, da forma essencial do objeto estudado tal como ele se configura em sua tipicidade e independentemente de considerações de ordem externa. Desta maneira, porém, se fornece uma indicação metodológica que, apesar de fundamental, não esgota todo o curso da investigação estrutural. Se, por exemplo, consideramos o problema dos sistemas de parentesco, vemos que a fixação de alguns modelos elementares (princípio de reciprocidade, troca limitada e generalizada, casamentos entre primos cruzados, etc.) é concomitante à análise das formas, quase sempre complexas, assumidas por estes modelos no contexto etnográfico concreto. Mais: a atividade lógica que leva à constituição dos sistemas de parentesco se inscreve numa praxis mais compreensiva, que determina a constituição das relações intel-humanas (sociais, econômicas, religiosas, etc.),

particularmente a constituição da esfera lingüística. O objetivo é portanto duplo: por outro lado, trata-se de evitar que a caracterização de um nível específico seja feita por mera dedução, a partir de outro nível assumido como privilegiado; por outro lado, quer-se impedir que os diversos componentes da realidade antropológica se transformem em outros tantos compartimentos estanques. • Este segundo aspecto aparece de forma particularmente nítida nas páginas que Lévi-Strauss dedicou ao problema do chamado totentismo. Não é por acaso que ele sublinha como primeira exigência a de dessubstancia-

123

lizar o fenômeno "totêmico", de arrancá-lo da cristalização à qual a Etnologia tradicional o tinha submetido, fazendo dele uma realidade autônoma (T.O., 1962a, p. 66). Esta crítica se desenvolve simultaneamente sobre dois eixos; isto é, visa a dissolver a "atomização"

dos elementos constitutivos do pretenso totemismo, seu parcelamento em entidades dotadas de um significado intrínseco (associação de uma espécie animal ou vegetal com um grupo ou uma classe, sistema de denominação, proibições alimentares, etc.), insistindo na multiplicidade de relações que ligam o fenômeno particular ao contexto global e lhe conferem seu poder significante; correlativamente, visa fazer sair o totemismo dos limites

que tradicionalmente lbe foram impostos, para inseri-lo numa estrutura de conjunto onde ele deixa de definir-se como forma fechada e auto-snficiente. Surge assim uma primeira peculiaridade do método estrutural: cada unidade constitutiva do conjunto estudado é destituída de seu caráter de coisa e passa a confignrar-se como um emaranhado de relações: o sentido desta unidade não é intrínseco, e sim de posição, e só pode ser captado depois de ter sido permutado em todos os seus contextos (S.F., 1960, p. 26). O fulcro da investigação não é mais constitnido pelos elementos em si mesmos, mas pelas relações entre eles estabelecidas, pois somente as relações são constantes, ao passo que os elementos podem variar (sem contudo serem arbitrários). A estrutura relacional se manifesta portanto desde as unidades

constitutivas de base, e é focalizada por toda uma série de oposições e correlações:

o método comparativo consiste em integrar um fenômeno particular num conjunto que é tornado mais geral pelo desenvolvimento da comparação (T.O., 1962 a, p. 122). Consideremos, por exemplo, a análise dos mitos. Antes de mais nada é preciso proceder à decomposição sintagmática da pura narração mítica, isolando as unidades constitutivas da seqüência; em segnndo lugar, cada • uma destas unidades deve ser inserida num conjunto paradigmático: e só depois que esta operação tiver sido acabada ela poderá apresentar um sentido. Originariamente, não se pode atribuir um sentido próprio à cadeia sintagmática,

124

a significação reside inteiramente na relação dinâmica que funda simultaneamente vários mitos ou pares do mesmo mito, e, por efeito dela, estes mitos, e estas partes, são promovidos à existência racional e chegam juntos ao fim, como pares oponíveis de um mesmo grupo de transformações (C.C., 1964, pp. 313-314).

Em seguida podem ser isoladas certas unidades de base, os mitemas, que, semelhantemente aos fonemas,

valem pelas relações de oposição e correlação que mano têm entre si. O campo originário, que inicialmente parecia composto por uma massa confusa de elementos heterogêneos, começa deste modo a revelar linhas de força, centros de articulação, entre os quais trausparece uma primeira dimensão de sentido. Esta procura das relações constitutivas da totalidade não deve porém ser concebida em termos reducionistas, como nivelamento de certas unidades a outras unidades, mas antes como uma procura de hom%gias que preserva os níveis de especificidade e garante - graças a uma série de permutações uma conexão dialética e não mecânica. J ustamente por este motivo, o conteúdo não representa um dado puramente exterior e indiferente em relação à forma. E certo que, principalmente em polêmica com a teoria junguiana dos arquétipos, Lévi-Strauss insiste no fato de só as formas e não os conteúdos poderem ser comuns, (P.S., 1962, p. 88), que à constância das formas se contrapõe a variabilidade dos conteúdos (S.F., 1960, p. 16), mas por outro lado sublinha que, longe de constituirem uma antinomia, forma e conteúdo são suscetíveis da mesma análise estrutural, pois a não-

-arbitrariedade dos conteúdos é revelada pela sua transformabilidade recíproca, mediante permutações que res-

peitam as condições impostas pela estrutura de conjunto: o conteúdo deriva sua realidade da sua estrutura, e o que se define como forma é a "estruturação" das estruturas locais em que consiste o conteúdo (S.F., 1960, p. 22).

A definição de forma e conteúdo como "pontos de vista complementares" (C.C., 1964, p. 106), como • momentos correlativas da investigação estrutural, tra-

duz na realidade uma atitude mais geral, que é de recusa da oposição entre o abstrato e o concreto. Esta observação nos remete para outro problema, que já apareceu

125

nas páginas anteriores: o da natureza e limites da formalização. Com o avanço da investigação estrutural o sistema estudado tende cada vez mais a manifestar sua unidade interna, sua coesão e seu caráter exaustivo em relação aos fenômenos examinados. As estruturas descobertas perdem progressivamente sua particularidade inicial e tendem a generalizar-se, por trás da multiplicidade dos dados empíricos transpareoem relações cada vez mais simples que, pela sua recorrência, abrangem um campo de fenômenos muito amplo e garantem sua inteligibilidade: desenha-se então como termo ideal a existência de uma meta-estrutura. Mas a unidade assim explicitada não é uma forma fechada sobre si mesma, caracteriza-se por uma constante abertura para o evento, por uma capacidade de extensão. Sua exigência de COerência de um lado a leva a uma espécie de "conservadorismo" e a colocar em primeiro plano o problema de sua própria sobrevivência, por outro lado a induz a assimilar o maior número possível de eventos, a viver num estado de tensão permanente: todo sistema é simples e coerente, mas está sempre rodeado por outros sistemas, que assentam em princípios que lhe são

estranhos

(S.E.,

1967,

p.

529).

Exatamente na medida em que é ideal, a unificação visada pela investigação estrutural nunca é concluída: as estruturas, nascendo de relações inter-humanas concretas, têm uma vida e uma história. Não existe um termo verdadeiro e final da análise mítica, nem uma unidade secreta, que possa ser captada no fim do trabalho de decomposição [ . . . l. A unidade do mito é apenas tendencial e projetiva [ ... ] O conjunto dos mitos de uma população pertence à ordem do discurso. A não ser que a população se extinga física ou moralmente, este conjunto nunca é

fechado

(C.e.,

1964,

pp.

13-15).

Encontramos assim o problema das relações entre diacronia e sincronia.

4.

Diacronia e sincronia

Como é retomada por Lévi-Strauss a distinção saussuriana entre estas duas dimensões da temporalidade? Mas talvez seja necessário, antes mesmo de pôr este

126

problema, sublinhar o fato de o sentido desta oposição freqüentemente ter sido mal compreendido, seja ao atribuir-lhe um valor antinómico, quando ela tem antes de mais nada uma função metodológica, seja não levando em conta o enrijecimento que ela pode ter sofrido na redação do Cours devida a Bally e Sechehaye (cf. Oodel, S.M...., 1957). De qualquer modo, não há dúvida de que a formulação saussuriana reflete uma visão parcialmente mecanicista, que sua concepção do tempo é ainda tributária, em ampla medida, das velhas teorias atomisticas e que, pelo menos nas páginas do Cours, a dimensão diacrónica tende a contrapor-se à sincrónica como fator inverso. É sabido que a Escola de Praga criticou estes pontos de vista: em particular, Jakobson mostrou como uma concepção teleológica da linguagem implica uma consideração renovada da diacronia, que revela sua estruturação em vista de um fim e recusa a redução atomística e mecanicista do tempo (Jakobson, S.W., 1962, pp. 1-6 e 327; E.L.G., 1963, pp. 36-37) e como é justamente em virtude desta perspectiva teleológica que é superada a falsa antinomia entre diacronia e sincronia: Seria um eITO grave considerar a estática e a sincronia como sinônimos. O corte estático é uma ficção: é só um procedimento científico auxiliar, não um modo particular do ser [ ... l. As tentativas de identificar a sincronia, a estática e o campo de aplicação da teleologi a de um lado, e a diacronia, a ] dinâmic a e a esfera da causalid ade mecânica de outro [... procriam a ilusão superficial e nociva de um abismo entre os Tru· blemas da sincronia e os da diacronia (Jakobson, in: betzk6i, P. Ph., 1964, pp. 333-336).

E significativo que Lévi-Strauss se refira justamente

a estas páginas para colocar o problema da relação entre diacronia e sincronia na investigação antropológica. Antes de mais nada ele reconhece na distinção saussuriana um significado metodológico preliminar, assente na necessidade, a que acima nos referimos, de proceder à coleta dos nexos lógicos, das determinações internas do objeto investigado, antes de investigar sua origem ou sua evolução. A Etnologia parte do presente, pois geralmente é no presente que o contexto etnográfico pode ser diretamente atingido, e portanto se pode focalizar a relação intrínseca entre o aspecto estrutural (a "forma", revelada pela análise científica) e o plano dos

127

conteúdos (que, como se viu, está ligado à realidade etnográfica). Na medida em que pretende ser uma procura do concreto, a Etnologia precisa referir-se constantemeute a uma realidade diretamente experimentada:

em resumo, pressupõe o trabalho "de campo". De certo

modo ela inverte as relações tradicionais e insiste sobre a necessidade de compre ender o presente para proceder à compre ensão do passado (cf. S.E., 1967, p. 558). Uma vez isso esclarecido, o problema de saber se o relativo privilégio do sincrônico (e é necessário insistir no termo "relativo", pois a análise sincrônica não pode Dunca prescindir totalmente de considerações de ordem diacrônica [C.C., 1958, p. 102] revela-se um falso problema. Se a estrutura não é uma realidade estática, mas, como se viu, um feixe de relações fuudadas uuma dimensão teleológica, a relação entre diacronia e sincronia deixa de constituir uma antinomia, e a uma incompatibilidade se substitui uma complementaridade. A estrutura sincrônica é "vulnerável" em relação ao evento: opõe-lhe uma resistência própria, mas, ao mesmo tempo, dispõe-se a assimilá-lo graças a um jogo de compensações e transformações que tem a tarefa de tornar possível a sobrevivência da própria estrutura, e contudo, no limite, pode conduzir a sua dissolução numa outra estrutura. Antes de falar de conflito, portanto, é mais conveniente falar de encontro, de interação dinâmica entre a ordem da estrutura e a do evento. Se por exemplo consideramos a regra exogâmica (que constitui o princípio mais

elementar das relações de parentesco), veremos que ela

assume formas cada vez mais complexas (p. ex., a da troca generalizada), precisamente em virtude de sua funcionalidade, baseada na necessidade de garantir a circulação das mulberes deutro do grupo - aquela circulação que em formas mais simples como aS organizações duaIísticas está sempre correndo o risco de empobrecer-se, se não de anular-se (S.E., 1967, p. 544). A natureza teleológica do sistema, seu constitnir-se numa praxis intersubjetiva em vista de uma comunicação funciona, portauto, como tecido de ligação entre o próprio sistema e a História. O problema colocado acima deve portanto ser reformulado, dado que a antinomia que alguns pretendem descobrir entre História e sistema apareceria [ ... ] só com a condição de ignorarmos a relação dinâmica que se manifesta entre estes dois aspectos.

128

Como existe transição de um para outro, há entre estes lugar para uma construção diacrônica e não~arbitrária (P.S., 1962, p. 212).

Sob este ponto de vista, parece-me que as criticas levantadas por Ricoeur (Esprit, 1963) pressupõe um certo equívoco. Dizer que a análise estrutural está irremediavelmente limitada à ordem sincrónica e que, justamente por causa disso, é necessariamente obrigada a permanecer no plano sintático, sem nunca poder passar ao da semântica, a investigar as formas desprezando como insignificantes os conteúdos e perdendo assim de vista o sentido, equivale a desconhecer o fato de, para a investigação antropológica, o problema dos conteúdos semânticos não poder ser colocado separadamente do de sua inerência a uma estrutura de conjunto: é significativo o fato de Ricoeur parecer invocar, pelo menos em certos casos, o caráter intrínseco do sentido em relação ao signo, pondo assim em jogo toda a posição estrutural, segnndo a qual o sentido não é uma propriedade do termo singnlar, mas surge sempre de um contexto relacionai, de uma rede de desvios diferenciais: não está nos signos, mas entre os signos. Na realidade, a referência à Lingüística - a menos que nos limitemos à de Saussure - não implica a eliminação da perspectiva diacrónica, como julga Ricoeur, mas acentua a exigência de uma integração das duas perspectivas: [ .. . ] entre todas as ciências sociais, só uma atingiu o ponto onde as explicações sincrônica e diacrônica se confundem, dado que a primeira permite reconstituir a gênese dos sistemas e proceder a sua síntese, ao passo que a segunda põe em evidência sua 16gica interna e capta a evolução que os dirige para um fim. Esta ciência social é a Lingüística. concebida como um estudo fonológico (S.E., 1967, p. 558).

Na investigação do pensamento dos "primitivos" e, em particular, de seus mitos, o problema da temporalidade surge com toda sua evidência, em conexão com o da estrutura musical dos mitos.

5.

O pensamento concreto

Convém afugentar imediatamente o fantasma de uma pretensa mentalidade primitiva, dado que o pensamento "selvagem" se revela não já como uma forma

129

destorcida ou arcaica do uosso, mas como uma experiência dotada de uma lógica interna que é tão exigente e rigorosa como a que é realizada pelo pensamento "ocidental". Quando por exemplo um indigena usa, para o seu sistema de classificação, certas categorias repre· sentadas pelas espécies animais, não se deve ver nisso uma exigência Hanimista" (conceito equívoco, que na realidade escoude sempre a convicção de que o indígena - como em outros casos a criança - não sabe pensar), mas pelo contrário uma exigência lógica: a subdivisão das espécies animaís ou vegetaís ínstitui para ele um primeiro esboço da articulação do real, introduz aquela descontinuidade que é preciso enxertar sobre o continuum originário, se queremos que uma certa fisionomia, um certo sentido, comece a surgir. Ora o pensamento "selvagem" opera justamente através de um conjunto de desvíos iliferenciaís - tal como o sujeito falante "empobrece" e seleciona o continuum sonoro por meio de oposições e correlações (só estando assim articulada a matéria pode desempenhar o papel de substrato de uma significação), do mesmo modo o pensamento selvagem institui no ínterior da totalidade empírica um sistema de oposíções graças ao qual esta totalidade começa a estruturar-se e a tornar-se disponível para uma atividade de sigrtificação. Na base de toda conceituallzação, portanto, há sempre a instituição de uma descontinuidade: a atividade de significação assenta anfes de mais nada num poder de articulação. Fica imedia· tamente claro que esta ordem de problemas não tem importância apenas lingüística e antropológica, mas também gnosiológica: justamente por isso, talvez, a questão de uma atividade articulatória originária poderia constituir um dos pontos de passagem das investigações que dizem respeito à esfera perceptiva para as que dizem respeito à esfera lingüística. Mas o discurso é demasiado complexo e por enquanto não pode ir além dessa simples indicação problemática. Limitamo-nos portanto a sublinhar que a significação pressupõe sempre um trabalho de recorte, que ela é diacrítica e não positiva: a atividade simbólica se exprime inserindo os dados naturais num sistema de desvios diferenciais, e é justamente nesta liberdad., da cultura em relação à natureza que assenta a arbitrariedade (a não naturalidade) do signo. Mas quais são, se é que existem, os 130

limites desta arbitrariedade? A resposta de Lévi-Strauss é conhecida: o signo é arbitrário a priori, mas não a posteríori: quando consideramos o vocabulário a posteriori, isto é, o vocabulário já constituído, as palavras perdem muito de sua arbitrariedade, já que o sentido que lhes atribuímos não é mais somente função de uma convenção. Ele depende do modo como cada língua decompõe [découpe] o universo de significação de onde retira o termo [ ... l. Assim, o caráter arbitrário do signo lingüístico é apenas provisório. Uma vez criado o signo, sua vocação se precisa, de um lado em função da estrutura natural do cérebro, e de outro lado em relação com o conjunto dos outros signos, isto é, o universo da língua, que tende naturalmente a constituir~se em sistema (A.S., 1958, pp. 107-108).

O que aqui se volta a propor é, por outras palavras, o problema semiológico: a cultura (como vida em sociedade) submete os dados naturais, ou mais em geral os objetos, a um processo que poderíamos definir como semantização: o fonema não é mais um simples som vogal pertencente ao mundo natural dos ruídos, é um instrumento (por si mesmo não significante) de significação: a posse de um bem não representa apenas a satisfação (ou a possibilidade de satisfação) de uma necessidade biológica ou econômica, mas por exemplo no potlatch, uma possibilidade de troca ritual ou um símbolo de prestígio baseado na idéia de reciprocidade; a variedade das espécies animais ou vegetais perde seu significado exclusivamente biológico e se confignra, aos olhos do pensamento indígena, como um instrumento capaz de articular ou organizar a totalidade do nniverso. A cultura, portanto, não se limita a sofrer passivamente o dado natural, mas e1abora-o em vista de uma significação ou - também - de uma comunicação; e ela o faz precisamente, numa fase inicial, estruturando aquele dado, submetendo-o a um trabalho de diferenciação, instituindo nele um sistema de desvios, operando uma seleção ativa, dado que existe, no estado natural, um excedente dos significantes possíveis em relação aos significados. Por este caminho se confignra, portanto, uma certa proeminência do social em relação ao natural. A cultura dispõe agora de um campo de autonomia no qual pode aprofundar-se, mesmo sem romper os vínculos que a unem à natureza. ~ por isso que a hipótese funcionalista é sempre parcial. Antes

131

--------- ---.

---

ainda de nos pergunbumos para que serve uma certa instituição, de remetê-la para a esfera das necessidades biol6gicas, devemos estudar sua tipicidade essencial para depois inseri-la no contexto das relações de cultura. Consideremos, por exemplo, o problema das chamadas classificações totêmicas. As qualidades sensíveis inerentes a cada espécie animal ou vegetal aparecem aqui como instrumentos operativos que permitem realizar uma conceituação do real; utilizando as diferenças constatáveis entre elas (e orgauizáveis numa série de oposições e correlações), o pensamento indígena pode empreender um trabalho de estruturação do universo fisico e social. Através das propriedades naturais, este pensamento exprime concatenações 16gicas, as quais participam de uma atividade sistemática geral, tendente a verificar como tudo tem um sentido e como toda coisa participa de um sistema de relações significantes. Trata-se portanto de uma atividade totalizante que pretende não deixar escapar nada, seja para cima (isto é, para os níveis de maior abstração e universalidade: categorias), seja para baixo (isto é, para as individualidades singulares e concretas: nomes pr6prios). Sob este aspecto adquire relevância particular a noção de espécie, que tem justamente a missão de garantir a passagem dos niveis superiores para os inferiores e vice-versa, e funciona, por assim dizer, como charneira, como elemento mediador entre a universalização e a individuação. :B portanto possível falar de uma atividade l6gica geral, no interior da qual vai tomar lugar aquele conjunto de fenômenos

que antigamente eram isolados sob o nome de totemismo. A noção de totemismo assentava no pressuposto de que os indivíduos concebiam uma relação "substancial" entre as várias espécies animais ou vegetais e os vários grupos ou indivíduos humanos, enquanto na realidade Se trata de uma relação de homologia que participa de um contexto taxinômico mais amplo: quando a natureza e a cultura são concebidas como dois sistemas de diferenças entre os quais existe uma analogia formal, o que é colocado em primeiro plano é o caráter sistemático próprio de cada um dos dois reinos (P.s., 1962, p. 154).

Estabelecendo uma rede de relações de oposição, correlação e homologia, a atividade taxinômica visa a um universo estruturado, no qual cada elemento do real

132

(seja um homem, uma coisa, um animal ou uma planta) se define por sua relação com a totalidade dos outros, torna-se significante graças ao conjunto de desvios diferenciais em que se insere. Mas qual é o nexo entre a conoeituação teórica e a esfera das relações sociais, entre o pensamento indígena e as condições práticas de vida do grupo? fi preciso, antes de mais nada, excluir uma relação de dependência linear. Como se viu, a atividade de conoeituação exercida pelo indígena goza de uma autonomia própria, não é o reflexo mecânico de suas condições reais de vida. Ela pode, por assim dizer, "dialogar consigo mesma", seguir linhas de desenvolvimento que não são apresentadas diretamente pelas modalidades práticas da sua relação com o ambiente: estudando as taxinomias definidas como "primitivas", descobre-se até um gosto efetivo pela atividade especulativa, um desejo de conhecimento, em virtude do qual o universo é objeto de pensamento pelo menos na mesma medida em que é um meio para satisfazer necessidades.

Correlativamente, a história das sociedades e das culturas não é redutível a seu aspecto "biológico", mas pressupõe o reconhecimento dos vários níveis de especificidade em que o fato social se articula (R.H., 1952, p. 249). Conforme atrás se viu, nas classificações "totêmicas" os animais, as plantas ou as coisas em geral não agem mais só como estímulos naturais, mas antes como signos: além de servir como alimento, o animal agora "serve para ser pensado" (T.O., 1962 a, p. 93). Se por outro lado, uma vez garantida a autonomia das estrnturas lógicas através de uma investigação imanente que as considera exclusivamente em sua tipicidade essencial, tematizamos o contexto etnográfioo concreto (e, como se viu, entre estes dois momentos não há relação de prioridade, mas, pelo contrário, de complementaridade), peroebemos que não estamos tratando com duas ordens de considerações estranhas uma à outra. Assim, por exemplo, a análise do princípio de reciprocidade (regra exogâmica), que representa o princípio "lógico" mais elementar dos sistemas de parentesco, nos conduz ao problema da escassez das mulheres no interior do grupo (S.E., 1967, p. 45). Recusada a hipótese funcionalista, é necessário procurar, entre as várias dimen-

133

sões constitutivas do fato social, uma relação que lhe garanta a especificidade e ao mesmo tempo a complementaridade: ou melhor, é necessário procurar "uma origem simbólica da sociedade". A cultura passa assim a configorar-se como um conjunto de sistemas simbólicos irredutíveis uns aos outros e ao mesmo tempo relacionados por todo um substrato de mediações. Em particular, no que diz respeito à relação entre a esfera da atividade conceitual e a esfera das relações sociais, Lévi-Strauss escreve: Apesar de existir sem dúvida alguma uma relação dialética entre a estrutura social e o sistema das categorias, este último não é wn efeito ou um resultado do primeiro: ambos traduzem, à custa de laboriosos ajustes ,reciprocos, certas modalidades históricas e locais das relações entre o homem e o mundo que constituem seu substrato comum (P.S., 1962, pp. 283-284).

Até agora vimos a emergência da cultura enquanto elaboração de um dado natural. Mas em que termos se desenvolve esta elaboração? Mais precisamente: que significado tem para nós a explicitação das modalidades conceituais utilizadas pelo indígena? Sob um certo aspecto, podemos dizer que o pensamento "selvagem" representa uma redenção da sensibilidade. Viu-se que os animais e as plantas - precisamente enquanto objetos dotados de qualidades experimentáveis sensivelmente, como as formas, as cores, os cheiros, etc. - funcionam como verdadeiros operadores lógicos em vista de uma

conceituação. Trata-se portanto de uma "especulação sensível" onde a atividade perceptiva serve de substrato a uma atividade lógica, na qual a sensibilidade deixa de opor-se à inteligibilidade. As conexões lógicas operadas pelos "primitivos" são concretas na medida em

que abrem a reflexão à esfera do sensível enquanto sensível, em que não rompem o cordão umbilical com a fisionomia perceptiva do mundo. A íntima relação que o indígena mantém com o ambiente circundante relação que não é exclusivamente de manipulação em vista de uma necessidade, mas é também de conbecimento: o mundo dos acontecimentos naturais é constantemente o objeto de uma atenção interessada - faz surgir nele a exigência de um pensamento em que a cultura é como que enxertada na natureza. J; portanto natural que esta série de considerações leve o antro134

pólogo a ampliar o conceito de pensamento, Se não a pôr em qnestão seus limites tradicionais: ele deixa de ser incompatível, não só com a sensibilidade, mas também com aquilo que costumamos encerrar na esfera da efetividade: [... ] o saber teórico não é incompatível com o sentimento, o conhecimento pode ser ao mesmo tempo objetivo e subjetivo [ ... ] e as relações concretas entre o homem e os seres vivos colorem às vezes com seus matizes afetivos [ ... ] todo o universo do conhecimento científico, sobretudo em civilizações onde a ciência é integralmente "natural" (P.S., 1962, p. 53).

Não é por acaso qne a última obra de Lévi-Strauss está centrada na musicalidade do pensamento mítico: assim como a música utiliza para expressar-se, seja o domínio da sensibilidade e da natureza (corporeidade dos sons, efeito destes sobre nossa constituição psicofisiológica), seja o da abstração conceituai e da cultura (organização dos sons segundo as relações da escala adotada, formalização operada na partitura) fundandoos um no outro, assim o pensamento mítico utiliza categorias fornecidas pela experiência sensível (como por exemplo as de cru e de cozido, ou de putrescível e imputrescível) para exprimir relações inteligíveis. Tendo função de signos, os elementos constitutivos da reflexão mítica acham-se numa posição intermédia entre o dado perceptivo, tal como é experimentado em sua concretude, e o conceito: assim, a investigação nos levará a descobrir que num grupo de mitos a oposição vida-morte - que por si mesma constituiria uma abstração conceitual - é expressa por meio de códigos sensíveis (por exemplo, o código tátil: duro-mole; ou olfativo: imputrescível-podre) e que estes códigos são transponíveis entre si. Ambos estes aspectos (codificações sensoriais e sua transponibilidade) iluminam a função desempenhada pela corporeidade (enquanto atividade sinérgica: aquilo que aqui é testemunhado precisamente pela transponibilidade recíproca dos códigos) na constituição da esfera categorial; problema ligado ao da relação entre natureza e cultura. Já se viu que a passagem da primeira para a segunda pode ser exemplificada como a passagem de uma quantidade contínua para uma quantidade discreta: DO continuum originário é 135

necessano introduzir intervalos suficientemente amplos para que este continuum possa articular-se numa série de unidades isoláveis (deste modo, para dar alguns exemplos, as oposições fonológicas constituem uma decomposição do continuum sonoro; a proibição do incesto substitui a reciprocidade - e portanto a diferenciação - social pela biológica; a escala musical opera uma seleção no mundo dos sons, etc.): intervalos que, em certas formas de "cromatismo" testemunhadas

pelos mitos, tendem a reduzir-se perigosamente, até ameaçar a separação da cultura em relação à natureza. Ora, a condição de homem se define exatamente pera integração que ela impõe a seus elementos constitutivos, dado que a cultura não é nem simplesmente justaposta nem simplesmente sobreposta à vida. Num certo sentido, ela se substitui à vida, em outro, a utiliza e a transforma, para realizar a síntese de uma ordem Dova. Se é relativamente fácil estabelecer a distinção de princípio, a dificuldade começa quando se quer operar a análise. Esta dificuldade é portanto dupla: por um lado pode-se tentar definir uma causa de ordem biológica e social para cada atitude, por outro lado pode~se procurar qual é o mecanismo através do qual certas atitudes de origem cuI· tural podem juntar-se a comportamentos que, pelo contrário. são de natureza biol6gica, e conseguir integrá-los (S.E., 1967, p. 8).

Há porém casos privilegiados, como por exemplo a música e o pensamento mítico, em que a complementaridade da ordem natural e da ordem cultural se mani-

festa em toda sua evidência. Extraindo da experiência sensível e perceptiva as categorias que utiliza para exprimir certas concatenações conceituais, o pensamento dos "primitivos" nos oferece a imagem de um pensamento

concreto que não procedeu ainda às distinções entre objetivo e subjetivo, entre qualidades primárias e secundárias, que revela sua inerência a um mundo primordial: oferece-nos a imagem de um pensamento selvagem que não é, para n6s, o pensamento dos selvagens, nem o de uma humanidade primitiva ou arcaica, mas o pensamento no estado selvagem, distinto do pensamento educado ou cultivadO em vista de um rendimento (P.S., 1962, p. 289). ~,

edade.

136

portanto, o nosso pensamento na sua originari-

6.

A inda sobre o inconsciente

Desta livre reconstrução de uma certa problemática presente no pensamento de Lévi-Strauss - reconstrução que, aliás, assumindo uma perspectiva voluntariamente limitada, não visava a restituir os desenvolvimentos internos de cada texto e por isso deixou na sombra múltiplos aspectos - me parece emergir um movimento de fundo centrado sobre problemas da relação inter-humana (possibilidade de aproximar-se de uma experiênCia diferente da nossa, relação entre objetividade e subjetividade, constituição do social), do significado do conceito de estrutura (sua gênese na experiência concreta, universalidade, formalização), da temporalidade (relação entre diacronia e sincronia) e finalmente da recuperação de um nível de originariedade (pensamento concreto). Entre estes diferentes desenvolvimentos da investigação a questão do inconsciente funciona por assim dizer como uma charneira, como um substrato comum, e é precisamente no inconsciente que Lévi-Strauss vê uma resposta a muitas das interrogações levantadas. Surge portanto o problema: o inconsciente, assim como se configurou até agora nas obras de Lévi-Strauss, pode servir de verdadeiro fundamento para uma temática tão profunda? Viu-se como, para Lévi-Strauss, o inconsciente é mais do que um depósito de conteúdos ou de figuras arquetípicas, um princípio ativo de articulação e de estruturação que responde à exigência de encontrar, por baixo dos significados consolidados, uma praxis constitutiva de sentido que apresente modalidades operativas universais. A investigação de Lévi-Strauss parece desenvolver-se entre dois pólos: por um lado - enquanto a experiência concreta, o trabalho "de campo", nos coloca em presença de uma multiplicidade de figuras culturais - ela tende a preservar a originalidade do fato cultural, a sublinhar que o dado natural nunca é imediato, mas está inserido num trabalho ativo de significação (P.s., 1962, pp. 125-126); por outro lado, tende a reintegrar as estruturas do inconsciente num universo de coisas ("o espírito revela [ .. . ] SUa natureza de coisa entre as coisas" [C.C., 1964, p. 18]. Por um lado, assistimos à critica - ditada pelas próprias exigências da investigação - do determinismo associacionista (S.E., 1967, pp. 120-121), por

137

outro -

e precisamente em virtude de uma declarada à redução da lógica a "expressão direta da estrutura do espírito (e, por trás do espírito, sem dúvida, do cérebro)" (T.O., 1962 a, p. 130). Esta última citação é particularmente significativa, dado que imediatamente depois Lévi-Strauss especifica que a lógica não é "um produto passivo da ação perspectiva "associacionista" -

do ambiente sobre uma consciência amorfa": são assim

precisados os traços de um possível "determinismo", que não assenta mais no pressuposto da determinação imediata (como ação, influxo, etc.) por parte da natureza, da atividade psíqnica, mas na postulação de um isomorfismo entre as leis naturais e as leis psíqnicas ("como o espírito também é uma coisa, o funcionamento desta coisa nos instrui sobre a natureza das coisas: até a reflexão pura se resume numa interiorização do cosmos" [P.s., 1962, p. 328, nota]). Portanto, a procura das formas invariantes e universais tende também a traduzir-se num inventário de possibilidades previamente dadas, que são objeto de uma atividade combinatória: a própria História parece surgir de uma colaboração das várias culturas similar a uma coalizão de apostadores, que jogam as mesmas séries em valor absoluto, mas sobre diferentes roletas, e que se concedem o privilégio de pôr em comum os resultados favo~ ráveis de cada um (R.H., 1952, pp. 272-274).

Desta perspectiva, o inventário das "limitações fundamentais e comuns" verificáveis na atividade do incons-

ciente leva a uma espécie de monismo naturalista onde o psiqnismo e o social aparecem como epifenômenos da realidade natural: as leis do pensamento - primitivo ou civilizado - são as mesmas que se exprimem na realidade física e na realidade social, que por sua vez é só um dos aspectos da primeira (S.E., 1967, p. 521; o grifo é meu).

Trata-se portanto de ver se esta posição não comporta o risco de hipostasiar o conceito de inconsciente, conceito que aliás, como Se viu, parece responder à exi-

gência de fazer surgir uma intenção significante originária e que está intimamente ligado ao problema teleológico. Não é por acaso que este problema parece levar Lévi-Strauss a uma ulterior reflexão sobre a extensão 138

do conceito de inconsciente. Com efeito, a propósito das conseqüências que implica a recusa de uma filosofia ingenuamente naturalista, escreveu recentemente: ln my own pas! work, I may have been trying in some degree to evade lhe issue when I invoked ralher hastily lhe unconscious processes Df lhe human mind, as iI lhe so-called primitive could nol be granted lhe power to use his intellect otherwise lhan unknowingly 1 (F.K., 1965, p. 15).

Viu-se que o pensamento "selvagem" nos coloca perante uma atividade primordial em que a percepção corpórea - como primeira articulação de uma fisionomia sensível do mundo - gera um campo de significação e de cultura. E é precisamente nesta direção que a iuvestigação filosófica pode enfrentar um dos problemas mais fecundos levantados por Lévi-Strauss: o do inconsciente como lugar de encontro entre mim e o outro, entre a natureza e a cultura.

1. "Em minha própria obra, talvez em certa medida eu tenha tentado evitar o problema, ao invocar um tanto apressadamente os processos inconscientes do espírito humano, como se s6 pudesse atribuir-se ao chamado primitivo a capacidade de utilizar seu intelecto sem disso tomar conhecimento:'

139

7.

SOBRE O PROBLEMA DA LINGUAGEM EM HUSSERL

Sumário: o escopo deste texto é definir a orientação básica que guia as considerações husserlianas sobre o problema da linguagem. Antes de mais nada, (I . I) trata-se de diferenciar o conceito de expressão de outros conceitos de ordem semiol6gica, como por exemplo o de sinal. Com base nesta diferenciação é possível (l. 2) caracterizar positivamente a expressão, que aparece fundada em unidades de tipo abstrato, ou seja, em classes de variantes. Disso se segue (1. 3) que o sentido global dos esboços de investigação delineados por Husserl reside na proposta de uma análise formal da linguagem, tendo em vista a ordem da langue

141

em lugar da ordem da parole. Esta orientação manifesta-se em particular no projeto de uma "gramática pura" (2.1), considerada precisamente como uma combinatória de tipo formal e abstrato. Graças a esta combinatória pode-se delinear (2. 2) o conceito de gramaticalidade do enunciado (que põe o problema da autonomia do componente sintático em relação ao semântico) e dar conta (2.3) da virtual infinidade dos enunciados possíveis em relação ao todo finito dos dispositivos gramaticais, dentre os quais se reveste de uma importância essencial o de transformação. O fato de a multiplicidade dos enunciados ser redutível a um número restrito de estruturas elementares volta a colocar (2.4) o velho problema da gramática universal, ou seja, de uma teoria das formas possíveis da gramática. Finalmente, no apêndice, o método da variação eidética é considerado do ponto de vista da relevância que esta assume para a investigação lingüística. Em Husserl, o problema lingüístico coloca-se no interior de uma temática mais ampla de ordem guosiológica. A questão da linguagem é portanto vista no contexto do discurso fenomenológico global, orientado em direção ao levantamento da estrutura inerente à experiência coguoscitiva e do emaranhado de operações constitutivas subjacentes a esta estrutura. As páginas que se seguem abstrairão deliberadamente deste horizonte ampliado para discutir, seja alguns traços essenciais da investigação que Husserl dedica ao problema

da linguagem, seja algumas questões gerais de ordem teórica, próprias da fenomenologia husserliana, que pareCe particularmente útil reconsiderar do ponto de vista dos desenvolvimentos sucessivos da pesquisa lingüística. De resto, os limites assim estabelecidos para esta discussão não derivam apenas da peculiaridade da perspectíva adotada, mas também do próprio movimento do discurso husserliano que, apesar de partir de uma problemática de tipo guosiológico geral, pretende antes de mais nada proceder, pelo menos em forma de esboço, a nma explicitação intrínseca do fato lingüístico. 1 . 1 . Interessa-nos aqui sublinhar o aspecto positivo da crítica que Husserl desenvolve contra o psicologismo: a proposta, delineada nas Investigações Lógicas 142

(1900-1901, RL) de uma consideração formal da linguagem '. O que se manifesta claramente desde as páginas iniciais da Primeira Investigação, onde se formula a tarefa de caracterizar o conceito de expressão, estabelecendo os limites que o diferenciam de outros aspectos da atividade semiológica. Aquilo que define a expressão é, em primeiro lugar, a relação entre dois termos heterogêneos: o aspecto físico (por exemplo, a seqüência dos sons de uma palavra) e o psíquico, isto é, o "significado". Husserl se detém sobre o segundo termo da relação, justamente porque foi sobre ele que os equívocos da posição psicologista se estratificaram. O que Husserl entende por significado pode ser suficientemente esclarecido Se acompanharmos, em todas as suas implicações, a contraposição estabelecida na Primeira Investigação, entre sinal e expressão. O conceito de sinal parece aqui incluir, entre outras coisas, a área ocupada em Peirce pelo conceito de índice e pelo de ícone; efetivamente Husserl fala de sinal no caso de um objeto que remete para outro em virtude de uma certa contigüidade, seja "física" (sobretudo em sentido causal: por exemplo a fumaça que remete para o fogo como sua origem), seja perceptiva (como no caso de um desenho que reproduz os traços essenciais do objeto representaáo). Esta caracterização, porém, é insuficiente. Efetivamente, é necessário acrescentar que para Husserl a essência do sinal consiste na relação de indicação que este instaura, e que pode haver sinal mesmo sem aquela contigüidade que referimos, ou seja, numa base puramente arbitrária, sem relação causal ou isomorfismo perceptivo entre indicante e indicado; o que interessa é que. na relação de indicação, a presença alUaI de certos objetos motiva a apreensão de certos outros objetos. Se A chama B à consciência, não só eles estão presentes a ela contemporaneamente e sucessivamente. mas geralmente se 1 . No que diz respeito à relação que se pode estabelecer entre esta orientação epistemológica e a saussuriana, cf. mais adiante 1.2 e 1.3. Em particular, no que diz respeito à gramática geral, a exigência de uma orientação antipsicologista é formulada nitidamente por Hjelmslev (P.G.G., 1928, pp. 25~28). correlativamente à exigência de considerar o fato gramatical do ponto de vista da forma. Não é por acaso, porém, que a única referência dos Prlncipes (Hjelmslev, Ibid., p. 40) à Quarta Investigação Lógica de Husserl tenha um caráter polêmico: em contra~ posição às posições expressas no período "g\ossemático", nos Prlnclpes. Hjelmslev insiste várias vezes sobre o fato de que o método próprio da Lingüística deve ser do tipo empírico-indutivo. assumindo deste modo uma atitude diametralmente oposta à husserliana (e à da própria ~os~ semática).

143

impõe também um nexo sensível segundo o qual um remete para o outro e este último existe como inerente ao primeiro (R.L., I, p. 297).

1 . 2 . No que diz respeito à liuguagem, as coisas se colocam de forma diferente. F. certo que também na expressão podemos identificar um conjunto de aspectos que o aproximam do fenômeno da indicação: particularmente em sua função comunicativa normal, todo fato de palavra desempenha o papel de "tornar conhecidos" determinados conteúdos psíquicos, o que equivale a dizer que uma certa manifestação verbal que eu percebo pode ter para mim a função de "índice" de um certo pensamento ou estado emotivo do falante; o que ele me diz me informa sobre um seu juizo, um seu desejo, etc. Sob este aspecto, a expressão exerce também função de sinal, o fato físico constituído pela seqüência fônica (ou pela mímica que a acompanha) indica uma outra realidade, à qual está ligado no ato concreto e fatual da locução, e esta fatualidade é uma condição necessária para que a locução desempenhe sua função ínformativa, dado que só a partir de um acontecímento determinado e empiricamente percebido (a locução) posso captar um conteúdo psíquico igualmente determinado. Mas em que assenta essa função "informativa" que liga esta realidade percebida A a este conteúdo psíquico B? Ou melhor: o que me permite estabelecer tal ligação? Evidentemente não posso procurar uma resposta a esta interrogação no interior do fluxo concreto da locução, pois neste fluxo os dois termos da correlação são submetidos respectivamente a um desligamento constante: para retomar a argumentação saussuriana, certa palavra, pronunciada em momentos diferentes, ou por locutores diferentes, sofre variações seja no plano fonético (nunca é pronunciada exatamente da mesma maneira), seja no plano semântico (ci. os exemplos de Saussure, CL.G., 1967, p. 132, como: a flor da macieira / a flor da nobreza, etc.). F. preciso, portanto, abandonar o terreno das realizações concretas, dos atas efetivos de palavra, e remeter para um plano de elementos abstratos, cada um dos quais delimita um conjunto virtualmente ilimitado de variantes. Tais variantes são precisamente as que são realizadas na execução fatual, e são "reconhecíveis" (quer dizer, podem desempenhar uma função distinta) justamente graças à sua inclusão numa destas

144

classes: isto é, graças à mediação desenvolvida por um operador abstrato subjacente, que remete cada locução singular para seu "tipo" invariante. Compreende-se assim a diferença que Husserl estabelece entre a indicação (ou a informação, no caso da linguagem enquanto sinal) como ato constitutivo do sinal, e a significação, como marca essencial da expressão (isto é, da linguagem em sentido próprio): a siguificação é aquilo que resta se prescindirmos da circunstancialidade concreta em que ela é realizada, se tematizarmos o que permanece como invariante de todas as fonações possíveis e de todas as constituições possíveis de sentido, ao invés da seqüência fônica dada e do conteúdo psíquico dado que nela se manifesta: A idealidade da relação entre expressão e significado, em referência a ambos, revela-se imediatamente no fato de, ao colocar o problema do significado de uma expressão qualquer (p. ex.: resto quadrático), obviamente não entendemos por expressão esta formação fonética pronunciada hic et nunc, este som fugaz que nunca volta a repetir·se da mesma maneira. Entendemos a expressão in specie. A expressão resto quadrático permanece idêntica a si mesma, independentemente de quem a pronuncia. E isto é verdadeiro também para o significado (R.L., I. p. 309).

A definição inicial da expressão como relacionamento entre um aspecto físico e um aspecto "psíquico"

fica assim ulteriormente precisada e determinada, neutralizando toda possível argumentação psicologista, num duplo sentido: a) de um lado, o componente fônico desloca-se em dois planos: o material sensível e, o que interessa mais, aquele que é constituído por uma combinatória formal. Sob este ponto de vista, porém, deve-se dizer que, em Husserl, o· aspecto fonético do signo não está suficientemente caracterizado, a não ser por alguns interessantes acenos. Husserl reconhece na expressão um "ato unitário global", graças ao qual o aspecto fonético, que por si mesmo é privado de significado, pode desempenhar a função de veículo do siguificado. Entre a fonia e o significado não subsiste nenhuma relação natural ou intrínseca, o que equivale a dizer que o segundo não determina a primeira e que, do ponto de vista da sua relação, tomada em si própria, não há motivo algum para que a um certo conceito (p. ex: o de "pêra") deva corresponder um determinado con-

145

junto fonético (por exemplo/pêra/em vez de/repa/lo Todavia, esta arbitrariedade é por assim dizer neutralizada do ponto de vista da língua como sistema global, onde cada unidade se acha inserida num conjunto de relações que a vinculam com outras unidades: é por isso que existe para o falante uma conexão íntima entre fonia e conceito expresso, a tal ponto que ele reconhece na primeira algo que de certa forma "pertence" ao segundo (cf. R.L., V, p. 194). De qualquer forma, o que deve ser sublinhado agora é que o aspecto fônico interessa a Husserl do ponto de vista "formal" (ou seja, do ponto de vista da função distintiva que desempenha) e não dos sons materiais e concretos: tal como a representação escrita, a fonia de uma dada palavra pode variar amplamente, mas "o qne interessa é somente a reconhecibilidade constante da forma (Gesta/t)" (R.L., VI, p. 389). b) Por outro lado, Hnsserl caracteriza o siguificado de modo a distingui-lo das objetualidades extralingüísticas (mesmo sublinhando a possibilidade e a necessidade de conexões a priori com elas), quer se trate, por exemplo, de formações perceptivas, qner Se trate de estados de consciência que o ato lingüístico "torna conhecidos". Se, por exemplo, exprimo um juízo de ordem perceptiva, o siguificado desta expressão não reside propriamente no estado de coisas, captado numa percepção atual, para o qual o juízo remete, porque podem subsistir juízos vazios que nenhuma intuição de ordem perceptiva pode preencher adequadamente, porque siguificados diferentes podem referir-se a um mesmo objeto ou estado de coisas e, reciprocamente, um mesmo significado pode referir-se a diferentes objetos, e porque, em todo caso, toda representação extralingüística precisa ser filtrada através da trama das categorias lingüísticas para atingir a expressão; de maneira semelhante, o significado não reside na "informação" que o ouvinte pode extrair da minha locução, isto é, no fato de que num dado momento eu deva ter realizado um determinado ato psíquico, por exemplo ter executado certas operações de coleção, ter depositado uma certa "crença" no juízo ou simplesmente desejado tal coisa, etc., visto que tudo isso representa os fenômenos que acompanham o significado, que

o localizam num conjunto determinado de circunstan146

cialidades, mas não constitui o significado propriamente dito, enquanto unidade "ideal" e invariante. Este problema se esclarece se levarmos em conta que a tarefa que Husserl se atribui em primeiro lugar (sem por isso comprometer, como se disse, a possibilidade de investigações ulteriores uo interior do problema gnosiológico global) é a de proceder a uma caracterização da expressão em sua especificidade, tarefa que pressupõe que as substâncias extralingüísticas e a tematização da expressão enquanto forma sejam colocadas entre parênteses. Veremos como esta afirmação se precisará nas páginas segnintes. 1 . 3 . Portanto, o que é essencial à expressão e a diferencia da sua função indicativa ou informativa (que são próprias, respectivamente, do sinal e da própria expressão enquanto sinal, isto é, em seu estatuto "comunicativo") é a presença de uma intenção significante específica. Este ato, dotado de uma confignração autônoma própria mesmo na multiplicidade dos nexos que o relacionam com o conjunto global dos atas cognascentes, tem precisamente a função de reestruturar, na

peculiaridade da esfera lingüística, os conteúdos extralingüísticos procedentes da percepção externa, da apreensão dos estados psíquicos, etc. Deste ponto de vista, chega até a desvanecer-se a diferença entre os conteúdos de origem "exterior" e as chamadas vivências psíquicas:

efetivamente, nem os primeiros nem as segnndas constituem o significado diretamente, mas para serem "expressos", devem ser mediados pelo ato lingüístico específico, devem ser subsumidos por uma intenção significante que os insere em unidades categoriais invariantes.

Como se viu, este conceito de invariância é estranho a hipóteses de tipo metafísico, e é caracterizâvel em termos puramente funcionais, sendo chamado a dar conta da forma de proceder específica do componente lingüístico, que consiste sobretudo em mediar conteúdos heterogêneos, como por exemplo a seqüência fónica de uma expressão e a representação do objeto ou estado de coisas para que tal expressão remete. O significado desta última, com efeito, não consiste na representação perceptiva propriamente dita, mas numa "unidade ideal"

que pode subsumir representações diferentes do próprio objeto ou representações de outros objetos "parecidos"

147

num âmbito virtualmente infinito de variabilidade. E graças a este trabalho de "fixação" 2, desenvolvido pela intenção significante, que é possivel relacionar dois elementos heterogêneos, como por exemplo um conjunto fonético e uma percepção, e subtraí-los aos desligamentos contínuos que, como dizíamos, os caracterizam respectivamente se os isolarmos da unitariedade da expressão: por expressão entende-se a expressão animada por todo o seu sentido, que é colocada aqui numa certa relação com a percepção, e é justamente em virtude dessa relação que a percepção,

por sua vez, se diz expressa. Por esta mesma razão, entre a percepção e o conjunto fonético está inserido um outro ato (ou um conjunto de atos) [ ... l. Deve ser este ato de mediação que opera propriamente como conferidor de sentido; ele pertence à expressão dotada de sentido como seu componente essencial, fazendo que o sentido permaneça idêntico, quer se lhe associe ou não uma percepção que o confirme (R.L., VI, pp. 316-317).

Compreende-se então por que HusserI, assim como Saussure, é levado inicialmente a desenvolver uma critica cerrada daquela concepção que faz da "nomenclatura" a essência da língua: o que está em jogo, com efeito, é a autonomia da esfera Iingüística, autonomia esta que se desvanece, se reduzirmos o fato Iingüístico à atribuição de "nomes" a conteúdos preformados, como por exemplo certas objetualidades perceptivas. Neste sentido, podemos reconhecer, seja nas Investigações Lógicas, seja no Cours de Saussure, uma orientação comum antipsicologista que assenta na exigência de distinguir uma estrutura categorial abstrata subjacente às manifestações singulares de palavra e que, em particular, tendo, por assim dizer, a função de ossatura 2. Esta função de mediação e de fixação desempenhada por unidades conceituais abstratas face aos conte6dos múltiplos da representação (ou seja. em outros termos, a prioridade lógica de um operador abstrato em relação ao conjunto das representações) constitui um dos traços comuns a muitas pesquisas contemporâneas, de várias orientações, sobre a função "cognoscitiva" da linguagem. Cf., p. ex., Cassirer (F.F.S., 1961, p. 299). "Para que as representações possam ser ligadas na forma de um pensamento, cada uma delas precisa de uma formação prelinúnar, mediante a qual somente em geral ela se torna material de cODstrução lógica," Como se sabe, a função de mediação conceituaI desempenhada pela linguagem vem analisada no interior de uma perspectiva psicoUnglHstica por YigotskI (P.L., 1966, pp. 82 e ss.) sobretudo no que diz respeito à gênese do conceito. Yigotski fala de um "domínio sobre a abstração", que é o pré-requisito essencial para a formação de conceitos e na obtenção da qual a linguagem tem um "papel decisivo" (Ibid., p. 102). Em Jespersen também (Ph. G., 1924, p. 63) o problema da função cognoscitiva da linguagem está ligado ao da elaboração de unidades abstratas.

148

permanente, permite a correlação entre o significante e o significado, por baixo de todas as suas flutuações possíveis. Obviamente, esta orientação antipsicologista não prejudica a possibilidade de considerar o problema da relação que os atos especificamente lingüísticos mantêm com o conjunto global dos atos cognoscentes, tanto que, como se disse, para Husserl uma das questões essenciais é constituída pela função de que a lingnagem se reveste no interior da mais ampla esfera cognoscitiva, e que Saussure, desmentindo antecipadamente todas as interpretações apressadas que reconheceram nele um obstinado defensor do isolamento da Lingüística perante outras disciplinas, concebe a Lingüística, no limite, como "uma parte da psicologia geral" (Saussure, C.L.G., 1967, p. 26). É portanto evidente que o termo "antipsicologismo" não significa aqui uma espécie de setorialização da pesquisa, mas um conteúdo epistemológico preciso: isto é, o fato de se dever orientar a investigação para a forma do fenômeno lingüístico, em vez de reduzi-lo preliminarmente aos atos concretos em que ele se realiza, e- de que estes atos concretos (pertencentes à esfera da parole) só se tornam compreensíveis com base em uma explicitação de uma esfera muito mais abstrata, que é justamente a da langue'. Todavia, o discurso de Husserl parece tomar um rnmo diferente daquele que será traçado pelo Cours saussuriano, se tomarmos em consideração o problema da arbitrariedade do signo. Se, numa acepção extremamente ampla, ligarmos este problema ao da autonomia da esfera lingüística, não é difícil

perceber, como se disse, uma convergência significativa; porém, as coisas mudam se se considerar que a maneira

pela qual se coloca a questão da arbitrariedade do signo no Cours leva Sanssure a ver no trabalho desenvolvido pela língna uma atividade de articulação e de estruturação do pensamento enquanto massa em si mesma amorfa:

o papel característico da língua diante do pensamento é servir como intermediário entre o pensamento e o som, em conde os 3. Se levarmos isto em conta, não surpreenderá o- fato justamente lingüística desenvolvimentos mais recentes da investigação elevado de formano momento em que esta investigação atinge um grau entre a colocarem o problema da superação da separação lização da linguagem do ção considera dar o e s disciplina outras as e a Lingüístic L.M.. Chomsky, (cf. ponto de vista de um "sistema cognoscitivo" geral 1968, pp. 1 e 4).

149

diçóes tais que a junção deles desemboque necessariamente em delimitações recíprocas de unidades. O pensamento, caótico por natureza, é forçado a precisar-se decompondo-se (Saussure, C.L.G., 1967, p. 132; grifo meu) 4.

De resto, é indicativo o fato de Saussure limitar a análise não-lingüística do pensamento a uma "psicocologia pura" que é o paralelo exato (Saussure, CL.G. , 1967, p. 137) da Fonologia; tal como esta última estuda o som do ponto de vista naturalista ("fisiologia do som"), ou seja, enquanto matéria bruta em relação à estruturação operada pela língua (lbid., p. 45), assim também a primeira teria a tarefa de analisar o pensamento justamente enquanto "massa amorfa". Mas é pelo menos problemático que uma perspectiva naturalista deste tipo possa dar conta da relação linguag em/ pensamen10. A questão muda se se sublinhar, como faz Chomsky (cf., p. ex., L.M., 1968, pp. 12, 24 e 62), a exigência de considerar o ato Iingüístico do ponto de vista de um "sistema cognoscitivo" altamente abstrato e caracterizável como um conjunto formal de princípios constitutivos. Todavia, no que diz respeito a Saussure, cumpre dizer que para considerar este problema seria preciso referir-se ao sentido global do discurso saussuriano, que caminha justamente numa direção antinaturalista. Em particular, dever-se-ia examinar, em todas as suas implicações, a proposta saussuriana de uma semiologia como estudo da "vida dos signos" e da leis que os regem (Saussure, CL.G. , 1967, p. 26), estudo 4. Mesmo que, como salienta De Mauro (Saussure, C.L.G., 1967, p. 439), não seja aceitável a interpretação que vê parte do Cours uma antecipação da hipótese de Sapir e \V'horf nesta sobre o relativism o lingüistico (segundo a qual a organização do pensamento decorre da estruturação Ungüística e, portanto, sistemas conceitua is respondem a Unguas diferentes), resta porém o problema diferentes corsaber se o pensamento pode ser caracterizado como "massa amorfa", deantes assunção por parte do ato lingüístico. De Mauro indica uma da sua solução observando que o pensamento seria aqui, para Saussure, lingüjstica amorfo, o que não exclui obviamente a possibilidade de explicitarmente sua estrutura fora da Lingiiística, por exemplo em Psicologia. Tal solução porém, não é totalmente convincente. sobretudo se se considerar a paSiSagem citada acima, onde Saussure fala do pensamento como de algo "caótico por natureza", o que está perfeitamente claro também nas fontes manuscritas do Cours (Saussure, C.L.G., pp. 1821 C e 1829 G): "Psychologiquement, que sont nos idées 1968, abstraction faite de la Jangue? Elles n'existent probablement pas. Ou s.ous une forme qu'on peut appeler amorphe [... l. La pensée, qui est de sa nature chaotique, se précise eD se décomposant" (que são nossas idéias, mente, se abstrairmos da língua'? Provavelmente não existem.psicolQgica· uma forma que pode chamar-se amorfa [ ... l. O pensamen:o, Ou sob que por natureza 6 caótico, precisa-se se decompondo").

150

este que não por acaso Saussure atribui à Psicologia Gerai. Mesmo não sendo possível aqui penetrar no tratamento específico que Husserl dedica a este problema com referência à temática gnosiológica geral, deve-se porém ressaltar que as Investigações Lógicas procuram justamente explicitar a ligação que relaciona o ato lingüístico com a legalidade global dos atos psíquicos. Limitemo-nos aqui a breves notas, extraídas das consi-

derações husserlianas a respeito da relação percepção/ expressão. Husserl reconhece repetidamente que não existe uma relação de espelhamento ou "paralelismo" entre pensamento e linguagem, e isto porque, como se viu, a intenção significante opera segundo modalidades próprias que não são necessariamente identificáveis com as de outras funções cognoscitivas: significados simples podem remeter para objetos compostos e, reciprocamente, significados compostos podem remeter para objetos simples (cf. R.L., IV, p. 89), algo "não independente" (como uma certa qualidade) pode ser subsumido (por exemplo, no caso da chamada substantivação) por um significado "independente" (cf. R.L., IV, p. 104), etc. Em vez de multiplicar os exemplos, podemos resumir tudo isso brevemente repisando num ponto sobre o qual já se insistiu várias vezes: o significado da expressão não deve ser procurado fora da expressão (neste caso na intuição perceptiva), mas na própria expressão, o que exclui a hipótese de um mero "paralelismo" entre os conteúdos de ordem perceptiva e as unidades lingüísticas, o que equivale a dizer que estas últimas não se limitam a repetir estruturas preformadas. Todavia, a

falta de uma relação de correspondência membro a membro não prejudica a possibilidade de uma pertinência a um campo comum de estruturação. O objeto

perceptivo não se apresenta sob a forma de uma intuição bruta para a "mediação" (cf. acima) desenvolvida pela intenção significante; ele já foi submetido a um processo de mndelamento, o que equivale a dizer que a mediação lingüística Se efetua a partir de uma mediação anterior, constituída pela atividade classificatória. Os atas de significação e os de conceituação situam-se num conjunto unitário de leis, e é esta unitariedade entre o

momento lingüístico e o conceituai que permite à ex151

pressão encontrar uma tradução intuitiva na esfera da percepção. Antes de ser assumido pela intenção significante, o objeto perceptivo é inserido, graças a uma atividade classificatória, numa estrutura categorial: [ .. . ] na medida em que a expressão significante forma uma unidade particularmente íntima com o ato classificatório, este por sua vez, como conhecimento do objeto percebido, se unüica com o ato perceptivo, a expressão se apresenta, por assim dizer, como se fosse imposta à coisa, como se fosse sua roupa (R.L., VI, p. 324).

o discurso husserliano, portanto, parece desenvol· ver-se segundo uma dupla perspectiva: por um lado, trata-se de distinguir aquele conjunto específico de normas que regem o funcionamento lingüístico; por outro, trata-se de focalizar o nexo essencial que une esta estrutura determinada à estrutura global dos atos cognoscitivos. Tal constatação dissolve o aparente paradoxo de uma investigação que pretende salientar ao mesmo tempo os traços formais e intrínsecos da expressão e os conteúdos cognoscentes sobre os quais opera a expressão. Porém, o que deve ser sublinhado é o fato de este segundo aspecto não significar uma reintrodução de elementos extralingüísticos na esfera da expressão; com efeito, antes mesmo de explicitar a função da expressão no conjunto do processo cognoscente, Husserl pretende esclarecer o conjunto de leis que regem a própria expressão, e é claro que se trata de uma prioridade 16gica. Em outros termos, para captar a função que a

linguagem desempenha do ponto de vista guosiológico, precisamos antes captar aquilo que leva a linguagem a desempenhar esta função: isto é, explicitar sua estrutura formal. Com efeito, são inerentes, à esfera da expressão, leis que lhe são peculiares e cuja eliminação impede a constituição da própria expressão e, conseqüentemente, sua possível referência a outros atOS cognoscentes. Compreende-se assim por que a análise husserliana da lin· guagem assume uma caracterização formal e postula como momento preliminar a colocação entre parênteses dos conteúdos materiais que contribuem para a constituição do fato lingüístico. Como Se viu a propósito da arbitrariedade, um dos aspectos essenciais do signo como expressão é constituído pelo fato de, contrariamente, por exemplo, ao ícone, lhe faltar uma motivação "natural":

152

Em geral, o signo não tem intrinsecamente nada em comum com o designado, pode designar da mesma forma algo que lhe é homogêneo e algo que lhe é heterogêneo. A imagem, pelo contrário, refere-se à coisa em virtude da semelhança e, se faltar a semelhança, nem se fala mais em imagem (R.L., VI, p. 353).

Portanto o que interessa é aquela intenção significante que é constitutiva da expressão e que opera por meio de procedimentos distintivos, e perante isto as "substâncias" que ela utiliza para seu operar são indiferentes. Conseqüentemente, a investigação deve situar-se numa óptica particular, que se voltará para as relações formais que regulam a expressão e não para as substâncias (seja de ordem física, seja de ordem "psíquica") que ela utiliza: no interior desta perspectiva, como se disse, a matéria fónica dá assim lugar a uma combinatória abstrata, que não é outra coisa senão o conjunto das propriedades distintivas graças às quais as várias Gelstalten fónicas se diferenciam entre si; por outro lado, ao conjunto de todos os referentes possíveis para os quais o significado remete, se substitui uma série de normas abstratas que presidem à formação do próprio significado. Se os conteúdos materiais são variáveis, nem por isso a sua "reconbecibilidad.e" deixa de ser garantida pela constância da forma. Veremos em segnida como este conceito de forma c.omo invariante pode ser interpretado nos termos de um procedimento de tipo distribucional baseado no método da variação eidética, em vez dos de um platonismo metafísico (como se disse freqüentemente, de maneira mais ou menos explícita, adotando uma solução comodista); o que interessa salientar aqui é a própria orientação da análise husserliana, na qual a exigência de prescindir da consideração das substâncias extralingüísticas é motivada pela exigência de proceder à identificação da estrutura intrínseca da linguagem: A palavra pronunciada, o discurso que se acaba de pronunciar, entendido como um fenômeno sensível e precisamente um fenômeno acústico, são por nós distinguidos da palavra e da proposição "elas mesmas", ou de uma sucessão de proposições que constituem um discurso mais longo. Não é sem razão que - quando não fomos compreendidos e nos repetimos - falamos precisamente de uma repetição das mesmas palavras e preposições [... ]. A mesma e única estrutura lingüfstica é reproduzida milhares de vezes (Husserl, L.F.T., 1966, p. 25).

153

Prefigura-se desta forma o sentido da proposta husserliana de uma gramática lógica pura: a crítica do psicologismo é na realidade a crítica de todo propósito metodológico que, para dar conta da estrutura da linguagem, apela para as substâncias nas quais esta estrutUfa Se realiza, em vez de recorrer aos nexos formais que elas determinam. E não nOs surpreenderemos se, como mostra a passagem seguinte, para esclarecer tal orientação epistemológica Husserl recorre - quinze anos antes da publicação do Cours, e embora partindo de um horizonte disciplinar diferente - àquela exemplificação saussuriana que tanto sucesso iria ter na história da Lingüística:

o sentido verdadeiro dos signos em questão revela-se no momento em que pensamos na conhecida comparação entre as operações de cálculo e as que são realizadas nos jogos que se desenvolvem segundo regras, como o xadrez. As figuras do xadrez não intervêm. no jogo, como coisas de marfim ou de madeira, que têm uma forma determinada ou uma cor deter· minada. O que as constitui do ponto de vista físico ou fenomenal é totalmente indiferente e pode variar à vontade. Elas se tomam figuras do xadrez, isto é, peças do jogo em questão, graças às regras do jogo que lhes atribuem seu preciso significado de iogo (R.L., I, pp. 336-337) '. 2. 1 . O aparente paradoxo do qual a teoria gramatical deve dar conta, segundo Husserl, é constituído pelo fato de um conjunto finito de meios, como são precisamente os dispositivos gramaticais de qualquer língua, produzirem um conjunto virtualmente infinito de enun-

ciados. Husserl reconhece esta capacidade geradora na repetibilidade das regras gramaticais e a tarefa precípua que atribui à "morfologia" pura dos significados consiste em identificar aquele conjunto de regras formais S. Na realidade, a passagem em questão se refere ao problema da linguagem "simbólico-aritmética", ou seja, ao problema das puras possibilidades combinatórias inerentes a signos que, deste ponto de vista, podem ser considerados intuitivamente vazios. Mas. como se disse, o que interessa salientar aqui é a orientação epistemológica geral subjacente ao discurso husserliano, orientação onde se sublinha precisamente a necessidade de uma abordagem puramente formal. De resto, na época das Investigações Lógicas O recurso ao exemplo do jogo de xadrez para explicar o vaIor combinatório dos elementos de um sistema lingUístico era bastante comum. sobretudo no que diz respeito ao problema das linguagens lógicas (ver. p,e.. Frege). A comparação com o texto saussurlano revela uma consonância surpreendente: "A língua é um sistema que conhece apenas a ordem que lhe é própria. Uma comparação com o jogo de xadrez vai possibilitar uma melhor compreensão de tudo isso [..• ]. Se substituir pedaços de marfim por pedaços de madeira, a mudança é indiferente para o sistema [ ... ] (Saussure, C.L.G., 1967. p. 33).

154

que presidem à formação e à combinação dos enunciados. O termo "formal" deve ser aqui tomado pelo menos num sentido duplo. Por um lado, significa que o conceito de gramaticalidade de um enunciado não é suscetível de uma interpretação de ordem "estatística", baseada no grau de aceitabilidade que o enunciado pode ter para um número mais ou menos grande de falantes e no cálculo das respostas que eles podem dar a eventuais testes operatórios. Sob este aspecto, é importante sublinhar que para Husserl a investigação gramatical não exerce uma função prescritiva, isto é, não visa a fornecer regras "práticas" para o comportamento efetivo do falante, mas é movida exclusivamente por um interesse teórico 6, que orienta uma pesquisa sistemática das formas possíveis de enunciado e das leis de sua combinabilidade. Por outro lado, a caracterização formal da investigação implica a abstração da esfera semântica, pois, conforme veremos, a gramaticalidade de um enunciado não se identifica com o fato de ele ser dotado de sentido (mesmo constituindo sua condição essencial). O ponto de partida da Quarta Investigação Lógica, que Husserl dedica ao problema da "gramática pura", é constituído pela subdívisão dos significados 7 em simples e compostos. Se eu tomar um enunciado qualquer, posso por exemplo decompô-lo num grupo nominal e num grupo verbal, depois dividir estes dois grupos 6. Dado que uma pesquisa definida deste modo não tem funçõcs prescritivas. para ela não se põe o problema de saber o que é "certo" e o que não o é. Num certo sentido, pode-se dizer que a gramática de uma língua (e portanto f) conceito de gramaticalidade que se lhe refere) é algo "óbvio", o que equivale a dizer que faz parte da praxb cotidiana de qualquer falante daquela língua. Mas o fato de alguma coisa ser "óbvia" não significa que ela seja por si s.ó transparente. Ora uma pesquisa que se orienta teoricamente (oomo a gramatical) exclui qualquer tarefa de avaUação: ela não tem que nos dizer o que está "certo", pala em seguida extrair dai prescrições pala o falante, mas explicitar aqueles princípios formais dados em que assenta a atividade do falante e que, justamente por serem adquiridos ou "óbvios", tendem a ficar latentes nesta atividade. isto é, são inconscientes. Idêntica caracterização do conceito de "teórico" se encontra na gramática transformacional. Cf., quanto ao problema da "obviedade", Chomsky, L.M., 1968, p. 22 e E.M.L., 1962, pp. 528.530, onde se sublinha a pertinência de um modelo abstrato para dar CORta das operações lingUísticas. 7. Como se viu, Husserl entende por expresMo a "unidade entre conjunto fonético e significado" (cf. R.L., IV, p. 105), mas vê no signi~ ficado o que é proprilUl1ente essencial à expressão: isto explica a razão pela qual, no decorrer da Quarta Investigação, e em ge1'al em todas as Investigações L6glcas, ele usa freqüentemente a palavra "significado" para denotar a expressão inteira. Apesar de ser possivel desenvolver o pensamento husserliano em outra direção, deve-se reconhecer com Bar-Hillel (H.C.•.• , 1957, p. 366) que esta restrição ao plano do si~nificado constitui um sério limite para a pesquis,a esboçada por Husserl na Quarta Inl'e8tigação. Dai algumas dificuldades evidentes: eL, a propósito disso, a nota seguinte.

155

em outros constituintes e assim por diante, até chegar a unidades mínimas que não podem mais ser decompostas no plano sintático, unidades que se configuram justamente como expressões simples no interior de expressões compostas mais amplas. O que se deve aqui salientar é como é inerente à expressão, por essência, a possibilidade de se combinar com outras expressões para produzir sintagmas cada vez mais complexos, e nem por isso menos unitários. No interior das expressões compostas, as expressões constituintes (que, por sua vez, podem ser simples ou compostas) se dividem entre duas classes, as expressões categoremáticas (isto é, independentes, dotadas de uma estrutura autônoma) e as sincategoremáticas, que s6 podem figurar na presença de outras expressões, ou seja, no âmbito de um todo mais amplo', de uma estrutura mais vasta. 8. Do ponto de vista lingüístico, a distinção entre expressões cate-goremáticas e express6es s,incategoremáticas é pelo menos problemática. HusserI, com efeito, baseia-se na distinção entre significados independentes e não-independentes, a qual, todavia, não parece suficientemente explicitada. Ele vê aqui uma relação entre aquilo que acontece ao uiveI da "representação" (onde se fala, por um lado, de ;:epresentações enquanto totalidades unitárias e fechadas, e, por outro lado, de momen· tos parciais nestas totalidades e de formas de conexão entre representações unitárias) e aquilo que acontece ao nível do significado (onde haveria, de um lado, significados independentes e unitários ....... p. ex., o fundador da ética - e, de outro, partes não~independentes e conectivas: p. ex., da, e). Ora para Huss.erl o plano estritamente lingUístico ou seja o da expressfJo como unidade do significado e do significante, v. nota anterior - não faz outra coisa senão refletir algumas propriedades do plano do significado (deste modo, é neste último plano que se coloca a distinção originAria entre categoremático e sincategoremático, enquanto a que tem a expressfio pOr objeto é apenas derivada. Em geral. como já foi sugerido, parece-me que o limite das, análises husserlianas reside no caso de o plano lingUístico ser tratado como tradução fatuaI ("898i. mUar", Signatur) do plano do significado: portanto Husserl pode falar de uma gramátIca lingüfstica, como "morfologia" da expressão, e de uma gramática lógica, como "morfologia" do significado, a qual tem uma função prioritária, A partir daí, poder.-se-ia conceber uma interpretação do texto husserliano consideravelmente diferente da proposta em 2.1 e SS., em particular n'! que diz respeito ao problema da relação entre gramaticalidade e congruência semântica. Efetivamente, poder-se-ia afirmar que o que interessa para Husserl é justamente uma análise do plano do significado, a que está subordinado todo o restante, e que não tem sentido, segundo o texto husserliano, isolar o momento estritamente gramatical do momento semântico, dado que as combinações sintáticas de que fala na Quarta Investigação Lógica são sempre combinações de significados. O fato é que me dirigi aqui às análises que Husserl dedica As possibilidades de constituição do significado, ou seja, em definitivo, a um nível que, como se verá em seguida, não é propriamente o do significado, mas lhe é anterior: um nível definido por certas possibilidades combinatórias ou de "cálculo" (numa palavra: por uma sintaxe). A problematicidade das Investigações LógiCXls consiste no fato de Hus· sed, ao tematizar este nivel formal, continuar considerando-o como um nivel caracteriZável exclusivamente nos termos do significado (isto é, das regras de combinação dos, significados), julgando não pertinente a ex~ pressão no seu conjunto, cujas regras de combinação seriam uma simples réplica das que regem o significado (apesar de não ser diffcil ver que, na realidade, as categorias de significado qlle Husserl sugere são, aproximadamente, categorias lingüísticas, aUás discutíveis).

156

Agora, o que interessa aqui, não é tanto penetrar na discussão que Husserl dedica ao problema da justificabilidade desta subdivisão das expressões em categoremáticas e sincategoremáticas, quanto ressaltar como o problema central desta Quarta Investigação Lógica é constituído precisamente pelas leis de composição da expressão. O fato de existirem regras combinatórias em cada âmbito da experiência cognitiva (por exemplo na percepção, onde determinados conteúdos podem se unificar apenas em determinadas sinteses) e de se poder falar de uma combinatória geral (no sentido da mathesis leibniziana) não deve levar a ignorar a especificidade com que essa combinatória opera ao nível lingüístico: Em nenhum campo podemos unificar quaisquer singularidades mediante quaisquer formas: o campo das singularidades, pelo contrário, delimita a priori O número das formas possíveis

e determina as leis de sua saturação. Todavia, a generalidade deste fato não dispensa da obrigação de mostrar sua presença em cada campo dado e de investigar as leis determinadas em que ele se desdobra (R.L., IV, p. lO?).

2.2.

Se tomarmos uma locução não-gramatical

Como

( I ) o profundamente dorme percebemos que a incompatibilidade que a caracteriza não diz respeito aos vários membros enquanto membros especificos desta locução, mas à própria forma da locução, o que equivale a dizer que qualquer outra locução caracterizada pela mesma estrutura, mas com palavras diferentes, por exemplo (2) um violentamente enfurece é igualmente não-gramatical. Por outras palavras, se se

substituir os membros de (1) por variáveis que representem as palavras pertencentes a uma classe dada, obter-se-á uma forma de locução que é não-gramatical e que permanece tal em todas as suas possíveis ocorrências. A compatibilidade ou a incompatibilidade sintática, portanto, consiste na possibilidade ou não-possibilidade de combinar membros segnndo um conjunto de regras formais que têm por objeto classes de palavras (categorias) : Toda vez que, em relação aos significados dados [cf. acima,

nn. 7 e 8, A.R], compreendemos com evidência a impossibilidade da conexão, esta impossibilidade remete para uma lei incondicionalmente geral, segundo a qual, em geral os signi~

157

ficados das categorias correspondentes de significado, ligados entre si na mesma ordem e segundo a norma das mesmas formas puras, têm necessariamente que ser destituídos de um resultado unitário - numa palavra: trata-se de uma impossibilidade a priori (R.L., IV, p. 108). :É possível agora especificar aquilo que foi sugerido no início desta segunda secção, quanto à caracterização "formal" da pesquisa esboçada por Husser!. Tal caracterização pode aqui ser reduzida a três implicações fundamentais: a) o conceito de gramaticalidade, na medida em que é definido por princípios gerais de combinabilidade, não pode ser "estatisticamente" extraído das realizações concretas (ou seja, é um conceito próprio da langue e não da parole); b) ele incide, não sobre as "substâncias" da locução, mas sobre sua estrutura, isto é, sobre o conjunto das relações verificáveis entre as categorias (nomes, verbos, etc.) às quais pertence cada membro da locução; c) a gramaticalidade da locução é independente de sua congruência semântica. Este último ponto merece maiores esclarecimentos. Ao falar da independência da gramática em relação à esfera semântica·, Husserl não pretende afirmar também sua completa estranheza. Pelo contrário vê no funcionamento do nível gramatical um pré-requisito para a congruência do enunciado ao nível semântico. Dado que o conjunto das regras gramaticais interessa à própria possibilidade da constituição do enunciado, é óbvio que um desvio de uma destas regras provocará a formação de

enunciados anômalos (e, no limite, de não-enunciados),

cuja congruência semântica é proporcional ao grau de desvio gramatical. Se, por exemplo, como no caso de (I) e (2), há uma violação das categorias lexicais I., 9. Uma posição semelhante é sustentada, mas de modo muito mais preciso por Chomsky (cf. p. ex. A"T.8., 1965, pp. 151 e sS), o qllal nunca afirmou que a gramaticalidade ou a não-gramaticalidade de um enunciado seja irrelevante para sua interpretação semântica, mas pelo contrário que ela é sua condição. Todavia, dado que n~ interpretação de um enunciado entram também outras condições (p. ex.: o grau de capacidade mnemônica para ligar os vãrios constituintes de um enunciado complexo), está claro que gramaticalid·ade e interpretabilidade não podem ser identificadas. Além disso, e é o mais importante, dado que a "boa formação" de um enunciado constitui condição imprescindível de sua interpretabilidade plena, é necessário estudar prelimin«l'mente as regras formais que a determinam: ou seja, estudá-la por aquilo que ela é, e não através de seus efeitos (para produzir os quais contribuem outros componentes). 10. Recorro aqui a exemplos de violações macroscópicas porque em Husserl há, simplesmente, uma distinção entre gramaticalidade e não-gramaticalidade e falta qualquer referência a possíveis graus de gramaticalidade. Assim, por exemplo, uma locução como "Ele teve um pensamento verde" (Ziff), que viola uma regra de seleção, é considerada

158

teremos não-enunciados semanticamente incongruentes. Isso não significa, porém, que o uivei gramatical e o semântico sejam indistintos, como demonstram os exemplos de enunciados gramaticais mas semanticamente anômalos, como

(3) A não é A ou, pelo contrário, os exemplos de locuções não-grama. ticais mas semanticamente congruentes, como

(4 )

Se dependesse de mim, eu partiria.

Husserl retoma tudo isto, afirmando que enquanto o cnmponente propriamente semântico (que na Lógica formal e transcendental vai atribuir à lógica da não-contradição) tem a função de impedir o contra-senso ou seja, a constituição de enunciados como (3) - o componente gramátical (e particularmente a sintaxe) é destinado a impedir a formação do não-sentido, isto é, a constituição de locuções como (1). Traduzido em termos positivos, isto significa que o componente gramatical opera a um nível preliminar, nível este que incide sobre a própria possibilidade, para uma locução, de ter valor de enunciado e que portanto define sua estrutura formal. O fato de uma transgressão neste plano implicar uma anomalia no plano semântico não significa que esta anomalia seja suficiente para dar conta da própria violação; pelo contrário, para dar conta da interpretação semântica é necessário ter antes explicitado as propriedades estruturais do componente gramatical. 2. 3.

Como se disse, para Husserl, a peculiaridade da

sintaxe consiste no fato de ela operar sobre um número

exíguo de estruturas primitivas para obter um número potencialmente ilimitado de enunciados. Isto se torna possível graças à propriedade combinatória da sintaxe, que pode inserir aquelas estruturas primitivas no interior de estruturas mais completas. Se se proceder à decomposição de um determinado enunciado, chegar-se-á, depois de ter passado por uma série mais ou menos longa de graus, a membros últimos

que, do ponto de vista sintático, não são mais

decom~

gramatical por Husserl, que limita sua análise aos casos de violação das categorias nos aspectos maiores (na prãtica as lexicais). sem se preo· cupar com possibilidade de subcategorizações ulteriores. ef., a propósito, Chomsky, A.T.S., 1965, p. 152.

159

powvelS: o que equivale a dizer que se trata de unidades combinatórias mínimas que podem apresentar-se em um númerO indefinido de enunciados diferentes mano tendo, mesmo assim, a sua identidade. Husserl chama estas unidades mínimas de "matérias" sintáticas e procura definir a SUa relação com as "formas" sintáticas. Efetivamente, a função de uma forma sintática consiste em ligar os vários membros dentro da totalidade do enunciado; deste modo, graças a este processo de estruturação, a cada membro (a cada "matéria") é atribuída uma função, denotando o termo função precisamente a relação daquele membro com a forma global do enunciado (ou com as estruturas intermediárias que se ligam a esta forma). Neste momento duas observações se tornam necessárias: a) as matérias siutáticas não são distinguidas segundo SUa "substância" (isto é, mediante considerações de ordem extra-sintática), mas com base em considerações de ordem distribucional, salientando suas possibilidades de ocorrência em determinados contextos sintáticos: isto é, as matérias são elementos que "emergem por abstração das formas funcionais" (Husserl, L.F.T., 1966, p. 373); b) o processo de modelamento é reiterável indefinidamente, o que equivale a dizer que determinadas formas podem ser subsumidas por outras de grau superior (isto é, podem por sua vez ter função de matérias), através de dispositivos de ligação, subordinação, etc., que, podendo ser repetidos à vontade e combinados um com o outro, são capazes de gerar um con-

junto virtualmente infinito de enunciados. Na "gramática lógica pura", a pesquisa sintática é precisamente chamada a explicitar os princípios abstratos que regem esta atividade combinatória, definindo em primeiro lugar relações de compatibilidade e de incompatibilidade. Dentre os vários dispositivos utilizados pelo componente sintático, Husserl dedica particular atenção ao conceito de transformação. Dissemos anteriormente que de um número extremamente limitado de estruturas primitivas (caracterizadas por sua "simplicidade": poderíamos falar, por exemplo, das estruturas subjacentes a enunciados declarativos, ativos e não-compostos) é possível derivar tantos enunciados de estrutura mais complexa quanto quisermos. E isto se torna possível

160

justamente por um dispositivo de transformação. A este propósito, o exemplo que Russerl utiliza mais freqüentemente é o da nominalização, que pode ser sumariamente definida nestes termos: é inerente a todo enunciado a possibilidade de aparecer como membro de um outro enunciado, e isto graças a uma "modificação" de sua forma superficial. "No campo dos significados 11, existem leis a priori, segun· do as quais os significados se transformam de várias formas em novos significados, conservando um núcleo essencial", e é necessário pôr em evidência "aqueles casos particularmente notáveis onde proposições inteiras podem, mediante a nominalização, ocupar o lugar do sujeito, assim como qualquer outro lugar que exija membros nominais" (Husserl, L.F.T., 1966, p. 114).

Portanto, de um enunciado 12 como "o ministro

chegou" pode ser derivado um sintagma como "a chegada do ministro" que pode, por exemplo, ter função de sujeito em outro enunciado (cf. R.L., V, pp. 254 e ss.). Russerl usa como exemplos, além da nominalização, outros tipos de transformação, como a "atribui-

ção", que permite a passagem do enunciado-base "8 é pI' para o enunciado derivado "Sp é q", ou a "conjunção", que permite a passagem dos enunciados-base "A é p" e "B é p" para o enunciado derivado "A e B

são p". Em termos gerais, se é certo que toda língua natural submete as estruturas subjacentes a processos de modificação e de reelaboração (como por exemplo as elipses, as conjunções, etc.), não é menos certo que a interpretação dos enunciados derivados assenta naquelas formas-base, e o problema essencial da Lingüística consiste justamente em identificar aquele conjunto de regras que preside à combinação das estruturas primi-

tivas: Para captar a idéia desta morfologia pura, é preciso ter bem claro que, no plano de uma classificação de juízos possíveis em geral, que se refira à sua forma, se destacam "formas fundamentais", ou seja, um sistema fechado de formas fundamentais a partir das quais podem ser produzidas por construção (graças a uma legalidade essencial própria delas) formas sempre novas e cada vez mais amplamente diferenciadas [ ... ] (Husserl, L.F.T., 1966, p. 62).

2.4.

Tais considerações servem para esclarecer

11 . Quanto ao uso do termo sigllÜicado, cf. nota 7. 12. O termo "enunciado", adotado aqui para simplificar, é impr6prio. já que se deveria falar de estrutura subjacente do enunciado.

161

o projeto husserliano de uma "gramática pura". Na base deste projeto encontramos uma exigência radical de formalização e, como se viu, a razão desta exigência consiste no fato de uma pesquisa assim definida ter por objeto as possibilidades de construção do enunciado, ou seja, um conjunto de princípios formais que impõem restrições às escolhas combinatórias do falante. Exatamente pelo fato de incidirem sobre possibilidades, estes princípios operam a um nivel abstraIO, o que eqnivale a dizer que se aplicam a classes ou categorias mais do que aos membros efetivos destas categorias, de modo tal que sua identificação deve traduzir-se numa "sinopse sistemática" do conjunto potencialmente ilimitado dos enunciados deriváveis de um número restrito de estru~ turas-base por combinação e transformação. Além disso, dado que estamos lidando com formas e não com substãncias (graças à resolução dos elementos concretos em variáveis), é natural que tal formalização se oriente no sentido de uma algebrização da gramática. A formulação das leis que presidem à construção e à combinação dos enunciados não contém portanto nenhuma referência às substâncias, mas utiliza simbolos algébricos (cf. R.L., VI, p. 491) que denotam os conjuntos indeterminados dos membros das várias categorias (p. ex.: da categoria "adjetivo"). Justamente por este motivo, ta!s leis não tem valor prescritivo para substãncias determinadas, mas se referem a puras possibilidades formais. Compreende-se agora a razão pela qual Husserl fala de uma gramática "pura", e é supérfluo salientar que esta última, definida nestes termos, assume o estatuto não já de ciência descritiva da gra-

mática de uma língua dada (ou de mais de uma lingua), mas de teoria das formas possíveis de gramática. E neste sentido que Husserl recupera, mesmo com reservas explícitas, o conceito tradicional de gramática universal". Se a Lingüística Descritiva parte do dado 13. :t interessante Dotar como esta recuperação se realiza na perspectiva de uma orientação (partilhada por outros tipos de pesquisa, d. n. 2) tendente a sublinhar a função prioritária desemrenhada por um componente "abstrato" (caracterizado por um conjunto de restrições formais) em relação aos conteódos empírico~concretos. Por outras palavras, o conjunto de regras abstratas que caracterizam a linguagem não pode ser empiricamente inferido de um conjunto mais ou menos vasto de "dados" (p. ex.: o comportamento lingÜístico observado): pelo contrário, s6 se pode dar conta deste comportamento à luz de uma explicitação prelim:nar da componente abstrato. É s6 neste sentido limitado que se pode falar da normatividade deste óltimo em relação ao obser~ vado: "O que vem compreendido in specle como incompatível não pode ser unificado e portanto nem ser compatível, nos casos empíricos singu·

162

efetivo da diversidade das línguas, e deve portanto dar conta de dispositivos gramaticais particulares que submetem as estruturas primitivas a processos de construção, transformação, etc., próprios das várias línguas, por outro lado a função de uma "teoria", entendida como gramática pura, é a de iluminar as possibilidades estruturais comuns de entre as quais aqueles dispositivos são selecionados. Daí a referência ao problema dos "universais" que Husserl diferencia em universais empíricos (baseados em dados fatuais, como por exemplo a constituição psicofísica, que determina algumas propriedades acústico-articulatórias comuns a todos os falantes de qualquer língua) e universais em sentido próprio, constituídos por regras de ordem formal que presidem à constituição de qnalquer estrutura lingüística (e dotadas de uma necessidade "lógica" intrínseca) 14. Por baixo das diferenças que se verificam entre as várias línguas, é possível entrever uma "ossatura ideal" comum, cuja explicitação, própria de uma teoria geral da linguagem, se impõe como exigência epistemológica preliminar: Por mais que seja assim determinada pelo conteúdo fatuaI das línguas históricas, pelas suas formas gramaticais, toda língua está contudo ligada a esta ossatura ideal; e portanto sua pesquisa teórica deve constituir um dos fundamentos para o esclarecimento científico final de toda língua em geral (R,L., N, p. 127).

Apêndice

Nas páginas precedentes se insistiu repetidamente no fato de, justamente por causa de sua orientação em lares" (R.L., VI, p. 499). Esclarece-se assim a razão pela qual Hussert fala de uma estrutura lógica subjacente aos vários dados tingllisticos, que pelo contrário é ne~ada. por exemplo, por Hjelmslev (P.G.G., 1928, p. 22). Mas é significativo que, para fazer isso, Hjelmslev recorra ao conceito de mentalidade pré-lógica introduzido por Lévy-Bruhl; isto é, existiriam línguas, como as dos "primitivos". que trariam a marca de tal mentalidade e que, portanto, seriam carentes do ponto de vista "lógico". Todavia, é sabido que a antropologia contemporânea colocou em questão a hipótese de uma mentalidade pré-Iógica, particularmente em referência às capacidades taxin8micas do chamado penSamento primitivo. Sobre Husserl e o problema da gramática universal, d. Jakobson, E.L.G., 1963 a, pp. 275-276. 14. Tal distinção pode ser compreendida melhor à luz da estabelecida por Chomsky (A.T.S., 1965, pp. 27 e ss.) entre substantive universais e formal universais: OS primeiros são introduzidos pela afirrD3ção segundo a qual certos traços de toda lingua (p. ex., os fonéticos) são extraídos de um conjunto determinado de traços independentes de toda língua particular; no exemplo citado, este conjunto é representado por uma

163

sentido "formal", a análise husserliana visar preliminarmente a classes abstratas, categorias, em vez de substâncias concretas. Trata-se agora de esboçar rapidamente os pressupostos metodológicos do conceito de classe de variantes e indicar a sua relevância para a investigação lingüística. No seu ensaio sobre a Quarta Investigação Lógica, Bar-Hillel (H.C., 1957, p. 366) observa que Husserl fornece uma antecipação significativa do conceito de comutação, tal como foi desenvolvido na investigação lingüística posterior, e acrescenta que o alcance desta intuição é limitado: a) pelo recurso exclusivo à esfera do significado lO; b) pela utilização de categorias próprias da Lingüística do tempo, na realidade inadequadas. Já tivemos oportunidade (cf. acima, nn. 7 e 8) de mostrar quanto é substancialmente fundamentado o primeiro ponto. Pode-se dizer o mesmo a respeito do segundo, mas é preciso acrescentar que para compreender plenamente a importância de que se reveste o conceito de "tipo" para a Lingüística é preciso ir além das análises específicas que Husserl dedica ao problema da linguagem, e explicitar os seus temas metodológicos gerais. Por "variação eidética" Husserl entende um procedimento de ordem geral encarregado de identificar classes de variantes. Tal procedimento pode ser descrito sumariamente nestes termos: o ponto de partida é constituído por um ou mais dados escolhidos arbitrariamente; vem aplicado a eles um dispositivo que os submete a um conjunto teoricamente ilimitado 16 de va-

riações e que seleciona os resultados equivalentes; o ponto de chegada é o "tipo" 17 abstrato (eidos, essência) que inclui os resultados equivalentes. Este tipo série de propriedades acúsfco-articulatórias; os segundos são muito mais "abstratas", e podem, por exemplo, dizer respeito a certas condições formais que qualquer gramâtica tem que respeitar. IS. A respeito desta afirmação, que parece plausível, d. n. 7.

16. Evidentemente, um inventário de todas as ocorrências passiveis é uma tarefa absurda para qualquer pesquisa: pelo contrário, o que se exige são considerações sistemáticas. Do ponto de vista da lingUística distribucional, isto já foi esclarecido por Harris (SL., 1960, p. 13): "[ ... ] A análise de um corpus particular adquire interesse apenas se for virtualmente idêntica à análise que teríamos igualmente obtido a partir de qualquer outro corpus, suficientemente amplo, de material extraído do mesmo dialeto. Se for este o caso, podemos predizer as relações entre elementos em qualquer outro corpus da lingua, com base nas relações encontradas no corpus que analisamos: conseQÜentemente, este último pode ser considerado um modelo descritivo da língua". 17. Entre os termos adotados por Husserl dei preferência a '