Eu não sou cachorro, não [1 ed.] 8501063444, 9788501063441

Artistas considerados bregas ― como Odair José e Waldik Soriano ― sempre apareceram no topo da lista de mais vendidos. V

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Eu não sou cachorro, não [1 ed.]
 8501063444, 9788501063441

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AO POETA, AO MENDIGO E À LOUCA

Havia três pessoas em minha cidade cuja lembrança eu trago até hoje comigo. Eu cresci observando aquelas pessoas. Não sabia por que, mas sempre que eu cruzava com uma delas na rua, eu parava e ficava olhando. Eram três pessoas conhecidas por todos da cidade: Lilita, Cafezinho e o poeta Alberto David. Lilita era uma velha senhora solteira que morava numa casa simples próxima à zona do meretrício. Ela nunca sorria e tinha uma outra característica muito singular: andava sempre com todo o corpo coberto de panos, um por cima do outro. Tal qual as mulheres muçulmanas, Lilita se cobria dos pés à cabeça. De Lilita, ninguém da rua jamais viu os cabelos ou as pernas. Apenas uma parte de seu rosto ficava à mostra. Sobre todas as peças de roupas, Lilita ainda colocava cobertores de lã. Fazia sol ou chuva, frio ou calor, e lá vinha ela toda coberta de panos andando pela cidade. Os meninos da rua atiravam-lhe pedras e a chamavam de louca, louca... Cafezinho era o mendigo mais conhecido da cidade. Vagava sempre sozinho pelas ruas com um velho caneco na mão pedindo café. De sua boca ouvia-se apenas uma palavra, um quase murmúrio: café, café, café... Sujo, descalço, rasgado, barbado e banguelo, a imagem de Cafezinho se prestava para que as mães ameaçassem chamá-lo quando uma criança não queria se alimentar ou tomar algum remédio. Mas quando alguém esquecia a porta da casa aberta, às vezes se surpreendia mesmo com Cafezinho em um canto da sala, de caneco na mão, pedindo café. Era uma figura soturna e silenciosa. Alberto David era um jovem poeta da cidade. Na minha lembrança a sua figura se parece com a imagem que nós temos de Jesus Cristo: alto e magro, de face fina, cabelos longos e barba. Era um rapaz de semblante muito triste e que procurava expressar em palavras o que muitos sentiam sem conseguir dizer. Por vezes caçoado, humilhado e ofendido, andava sempre sozinho e cabisbaixo, recitando poemas pelas ruas da cidade.

A presença de Alberto David, de Lilita ou de Cafezinho me fascinava e atraía a minha atenção de uma forma que, provavelmente, eles não atingiam outros moradores da cidade. Afinal, todos já estavam familiarizados com aquelas três figuras. Assim como a igreja da matriz e os bancos da praça, eles faziam parte do cenário urbano. Um viajante que estivesse pela primeira vez ali, ao se deparar com aquela mulher toda coberta de panos, talvez se deixasse admirar. Os moradores da cidade, não. Mas eu, sempre que saía para ir à escola, à igreja ou ao cinema, quando cruzava com Lilita, com Cafezinho ou com Alberto David, eu parava e ficava olhando. Era como se os estivesse vendo pela primeira ou, quem sabe, última vez. Recordo de minha mãe andando apressada pelas ruas me puxando pela mão, e eu, de corpo e rosto virados, olhando, olhando... Meus olhos infantis captavam alguma coisa que eu não conseguia compreender. Até hoje, quando encontro alguém de minha cidade, em algum momento da conversa eu evoco a lembrança dos três. Quando há alguns anos me contaram que Lilita havia morrido, eu fiquei imaginando: "Como será agora, andar pelas ruas de minha cidade e não cruzar mais com Lilita?". Pergunta semelhante eu também me fiz no dia em que me disseram que Cafezinho já havia desaparecido das ruas. Alberto David, Cafezinho e Lilita; o poeta, o mendigo e a louca.

Hoje, entendo que havia uma dimensão trágica naquelas três pessoas. Em uma sociedade patriarcal e machista, Lilita era o símbolo da mulher reprimida. Ao andar sempre sozinha e coberta de panos pelas ruas da cidade, frustrada em seus sonhos, castrada em seus desejos, Lilita talvez concentrasse em si a repressão que havia em todas as outras mulheres. Cafezinho, o homem sem nome, maltrapilho e esfarrapado, vivendo ao relento pelas ruas, de caneco na mão pedindo café, era o símbolo de um grande contraste. O contraste de um país e de uma cidade que se desenvolveram com a riqueza do café, que produziram os seus barões do café, mas que se pautavam (e ainda se pautam) pela exclusão social. Na

terra do café, Cafezinho era a imagem do próprio povo e ele sintetizava a miséria de multidões esquecidas e espalhadas por todo o Brasil. Alberto David, o moço de aparência sombria e tristonha, andando cabisbaixo pelas ruas da cidade, era a imagem de sua geração: a geração abandonada do começo da década de 70. Com sua sensibilidade, o poeta captava a frustração e o desencanto que se abateram sobre milhares de jovens, que um dia sonharam em mudar o mundo, mas que sentiram quando o sonho acabou. Alberto David, Cafezinho e Lilita; o poeta, o mendigo e a louca. Três figuras únicas, misteriosas e solitárias. Eu nunca os via acompanhados. Andavam sempre sozinhos pelas ruas da cidade, cada qual no seu caminho. Dos três, apenas do poeta se sabe o nome; dos três, apenas o poeta ainda vive, mas os três são eternos para mim. A eles dedico este livro.

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INTRODUÇÃO

“Eu não sou cachorro, não para ser tão humilhado” (WALDIK SORIANO)

"Num domingo de sol excepcional para o Dia de Finados, milhares de pessoas trocaram a praia pelo cemitério. O de São Francisco Xavier, no Caju, foi o mais concorrido. E, como nos anos anteriores, o túmulo do cantor Paulo Sérgio foi o mais procurado.”(1) Desde 1980 a imprensa vem registrando este ritual. No meio da multidão que a cada 2 de novembro acorre ao cemitério do Caju, no Rio de Janeiro, surge um grande número de homens e mulheres do povo que se reúne para reverenciar a memória de Paulo Sérgio, representante de uma geração de cantores/compositores populares - chamados de "bregas" ou "cafonas" que durante uma década se destacou no cenário artístico nacional. Entre 1968 e 1978 estes artistas sempre apareciam nas listas das mais altas vendagens do mercado fonográfico e seus discos batiam recordes de execução em rádios. E assim, ao longo daquele período, grande parte da população brasileira, na qual me incluo, cresceu, amou, sofreu e viveu ao som de determinadas vozes e canções. Vozes como as de Odair José, Nelson Ned, Agnaldo Timóteo, Waldik Soriano, Cláudia Barroso, Benito di Paula e Dom & Ravel; e canções como “Eu não sou cachorro, não”, “Pare de tomar a pílula”, “Vou tirar você desse lugar”, “Cadeira de rodas” e tantas outras, que hoje fazem parte da memória de milhões de ouvintes de rádios, de discos e de serviços de alto-falantes.

Sucesso de norte a sul do país, patrimônio afetivo de grandes contingentes das camadas populares, esta vertente da nossa canção romântica tem sido sistematicamente esquecida pela historiografia da música popular brasileira. Nas publicações referentes à década de 70, de maneira geral são focalizados nomes como os de Chico Buarque, Elis Regina, Gilberto Gil, Milton Nascimento, e discos como "Sinal fechado", “Falso Brilhante” "Clube da Esquina", todos, sem dúvida, representativos, mas que na época eram consumidos por um segmento mais restrito de público, localizado na classe média. O que a maioria da população brasileira ouvia eram outras vozes e outros discos. Não dá mais para dissimular ou esconder. A produção musical "brega” ou "cafona” é um fato da nossa realidade cultural e, assim como a da bossa nova ou a do tropicalismo, precisa ser pesquisada e analisada. Ressalvo que este não é um livro de crítica musical, portanto, o autor não emite qualquer juízo de valor estético - nem para as canções de Waldik Soriano, nem para as de Caetano Veloso - ambas tratadas como documentos da história brasileira. Mas através da análise da construção social da memória é possível identificar de que maneira ficou cristalizada em nosso país uma memória da história musical que privilegia a obra de um grupo de cantores/compositores preferido das elites, em detrimento da obra de artistas mais populares. É possível que você não conheça ou tenha dificuldade de identificar alguns dos nomes de cantores e canções que serão aqui apresentados, mas isto pode ser apenas mais um reflexo do processo de silenciamento que atinge esta geração de artistas "cafonas". Quando relacionam produção musical e regime militar, os críticos, pesquisadores e historiadores da nossa música são pródigos em ressaltar a ação de combate e protesto empreendida por diversos compositores da MPB, que se valiam de metáforas, imagens truncadas e herméticas, com o objetivo de driblar a censura e manifestar o seu inconformismo com o quadro político-social vigente. O que estes analistas nunca ressaltam, ou simplesmente ignoram, é o papel de resistência desempenhado naquele mesmo período por artistas populares como Paulo Sérgio, Odair José, Benito di Pauta e, não se surpreenda, a dupla Dom & Ravel. Três aspectos chamam a atenção no universo deste grupo de cantores/compositores. Em primeiro lugar, a mensagem de suas canções:

grande parte delas traz a denúncia do autoritarismo e da segregação social existentes no cotidiano brasileiro. O segundo aspecto é a relação entre esta produção musical e o momento histórico: a maioria de seus autores e intérpretes alcança o auge do sucesso entre 1968 e 1978, período de vigência do Ato Institucional n° 5, sendo também proibidos e intimados pelos agentes da repressão do regime. E o terceiro aspecto, a origem social do público e dos artistas: ambos oriundos dos baixos estratos da sociedade e boa parte deles tendo vivenciado uma das grandes mazelas do nosso país, o trabalho infantil. Agnaldo Timóteo, por exemplo, trabalhou de engraxate, vendedor de pastéis, lavador de automóveis e, a partir dos 9 anos, auxiliar de torneiro mecânico, ocupações que o impediram de prosseguir nos estudos. "Eu sou um homem de terceiro ano primário, não consegui sequer o diploma do curso primário.”(2) O cantor Waldik Soriano também ficou fora da escola, pois desde pequeno, de enxada em punho, foi batalhar na lavoura com seus irmãos, exercendo mais tarde os ofícios de garimpeiro, faxineiro, engraxate, servente de pedreiro e camelô. "Venho de uma vida muito sofrida e sofro duas vezes quando recordo o passado."(3) O cantor e compositor Nelson Ned é outro brasileiro que trabalhou no período da infância, a partir da idade de 12 anos, numa fábrica de chocolates. "Eu sou de uma família de uma origem muito boa, mas com muita pobreza. E eu não tinha dinheiro sequer para andar de ônibus, então eu passava debaixo da roleta, o que não era difícil pra mim. Mas eu só passava debaixo da roleta porque não tinha dinheiro pra pagar a passagem."(4

Os irmãos Dom (Eustáquio Gomes de Faria) e Ravel (Eduardo Gomes de Faria) ainda pequenos deixaram a cidade de Itaiçaba, interior do Ceará, e seguiram com a família a mesma rota de tantos outros nordestinos: o sul do país. Dom foi ser office-boy e Ravel aos 14 anos vendia picolés e engraxava sapatos nas ruas de São Paulo. Trabalho que também consumiu a infância do cantor e compositor Wando. "Eu sobrevivia vendendo jornal e engraxando sapatos, e aos 13 anos comecei a trabalhar de feirante." Para o compositor carioca Nenéo, que quando garoto também se virou como engraxate, a vida foi ainda mais difícil, pois ele e seus irmãos se alimentavam com sobras de comida de uma fábrica de cigarros. ”A minha

tia trabalhava na cozinha do restaurante de lá e todo dia ela trazia pra gente um panelão de tutu misturado com macarrão. E aquilo matava a nossa fome." Por fim, o cantor Paulo Sérgio, que se iniciou muito cedo como aprendiz de alfaiate e aos 12 anos já era praticamente um profissional do ramo, ofício que exerceu até às vésperas da gravação do primeiro disco. Em 13 anos de carreira artística ele lançou 13 LP’s, em sua maioria com canções românticas, mas nas quais a temática social não estava ausente, como ilustra um trecho da autobiográfica “Alfaiate”, composição de 1971: ALFAIATE CORTANDO LEMBRANÇAS PREGANDO ESPERANÇAS EU VENHO DA FOME SEM TEMPO E SEM NOME VESTINDO DE SONHOS UM MUNDO DE HORRORES...(5) Entre 1968 e 1978, esta geração de artistas procurou expressar em suas composições as questões que, como pessoas do povo, tiveram que enfrentar. Produziram uma obra musical que, embora considerada tosca, vulgar, ingênua e atrasada, constitui-se em um corpo documental de grande importância, já que se refere a segmentos da população brasileira historicamente relegados ao silêncio. Em muitas das letras do repertório "cafona" se revelam pungentes retratos da nossa injusta realidade social. E neste sentido esta produção não se caracterizou pela atitude meramente conformista e nem pela ausência de crítica ou contestação aos valores sociais vigentes. Apesar desta música expressar em grande medida o universo da ideologia dominante, encontram-se nela aspectos que a fazem contestadora desta mesma ideologia. A visão histórica de uma ação unilateral do poder sobre os dominados é algo que atualmente está superado, o que se observa, por exemplo, nas obras do inglês Edward P Thompson e da francesa Michelle Perrot, historiadores que procuraram revelar as formas de resistência engendradas pelos chamados setores subalternos.(6) Seguindo esta mesma perspectiva, Marilena Chauí observa que as ciências sociais e a filosofia tendem a encarar a cultura popular pelo prisma das

dicotomias, sem levar em consideração o caráter necessariamente ambíguo e contraditório dos objetos sociais. Assim, diz ela, no Brasil o popular é encarado “ora como ignorância, ora como saber autêntico, ora como atraso, ora como fonte de emancipação. Talvez seja mais interessante considerá-lo ambíguo, tecido de ignorância e saber, de atraso e de desejo de emancipação, capaz de conformismo ao resistir, capaz de resistência ao se conformar."(7)

É o que se procurará observar em cada uma das faixas de discos analisados, já que ali estão registrados sonhos, angústias, tragédias, protestos, dores, amores, além da visão de mundo de amplos setores das camadas populares. E isso produzido em um período da nossa história em que os direitos constitucionais estavam suspensos e os canais de expressão da insatisfação popular, bloqueados. Entretanto, por entre as brechas do sistema, representantes de setores populacionais mantidos à margem do centro de decisão política conseguiram falar e ser ouvidos. O período de maior repressão política do regime militar coincide com o da fase de consolidação de uma cultura de massa e a conseqüente expansão da indústria fonográfica. Entre 1970 e 1976, a indústria do disco cresceu em faturamento, no Brasil, 1.375%. Na mesma época, a venda de LPs e compactos passou de 25 milhões de unidades por ano para 66 milhões de unidades. O consumo de toca-discos, entre 1967 e 1980, aumentou em 813%.(8) Favorecido pela conjuntura econômica em transformação, o Brasil alcançou o quinto lugar no mercado mundial de discos. Nunca tantos brasileiros tinham gravado e ouvido tantas canções. A música popular firmava assim como o grande canal de expressão de uma ampla camada da população brasileira que, neste sentido, não ficou calada, se pronunciou através de sambas, boleros e, principalmente, baladas. Como intérpretes de bolero se destacam naquele período os cantores Waldik Soriano, Nelson Ned, Lindomar Castilho e Claudia Barroso, que seguem a tradição da influência hispânica que se faz presente no Brasil desde a década de 40. Um outro grupo vai trilhar a linha do samba, ou "sambão-jóia", como pejorativamente eram tachados na época: Benito di

Paula, Luiz Ayrão e Wando (que até 1978 ainda não havia aderido de vez ao estilo de baladas românticas). E um terceiro grupo, que engloba a maior parte destes cantores populares, vai se expressar através do ritmo da balada, e tem entre os seus principais representantes Paulo Sérgio, Odair José, Evaldo Braga, Agnaldo Timóteo e outros, que são continuadores de um estilo romântico consagrado por Roberto Carlos e a turma da Jovem Guarda nos anos 60. Portanto, esta geração de artistas "cafonas" se expressou basicamente através de três gêneros musicais já bastante testados e consolidados no gosto do público ouvinte de rádio e de discos. A palavra “brega”, usada para definir esta vertente da canção popular, só começou a ser utilizada no início dos anos 80.(9) Ao longo da década de 70 - período que compreende o universo desta pesquisa - , a expressão utilizada é ainda "cafona", palavra de origem italiana, “cafóne”, que significa indivíduo humilde, vilão, tolo.(10) Divulgada no Brasil pelo jornalista e compositor Carlos Imperial, a expressão ”cafona" subsiste hoje como sinônimo de "brega", que, segundo a Enciclopédia da Música Brasileira, é um termo utilizado para designar "coisa barata, descuidada e malfeita" e a "música mais banal, óbvia, direta, sentimental e rotineira possível, que não foge ao uso sem criatividade de clichês musicais ou literários".(11) Ressalto que sempre que eu fizer referência ao repertório "cafona" - a palavra aparecerá entre aspas porque contém um juízo de valor impregnado de preconceitos com os quais não compartilho - , estarei me referindo àquela vertente da música popular brasileira consumida pelo público de baixa renda, pouca escolaridade e habitante dos cortiços urbanos, dos barracos de morro e das casas simples dos subúrbios de capitais e cidades do interior. Como definiu o jornalista Dirceu Soares, "subúrbio é um lugar que fica entre a cidade e o campo. Ali mora um tipo de gente que ainda não se sofisticou, mas que também já não é mais matuta. E é nesta mistura de culturas que vive a maior parte da população brasileira".(12) Ao refletir, nos anos 70, sobre o abismo que separava a grande massa de brasileiros empobrecidos da minoria extremamente rica - distorção resultante do modelo concentrados de renda - , o economista Edmar Bacha criou o termo "Belíndia", uma metáfora para explicar a existência de dois

"Brasis": um, composto pelas classes média e alta, morando no grande centro urbano-industrial e com um padrão de vida de primeiro mundo, semelhante ao da população da Bélgica; outro, composto pela classe média baixa e assalariada, a imensa maioria da população, vivendo em precárias condições, sem escola, saúde e informação e com um padrão de consumo semelhante ao da população da Índia. Transportando esta metáfora para o campo específico da música popular, é possível dizer que artistas como Chico Buarque e Milton Nascimento tinham o seu público entre os habitantes da "Bélgica", enquanto que os cantores "cafonas" eram ouvidos e admirados pela imensa maioria da população da "Índia".

Naquela época, como um típico habitante desta parte mais pobre do Brasil, cresci ouvindo cantores como Waldik Soriano, Odair José e Nelson Ned. E, como a maioria destes artistas, também trabalhei de engraxate na infância. Mas ao chegar à universidade - rompendo uma barreira que a sociedade impõe às pessoas não originárias da classe média - , resolvi aprofundar algumas questões que me acompanham desde que me interessei pelo estudo da história do Brasil: por que aqueles cantores que eu ouvia no rádio no período da minha infância não apareciam nos livros e ensaios que tematizam a música popular? Por que a exclusão de uma vertente musical que serve de referência para milhões de brasileiros? E mais: até que ponto este descaso com a história da canção popular "cafona" reflete o autoritarismo de áreas insuspeitas da nossa sociedade? E afinal, que memória histórica da música popular brasileira tem sido construída em nosso país? A partir destas indagações, resolvi iniciar a pesquisa e levantar o véu que cobre a produção musical "cafona" dos anos do AI-5. Este livro é uma versão revista e ampliada da minha dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Documento da Universidade do Rio de Janeiro - UNI-Rio(13). Visando ao bom desenvolvimento do trabalho, percorri três principais fontes primárias: a produção discográfica do período 1968/1978 (sambas, baladas e boleros, além do repertório da MPB); jornais e revistas da época; e, principalmente, depoimentos inéditos e exclusivos de alguns dos principais protagonistas da

música popular "cafona". Entre fevereiro de 1997 e maio de 2002 entrevistei produtores, diretores de gravadora e vários cantores/compositores, alguns no Rio, outros em São Paulo. Pela primeira vez artistas como Waldik Soriano, Odair José e Nelson Ned falaram sobre o significado histórico de suas carreiras. Em determinados momentos da entrevista alguns dos cantores diziam: "Eu nunca tinha falado sobre isso antes." Assim, este recurso nos permitiu um acesso privilegiado ao tema, acentuando ambivalências, motivações e versões que dificilmente encontraríamos em outras fontes. E, ao dar voz a esta geração de artistas, creio contribuir para amenizar o esquecimento nesta luta desigual pela memória. (14)

* ( Paulo César de Araújo, autor do livro "Eu Não Sou Cachorro, Não"))

*Como já foi destacado, a bibliografia sobre música popular brasileira não apresenta estudos focalizando a obra do repertório "cafona". A maior parte dos títulos até agora publicados se prende aos sambistas dos anos 30 (Noel Rosa, Wilson Batista, Ismael Silva); à bossa nova (João Gilberto, Tom Jobim, Vinicius de Moraes); e à geração surgida durante os festivais de música popular nos anos 60 (Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento). Ou seja, o que tem sido pesquisado e analisado é basicamente a produção

dos cantores/compositores identificados à MPB. O que de alguma forma comprova o que foi observado pelo filósofo francês Edgar Morin ao dizer que geralmente "aquilo que se despreza não merece ser estudado ou pensado”(15). A obra do crítico e historiador José Ramos Tinhorão é considerada uma referência quando se fala em história da música popular no Brasil. Ninguém escreveu mais do que ele sobre o tema. Do primeiro livro, “Música popular: um tema em debate”, publicado em 1966, ao mais recente, “Música popular: o ensaio é no jornal”, lançado no início do ano 2000, são mais de 10 livros em que o autor apresenta um exaustivo trabalho de pesquisa e análise crítica sobre diversos gêneros e compositores: da modinha à lambada; de Domingos Caldas Barbosa a Caetano Veloso. Mas o sempre muito polêmico Tinhorão também nada diz sobre a música produzida por compositores como Waldik Soriano ou Nelson Ned. Esta mesma exclusão se verifica no trabalho do pesquisador Ary Vasconcelos e nos textos daqueles que chamarei aqui de divulgadores de histórias da nossa música popular: Ruy Castro, Sérgio Cabral, Ricardo Cravo Albin, Zuza Homem de Melo, Hermínio Bello de Carvalho e outros, que se dedicam basicamente a registrar a memória de gêneros e intérpretes identificados com as chamadas raízes do samba e do choro ou de músicos ligados à bossa nova. A maior parte daquilo que está associado à chamada cultura de massa é relegada ao esquecimento. A coleção História da Música Popular Brasileira, conjunto de discos e fascículos publicado pela Abril Cultural ao longo das décadas de 70 e 80, é outro trabalho que contribuiu para sedimentar uma determinada memória da história musical do país. Com textos assinados por críticos e jornalistas como João Máximo, Tárik de Souza e Luiz Carlos Maciel, ao longo das suas três edições são focalizadas as trajetórias de 113 nomes da nossa música popular: dos mais tradicionais e famosos como Noel Rosa e Paulinho da Viola aos mais herméticos e vanguardistas como Walter Franco e Walter Smetak. E, no entanto, a coleção que pretende levar o leitor/ouvinte a "conhecer melhor o Brasil, por meio dos sons e cantos da sua gente"(16), não diz uma palavra sequer sobre a produção musical de artistas populares como Odair José ou

Benito di Paula. Inaugurado em 1965, o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro apresenta como um de seus objetivos preservar a memória da música popular brasileira. A gravação de depoimentos para a posteridade - uma das marcas pioneiras e definidoras do MIS - resultou em um acervo com 839 depoimentos sonoros, organizados em 1.700 fitas, que totalizam cerca de 2 mil horas de gravações.(17). Mas em todo este material gravado e catalogado também não existe nada referente à geração dos cantores/compositores acima citados. Isto tudo nos remete à reflexão acerca dos silêncios da História. Jacques Le Goff, historiador francês, afirma que é preciso interrogar-se sobre os esquecimentos, os hiatos, os espaços em branco. "Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos documentos e das ausências de documentos"(18). E esta análise é de fundamental importância porque o espaço da memória constitui permanente campo de batalha, e o ato de esquecer pode ser resultado de manipulação exercida por grupos dominantes sobre dominados, ou de vencedores frente a vencidos. Em contraponto a uma longa tradição do estudo da História, cujo enfoque incidia, fundamentalmente, na valorização dos falos relativos às classes dominantes, tem se acentuado nos últimos anos uma tendência em dar lugar às manifestações das pessoas comuns, o que representa uma democratização do objeto histórico. Este trabalho se alinha nesta perspectiva, já que, ao pesquisar a obra musical de uma geração de cantores/compositores considerados "cafonas", visa recuperar a memória de uma facção da cultura popular deixada ao largo da historiografia, trazendo à tona sua luta, seus embates, suas formas de expressão e resistência. E não se trata aqui de um livro apenas sobre música, mas sim da análise de fatos e documentos que ajudem a elucidar os rumos da música popular e da própria sociedade brasileira em um período marcante de sua história. Afinal, as canções e os depoimentos pesquisados foram produzidos por uma geração de artistas populares afinados com seu tempo, com sua cultura

e que tiveram importância (ou que talvez ainda tenham) para a vida de milhões de pessoas.

“Roberto Carlos acabou. Não existe mais Roberto Carlos”. (Chacrinha)

No conturbado ano de 1968, era mesmo muito difícil não participar de alguma polêmica. Como se costuma dizer, era o espírito da época. E os assuntos debatidos eram os mais diversos. Política. Religião. Música. Cinema. Cibernética. O jornalista e escritor Zuenir Ventura, um dos memorialistas daqueles tempos, enfatiza que em 1968 a polêmica era duradoura e estava em toda parte: "Discutia-se nas universidades, nas assembléias, nas passeatas, nos bares, nas praias: a altura das saias, o caráter socialista da revolução brasileira, o tamanho dos cabelos, os efeitos da pílula anticoncepcional, as teorias inovadoras de Marcuse, as idéias de

Lukács, o revisionismo de Althusser."(19) No universo da música popular romântica, a polêmica e o debate também estavam na ordem do dia. Mas não exatamente em relação aos temas já citados, que em sua maioria eram privilégio das elites intelectuais do país. Entre grande parte de artistas e público de origem popular, ao longo do segundo semestre de 1968, discutia-se e torcia-se por Roberto Carlos ou Paulo Sérgio, o jovem alfaiate que se tornaria um ícone desta geração de cantores/compositores "cafonas". Foi em 1968 que Paulo Sérgio Macedo despontou com grande destaque em todas as paradas de sucesso do Brasil. Natural de Alegre, interior do Espírito Santo, solteiro, 24 anos, Paulo Sérgio surgia com o mesmo sorriso tímido, os mesmos olhos tristes, o mesmo estilo musical e o mesmo timbre vocal do ídolo Roberto Carlos - o que levava a imprensa na época a afirmar que “ouvir a voz de um ou de outro, praticamente não faz diferença. Paulo Sérgio é uma espécie de outro Roberto Carlos".(20) Gravado em maio de 1968, o primeiro LP de Paulo Sérgio rapidamente alcançou a marca de 300 mil cópias vendidas - uma tiragem espetacular para a época - e várias faixas do disco entraram nas paradas de sucesso nacional: “No dia em que parti”, “Sorri meu bem” , “Se você voltar” e, principalmente, a balada “Última canção”, que era tocada a todo instante nas emissoras de rádio de norte a sul do Brasil: "Esta é a última canção / que eu faço pra você / já cansei de viver iludido / só pensando em você..."(22) Paulo Sérgio não foi o primeiro nem seria o último cantor a começar a carreira imitando Roberto Carlos. Desde pelo menos 1965, quando o estrondoso sucesso de ”Quero que vá tudo para o inferno” transformou Roberto Carlos em um ídolo de massa, que imitadores de sua voz e estilo vinham sendo lançados e retirados do mercado. E a canção ”O sósia”, composição gravada pelo cantor em 1967 - portanto, antes da consagração de Paulo Sérgio - , é um retrato disso. Ali, Roberto Carlos canta que encontrou um cara que tinha a sua cara "e até seu nome era igual ao meu / hum, era demais / eu sei, não era eu", numa referência aos vários imitadores que surgiam na época da Jovem Guarda. O que difere o caso Paulo Sérgio é que ele foi o primeiro artista com voz e estilo semelhantes aos de Roberto Carlos a alcançar grande sucesso nacional. E isto num momento em que a carreira do "rei" passava

por uma fase de reformulação e a sua imagem apresentava os primeiros sinais de desgaste. Em 1968 o programa Jovem Guarda, que Roberto comandou durante mais de dois anos, foi ao ar pela última vez porque a fórmula já estava muito gasta e o cantor pretendia atingir outras faixas de público. Mas o seu novo musical na TV Record, “Roberto Carlos à noite”, não conseguiu os índices de audiência esperados e também foi retirado do ar. A tentativa seguinte, o programa ”Todos os jovens do mundo”, em que ele aparecia falando de bombas, de guerra e da perplexidade do mundo moderno, foi considerado maçante e também não prosseguiu. Especulava-se na imprensa que o casamento de Roberto Carlos naquele ano de 1968 havia lhe retirado o apoio de boa parte do público feminino e que a sua carreira estaria entrando em curva descendente. E mais do que nunca evocava-se um exemplo do passado: Orlando Silva, o ex-trocador de bonde que se consagrara como o "cantor das multidões", mas que em um curto espaço de tempo perdera a voz, o prestígio e a popularidade. Apostando em fato semelhante, em agosto de 1968 a revista O Cruzeiro produziu uma grande reportagem cujo título era "Roberto Carlos: como morre um ídolo”.(23){/b]

Naquele segundo semestre a temporada teatral apresentava como destaque a peça ”Roda viva”, texto de Chico Buarque com polêmica montagem de José Celso Martinez Corrêa. Era a história do cantor Ben Silver, um ídolo da juventude que, depois de triturado pela máquina do consumo, oferecia o seu fígado à devoração dos fãs. Corriam versões de que o personagem fora inspirado na trajetória de Roberto Carlos - fato que Chico Buarque negava. Mas, com os reveses enfrentados pelo "rei" naquele momento, esta analogia era tentadora e um antigo companheiro de Roberto Carlos, que preferiu não se identificar, chegou a dizer na época: "Não sei se Roberto assistiu à Roda viva. Se não assistiu deveria ir ver a peça de Chico. É a sua própria vida que está ali. Roberto Carlos foi o instrumento de uma engrenagem: trituraram-no, esmagaram-no, tiraram-lhe o sumo e agora estão esperando uma oportunidade para jogar fora o bagaço."(24) Por tudo isso, o surgimento de um novo astro na música jovem romântica causou repercussão, e a pergunta "Paulo Sérgio derrubará Roberto Carlos?"

era ouvida em programas de rádio, televisão, e repetida em matérias de jornais e revistas. Para uns, Paulo Sérgio não passava de um clone do cantor do “Calhambeque” e não sobreviveria ao sucesso do primeiro disco; para outros, o mito Roberto Carlos havia chegado ao fim e o novo rei da juventude seria agora Paulo Sérgio. O mais popular apresentador da televisão brasileira, Abelardo Barbosa, o Chacrinha, foi categórico: "Roberto Carlos acabou. Não existe mais Roberto Carlos." E Chacrinha defendia esta opinião com o argumento de que "a medicina tem escola, a arquitetura tem escola, tudo tem escola. Paulo Sérgio seguiu a escola de Roberto Carlos, e burro será ele se mudar. Tem que ir assim até o fim. Ele já superou Roberto Carlos".(25) A polêmica estava estabelecida e outros artistas da música romântica se envolviam nela. Partindo em defesa de Roberto Carlos, o cantor Agnaldo Timóteo, bem ao seu estilo, rebateu de maneira contundente as declarações do Velho Guerreiro: "O Chacrinha provou mais uma vez que é um oportunista. Ele anda dizendo que o Paulo Sérgio é um ídolo, que derrubou Roberto Carlos, e paga apenas 100 mil cruzeiros velhos para o Paulo Sérgio cantar no seu programa. A bronca do Chacrinha é que o Roberto Carlos não canta no programa dele. O dia em que o Paulo Sérgio disser: 'Quero 500 mil para cantar em seus programas', então Paulo Sérgio não valerá mais nada."(26) Wanderley Cardoso, na época um dos mais populares cantores do Brasil, também saiu em defesa do colega da jovem guarda, ao afirmar que "ele (Paulo Sérgio) pode ser um bom moço, mas está começando muito mal, pois sua orientação é péssima. Roberto Carlos é o maior ídolo que já vi, e não será um Paulo Sérgio que irá derrubá-lo”(27) O debate não ficou restrito aos artistas, estendeu-se também às ruas, aos bares, aos auditórios - e as fãs dos dois cantores travaram uma batalha só comparável às de Marlene e Emilinha nos áureos tempos da Rádio Nacional. O cantor Paulo Sérgio, que um ano antes de gravar seu primeiro LP era apenas um jovem alfaiate que gostava de cantar e ouvir rádio, parecia até um pouco assustado por estar ali agora ocupando o centro de uma polêmica com o rei da juventude e maior vendedor de discos do Brasil: "Eu operei a garganta para ver se minha voz ficava diferente da voz do Roberto Carlos e não adiantou. Estou desesperado, já não agüento mais ouvir todo mundo dizer que eu imito o Brasa."(28)

Ele podia estar mesmo preocupado, mas, convenhamos, esta polêmica com o líder da jovem guarda era muito mais do que Paulo Sérgio poderia sonhar para seu início de carreira - principalmente porque ele se lançou por uma pequena gravadora nacional, a Caravelle, um selo até então inexpressivo, enquanto Roberto Carlos e grande parte dos outros artistas eram contratados das multinacionais CBS, RCA, Odeon e Philips. Como reflexo do enorme sucesso alcançado por Paulo Sérgio, o LP de Roberto Carlos lançado no fim de 1968 trazia como título "O inimitável", adjetivo que o cantor não queria na capa de seu disco, mas em 1968 ele ainda não dava todas as cartas na CBS, e a gravadora decidiu explorar comercialmente a polêmica. E Roberto Carlos não queria o seu LP envolvido no episódio porque ninguém melhor do que ele próprio para compreender a trajetória de Paulo Sérgio naquele momento. Afinal, nove anos antes, em 1959, era ele, Roberto Carlos, que iniciava a carreira de cantor, também por uma pequena gravadora, a Polydor, e também seguindo os passos do seu ídolo João Gilberto, da poderosa Odeon. A diferença é que, ao contrário do primeiro LP de Paulo Sérgio, o disco de Roberto Carlos não obteve nenhuma repercussão e ele teve que redefinir o seu estilo. Seja como for, o fato é que o título "O inimitável" revela que o sucesso alcançado pelo ex-alfaiate incomodou e causou preocupação nas hostes do "rei". Aliás, vozes maledicentes diziam que tudo isto estava ocorrendo porque, depois de sua bem-sucedida participação no Festival de San Remo, no início daquele ano, Roberto Carlos voltara italianizado, mais sisudo e inacessível, dando pouca importância aos antigos fãs. "Não é verdade" rebatia o cantor - "sou o mesmo Roberto de antes. E estou mais empenhado em minha carreira do que nunca. Vou para a frente sempre."(29) De fato, como o tempo viria a demonstrar, Roberto Carlos não foi derrubado por Paulo Sérgio. Note-se que após o lançamento de "O inimitável", disco mais romântico que os anteriores e com faixas como ”Se você pensa”, “As canções que você fez pra mim” e ”Madrasta”, o cantor passou a conquistar um segmento de público mais adulto e diversificado, obtendo os primeiros reconhecimentos da crítica e reverência de diversos artistas da MPB. Mas Paulo Sérgio também não desapareceu após o sucesso do primeiro LP, em 1968. Embora tenha carregado até o último dia de vida a pecha de "imitador do rei", ao longo de sua carreira ele foi colecionando uma série

de sucessos nacionais, mantendo a audiência de um público cada vez mais fiel e tornando-se precursor de um estilo de balada romântica - mais tarde chamada de "brega" - que influenciou toda uma geração de cantores/compositores populares surgidos a partir de 1968: Odair José, Fernando Mendes, Luiz Geraldo, Jean Marcel, Gilberto Reis, Fredson e outros. Embora se credite diretamente ao trabalho de Roberto Carlos a existência destes artistas "cafonas", ressalto aqui a mediação e a forte influência de Paulo Sérgio. Foi ele quem retrabalhou a fórmula da balada romântica e abriu as portas do mercado discográfico para uma nova geração de cantores populares, que começava a carreira num momento em que o ciclo da jovem guarda chegava ao fim. Não sem razão, ao comentar o disco de lançamento do novo cantor Gilberto Reis, em 1973, a revista Veja observava que "Roberto Carlos foi imitado por Paulo Sérgio. Agora, Paulo Sérgio é imitado por Gilberto Reis".(30) E possível dizer que esta geração de artistas despontada a partir de 1968 é a segunda na linha das que são rotuladas de "cafona" ou "brega". A primeira geração é aquela que serviu de contraponto à bossa nova e obteve grande sucesso popular entre o fim dos anos 50 e início dos anos 60: Anísio Silva, Orlando Dias, Silvinho, Adilson Ramos e alguns outros nomes que na época se notabilizaram basicamente como intérpretes de boleros. A segunda geração - a de Paulo Sérgio - inclui um número maior e mais diversificado de cantores/compositores, consequência da expansão da própria indústria fonográfica no Brasil, interessada em dividir em fatias o mercado consumidor de discos. Uma terceira geração de "cafonas"”que não é a prioridade deste livro - foi aquela que despontou por volta de 1977 e manteve-se regularmente nas paradas de sucesso nacional até o início dos anos 80: Sidney Magal, Agepê, Peninha, Amado Batista, Giliard, Carlos Alexandre, Jane & Herondy e outros que, mais tarde, passaram a ser chamados de "bregas". E aqui se faz necessário uma melhor diferenciação entre o repertório musical "cafona" e a chamada MPB, que, mais do que um gênero de música, transformou-se, a partir do fim dos anos 60, numa verdadeira instituição, dotada de reconhecimento cultural e de lugar social bem determinado.(31) Apesar do aparente significado, a sigla MPB não representa toda e qualquer música popular produzida no Brasil. Ainda hoje, e de uma maneira muito

mais intensa no período do regime militar, ela é a expressão de uma vertente da nossa música popular urbana produzida e consumida majoritariamente por uma faixa social de elite, segmento que a indústria cultural classifica como público A ou B. Difundida a partir de 1965, a sigla MPB foi utilizada inicialmente apenas como referência à "moderna música popular brasileira", de origem universitária, que surgia da influência direta da bossa nova e que, naquele momento, disputava espaço com uma outra música popular - aquela produzida por Roberto Carlos e a turma da jovem guarda - que partia de influências do rock'n'roll inglês e norte-americano. E esta disputa levou na época alguns dos representantes da MPB - Elis Regina, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, Edu Lobo - a comandar uma passeata contra as guitarras elétricas no centro de São Paulo. Ou seja: num primeiro momento, a sigla MPB representava uma espécie de bandeira de luta nacionalista contra um outro tipo de música que era efetivamente popular e produzida em nosso país, porém, considerada "alienígena", "nãobrasileira". Entretanto, a partir de Setembro de 1967, com a incorporação de guitarras elétricas às composições de Caetano Veloso e de Gilberto Gil via tropicalismo e com a assimilação de influências do rock, do blues, do soul e do próprio trabalho de Roberto Carlos por outros intérpretes da MPB (Gal Costa, Elis Regina, Wilson Simonal), esta oposição música "brasileira" versus música "alienígena" deixava de ter sentido. Mas a sigla MPB continuou, agora fazendo frente a outra produção musical popular: aquela que, a partir de 1968, através de cantores românticos como Paulo Sérgio, era tachada de "cafona" ou de "música de empregadas", ou seja, tudo aquilo que o público de classe média universitário rejeitava em termos de forma e conteúdo. Na perspectiva desse público, artistas como Chico Buarque e Gonzaguinha seriam os legítimos criadores da "boa música popular" - o termo "popular" sendo assim apropriado pelas elites intelectuais, restando para aqueles cantores românticos de maior popularidade o adjetivo "popularesco". Como observa Marilena Chauí, se, no início do século XX, "os compositores mais conhecidos eram lá do morro, no final do século, grande parte da música popular é composta e ouvida por universitários.(...) Por outro lado, as composições mais admiradas pela população 'popular' são aquelas que costumam receber a qualificação pejorativa de kitsch".(32) Em consequência desta segmentação do mercado discográfico - que do

ponto de vista do público serve como diferencial de gosto e status social - , ao longo do período de 1968/78, pode-se notar a existência de duas principais vertentes na música popular urbana produzida no Brasil. De um lado, aquela de artistas identificados à MPB. De outro, a vertente rotulada de "cafona" ou "popularesca" (Paulo Sérgio, Odair José, Waldik Soriano, Agnaldo Timóteo, Nelson Ned), de artistas e público oriundos das camadas mais pobres da sociedade. Com transito entre uma vertente e outra havia casos como os de Roberto e Erasmo Carlos que, após o tropicalismo, começaram a ser assimilados por setores da MPB. De uma maneira geral, entretanto, a maior parte do espaço musical nas rádios, nos programas de televisão e nas lojas de discos era ocupado por estes dois grupos de cantores/compositores.(33) E, como veremos a seguir, ambos os grupos vão produzir os seus discos e canções num período de forte radicalização da ditadura militar, a partir da decretação do AI-5, em dezembro de 1968. **

NOTAS :

CAPÍTULO: INTRODUÇÃO

1. "Finados com sol" - O Dia, 3 -11-1997. 2. Os depoimentos ao autor citados neste livro não terão notas de fim de página. Conferir data e nome completo de cada depoente em Fontes e bibliografia. 3. "Eu sou Waldik Soriano" - Manchete, 22-5-1971. 4. Programa ”Show da Madrugada” - Rádio Globo, 24-8-1991. 5. O título de cada canção aparecerá no corpo do texto ou nas notas finais. As indicações referentes a autor, intérprete, gravadora, título e data de lançamento do disco podem ser conferidas na discografia listada em ordem alfabética em Fontes e bibliografia. As canções foram organizadas em três grupos: repertório "cafona"/ repertório mpb-pop-rock / repertório

internacional. 6. Ver Edward P. Thompson. “Tradición, revuelta y consciência de clase”. Barcelona: Critica, 1979; Michelle Perrot. ”Os excluídos da história”. São Paulo: Paz e Terra, 1988. 7. Marilena Chauí. ”Conformismo e resistência; aspectos da cultura popular no Brasi”l. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 124. 8. Fontes: respectivamente, Associação Brasileira de Produtores de Discos e IBINEE; "Discos em São Paulo", Pesquisa 6, IDART, 1980. Apud. Renato Ortiz. ”A moderna tradição brasileira; cultura brasileira e indústria cultura”l. São Paulo: Brasiliense, 1988, pp. 127-128. 9. Esta palavra alcançou popularização definitiva a partir de 1984, quando o cantor Eduardo Dusek lançou com grande sucesso o LP "Brega chique, chique brega" - Polydor P. 1984. 10. Antônio Geraldo da Cunha. ”Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 136. 11. Enciclopédia da música brasileira: popular, erudita e folclórica. 2a ed. São Paulo: Art Ed. / Publifolha, 1998, p. 117. 12. Dirceu Soares. 'Ás feições brasileiras de um tema universal". In. ”História da música popular brasileira (Adelino Moreira, Jair Amorim & Evaldo Gouveia)”. 3a ed. São Paulo: Abril Cultural, 1982. 13. Dissertação defendida naquela instituição em 4 de Outubro de 1999. A banca examinadora foi formada pela Profª. Drª Sônia Apparecida de Siqueira - minha orientadora - , e pelos professores doutores Nilson Alves de Morais e José Carlos Sebe Bom Meihy. 14. A lista completa dos artistas entrevistados encontra-se na última parte deste livro (Fontes e bibliografia). As entrevistas passaram por um processo de edição, que visa dar maior clareza e normalização à linguagem, evitando-se os riscos de uma má recepção da mensagem. (Ver José Carlos S. Bom Meihy. Manual de história oral. São Paulo: Loyola, 1996). 15. Edgar Morin. "Não se conhece a canção". In. Linguagem da cultura de massa. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 144. 16. Texto do encarte que acompanha o fascículo 1 "Chico Buarque”.

História da música popular brasileira. 3a ed. São Paulo: Abril Cultural, 1982, 17. Dados fornecidos pelo Museu da Imagem e do Som em Janeiro de 2002. 18. Jacques Le Goff. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1996, p. 109.

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CAPÍTULO: UM ALFAIATE NO CENTRO DA POLÊMICA

19. Zuenir Ventura. 1968: O ano que não terminou. A aventura de uma geração. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 75. 20. "Guerra no mundo do iê,iê,iê" - O Cruzeiro, 31-8-1968. 21. Para a identificação dos sucessos musicais citados neste livro foram consultados os arquivos de dois institutos de pesquisa: O Ibope Discos Pesquisa sobre vendas de discos (Rio de Janeiro / São Paulo / Recife) Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp; e o Nopem - Pesquisa de mercado sobre vendas de discos - instituto inaugurado em 1965 e ainda hoje em atividade no Rio de Janeiro. 22. Puxado pelo sucesso de A última canção, o LP "Paulo Sérgio vol. 1" alcança o primeiro lugar de vendagem no Rio e em São Paulo nos meses de Junho e Julho de 1968. Fonte: Ibope Pesquisa sobre vendas de discos Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp. 23. "Roberto Carlos: como morre um ídolo" - O Cruzeiro, 30-11-1968. 24. Idem, ibidem. 25. "Guerra no mundo do iê,iê,ie" - O Cruzeiro, 31-8-1968. 26. Idem, ibidem. 27. Idem, ibidem.

28. "Uma voz persegue Paulo Sérgio" - Intervalo, Nº 275, abril de 1968. 29. "Roberto Carlos: a hora da verdade" - Intervalo, Nº 295, Setembro de 1968. 30. "Discos Novos". - Veja, 11-4-1973. 31. Conforme proposição de Marcos Napolitano. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001. 32. Marilena Chauí, op. cit, p. 10. Para uma melhor análise do kitsch conceito de origem alemã que se refere ao subproduto de uma arte maior ver Umberto Eco. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1993, especialmente o capítulo “Á estrutura do mau gosto", pp. 69-128. 33. Uma terceira vertente da música popular brasileira na época é aquela formada por Rifa Lee, Raul Seixas, Tim Maia, Cassiano, Luiz Melodia e outros que seguiam a linha do soul ou do rock.

NELSON NED E OS CAFONAS NO ANO DE 1968 *** “Eu via aqueles soldados e tanques de guerra atravessando as ruas da cidade e tinha muito medo daquilo. Era um negócio que a gente não entendia direito, mas que intimidava muito.” (Wando)

Para além do clima de polêmica que envolveu as camadas populares em relação a Roberto Carlos e Paulo Sérgio, ou os intelectuais em relação às idéias de Lukács e Althusser, 1968 foi um ano essencialmente político. É nesta data que se registram a morte do estudante Edson Luiz (ocorrida

durante confronto com militares no Rio de Janeiro); a invasão da Universidade de Brasília (comandada por tropas da polícia e do Exército); a Passeata dos Cem Mil (manifestação de protesto contra o governo); e, principalmente, a decretação do AI-5 (ato que oficializou a ditadura militar no Brasil). É fato notório que artistas e público da canção popular romântica não tiveram relação direta com nenhum desses acontecimentos, pois mantinham-se alheios às questões políticas. Mas esta alienação talvez possa ser explicada em função do lugar social ocupado por cada um deles na época, já que todos aqueles episódios de 1968 causaram impacto na classe média mais intelectualizada e em setores populares organizados, não obtendo a mesma repercussão em outros segmentos sociais. Como, aliás, observou o escritor Nelson Rodrigues ao afirmar, com sua peculiar ironia, que na Passeata dos Cem Mil não estava presente "um único e escasso preto. E nem operário, nem favelado, e nem torcedor do Flamengo, e nem barnabé, e nem pé-rapado, nem cabeça-de-bagre. Ali, estavam os filhos da grande burguesia, os pais da grande burguesia, as mães da grande burguesia. Portanto, as elites".(34) Mesmo assim, qual a lembrança que artistas populares como Waldik Soriano, Odair José e Nelson Ned têm daqueles agitados e distantes dias de 1968? E de que maneira eles acompanharam - ou não - aqueles fatos políticos? Em 1968, o cantor e compositor Odair José de Araújo estava com 20 anos e ainda batalhava a oportunidade de gravar o seu primeiro disco. Natural de Morrinhos, Goiás, o cantor morava no Rio de Janeiro desde o fim de 1966, quando chegou para tentar a carreira artística. Sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior, Odair José perambulou pela cidade como um autêntico vagabundo. "Minha mulher e minha mãe não gostam que eu fale isso, mas eu fui garoto de rua no Rio de Janeiro. Dormi debaixo de ponte, dormi em marquise, em escadarias de teatro, essas coisas todas." Numa de suas andanças pelo centro da cidade, Odair cruzou com a figura esguia e elegante do compositor Ataulfo Alves e falou-lhe do seu desejo de se tornar um artista do rádio. O autor de ”Ai que saudades da Amélia”

simpatizou com aquele garoto franzino, com cara de fome, que dizia não ter onde morar, e o alojou num pequeno apartamento que ele usava para eventuais encontros com alguma cabrocha. "Mas raramente Ataulfo aparecia ali; o Viagra ainda não tinha sido inventado", observa Odair. Outro encontro importante para ele foi com o produtor e compositor Rossini Pinto, que levou Odair para trabalhar na CBS, onde gravaria o seu primeiro disco, em 1970. A partir daí, o cantor foi colecionando uma série de canções de sucesso que o tornaram conhecido como "o terror das empregadas" e o "Bob Dylan da Central". Sobre a Passeata dos Cem Mil no Rio de Janeiro, que precedeu a decretação do AI-5 e contou com a participação de Chico Buarque, Edu Lobo, Vinicius de Moraes e de vários outros artistas e intelectuais, Odair José afirma que não participou porque estava trabalhando: "Naquela época eu vivia dentro de um estúdio. Não que eu não estivesse preocupado com o que estivesse rolando, mas eu tinha que me preocupar com a minha vida pessoal. Eu corria atrás do meu trabalho. Por exemplo, o Chico Buarque tinha a casa dele, tinha o pai dele, então era muito fácil pra ele participar da passeata. Mas eu não tinha aqui nem pai nem mãe e nem casa pra morar. Então eu precisava batalhar pelo meu disco, pelo meu show. Eu não podia ficar muito envolvido com aquilo." (passeata dos Cem Mil – 1968). De brincos e colete, indumentária própria dos ciganos, além do violino, dos timbales e do pandeiro, constantes em sua música, o cantor e compositor Benito di Paula é um dos nomes mais populares do cenário artístico brasileiro dos anos 70 e o símbolo maior do chamado sambão-jóia: "Eu sou cigano, não vou negar minha raça, não posso negar que sou cigano, esta no meu sangue." E ao falar um pouco mais sobre a sua origem, ele arremata com um desabafo: "Todo mundo diz que Hitler matou milhões de judeus, e quantos ciganos estavam lá? Ainda não me contaram isso. E quantos ciganos estão no Brasil e na América Latina? Ainda não me contaram essa história." Fluminense de Friburgo, este sambista cigano começou a atuar profissionalmente em boates da Zona Sul carioca, transferindo-se para as casas noturnas paulistas no início dos anos 60. Em 1966 gravou o seu primeiro disco - um compacto com dois boleros pela gravadora RGE mas sem alcançar nenhuma repercussão. Assim, em 1968, Benito di Paula estava com 24 anos e continuava

conhecido apenas pelos freqüentadores da noite em São Paulo. E também dizendo-se envolvido com seu trabalho, não participou de nenhuma das manifestações políticas ocorridas naquele ano na capital paulista. "Eu cansei de ver tudo isso, inclusive ali no Largo de São Francisco, o pessoal da UNE, os estudantes protestando muito e tal, mas eu precisava cuidar da minha família; eu tinha que cuidar da minha mãe, do meu pai, dos meus irmãos. Eu precisava comprar uma casa para minha mãe, mas eu ganhava na época sete cruzeiros por noite; quer dizer, a política já estava ruim pra mim. Aí eu tinha que ir trabalhar." Autor de ”O homem de Nazareth” - "Ei, irmão / vamos seguir com fé / tudo que ensinou / O homem de Nazareth"”, um dos maiores sucessos da década de 70,(35) o cantor e compositor Claudio Fontana tinha 22 anos em 1968 e ainda não era um artista de popularidade nacional. Maranhense de São Luís, ele morava desde 1965 no Rio de Janeiro, trabalhando de taquígrafo e tentando a carreira musical. Um dos seus primeiros contatos na cidade foi com o compositor José Cândido, parceiro de João do Vale em ”Carcará”, composição que naquele ano integrava o show Opinião, estrelado pela cantora Nara Leão. E Claudio Fontana recorda que certo dia José Cândido chegou pra ele e disse: "Rapaz, esta é a sua chance: a Nara Leão teve um problema lá e vai ter que se afastar da peça. E eles precisam de alguém para cantar ”Carcará”. Eu vou te apresentar para o João do Vale. Você é maranhense como ele, canta alto, canta bem, o João vai gostar de você." Acreditando nesta possibilidade - afinal, José Cândido era um dos autores da música - , Claudio Fontana passou uma semana ensaiando ”Carcará”. "Mas quando o Zé me levou para falar com João do Vale, encontramos ele bêbado, caindo pelos cantos, igual uma porca. Foi um negócio terrível. E eu não consegui falar com o João. Aí a pessoa que eles trouxeram para substituir a Nara Leão foi a Maria Bethania, que na época era uma nordestina tão desconhecida quanto eu." Sem espaço no Opinião, o cantor procurou se enturmar com o pessoal da jovem guarda, e em 1967 a sua composição ”Doce de coco” foi gravada com sucesso por Wanderley Cardoso. Mas o nome Claudio Fontana só alcançou projeção nacional dois anos depois, com a gravação do primeiro LP e o estouro da faixa ”Adeus ingrata”. Com relação aos fatos políticos de 1968, o artista não guarda muitas referências, porém recorda de algumas manifestações estudantis ocorridas no Rio de Janeiro no período um pouco anterior, quando ele trabalhava

numa exportadora na Lapa e morava numa quitinete próxima ao prédio da UNE, no Flamengo. "Como eu trabalhava o dia inteiro e acordava cedo eu não participei de nenhuma daquelas passeatas, mas muitas vezes eu voltei a pé do local do trabalho, porque aquele movimento todo dos estudantes causava muito tumulto no Centro da cidade e os ônibus não podiam passar. Então me lembro que eu tinha que voltar a pé pra casa." Mineiro de Bom Jardim, o cantor e compositor Wanderley Alves dos Reis, o Wando, estava com 23 anos em 1968 e morava em Volta Redonda, cidade fluminense que, por ser sede da Companhia Siderúrgica Nacional, vivia cercada de tropas do Exército. Naquela época, Wando trabalhava de feirante durante o dia e era músico de baile à noite, combinação difícil porque, quando ele desligava o som dos instrumentos no clube, já era a hora de abrir as barracas na feira. "Foi então que um cara chamado Alcebíades, um ex-presidiário que trabalhava comigo, um dia me deu um sábio conselho: 'acho que você está fazendo a coisa errada. Você gosta de música, então arrisque tudo pela música'." O conselho foi aceito e a carreira artística do cantor deslanchou a partir de 1971, quando sua composição ”O importante é ser fevereiro” chegou ao sucesso na voz de Jair Rodrigues, possibilitando a Wando a gravação do primeiro disco. Mas qual a lembrança que o cantor teria dos fatos políticos do ano de 1968, quando era apenas um feirante em Volta Redonda? "Eu não tinha nenhuma noção do que estava acontecendo, até porque naquela época as informações eram mínimas. A Passeata dos Cem Mil, por exemplo, era algo totalmente distante pra mim. Hoje tenho consciência de que eu morava num barril de pólvora. Me lembro que eu via aqueles soldados e tanques de guerra atravessando as ruas da cidade e tinha muito medo daquilo. Era um negócio que a gente não entendia direito, mas que intimidava muito." (Deputado Márcio Moreira Alves - discurso que provocou a decretação do AI-5) Com a decretação do Ato Institucional Nº 5 em dezembro de 1968, a chamada "linha dura" das forças armadas se consolidava no poder,

institucionalizando o Estado ditatorial implantado em 1964. O regime militar utilizou o AI-5 para levar às últimas conseqüências o seu modelo político-econômico, baseado no trinômio segurança-integraçãodesenvolvimento e apoiado no grande capital privado e estatal, no aprofundamento da exploração do trabalho, na cassação das liberdades civis e numa rígida censura. Mas o pretexto de que se valeu o presidente Costa e Silva para editar o AI5 foi o que ficou conhecido como o "caso Márcio Moreira Alves". Na manhã do dia 3 de Setembro de 1968, o jovem deputado federal do MDB da Guanabara subiu à tribuna da Câmara para protestar contra a ocupação militar da Universidade de Brasília - fato ocorrido quatro dias antes e que resultou em tiros, espancamentos e prisões de vários estudantes. Refletindo a indignação de diversos setores da sociedade, em seu discurso, que durou menos de 10 minutos, Márcio Moreira Alves propôs, como forma de protesto, que a partir daquele momento deveria cessar no Brasil “todo e qualquer contato entre civis e militares". E ele conclamava os pais a proibir seus filhos de participar dos desfiles escolares do 7 de Setembro, sob o argumento de que os estudantes não deveriam sair às ruas "ao lado dos carrascos que os espancam e os metralham". Mas o orador foi ainda um pouco mais ousado e defendeu que este boicote poderia alcançar também o leito conjugal, sugerindo às mulheres dos militares mirarem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas que, segundo o texto de Aristófanes, rejeitaram seus maridos para forçá-los a terminar a guerra contra Esparta. E Márcio Moreira Alves acrescentava que esta proposta de greve de sexo deveria ser estendida também "às moças, às namoradas, àquelas que dançam com os cadetes e freqüentam os jovens oficiais".(36) Quando na manhã seguinte o discurso do deputado começou a circular pelos quartéis, a movimentação na tropa foi intensa, e de quase todas as guarnições militares partiram telegramas endereçados ao Palácio do Planalto com um único e expresso pedido: a "cabeça" de Márcio Moreira Alves.

Mas, como integrante do Poder Legislativo, o deputado estava protegido pela imunidade parlamentar e, em votação no plenário, no dia 12 de dezembro, a Câmara se negou a conceder a licença para que ele fosse processado pelos ministros militares. Aproveitando-se deste fato, no dia seguinte, uma sexta-feira 13, o governo decretou o AI-5, e com base nele fechou o Congresso, cassou mandatos, suspendeu direitos políticos, efetuou prisões, cessou garantias constitucionais, outorgando a partir daí - e por 10 longos anos - , poderes quase totais e absolutos ao regime dos generais presidentes. "Quantas vezes precisaremos ainda repetir e provar que a revolução é irreversível", afirmou na época o presidente Arthur da Costa e Silva, advertindo que "sempre que imprescindível, como agora, faremos novas revoluções dentro da revolução".(37) O momento do anúncio do AI-5, feito pelo ministro da Justiça Gama e Silva através de uma cadeia de rádio e televisão, foi vivenciado de forma marcante por diversos artistas da MPB. Chico Buarque, por exemplo, recorda que naquela noite estava em sua casa vendo TV ao lado do ator Hugo Carvana e que, quando o ministro terminou de anunciar o novo ato institucional, Carvana virou-se para ele e exclamou: "Estamos fodidos."(33) O compositor Geraldo Azevedo, por sua vez, afirma que naquele dia ele e o percussionista Naná Vasconcelos acompanhavam Geraldo Vandré numa excursão do show Pra não dizer que não falei de flores no Planalto Central. "Foi uma loucura. Vandré ficou louco; não sabia o que fazer e o medo de ele ser preso nos fez cancelar o espetáculo programado para o Iate Clube, em Brasília; tomamos o caminho do Rio. Vandré, com pose de Che Guevara, parecia alucinado, e Naná Vasconcelos às vezes perdia a paciência e dizia 'vou dar umas porradas neste cara'."(39) E onde estariam os cantores "cafonas" naquela noite de sexta-feira, 13 de dezembro de 1968?

Agnaldo Timóteo tinha 32 anos na época e ainda saboreava o gosto do

sucesso tão recentemente conseguido. "Foi a carreira mais difícil do Brasil. Onze anos para chegar ao sucesso, sendo cinco anos com ódio. Minha vitória virou obsessão, eu tinha que me vingar. Cada vez que alguém me espezinhava, me humilhava, eu voltava para casa e dizia: ainda vou me vingar." (40). Trabalhando no Rio de Janeiro desde 1960 (inicialmente como torneiro mecânico e depois como motorista da cantora Ângela Maria), o mineiro de Caratinga se consolidou como um artista de projeção nacional a partir de 1967, com o lançamento de seu terceiro LP,"Obrigado querida". Gravado na Odeon, o disco trazia versões como ”Os verdes campos da minha terra (Green, Green Grass of Home)”, “Mamãe estou tão feliz (Mamma)” e o seu maior sucesso, a balada ”Meu grito”, composição de Roberto Carlos feita especialmente para o disco do novo cantor. Até aquele momento sem poder revelar ao público o rosto ou o nome de Cleonice Rossi, com quem iria se casar (diziam que Roberto Carlos poderia perder o apoio das fãs), o rei da jovem guarda desabafava através da voz de Agnaldo Timóteo: “Ai que vontade de gritar / seu nome bem alto e no infinito..." Em relação à crise institucional vivida pelo país em 1968, Timóteo não guarda muitas referências. "Nem me lembro disso. Na época eu não tinha nenhuma vivência política. Eu não me envolvia com política e os políticos não se envolviam comigo. Eu não mandava general à merda; general não faltava ao respeito comigo. Os generais me deixavam cantar, fazer sucesso e ganhar dinheiro." Mas o cantor não teria alguma lembrança da repercussão do dia seguinte ao anúncio do AI-5? "Não, claro que não. Aquilo não mudou absolutamente nada na minha vida. Em que ano foi mesmo?" O único fato marcante que Timóteo se recorda de 1968 ocorreu no dia 15 de dezembro, um domingo, dois dias após o AI-5. "Bota aí que eu sou um lutador e que só escapei com vida da multidão que queria me linchar graças às rezas da minha mãe. Há muito tempo que essa turma da praça do Lido tem bronca do meu carro, um Oldsmobile conversível, e sempre que passo ali sou chamado de bicha e outros insultos."(41) O desabafo de Timóteo foi feito no dia seguinte à violenta briga em que se

envolvera na praia do Leme, no Rio, em dezembro de 68. Segundo ele, no momento em que atendia um grupo de moças que lhe pedia autógrafos, uns rapazes o provocaram com gracejos e atirando-lhe saquinhos de areia. "Não tive dúvida, mandei meu irmão buscar um revólver em casa e ameacei todo mundo. Aí começou o tumulto e o meu motorista acabou dando uns tiros para o alto. Virou um corre-corre com o pessoal quase me linchando." (42) Os tiros provocaram pânico na praia e revolta em centenas de banhistas. Cercado pela turba, Timóteo agrediu e foi agredido com socos, pontapés e até garrafadas na cabeça. O seu motorista abriu caminho com mais disparos para o alto e os dois entraram no automóvel, partindo em alta velocidade para a casa do cantor, em Copacabana. O grupo de rapazes não desistiu e seguiu atrás provocando novos tumultos. Com várias escoriações no corpo e cortes na cabeça, Timóteo conseguiu abrigar-se em seu apartamento, mas os enfurecidos agressores invadiram a garagem do prédio, retiraram seu automóvel, o reviraram e o depredaram na rua. Muitas pessoas que passavam pelo local somaram-se aos depredadores do veículo. "Foi como uma reação em cadeia" - diz o jornal A Notícia - , “o público composto de gente pobre querendo vingar-se da riqueza do artista ostensivamente provada num carro importado por vários milhões de cruzeiros." (43) O novíssimo Oldsmobile conversível do cantor só não foi totalmente destruído porque um batalhão de choque da Polícia Militar chegou ao local, dispersando a multidão com bombas de gás lacrimogêneo. Para Agnaldo Timóteo, 1968 começou e acabou aí. Naquele ano os irmãos Dom e Ravel estavam com 24 e 22 anos de idade, respectivamente. Eram ainda dois obscuros artistas de música jovem, mas suas composições, na maioria românticas, começavam a ser gravadas por cantores da jovem guarda, como Jerry Adriani, Wanderley Cardoso e Wanderléa. O primeiro disco da dupla, um compacto simples, foi gravado na RCA em 1969 e uma das faixas, Desvio mental, trazia uma letra nonsense, repleta de aliterações (“Átrás das portas / moscas mortas..."), num arranjo revestido de guitarras e vozes distorcidas ao estilo dos Mutantes. O projeto da gravadora era lançar Dom e Ravel como os novos astros da tropicália -

aproveitando o vazio deixado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, que naquele ano partiram para um forçado exílio em Londres. Mas o disco foi um fracasso completo: ninguém comprou ou tocou ”Desvio mental”. "Fomos ridicularizados e caímos em grande frustração", recorda Dom. O segundo compacto, também lançado em 1969, não teve melhor sorte e o projeto tropicalista foi definitivamente arquivado. A dupla cearense só alcançou projeção nacional no fim de 1970, em conseqüência do sucesso da marcha ”Eu te amo meu Brasil”. Sobre a decretação do AI-5, nem Dom nem Ravel viveram aquilo como um acontecimento marcante em suas vidas. Ravel, por exemplo, afirma que quando ouviu pela primeira vez algumas pessoas comentando o episódio imaginou que a sigla tivesse alguma referência com a área musical. "Eu pensava que AI-5 fosse o nome de uma banda que estava aparecendo ou de um novo grupo vocal de samba, tipo MPB-4, alguma coisa mais ou menos por aí. Eu não tinha noção do que era, do que deixava de ser ou de onde vinha. Eu não sabia o que era aquilo, não." Ao lado de nomes como Dorival Caymmi, João Gilberto, Caetano Veloso e Raul Seixas, o cantor e compositor Eurípedes Waldik Soriano é um dos mais peculiares artistas que a Bahia já apresentou ao Brasil. De terno de linho, rolete, chapéu preto e óculos escuros, a imagem de Waldik e o som de seus boleros eram o símbolo maior da cafonice nos anos da ditadura militar. "Criei o meu estilo, um brasileiro americanizado, sob influência dos grandes artistas do passado e das guarânias. E com minha música, toco o povo, procuro chegar à sua alma." (45) Waldik Soriano estava com 35 anos em 1968, mas ainda não era um artista conhecido em todo o país. Os seus discos e shows, a maioria realizados em circos, feiras e cabarés, faziam sucesso apenas em algumas regiões do Norte-Nordeste. Foi só a partir de 1969, com o lançamento do bolero ”Paixão de um homem” – “Amigo / por favor leva esta carta / e entregue àquela ingrata / e diga como estou" (46), que o cantor baiano se tornou um nome de projeção nacional. E a tal ponto que, assim como ocorrera com os Beatles e Roberto

Carlos, o sucesso da sua música também o levou ao cinema, estrelando filmes como ”Paixão de um homem” e ”O poderoso garanhão”. (47) Indagado sobre o que fazia na noite em que o governo anunciou o AI-5, Waldik respondeu que tinha terminado um show em Itapetinga, interior da Bahia, e se dirigia para Vitória da Conquista a bordo do seu DKV. "Durante a viagem, com o rádio do carro ligado, eu ouvi o discurso de Brizola na Central do Brasil. Porra, aí eu ouvi o pau quebrar, na hora; foi na hora, rapaz! Aí eu cheguei em Vitória da Conquista. Quando eu saí de lá, já fui encontrando militares na estrada. Puta que pariu! Todo posto onde a gente passava. encontrava a polícia. E a gente era obrigado a parar. Aí os caras diziam: 'abra esse porta-malas aí, porra! 'Mas não tem nada, não, rapaz, eu sou apenas um cantor. Sou o Waldik Soriano. 'Não tem nada a ver, abra essa porra aí.' E tinha cada soldadinho sem-vergonha, chato." Evidentemente, ao fazer referência a Leonel Brizola e ao Comício da Central do Brasil, Waldik Soriano confunde a decretação do AI-5 em 1968 com fatos relacionados à crise política e ao golpe militar de 1964. Mas esta troca só revela a pouca identificação do compositor com o episódio de 1968. De certa forma, e como o próprio depoimento dele nos mostra, o golpe de Estado quatro anos antes foi muito mais visível para ele do que a decretação do AI-5. Conhecido como o "pequeno gigante da canção”, o cantor e compositor Nelson Ned d'Ávila Pinto estava com 21 anos em 1968. Mineiro de Ubá, cidade onde também nasceu Ary Barroso, desde 1962 Nelson Ned tentava a carreira artística no Rio de Janeiro, antecipando-se à rapaziada do "clube da esquina", seus colegas. Sim, antes de se profissionalizar, Nelson Ned freqüentava o apartamento dos irmãos Márcio e Lô Borges, no centro de Belo Horizonte, onde se reunia o grupo mineiro do qual fazem parte Milton Nascimento e Beto Guedes. "Nelsinho Ned também se sentia à vontade lá em casa. Além disso, todos nós admirávamos de verdade os prodigiosos talentos vocais daquele menino e sua tenacidade", afirma Márcio Borges no seu livro Os sonhos não envelhecem. A história do clube da esquina. (48) Foram vários os percalços enfrentados por Nelson Ned no início da

carreira. "Eu senti como era pesado o meu corpo pequeno. Eu não tinha cor, forma física, era apenas uma sombra branca para os produtores. Um simples anãozinho grotesco", desabafa. (49) Em 1964 ele gravou o seu primeiro disco, um compacto com a valsa Eu sonhei que tu estavas tão linda, na gravadora Philips, e, logo em seguida, o primeiro LP na mesma gravadora. Com o título Um show de 90 centímetros (nome de um antigo programa infantil que o cantor apresentava em Belo Horizonte), a capa do LP mostra Nelson Ned em pé, vestido de smoking e com uma fita métrica ao seu lado sugerindo a marcação dos 90 centímetros. Ele relata que, quando viu a capa do disco, imediatamente protestou: "Mas eu já tenho agora um metro e 12 centímetros de altura!". Ao que os homens da gravadora retrucaram: "Mas nós queremos explorar comercialmente esses 90 centímetros. Quanto menor você parecer ao público, melhor será para a promoção." (50) Apesar de toda a apelação da gravadora, o primeiro LP de Nelson Ned não alcançou nenhum sucesso e ele acabou sendo dispensado da Philips. O cantor prosseguiu tentando uma nova oportunidade em outras gravadoras, e em 1969 lançou pelo selo Copacabana um compacto com duas músicas que se tornaram imediatos sucessos nacionais: Domingo à tarde e a balada Tudo passará (51) - "Mas tudo passa / tudo passará / e nada fica / nada ficará..." - , composição que hoje conta com mais de 40 regravações em 10 idiomas. Sobre a noite do anúncio do AI-5 Nelson Ned também revela um total distanciamento. "O pessoal com quem eu convivia, ninguém era politizado. Eu não tinha essa informação, essa conscientização política que hoje eu tenho. Além de tudo, em 1968 eu estava muito absorvido pela minha carreira, querendo lutar e tal. O meu negócio era trabalhar, ajudar minha mãe e mandar dinheiro pra casa. Por isso que o AI-5 pra mim não foi importante. Aquilo era uma coisa de um universo muito distante. É como falar de uma sonda que está lá em Marte. O meu universo era outro."

Se, como definiu Zuenir Ventura, 1968 foi o ano que não terminou, isso deve ser aplicado aos artistas e intelectuais de formação de classe média

que naquele momento estavam envolvidos com o processo político brasileiro e "andavam com a alma incendiada de paixão revolucionária".(52) Para a maioria dos artistas românticos da nossa música popular, bem como para grande parte da população brasileira, 1968 foi o ano que não começou. E este fato nos remete à questão da pluralidade dos tempos históricos. Como enfatiza o sociólogo francês Michael Pollak, a História está se transformando em histórias - plurais e diferenciadas - até mesmo sob o aspecto da cronologia. O autor destaca que trabalhos de história oral na Alemanha têm apontado que cortes políticos consagrados pela historiografia tradicional, como a tomada do poder pelo Terceiro Reich em 1933, ou a criação da República Federal Alemã em 1949, não tinham sido vividos como tão marcantes pelos segmentos populares daquele país. Nas histórias individuais do povo alemão aparecem com muito mais destaque as datas de 1935 - quando pela primeira vez se assistiu à estabilização do emprego e da renda familiar - , e 1948 - ano da reforma monetária. Portanto, afirma Pollak, devemos estar atentos à existência de histórias plurais, de cronologias plurais em função de uma vivência diferenciado das realidades. (53)

Isto ajuda a explicar, no caso brasileiro, a pouca identificação dessa geração de cantores românticos com os acontecimentos políticos de 1968. É possível até dizer que eles assistiram à decretação do AI-5 também "bestializados”, sem compreender o seu significado.(54) E, no entanto, mesmo estando "desligados" da questão política - que é uma das esferas, entre tantas outras, da vida cotidiana - , a produção musical desses artistas vai denunciar o autoritarismo vivenciado pelos segmentos populares em nosso país. Isto porque o Estado ditatorial controlado pelas Forças Armadas era apenas uma das faces do autoritarismo presente na vida social brasileira daquele período. E neste sentido é importante também recorrer à análise de Marilena Chauí, que questiona uma determinada memória histórica que fala do autoritarismo no Brasil apenas como um regime político ou uma forma de governo que se impõe com a ruptura da ordem legal - os

chamados "regimes de exceção". A autora destaca que esta memória deixa na sombra o que é fundamental: que a sociedade brasileira, como sociedade, é autoritária. Ou seja, é uma sociedade marcada por profundas desigualdades sociais, que produz em seu interior uma legião de excluídos e consagra a individualidade como um fenômeno existente apenas da classe média para cima; é também uma sociedade na qual a estrutura fundiária produz o fenômeno da migração, do bóia-fria e do sem-terra; enfim, é uma sociedade onde há discriminação racial, sexual e de classe. E isto independentemente de estarmos vivendo nos chamados regimes de exceção ou nos chamados regimes democráticos. Assim, argumenta Chauí, embora os traços do autoritarismo tenham sido, sem dúvida, reforçados com o golpe de Estado de 1964, o autoritarismo no Brasil "não é exceção, nem é mero regime governamental, mas a regra e expressão das relações sociais". (55)

Pois é justamente este autoritarismo latente na sociedade brasileira o que será denunciado em diversos textos do repertório "cafona”. Autoritarismo que se expressa através do preconceito aos pobres, aos negros, aos homossexuais, às prostitutas, às empregadas domésticas, aos analfabetos, aos deficientes físicos e aos imigrantes nordestinos. E - importante destacar - autoritarismo que é vivenciado no cotidiano pelo público ouvinte desta música e pelos próprios compositores ao longo de suas trajetórias de vida. Os irmãos Dom e Ravel, por exemplo, afirmam que ao chegar a São Paulo sofreram muita discriminação por serem pobres e nordestinos. "E eu percebia isso quando tinha que fazer trabalhos escolares na casa de alguns colegas" - recorda Ravel - , "os meninos riquinhos entravam normalmente pela porta da frente, mas eu, eles me mandavam dar a volta e entrar pela porta dos fundos. Me colocavam assim numa posição bem inferior. E quando você é criança isso marca muito, né? E nos outros prédios da cidade acontecia mais ou menos a mesma coisa: sempre me mandavam entrar pela área de serviço. E eu nem era empregado daquele local, mas assim que eu chegava, me diziam: 'por

favor, entre lá pela área de serviço'." Ao falar sobre preconceito racial numa entrevista ao jornal O Pasquim, Agnaldo Timóteo revelou que não conseguia trabalhar em determinados clubes do Brasil porque o proprietário lhe confessava: "Não vamos contratá-lo porque você é um artista de cor. E isso não fica bem no nosso clube, entende?" (56) Nelson Ned também afirma que teve que enfrentar muitas barreiras para conseguir se impor como artista de sucesso no Brasil.

"Este é o país do preconceito" - argumenta ele” – ”o Brasil é o único pais do mundo que tem leis estigmatizadas tais como o negro para a cozinha, a mulher para a cama, o anão para o circo e o cego para pedir esmolas. E eu precisava mostrar para as pessoas que eu cantava e era pequeno, e não cantava porque era pequeno, porque eu nunca trafiquei com a minha estatura, nunca quis fazer da minha estatura uma arma de projeção. E quando você vence todas essas barreiras, e desestabiliza esse sistema preconceituoso, você passa a ser uma pessoa às vezes até indesejável, um espécime raro, observado com muita peculiaridade...." "...Outro dia eu estava até conversando com o Pelé sobre isto, porque realmente molesta, uma pessoa da estatura de um artista como eu ou da estatura de um Pelé, ter alcançado, dentro da nossa sociedade, o lugar que nós alcançamos. Isso incomoda, não está escrito no contexto do Brasil. E até hoje eu não sou respeitado no meu país, eu me faço respeitar, o que é diferente.'' (57) Independentemente da consciência explícita ou implícita deste autoritarismo, a produção musical desta geração de artistas constitui-se em documento que denuncia a falta de cidadania real das camadas populares e, além disso, também revela aspectos da sexualidade desviante que muito incomodaram o sistema repressivo do regime. E isso pode ser comprovado a partir do próximo capítulo, com a análise de um conjunto de canções que narra o cotidiano de determinados segmentos da sociedade (homossexuais, prostitutas, meninos de rua, mendigos, sem-

terra, imigrantes nordestinos e outros), que naquela época viviam à margem da ordem social estabelecida pelo regime militar no Brasil.

NOTAS SOBRE O CAPÍTULO "COMO UMA SONDA EM MARTE" (SEGUINDO A NUMERAÇÃO SEQUENCIAL CONTIDA NO TEXTO)

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34. Nelson Rodrigues. "O entendido, salvo pelo ridículo". In Ruy Castro (org.) À sombra das chuteiras imortais - crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 180. 35. Lançado no final de 1973, O homem de Nazareth aparece em 1º lugar na lista das gravações em compactos simples mais vendidos na semana de 26 de novembro a 1º de dezembro de 1973, no Rio. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos”Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp. 36. "Manifesto, repúdio, CPI – “arenistas e emedebistas unem-se contra a violência" - Folha de S. Paulo, 4-9-1968. 37. "Costa adverte: 'Faremos novas revoluções dentro da Revolucão"' - O Dia, 17-12-1968. 38. Cf. Humberto Werneck. "Gol de Letra". In Chico Buarque música e letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 82. 39. "Dois Geraldos se juntam e compõem o som do exílio” O Estado de S. Paulo, 5-8-1995. 40. "Só a classe A não ouve o grito de Agnaldo” , Correio da Manhã,

10-3-1970. 41. "Rezas da mamãe foram a salvação de Agnaldo Timóteo no linchamento do Leme" ”Ultima Hora, 17-12-1968. 42. "Timóteo não tem medo de Sinatra"”Folha de S. Paulo, 5-1-1980. 43. Agnaldo teme ficar cego de um olho após agressão"”A Notícia, 1712-1968. 44. "Veja o que restou dos cantores do milagre" - O Estado de S. Paulo, 18-5-1986. 45. Waldik Soriano - Quem sou eu para julgar Jesus Cristo? - A Notícia, 25-4-1973. 46. LanÇada em 1969, Paixão de um homem foi aos poucos galgando as paradas de sucesso nacional. Na relação dos compactos simples mais vendidos no ano de 1970, no Rio, a gravação de Waldik Soriano alcança o 2º lugar em novembro e dezembro. A mesma gravação ainda aparece em 6º lugar na relação dos 50 discos mais vendidos em 1971. Fonte: lbope”Pesquisa sobre vendas de discos”Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp; Nopem”pesquisa de mercado sobre venda de discos. 47. “Paixão de um homem” - produção de 1972, dirigida por Egydio Accio / “O poderoso garanhão” - produção de 1973 dirigida por Antonio B. Thome. 48. Márcio Borges. Os sonhos não envelhecem. A história do clube da esquina. São Paulo: Geração Editorial, 1996, p. 49. 49. “A angústia é minha única inspiração" - Amiga, 20-10-1970. 50. Nelson Ned d'Ávila Pinto. & Jefferson Magno Costa. O pequeno gigante da canção. São Paulo: Vida, 1996, p. 46. 51. O compacto simples com Tudo passará e Domingo à tarde aparece

em 1º lugar em vendagem nos meses de abril e mato de 1969, no Rio. Fonte: Ibope”Pesquisa sobre vendas de discos”Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp. 52. Zuenir Ventura, op. cit., p. 16. 53. Cf. Michael Pollak. "Memória e identidade social". In Estudos históricos. Rio de Janeiro: Cpdoc/FGV, V. 5, n" 10, 1992, pp. 209-210. 54. Na célebre carta de Aristides Lobo, publicada três dias após a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, ele afirma que "o povo assistiu áquilo bestializado, sem saber o que significava, julgando tratar-se de uma parada". Apud Leôncio Basbaum. História sincera da República (1889-1930). São Paulo: Alfa-Omega, 1981, p. 18. 55. Marilena Chauí, op. cit., pp. 60-61. 56. “gnaldo Timóteo (de Carahnga)" - O Pasquim, 21 a 27-11-1972. 57. Programa Show da Madrugada - Rádio Globo, 24-8-1991.

ODAIR JOSÉ NA MIRA DA REPRESSÃO A partir do período do AI-5 - quando o ato de cantar e compor tornou-se efetivamente caso de polícia no Brasil - , foram produzidos diversos textos focalizando a ação da censura sobre a nossa música popular. E, invariavelmente, esses textos, tanto os produzidos pela mídia (através de reportagens em jornais e revistas) como os de origem acadêmica, (58) procuram ressaltar de que maneira a obra de compositores como Chico Buarque, Gonzaguinha ou Milton Nascimento foi mutilada ou arquivada por força da censura federal. Já a censura sofrida no mesmo período por artistas como Odair José, Waldik Soriano, Luiz Ayrão, Benito di Paula ou Dom & Ravel não é sequer mencionada. Em conseqüência disso, temos cristalizada, no campo da música popular, uma memória que associa o período da repressão política no Brasil apenas aos cantores/compositores da MPB. Uma obra que contribuiu para propagar esta visão foi ”Músíca popular: de

olho na fresta”, do ensaísta Gilberto Vasconcelos. Publicado em 1977, o livro reúne um conjunto de textos que procura acentuar o papel de resistência desempenhado naquele momento por diversos nomes da MPB que, dentro da tradição brasileira da malandragem, representariam, segundo o autor, os "malandros" dos novos tempos. Baseando-se nos versos do samba “Festa Imodesta”, composição de Caetano Veloso que tematiza a problemática da censura - "Tudo aquilo que o malandro pronuncia / que o otário silencia / toda festa que se dá ou não se dá / passa pela fresta da cesta" - , Vasconcelos defendia como inevitável naquela conjuntura o recurso da linguagem da fresta: aquela de que se vale o compositor popular para malandramente driblar a censura imposta pelo regime. “A manha da malandragem ganha hoje” - dizia ele - "um novo significado histórico: o compositor malandro já não é mais aquele de lenço no pescoço, navalha no bolso, como no tempo de Noel; mas, sim, aquele que sabe pronunciar, ou seja, que sabe ludibriar o cerco do censor. E, desde Napoleão, sabemos que toda censura é inepta: apesar de tudo, sempre passa, como nos diz sabiamente “Festa Imodesta”, alguma coisa pela fresta. Aos compositores críticos, o samba de Caetano traz uma sutil mas importante advertência: dizer ou não dizer simplesmente é, nos dias de hoje, uma falsa alternativa. O importante é saber como pronunciar; daí a necessidade do olho na fresta da MPB." (59) Mas Gilberto Vasconcelos define e nominalmente separa aqueles que seriam os artistas "malandros" (Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Luiz Melodia, Jards Macalé, Miguel Gustavo), dos "picaretas" (Dom & Ravel, Benito di Paula, Luiz Ayrão, Wando, Gilson de Souza e outros), que segundo ele exibem "uma visão cor-de-rosa da nossa sociedade" e não fazem "senão reforçar os valores da cultura oficial".(60) Temos assim sendo cristalizada a visão que apresenta os compositores da MPB como símbolos da resistência, em oposição aos "cafonas" como símbolos do conformismo social. O trabalho do historiador Alberto Moby, publicado em 1994, comparando a censura à música popular em dois períodos explicitamente autoritários, Estado Novo e Regime Militar, não foge à tendência predominante. Ao abordar os anos do AI-5, sua análise se prende tão-somente a nomes como Chico Buarque, Gonzaguinha e João Bosco, porque, segundo ele, estes artistas estavam comprometidos com a denúncia do autoritarismo

enquanto que "os representantes das demais denominações em que foi dividida a música popular brasileira ou ignoravam tais preocupações ou nunca deixavam que interferissem no seu trabalho artístico". (61) Entretanto, o que será demonstrado aqui é que o aparato repressivo que se abateu sobre a música e o músico brasileiro durante os anos mais duros do governo militar não atingiu apenas os figurões da MPB, embora estes fossem, até por sua visível militância política, muito mais vigiados e censurados. Mas os "cantores das empregadas" também foram vítimas da repressão, e em algumas vezes também tiveram que malandramente valer-se da linguagem da fresta para ludibriar o cerco do censor. E para melhor compreender este embate talvez seja útil recorrer ao que o sociólogo inglês Crane Brinton definiu como "reinado de terror e virtude". Ao analisar os períodos de maior repressão política que se seguiram aos processos revolucionários na Inglaterra de 1640, na França de 1789 e na Rússia de 1917, o autor observa que em cada um deles a classe dirigente parece ter desejado impor "na vida aqui na Terra, parte da ordem, disciplina e desprezo pelos vícios fáceis que foram os objetivos dos calvinistas". Assim, durante o governo jacobino na França "houve uma tentativa vigorosa de limpar Paris, fechar casas de tolerância, antros de jogo e acabar com a embriaguez. A virtude era a ordem do dia. Não se tolerava nem a preguiça". Da mesma maneira, durante o processo revolucionário russo, "os bolcheviques proibiram a bebida nacional, a vodca, e quase todos os primeiros sovietes tomaram providências contra a prostituição, o jogo, a vida noturna", não sendo permitida a publicação de fotografias de mulheres seminuas ou referência à pornografia na literatura ou em qualquer outra forma de arte. (62) Guardadas as especificidades do caso brasileiro, é possível identificar que, no período que se seguiu à decretação do AI-5, as autoridades militares de nosso país também pareciam imbuídas desta tentativa de implantação de um "reinado de terror e virtude".

Em 1972, por exemplo, o ministro das Comunicações Higyno Corsetti ditava normas para a TV e defendia a proibição de programas que "exaltem, direta ou indiretamente, o erotismo, o alcoolismo e as inversões sexuais".(63) Enquadrado no último item, o costureiro Clodovil foi retirado do júri da Discoteca do Chacrinha, na TV Globo. O Programa Silvio Santos também enfrentou barreira semelhante. "Eu tinha um homossexual no júri, e o coronel Erasmo Dias” , acho que foi ele, ”ligou pra mim e falou que eu estava dando mau exemplo. Tirei o jurado do ar", afirma o apresentador.(64) Principalmente durante os chamados "anos de chumbo", que compreendem todo o período do governo Médici (1969-1974), a repressão moral caminhou passo a passo com a repressão política. A referência explícita à sexualidade era identificada como um ato de subversão. E além de programas de TV, diversos filmes, livros, revistas, canções e até obras de gênios da pintura foram proibidos ou mutilados pela censura. Em 1973, foi impedido de circular no Brasil um álbum com a reprodução de 347 gravuras eróticas de Picasso. Como enfatiza o general Antônio Bandeira, que na época dirigia a Polícia Federal, "a nossa preocupação era moral. Mulher pelada não podia". (65) Nem pelada e muito menos excitada. E um caso que exemplifica isto é o que envolveu a canção erótica “Je T’Aime... Moi non Plus”, do compositor francês Serge Gainsbourg. Sonorizada com gemidos, suspiros e sussurros, a gravação narra o ato sexual de um casal - nas vozes da atriz Jane Birkin e do próprio Serge Gainsbourg - tendo ao fundo um órgão e uma discreta percussão de bateria: "Je t'aime, ohhhhh! je t'aime... moi non plus... ohhhhh! mon amour..." Lançada no Brasil pela gravadora Philips em agosto de 1969, a balada conseguiu imediato sucesso de venda e de execução em rádio, confirmando a repercussão obtida em outros países. A indústria cultural, que até aquele momento já havia produzido romances, filmes, revistas e vários outros produtos eróticos, ainda não havia descoberto a canção erótica, ou pornofônica, lacuna que a composição de Gainsbourg veio preencher.

É de se imaginar o misto de excitação, arrepios e reação de pudor que aquela obra de sexo sonoro explícito provocou em grande parte do público brasileiro em 1969. Pegos no contrapé, já que não havia censura prévia para canções em idioma estrangeiro, os agentes da repressão se reuniram e, movidos pela reação de repúdio que a música despertou nos setores mais conservadores da sociedade, determinaram a imediata proibição do disco de Serge Gainsbourg em todo o país. E não foi apenas um veto à sua execução pública e radiodifusão. Os exemplares à venda nas lojas foram recolhidos e o Exército chegou a ocupar a fábrica da Philips, no Alto da Boa Vista, no Rio, para impedir a prensagem de novas cópias. "Me lembro que era um sábado de manhã, e os telefones de minha casa não paravam de tocar", afirma André Midani, diretor-geral da gravadora. “Alguém me perguntou se eu estava sabendo que a fábrica fora ocupada pelo Exército. Eu falei,'isto é maluquice, não pode ser verdade'. Fui correndo pra lá e quando cheguei tinha tanto soldado que eu não conseguia nem passar." Na época comentou-se até que o governo iria cancelar o registro da gravadora Philips no Brasil (fato que muito repercutiu na imprensa da Holanda, sede da empresa). E toda esta confusão ocorreu no momento em que outras canções eróticas, no rastro do sucesso de Je t'Aime... Moi non Plus, eram preparadas para ser lançadas no mercado brasileiro” caso, por exemplo, da balada “Je t'Adore”, da Musidisc, que foi proibida e apreendida pouco antes da sua distribuição nas lojas. Por via das dúvidas, o governo decretou que a partir dali a censura prévia valeria para canções em qualquer idioma. No ano seguinte, a Philips voltou a enfrentar mais um sério problema com a censura, desta vez, porém, em relação ao samba “Apesar de você”, de Chico Buarque, que num primeiro momento também foi liberado, chegou às paradas de sucesso, sendo depois decretada a sua proibição e conseqüente recolhimento das lojas. Mas o que se quer enfatizar aqui é que, embora a memória produzida sobre aquele período destaque apenas a repressão política - que no campo da música popular tem em “Apesar de você” um exemplo freqüentemente citado - , vê-se pelo caso “Je t'Aime... Moi non Plus” que a repressão

moral atuava com a mesma intensidade. No rastro da chamada "defesa da moralidade e dos bons costumes", diversos artistas populares tornaram-se alvos da censura do regime. Como demonstram episódios que envolveram o cantor Odair José. "O que rolava antigamente na música popular brasileira era o namoro no portão sob a luz do luar" - diz ele – "e eu vim falando de cama, de pílula, de pula, de empregada doméstica, porque essa é a realidade do Brasil. E eu sou um cantor de realidade. Eu não sou um cantor de sonhos. Eu sempre digo isto para as pessoas: não ouçam meus discos esperando ouvir sonhos; vocês vão ouvir a realidade. Então foi por isso que eu me tornei um artista polêmico e a censura começou a me proibir." Desde a repercussão de suas primeiras gravações de sucesso - “Vou tirar você desse lugar”, “Esta noite você vai ter que ser minha” e “As noites que você passou comigo”, Odair José já vinha provocando inquietação nos vigilantes do "reinado de terror e virtude". Algumas dessas canções tiveram palavras ou frases inteiras vetadas pela Censura. Mas foi a balada ”Em qualquer lugar”, composição de 1973 , a primeira totalmente interditada pelos agentes da repressão. E o motivo aparece logo na primeira estrofe da letra: "Se você quiser / a gente pode amar / no meio deste mundo / em qualquer lugar / dentro do meu carro / parado em um jardim / debaixo do chuveiro / você sorri pra mim..." Mais adiante, no refrão, o texto enfatiza que "a gente ama até demais / e quando se tem um grande amor / em qualquer lugar a gente faz".

Num parecer datado de 29 de abril daquele ano, o diretor do Serviço de Censura de Diversões Públicas da Guanabara justificou a proibição afirmando que o texto da música "é descritivo de atitudes comportamentais alusivas ao desejo sexual". O advogado da Phonogram, João Carlos Muller Chaves, entrou com recurso na Divisão de Censura em Brasília e anexou uma outra letra da canção, com pequenas modificações no texto original. Por exemplo, o verso "em qualquer lugar a gente faz" Odair abrandou para "em qualquer lugar a gente é feliz".

Mas a resposta da Censura, num documento assinado a seis mãos, confirmou o veto anterior. “Á alteração foi considerada por nós irrelevante, face à permanência de atentado ao pudor e exaltação ao amor livre". O cantor e o advogado não se deram por vencidos e decidiram entrar com novo recurso, que também foi mais uma vez indeferido sob o argumento, agora mais enfático, de que a composição apresenta uma "mensagem negativa", numa "linguagem insinuante", com um 'personagem licencioso" que "convida a sua amada para a prática do sexo em vários lugares... em flagrante desconhecimento do decoro público. E assim, preocupados com a lassidão dos costumes, os censores vetaram, na íntegra, a balada “Em qualquer lugar”que o autor só conseguiu gravar doze anos depois, com o título de “Quando a gente ama”. Problema semelhante Odair José enfrentou em 1974 com a composição “A Primeira Noite de Um Homem”, que seria a principal faixa de seu LP "Lembranças”. Inspirada no título brasileiro do filme que revelou o ator Dustin Hoffman, a canção descrevia o desejo, a ansiedade e o nervosismo que envolvem um jovem em sua primeira relação sexual. “Á primeira noite de um homem / é uma noite tão confusa / é uma noite tão estranha... / ...meu desejo era tanto / que eu nem sabia por onde começar / o meu corpo esquentava / eu tremia / não conseguia nem falar..." Encaminhada ao Serviço de Censura de Diversões Públicas da Guanabara, a letra de Odair José recebeu o carimbo de "vetada", num parecer datado de 26 de março de 1974. O advogado da Phonogram recorreu à Divisão de Censura em Brasília - e novo parecer, datado de 23 de abril, confirmou o veto com a justificativa de que a composição "trata de um assunto totalmente inconveniente" e "como a música é de índole popularesca e seria consumida por público jovem, torna-se ainda mais contra-indicada sua liberação. A direção da Phonogram entrou em estado de alerta porque o LP de Odair José já estava praticamente pronto para ser lançado e todos na gravadora apostavam no sucesso de ”A primeira noite de um homem", que seria o carro-chefe do novo disco. Para resolver o impasse decidiu-se que o próprio cantor deveria ir a Brasília conversar pessoalmente com os censores e tentar a liberação da música. “A empresa pensou assim: 'vai lá, e o que eles apontarem de errado na letra, você muda alguma coisa'. Eu fui com essa intenção ".

E, segundo Odair José, ele conversou com algumas autoridades do governo, até mesmo com o todo-poderoso chefe do Gabinete Civil do governo Geisel, general Golbery do Couto e Silva. "Encontro com general você sabe como é que é, né? Eu fui acompanhado de um advogado e me lembro que no avião, durante a viagem, ele ia me orientando: 'Não responda nada, não questione nada, aceite tudo o que o general disser.' Chegando lá eu falei com o Golbery eu expliquei que a intenção da música não era corromper a juventude, que eu até poderia mudar alguma coisa na letra e tal, mas ele me disse: 'Não! Está proibida a idéia'." (69) Assim, apesar do esforço da gravadora e do próprio artista, a canção “A primeira noite de um homem” não pôde ser lançada. Foi arrancada do disco, somando-se ao rol de canções banidas no tempo do regime militar. A canção "A Primeira noite de um homem", carimbada com o veto da Censura

Mas, talvez para provar ao general Golbery que é difícil proibir uma idéia, Odair José arriscou o seguinte estratagema: ele aproveitou a melodia da canção vetada, fez pequenas alterações na letra, e com o título de “Noite de desejos”, enviou para apreciação da censura uma balada que descreve o desejo, a ansiedade e o nervosismo que envolvem um jovem em sua

primeira relação sexual: "E foi então que aconteceu.../... eu tinha medo e não queria / mas meu desejo era maior.../... foi naquela noite a primeira vez / e eu nunca esqueci.../... o meu corpo esquentava / eu tremia. " Liberada sem cortes - os censores imaginaram tratar-se de uma outra idéia “Noite de desejos” ocupou a vaga deixada por “A primeira noite de um homem” naquele mesmo LP de 1974. "Eu enganei o general", exulta hoje Odair José. E se isto é um fato, quem mais, na história brasileira, conseguiu enganar o astuto general Golbery, que na concepção de Glauber Rocha era um "gênio da raça” ? Quando os agentes da repressão avançaram sobre esta balada de Odair José, o cantor já era uma figura carimbada nos aparelhos censórios. E grande parte disto se devia à polêmica provocada no ano anterior pela gravação de “Uma vida só (pare de tomar a pílula)”, composição que também foi proibida em todo o Brasil, e, como veremos, não apenas por questões de ordem moral. A canção de Odair José atingia também aspectos de caráter político-social que incomodavam as autoridades do regime militar brasileiro. E com isso, diz o cantor, "eles ficaram grilados comigo e eu grilado com eles". “Uma vida só” ou “Pare de tomar a pílula”, subtítulo com o qual ficou mais conhecida, foi composta por Odair José a partir de uma sugestão do locutor Carlos Guarani, na época diretor artístico da Rádio Globo. Ele dizia que seria muito importante naquele momento o compositor fazer uma canção abordando a questão da pílula anticoncepcional, tema até então tratado com certo tabu na sociedade brasileira. "Naquela época" - diz ele "se você saísse com um casal de amigos e discretamente perguntasse: 'Olha, que pílula você está usando, porque a que a minha esposa usa está dando tontura e tal', a mulher do seu amigo ficava vermelha e você era tido como indelicado, inconveniente. E quando você ia comprar um anticoncepcional para sua esposa na farmácia, se encontrasse uma vendedora no balcão, você não comprava. Ia para outra farmácia onde tivesse um homem para o atender." Um dos mais importantes e definidores fatos do século XX, a criação da pílula anticoncepcional é obra de pesquisadores norte-americanos, que a lançaram no mercado em 1960. No ano seguinte, as primeiras unidades eram importadas por algumas brasileiras dispostas a substituir os tradicionais métodos anticoncepcionais (coito interrompido, tabela, lavagens, preservativos, cremes, geléias).

Tornando dispensáveis as remessas periódicas do exterior, em meados dos anos 60 sete laboratórios já fabricavam pílulas no Brasil, embora, tolhidos pela legislação, que proibía "anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto ou evitar a gravidez", eles não usassem nas embalagens a palavra "anticoncepcional": as pílulas seriam para regular a menstruação. Legalmente ninguém podia usar métodos anticoncepcionais no Brasil. Por tudo isso, a sugestão do locutor Carlos Guarani agradou a Odair José que gostava de abordar temas fortes e polêmicos - , mas ao mesmo tempo o compositor considerou a tarefa difícil de ser realizada. Afinal, como escrever uma música falando de hormônios sintéticos que impedem a ovulação? Ele não conseguia definir que tipo de encaminhamento dar ao tema e também não achava fácil encontrar palavras para rimar com "pílula". De qualquer forma, a idéia não foi descartada e durante uns seis meses ficou martelando na cabeça de Odair José. A inspiração para compor a música veio numa certa noite, depois de uma de suas habituais visitas ao Castelo da Lagoa, bar da Zona Sul carioca que havia se transformado numa espécie de escritório do cantor. Odair José costumava sempre aparecer por ali ao final da tarde para tomar o seu vinho e bater papo com alguns amigos. Numa daquelas tardes, em março de 1973, por lá também apareceu o compositor Antônio Carlos Jobim, "de bermuda branca, camisa branca, chapéu branco e chinelo branco", recorda Odair. Tom sentou-se à mesa com Chico Recarey, o anfitrião do bar, onde também já estavam Odair José e o ator Cláudio Cavalcanti, na época um dos astros da novela Cavalo de aço. Como sempre ocorria nestas ocasiões, Tom Jobim, mestre na arte do bate-papo, tornava-se o centro da conversa que, invariavelmente, rondava sobre questões ecológicas. Naquele momento mais ainda, pois o autor de “Wave” havia acabado de gravar o LP "Matitaperê", espécie de manifesto ecológico que, além da faixa-título (nome de um pássaro do sertão), traz canções como “Águas de março”, “Nuvens douradas” e “Tempo de mar”. E assim, entre um uísque e outro, Tom discorreu longamente sobre as queimadas, os cortes de madeiras (andirobas, jequitibás), a poluição dos rios e o extermínio de pássaros e animais (uacaris, jaguatiricas, matitaperês); enfim, falou da vida que já não há.

Odair José saiu do Castelo da Lagoa tarde da noite e, mais uma vez, como vinha acontecendo nos últimos seis meses, lhe veio à mente a sugestão de Carlos Guarani para que fizesse uma canção sobre a pílula anticoncepcional. Desta vez, porém, o cantor conseguiu dar um encaminhamento ao tema, e ao longo do trajeto entre o Castelo da Lagoa e o seu apartamento, em Botafogo, começou a compor os versos e a melodia da balada “Uma vida só”, que em uma de suas estrofes lamenta "Todo dia a gente ama / mas você não quer deixar nascer / o fruto desse amor..." e no refrão implora: "pare de tomar a pílula / porque ela não deixa nosso filho nascer / pare de tomar a pílula / pois ela não deixa sua barriga crescer." (70) A primeira pessoa da gravadora a quem Odair José mostrou a nova composição foi Jairo Pires, seu diretor artístico, que de forma entusiástica exclamou: "Pó, Odair, pelo amor de Deus, vamos gravar isso amanhã." Mas o disco anterior do cantor continuava rendendo no mercado e pelo cronograma da Phonogram ainda não era o momento de se lançar material novo. Convocou-se então uma reunião com o presidente da empresa, André Midani, e com o gerente comercial, Heleno de Oliveira, que ao ouvirem “Pare de tomara pílula” também não tiveram dúvidas: a composição devia ser gravada e lançada imediatamente. Incluída no lado A de um compacto simples, Pare de tomar a pílula tornouse um dos mais fulminantes sucessos da história da música popular brasileira. "Eu acho que lancei esta música numa quarta-feira, na quinta ela já estava em primeiro lugar nas paradas." Registre-se que não foi Odair José o primeiro a falar de pílula anticoncepcional na nossa música popular: este pioneirismo deve-se provavelmente a Caetano Veloso. Embora o compositor baiano afirme em seu livro “Verdade tropical” que ele foi o primeiro a mencionar a CocaCola numa letra de música no Brasil - o que não corresponde exatamente à verdades - , observo que neste campo Caetano Veloso deve ter sido o primeiro a falar de pílula anticoncepcional, e com um sentido semelhante ao de Odair José. Na canção Anunciação (parceria de Caetano com Rogério Duarte, lançada em 1967), o narrador exorta à mulher em um dos versos: "Maria, não te

iludas com pílulas/ou outros métodos..." Mas, indiscutivelmente, foi com a canção de Odair José que a pílula chegou ao topo do sucesso. E o que mais surpreendia aos que ouviam a canção pela primeira vez - e por certo contribuiu para a sua enorme repercussão - foi o encadeamento temático dado pelo compositor. Numa época em que a pílula começava a se popularizar e que diversas reportagens em jornais e revistas falavam das vantagens do moderno método anticoncepcional, surgia uma canção no rádio dizendo "pare de tomar a pílula". Isto era o inusitado. É provável que o próprio Carlos Guarani, ao sugerir o tema, imaginasse que Odair José fosse narrar a história de um rapaz apaixonado que defende o uso da pílula para melhor aproveitar os momentos de amor. Mas foi justamente este encadeamento temático da canção o que mais incomodou as autoridades governamentais da época e provocou a proibição da música em todo o Brasil. A gravação chegou ao sucesso no momento em que o regime militar patrocinava uma entidade chamada Bemfam (Sociedade Civil de BemEstar Familiar no Brasil), que desenvolvia uma campanha de controle de natalidade entre as mulheres de famílias de baixa renda e se empenhava na farta distribuição de pílulas anticoncepcionais e dos chamados DIU (dispositivos intra-uterinos).(72) Orientada por organismos norte-americanos e financiada com verbas do exterior, do governo federal e de grupos particulares, a Bemfam tinha postos instalados em diversas cidades brasileiras, principalmente nas regiões mais pobres do Norte-Nordeste, e folhetos e cartazes com a mensagem "tome a pílula com muito amor". (73) O método era novo, a idéia, não. O autor intelectual do controle de natalidade foi o reverendo inglês Thomas R. Malthus, que em 1798 publicou o seu famoso Ensaio sobre o principio da população, no qual ele advoga a tese de que os pobres seriam os principais responsáveis pela pobreza. A euforia que a teoria social malthusiana despertou na aristocracia inglesa de seu tempo chegou ao século XX. Em 1970 o presidente do Banco Mundial, Robert McNamara, recomendava o uso da pílula como o remédio necessário para curar a miséria dos povos do Terceiro Mundo. No Brasil tudo isto era traduzido e encampado pela Bemfam. Num boletim publicado em 1973, a entidade justificava o seu trabalho com o argumento de que era preciso frear no Brasil a proliferação da "infância

abandonada economicamente" que contribui "para uma maior poluição, não só sanitária, como também social, que se reflete nos índices de criminalidade". Em outro comunicado falava da necessidade de se evitar a propagação de "focos críticos, como, por exemplo, as favelas cariocas". (74) Justificativa semelhante aparecia nos discursos dos governadores de estado com os quais a Bemfam havia assinado convênios. Ao inaugurar um posto de distribuição de pílulas em Seridó, Rio Grande do Norte, o governador Cortês Pereira advertia aos moradores que "jogar filhos no mundo para que eles se arrastem pela vida é ferir a dignidade humana". E perguntava (como se aquela população não soubesse): "Sabe lá o que é ouvir o grito de um filho pedindo pão e não ter pão para dar?" Por fim, ele exortava às pobres mulheres ali presentes a tomar a pílula porque "assim, vocês estarão fazendo a coisa mais certa da vida, evitando ter filhos sofridos e angustiados" (75) Por trás desses discursos estava a idéia básica que norteava as elites brasileiras naquele momento: em vez de dividir o bolo, tentava-se diminuir o número de bocas dispostas a comê-lo. Mas com o lançamento da música de Odair José armou-se o cenário para um embate digno das melhores trincheiras: de um lado, uma campanha apoiada pelo governo militar pedindo à população "Tome a pílula"; de outro, uma canção do rádio dizendo "Pare de tomar a pílula". Provavelmente alertado para o que poderia ser uma espécie de conclamação à desobediência civil e também porque em um "reinado de terror e virtude" não são toleradas referências explícitas à sexualidade, o governo decretou a proibição do disco de Odair José em todo o território nacional. É um dos casos clássicos da repressão do período da ditadura militar: a canção, que ocupava os primeiros lugares das paradas, foi silenciada de um dia para o outro. Foi proibida a sua execução pública em todos os meios de comunicação, serviços de alto-falantes e casas de espetáculo. Entretanto, como era comum acontecer na época, durante os shows o público solicitava aos artistas canções que estavam proibidas.

Nas apresentações de Chico Buarque, por exemplo, a platéia universitária pedia para ele cantar Cálice ou Apesar de você; e Chico Buarque cantava. Nos shows de Odair José pelos subúrbios e cidades do interior, a massa exigia que ele cantasse Pare de tomar a pílula; e Odair José também cantava. Um desses episódios ocorreu na cidade de Colatina, interior do Espírito Santo. Ao chegar ao ginásio para realizar o show, Odair José já se deparou com agentes da Polícia Federal que ali se encontravam para recordá-lo de que a canção tinha a sua execução pública vetada. "Já estou sabendo. Vocês podem ficar tranqüilos que eu não vou cantar esta música", disse o cantor aos policiais. Mas durante o espetáculo, com o ginásio completamente lotado, o público percebeu a demora de "Pare de tomar a pílula" e começou a pedi-la insistentemente. E de nada adiantaram as argumentações do cantor. "Eu dizia pro povo: 'Me entendam, por favor, eu não posso cantar esta música, ela está proibida e os homens estão aí atrás.' Mas o povo não queria saber e continuou pedindo... e eu terminei cantando." ** E Odair José cantou daquela vez como se fosse a última. Resultado: no fim do show ele foi detido e conduzido à delegacia de Colatina para prestar depoimento e ouvir mais uma ameaça dos agentes da repressão. "Eu fui levado num carro da Polícia Federal e chegando lá eles me disseram: 'Pela trigésima vez queremos lhe comunicar que você não pode cantar a música da pílula; se cantar novamente vamos ter que retê-lo. Você está desrespeitando as leis do país."' Esse desrespeito às leis do país dos generais efetuado por Odair José, por Chico Buarque e por outros compositores da época, constitui mais um dos capítulos da resistência do músico popular às arbitrariedades do período da ditadura militar no Brasil. Mas no caso específico de Odair José, este embate vem também acompanhado de algumas contradições, como a que aparece no diálogo que ele travou com um alto oficial do Exército, no Rio de Janeiro, ainda em consequência da proibição de Pare de tomar a pílula. O cantor recorda que,

lá pelas tantas, depois de ouvir o militar fazer seu proselitismo contra a canção, não se conteve e desabafou. "Poxa, general, mas pílula é uma coisa normal. É engraçado, o senhor permite o Ney Matogrosso e os Secos & Molhados fazerem uma proposta de gay num show no Maracanãzinho e não permite que eu faça uma proposta de homem?! O senhor é gay? O exército é gay? Eu fiz essa pergunta ao general." Esta atrevida intervenção do cantor não poderia mesmo passar sem uma resposta do militar. "Ele mandou eu me retirar da sala. Ou melhor, ele me respondeu de uma forma que o advogado que estava comigo me olhou e disse 'é hora de sair'. Mas o general falou coisas do tipo 'o senhor não é grato', 'se não está satisfeito que mude do país', esse papo todo. Aí eu fiquei até meio assustado." Depois deste diálogo cara a cara com o "Brasil: ame-o ou deixe-o", Odair José resolveu deixar o país e partir para uma temporada na Inglaterra. Orientado pelos dirigentes de sua gravadora, ele alugou um apartamento em Londres e durante mais ou menos um ano ele vinha ao Brasil e voltava para lá algumas vezes. "Na medida em que aquilo que eu fazia era proibido, me restava fazer o quê? Londres foi uma opção. Já que eu tinha que ir para algum lugar, fui para Londres." É interessante constatar que mais uma vez a terra dos Beatles e dos Rolling Stones recebia um compositor da música popular brasileira às voltas com problemas com o regime militar. Primeiro foram Caetano Veloso e Gilberto Gil, após o período de prisão e confinamento em 1969. Agora era a vez de Odair José. Segundo o cantor, na época foi até enviada uma carta à gravadora Phonogram sugerindo que a empresa não gravasse mais com ele: “A carta foi mandada ao André Midani, que era o presidente da companhia. O André me mostrou a carta e até riu daquilo." De uma maneira geral, entre os setores mais conservadores da sociedade, Odair José era acusado de atentar contra a tradição, os bons costumes e a família brasileira. O que nos leva a refletir que este "reinado de terror e

virtude" não foi simplesmente imposto de cima para baixo, mas contava com o respaldo de segmentos significativos da sociedade. Basta dizer que uma das primeiras vozes a pedir a proibição da música de Odair José foi a de Chacrinha, que, ao comentar o lançamento do disco em sua coluna no jornal carioca A Notícia, classificava como "simplesmente horrível e pornográfica a letra desta tal de Pílula" e reclamava: "Não dá para entender, realmente, como é que a Censura deixa passar uma letra dessa natureza." Esta "buzinada" do Velho Guerreiro deve ter repercutido entre os empresários da área de comunicação, porque três dias depois ele informava que "as próprias emissoras de rádio resolveram, elas mesmas, censurar o disco de Odair José". (77) Constata-se aí que antes da censura oficial do regime, “Pare de tomar a pílula” já se deparava com o sinal fechado imposto por alguns setores da mídia. E se até mesmo o Chacrinha - o espalhafatoso e anárquico apresentador da televisão brasileira - cobrava a censura para a música de Odair José, o que dizer daqueles segmentos pretensamente mais sofisticados da sociedade, para os quais o próprio Chacrinha e suas chacretes deviam ser banidos do vídeo? Aliás, é curioso constatar este aspecto ambíguo e paradoxal do comunicador Abelardo Barbosa, que se posicionou naquele período como mais um vigilante da moralidade e dos bons costumes. Em Julho de 1973, por exemplo, ele implicou com a capa de um disco de Maria Bethania, alertando que "a censura precisa tomar cuidado" porque "se as revistas de nus foram proibidas, como é que sai um LP com a Bethania de busto todo nu? Se a coisa continuar assim, ao invés de discos dentro do LP, só teremos mulheres peladas, despidas, nuas!" (7) Uma semana depois Chacrinha voltava a reclamar, desta vez tendo como alvo a capa do LP "Índia" em que Gal Costa aparece como uma nativa vestida de tanga. E, cada vez mais tomado de um furor moralista, Chacrinha também apregoava que o conjunto Secos & Molhados, o maior sucesso daquela temporada, "deveria ser proibido pela Censura e pelo Juizado de Menores" porque "é rebolativo, erótico e muito do bichânico", especificando que "Ney Matogrosso, o líder do trio, é muito mais comprometedor, mais erótico do que qualquer travesti".(79)

Alguns dias depois, quando a Censura, atendendo a insistentes apelos, limitou os movimentos e requebros de Ney Matogrosso no vídeo, o Velho Guerreiro exultou: "Bem feito, prá tomar jeito!"(80) É óbvio que Chacrinha não estava sozinho nesta cruzada. Ele representava (e formava) a opinião de amplos setores da nossa sociedade. O advogado João Carlos Muller Chaves, que na época se empenhava contra a proibição dos discos dos artistas da Phonogram, afirma que os órgãos de repressão costumavam receber várias cartas criticando a liberação de determinadas gravações. Ele cita o caso de Minha história, versão de Chico Buarque para a canção italiana "4-3-1943 (Gesubambino)", de Lucio Dalla, que narra a história de um menino chamado Jesus que a mãe "ninava cantando cantigas de cabaré". Houve vários manifestos de entidades religiosas protestando contra a liberação desta música por entenderem que nela Jesus Cristo apareceria como filho de uma prostituta. João Carlos Muller recorda que certa vez um dos censores chegou a lhe confidenciar: "Olha aí, João, você vem aqui defender músicas proibidas, mas nós recebemos mais críticas por liberar do que por vetar." Na opinião do advogado, havia realmente um segmento forte, centrado na classe média, que desejava, apoiava e cobrava a censura. No caso específico de “Pare de tomar a pílula” a ação repressiva era motivada também por interesses de ordem econômica. Temeroso do efeito que a mensagem da música poderia ter sobre a vendagem do anticoncepcional, um grande laboratório farmacêutico procurou Odair José com o objetivo de comprar os direitos de sua composição para, certamente, engavetá-la. (81) Com a negativa do cantor, o laboratório partiu para o uso da força, usando seu poder de pressão sobre a mídia, como informava na época Ronaldo Bôscoli em sua coluna na Ultima Hora: “A Pílula está sendo podada nas rádios e televisões por influência de um laboratório multinacional, cliente de quase todas as emissoras. E é um cliente realmente forte".

Enfatizava o jornalista que "nenhuma emissora vai comprar essa briga do Odair José e perder faturas milionárias." (82) E assim, combatida por multinacionais, pelos militares, pelo Chacrinha, pela Bemfam e, paradoxalmente, até mesmo por alguns setores da Igreja que enxergaram na música um veículo de popularização do anticoncepcional, "Pare de tomar a pílula" permaneceu proibida durante os governos dos generais Médici e Geisel, só deixando a clandestinidade em 1979, quando o presidente João Figueiredo assinou um decreto oficializando a liberação de todas as músicas que estavam vetadas pela Censura Federal. A Além da canção de Odair José, foram anistiadas na mesma época Pra não dizer que não falei de flores, Cálice, Apesar de você e outras. O curioso é que o inusitado e polêmico tema de Odair José não teve problemas com a censura apenas no Brasil. Naquele período o cantor começava a gravar seus discos também em espanhol e, para divulgá-los, realizava shows por várias cidades latino-americanas. "Mas em todo lugar que eu chegava diziam: 'não pode cantar La Pilula aqui"', recorda.(83) Portanto, foi uma proibição generalizada, demonstrando a força dos laboratórios multinacionais e a dimensão daquele "reinado de terror e virtude", que nos anos 70 se espalhava por outras ditaduras da América Latina. Mas tanto lá como cá, apesar de proibida, a balada alcançou ampla repercussão. Na Venezuela existia uma boate cujo nome era La Pilula, título com o qual a gravação do cantor brasileiro ficou conhecida em sua versão para o espanhol. NOTAS BIBLIOGRÁFICAS DO CAPÍTULO “REINADO DE TERROR E VIRTUDE” (Pela Numeração seqüencial contida no texto)

58. Ver, por exemplo, Alberto Moby. Sinalfechado. A música popular brasileira sob censura. Rio de Janeiro: Obra Aberta, 1994; Ramon Casas Vilarino. A MPB em movimento: música, festivais e censura. São Paulo: Olho d'Água, 1999. 59. Gilberto Vasconcelos. Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal, 1977, p. 72.

60. Idem, p. 78-79. 61. Alberto Moby, op. cio, p. 167. 62. Crane Brinton. Anatomia das revoluções. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1958, pp. 208-215. 63. As normas da boa conduta" - Veja, 17-5-1972. 64. "Silvio ao vivo" - Veja, 17-5-2000. 65. “A Hidra não ouvia rock" - Folha de S. Paulo, 2-11-1997. 66. Na consulta aos Documentos do Serviço de Censura de Diversões Públicas constata-se que a maior parte das letras de músicas vetadas, ou com alguma restrição dos censores, se deve mesmo a questões de ordem moral. Caso, por exemplo, de uma composição de Nelson Ned (parceria com Renato Cleurian), Não precisa voltar: "Eu já decidi / não precisa voltar / me faça um favor / vá para aquele lugar". Num parecer datado de 22 de agasto de 1972, o censor condicionou a liberação da música desde que "os autores modifiquem a letra quando diz 'Vá para aquele lugar"'. Nelson Ned substituiu por "Você agora vai pagará e agravação foi autorizada. Fonte: Documentos do Serviço de Censura de Diversões Públicas”Arquivo Nacional / RJ.

67. Os documentos da Censura citados são, pela ordem: Parecer datado de 29-4-1973; Parecer nó 3688/73 e Parecer na 3985/73. Fonte: Documentos da Divisão de Censura de Diversões Públicas”Arquivo Nacional/ DF. 68. Os dois documentos citados são datados de 26 de março de 1974/ Documentos do Serviço de Censura de Diversões Públicas da Guanabara”Arquivo Nacional/ RJ, e de 23 de abril de 1974/ Documentos da Divisão de Censura de Diversões Públicas” Arquivo Naeional/ DF. 69. Outro artista que motivado pela censura diz ter se encontrado com o general Golbery é o diretor de televisão Daniel Filho. Em 1975 ele foi a Brasília levar um manifesto contra a proibição da novela Roque Santeiro.”Fui recebido em pé. Entreguei o documento dizendo apenas que era um manifesto dos artistas contra o ato da Censura e que gostaríamos que ele o fizesse chegar ao presidente Geisel. Golbery pegou a carta, colocou-a em cima da mesa, disse que estava entregue. Ficamos num clima

tenso, eu disse boa tarde, dei meia-volta e fui embora. Daniel Filho. Antes que me esqueçam. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1988, p. 179. 70. Embora cantado nos shows, o último verso do refrão ("pois ela não deixa sua barriga crescer") não foi utilizado pelo autor na gravação. Observo também que no rótulo do disco aparece o nome de Ana Maria pseudônimo utilizado pelo locutor Carlos Guarani, a quem Odair José ofereceu a parceria na composição. Para outras indicações ver Uma vida só (Pare de tomar a pílula) em Fontes e bibliografia. 71. Caetano Veloso faz aquela afirmação nas páginas 23 e 174 de seu livro. Entretanto, em 1961, seis anos antes do lançamento de Alegria, alegria ("Eu tomo uma Coca-Cola / ela pensa em casamento / uma canção me consola..."), o cantor e compositor Baby Santiago, um dos principais nomes da fase inicial do rock brasileiro, compôs e gravou o rock Adivinhão, que narra o ríspido diálogo de um pai com um playboy que namora sua filha: "À noite ela falta à aula / pra ficar contigo e tomar Coca-Cola / quando chega o fim do ano / ela leva bomba e você nem dá bola..." Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 72. A Bemfam foi fundada no Rio de Janeiro em novembro de 1965 e reconhecida como Entidade de Utilidade Pública Federal no governo Médici pelo Decreto Nº 68.515, de 15 de abril de 1971. Sobre a Bemfam se avolumavam denúncias de estar promovendo a esterilização de milhares de mulheres brasileiras. Ver reportagens: "Médicos GB condenam a Bemfam" - Ultima Hora, 2-3-1972; "Médicos do Rio denunciam a ação da Bemfam" - Folha de S. Paulo, 24-5-1977 e "Deputado acusa o governo de acobertar a Bemfam - Jornal do Brasil, 3-6-1977. 73. Outros cartazes exortavam: “A paternidade responsável evita a infância abandonada" e "Família planejada, família feliz". Além de verbas públicas e de grupos particulares brasileiros, a Bemfam era patrocinada pela Fundação Ford e filiada à International Planned Parenthood Federation (Federação Internacional de Planejamento Familiar), com sede em Londres. 74. Bemfam”Divisão de Comunicação”Serviço de Imprensa (062/ 73) e Bemfam” Divisão de Comunicação - Serviço de Imprensa (064;/ 73). 75. "Pílulas distribuídas já passam de 6 milhões" - Jornal do Brasil, 30-51977. A reportagem traça um histórico da Bemfam e faz referência ao

convênio assinado com o governo do Rio Grande do Norte durante a gestão de José Cortês Pereira (1971-1974). 76. "E não é?" (Jornal do Chacrinha) - A Notícia, 27-3-1973. Registre-se que antes de Odair José o próprio Chacrinha também já havia abordado o tema da pílula numa marchinha que ele gravou para o carnaval de 1970: “A solução da pílula, da pílula / pra mim é ridícula, ridícula / onde se viu um mundo sem mamãe / sem um neném pra se fazer bilu-bilu..." Verso de Marcha da pílula. Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 77. "Resolução" (Jornal do Chacrinha) - A Notícia, 30-3-1973. 78. "Peito de Fora!” – (Jornal do Chacrinha) - A Notícia, 24-7-1973. 79. "Devia ser proibido - erótico demais o Secos & Molhados" (Jornal do Chacrinha) - A Notícia, 22-2-1974. 80. "Confusão" (Jornal do Chacrinha) - A Notícia, 7-3-1974. 81. Conforme relato de Odair José a Ronaldo Bôscoli: "Os caras me procuraram para duas propostas: 1) 'Toma aí uma nota preta e esquece de gravar essa música.'Aí eu disse que não. Então veio a segunda proposta. 'Nós compramos toda a edição do disco sob a condição de comprarmos os direitos da música e da letra (coisa, aliás, invendável).' Eu também disse não." Ver reportagem "Laboratório contra a pílula em disco" - Ultima Hora, 10-3-1973. 82. “Odair perde a briga da pílula" - Ultima Hora, 21-3-1973. 83. Programa Show da Madrugada - Rádio Globo, 11-5-1996.

WALDIK SORIANO E OS PORÕES DA DITADURA

*** “Eu não sei de que maneira meu filho morreu, ou onde ele está enterrado, ou o que aconteceu com ele, nada disso eu sei...” (Elzita de Santa Cruz Oliveira)

A fúria obscurantista que envolveu o Brasil no período do AI-5 também atingiu o cantor Waldik Soriano, artista polêmico que reafirmava e, às vezes, também contestava valores estabelecidos da sociedade. Um exemplo disto está numa entrevista que ele concedeu, em 1973, ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Alí Waldik Soriano defendeu a existência de grupos de extermínio, "eu

sou a favor do Esquadrão da Morte, acho que não deveria terminar", e, ao mesmo tempo, causou verdadeiro furor ao defender uma concepção da figura de Jesus muito diferente da apresentada pela Igreja: "Cristo pra mim foi um arruaceiro. Eu li a Bíblia de cabo a rabo e não vi nada do que se fala. Tudo com muita cascata. Eu não ‘tou nessa de Cristo. Não entendo o que se fala dele, acho que era um enganador." (84) No dia seguinte, quase não se comentava outra coisa na cidade de Porto Alegre a não ser a declaração de Waldik Soriano sobre Jesus Cristo. Recorde-se que termos como "enganador" e "arruaceiro" - entendidos como aqueles que manipulam consciências e desorganizam a ordem pública identificavam naquele período tanto os delinqüentes comuns como os chamados terroristas ou militantes de esquerda. * Waldick sempre polêmico - abaixo a famosa capa da entrevisat que deu ao pasquim

E talvez por isso mesmo o caso chegou até a Assembléia Legislativa gaúcha e deputados da Arena, partido do governo militar, e do MDB, partido da oposição, deixaram momentaneamente suas divergências de lado, unindo-se em pronunciamentos contra o cantor. O primeiro a falar foi o deputado arenista Pedro Américo, que qualificou

Waldik Soriano de "cantorzinho zurrapa" (nome que se dá a vinho estragado) e pediu o enquadramento do artista na Lei de Segurança Nacional sob o argumento de que "aqui no Rio Grande do Sul, onde coragem é recato e agressão é conseqüência", não poderia passar impune alguém que "deu um show de ignorância, falta de respeito e gabolice, ofendendo a todo o Brasil, e particularmente aos ganchos, independentemente de religiões professadas.” (85) Já o deputado João Carlos Gastal, líder do MDB na Câmara, lamentou que as declarações de Waldik Soriano tivessem sido publicadas na imprensa: ”A censura proíbe tanta coisa e se esquece de impedir que saiam nos jornais os absurdos que esse cantor anda dizendo." ( 86) Outro parlamentar da oposição, o emedebista Moisés Velasquez, demonstrou maior contundência ainda ao afirmar que "elementos como esse devem ser banidos de nossa vida artística”. (87) Ao defenderem a censura e o banimento para Waldik Soriano, os deputados do MDB pareciam esquecer-se de que um dos principais itens do programa do seu partido naquele momento era exatamente a defesa da liberdade de opinião e de imprensa. Mas esta postura dos parlamentares ganchos só revela mais uma vez de que maneira a repressão imposta pelo regime de 1964 era compartilhada por setores significativos da sociedade brasileira. Como também ilustra neste sentido a reação do cardeal-arcebispo de Porto Alegre, dom Vicente Scherer, que se pronunciou favorável às críticas que os integrantes do Legislativo endereçaram a Waldik Soriano – “os deputados fizeram bem e poderiam até ir mais longe” - e referiu-se ao artista como "um pobre coitado ignorante" que "tem companhias bem conhecidas nos escribas que blasfemaram e insultaram Cristo quando ele estava na cruz". (88) Falando em nome do governo do Rio Grande do Sul, o diretor do Departamento de Diversões Públicas, Antonio Moura Coelho, embora não fosse médico-psiquiatra, diagnosticou que Waldik Soriano é "portador de deformações psicológicas" e alguém que, segundo ele, "ainda não aprendeu a amar a Cristo e não sabe reconhecer na conduta ilibada a dignidade, mas faz glória do machismo e da desfaçatez. É um pobre homem". (89) A polêmica ganhou repercussão nacional, e comunicadores de grande audiência como Flávio Cavalcanti e J. Silvestre manifestaram-se na TV contra as declarações do cantor. Até mesmo a revista Veja, expressando a opinião dos setores de elites dos grandes centros urbanos do país, dirigiu

duras farpas ao autor de ”Eu não sou cachorro, não”: "Certamente, Waldik Soriano não leu a Bíblia nem teve professores que lhe ensinassem tanto religião quanto civilidade. Mas seria muito conveniente que de ora em diante se limitasse às funções de animador de boates de má reputação, para as quais tem revelado invejável talento, e desistisse de atirar pedras contra o reino dos céus e dos homens.” (90) Talvez como conseqüência do enfoque que o caso obteve na mídia, em algumas cidades do interior do Brasil discos e pôsteres de Waldik Soriano chegaram a ser queimados em fogueiras armadas em praça pública. Guardadas as devidas proporções, desde a declaração de John Lennon de que os Beatles eram mais populares que Jesus Cristo, que a frase de um cantor popular não causava tanta celeuma entre os adeptos do cristianismo. E assim como o ex-Beatle, o cantor Waldik Soriano, para acalmar os ânimos, também distribuiu uma nota à imprensa dizendo que havia sido mal interpretado e que sua declaração fora deslocada do contexto. Se, como ensinava o educador Paulo Freire, as palavras são grávidas de sentido, em períodos ditatoriais determinadas palavras tornam-se mais grávidas ainda. E isto é o que explica a censura - agora oficial, como queriam os deputados do MDB - de que foi vítima Waldik Soriano por causa de uma gravação em 1974, ano que talvez seja o do ápice da ação da censura sobre a música popular brasileira. (91) Basta recordar que foi em 1974 que Chico Buarque se viu forçado a disfarçar-se no pseudônimo de Julinho da Adelaide para conseguir a liberação de algumas composições que, se levassem o nome verdadeiro do autor, fatalmente seriam proibidas. Do tal Julinho dizia-se que ele era carioca da Favela da Rocinha, filho de Adelaide de Oliveira e meio-irmão de Leonel Paiva, seu parceiro no samba “Acorda, amor”. Num primeiro momento esta história parece ter enganado até alguns críticos de música como, por exemplo, Sílvio Lancellotti, que em artigo na revista Veja elogiou o novo compositor gravado por Chico Buarque, com a ressalva de que "por razões culturais, Chico produza letras menos primitivas e mais elaboradas". (92) O fato é que neste mesmo ano em que liberava os sambas de Julinho da Adelaide, a Censura proibia uma das mais românticas composições de

Waldik Soriano, o bolero ”Tortura de amor”: "Hoje que a noite está calma / e que minha'alma esperava por ti/ apareceste afinal / torturando este ser que te adora..." Foi longa a trajetória do bolero “Tortura de amor” até chegar a ser proibido pelo regime dos generais. Waldik compôs esta canção no fim dos anos 50, quando ele ainda trabalhava nos garimpos de sua cidade natal, Brejinho das Ametistas, sertão da Bahia. "Tem um lajedo lá em minha terra" recorda ele "e todos os dias às cinco horas da tarde eu ia pra lá meditar. Porque eu achava aquela cidade tão pequena, tão restrita pra mim, que eu procurava o lugar mais alto pra ficar, pra ver se enxergava mais longe, entende? Então, foi nesse lajedo, à tardinha, que é o melhor momento para o poeta criar, que eu fiz Tortura de amor." Mas a música retrataria alguma relação amorosa que o compositor estava vivendo? "Não, eu não estava envolvido com ninguém naquela época. Eu tinha era aquela ansiedade de expandir, de ir embora dali. E o poeta, o poeta de verdade, é um eterno apaixonado. Ele mesmo não sabe por que nem por quem, mas está sempre apaixonado." “Tortura de amor” foi lançada em disco numa gravação do próprio autor em 1962, mas não alcançou maior sucesso ou repercussão imediatos. Aos poucos, porém, foi sendo incorporada ao repertório de outros cantores, tornando-se a composição mais gravada de Waldik Soriano. Ela tem, entre outras, gravações de Cauby Peixoto, Altemar Dutra, Nelson Gonçalves, Agnaldo Timóteo, Maria Creuza, Fagner, Fafá de Belém e uma promessa de Roberto Carlos: "Certa vez eu encontrei com o Roberto no aeroporto e ele me disse: 'Waldik, tem uma música sua que um dia eu ainda vou gravar. É aquela que diz assim 'apareceste afinal/ torturando este ser que te adora. .'."“Tortura de amor” enfrenta problemas com a Censura após a regravação do próprio Waldik Soriano em 1974. Naquele ano, a música teve a sua execução e radiodifusão públicas proibidas em todo o território nacional. O cantor recorda e protesta. ”A censura que existia naquela época era uma censura ignorante. Ignorante, radical e burra. Censurar “Tortura de amor”!? Tortura é uma palavra poética: 'não me tortura tanto, meu amor .. vivo torturado por ti ' Quer dizer, censuraram a minha música,

meu disco não podia vender, não podia ser executado em rádio nem em televisão. Eu acho que naquele período, no fundo, no fundo, havia muito autoritarismo, muito abuso de autoridade." "TORTURA DE AMOR"

Que a censura era ignorante e burra, o caso Julinho da Adelaide já o demonstra, mas este abuso de autoridade talvez se explique, no caso da canção de Waldik Soriano, porque a palavra "tortura" - embora com intenção poética - era muito grávida de sentido naquele momento para ser liberada. Recorde-se que após a decretação do AI-5 a prática da tortura foi peça essencial utilizada pelo regime militar no combate a brasileiros suspeitos de atitudes subversivas ou terroristas.

E os modos e instrumentos de suplícios adotados foram diversos: choque elétrico, "pau-de-arara", "afogamento", "telefone", "cadeira do dragão", "geladeira" etc. Uma das vítimas da repressão naquele período, o historiador paulista Jacob Gorender, em uma única sessão de tortura, que durou cerca de seis horas, experimentou quase todos os métodos. Comandada pelo delegado Ivair Garcia de Freitas, nas dependências do Dops de São Paulo, a tortura ocorreu no dia em que o historiador completava 47 anos. "Tiraram-me a roupa e, desnudo, encostaram-me à parede" - relata Gorender – "a função começou por uma dose de choques elétricos. A intervalos, novas doses. O delegado Ivair distribuía instruções com profissionalismo. Vez por outra, reclamava do exagero do serviço. Mas o serviço prosseguia. Depois de pontapés e 'telefones' (tapas atordoantes e simultâneos nos dois ouvidos), alguns aplicados pelo próprio Ivair, chegou a vez do pau-de-arara. João Tralli, o especialista, na hora se vangloriou de já ter dependurado até um perneta..." "...De pés e mãos atados por cordas, seguro à trave de face para cima, eu ia recebendo choques elétricos em várias partes do corpo, queimaduras nas plantas dos pés, 'telefones'. A água derramada sobre o corpo aumentava o efeito da eletricidade. Fizeram o 'afogamento': introdução de água pelas narinas por meio de um funil. Com a cabeça inclinada para baixo, a água entope o nariz, sai pela boca e provoca a sensação de asfixia. Atento a meu nível de resistência Física, Ivair ordenava interrupções e eu era depositado no chão, continuando com a trave no meio dos pés e mãos atados. Repetiam-se as perguntas e ameaças. Terminado o intervalo, novamente me alçavam no pau-dearara. .." (93) Outra vítima dos porões da ditadura, o engenheiro José Milton Ferreira de Almeida, na época com 32 anos, denunciou que pior do que os castigos físicos "foi passar dias inteiros, por vários dias, vendo e ouvindo várias pessoas serem torturadas, crucificadas, penduradas nos registros das celas, espancadas nos corredores, gritando numa agonia indescritível”; que viu "pais e filhos sendo torturados, esposos e esposas serem torturados e um sendo obrigado a torturar o outro"; e até mesmo "velhos de quase 70 anos serem praticamente espancados e chegarem ao ponto de debilitamento total". (94) Constata-se pelos relatos acima que o sistema repressivo não fazia distinção de cor, idade, sexo ou religião: todos indistintamente eram submetidos a castigo cruel, desumano e degradante.

E talvez por isto mesmo o bolero “Tortura de amor” não podia ser tocado no rádio e nem na televisão. Afinal, como anunciava uma reportagem de capa da revista Veja no inicio do governo Médici, "O Presidente não admite torturas". (95) E, pelo visto, nem de amor. Os caminhos que levavam um artista "cafona" a ter sua obra atingida pela Censura eram realmente os mais tortuosos possíveis, e todo o cuidado era pouco. Odair José aprendeu isto e cercou-se de cuidados na letra da canção “O crime da Barra”, que fala de um corpo de mulher jogado na estrada (de quem seria?) e de festas com jogo de cartas (quem as promovia?) nos embalos de sábado à noite, no Rio. Com as estrofes numa linguagem da fresta, versos nas entrelinhas, no refrão o compositor ainda se esquiva: "Eu não vou citar exemplo / só pra não me envolver / mas pelo que eu já falei / acho que deu para entender..." Odair José abordou na canção "O Crime Da Barra", o famoso caso do assassinato da jovem Cláudia Lessin Rodrigues Aqui Odair José aborda um dos mais rumorosos casos policiais dos anos 70; o assassinato da estudante Cláudia Lessin Rodrigues, 21 anos, cujo corpo foi encontrado envolto num saco amarrado a blocos de pedra, numa encosta da Avenida Niemeyer, Zona Sul do Rio.(96) O principal acusado foi o milionário Michel Frank, 26 anos, filho do industrial suíço Egon Frank, dono da fábrica de relógios Mondaine. Conhecido nas noites cariocas pelo apelido de "Furacão Branco", Michel promovera na véspera do crime um jogo de cartas com um grupo de amigos em seu apartamento no Leblon. Por volta das onze horas da noite Cláudia aparecera ali à procura do diretor de cinema Pedro Rovai, com quem andava saindo ultimamente. Rovai era amigo de Michel, e o pai deste, Egon Frank, foi o produtor de alguns dos filmes do cineasta, entre os quais as pornochanchadas “A viúva virgem”, “Ainda agarro esta vizinha” e “Lua-de-mel e amendoim”. Nesta última, uma produção de 1971, aparece a cena de uma animada festa em um apartamento dúplex com piscina, em Copacabana. É a filmagem da festa de aniversário de 20 anos de Michel Frank - com os convidados servindo de figurantes para o filme. Cláudia também circulava pelos sets do cinema brasileiro da época, e

através de sua irmã, a atriz Márcia Rodrigues (estrela do filme “Garota de Ipanema”, de Leon Hirszman), conheceu o cineasta Pedro Rovai a quem foi procurar naquele sábado, 23 de julho de 1977, no apartamento de Michel Frank. Ela talvez não soubesse, mas aquele endereço era um ponto de tráfico de cocaína, droga que começava a se expandir para além dos restritos círculos da elite.(97) Pedro Rovai não apareceu naquela noite e Cláudia ficou ali tomando vinho e jogando cartas com o pessoal. Mais tarde Michel Frank até improvisou uma festa, enquanto recebia seleta clientela à procura do pó branco, fino e cristalino. Foi uma noite frenética e só no amanhecer de domingo cessou a movimentação. No fim, restaram no apartamento apenas Cláudia, Michel Frank e um amigo dele, o cabeleireiro Georges Khour. Durante todo o dia de domingo os pais de Cláudia aguardaram ansiosos pelo retorno da filha ou por algum telefonema dela. Inicialmente imaginaram que ela tivesse ido para Cabo Frio com uma amiga, mas esta foi procurada e informou que estava ali apenas com a família. Na segunda feira à noite a mãe de Cláudia assistia ao telejornal quando o locutor informou que o cadáver de uma moça nua fora encontrado pela manhã caído nos úmidos penhascos da Avenida Niemeyer. Ela não teve dúvida: era o corpo de sua filha que, segundo o laudo médico, morreu em conseqüência de espancamento, seguido de estrangulamento, após ter sido violentada sexualmente por objeto cilíndrico, provavelmente uma garrafa, que provocou alargamento anal e ferimento no seu órgão genital. As primeiras investigações apontavam para um crime praticado por algum estuprador da área do Chapéu dos Pescadores, local próximo de onde o corpo foi encontrado. Tudo mudou, porém, com o testemunho do operário Luiz Gonzaga de Oliveira, que numa noite de insônia provocada por forte dor de dente, disse ter visto de seu barraco, num recuo da Avenida Niemeyer, a estranha movimentação de dois rapazes retirando de uma Brasília um grande volume envolto num saco. O que seria aquilo? Para onde levariam? Por via das dúvidas ele anotou a placa da Brasília: SX-5904 que depois, descobriu-se, pertencia à empresa de Michel Frank. "Pra mim alguém copiou a placa errada. Ou então a pessoa que telefonou para dizer que viu meu carro lá, agiu com extrema maldade", tentou negar o acusado. (98)

As circunstâncias que envolveram o assassinato de Cláudia Léssin Rodrigues demoraram a ser esclarecidas, mas quanto à autoria do crime parecia não haver dúvidas: Michel Frank com a cumplicidade do amigo Georges Khour. Entretanto, o processo contra os dois não ia adiante. Michel foi ouvido e dispensado pelo delegado encarregado do caso, justamente quando já estava mais do que suficientemente provada a participação dele no crime. "Tenho amigos no governo brasileiro, mas não preciso comprar ninguém", defendeu-se o industrial Egon Frank da suspeita de que teria subornado a cúpula do aparelho policial. (99) O esclarecimento do Caso Cláudia deveu-se sobretudo à atuação da imprensa, especialmente aos repórteres Valério Meinel e Amicucci Gallo que naquele ano receberam o prêmio Esso de Jornalismo pela reportagem "O mistério vai acabar?". Publicada na revista Veja, a matéria trazia o depoimento do patologista Domingos de Paola, conhecido da família Frank, que afirmou ter ouvido do próprio Michel os detalhes do assassinato que praticou. "Não aguento mais. Estou vivendo uma coação de consciência irresistível", disse o patologista antes de contar tudo o que sabia aos repórteres da Veja. (100) Divulgado logo em seguida, o laudo cadavérico confirmou o teor da reportagem. Agora não dava mais para Michel continuar negando o crime. Mas quando a polícia finalmente bateu à porta de seu apartamento, já era tarde. Michel Frank havia fugido para a Suíça. Seu cúmplice, o cabeleireiro Georges Khuor, foi preso mas depois julgado e absolvido da acusação de assassinato. "Graças a Deus, afinal se fez justiça", exultou Michel Frank ao receber na Suíça a notícia da libertação do amigo, que foi condenado apenas a um ano e quatro meses por tentativa de ocultação de cadáver.(101) E assim mais uma vez no Brasil prevaleceu a impunidade que permitiria que outras Cláudias também viessem a morrer tão precoce e estupidamente. "Olha menina bonita / tenha bastante cuidado / quando pra certos lugares / você for convidada...", alertava a canção de Odair José, que passou pela Censura sem maiores problemas. O mesmo não pode ser dito de uma gravação do cantor e compositor Fernando Mendes, autor da popular ”Cadeira de rodas” e de outros temas dramáticos. Mineiro de Conselheiro Pena, Fernando Mendes lançou seu primeiro disco

em 1973, e já no ano seguinte se deparava com a barreira imposta pela censura dos generais. O alvo foi a composição ”Meu pequeno amigo”, cuja letra focaliza outro caso policial polêmico da época: o sequestro do garoto Carlos Ramirez Costa, o Carlinhos, ocorrido na noite de 2 de agosto de 1973, no Rio de Janeiro, e que durante muito tempo mobilizou a imprensa e a polícia cariocas. Segundo relato da família, Carlinhos, na época com 10 anos, assistia à televisão ao lado da mãe quando foi levado de casa sob a ameaça do revólver de um homem negro de cabelo afro que deixou um bilhete exigindo 100 mil cruzeiros de resgate. O pai do garoto, um pequeno empresário da Baixada Fluminense, se empenhou para arranjar o dinheiro, mas a troca nunca se realizou porque, depois de uma primeira tentativa, não houve mais contato dos seqüestradores e o Caso Carlinhos permanece até hoje como um dos maiores mistérios da crônica policial brasileira. Quem seqüestrou Carlinhos? Para onde levaram o garoto? O que fizeram com ele? A canção de Fernando Mendes fala disso e o cantor a reveste com o mesmo canto triste de todas as baladas românticas: "Sem querer você se foi/ e hoje choram por voce.../até as flores do jardim entristeceram/sentiram sua falta / morreram...". Apresentada ao Departamento de Censura no início de 1974 - quando o caso policial ainda ocupava grande espaço na mídia - , a composição foi liberada com a recomendação de que se colocasse no subtítulo entre parêntese a informação "Tributo a Carlinhos". Entretanto, no momento em que a gravação começava a tocar nas emissoras de rádio, veio a ordem de sua proibição. LP "Fernando Mendes" (1974), o segundo da carreira do cantor e que mobilizou os agentes da repressão por causa da canção "Meu Pequeno Amigo". Fernando Mendes recorda que ele ainda estava trabalhando na divulgação do disco quando Miguel Plopschi, na época seu diretor artístico na Odeon, telefonou avisando do veto: "O que que houve?", surpreendeuse o compositor. "Mandaram parar. A música chamou a atenção de não sei quem lá de Brasília e a censura proibiu a sua execução no rádio", informou Miguei Plopchi. "Mas proibiram por quê? Eu não estou falando nada contra o governo. Estou apenas contando a história de um amigo que sumiu ". "Sim" - rebateu Plopschi - , "mas eles não querem e a ordem é parar. E acho melhor nem perguntar o porquê se não eles proíbem o disco todo.

Autoritarismo é autoritarismo." Fernando Mendes não conseguia entender o motivo daquela proibição. "Eu tinha 22 anos na época e não sabia nada sobre política. O que era autoritarismo? Eu não sabia o que era isso. Eu não possuía nenhuma informação política." E o que mais intrigava o compositor era o fato de que o Caso Carlinhos estava estampado em todos os jornais e revistas do país, e a fofo daquele menino de longos cabelos louros e belo sorriso tornara-se familiar para milhões de brasileiros na época. Por que o assunto não podia ser abordado também numa canção? A resposta para esta pergunta talvez esteja na constatação de que o problema não era o Caso Carlinhos em si mas a forma como ele foi tratado na canção de Fernando Mendes. A composição incomodou ao regime porque em nenhuma das suas estrofes aparece o nome de Carlinhos. Da primeira à última parte da letra o compositor fala de um amigo desaparecido e do desejo de descobrir o seu paradeiro, num refrão em forma de súplica que se repete por quatro vezes ao longo da música; "Digam pra mim / digam pra mim onde ele está / e o que foi que fizeram / com o meu pequeno amigo?"

Talvez seja este o único caso da época em que a ambigüidade da letra, ao invés de favorecer a liberação da música, determinou a sua proibição. A balada “Meu pequeno amigo” foi lançada num momento em que diversos outros brasileiros estavam também "desaparecidos" ou "desaparecendo".

*Segundo relatório do projeto “Brasil: nunca mais”, é exatamente no período 1973/1974 que se registra o maior número de desaparecidos políticos no Brasil (102) O cardeal dom Paulo Evaristo Arns, que se manteve em vigia durante todo o período da ditadura militar, recorda que naquela época atendia na Cúria Metropolitana de São Paulo, semanalmente, cerca de 50 pessoas, todas em busca do paradeiro de seus parentes "desaparecidos". "Um dia" - diz ele – "ao abrir a porta do gabinete, vieram ao meu encontro duas senhoras, uma jovem e outra de idade avançada. A primeira, ao assentar-se em minha frente, colocou de imediato um anel sobre a mesa, dizendo: 'É a aliança de meu marido, desaparecido há 10 dias. Encontrei-a, esta manhã, na soleira da porta. Sr. padre, o que significa essa devolução? É sinal de que está morto ou é um aviso de que eu continue a procurálo?'. Até hoje" - enfatiza dom Paulo - “nem ela nem eu tivemos resposta a essa interrogação dilaacerante” (l03) Fatos como estes atingiam diversas outras famílias brasileiras naquele período e provocavam a indignação de intelectuais como Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Ataíde. Em artigo publicado em outubro de 1974 com o sugestivo título de "Os esperantes", o já octogenário pensador católico desafiava as normas da Censura e protestava: "Há neste momento, no Brasil, sem que sequer se possa citar-lhes os nomes, ao lado de nós, dezenas de lares e neles centenas de corações, que sofrem em silêncio a tragédia da espera, de dúvida sobre a vida ou a morte dos seus mais queridos", e Tristão de Ataíde prosseguia questionando: “Até quando haverá, no Brasil, mulheres que não sabem se são viúvas; filhos que não sabem se são órfãos; criaturas humanas que batem em vão em portas implacavelmente trancadas, de um país que julgávamos ingenuamente isento de tais insanas crueldades?" (104) Um caso de "desaparecido" que se tornou simbólica no Brasil foi o que envolveu o ex-deputado federal Rubens Paiva, a quem os organismos de segurança acusavam de manter correspondência com brasileiros exilados no Chile. Na manhã de 20 de janeiro de 1971, seis policiais à paisana, todos armados, invadiram a residência de Rubens Paiva, no Rio de Janeiro, e enquanto quatro policiais vasculhavam toda a casa, apreendendo correspondências e agendas telefônicas, os outros dois conduziam o ex-deputado para destino

ignorado pela família. A partir daí iniciava-se a luta de sua mulher, Maria Eunice, para descobrir o paradeiro do marido ou pelo menos o cemitério clandestino onde seu corpo poderia estar enterrado. Busca semelhante foi empreendida por Zuzu Angel - mãe do jovem militante da luta armada Stuart Angel Jones - e por Elzita de Santa Cruz Oliveira - mãe do estudante universitário Fernando Santa Cruz - , ambos presos por agentes da repressão política no Rio de Janeiro: o primeiro, na manhã de 14 de maia de 1971; o segundo, na tarde de sábado de carnaval, 23 de fevereiro de 1974. A Estilista Zuzu Angel e a dona de casa Elzita de Santa Cruz Oliveira duas mulheres cujos filhos foram assassinados por agentes da repressão. Sempre com a foto de Stuart na mão, Zuzu Angel, na época uma consagrada estilista carioca, iniciou uma via crucis por diversos quartéis e hospitais do Rio de Janeiro "O senhor o teria visto? Não conhece este rapaz?''(105) E na ânsia louca de descobrir o destino do filho que, depois soube-se, foi torturado até a morte no mesmo dia da prisão, ela apelou a generais, bispos e até ao secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, durante uma de suas visitas ao Brasil. A mãe do estudante Fernando Santa Cruz, também sem qualquer informação oficial sobre o seu paradeiro, enviou cartas, petições e telegramas a diversas autoridades civis e militares do país. E a busca prosseguiu em apelos a entidades representativas da sociedade civil OAB, Cruz Vermelha, Anistia Internacional. Sem nenhuma resposta conclusiva e cada dia mais atormentada pela dúvida, E1zita de Santa Cruz Oliveira resolveu escrever ao próprio presidente Ernesto Geisel e à sua esposa, Lucy Geisel. "Eu não sei de que maneira meu filho morreu, ou onde ele está enterrado, ou o que aconteceu com ele, nada disso eu sei..." (l06) Lançada em meio a este reclame, a canção de Fernando Mendes, com seu refrão em forma de súplica - "Digam pra mim / digam pra mim onde ele está / e o que foi que fizeram com o meu pequeno amigo?" - incomodou os agentes da repressão e não pôde continuar tocando no rádio. A sua mensagem dava margem a outras interpretações, lembrava outros "desaparecidos" e, assim, como o bolero “Tortura de amor”, tocava numa

ferida que o regime militar não queria ver exposta pela lente ampliadora da canção popular. ******

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS APENSAS AO CAPÍTULO (pela numeração seqüencial encontrada no texto):

84. "Uma noite com Waldik Soriano no Harém e na Urca" - Zero Hora, 841973. 85. "Pedro Américo: Waldik não tem classe nem educação" - Zero Hora, 10-4-1973. 86. "Contra o céu e a terra" _ Veja, 18-4-1973. . 87. "Pedro Américo: Waldik não tem classe nem educação" - Zero Hora, 10-4-1973. 88. "Waldik, a triste busca de promoção" - Zero Hora, 11-4-1973. 89. Idem, ibidem. 90. "Contra o céu e a terra" - Veja, 18-4-1973. 91. Ver Alberto Moby, op. cit., especialmente o capítulo “A censura durante o regime militar". O autor cita outros trabalhos que demonstram que o período 1973/174, além de ser aquele em que se registra o maior número de desaparecidos políticos no Brasil, foi também o período no qual a censura agiu com maior rigor em relação à imprensa (jornais e revistas). 92. "Estilos irmãos" - Veja, 21-8-1974. Em nome de Julinho da Adelaide foram registradas três composições: Jorge Maravilha, Milagre brasileiro e Acorda amor (com Leonel Paiva). O personagem de Chico Buarque foi "aposentado" em 1975, quando o Jornal do Brasil revelou a verdadeira identidade do autor. A partir daí a Censura a começou a exigir de todos os compositores o número da Identidade e do CPF. 93. Jacob Gorender. Combate nas trevas: a esquerda brasileira das ilusões

perdidas à luta armada. 3a ed. Sao Paulo: Ática, 1987, p. 217. 94. Brasil, nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 206. 95. "O Presidente não admite torturas" - Veja, 3-1-1969 96. Ao falar do episódio como o "crime da Barra" certamente Odair José confundiu a geografia dos bairros do Rio. A Avenida Niemeyer, onde o corpo de Cláudia foi encontrado, liga os bairros do Leblon e São Conrado, na Zona Sul. A Barra da Tijuca fica alguns quilômetros depois, já na Zona Oeste. 97. Esta e outras informações do Caso Cláudia podem ser conferidas no livro de Valério Meinel Por que Cláudia Lessin vai morrer. 2a ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1978. 98. Idem, p. 219. 99. "Direção errada"”Veja, 25-6-1980. 100. Valério Meinel, op. cit, p. 245. A reportagem premiada de Veja foi publicada em sua edição de capa datada de 7-9-1977. 101. "Michel Frank gostou: “Fez-se justiça" - IstoÉ, - 10-12-1980. 102. Brasil, nunca mais, op. cit., Anexo III - “Desaparecidos Políticos desde 1964”, pp. 103. Idem, p. 11. 104. "Os esperantes" - Jornal do Brasil, 23-10-1974. 105. Conforme relato do jornalista Roberto Pompeu de Toledo. "Uma costureira contra o regime dos generais" - Veja, 20-8-1997. 106. Depoimento incluído no livro “Onde está meu filho? - história de um desaparecido político”. Chico de Assis... [ET al.] Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 89.

(A DUPLA DOM & RAVEL SOB CENSURA) “Eu também já tive de dar uns bons socos por aí. Cheguei a dar até chicotadas.” (Roberto Marinho)

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Em meados dos anos 60 a soul music consagrou-se nos Estados Unidos, revelando cantores como James Brown, Otis Redding e Wilson Pickett, que com suas bases de metais e vozes roucas logo também conquistaram as paradas de sucesso internacionais. No fim daquela década, a onda chegou ao Brasil, e diversos nomes da nossa música seguiram pela mesma trilha. Houve uma profusão de cantos roucos e de usos do falsete e do diafragma para interpretar e modular a voz. Com a exceção de Tim Maia, que cantava com a naturalidade de um astro da Motown, os demais forçavam a garganta para conseguir aquela ambientação soul: Ivan Lins, Tony Tornado, Ronnie Von, Eduardo Araújo, Paulo Diniz e também os irmãos Dom e Ravel, que com suas vozes em uníssono procuravam imitar o estilo interpretativo de Otis Redding, o ídolo da dupla. Mas qual a mensagem das canções de Dom e Ravel? "Se você observar bem verá que as letras das nossas músicas mostram sempre a luta de uma classe social contra a outra, de um determinado setor da sociedade contra o outro." Esta afirmação de Ravel encontra certa base na produção musical da dupla. Algumas de suas canções são de fato testemunhos da existência cotidiana da luta de classes na sociedade - e na perspectiva dos oprimidos - , embora isto possa soar estranho para quem se acostumou a pensar nos dois artistas como meros símbolos do ufanismo no período do governo militar no Brasil. Waldenyr Caldas, por exemplo, em seu livro Iniciação d música popular brasileira, ensina que no governo Médici houve um processo de dilapidação da arte e da cultura, e que compositores como Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Edu Lobo e outros exilaram-se ou foram exilados. "Foi nessa época" diz ele - "que a música ufanista voltou à cena. Lembrando os tempos de Ary Barroso e do Estado Novo, a dupla Dom & Ravel liderou o discurso-exaltação às grandezas do governo da revolução.” (l07) Esta visão, consagrada na historiografia, opondo Dom e Ravel (adesismo) aos compositores da MPB (resistência), me parece redutora e maniqueísta. Entendo que se há, efetivamente, na produção musical de Dom e Ravel, como em toda a música popular daquele período, aspectos que a tornam apropriável pela ideologia dominante (e o tema de Eu te amo meu Brasil, que será tratado no capítulo De armas, bandeiras e lápis na mão, é exemplar), há nela também aspectos que a fazem contestadora desta mesma ideologia.

Conformismo e resistência estão presentes em algumas das mais representativas canções que a dupla produziu nos anos 70 - e por isso eles também foram atingidos pela censura oficial e oficiosa do regime militar. O segundo LP de Dom e Ravel, lançado em 1974, trazia algumas gravações de forte conteúdo social: ”O caminhante”, “Conflito de gerações” e, principalmente, ”Animais irracionais”, faixa que incomodou o governo porque, num momento em que se propagava a idéia de união de todos em prol de um objetivo comum a tal da "corrente pra frente" - , a canção trazia um texto que denuncia o espaço social marcado pela existência de opressores e oprimidos. A primeira parte da letra evoca “a luta dos seres humanos pra sobreviver / um grande açoitando um pequeno / terceiros mandando apartar”, ressaltando que “na maioria das vezes / o grande não quer parar...” Na segunda estrofe o público é convidado a uma reflexão e emerge uma pergunta que é mais uma afirmação a favor da revolta dos dominados diante dos dominadores: ”Tem vezes que um desesperado se põe a pensar / Por que ele deve aos pés de um dos grandes se ajoelhar?” E um pouco mais adiante a letra ainda questiona a função da religião na sociedade - o famoso “ópio do povo" - , criticando, indiretamente, o papel conservador da Igreja, que a torna insensível ao clamor dos oprimidos: "Eu passo por muitas igrejas / pedindo respostas de Deus / pra Ele calado no espaço ouvir os lamentos meus..." Embora a canção encerre uma moral conservadora – “Animais, animais / nós os homens somos todo meio/ animais irracionais...”, reduzindo toda a problemática à irracionalidade do ser humano, percebe-se que Dom e Ravel tiveram a clara preocupação de expressar a negatividade da relação de mando, da subordinação dos oprimidos diante dos opressores, apontando para o fato de vivermos em uma sociedade autoritária na qual a violência é a regra da existência social das classes populares. E o verso "um grande açoitando um pequeno" traz uma imagem que marca a história brasileira desde o período colonial, avança pelo Império e chega até o período republicano, quando os marinheiros liderados por João Cândido, o "Almirante Negro", em 1910 se rebelaram contra os castigos corporais na Marinha de Guerra, no episódio conhecido como A Revolta da Chibata. Um dos remanescentes daquela época, o ex-marinheiro Adolfo Ferreira dos

Santos, o Ferreirinha, chegou a afirmar numa entrevista ao Jornal do Brasil que as chicotadas e lambadas que recebeu nas costas domaram seu gênio e fizeram com que ele compreendesse o que significa ser cidadão brasileiro. (108) Marca indelével da nossa sociedade, o açoite ou a existência de "um grande açoitando um pequeno" levou o historiador José Murilo de Carvalho a encontrar aí a prática brasileira de formação do cidadão. Tomando como base o depoimento de Ferreirinha, José Murilo definiu que, ao contrário do que ocorreu em outras nações do mundo ocidental, a cidadania no Brasil foi implantada a porrete. E esta seria, segundo o autor, a contribuição original brasileira à teoria e à prática da moderna cidadania. E José Murilo acentua que “Ferreirinha virou cidadão, em suas palavras, no marmelo, na lambada, na chibata. Outros entraram no pau, no sarrafo, no cacete, no porrete, no bordão, na manguara, na vara, no cipó. Ou na borduna, a contribuição indígena à nossa pólis. Isto no ciclo do pau-brasil. No ciclo do boi as alternativas ampliaram-se. O candidato a cidadão tinha então à sua disposição o couro, o bacalhau, o chicote, o relho, o açoite, o laço. As técnicas continuaram a diversificar-se. Hoje é o pau-de-arara, o choque elétrico, o “telefone”, o afogamento, o fuzilamento simulado.” (109) Portanto, a canção de Dom e Ravel aponta para uma das características definidoras da sociedade brasileira: o uso frequente do açoite e do porrete. E foi exatamente isto o que mais incomodou as autoridades militares na época, levando-as a proibir a execução da música em todo o território nacional. Na época foi expedido um comunicado da Divisão da Censura do Departamento de Polícia Federal afirmando estar “expressamente proibidas a execução e radiodifusão, em todos os veículos de comunicação, da música Animais irracionais, gravação da dupla de cantores e compositores Dom & Ravel.” (110) Dom acredita que a canção foi vetada porque os censores enxergaram em seus versos alguma referência ao autoritarismo e à violência do regime militar. E efetivamente, no contexto do Brasil daquela época, esta analogia é possível. Basta dizer que pelo mesmo motivo a canção ”Vence na vida quem diz sim”, de Chico Buarque, foi vetada pela Censura em 1974. E a parte da letra mais visada era a que diz: “Se te babam no cangote / mordem o decote / se te alisam com o chicote / olhe bem pra mim / vence na vida quem diz

sim.” E de nada adiantou Chico Buarque propor a troca para “vence na vida quem diz não”. A referência a açoite ou chicote incomodava profundamente às autoridades militares brasileiras. Por isso, a canção gravada por Dom & Ravel também foi proibida e os dois irmãos convocados ao escritório paulista do Departamento de Policia Federal, na Rua Xavier de Toledo, Centro da capital. “Nós fomos várias vezes intimados a ir depor ali e explicar o porquê de ter feito aquela música, aquela letra, e não sei mais o quê; e era aquele chá de cadeira. Às vezes nós ficávamos um dia inteiro ali, quase como uma penitência.” No depoimento acima Ravel demonstra não ter boas recordações daquele local. Dom, o porta-voz da dupla, também esteve no mesmo escritório a convite dos inquisidores. ”Tinha uma censora ali responsável pela área de música, o nome dela era dona Dalva, que foi quem nos mandou o comunicado para comparecer lá. Aí eu procurei explicar a situação pra ela, de que o nosso disco já estava pronto e íamos ter grande prejuízo e tal, mas ela disse: 'Não. Não dá pra liberar. Está censurado e acabou.’” Com o sinal fechado em São Paulo, os artistas decidiram recorrer a setores do governo federal em Brasília. Dom conhecia um coronel cujo parente atuava na área jurídica da Divisão de Censura do Departamento de Polícia Federal. E através deste contato foi possível o compositor articular a defesa para a liberação de Animais irracionais. ”Eu fui ao departamento de censura lá em Brasília e disse: 'olha, essa música não tem nada a ver com o Brasil, isso aqui retrata o problema dos judeus, pois eu sou um admirador do povo judeu, e em solidariedade ao sofrimento desse povo eu fiz essa música.' E foi assim que eu consegui a liberação do disco. Porque os censores tinham na época a liberdade de colocar o julgamento deles, eles decidiam e interpretavam da maneira que eles achavam que deviam interpretar; se eles achassem que aquela música fazia alguma referência ao governo, acabou, mesmo que não tivesse nada a ver. A coisa funcionava assim. Não havia na censura um critério racional, lógico, havia um processo interpretativo.” De fato, era imprevisível o que poderia acontecer a uma composição enviada à Divisão de Censura do Departamento de Polícia Pederal e todas, forçosamente, tinham que passar por lá.

O cantor Wando, que na época teve algumas de suas composições proibidas, também enfatiza a falta de critério dos censores. ”As vezes a gente usava de muita sutileza e a música não passava; outras vezes a gente deixava ir com certos exageros e a música era liberada. Não havia muita lógica.” O processo interpretativo dos censores em algumas ocasiões beirava mesmo o surrealismo. Em 1971 eles implicaram com uma composição da dupla baiana Tom & Dito. O motivo? O título da música: ”Pô”. Os artistas apelaram, modificando-o para ”Ora bolas” e a canção foi liberada. (112) Mas este excesso de zelo era também conseqüência do clima de denúncia que envolvia os próprios profissionais do veto. O ex-censor Onofre Ribeiro da Silva confessa que “havia uma profunda censura dentro da Censura naquela época. Éramos vigiados. Se um censor bobeasse e deixasse passar um dos temas considerados tabu... perdia o emprego.” (113) E entre estes temas "tabus" incluía-se a alusão a açoite ou chicote na sociedade brasileira. Nota-se aqui a presença daquele fenômeno bem conhecido dos leitores de Freud: ao negar, o sujeito apenas afirma implicitamente a existência do negado. Um exemplo de que por mais que se negue o uso do chicote é um dado da nossa realidade social encontra-se num relato do ex-diretor de Patrimônio da Rede Globo, Paulo Cesar Ferreira. Em 1969 ele era assessor de comunicação do então ministro da Fazenda Delfim Neto, que numa das edições do jornal Tribuna da Imprensa recebera duras críticas do jornalista Oliveira Bastos. Naquele mesmo dia, ao encontrar o jornalista em um restaurante da Zona Sul do Rio, Paulo Cesar não pensou duas vezes: deu-lhe um violento murro na cara, atirando-o ao chão. O gesto intempestivo custou-lhe o cargo; afinal, um assessor do ministro da Fazenda não poderia perder o controle daquela forma. Mas Paulo Cesar Ferreira não ficaria muito tempo desempregado. Numa certa tarde seu telefone tocou; era Dr. Roberto Marinho oferecendo-lhe emprego e um afago: “Parabéns pelo soco. Eu faria o mesmo”, acrescentando: “Eu também já tive de dar uns bons socos por aí. Cheguei a dar até chicotadas.” (114)

Não sei se Roberto Marinho utilizou esta última expressão no sentido figurado ou se efetivamente já chicoteou as costas de alguém. Seja como for, ao gabar-se de tal feito, ele revela como é natural para a elite brasileira o uso do chicote confirmando mais uma vez as palavras do abolicionista Joaquim Nabuco de que a escravidão permaneceria por muito tempo como a característica nacional do Brasil. (115) Mas, afinal, quando Dom falou de “um grande açoitando um pequeno” ele estava se referindo mesmo aos judeus? ”Não, eu estava pensando no Brasil. Eu sou realmente um admirador do povo judeu, da sua história, da sua luta, mas eu criei esse discurso para justificar. Mas não era só eu, não. Todo artista naquela época, quando se via numa situação desta, procurava inventar uma justificativa qualquer para resolver o problema, cada um fazia qualquer coisa. Por isso eu contei que tinha feito a música em homenagem ao povo judeu, tendo como base a história geral dos judeus sendo açoitados pelos egípcios, pelos babilônios, pelos romanos e pelos alemães.” A composição gravada por Dom & Ravel revela assim a presença intencional de um recurso também bastante utilizado na época pelos compositores da MPB engajados na resistência: a ambiguidade da letra. É o que Julinho da Adelaide chamava de "samba-dúplex", aquele que muda de sentido quando necessário. "Animais irracionais, como outras músicas que eu compus” - explica Dom - ”tem como característica o fato de ser uma espécie de álgebra musical, ou seja, ela se encaixa perfeitamente em várias situações. Se você for ouvi-la no contexto histórico dos judeus, em relação à sua peregrinação em busca de uma pátria, de um lugar onde assentar o seu povo, você vai encontrar retratada realmente a história do povo judeu; por outro lado, se você transportar toda aquela mensagem para o contexto brasileiro da época, você vai ver os militares açoitando os pequenos, terceiros querendo apartar, que seriam justamente os esquerdistas, os progressistas. Então, automaticamente, a situação retratada na música cabe para um lado e para outro. E foi isso aí o que me salvou.” (116) Outra gravação “cafona” que focaliza o que José Murilo de Carvalho definiu como "cidadania a porrete” (a contribuição original brasileira à teoria e à prática da moderna cidadania), é o samba ”Malandro guardado”, composição de Wando lançada em 1973. Dividida em três estrofes, a letra descreve o drama de um mulato brasileiro que, por não conhecer o seu lugar, “levou na cara”, revidou e foi devidamente encarcerado.

É sintomático que o personagem deste samba composto durante o governo Médici se proclame “mais um malandro guardado”. Afinal, numa época pautada pela ideologia do "Brasil Grande" e de implantação de um novo culto ao trabalho, não dava mais para alguém passar gingando, de lenço no pescoço e navalha no bolso. Os áureos tempos da malandragem pareciam ter ficado definitivamente para trás. Mas o enquadramento à base do porrete continuava, como confessa o personagem na segunda estrofe; “Eu muito tentei/mas não pude evitar / pois malandro que se preza / não apanha na cara / e desaforo pra casa / não deve levar...” E do cárcere ele envia um curto recado: “Diga à minha preta que ponha o meu filho pra estudar / pois filho de malandro não tem vez / mas se ele for doutor / todo mundo vai respeitar.” Esta referência ao estudo do filho na última parte da letra de Wando denuncia mais um aspecto autoritário da nossa sociedade: o fato de que aqui é preciso ser "doutor" para ser respeitado, ou seja, o exercício efetivo do direito à cidadania é privilégio de uma minoria. Aos outros, vale a lei do chicote. Mas novamente José Murilo de Carvalho observa que nada disto impede que sejamos um povo pacífico, extrovertido, amigo, cordial. Pelo contrário, diz ele, "a função do cacete é exatamente dissuadir os que tentam fugir ao espírito nacional de camaradagem, de cooperação, de patriotismo. O cacete é a paternal admoestação para o operário que faz greves, para a empregada doméstica que responde à patroa, para o aluno rebelde, para a mulher que não quer cuidar da casa, para o crioulo que não sabe o seu lugar, para o malandro que desrespeita a 'otoridade', para qualquer um de nós que não saiba com quem está falando.” (117) Diante deste quadro de opressão e autoritarismo - analisado com agudeza pelo cientista social e também detectado pelo compositor popular, - ressalto a indagação formulada na música de Dom & Ravel, e que na época tanto incomodou os vigilantes do regime dos generais: "Por que ele (o oprimido) deve aos pés de um dos grandes se ajoelhar?" Esta mesma pergunta está implícita na letra de O caminhante, gravação de Dom & Ravel que focaliza o cotidiano dos trabalhadores rurais e sua luta pela posse da terra no Brasil, tema que permanece atual porque, no alvorecer do século XXI, este aqui ainda é o país do latifúndio, das vastas extensões de terras improdutivas e o único de dimensão continental que jamais realizou uma reforma agrária plena.

A estrutura fundiária do Brasil é praticamente a mesma desde o início do processo de colonização portuguesa, há 500 anos. Enquanto países das mais diversas concepções político-econômicas, como Estados Unidos, China, México, Japão, Rússia, França e Egito, experimentaram projetos de ampla redistribuição da posse da terra, no Brasil todas as tentativas foram repelidas à bala, e a questão permanece como um caso de polícia. Durante o governo militar cresceu muito e rapidamente a entrada de grandes empresas (nacionais e estrangeiras) no campo, aumentando a concentração da propriedade da terra e tornando mais difícil qualquer tentativa de reforma agrária. Segundo dados fornecidos pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), em 1972, apenas 1,5% dos grandes proprietárias detinham no Brasil mais da metade das terras, 51,4%. Em consequência disso as tensões sociais no campo se ampliavam e geravam violentos conflitos em todas as regiões do país. Atenta a este problema, em 1974 a dupla Dom & Ravel gravou a música O caminhante, que nos apresenta, sem metáforas ou imagens rebuscadas, um quadro da injustiça social resultante do processo de ocupação da terra em nosso país: “Eu ando caminhando por aí / procurando uma região sem dono / na qual eu me sinta proprietário / usuário do que dela eu extrair / tomaram palmo a palmo quase tudo / absurdo que não consigo acreditar.” Mais adiante a letra diz: “Eu vi milhões de arames grossos farpados / já cansado sobre a areia então chorei”, e no refrão conclui: “... onde piso dizem 'isto não é seu' / tanta coisa boa eu deixo de fazer / grande parte de caminhantes já morreu / sem o nosso pobre mundo compreender”. É significativo que entre as canções associadas a Dom e Ravel apenas a letra de ”Eu te amo meu Brasil” tenha sido impressa nos livros de Educação Moral e Cívica, disciplina obrigatória do curso médio na época. Por certo os versos de “O caminhante” não se adequavam bem à imagem que o governo procurava veicular de um "país que vai pra frente" e de um povo feliz e plenamente satisfeito com as realizações governamentais. O texto da música revela que os autores tiveram a clara preocupação de construir uma crítica à nossa realidade social e, indiretamente, denunciar a falácia de projetos como o Estatuto da Terra e o Funrural, com os quais o governo militar dizia estar transformando a dura vida do trabalhador do campo. Ao abordar o explosivo tema da luta pela posse da terra no Brasil, a gravação de Dom & Ravel de certa maneira retoma a linha das canções de

protesto dos anos 60, que têm como um de seus exemplos clássicos a composição ”Terra de ninguém”, de Marcos e Paulo Sérgio Valle, canção que através da voz de Elis Regina incendiava as platéias universitárias nos shows do Teatro Paramount em 1964: "... anda, teu caminho é longo e cheio de incerteza / tudo é só pobreza, tudo é só tristeza / tudo é terra morta onde a terra é boa / o senhor é dono não deixa passar..." É evidente a semelhança temática entre a canção gravada por Dom e Ravel em 1974 e esta composição lançada pela cantora Elis Regina exatos 10 anos antes, quando a luta pela reforma agrária estava na ordem do dia e se expressava através de movimentos como o da Liga Camponesa, liderada pelo deputado Francisco Julião. Ambas as músicas denunciam o processo de concentração fundiária no campo, que se reflete nas cercas de arames grossos farpados que impedem a passagem dos sem-terra. Mas há uma diferença no texto das duas canções e isto se expressa na última parte da composição dos irmãos Valle: "Mas o dia vai chegar / e o mundo vai saber / não se vive sem se dar...” Nesta estrofe está contido aquilo que em seu estudo sobre as canções de protesto dos anos 60 Walnice Nogueira Galvao definiu como a mitologia do "dia que virá". Ou seja, se, por um lado, as canções de protesto dos anos 60 denunciavam a injustiça social no Brasil, por outro elas consolavam o ouvinte com a utopia de que o dia da redenção do povo estaria garantido em algum lugar do futuro, no "dia que vai chegar". E Walnice Nogueira identifica o fenômeno em diversas canções daquele período. Exemplos: ”Aroeira”, de Geraldo Vandré: "E a gente fazendo conta / pro dia que vai chegar"; ”Vento de mato”, de Gilberto Gil e Torquato Neto: "Monte seu cavalo baio / que o dia já vai chegar"; ou ”Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam: "Eu espero, não vá demorar / este dia estou certo que vem". Traço essencial de diversas outras composições de cunho políticoparticipante da MPB, a ênfase no "dia que virá", diz a autora, acaba por negar ao homem o seu papel de agente da história, que passa a ser "o dia". "Trata-se, portanto, de uma proposta imobilista e espontaneísta. Imobilista porque prega os braços cruzados. Espontaneísta porque delega a ação a 'o dia', essa abstração mitológica", e Walnice conclui dizendo que "já que a utopia se cumprirá espontaneamente, eu não sou responsável, não tenho tarefas a executar, estou dispensado de agir.” (119) Embora também não estejam imunes às suas próprias contradições, nas mensagens de conteúdo crítico-social produzidas por Dom & Ravel, assim como por toda esta geração de compositores "cafonas", jamais aparece o tempo do verbo anunciando a redenção do povo no futuro (aliás, a palavra "povo" raramente aparece nestas composições).

E assim a canção “O caminhante”, ao relatar a luta de um camponês que onde pisa "dizem isto não é seu", está próxima da nossa realidade social e de certa maneira antecipa imagens que, duas décadas mais tarde, a sociedade brasileira iria acompanhar através da televisão, quando os meios de comunicação tiveram que abrir espaço para o drama dos trabalhadores sem-terra, principalmente após a emergência do MST e do massacre de 19 camponeses na região de Carajás, no Pará, em abril de 1996 (numa prova de que o dia ainda não chegou).(120) Mas, em 1974, quando foi gravada ”O caminhante”, esta luta ainda era oculta e silenciosa. "Naquela época, dava medo só em pronunciar a palavra 'reforma agrária' - recorda Ravel – “a gente via o medo das pessoas só em pronunciar isso.” E por que Dom & Ravel gravaram a canção, pergunto eu? “Porque nós sabíamos que esse problema da exploração do trabalhador rural era muito grande no Brasil. As pessoas viviam no campo quase como escravos, com um salário de miséria.” E Ravel afirma que eles testemunharam isso nos vários shows da dupla pelo interior do Brasil. "Nós sempre estivemos nos apresentando em localidades onde a maioria dos artistas não queria ir. Nenhum artista da MPB ia se apresentar em Capual, Vilhena, Ji-paraná, Pimenta Bueno, Rolim de Moura, Presidente Médici; é incrível, mas nós vimos nascer esses municípios todos. Inúmeras vezes a gente cantou para aqueles trabalhadores que estavam construindo a Transamazônica. E era um risco muito grande para um artista fazer um show ali. Mas nós fazíamos os nossos shows assim, cantando embaixo de galpões, em fazendas, levando mordidas de mosquito, ficando atolado na estrada, vendo a miséria do povo, aquele povo simples que adorava música. Num abraço que você dava numa pessoa daquela você via as lágrimas correrem de emoção; eles achavam que era impossível cumprimentar um artista que eles tinham visto numa telinha de televisão ou que escutavam no rádio e no disco. Assim a gente foi tendo contato com o trabalhador rural. E dava para perceber que o patrão tinha um discurso e o trabalhador tinha outro. Às vezes os empregados da fazenda pronunciavam um desabafo, dizendo pra gente: 'Eu e a minha família não vamos sair mais disso; vamos viver eternamente ganhando só pra comer. E, se sair daqui, o que eu sei fazer é lidar com terra, eu vou cair na mão de outro explorador pior. Então não vejo futuro.' E isso serviu de tema pra desenvolver a música, que foi feita nesse período de observação dessas coisas todas."

A canção ”O caminhante” foi lançada num momento em que a crítica à política social e trabalhista do regime autoritário começava a ressoar nos principais centros urbanos do país. A combinação de fatores de ordem externa - a crise do petróleo de 1973 - com as características do modelo econômico brasileiro levou ao progressivo esgotamento do "milagre" a partir do governo Ernesto Geisel, em 1974. Agora era chegado o momento de pagar a conta. Os dólares disponíveis no mercado internacional diminuíram e os juros cobrados aos países endividados aumentaram. (121) Para a classe assalariada a crise se refletiu na alta do custo de vida e no aprofundamento da exploração da força de trabalho: o valor real do salário mínimo em 1974 atingiu seu nível mais baixo até então, representando pouco mais da metade do valor estabelecido em 1940.(122) Paralelo ao aumento cada vez maior da inflação e à redução do crescimento econômico, ia tomando corpo na sociedade a oposição ao regime militar, fato que se traduziu de forma clara com a vitória do MDB nas eleições legislativas de 1974. Sem conseguir mais o mesmo convencimento de antes, o regime ainda apresenta novos slogans como "Este é um país que vai pra frente", embora, pressionado pelos setores mais organizados da sociedade civil, também apresente o seu projeto de abertura política "lenta, gradual e segura" . É também a partir desta época que o trabalhador rural começa a rearticular movimentos pela defesa da reforma agrária em diversas regiões do Brasil. Assim, a canção de Dom & Ravel encontra um terreno minado e pronto para explodir.

"Uma vez, lá no Norte, na região do Araguaia" - recorda Dom - "nós cantamos essa música num show. Na época a gente ainda não sabia o que estava acontecendo naquela área. Mas ao final do show fomos abordados por uma pessoa ligada aos proprietárias de terra de lá; Ele me chamou a uma sala particular do clube e disse: 'Olha, nós temos uma grande satisfação de recebê-los aqui sabemos que vocês ainda têm uma série de outros shows por toda essa região, então eu chamei você aqui para lhe advertir de uma forma muito amistosa: não cantem mais essa música nesses outros shows. Não cantem mais, porque vocês estão estimulando os nossos inimigos contra nós. E nós não admitimos isso."' Segundo Dom, ele ainda tentou se defender argumentando que não 'tinha cantado a música com aquela finalidade, mas o ruralista retrucou: "Mesmo que os senhores não estejam cantando com essa finalidade, nós é que

estamos pagando o show dos senhores aqui no clube, o nosso partido é quem subvenciona todas essas propagandas do clube e das rádios daqui, então, por favor, estou advertindo o senhor de uma forma bem amistosa, não cantem mais essa música nessa sequência de shows aí, tá bom?"

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A região do Araguaia - local onde Dom travou este tenso diálogo - ainda respirava naqueles dias o cheiro da fumaça do duro confronto que guerrilheiros do PC do B e forças do Exército travaram pelo controle da área entre 1972 e início de 1974. Foi a partir do período do AI-5 que diversas organizações e grupos políticos brasileiros de formação marxista empenharam-se pela luta armada como forma de combate ao regime militar. Num documento de Setembro de 1969, o PC do B (Partido Comunista do Brasil - uma dissidência do antigo PCB) (123) procurou justificar esta opção com o argumento de que "para alcançar a liberdade, o progresso e a independência da pátria, o povo brasileiro terá que empunhar armas e travar a guerra popular. O regime atual não cairá sem os golpes desfechados por um extenso e poderoso movimento armado das grandes massas".

O mesmo documento garantia que "na medida em que as massas forem mobilizadas e os revolucionários mantiverem firmemente suas posições de combate, as chamas da luta armada se propagarão sempre até transformar-se num grande incêndio que consumirá os carrascos e exploradores do povo e destruirá o seu poder político". (124) Ao contrário da maioria das organizações da esquerda armada, que concentrava suas ações nos centros urbanos do país, o PC do B priorizava a luta no campo por acreditar que ali propiciava melhores condições ao desenvolvimento seguro das ações revolucionárias. Assim, a sua base guerrilheira foi montada numa área entre o sul do Pará e o norte de Goiás (atual estado de Tocantins), à margem esquerda do rio Araguaia. Inspirando-se nos ensinamentos do camarada Mao Tsé-tung, os guerrilheiros do PC do B, a maioria de formação universitária e alguns treinados na própria China, introduziram-se como pessoas comuns no meio

da população rural do Araguaia. Uma parte dos militantes foi trabalhar na roça e nos garimpos; outra foi organizar escolas, postos de saúde, todos buscando o apoio dos camponeses, pois só assim, acreditava-se, a guerra revolucionária seria vitoriosa. Do grupo faziam parte comunistas históricos como João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Chaves e outros mais jovens, como José Genoíno. A preparação militar dos guerrilheiros incluía aulas práticas e teóricas. Estas últimas eram reforçadas com a leitura coletiva de clássicos de guerra como a “Retirada da Laguna”, de Visconde de Taunay, e “Os sertões”, de Euclides da Cunha. Os militantes tinham como princípio não se deixar prender vivos. O Exército entrou no Araguaia em meados de abril de 1972. Depois de ter passado uma noite chuvosa sozinho na mata, na manhã do dia 18 daquele mês, José Genoíno foi preso, quando se encaminhava para seu destacamento. "Se eu tivesse uma bala metia em mim", diz ele, que instantes depois conseguiu se desvencilhar dos soldados e, provocativamente, correu gritando: "Podem atirar, podem atirar..." Eles atiraram, mas atingindo-o apenas no braço. "Eu caí, eles me pegaram, me amarraram pela cintura num cavalo e começaram a me bater com o relho e o cipó." Mais tarde Genoíno foi amarrado num tronco de árvore e interrogado à base de mais chicotadas e pontapés. "Na madrugada do dia 19 eles pararam de bater, caí no chão, um cachorro veio, cheirou meu corpo, encostou o focinho e me lambeu", recorda. Os índios Suruí - que tinham sua aldeia na região serviram de batedores para o Exército, guiando as tropas na mata e indicando pistas dos guerrilheiros. "Os soldados sempre procurava nós", confirma o índio Arecachu.(126) E quem não aceitava colaborar era acusado de cúmplice da guerrilha, tendo o mesmo destino de José Genoino: o tronco e o chicote. E este era um castigo até brando, levando-se em conta que alguns guerrilheiros do Araguaia tiveram suas cabeças simplesmente cortadas. Um camponês, que guiava o Exército na região, testemunhou a degola de Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, um negro alto e forte, o mais

temido dos guerrilheiros, abatido num milharal, numa tarde de março de 1974. "O sargento pegou a faca, lubrificou... pegou o pescoço dele, botou num pau embaixo e foi cortando, cortando, cortando...” (127) A cabeça do bravo Osvaldão tombou da mesma forma que no passado tombaram as cabeças de Zumbi dos Palmares, Tiradentes, Gumercindo Saraiva, Antônio Conselheiro, Lampião, Maria Bonita todos degolados por forças da repressão. ”Á História do Brasil é assombrada por cabeças sem corpo e corpos sem cabeça", constatou em um artigo o jornalista Roberto Pompeu de Toledo.(128) Mas o camponês do Araguaia confessa que não teve coragem de ver essa tétrica cena até o fim. "Na hora em que o sargento cortava a cabeça de Osvaldão eu não aguentei e me afastei para trás. Aí o sargento me empurrou para a frente e disse: 'Tu lá torcendo por ele? Se tu não agiienta ver, tu tá torcendo por ele. Tu é terrorista também'.” (129) Acusação semelhante era dirigida a membros da combativa Igreja local, e alguns padres e agentes de pastoral chegaram a ser presos e torturados. A tensão mais visível foi com dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia e autor de poemas de clara inspiração marxista: "Malditas sejam todas as cercas! / malditas todas as propriedades privadas / que nos privam de viver e de amar...” (130) Dom Pedro foi chamado a depor na polícia e só não caiu porque contava com o respaldo de influentes nomes da Igreja, como dom Hélder Câmara e dom Paulo Evaristo Arns, que retornou de uma viagem a Roma dizendo ter ouvido do papa Paulo VI a seguinte advertência: “Mexer com dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix, seria mexer com o próprio papa.” (131) O primeiro grande combate no Araguaia entre os militantes do PC do B e as forças do Exército ocorreu no fim de abril de 1972, com a vitória dos cerca de 70 guerrilheiros. Em Setembro daquele mesmo ano realizou-se a segunda investida das tropas do governo, que, com mais ou menos 10 mil homens, novamente foram derrotadas. A bravura e a competência da guerrilha surpreendiam até os mais experientes militares do Exército brasileiro. O repórter Fernando Portela relata que em determinado momento da luta um militante do PC do B, depois de causar uma grande baixa nas tropas do

governo, acabou morrendo no combate. O comandante da ação, um major, ainda assim irritado com o desempenho dos seus soldados, perfilou-os diante do guerrilheiro morto e esbravejou: “Este homem, aí no chão, é um herói. É um soldado heróico lutando do lado errado. E vocês, o que vocês são? “ (132) Atingido em seus brios, em Outubro de 1973 o Exército iniciou a terceira campanha e só aí conseguiu desmantelar a guerrilha do Araguaia, que, em maio de 1974, finalmente se dispersou. Portanto, quando naquele ano Dom e Ravel foram ali apresentar a canção ”O caminhante”, os fazendeiros da região ainda estavam assustados com a possibilidade de uma revolução popular no local. É compreensível assim que tenham ficado incomodados com a mensagem da música e feito veladas ameaças aos artistas. “Nós ficamos com medo depois daquela advertência” - confessa Dom “porque começamos a nos informar de que a barra ali estava muito pesada. Tinha gente que morria sem saber por que. Eles faziam o aviãozinho cair, o carro bater e despencar numa ribanceira, enfim, criavam uma situação qualquer para fazer o cara sumir do mapa. Me diziam isso, né? Então, a partir dali, passamos a não cantar mais essa música naquela turnê e nem em outras regiões do interior onde tinha conflito de terra. Porque uma coisa é a gente ser idealista, outra é ser imprudente. Eu tinha uma filha para criar e tinha minha família que dependia de mim. Em determinados locais, digamos num programa de televisão, ou num show em uma outra área, até que a gente cantava esta música. Mas em regiões onde havia conflitos de terra a gente passou a não cantar mais. Foi uma época em que estava ainda muito no começo desse movimento dos sem-terra e a coisa estava braba mesmo. Naquela região do Araguaia o pau estava comendo e já estava morrendo muita gente.” O depoimento de Dom nos leva mais uma vez a refletir que os atos de repressão sobre os artistas de nossa música popular naquele período não se limitaram à ação da censura oficial do regime em Brasília. Foram exercidos também por grupos particulares através da força de argumentos como o desse representante dos proprietárias de terra. E é possível supor que esta mesma ameaça tenha sido dirigida a diversos programadores de rádios da região Norte-Nordeste e Centro-Oeste, que, talvez inadvertidamente, tenham veiculado no ar a canção ”O caminhante”. Afinal, como confessou aquele ruralista, eram os latifundiários quem subvencionavam a publicidade do clube e das rádios locais e eles não permitiriam a divulgação de uma música cujo refrão protestava: “Onde piso dizem 'isto não é seu' / tanta coisa boa eu deixo de fazer / grande

parte de caminhantes já morreu / sem o nosso pobre mundo compreender...” **

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS APENSAS AO CAPÍTULO (encontradas no texto pela numeração seqüencial):

107 Waldenyr Caldas. Iniciação à música popular brasileira. São Paulo: Ática, 1985, p. 69. 108. "Um companheiro de João Candido" - Jornal do Brasil, 8-12 -1988. 109. José Murilo de Carvalho. "Cidadania a porrete". In Pontos e bordados; escritos de históriR e política Belo Honzonte: Ed. UFMG, 1998, p. 309. 110. Conforme depoimento de Ravel ao autor, 13-1-1998. 111. Em consequência do veto da censura, a primeira gravação que Chico Buarque fez desta música foi apenas instrumental. LP “Chico canta” Philips P.1973. A versão com a letra foi gravada mais tarde por Nara Leão. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 112. Cf. Alberto Moby, op. cit., p. 143. 113. Idem, p. 103. 114. Paulo Cesar Ferreira. Pilares via Satélite: da Rádio Nacional à Rede Globo. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 157. 115. Joaquim Nabuco. Minha formação. Porto Alegre: Paraula, 1995, p. 153. (Autobiografia escrita em 1900.) 116. Finalmente liberada, “Animais irracionais” logo alcançou as paradas de sucesso, ocupando o 4° lugar na relação dos 15 LPs nacionais mais executados durante o mês de Junho de 1974, em São Paulo. Fonte: Ibope -

Pesquisa sobre vendas de discos” Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp. 117. José Murilo de Carvalho, op. cit., p. 309. 118. Cf. José de Souza Marfins. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 142. 119. Walnice Nogueira Galvão. "MMPB: uma análise ideológica". In Saco de gatos; ensaios críticos. São Paulo: Duas Cidades, 1976, pp. 96 e 104. 120. O fato ocorreu no dia 17 de abril de 1996 em Eldorado do Carajás. Num choque com policiais militares do governo do Pará, 19 sem-terra foram mortos e o episódio ganhou repercussão internacional. 121. Cf. Nadine Habert. A década de 70: apogeu e crise da ditadura militar brasileira. 2a ed. São Paulo: Ática, 1994, pp. 40-42. 122. Fonte: Dieese. Boletim, abr. 1982. Apud Sônia Regina de Mendonça. Estado e economia no Brasil: opções de desenvolvimento. 2a ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 67. 123. Liderado por Luiz Carlos Prestes, o PCB (Partido Comunista Brasileiro) era contrário à luta armada naquele momento por acreditar que isto só contribuiria para aumentar a repressão e dar armas à reação do regime militar. O chamado Partidão optou por manifestações de pressão política, dentro da lei e da ordem. 124. Apud Renato Mocellin. As reações armadas ao Regime de 64: guerrilha ou terror?. São Paulo: Ed. do Brasil, 1989, p. 43. 125. 'Á versão de um guerrilheiro" - Movimento, 17-7-1978. 126. 'Á Igreja fala sobre a guerrilha" - Movimento, 17-7-1978. 127. "Cabeças cortadas do povo da mata" - Movimento, 9 a 15-7-1979. 128. 'Á teimosa mania de cortar cabeças' - Veja, 8-5-1996. 129. "Cabeças cortadas do povo da mata" - Movimento, 9 a 15-7-1979. 130. Apud Plínio Correa de Oliveira. A igreja ante a escalada da ameaça comunista: apelo aos bispos silenciosos. 4a ed. São Paulo: Vera Cruz, 1977, p. 13.

131. Idem, p. 31. 132. Fernando Portela. Guerra de guerrilhas no Brasil. 6a ed. São Paulo: Global, 1979, p. 82.

(BENITO DI PAULA À PROCURA DE GERALDO VANDRÉ) “Era disso que o samba estava falando, o lance é esse aí. O Juca queria ser o presidente da República, sacou?” (Benito Di Paula)

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O recurso da linguagem da fresta - aquela de que malandramente se valeram artistas como Chico Buarque e Gonzaguinha para burlar o cerco da censura - também foi utilizado naquela época pelo cantor e compositor Uday Vellozo, o sambista cigano que ficaria mais conhecido com o nome artístico de Benito di Paula. Autor de ”Retalhos de cetim”, “Charlie Brown” e vários outros sucessos populares, este ícone do chamado sambão-jóia também teve a sua carreira musical marcada por atos da repressão política e, como veremos, não apenas da ditadura militar do Brasil. Depois de um fracassado compacto com boleros nos anos 60 e de uma longa trajetória como cantor da noite, em março de 1971 Benito di Paula conseguiu finalmente gravar o seu primeiro LP. Mas assim que foi lançado, o disco teve que ser recolhido das lojas Motivo: na faixa de abertura ele interpreta o samba ”Apesar de você”, de Chico Buarque. Era uma das primeiras regravações deste samba, que ainda não estava proibido quando Benito o gravou. "Mas quando a música de Chico foi cassada o meu disco foi junto também. E naquela época não se podia tirar música de um disco. Hoje em dia quando há algum problema, você tira a música e coloca uma outra ou não coloca nenhuma. Naquele tempo era muito difícil, era muito complicado fazer isso. E o meu disco já estava pronto. Aí seguraram ele também. Quer dizer, na realidade eu não tive um disco lançado, tive um disco guardado, porque nem sequer consegui divulgar esse trabalho.” "Benito Di Paula" (1971) - teve seu lançamento proibido por causa de uma canção de Chico Buarque A inclusão de “Apesar de você” neste primeiro LP de Benito di Paula se deu porque a gravadora Copacabana queria aproveitar a experiência do artista como cantor da noite. Decidiu-se então pela regravação de algumas músicas que estavam fazendo sucesso naquela temporada: “Jesus Cristo” (Roberto e Erasmo), “Na Tonga da Mironga do Kabulete” (Toquinho e Vinícius), “Madalena” (Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza), “Azul da cor do mar” (Tim Maia)”, mas ninguém na gravadora poderia imaginar que uma dessas regravações, o samba “Apesar de você”, fosse causar o estrago que causou.

Num primeiro momento não era óbvio para todo mundo que a mensagem de Chico Buarque era endereçada ao presidente Médici. A própria Censura só foi perceber isto meses depois do lançamento, quando o compacto de “Apesar de você” já tocava no rádio e havia vendido cerca de 100 mil cópias. E esta demora se explica porque o jovem cantor de olhos verdes não era até aquele momento identificado como autor de canções de protesto e sim de líricas e nostálgicas canções como “A banda”, “Olê olá”, “Carolina” e “Quem te viu quem te vê”. Basta lembrar que em pleno 1968 o presidente Costa e Silva incluiu “Carolina” num LP intitulado “As minhas preferidas”(disco cuja capa mostra o ditador em família: ao lado da esposa e da neta),(133) e em junho daquele mesmo ano, durante a Bienal do Samba, em São Paulo, Chico Buarque teve a sua composição “Bom tempo” vaiada pelo público de esquerda, que não compreendia naquele contexto o motivo de tanto otimismo em versas como ”satisfeito / a alegria batendo no peito / o radinho cantando direito / a vitória do meu tricolor”. Vaias que, três meses mais tarde, se amplificaram pelos cinco mil altofalantes quando “Sabiá” (parceria de Chico com Tom Jobim) venceu “Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, na terceira edição do FIC. Diante do engajamento explícito da música de Vandré, os versos de “Sabiá” e, principalmente, do samba “Bom tempo”, soavam demasiadamente brandos, escapistas e inofensivos. Desta forma, quando, logo após a decretação do AI-5, Chico Buarque foi levado para depor na sede do I Exército, no Rio, os questionamentos eram apenas em relação à sua presença na Passeata dos Cem Mil e à polêmica em torno da montagem da peça “Roda viva”. (134) Os militares não manifestaram qualquer crítica às suas composições. E, segundo Chico, naquele mesmo dia um tal de general Assunção lhe comunicou que ele não seria preso porque “tinham-no achado muito simpático, além de ele ser torcedor do Fluminense” - o que devia contribuir para enfatizar a sua imagem de bom moço.(l35) O fato é que até o momento da proibição de “Apesar de você”, Chico Buarque não possuía a imagem de paladino da democracia e de contestador do regime militar - “o nosso Errol Flynn” - , no dizer de Glauber Rocha que ele passou a carregar depois deste episódio. E isto explica o cochilo da Censura e, também, o da própria gravadora de Benito di Paula ao incluir aquele samba no disco do cantor.

Com este primeiro LP inesperadamente proibido e recolhido das lojas, com total prejuízo para artista e gravadora, foi adiada para o ano seguinte, 1972, a gravação de um novo trabalho de Benito di Paula. Tendo como carro-chefe o samba “Violão não se empresta a ninguém”, o segundo LP incluía na maioria das faixas, canções inéditas do próprio Benito e algumas de outros compositores. Mas outra vez o cantor correu o risco de ter o seu disco proibido pela censura. Num momento em que a imprensa destacava em manchetes que “Médici é o maior” (título que ilustrava a divulgação de números do Ibope com altos índices de popularidade para o presidente),(136) o LP de Benito di Paula trazia o samba “O bom é o Juca”, de Carlos Magno, composição de conteúdo sociopolítico que, assim como “Apesar de você”, veladamente fazia referência ao general ditador:

O JUCA FALOU QUE SE ELE FOR PRESIDENTE RESOLVE O PROBLEMA DO MORRO DE VEZ ARRANJA REMÉDIO PARA QUEM ESTÁ DOENTE ARRUMA COLÉGIO PROS FILHOS DA GENTE SÓ TEMOS TRÊS BICAS, COLOCA MAIS TRÊS, SÃO SEIS QUADO O JUCA VENCER VAI NASCER UMA FLOR VAI TER TELEFONE E ELEVADOR SE ELE FALOU PODE VER QUE É CERTO TEM UM CORAÇÃO QUE É UM CÉU CANSADO DE TUDO E REPLETO DE AMOR...

Para que o Juca não fosse acusado de pretender o cargo do presidente Médici, no final do samba o compositor explica que “muita coisa pode acontecer / o bom é o Juca e tem que ser / presidente da escola”. Mas hoje, passados mais de 25 anos, Benito di Paula confirma as intenções políticas do Juca: “Era disso que o samba estava falando, o lance é esse aí. O Juca queria ser presidente da República, sacou?” Quem não sacou foram os censores de plantão, que não perceberam a analogia entre Brasil-favela, presidente da República-presidente da escola, e liberaram O bom é o Juca sem maiores problemas. Mas este é um típico samba que, se fosse assinado na época por alguém como

Chico Buarque - que depois do caso “Apesar de você” tornou-se uma obsessão da Censura - , muito provavelmente teria sido proibido.

Mas o seu autor, Carlos Magno, músico que trabalhava com Benito di Paula nas noites de São Paulo, era tão desconhecido em 1972 quanto Julinho da Adelaide em 1974. De qualquer forma, o recurso da linguagem da fresta foi fundamental para despistar os censores. **

E este mesmo ardil é utilizado por Benito di Paula em um outro samba intitulado ”Tributo a um rei esquecido”:

ELE FOI UM REI E BRINCOU COM A SORTE HOJE EL É NADA E RETRATA A MORTE ELE PASSOU POR MIM MUDO E ENTRISTECIDO EU QUIS GRITAR SEU NOME NÃO PUDE ELE OLHOU PRA PAREDE E DISSE COISAS LINDAS DISSE UM POEMA PARA UM POSTE ME VIERAM LÁGRIMAS O QUE FOI QUE FIZERAM COM ELE? NÃO SEI SÓ SEI QUE ESSE TRAPO, ESSE HOMEM FOI UM REI

Lançada em 1974, ”Tributo a um rei esquecido” é uma homenagem de Benito di Paula a um dos artistas brasileiros mais visados pela ditadura militar: o cantor e compositor Geraldo Vandré. O verso "Eu quis gritar seu nome / não pude” é uma referência ao fato de a simples pronúncia do nome Geraldo Vandré ser objeto de censura na época. A sua voz e a sua imagem estavam praticamente banidas no

Brasil. Mas o samba de Benito, além de evocar a memória do artista proscrito, amplificava uma pergunta que muitos brasileiros faziam (e ainda fazem) em relação a Vandré: “O que foi que fizeram com ele?” Ao longo dos anos a resposta para esta pergunta tem corrido de um extremo ao outro: para uns Vandré foi um idealista que não transigia com sua arte e foi torturado até sofrer um processo de lavagem cerebral; para outros, Vandré sucumbiu à pressão (quando ainda poderia ter resistido) e o seu comportamento excêntrico e esquivo visa apenas alimentar o mito criado em torno de si. Seja como for, a origem desta polêmica tem local, data e nome determinados: Rio de Janeiro, Maracanãzinho, 29 de Setembro de 1968, “Pra não dizer que não falei de flores”. Ali, em pleno regime militar, Geraldo Vandré apresentou ao público e ao júri do III Festival Internacional da Canção a mais contundente crítica jamais feita ao Exército brasileiro numa letra de música popular e num momento em que as Forças Armadas controlavam os poderes da República. – HÁ SOLDADOS ARMADOS, AMADOS OU NÃO QUASE TODOS PERDIDOS DE ARMAS NA MÃO NOS QUARTÉIS LHES ENSINAM UMA ANTIGA LIÇÃO DE MORRER PELA PÁTRIA E VIVER SEM RAZÃO... A repercussão da música foi imediata. De sua base no Forte Coimbra, no pantanal mato-grossense, o general Aspirante Basto enviou uma “Carta a Geraldo Vandré”, publicada no Última Hora, e na qual ele questionava o compositor: “O que entende você de pátria, para dizer que nos quartéis se vive sem razão? Que mais você fez nesta vida, sem ser em troca de lucro?”, indagando ainda que “será uma vida sem razão a dos homens que neste momento, como eu, em terras longínquas ensinam a cor da bandeira brasileira?” Mais adiante ele aconselhava o artista: “Cante o que quiser, mas não coloque nada de pátria no meio. Você não sabe o que é isso. A sua pátria deve ser um copo de cerveja.” E num tom cada vez mais exaltado, o general vaticinava: “Voce passará, Vandré. O povo esquece depressa. Sua música causou sensação, mas logo será esquecida.” (138) Aspirante Basto pode ter sido um bom militar, mas foi com certeza um péssimo vidente. Lançada em meio aos protestos estudantis de 1968, “Pra não dizer que nao falei de flores” (ou “Caminhando”, como ficou mais conhecida) se tornou uma espécie de Marselhesa brasileira, inflamando greves e passearas até os dias de hoje. Na época a composição não venceu o festival e foi proibida pela Censura

Federal sob o argumento de veicular uma mensagem “subversiva e atentatória ao regime democrático”(139) Mas os militares não estavam satisfeitos; queriam também a "cabeça" de Geraldo Vandré. E logo após a decretação do AI-5, quando já não havia mais regime democrático, foram bater à porta de um hotel em Anápolis, Goiás, onde o cantor se hospedara em meio a uma turnê. Providencialmente, entretanto, Vandré já estava a caminho do Rio, seguindo depois para a fazenda de Dona Aracy Carvalho, viúva do escritor João Guimarães Rosa, no sertão mineiro. Pouquíssimas pessoas sabiam do esconderijo, no qual Vandré permaneceria durante mais de um mês. O compositor Geraldo Azevedo, um dos poucos que tinham acesso a ele, recorda-se da tensão daqueles dias. “Para ir lá eu tinha de me comportar como um militante de organização política clandestina; entrava num carro, mudava para outro, fazia tudo para despistar pessoas da repressão que pudessem estar me seguindo para, por meu intermédio, chegar a Vandré.” (140) Ali, na fazenda dos Guimarães Rosa, enquanto traçava a rota que seguiria no exílio, Vandré compôs em parceria com Geraldinho Azevedo “A canção da despedida”, premonição da sua própria trajetória a partir dali: ”Já vou embora / mas sei que vou voltar / amor, não chora / se eu volto é pra ficar...” (141) Depois do sertão mineiro, a estratégica retirada de Vandré contou com uma breve escala no apartamento da atriz e modelo carioca Marisa Urban, sua namorada na época. O cerco policial se fechava sobre o cantor e ele foi pedir guarida ao governador de São Paulo, Abreu Sodré, com quem tinha boas relações. “Não tive dúvidas. Convidei Vandré a permanecer no Palácio Bandeirantes, nos mesmos aposentos que serviriam mais tarde para receber a rainha da Inglaterra. Ele aceitou de bom grado e lá permaneceu” , afirmou o ex-governador .(142) Alguns dias depois, sob a orientação do próprio Abreu Sodré, o artista seguiu para o Rio Grande do Sul e em pleno domingo de Carnaval, 16 de fevereiro de 1969, a bordo de seu Gálaxie preto, atravessou a fronteira do Brasil com o Uruguai. A partir daí ninguém sabia ao certo o destino tomado por Geraldo Vandré. É quando se ouve pela primeira vez a indagação mais tarde retomada no samba de Benito di Paula: “O que foi que fizeram com ele?” Os primeiros boatos diziam que ele estaria preso e incomunicável em alguma guarnição

do Exército, de que fora torturado ou até mesmo executado pelo Esquadrão da Morte. Em Junho de 1969 parte do mistério se desfez quando o jornal O Globo localizou Vandré em Santiago do Chile. “Estou bem vivo. Escrevendo e fazendo da saudade o que posso fazer”, disse ele à reportagem. (143) Sem visto para permanecer no país, no mês seguinte Vandré foi obrigado a deixar o Chile. Seguiu para a Argélia e depois a Europa: Alemanha, Áustria, Itália. Caminhando e cantando às vezes em troca de pouso e comida Vandré percorreu povoados do interior da Grécia, Bulgária e Iugoslávia. Na França, fez uma pausa de 18 meses e ali, em novembro de 1970, gravou seu último LP: "Das Trras de Benvirá". Em março do ano seguinte, foi detido pela Polícia francesa por porte de haxixe e obrigado a deixar o país. Vandré consegue retornar a Santiago, mas o exílio já se tornara um pesadêlo e o artista recorria cada vez mais ao uso de calmantes para conseguir dormir. Num Chile àquela altura convulsionado, com toques de recolher, à beira do golpe militar, acentuaram-se as crises depressivas do compositor, num processo de desintegração psicológica que o fez submeter-se a tratamento psiquiátrico durante 45 dias. Enquanto isto, no Brasil, sua família articulava negociações para que ele pudesse voltar. Através de um general que a mãe de Vandré conhecera numa sessão de centro espírita foi feito o contato com autoridades do governo Médici. E assim, em Julho de 1973, dois meses antes de as tropas do general Pinochet tomarem o poder e cortar as mãos do cantor de protesto chileno Vitor Jara em pleno Estádio Nacional, Geraldo Vandré deixou Santiago, embarcando ao Rio de Janeiro. Tão obscuro quanto sua saída foi o seu retorno ao país. O autor de “Pra não dizer que não falei de flores” fez uma única viagem de volta, mas desembarcou duas vezes no Brasil. Houve um desembarque real e um segundo desembarque, fictício. O primeiro foi noticiado pelo Jornal do Brasil em sua edição de sexta-feira, 18 de Julho de 1973. “O cantor e compositor Geraldo Vandré foi preso, ontem, no aeroporto do Galeão, ao desembarcar de um avião. O artista foi levado para uma unidade militar, onde se encontra incomunicável.” (144) Seguiram-se 33 dias de absoluto silêncio. É quando é apresentado o desembarque fictício de Vandré em terras brasileiras. Na noite de 21 de agosto de 1973, a câmera do Jornal Nacional da TV Globo focaliza a

escada de um Electra da Varig no aeroporto de Brasília. O angulo vai se fechando e o rosto de Geraldo Vandré, barbado e com a expressão cansada, aparece na tela. Neste momento o locutor informa que “o cantor e compositor Geraldo Vandré acaba de voltar ao Brasil”. O artista desce a escada e caminha lentamente pela pista do aeroporto. A seguir é mostrada a primeira fala de Vandré à televisão brasileira desde 1968. Cabisbaixo e com a voz trêmula, ele afirma que pretendia integrar suas composições “à realidade nova do Brasil, que espero encontrar em um clima de paz e tranqüilidade” e queixa-se de que sua música foi apropriada por grupos políticos contra a sua vontade: “Voces sabem, a arte às vezes é usada por um grupo determinado com interesses políticos e isso transcende a vontade do próprio autor. Eu, o que tenho a dizer é que, na verdade, nunca estive vinculado ou comprometido em toda a minha vida com qualquer grupo político.” Por fim, ele declara que dali pra frente desejava “só fazer canções de amor e paz” (145) É neste espaço de tempo entre a chegada de Vandré em 17 de julho de 1973 e esta "volta" apresentada pela TV Globo, 33 dias depois - que melhor se situa a pergunta formulada no samba de Benito di Paula: “O que foi que fizeram com ele?” Sabe-se que após aquele primeiro período incomunicável numa unidade do I Exército, no Rio de Janeiro, o compositor também esteve preso numa carceragem da Polícia Federal em Brasília. E foi provavelmente entre uma cela e outra que a polícia política conseguiu arranjar a retratação ou confissão que Vandré apresentou ao público através do Jornal Nacional. Geraldo Vandré - O que aconteceu de fato, com ele? O fato é que, quando num daqueles dias de 1974, Benito di Paula avistou Geraldo Vandré “dizendo um poema para um poste”, o autor de “Disparada” já era uma sombra de si mesmo. Estava com 38 anos, mais gordo e grisalho, vagando a esmo sozinho pelas ruas de São Paulo. E dizia não ver televisão; não ouvir rádio; não ler jornal; não ter emprego; e não pagar imposto. E recusava-se a gravar disco, fazer shows ou dar entrevistas: “Nada do que eu possa dizer, fazer ou pensar - dá no mesmo ser publicado ou não, porque não tem nenhum valor” , se auto-analisava sem nenhuma indulgência.(146) Aspectos que tornavam a pergunta do refrão do samba ”Tributo a um rei esquecido” cada vez mais pertinente e atual. “E eu

continuo querendo saber: cadê ele? Já deram anistia pra ele? O que foi que fizeram com ele?” , reclama ainda hoje Benito di Paula.

Nos últimos anos alguns jornalistas tentaram fazer esta pergunta ao próprio Geraldo Vandré. E ele, na maioria das vezes, se esquiva da resposta. “A curiosidade sobre isso é uma paranóia, uma doença. Não me sinto responsável em elucidar isso”, respondeu a Brenda Fucuta do Jornal do Brasil.(147) A jornalista Maria do Rosário Caetano, de O Estado de S. Paulo, foi direta: “Você foi torturado?” A resposta de Vandré, também: “Nunca. E me nego a continuar falando sobre este assunto.” (148) E para um jovem repórter de O Globo que insistiu em perguntar-lhe se ele era uma vítima do regime militar, Vandré esbravejou com o dedo em riste e os olhos verdescinza arregalados: “Vítima é você! Vítima é você!” (149) Visando melhor esclarecer este tema, eu entrevistei uma das autoridades do regime militar, o hoje general da reserva Octávio Costa, ex-chefe da Assessoria Especial de Relações Públicas do governo Médici. Logo após o encerramento do III FIC, em Outubro de 1968, o então coronel Octávio Costa escreveu no Jornal do Brasil um artigo de grande repercussão intitulado “As flores do Vandré” , no qual ele defendia os militares - "não vivem sem razões os que asseguram à imensa maioria da nação o direito de continuar vivendo democraticamente" - , e cobrava punição para o compositor sob o argumento de que a Justiça não poderia se calar “diante do delito, do delito claramente configurado, à luz dos refletores, contra a lei vigente” (150) Ao longo de três horas de conversa com Octávio Costa falamos sobre democracia, ditadura, guerrilha, censura, tortura e “Pra não dizer que não falei de flores”. “Eu acho que Vandré não era um revolucionário” - opina o general -, “era apenas um violeiro, um lírico que fez aquela música contaminado pelo entusiasmo ao redor. O problema é que ele era um homem sem estrutura para suportar pressões. Nem as pressões vindas dos setores militares, que se manifestaram radicalmente contra ele, nem as pressões dos seus companheiros da esquerda, que esperavam dele um papel de mártir, de herói. Então eu acho que ele acabou sucumbindo a tudo isto porque basicamente Vandré não era um forte”

Mas, insisto com o general, Vandré foi ou não torturado? “Eu acredito que ele deve ter sido preso e não descarto a possibilidade de ter recebido alguns tapas, uns empurrões contra a parede, 'vamos, faz uma música aí agora', coisas assim. A indignação dos militares contra ele foi tão grande que alguns algozes podem ter dado uns safanões. Já tortura em pau-de-arara, choque elétrico, não creio que tenha sofrido, muito menos lavagem cerebral, que é um negócio bastante requintado” Embora negue que tenha havido o uso das formas clássicas de tortura, Octávio Costa é a primeira autoridade militar do governo Médici que admite a possibilidade de que Vandré sofreu algum tipo de coerção física por parte de elementos do Exército. Mas o general é contestado pelo compositor Carlos Lyra, parceiro de Vandré em canções e na militância de esquerda nos anos 60. “Geraldo nunca foi torturado, nunca levou sequer um tapa da repressão.” (151) Bem, de tudo isto, ressalte-se que aquela pergunta (ou paranóia, como diz Vandré), que se repete por três vezes no samba “Tributo a um rei esquecido” - "o que foi que fizeram com ele?" - , só pôde ser veiculada nas rádios do Brasil nos anos 70, porque Benito di Paula valeu-se mais uma vez da linguagem da fresta, driblando um comunicado expedido pela Polícia Federal que proibia a "transcrição ou divulgação de qualquer notícia, comentário ou referência" a respeito do cantor e compositor Geraldo Vandré.” (152) Benito chamou-o então de “rei”, valendo-se de imagens presentes na canção “Disparada”, em que Vandré diz “na boiada já fui boi / boiadeiro já fui rei”. E esta era realmente a única forma possível de se cantar brasileiros mortos, presos ou banidos pelo regime de 1964. A dor da estilista Zuzu Angel, quando descobriu que não mais encontraria o filho desaparecido (dizem que seu corpo foi jogado no mar), foi veladamente retratada por Chico Buarque nos versos da canção “Angélica”, que ainda assim teve problemas com a Censura: “Quem é essa mulher / que canta sempre esse estribilho / 'só queria embalar meu filho / que mora na escuridão do mar'...” Quando estava no exílio em Londres, Caetano Veloso também foi alvo de mensagens musicais de solidariedade. Caso do samba “Mano Caetano”, composição de Jorge Ben que saudava a possível volta do irmão de Maria Bethânia, que lançou a canção. “Lá vem o mano / meu mano Caetano... / lá vem o menino de camisolas brancas / debaixo de um lindo céu azul / verde e amarelo / azul e branco".

Mesmo com esta pincelada nacionalista o samba de Jorge Ben teve sua execução pública proibida por causa da explícita referência a um exilado do governo militar. Erro que não cometeu Roberto Carlos com “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos”, composição que na época ninguém associou a Caetano Veloso. O mesmo ocorrendo com o samba “Quero voltar pra Bahia”, sucesso do cantor pernambucano Paulo Diniz, em 1970: “I don't want stay here / I want to go back to Bahia.../ Via Intelsat eu mando notícias minhas para O Pasquim / beijos pra minha amada / que tem saudades e pensa em mim..." Em casos como este conseguiu-se desviar a ação da censura, provando mais uma vez que nem tudo aquilo que o malandro pronuncia o otário silencia. Mas em outros casos o compositor popular teve que ceder. Do mesmo Benito di Paula, por exemplo, o samba “Trapézio”, que começa e termina com um som de fanfarra reproduzindo o clima de um picadeiro, tem um refrão que originalmente ironizava algumas das mazelas do país: “Se cobrir vira circo / se cercar vira cadeia / o Brasil é um trapézio / preso na cumeeira...” Obviamente os militares não gostaram desta analogia e o samba foi proibido. O compositor apelou e a solução paliativa foi trocar a palavra "Brasil" por "essa vida". Um outro samba de Benito, disfarçadamente intitulado “Proteção às borboletas” - na verdade seu texto é uma exaltação à dignidade humana - , furiosamente foi liberado pela censura do governo brasileiro e proibido pelos militares argentinos, porque nele o compositor diz: “Eu sou como as borboletas / tudo que eu penso é liberdade / não quero ser maltratado / nem exportado desse meu chão / minhas asas, minhas armas / não servem para me defender. ." No Brasil, já em processo de abertura política, o samba de Benito di Paula passou sem problemas, mas na Argentina, vivendo naquele momento o auge da repressão militar, com torturas e mortes comandadas pelo ditador Rafael Videla, frases como "tudo que eu penso é liberdade", "não quero ser maltratado" e, principalmente, "minhas asas, minhas armas", soaram demasiadamente subversivas e o samba foi silenciado. E assim como já havia acontecido com Odair José, outro compositor brasileiro "cafona" tem a sua obra atingida pela fúria obscurantista não apenas do regime político brasileiro, mas também pela de outras ditaduras militares que naquela época proliferavam por quase toda a América Latina.

* Companheiro de Benito di Paula em popularidade, o cantor e compositor goiano Lindomar Castilho também teve sua produção musical alcançada pela tesoura da Censura. Conhecido como o "namorado de las Americas", em função do sucesso obtido em vários países deste continente, Lindomar começou a carreira discográfica nos anos 60, na gravadora Continental. Os seus primeiros discos de boleros obtiveram boa aceitação no mercado, mas ainda sem atingir o eixo Rio-São Paulo. O cantor se consolidou como um nome de projeção nacional e internacional a partir de 1970, quando foi contratado pela RCA, por onde gravou várias canções de sucesso, entre as quais “Eu não sou nenhum bandido”, “Eu amo a sua mãe”, “Camas separadas” e “Eu vou rifar meu coração”. O primeiro embate de Lindomar Castilho com a Censura ocorreu em 1968, ano em que ele iria lançar o merengue “Eu canto o que o povo quer”, composição em que ele inicia falando de sua origem social: "Nasci de família humilde / família de cantador...", e mais adiante professa: "Estou com a maioria / para o que der e vier / eu faço parte do povo / e canto o que o povo quer...". Aí começou o problema, porque os versos seguintes também tinham uma conotação mais social de crença na força da união do povo como motor das transformações do mundo. Numa época de passeatas, de manifestações de protestos e de canções que preconizavam que "somos todos soldados armados ou não", os censores acharam mais prudente também segurar a canção de Lindomar Castilho. “Quando fiz a música não pensei em nada de política, mas não sei por que o governo entendeu que aquilo era perigoso. Tinha uma censora lá em São Paulo, não me lembro o nome dela, era uma senhora muito gorda e que não dava moleza nenhuma. Pra conseguir alguma coisa com ela era muito difícil, aí eu tive de botar outra música no meu disco”, afirma Lindomar, que guardou ”Eu canto o que o povo quer” para uma outra oportunidade. Seis anos mais tarde, no fim de 1974, quando muito se falava em abertura, descompressão e distensão política, Lindomar Castilho resolveu arriscar. Fez algumas alterações na letra da música proibida e conseguiu, finalmente, autorização para gravá-la.

Mas o componente político e de força de mobilização popular que os antigos censores identificaram na composição do cantor de certo modo se comprovou naquele mesmo ano, em Angola. Assim como Nelson Ned e Benito di Paula, Lindomar Castilho era muito popular nos países da África, onde seus discos eram lançados quase simultaneamente aos do Brasil. O merengue “Eu canto o que o povo quer” chegou aos ouvidos angolanos no momento em que eles estavam em plena guerra de independência contra o colonialismo português. A repercussão da música foi imediata e ela foi cantada tanto pelos partidários do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) como pelos da Frente Nacional de Libertação (PNLA), ambos afirmando estarem com a maioria do povo para “o que der e vier”. Aliás, o sucesso de Lindomar Castilho era tão grande ali que nos anos 70 foi inaugurado um busto em sua homenagem no Departamento de Cultura de Luanda. " “Eles me chamaram lá, mas não me avisaram do que se tratava. Quando descerrei o pano apareceu o meu rosto Foi uma das maiores emoções de minha vida” , recorda. Numa nota intitulada "Virou busto", Chacrinha parabenizou Lindomar, dizendo que aquela era uma justa homenagem a quem “através de suas canções, tanta alegria causa ao povo” . NOTAS BIBLIOGRÁFICAS APENSAS AO CAPÍTULO (Pela sequência numérica encontrada no texto): 133. Além de “Carolina’, a mais jovem das canções do disco, Costa e Silva também escolheu antigos sucessos ufanistas como “Canta Brasil” e “Minha terra”. Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 134. A peça “Roda viva” provocou a ira dos conservadores porque, entre outras cenas, mostrava os personagens de Nossa Senhora e Jesus Cristo simulando uma cena de sexo 135 . Apud Regina Zappa. Chico Buarque: para todos (Perfis do Rio; V. 26). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 101. A única música de Chico Buarque vetada pela Censura no período anterior ao AI-5 foi “Tamandaré”, uma brincadeira do compositor (até hoje não gravada) com o almirante Joaquim Marques Lisboa, patrono da Marinha, cuja efígie

aparecia estampada nas notas de um cruzeiro. "Pois é, Tamandaré / a maré não tá boa / vai virar a canoa / e este mar não dá pé, Tamandaré... " Apud Humberto Werneck, op. cit, p. 66. 136. "Médici é o maior" - O Dia, 10-9-1972 . 137. O LP “Benito di Paula gravado ao vivo", que traz o samba em homenagem a Vandré, foi um grande sucesso na época. O LP aparece em 1º lugar entre os discos mais vendidos na semana de 13 a 18 de janeiro de 1975, em São Paulo, e também ocupa o 1º lugar entre os mais vendidos na semana de 3 a 8 de março de 1975, no Rio. Fonte: Ibope Pesquisa sobre vendas de discos”Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp. 138. "Carta a Geraldo Vandré" - Ultima Hora, 21-12 1968. 139. "Dops apreende 500 discos de Vandré como subversivos” - Correio da Manhã, 10-10-1968. 140. "Dois Geraldos se juntam e compõem o som do exílio” -O Estado de S. Paulo, 5-8-1995

141. Vetada pela Censura, esta composição permaneceu 15 anos inédita. A primeira gravação foi feita por Elba Ramalho. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 142. Roberto de Abreu Sodré. “No espelho do tempo: meio século de política” - . São Paulo: Best SelIer / Círculo do Livro, 1995, p. 158. 143. "O Globo localiza e ouve Vandré no Chile" - O Globo, 10-6-1969. 144. "Vandré volta e é preso" - Jornal do Brasil, 18-7-1973. 145. O Cedoc - Centro de Documentação da Rede Globo - informou não possuir em seus arquivos a reportagem do Jornal Nacional sobre a "chegada" de Geraldo Vandré ao Brasil em 1973. A reconstituição da matéria televisiva foi feita a partir de informações retiradas das seguintes reportagens: "Conhece? Errou!" EX, edição de julho de 1975/ "O crepúsculo de um ídolo" - Folha de S. Paulo, 12-9-1985 / "Geraldo Vandré e a memória de sua canção". In Tárik de Souza. O som nosso de cada dia . Porto Alegre: L&PM, 1983, p. 91 / Fascículo Geraldo Vandré - Nova história da música popular brasileira. 2a ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 4.

146. "Do exílio"”Veja, 18 - 4-1979. 147. "Marchando e cantando"- Jornal do Brasil, 8-11-1994. 148. "Dois Geraldos se juntam e compõem o som do exílio" - O Estado de S. Paulo, 5-8-1995. 149. "Vandré divide o palco com militares" - O Globo, 22-10-1994. 150. "As flores do Vandré" - Jornal do Brasil, 6-10-1968. 151. "Vandré vive" - VlP/Exame, março de 1995.

152. Comunicado reproduzido na reportagem "Vandré espera acontecer" Veja, 24-3-1982. Em 1971, o fascículo dedicado a Geraldo Vandré na coleção História da música popular brasileira, da Editora Abril, foi proibido e recolhido das bancas. 153. “Eu vou rifar meu coração" ocupa o 4º lugar na lista dos LPs mais vendidos na semana de 2 a 7 de julho de 1973, em São Paulo. Outro grande sucesso de Lindomar Castilho, “Você é doida demais”, aparece em 5º lugar na relação dos 20 discos nacionais mais executados durante o mês de novembro de 1974, no Rio. Fonte: Ibope”Pesquisa sobre vendas de discos”Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp. 154. "Virou busto” – ( Jornal do Chacrinha) – A Noticia, 19-9-1973.

(WANDO E LUIZ AYRÃO CONTRA O REGIME MILITAR) CAPÍTULO 7

O SAMBA DOS 13 ANOS

(WANDO E LUIZ AYRÃO CONTRA O REGIME MILITAR)

“Vocês são todos uns calhordas! Olha só o que esse cara fez. Ele sacaneou todo mundo e ninguém viu. Chama esse porra a Brasília.”

(General Fernando Bethlem)

No quesito grau de escolaridade, o cantor e compositor Luiz Ayrão constitui uma exceção entre os artistas "cafonas" da década de 70. Embora de origem modesta (ele também trabalhou de engraxate na infância),

Ayrão, carioca do Lins, conseguiu dar prosseguimento aos estudos, formando-se em Direito numa faculdade particular. Mas esta sua trajetória atípica em relação ao grupo social já pode ser verificada nos tempos do Exército. O cantor recorda que quando prestou serviço militar obrigatório, em 1961, era o único da tropa que cursava o científico, o equivalente ao segundo grau de hoje. "Eu servi o Exército junto com 400 homens e um dia o sargento reuniu a tropa no pátio e perguntou: 'Quem de vocês aqui está cursando o científico?' Só eu levantei o braço. Dos 400 soldados, eu era o único que estava no científico. Naquela época era muito raro encontrar um brasileiro com o segundo grau.” Do lugar social de onde se originou Luiz Ayrão era realmente muito difícil para alguém ultrapassar o curso médio e chegar à universidade, privilégio de uma minoria no Brasil. Ainda assim, trabalhando de dia e estudando à noite, o cantor conseguiu receber o seu canudo de papel, reproduzindo de certa forma a trajetória daquele personagem do samba de Martinho da Vila que passou no vestibular mas morava no subúrbio e "do trabalho ia pra aula / sem jantar e bem cansado''. (l55) Em conseqüência do seu ingresso no ambiente universitário, Luiz Ayráo vai ser um dos únicos artistas desta geração de "cafonas" a fazer algumas canções com letras intencionalmente políticas. E, em 1977, duas dessas composições tiveram problemas com a Censura: o samba ”Treze anos” e o choro ”Meu caro amigo Chico”. Este último era uma resposta de Luiz Ayrão à mensagem de ”Meu caro amigo”, sucesso de Chico Buarque no ano anterior, e provocou entre os censores a inquietação que o nome Chico Buarque provocava na época. "Amigo Chico recebi a sua carta / e talvez já não parta / como estava planejando / você me disse que a coisa ai tá preta. Luiz Ayrão respondia como se fosse algum personagem que, do exílio, após receber as notícias não muita animadoras enviadas por Chico Buarque, desistia de retornar ao país. A Censura não gostou da referência e a música foi vetada. Sob o argumento de que seus versos expressavam "um comportamento político que se constitui numa depreciação e num protesto às normas governamentais vigentes.”(156) A outra composição proibida, o samba ”Treze anos”, embora não traga em seu título referências políticas muito óbvias, é um dos mais contundentes protestos produzidos no âmbito da música popular contra o regime

ditatorial instalado no Brasil em 1964. Se o choro Meu caro amigo Chico” era uma resposta de Luiz Ayrão à mensagem do compositor Chico Buarque, o samba ”Treze anos” era a sua resposta aos pronunciamentos das autoridades militares que naquele ano de 1977 saudavam os “13 anos da revolução de 1964.” E sabemos que na data exata desses 13 anos, - em 1° de abril de 1977 - o presidente Ernesto Geisel, apos reunir-se em Brasília com o Conselho de Segurança Nacional, decretou o fechamento do Congresso por tempo indeterminado, outorgando o chamado “Pacote de Abril”(157) . Em todo o país o clima passou a ser de tensão e expectativa. O pretexto do governo foi a recusa da oposição em apoiar a reforma do Poder Judiciário enviada ao Congresso pelo Executivo. Para a reforma ser aprovada, seria necessário o apoio de dois terços dos parlamentares. Com a oposição do MDB, este número não foi alcançado. A reação do governo veio no dia 1° de abril. Na manhã do dia anterior, quinta-feira, 31 de março, o presidente Geisel, os comandantes das três Armas e uma platéia de 270 oficiais se reuniram na Vila Militar, no Rio, para coquetéis e almoço em comemoração aos 13 anos do regime militar. "Exmo. Sr. Presidente da República, regozijamo-nos com o comparecimento do comandante supremo das Forças Armadas a esse ambiente caxiense para prestigiar-nos no festejo do 13° aniversário da nossa revolução", discursou o ministro do Exército Sylvio Frota, enfatizando que “o caminho tem sido árduo porquanto eriçado de obstáculos, mas a obstinação revolucionária permitiu que em 13 anos obtivéssemos um ambiente de paz e evidentes êxitos em nossos empreendimentos.” (158) Em seguida, foi a vez do próprio presidente Ernesto Geisel dar o seu recado - que foi direto ao tema que palpitava no cenário político do país naquele momento. Ele atribuiu a recusa do projeto de reforma do Poder Judiciário à atuação de “uma minoria que, dentro do Congresso, se transformou na ditadura” , mas garantiu que aquela reforma sena feita de qualquer maneira porque “ao longo destes 13 anos, sem dúvida, tivemos problemas, mas conseguimos dominá-los todos, galhardamente”. Por fim, o presidente ergueu um brinde à aniversariante que motivou aquela celebração na Vila Militar: “Então resta saber o que fica desta Revolução. Ela já tem 13 anos e creio que não está suficientemente velha para desaparecer. Ela

deverá continuar.” (159)

Após a cerimônia, quando Geisel já embarcava no helicóptero que o levaria de volta a Brasília, o ministro Sylvio Frota foi cercado no pátio da Vila Militar por jornalistas que esperavam obter mais um pronunciamento sobre os "13 anos da Revolução". Desta vez, porém, Frota foi lacônico: “Quando o presidente fala, ninguém pode falar mais nada.” (160)

Pode ser, mas através do seu samba Luiz Ayrão falou, e falou o que milhões de outros brasileiros tinham vontade de falar ou ouvir naqueles dias:

TREZE ANOS EU TE ATURO E NÃO AGUENTO MAIS NÃO HÁ CRISTO QUE SUPORTE E EU NÃO SUPORTO MAIS TREZE ANOS ME SEGURO E AGORA NÃO DÁ MAIS SE TREZE É MINHA SORTE, VAI, ME DEIXA EM PAZ VOCÊ VEM ME INFERNIZANDO COMO SATANÁS VOCÊ VEM ME ENCLAUSURANDO COMO ALCATRAZ VOCÊ VEM ME SUFOCANDO COMO O PRÓPRIO GÁS AINDA VIVE ME GOZANDO, ASSIM JÁ É DEMAIS... Originalmente com o título de “Treze anos”, o samba foi proibido pela Censura, juntamente com ”Meu caro amigo Chico”, pouco antes de o disco de Luiz Ayrão ser lançado. A gravadora entrou em polvorosa porque o LP anterior do cantor havia vendido bastante, e diante da quantidade de novos pedidos das lojas a expectativa de venda do disco de 1977 era ainda maior. (161) A Odeon então acionou rapidamente o seu departamento jurídico e os advogados conseguiram a liberação do choro ”Meu caro amigo Chico”. E o argumento foi simples: afinal, se a música de Chico Buarque havia sido liberada pela Censura, porque a resposta de Luiz Ayrão não seria? Mas o samba “Treze anos” continuou vetado e de qualquer forma o LP não poderia ir para as lojas.

Quando a última alternativa parecia ser a substituição do samba no disco, Luiz Ayrão tomou a seguinte decisão: carioca e malandramente, ao melhor estilo de um Julinho da Adelaide, ele trocou o título ”Treze anos” por ”O divórcio” e mandou o mesmo samba sem mudar uma vírgula para um outro departamento de Censura. Revelando mais uma vez as brechas do sistema repressivo, a composição foi liberada na íntegra e o LP de Luiz Ayrão pode finalmente ser distribuído nas lojas. Afinal, em 1977 o divórcio estava na ordem do dia; o projeto do senador Nelson Carneiro acabava de ser aprovado pelo Congresso Nacional e os censores não viram nada de mais em uma composição cujo título era justamente O divórcio - embora esta palavra não apareça em nenhum momento na letra do samba. O ardil do compositor enganou os censores de plantão, mas alguns dias depois o seu disco acabou chegando às mãos e aos ouvidos do novo ministro do Exército do governo Geisel, general Fernando Belfort Bethlem, que viu, ouviu e não gostou. Consta que numa certa manhã ele adentrou o Departamento de Polícia Federal em Brasília com o LP de Luiz Ayrão nas mãos e esbravejou aos quatro cantos. “Vocês são todos uns calhordas! Olha só o que esse cara fez. Ele sacaneou todo mundo e ninguém viu. Chama esse porra a Brasília. Olha aqui o disco, porra, vocês não ouviram? Vocês são uns merdas mesmo. Ouçam aqui essa música. Esse cara sacaneou todos nós e vocês deixaram.” (163) Diante desta reação do general Bethlem, fica-se imaginando qual teria sido a atitude do seu antecessor no cargo, o general Sylvio Frota. Afinal, o general Frota havia sido exonerado há poucas semanas do posto de ministro do Exército justamente porque, além de acalentar ambições políticas maiores, era considerado um homem muito radical e ligado à "linha dura" das Forças Armadas. O que pressupõe que o general Bethlem o substituiu por ser um "moderado" e estar em maior sintonia com o projeto de distensão política do governo Geisel.

O fato é que o sinal vermelho piscou novamente na Odeon, e diante da ameaça de ter agora o disco de Luiz Ayrão recolhido das lojas, a gravadora acionou um advogado em Brasília com bom transito na área militar. O cantor recorda que “esse advogado se dava com não sei quem, que se dava com não sei quem, que se dava com ele. Ele bebia, jogava, tinha amante junto com os militares. Brasília é uma corte, né? E aí ele procurou amenizar a coisa: ‘A idéia do rapaz não foi criticar ninguém, esse samba aqui não tem nada a ver. Luiz Ayrão é um artista popular, nunca foi cantor de protesto e tal.' E como eu não era realmente um cantor identificado com a esquerda, o papo colou. Assim mesmo, foi uma luta. Foi uma merda danada fazer esse disco passar.”

Neste ano de 1977, ao mesmo tempo que Luiz Ayrão protestava contra os 13 anos do regime militar, a sociedade civil se rearticulava em diversas frentes de participação. Sob a presidência de Raymundo Faoro, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) tornou-se uma influente entidade de luta pela redemocratização do país. “A consciência jurídica do Brasil quer uma

coisa só: o Estado de Direito, já”, cobrava diante de uma multidão, em São Paulo, o jurista Goffredo da Silva Telles em sua “Carta aos Brasileiros.” (164) Meses antes, em frente à Faculdade de Direito da USP, milhares de estudantes também fizeram a leitura conjunta da “Carta Aberta à População”, que alertava: “Hoje, consente quem cala...”, conclamando todos a aderirem à luta pelo fim das " “torturas, prisões e perseguições políticas” e pela “anistia ampla e irrestrita a todos os presos, banidos e exilados políticos.” (165) Influenciados pela Teologia da Libertação, setores da Igreja estimulavam a organização popular através das ainda pouco conhecidas Comunidades Eclesiais de Base, que se formavam em torno das paróquias da periferia e das capelas em zonas rurais. Membros da classe empresarial, notadamente Antonio Ermírio de Morais, também posicionavam-se como críticos do modelo econômico e no interior do próprio governo surgiam dissidências como a do senador alagoano Teotônio Vilela, que se incorporou à luta pela democracia e mais tarde foi saudado numa canção de Milton Nascimento que diz: “Quem é esse viajante / quem é esse menestrel / que espalha esperança / e transforma sal em mel?” (166) A questão social estava na ordem do dia e trabalhadores da região do ABC paulista iniciaram um intenso processo de mobilização nas fábricas e nos sindicatos pela reposição salarial. Apesar dos perigos, um novo tempo se aproximava. Um dos sinais mais evidentes disto, em 1977, foi a retomada do movimento estudantil, desarticulado desde a decretação do AI-5 “Foram nove anos sem que estudante algum sentisse o cheiro de gás lacrimogêneo”, disse na época um militante do DCE da USP. (167) Por todo o país os diretórios acadêmicos se fortaleciam, preparando-se para grandes manifestações. Em assembléia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul um inflamado e ofendido estudante reclamava da demora de seus colegas gaúchos na organização das passeatas. “Estamos com uma semana de atraso quando até o Piauí está mobilizado, pichando paredes. Até o Piauí, pô!”.(168) O universitário paulista Marcelo Garcia afirmava que aquele era o momento de todos eles voltarem às ruas porque o governo militar estava diante da “pior crise política e econômica dos últimos treze anos.” (169)

Entoando um refrão sem metáforas - "Vai acabar, vai acabar a ditadura militar" - , os estudantes saíram caminhando e cantando pelas avenidas das principais capitais do país. O governo também se mobilizou e o ministro da Justiça, Armando Falcão, enviou nota-circular a todos os governadores de estado estabelecendo que “passeatas, concentrações de protesto em logradouros públicos, assim como outras demonstrações contestatórias, são distúrbios de fundo e fim subversivos, não podendo, em consequência, ser tolerados.” (170) Os estudantes não se intimidaram e no mês de maio, em São Paulo, foi programada mais uma grande passeata acompanhada passo a passo pelos órgãos de repressão. “Nós não seremos violentos, mas estaremos preparados para tudo” , advertia o secretário de Segurança Pública, coronel Erasmo Dias. (171) De fato, auxiliado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, titular da Delegacia de Ordem Social, o secretário montou uma verdadeira operação de guerra para acompanhar a manifestação estudantil: tropas de choque, carros blindados, cavalaria, cães amestrados, cassetetes eletrificados, bombas de gás lacrimogêneo, metralhadoras e até fuzis M-16 (do tipo usado pelo exército americano no Vietnã). Naquela quinta-feira, 19 de maio, no Centro de São Paulo, formaram-se dois agrupamentos humanos bem distintos: estudantes de um lado; soldados de outro. É provável que muitos transeuntes assistissem àquilo bestializados, mas no fim da tarde uma senhora de cabelos grisalhos, embevecida de civismo, atravessou o aparato militar, posicionou-se à frente do secretário de Segurança e passou-lhe uma descompostura: “O senhor é o coronel Erasmo? Que vergonha, coronel! Que vergonha, para o Brasil e para o senhor, tanto soldado para bater em estudante.” (172) O gesto daquela anônima senhora de cabelos brancos talvez tenha demovido o ímpeto repressor do coronel, porque no início da noite a passeata terminou sem maiores incidentes. Alguns meses depois, soldados e estudantes estavam de volta às ruas, mas agora sem complacência dos militares. O movimento estudantil programou para São Paulo o III Encontro Nacional de Estudantes, que tinha como um dos principais objetivos reorganizar a antiga UNE entidade posta na ilegalidade no governo do marechal Castelo Branco, em 1964.

O encontro, que contaria com a participação de universitários de todo o

país, foi marcado para quarta-feira, 21 de Setembro, no campus da faculdade de Medicina da USP. Entretanto, naquele dia a universidade amanheceu ocupada por 15 mil policiais civis e militares que, sob as ordens do secretário Erasmo Dias, valeram-se até de barreiras em vários pontos da cidade para impedir a chegada dos jovens. O encontro estudantil não pôde ser realizado, mas os organizadores marcaram para o dia seguinte, no campus da PUC, um grande ato de protesto contra a ocupação da USP. No horário programado, nove e meia da noite, lá estavam dois mil estudantes, gritando palavras de ordem, quando novamente chegou o coronel Erasmo Dias com sua tropa de choque, cavalaria, cães amestrados .. “Estão brincando comigo. Minha ordem foi desobedecida e isso não pode ficar assim”, gritou o coronel ao descer do carro oficial.(173) Empunhando um megafone, Erasmo Dias comandou a operação por ele mesmo chamada de "ação de combate". Os estudantes correram para o interior dos três prédios da PUC, mas os soldados não vacilaram e, mesmo sem vestibular, entraram na universidade, brandindo seus cassetetes eletrificados, caçando, um por um, os participantes do encontro. Salas de aula, banheiros, refeitórios, biblioteca, gráfica, teatro e até a casa paroquial, todos os espaços da PUC foram invadidos, contabilizando cerca de mil estudantes presos e muitos deles feridos. “Qual poderia ser nossa ação diante de duas mil pessoas vociferando?”, perguntava o truculento coronel, explicando que “a massa é amorfa, é inconseqüente.” (174)

Organizados em fila indiana e com as mãos na cabeça, os estudantes foram conduzidos para os vinte ônibus que os levaram para o Batalhão da Polícia Militar e os casos mais graves, para o Hospital das Clínicas. O prejuízo material também foi grande e a PUC amanheceu como se realmente tivesse sido atingida por uma ação de guerra: faixas queimadas, portas arrombadas, vidraças estilhaçadas, mesas e cadeiras quebradas e equipamentos destruídos. O coronel Erasmo Dias novamente procurou justificar a ação de suas tropas, descrevendo um quadro pré-revolucionário no país. “A polícia já está exausta, cansada de ficar 24, mais 24, mais 24 horas de prontidão, porque elementos subversivos tentam a todo custo desobedecer a lei vigente, num desafio que está caracterizado como um estado de guerra psicológico adversa a até um prólogo de guerra subversiva.” (175)

Os estudantes universitários não ouviam cantores populares como Luiz Ayrão e por isso não tomaram conhecimento do samba “O divórcio”, que bem poderia ter servido de trilha sonora para todas aquelas passeatas: “Treze anos eu te aturo e não agüento mais.../...treze anos me seguro e agora não dá mais ..” Mas parece que naquele ano no Brasil, apenas o ministro do Exército percebeu as intenções críticas do samba de Luiz Ayrão. O cantor recorda que após os seus shows algumas pessoas se aproximavam comentando: “Puxa vida, essa música que você cantou é a minha história. Eu me separei da minha mulher depois de 13 anos. Está tudo aí.” E não era apenas o público de Luiz Ayrão que não percebia o conteúdo crítico de uma composição como essa. De uma maneira geral, na época da ditadura, atribuía-se caráter contestador apenas à obra de artistas como Gonzaguinha, Milton Nascimento ou Chico Buarque, por mais despretensiosas que fossem algumas de suas canções. Um exemplo disto é o samba “A Rita”, que, num esforço interpretativo, alguns identificavam como uma referência à “revolução de 1964”, aquela que realmente teria levado os planos, os pobres enganos, os 20 anos, o coração e o violão do compositor. Hoje o próprio Chico Buarque admite que naquele contexto as suas músicas assumiam um colorido político que muitas vezes não era intencional. Segundo ele, “a censura enxergava mensagens subliminares onde não existia e o pessoal de esquerda também queria ver essas mensagens. 'Ah, mas voce quis dizer...' 'Nao, eu nao quis dizer nada, é uma canção de amor'.” (176) Já em relação à obra de artistas populares como Luiz Ayrão, Benito di Pauta ou Wando, ocorria exatamente o contrário: negavam-se as intenções críticas, por mais evidentes que fossem. Como não eram nomes identificados com a MPB, não seriam capazes de refletir e criticar. E o cantor e compositor Wando é outro artista popular "cafona" que produziu canções de forte conteúdo crítico-social durante o regime militar. A sua composição, “Presidente da favela” - samba também gravado em 1977 - , traz ao primeiro plano o desconhecido líder comunitário Dalvino de Freitas, cuja ação política, segundo o narrador do texto, mobiliza o poder público a atender a antigas reivindicações dos habitantes do morro:

DALVINO DE FREITAS, PRESIDENTE DA FAVELA ONDE TENHO O MEU BARRACO DISSE QUE AGORA NA FAVELA É OUTRO PAPO VAMOS TER RUAS CALÇADAS E ÁGUA DE BEBER PRA VOCÊ VER.... Depois de anunciar a conquista de outras melhorias urbanas básicas escola, luz elétrica, linhas de Ônibus - , Wando conclui o seu samba apregoando: ...QUE SIRVA DE EXEMPLO A TODAS AS FAVELAS BRASILEIRAS ARRANJEM UM PRESIDENTE DE BOAS MANEIRAS QUE A VIDA LÁ NO MORRO SERÁ BEM MELHOR Além de uma possível referência política - na impossibilidade de eleger o presidente da República, o brasileiro deveria eleger o presidente da favela , a composição de Wando chama a atenção para um dos aspectos sociais mais importantes daquele período: a emergência de movimentos de organização de moradores de bairros e favelas. Em seu estudo sobre a mobilização popular na década de 70 no Brasil, as historiadoras Sônia Mendonça e Virgínia Fontes enfatizam que “a segregação espacial decorrente da compressão salarial envolvera as grandes cidades com loteamentos periféricos irregulares, fazendo surgir inúmeras favelas e ampliando as já existentes. Em todos esses locais, um ponto em comum: a carência. Condução escassa e cara, ausência de saneamento básico, iluminação irregular, escolas inexistentes. Aí inauguraram-se alternativas de participação popular, expressando formas de articulação que se revelaram extremamente combativas - as Associações de Moradores e Sociedades de Amigos de Bairro, que proliferaram em todo o país, em especial a partir de 1976.” (177) Lançado no auge deste processo, o samba ”Presidente da favela” serviu de estímulo à participação popular, até porque, com o bloqueio dos espaços públicos tradicionais da política - parlamento, sindicatos, partidos - , a resistência espalhava-se por outros caminhos, possibilitando o aparecimento de diversos líderes comunitários. Um desses líderes o Dalvino de Freitas, citado na composição de Wando era representante de uma das favelas da periferia de São Paulo, e o compositor o conheceu numa participação do programa de Airton

Rodrigues, na TV Tupi. Wando ficou impressionado com a desenvoltura e segurança com que aquele humilde morador de favela apresentava as reivindicações da sua comunidade e resolveu homenageá-lo na canção. Essa nova forma de participação política expressado pela organização de associações de moradores - intimamente ligada à luta pela solução de problemas urbanos básicos - , tornava-se cada vez mais visível na sociedade e atraia a atenção não apenas do cantor Wando, mas também de militantes de esquerda, intelectuais e outros artistas. Uma das primeiras e mais combativas associações de moradores do Rio de Janeiro, a da Rua Lauro Müller, próxima ao Túnel Novo, em Botafogo, mereceu até uma crônica do poeta Carlos Drummond de Andrade. Publicado naquele mesmo ano de 1977, o texto destacava o processo eleitoral para a escolha do presidente da Associação de Moradores da Lauro Müller, observando o poeta que aquela rua “tornou-se nação privilegiada pelo livre exercício das atividades democráticas...” e que era preciso saudar “o sufrágio universal operando com toda a força em miniatura política, num pedacinho de área metropolitana do Rio de Janeiro.” Depois de observar que os moradores ainda não tinham força para empreender uma eleição direta presidencial, “mas dentro dos 600 e poucos metros de território que ocupam façam uma diretinha maneira”, Drummond concluía exortando que a eleição na Lauro Müller deveria servir de “ligação e exemplo para ruas maiores, muito, muito maiores mesmo do que essa à boca do túnel.” (178) Nota-se que tanto a crônica de Carlos Drummond de Andrade - sobre o processo eleitoral numa rua da Zona Sul carioca - como o samba de Wando - sobre a ação de um líder comunitário de favela em São Paulo - expressam solidariedade às organizações de caráter reivindicativo autônomo e evocam a idéia de que cada um dos casos deveria servir de exemplo para moradores de outras regiões do país. E com esta mensagem ambos os artistas - Wando e Drummond - davam sua contribuição para os movimentos sociais e populares que aceleravam as modificações ocorridas no país naquele período final do AI-5. NOTAS BIBLIOGRÁFICAS DO CAPÍTULO (Seguindo a numeração seqüencial encontrada no texto):

155. Verso do samba O pequeno burguês. Para outras indicações ver

índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 156. A letra da música de Luiz Ayrão foi avaliada e vetada por três censores: inicialmente por Orlando Viegas (Parecer n° 1134/77); em seguida por Odette Martins Lanziotti (Parecer n° 1135/77) e depois por Maria José de Moura (Parecer n° 1151177), que enquadrou a composição no art. 41 do Decreto 20493. Fonte: Documentos do Serviço de Censura de Diversões Públicas - Arquivo Nacional / RJ. O citado decreto data de 24 de Janeiro de 1946, e determina no capítulo referente às diversões públicas que "será negada a autorização sempre que a representação, exibição ou transmissão radiofônica... for capaz de provocar incitamento contra o regime vigente, a ordem pública, as autoridades constituídas e seus agentes". Cf. Coleção das leis - Atos do poder executivo Vol. II - 1946. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946, p. 327. 157. O "Pacote de Abril" continha, entre outras, as seguintes medidas: * Um terço dos representantes do Senado passaria a ser eleito por via indireta; os chamados "senadores biônicos" . * A eleição dos governadores continuaria indireta. * O mandato do próximo general presidente teria a duração de seis anos. * As limitações impostas à propaganda eleitoral pela Lei Falcão, que havia sido instituída apenas para as eleições municipais de 1976, foram estendidas às eleições gerais. * Foi promulgada a reforma do poder Judiciário conforme o projeto que havia sido elaborado pelo poder Executivo * Qualquer emenda à Constituição Federal passaria a ser aprovada através do voto da maioria dos membros do Congresso Nacional, e não mais pelo voto de dois terços 158. "Geisel na Vila Militar garante que reforma será feita" - Jornal do Brasil, 1-4-1977. 159. Idem, ibidem. 160. "Um aniversário na Vila" - Veja, 6-4-1977. 161. Compositor de sucesso nos anos 60 - ele é autor, entre outras, de

“Nossa canção” e “Ciúme de você”, gravadas por Roberto Carlos -, Luiz Ayrão projetou-se como cantor popular a partir de 1973, com a gravação do samba ‘Porta aberta”, que ocupa o 1° lugar na relação dos 20 discos nacionais mais executados durante os meses de fevereiro e março de 1974, no Rio. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp. 162. Registre-se que Luiz Ayrão foi obrigado a trocar a palavra "terra” por "planeta" no verso “A coisa aí anda tão preta / que nem dando pirueta / em sua terra se consegue ser feliz.” Embora mudando apenas uma única palavra, o sentido crítico da composição foi esvaziado consideravelmente, pois o que seria um protesto às mazelas do Brasil, se transformou numa crítica mais geral a todo o planeta. 163. Conforme depoimento de Luiz Ayrão ao autor, 19-12-1997. 164. "Carta aos Brasileiros" - Movimento, 15-8-1977. 165. Apud Artur José Poerner. O poder jovem: história da participação política dos estudantes brasileiros. 4ª ed. São Paulo: Centro de Memória da Juventude, 1995, p. 347. 166. Versos de Menestrel das Alagoas. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 167. "Os riscos da escalada" - Veja, 18-5-1977 168. Idem. 169. "Os estudantes de novo" - Veja, 25-5-1977. 170. "Os riscos da escalada" - Veja, 18-5-1977. 171. "Os estudantes de novo" - Veja, 25-5-1977 172. Idem. 173. "Bombas e duas mil prisões na PUC" - O Estado de S. Paulo, 23-91977. 174. Apud Nosso século (1960/1980). São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 237.

175. “Erasmo: Violência foi inevitável” - O Estado de S. Paulo, 24-9-1977. 176. Apud Regina Zappa, op. cit., p. 114. 177. Sônia Regina de Mendonça & Virgínia Maria Fontes. História do Brasil recente (1964-1980) - São Paulo: Ática, 1988, p. 70. 178. "A Boca do Túnel" - Jornal do Brasil, 11-10-1977.

(AGNALDO TIMÓTEO PERDIDO NA NOITE)

A onda começou em San Francisco, na Califórnia, Estados Unidos, em janeiro de 1967. Armados de flores, plumas, tambores, colares, roupas coloridas e fartas cabeleiras, a tribo de jovens saiu às ruas pela primeira vez. Influenciados pela música de Bob Dylan, pela poesia de Allan Ginsberg e pela filosofia de Herbert Marcuse, os hippies revelavam-se um símbolo vivo e forte do desprezo da nova geração pelo chamado “american way of life”. Num contexto de Guerra Fria e de crescente competitividade e individualismo, eles defendiam a liberdade acima da autoridade, a criação acima da produção e a cooperação acima da competição. E mais do que

nunca apregoavam a necessidade de cada um abrir os sentidos, expandir a consciência e exaltar o espírito. Imerso na aldeia global, este ideário logo conquistou a consciência de milhões de jovens em várias partes do mundo - Londres, Paris, Hamburgo, Amsterdã - , chegando ao Brasil no inicio dos anos 70. E aqui os hippies tiveram o tratamento que o governo militar dava a todos que se recusavam a seguir a cartilha do regime: a repressão. No verão de 1971, por exemplo, a imprensa registra que uma tropa de choque da Polícia Militar foi mobilizada especialmente para reprimir um grupo de rapazes e moças que fumava na praia de Búzios. “Os soldados chegaram de surpresa e perseguiram os hippies pelas ruas da cidade. Muitos tentaram se esconder nas casas mais próximas mas todas elas foram vasculhadas e os cabeludos levados para a cadeia de Cabo Frio, em grandes caminhões.” (l79) Em Salvador, uma das vítimas da repressão foi o grupo Novos Baianos, que numa noite de sábado, em novembro de 1970, foi cercado pela polícia quando tocava violão à beira do cais no Porto da Barra. Na época o grupo tinha lançado apenas um LP e ainda não era muito conhecido na praça. “Mas seu guarda, somos os Novos Baianos”, tentaram se identificar. “Não adianta. Todo mundo em cana”, esbravejou um dos policiais, empurrando os músicos para o camburão. Presos como meliantes, Baby, Pepeu, Moraes e Galvão foram encaminhados para a delegacia, e lá Baby Consuelo procurou argumentar. “Não somos hippies. Somos o que somos, fazemos o que queremos e achamos limpo.” (180) O delegado não ouviu ou não entendeu e mandou a vocalista para a carceragem feminina e os rapazes para uma outra cela imunda, lotada de presos. Luiz Galvão tentou protestar, mas desistiu diante da ameaça do delegado: “Cale a boca, para que eu não coloque você no pau-dearara.”(181) Como numa cena de ”Hair”, , eles foram despidos e tiveram suas imensas cabeleiras raspadas. “É preciso ter muita força para agiientar 24 horas numa cela infecta, junto com os mais estranhos tipos humanos”, desabafou Baby ao sair da cadeia.

Em diversas capitais do país os agentes da repressão criaram as chamadas “delegacias de vigilância geral e costumes”, que tinham entre as suas funções prender os jovens hippies e comunicar imediatamente aos seus pais, já que grande parte deles pertencia à classe média. A ação de uma dessas delegacias também está registrada na página policial do jornal ”O

Norte”, de João Pessoa, Paraíba. Alí informa-se que a polícia militar prendera cinco hippies quando estes com sua típica saudação - “fala, amizade!” -caminhavam pacificamente por um dos bairros da capital paraibana: “O quinteto foi posto à disposição do delegado Manuel Raposo, que tenta comunicação, agora, com suas respectivas famílias. Os quatro rapazes e a moça confessaram, na polícia, que são andarilhos e pretendem conhecer todo o país, a pé ou de carona, não lhes importando o meio, como também não lhes importam suas famílias, julgando importante apenas o caráter de vida livre e errante que levam.” (183)

Atentos a este novo fenômeno da sociedade contemporânea, os artistas “cafonas” se manifestaram sobre o tema, em seus discos. Um exemplo é a dupla Dom & Ravel, com a música “Conflito de gerações”, que, lançada num contexto de repressão àqueles que andavam em grupo e com o dedo em V, manifestava-se francamente favorável à postura dos hippies. A letra da composição se inicia com a máxima de que "um homem velho não é mais / que um filho moço" pois “ninguém é mais herói / por ter maior idade”. A segunda estrofe enfatiza o que foi dito na primeira – “um homem sério não é mais que os filhos hippies” já que “Ninguém é dono da verdade / por ser mais velho” - e prossegue relacionando o ideário hippie à mensagem de Jesus Cristo “pois o Evangelho ensina / que a vitória é do amor”. Por fim, o refrão da música deixa no ar a indagação sobre o desfecho deste conflito de gerações: “Me diga então / quem vencerá?...” De certa forma esta resposta foi dada algum tempo depois pelo compositor Belchior na letra de “Como nossos pais”, que de forma enfática constata: “Eles venceram / e o sinal está fechado pra nós / que somos jovens...” Existe, porém, um outro ponto que não está explícito na letra da canção lançada por Dom Ravel em 1974. Dom agora explica: “Embora não cite isso diretamente, aquela música defendia uma concessão às pessoas que usavam drogas naquele momento. No sentido de procurar compreender que aquele pessoal que avançava via drogas na mudança dos costumes e não só através das drogas, mas tendo a droga como a ponta de lança do processo - , que eles também tinham uma proposta para o problema do relacionamento social entre as pessoas. Embora fosse uma proposta pueril, uma ilusão, uma utopia aquele paz

e amor, a gente tinha que respeitar. Porque aquilo que os hippies estavam pregando é uma coisa que o evangélico está pregando com outras palavras, o budista está pregando com outras palavras, Jesus Cristo, Gandhi e por aí vai. Há várias pessoas lutando pela paz e o amor; cada uma de uma forma diferente. Então, foi isso o que eu quis colocar em Conflito de gerações.” Aquilo que não está explícito na música gravada por Dom & Ravel aparece de forma mais direta em uma das faixas do LP de Odair José, lançado em 1975. Àquela altura já plenamente identificado como um cantor ligado a temas do amor e da sexualidade, ele resolveu inovar e, num claro desafio aos agentes da repressão, gravou uma música abordando um tema muito mais explosivo: o consumo de drogas. Com o sugestivo título de “Viagem”, a composição de Odair José inicialmente convida: “Venha comigo na minha viagem / não se preocupe eu tenho as passagens.. “; depois provoca: “... sei que você tem vontade / mas de repente o medo lhe invade / e você não vem...” e por fim, oferece: “"... quero colocar na sua mente uma luz / acabar de uma vez com os tabus / que um dia inventaram pra gente...” Se em “Pare de tomar a pílula”, Odair José dizia um "não" aos anticoncepcionais, na canção “Viagem” ele diz um "sim" à cannnabis sativa - nome científico da maconha. E com esta balada apologética o compositor procurava engrossar uma legião de usuários que, influenciada pelo movimento hippie dos Estados Unidos, também possuía um perfil bem definido ao sul da linha do equador. Numa época em que a erva ainda não era consumido pelos "caretas" (o que vai acontecer a partir dos anos 80, junto com o avanço da cocaína), fumar maconha era identificado como uma agressão ao sistema, um ato de rebeldia, ligado aos movimentos pacifistas e de contracultura, desbunde, underground, um gesto de despressão e transgressão que, muitas vezes, assumia um caráter de protesto político. Por tudo isso, o preconceito contra a droga era muito grande na sociedade, e os vigilantes do “reinado de terror e virtude” avançavam sobre o usuário com toda a força. Um caso que repercutiu na época foi o que envolveu os artistas baianos em turnê na cidade de Florianópolis. Na manhã de 7 de Julho de 1976, a

polícia invadiu os quartos do hotel onde dormiam Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethania, que naquele mesmo dia iriam estrear na cidade o show “Os doces bárbaros”. O primeiro a ser acordado foi Gilberto Gil, que ficou parado num canto do apartamento enquanto os agentes revistavam sua carteira e outros objetos pessoais. O saldo da batida rendeu um cigarro de maconha e meia dúzia de "beatas” (pontas), o suficiente para permitir a prisão do cantor em flagrante. E, assim, pela segunda vez no regime militar, Gilberto Gil foi encaminhado à cela de uma cadeia brasileira. (184) Alguns minutos depois, Caetano Veloso também foi acordado com socos fortes e repetidos em sua porta. De sobressalto, e antes mesmo que os policiais invadissem o quarto, o cantor foi para a janela gritar por socorro. Ele ainda não sabia, mas quem devia socorrê-lo estava à frente da invasão. Na cabeceira da cama de Caetano os agentes encontraram apenas um vidro de Valium, um tranquilizante vendido em farmácias. “Comprei o vidro em São Paulo, com receita médica. Sou radicalmente contra os tóxicos” , explicou Caetano aos policiais.(185) Ainda assim, o remédio foi levado para a delegacia para que fosse investigada a informação do cantor. Com a mesma truculência, os policiais invadiram o apartamento dividido por Gal Costa e Maria Bethânia e revistaram todos os objetos pessoais das artistas, recomendando que ambas se mantivessem quietas: “Dois de vocês já estão presos. Psicotrópicos. Gil e Caetano. É melhor vocês facilitarem as coisas”, advertiu um dos agentes. “Que fizeram com meu irmão!?”, exclamou, assustada, Maria Bethania.(186) A batida policial prosseguiu sem maiores explicações, mas para frustração dos executores rendeu apenas um pote de pó-de-pemba, substância que Bethânia utilizava em seus números de candomblé. Por via das dúvidas, o pó também foi encaminhado ao Instituto Médico-legal para análise de conteúdo. A fúria repressiva que mais uma vez se abateu sobre os tropicalistas baianos despertou a indignação do escritor Otto Lara Rezende, ao afirmar que “se fossem britânicos, Caetano, Gil, Bethania e Gal estariam sendo condecorados pelos altos serviços prestados ao povo e à glória de Sua Majestade. Como condecorados foram os Beatles. Aqui, não; aqui tudo se quer resolver pela força - e tudo - em última análise, acaba sendo caso de polícia. O povo lhes quer bem; há porém

autoridades que os metem na cadeia. O Brasil está anestesiado e o muro anda tão baixo, que ninguém protesta. Eu, às vezes, tenho vergonha de ser brasileiro; de ser conivente.” (187) Esta "anestesia social" diagnosticada por Otto Lara Rezende é mais um sintoma do respaldo que segmentos importantes da sociedade brasileira davam à ação repressiva do regime militar. E isto fica ainda mais evidente no processo de julgamento de Gilberto Gil que, perante o juiz da I Vara Criminal de Florianópolis, corajosamente assumiu sua condição de usuário de cannabis sativa - “efetivamente gosto da droga e já fumo há muitos anos” - , mas ponderou que vício é uma questão de semântica. Fumo diariamente, mas não uso outras drogas, porque sou viciado apenas em maconha, que auxilia sensivelmente minha introspeção mística”. Contrariado, o juiz não apenas rebateu a "questão semântica" proposta por Gil, como também designou uma junta médica-psiquiátrica para examinar o cantor. Provavelmente incorporados do espírito de Simão Bacamarte - o sinistro personagem de Machado de Assis - , os médicos, após rápido exame, identificaram em Gil alguns sintomas desviantes e decretaram a sua internação hospitalar “como medida necessária e de urgência”.(189) E em mais uma prova de que no Brasil muitas vezes a realidade supera a ficção, o autor de “Se eu quiser falar com Deus” foi condenado a tratamento psiquiátrico em uma clínica em Florianópolis, sendo depois encaminhado ao Sanatório Botafogo, no Rio de Janeiro. Concluído o processo de prisão e internamento de Gilberto Gil, a próxima vitima da repressão foi a cantora Rita Lee, que na manhã de 24 de agosto de 1976 teve a sua casa invadida por sete policiais da Divisão de Entorpecentes de São Paulo. Depois de vasculharem os cômodos da residência, eles recolheram alguns cigarros de maconha semi-consumidos, estojos com restos da erva e até um aparelho de origem árabe chamado narguilé que, no entendimento da polícia, era utilizado para queimar fumo. Rita Lee tentou se defender argumentando que deixara de fumar havia cerca de um ano e que o que os agentes encontraram em sua casa foram “vestígios de maconha já mofados”.(190) Os policiais não se convenceram e a cantora, que na época estava grávida de seu primeiro filho, foi autuada em flagrante e conduzida ao xadrez. Segundo o diretor da Divisão de Entorpecentes, a polícia reforçou a

vigilância em torno da artista após receber denúncias de que, para além da música, o que havia nas apresentações de Rita Lee “era um verdadeiro show de tóxicos, onde se fumava maconha na entrada, na platéia e nos bastidores”. (191) Antes de ser julgada e condenada a um ano de prisão domiciliar, Rita Lee passou seis dias na penitenciária feminina, tornando-se a principal atração nos horários de banhos de sol. E ali, invariavelmente, a cantora ouvia e falava com diversas detentas, uma das quais expressava sua admiração com o fato de “uma pessoa de destaque na música do Brasil estar aqui presa.” (192) Embora o cerco ao usuário de droga tenha se acentuado após a decretação do AI-5, em 1968, constata-se que desde o primeiro governo do regime militar, o do marechal Castelo Branco, artistas populares já vinham tendo problemas nesta área. O cantor Nelson Gonçalves, por exemplo, dependente de cocaína havia quase duas décadas, passou doze dias na prisão em 1966, sob a acusação de tráfico de entorpecente. (l93) Era um domingo, 8 de maio, Dia das Mães, hora do almoço. Nelson estava à mesa em companhia da mulher, Maria Luiza, e dos filhos ainda menores, Ricardo e Jaime. De repente, ouvem-se gritos, sirenes, e a porta de sua casa é arrombada por policiais fortemente armados, que já entram pondo tudo abaixo. O cantor ainda tenta escapar mas um grupo de agentes “vai atrás", e, na escada, o delegado Celso de Castro alcança Nelson e, covarde e desnecessariamente, o esbofeteia, o algema e lhe dá voz de prisão. Ricardo e Jaime, atônitos, testemunham aquela desproporção de valentia. Maria Luiza interpõe-se na frente de um deles, questiona o porque dele ser humilhado daquela maneira na frente dos filhos, se assassino ele não era, e marginal, nunca foi. Mas algemado e chorando, Nelson Gonçalves foi levado pelos policiais civis para a Casa de Detenção do Estado de São Paulo". (194) Este clima repressivo, do qual nem mesmo artistas de destaque estavam a salvo, só realça ainda mais a ousadia de Odair José ao compor e gravar uma balada propondo ao público uma "viagem" para "acabar de vez com os tabus". E o que é mais surpreendente: a

composição passou pela Censura e foi liberada para tocar no rádio. Recorde-se que até mesmo o disco de Bob Marley intitulado "Kaya" (que no dialeto jamaicano significa "maconha") foi proibido e apreendido no Brasil porque em sua contracapa apareciam algumas folhas de cannabis fato que rendeu mais um processo contra a gravadora Phonogram, acusada de incitar a juventude brasileira ao consumo de entorpecentes. Por que a canção gravada por Odair José - artista de muito maior alcance popular - também não atraiu repressão semelhante? “Eu acho que eles estavam tão preocupados com o que eu falava de cama, de puta, de sexo, que na verdade nem prestaram atenção na letra. E eu estava defendendo o baseado, né?” O cantor pronuncia esta última frase com um leve sorriso no rosto. Sorriso de quem, malandramente, valendo-se da linguagem da fresta, conseguiu ludibriar os seus algozes. (195) Uma série de outras canções relatando vivências, afetos e angústias do universo dos homossexuais e das prostitutas serve também para ilustrar até que ponto o repertório da música popular "cafona" transgride ou apenas endossa o rígido controle da moral dominante no período do regime militar. E como exemplo, cito a balada “A galeria do amor” , composição de Agnaldo Timóteo que faz referência à Galeria Alaska, tradicional ponto de encontro de homossexuais no Rio de Janeiro. Formando uma travessia de menos de 100 metros entre as avenidas Atlântica e Nossa Senhora de Copacabana, no Posto 6, Zona Sul carioca, a Galeria Alaska tornou-se famosa a partir dos anos 60, quando chegou a ser classificada como o “maior reduto de gays do país”. (196) Na década seguinte sua fama de "boca maldita" foi se acentuando e o local passou a atrair também prostitutas, pivetes, traficantes, travestis e toda sorte de personagens identificados com o chamado mundo marginal do Rio de Janeiro. E é exatamente este ponto noturno da Cidade Maravilhosa - já tão decantada por suas praias, o Corcovado e o Redentor - que Agnaldo Timóteo resolveu homenagear em “A galeria do amor”, principal faixa de seu LP lançado em 1975:

NUMA NOITE DE INSÔNIA SAÍ PROCURANDO EMOÇÕES DIFERENTES E DEPOIS DE ALGUM TEMPO PAREI CURIOSO POR CERTO AMBIENTE ONDE MUITOS TENTAVAM ENCONTRAR O AMOR NUMA TROCA DE OLHAR...

Mais que uma crônica da cena social, mostrando o espaço público como o lugar de trânsito do desejo, a balada “A galeria do amor” é um depoimento carregado de ousadia, levando-se em conta que a temática do homossexualismo no Brasil era assunto ainda revestido de uma couraça de preconceito. Recorde-se que a canção “Bárbara”, da peça Calabar, de Chico Buarque e Ruy Guerra, teve a frase “nós duas”, que indicava um relacionamento homossexual entre as personagens Ana de Amsterdã e Bárbara, viúva de Calabar - , cortada pela censura. Problema maior enfrentou Odair José com a balada “Desespero” , composição de 1974, que narra o drama de um rapaz às voltas com freqüentes desconfianças da namorada. “Você diz a todo instante / que eu não sou, meu bem / aquilo que aparento ser / diz até que não sou homem bastante / pra conseguir do meu lado ter você...” . Sob a justificativa de que a letra "questiona a masculinidade de um indivíduo" e "desperta o público para a questão do homossexualismo" a Censura vetou a canção, que já estava pronta para entrar no novo disco do cantor. O advogado da Phonogram, João Carlos Muller Chaves, recorreu a instâncias superiores da Divisão de Censura em Brasília, mas o veto foi mantido num parecer assinado pela censora Zuleika Santos Andrade, que, num texto confuso, diz que a composição de Odair José “torna-se inconveniente pela razão óbvia, concludente e flagrante de uma anormalidade confessa e aceita, em difusão do homossexualismo, prática considerada anti-social”. (197) Deu para entender? O fato é que o recurso do advogado foi indeferido e Odair José teve que reescrever a letra da música, eliminando toda e qualquer possível dúvida sobre a masculinidade do personagem. E, como medida de maior segurança, a

canção foi enviada à Censura com um novo título: “Seja o que Deus quiser”. Percalços desse tipo atingiam quase todas as mensagens musicais com alusões ao homossexualismo, já que o regime militar expressava um projeto masculinizante. Mas com a balada “A galeria do amor”, Agnaldo Timóteo desafiava mais uma vez este tabu, pois ali retrata a Galeria Alaska como um espaço de liberdade, acolhedor e agradável, intervindo através do discurso lítero-musical nos padrões de comportamento: ...NA GALERIA DO AMOR É ASSIM MUITA GENTE À PROCURA DE GENTE A GALERIA DO AMOR É ASSIM UM LUGAR DE EMOÇÕES DIFERENTES ONDE AGENTE QUE É GENTE SE ENTENDE ONDE PODE SE AMAR LIVREMENTE... Além de inscrever a Galeria Alaska no roteiro geográfico da nossa música popular, a canção deu titulo ao LP de Agnaldo Timóteo, o que demonstra a intenção do artista de ampliar a carga de provocação e contestação. E, segundo o cantor, o título original da composição era exatamente "Galeria Alaska", mas o departamento de marketing da gravadora o aconselhou a mudar, pois temia a face conservadora do público, acostumado à imagem do artista machão, que posava ao lado de leões e outras feras na capa do LP “Os brutos também amam”. Aliás, o primeiro obstáculo que Timóteo teve que enfrentar para lançar “A galeria do amor” foi na sua própria gravadora, a EMI-Odeon: “Eles ficaram meio preocupados quando mostrei a composição, mas eu falei: 'Gente, isso é uma realidade. Você sai à noite pra passear, chega na Galeria Alaska e encontra centenas de pessoas se paquerando. Isso é um fato real. É preciso falar disso. São milhões de pessoas que vivem dessa maneira: homens com homens, mulheres com mulheres. Não se pode mais fugir dessa realidade hoje no mundo.´” Ainda assim, Timóteo não teria ficado também um pouco receoso de tocar neste tema naquela época? “Mas eu toquei de maneira muito respeitosa” - diz ele, “não agredi ao chefe de família, não agredi a ninguém, mas eu toquei. E além do mais, eu tenho uma personalidade muito forte; eu

sou muito másculo; eu sou muito bravo. Então colocar aquelas coisas, não é como Emílio Santiago, porque Emílio é delicado; não é como Caetano Veloso, que é um homem delicado, ou o Ney Matogrosso. Eu não. Eu sou bruto; eu sou bravo; eu sou brigão. Por isso coloquei lá. E coloquei lá com todas as letras. A verdade é que eu fui muito feliz com a coragem de fazer aquela música.” “A galeria do amor”, foi uma das primeiras canções compostas por Agnaldo Timóteo que iniciou sua carreira gravando versões de sucessos estrangeiros e músicas de outros autores e a inspiração para compor o tema surgiu depois de uma experiência vivida por ele próprio na Galeria Alaska: “Eu fiz esta canção por causa de uma noite de paquera. Eu cheguei de viagem, joguei a mala de dinheiro numa gaveta do quarto, desci, peguei meu carro e fui paquerar. E chegando ali eu vi aquele ambiente, as pessoas se olhando, os coroas paquerando os menininhos . foi numa noite de paquera. Aquilo que eu retratei na letra foi real, absolutamente real.” Com o sucesso da composição estava aberto o caminho para o artista sair da sombra e revelar o seu avesso: o do homem frágil, dividido, fustigado por seu lado feminino. Tanto é assim que no ano seguinte Agnaldo Timóteo voltou a desenvolver o tema de “A galeria do amor”, desta vez sem especificar o local. A sua composição “Perdido na noite”, que deu título ao LP de 1976, enfatiza aspectos já presentes na música anterior, como a noite, a solidão, a identificação com outros solitários e a defesa do amor sem preconceito: “Somos amantes do amor liberdade / somos amados por isso também / e se buscamos uma cara metade / como metade nos buscam também.” Para Agnaldo Timóteo, “Perdido na noite” não retrata apenas a solidão de um artista na época com 39 anos e no auge da carreira; retrata também o cotidiano reprimido de milhões de pessoas anônimas que diariamente saem pelas ruas da cidade em busca do prazer e de alguma companhia. E isto ajudaria a explicar a grande vendagem alcançada por esta e outras gravações, como, por exemplo, “Eu pecador”, composição de Agnaldo Timóteo que também aborda a problemática do homossexualismo: “Senhor, eu sou um pecador / e venho confessar porque pequei/ Senhor, foi tudo por amor / foi tudo uma loucura / mas eu gostei...” Revestida com a carga dramática do ritmo do tango, “Eu pecador”, título do LP de Timóteo em 1977 - descreve o conflito interior de um homem

dividido entre a prática homossexual e uma formação religiosa repressora: “Senhor, não pude suportar / a estranha sensação de experimentar / um amor por vós não concebido / um amor proibido pela vossa lei...” E mais adiante ele ainda confessa, resignado: “Senhor, depois de se provar / é difícil parar de se amar com perigo...” Este ousado tema de Agnaldo Timóteo guarda certa afinidade com o samba-canção “Nono mandamento” , sucesso de Cauby Peixoto nos anos 50, que também expressa a confissão de um pecador: “Senhor / aqui estou eu de joelhos / trazendo os olhos vermelhos / de chorar porque pequei...” Mas, como o próprio título indica, o pecado confesso no sambacanção “Nono mandamento” é desejar a mulher do próximo, enquanto que no tango de Agnaldo Timóteo é a prática do “amor que não ousa dizer o nome”, na expressão de Oscar Wilde. Nascido em Caratinga, interior de Minas Gerais, e tendo recebido uma sólida formação católica de sua mãe, dona Catarina, Agnaldo Timóteo teria retratado o seu próprio drama na composição “Eu pecador”? “Não”, prefere dizer o artista -, “Eu pecador é uma música de uma multidão, é uma música de milhões, retrata um comportamento de vida que era muito discriminado, e que hoje não se questiona mais. E eu sei que foi uma coisa audaciosa demais para a época, mas eu não quero nem saber; eu tinha que fazer e fiz. Porque retrata uma realidade que não se pode questionar; o cara pode ser macumbeiro, católico, budista, protestante, se ele tem a sua tendência homossexual, ele vai viver a sua vida homossexual; não tem Cristo que dê jeito pra mudar, não tem. Alguém diz 'ah, o cara agora é evangélico e deixou o homossexualismo'. É mentira. Isso não existe. Se a pessoa gosta, quando chega a hora ele vai namorar e pronto.” Esses três sucessos de Agnaldo Timóteo: “A galeria do amor”, de 1975, “Perdido na noite”, de 1976, e “Eu pecador”, de 1977, formam uma trilogia: a trilogia da noite. As trêes canções são de autoria do cantor (fato até então pouco comum em sua carreira), deram títulos aos respectivos LPs e abordam a experiência homossexual. Entretanto, de maneira um pouco mais velada, valendo-se do interdito, Timóteo já havia tocado neste tema em 1974, ao gravar a balada “Amor proibido”, de Clayton e da compositora Dora Lopes que, segundo o cantor, na época estava apaixonada por uma mulher e quis falar deste seu amor proibido. Timóteo se identificou com a canção e a gravou: “Já ficou

entendido / que o amor que vivemos / é o amor proibido / pode o mundo inteiro falar / que eu fico contigo.” Apesar da referência ao substantivo "entendido" - de evidente conotação homoerótica - , sublinhe-se que o amor proibido retratado na canção pode ser qualquer amor, e não apenas aquele compartilhado entre duas pessoas do mesmo sexo. Mas esta abertura da letra é intencional por parte do artista, como o próprio Agnaldo Timóteo afirma: “Quase todas as músicas do meu repertório tem um duplo sentido. Talvez com exceção de uma ou outra, mas quase todas eu fiz questão de gravar com duplo sentido. São músicas que podem ser cantadas pelo homem, pela mulher e pelo homossexual. Eu sempre fiz questão de dar este privilégio às pessoas. Porque na verdade, se você tem prazer de estar com alguém e consegue levar este alguém para a cama, não interessa se é um homem, uma mulher ou, no caso específico, um garotão, ou uma garotona. Você leva quem você queira. E as pessoas têm que entender e respeitar isto. Não é o meu caso, não é o caso do Cauby Peixoto ou do Julio Iglesias; é o caso do ser humano. Cada pessoa deve viver a sua vida; não a vida que alguém lhe queira impor ou que a sociedade lhe queira impor.” Outra obra aberta composta e gravada por Agnaldo Timóteo é a canção “Aventureiros”, cujos versos descrevem a ronda noturna daqueles que “marcados pela dor da solidão” , compram “amor a qualquer preço/ pagando para se sentir feliz...”. E, segundo o cantor, esta e outras baladas românticas que ele compôs sobre o tema nos anos 70 permanecem atuais. “São absolutamente atuais, porque eu continuo sendo um aventureiro, eu continuo querendo transar cada dia com uma pessoa diferente, eu continuo perdido na noite, buscando, buscando...” Busca que também aparece em outra composição de Timóteo revestida de forte carga homoerótica: “A bolsa do Posto Três”. “Esta música eu fiz para o Paulo César Souza, um menino que morava comigo O Paulinho era terrível. Ele saía lá de casa e ia para aqueles pontos de Copacabana paquerar aquelas bichas todas. E um dia alguém me telefonou avisando, eu fui e ele estava lá. Ai eu fiz: ‘Quantas vezes alertei / você não soube entender / quase tudo era possível / menos dividir você... / chegamos ao fim da linha / é melhor te esquecer/ viva as suas aventuras na bolsa do Posto Três / mas no fim dessa loucura / vai sentir na pele o que você me fez...'”, verso que acabou sendo um presságio terrível do que aconteceu com ele.” De fato, algum tempo depois o companheiro de Agnaldo Timóteo tornou-se mais

um nome na lista das vitimas fatais da Aids. “Mas eu sempre dizia: 'Paulinho, tenha cuidado, olha com quem você transa, com quem você vai para a cama.' E ele me respondia: ‘Agnaldo, quando eu vou pra cama eu não peço atestado médico. O meu tesão é mais forte do que o medo.' E ele morreu aos 34 anos, lindo, era um negro lindo, de cabelo liso, um índio lindo, que enfeitava a minha casa, que dançava samba, era alegre, elegante, comia com a mão esquerda, se vestia impecavelmente, só comprava roupas importadas; era um menino que tinha o privilégio de ir aos Estados Unidos comigo, enfim, era uma pessoa especial que lamentavelmente foi embora porque não tinha juízo e nos fez sofrer todos, pois todo mundo era apaixonado por ele.” No rastro do sucesso das canções de Agnaldo Timóteo, outros artistas "cafonas", e alguns de maneira até mais explícita, também abordaram a questão do homossexualismo na sociedade brasileira. Um exemplo disso na década de 70 é o cantor Wando, que, embora ainda não tivesse consolidado naquele período a sua imagem de "obsceno", já imiscuía-se com desenvoltura nos temas da libertinagem. A sua canção “Emoções”, gravação de 1978, revela a descoberta da atração sexual entre dois jovens do sexo masculino “nos fizemos tão meninos / livres tão vadios de tanto querer..." - e o receio que envolve ambos – “.. me entregaste teus segredos / e eu falei do medo do meu coração...”. Mas o verso seguinte - “...e assim pisamos noite adentro / como dois perdidos...” - confirma que as canções de Agnaldo Timóteo haviam se tornado uma referência para a abordagem do tema, que na última estrofe desta composição de Wando não dá margem a duplo sentido: ...A LUA ILUMINOU TEU CORPO MORENO, BONITO PRA ME PROVOCAR NO TEU ROSTO UM RISO LENTO MISTURADO AO PRANTO VI DESABROCHAR TE AGASALHEI NOS BRAÇOS PELE, MÃOS, ESPAÇOS ACARICIEI TE AMEI SUAVEMENTE E TÃO DOCEMENTE EU ME FIZ TEU REI.

O lado proibido do amor masculino também aparece na obra do cantor Nelson Ned, que embora cultive o típico discurso do machão latinoamericano, revelou-se sensível à problemática homossexual.

A letra de sua composição “Meu jeito de amar” focaliza o drama de um rapaz que nutre por um certo alguém um desejo "proibido pelas leis deste mundo...”; mas que cuidadosamente dele se aproxima ponderando “por favor / não me leve a mal por esse sentimento / e por mais estranho que pareça / é amor de verdade...”; e num rasgo de ousadia lhe confessa: “Eu estou louco para ter algo contigo / algo mais que um amigo / como eu queria dar um beijo nessa boca / e te fazer vibrar de amor.” É sabido que, além da discriminação e segregação, o cotidiano de grande parte dos homossexuais em nossa sociedade é marcado por atos de violências físicas ou verbais. Ou ambas. Ao lado do corpo do artista plástico Décio Escobar, assassinado por três rapazes em 1969, foi pichada a frase: “Este era veado e chupador.”(198) Também preocupado com a lassidão dos costumes, mas agindo em nome da lei, o delegado José Wilson Richetti tornou-se famoso nos anos 70 por suas violentas investidas contra os militantes da chamada boca-do-lixo em São Paulo. “Precisamos tirar das ruas os pederastas, maconheiros e prostitutas”, justificava-se ele. E numa afirmação da prioridade da ronda policial, nos bares do Centro da cidade os investigadores já chegavam gritando: “Quem for veado pode ir entrando no camburão.”(199) A socióloga Gabriela Silva Leite, que atuava como prostituta nas ruas de São Paulo naquele período, relata que uma sessão de tortura, sob a ordem e a supervisão do delegado Richetti, “resultou na morte de dois travestis e de uma mulher, que por sinal estava grávida”.(200) Num contexto de violência e repressão como este, deve-se destacar o caráter transgressor e crítico do repertório "cafona" que enfatiza questões da sexualidade desviante. E, neste sentido, relativiza-se o que se entende por canção de protesto: não apenas “Cálice” ou “Apesar de você” - que tematizavam a questão política institucional do país - , mas também baladas como “Preconceito”, gravação do cantor Paulo Adriano que denuncia as angústias de um jovem homossexual atormentado pela repressão familiar e social: “Vi preconceitos demais / por detrás de tudo eu me escondi / eu não sei se fiz por bem ou por mal / só sei que todo amor é sempre igual.. “. Apesar da solidão e da auto-estima depauperada pelo estigma social, o personagem ainda resiste e proclama: “livre eu sou pra me entregar / a quem me entender assim”. A questão da liberdade sexual, tema que a esquerda ortodoxa considerava secundário na época, só ganhou maior visibilidade social em nosso país a

partir de 1978, com a eclosão de movimentos organizados das chamadas minorias: negros, mulheres e gays. Naquele ano formou-se o Movimento de Liberação Homossexual no Brasil, integrado por artistas, intelectuais, profissionais liberais e estudantes homossexuais. Sem negar apoio à luta pelas transformações estruturais da sociedade, mas mantendo autonomia em relação aos partidos de esquerda, os militantes gays elegiam o prazer como um direito legítimo de qualquer cidadão, argumentando que o ideal de liberdade incluía o direito de cada um ir para a cama com quem quisesse. A revolução devia começar dentro de casa, rompendo com os grandes tabus, tais como a vivência monogâmica e a possessividade no amor. Aproveitando as brechas do sistema repressivo, núcleos de militantes homossexuais foram organizados em algumas das principais cidades do país, procurando manter acesa a chama da liberação individual. E em cada um desses núcleos os participantes se reuniam para promover atos públicos, debates, pesquisas, leituras ou simplesmente para ficar nus, tocando indiscriminadamente uns aos outros. O escritor João Silvério Trevisan, um dos organizadores do movimento, recorda-se da primeira reunião com strip-tease coletivo protagonizada por um grupo de companheiros homossexuais em São Paulo: “Nossos olhares tornaram-se adolescentes; ficamos medindo-nos atônitos, como se acabássemos de nos conhecer de verdade: então seu peito é assim? e sua bunda? e seu pinto? não sabia que existiam pintas em suas costas e tantos pelos em suas coxas! O encantamento foi geral. Resolvemos repetir a dose, numa outra ocasião. Dessa feita, éramos uns 12 rapazes, tocando-se no escuro, indiscriminadamente, durante mais de uma hora. Lembro que fiquei fascinado, sentindo numa mão a textura inflada de uma cabeleira afro e, na outra, o inflar-se de um pau generoso, ambos entregando-se ao meu carinho.” (201) Embora distante dessas reuniões e não envolvido diretamente na militância gay, o cantor Odair José - sempre uma pedra no sapato dos guardiões da moralidade - deu sua contribuição ao Movimento de Liberação Homossexual no Brasil através da balada “Forma de sentir”, um manifesto em defesa da liberdade de amor entre dois homens: “Sei que és entendido e vais entender / que eu entendo e aceito a tua forma de amor...” Gravada em 1978, a composição de Odair José trouxe mais uma vez para a

nossa música popular o famoso grafite “É proibido proibir”. Esse grito de protesto, que surgiu em meio às manifestações estudantis de Paris em 1968 e naquele mesmo ano serviu de tema para a canção homônima de Caetano Veloso, ressurgia, exatos 10 anos depois, em um novo contexto e em um tema mais específico: a defesa do principio de que qualquer maneira de amor vale a pena: ...O BEIJO NO BEIJO, O IGUL NO IGUAL TROCANDO, ENTREGANDO, BUSCANDO CHEGANDO AO DELÍRIO FINAL EU VI O TEU VERDADEIRO SENTIDO DO SENTIR E NEM PENSES QUE EU VOU PROIBIR É PROIBIBO PROIBIR, É PROIBIDO PROIBIR...

Além de pederastas e maconheiros - como gritava o delegado Richetti outro segmento discriminado em nossa sociedade, as prostitutas, foi focalizado em diversas composições "cafonas" da época. Tema recorrente na história da música popular brasileira, as chamadas mulheres da orgia já renderam clássicos como “Dama do cabaré”, de Noel Rosa, “Quem há de dizer”, de Lupicínio Rodrigues, e “Vida de bailarina”, sucesso da cantora Ângela Maria. Mas, apesar de serem "obrigadas pelo ofício a bailar dentro do vício", as personagens dessas canções ocupam um certo status dentro do processo de hierarquização social que também permeia a atividade das prostitutas. Afinal, são todas dançarinas e mais ou menos contemporâneas de uma Lapa ainda boêmia, frequentada por artistas e intelectuais. á as personagens retratadas pelos compositores "cafonas" na década de 70 são de outra ordem e atuam em outro espaço: exibem-se solitárias pelas ruas da cidade. Como ilustram as canções “Secretária da beira do cais” (Xavier-Nenzinho), “Dama da noite” (Patrick) e “Menina da calçada”, gravação do cantor Fernando Mendes; “Tão sozinha na calçada / vendo gente a passar / O seu corpo tão pequeno / qualquer um pode levar.. “ A temática da prostituição feminina foi incorporada ao repertório "cafona" a partir de 1972, quando Odair José alcançou grande sucesso com a balada “Vou tirar você desse lugar”(202), composição que no ano seguinte o autor regravou em dueto com Caetano Veloso e que conta também com a admiração de outro famoso compositor baiano: Dorival Caymmi. “Certa vez, no camarim de um show da Nana” - recorda Odair - , “Dorival Caymmi fez um comentário que me trouxe grande satisfação pessoal.

Ele botou aquela mãozona gordona sobre meu ombro e falou: 'Odair, eu sou apaixonado por aquela sua canção que diz 'eu vou tirar você desse lugar'. De todos nós compositores, você foi quem melhor descreveu a história da puta."' O curioso é que esta "história da puta" que tanto agradou a Caymmi na época também agradava às crianças e servia até como canção de ninar, substituindo a famosa “Acalanto”, do próprio Caymmi. Em uma nota de sua coluna, Chacrinha perguntava aos leitores: “Sabem qual é a música que faz dormir o filhinho da Nara Leão, o Francisco? Bem, a Nara tem que torcer o nariz e cantar, todinha, a canção do Odair José, aquela do 'eu vou tirar você desse lugar'. Aí o guri adormece.” (203) E os versos que Nara Leão cantava mostram na primeira estrofe um personagem confessando para uma garota em algum bordel ou casa de massagens: “Olha / a primeira vez que eu estive aqui / foi só pra me distrair...”; na outra estrofe ele acrescenta: “Olha / a segunda vez que eu estive aqui / já não foi para distrair / eu senti saudade de você...”; e no refrão anuncia: “Eu vou tirar você desse lugar / eu vou levar você pra ficar comigo / e não interessa o que os outros vão pensar...” Nota-se que embora o narrador se mostre amoroso e disposto a enfrentar a rejeição da sociedade para ficar com aquela que o acolheu numa noite fria e vazia, ele próprio não está imune a preconceitos, já que aceita a prostituta, mas rejeita a prostituição expressa por "aquele lugar". O inusitado é que, originalmente, o "lugar" ao qual Odair José faz referência na letra da música não era exatamente um bordel, e sim a gravadora CBS, empresa onde ele atuava antes de se transferir para a Phonogram. Naquele primeiro semestre de 1972 o cantor vivia o limite do desgaste de relacionamento com os dirigentes da gravadora e o ambiente de trabalho tornava-se para ele cada dia mais insuportável. A idéia da canção surgiu neste contexto. “O prédio da CBS ficava na Visconde do Rio Branco” - explica Odair - , “e eu morava ali perto, na Rua do Riachuelo. E um dia eu saí bastante aborrecido da gravadora e no caminho até minha casa me veio este refrão 'vou tirar você desse lugar'. Mas na hora eu não pensei em puta, não pensei em nada. Eu estava era revoltado com a minha situação na CBS e cantei dizendo pra mim mesmo: 'eu vou tirar você desse lugar'.” Entretanto, ao chegar em casa, pegar o violão e começar a trabalhar os versos e a melodia da nova canção, Odair José achou o refrão muito forte

para ficar restrito ao seu problema com a gravadora e procurou relacioná-lo ao período em que atuava como músico da noite em boates da Praça Mauá e via “pessoas pagarem 50 ou 100 cruzeiros para comerem as putas que estavam expostas ali”. Testemunho que ele enfatiza numa entrevista à Rádio Globo: “A história é a seguinte: o cara trabalhava o dia inteiro e ao final do dia, em vez de ir para casa, ele passava ali para tomar um drinque e tal. E com esse drinque começava um grande romance. No dia seguinte ele voltava para tomar um segundo drinque, e mais um terceiro, porque já estava realmente apaixonado por alguém dali. Eu assisti muito isso. Porque ali se encontram moças extremamente dignas, e o fato de estar naquele trabalho é apenas uma opção ou circunstâncias da vida, porque às vezes você faz planos de vida e a vida muda seus planos. Enfim, a intenção da música é quebrar esses tabus, romper esses preconceitos, que ainda hoje existem por aí.” (204) E é com este mesmo olhar, sem a carga de rejeição e preconceito que normalmente pesam sobre aquelas que vivem do sexo, que o tema é abordado nas canções “Flor da noite” (Totó-McDonald), “Menina da noite” (Claudio Fontana), “Mulher de ninguém” (Antonio Carlos-Othon Russo), “Maria pureza” (Sobreira-Da Costa) e “Maria Esperança”, gravação de Lindomar Castilho, que também denuncia um outro aspecto da nossa realidade social: a violência de que são vítimas as prostitutas no seu cotidiano: "Perdida na noite em pé na calçada / Maria marcada, Maria sofreu. . / mataram Maria, Maria Esperança / a pobre criança que um dia cresceu ..” Esta recorrência ao tema da prostituição feminina no repertório "cafona" se dá em grande parte em virtude da proximidade desses compositores com o universo da noite. O próprio depoimento de Odair José foi revelador disso: ele conhecia o universo de perto. Mas há casos também de envolvimentos pessoais ainda mais íntimos. O cantor Waldik Soriano revela que a sua primeira esposa, que faleceu dois meses após o casamento, era uma prostituta de Belém do Pará, e ele a conheceu durante apresentação em um cabaré daquela cidade. “Era uma jovem morena, cor de jambo, cabelos longos e pretos, uma figura de impacto à primeira vista”, recorda ele. Após uma semana juntos, os dois apaixonaram-se perdidamente um pelo ouço e, como diz a canção de Odair José, Waldick a tirou "daquele lugar", casando-se com ela.

“Mesmo sabendo tratar-se de uma prostituta. Porém, como meu amor não tem preconceito, amei Maria José, a Zelita, até o fim de sua vida.” (205) Nelson Ned é outro artista que já teve envolvimento pessoal e emocional com prostitutas em determinada fase de sua vida e para elas compôs algumas de suas principais canções de amor. “A primeira pessoa por quem eu me apaixonei em São Paulo era uma garota de programa que eu conheci numa boate da vida. Isso foi mais ou menos por volta de 1968/1969. O codinome dela era Andreia. E eu me apaixonei perdidamente por ela. Era uma menina de programa, mas toda vez que ela fez amor comigo nunca me cobrou. E essas mulheres todas foram a grande fonte de inspiração para eu compor. Quando a Andreia me deixou, eu chorei mais ou menos uns cinco dias. Ai eu fiz a música ‘Quando eu estiver chorando’, que é um dos meus maiores sucessos na América Latina”: QUANDO EU ESTIVER CHORANDO NÃO FIQUEM ME CONSOLANDO DEIXEM-ME CHORAR SOZINHO TODA VEZ QUE EU ESTIVER CHORANDO É PORQUE ESTOU ME LEMBRANDO DE UM ALGUÉM QUE EU NÃO CONSIGO TER... A prostituta também faz parte da memória afetiva do compositor Nelson de Morais Filho, o Nenéo. Ao relatar a sua história de vida no período de adolescência no Morro do Borel, ele recorda: “Eu tinha um grupo de uns 15 amigos e todo sábado a gente juntava um dinheiro e ia para a zona do baixo meretrício. Mas todo mundo era ainda muito novo e tinha um certo medo de ir para o quarto sozinho com uma mulher. Então a gente já tinha uma mulher certa e todo sábado os 15 iam sempre naquela mesma mulher. Entrava um, saía outro, entrava um, saía outro, entrava um, saía outro” E, do alto de sua vasta experiência em diversos prostíbulos de norte a sul do Brasil, o cantor Waldik Soriano observa: “Naquele tempo, na zona, tinha muita mulher bonita. E a mulher se respeitava. Se você chamasse uma puta daquela para dar a bunda ou para dar uma chupada, ela lhe esculhambava: 'Não vou chupar porra nenhuma!' Era assim. Mulher da vida era fogo. E quando você

encontrava uma mulher que chupava ou que dava a bunda, essa era considerada uma vagabunda e ninguém queria.” NOTAS BIBLIOGRÁFICAS DO CAPÍTULO (Seguindo a numeração seqüencial encontrada no texto)

179. "Presa a filha de Carlos Manga" - Intervalo, n° 419, Janeiro de 1971. 180. "Tivemos de lavar o chão da cadeia" - Intervalo, n° 415, dezembro de 1970. 181. Luiz Galvão: Anos 70: novos e baianos. São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 78. 182. "Tivemos de lavar o chão da cadeia" - Intervalo, Nº 415, dezembro de 1970. 183. "Andarilhos presos em Cruz das Armas" - orte, 13-7-1977. 184. A primeira prisão de Gilberto Gil ocorrera poucos dias após a edição do AI-5, mais precisamente na manhã de 27 de dezembro de 1968. Ele e Caetano Veloso foram detidos em São Paulo e levados para o Rio, ficando inicialmente trancafiados em duas minúsculas solitárias do Quartel da polícia do Exército, no bairro da Tijuca. Ver Carlos Calado. Tropicália: A história de uma reolução musical. São Paulo: Ed 34, 1997 185. "Polícia assusta Caetano, prende Gil e suspeita do pó de Bethania e Gal" – Jornal Brasil, 8-7-1976. 186. Tárik de Souza & Elifas Andreato. Rostos e gostos da música popular brasileira. Porto Alegre: L&PM, 1979, p. 213. 187. Apud Nelson Motta. Música humana música. Rio de Janeiro: Salamandra, 1980, p. 64. 188. "Juiz interroga Gilberto Gil e mantém prisão" - O Globo, 9-7-76.

189. "Gilberto Gil internado em clínica psiquiátrica" - O Globo, 10-7-76. 190. "Empresárias e Rita Lee são presas por uso de entorpecente" - Ultima Hora, 25-8-1976

191. 'Rita Lee é presa e autuada por uso de drogas em São Paulo" - O Globo, 25-8-1976. 192. "Rita Lee condenada a um ano de prisão domiciliar" - O Globo, 3-91976.

193. Na prisão Nelson Gonçalves negou ser traficante mas confessou "cheirar cocaína desde 1949, quando perdeu sua amada". Ver reportagem "Cocaína envolve mais cantores e ex-miss" - Ultima Hora, 11-5-1966. 194. Marco Aurélio Barroso. A revolta do boemia: a vida de Nelson Gonçalves. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 2001, pp. 261-262. 195. Registre-se que num primeiro momento a composição de Odair José foi proibida pela Censura. Num parecer datado de 23 de abril de 1975, a letra de “Viagem” recebe o carimbo de vetada" e a justificativa: "Por estar enquadrada na Legislação sobre Entorpecentes, Decreto 69.845 de 27 de dezembro de 1971 - Art. 20". Num outro parecer datado de 2 de maio de 1975 e assinado por duas censoras, Marina Brum Duarte e Ana Kátia Vieira, a letra foi liberada sob o argumento de que "a 'viagem' sugerida não fica especificada, podendo, na verdade, significar até uma fantástica viagem cósmica, levada a efeito, evidentemente, pela imaginação". Fonte: Documentos do Serviço de Censura de Diversões Públicas - Arquivo Nacional / RJ. 196. "Em Copacabana, esperança e segredo de um quarteirão violento: a Galeria Alaska" - O Globo, 27-9-1987. 197. Os documentos da Censura citados são, pela ordem: Parecer Nº 13361/74 e Parecer Nº 14695/74. Fonte: Documentos da Divisão de Censura de Diversões Públicas - Arquivo Nacional / DF. 198. Apud João Silvério Trevisan. Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da Colônia à atualidade. 3a ed. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 401.

199. Idem, pp. 504-505. 200. Gabriela Silva Leite. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992, p. 85. 201. João Silvério Trevisan, op. cit., p. 349. 202. A gravação de Odair José ocupa 1º lugar na lista dos compactos simples mais vendidos na semana de 5 a 10 de Junho de 1972, no Rio. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp. 203. "E essa agora?" - (Jornal do Chacrinha) - A Noticia, 27-3-1973. 204. Programa “Show da Madrugada” - Rádio Globo, 24 -9-1994. 205. Waldik Soriano & Bernadino Campos. A vida de Waldik Soriano. Rio de Janeiro: Codecri, 1977, pp. 64-66.

(LINDOMAR CASTILHO NA LUTA PELO DIVÓRCIO)

“Eu nunca comi mulher nenhuma, porque elas não têm pau. E pra mim pau é um negócio essencial. Eu gosto muito da coisa entrando em mim.” (LEILA DINIZ)

Num texto dos anos 70, o jornalista Millôr Fernandes ironicamente exortava: “Feministas do mundo, uni-vos. Nada tendes a perder senão os vossos maridos” .(206) Era um sarcástico comentário sobre o avanço do movimento feminista, que depois da Europa e dos Estados Unidos, também chegava ao Brasil. Conscientes de seu novo papel na sociedade e já tendo conquistado antigos direitos civis como o voto e o acesso ao ensino superior - , as mulheres procuravam agora reforçar a sua identidade sexual, negando a relação de hierarquia entre o macho e a fêmea. Na busca de um relacionamento mais justo e aberto entre as pessoas, as feministas reivindicavam o direito à sexualidade e à igualdade com os homens no mercado de trabalho. O protótipo de mulher liberada no Brasil foi Leila Diniz, estrela de cinema e TV, musa de Ipanema e de uma geração de boêmios cariocas. Exprofessorinha de curso primário, Leila ganhou notoriedade em 1967 com o filme ”Todas as mulheres do mundo”, de Domingos de Oliveira, que a mostrou nua e esplendidamente bonita. Mas talvez bem mais do que na arte, foi na vida que a atriz desempenhou seu melhor papel. Com suas atitudes corajosas e liberais, Leila rompeu preconceitos, quebrou tabus, avançando os rígidos limites da moral vigente. Em 1971, grávida de mais de seis meses, ela ia de biquini à praia de Ipanema uma prática hoje natural, mas que na época muitos tomaram como uma afronta à tradição, à família e à maternidade. O maior zebu, entretanto, aconteceu em novembro de 1969, quando chegou às bancas uma edição de O Pasquim trazendo uma reveladora entrevista com Leila Diniz. Foi um estouro. Nunca uma mulher brasileira tinha falado de sexo de forma tão aberta na imprensa. Os vigilantes da moral e dos bons costumes ficaram de cabelo em pé. O curioso é que muito pouco do que Leila efetivamente falou sobre o tema saiu no jornal. O Pasquim, que se notabilizou por publicar suas entrevistas tal e qual o entrevistado falava, sem cortes ou retoques, no caso de Leila não pode agir assim. O vasto repertório de palavrões da atriz - “cu”", “caralho”, “tesão”, “fodida”- foi substituído por asteriscos e frases inteiras foram suprimidas

ou maquiadas na redação. Ouvindo hoje a fita original da entrevista constata-se, em meio às gostosas gargalhadas de Leila, que ela falou muito, mas muito mais do que foi publicado. “Eu gosto é de trepar, porra!”, confessou ela para a equipe de entrevistadores, entre os quais Tarso de Castro, Jaguar e Sérgio Cabral, que se diziam dispostos a atendê-la. E Leila instigava: “Acho que pra mim seria bacana trepar todo dia. E não me importaria se fossem uma, duas, três, vinte ou mil vezes por dia. Eu tenho uma puta resistência física”, acrescentando mais adiante: “Já me aconteceu de passar uns três dias não fazendo outra coisa na vida senão trepar sem parar.” Sobre os grilos do homem na cama, Leila analisou que “este negócio de brochar é problema de cuca. O pau não tem nada a ver com isso, coitadinho. O pau é um ser maravilhoso que a cuca às vezes atrapalha Eu sou contra a cuca por causa disso. Viva o pau e abaixo a cuca!” Aquela velha reclamação de algumas mulheres de que faltaria virilidade ao homem moderno, Leila esbravejou: “Porra nenhuma! De jeito nenhum! Eu trepo de manhã, de tarde e de noite e tem homem paca por ai. Mas é a tal coisa: eu gosto de trepar.” E quando a conversa enveredou pelo tema do lesbianismo, ela foi categórica: “Eu nunca comi mulher nenhuma, porque elas não têm pau. E pra mim pau é um negócio essencial. Eu gosto muito da coisa entrando em mim. Pode fazer tudo o que quiser também, mas pra mim pau é fundamental.” (207) A maior parte disso tudo que ela falou não foi publicada naquela edição de O Pasquim - e nem poderia. Mas o pouco que saiu no jornal foi suficiente para mobilizar o governo a criar uma severa lei de censura prévia à imprensa, o Decreto Nº 1.077, apelidado de “Decreto Leila Diniz” - algo um tanto injusto para quem sempre defendeu a liberdade. Um de seus artigos afirmava que a partir dali não seriam mais toleradas “publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes, quaisquer que sejam os meios de comunicação.” (208) Não é preciso dizer que um dos mais atingidos foi o Pasquim. Sua redação começou a conviver com um censor de plantão que checava todas as matérias antes de serem publicadas. Aquela polêmica entrevista de Leila, se por um lado consagrou o mito da atriz, por outro também trouxe-lhe muitos aborrecimentos e portas na cara. A TV Globo, por exemplo, onde ela atuara no início de carreira, negou-lhe

trabalho e num momento em que a emissora despontava como a nova líder de audiência. “Não tem papel de puta na próxima novela”, justificou um diretor da casa. (209) O cerco repressivo foi se intensificando sobre a atriz e numa certa tarde de domingo a Polícia Federal foi buscá-la com uma ordem de prisão à saída da TV Tupi, onde ela se virava como jurada de Flávio Cavalcanti. Providencialmente, Leila saiu escondida no banco de trás do carro do apresentador, que a abrigou durante alguns dias em sua casa em Petrópolis. Depois de muita negociação ficou decidido que a atriz iria depor na Polícia Federal e assinar um documento em que se comprometia a não dizer mais palavrão. Leila morreu em junho de 1972, aos 27 anos, quando retornava de um festival de cinema na Austrália. O avião em que viajava explodiu pouco antes de aterrissar no Aeroporto de Calcutá, na Índia. Foi uma tremenda fatalidade para quem afirmava cheia de entusiasmo: “A minha maior força é a minha energia, a minha alegria e a minha vontade de viver.” (210) O paradoxal é que esta figura - hoje símbolo da liberação feminina no Brasil - não se entendia muito bem com as feministas de sua época. “Como diz Leila Diniz / homem tem que ser durão...”, cantava Erasmo Carlos no samba ”Coqueiro verde”. Por essas e outras Rose Marie Muraro dizia que Leila “fazia o jogo dos homens” e que ser mulher era algo mais do que “sair dando por aí”. (2l1) Isto não impediu, entretanto, que após a morte da atriz as feministas se apossassem da sua imagem, transformando-a numa bandeira do movimento que se projetou ao longo dos anos 70. Inspiradas na luta de suas colegas européias, as feministas daqui também se organizaram em influentes núcleos de participação como o Centro da Mulher Brasileira, o Brasil-Mulher e o Movimento Feminino 8 de Março. Não era pouca coisa numa sociedade tradicionalmente machista e para a qual o único movimento feminino ainda era aquele dos quadris. Ironias de Millôr à parte, as organizações feministas por vezes também contavam com reforços inesperados como, por exemplo, do machão Waldik Soriano, que em algumas de suas canções alinhava-se às mulheres na crítica ao comportamento de certos homens. Veja esta estrofe de bolero: ...NO PRINCÍPIO TUDO É UM MAR DE ROSAS JURA TANTO SER UM MARIDO LEAL MAS DEPOIS DE UM PAPEL BEM ASSINADO

FAZ DA SUA PRÓPRIA ESPOSA UM CACHORRO ACORRENTADO E DESPREZADO NUM QUINTAL...” (121) É verdade que o cantor logo sofria suas recaídas e desferia algumas pérolas que revoltavam até a menos aguerrida militante do sexo feminino. Numa de suas entrevistas ele comparou: “A mulher é como a música. A música existe para limpar a alma; a mulher, para arrumar a casa.” (2l3) E quando alguém se surpreendia com o fato de Waldik assumir abertamente seus casos extraconjugais, o cantor reiterava: “Já falei que sou um cara casado em casa, entende? Sou casado em casa. Na rua ninguém tem nada com a minha vida.” (2l4) Esta sua teoria da "casa" e a "rua" foi mais bem explicitada num outro bolero em que ele diz: “Se o meu amor de casa me desse alegria / O meu amor da rua não existiria...” (2l5) Mas o inimigo público número um das feministas no campo da música popular foi mesmo o cantor Lindomar Castilho e a razão é mais do que justificada. Em meados dos anos 70 ele iniciou um romance com a jovem cantora e compositora Eliane de Grammont, que, após o casamento, Lindomar a preferia apenas como dona de casa. Talvez já pressentindo as agruras e infortúnios que bateriam à sua porta, Eliane compôs e gravou canções como “Não me acuses” e “Amélia de você”, um questionamento do tradicional modelo de mulher em nossa sociedade: “Cansei de ser Amélia santa e boa. ./ a vida com você é uma loucura / me deprime, me satura / ser Amélia já era.” De cotovelo doído, Lindomar respondia com temas como “Nós somos dois semvergonhas” e “Você é doida demais”, esculpindo um tipo de mulher muito mais para Conceiçao do que Amélia: ...TODO DIA ME ENGANAVA SEMPRE VOCÊ ME TROCAVA PELO AMOR DE OUTRO RAPAZ VOCÊ É TÃO LEVIANA NISSO VOCÊ NÃO ME ENGANA VOCÊ É DOIDA DEMAIS..”

Este passeio pelo repertório que Lindomar e Eliane gravaram nos anos 70 nos remete àquele do casal Herivelto Martins e Dalva de Oliveira na era do rádio. Com o fim do casamento, tal qual Lindomar, Herivelto acusava: “A culpada foi ela / transformava o lar na minha ausência / em qualquer coisa abaixo da decência.. “(216) Também recusando o papel de Amélia, corajosamente Dalva de Oliveira confessava: “errei, sim / manchei o seu nome...” (217) Para Dalva e Herivelto o saldo desta exposição pública de intimidades não foi além de mágoas e ressentimentos. Já no caso de Lindomar e Eliane de Grammont o desfecho, como se sabe, foi trágico. Sentindo frio em su'alma, numa madrugada de março de 1981, o cantor entrou bêbado numa boate de São Paulo e matou Eliane com três tiros no peito. “Ele chegou já armado e foi direto para os fundos, onde Eliane cantava, acompanhada ao violão pelo músico Carlos Randal”, testemunhou o gerente da casa noturna. (218) Também alvejado com disparas, o violonista de Eliane foi o pivô do crime e a pessoa a quem Lindomar Castilho fazia referência quando cantava o verso “Foi o outro que roubou voce de mim...”, do bolero “Ébrio de amor”. Aliás, fontes da gravadora RCA informaram à imprensa que a maioria das músicas gravadas por Lindomar após seu casamento “focalizavam problemas estritamente de ordem pessoal” e que muitas delas foram lançadas “sob pressão do cantor.” (219) Preso em flagrante, Lindomar Castilho foi encaminhado à Casa de Detenção de São Paulo, onde iria aguardar o pronunciamento da Justiça. Mas qualquer que fosse o veredicto, ele tinha consciência de que sua vida e sua carreira se dividiriam para sempre em antes e depois daquele crime. “Eu acho que aquele é um episódio que desafortunadamente pode acontecer a qualquer pessoa, mas que não desejo a ninguém. Numa situação semelhante, se alguém tiver oportunidade de pensar e contar até dez, não conte; conte até um milhão, dois bilhões; vá para uma praia e conte os grãos de areia”, aconselha hoje Lindomar Castilho Acompanhado de perto por organizações feministas, o processo que resultou na condenação do artista tornou-se no Brasil um marco da luta pelo fim da impunidade aos crimes praticados em nome da famigerada “legítima defesa da honra”.

E este tinha sido justamente o argumento de defesa usado pelo advogado Evandro Lins e Silva para absolver Raul Fernando do Amaral Street, o Doca Street, que na noite de 30 de dezembro de 1976 matara com quatro tiros no rosto sua amante, a socialite Ângela Diniz. O "crime de Búzios", como ficou conhecido, também ganhou grande repercussão e marcou a emergência dos movimentos de defesa da mulher, que vestidas de preto saíram às ruas empunhando faixas com a frase “Quem ama não mata”. E nem fere” - poderia dizer o cantor Odair José, que em dezembro de 1973 foi esfaqueado por sua mulher, a cantora Diana, com quem estava casado havia apenas quatro meses. Apresentando ferimentos na testa, nos braços e nas pernas, o cantor foi medicado no hospital, não sem antes denunciar a própria mulher à polícia. O caso foi parar nas primeiras páginas dos jornais: “Diana atacou a faca Odair José”, afirmando a reportagem que o cantor “teve de fugir de casa para não morrer. Esposa em fúria apelou até para garrafadas”. (220) Na delegacia Diana se justificou dizendo que no auge de mais uma tempestuosa briga do casal, Odair José tentou estrangulá-la e que, para não morrer, ela "usou de todos os recursos". Diana e Odair se conheceram no fim dos anos 60, quando eram ainda dois jovens pretendentes à carreira musical. A identificação entre eles foi imediata e logo começaram a namorar. “Quando conheci Odair achava que ele era um clone de Jesus Cristo”, lembra Diana. “Pra mim ele era um Cristo em tudo. No cabelo, na simplicidade, na introspecção, na tristeza. Era uma pessoa com uma história de vida muito sofrida. Tinha vindo lá do interior de Goiás, passou fome, frio, humilhações. Eu sou uma mulher muito maternal e gostei daquele cara coitadinho, carente, sofrido. Mas depois veio o sucesso, o deslumbramento, o desbunde... e tudo se transformou.” O primeiro disco gravado por Diana, um compacto simples, saiu em 1969 pela Caravelle, sem obter qualquer êxito de venda ou execução. No ano seguinte ela se transferiu para a CBS, ocupando a vaga de Wanderléa, que estava de mudança para a Phonogram. Produzida por Raulzito (o futuro "maluco beleza" Raul Seixas) e cantando baladas românticas como “Uma vez mais”, “Fatalidade” e “Um mundo só para nós”, Diana conquistou as paradas de sucesso, consagrando-se com o título de “a cantora apaixonada do Brasil”. O todo-poderoso diretor-geral da CBS, Evandro Ribeiro” - o homem que lançou a jovem guarda e produzia os discos de Roberto Carlos - , tinha

muito carinho e afeição por Diana, a quem sempre chamava de “minha filha”. Quando esta lhe comunicou que iria se casar com Odair José, ele a chamou em sua sala e tentou fazê-la desistir da idéia. “Mas por que o senhor não quer que eu me case, seu Evandro?”, perguntou-lhe Diana, e ele respondeu: “Minha filha, o grande artista tem que ser casado com a arte, com a música. Vou lhe dar dois exemplos, depois você vai para casa e pensa. Eu conheci uma grande artista que se casou. O marido roubou-lhe o dinheiro, a fama e lhe fez infeliz; hoje ninguém a respeita, é chamada de a sapoti Ângela Maria. E conheci uma outra artista, a mais puta de todas, mas que nunca ninguém viu aparecer com homem nas revistas ou nos jornais; hoje ela tem prestígio e é chamada de a divina Elizete Cardoso. Qual das duas você quer ser?” Diana ignorou o despropositado comentário de Evandro e respondeu que queria apenas cantar e ser feliz com o homem que escolheu embora hoje admita que teria feito tudo diferente. “Seu Evandro estava certo, eu não devia ter mesmo me casado. Eu sofri muito, tanto que depois da separação nunca mais fiquei com ninguém, nunca mais. De vez em quando pintam uns namoros, umas coisas assim, mas nada de maior compromisso. Já me acostumei e prefiro viver sozinha. Confesso que quando estou no palco cantando, às vezes, sinto no coração a saudade de Odair, e ali no palco me emociono. Mas não é saudade do macho, você me entende?, é saudade do artista, da pessoa dele, do Jesus Cristo que eu pensei que ele fosse.”

Alguns dias após aquele incidente da faca, indagado sobre como ficara seu casamento com a jovem cantora, Odair José foi enfático. “Acabou. Cresceu um muro entre nós e, depois de tudo o que aconteceu, é melhor esquecer.”(222) Os motivos que levaram a tão graves desentendimentos nunca foram explicitados por ele, mas algumas pistas aparecem no seu repertório de canções. Em uma delas, a balada “Cotidiano Nº 3” (seqüência de “Cotidiano”, de Chico Buarque, e de ”Cotidiano Nº 2”, de ToquinhoVinícius), Odair José revela pequenos detalhes que podem desgastar uma relação amorosa vivida sob o mesmo teto: DEPOIS QUE VOCÊ CASOU COMIGO

NUNCA MAIS VOCÊ SE ARRUMOU TODO DIA QUANDO EU VOLTO PARA CASA ENCONTRO VOCÊ COM A CARA QUE ACORDOU SEU CABELO ANDA TODO ESTRAGADO E VOCÊ ANDA BEM MAIS GORDINHA O SEU CORPO JÁ NÃO TEM A MESMA COR NEM PAREC COM A MULHER QUE EU TINHA...

Como se vê, em meio às questões políticas e econômicas que palpitavam no Brasil durante a ditadura militar, destacam-se também os problemas do cotidiano conjugal: desencantos, brigas, ciúmes, separações, adultérios, assassinatos - fatos que envolviam brasileiras e brasileiros de todas as classes sociais e que na época acabaram por favorecer àqueles que lutavam por mudanças nas leis que regiam a relação entre marido e mulher. Ao abrir a Campanha da Fraternidade de 1975, o cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, dom Eugenio Sales, advertia à população: “Volta mais uma vez aos horizontes de nossa pátria a ameaça do divórcio.” (223) O seu desabafo refletia a preocupação da alta hierarquia da Igreja Católica com o mais novo projeto do senador Nelson Carneiro, do MDB fluminense, que pretendia extirpar da Constituição brasileira o artigo 175, cláusula que declarava o casamento indissolúvel. E aquele já era o sétimo projeto divorcista apresentado pelo senador baiano, na época com 65 anos, e que desde 1947, quando foi eleito deputado pela UDN da Bahia, vinha lutando pela causa. Mas a idéia do divórcio já tramitava no Congresso desde muito antes, mais precisamente a partir de 1896, quando o deputado fluminense Érico Coelho apresentou a primeira proposta a favor da revogação da indissolubilidade conjugal no Brasil. Pouco depois, em 1900, o divórcio foi defendido também pelo senador sergipano Martinho Garcês, que ao apresentar o seu projeto ao Congresso, reconhecia: “Não me iludo sobre a sorte que terá a idéia ainda este ano.” (224) Nem naquele ano nem nos 76 anos subseqüentes o divórcio conseguiu sensibilizar os congressistas brasileiros, mas no início da década de 70 o projeto retornou com mais força, e diversos setores da sociedade se mobilizaram para debater a idéia. Como uma espécie de repórteres musicais de seu tempo, os compositores "cafonas" registraram este debate em suas canções e com uma postura francamente favorável ao divórcio. Um primeiro exemplo disto é o cantor e compositor Cláudio de Barros,

que, em uma das faixas do seu LP de 1970, lastima-se: “Divórcio, eu quero ela não quer / divórcio, será quando quiser... / divórcio, será que ela não entende / que a dor que me invade reflete um dissabor?...” (225) Dado o fato de que naquele ano a lei do divórcio ainda não havia sido aprovada no Brasil e que, portanto, não dependeria da vontade de um dos cônjuges concedê-lo ou não, o pronome feminino "ela", ao qual a canção se refere, provavelmente diz respeito à Justiça, à sociedade ou à Igreja Católica, instituição que naquele momento era o principal bastião de resistência à aprovação do fim da indissolubilidade do matrimônio. Mas a Igreja não estava sozinha nesta cruzada. Durante os anos do AI-5, principalmente no período Médici, o governo também demonstra grande preocupação com a organização familiar. Diversas campanhas publicitárias oficiais veiculadas em rádio e televisão falavam da importância da família como mantenedora de uma sociedade saudável, na qual o controle e a disciplina deveriam estar presentes, e ela, a família, era convocada a cooperar nisto. Como destaca o historiador Carlos Fico, “pais e mães eram entendidos, acima de tudo, como 'educadores dos lares', que deveriam buscar, em relação aos filhos, o 'fortalecimento do caráter nacional', isto é, a esfera familiar era concebida como campo privilegiado para o exercício do que os militares chamavam de 'educação cívica' - 'o estimulo à obediência e ao respeito, a verdade e a lealdade, honestidade e sentimento do dever, e a iniciativa do amor, perdão e renúncia’.” (226) E o interesse do regime em moldar a estrutura familiar chegava a tal ponto que o fazia convocar anualmente os meios de comunicação para veicular mensagens do presidente da República a cada 8 de dezembro, Dia da Família. Nesta data, em 1970, através de uma rede de rádio e televisão, o presidente Médici falava ao país que “é dever do Estado dar à família apoio e proteção para que nela o homem recolha as sementes de sua realização individual e os ideais de cumprir sua vocação como povo. E entendendo na família o fio de que se tece a sociedade, encontro, na família brasileira, a certeza de estarmos construindo, no Brasil, uma sociedade livre e generosa.” (227) Demonstrando o limite de alcance de todas essas mensagens, o cantor Odair José produziu nesse período algumas canções que investiam contra

uma das bases da organização familiar: o casamento. A balada “Vou morar com ela”, sucesso do cantor em 1971, traz um título e um refrão que soavam como uma afronta aos ouvidos mais conservadores: “Não suporto mais viver longe dela / não agüento mais / eu vou morar com ela.” Ao utilizar o verbo "morar" em vez do tradicional "casar", a canção reforçava e antecipava mudanças que efetivamente estavam ocorrendo nas relações de família, nos costumes e comportamentos da sociedade brasileira naquele momento. Alguns discos depois, em 1975, Odair José voltou a defender a mesma idéia, e agora de uma forma mais enfática, nos versas da balada “Na minha opinião”, que na sua primeira estrofe critica o casamento religioso “é preciso ter coragem / para acabar com esta besteira / fazer festa na esperança / de que o amor dure a vida inteira”e, na segunda, investe contra o casamento civil: “Na minha opinião / o importante é se querer / assinar papel pra quê?... “ Ao longo do primeiro semestre de 1975, o senador Nelson Carneiro percorreu o país em defesa da aprovação da lei do divórcio, e em cada lugar que chegava ele procurava convencer a opinião pública com o argumento de que o seu projeto era apenas um remédio destinado a tratar a doença da infelicidade conjugal. Os felizes, os saudáveis, dizia ele, não necessitariam deste remédio. Curiosamente, esta mesma idéia aparecia na letra de canções como “Não tenha medo do divórcio” (Niquinho-J. Cruz) e “Ninguém pertence a ninguém”, gravação da cantora Claudia Barroso: “Divórcio é um simples remédio / que cura incompreensão / pra quem não sofre de tédio / o divórcio é apenas inovação...” Esses argumentos, evidentemente, não convenciam os setores mais conservadores da sociedade brasileira, principalmente os integrantes da TFP (Tradição, Família e Propriedade), 228) que de roupas vermelhas, cabelo à escovinha, estandartes e modernos alto-falantes saíam às ruas defendendo a indissolubilidade do matrimônio. Segundo relato da revista Veja, numa fria manhã de abril de 1975, em pleno Viaduto do Chá, centro de São Paulo, vislumbrou-se até uma batalha campal quando um grupo de estudantes de Direito da USP aos gritos de “êi êi êi Nelson Carneiro é o nosso rei” avançou sobre cerca de 50 militantes da TFP. Estes, porém, antes de desordenadamente baterem em retirada, deixando para trás até a insígnia da organização, se limitaram a lançar um esconjuro aos seus opositores: “Vade retro, satanás” (229)

Armadas dos mais diversos argumentos, as autoridades da Igreja Católica também se mobilizaram para combater o projeto de Nelson Carneiro Em diversas dioceses pelo Brasil afora foi divulgado o texto "Oração contra o Divórcio", rezada após a comunhão e através da qual os católicos rogavam: “Senhor, ajudai-nos a promover em nossas famílias e em todas as casas de nossa pátria os sentimentos e os propósitos de união indissolúvel.”(230) Perante uma multidão de fiéis no sertão de Alagoas, o lendário frei Damião Bozzano, na época com 76 anos e 44 de missão pelo Nordeste, advertia que “o casamento só é quebrado por morte do esposo ou da esposa. Quem deixa o casamento para casar com outro no civil entra no inferno de cabeça para baixo.” (231) O cantor Miguel Ângelo não se deixou intimidar pela maldição de frei Damião e através do bolero “Divórcio não é pecado” rebateu que “é falsa verdade quando afirmam / ser o divórcio um grande mal” e que, portanto, “é preciso as leis do país / o divórcio permitir”.

O bolerista Lindomar Castilho também invocava o nome de Deus, porém, para aliar-se aos setores mais progressistas da sociedade e saudar a possível chegada do divórcio ao Brasil: “Graças a Deus tudo vai mudar / graças a Deus / que o divórcio vai chegar...”. Faixa de seu LP “O incomparável Lindomar Castilho”, a canção trouxe alguns aborrecimentos ao cantor, que na época da gravação ainda não era casado. “A Igreja me criticou muito por causa dessa música”, afirma Lindomar. “Houve uma grande reação do clero e eu fui proibido durante muito tempo nas emissoras de rádio controladas pela Igreja. Mas não me arrependo do que fiz, porque eu viajava por outros países e via que o divórcio poderia ser também uma boa medida para o Brasil. Por isso resolvi apoiar a causa e gravar a música ‘O divórcio vai chegar’." Apesar do otimismo de Lindomar Cascalho e do empenho de Nelson Carneiro, ainda não foi em 1975 que o divórcio chegou ao Brasil. Embora aprovado pela maioria dos parlamentares - foram 222 votos a favor e 145 contra - o projeto acabou sendo rejeitado por não alcançar o quórum de dois terços dos membros da Câmara e do Senado (número exigido pela Constituição Federal na época). De qualquer forma, a votação a favor do projeto foi expressiva e era o sinal de que o fim da indissolubilidade do matrimônio poderia estar próximo: faltaram apenas 55 votos. Temeroso com esta possibilidade, o deputado e

padre José Nobre, do MDB de Minas Gerais, conclamava os fiéis da Igreja para uma reflexão: “Pelo número, pela diferença, que não foi grande, fico a pensar que se nós, os cristãos católicos, não tomarmos sérias providências de profundidade para a formação da família brasileira, creio, penalizado de ter que dizer, terá sido esta a nossa última resistência.” (232) E de fato, foi mesmo. Em 1977 lá estava novamente o obstinado senador Nelson Carneiro apresentando mais uma vez o seu projeto de divórcio para apreciação do Congresso. Desta vez, porém, as chances eram bem maiores porque a exigência do quórum de dois terços para mudanças constitucionais havia sido revogada pelo chamado Pacote de Abril, outorgado naquele ano pelo presidente Geisel. Agora bastaria o apoio da maioria dos congressistas - metade mais um - para serem aprovadas mudanças na Constituição brasileira, fato que provocou a reação do alto clero da Igreja Católica, que mais uma vez se mobilizou para combater o projeto de Nelson Carneiro. Reunidos na cidade de Santa Maria, os bispos do Rio Grande do Sul, liderados pelo cardeal dom Vicente Scherer, enviaram um telegrama episcopal ao presidente Geisel manifestando sua “preocupação pastoral diante da iminência da introdução do lamentável divórcio no Brasil”. E, de Fortaleza, o cardeal dom Aloisio Lorscheider, presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), definia o divórcio como “lei subversiva em relação à ordem natural, extremamente prejudicial ao homem e à sua convivência social”. (233) Como um claro protesto à visão defendida pela hierarquia católica, neste mesmo ano de 1977 Odair José lançou sua mais polêmica e ousada gravação: “O casamento” - tema religioso no qual o cantor defende a idéia e que José e Maria não eram casados quando Jesus foi concebido e que, portanto, Ele seria fruto do amor livre. Construída em forma de diálogo, a canção tem como personagens um padre: “Sacristão, quem são essas pessoas / e o que elas querem aqui na minha igreja?...”; o sacristão: “José nasceu em Belém e é carpinteiro / Maria é uma simples moça caseira / e hoje vão se casar.../ pois não demora eles vão ser pais / e isso não pode esperar, não é?. .”; e José e Maria: “Senhor, nos perdoe / mas não foi nossa culpa, não...” Em Julho de 1977, por exemplo, o jornal O Dia informava que “ameaçado de excomunhão por um padre de Campina Grande, na Paraíba, de onde saiu às carreiras para não ser linchado, o cantor Odair José se vê às voltas com problemas e brigas com a massa católica, que, não

concordando com a letra de sua última composição, ”O casamento”, pretende impedir que seu disco seja tocado no Brasil inteiro, por considerá-lo atentatório aos princípios cristãos. A música está sendo considerada sacrílega e causando revolta em todos os meios religiosos.” A mesma reportagem destaca que, em Campina Grande, após o show de apresentação do novo disco, Odair José “precisou até de escolta policial para sair do clube e voltar ao hotel, tal foi a reação do público ao ouvilo dizer que José não era casado com Maria. Ao que se sabe, o cantor chegou a levar alguns catiripapos”. (235) As ameaças e agressões físicas pareciam não intimidar o cantor, que reiterava as suas críticas à Igreja – “a religião ensina muita coisa, mas não explica direito vários pontos importantes. A história de Maria e José é um deles, e foi por isso que resolvi ler a Bíblia para me informar” - e prometia resistir: “Eu vou lutar para ter minha música tocada por todos os cantos do Brasil. Vou encarar o problema nem que seja mesmo excomungado, como o padre me ameaçou.” (236) Embora a ameaça dos padres da Paraíba não fosse concretizada, Odair José não teve o que comemorar. A censura que a Igreja decretou contra o seu trabalho acabou prevalecendo. “O casamento” não frequentou a programação de nenhuma emissora de rádio ou televisão do país - é provável que os veículos de comunicação não quisessem se indispor naquele momento com a Igreja e o próprio público do cantor rejeitou a mensagem da canção, deixando seu disco encalhado nas lojas. Registre-se que vigilantes da Igreja Católica já estavam de olho em Odair José desde o sucesso da balada “Cristo, quem é você?”, composição de 1972 que na sua primeira estrofe questiona a instituição: “Na Sexta-Feira Santa eu Lhe procurei / fui à Sua casa / mas lá não Lhe encontrei...”; na segunda, a tradição: “Minha mãe dizia / filho pode esperar / Ele um dia volta / e o mundo vai salvar...”; e no refrão, põe em dúvida a própria figura de Cristo; “Pra onde Você foi? / cadê a Sua cruz? / venha me dizer / quem é Você Jesus?...” (237) Odair José não teve a audácia de decretar a morte de Deus, como fez Nietzsche, mas ao perguntar "Cristo, quem é você?" convidava o seu público, em sua maioria católico e conservador, à reflexão e ao questionamento (238) . E este aspecto da obra do artista foi percebido na época pela jornalista Hildegard Angel, que numa reportagem intitulada “O contestador da classe C”, destacava que Odair José, “na conjuntura atual de nossa

música popular, é o único cara corajoso o bastante para contestar junto à classe C. A mais conservadora entre as classes. A mais apegada aos valores criados, tabus. A última a deixar cair os preconceitos. E é nessa classe que Odair José vende seus discos.” (239) A análise de Hildegard Angel é interessante - principalmente no sentido de que a linguagem crítica de artistas como Caetano Veloso ou Milton Nascimento atingia majoritariamente um público de classe média, universitário, progressista - , mas faço a ressalva de que Odair José não era o único contestador das chamadas classes C ou D. Outros artistas "cafonas", e cada qual à sua maneira, contestavam (e não apenas endossavam) valores político-sociais vigentes. E o processo de luta pela aprovação da lei do divórcio no Brasil é mais um campo para se observar isto. Na época o tema mobilizava e incomodava diversos setores da nossa sociedade. Recorde-se que a novela Despedida de casado, de Walter George Durst, que estrearia em janeiro de 1977 na TV Globo, foi proibida sob a alegação de que o autor pregava a dissolução do casamento. “Os censores acharam que o tema do divórcio era uma grave ameaça à família brasileira. Censuraram inapelavelmente a novela e jamais nos procuraram para ver o que se podia fazer para evitar essa medida extrema”, disse o ex-diretor-geral da Rede Globo Walter Clark. (240) Dos 133 países-membros da ONU em 1977, o Brasil integrava o pequeno grupo dos seis que ainda não haviam adotado a lei do divórcio; os outros cinco países - todos católicos - eram: Paraguai, Chile, Argentina, Espanha e Irlanda. E segundo dados apresentados pelos membros da Campanha Nacional Pró-Divórcio existiriam naquela época no Brasil cerca de 12 milhões de pessoas, entre desquitadas e simplesmente separadas, à espera de solução para o seu problema. Problema este que a cantora e compositora Claudia Barroso denunciou em diversas canções gravadas ao longo dos anos 70. Como, por exemplo, o bolero “Pedaço de papel”: ...VIVEMOS SEPARADOS POR CAUSA DE UM CONTRATO QUE LHE PRENDE A OUTRO ALGUÉM VIVER SÓ DE APARÊNCIAS É TERRÍVEL, É CRUEL O AMOR É SÓ VERDADE E NUNCA UMA MENTIRA DE UM PEDAÇO DE PAPEL... Principal nome feminino desta geração de artistas "cafonas", Claudia Barroso iniciou carreira discográfica nos anos 60, gravando canções

italianas como “Dio Come Ti Amo”, composição de Domenico Modugno que ela lançou aqui numa versão assinada pelo jornalista Mino Carta: “Passam nuvens no céu / que voam para o mar / parecem lenços brancos / que choram o nosso amor / meu Deus, como te amo...”. A cantora diz que na época o jornalista lhe avisou de que não havia feito exatamente uma versão; apenas traduzira a letra para o português. O público brasileiro preferiu ouvir o disco original em italiano com a cantora Gigliola Cinquetti. Assim, a projeção nacional de Claudia Barroso só aconteceria mesmo em 1971, com o bolero “Você mudou demais”, composição de Waldik Soriano. A partir daí ela lançou diversos outros sucessos: “A vida é mesmo assim”, “Quem mandou você errar”, “Ah! Se eu fosse você”, tornando-se naquele período a principal porta-voz das amadas-amantes, mulheres que vivem o dilema de um amor proibido pela sociedade. Tema que Claudia Barroso apresenta no bolero “Duas almas”: “Eu sei que todos vão nos condenar / porém ninguém irá nos separar / não importa o que pensem de nós dois...”. Em outro bolero a cantora novamente confessa: “O homem que eu amo é proibido / o homem que eu amo é casado / o homem que eu amo é combatido / por isso o nosso amor é criticado...” (242) A ousadia de Claudia Barroso não se limitava ao repertório cantado; estendia-se também às suas entrevistas à imprensa. Em abril de 1972 ela declarou ao jornal Gazeta de Notícias: “A virgindade já era. O mundo evoluiu muito e certos tabus, como esse, deveriam deixar de existir. Sou contra tudo isso e principalmente contra as mocinhas que insistem em manter-se virgens.” (243) Naquela época ninguém defendia uma opinião como esta impunemente. Os guardiões da moralidade logo entravam em ação. O padre José Guerra Dias, por exemplo, reclamou que para além de uma ofensa às jovens brasileiras, a declaração da cantora foi uma “asnerice intolerável” e uma agressão “contra a sociedade, contra a nação, contra a família”. (244) Descartando a réplica, Claudia Barroso afirmou: “O padre é 'Guerra' e eu quero paz”(245) - e prosseguiu cantando suas canções de protesto amoroso, como o bolero “Mulher sem nome”, gravação de 1976: “Me chamam de mulher sem nome / porque gosto de um homem que tem outra mulher. / mas quantos casamentos tão bonitos na Igreja / terminam em brigas / se desfazem em tristezas...”

Para combater idéias como esta, a Igreja transformou o feriado de Corpus Christi de 1977, vésperas da votação do projeto de Nelson Carneiro, num dia de mobilização nacional pela defesa do "Santíssimo Sacramento". Cerca de 20 mil militantes católicos realizaram uma grande procissão pelas ruas do Rio de Janeiro empunhando cartazes, bandeiras, estandartes e insígnias que procuravam lembrar à população carioca que “o homem não tem o direito de separar o que Deus uniu”. (246) Em Belo Horizonte centenas de pessoas formaram no Estádio do Mineirão a “torcida de Deus pela união da família” - e juntas com o arcebispo João Resende Costa rogaram aos céus para que “a tentação do divórcio desapareça do horizonte do Brasil”.(247) Manifestação semelhante em Porto Alegre mostrava diversas faixas e cartazes erguidos por crianças com a mensagem: “Não queremos ser órfãos de pais vivos.” (248)

Com mensagens opostas, os integrantes da Campanha Nacional PróDivórcio, em sua maioria mulheres, também se mobilizaram no feriado de Corpus Christi, mas na capital gaúcha a Brigada Militar impediu a ação de um grupo de militantes baseada em uma portaria do ministro da Justiça Armando Falcão que proibia a aglomeração nas ruas. Melhor sorte tiveram os cavaleiros da TFP, que naquele mesmo dia ocuparam o espaço público para divulgar um comunicado de seu presidente, Plínio Corrêa de Oliveira, que alertava a população e os congressistas para “a gravidade dramática da decisão que será tomada”. (249) A mobilização dos anti-divorcistas era muito mais agressiva e visível, dando mesmo a impressão de que a maior parte da sociedade estaria contra o projeto de Nelson Carneiro Por via das dúvidas, o cardeal de Porto Alegre, dom Vicente Scherer, ocupava uma cadeia de rádio e televisão gaúcha para proclamar, entre outras coisas, que “o divórcio é o capricho dos instintos insaciáveis”. (250) Pelo interior do Brasil, onde a população é mais suscetível à influência da doutrina católica, falava-se até em excomunhão para os divorcistas. Na cidade de Bagé, por exemplo, o padre Pedro Wastowiski, além de ameaçálos com o fogo do inferno, lançava uma grave acusação num tempo de ufanismo exacerbado. “O brasileiro que está a favor do divórcio”- dizia ele – “é um Silvério dos Reis, um traidor, porque a estabilidade da pátria é a estabilidade da família.” (225)

Esta associação ente pátria e família também aparece em 1977 numa canção de autoria do cantor Cláudio Fontana. Em sentido oposto à mensagem das canções citadas anteriormente - que apresentam valores emergentes da sociedade - , a balada “Família, base de uma grande nação” , como o próprio título indica, incorpora a ideologia oficial: “Ei, você, a quem eu dei o direito de falar por mim / não deixe o divórcio destruir meu lar / minha família, minha vida, não deixe, não...” Observa-se, contudo, que esta letra é uma exceção no repertório "cafona" e também um marco na história da música popular brasileira: é a primeira cuja mensagem foi dirigida diretamente aos membros do Congresso Nacional: “Ei você, que faz as leis do meu país / não deixe que eu seja mais um infeliz / que vai viver na vida sem um lar../ ei, não deixe o divórcio destruir / o que de mais lindo pode existir / a família é a base de uma grande nação...” Ao comentar hoje a temática desta inusitada canção, Claudio Fontana diz que ela expressou naquele momento o seu desejo de participar do debate nacional, já que ele compõe não apenas sobre aquilo que vive individualmente, mas também sobre temas que estão presentes na sociedade. “Quando a lei do divórcio ia ser votada no Congresso” - diz ele – “eu me achei no direito de marcar um posicionamento e fazer um apelo aos políticos do meu país. Porque essa questão de família é algo muito forte pra mim. Os meus pais sempre foram muito unidos e eu estou há 26 anos casado com a minha primeira mulher. E a frase que deu título à música eu ouvia do meu pai. Ele sempre nos dizia: 'a família é a base de uma grande nação'. Eu apenas repassei a frase do meu pai para o disco.” Indiferentes aos apelos do pai do compositor Cláudio Fontana, às ameaças do padre de Bagé e às pressões da alta hierarquia da Igreja, na madrugada de 20 de junho de 1977 os membros do Congresso Nacional finalmente aprovaram a lei do divórcio em nosso país. E com isso eles desagradaram também importantes setores da mídia, notadamente o Jornal do Brasil, que, em editorial às vésperas da votação do projeto, conclamava deputados e senadores a recusarem “uma proposta que contraria abertamente os princípios que regem o matrimônio, o espírito da Constituição do Brasil e as nossas mais altas tradições jurídicas”. (252) É interessante também observar que alguns dos mais preeminentes líderes políticos da época - tanto do partido do governo (Arena) como da oposição (MDB) - marcharam ao lado da Igreja na cruzada contra o projeto

divorcista: Franco Montoro, de São Paulo; Paulo Brossard, do Rio Grande do Sul; Célio Borja, do Rio de Janeiro e, claro, todo o estado de Minas Gerais: Itamar Franco, Magalhães Pinto, José Bonifácio, Gustavo Capanema e Tancredo Neves, que procurou justificar a inabalável posição dos mineiros com a idéia de que “a instituição da família em Minas Gerais tem um sentido telúrico, sacral - trata-se de um Estado geograficamente interior, montanhoso, fechado às inovações.” (253) Mas as previsões mais apocalípticas sobre as conseqüências da decisão do Congresso partiram de vozes de outros estados da federação. O deputado Walber Guimarães, do MDB do Paraná, previu tempos sombrios sobre o céu da pátria a partir daquele instante: “A família brasileira será destruída pelo caos, pelo nefasto, pelo pecaminoso divórcio.” E de Porto Alegre, através de seu programa “A voz do pastor”, um inconformado e severo cardeal dom Vicente Scherer bradava que “as ruínas de uma derrota e os prejuízos das guerras perdidos se restauram rapidamente, mas as devastações do divórcio não têm recuperação.” (254)

Distante dessa visão apocalíptica, a bolerista Luiza de Paula, expressando o sentimento de milhões de mulheres brasileiras, saudava a aprovação do projeto de Nelson Carneiro com sua composição “Enfim, divórcio”, que na última estrofe da letra anuncia: “Nossos filhos vão comigo / vou vencer se Deus quiser / no amor não se tem sócio / vou requerer o divorcio...” De fato, a imprensa registra que poucas horas depois de se encerrar aquela histórica sessão no Congresso, começaram a surgir nos escritórios de advocacia do país os primeiros candidatos divorcistas. E entre eles estava o cantor Odair José, um pioneiro da causa no campo da música popular - , e que segundo lhe informou o advogado Haroldo Lins e Silva, foi o quarto divorciado do Brasil. Fato que Odair José saudou na canção “Agora sou livre”: “...livre para o que der e vier / não precisa mais ter medo da palavra amante / pois a vida já não tem segredos / nada será mais como antes”. ** NOTAS BIBLIOGRÁFICAS APENSAS AO CAPÍTULO (Conforme numeração seqüencial encontrada no texto):

** 206. Apud.Nosso século (1960-1980), op. cit., p. 276. 207. Fita cassete com a entrevista de Leila Diniz ao Pasquim. Novembro de 1969. 208. Decreto-lei publicado em Janeiro de 1970. Apud Norma Pereira Rego. Pasquim: gargalhantes pelejas. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996, p. 38. 209. Apud Ruy Castro. Ela é carioca: uma enciclopédia de Ipanema. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 211. 210. Fita cassete com aaentrevista de Leila Diniz ao Pasquim. Novembro de 1969 211. Apud Ruy Castro. Ela é carioca: uma enciclopédia de Ipanema. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 211.

212. Verso de Obrigação de um Homem. Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia 213. “Eu Sou Waldik Soriano” – Manchete, 22-5-1975 214. "Waldik Soriano: 'a vida é uma constância de conseqüências de vários gêneros, entende?” - O Pasquim, 20 a 26-6-1972. 215. Verso de Amor verdadeiro. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 216. Verso de “Caminho certo”. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 217. Verso de “Errei, sim”. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. Para maiores detalhes do duelo musical entre Dalva e Herivelto ver João Elísio Fonseca. ”A estrela Dalva”. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987. 218. "Bolero de macho" - Veja, 8-4-1981.

219. "Lindomar Castilho mata ex-mulher e fere o cantor Carlos Randal" Diário Popular 31-3-1981. 220. "Casal de cantores na delegacia: Diana atacou a faca Odair José" - O Dia, 9-12-1973. 221. Idem, ibidem. Uma outra reportagem informa que ao sair da delegacia Diana apresentava manchas vermelhas no pescoço. "Odair José tentou estrangular a pobre Diana" - O Jornal, 9-12-1973. 222. "O fim deste amor está na Justiça" - Amiga, 8-1-1974. 223. "Divórcio, política e Igreja" - Veja, 26-2-1975. 224. Apud Nelson Carneiro. A lufa pelo divórcio. Rio de Janeiro: São José, 1973, p. 278. 225. Verso do bolero Divórcio. Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 226. Carlos Fico. Reinventando o otimismo; ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1997, p. 132. 227. Emílio Garrastazu Médici. ”Tarefa de todos nós” (livro organizado pela Secretaria de Imprensa da Presidência da República e que reúne diversos discursos do presidente Médici). Brasília, Departamento de Imprensa Nacional, 1971, p. 11. 228. Organização de inspiração medieval fundada na década de 40 por Plínio Correa de Oliveira e ligada à ala mais conservadora da Igreja Católica 229. "L'armata aurileone" - Veja, 23-4-1975. 230. "Divórcio à vista" - Veja, 27-4-1977. Reportagem sobre a votação do projeto de Nelson Carneiro em 1977, mas que também se refere a episódios relacionados à votação anterior, em 1975. 231. "Divórcio, política e Igreja" - Veja, 26-2-1975. 232. LP “A história de 1975: música e informação". Rádio Jornal do Brasil – P. 1975. 233. Divórcio à vista" - Veja, 27-4-1977.

234. "Via-sacra" - Veja, 8-6-1977. 235. "Quase linchado o cantor Odair José" - O Dia, 17-7-1977. 236. Idem, ibidem. 237. “Cristo, quem é Voce?” aparece em 1° lugar entre os compactos duplos mais vendidos na semana de 8 a 13 de janeiro de 1973, em São Paulo. A mesma gravação alcança o 4º lugar na relação dos 50 discos mais vendidos no ano de 1973. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth/Unicamp; Nopem - pesquisa de mercado sobre venda de discos. 238. Registre-se que num primeiro momento a Censura implicou com a temática de “Cristo, quem é Você?” Num parecer datado de 2 de agasto de 1972, o censor envia a composição para apreciação superior com a seguinte observação: "Em virtude do sentido da letra afetar diretamente a assunto religioso, opino pela sua não aprovação". Fonte: Documentos do Serviço de Censura de Diversões Públicas - Arquivo Nacional / RJ. 239. "Odair José, o contestador da classe C" - Ultima Hora, 19-9-1975. 240. Walter Clark & Gabriel Priolli. O campeão de audiência: uma autobiografia. São Paulo: Best Seller, 1991, p. 258. 241. Você mudou demais aparece em 1° lugar na relação dos 50 discos mais vendidos no mês de abril de 1971. Fonte: Nopem - pesquisa de mercado sobre venda de discos. Por problemas contratuais com a editora musical, Waldik Soriano assinou esta composicão com o nome de Dik Junior. 242. Verso de “O homem que eu amo”. Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 243. "Padre defende virgindade e ataca Claudia Barroso!" - Gazeta de Notícias, 12-4-1972. 244. Idem, ibidem. 245. "Não estou pregando contra a virgindade" - Gazeta de Noticias, 13-41972. 246. "Procissões nas capitais apelam contra o divórcio" - Jornal do Brasil, 10-6-1977.

247. "Celebração reúne no Mineirão Torcida de Deus" - Jornal do Brasil, 10-6-1977 248. "O não das montanhas" - Veja, 22 -6-1977. 249. "TFP alerta contra emenda" - Jornal do Brasil, 10-6-1977. 250. "Reação em cadeia" - Veja, 15-6-1977. 251. Idem, ibidem. 252. "Fundamento Natural" - Jornal do Brasil, 15-6-1977. 253. "O não das montanhas" - Veja, 22-6-1977. 254. "Nélson, Nélson (bis)" - Veja, 29-6-1977.

(ARTISTAS POPULARES E CRÍTICA MUSICAL)

“Caetano Veloso não é artista. Ele vem com esse negócio de imitar viado e os caras dizem que ele é um gênio. Que é isso?” (Agnaldo Timóteo)

Nos anos 70 era assim: todo mundo pichava todo mundo. Ainda não havia se instalado a ditadura do politicamente correto, quando todos parecem andar sobre ovos. Antigamente, a pichação era ampla, geral e irrestrita. Críticos, artistas, jornalistas, radialistas, apresentadores de TV, ninguém tinha papas na língua. Que o diga Abelardo Barbosa, o Chacrinha, que pichava Deus, o diabo e tudo o mais. “O negócio é falar, falar, falar bastante, porque, depois de morto, você vai ter muito tempo para ficar calado”, justificava-se o Velho Guerreiro. (255) Um de seus alvos preferidos era Maria Bethânia - e o piche sobrava até para as fãs da cantora. “Bethânia pensa que todo mundo calça as suas chuteiras e fuma os seus cachimbos. Maria é frente de uma torcida frustrada como a própria. Só no Brasil existem Bethânias.” (256) A verve do Chacrinha não perdoava nem a si próprio, e ao abordar o nebuloso tema do jabá nos meios de comunicação, ele foi de uma sinceridade única: “Todo mundo leva dinheiro no disco - até eu! Levava e continuo levando. E quem disser que não leva é mentiroso. O cara ou leva grana ou recebe mil favores. Eu também estou incluído no rol dos que levam alguma coisa.” (257) Mas quando Elis Regina reclamou do baixo nível cultural dos programas de TV, responsabilizando apresentadores como Flávio Cavalcanti e Chacrinha, este não perdoou: “Elis Regina acusa. E quem é Elis Regina para acusar alguém? Qual é o seu gabarito? As suas origens? A Elis é um poço de frustrações. E eu tenho pavor de pessoas frustradas. São capazes de tudo.” (258) Mesmo entre os próprios artistas da nossa música popular a pichação parecia não ter limites: Waldik Soriano Fichava Gilberto Gil, que pichava Wilson Simonal, que pichava Nara Leão, que pichava Tim Maia, que pichava Raul Seixas, que pichava Egberto Gismonti, que pichava Paulinho da Viola, que pichava Zé Kéti, que pichava Pixinguinha, que pichava todo mundo. Sim, o "santo" Pixinguinha não ficou imune àquela "era do piche". Numa entrevista ao critico Tárik de Souza, em 1970, o autor de Carinhoso pichou, entre outros, Martinho da Vila ( “este sambinha que ele faz é a coisa mais medíocre que existe. Ele está aproveitando, dando sua

sortezinha”); pichou Jorge Benjor ( “esse é cara de pau, francamente. Tá dando sorte também”), e pichou até o compositor Chico Buarque ( “ele faz é boas letras. Músicas, ele não sai daquela rotina”).(259) Havia pichadores de todos os estilos e tendências. Maysa, por exemplo, não usava de meias palavras, e numa de suas entrevistas pichou Gal Costa como cantora ("aqueles gritos cavernosos que ela dá me causam um certo nojo") e Elis Regina como pessoa: “É uma mau-caráter. Mas um maucaráter no mau sentido. Mais do que isso, pois nem isso ela é, ela é uma coitada.” (260) Paulinho da Viola relata que, ao folhear uma daquelas antigas revistas dos anos 70, deparou-se com uma reportagem na qual ele fazia duras críticas a um dos responsáveis por seu lançamento na carreira, o compositor Zé Kéti, acusando-o de falso sambista. “Eu não acreditei quando li aquilo. Por que eu estava ali pichando o Zé Kéti? Ele só me fez o bem.” (264) O espanto de Paulinho da Viola mostra como neste tempo do politicamente correto soa estranha aquela "era da pichação". Mas esse foi o espírito da época. Não se precisava de muitas razões para pichar alguém. O que o sambista Moreira da Silva, por exemplo, poderia ter contra os mineiros do "clube da esquina”? E, no entanto, quando lhe perguntaram o que ele achava de Milton Nascimento, o velho Morengueira não vacilou: “É um bom crioulo. Faz suas coisinhas, mas já está na marca do pênalti. Não vai demorar muito e ele terá que voltar pra lavoura. Tem que ir pra lavoura!” (265) Mergulhado numa fase mística, e um dos mais aguerridos fiéis do Universo em Desencanto, Tim Maia, um pichador contumaz, não aceitava comparações entre a "verdade das verdades”, ditada pelo Racional Superior e aquela defendida por outros gurus da música popular. “John Lennon é uma besta, e Raul Seixas é uma cópia xerox da burrice. Eles são dois quadrúpedes que só querem justificativa para curtir loucuras. É vigarice das brabas!” (266) Até mesmo o sempre cordial Chico Buarque sucumbiu ao espírito da época e, numa entrevista de 1970, quando lhe foi pedido o nome de três pessoas de que não gostava, ele respondeu: “Juca Chaves e o pessoal da falecida tropicália.” (Leia-se Caetano Veloso e Gilberto Gil, naquele momento exilados em Londres.) Na mesma entrevista o repórter lhe perguntou se Gil e Caetano teriam alguma chance de sucesso na Inglaterra. Chico respondeu que não, por

causa do idioma e “além disso nos cartazes de publicidade que eles mandaram imprimir consta que foram banidos do país. Isso é ridículo, querer vencer pela pena”. (267) Talvez Roberto Carlos tenha sido o único artista da música brasileira a atravessar aquela "era do piche" sem pichar ninguém. A turma do Pasquim até que forçou a barra - "Quem que você acha pior: Wanderley Cardoso ou Jerry Adriani?" - mas Roberto não cedeu: “É muito difícil criticar um artista. Seria uma falta de coleguismo muito grande, uma falta de ética. Então, eu peço a vocês que não me façam responder sobre isso.” (268) Em compensação, Agnaldo Timóteo pichou por ele e por todo mundo. Entrevistado pelo mesmo Pasquim, o mineiro de Caratinga pichou, um por um, toda a comissão de frente da MPB: João Gilberto, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Milton Nascimento, Gilberto Gil e, principalmente, Caetano Veloso, recém-chegado do exílio em Londres: “Caetano como cantor seria gongado, pô! Vocês fabricaram o Caetano. Caetano é uma merda! Caetano não é artista. Ele vem com esse negócio de imitar viado e os caras dizem que ele é um gênio. Que é isso?! Isso não existe.” (269) A mais completa tradução desta "era do piche", a sua síntese musical, foi o rock “Arrombou A Festa”, sucesso de Rita Lee em 1977, que começa com uma exclamação aos céus: “Ai, ai meu Deus / o que foi que aconteceu / com a música popular brasileira...” Ao contrário da celebrativa “Festa de arromba”, antiga gravação de Erasmo Carlos, que lhe serviu de mote, o rock de Rita Lee pichava, com muita ironia, alguns ícones dos diversos gêneros da nossa música popular de então: Raul Seixas (rock), Martinho da Vila (samba), Odair José (cafona), Caetano Veloso (MPB), Roberto Carlos (romântico) e o sambão-jóia de Benito di Paula que “com o amigo Charlie Brown / revive em nosso tempo / o velho e chato Simonal...” A mais completa tradução desta "era do piche", a sua síntese musical, foi o rock “Arrombou A Festa”, sucesso de Rita Lee em 1977, que começa com uma exclamação aos céus: “Ai, ai meu Deus / o que foi que aconteceu / com a música popular brasileira...” Ao contrário da celebrativa “Festa de arromba”, antiga gravação de Erasmo Carlos, que lhe serviu de mote, o rock de Rita Lee pichava, com muita ironia, alguns ícones dos diversos gêneros da nossa música popular de então: Raul Seixas (rock), Martinho da Vila (samba), Odair José (cafona), Caetano Veloso (MPB), Roberto Carlos (romântico) e o sambão-jóia de Benito di Paula que “com o amigo Charlie Brown / revive em nosso tempo / o velho e chato Simonal...”

Se o piche corria solto entre os próprios artistas, não se poderia esperar maior comedimento dos jornalistas e críticos musicais. Eles também batiam duro. E uma de suas principais vítimas era Waldik Soriano, que foi uma espécie de inimigo público número um da crítica musical nos anos 70. Quando se precisava de um exemplo de mau cantor) ou de péssimo compositor, era infalível a citação do nome Waldik Sonano.Virou lugarcomum classificar o seu trabalho como medíocre, horrendo e insignificante. O artista baiano colecionava uma série de críticas até sobre a sua razão de ser e de existir. Um exemplo disto aparece em uma reportagem publicada no diário carioca A Noticia. Ao analisar o panorama da música popular brasileira no início daquela década, um crítico do jornal colocava “em nivel alto, como cantora, Elis Regina” e "em nivel altíssimo, como compositores, Vinicius de Moraes e Chico Buarque de Holanda”. Já na outra ponta da escala ele dizia que “em nível baixíssimo, um caso de completa cafonice, um quase banditismo, vêm Waldik Sonano, seus boleros e seu jeito de explorador de mulheres infelizes”. E, como se não bastasse, o mesmo crítico ainda qualificava o autor de Eu não sou cachorro, não como um “fenômeno negativo” e um artista rude e “machão como um cavalo”.(270) Por essas e outras, Waldik Soriano, mais do que qualquer outro artista "cafona" de sua geração, vai também bater forte na crítica e o bate-boca será generalizado. Sem o mesmo espaço de que os jornalistas dispunham, o cantor apelava para o disco (às vezes, para o braço) e gravou varias canções rebatendo seus detratores. Em uma delas, o bolero Pedras e lixo, ele começa até de forma amistosa; “migo que se julga um inimigo / me pichando em toda parte / criticando a minha arte / com ironia tão mordaz...”, prossegue em um tom mais alto “... as pedras e o lixo que mereço / a você eu agradeço / pois essas coisas eu vou usar...”, concluíndo o protesto com uma exortação de superioridade:

...CANTANDO DIA A DIA EU MAI SUBO POIS A CRÍTICA É O ADUBO QUE EU USO EM MEU JARDIM O LIXO DO SEU ÚLTIMO COMENTÁRIO FEZ UM BEM EXTRAORDINÁRIO BEM OU MAL FALE DE MIM Os críticos seguiram falando e insistiam naquela associação entre Waldik Soriano e espécies do mundo animal. Sílvio Lancelotti, por exemplo, na revista Istoé, atribuía ao cantor uma “voz de dinossauro” e um “moralismo tão sutil quanto uma manada de hipopótamos”. (271)

Outra associação também freqüente (e mais perigosa) era entre Waldik e o banditismo. O nome do cantor era explorado pela mídia em manchetes sensacionalistas de primeira página, como uma que dizia: “Vestiu-se de Waldik Soriano para matar o inimigo” - informando o jornal que esta era a única pista de que a polícia dispunha sobre o assassino: “Um homem de chapéu, óculos e roupas escuras, tudo ao estilo do cantor Waldik Soriano.”(272) Uma outra manchete alardeava: “Por causa de Waldik Soriano quatro irmãos brigam: um morto.” (273) A reação do artista veio através de mais canções de protesto, como o bolero Calúnias gravação que deu título ao seu LP de 1975: ...CALÚNIAS FORAM AS ARMAS PARA DESTRUIR-ME EU VIM DO POVO, SOU DE FAMÍLIA HUMILDE ONDE O RESPEITO E O VALOR TÊM SEU LUGAR CALÚNIAS, QUE DIFAMARAM E MARCARAM O MEU NOME.. O radicalismo chegava a tal ponto naquela época que até mesmo defeitos físicos dos artistas eram arrolados na hora da crítica. O jornalista e compositor Ronaldo Bôscoli, por exemplo, não se limitava a achincalhar a produção musical de Nelson Ned; fazia também freqüentes e irônicas referências ao nanismo do cantor, qualificando-o de “anãozinho ridículo”. (274) Fato de que Chacrinha se aproveitava para fustigar Bôscoli e, por tabela, sua ex-esposa Elis Regina, que deve ter ficado vesga ao ler esta nota do Velho Guerreiro: “Ora, pelo Código de Ética não se pode desdenhar, menosprezar ou achincalhar as pessoas portadoras de defeitos físicos. Portanto, já estava em tempo do meu querido e simpático Bôscoli não ofender publicamente o Nelson Ned. O Bôscoli, que tanto critica os outros e que tem recalques e frustrações, já foi casado com uma baixinha. Não pode, de forma alguma, menosprezar o Nelson Ned, pelos seus defeitos físicos.” (275) Portador de um distúrbio genético com o complicado nome científico de "displasia espôndilo-epifisária", Nelson Ned rebatia Ronaldo Bôscoli e demais pichadores cantando sua composição Tamanho não é documento, que fala de uma coisa, mas que pode ser outra: “Você que vive sempre a brincar comigo / pode judiar de mim que eu nem ligo / sou pequeno, mas meu coração é grande / bem maior do que o seu...” Esta resposta é uma exceção no repertório de Nelson Ned, artista que, ao contrário de Waldik Soriano, não deu muita bola para o piche ou para a

crítica, ofício pelo qual ele manifesta até um certo desdém. “O que é um critico de música popular brasileira? O que ele tem para oferecer de vida, de existência, a não ser analisar a obra alheia? O crítico é um rabo de cometa: está sempre agarrado a um corpo de luz.” E ao comentar de que maneira recebia as críticas publicadas sobre os "cafonas" nos jornais e revistas, Nelson Ned foi ainda mais taxativo: “O artista popular da minha linha, da linha de um Agnaldo Timóteo, não tem que se preocupar com a imprensa. Quem tem que se preocupar com a imprensa é Djavan, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Chico Buarque, porque eles vivem da imprensa; nós, não. Nós somos cantores de AM, somos cantores do rádio, somos homens do povo. Eu venho das massas populares; eu não fui criado nas elites de Ipanema ou do Baixo Leblon e nem represento essa bandeira esquerdizante, dessa linha indefinida sexualmente Eu represento o homem brasileiro, a passionalidade latino-americana e toda a virilidade que existe no bolero e na balada.” (276) Descontando a forte carga de bravata, a fala de Nelson Ned chama atenção para um fato da realidade discográfica brasileira: os cantores da MPB têm como interlocutores privilegiados a crítica dos principais jornais e revistas (que alcança os setores letrados da elite), enquanto os cantores "cafonas" atingem diretamente o grande público através dos comunicadores de emissoras AM. "Nós vivemos do rádio; dos Haroldo de Andrade da vida", enfatiza o cantor Luiz Ayrão. "Nos anos 70, como em todos os anos, em toda a história da música popular, até hoje, é o rádio o principal veículo de sucesso de uma música", afirma o produtor Miguel Plopschi.

Um exemplo concreto disto ocorreu em 1973, ano em que foram lançadas no mercado, quase simultaneamente, duas regravações da guarânia “Índia”, antigo sucesso da dupla paulista Cascatinha e Inhana: “Índia, teus cabelos / nos ombros caídos / negros como a noite que não tem luar...” A primeira regravação veio na voz do cantor Paulo Sérgio, pelo selo Beverly, e, logo em seguida, a regravação de Gal Costa, faixa de abertura de seu LP "Índia", pela Philips-Phonogram. Com a participação de músicos como Dominguinhos e Toninho Horta, direção musical de Gilberto Gil e arranjo do maestro Rogério Duprat, a gravação de Gal mereceu toda a pompa que uma gravadora multinacional oferece aos seus artistas de maior prestígio.

Para as fotos do luxuoso álbum de capa dupla foi convidado o badalado fotógrafo Antônio Guerreiro, que realizou um trabalho ousado para a época: na capa o close de uma minúscula tanga vermelho cobrindo a parte baixa de um belo corpo feminino - o da própria Gal Costa, vestida de índia - , e em mais duas poses na contracapa, com suas coxas, umbigo e selos à mostra num cenário tropical. Na semana de lançamento do disco houve um imprevisto de última hora: a Censura implicou com a nudez das fotos da "índia" e determinou que o LP só poderia ser vendido com a capa coberta com um plástico preto, o mesmo usado na época para cobrir certas revistas eróticas expostas nas bancas. O departamento de divulgação da Phonogram vibrou com a intervenção da Censura por acreditar que a "capa proibida" só traria maior interesse e divulgação para o disco de Gal. Reforçando a publicidade, a gravadora publicou nos principais jornais do Brasil outras fotos da cantora vestida de índia à beira de um rio. Quanto ao conteúdo musical em si foi bem recebido pela maior parte da crítica e um jornalista considerou a gravação de Índia "o ponto mais alto" do LP de Gal Costa, destacando os "floreios tropicais" do "genial e belíssimo" arranjo concebido pelo maestro Rogério Duprat. (278) Mas, apesar do elogio da crítica, da proibição da Censura, das fotos de Antônio Guerreiro, do arranjo de Rogério Duprat e da voz de Gal Costa, a versão de “Índia” que fez sucesso e foi ouvida e consumida pela maioria do povo brasileiro em 1973 foi mesmo a do cantor Paulo Sérgio. Chacrinha constatava isto numa nota de sua coluna em abril daquele ano: “Paulo Sérgio, com Índia, dominando as paradas de todo o Brasil.” (279) O curioso é que o cantor regravou aquela música simplesmente como mais uma faixa (a última, por sinal) de seu LP, “Paulo Sérgio Vol. 7”, que traz na capa o ídolo vestido de camisa de gola, jaqueta, calça boca-de-sino, cinturão e sapatos tudo de cor branca sobre um fundo preto. Definitivamente, a preferência do público tem razões que a própria razão e a crítica desconhecem. Os dois críticos de música mais polêmicos e temidos no meio artístico brasileiro daquela época eram os senhores José Ramos Tinhorão e José Fernandes. Havia cantor que ficava de cabelo em pé só de ouvir o nome deles.

Cada crítico atuava numa faixa diferenciado de público e artistas. O primeiro (militante da esquerda) tinha uma prestigiosa coluna no Jornal do Brasil e também publicava livros sobre a história da música brasileira; o segundo (reconhecidamente de direita) escrevia em jornais populares como O Dia e A Notícia, e participava de programas de rádio e de televisão. Dialogando com o público de classe média, Tinhorão debruçava-se sobre o repertório da MPB, ignorando a produção musical "cafona" - fato que se explica pela lógica do mercado, já que seus leitores também não ouviam esses artistas. Falando para um público mais popular, José Fernandes priorizava justamente aquilo que o outro crítico excluía. Mas cada qual no seu segmento era impiedoso quando não gostava de um disco ou de determinado artista. Freqüentemente acusados de intolerantes, ambos eram expressões máximas daquela "era do piche" e atraíram um ódio quase unânime dos cantores e compositores brasileiros, José Ramos Tinhoráo direcionava sua crítica para uma batalha sem trégua contra a influência da música estrangeira no Brasil. E nisto ele se revelava um combatente quase obsessivo. Ao analisar um lançamento de Milton Nascimento, ele alertava: “O engano de Milton é pensar que é brasileiro.” Em outra crítica ele ironicamente dizia que o cantor Belchior interpretava suas músicas “com a desenvoltura de um texano da terra de Marlboro”. (282) Ou mais esta: “Emílio Santiago tem boa voz, o que estraga é o pensamento.” (283) De tanto bater na MPB, Tinhorão teve seu nome enumerado entre cobras venenosas na letra de um samba cantado por Elis Regina: “O Brasil não merece o Brasil / o Brasil tá matando o Brasil / Tinhorão, urutu, sucuri...” (284) Indiferente a isto, o crítico seguia sua cruzada nacionalista e acusava Gilberto Gil de regravar “Marina”, de Dorival Caymmi, “numa versão mais americana do que a do próprio bing-crosbiano lançador desse sucesso, em 1947, o ianque-brasileiro Dick Farney.” (285) Indagado se não seria mais conveniente ele apenas analisar a qualidade dos compositores em vez de detectar o que as suas músicas traziam de brasileiro ou alienígena, Tinhorão respondeu: “Pois é, mas aí eu caio naquele luxo. Eu não posso falar da qualidade da farda ou da beleza dos olhos do soldado invasor.” (286) Já o outro José, o Fernandes, embora chamado de o “Tinhorão dos pobres”, não revelava maiores preocupações nacionalistas. Seu discurso era centrado

basicamente contra a música que ele considerava ruim ou de mau gosto os "bagulhos", como ele costumava qualificar. Duas de suas maiores implicâncias eram com Waldik Soriano e o cantor Nelson Ned, a quem o critico atribuía a montagem de “uma indústria para produção em massa. É só apertar um botão e o bagulho já sai pronto”.(287) Ao comentar a programação musical das rádios brasileiras no início dos anos 70, José Fernandes queixava-se: “A gente tem que agüentar muito bagulho rotulado de sucesso, como por exemplo aquela versão medonha de ’India’, com Paulo Sérgio, e uma outra melorréia inqualificável do Nelson Ned.”(288) De tanto pichar os cantores "cafonas", José Fernandes foi o alvo da canção “Recalcado”, gravação de um raivoso Waldik Soriano: “Recalcado, recalcado / só não vê seus próprios defeitos / recalcado, recalcado...” Além da coluna no jornal e de sua atuação como jurado de programas de TV, José Fernandes o homem que nunca sorria também causava tremores nas ondas curtas e médias do rádio. Diariamente na Jovem Pan de São Paulo ele apresentava um quadro chamado "paredão", no qual era "metralhado" todo artista popular que lançava algum disco considerado ruim. Em um desses programas, em 1973, o critico julgou e condenou a balada “Aniversário de meu bem”, uma antiga composição de Roberto Carlos regravada naquele ano pelo cantor Claudio Fontana. O veredicto foi assim anunciado no ar pelo próprio José Fernandes (tendo a música ao fundo): “Eu estou muito surpreendido com a ruindade desta composição, porque é realmente um bagulho, e indigna até do nome de Roberto Carlos. E fiz aquilo que normalmente faço com os bagulhos: coloquei no paredão Roberto Carlos, Claudio Fontana, o ‘Aniversário de meu bem’ e mandei brasa, e mandei fogo: ra-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá... (seguemse 10 segundos de um som de rajada de metralhadoras).” (269) É sintomático que no momento de maior repressão política da ditadura militar, com o país marcado pela censura, terror de Estado e ação de guerrilhas, artistas populares sejam também "metralhados" através dos meios de comunicação. Aquele era realmente um tempo de guerra, e a luta se expressava em várias trincheiras. O "paredão" de José Fernandes era apenas mais um sintoma do clima de radicalismo e autoritarismo vivido pela sociedade brasileira naquele momento histórico. Outro quadro musical bastante representativo da época era encenado no Programa Flávio Cavalcanti, nas noites de domingo, na TV Tupi. Ali, ao

vivo e a cores para todo o Brasil, o apresentador manifestada sua fúria quebrando, literalmente, os discos de vinil que ele considerava de baixa qualidade musical. “Waldik Soriano não vale nada. Artisticamente, não existe. É preciso que isto seja dito. Não devemos glorificar o que não existe”, bradava o polêmico apresentador antes de quebrar mais um disco do artista baiano. “Se neste país as coisas fossem feitas com mais seriedade, Waldik não passaria de um cantor de rádio do interior.”(290) E plec, ploc... Quase todos os cantores "cafonas" tiveram seus LPs quebrados no palco de Flávio Cavalcanti. Digo quase, porque Agnaldo Timóteo, por exemplo, afirma não ter passado por esse vexame. “Ele nunca quebrou disco meu, mesmo porque eu tinha fama de muito bravo. Você sabe, né? Naquela época eu dava tiro e tudo o mais. E as pessoas ficavam muito cabreiras comigo. Certa vez eu invadi o programa do J. Silvestre e queria dar porrada em todo mundo, fiz um escândalo medonho. Eu era meio bicho do mato; hoje sou diplomático.” Sem o mesmo temperamento de Timóteo, e cansado de ser "quebrado" por Flávio Cavalcanti, o cantor Paulo Sérgio reagiu compondo “Minhas qualidades, meus defeitos”, canção de protesto contra o apresentador e demais formadores de opinião pública: “Sei que minhas qualidades cobrem meus defeitos / não é direito você querer pôr todos contra mim...” O mínimo que os críticos diziam sobre os "cafonas" é que eles produziam uma sub-música, comercial e popularesca, para diversão das massas. Mas este compromisso com o mercado e a necessidade do sucesso comercial é enfatizado pelos próprios artistas. “Eu me tornei um cantor também pela necessidade econômica”, afirma Nelson Ned. “Eu creio que todos da minha época não tinham estudo nem profissão, então a alternativa era a música.” Claro, todos de sua época e de sua origem social, como o compositor Nenéo, que também evoca a carreira musical como um meio de ascensão econômica: “Me lembro que eu engraxava sapatos na Praça Saens Pena quando comecei a me dedicar à música, que era o único caminho que eu podia seguir para ganhar dinheiro e ajudar minha família. Eu queria fazer uma casa para mim e meus irmãos. Eu tinha este sonho.” Em 1973, às vésperas da gravação de seu primeiro LP, a cantora gaúcha Ana Paula que não alcançou grande sucesso na carreira - dizia: “Meu

objetivo principal é me realizar artística e financeiramente. Sobretudo financeiramente. Não por mim, mas por meus pais. Quero ter alguma coisa na vida para poder dar a eles o conforto que nunca tiveram.” (291) Agnaldo Timóteo também expressou desejo semelhante ao participar de um programa de rádio em 1966, um pouco antes de se tornar um artista de sucesso nacional. “Eu desejo que Deus me dê bastante sorte na carreira e que eu consiga ganhar pelo menos o suficiente para dar um conforto à minha mãe e a todos os meus familiares. O sonho da minha vida é comprar uma casa muito bonita para mamãe e um automóvel para meu irmão, que tem uma oficina, e um pra mim também. Enfim, eu desejo que Deus me ajude a ganhar dinheiro para eu dar uma cobertura a toda a minha família.” (292) Em um país marcado pela desigualdade social, carência na educação e falta de oportunidades iguais para todos, a carreira musical, como também a do futebol, torna-se um dos poucos meios de ascensão social para uma legião de jovens oriundos dos baixos estratos da população. E isto se reflete no discurso e no compromisso comercial dos artistas "cafonas". Para a maioria deles outra alternativa não existia: era o sucesso musical ou a caixa de engraxate Mas ainda hoje, depois de 30 anos de carreira e com uma coleção de composições de sucessos na voz de diversos cantores populares, o ex-engraxate Nenéo confessa: “Eu sou um cara que precisa vender discos, senão as pessoas me desprezam.” Já o discurso dos cantores da MPB é diferente. Filhos da classe média, a maioria de formação universitária, eles procuram enfatizar que estão na música por idealismo e vocação artística, não por sucesso ou riqueza. O cantor Ivan Lins, por exemplo, na fase inicial da carreira, afirmava a sua disposição de não fazer concessões à máquina de consumo. “Não estou preocupado em ganhar dinheiro, em vender disco, pois acredito muito mais na qualidade de um trabalho.” (293) Na época cultivando uma imagem de rebeldia frente à indústria fonográfica, o cantor Fagner também declarava seu total desinteresse pelos aspectos meramente comerciais da produção artística: “Componho, converso, penso e vou seguindo, sem grandes grilos com dinheiro.” (294) Gonzaguinha manifestava o mesmo desprendimento ao dizer que procurava criar uma música de qualidade e acessível ao grande público. “Não faço isto por dinheiro ou sucesso. Quero apenas comunicar uma determinada experiência a um número maior de pessoas.” (295)

Entrevistados em conjunto, Danilo Caymmi e Toninho Horta também diziam rejeitar a lógica de consumo que domina o mercado capitalista “Nos recusamos a participar desse esquema, não abriremos mão. O que nós queremos é um trabalho integro.” (296) E o arquiteto e cantador baiano Elomar afirmava que o seu primeiro LP lançado pela Philips em 1973, era “uma pequena contribuição à cultura brasileira. Não é uma música comercial, para consumo, mas um trabalho artístico, cultural, vinculado ao ambiente, de profundas raízes históricas “ (297) Todos esses artistas de formação universitária pareciam levar ao pé da letra a expressão "disco é cultura", que vinha estampada nas capas dos LPs naquela época. Talvez por isso mesmo o compositor Belchior iniciava a canção Como nossos pais com a frase: “não quero lhe falar, meu grande amor / das coisas que aprendi nos discos...” Assim como os livros, os discos eram entendidos agora como veículos transmissores de cultura, conhecimento e conscientização. Como bem observou a jornalista Ana Maria Bahiana, além de negar a interferência da “máquina" em seu trabalho, esta geração de cantores/compositores acreditava poder exercer, com suas canções, “uma missão educadora do povo brasileiro, acostumando-o a padrões mais complexos de audição e consumo.” (298) Semelhante era a expectativa da crítica musical que é também de formação universitária e julga a produção popular sob a ótica de seu meio social. O crítico Marcel Delon, por exemplo, ao comentar o lançamento de um disco da cantora romântica Joelma, dizia: “Trata-se de música que não informa nada, não ensina nada, não educa nada, porque realmente contém pouca coisa, servindo apenas para embalar corações e mentes menos exigentes.” (299) E, ao analisar outros três lançamentos "cafonas", o crítico batia na mesma tecla: “Analisar o quê? Adianta alinhar mil argumentos mostrando que discos como esses não têm qualidade artística, não trazem contribuição de espécie alguma para melhorar nossa já sofrida cultura e desenvolvimento musical.” (300) Nas representações do campo artístico-fonográfico destacam-se a existência de dois grupos de cantores/compositores: aqueles considerados de "prestígio" que dão status à gravadora e alimentam sua imagem de produtora de objetos culturais e aqueles considerados meramente "comerciais" que dão retorno financeiro grande e imediato. Observa-se, contudo, que para os primeiros realizarem os seus discos artísticos e exercerem a pretendida "missão educadora do povo brasileiro" é

necessário o respaldo financeiro proporcionado pelas vendagens dos segundos, aqueles dos discos que não "ensinam nada". Afinal, numa sociedade capitalista, o que move uma indústria como a fonográfica liderada no Brasil pelas companhias multinacionais - é o dinheiro. Gravadora existe para vender disco e render lucro aos acionistas, não para educar o povo. Assim, a manutenção de um elenco de cantores de "prestígio", em quase todas as gravadoras do Brasil, tem sido financiada pela grande quantidade de vendas dos cantores "comerciais". João Gilberto, por exemplo, talvez só tenha conseguido liberdade de criação para gravar seu primeiro disco de bossa nova na Odeon, em 1958, porque lá existia um outro cantor baiano chamado Anísio Silva, que com seus boleros sentimentais chegou a vender na época a fabulosa marca de 2 milhões de discos. (301) Não fosse isso, provavelmente a Odeon não tivesse arriscado estúdio e capital com um disco de um cantor excêntrico, desconhecido e de pouco apelo comercial Na Phonogram, ao longo da década de 70, faziam parte da "faixa de prestigio" nomes como Chico Buarque, Caetano Veloso e Elis Regina (selo azul, Philips), e da "faixa comercial" cantores como Odair José, Marcus Pitter e Evaldo Braga (selo vermelho, Polydor). Da mesma forma, a gravadora RCA tinha numa faixa João Bosco e Ivan Lins, e na outra cantores como Waldik Soriano e Lindomar Castilho. No fim dos anos 60, Agnaldo Timóteo era provavelmente o maior vendedor de discos da Odeon. E começando a carreira lá também estavam Milton Nascimento e Paulinho da Viola. “Mas eles só permaneceram na gravadora porque eu e os outros cantores populares vendíamos o suficiente para que eles ficassem lá”, acredita Timóteo. “Mais tarde Paulinho da Viola e Milton Nascimento fizeram sucesso, porque são artistas talentosos, mas tanto eles quanto Gonzaguinha só continuaram na Odeon naquela época porque eu e os outros cantores populares vendíamos muitos discos. Nós sustentávamos esses artistas na gravadora.” Outro campeão de vendagem da Odeon nos anos 70, o cantor Luiz Ayrão, credita papel semelhante para seu trabalho. “Do meu sucesso comercial dependia o pagamento dos funcionários da gravadora, o Natal do vendedor e os discos do Milton Nascimento. Era do nosso dinheiro, do pessoal popular, que a gravadora pôde investir milhões e milhões de cruzeiros em discos de Milton Nascimento. Discos que eram lançados, recebiam todos os elogios da crítica mas que vendiam dois, no ano seguinte vendiam cinco, no outro, três. Quem patrocinava isto? O pessoal que vendia discos: eu, Agnaldo Timóteo, Fernando Mendes,

Reginaldo Rossi, Fevers e outros.”

É óbvio que há um certo exagero nas falas de Timóteo e Luiz Ayrão, mesmo porque, abrigando um leque de tendências musicais e culturais muito diversas, a MPB obteve, ao longo da década de 70, uma ampliação de seu mercado consumidor, rompendo paulatinamente os limites do público estritamente jovem e universitário. Ainda assim, o ponto central da fala dos dois encontra respaldo em estudos sobre a indústria fonográfica e em depoimentos de artistas da própria MPB. O compositor Márcio Borges, por exemplo, em seu livro de memórias sobre o "clube da esquina", relata que na época da gravação do primeiro LP de Milton Nascimento na Odeon, o então diretor da gravadora, Milton Miranda, garantiu aos músicos: “Nós temos os nossos artistas comerciais. Vocês, mineiros, são nossa faixa de prestígio; a gravadora não interfere. Vocês gravam o que quiserem.” (303) E Márcio Borges afirma que esta autonomia foi respeitada durante todo o período em que eles permaneceram na Odeon. Outro nome de prestígio daquela gravadora, o compositor Francis Hime, ao lançar seu LP em 1973, também gabava-se de ter feito um trabalho musical sem nenhuma preocupação com o lado comercial “Nesse disco eu tive completa liberdade para fazer a música como bem entendesse, sem interferência da gravadora.” (304) A base sobre a qual repousava esta autonomia adquirida pelos artistas da MPB foi expressa por Caetano Veloso em um texto escrito pouco depois do lançamento simultâneo de seus dois LPs, "Jóia" e "Qualquer coisa", em 1975. Ali, Caetano argumentava que “para que alguém possa fazer 'Qualquer coisa' assim como 'Jóia' é preciso que as gravadoras tenham Odair José e Agnaldo Timóteo. O universitário que tenta me entrevistar e salvar a humanidade fica indignado diante do meu absoluto respeito profissional e interesse estético pelo trabalho de colegas como Odair e Agnaldo”. Com o título de "Mil tons", o texto de Caetano Veloso era na verdade dedicado ao trabalho que o autor de Travessia realizava naquele momento. “A história da música brasileira de hoje é assinada por Milton Nascimento”, enfatizava Caetano. (305) Mas ao evocar a importância de cantores populares como Agnaldo Timóteo e Odair José em um texto de louvação a Milton Nascimento, Caetano estava sugerindo que para investir na produção de discos tão elogiados pela

critica como "Clube da Esquina" e "Minas", a indústria fonográfica precisava do lastro proporcionado pela vendagem de discos como "Galeria do amor", "Eu pecador" e "Pare de tomar a pílula". É indispensável notar, entretanto, que esta autonomia dos artistas da MPB era limitada por seu próprio público, como demonstra o episódio envolvendo o LP de Caetano Veloso, “Áraçá azul", que na época bateu recorde de devoluções às lojas. Caetano gravou aquele disco estimulado pelo polêmico Cabeça, trabalho de Walter Franco lançado no FIC de 1972. Disposto a não perder a posição de vanguarda na linha evolutiva da MPB, o compositor baiano se trancou com dois técnicos num estúdio em São Paulo, produzindo e improvisando, durante uma semana, diversos sons e palavras. “Araçá azul" era um disco aguardado com certa expectativa porque seria o primeiro LP gravado por Caetano no Brasil depois de sua volta do exílio em Londres. Concluído o trabalho, a gravadora lançou uma tiragem inicial de 30 mil cópias - média de vendagem de Caetano na época - e o público comprou na expectativa de encontrar novas canções ao estilo de Alegria, alegria, Irene ou Atrás do trio elétrico. Qual não foi a surpresa ao se deparar com um LP experimental, repleto de grunhidos, vozes superpostas, sons de prato com garfo, buzinas de automóveis e canos de descarga - e com uma sutil advertência na parte interna da capa: "Um disco para entendidos." O problema é que quase ninguém entendeu e provocou um fato inédito na história da nossa música popular: uma grande quantidade de pessoas voltou às lojas para devolver o disco - e não por algum defeito técnico do produto, mas por rejeição ao seu conteúdo. Pressionada pelos lojistas, a Phonogram se viu forçada a receber - e depois dissolver as bolachas pretas dos LPs - já que devoluções não podiam ser revendidas pela gravadora. Procurando encarar o fato com naturalidade, Caetano afirmou na época que “Araçá azul" não era mesmo disco “pra ser comprado, nem mesmo pra ser vendido, ele foi apenas muito bom de fazer.” (306) Pode ser, mas nunca mais ele repetiu a experiência, e a autonomia do artista de “prestígio" teve o seu limite testado e estipulado pelo próprio público consumidor O sinal verde que Caetano Veloso obteve da Phonogram para gravar “Araçá azul" foi fechado para Odair José quando este, em meados dos anos 70, também resolveu fazer um trabalho ousado e diferente do que ele fazia até então: uma ópera-rock de protesto religioso. “A Igreja é como uma

vidraça, que deixa ver a chuva do outro lado mas não deixa que a gente estique o braço para sentir a água", filosofava Odair José na época.(307) Influenciado pelos livros do místico árabe Gibran Kalil Gibran, e pelos discos de Joe Walsh, Humble Pie, Jeff Beck e Peter Frampton, Odair José imaginou um álbum conceitual com dez canções ligadas por um mesmo tema: o nascimento, vida e morte de um jovem pederasta - o filho de José e Maria - que após longo processo de solidão e rejeição social, assume a sua sexualidade e, aos 33 anos, encontra a plenitude e a felicidade. O texto faria uma livre adaptação da história de Cristo para os dias atuais. E, segundo o autor, o protagonista das canções do disco seria um “Clóvis Bornay, você me entende? Uma pessoa de vida sexual muito livre”. (308) Esta mistura de Clóvis Bornay com Jesus Cristo pareceu confusa e muito perigosa aos olhos da direção da Phonogram que, já escaldada pelo episódio de “Araçá azul', se recusou a realizar o projeto, ainda mais porque o "cantor das empregadas" pretendia sonorizá-lo numa batida de puro rock'n'roll. “É rock mesmo o que eu quero fazer agora. Uma coisa mais jovem, mais pra fora, mais alegre. Quero ser eu mesmo, mas fazendo aquele sonzão inglês, de guitarras, do Peter Frampton, que ninguém fez até agora no Brasil, e acho que a platéia já deve estar a fim de ver isto”, acreditava na época Odair José. (309) A família, os amigos, os disc-jóqueis, a direção da gravadora e até as próprias empregadas domésticas, todos aconselharam Odair José a não embarcar na aventura da ópera-rock; afinal, até aquele momento da carreira, cantando suas baladas românticas, ele já havia vendido cerca de três milhões de discos, (310) e qual artista popular, com tamanho capital de público, ousaria ou ousou arriscar uma mudança tão radical? Talvez só mesmo os Beatles com o álbum "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band", ainda assim testando o público antes com canções como Eleanor Rigby e Strawberry Fields Forever. Odair José, entretanto, bateu pé firme pelo projeto – “estou só querendo melhorar o nível do público brasileiro” (311), e se transferiu para a gravadora RCA que, como uma forma de atrair o artista para o seu elenco, aceitou fazer o projeto que a concorrente recusara. Animado, Odair José contratou um novo empresário, o tropicalista Guilherme Araújo, e alugou teatros (em vez de clubes) para a realização dos shows do novo disco.

Com direção artística de Durval Ferreira e o próprio Odair José tocando guitarras, violão e piano, o álbum “O filho de José e Maria” chegou ao mercado em maio de 1977, trazendo na capa o cantor-personagem com uma auréola sobre a cabeça e, na contracapa, ele sentado em uma mesa com diversos instrumentos musicais e, bem no meio, um cálice e um pedaço de pão, como na Ultima Ceia. “Eu agora sou bem diferente / não se assustem e nem se preocupem...”, adverte Odair José na faixa de abertura do novo disco. (312) E, no lado B, o filho de José e Maria oferece: “Beba um pouco do meu vinho / coma um pedaço de pão / tome um pouco de carinho / vem curar a solidão...” (312) A primeira reação contra o LP partiu de setores da Igreja, que não toleraram essa história mundana repleta de referências aos signos cristãos. O álbum foi considerado sacrílego e atentatório aos princípios da Santa Madre Igreja. Alguns padres chegaram mesmo a ameaçar Odair José de excomunhão, especialmente por causa da letra da música “O casamento”, na qual (como já vimos no capítulo Capricho dos instintos insaciáveis), ele defende a idéia de que José e Maria não eram casados quando Jesus foi concebido. Aliás, o personagem de José foi o foco de preocupação do autor na gênese do projeto do disco: “Se você perceber bem verá que na história de Jesus sempre aparece a mãe, nunca o pai. E eu cobrava isto no disco. Ninguém reza pra São José, é sempre pra Nossa Senhora. A minha bronca era essa. Cadê a história do pai de Jesus? Eu não entendo isso até hoje e acho que só mesmo Ele, o filho, algum dia poderá me explicar. Eu quero saber onde entra José nessa história. Fala-se muito em Deus, em Nossa Senhora, em Jesus. Mas cadê o pai desse moço? Por que não se fala dele? Ele não existe? O questionamento que eu fazia era este. E o personagem do meu disco se perde na vida justamente porque não tem a presença do pai.” Para além de preocupações metafísicas, o que motivou Odair José a realizar este disco e tentar uma virada na carreira foi talvez o acalentado desejo de participar do circuito cultural, adquirir prestígio, pegar uma ponta da "linha evolutiva" da música popular brasileira e ser aceito pela intelectualidade, o público universitário e a crítica musical. O problema é que estes segmentos da sociedade brasileira torciam mesmo o nariz para cantores populares como Odair José e também não estavam preocupados em resgatar a figura de São José ou qualquer outra do

cristianismo. Num contexto de valorização da cultura negra, os nossos intelectuais se interessavam muito mais pelos cultos afro-brasileiros e suas divindades e líderes espirituais mais representativos - tema que os artistas da MPB souberam explorar até a exaustão em canções como Canto de Ossanha (Baden-Vinicius), Oração de Mae Menininha (Dorival Caymmi), Fesfa de umbanda (Martinho da Vila), Meu Pai Oxalá (ToquinhoVinicius), Iansã (Caetano Veloso-Gilberto Gil), Guerreira(João NogueiraPaulo César Pinheiro) e diversas outras. O interesse por Jesus Cristo era coisa mesmo de cantores mais populares e fora do círculo da intelectualidade, como Roberto Carlos, Antonio Marcos, Claudio Fontana, Nelson Ned e Odair José. O fato é que, combatido pela Igreja, desprezado pela crítica e ignorado pelo público que rejeitou - ou não compreendeu a mensagem do disco - , “O filho de José e Maria” acabou tendo o mesmo destino de "Araçá azul": as milhares de cópias de seu vinil foram recolhidas e depois dissolvidas na fábrica da gravadora. “O melhor trabalho que eu fiz na minha carreira foi aquele”, enfatiza hoje Odair José. “Eu sei que com aquele disco eu me afastei do público, eu tenho consciência disto, mas é um trabalho muito bonito e musicalmente muito bom. O problema é que ele estava à frente de seu tempo, porque eu tinha certeza que mais cedo ou mais tarde aquele estilo de som de Peter Frampton iria acabar acontecendo no Brasil. O que fizeram depois Lulu Santos, Engenheiros do Hawaii e Paralamas do Sucesso? Tudo isto é imitação de Peter Frampton e eles sabem disso.” No ano seguinte, 1978, procurando recuperar a massa de público perdida e desfazer a complicação em que se metera, o novo disco de Odair José veio com o singelo título de “Coisas simples”, e nas suas 12 faixas, em vez de preocupações com São José ou Jesus Cristo, o cantor focalizava temas do cotidiano como o amor, a violência, a saudade e o sexo. E, numa das canções mais animadas do disco, ele exaltava a graça, a beleza, o charme e o veneno do grupo vocal As Frenéticas, num claro sinal de que aquela "era do piche" caminhava para o fim e as relações entre os artistas passariam a ser bem mais amistosas e neutras: “Oh frenéticas / dancin'days / não sei se são sete / não sei se são seis / oh frenéticas / dancin'days / não sei se são sete / não sei se são seis...” NOTAS BIBLIOGRÁFICAS APENAS AO CAPÍTULO (Conforme a numeração seqüencial encontrada no texto):

255. "Chacrinhando” - (Jornal do Chacrinha) - A Notícia, 9-7-1973. 256. "Só aqui" (Jornal do Chacrinha) - A Noticia, 29-6-1973. 257. "Todo mundo leva" (Jornal do Chacrinha) ~ - A Notícia, 23-4-1973. 258. "E ela acusa" (Jornal do Chacrinha) - A Noticia, 18-9-1973. As críticas de Elis Regina à programação de TV estão na reportagem "Sem censura: as confissões de Elis Regina" - O Cruzeiro, 12-9-1973 259. Tárik de Souza & Elifas Andreato, op. cit, pp. 234-235. 260. "Esta é a Maysa de todos nós" - O Pasquim, Nº 2, julho de 1969. 261. "Elis" - O Pasquim, n.° 15, Outubro de 1969. 262. “A MPB levanta vôo” - Manchete, 4-9-1976. 263. "Simonal: 'Não sou racista"'. - O Pasquim, n° 4, julho de 1969. 264. Em conversa com o autor em 7-10-1992, antes de uma entrevista para um outro trabalho sobre música popular. O piche a Zé Kéti aparece na reportagem "Paulinho da Viola no vale-tudo: o samba puro nunca existiu" Intervalo, n.° 365, Janeiro de 1970. 265. "Morengueira dá o serviço" - O Pasquim, 15 a 21-5-1973. 266. "Tim Maia agora é guru" - Pop, Janeiro de 1975. 267. "Nossa televisão é uma palhaçada" - Ultima Hora (SP), 28-6-1970. 268. "Roberto Carlos" - O Pasquim, 7 a 13-10-1970. 269. “Agnaldo Timóteo (de Caratinga)" - O Pasquim, 21 a 27-11-1972. 270. "Com licença da cafonice" - A Noticia, 14-5-1971. 271. "Discos" - Isto É, 11-5-1977. 272. "Vestiu-se de Waldik Soriano para matar o inimigo" - A Noticia, 2010-1972.

273. "Por causa de Waldik Soriano quatro irmãos brigam: um morto" Diário da Noite, 3-11-1975. 274. Conforme relato de Nelson Ned na reportagem "Minha pequena é melhor que Elis" ”Intervalo, Nº 421, Fevereiro de 1971. 275. "Não pode" - (Jornal do Chacrinha) - A Noticia, 2-4-1973. 276. Programa Show da Madrugada - Rádio Globo, 24-8-1991. 277. O crítico Tárik de Souza expressa opinião semelhante. "Os disquejóqueis são, sem dúvida, os maiores responsáveis pelo sucesso de uma música (vide casos de Claudia Barroso, Waldik Sonano, Nelson Ned, Claudio Fontana etc.) E inclusive o mecanismo disso é lógico: de todos os meios de comunicação, eles são os que lidam com o veículo mais adequado ao disco: o rádio. Até a televisão sofre uma influência descaracterizadora que é a imagem. A imprensa então, nem se fala. Para que você consiga induzir um leitor a comprar, é preciso muitos milhões de palavras, enquanto que o radialista lida do produtor ao consumidor". Apud Othon Jambeiro. Canção de massa: as condições da produção. São Paulo: Pioneira, 1975, p. 126. 278. "Legal e Índia: a Gal de 70, já perfeita" - Jornal da Tarde, 4-4-1983. 279. “A verdade nua e crua"- (Jornal do Chacrinha) - A Notícia, 19-4-1973. Sucesso nacional, a gravação de Índia com Paulo Sérgio aparece em 1° lugar entre os discos mais vendidos na semana de 5 a 11 de março de 1973 em Recife. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp. 280. Um documento do CIE (Centro de Informações do Exército), datado de 17 de novembro de 1971, alertava que, através de noticiários maldosos e infamantes, determinados setores da imprensa procuravam atingir a honra de figuras do meio artístico "que se uniram à Revolução de 1964 no combate à subversão e outros que estão sempre dispostos a uma efetiva cooperação com o governo". Encabeçando a lista dos supostos colaboradores atingidos pela mídia aparece o nome de José Fernandes, seguido do de Wilson Simonal (Informação número 2755/S-103.2 - CIE). Apud Inimá Simões. "Nunca Fui Santa (episódios de censura e autocensura)". In A TV Aos 50: criticando a televisão brasileira no seu cinqüentenário. Esther Hamburger & Eugênio Bucci (org.) São Paulo: Fundação Perseu Abaramo, 2000. p. 78.

281. "O engano de Milton é pensar que é brasileiro" - Jornal do Brasil, 238-1977. 282. “A alucinação (infantil) de Belchior" - Jornal do Brasil, 16-6-1976. 283. "Emílio Santiago tem boa voz, o que estraga é o pensamento" - Jonzal do Brasil, 2-11-1979. 284. Verso de “Querelas do Brasil”. Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 285. “Realce traz de volta o internacional Gilberto Gil ('oh, yeah!')" - Jornal do Brasil, 23-8-1979. 286. "Tinhorão é uma planta? É um bicho? Não, é o supercrítico da MPB" Manchete, 23-6-1979. 287. "Ficou na intenção" - A Notícia, 6-4-1973. 288. “A superparada" - A Notícia, 8-6-1973. 289. CD "Histórias que o rádio não contou: da galena ao digital, desvendando a radiodifusão no Brasil e no mundo" - Harbra - P. 1998. 290. "Waldik Soriano esnoba o programa de Flávio Cavalcante: 'Só vou lá por 20 mil"'. Intervalo, Nº 433, abril de 1971. 291. “Ana Paula: a gauchinha que persiste e não desiste" - A Notícia, 24-71973. 292. LP "Música e alegria Kolynos" - Programa Nº 1002 - Odeon - P. 1966. 293. "Ivan Lins: as coisas acontecem cada vez menos em nossa música" - A Notícia, 24 11-1973. 294. Apud Rita C. L. Morelli. Indústria Monográfica: um estudo antropológico. Campinas: Ed. Unicamp, 1991, p. 173. 295. Apud. Ana Maria Bahiana. “A ‘linha evolutiva' prossegue - a música dos universitários". In Anos 70 - música popular. Rio de Janeiro: Ed. Europa, 1979-1980, p. 33.

296. "Cinco tentam sobreviver fazendo música pela música" - A Noticia, 21-8-1973. 297. “Elomar: prefiro enfrentar uma onça na caatinga a um táxi na GB" - A Notícia, 28-8-1973. 298. Ana Maria Bahiana, op. cit., p. 32. 299. “Joelma, sem compromisso" - A lNoticza, 8-2-1973. 300. "Facilidade de gravar" - A Noticia, 17-8-1973. 301. No inicio dos anos 60 a gravadora Odeon lançou uma coletânea de sucessos de Anísio Silva com o título "Dois milhões de discos vendidos". 302. Na época, os discos de Timóteo apareciam com muita frequência na lista dos mais vendidos. O seu LP "O sucesso é Agnaldo Timóteo" ocupa o 1º lugar em vendagem na semana de 2 a 7 de dezembro de 1968, no Rio. No ano seguinte o LP “Agnaldo Timóteo comanda o sucesso”, também aparece em 1° lugar na semana de 17 a 22 de novembro. Fonte: Ibope Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp. 303. Márcio Borges, op. cit., p. 209. No campo acadêmico isto é confirmado num trabalho que Márcia Tosta Dias realizou sobre a indústria do disco. Utilizando a distinção entre artistas de marketing ("comerciais") e artistas autênticos ("prestigio"), ela afirma que "segundo a lógica dos empresários, o mercado consumidor de produtos de marketing deve financiar a permanência de artistas autênticos (...) considerando o alto custo destes últimos e o retorno, a médio prazo, dos investimentos". A autora enfatiza que "são os produtos dos artistas de marketing que movem a grande indústria fonográfica". Ver Márcia Tosta Dias. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São Paulo: Boitempo, 2000, p. 90. 304. "O som terno e livre da música de Francis Hime" - A Noticia, 1-121973. 305. Caetano Veloso. "Mil tons". In Waly Salomão (org.). Alegria, alegria. Rio de Janeiro Pedra Q Ronca, s.d. p. 174. 306. “Araçá Azul” - um fracasso de vendas?" - Jornal do Brasil, 30-9-1973

307. "Quase linchado o cantor Odair José!' _ O Dia, 17-7-1977. 308. "Odair José está mudando? - O Globo, 7-12-1976. 309. Idem, ibidem. 310. Números fornecidos pela reportagem "Depois de três milhões de discos Odair José troca a cama, o cabaré e a pílula pelo rock'n'roll" - Ultima Hora, 14-5-1977. 311. "Odair José está mudando?" - O Globo, 7-12-1976. 312. Verso de Nunca mais. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 313. Verso da canção De volta às verdadeiras origens. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia.

(RELAÇÕES ENTRE O "CHIQUE" E O "CAFONA") “Não há nada mais Z do que um público classe A.” (Caetano Veloso)

No Brasil pós-tropicalista o "chique" e o “cafona" se aproximaram várias vezes, se tocaram, se misturaram e até mesmo se beijaram. A protagonista de um desses momentos foi uma dama da alta sociedade carioca, a badaladíssima senhora Beki Klabin. Num tempo em que as chamadas emergentes ainda não haviam conquistado espaço, Beki reinava como a rainha das colunas sociais e a mais famosa figura feminina do high-society do Rio de Janeiro. Com um seleto grupo de amigos no eixo Rio-Paris-Nova York, ela resolveu abrir uma exceção e incorporar um estranho a este ninho: o baiano de Brejinho das Ametistas, Waldik Soriano. Os dois se conheceram nos bastidores de um programa de televisão e, para surpresa de todos, Beki se declarou fã do cantor, deixando-se envolver por

ele e convidando-o para festas e reuniões em sua luxuosa cobertura em Ipanema. Foi um prato cheio para a imprensa: aos beijos e abraços lá estavam os dois na televisão, nas capas de revistas e nas colunas sociais de Ibrahim Sued e Zózimo Barrozo do Amaral. “Se ela é céu azul, ele é negra tempestade”, assim foi definido o inusitado casal numa reportagem da revista O Cruzeiro. (314) Na época desquitada do industrial Horácio Klabin, Beki dizia que os filhos receberam com naturalidade seu affair com Waldik, mas que “talvez eles gostassem mais de encontrar aqui em minha companhia, o John Lennon”.(315) Waldik por sua vez afirmava que com ela conheceu um mundo diferente, “a grande sociedade dita sofisticada do Brasil, a chamada classe A, tão criticada por mim, tão agredida, tão brutalizada em meus comentários. Mas depois deste conhecimento posso dizer: os ricos nas horas mais calorosas choram, sentem, gritam, são os mesmos animais comedores de feijão, com as mesmas dores de barriga de qualquer pobre de barraco'”. (316) Patrocinado por Beki Klabin, que organizou e distribuiu os convites, no fim de 1971, Waldik Soriano fez um concorrido show na sofisticada boate Flag, um ponto noturno da elite carioca. O popular cantor, acostumado às platéias das feiras, cabarés e clubes dos subúrbios, tinha agora diante de si olhos e ouvidos educados por sonoridades muito diversas das dele E, ao se aproximar do palco, confessa Waldik “Senti que ali não era o meu público, uma coisa estranha tomou conta de mim Não era medo, era algum sentimento de falta de ambiente. Mas, junto da Beki, meu sangue fervia e nada poderia me deter. Enfrentei a fera.” (317) Acompanhado ao piano pelo bossa-novista Luiz Carlos Vinhas - que tocou pela primeira e, provavelmente, última vez na carreira temas como Fui um besta pra você, Eu também sou gente, Por ti darei meu sangue, Leva este chapéu - , Waldik desfilou seu repertório ante os sorrisos marotos de boa parte da platéia. “Mas quando terminei de cantar Eu não sou cachorro, não, a festa chegou ao máximo. Tirei o paletó, abri a camisa e subi no piano, as grã-finas vinham me cumprimentar, abraçando-me, beijando-me com seus cheiros gostosos. Uma delas, quando me beijava boca-com-boca, língua-com-língua, deu-me uma sensação de loucura tão grande que caímos ali no meio do salao.” (3l8) No dia seguinte os principais jornais da cidade falavam da performance e da inusitada apresentação de Waldik Soriano na Flag. Em sua coluna o

jornalista e compositor Sérgio Bittencourt destacava: “Foi uma loucura! Não dava nem para periquito voar. De repente, virou histeria. Gente que, sinceramente, eu nunca pensei, entregou-se.” (319) É verdade, mas é certo também que a maioria daquele público estava ali pelo convite de Beki Klabin, por curtição ou por curiosidade, mas demonstrando tal estranhamento como se Waldik realmente fosse - para usar uma referência comum na época - , algum animal do zoológico. Aliás, em sua crítica ao show, o jornal O Globo dizia justamente que muito mais que apresentação de um artista, aquilo parecia “um número especial de circo ou uma seqüência de mundo cão”". (320) No campo das relações entre o "chique" e o "cafona", muito mais tensa e complicada, naquele mesmo ano de 1971, foi a apresentação de Agnaldo Timóteo no palco do programa Som Livre Exportação, que era uma nova atração musical da TV Globo nas noites de quarta-feira. Estrelado por Elis Regina e Ivan Lins e com a participação de outras jovens revelações dos festivais de música popular (Gonzaguinha, Aldir Blanc, Cesar Costa Filho), o programa tinha a proposta de abrigar as diversas tendências da nossa música popular - com algumas ressalvas, é claro. “Admitimos Jararaca e Ratinho, Tonico e Tinoco, Milton Nascimento. Só gente como Paulo Sérgio e Waldik Soriano não entram, porque são mentirosos, e o público não quer mais mentiras” - , definia um dos organizadores do Som Livre. (321) Ainda assim, uma oportunidade foi concedida a Agnaldo Timóteo, mas numa prova de que o "som" do programa não era mesmo muito "livre", o cantor nem chegou a concluir o primeiro número musical; sua voz foi bruscamente abafada pela ruidosa platéia que gritava "fora lamê!", atirando diversos objetos no palco. “Agnaldo Timóteo já estava preparado para uma eventual reação do público, mas não esperava tamanha violência e acabou chorando quando ouviu a maior vaia de sua vida”, relatou a reportagem da revista Intervalo. (322)

Hoje Timóteo recorda o episódio, mas com poucas palavras. “Aquilo foi uma coisa horrível. Não gosto nem de lembrar. Eles me receberam de uma maneira muito hostil, e nem entendo o porquê.” Eu indaguei se não seria porque ali era um espaço de cantores identificados com o público universitário. “Sim” - respondeu Timóteo - , “era o espaço do Ivan Lins, da Elis Regina, do Caetano Veloso, e era também um espaço de idiotas que não sabiam diferenciar entre um cantor e um político. Porque aquilo era um encontro de políticos, eles se reuniam lá para falar mal do governo, e eu era apenas um cantor; na época não tinha nenhuma participação na política e nem tinha cara de esquerda. E a juventude universitária sempre gostou de fingir-se esquerdista. São aqueles meninos de classe média que só usam tênis importados dos Estados Unidos e pensam que são comunistas. Me lembro que na hora a Elis Regina entrou no palco e deu um esporro naquela garotada babaca. Mas eu fiquei muito emocionado, chorei pra caramba, fiquei indignado. Foi horrível.”

Além de Elis Regina, Timóteo também recebeu a solidariedade de Chacrinha, que através de sua coluna na imprensa afirmou que “a vaia em

Agnaldo Timóteo foi pilantragem” e um ato de covardia daqueles que “cismam em provocá-lo, principalmente se o Agnaldo estiver distante, sem possibilidade de pegá-los” E o Velho Guerreiro concluía sua nota com uma mensagem de afago ao cantor: “Olha, Timóteo, não dá bola para isso, não. O povo gosta de você. E é isso que dá dor-de-cotovelo naqueles caras”. (323) Mas parece que o mineiro de Caratinga ficou mesmo cismado com a vaia do Som Livre porque logo depois ele cancelou sua anunciada participação no VI Festival Internacional da Canção e também o show que faria na boate Sucata, na época um tradicional espaço de artistas e público da MPB, na Zona Sul do Rio. Mas o reflexo mais contundente de todo este episódio veio no LP de Agnaldo Timóteo lançado no segundo semestre de 1971. Uma das faixas do disco inicia com uma mensagem de profunda amargura e desalento. “Eu não me identifico com esta vida / tão amarga e tão fingida / que machuca as ilusões... e prossegue com a denúncia de que o cantor seria vítima de repressão e intolerância: “Eu não entendo nada que me falam / me censuram e me calam / abafando a minha voz...” (324) Este é um típico verso de protesto que naquele momento do governo Médici poderia ser assinado por qualquer um dos artistas da MPB que tinham a sua voz censurada e abafada pelas forças da repressão política. Mas, como a vaia do público do Som Livre ilustra, a censura não era apenas a do regime militar, andava também nas cabeças e nas bocas de outros setores da sociedade. E um outro episódio representativo disso ocorreu em 1973, tendo como protagonista o cantor e compositor Odair José. Em maio daquele ano a Phonogram organizou no Palácio das Convenções do Anhembi, em São Paulo, uma exposição musical intitulada Phono 73, espécie de festival não competitivo. Todo o elenco da gravadora foi mobilizado para quatro dias de shows, que reuniram, entre outros, Chico Buarque, Gilberto Gil, Elis Regina, Gal Costa, Jorge Ben, Nara Leão, Ivan Lins, Raul Seixas, Maria Bethania e também Odair José cantando em dueto com Caetano Veloso. “A idéia de cantar junto não foi minha, foi do Caetano” - afirma Odair "e quando eu fui procurado pra fazer aquilo eu falei pro presidente da gravadora, o André Midani, 'eu não entendo este convite'. Aí o Midani

respondeu 'quer entender? Então vá falar com o cara. Eu também não entendo'. A Phonogram me alugou um teco-teco e eu fui me encontrar com o Caetano, que estava escondido num sítio de uma cidadezinha do interior de São Paulo. Eu queria conversar com ele justamente porque eu não entendi aquele convite. E, chegando ali, ficamos na varanda tomando Coca-Cola e tal, e o Caetano me convenceu de que seria importante a gente cantar junto naquele show.”

Uma grande parte dos shows da Phono foi apresentada em dupla. Depois do número solo, o artista convidava ao palco um outro colega (sem que o público soubesse qual seria), e ambos cantavam uma música juntos. Ali houve duetos como os de Gal Costa e Maria Bethania, Chico Buarque e Gilberto Gil e Ivan Lins e o grupo MPB-4. A idéia inicial de Caetano era se apresentar ao lado de Hermeto Pascoal, músico considerado o mais inventivo, experimental e de vanguarda do elenco da Phono. Entretanto, não houve acordo com o "bruxo", que preferiu se apresentar só com sua música. Caetano então resolveu radicalizar, convidando para seu palco aquele artista considerado o mais redundante, banal e comercial: Odair José. Anunciado como “uma noite incrível reunindo o maior espetáculo de música brasileira de todos os tempos”, (325) o show de Caetano Veloso com o convidado surpresa Odair José - foi o último da mostra Phono 73, que contou naquele mesmo domingo com apresentações de Gal Costa, Maria Bethânia, Nara Leão e outros. Espécie de "patinho feio" incluído em uma festa que reunia a nata da MPB, Odair José não poderia deixar de causar reação em um público preso a

preconceitos estéticos de sua formação classe média. E, assim que subiu ao palco - atrapalhando o público que estava ali para ouvir Caetano Veloso - , o autor de Pare de tomar a pílula se deparou com a ruidosa vaia do Palácio das Convenções do Anhembi. “Foi uma ofensa... quem veio aqui não queria ver nem ouvir um artista deste nível”, justificou uma jovem ouvida no fim do show pela reportagem da Folha de S. Paulo. "Essa do Caetano eu não entendi", exclamou uma estudante universitária procurada pela mesma reportagem. E um outro estudante, bastante irritado, reclamou dos organizadores do espetáculo: “O que este pessoal está pensando!? Eles 'alugaram' a gente para ver este show! Uma palhaçada!”. (326) A canção que reuniu Odair e Caetano no palco do Anhembi foi aquela mesma que mereceu elogios de Dorival Caymmi e que Nara Leão usava como canção de ninar de seu filho Francisco: Vou tirar você desse lugar gravação que fora um grande sucesso em 1972. “Eu toquei a música no violão e o Caetano me acompanhou no vocal. Mas com aquilo tudo que aconteceu, ele cantava nervoso, porque o Caetano é muito sensível, né?”, diz Odair. “Foi uma vaia brutal” - , recorda Caetano Veloso. “Reação de um público elitista que rejeita a música consumida por gente tida como pobre e ignorante. É casa-grande e senzala.” (327) O curioso é que alguns dos artistas que naquela noite estavam na platéia também não pensaram boa coisa do inusitado dueto de Caetano com o seu colega da multinacional holandesa Phonogram. O compositor Jards Macalé, por exemplo, disse que aquilo só podia ter como objetivo "alargar o mercado para a rainha da Holanda". E o guitarrista Sergio Dias, dos Mutantes, classificou o dueto de “tropicalismo barato”. (328) Mas de que maneira Odair José reagiu a estas manifestações de ironia e de repúdio do público do Anhembi? Ele esperava a vaia ou ficou surpreso? “Eu não me preocupei com isso, quem se preocupou foi o Caetano. Acho que ele sentiu que o público vaiando a minha presença ali era uma ofensa a ele, porque aquele ali não era o meu público; era o dele. E Caetano ficou realmente muito zangado. Ele esbravejou algumas coisas lá para a platéia, não me lembro bem que palavras ele usou, jogou o microfone no chão e saiu do palco.” Em um tom ao mesmo tempo irônico e irritado, algumas das palavras que Caetano Veloso direcionou à platéia do Anhembi foram “não há nada

mais Z do que um público classe A”, e estão registradas no LP "Phono 73", conjunto de três discos que reúnem alguns dos momentos da série de shows da Phonogram. Mas a gravadora teve a preocupação de, na mixagem, retirar as vaias recebidas por Odair José e o desabafo de Caetano foi deslocado para um outro momento do disco, fora do contexto original. De qualquer forma, o vinil registrava ali a segunda reação de Caetano Veloso diante do público universitário em São Paulo. A primeira tinha sido em Setembro de 1968, quando ele rebateu as vaias recebidas durante a sua interpretação de É proibido proibi, na fase classificatória do III FIC, no teatro da Universidade Católica. Naquela noite, no meio de seu longo e irado discurso, Caetano esbravejou para a platéia estudantil: “Vocês são iguais sabe a quem? Aqueles que foram ao Roda viva e espancaram os atores. Vocês não diferem em nada deles!” (330) Agora, em 1973, o contexto era outro. Já devidamente assimilado por grande parte da esquerda após a prisão e o exílio em Londres, Caetano Veloso tinha naquele momento o público universitário ao seu lado. Mas a porção de intolerância deste público não havia se esgotado e foi toda direcionada a Odair José, que, em alguns aspectos, representava em 1973 o mesmo que Caetano Veloso em 1968: "alienação", "descompromisso", falta de contato com as "raízes" da nossa música etc. “No momento da vaia” ”recorda Odair José – “e logo depois que Caetano se retirou irritado do palco, o Nelson Motta e o Artur da Távola, que estavam trabalhando no show, disseram 'não saia daqui que Caetano já volta'. Sentado no banco eu fiquei. Aí eu peguei o violão e sozinho cantei Pare de tomar pílula''. É difícil precisar se Nelson Motta, Artur da Távola ou alguém da platéia do Anhembi perceberam naquele momento o significado mais amplo daquela cena estampada diante de seus olhos: o banquinho, o violão, Odair José e a canção Pare de tomar a pílula. Recorde-se que a composição incomodava o regime militar e, como já vimos no capítulo Reinado de terror e virtude deste trabalho, ela teria sua execução pública proibida e o autor passaria a enfrentar problemas com a Polícia Federal. Mas naquele momento da Phono 73, Pare de tomar a pílula também soava aos ouvidos do público da MPB como o que de mais abominável havia no repertório popular. O crítico José Fernandes chegou a classificar a música como “a pior coisa do mundo”.(331) E, segundo Odair José, o próprio Caetano Veloso sugerira que ele não cantasse aquela canção no show: “Realmente, a Pílula não estava no programa, mas quando eu vi aquele povo todo me

vaiando - uuuuuuuhhhhhhhhh! - eu falei: agora mato eles, e cantei a música. Já que naquele momento da Phono era para contestar, eu peguei o violão e cantei.” Este clima de contestação que envolveu a Phono 73 já havia se manifestado dois dias antes, quando Chico Buarque tentou apresentar a canção Cálice, feita em parceria com Gilberto Gil especialmente para a ocasião. Entretanto, como a letra da composição havia sido condenada pelos censores, Chico tendo ao seu lado no palco Gilberto Gil tentou apresentar a versão instrumental ou, até quem sabe, o refrão da música. Mas ao pronunciar a palavra "cálice" pela terceira vez enquanto Gil murmurava palavras de algum dialeto africano - , o microfone de Chico Buarque foi desligado e o público assistiu apenas ao movimento de seus lábios. Na tentativa de restabelecer o som, algumas pessoas próximas ao palco providenciaram 2, 3, 4, 5 novos microfones, que foram sucessivamente desligados. Vencido pela força do silêncio, Chico Buarque exclamou: “Isso não pode, não é? Então vamos ao que pode”, cantando raivosamente duas outras canções e arrematando sua apresentação com um sonoro palavrão - já com o microfone aberto. Este episódio envolvendo Chico Buarque e o que também envolveu o cantor Odair José, ambos na Phono 73, representam duas faces de um mesmo disco. Chico teve contra si o silêncio do microfone; Odair José, o barulho da platéia. Barulho e silêncio impedindo cada um dos artistas de mostrar o seu trabalho Ao cantar Cálice, Chico Buarque desafiava o autoritarismo do regime; ao cantar Pare de tomar a pílula, Odair José mirava o autoritarismo do público. E, neste embate, tanto o regime dos generais como o público do Anhembi revelavam-se autoritários e intolerantes com o compositor popular. Não sem razão, uma testemunha dos shows da Phono 73, o maestro Júlio Hungria, em sua coluna no Jornal do Brasil, destacou que a "retumbante vaia" recebida por Odair José mostrou o “fascismo do público", incapaz de perceber e aceitar que a realidade da música popular brasileira não comportava apenas nomes como Caetano Veloso ou Chico Buarque, mas também todo um outro vasto segmento representado por artistas populares do estilo do autor de Pare de tomar a pílula. (333) Esta ponderação do maestro Júlio Hungria era compartilhada por outro colunista de destaque naquele período, o jornalista e compositor Nelson

Motta, que sempre se manifestou de forma tolerante com o repertório "cafona". Como um fiel defensor do ideário tropicalista - movimento cultural que alguns definem como regido pela “estética da inclusão” (334) - , por mais de uma vez na época Nelsinho escreveu artigos com considerações simpáticas ao trabalho de artistas populares como Waldik Soriano, Agnaldo Timóteo e Odair José. Com este último, aliás, Nelson Motta não ficou apenas na simpatia; houve encontros, conversas e trabalhos que renderam até uma parceria musical: a balada Drama passional, composição gravada por Odair José em 1976: "Eu morro de medo se um dia eu te perder / eu morro de medo se uma noite não ter (sic) voce..." Constata-se, entretanto, que no livro “Noites tropicais” - no qual descreve sua participação nos últimos 30 anos da nossa música popular, Nelson Motta não revelou esta sua incursão pelo universo "cafona” - , fato que agora é recordado pelo parceiro Odair José: “Naquela época eu convivia muito com o Nelson Motta e um dia ele chegou lá em casa e disse: 'Odair, hoje eu vim aqui pra te pesquisar'. Ele pediu meus discos, botou pra rodar, sentou com as pernas cruzadas, naquela posição de Buda, e depois de ouvir os discos atentamente, falou: 'Você canta mal' Eu fiquei até meio surpreso, porque eu estava no auge do sucesso, com o ego lá em cima. 'Eu canto mesmo tão mal assim, Nelson?'. 'Você canta muito mal; divide mal, pronuncia mal, você é um cantor desafinado.' Ele me convenceu disto e me levou para tomar aula de canto com uma professora amiga dele. Aí eu fiquei um ano e meio estudando canto, o que foi muito útil para minha carreira. E foi neste período que a gente fez esta parceria.” Outra (quase) parceria envolveu Agnaldo Timóteo e o compositor Gonzaguinha, que naquela época eram contratados da mesma gravadora, a EMI-Odeon. Gonzaguinha não escondia uma certa admiração por Timóteo, uma pessoa que, segundo ele, “sabe segurar a barra de viver o permitido e o não permitido”.(335) A despeito das divergências ideológicas que os colocavam em campos apostos no debate político, os dois chegaram a desenvolver uma amizade marcada por troca de confidências. E, numa daquelas madrugadas, no fim dos anos 70, Gonzaguinha ouviu o amigo queixar-se dos desencontros de seu relacionamento com Paulo Cesar Souza, o Paulinho (para quem Timóteo compôs A bolsa do Posto Três.) O resultado da conversa foi a composição Grito de alerta, título sugerido pelo

próprio Agnaldo Timóteo: "Primeiro você me alucina / me entorta a cabeça / e me bota na boca / um gosto amargo de fel...” Gonzaguinha, entretanto, não deu exclusividade de gravação para o amigo, e Grito de alerta foi entregue também à cantora Maria Bethânia fato que provocou o ciúme de Timóteo: “Eu fiquei pau da vida com o Gonzaguinha, porque aquela história era minha, eu deveria ter sido até parceiro dele na música. Eu falei: 'Puta que pariu, Gonzaguinha, então eu te conto uma história da minha cama e você dá a música para Bethania gravar!?"' Gonzaguinha e Nelson Motta tiveram incursões, digamos, circunstanciais pelo universo "cafona". De uma forma muito mais intensa e duradoura, Raul Seixas também viveu esta experiência na fase inicial de sua carreira, quando era conhecido apenas como Raulzito.

Chegando ao Rio de Janeiro em fins de 1967, o cantor baiano não conseguiu obter nenhum sucesso com seu conjunto Raulzito e os Panteras. Mas, depois de passar fome por dois anos na Cidade Maravilhosa, Raul foi convidado por Evandro Ribeiro, então diretor da CBS, a ocupar uma das vagas de produtor naquela gravadora. E ali ele produziu ou abasteceu com suas canções, além do Jerry Adriani pós-j ovem guarda, vários cantores populares em fase inicial da carreira artística: Odair José, Diana, Marcio Greyck, Luiz Carlos Magno e outros. Embora seus biógrafos evitem realçar este fato - num livro de antologia de canções de Raul não se encontra nenhuma das mais de 80 desta safra (336) -, o "maluco beleza" não pode ser expulso da história da música popular "cafona". Antes de Paulo Coelho, o principal parceiro de Raul Seixas foi o tecladista (e atual produtor dos discos de Roberto Carlos) Mauro Motta, que agora recorda o seu encontro com o artista baiano: “Eu conheci Raulzito aqui no Rio, por volta de junho ou julho de 1968. Me lembro que era uma madrugada de muito frio e Raul estava dentro de uma kombi, ali na Praça do Pacificador, onde à noite costumava haver encontros de grupos de rock. Eu tocava num conjunto chamado Blue Jeans e ele no Raulzito e seus Panteras. Raul estava passando uma fome danada e eu também, duros pra caramba. E a gente ia tocar lá na praça pra ver se ganhava alguma coisa. E ficávamos ali de

madrugada tomando caracu com ovo e chorando as nossas tristezas, as nossas mágoas, as nossas amarguras.” Mas a parceria musical entre os dois só começou mesmo em 1970, quando Raulzito - agora sem os seus Panteras - , foi trabalhar na gravadora CBS. “Aí ficamos amigos demais”, recorda Mauro Mota. “Eu e Raul trabalhávamos juntos, morávamos juntos e dividimos as nossas coisas juntos durante muito tempo. Eu posso afiançar a você que eu fui naquela época o amigo de maior intimidade do Raul. Acho que ninguém conheceu tão bem o Raulzito como eu. E assim nós fomos criando nossas músicas. Uma delas, Foi você, que a gente compôs para o Roberto Carlos, mas que acabou sendo gravada pelo Marcio Greyk, sempre que eu encontrava Raul, ele me pedia: 'Mauro, vamos regravar esta música. Mostre ela de novo para o Roberto ou para algum cantor romântico desses aí.' Raul tinha razão: aquela nossa canção é realmente muito bonita, tem um tratamento melódico e harmônico lindo e uma linda letra que ele fez: "Foi voce / a causa, o meio e o fim / do nosso amor...” Sem qualquer referencia a sociedades alternativas, metamorfoses ambulantes ou discos voadores, a dupla Raulzito-Mauro Motta compôs, além de Foi você, várias outras baladas românticas, como Doce, doce amor, Estou completamente apaixonado, Hoje sonhei com você, Darling, Sheila, Um drink ou dois, Tarde demais e Ainda queima a esperança, um grande sucesso nacional na voz da cantora (e ex-esposa de Odair José) Diana: “Uma vela está queimando / hoje é nosso aniversário / está fazendo hoje um ano / que você me disse adeus ..” (337) Ao comentar esta sua fase numa entrevista ao Pasquim, o já então famoso Raul Seixas procurou minimizar possíveis implicações culturais ou estéticas do trabalho de Raulzito. “Eu fazia aquele negócio porque sabia que era uma coisa inconseqüente. Eu fazendo ou não, outra pessoa ia fazer. Eu estava fazendo o trabalho que o diretor da CBS queria, e enquanto isso aprendendo a usar aquele mecanismo.” (338) Mas na letra de uma das canções do LP Gita, gravação de 1974, o roqueiro baiano foi mais ousado e irreverente: “Raul Seixas e Raulzito sempre foram o mesmo homem / mas pra aprender o jogo dos ratos / transou com Deus e com o lobisomem...” (339)

Este duplo caminho também foi percorrido por outro ex-parceiro de Raul Seixas, o hoje famoso "mago" Paulo Coelho e recém-eleito imortal pela Academia Brasileira de Letras que terminou sua carreira de compositor como Raul começou a dele: fazendo canções de amor para os "cafonas". Sim, antes de popularizar a rota medieval de Santiago de Compostela e ser recebido por príncipes e reis de várias partes do mundo, Paulo Coelho tinha que se entender mesmo era com os cantores José Augusto, Fernando Mendes, Sidney Magal, Dudu França e Lilian, para quem ele criou diversos temas no fim dos anos 70 - período em que já não trabalhava exclusivamente com Raul Seixas. Compondo agora em parceria com os produtores Miguei Plopschi, Roberto Livi e Augusto Cesar, ou simplesmente fazendo versões, Paulo Coelho assinou uma vasta safra de baladas românticas, como indicam os próprios títulos de algumas delas: Meu amor Michelle, O amante, Dá-me fogo, Por dentro estou morrendo, Restos de amor e Meu primeiro amor, gravação de José Augusto em 1977: “Você me olhou de repente / fingiu que tinha esquecido / e com o sorriso sem graça / me apresentou ao seu marido...” Especialmente para o "cigano" Sidney Magal, que despontara para a fama com a gravação de Se te agarro com outro te mato , Paulo Coelho escreveu algumas letras que reforçaram a imagem de amante latino do cantor: "Sou boemio, sou sonhador / brasileiro no meu calor / e um amante sempre disposto a beijar teu rosto / e a fazer amor” (340) Outra de Paulo Coelho para Magal, diz: "O teu amor eu roubei / do homem que é teu marido / e tenho sempre dividido / o que você tem me dado.” (341) Indo um pouco além do tema estritamente amoroso, na balada Menina do subúrbio, gravação de Fernando Mendes, o ex-parceiro de Raul Seixas narra os sonhos, as fantasias e o cotidiano daquela que "finge que é importante / para as meninas lá da rua / e não vê que no subúrbio / a vida continua...” Mas o lado, digamos, social desta fase "cafona" do compositor Paulo Coelho aparece de forma mais explícita naquela balada que Lilian cantava na televisão com os olhos abatidos e a voz triste, emocionando milhões de

brasileiros em 1978; “Eu sou rebelde porque o mundo quis assim / porque nunca me trataram com amor / e as pessoas se fecharam para mim...” (342) *Paulo Coelho: rock cabeça no início dos anos 70 e música cafona no final da década Por este conjunto de canções assinadas por Paulo Coelho constata-se que o anarquista e contestador parceiro de Raul em rocks como Al Capone e Sociedade alternativa , procurou, talvez por sobrevivência, antes do caminho de Santiago, um caminho alternativo na música popular. E, neste caminho, ele permaneceu até a noite do dia 2 de janeiro de 1986. Foi quando, num ritual esotérico, no alto de uma montanha, ele afirma ter recebido de seu mestre uma espada de punho preto e vermelho, e que dali em diante estava autorizado a não mais “esconder aquilo do que era capaz, nem ocultar os prodígios que havia aprendido a realizar” porque, a partir daquele momento, revela Paulo Coelho, “eu era um mago”. (343) Bem, mas aí já é uma outra história.... NOTAS BIBLIOGRÁFICAS APENSAS AO CAPÍTULO (Pela numeração seqüencial encontrada no texto):

314. "Waldik Klabin ou Beki Soriano?" - O Cruzeiro, 17-5-1972. 315. "Beki Klabin pede passagem" - O Cruzeiro, 16-2-1972. 316. Waldik Soriano & Bernardino de Campos, op. cit., p. 112 317. Idem, p. 114 318. Idem, p. 115. 319. “Antes que eu me esqueça" - O Globo, 22-12-1971. 320. "À procura do bandido" - O Globo, 22-12-1971.

321. "Oitenta mil paulistas foram ver o Som Livre!' - Intervalo, Nº 429, março de 1971 322. Timóteo chorou ao ser vaiado no Som Livre - Intervalo, Nº 432, abril

de 1971. 323. "Vaia em Agnaldo Timóteo foi pilantragem” – ( Jornal do Chacrinha) - A Notícia, 16-4-1971. 324. Verso da balada Identificação. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 325. Conforme anúncio publicitário da Phonogram publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 13-5-1973. 326. "Ranzinza, sem imaginação o público deste festival” - Folha de S. Paulo, 15-5-1973. 327. “A Vida é um Show”TV Educativa - Rede Brasil, 17-5-2002 328. "Revelações da Phono 73: os melhores da música popular brasileira" Jornal da Tarde, 19-5-1973. 329. A fala de Caetano Veloso está registrada no LP "Phono 73 o canto de um povo Vol. 3 “ – Philips- P. 1973. 330. Neste trecho de seu discurso Caetano Veloso faz referencia à noite de 17 de Julho de 1968, quando no fim de mais uma encenação da peça Roda viva, no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, cerca de 20 militantes do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), armados de cassetetes e revólveres, invadiram o teatro, destruíram o cenário e espancaram os atores, dois dos quais, Marília Pera e Rodrigo Santiago, foram despidos e obrigados a sair para a rua. O discurso completo de Caetano Veloso está registrado no compacto “Ambiente de festival- É proibido proibir" - Philips – P. 1968. 331. Segundo informação da nota "Resolução" ( Jornal do Chacrinha) - A Noticza, 30-3-1973. 332. "Caetano: ”Nada mais Z do que a classe A” - Folha de S. Paulo, 15-51973. 333. "Phono 73 - Os espetáculos - Jornal do Brasil, 16-5-1973. 334. "Entre as muitas virtudes que o Tropicalismo apresentou, uma se destaca de modo singular: a capacidade de o movimento articular a estética da inclusão. Souberam seus artífices absorver de cada vertente musical dominante no mercado (ou presente na memória cultural) uma

características”. Ivo Lucchesi & Gilda Korff Dieguez . Caetano. Por que não?: uma viagem entre a aurora e a sombra. Rio de Janeiro: Leviatã, 1993, p. 28. 335. Frase de Gonzaguinha no texto de encarte do LP de Agnaldo Timóteo “Deixe-me viver”. - EMI-Odeon – P. 1979. 336. Na orelha do livro afirma-se que "esta antologia, há muito longo tempo esperada pelos seus fãs, colecionadores e pesquisadores surge, agora, para reunir e completar num só volume as letras musicais do grande compositor". Sylvio Passos & Toninho Buda. Raul Seixas -Uma antologia. São Paulo: Martin Claret, 1992. 337. Ainda queima a esperança aparece em 7° lugar na relação dos 50 discos mais vendidos no mês de dezembro de 1971. Fonte: Nopem pesquisa de mercado sobre venda de discos. 338. "Raul Seixas: o mito du-dia” - O Pasquim, 13 a 19-11-1973. 339. Verso de As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor. Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 340. Verso de Brasileiro no meu calor. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 341. Verso de O amante. Ver índice de canções citadas Fontes e bibliografia. 342. Verso de Sou rebelde. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 343. Paulo Coelho. O diário de um mago. 37a ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1990, pp. 14-15.

(UFANISMO E GUERRILHA NOS ANOS DE CHUMBO) “Aquilo soou como acinte para nós, os massacrados; parecia a versão musical do lema ‘Brasil: ame-o ou deixe-o’ da ditadura.” (Mylton Severiano)

Quando se associa ufanismo e governo Médici dois nomes são geralmente lembrados: Dom & Ravel. A dupla ficou marcada como o representante exemplar de artistas integrados à ideologia expressa pelo regime de 1964 e principal porta-voz, no campo musical, das realizações do governo no período do chamado "milagre econômico". Com pequenas variações, é sob este estigma que eles são citados em jornais, revistas e em algumas publicações de nossa música popular. O curioso é que a gravação que serviu para projetar esta imagem de Dom & Ravel, a marcha ”Eu te amo meu Brasil”, é uma composição apenas de Dom, que nem foi lançada pela dupla e, sim, pelo conjunto Os Incríveis, grupo de rock que despontara na época da jovem guarda. E a primeira audição pública da musica antes mesmo de ser gravada, ocorreu no programa da Hebe Camargo, na TV Record de São Paulo, em agosto de

1970. Os Incríveis participavam da tradicional conversa na "sala de visita" da apresentadora quando esta perguntou se eles tinham alguma surpresa para mostrar ao público. "Ah, Hebe, nós temos uma novidade" - anunciou um dos integrantes do grupo – "uma novidade de uma música que nós vamos gravar, mas é pro povo brasileiro todinho, acontece que nós vamos gravar com uma fanfarra, uma fanfarra de colégio mesmo, uma música que fala do Brasil, que fala dos brasileiros", acrescentando que "a música é muito bacana, muito comercial e diz muito sobre o Brasil atualmente".(344) E Os Incríveis cantaram: AS PRAIAS DO BRSIL ENSOLARDAS O CHÃO ONDE O PAÍS SE ELEVOU A MÃO DE DEUS ABENÇOOU MULHER QUE NASCE AQUI TEM MUITO MAIS AMOR

AS TARDES DO BRASIL SÃO MAIS DOURADAS MULATAS BROTAM CHEIAS DE CALOR A MÃO DE DEUS ABENÇOOU EU VOU FICAR AQUI PORQUE EXISTE AMOR EU TE AMO, MEU BRASIL, EU TE AMO MEU CORAÇÃO É VERDE, AMARELO, BRANCO E AZUL ANIL EU TE AMO, MEU BRASIL, EU TE AMO NINGUÉM SEGURA A JUVENTUDE DO BRASIL... Segundo Dom, esta marchinha, que retrata o Brasil como um paraíso erótico-tropical, foi composta por ele numa manhã de setembro de 1969, quando estava em companhia de seu irmão chupando laranjas e tangerinas na cozinha do pequeno apartamento onde eles moravam, no Centro de São Paulo: "Era mais ou menos entre dez e onze horas da manhã. Recordo que eu tinha dormido muito pouco na noite anterior e estava bastante influenciado por esse tema. De repente, de uma forma inusitada, eu recebi essa música, e ela me veio à mente praticamente completa. Não precisei nem pegar o violão e a caneta. A letra e a melodia surgiram juntas. Depois é que eu peguei o violão e fui cantar e escrever o que já estava na minha cabeça."”Eu te amo meu Brasil” permaneceu engavetada durante quase um ano, período no qual Dom e Ravel ainda não

haviam se firmado como cantores, mas a composição acabou chegando às mãos do conjunto Os Incriveis, que na época desfrutava de grande popularidade e preparava repertório para um novo disco. Gravada pelo grupo em outubro de 1970, ou seja, ainda em meio à euforia coletiva pela conquista da Copa do Mundo do México, a marcha, em estilo de fanfarra juvenil, encontrou um terreno fértil para se transformar num dos grandes sucessos daquele ano e, ao mesmo tempo, tornar-se uma das músicas mais rejeitados por aqueles que faziam oposição ao regime militar. De fato, a composição traz implícita a ideologia do nacionalismo ufanista, característico dos regimes autoritários, mas ao recordar o tema Dom afirma que ele é resultado de influências da época, do que estava vendo e ouvindo nas rádios, nas propagandas e nas ruas. "Eu apenas estava entusiasmado com o fato de eu ser brasileiro; com o fato da Maria Ester Bueno ter sido campeã do tênis, do Éder Jofre ter sido campeão mundial do peso galo, enfim, estava entusiasmado com o fato de o Brasil ser um país vitorioso naquela época. Embora nas mãos dos militares, coincidentemente o Brasil estava vencendo em todas as frentes. Era o país que tinha os maiores índices de desenvolvimento do mundo. Eu me lembro que havia realmente um orgulho das pessoas de ser brasileiras. E eu apenas captei isso; registrei numa canção esse entusiasmo que estava presente em todos os corações, em todos os olhares, em todas as almas, em todo o sentimento de todo brasileiro, do pequeno ao grande. Era uma marca da época. E eu fui de roldão envolvido nisso também." Esse clima de triunfalismo cívico-patriótico descrito por Dom tem traços de exagero, afinal, não era todo brasileiro que compartilhava dele; mas, em essência, a descrição que ele faz do fenômeno é correta e uma consulta a alguns jornais e revistas da época comprova isso. Em reportagem publicada em Setembro de 1970 - portanto, um pouco antes do sucesso de “Eu te amo meu Brasil” - , a revista Realidade já constatava que uma onda ufanista cobria o país de norte a sul. “Dísticos, bandeiras, músicas, cartazes convocam o povo; é hora de alfabetizar, hora de pagar impostos, tempo de trabalhar, tempo de

lutar com todas as forças pelo desenvolvimento” e que havia “uma profusão de verde e amarelo por toda parte: bandeiras nas janelas das casas e apartamentos, escudos nos vidros dos automóveis, fitas nas vitrinas e até uma ligeira incursão Pela moda, com saias verdes e blusas amarelas.” (345) O respaldo com o qual o regime militar contava na época está expresso também nas páginas de opinião de alguns dos principais órgãos de imprensa do país: as revistas Manchete, O Cruzeiro, Visão e jornais como O Globo, O Dia e, principalmente, a Folha de S. Paulo, que em editorial publicado no dia seguinte ao feriado de 7 de Setembro de 1971 defendia que “poucas vezes em sua história teve o Brasil ocasião de comemorar o Dia da Pátria com tantas e tão fundadas razões de otimismo quanto este ano. Não foi por outra causa que o Sete de Setembro em todo o País teve a assinalá-lo intensa vibração cívica e autêntica participação popular. Mais do que um passado glorioso, movia os brasileiros ao entusiasmo um presente promissor, que antecipa um futuro no qual se pode decididamente acreditar...” E num tom oficialesco e de culto à personalidade que, talvez, nem as agências de propaganda do governo ousassem carregar tanto, o mesmo editorial afirma que “não é exagero dizer que a criação desse clima de franca e otimista certeza de que estamos no bom caminho foi extremamente favorecida pela presença do presidente Médici na chefia do governo. Os brasileiros, em suma, identificam-se com seu Presidente, com a autoridade que dele emana, na serena energia de seus gestos, na inabalável determinação com que procura promover o desenvolvimento com justiça social.” (346) Editoriais como este da Folha de S. Paulo expressavam o entusiasmo dos setores médios e dominantes dos centros urbanos do país com o chamado "milagre econômico", e para melhor entender isto recorde-se que ao longo daquele período - que compreende a maior parte do governo Médici - o país crescia a uma média de l0% ao ano (taxa considerada altíssima mesmo para países ricos), com o acelerado desenvolvimento de um vasto parque industrial. A dinâmica deste processo era a indústria de bens de consumo duráveis (automóveis, eletrodomésticos e construção civil) que atendia especialmente às camadas de alta renda da população, as principais beneficiárias do "milagre". Como "consumidores preferenciais", (347) os estratos de alta renda adquiriam automóveis, geladeiras, TVs em cores e outros bens de luxo - consumo também estendido à classe média a partir da

criação dos consórcios e de um moderno sistema de crédito. O ramo da construção civil também se expandiu de forma acentuada, e na maioria das grandes e médias cidades surgiram novos e luxuosos edifícios, viadutos e estádios de futebol. Com a entrada maciça de capital estrangeiro (a nossa dívida externa subiu de 3,9 bilhões de dólares em 1968 para 12,5 bilhões em 1973) o governo pôde também investir nos setores infra-estruturais (rodovias, telecomunicações, hidrelétricas), financiando grandes obras como a Ponte Rio-Niterói, a Rodovia Transamazônica, a Ferrovia do Aço, a Hidrelétrica de Itaipu, que ocupavam farta mão-de-obra. Tudo isso, afiado à euforia pela conquista do Campeonato mundial de futebol no México, contribuiu para o despertar do nacionalismo ufanista que mobilizou grande parte da sociedade brasileira durante o governo Médici e que se expressava em slogans como "Ninguém segura este país". Reforçado por intensa propaganda governamental, acreditava-se que o Brasil tinha se transformado numa grande potência e que havia ingressado numa era de progresso e desenvolvimento irreversíveis. O universo da música popular não poderia ficar indiferente a isso e, em grande parte, também reagiu de modo otimista em relação ao país naquele período. Diversos compositores, das mais variadas tendências da nossa música, produziram mensagens que, em maior ou menor grau, se harmonizavam com a atmosfera desejada pela propaganda oficial do regime. E o primeiro grande sucesso musical daquela época a expressar uma certa alegria coletiva com a nação brasileira foi o samba “Pais tropical, composição de Jorge Benjor lançada pelo cantor Wilson Simonal em 1969: MORO NUM PAÍS TROPICAL ABENÇOADO POR DEUS E BONITO POR NATUREZA EM FEVEREIRO TEM CARNAVAL TENHO UM FUSCA E UM VIOLÃO SOU FLAMENGO E TENHO UMA NEGA CHAMADA TERESA... Intérprete de um estilo na época chamado de "pilantragem” (espécie de malandragem dos tempos modernos), o cantor Wilson Simonal alcançou o auge do sucesso com o samba País tropical, gravação que gerou polemica e foi combatida por quase toda a esquerda brasileira. Ao justificar este fato, Nelson Motta afirma que “no momento mais feroz da ditadura, em pleno terror, com tantas prisões e torturas, sob a mais

truculenta censura, não se podia nem devia cantar o Brasil dos militares daquele jeito, com aquele amor ufanista”. O curioso é que o autor da composição conseguiu se livrar das patrulhas porque, segundo o mesmo Nelson Motta, “Jorge Ben, como sempre, ficou na dele.”(348) Pode ser, mas no rastro do sucesso de sua composição várias outras mensagens musicais ufanistas foram lançadas no mercado, e uma delas é aquela assinada por Dom, que admite: “Eu me influenciei em País tropical para fazer Eu te amo meu Brasil.” Embora o samba de Jorge Benjor, principalmente em sua versão tropicalista, tenha ficado associado ao país-nação do prazer, enquanto a canção de Dom, na gravação dos Incríveis, totalmente identificada ao paíspátria do dever, em ambas as músicas está a exaltação ao prazer, à mulata, ao carnaval e à natureza exuberante de um país tropical "abençoado por Deus" ou que "Deus abençoou". Discurso que, de resto, está presente nos sambas-exaltação do período do Estado Novo: “Brasil / és no teu berço dourado / um índio civilizado / e abençoado por Deus...” ;(349) na lírica apologética de românticos como Casimiro de Abreu: “Debaixo de um céu de anil / encontrareis o gigante / Santa Cruz, hoje Brasil"; (350) e em todos os manuais ufanistas desde pelo menos 1901, quando o conde de Affonso Celso publicou Por que me ufano do meu país. (351) Mas Pais tropical e Eu te amo meu Brasil trazem também as marcas de seu tempo, e na composição de Jorge Benjor isto se evidencia na referência ao fusca, automóvel que, com a expansão do crédito ao consumidor a partir de 1969, tornou-se um dos símbolos do "milagre". Aliás, o mesmo Jorge Benjor voltaria a saudar este modelo econômico num outro samba adesista, pra lá de ufanista, intitulado Brasil, eu fico, composição de 1970 que, como o próprio título indica, é uma resposta entusiástica ao radical slogan do governo Médici “Brasil: ame-o ou deixeo”: ESTE É O MEU BRASIL CHEIO DE RIQUEZAS MIL ESTE É O MEU BRASIL FUTURO E PROGRESSO DO ANO DOIS MIL QUEM NÃO GOSTAR E FOR DO CONTRA QUE VÁ PRA... É surpreendente esta composição de Benjor, tanto por seu teor agressivo que destoa das demais canções do autor, um contumaz evocador de flores,

anjos e santos - , como também pelo fato de naquele momento companheiros seus como Caetano Veloso e Gilberto Gil estarem vivendo um forçado exílio no exterior, o que os impedia, mesmo que quisessem, de afirmar "Brasil, eu fico" - frase que também aparecia em adesivos colados em muitos automóveis na época. O certo é que não foram apenas Jorge Ben ou Dom & Ravel que produziram ou interpretaram canções de cunho apologético naquele período. Nesta mesma trilha aparece o grupo Os Originais do Samba com uma gravação que diz: “Eu sou fã dessa terra varonil / se quiser ficar, fique direito / ame ou deixe o meu Brasil...” (352) Este popular slogan - na verdade uma versão do original americano Love it or Leave it - também recebeu apoio entusiástico dos sambistas Jorginho do Império e Pedrinho Rodrigues, que na época gravaram uma série de discos de capas verdeamarela com os agressivos títulos: “Brasil... sambe ou se mande” e “ Brasil...quem quiser pode ir”. (353) É importante destacar que depois de Getúlio Vargas, que governou o Brasil durante 19 anos, o general Emílio Garrastazu Médici foi o presidente da República mais respaldado pela música popular brasileira. Apesar de Chico Buarque, seu notório opositor do campo musical, Médici recebeu manifestações de afago e incentivo de vários outros cantores populares. “Aqui está um velho seresteiro que vem abraçar o Presidente, que está hoje com uma popularidade imensa”, disse o cantor Silvio Caldas ao ser recebido em Brasília pelo general Médici, que ainda ouviu mais elogios. “O senhor está integrado perfeitamente com o povo, pela sua obra, pelas suas atitudes, pelo homem que o senhor é”, concluiu Silvio Caldas.(354) Outro exemplo de incentivo ao general está numa faixa gravada pelo conjunto de Waldeck de Carvalho em 1971: “Sr. Presidente, tenha paciência / Vossa Excelência sabe o que faz / a nossa terra será grande potência / o nosso nome já virou cartaz...”(355) O cantor Roberto Silva - considerado um dos grandes intérpretes da história da música popular brasileira - também expressou seu apoio ao presidente Médici através de um samba-manifesto endereçado especialmente àquele segmento da MPB que cantava mensagens contra o governo. Gravado com peculiar bossa e manemolência, o samba Protesto ao protesto deu título ao LP de Roberto Silva em 1970: “Hoje em dia falam tanto de

protesto / lanço aqui meu manifesto / já é hora de parar / vamos ajudar o Presidente / a enfrentar firme o batente / para o Brasil melhorar...” O bloco Cacique de Ramos, berço de sambistas como Jorge Aragão, Arlindo Cruz e do grupo Fundo de Quintal, parece ter ouvido o apelo do cantor Roberto Silva, porque, ao se aproximar o carnaval de 1972, gravou um entusiástico respaldo ao slogan “Ontem, Hoje, Sempre: Brasil”, campanha lançada pelo presidente Médici em Setembro de 1971: “Sempre Brasil, só Brasil / canto sem medo de errar / e bem disse o Presidente / é dever de toda gente participar...”(356)

Mesmo os irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, que na década de 60 compuseram canções de crítica social como Terra de ninguém e Viola enluarada, após a Copa do Mundo de 1970 apareceram com a marcha exaltativa Sou tri-campeão”: “hoje / igual a todo o brasileiro / vou passar o dia inteiro / entre faixas e bandeiras coloridas...” e com o samba Flamengo

até morrer, que em um de seus versos diz: “Que sorte eu ter nascido no Brasil / até o Presidente é Flamengo até morrer / e olha que ele é o Presidente do país”, enfatizando o fato de o presidente Médici cultivar a imagem de amante do futebol e aparecer nas tribunas do Maracanã com radinho de pilha ao ouvido torcendo para o mais popular clube brasileiro. Como observou o escritor Edilberto Coutinho, “creio que devemos dar razão a quem achou a letra dos Valle meio patrioteira”. (357) E o que dizer do sambista Zé Kéti? Ele, que nos primeiros anos do regime militar teve o seu samba Opinião transformado em hino da resistência, em 1972 parece ter mudado de opinião, porque gravou uma marcha em homenagem ao Sesquicentenário da Independência e estampou a foto do presidente Médici na capa do disco. Na época Zé Kéti dizia que a composição Sua Excelência, a Independência “é tão boa que vou recomendá-la ao ministro da Educação para ser cantada também nas escolas”. (358) Este apoio e o entusiasmo com o país governado pelos generais também foi expresso pelo cantor e compositor Luiz Vieira, autor de Transarnazônica, que exalta: “Pais, meu país / tão grande e capaz... na estrada que é o rumo / da integração.” Outro caso de adesão foi protagonizado pelo sambista João Nogueira, que se empolgou com a decisão do governo Médici de estender de 12 para 200 milhas o limite do mar territorial brasileiro. O decreto presidencial, assinado em Junho de 1971, determinava que nenhum barco de pesca estrangeiro podia avançar aquele limite, sob pena de ser apreendido pela Marinha do Brasil. Entretanto, o governo dos Estados Unidos não aceitou a medida e autorizou todos os seus pesqueiros a não respeitar senão a antiga faixa de 12 milhas, alegando que a decisão do Brasil contrariava o Direito Internacional. (359) A contestação norte-americana provocou manchetes sensacionalistas na imprensa brasileira - “EUA vão entrar no peito em nossas águas” (360) e forçou o governo Médici a mobilizar aviões da FAB e uma força-tarefa da Marinha, composta de um cruzador, sete contratorpedeiros e dois submarinos, para proteger o litoral brasileiro. Talvez tomado pelo mesmo delírio que anos mais tarde levaria os militares argentinos à tragédia das Malvinas, o almirante Adalberto de Barros Nunes, ministro da Marinha, justificou a mobilização de guerra sob argumento de que o decreto das 200 milhas “é uma lei do povo e, como tal, todo

sacrifício para fazê-la cumprir é pouco”, advertindo ainda que “o Brasil entrou em duas guerras mundiais e não desejamos a terceira” mas “o que é nosso não vamos entregar a ninguém” (361) Pois foi em meio a este clima que João Nogueira compôs Das duzentas para lá” - "esse mar é meu / leva seu barco pra lá desse mar / esse mar é meu..." - , samba que alcançou enorme popularidade, reafirmando, em 1972, a mitologia verde-amarela: "E o barquinho vai com nome de caboclinha / vai puxando a sua rede / dá vontade de cantar / tem rede amarela e verde / do verde azul desse mar..." O vendaval ufanista do período do governo Médici arrastou mais artistas da MPB que transitavam pelos círculos da esquerda. Que o diga o cantor Ivan Lins, que no V Festival Internacional da Canção, em 1970, para surpresa do público universitário, apareceu com a composição O amor é o meu país. Uma testemunha daquele festival, o jornalista Mylton Severiano, recorda-se ainda hoje da primeira audição da música de Ivan: “Aquilo soou como acinte para nós, os massacrados; parecia a versão musical do lema 'Brasil: ame-o ou deixe-o' da ditadura.” (362 A oposição protestava mas as adesões se ampliavam. O conjunto Os Três Morais, grupo vocal que despontou no início dos anos 60 no programa O Fino da Bossa e que acompanhou Chico Buarque na gravação de Noite dos mascarados (marcha-rancho incluída no segundo LP do cantor), também harmonizou suas vozes com as mensagens da propaganda oficial do regime. Em 1973 eles gravaram as marchas Amor e paz - "não adianta querer lastimar / melhor é poder colaborar...”- e O Brasil merece o nosso amor, versão musical do slogan homônimo lançado pelo presidente Médici em agosto daquele ano: “Pra frente, com decisão / iremos com união / paz com trabalho e dedicação / mostrando com orgulho todo o nosso valor / o Brasil merece o nosso amor...” Outro famoso slogan cívico-patriótico do governo Médici foi incorporado em 1972 pelo compositor carioca João Roberto Kelly. Autor de algumas das mais populares marchas carnavalescas – Cabeleira do Zezé, Mulata iê iê iê, Rancho da praça Onze - , o compositor utiliza este mesmo ritmo em Você constrói o Brasil , faixa gravada pela cantora Emilinha Borba, a "favorita da Marinha", mas que também deve ter agradado a todos do Exército e da Aeronáutica: “Pisando firme, numa terra firme / sem guerra e sem nada que aborreça... / você constrói o Brasil / e vai construir muito mais / tudo está virando jóia / jóia de

amor e de paz...” Este sentimento de ufania e de otimismo com o país era intensificado pela propagada idéia de que existiria congraçamento racial e social no Brasil tópico defendido pelos ideólogos do regime militar. Em maio de 1972, por exemplo, num ato público comemorativo aos 84 anos de assinatura da Lei Áurea, o presidente do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Aureliano Leite, discursou que apesar da existência da casa-grande e da senzala “sejamos gratos aos nossos destinos, que nos pouparam de males piores” porque, segundo ele, “a escravatura não impediu que o Brasil conseguisse penetrar na era atual de franco progresso, sem profundos desníveis, nem os entraves dos complexos raciais”.(363) Surpreendentemente, esta idéia também foi respaldada naquela época pela cantora (e mais tarde militante do movimento negro), a compositora Leci Brandão, autora do samba Nada sei de preconceito, que exalta: “Minha terra é verde-amarela / e meu amigo branco é meu irmão / ele é do asfalto e eu sou da favela / mas existe a integração...” Do universo do samba para o da canção sertaneja o discurso é praticamente o mesmo. A dupla Léo Canhoto & Robertinho, uma das precursoras no uso de instrumentos elétricos na música de origem caipira, lançou em 1971 a marcha Minha Pátria Amada, composição que em cinco estrofes define alguns dos principais mitos já construídos ao longo do tempo sobre a nacionalidade brasileira: país da democracia racial ("aqui os negros e os brancos se entendem / sem preconceito nem de raça e nem de cor..."); do homem cordial ("o brasileiro sempre foi muito gentil/ quem nasce aqui tem mais bondade e mais amor..."); da convivência harmoniosa (“nós trabalhamos semeando em nossa terra / ordem e progresso / liberdade, paz e amor..."); da história incruenta ("aqui, seu moço, não existe a tal de guerra / nosso caminho é enfeitado de flor..."); e do paraíso tropical ("Brasil querido / tua beleza não se encerra / tu és a terra prometida por Deus"). Os exemplos de canções ufanistas produzidas naquela época são vários, não havendo necessidade de citá-los todos ainda assim, alguns outros títulos representativos, com destaque para a produção do compositor Miguel Gustavo, serão apresentados no capítulo No pais dos mortos-vivos. Por hora, basta dizer que não foi por mera coincidência que exatamente no

inicio do período do "Milagre" (1969/70), diversos cantores brasileiros resolveram regravar a ufanista Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. O famoso samba-exaltação lançado por Francisco Alves em 1939 e principal trilha sonora da ditadura do Estado Novo - , ressurgia exatos 30 anos depois em outra ditadura, a militar, e em gravações quase simultâneas nos discos de Elis Regina, Tom Jobim, Agostinho dos Santos, Erasmo Carlos, conjunto Os Incríveis e outros. (364) Portanto, a marcha Eu te amo meu Brasil é apenas mais uma entre diversas outras composições que naquele momento expressavam um certo otimismo com o país. Como observou Dom, isto era uma marca da época. Mas, esquecendo-se deste fato, em seu livro de memórias Nelson Motta afirma que com esta “marchinha ufanista e oportunista” Dom e Ravel “foram execrados e banidos pelo mundo musical brasileiro por alta traição’. (365) É o caso de se perguntar; quem, do "mundo musical brasileiro", atirou a primeira pedra? Como se viu, vários cantores/compositores da nossa música também deram a sua contribuição ao clima ufanista do período do governo Médici. Para estes artistas, como para grande parte da população brasileira, o ufanismo era algo natural e legítimo naquele momento. Este fato demonstra até que ponto a ideologia do "Brasil Grande" foi sendo paulatinamente inferiorizada por diversos cantores populares, sem que eles, muitas vezes, se dessem conta de sua significação política. Impulsionados pela repercussão de Eu te amo meu Brasil, em fins de 1970, Dom & Ravel retomam com todo o vigor a carreira de cantores, passando a se apresentar em programas de televisão e em shows por todo o país. Consolidando o sucesso, em março do ano seguinte foi gravado o primeiro LP da dupla, e uma das faixas de maior destaque é a balada Só o amor constrói, mensagem de união e fraternidade que, mesmo não sendo ufanista, está acompanhada de signos identificados com a ideologia expressa pelo regime militar. Na contracapa do disco, sugestivamente intitulado "Terra Boa", Dom e Ravel aparecem ao lado de operários num canteiro de obras - imagem que enfatiza a idéia de progresso e de construção de um novo país. Acrescentese ainda que os versos de Só o amor constrói subliminarmente faziam referência àqueles que, em radical oposição ao sistema político-econômico dominante no Brasil, optaram pelo caminho da luta armada na certeza de

que quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Apostando no isolamento político do governo Médici e movidos pela máxima dos guerrilheiros cubanos segundo a qual "o dever do revolucionário é fazer revolução", as organizações clandestinas de esquerda abrangiam, além do PC do B - que lutava no Araguaia - , grupos como a ALN (Ação Libertadora Nacional, do ex-deputado Carlos Marighella), a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária, do ex-capitão do Exército Carlos Lamarca) e o MR8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro, referência à data da morte de Ernesto Che Guevara). E cada um deles pautava a maioria de suas ações de acordo com o manual da guerrilha urbana: atentados a bomba e armas de fogo, seqüestros de aviões e de diplomatas e assaltos a bancos e a carros blindados. Testemunha de um desses episódios - o que envolveu o seqüestro de um avião da Varig que fazia a rota Buenos Aires-Porto Alegre - , o comandante da aeronave, Geraldo Werner Knippoling, descreveu no dia seguinte a ação e o perfil de um dos seqüestradores: “Mais ou menos depois de uma hora de vôo de Buenos Aires, depois do almoço, bateram violentamente na cabine, abriram a porta e entrou um rapazola, pálido, trêmulo, com cara de aloprado, extremamente nervoso, empunhando uma colt.” (366) Movidos pelo idealismo de transformar o Brasil em um país socialista, sem explorados nem exploradores, os militantes da esquerda revolucionária, em sua maioria jovens entre 20 e 25 anos, desafiavam o Estado ditatorial, que prontamente respondia com prisões, torturas e mortes que marcaram aquele período como os "anos de chumbo". A mais espetacular ação da guerrilha foi o seqüestro do embaixador dos Estados Unidos Charles Burke Elbrick, em Setembro de 1969, no Rio. O diplomata estava a caminho da embaixada quando foi surpreendido pela ação dos guerrilheiros. “O sequestro se deu muito rapidamente”, afirma Fernando Gabeira, um dos participantes do episódio. “O motorista do embaixador não chegou a perceber tudo. O que ele viu foi um carro barrando sua passagem na rua Marques. Ele parou e já apontavam uma pistola contra sua cabeça, enquanto dois homens entravam no banco de trás e dominavam o embaixador.” (367) Consta que naquela noite, ao ser informado do fato, o presidente norteamericano Richard Nixon perguntou a Willian Rogers, seu secretário de Estado: “Rogers, que merda é essa?” (363)

O espanto de Nixon tinha razão de ser porque aquele foi o primeiro seqüestro de um embaixador norte-americano no mundo. A ação foi executada por duas organizações guerrilheiras, o MR-8 e a ALN, que exigiram dos militares a libertação de quinze presos políticos e a divulgação de um manifesto revolucionário nos principais veículos de comunicação do país. Pressionado pelo próprio Richard Nixon - que queria seu embaixador de volta são e salvo - , em 48 horas o governo entregou os quinze militantes presos (entre os quais Vladimir Palmeira, José Dirceu e Gregório Bezerra), embarcando-os num avião para o exílio no México. Horas antes, a população acompanhara pelo rádio e TV a leitura do manifesto dos guerrilheiros, que em um dos trechos dizia: “Este ato não é um episódio isolado. Ele se soma aos inúmeros atos revolucionários já levados a cabo, como assaltos a bancos, onde se arrecadam fundos para a revolução, tomando de volta o que os banqueiros tomam do povo e de seus empregados”. (369) Esta bem-sucedida ação dos guerrilheiros brasileiros estimulou outras operações do gênero. Em março de 1970 militantes da VPR seqüestraram em São Paulo o cônsul japonês Nobuo Okuchi também trocando-o por presos políticos; três meses depois uma ação conjunta da ALN e da VPR seqüestrou no Rio o embaixador da Alemanha Ocidental, Ehrenfried von Holleben; e em dezembro foi a vez do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher cair nas mãos do grupo de Carlos Lamarca, que no ato matou o guarda-costas do diplomata. “Será que vale a pena entrar nessa, com vinte anos? Arriscar a vida por uma causa política? Você realmente está convencido de que pode mudar as coisas?”, perguntou o embaixador suíço a um de seus seqüestradores, o estudante Alfredo Syrkis. (370)

Indiferentes a essas questões, as forças militares se uniram no combate sem trégua e sem regra às organizações de esquerda. Em junho de 1969 foi instituída em São Paulo a chamada Operação Bandeirantes OBAN, órgão centralizados das atividades anti-guerrilha e que contava com o apoio financeiro de grandes empresas brasileiras e multinacionais. Inicialmente de caráter extralegal, no ano seguinte a OBAN foi oficializada pelo governo Médici sob a denominação de DOI/CODI. (371) A partir daí a execução de presos políticos tornou-se uma prática sistemática no país, dispensando-se a pena de morte por sentença nos

tribunais. Em consequência, crescia o número de "desaparecidos' ou de mortos em fictícios tiroteios com a polícia. Um caso exemplar foi o que envolveu o militante da ALN Eduardo Leite, o Bacuri, que comandou o seqüestro do embaixador alemão Von Holleben. Preso no Rio, em agosto de 1970, pela equipe do violento delegado Sérgio Paranhos Fleury, o guerrilheiro foi interrogado e torturado, mas nada falou. Transferido para São Paulo, as sevícias continuaram pelas mãos do próprio Fleury, que também nada conseguiu arrancar do guerrilheiro. Mas o preço que Bacuri pagou foi muito alto. Seu corpo chegou ao necrotério totalmente desfigurado: os olhos vazados, as orelhas decepadas, as costelas partidas, as pernas fraturadas, a genitália queimada e os dentes arrancados ou quebrados. Fleury plantou na imprensa a versão de que Bacuri morrera numa troca de tiros com a polícia no litoral de São Paulo - versão estampada na primeira página do jornal Folha da Tarde, com o título: “Terror: metralhado e morto outro facínora”. (372) Foi por essas e outras que caminhonetes do Grupo Folha cujo proprietário, Octavio Frias de Oliveira, era um dos financiadores da OBA - sofreram ataques de grupos guerrilheiros no inicio dos anos 70. A violência da esquerda armada - que não foi vítima passiva da repressão atingia níveis mais altos na prática daquilo que ela mesma denominava de "justiçamento": a execução capital do inimigo ou companheiro acusado de traição. Em Fevereiro de 1973, por exemplo, Otávio Gonçalves Moreira Júnior, jovem delegado do DOPS paulista e voluntário da OBAN, foi fuzilado por guerrilheiros numa esquina de Copacabana, quando voltava de um jogo de volei na praia. “Caçador maldito, devia esperar que um dia fosse o da caça. A direita está no seu papel ao lhe tributar homenagens. A esquerda não tem por que lamentá-lo”, diz o historiador e ex-militante do PCBR Jacob Gorender. (373) Outro ato de "justiçamento" envolveu o ex-capitão do Exército Carlos Lamarca. Atuando numa região do Vale do Ribeira, em abril de 1970 ele e mais quatro militantes da VPR simularam um "tribunal revolucionário" e decidiram que o tenente Alberto Mendes Júnior, preso em poder do grupo, deveria morrer. Sentença decretada, um guerrilheiro posicionou-se por detrás do tenente e desferiu-lhe um violentíssimo golpe de fuzil na nuca. O tenente caiu com a base do crânio partida e, enquanto se debatia no chão, outras coronhadas

esfacelaram sua cabeça. Esta inusitada forma de execução foi justificada com o fato de que tiros poderiam despertar a atenção de patrulhas próximas ao local. O episódio aumentou ainda mais a revolta dos militares contra o "desertor" Carlos Lamarca. Talvez por um erro de avaliação, naquele mesmo ano, em manifesto enviado pelo correio a vários oficiais do Exército, Lamarca conclamava seus ex-companheiros de farda a formar com ele "um exército do povo", empenhado na luta para que "as fábricas sejam dirigidas pelos próprios operários". (374) A utopia revolucionária esteve muito longe de ser realizada no Brasil. O processo de destruição do movimento de guerrilha foi veloz e se deu tanto pela fragilidade das organizações, já divididas em vários grupos, como pela eficiência crescente da repressão - que contava com flagrante superioridade numérica e tecnológica. Um a um, foram caindo todos os aparelhos clandestinos e assassinados os principais líderes guerrilheiros. Tentando romper o cerco imposto pelo Exército, em Setembro de 1971 Lamarca e seu companheiro José Campos Barreto, o Zequinha, ziguezaguearam cerca de 300 quilômetros pelo sertão da Bahia. Na tarde do dia 17, uma sexta-feira de sol escaldante, eles repousavam famintos e fatigados à sombra de uma baraúna quando foram metralhados pela tropa comandada pelo major Nilton Cerqueira, chefe do DOI-CODI de Salvador. Outra grande baixa para a esquerda armada foi a do fundador da ALN, o veterano guerrilheiro Carlos Marighella - o homem mais procurado do Brasil - vítima de uma emboscada policial em São Paulo, na noite de 4 de novembro de 1969. “Dos quatro tiros que mataram Marighella, um era meu”, gabava-se o delegado Fleury. (375) Lançada no auge desta luta, a canção Só o amor constrói é um reflexo de tudo isto, como destaca o proprio Dom em seu depoimento: “Eu via gente comentando que muitas pessoas tinham sido assassinadas, tanto de um lado quanto do outro: gente da esquerda matando; gente da direita torturando, aquela confusão toda, um lado querendo destruir o outro. E então, imbuído por aquele sonho de ver os interesses divergentes conciliados, eu fiz 'só o amor constrói / por favor, plante uma flor / pra florir nosso país..’” Por seu conteúdo textual lírico-humanitarista constata-se que a composição de Dom é resultado também da influência do movimento flower power, que

naquela época se expressava no slogan "faça amor, não faça guerra" e em várias canções de sucesso internacional como, por exemplo, Aquarius e Let The Sunshine (do musical Hair) e Give Peace a Chance e Imagine, ambas de John Lennon. Mas enquanto as mensagens pacifistas cantadas em inglês eram motivadas pela Guerra do Vietnã que naquele momento ocupava o centro do debate mundial - , as canções de Dom & Ravel refletiam a "guerra suja" e silenciosa travada no interior do nosso próprio país. Como ilustra outra gravação da dupla, Glória aos jovens, que na primeira parte da letra diz: “Apesar da fome e da guerra / nossa gente sente amor / é a salvação da terra / é o poder da flor...”. Como se vê, os irmãos Dom e Ravel faziam parte daquele segmento da sociedade que, em 1968, Geraldo Vandré definiu de “indecisos cordões / que ainda fazem da flor o seu mais forte refrão / e acreditam nas flores vencendo o canhão.” Outra gravação da dupla a alcançar grande sucesso e polêmica em 1971 foi a balada Você também é responsável(376), que se tornou uma espécie de símbolo do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetzação), projeto educacional desenvolvido na época pelo governo Médici. (377) Segundo Dom, esta composição surgiu a partir de um convite do vereador Tibiriçá Botelho, coordenador do Mobral em São Paulo e homem ligado ao ministro da Educação, Jarbas Passarinho. O vereador dizia que seria interessante Dom e Ravel tomarem conhecimento do que estava se passando no âmbito da Educação no Brasil e os convidou a conhecer de perto o projeto em São Paulo. Naquele momento, o otimismo em relação ao Mobral era intensificado com a ampla divulgação dos primeiros números oficiais mostrando que, entre 1970 e 1971, haviam sido alfabetizados 2 milhões dos 16 milhões de adultos analfabetos brasileiros. (378) Nesta perspectiva, o presidente do Mobral, o economista Mário Henrique Simonsen, chegou a projetar a alfabetização de mais 8 milhões de pessoas entre 1971 e 1974. E o governo fixava o prazo de 10 anos para erradicar de vez o analfabetismo do Brasil. Cartazes com a mensagem "Encaminhe mais um ao Mobral" eram espalhados por vários pontos do país e também contagiaram a dupla Dom & Ravel. “Realmente, eu me entusiasmei por aquelas idéias” - confirma Dom - “eu já estava pensando em fazer uma música abordando a questão educacional em nosso país, mas ao tomar conhecimento mais

profundamente daquele projeto de se erradicar o analfabetismo do Brasil, resolvi fazer Você também é responsável.” Ravel reitera o que foi dito por seu irmão – “eu acreditava nas propostas do Mobral e cheguei a ver em algumas cidades do interior os barracões improvisados em fazendas e professorinhas ali ensinando os trabalhadores do campo a ler e escrever “ - , mas aborda também um outro aspecto ao recordar a gênese da canção: “Durante os nossos shows pelo Brasil era muita gente mesmo que chegava pra nós e dizia 'gostaria muito de escrever uma carta pra vocês, mas não sei escrever'. Havia meninas de 15 ou 16 anos que nos pediam um autógrafo e falavam 'o que você escreveu aí, hein?, fala pra mim, porque eu não sei ler nem escrever'. E isso não acontecia uma, duas, dezenas de vezes, não. Foram milhares de vezes. Eu dava milhares de autógrafos por todo o Brasil e muitas pessoas me perguntavam o que eu havia escrito. E eram aquelas pessoas simples do campo que você, ao cumprimentar, não conseguia nem fechar a mão, pois eram mãos cheias de calos. Não sabiam ler nem escrever, só sabiam pegar na enxada e plantar. E isso tudo doía no coração.” A balada Você também é responsável vai expressar estes dois aspectos: entusiasmo com o projeto do governo (o título da canção foi tirado do slogan da campanha do Mobral) e empatia com a dificuldade de milhões de brasileiros que, excluídos da ordem social, não tiveram oportunidade de aprender a ler e escrever: “Eu venho de campos / subúrbios e vilas / sonhando e cantando / chorando nas filas / seguindo a corrente sem participar / me falta a semente do ler e contar...” Nesta primeira estrofe da letra aparece o espaço geográfico de onde se originam os milhões de analfabetos brasileiros: a área rural e a periferia das cidades (subúrbios e vilas), locais que, como se sabe, além da deficiência educacional, padecem com a precariedade de serviços públicos básicos (água, luz, esgoto, transporte, postos de saúde), o que torna o analfabeto duplamente aviltado na sociedade. Mas na época ele também estava excluído do processo político eleitoral, sem direito a votar e ser votado, “seguindo a corrente / sem participar...” E a canção prossegue: “Eu sou brasileiro e anseio um lugar / suplico que parem pra ouvir meu cantar / você também é responsável / então me ensine a escrever...” Efetivamente, a canção conclama as pessoas a participar do projeto de alfabetização que estava sendo implantado pelo governo Médici, e o último verso “a nação merece maior dimensão / marchemos pra luta de lápis na mão” era uma referência ao fato de naquele momento existirem brasileiros marchando pra luta de armas na mão.

Mas a balada Você também é responsável, ao contrário do que normalmente se diz, está muito distante do tom ufanista de Eu te amo meu Brasil e de outras canções apologéticas da época. Cantando em forma de lamento, ao estilo dos cantores negros norte-americanos, Dom & Ravel nos apresentam agora um país marcado pelo contraste e pela exclusão social. E talvez este fato é o que tenha levado algumas pessoas ligadas ao governo a sugerir modificações no texto da canção. *

“Eles disseram que gostaram da música, mas pediram que a gente fizesse algumas alterações na letra” - , recorda Ravel, informando ainda que estas sugestões teriam partido de setores ligados ao Ministério da Educação e de representantes do Mobral em São Paulo. Mas, afinal, a dupla modificou alguma coisa no texto de Você também é responsável? “Não, nós conservamos a letra original, não mudamos nada. Na época a gente fazia shows todos os dias, tínhamos uma vida muito agitada e ficava difícil perder tempo com determinadas coisas. E quando você está no sucesso acredita que o que você faz é que é o certo, não existe o porquê de mexer, mesmo sendo uma coisa sugerida por autoridades. Por isso a gente achou por bem não dar muita importância àquelas sugestões de alterar a letra da música.” Nem Dom nem Ravel recordam exatamente qual foi o trecho (ou trechos)

da letra que não agradou aos representantes do governo, mas talvez seja possível supor que eles quisessem uma mensagem ufanista de exaltação às realizações do Mobral, sem nenhuma referência às desigualdades sociais do país. Só a título de comparação, citarei três canções da época que efetivamente exaltaram o Mobral. A primeira, Oh! meu Brasil como eu te amo, do cantor Fredson, em determinado trecho proclama: "Olha o pendão da minha terra onde nasci / com o Mobral a ensinar tanta gente / oh! meu Brasil, teu povo é tão feliz..." A segunda é a marcha Viva o Mobral, gravação de Carequinha, que diz: "O Mobral está é com você / já sei ler e escrever / nunca é tarde, vamos aprender...”; e por fim, o samba-enredo O grande decênio, título que festeja os dez anos do governo militar no Brasil. Cantado pela escola de samba Beijas Flor no Carnaval de 1975, a composição, depois de exaltar projetos como o PIS, Pasep e Funrural, acrescenta: "Lembraremos também / o Mobral e sua função / que para tantos brasileiros / abriu as portas da educação..." Nota-se por esses exemplos que mensagens de exaltação ao Mobral não faltaram naquele período. Sobre a afirmação, também bastante recorrente, de que Dom e Ravel teriam recebido dinheiro do governo militar para fazer a música, não há maiores evidências, como se pode deduzir através da matéria publicada no jornal Diário da Noite, de 12 de março de 1971, cujo título “Dom & Ravel, 50% para o Ceará”, informa que “a dupla cearense cedeu 50% dos direitos autorais a que tem direito em favor do Mobral do Ceará”.(379) E hoje Ravel enfatiza: “Nós jamais ganhamos nada. Nem troféu, nem condecoração, nem dinheiro nenhum com isso. Pelo contrário, o meu irmão Dom ainda me convenceu a dar 50% dos direitos autorais dessa música para o movimento do Mobral. É o maior otário, né? Um cara que pensa que vai... consertar o mundo. E esse cheque era entregue na coordenadoria do Tibiriçá Botelho. Todo mês a gente levava o cheque e entregava lá. É brincadeira? Coisa de infantilidade, de inexperiência.” Assim, é possível deduzir que houve uma sincera adesão dos artistas àquele projeto educacional com o qual o governo anunciava a erradicação do analfabetismo em nosso país. Ao paraninfar uma turma formada pelo Mobral em 1971, o presidente Médici chegou a dizer que aquele ato era o de “mais alta significarão” em seus dois anos de governo por representar “a eliminação de duas grandes tradições brasileiras: a do polegar e a da cruz, sinais até agora usados para identificar a manifestação de vontade pessoal”. (380)

Apesar de todas estas manifestações de otimismo, o Mobral, como se sabe, malogrou, frustrando a expectativa de Dom & Ravel e a esperança de milhões de brasileiros que continuaram “sonhando e cantando / chorando nas filas / seguindo a corrente / sem participar...” (381)

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS APENSAS AO CAPÍTULO (Pela numeração seqüencial encontrada no texto):

344. Apud Sergio Miceli. A noite da madrinha. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 275. Neste livro, originalmente uma tese de mestrado em Sociologia sobre o programa de Hebe Camargo, o autor transcreve algumas entrevistas que a apresentadora realizou em sua "sala de visita" no período da pesquisa. A entrevista com o conjunto Os Incríveis foi gravada em 13-81970. 345. "O novo ufanismo” - Realidade, Setembro de 1970. 346. "União governo-povo" - Folha de S. Paulo, 8-9-1971. 347. Sônia Regina de Mendonca & Virgínia Mana Fontes, op. cit., p. 23. 348. Nelson Motta. Noites tropicais: solos, improvisos e memórias musicais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 187. 349. Verso de Brasil! Para outras indicações ver índice de canções atadas em Fontes e bibliografia. 350. "Minha terra” In Casimiro de Abreu. Poesias completas. Rio de Janeiro: Zélio Valverde, 1940, p. 21. 351. Livro direcionado ao público infantil e que logo tornou-se um clássico escolar, formando gerações de estudantes brasileiros, muitos dos quais futuros líderes das elites econômica e política. Ali o autor apresenta o Brasil como um paraíso geográfico escolhido por Deus para ser superior a qualquer outro país do mundo. "Quando disserdes: 'Somos brasileiros', levantai a cabeça, transbordante de nobre ufania. Convencei-vos de que deveis agradecer cotidianamente a Deus o haver Ele vos outorgado por

berço o Brasil". Affonso Celso. Por que me ufano do meu país. 2a ed. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1997, p. 27. 352. Verso de Brasileiro. Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 353. LP "Brasil... sambe ou se mande" (Pedrinho Rodrigues) - Equipe P. 1973/ LP "Brasil... quem quiser pode ir” – ( Jorginho do Império) - Equipe P. 1973. 354. "Caboclinho pede a Médici a emancipação de uma cidade" - A Notícia, 2-12-1972. 355. Verso de Sr. Presidente. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 356. Verso do samba Sempre Brasil!Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 357 Edilberto Coutinho Nação rubro-negra. il. (coleção Grandes Clubes Brasileiros e seus Maiores Ídolos; V. 1 - FIamengo). São Paulo: Fundação Nestlé de Cultura, 1990, p. 372 358. "Zé Kéti no Opinião com novos sambas e um louvor a Natal" - O Globo, 24-1-1972. Na letra de sua marcha-hino Zé Kéti louva a Petrobrás, a rodovia Transamazônica, a bandeira do Brasil, enfatizando que em nenhum outro lugar "Há beleza mais rara / nem natureza mais pura / falou a voz do coração / ninguém, ninguém segura, não / já disse alguém ao mundo inteiro..."- referencia à frase "Ninguém segura o Brasil", pronunciada pelo presidente Médici durante a Copa do Mundo de 1970. Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 359. Registre-se que o Brasil não foi o primeiro país da América Latina a fixar sua jurisdição marítima a 200 milhas da costa. Argentina, Uruguai, Peru, Chile e Equador já tinham feito isto antes. 360 "EUA vão entrar no peito em nossas águas" - A Notícia, 3-6-1971 361. "Ministro desmente EUA e diz: Ás 200 milhas são do povo!"' - A Noticia, 19-6-1971. 362. "Ouça, que não está nos livros" - Caros Amigos, edição de novembro 1999.

363. "Médici em comício abolicionista" - Luta Democrática, 14-5-1972. 364. Ver, por exemplo, LP "Elis como & porque - ”Philips P. 1969 / LP “Antônio Carlos Jobim - Stone flower" - CTI Records – P. 1970/ LP “Agostinho dos Santos" - Continental P. 1969/ LP "Erasmo Carlos e os Tremendões" - RGE P. 1969/ LP "Disparo 70" (coletanea com uma faixa de Os Incríveis) - RCA Victor P.1969. 365. Nelson Motta. Noites tropicais: solos, improvisos e memórias musicais, op. cit., p. 223. 366. LP “A história de 1969: música e informação”. Rádio Jornal do Brasil – P.1969. 367. Fernando Gabeira. O que é isso, companheiro? 16ª ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1980, p. 117. 368. Idem, p. 107. 369. LP “A história de 1969: música e informação". Rádio Jornal do Brasil – P.1969. 370. Alfredo Syrkis. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. 7ª ed. São Paulo: Global, 1980, p. 255. 371. DOI (Destacamento de Operações de Informações) / CODI (Centro de Operações de Defesa Interna). Além de São Paulo, os DOI/CODI se implantaram como instituições oficiais em várias outras capitais do país. 372. "Terror: metralhado e morto outro facínora" - Folha da Tarde, 9-121970. 373. Jacob Gorender, op. cit, p. 237. 374. Apud Nosso século (1960-1980), op. cit, p. 193. 375. Idem, p. 195. 376. Sucesso nacional, Você também é responsável aparece em 1º Iugar entre as gravações mais vendidas na semana de 12 a 17 de Julho de 1971, em Recife. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp.

377. Presidido por Mário Henrique Simonsen, o Mobral foi impulsionado a partir de 1970. Entretanto, o projeto havia sido criado pela Lei Nº 5.379, a 15 de dezembro de 1967, no governo Costa e Silva. 378. Cf. Nosso século (1960-1980), op. cit, p. 217. 379. "Dom e Ravel, 50% para o Ceará" - Diário AR Noite, 12-3-l971. 380. "Médici condena passado" - O Estado de S. Paulo, 11-9-1971. 381. As criticas e denúnaas em relação ao Mobral começaram a avolumarse a partir de 1973, e eram centradas nos seguintes pontos: os cursos estavam aceitando alunos menores de 14 anos (portanto, em idade escolar); muitos dos adultos diplomados não eram capazes de ler corretamente e, principalmente, de compreender o que liam; devido à precariiedade das salas de aula, às distancias, aos horários e à falta de pessoal qualificado, apenas 40% dos inscritos conseguiam chegar ao fim do curso (Em 1975 foi instalada uma CPl para apurar irregularidades no Mobral) Cf. Nosso século (1960-1980), op. cit., p. 217.

CAPÍTULO 13:

A CULTURA DA BRUTLIDADE (WALICK SORIANO E AS MÚSICAS DE REJEIÇÃO SOCIAL)

“Pudemos constatar por coincidência, numa filmagem do nosso grupo, um trabalhador braçal no alto da Avenida Afonso Pena sair cantando a música do ‘Cachorro’ depois de uma repreensão do encarregado.” (Estudantes da PUC de Belo Horizonte)

*** A nova composição de Waldik Soriano pegou a todos de surpresa e o mineiro José Fernandes chegou a exclamar: “Uai, e quem está dizendo que ele é?” (382) Um outro crítico foi mais enfático ao advertir que a faixa lançada “só engana a quem nunca ouviu música na vida”. (383)

Chacrinha também não gostou e buzinou que depois dessa “coisa horrível”, o repertório de Waldik Soriano merecia “uma dedetização... ou uma cesta de lixo”.(384) Estamos falando do lançamento daquele sucesso popular cujo título ainda hoje freqüenta os pára-choques de velhos caminhões da estrada: Eu nao sou cachorro, não. Canção emblemática da época, Eu não sou cachorro, não foi composta por Waldik Soriano numa noite de 1972, logo após ele chegar à cidade de Natal, Rio Grande do Norte, para mais uma série de shows pelo NorteNordeste. O cantor havia embarcado de avião no Rio de Janeiro e estava sendo aguardado no Aeroporto de Natal pelo empresário Winston de Oliveira, com quem trabalhava na época. Entretanto, houve um longo atraso do avião durante a escala em Recife, e quando finalmente desembarcou em Natal, Waldik foi saudado pelo empresário com uma exclamação irônica: “Porra, Waldik, estou até agora lhe esperando. Eu não sou cachorro, não, rapaz!” Este dito de origem popular, que o cantor já conhecia desde os tempos de sua infância no interior da Bahia, naquele instante se revelou um ótimo tema para mais uma canção. E foi ao longo do trajeto entre o aeroporto e a casa do empresário onde ficaria hospedado que Waldik Soriano começou a compor os versos e a melodia do bolero, que diz: ”Eu não sou cachorro, não / pra viver tão humilhado / eu não sou cachorro, não / para ser tão desprezado...” Lançado em Outubro de 1972, o disco rapidamente alcançou os primeiros lugares das paradas, vendendo milhares de cópias e tornando-se o maior sucesso popular da carreira de Waldik Soriano. Nas escolas, nas ruas, campos, construções, a canção era cantada, ouvida e discutida de norte a sul do Brasil. Havia aqueles que a defenestravam e, naturalmente, a multidão que a apreciava; o difícil era ficar indiferente a ela. Mas o que fez este bolero tornar-se um sucesso tão grande no início dos anos 70? Diversos artigos e reportagens foram publicados em jornais e revistas da época, todos buscando uma explicação para o fenômeno. E a resposta mais freqüente para o sucesso da canção era de que o povo brasileiro é ingênuo, que aceita qualquer coisa ou, como se costumava dizer, “é porque o Mobral ainda não chegou a muitos pontos do Brasil.” (385) Deveremos nos juntar aos que rotulam este sucesso apenas como produto da alienação do público? Ou quem sabe a aceitação desta música também se deve ao fato de que ela apresenta uma mensagem de conteúdo crítico?

Aparentemente, o bolero de Waldik Soriano é apenas mais uma daquelas ingênuas canções de dor-de-cotovelo que costumam freqüentar a programação das emissoras de rádio, mas será que um refrão de tão forte apelo popular como "Eu nao sou cachorro, não / pra viver tão humilhado / eu não sou cachorro, não / para ser tão desprezado” não poderia também estar sendo endereçado ao patrão, à patroa, ao gerente, ao policial, enfim, aos representantes imediatos da opressão vivida pelo público ouvinte desta música? Afinal, constituímos uma sociedade autoritária e determinados segmentos sociais como o das empregadas domésticas, porteiros de edifícios, operários de construção, garçons e imigrantes nordestinos são freqüentemente humilhados e ofendidos no cotidiano brasileiro. E para eles que compõem a maioria do público de Waldik Soriano Eu não sou cachorro, não não poderia significar muito mais do que uma simples queixa amorosa?

Esta possibilidade foi percebida e comprovada em um pequeno trabalho sobre música popular realizado em 1973 por um grupo de alunos do curso de Comunicação da PUC de Belo Horizonte. Ao analisarem algumas das canções de sucesso da época, entre as quais a de Waldik Soriano, os alunos defendem que "não foi só o amor frustrado, a dor-de-cotovelo ou coisa parecida, que levou essa grande massa à aceitação e assimilação dessa música Eu não sou cachorro, não", justificando esta opinião com um fato: “Pudemos constatar por coincidência, numa filmagem do nosso grupo, um trabalhador braçal no alto da avenida Afonso Pena sair cantando a música do 'cachorro' depois de uma repreensão do encarregado.” (386) Este flagrante do cotidiano brasileiro, colhido por acaso por um grupo de estudantes de Minas Gerais, não poderia estar se repetindo também em diversos outros lugares do país? Quantos outros trabalhadores braçais, com os olhos embotados de cimento e lágrimas, não poderiam estar cantando "Eu não sou cachorro, não / para ser tão humilhado" depois de mais um gesto autoritário de um supervisor? Ainda mais que durante o período do chamado "Milagre", o próprio ditador Emílio Médici admitia: “A economia vai bem, mas a maioria do povo ainda vai mal.” (387) Esta inserção no contexto autoritário e excludente da nossa sociedade

investe Eu não sou cachorro, não de um sentido crítico que lhe dá nova conotação, sem esvaziá-lo de seu sentido original. A letra do bolero adquire assim uma relativa autonomia ante seu significado literal imediato - aspecto que é destacado inclusive pelo cantor Waldik Soriano. Ao explicar o enorme sucesso conseguido pela música, ele afirma que isto se deve ao seu refrão, ou seja, àquela parte do texto mais abrangente e universal. "O povo ainda não conhece a letra desse bolero, porque o sucesso dele não é o conteúdo das outras estrofes; é só o refrão: 'Eu não sou cachorro, não / para ser tão humilhado / eu não sou cachorro, não / para ser tão desprezado', que no fundo é uma forma de protesto: 'você está pensando que eu sou o quê?"'. E novamente Waldik Soriano, ao relatar a sua história de vida e recordar o tempo em que era apenas mais um daqueles anônimos imigrantes nordestinos recém-chegados para trabalhar em São Paulo, afirma que "a vida na cidade grande não dá colher de chá com facilidade. Levanta-se às quatro da matina para pegar a condução e chegar ao trabalho" e que para garantir a marmita de cada dia ele teve que se virar como engraxate, servente de pedreiro e depois faxineiro numa tipografia. “Ali demorei muito pouco, briguei com o gerente da firma, pois o sujeito me tratava pior do que cachorro, então, para mostrar 'não ser cachorro, não', apelei para o braço” (388) Portanto, a canção reflete a condição social e os embates contra o autoritarismo vivenciados pelo próprio autor. E tudo isto serve de "indícios", "sinais", (369) de que a opressão relatada na letra de Eu não sou cachorro, não não se refere somente a uma relação amorosa e nem que o público a interpretasse apenas desta maneira. Aliás, registre-se que este processo de releitura coletiva do significado explícito de uma canção extrapolando as intenções de seu autor - é muito mais comum do que se imagina, e um exemplo clássico disto é o samba Opinião, composição de Zé Keti que resultou no show homônimo. Originalmente este samba de Zé Keti era um protesto contra o Programa de Remoção implantado pelo governo Carlos Lacerda em 1962, que obrigava os moradores de doze favelas da cidade do Rio de Janeiro a se mudarem para locais distantes, como as recém-construídas vilas Kennedy (em Senador Camará), Esperança (Vigário Geral), Aliança (Bangu) e o conjunto habitacional de Cidade de Deus, em Jacarepaguá. A forma autoritária e truculenta como era feita a remoção (algumas favelas, como a do Pasmado, chegaram a ser incendiadas para forçar a saída dos

moradores), assim como a dificuldade de transporte entre os novos locais e o Centro da cidade, acabaram gerando a resistência dos habitantes dos morros. E é isto o que o compositor Zé Keti retrata na letra de seu famoso samba: PODEM ME PRENDER, PODEM ME BATER PODEM ATÉ DEIXAR-ME SEM COMER QUE EU NÃO MUDO DE OPINIÃO DAQUI DO MORRO EU NÃO SAIO NÃO... Mas ao ser gravado pela cantora Nara Leão, no fim de 1964, o samba foi transformado pela esquerda em um emblema para a sua luta contra o recém-instalado governo militar. E em clima de catarse coletiva, a composição era cantada todas as noites pelo público universitário durante o show Opinião, apresentado no Teatro de Arena, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Entretanto, como observa o jornalista Ruy Castro, o samba realmente "parecia um hino de resistência aos maus bofes dos milicos, perfeito para o momento. Mas era inacreditável que as pessoas não se sentissem desconfortáveis na platéia quando Zé Keti continuava a letra – (... 'daqui do morro eu não saio, não / se não tem água eu furo um poço / se não tem carne eu compro um osso / e ponho na sopa / e deixa andar / deixa andar...') trecho que apresenta o mais leso e preguiçoso conformismo, mas ninguém parecia reparar.” (390) E ninguém reparava justamente porque o samba Opinião tem um refrão impactante, aberto, que enfatiza a resistência e que servia naquele momento para insuflar a luta contra o regime dos generais. Mas é possível dizer que até hoje a maioria das pessoas também não conhece as outras duas estrofes da letra deste samba. Enfim, o que se quer destacar aqui é que esta releitura ou apropriação que o público de classe média intelectual fez do samba de Zé Keti pode ter sido realizada também pelas camadas populares em relação ao bolero de Waldik Soriano. E, neste sentido, ambas as composições veicularam uma mensagem de protesto e resistência. Além de Eu não sou cachorro, não, várias outras gravações "cafonas" lançadas no período do AI-5 também apresentam em seus versos alguma forma de desabafo contra a opressão e o tratamento humano degradante. E isto nos remete mais uma vez a Marilena Chauí, quando esta afirma que existe um "desejo único pelo qual o oprimido se diferencia radicalmente do opressor: o desejo de não-opressão”. (391) Encontramos isso, por exemplo, numa canção de Paulo Sérgio intitulada

Não me trate como um cão, e numa outra em que ele protesta: “É cara a compreensão / de graça a agressão / o que será dos que virão? / respeito humano é o que não há”. (392) Paulo Sérgio: "Não me trate como um cão" E este anseio por um tratamento humano decente prossegue em gravações como Nem cachorro é maltratado como eu (Waldik Soriano); Eu não sou lixo (Evaldo Braga), Eu não sou tapete (Luiz Fabiano) e Eu não sou sapato seu, outra mensagem de protesto lançada por Waldik Soriano: "Voce já se esqueceu / que tenho alma e que sou gente também... /... não aceito e não mereço desaforo de ninguém". Nota-se que esta geração de artistas utiliza de forma freqüente a primeira pessoa em suas composições; e o "eu" sobrepõe-se ao "nós" tanto no corpo da letra como nos próprios títulos das canções. Mas talvez pudéssemos estender a esta produção musical a mesma observação que os historiadores Fernando Faria e Maria Izilda de Matos fizeram em relação à obra de Lupicínio Rodrigues. Ao constatarem o emprego freqüente da primeira pessoa nos sambascanções do compositor gaúcho – Eu sei eu e meu coração, Eu é que não presto, Eu não sou de reclamar - , os autores afirmam que o "eu" de Lupicínio Rodrigues "é também o de todos os que cantam suas músicas e com elas se identificam, o que pode ser interpretado como uma simples estratégia discursiva de transformar o singular em universal, mas é sobretudo a capacidade do artista de captar emoções que circulam socialmente".(393) Este "eu" "legião", que expressa um sentimento coletivo pelo individual, também está presente na balada Não pise em cima de mim, composição de Nelson Ned que subliminarmente conduz à reflexão sobre as relações de poder em todos os niveis: "Não vá pensando que eu vou me deixar dominar / por esse jeito arrogante que você tem de mandar / não pise em cima de mim...". Assim como Eu não sou cachorro, não, a maioria dessas canções traz em seu texto o discurso da rejeição amorosa, mas em função do lugar social ocupado por seu público ouvinte, pode ganhar novo sentido - o de rejeição social - , tornando-se assim uma forma de protesto. Ressalvo que é um protesto diferente dos que foram produzidos pelos compositores de formação universitária, mas que não é menos protesto por causa disso. Naquele momento, esta era a forma possível e necessária para aqueles segmentos da sociedade brasileira historicamente excluídos da ordem

social e condenados ao silêncio. E para eles a mensagem de canções como Não pise em cima de mim e Eu não sou cachorro, não pode ser tão significativa quanto a do samba Opinião para o público universitário de esquerda. Este caráter de resistência contido na composição de Waldik Soriano foi percebido na época por alguns compositores da MPB, que se apropriaram do refrão de Eu não sou cachorro, não, enfatizando-lhe o conteúdo crítico. E o famoso bolero emergiu mais uma vez como referência emblemática na luta contra a opressão e o autoritarismo. Belchior, por exemplo, em uma de suas canções, cita os versos de Waldik Soriano para denunciar a exclusão e a desigualdade existentes na sociedade brasileira: “Miseráveis sempre sem pão / e daqui a pouco, sem circo / coisa ante cuja visão dá vontade de morrer.../ ...eu não sou cachorro, não / pra viver tão humilhado...” (394) O bolero de Waldik Soriano foi também citado pelo cantor Raul Seixas numa composição de 1975, cuja letra retrata a angústia de um cidadão brasileiro da pequena classe média que, com o fim do "milagre econômico", vive no maior sufoco para pagar as contas de luz, do gás e do "quitinete de um quarto / que eu comprei pela Caixa Federal, au au au / eu não sou cachorro, não". E sempre atento aos fenômenos musicais do rádio, em 1978 Caetano Veloso também citou a canção de Waldik Soriano, porém, ao lado de uma outra de Chico Buarque, procurando assim conciliar apostos nos versos do samba Pecado original: "Quando a gente volta o rosto / para o céu e diz / olhos nos olhos / da imensidão / eu não sou cachorro, não..” Ao citar os boleros Olhos nos olhos, de Chico Buarque, e Eu não sou cachorro, não, de Waldik Soriano, Caetano Veloso destacava os principais representantes de duas vertentes da música popular brasileira do período: Chico Buarque (canção de caráter sóciopolítico) e Waldik Soriano (canção de lamento/queixa amorosa), relativizando assim a oposição MPB/MPC. Aliás, o próprio Chico Buarque, com o pseudônimo de Julinho da Adelaide, valeu-se da temática da rejeição amorosa para, malandramente, driblar a Censura com os versos "Você não gosta de mim / mas sua filha gosta”. (396) Ou seja, eu não sou cachorro, não. A fronteira entre canção de amor e canção de protesto tornava-se assim cada vez mais tênue. Como bem observa o professor Eduardo Granja Coutinho, "canção política não significa necessariamente canção

revolucionária ou de agitação. Sem se colocar frontalmente contra o regime, uma canção pode ser política por expressar críticas sociais e de costumes, como um samba de Noel Rosa ou uma marchinha de Lamartine Babo". (397) E eu acrescentaria: como um bolero de Waldik Soriano ou uma balada de Odair José. E neste sentido o repertório "cafona" é também marcado pelo conteúdo político, embora nunca fosse reconhecido como tal pelo público da MPB. Num tempo de forte radicalização ideológica como aquele da década de 70, os setores mais intelectualizados da sociedade (que em grande parte estavam em franca oposição ao regime militar) pareciam exigir de todos os artistas manifestos explícitos contra o governo ou letras politicamente engajadas como as de Apesar de você ou Pra não dizer que não falei de flores. Observe-se, contudo, que este tipo de manifestação de protesto também não aparece na obra de nenhum dos principais compositores brasileiros de origem popular: artistas como Cartola, Nelson Cavaquinho, Pixinguinha, Ataulfo Alves, Dorival Caymmi, Silvio Caldas, Lupicínio Rodrigues, Luiz Gonzaga e Herivelto Martins, que vivenciaram e produziram sob duas ditaduras - a do Estado Novo e a Militar - , também não fizeram do protesto político tema para sua obra musical. Esta foi uma questão enfatizada a partir da incursão de segmentos da classe média na produção da música popular com a bossa nova e, principalmente, com o surgimento de uma geração de artistas de formação universitária (Chico Buarque, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Edu Lobo, João Bosco, Gonzaguinha e outros), que leram e estudaram Marx, Marcuse e McLuhan na universidade; ou compositores que, mesmo não tendo curso universitário, conviviam com este universo, como é o caso de Paulinho da Viola e Milton Nascimento. Assim, no conjunto de canções de protesto político produzido pelos compositores da MPB durante o regime militar, destaca-se a temática do exílio, questão que naquele período atingia diversos políticos, artistas e intelectuais brasileiros. Três dos títulos mais representativos são Meu caro amigo (Chico Buarque-Francis Hime), Tô voltando (Mauricio TapajósPaulo Cesar Pinheiro) e O bêbado e o equilibrista, samba de João Bosco e Aldir Blanc que através da voz de Elis Regina tornou-se o hino da luta pela anistia: ...MEU BRASIL QUE SONHA COM A VOLTA DO IRMÃO DO HENFIL E TANTA GENTE QUE PARTIU NUM RABO DE FOGUETE CHORA A NOSSA PÁTRIA, MÃE GENTIL

CHORAM MARIAS E CLARICES NO SOLO DO BRASIL

É até natural que a temática do exílio tenha aparecido na obra dos compositores da MPB. Afinal, a realidade em que eles estavam inseridos era marcada por este fato. Alguns tinham vivido a experiência do exílio ou tinham parentes e amigos exilados em outros países. O samba de João Bosco e Aldir Blanc conclama a "volta do irmão do Henfil", o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que na época estava exilado no México, e também faz referência a Maria, viúva do deputado Rubens Paiva, e Clarice, viúva do jornalista Wladimir Herzog, ambos mortos por agentes da repressão; a letra do choro Meu caro amigo era endereçada ao teatrólogo Augusto Boal, que se encontrava exilado em Paris; e a do samba To voltando a todos aqueles que foram banidos pela ditadura militar e retornavam ao país após a aprovação da Lei da Anistia em Julho de 1979. Já os compositores "cafonas", imersos em outra realidade social, não irão evocar os exilados políticos que se encontravam na Europa e América Latina, mas abordarão o drama dos exilados em sua própria pátria: os milhões de brasileiros anônimos que, forçados por um sistema políticoeconômico excludente, deixaram sua cidade natal e partiram em busca de melhores condições de vida na área urbano-industrial do sul do país. É na passagem da década de 60 para a de 70 que o Brasil ingressa na faixa de nações majoritariamente urbanas. (398) E, nos anos seguintes, a estrutura de ocupação da terra continuaria a expulsar mais gente do campo, principalmente do Nordeste, levando-os a morar nos subúrbios, favelas e viadutos dos grandes centros urbanos. E assim, outras Marias e Clarices também choravam no solo do Brasil. Como ilustra o cantor Fernando Mendes em uma de suas composições: ELA MORA DEBAIXO DA PONTE DEBAIXO DA CHUVA DO SOL E DO VENTO SEU OLHAR É UM TANTO SOFRIDO SEU PEITO É PARTIDO DE DOR E TORMENTO ELA MORA DEBAIXO DA PONTE NO MEIO DA VIDA POR CIMA DA MORTE SEU SORRISO É UM TANTO APAGADO SEU GRITO ABAFADO ECOA POR DENTRO...

No livro A espoliação urbana - obra que enfatiza o contraste entre a opulência do "Milagre Econômico" e a miséria de grande parte dos brasileiros - , o sociólogo Lúcio Kowarick apresenta o relato de alguns imigrantes nordestinos que no início dos anos 70 moravam em barracas e favelas de São Paulo. O autor destaca que a trajetória de grande parte destes imigrantes é marcada pela perda: da propriedade, da capacidade de trabalhar, da auto-estima, já que o capital cultural que cada um deles acumulou na vivência no campo ou na pequena cidade de origem pouca serventia apresenta para o trabalho fraccionado da indústria. Um dos depoimentos mais significativos reunidos no livro é o do baiano Lindolfo, que em 1971, aos 42 anos, sobrevivia em São Paulo como lavador de carros, faxineiro, ajudante de pedreiro e outros biscates. "Hoje sou despojado. Não tenho mais ofício. Não consigo mais mascatear”, lamentava-se o pobre imigrante, explicando ainda que “o homem desempregado é como o boi que está amarrado num pau no meio do pasto. Num dia o boi come tudo em volta. Mas no outro dia o dono compadece dele e muda ele de lugar. Eu sou como boi amarrado que o dono não muda de lugar. Eu não tive sorte aqui em São Paulo. Vou voltar”. (400) É justamente esta inadequação à grande metrópole e o desejo de retornar para a cidade natal - sentimento compartilhado na época por milhões de outros brasileiros - que os compositores "cafonas" expressam em canções como Saudades da minha terra (Waldik Soriano), São Luiz, ilha do amor (Claudio Fontana), O homem da montanha (Benito di Paula) e Eu vim da roça, gravação de Fernando Mendes em que a "família" e a "terra querida" são evocados numa aura de nostalgia, acentuada ainda mais pela interpretação em tom melancólico do cantor: "Eu não consigo me acostumar / sinto saudades da minha cidade / e da minha gente que ficou por lá..." Esta recorrência ao tema da migração também se explica porque esta geração de cantores estabeleceu suas carreiras no eixo Rio-São Paulo principal centro irradiador dos sucessos nacionais - , apesar de a maioria destes artistas ser oriunda de outros estados da federação: Waldik Soriano (Bahia); Claudio Fontana (Maranhão); Paulo Sérgio (Espírito Santo); Luiz Carlos Magno (Pernambuco); Nelson Ned, Agnaldo Timóteo e Fernando Mendes (Minas Gerais); Odair José e Lindomar Castilho (Goiás); e a dupla Dom & Ravel (Ceará). Ou seja: eles próprios são também imigrantes e viveram desventuras longe da família, dos amigos e da terra natal. Mas dado o fato de que todos tornaram-se bem-sucedidos em sua profissão

no grande centro, o lamento e inadequação que eles expressam nos discos são na verdade o de milhões de imigrantes brasileiros anônimos que perderam a sua base e não conseguiram restabelecê-la na cidade grande. Exílio que é retratado por Paulo Sérgio na sua composição Vou voltar pra minha terra: “Aqui não fico mais / a saudade em mim é tanta / de rever meu lar, meus pais / e abraçar os meus irmãos.. " Artista essencialmente romântico, mas sensível às questões sociais do país, o cantor Paulo Sérgio também abordou o drama da seca e a conseqüente saga dos retirantes nordestinos - tema que a partir da década de 40 aparece em diversos baiões de Luiz Gonzaga, Zé Dantas e João do Vale. A toada Nordeste (Terra Prometida), lançada por Paulo Sérgio em 1975, descreve a aflição de um pai que, cansado de ver os filhos "sem destino certo / neste deserto só de pedra e pó", resolve partir em busca de melhores dias no sul do país: “As minhas lágrimas estão caindo / estou sentindo a dor de uma partida / antes de ir, meu chão eu vou beijar / vou procurar a terra prometida..." Como se fosse continuação da música de Paulo Sérgio, o tema a seguir, O camburão, gravação do cantor Kleber, relata a longa viagem de um imigrante nordestino "quase dez dias / na esperança de vencer na vida / e trazer sua família", do seu desembarque na estação ferroviária do Brás, em São Paulo, e do seu duro encontro com uma realidade bem diferente da sonhada por uma terra prometida. Confundido com um perigoso assassino, o pobre imigrante é encostado na parede pela polícia, que exige: "Mostre seus documentos." Assustado, ele tenta argumentar: "Seu moço, não sei de nada / não sei do que tá falando / não tenho papel nenhum / há pouco que tô chegando." Algemado e jogado num camburão "Seus olhos ficaram vermelhos / e ele chorou por não entender nada..." E o compositor conclui: ...HOJE SÓ RESTA ESTA HISTÓRIA DO POBRE HOMEM COITADO PORÉM NA MINHA MEMÓRIA FICOU A VOZ DO POBREDIABO “SEU MOÇO, NÃO SEI DE NADA, NÃO SEI DO QUE TÁ FALANDO NÃO TENHO PAPEL NENHUM, HÁ POUCO QUE TÔ CHEGANDO”. A figura da autoridade policial aparece aqui de uma maneira bem diversa da que a propaganda oficial do regime procurava divulgar na época através de alguns filmes publicitários que mostravam o policial como um cidadão comum, cordial e protetor da população, sugerindo o congraçamento social que deveria unir o povo e os militares. Ou seja, uma imagem oposta à que

era constatada no cotidiano de qualquer grande cidade do país e como tão bem flagrou a composição de Kleber. É possível até fazer-se uma analogia entre a balada O camburão e uma outra mensagem emblemática da época, o samba Acorda amor, de Chico Buarque, que narra o despertar de um cidadão sobressaltado com a polícia no portão de sua casa: "É a dura / numa muito escura viatura / minha nossa santa criatura / chame, chame o ladrão / chame o ladrão..." Tanto a canção de Kleber (enfatizando o camburão) quanto a de Chico Buarque (a viatura) apresentam a figura do policial militar como um símbolo máximo da repressão. E esta mensagem torna-se ainda mais eloqüente porque, em ambas as canções, através de um recurso de sonoplastia, ouve-se uma sirene tocar, como que anunciando a chegada e a partida do carro policial. Mas, se por um lado, o samba Acorda amor é identificado como uma crônica da perseguição sofrida na época por cidadãos de classe média envolvidos na oposição ao regime militar, a balada O camburão retrata a repressão de que são vítimas os integrantes das camadas populares em seu cotidiano no Brasil. E o humilde imigrante nordestino poderia também estar gritando "Chame o ladrão, chame o ladrão..." Isso nos leva a destacar a observação, feita por Marilena Chauí de que o aparato militar-repressivo montado na época em função da "guerra permanente ao inimigo interno" não atingia apenas os setores organizados de oposição ao regime; atingia também desempregados, negros, menores infratores, presos comuns e delinqüentes em geral (aí podendo estar incluídos homossexuais, prostitutas ou humildes imigrantes nordestinos sem carteira de trabalho). (401) Uma testemunha ocular deste fato é o historiador Jacob Gorender, que, no inicio dos anos 70, como preso político, esteve no Presídio Tiradentes, em São Paulo, e acompanhou de perto centenas de presos comuns amontoados nas celas debaixo do primeiro pavilhão do presídio. Gorender recorda que "todos os dias, às seis da tarde, o pátio se enchia da 'leva' - dezenas de pobres-diabos trazidos das ruas em enormes camburões. Se muitos eram marginais, assíduos no presídio e nas delegacias, no meio havia trabalhadores honrados agarrados porque não portavam documentos, porque eram negros, porque não estavam bem-vestidos ou simplesmente porque não puderam satisfazer às extorsões dos policiais. Alta noite, investigadores e carcereiros escolhiam presos comuns e os espancavam a cacetadas. Em seguida, aplicavam-lhes o 'caldo' num tanque circular de dois metros de diâmetro e dois de profundidade, cheio de água. Os presos desnudados sofriam repetidas imersões, suplício mais cruel nas noites

geladas de inverno. Os lamentos das vítimas se ouviam por todo o presídio". (402) É possível supor que entre os supliciados de cada dia estivessem vários imigrantes nordestinos com trajetória semelhante ao do personagem da composição de Kleber. E neste sentido a balada O Camburão, assim como o samba Acorda amor, foi na época um veículo de protesto contra o autoritarismo e a repressão reinantes na sociedade brasileira. Mas é forçoso constatar que esta composição de Chico Buarque tornou-se de certa forma uma peça datada, um documento de época que o próprio autor não mais inclui no repertório de seus shows, já que após o período de abertura política cidadãos de classe média não temem mais ser retirados da cama pela polícia. Entretanto, a composição do cantor Kleber permanece com uma incômoda e triste atualidade. Apesar de ser um fato pouco denunciado, os integrantes das camadas populares no Brasil continuam sendo jogados em camburões e conduzidos às salas de tortura. Um caso que veio à tona mais recentemente foi o que envolveu um grupo de jovens negros da periferia de São Paulo, presos sob a suspeita de terem participado do assalto ao bar Bodega, um ponto de encontro da classe média alta paulistana, que em 10 de agasto de 1996 teve dois de seus clientes assassinados a tiros. Pressionada pela repercussão que o caso obteve na mídia, a polícia iniciou a caça aos assaltantes, um dos quais os investigadores acreditavam chamarse Valmir. Segundo relato da revista Veja, dois jovens negros suspeitos, Valmir da Silva, 19 anos, e Valmir Martins, 20 anos, que depois comprovaram sua inocência, foram retirados de casa à força pela polícia e "começaram a apanhar assim que entraram no camburão. Seguiram nesta rotina mais um mês. Soco de manhã, pau-de-arara à tarde, choques e palmatória à noite. Às vezes, variavam os horários e as brutalidades. Eles tinham que confessar a participação no caso". Outro jovem pobre e negro suspeito, Luciano Francisco Jorge, 20 anos que mais tarde a investigação policial também descobriu não ter participado do assalto , segundo a mesma reportagem, "tomou choques na língua, foi 'pendurado', recebeu pancadas na cabeça e ferradas nas costas. Um dia, foi levado algemado para uma sala onde estava 'Marcelo', nome de guerra usado pelo investigador José Eduardo de Almeida. Foi obrigado a se deitar. Almeida colocou uma cadeira sobre o rapaz, sentou-se e sentenciou: Ágora você vai falar, ou a gente vai te arrombar.' Em seguida, pegou um

pedaço de madeira cilíndrico e envernizado de 20 centímetros, mergulhouo na graxa e introduziu-o duas vezes no anus de Luciano." (403) A tragédia que envolveu estes jovens moradores da periferia de São Paulo, e que provavelmente deixou seqüelas físicas e psicológicas em cada um deles, é mais uma prova eloqüente de que é muito restritivo relacionar a prática de tortura no Brasil apenas ao tempo da ditadura militar. Talvez seja mais correto dizer que naquele período houve a "democratização do arbítrio” , pois a violência atingia tanto os pobres de cada dia como vários filhos da classe média e até de famílias ricas e de tradição que militavam em partidos de esquerda. Como bem observou Jacob Gorender, “O Estado militarizado agiu com inflexível coerência: cortou os galhos podres da própria classe dominante para defendê-la". (404) Isso feito, e encerrado o ciclo do regime militar, o arbítrio prosseguiu no Brasil o seu curso normal. Apesar do esforço de projetos como o do Brasil: nunca mais - formado no fim dos anos 70 com o objetivo de eliminar "o flagelo das torturas, de qualquer tipo, por qualquer delito, sob qualquer razão” (405) - constata-se no alvorecer do século XXI que tal intento ainda não alcançou em nosso país o êxito pretendido. Em recente missão de visita a delegacias e presídios no Brasil, o relator da ONU para crimes de tortura, Nigel Rodley, revelou-se chocado ao se deparar com um jovem que ficara paralítico em conseqüência de uma sessão de tortura numa prisão do Rio de Janeiro. “Eu já vi muita coisa ruim no meu trabalho e este caso, certamente, está entre os piores”, desabafou o representante da ONU. (406 ) O relatório final da visita, enviado para a sede da entidade, em Genebra, na Suíça, batizou de "cultura da brutalidade" a prática comum de violência nos organismos policiais brasileiros E o documento mostra que este cotidiano de barbárie atinge mesmo as “camadas mais pobres da população e/ou em descendentes de africanos ou grupos minoritários da sociedade". Uma das vítimas de tortura policial citadas no relatório, desabafou: “Nos tratam como animais e esperam que a gente se comporte como seres humanos quando sairmos daqui.” (407) De tudo isto, o mais grave hoje no Brasil é que muitas das vozes que clamavam contra a tortura no tempo do regime militar silenciaram, e constata-se agora uma certa complacência da sociedade para não dizer o aplauso de setores das elites e de muitos segmentos médios. É como se a tortura praticada contra os estratos mais baixos da população

não fosse tão grave assim. É como se não existisse mais tortura no Brasil. Mas não se iluda. É possível mesmo que no momento em que você lê estas páginas, algum brasileiro pobre, e provavelmente negro, esteja sendo submetido a tratamento cruel, desumano e degradante em algum camburão, delegacia ou penitenciária do país E muitas dessas vítimas poderão estar gritando “eu não sou cachorro, não" ou "seu moço, não sei de nada / não sei do que tá falando / não tenho papel nenhum / há pouco que tô chegando..."

*** NOTAS BIBLIOGRÁFICAS APENSAS AO CAPÍTULO (Conforme a numeração seqüencial encontrada no texto)

382. Comentário de José Fernandes em sua coluna Ondas e Imagens. "Waldik, olha o tatu!" - A Noticia, 13-11-1972. 383. Opinião de Marcel Delon em sua coluna Curti-Som. "Questão de gosto" - A Noticia, 18-12-1972. 384 "Cada vez pior" (Jornal do Chacrinha)”A Noticia, 18-11-1972. 385. Esta explicação para o sucesso dos discos de Waldik foi constatada por Nelson Motta no artigo "Em Waldik e Teixeirinha, o Brasil dos esquecidos" - O Globo, 20-1-1974. 386. Vários autores. Eu não sou cachorro, nã]; um estudo da música popular brasileira. Belo Horizonte: Interlivros, 1973, p. 44. Apesar do que o título pode sugerir, este não é um trabalho sobre a canção "cafona" ou especificamente sobre a obra de Waldik Soriano. Publicado em formato de livro de bolso, apenas duas páginas do texto são dedicadas ao bolero Eu não sou cachorro, não. Tudo o mais versa sobre a produção da MPB. De qualquer forma, a análise que os estudantes fazem da canção de Waldik Soriano destoava da versão corrente na época. 387 "Quando nos voltamos para a realidade das condições de vida da grande maioria do povo brasileiro, chegamos à pungente conclusão de que a economia vai bem, mas a maioria do povo ainda vai mal." - Discurso

proferido aos estagiários da Escola Superior de Guerra, em 10 de março de 1970 LP “A história de 1970: música e informação" ”Rádio Jornal do Brasil - P. 1970. 388. Waldik Soriano & Bernadino Campos, op. cit, pp. 56-58. 389. Ver Carlo Ginsburg. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 390. Ruy Castro. Chega de saudade: a história e as histórias da bossa nova. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p 351. 391. Marilena Chauí. Cultura e democracia; o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 1997, p. 54. 392. Verso de Hora de esquecer o mal. Para outras indicações ver índice de canções citadas em Pontes e bibliografia. 393. Maria Izilda de Matos & Fernando Faria. Melodia e sintonia em Lupicinio Rodrigues: o feminino, o masculino e suas relações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, p. 57. 394. Verso da canção S. A. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 395. Verso de É fim de mês. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 396. Verso da canção Jorge Maravilha. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 397. Eduardo Granja Coutinho. Velhas histórias, memórias futuros: o sentido da tradição na obra de Paulinho da Viola. Programa de PósGraduação da Escola de Comunicação da UFRJ. Rio de Janeiro: Eco, 1999, p. 60. 398. Cf. Wanderley Guilherme dos Santos. 'Á Pós-Revolução Brasileira". In Hélio Jaguaribe... (ei ai.). Brasil, sociedade democrática. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1985, pp. 237-238. 399. Versos de Debaixo da ponte. Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 400. Lúcio Kowarick. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1980, pp. 127-128. 401. Marilena Chaui. Conformismo e resistência; aspectos da cultura popular no Brasil, op. ut., p. 127. 402. Jacob Gorender, op. cit., p. 223. 403. "Pretos e pobres" - Veja, 18-12-1996 404. Jacob Gorender, op. cit., p. 227. 405. Brasil, nunca mais, op. cit., p. 27. 406. "Tortura de preso no Brasil revolta emissário da ONU - Jornal do Brasil, 2-9-2000. 407. "Brasil cultiva 'cultura da brutalidade"' - Jornal do Brasil, 11-4-2001.

CAPÍTULO 14 CANÇÕES SOBRE A TRISTEZA BRASILEIRA (UM VAZIO NO BOLSO E NO CORAÇÃO) “Eu não me alegro com as coisas deste mundo; o que eu vejo aqui me entristece. Peço até que você me desculpe por eu ser assim tão triste.” (Odair José) Numa terra radiosa floresceu, a partir de 1968, uma geração de cantores/compositores românticos e demasiadamente tristes. Sim, nomes como Nelson Ned, Odair José e Paulo Sérgio, mais do que quaisquer outros da nossa música popular, deixam transparecer em suas canções a idéia de que o brasileiro é antes de tudo um triste. E a denúncia deste estado de espírito aparece nos próprios títulos de várias composições daquele período: Não tenho culpa de ser triste (Nelson Ned), Oração de um jovem triste (Alberto Luiz), Meu sorriso também é triste (Amilton Lelo), Sou mais um triste (Alessandro), Eu sou um rapaz triste (Livi-Maluin) e O homem mais triste do mundo (Letinho):

EU ACHO QUE SOU O MAIS TRSITE DO MUNDO SOMENTE TRISTEZA É O QUE EXISTE EM MIM OLHANDO PARA O CÉU PERGUNTO A DEUS POR QUE, MEU SENHOR, EU NASCI ASSIM...

Por essas e outras canções esta geração de artistas corrobora a tese defendida pelo ensaísta Paulo Prado no clássico Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. Ali o autor afirma com todas as letras que o nosso país é uma terra de soturna tristeza habitada por um povo triste. Publicado em 1928, este livro logo atraiu admiração e debate, firmando-se como a primeira interpretação psicológica de nossa história e uma das principais teses explicadoras do Brasil, linhagem da qual também fazem parte livros como Os sertões, de Euclides da Cunha, e Casa Grande & senzala, de Gilberto Freyre. Produzido dentro do velho molde determinista de raça e clima, o texto de Paulo Prado parte da idéia de que existiriam povos alegres e povos achacados de tristeza. O brasileiro faria parte do segundo grupo. "Numa terra radiosa vive um povo triste...", anuncia o autor logo na abertura do primeiro capítulo, enfatizando mais adiante que "o véu da tristeza se estende por todo o país, em todas as latitudes, apesar do esplendor da natureza".(408) Na epígrafe ele cita o historiador Capistrano de Abreu, que compartilhava desta visão sobre o Brasil e dizia que a ave que melhor simbolizaria a nossa terra seria o jaburu porque "tem estatura avantajada, pernas grossas, asas fornidas, e passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste, triste, daquela austera, apagada e vil tristeza.” Mas qual seria a origem dessa apregoada tristeza do ser brasileiro? Recorrendo a diversas fontes, Paulo Prado sustenta que ela é uma herança dos náufragos, desertores e degredados que a partir de 1500 aportaram nas praias ao sul do equador. Soltos no paraíso da terra virgem, onde "tudo incitava ao culto do vício sexual", os colonizadores eram movidos por dois instintos básicos: a cobiça do ouro e a luxúria da carne - ambas provocando o abatimento físico e moral de suas vítimas. A cobiça porque desmedida e quase sempre frustrada; a luxúria porque exagerada e nunca saciada. "Na luta entre esses apetites" - diz Paulo Prado - "sem outro ideal, nem religioso, nem estético, sem nenhuma preocupação política, intelectual ou artística, criava-se pelo decurso dos séculos uma raça triste." E para reforçar a idéia de que a intensa vida sexual dos colonizadores nos levou à melancolia, o autor recorre a um velho adágio da medicina que diz que "após o coito os animais ficam tristes, salvo o galo, que canta". (409)

Como observou o professor Dante Moreira Leite, "Paulo Prado parte da verificação de que a satisfação sexual provoca tristeza o que já seria discutível, embora não absurdo - e chega à conclusão de que essa tristeza pode ser transmitida às gerações seguintes". (410) Se isto é possível, um dos herdeiros dessa melancolia legada pelos colonizadores do Brasil foi, sem dúvida, o cantor e compositor Odair José. Suas melodias, suas letras, suas falas, sua aparência, tudo é repleto daquela austera, apagada e vil tristeza. "Meu sorriso é triste / meu olhar, profundo / meu corpo é cansado das dores do mundo", queixa-se ele na balada Não existem flores. E a lamentação prossegue em várias outras canções do artista: Eu queria ser John Lennon, O sonho terminou, Ajudame, Alegria triste e, principalmente, no seu auto-retrato Assim sou eu, composição lançada em 1972, quando ele tinha 24 anos de idade: UM ANDAR APRESSADO, UM OLHAR TÃO DISTANTE UM SORRISO APAGADO, UMA TRISTEZA CONSTANTE UM SORRISO SOFRIDO DE ALGUÉM QUE MUITO VIVEU ASSIM SOU EU, ASSIM SOU EU... "Eu sempre fui um cara triste - reitera hoje Odair José - "e nem sei explicar o porquê. Mas realmente eu sou um cara triste, infelizmente, sou. Se alguém disser pra mim agora, 'você acaba de ganhar 30 milhões de dólares na loteria', eu continuarei triste. Nada me alegra. Acho que já me convenci de que a minha vida na verdade é em outro patamar. Então eu não me alegro com as coisas deste mundo; o que eu vejo aqui me entristece. Peço até que você me desculpe por eu ser assim tão triste." Outro cantor de soturna tristeza é Agnaldo Timóteo. E a presença deste traço psicológico pode ser notada na sua voz e em grande parte de seu repertório. "Sou um cavaleiro triste / caminhando no sertão do meu país", anuncia ele numa gravação dos anos 70. (411) “A cada instante me perco na tristeza / vem o pranto e me encontro sem saber o que fazer", lastima-se em outra letra de música. (412) Um dos grandes sucessos do cantor naquele período chama-se exatamente Tristeza danada. (413) No trecho a seguir, Timóteo explica a razão desta freqüente recorrência ao tema e o porque de se auto-proclamar um "cavaleiro triste". "Esta tristeza é porque a fama às vezes lhe proporciona tudo o que você quer do ponto de vista material, mas você não consegue o que deseja do ponto de vista sentimental. E isso é uma tragédia na vida das pessoas bemsucedidas. A maioria das minhas noites eu as passo sozinho É um

negócio difícil de suportar e me entristece muito. já aconteceu de, muitas vezes, ao voltar de temporadas de shows, eu jogar a mala cheia de dinheiro na gaveta do quarto, olhar pro lado e dizer: 'Puta que pariu! Cheio da grana e sozinho.' E isso é uma das minhas grandes frustrações, palavra que até deu título a uma antiga música que gravei":

...POR ISSO CORRO PELOS CANTOS DA CIDADE BUSCANDO AMOR SEM FELICIDADE FALADO, MARCADO E DE QUE VALE O MEU CARRÃO DE OURO SE SÓ TRISTEZA E SOLIDÃO É O MEU TESOURO...

A tristeza presente nas canções de Agnaldo Timóteo e Odair José foi levada às últimas conseqüências no repertório de Nelson Ned. "Eu sou um livro... cheio de páginas tristes", escreve ele em Minha vida daria um livro. Na composição Não sei mais viver comigo ele desafia: "Se existir alguém mais triste do que eu / eu quero conhecer." E na balada Não tenho culpa de ser triste ele confessa: "Por mais que eu disfarce / nada é mais triste do que a minha alegria." Observo, entretanto, que após a sua conversão à Igreja Evangélica, em março de 1993, o discurso de Nelson Ned mudou e agora ele se proclama um homem feliz e em paz consigo mesmo. Mas em suas composições lançadas no período 1968/78, é difícil encontrar alguma que não traga a palavra "triste" ou "tristeza". Ou ambas: "Tantas vezes eu chorei de tristeza / e ninguém me entendeu / penso até que no mundo inteiro / o mais triste sou eu.'' (414) ** Na entrevista que fiz com Nelson Ned indaguei-lhe a razão de tão profunda melancolia e recordei várias composições nas quais cita as palavras "triste" e "tristeza". Um pouco surpreso com as citações e visivelmente emocionado "agora voce mexeu comigo" - , o cantor respondeu: "Realmente, eu levava uma vida triste. E a minha tristeza era porque eu era um cara que tinha muita mulher, mas não tinha um amor; eu fazia muito sexo, mas não tinha carinho. Eu não havia encontrado ainda uma moça que gostasse de mim. E eu sempre me apaixonei perdidamente, os meus amores sempre foram muito fortes. Mas devido

até a minha própria constituição física eu sempre fui um homem muito consciente das minhas limitações. E isso me fazia ver que realmente eu era um cara triste e cultivava essa tristeza, que hoje eu chamo de 'melancolia dos românticos'. É a cultura do masoquismo pelo masoquismo. O cara gosta de sofrer e ponto final." No livro Retrato do Brasil, Paulo Prado dedica um capítulo especialmente ao romantismo, fenômeno que segundo ele foi um criador de tristezas e, como tal, uma das mazelas do Brasil. O autor abominava os "desvarios do mal romântico" que levavam poetas como Álvares de Azevedo e Castro Alves a adorar a própria dor - fonte mais abundante de suas inspirações. "Entre nós" - dizia Paulo Prado - "o círculo vicioso se fechou numa mútua correspondência de influências; versos tristes, homens tristes; melancolia do povo, melancolia dos poetas, enamorados e infelizes.'' (415) O cantor Nelson Ned, brasileiro, romântico e triste, confirma que na dor está um dos mais poderosos motores da sua criação artística: "Eu não creio em arte sem sofrimento. A arte é produto do sofrimento. Veja o Evangelho: o apóstolo Paulo só escreveu as grandes cartas depois que estava preso. Tem uma frase em francês que diz: 'O sofrimento é o mestre do homem.' Tanto é assim que hoje eu sou um cantor evangélico por causa do sofrimento. Eu fui para a igreja pela dor. Então estar triste era importante para eu compor. E era uma coisa espontânea. Eu me apaixonava, não era correspondido, aí eu compunha. Eu sou um compositor autobiográfico. Tudo aquilo que está nos meus discos, eu vivi. Até as minhas hipocrisias eram verdadeiras. E hoje eu sou um cantor gospel também autobiográfico. É por isso que não acredito em poder de criação na arte sem sofrimento. A minha música é sempre conseqüência de uma causa: a dor. Cada fracasso amoroso que eu tinha me rendia uma canção." Como se vê, Nelson Ned também colocou todos os seus fracassos nas paradas de sucesso. Um dos maiores de sua carreira é a balada A cigana, na qual relata um episódio da infância: uma vidente previra que seu futuro seria repleto de amor e de felicidade. Porém "... o tempo foi passando / eu fiquei só... /...e não consigo ser feliz", constata ele entristecido, para em seguida ousar a mais terrível confissão já feita por um artista da música popular brasileira: "Ninguém jamais gostou de mim." Nenhum outro compositor popular se desnudou tanto quanto Nelson Ned no verso desta canção, gravada em 1970. Na maioria das músicas românticas os compositores confessam que estão sós, abandonados e sem amor, mas deixam antever que já foram amados em algum momento de

suas vidas. No samba-cancão Folha morta, por exemplo, Ary Barroso se proclama infeliz "... à margem da vida / sem amparo ou guarida...", mas reconhece: “Já tive amores / tive carinhos / já tive sonhos..." Antônio Maria foi mais enfático ao dizer "Ninguém me ama / ninguém me quer...", verso que também flagra um momento presente: ninguém o ama agora, "é a velhice chegando / e eu chegando ao fim", mas o personagem certamente já teve muitos amores no passado. Na composição de Nelson Ned esta leitura não é possível pois a inclusão do advérbio "jamais" não deixa espaço para dúvida. Nunca, em tempo nenhum, jamais ele foi amado. E isto o cantor fez questão de repetir em uma outra composição ao dizer que "Todo mundo tem um amor na vida / só eu vivo assim / tantas vezes eu amei / e ninguém jamais gostou de mim." (417)

Este caráter autobiográfico da produção musical de Nelson Ned também aparece em Se eu pudesse conversar com Deus, composição de 1969, cuja temática foi mais tarde aprofundada por Gilberto Gil em Se eu quiser falar com Deus. Lançada pelo cantor Antonio Marcos, a música de Nelson Ned rapidamente alcançou os primeiros lugares de venda e execução em rádio, revelando para milhões de brasileiros mais um momento de tristeza e de solidão do artista. Nelson Ned recorda: "Eu compus Se eu pudesse conversar com Deus quando conheci uma menina maravilhosa chamada Betinha Ela tinha um gordini verde e andava pelas noites de São Paulo. Então eu coloquei na minha cabeça: vou ganhar essa menina. Uma noite Betinha saiu pra passear comigo em seu carro e depois me levou até a porta de casa. Aí pensei: pronto, agora a gente vai descer e eu vou subir com ela para o meu quarto. Mas não. Ela parou o carro em frente ao prédio em que eu morava e disse: 'Vou te deixar aqui porque agora vou pra casa dormir'. E foi embora. Aí eu fiquei muito triste e pensei: 'Pô, eu não dou mesmo sorte no amor. Vou largar tudo, vou renunciar a minha carreira e tal.' Eu passei toda aquela noite chorando. No dia seguinte peguei o violão e fiz": EU HOJE ESTOU TÃO TRISTE EU PRECISAVA TANTO CONVERSAR COM DEUS FALAR DOS MEUS PROBLEMAS TAMBÉM LHE CONFESSAR TANTOS SEGREDOS MEUS

SABER DA MINHA VIDA E PERGUNTAR POR QUE NINGUÉM ME RESPONDEU SE A FELICIDADE ESXISTE REALMENTE OU É UM SONHO MEU... Contrapondo-se à imagem do brasileiro como um povo alegre e festivo, as canções de Nelson Ned parecem mostrar que isto aqui é mesmo uma terra de soturna tristeza - reforçando a tese de Paulo Prado e de alguns de seus contemporâneos, já que o pessimismo em relação ao país era a tônica de nossa intelectualidade até as duas primeiras décadas do século passado. O critico literário Silvio Romero dizia: "Temos uma população mórbida, de vida curta, achacada e pesarosa em sua maior parte.'' (4l9) E o escritor Ronald de Carvalho explicava que o brasileiro é naturalmente triste, porque tristes são as três raças que contribuíram para nossa formação. "O português é nostálgico como a lânguida toada dos seus fados; o africano é um abatido, suas revoltas são gritos de dor contra as agruras do exílio em que o puseram; e o índio é um sofredor, tem na alma a resignada queda dos rios e o murmúrio das selvas misteriosas." (420) Dessa mistura de povos nostálgicos, abatidos e sofredores nasceu o cantor e compositor Paulo Sérgio. De sua garganta partia um som agoniado e soluçante, expressando um estado de irremediável tristeza: "Eu não conheço felicidade / por mais que me esforce não sei sorrir", se auto-analisava na balada Recalques. Em duas outras canções dos anos 70 ele desabafava: "Eu sigo triste sem querer viver...” e "estou só / vagando solitário na imensidão / fugindo desta vida que me disse não". (421) Uma pista para a origem de tanto desalento e melancolia está na letra da canção Parto em preto e branco, na qual Paulo Sérgio fazia uma espécie de regressão ao útero materno e explicava sua tristeza como um traço de caráter hereditário (como, aliás, defendia Paulo Prado): "Em certa tarde minha mãe andava só / e a tristeza que ela sentia refletia toda em mim." Autor de Ultima canção, No dia em que parti, Desiludido e vários outros hits gravados por Paulo Sérgio, o compositor mineiro Carlos Roberto confirma que seu amigo não manifestava aquela alegria que muitos projetam em uma pessoa de sucesso e popularidade. "Paulo era um cara muito sofrido e melancólico. Ele não conseguia dar um sorriso aberto. Olhando hoje os tapes de antigos programas de televisão você percebe que ele esboçava um sorriso muito sem graça.

Quando a gente parava para tomar uns goles de conhaque eu notava que às vezes seu olhar ficava completamente perdido, como se buscasse algum ponto no infinito. Ele olhava pra mim mas era como se não me visse. Seu pensamento vagava muito longe dali." Assim como os versos dos poetas do romantismo, as letras das canções de Paulo Sérgio são cheias de presságios lúgubres e antecipações da morte. Uma de suas gravações chama-se justamente Por favor, me ajude a morrer. Em uma outra música ele questionava: "Vida pra que? / eu não quero viver" (422) e, na autobiográfica Alfaiate, ele definia: "Eu sou da tristeza / costuro esses dias... /... na dor infinita / de ter que viver." O curioso é que assim como os poetas Castro Alves e Álvares de Azevedo, o cantor Paulo Sérgio também morreu moço ou, quem sabe, deixou-se morrer. Na letra de Não creio em mais nada ele expressava um sentimento de desesperança, juntamente com a sensação de impotência diante da vida, que levava o jovem cantor a vislumbrar o suicídio como o único caminho para sua trágica existência:

NÃO SEI O QUE FAÇO A MINHA VIDA É UMA LUTA SEM FIM EU SINTO CANSAÇO E JÁ NÃO SEI SE VALE A PENA INSISTIR HÁ DIAS NA VIDA QUE A GENTE PENSA QUE NÃO VAI CONSEGUIR QUE É BEM MELHOR DEIXAR DE TUDO E FUGIR QUE OUTRO MUNDO TUDO VAI RESOLVER... Outro artista "cafona" que também morreu muito jovem foi o cantor e compositor fluminense Evaldo Braga. Consagrado como "o ídolo negro", ele é autor de um conjunto de canções no qual é possível encontrar ecos de uma infância marcada pela pobreza e pelo abandono. "Eu não sou lixo / pra você querer enrolar / eu não sou lixo / pra você fora jogar...", protesta em um de seus grandes sucessos, Eu não sou lixo. (423) Filho de pais desconhecidos, o cantor viveu grande parte de sua infância nas ruas, sendo depois encaminhado ao antigo SAM (Serviço de Assistência ao Menor, atual Febem), onde permaneceu até a maioridade. “Aquilo era uma selva" - dizia Evaldo Braga -, “o cara tinha que saber se defender. Escolhi a posição de cozinheiro, porque era lá que estava o

segredo de tudo. Os mais fortes dominavam o ambiente, mas sempre respeitavam o cozinheiro " (424) Ao sair dali Evaldo foi trabalhar de engraxate na porta da Rádio Mayrink Veiga, no Rio, travando os primeiros contatos com o meio artístico. Em 1969 conheceu o produtor e compositor Osmar Navarro, que o levou para gravar o primeiro e sonhado disco. Mas o sucesso, o dinheiro e as mulheres não diminuíram o drama do menino pobre e abandonado que convivia em Evaldo Braga. A grande tristeza do cantor era ser filho de pais desconhecidos e o seu maior desejo era encontrar a sua mãe. "Daria a minha vida para conhecê-la", disse numa entrevista. (425) Um dia Evaldo Braga resolveu ir à procura de sua história na cidade de Campos, interior do Rio, onde nasceu. Ele se hospedou em um hotel e ficou lá uns dias pesquisando, conversando e fazendo perguntas a algumas pessoas. Queria descobrir de uma vez por todas quem eram seus pais. Numa certa tarde encontrou um senhor já bem idoso que disse ter conhecido a sua mãe. O velho contou que ela era uma prostituta da região e que há muitos anos teve uma criança e a abandonou num cesto de lixo de uma casa de família. Essa família teria recolhido o recém-nascido da lixeira e dado para um orfanato da cidade. E por uma série de outros detalhes que aquele senhor lhe contou Evaldo Braga saiu de lá convencido de que a criança da lixeira era ele próprio. “A partir desse dia a vida de Evaldo acabou", afirma Osmar Navarro, a quem o cantor costumava chamar de pai. "Ele que não bebia e não fumava, começou a beber e a fumar que nem um louco. E um dia ele chorando disse pra mim: 'Pai eu não sou lixo, minha mãe não podia ter feito isso comigo, por que ela fez isso, meu pai?' Eu tentava consolá-lo, orientá-lo da melhor forma possível, mas não teve jeito. Ele me dizia 'eu não quero mais saber de nada, não. Eu quero morrer, eu quero morrer'. Aquela descoberta foi realmente um trauma terrível para ele. E a sua vida se desestruturou a partir daí. Tanto que no dia do acidente o laudo médico acusou uma grande quantidade de álcool no sangue de Evaldo." O cantor estava com 25 anos e no auge do sucesso quando, na manhã de 31 de janeiro de 1973, o seu automóvel forçou uma ultrapassagem e bateu de frente com um caminhão numa curva da antiga BR-3 (Rio-Belo Horizonte). Evaldo Braga morreu na hora. Enquanto viveu, ele cantou a tristeza, a

solidão e a morte. "Vou acabar a minha vida / que só me dá desgosto / lágrimas no meu rosto não param de rolar", anunciava ele na balada Meu delicado drama. Na canção de protesto Tudo fizeram para me derrotar ele repetia: "Eu já não faço questão de viver...", desalento explicitado numa outra letra que diz: "Em nada mais posso crer / para mim nada existe / somente eu sei dizer porque vivo tão triste..." (426) Contemporâneo de Evaldo Braga, e mais um representante da música negra "cafona", o cantor e compositor Nenéo também fez de suas canções um veículo de solidão e tristeza. "Sem você minhas noites são tão tristes / vou morrer...", ameaça ele em Quero ter coce perto de mim. Em Deixa-me chorar ele confessa: "Há tanta tristeza em mim... /... eu sou cada vez mais triste". Melancolia que se resume na frase de uma música que Nenéo fez especialmente para Paulo Sérgio gravar: "Vou me encontrando nas canções tristes que faço." (427) Mas por que tantas melodias em tom menor? Por que tanta referência à morte, à solidão e à tristeza? Nenéo explica e talvez a sua explicação também sirva para entender um pouco da tristeza de todos os cantores "cafonas" de sua geração: “As minhas músicas são bem o retrato de tudo o que foi a minha vida." E continua: "Por coincidência, hoje de manhã eu acordei justamente pensando no tempo em que eu morava no Morro do Borel. Deitado na cama, fiquei lembrando das pessoas que acompanharam a minha infância, que é uma coisa que eu nem gosto de recordar porque muito cedo perdi meu pai, que morreu do coração; 17 dias depois perdi um irmão com meningite, e 19 dias depois a minha mãe morreu de tuberculose. Numa seqüência de um mês e meio morreu quase toda a minha família. Na época eu fiquei até meio perturbado porque foi um baque muito grande ver os três morrerem assim num período tão curto Aí eu e meus outros seis irmãos ficamos jogados pelas casas dos outros, ali no morro mesmo. Então talvez até inconscientemente eu traga tudo isso para as melodias e para as letras que faço." Artista de infância pobre, como a de Martinho da Vila, Wilson Batista, Cartola e tantos outros nomes da nossa música popular, o que mais Nenéo guardaria de marcante do seu tempo no Morro do Borel? "A miséria, a falta das coisas, a falta de alimento, a falta de sorte daquelas pessoas. Me lembro do meu pai já doente, sem poder trabalhar, e de minha mãe carregando bacias de roupas na cabeça pra ganhar aquele dinheirinho no fim do mês. Ela ficava tanto tempo dentro da água do rio lavando roupa que chegava a formar um aro

branco nas suas pernas negras. Quando minha mãe adoeceu foi internada num hospital público lá em Jacarepaguá. Eu fui visitá-la naquela mesma semana, mas ao chegar na portaria a moça perguntou o nome dela e depois me disse: 'Sua mãe entrou em óbito.' 'Óbito? O que é isso?' 'Sua mãe morreu."' A impacto da notícia gelou o corpo do pequeno Nenéo que hoje surpreende-se com a própria reação que teve naquela hora. "Eu sai correndo feito um doido pelo corredor do hospital gritando 'Não, não, não...' Entrei num local que estava cheio de corpos cobertos e saí puxando os lençóis, procurando minha mãe. Quando a encontrei eu botei minha boca na boca de minha mãe e suguei a sua boca na esperança de dividir a minha vida e um pouco da minha saúde com ela. Aí os médicos e as enfermeiras avançaram sobre mim e quase me bateram. 'Você não pode fazer isto, rapaz. Sua mãe morreu de uma doença contagiosa, você pode contrair esta doença.' Eles me pegaram e me sacudiram querendo me acordar porque eu não parava de gritar. Quando finalmente parei, eu comecei a chorar, chorar convulsivamente; fiquei uns 10 minutos ali chorando, chorando. Então eu acho que as minhas músicas são tristes porque são um retrato de tudo o que eu passei na vida." Este depoimento de Nenéo é significativo porque mais uma vez nos revela como é tênue a linha que separa uma simples e triste canção de amor de uma elogiada canção de protesto. Ambos os estilos podem conter o grito de milhões de brasileiros excluídos do sistema social, sem acesso à informação, educação e saúde pública. Numa entrevista o cantor Evaldo Braga também recorreu à sua trajetória de menino de rua, interno do SAM e ex-engraxate para explicar a tristeza de suas canções de amor. “As minhas músicas são inspiradas, quase todas, nesse meu tempo de luta e de sofrimento. Elas espelham exatamente o que passei, que é, na verdade, o que muitos passam. E isso explica por que meus discos vendem." (428) Ou seja, mais uma vez rejeição social e rejeição amorosa se confundem e se traduzem em tristeza e sucesso musical. Idéia também expressa por outro mensageiro de amor e melancolia, o cantor Waldik Soriano: "Mesmo quando não estou sofrendo, escrevo músicas para expressar sentimentos que existem em pessoas tão humildes quanto eu. Minha música é sempre triste porque eu sofri muito e não consegui esquecer nada. Está tudo dentro de mim, lá no fundo, como matéria-prima para

minha fábrica de sentimentos." (429) É importante observar que a existência de brasileiros soturnos e tristonhos não passou despercebida entre as autoridades do regime militar. Em sua análise da propaganda política produzida pelas agências do governo no período do AI-5, o historiador Carlos Fico destaca um filme que tratava precisamente da tristeza. Veiculado maciçamente nas televisões da época, o filme mostra uma garota solitária e triste, olhando para um grupo de crianças que brincava num parque. Ao fundo, um trecho da letra de sua trilha musical diz; "Eu queria poder reunir todo o amor que existe / e repartir este amor com quem estivesse triste." Carlos Fico observa que por trás desta fachada aparentemente ingênua e despolitizada, esta e outras peças publicitárias do regime militar eram cheias de mensagens sutis e políticas. Os profissionais da propaganda da ditadura valiam-se de recursos alegóricos, figurados, para afirmar promessas de cunho político. O que, afinal, queria dizer este filme da tristeza?, pergunta o historiador, e ele mesmo responde que uma de suas possíveis leituras é que, na visão dos militares, tristes eram todos aqueles incapazes de perceber os benefícios de uma nova era de "fartura" e de "felicidade" instaurada no Brasil a partir de 1964. Não perceber a inauguração daquele novo tempo “resultaria em tristeza, em inadaptação - tal como eram não-adaptados os que insistiam em se opor ao regime militar". (430) Portanto, mais do que nunca era preciso saudar a alegria e rechaçar a tristeza, desgraça de todos os pessimistas e derrotistas. ufanistas é sempre evocada a festividade: "Hoje tudo é alegria / pois o progresso eclodiu / com amor e poesia / venho te cantar Brasil..." (431) Já nas canções de protesto a ênfase recai sobre a tristeza. No samba endereçado ao presidente Médici, Chico Buarque cordialmente pedia: "Você, que inventou a tristeza / ora, tenha a fineza de desinventar", e em outra canção de teor político Geraldo Vandré ensinava que "todos os tristes querendo juntos / toda a tristeza vai se acabar." (432) Para os opositores do regime militar, aquele era um tempo de sofrimento e tristeza havendo assim uma certa concordância entre as suas mensagens e as do repertório "cafona". O cantor Luiz Ayrão, por exemplo, num samba triste dos anos 70, protestava: “Ah! que saudades de outrora / pra esse sufoco de agora / que

mal que a gente fez." (433) Em outra composição daquela época ele novamente lamentava: "Minha vida é tão triste / meu peito cheio de dor / minha alma ferida / nas garras do desamor." (434) Tristeza e pessimismo que se espalham por outras faixas de discos do cantor, embora hoje ele se revele surpreso com esta constatação. "Eu não tinha reparado isso... Tem muita tristeza na minha obra daquele período?... Você me chamou atenção para um aspecto que eu não tinha nem reparado. Mas é a tal coisa, a gente retrata a época que vive, deve ser isso." Visando estimular a alegria e o otimismo no povo brasileiro, uma das campanhas da ditadura tinha como lema a frase: "Você precisa acreditar” ou seja, o oposto do que cantava Paulo Sérgio no sucesso Não creio em mais nada. E a descrença do artista aparece em outra balada em que ele diz: "Quanta tristeza eu tenho / quanta incerteza comigo vai.. " (436) Inseridos neste contexto, o ceticismo e a melancolia do repertório "cafona" acabavam por adquirir, mesmo que não intencionalmente, um caráter transgressor e de resistência principalmente quando a tristeza vinha associada às questões sociais do país. Em uma de suas canções o compositor Sidney Quintela confessa-se deprimido por se deparar com crianças abandonadas nas ruas: "Eu já vi tanta coisa pra me entristecer / vi criancinhas de frio chorar / e na lata de lixo a fome matar..." (437) Odair José expressa sentimento semelhante ao falar do contraste entre pobres e ricos em nossa sociedade: "Gente bem de vida / povo da favela / casa que não tem janela / mundo sem prazer / noite de agonia / quem levou minha alegria?" (438) O discurso dessas canções também estabelecia um flagrante contraste com um outro slogan muito difundido na época: "Brasileiros, nunca fomos tão felizes" - mensagem com a qual a TV Globo encerrava sua programação diária no inicio dos anos 70. Aliás, em perfeita sintonia com o ideário do regime militar, em 1971 a emissôra lançou a sua mais tradicional mensagem de fim de ano, a música Um novo tempo, cuja letra permitia uma analogia entre o ano novo que se aproximava e o novo tempo político anunciado pelas Forças Armadas a partir de 1964: HOJE É UM NOVO DIA DE UM NOVO TEMPO QUE COMEÇOU NESSES NOVOS DIAS AS ALEGRIAS SERÃO DE TODOS, É SÓ QUERER TODOS NOSSOS SONHOS SERÃO VERDADES

O FUTURO JÁ COMEÇOU... Segundo Nelson Motta, ele e Paulo Sérgio Valle fizeram a letra desta música de acordo com as instruções recebidas da TV Globo. No dia da gravação, porém, com um coral de estrelas da emissora, a atriz Dina Sfat, que era de oposição ao governo militar, foi tirar satisfações com seu amigo Nelson Motta. "Ela estava furiosa com a música que teria que 'cantar' e me chamou para uma amistosa mas dura cobrança: como tínhamos feito aquilo? Era uma vergonha: aquela música servia aos objetivos da propaganda da ditadura, com a cumplicidade da TV Globo." (439) De nada adiantou a reclamação da atriz. Como contratada da Rede Globo, ela era obrigada a participar das mensagens da empresa, e Dina Sfat acabou emprestando o seu sorriso para saudar aquele "novo tempo". O sucesso da gravação foi estrondoso e, independentemente da vontade dos cantores ou mesmo dos autores, ajudou a propagar a idéia de que o Brasil vivia uma era de alegria, de felicidade e de progresso irreversíveis. "O nosso jingle se transformou na música mais tocada e cantada do fim de ano: em todas as festas, em todas as churrascarias, em todas as casas, em vez de Jingle Bells cantava-se Um novo tempo e eu não sabia se sentia orgulho ou vergonha", confessa Nelson Motta. (440) Distantes desta propagada e forçada alegria de um "novo tempo", os artistas "cafonas" seguiam cantando a velha tristeza cotidiana dos marginalizados de bolso e de coração, fazendo suas as palavras de Fagundes Varela no poema Cântico do Calvário: "Tornei-me eco das tristezas todas / que entre os homens achei." (441) Na balada Moça do subúrbio o cantor Kleber descreve a tristeza "de uma vida sem carinhos e sem amor / pés descalços, roupa humilde, moça pobre / rosto lindo que ninguém quis dar valor". Aqui o artista fala não apenas de sua tristeza individual mas da tristeza daquela gente humilde - as moças tristes do subúrbio que se identificam com as tristes canções "cafonas". Há várias composições gravadas e dedicadas especialmente a elas. Como uma antena receptora dos queixumes deste segmento de público, o cantor Paulo Sérgio também tenta, por um momento, consolar a moça triste que escuta suas tristes canções no rádio: "Menina dos olhos tristes / olhe para

mim / não deixe que a tristeza lhe maltrate assim..." (442) Deve-se observar, contudo, que esta freqüente referência à tristeza não é exclusividade do repertório "cafona" dos anos 70. Embora sem a mesma intensidade, este tema está presente em toda a música popular brasileira: nos mais recentes sucessos do rádio (baladas sertanejas ou pagodes românticos), nos rocks de Cazuza e de Renato Russo, nas dores-de-cotovelo de Roberto Carlos e Lupicínio Rodrigues e nos sambas de Ataulfo Alves e Paulinho da Viola. Com exceção de Aquarela do Brasil, um samba-exaltação, todos os grandes clássicos da MPB falam de tristeza e solidão. "Tire o seu sorriso do caminho / que eu quero passar com a minha dor...", enfatiza um soturno Nelson Cavaquinho. "Minha vida / era um palco iluminado...", era, não é mais, reconhece Orestes Barbosa em Chão de estrelas. "No rancho fundo / de olhar triste e profundo / um moreno canta as mágoas", descrevem Ary Barroso e Lamartine Babo. Outro moreno cantador, Luiz Gonzaga, consolava-se com um pássaro do sertão: "Assum preto, o meu cantar / é tão triste como o teu". A melancolia se alastra e leva Orlando Silva a perguntar: "Ó, jardineira / por que estás tão triste?" Imerso na solidão, Cartola volta ao jardim e queixa-se às rosas: "Devias vir / para ver os meus olhos tristonhos". Do outro lado da janela um atento Chico Buarque também observa "Carolina / nos seus olhos tristes..." Cansado de tanta tristeza, numa noite de Natal o sofrido compositor Assis Valente apela: "Papai Noel, vê se você tem / a felicidade pra você me dar..." E em pleno carnaval o compositor Haroldo Lobo implora: "Tristeza / por favor, vá embora..." Mesmo na ensolarada Garota de Ipanema, depois de contemplar aquele corpo dourado a caminho do mar, o poeta lamenta: "Ah! por que estou tão sozinho / ah! por que tudo é tão triste..." Num outro samba de Tom e Vinicius, A felicidade, o título bem poderia ser “A Tristeza", já que da primeira à última estrofe é de um lamento só: "Tristeza não tem fim / felicidade sim..." Idéia que mais recentemente Caetano Veloso realçou ao cantar que "a tristeza é senhora / desde que o samba é samba é assim.. " Se é discutível afirmar que somos um povo triste, não há como negar, entretanto, que existe uma grande identificação dos artistas e do público brasileiro com o tema da tristeza. E o conteúdo e o sucesso popular das canções do repertório "cafona" são provas eloqüentes disto Em seu livro,

Paulo Prado já havia mesmo destacado que a tristeza latente da alma do Brasil podia ser encontrada na poesia popular, nas lendas, nas danças e nas músicas aqui produzidas. O autor não viveu a década de 70 - morreu do coração, em 1943 e não pôde conhecer a geração de Nelson Ned e Paulo Sérgio, que, mais do que qualquer outra de nossa música popular, cantou o romantismo e a tristeza. Se o brasileiro é mesmo um ser triste, esta geração de cantores foi a mais profundamente brasileira.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS APENSAS AO CAPÍTULO (seguindo a numeração seqüencial encontrada no texto):

408. Paulo Prado. Retrato do Brasil; ensaio sobre a tristeza brasileira 8a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 143. 409. Idem, pp. 140-141. 410. Dante Moreira Leite. O caráter nacional brasileiro; história de uma ideologia. 4-a ed. São Paulo: Pioneira, 1983, p. 293. 411. Verso de Cavaleiro triste. Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 412. Verso da canção De repente. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 413. A gravação aparece em 2° lugar na lista dos compactos duplos mais vendidos na semana de 30 de janeiro a 4 de fevereiro de 1978, em São Paulo. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth/Unicamp. 414. Verso de Eu preciso encontrar urgentemente Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia 415. Paulo Prado, op. cit., p. 182. 416. A cigana aparece em 2º lugar na lista dos compactos simples mais

vendidos no mês de janeiro de 1970, no Rio. A mesma gravação ocupa o 6º lugar na relação dos 50 discos mais vendidos no ano de 1970. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp; Nopem - Pesquisa de mercado sobre venda de discos. 417. Verso de Eu preciso encontrar urgentemente. Ver indice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 418. O compacto simples com Se eu pudesse conversar com Deus ocupa o 1° lugar em vendagem no mês de Janeiro de 1970, no Rio. A mesma gravação alcança o 2º lugar entre os 50 discos mais vendidos no ano de 1970. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp; Nopem - pesquisa de mercado sobre venda de discos. 419. Silvio Romero. História da literatura brasileira Vol.1. 7ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio/ INL, 1980, p. 93. 420. Ronald de Carvalho. Pequena históna da literatura brasileira. 14ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia/INL, 1984 421. Versos de Não morreu a esperança e Estou só. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 422. Verso de Vida pra qu. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 4 23. Esta canção é uma das principais faixas do LP “O ídolo negro vol. 2”, que alcançou o 4º lugar entre os LPs mais vendidos na semana de 12 a 17 de março de 1973, no Rio. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discosAcervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp. 424. "Evaldo Braga, criado no SAM, atingiu a glória aos 25 anos" - O Dia, 3-2-1973. 425. "Cantor Evaldo Braga morreu em Três Rios" - O Dia, 1-2-1973. 426. Verso de A cruz que carrego. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 427. Verso de A Verdade é diferente. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 428. “Evaldo Braga, criado no SAM, atingiu a glória aos 25 anos" - O Dia,

3-2-1973. 429. "Waldik Soriano: Eu sou o poeta da dor do povo - Diário de Notícia, 5-9-1973. 430. Carlos Fico, op. cit., p. 125. 431. Verso de Brasil explosão de progresso. Para outras indicações ver índice de canções atadas em Fontes e bibliografia. 432. Verso de Se a tristeza chegar. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 433. Verso de Ai! meu senhor. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 434. Verso de Menino rei do mar. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 435. Não creio em mais nada aparece em 4° lugar na lista dos compactos simples mais vendidos na semana de 7 a 12 de dezembro de 1970, no Rio. A mesma gravação ocupa o 13° lugar na relação dos 50 discos mais vendidos no ano de 1970. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp; Nopem - pesquisa de mercado sobre venda de discos. 436. Verso de Recalques Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 437. Verso de Eu já li vi e ouvi fanta coisa. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 438. Verso de Vida que não pára. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 439. Nelson Motta. Noites tropicais, op. cit., p. 235. 440. Idem, ibidem. 441. Fagundes Varela. Poesias completas de Fagundes Varela. Rio de Janeiro: Ed. Ouro, 1965, p. 194. 442. Verso de Menina triste. Ver índice de canções citadas em Fontes e

bibliografia.

“Eu Não posso tocar violão, estou proibido de tocar, me neutralizaram pra eu não tocar nunca mais.” (RAVEL)

A década de 70 foi a década da patrulha - e não apenas a rodoviária ou policial que rondam a cidade à procura de elementos transgressores. Numa entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, em agosto de 1978, o cineasta Cacá Diegues identificava (e pela primeira vez nomeava) a existência de um outro tipo de vigilante: “Acho muito grave essa espécie de patrulha ideológica que existe no Brasil. Uma espécie de polícia política que fica te vigiando nas estradas da criação, para ver se você passou da velocidade permitida." (443) É claro que esta queixa de Cacá Diegues era motivada pelo fato de naquele momento artistas e intelectuais como ele, Gláuber Rocha, Caetano Veloso e Gilberto Gil estarem tendo algumas de suas obras e declarações "policiadas" por setores da esquerda brasileira. O caso Caetano Veloso é exemplar. Em 1977 - ano em que os militares comemoravam os "13 anos da revolução" e que a sociedade civil protestava

- , o cantor lançou o LP "Bicho", que indicava uma opção preferencial pelo prazer e trazia na faixa de abertura um quase manifesto: "Deixa eu dançar / pro meu corpo ficar odara..." Palavra do dialeto ioneba (africano), odara, segundo o próprio Caetano, significa "estar bem", "sentir-se feliz". (444). Nas entrevistas à imprensa o artista dizia que não tinha maiores interesses por assuntos políticos e reiterava que aquele era um disco "de quem gosta de música para dançar". Aí é que estava o problema. "Dançar, nesses tempos sombrios?", indagava a jornalista Ana Maria Bahiana. (445) Um outro jornalista, indignado, afirmava que Caetano "não tinha o direito de por uma roupa colorida e sair brincando por aí, dizendo que está tudo bem, isso é oba-oba inconseqüente". (446) O ápice do patrulhamento ocorreu durante a temporada do espetáculo Bicho Baile Show, no qual Caetano era acompanhado pela Banda Black Rio - grupo carioca que propunha a fusão do samba com elementos do jazz, soul e funk. A jornalista Margarida Autran dizia que "o artista não pode alienar-se da realidade que o cerca" e que por isso Caetano Veloso não tinha o direito "de não ler jornais, de declarar publicamente nada saber do que se passa em termos políticos no Brasil e no exterior e, conseqüentemente, de apresentar um espetáculo como o que está em cartaz no teatro Carlos Gomes, irresponsavelmente 'feito para dançar'. E que, afinal, nem para dançar serve". Ela concluía afirmando que ao seguir o rastro do sucesso da Banda Black Rio, o show de Caetano não passava de uma "oportunista e malsucedida incursão ao alienado clima que hoje embala os subúrbios cariocas". (447) Cobrança semelhante era endereçada a Gilberto Gil, que naquele ano lançou o dançante LP "Refavela", sequência do regionalista "Refazenda". Numa crítica intitulada "Rebobagem", Tárik de Souza dizia que Gil e Caetano eram "irmãos siameses em idéias e contradições", porque Gil também se proclamava "um ignorante político" e alguém que ”nada sabia sobre sucessão, redemocratização e quaisquer assuntos da matéria". Em seu texto Tárik lembrava que Gil teria dito: "Simpatizo com o presidente Geisel." Para o crítico, este caráter conservador do discurso de Gil revelaria um artista "equivocado como pensador" e, embora seu disco fosse “ritmicamente luminoso", as canções tinham "letras confusas", que não chegavam "a explicar as declarações e atitudes estapafúrdias" do autor. (448)

Como se vê, mais do que a música em si, os críticos analisavam as atitudes, as opiniões, os posicionamentos políticos de Caetano e Gil. Contra isso insurgiu-se Caetano Veloso numa polêmica entrevista ao Diário de são Paulo. Ali ele afirmou que os cadernos de cultura dos principais jornais e revistas do país eram dominados por uma "esquerda medíocre, de baixo nível cultural e repressora" que pretendia policiar "essa força que é a música popular no Brasil". E Caetano exemplificava citando nominalmente quatro críticos musicais: Tárik de Souza, José Ramos Tinhorão, Maurício Kubrusly e Maria Helena Dutra, que, segundo ele, distribuíam estrelinhas a discos e shows "fingindo que estão fazendo um trabalho da revolução operária, e se acham no direito de esculhambar com a gente, porque se julgam numa causa nobre; quando não tem nobreza nenhuma nisso". Para Caetano, seus criticos não tinham autoridade para questionar nenhuma atitude dele porque "são pessoas que obedecem a dois senhores: um é o dono da empresa, o outro é o chefe do partido" e que por isso eles se expressariam numa "linguagem completamente esquizofrênica", de difícil assimilação para o leitor. "Ninguém entende os artigos que os imbecis escrevem porque é uma mistura de Roberto Marinho e Luiz Carlos Prestes." Chamando a crítica militante de "canalha", Caetano dizia que "se eles não se tornarem uma União Soviética e mandarem me matar, não conseguirão jamais nada comigo, a não ser que eles ganhem os tanques. Se eles tiverem os tanques nas ruas, nas mãos deles, aí eles poderão me impedir em alguma coisa. Fora isso, é impossível" porque "eles não são de nada. É uma canalha que eu digo que vou acabar, que a gente já acabou, já matou, são defuntos que fingem que estão vivos". (449) Bem, depois disso tudo um jornalista previu que as pazes entre Caetano e a crítica seriam, para sempre, uma hipótese tão ilusória "como imaginar que árabes e israelenses viverão sem guerras no Oriente Médio". (450) Mas a coisa poderia ter sido realmente muito séria porque, dado o fato de que ele nomeou quatro críticos com supostas vinculações ao Partido Comunista, houve uma tentativa de se impingir ao cantor a alcunha de "dedo-duro". Em alguns jornais saíram notas dizendo que Caetano seria agraciado com o prêmio "Simonal de Ouro", e a repercussão da sua entrevista apareceu numa reportagem da revista Istoé com o título "Caetano tira o dedo do violão e aponta". (451)

O cartunista Henfil bateu na mesma tecla ao dizer que "hoje há dedosduros muito mais famosos do que o Simonal", enfatizando que Caetano foi "extremamente covarde" ao denunciar seus críticos como membros do Partido Comunista "num país onde comunismo dá cadeia, torturas e até morte". E Henfil concluía sua fala com uma ameaça ao cantor: "Se um desses críticos chegar a ser preso ou sofrer um arranhão por causa das denúncias dele, eu não sei o que vai dar para fazer, não. Eu acho que vou querer descontar, porque são todos meus amigos, e se não são, passaram a ser." *O mineiro Henrique de Souza Filho, o Henfil, foi mesmo um dos mais atentos patrulheiros ideológicos daquele período - ação que ele admitia como contraponto à "patrulha odara", aquela que cobraria dos outros criações apolíticas e atitudes descompromissadas. Renovador do desenho humorístico brasileiro, Henfil tornou-se conhecido nacionalmente a partir de 1969, quando seus cartuns foram publicados no semanário O Pasquim, na época a coqueluche da moçada universitária. Henfil era um defensor intransigente da arte engajada. Para ele não havia meio termo: quem não estava contra estaria a favor da ditadura militar regime que o atingia diretamente pelo fato de seu irmão, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, ser um exilado político. Através de personagens como Fradim, Graúna e Capitão Zeferino, o cartunista fazia de seu trabalho uma arma de combate ao sistema político do país, e ele cobrava dos outros artistas esta mesma atitude. Neste ponto se dava sua polêmica com Caetano Veloso, que em uma de suas canções rebatia Henfil e outros patrulheiros: "Nenhuma força virá me fazer calar / faço no tempo soar minha sílaba...", verso de Muito romântico, composição lançada por Roberto Carlos, mas que Caetano também fez questão de gravar em seu LP "Muito", em 1978. "É a defesa do artista e de seu modo de ser, contra aqueles que tentam botar rédeas e trilhos no seu caminho", explicou o autor na época. (453) Rédeas e trilhos também apareceram no caminho dos irmãos Dom e Ravel artistas dos mais atingidos pelas "patrulhas ideológicas", e muito antes da expressão ser criada. Logo após a gravação do primeiro LP da dupla, em março de 1971, o jornal O Pasquim advertia aos seus leitores para tomarem cuidado com dois "compositores da pior qualidade que estão botando banca de porta-voz da juventude brasileira", enfatizando o jornal que "não dá pé. A dupla é péssima". (454)

Entretanto, para além da questão estética, Dom e Ravel foram rejeitados pelo público de esquerda em função da sua imagem de cantores de músicas ufanistas - imagem ressaltada a partir do momento em que membros do governo militar, incluindo o próprio presidente da República - , revelaram apreço pela marcha Eu te amo meu Brasil. A primeira manifestação pública do presidente Médici em relação à composição de Dom ocorreu em janeiro de 1971, quando o tema interpretado pelo conjunto Os Incríveis ocupava os primeiros lugares das paradas e já havia vendido cerca de 200 mil cópias. (455) Na ocasião o presidente participava de um encontro de governadores no Palácio Iguaçu, sede do governo estadual em Curitiba, no Paraná. No intervalo da reunião, ao se dirigir para a sala de refeitório onde seria servido o almoço, ele foi atraído pelos acordes de Eu te amo meu Brasil, que naquele exato instante estavam sendo tocados no saguão pelo organista do palácio. Cercado de diversos governadores, Médici parou por alguns instantes diante do organista e comentou que achava aquela melodia muito bonita e a sua mensagem muito sadia para a juventude. Mais realista que o próprio rei, o governador de São Paulo, Abreu Sodré, sugeriu: "Presidente, essa música devia ser transformada em hino nacional.” (456) O general Médici não acatou a sugestão do governador de São Paulo, mas a simpatia que manifestou pela mensagem da música acabou por levá-lo a um breve contato pessoal com Dom & Ravel. O encontro ocorreu na manhã do dia 10 de Setembro de 1971, quando Médici esteve na cidade de Jundiaí, interior de São Paulo, para comemorar o primeiro ano de atividade do Mobral e paraninfar uma turma de alunos formada na região. Como no tempo de Vargas durante o Estado Novo, a visita do presidente da República mobilizou a cidade paulista. Segundo relato do Jornal do Brasil, "cerca de 50 mil pessoas se colocaram ao longo das ruas de Jundiaí para receber o presidente Garrastazu Médici" e todo o trajeto por onde ele passou naquela manhã estava enfeitado com "faixas e cartazes e, ao longo das calçadas, milhares de pessoas, inclusive estudantes uniformizados, agitavam bandeiras e lançavam papéis picados". (457) O jornal Folhade S. Paulo também descreve que "praticamente toda a cidade foi decorada com as cores da bandeira nacional e todas as residências ostentavam nas janelas e sacadas retratos do Presidente". (458)

A cerimônia de formatura, realizada no principal ginásio da cidade, contou com a presença de autoridades civis e militares, e também com a participação da dupla Dom & Ravel, que, acompanhada por um grupo de alunos do Mobral, interpretou Você também é responsável”, além do Hino Nacional Brasileiro, executado por um coral e orquestra sinfônica. Enquanto isso, encolhidas nas arquibancadas do ginásio, 5 mil pessoas aguardavam o fim dos discursos para saborear o enorme bolo de 180 quilos que repousava num dos cantos da quadra. O general João Figueiredo, na época chefe da Casa Militar do governo Médici, estava ao lado do presidente no momento em que este, no fim da cerimônia, quebrando o protocolo, se dirigiu ao pequeno tablado onde estavam Dom e Ravel. A comitiva do presidente se retirava do local seguindo o trajeto da direita, mas Médici resolveu virar à esquerda para ir cumprimentar a dupla. Diante disso, o general Figueiredo rapidamente deu a volta por trás da comitiva e, chegando perto dos dois artistas, sussurrou: "Apressem o passo que o presidente está a caminho dos senhores." Dom e Ravel ficaram até um pouco assustados com a ação daquele general carrancudo, de óculos escuros, e que na época ninguém conhecia. Figueiredo se posicionou por detrás deles e com as duas mãos praticamente os empurrava em direção ao presidente Médici, repetindo: "Apressem o passo, apressem o passo que o presidente está a caminho dos senhores." O encontro entre Dom e Ravel e Emílio Garrastazu Médici durou pouco mais de um minuto. Ao se aproximar, o general estendeu a mão e disse: "Eu me sinto honrado em ter a oportunidade de cumprimentar esses dois grandes artistas brasileiros." Dom retribuiu a gentileza dizendo: "A honra é toda nossa, presidente. Duas pessoas de origem humilde como nós, que nasceram na modesta cidade de Itaiçaba, interior do Ceará, terem hoje a oportunidade de cumprimentar um presidente da República. Muito obrigado pela honra." A partir daí, os dois imigrantes nordestinos, que na infância, em São Paulo, eram constrangidos a entrar pela porta dos fundos das casas de alguns colegas e pela área de serviço dos demais prédios da cidade, seriam agora recebidos pela porta da frente dos palácios da República. Atraídos para a esfera do poder, os irmãos Dom e Ravel teriam a sua imagem pública definitivamente associada ao regime político ditatorial implantado no Brasil em 1964. "Depois desse nosso encontro com o presidente Médici” afirma Dom - "diversas pessoas do segundo, terceiro e quarto escalões

do governo federal passaram a cortejar a gente, pois sabiam que nós éramos admirados pelo presidente. E em virtude dessa circunstância, acabamos tendo um trânsito com esse grupo, sendo objeto de um fascínio muito grande da parte desse pessoal do poder na época. E a gente sem entender muito bem o que estava acontecendo. O porquê daquele interesse de pessoas da alta roda política e do alto oficialato do Exército por nós. Então eles começaram a nos chamar para festinhas, solenidades; e, nesses encontros, os militares, como fãs, tiravam várias fotografias com a gente. E a imprensa via aquilo e mitologizava: 'esses caras estão recebendo encomenda do governo pra fazer música'." Pois será justamente esta exposição pública ao lado do poder o que determinará a imagem de Dom e Ravel como símbolos do nacionalismo e do ufanismo nos anos do regime militar. Isto porque, como está demonstrado ao longo deste trabalho, uma análise mais cuidadosa da produção musical da dupla revela que ela não foi tão adesista quanto acreditavam os membros do governo militar e nem tão conformista quanto julgavam os opositores deste governo. Mais do que suas canções, foram as aparições e declarações públicas de Dom & Ravel que moldaram a imagem reacionária da dupla. E entre estas manifestações públicas, destaca-se a entrevista que eles concederam à revista Veja em fevereiro de 1971. Naquele momento firmando-se como um importante veículo formador de opinião, Veja apresentava em primeira mão ao público letrado do país os responsáveis pela marcha Eu te amo meu Brasil, o grande sucesso daquela temporada. Com o título de "Os fabricantes felizes da alegre vitória", aquela foi a primeira reportagem com Dom & Ravel num veículo de circulação nacional. (459) E hoje os próprios artistas reconhecem que as suas declarações à revista contribuíram para formar a imagem de mercenários e oportunistas que eles iriam carregar a partir daí. Entrevistados pelo repórter Luís Nassif, Dom e Ravel dizem, entre outras coisas, que ficariam honrados se o governo oficializasse[/] Eu te amo meu Brasil como hino, que fizeram aquela música para ganhar dinheiro, que pretendiam "sugar a mama da vaca" e assinar um contraio após a composição de um tema para o Mobral, enfim, o que desejavam era "ganhar dinheiro e usufruir". Sobre a seqüencia da carreira afirmam que depois de Eu te amo meu Brasil planejavam criar mensagens musicais para "combater a vagabundagem, a falta de higiene e o tóxico na juventude, que são idéias de anarquismo que vem dos Estados Unidos e

Inglaterra" - , numa clara referencia aos hippies que naquele momento começavam a circular nos grandes centros urbanos do país. O interessante é que, de certa forma, gravações como Você também é responsável e A canção antitóxico (composição de Dom & Ravel lançada pelo cantor Barros de Alencar) (460), confirmam este projeto anunciado à revista Veja; mas outros títulos da dupla, como Conflito de gerações (sobre o movimento hippie), O caminhante (sobre o problema dos sem-terra) e Animais irracionais (sobre o uso do chicote pelos opressores) o desmentem pois, como já vimos em capítulos anteriores, trazem uma mensagem de conteúdo crítico. Constata-se então neste caso um fenômeno bastante comum no universo da música popular: interpretações ambíguas, paradoxais e contraditórias coexistindo no mesmo sujeito Mas de que maneira Dom e Ravel analisam este relativo descompasso entre o discurso reacionário apresentado pela dupla à imprensa e parte de sua produção discográfica? Para Ravel isto se deve à falta de uma base emocional e profissional para lidar com o repentino sucesso alcançado por eles. "O dinheiro, as mulheres, o sucesso, tudo isso deixa você em estado de embriaguez. E nós não tínhamos preparo nenhum, estrutura nenhuma, orientação nenhuma de como administrar o sucesso, de como se comportar diante daquela situação." Dom também enfatiza a falta de uma estrutura profissional para coordenar a imagem da dupla. “A gente era muito espontâneo, muito simplório. Não tínhamos uma assessoria de marketing por trás, coisa que hoje em dia os artistas têm: uma pessoa especializada em cuidar das matérias que saem na mídia, a postura no palco, na televisão, na entrevista, enfim, não tínhamos nada disso. Então fomos um prato cheio para os nossos adversários, que puderam montar nossa imagem pública do jeito que quisessem. Ficamos vulneráveis." Vulnerabilidade que determinados artistas da música popular não apresentaram na época - e com uma produção musical de mensagens muito mais conformistas e apologéticas do que a da dupla Dom & Ravel. Vejamos inicialmente o caso do conjunto Os Incríveis. Grupo de rock paulistano formado no inicio dos anos 60, os Incríveis (Mingo, Risonho, Manito, Netinho e Nenê) tornaram-se conhecidos em todo o Brasil a partir de 1967 com o sucesso de Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones, versão de uma canção de protesto

italiana contra a Guerra do Vietnã. Mas em 1969, inicio do período do "Milagre Econômico" e quando começam a despontar mensagens ufanistas, o conjunto regrava o clássico Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. O antigo samba-exaltação ressurgia com um novo arranjo traduzido para a linguagem do público jovem: à base de guitarras, sax, teclado e com um texto introdutório não presente na versão original, mas devidamente atualizado para a ideologia do "Brasil Grande": ESTA É A NOSSA HOMENAGEM, BRASIL A HOMENAGEM OS JOVENS QUE MAIS DO QUE NUNCA ACREDITAM NO TEU FUTURO, VAI GIGANTE! VI E ESCREVE NAS PÁGINAS DA HISTÓRIA O TEU GLORIOSO NOME BRASIL, MEU BRASIL BRASILEIRO... No ano seguinte, 1970, como já vimos, os Incríveis lançam Eu te amo meu Brasil, composição de Dom; em 1971 gravam um compacto com O Hino Nacional Brasileiro e o Hino da Independência, ambos também com novos arranjos à base de toques de guitarras, teclados e bateria; em 1974 o grupo lança a marcha Cem milhões de corações, tema da seleção brasileira na Copa do Mundo da Alemanha; em 1976 gravam um "disco especial da Presidência da República" intitulado "Trabalho e paz, de mãos dadas é mais fácil", com quatro trilhas sonoras de propaganda do regime: Pindorama e Marcas do que se foi (composições de Rui Maurity) e as marchas Este é meu Brasil e Este é um pais que vai pra frente (ambas do compositor Heitor Carillo); no ano seguinte Os Incríveis lançam mais duas mensagens de “otimismo”; Você precisa acreditar (Arthur-Galahad) e O Brasil é feito por nós (Heitor Carillo), gravações incluídas em um novo "disco especial da Presidência da República", e, finalmente, em 1978, o conjunto grava Gôôôôôôl! Brasil !!!, tema da seleção brasileira na Copa do Mundo da Argentina. Portanto, Os Incríveis atravessaram todo o período do AI-5 gravando canções com mensagens apologéticas-nacionalistas. Trajetória semelhante - porém mais curta - teve o compositor e publicitário carioca Miguel Gustavo. Criador de jingles famosos, como os da Mesbla e das Casas da Banha, e autor de sucessos gravados por intérpretes como Jorge Veiga, Cauby Peixoto, Aracy de Almeida, Elizete Cardoso e, principalmente, os sambas-de-breque de Moreira da Silva (461) - Miguel Gustavo morreu em janeiro de 1972, mas até essa data compôs algumas das mais representativas canções ufanistas do período do "Milagre". Ele é o autor da marcha ”Pra frente Brasil”, que se tornou o hino da seleção na Copa do Mundo de 1970, mas cuja mensagem estava em

perfeita sintonia com o projeto de mobilização cívico-patriótica desenvolvido pela propaganda do regime militar: NOVENTA MILHÕES EM AÇÃO PRA FRENTE BRASIL, DO MEU CORAÇÃO TODOS JUNTOS, VAMOS, PRA FRENTE BRASIL SALVE A SELEÇÃO! DE REPENTE É AQUELA CORRENTE PRA FRENTE PARECE QUE TODO O BRASIL DEU A MÃO TODOS LIGADOS NA MESMA EMOÇÃO TUDO É UM SÓ CORAÇÃO Mais do que uma simples mensagem de apoio à seleção brasileira nos campos de futebol do México, a marcha Pra frente Brasil também colaborava para consolidar a visão de que o país vivia naquele momento uma nova era histórica, marcada pelas noções de mobilização, transformação, crescimento e progresso. E tudo isso centrado numa certa idéia de nação baseada nos princípios de coesão e da união de todas as classes em prol de um objetivo comum. Mensagem que na época era ilustrada através de cartazes que mostravam muitas pessoas de mãos dadas tendo ao fundo o mapa ou a bandeira do Brasil. Mas esta associação entre a marcha Pra frente Brasil e a ideologia do "Brasil Grande" se evidencia melhor se compararmos a composição de Miguel Gustavo a uma outra mensagem glorificante do futebol brasileiro, A taça do mundo é nossa, dos compositores Maugeri, Dagô e Muller, tema da vitória da seleção na Copa do Mundo de 1958: A TAÇA DO MUNDO É NOSSA COM BRASILEIRO NÃO HÁ QUEM POSSA Ê, ÊTA ESQUADRÃO DE OURO É BOM NO SAMBA, É BOM NO COURO O BRASILEIRO LÁ NO ESTRANGEIRO MOSTROU O FUTEBOL COMO É QUE É GANHOU A TAÇA DO MUNDO SAMBANDO COM A BOLA NO PÉ, GOOOOL! Note-se que a letra do hino da copa da Suécia exalta o "brasileiro" e não o "Brasil", e é pontilhado de imagens referentes ao universo do futebol: "taça do mundo", "esquadrão", "couro", "bola", "gol", além da própria palavra "futebol". Já no texto de Pra frente Brasil, com exceção da palavra

"seleção", tudo o mais pode identificar tanto o time de futebol quanto a pátria governada pelos generais. E nunca é demais lembrar que esta idéia de "noventa milhões em ação", irmanados sob o símbolo da concórdia, se prestava aos objetivos de dominação, já que, como sabemos, o país estava politicamente cindido e clivado por brutais diferenças sócio-econômicas. E talvez por isso mesmo o autor de Pra frente Brasil foi na época agraciado pelo Exército com a Medalha do Pacificador - “um reconhecimento pela obra de integração nacional que a marchinha promoveu". (462) Logo após a Copa do Mundo de 1970, Miguel Gustavo compôs outra marcha apologética, Brasil, eu adoro você!, gravação patrocinada pela Eletrobrás e distribuída nas escolas de todo o país com a mensagem; "É tempo de vitória, de festa e de fé. Cante, comemore a Semana da Pátria. O Brasil precisa do seu otimismo, do seu amor e da sua alegria. Cante, ensine as crianças a cantar. Estamos na Semana da Pátria. Lançada em duas versões - uma com a cantora Ângela Maria (para o público mais adulto) e outra com o Coral de Joab Teixeira (para o publico mais jovem) - , a marcha de Miguel Gustavo traz mais uma vez o grito de "pra frente Brasil', agora sem nenhuma relação com o universo do futebol: "Oh! meu Brasil do progresso / plantando o sucesso / futuro sem par / meu Brasil pra frente / gente contente a desbravar..." No ano seguinte, visando às comemorações dos 150 anos de Independência do Brasil, cujos preparativos mobilizaram grande parte do governo Médici, Miguel Gustavo criou a Marcha do Sesquicentenário da Independência. Gravada em quatro versões - uma das quais com o cantor Miltinho e arranjo e orquestra de Radamés Gnattali - , a composição serviu para animar a festa do Sete de Setembro de 1972, que teve como seu momento culminante o translado dos restos mortais de Dom Pedro I de Portugal para o mausoléu do Ipiranga, em São Paulo: “Marco extraordinário / Sesquicentenário da Independência / potência de amor e paz / esse Brasil faz coisas / que ninguém imagina que faz...." Nesta mesma linha celebrativa, Miguel Gustavo compôs outra marcha, agora exaltando o Exército Brasileiro, instituição que naquele momento estava totalmente identificada com o regime político dominante no país: "Fator de integração e segurança / soldado é o povo fardado / é o povo ao seu lado / na guerra e na paz / no encontro seguro / que o Brasil tem com o futuro..." (463) E pouco antes de falecer vítima de câncer, aos 49 anos, Miguel Gustavo ainda faria uma marcha de exaltação à Estrada Transamazônica, que, com seus 5.500 quilômetros cortando a Bacia Amazônica de leste a oeste, foi um dos principais projetos do governo Médici: "O Brasil já está na estrada /

na grande jogada da integração / batalha sem metralha / na floresta toda em festa / sobre a pista da conquista / o futuro em ação..." (464) Se durante a ditadura do Estado Novo Ary Barroso ajudou a criar o sambaexaltação, durante a ditadura militar Miguel Gustavo contribuiu com a marcha-exaltação, ritmo mais de acordo com um regime controlado pelas forças armadas. Mas o time de compositores de temas de exaltação ao regime não ficou totalmente desfalcado com a morte de Miguel Gustavo. Logo em seguida entrou em campo o paulista Heitor Carillo, que era conhecido como o "Miguel Gustavo de São Paulo". Assim como o compositor e publicitário carioca, Carillo tinha canções gravadas por intérpretes como Elizete Cardoso, Ângela Maria, Agostinho dos Santos, e era também autor de jingles como o do sabonete Lever (gravado por João Gilberto nos anos 60) (465) e o da Rede Zacarias de Pneus (gravado por Waldik Soriano nos anos 70). (466) Mas foi com suas composições ufanistas lançadas pelo grupo Os Incríveis que Heitor Carillo alcançou maior sucesso popular naquele período. Composições como, por exemplo, Este é meu Brasil, O Brasil é feito por nós, e - quem não se lembra - a marcha Este é um pais que vai pra frente, a principal mensagem ufanista do período do governo Geisel: ESTE É UM PAÍS QUE VAI PRA FRENTE (OU, OU ,OU, OU) DE UMA GENTE AMIGA E TÃO CONTENTE (OU, OU, OU, OU) ESTE É UM PAÍS QUE VAI PRA FRENTE DE UM POVO UNIDO, DE GRANDE VALOR É UM PAÍS QUE CANTA, TRABALHA E SE AGIGANTA É O PAÍS DO NOSSO AMOR O curioso é que com tudo isto nem Heitor Carillo, nem Miguel Gustavo, nem o conjunto Os Incríveis ficaram marcados como "porta-vozes da ditadura militar". Este peso recaiu todo sobre os irmãos Dom e Ravel, que a rigor têm uma única canção ufanista em seu repertório: Eu te amo meu Brasil. Além do já citado Waldenyr Caldas, que escreveu que a dupla Dom & Ravel "liderou o discurso-exaltação às grandezas do governo da revolução", (467) alguns outros estudiosos da cultura brasileira vêm contribuindo para cristalizar esta visão. Em seu trabalho sobre a censura à MPB durante o regime militar, o historiador Alberto Moby afirma que em relação às canções de cunho nacionalista-ufanista produzidas naquele período "o único caso de destaque é o da dupla Dom & Ravel".(468)

Opinião também compartilhada por Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Goncalves ao destacarem, na produção cultural brasileira do pós--1968, a existência de "marchas exaltativas" dos "inacreditáveis Dom e Ravel". (469) E no já citado livro de Gilberto Vasconcelos, publicado em 1977, o autor denuncia Dom e Ravel como os "apologetas do regime autoritário". (470) Visão que permanece incólume e é repetida em 1999 pelo historiador e deputado Chico Alencar, que ao apontar erros históricos na letra da canção gravada por Chitãozinho & Xororó em homenagem aos 500 anos do Descobrimento do Brasil (471), enfatiza que ela é uma "música chapa-branca" (porque encomendada pelo governo FHC), "patriótica no mau sentido" e que lembra "Dom & Ravel daquele Este é um país que vai pra frente (sic) e Eu te amo meu Brasil dos anos de chumbo da ditadura". (472) Como se vê, a nenhum desses historiadores ocorreu a lembrança dos nomes de Miguei Gustavo ou de Heitor Cariiio ou do conjunto Os Incríveis ou de qualquer outro dos diversos cantores/compositores populares Jorge Benjor, João Nogueira, Zé Keti, Ivan Lins, Marcos Valle, Paulo Sérgio Valle, Luiz Vieira, Rui Maurity, João Roberto Kelly que também produziram temas ufanistas nos "anos de chumbo da ditadura". Hoje é como se naquela época toda a MPB estivesse na resistência e apenas Dom & Ravel no apologismo ao regime. E que talvez por isso mesmo eles tenham sido contemplados com o adjetivo de "inacreditáveis". Mas, como sabemos, a memória é mesmo seletiva; nem tudo é lembrado, nem tudo é guardado. E uma das razões para este esquecimento, principalmente nos casos de Miguel Gustavo e do grupo Os Incríveis, é que nenhum deles posou ao lado do presidente Médici ou declarou à imprensa que fazia canções patrióticas para ganhar dinheiro. Ou seja, tiveram aquilo que faltou à dupla Dom & Ravel: a preservação da sua imagem pública. E hoje os "inacreditáveis" Os Incríveis são geralmente lembrados pela canção de protesto italiana Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones, enquanto a gravação de maior sucesso da carreira do grupo - a marcha Eu te amo meu Brasil - ficou totalmente associada à dupla Dom & Ravel, que também paga por Este é um país que Vai pra frente, tema de Heitor Carillo.

E o compositor Miguel Gustavo destaca-se na historiografia de nossa música popular como o autor de sambas de breques de exaltação à malandragem. Tanto é assim que no mesmo livro em que denuncia Dom e Ravel como os "apologetas do regime autoritário", Gilberto Vasconcelos saúda Miguel Gustavo como "o grande compositor que está sempre presente nos discos de Moreira da Silva". (473) Como um autêntico criador e personagem da linhagem "malandra" do samba, o carioca Miguel Gustavo deu o seu recado falando baixo e pisando macio, enquanto que os cearenses Dom e Ravel fizeram barulho, falaram o que não deviam e, como acontece com os "otários", pagaram o pato sozinhos. "Dom e Ravel são horrorosos, e são primários, entende? São compositores de colégio", opinava Chico Buarque em 1971, acrescentando que os dois irmãos eram "péssimos músicos, péssimos letristas, péssimos em caráter, péssimos em tudo". (474) Com este discurso enfático e agressivo o autor de Cálice expressava o sentimento de rejeição que os setores de esquerda nutriam pela dupla naquele momento. "Mas a perseguição não foi só ideológica. Por duas vezes fui espancado na rua", garante Ravel. Ele diz que mesmo durante os shows a dupla chegava a ser agredida com paus, pedras e pontapés desferidos por elementos infiltrados entre os fãs. Um dos episódios que Ravel descreve ocorreu na cidade de São Luís, no Maranhão. "Para entrar no ginásio de esportes superlotado e fazer o nosso show ali foi muito difícil. Logo na entrada eu vi a polícia batendo nas pessoas e vi pessoas atirando coisas na gente: era pau, era pedra, era tudo. E os que estavam mais perto chegavam para dar pancada, murro, chutes, entendeu? Era pra agredir mesmo. Eu sofri muito essas agressões, e não só lá em Sâo Luís, onde a coisa foi muito pesada, tanto que tivemos que sair rápido da cidade, mas também em alguns outros locais, em outros estados. Era em cima desse clima todo, de pavor, de temor, de violência e de agressividade, que a gente fazia os nossos shows naquela época. Eu levei muitas pedradas na cabeça, sofri muitas agressões que até hoje deixaram marcas no meu corpo inteiro." Literalmente, o depoimento de Ravel expressa o que está em um verso de uma antiga canção de Taiguara que diz "hoje / trago em meu corpo /as marcas do meu tempo". E não só Ravel ou Taiguara, mas diversos outros

cantores/compositores com atuação destacada no período mais duro do regime militar trazem hoje em seu corpo ou em sua obra marcas de um tempo dominado pelo radicalismo, repressão, delação, intolerância, violência e patrulhas ideológicas. Patrulhas que, como definiu Caetano Veloso em seu discurso no Tuca - e como também ilustra o depoimento de Ravel - , não diferem em nada daqueles que invadiram o teatro e espancaram os atores da peça Roda viva. Registre-se que, embora sem esta mesma carga de repulsa e agressividade, outros artistas da música popular brasileira enfrentaram problemas semelhantes aos de Dom & Ravel naquele período. O cantor e compositor Ivan Lins, por exemplo, quase teve a carreira destruída depois do sucesso de O amor é o meu país, composição que a esquerda identificou como um respaldo ao slogan "Brasil: ame-o ou deixe-o" do governo Médici. "Para o pessoal estudantil, eu e Dom & Ravel éramos a mesma coisa; eu era um nada, um zero, um cara a serviço da propaganda do governo", afirma o compositor (.475) Atuando numa faixa de público de classe média e formação universitária que estava em franca oposição ao governo militar - , não dava para Ivan Lins prosseguir carregando a imagem de "alienado" e "adesista". E isto fica evidente numa polêmica entrevista que ele concedeu ao Pasquim, em Outubro de 1972. Lá pelas tantas o cartunista Henfil, um dos entrevistadores, questionou se a origem e o estilo de vida burguês de Ivan Lins não teriam feito dele uma pessoa alienada e cega para as questões sociais. "Eu passo perto e vejo, tomo conhecimento...", tentou responder Ivan. "E canta O amor é o meu pais?”, rebateu Henfil, que prossegue a entrevista apertando o cerco sobre o compositor: - VOCÊ É UM CARA REACIONÁRIO? - NÃO. É LÓGICO QUE NÃO. EU SOU, VAMOS DIZER ASSIM, UM... O REI DA CORDA BAMBA! - VOCÊ SABE DA DESTRUIÇÃO QUE ESTÁ SENDO FEITA DA TERRA? - SIM. - OS PROBLEMAS DA POPULAÇÃO? TA POR DENTRO DE TUDO?

- CLARO. - ENTÃO, EU PERGUNTO: POR QUE VOCÊ NÃO FALA DISSO NAS TUAS MÚSICAS? (476) Por estas e outras, Ivan Lins procurou reformular a sua imagem e carreira e para isto dispensou o letrista Ronaldo Monteiro de Souza (com quem havia feito O amor é o meu país, Madalena, Salve salve e outros sucessos) e convidou o paulista Vitor Martins para ser o seu novo parceiro. O jornalista Eloí Calage informa que quando Vitor recebeu esta proposta, “foi aconselhado a dizer não, sob o argumento de que ser parceiro de Ivan, naquele momento, era uma podre". (477) Vitor Martins, na época um compositor em emergência, aceitou o desafio, embora reconhecendo que sua primeira tarefa não ficaria restrita à pauta musical. "Vitor e eu conversávamos muito" - diz Ivan - "e ele me mostrava as áreas onde eu estava queimado: na critica, no público estudantil. A gente refletia sobre tudo isso, ele dizia: 'Olha, primeiro vamos limpar sua barra, anular essa imagem que você tem do seu passado.'” (478) E para marcar posição - e saltar da corda bamba - , o primeiro resultado da nova parceria foi uma música de conteúdo contestador, Abre alas, gravação de 1974, que comentava o processo de abertura política, “Abre alas pra minha folia / já está chegando a hora...", mas com o devido cuidado num tempo de repressão: "Encoste essa porta / que a nossa conversa não pode vazar...". Seguindo esta mesma trilha a dupla compôs outras canções como Cartomante, Aos nossos filhos e Desesperar, jamais. Ivan Lins tornara-se agora um cantor de protesto. Para ele era preferível enfrentar a censura oficial da direita do que a censura oficiosa da esquerda que, entretanto, não engoliu facilmente a mudança do compositor. Quando da feitura da primeira edição da Enciclopédia da Música Brasileira (publicação de 1977 reunindo 2.500 nomes da nossa música popular, folclórica e erudita), o autor de O amor é o meu pais não foi incluído porque o redator-chefe daquela obra, Paulo Sérgio Machado, bateu pé e disse: "Esse cara não entra na enciclopédia." (479) E Ivan Lins não entrou, ficando o leitor privado de informações sobre um artista àquela altura já consagrado e com várias de suas músicas gravadas por intérpretes como Elis Regina e Ella Fitzgerald.

E a própria cantora Elis Regina também foi alvo das patrulhas ideológicas no início da década de 70. Naquela época Henfil publicava semanalmente no Pasquim uma coluna conhecida como "cemitério dos mortos-vivos", no qual ele fazia o "enterro" daquelas pessoas que considerava simpatizantes do regime militar ou omissas politicamente. O "cemitério dos mortos-vivos" que o Henfil publicava no Pasquim: os artistas da MPB morriam de medo de irem para lá. Já os cafonas, nem ligavam.

Era uma página bem representativa do clima de radicalismo que se vivia - e que se fosse levada às últimas conseqüências, ali teria que ser "enterrada" grande parte da população brasileira que naquele momento apoiava o regime dos generais. Mas nas lápides do "cemitério" de Henfil apareciam os nomes de personalidades como Roberto Carlos, Pelé, Nelson Rodrigues, Gilberto Freyre, Raquel de Queiroz, Zagalo, Bibi Ferreira, Clarice Lispector, Marília Pêra e também o de Elis Regina. Henfil não aceitou o fato de Elis ter ido cantar no Encontro Cívico Nacional, pomposo evento que marcou o início das comemorações do Sesquicentenário da Independência, em 1972. O ex-parceiro de Elis no Dois na Bossa, o cantor Jair Rodrigues, com seu

tradicional sorriso e empolgação, foi o "puxador" do samba da festa, que diz: "1972 engalana o Brasil / comemorando a existência de 150 anos de independência / vamos cantar e exaltar...” (480) Naquele momento do governo Médici o ufanismo estava no auge e mais do que nunca o regime procurava exaltar datas e símbolos nacionais. E eventos celebrativos como este (havia também as Olimpíadas do Exército e as Expoex - Exposições do Exército) eram realizados anualmente na Semana da Pátria e no mês de comemoração da chamada “Revolução de março de 1964". Além de Elis Regina e Jair Rodrigues (e de Dom & Ravel), participaram destes shows diversos artistas da nova e da velha geração de nossa música: Luiz Gonzaga, Roberto Carlos, Jorge Ben, Wilson Simonal, Cauby Peixoto, Marcos Valle, Agostinho dos Santos, Ronnie Von, Zimbo Trio e a "divina" Elizete Cardoso”, a cantora preferida do presidente Médici. (481) Para animar a festa, o escalado era invariavelmente Chacrinha, que na época confessava-se orgulhoso da convocação das Forças Armadas: "O Chacrinha fica muito feliz em ser lembrado para essa festa do nosso glorioso Exército. Estamos aí para colaborar sempre." (482) Mas entre todos os colaboracionistas, a que causou maior indignação nos setores de esquerda foi mesmo Elis Regina, cantora que despontara para o sucesso em 1964, depois de abandonar o estilo Cely Campelo e gravar canções de protesto como Terra de ninguém e Menino das laranjas.. Parecia uma fiel aliada da resistência. Mas eis que, em plena ditadura Médici, Elis aparecia em todas as televisões convocando a população para o Encontro Cívico Nacional, um ritual ufanista programado para o dia 21 de abrir de 1972, às seis e meia da noite. "Nessa festa todos nós vamos cantar juntos a música de maior sucesso neste país: o nosso hino. Pense na vibração que vai ser você e 90 milhões de brasileiros cantando juntos, à mesma hora, em todos os pontos do país." (483) E no dia e horário marcados pelo governo, lá estava ela, Elis Regina, de fraque de maestro, regendo um coral de artistas - a maioria do elenco da TV Globo - cantando "Ouviram do Ipiranga às margens plácidas..." Diante da repercussão negativa que esta cena provocou nas hastes da esquerda ( O Pasquim começou a chamá-la de "Elis Regente"), o compositor Ronaldo Bôscoli, na época marido de Elis, tratou logo de divulgar a versão de que sua mulher fora obrigada a participar daquilo sob ameaça de prisão. E, segundo a jornalista Regina Echeverria, a própria cantora lhe contou

essa história "aumentada, romanceada, onde ela assumia o papel de uma heroína dominada pelas Forças Armadas". (484) Entretanto, anos depois, em depoimento à jornalista Léa Penteado, o ex-empresário de Elis Regina, Marcos Lázaro, afirmou que a cantora só participou daquele evento porque o coronel responsável pela contratação dos artistas aceitou pagar o bom cachê que ela pediu. E, segundo o empresário, antes de fechar o contrato ele consultou Elis e ela lhe disse que "não tinha a menor objeção em fazer essa apresentação.” (465) O fato é que, a partir daquele show, Elis Regina começou a ser esconjurada pela esquerda e ficou na mira dos patrulheiros de plantão. Num primeiro momento ela ainda tentou reagir e, bem ao seu estilo, atacou os seus acusadores, principalmente Henfil. Mas depois Elis acabou percebendo o mesmo que Ivan Lins: atuando numa faixa de público de classe média e formação universitária que estava em franca oposição ao governo militar, seria difícil prosseguir carregando a pecha de regente do coro dos contentes com o regime dos generais. E a cantora teve um claro sinal disto quando foi recebida com frieza pela platéia do Anhembi no show da Phono 73. A cena de Elis regendo o Hino Nacional ainda estava viva na memória daquele público, e durante a sua apresentação alguém soltou uns gracejos pesados para ela, obrigando Caetano Veloso, que estava na platéia, a levantar-se e gritar: "Isso é um desrespeito à música popular brasileira. Respeitem Elis Regina. Respeitem a música popular brasileira " (486) O cerco estava se fechando sobre a cantora e ela compreendeu que apenas com a voz não poderia se impôr naquele ambiente hostil de caça às bruxas. Elis procurou então reconstruir a sua imagem e, assim como Ivan Lins, reforçou o seu repertório com canções de contestação política: O mestresala dos mares, Sinal fechado, Cartomante, Aos nossos filhos, O bêbado e a equilibrista e outras. Tempos depois, Henfil confirmaria que Elis ficou bastante incomodada com o seu nome no "cemitério dos mortos-vivos" e buscou se aproximar do cartunista para demonstrar que tinha um posicionamento de esquerda. "Ela, eu notava, tinha a preocupação - marcada ainda pelo episódio do enterro - de me provar que tinha mudado. Que continuava uma pessoa de confiança ideologicamente." E para que não houvesse qualquer dúvida - lembrou Henfil - Elis fazia questão de assinar todo e qualquer manifesto organizado pela oposição e por duas vezes pediu a ele para entregar aos grevistas do ABC paulista a renda de um dos seus shows no Canecão. (487)

E, com tudo isto, esta polêmica cantora, filha de uma ex-lavadeira de Porto Alegre, acabou sendo "anistiada" pelos intelectuais da esquerda brasileira, tornando-se até muito amiga do seu antigo "coveiro" Henfil. "Por que é que vou deixar de gostar de uma pessoa por ela ter fraquejado?", justificou o cartunista. (488) Mas a trajetória mais próxima da dupla Dom & Ravel no sentido de perseguição e patrulhamento - porque para estes não houve perdão - foi a do cantor Wilson Simonal, que depois de uma carreira de quase uma década repleta de sucessos, entrou em franca decadência a partir do inicio dos anos 70. Intérprete de Sá marina, Balanço zona sul e Pais tropical, o artista que vendia milhões de discos e lotava ginásios e estádios com seus shows - um dos mais caros do mercado musical brasileiro - enfrentava agora cada vez mais dificuldades de gravar, se apresentar e tocar suas canções no rádio. Chacrinha constatava isto em uma nota publicada em sua coluna em janeiro de 1973: "Simonal não dá mais. Só em festa de casamento, em balizado ou comunhão, onde não existe couvert e nenhuma obrigação." (489) Mas, afinal, o que foi que aconteceu com Wilson Simonal? Tudo começou em meados de 1971, quando o cantor descobriu um grande desfalque financeiro em seu escritório, a Simonal Produções, no Rio. As suspeitas recaíram sobre o contador da firma, Raphael Viviani, que foi imediatamente demitido por justa causa. Mas o funcionário entrou na justiça trabalhista, exigindo indenização e negando a prática de qualquer ato ilícito Alguns dias depois, na noite de 24 de agosto daquele ano, dois policiais, um dos quais trabalhava de segurança para Simonal nas horas de folga, bateram à porta da residência de Raphael Viviani e o conduziram até uma agência do Dops - o órgão central de repressão política. Chegando lá, segundo o contador, ele foi agredido e obrigado a assinar a confissão de desfalque na firma. A mulher de Viviani deu queixa na polícia e foi aberto um processo contra Simonal, por seqüestro, agressão e coação. O caso foi parar na imprensa e o cantor, que era considerado por muitas pessoas um negro arrogante, vaidoso, antipático e de direita, logo também recebeu a pecha de dedo-duro, alguém que, por suas relações promíscuas com agentes do Dops, poderia estar atuando como informante da repressão dentro do meio artístico. E o que seria apenas um caso policial se transformou num rumoroso caso político. A campanha foi deflagrada pelo jornal O Pasquim, que publicou numa página o desenho de um enorme dedo rijo com o nome de Simonal. Talvez sem ainda poder avaliar a real dimensão que esta denúncia teria sobre sua

carreira, o cantor procurou refutar a acusação regravando Mexerico da Candinha, antigo sucesso de Roberto Carlos: “Á Candinha vive a falar de mim em tudo..." Mas definitivamente O Pasquim não era a Revista do Rádio e a pecha de alcagüete grudou feito tatuagem em Simonal, nome que por várias vezes também apareceu nas lápides do "cemitério dos mortosvivos" de Henfil. E com tudo isto era praticamente impossível para o cantor se apresentar em qualquer casa de show do Brasil sem ouvir alguém gritar da platéia: "Fora, dedo-duro!" Ai já com plena consciência do impacto que esta denúncia teve sobre sua trajetória de astro da MPB, mais uma vez Wilson Simonal recorreu ao repertório musical brasileiro, regravando, em 1975, o samba Cordão, de Chico Buarque, que originalmente era um libelo contra a repressão política da direita, mas que no contexto gravado por Simonal assumia a denúncia contra a intolerância da esquerda: ...NINGUÉM VAI ME ACORRENTAR ENQUANTO EU PUDER CANTAR ENQUANTO EU PUDER SORRIR NINGUÉM VAI ME VER SOFRER... ENQUANTO EU PUDER CANTAR ALGUÉM VAI TER QUE ME OUVIR ENQUANTO EU PUDER CANTAR ENQUANTO EU PUDER SEGUIR... Não deu... e o intrigante é que até hoje a acusação contra Simonal não foi comprovada. Ao contrário, em 1991 a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República emitiu um habeas data, um documento oficial que nega que o cantor tenha colaborado para qualquer órgão da polícia política, seja o Dops ou o Serviço Nacional de Informações - SNI. (490) E ultimamente algumas pessoas que acompanharam o caso na época também têm procurado inocentar Wilson Simonal. A jornalista Léa Penteado, por exemplo, afirma que o cantor foi vítima de uma "sórdida campanha de difamação e boicote" motivada pelo "macarthismo da esquerda festiva". (491) Da mesma forma Nelson Motta defende que esta acusação de dedo-duro não faz o menor sentido porque, segundo ele, na época "Simonal era uma estrela, uma figura pública, não tinha exatamente o perfil de alguém que fosse espionar - para depois entregar”- seus colegas. Simonal não tinha nenhum acesso nem merecia qualquer confiança - muito pelo contrário - dos grupos musicais mais sérios e politizados. Simonal não

entendia nada de política e nem de conspiração, entendia de pilantragem, louras e carrões". (492) Mas o estrago já estava feito porque, assim como Dom & Ravel, o intérprete de País tropical foi marcado pelas patrulhas ideológicas. Com a ressalva de que, enquanto sobre Simonal pairava o agravante de um ato extra-musical, sobre Dom & Ravel pesava a acusação de serem cantores e compositores de músicas ufanistas. Acusação que não deixa de revelar aspectos contraditórios, já que partia de setores que se diziam comprometidos com a luta pelo direito das liberdades civis no Brasil. Seja como for, tanto a dupla Dom & Ravel (do segmento "cafona") como o cantor Wilson Simonal (do segmento MPB) tiveram as suas carreiras artísticas destruídas por serem acusados de colaborar com um regime político que dominou o país durante 21 anos. Mas, paradoxalmente, aqueles cantores/compositores que se posicionaram como críticos e opositores a este mesmo regime conseguiram, apesar de prisões e censura, dar prosseguimento normal às suas carreiras. O que demonstra que, pelo menos no campo da música popular, a ação das patrulhas ideológicas foi tão intensa quanto a das forças de repressão política. Entretanto, esta última cessou com o fim do regime militar; a outra atinge suas vítimas até os dias atuais. "Eu sigo a minha carreira sozinho" - diz Ravel - “mas até hoje sofro provocações aqui e ali. Em qualquer ambiente público onde vou sempre aparece alguém que comenta coisas do tipo 'esse foi o cantor da ditadura, o porta-voz dos militares; escuta, por que você não faz agora uma música para o FHC?, para o Plano Real?'. Infelizmente, ainda pintam esses lances aí direto. Eu digo que Dom e Ravel são os únicos artistas que foram exilados dentro do seu próprio pais, que foram perseguidos dentro do seu próprio país, que são rachados, marginalizados, que não tem liberdade pra ir pra lugar nenhum, pra onde vão sempre encontra alguém provocando 'oh meu irmão, como é que é, tu foi puxa-saco da ditadura, olha lá, hein'." Perguntado se ele achava que esta imagem da dupla ainda iria persistir durante muito tempo, Ravel respondeu: "Não sei, o que eu sei é que a tal de anistia até agora não serviu pra Dom & Ravel. E eu tenho aqui as minhas pernas quebradas, os meus braços quebrados, a minha mão massacrada pela violência; eu não posso tocar violão, estou proibido de tocar, me neutralizaram pra eu não tocar nunca mais, tudo por causa do gênero de música que eu fazia. E ainda tem mais, a perda da visão, também conseqüência dessas violências físicas que sofri."

Em maio de 1986, exatamente um ano e dois meses após o fim do regime militar, o jornalista Ricardo Soares escreveu uma reportagem sobre Dom & Ravel no jornal O Estado de S. Paulo. Com o título "Veja o que restou dos cantores do milagre" e o subtítulo "Dom & Ravel fizeram os hinos da Ditadura. Hoje comem o pão que o poder amassou", a reportagem informava que "quase 15 anos depois de um fraternal abraço no presidente Médici, quando eram os mais veementes símbolos do regime e do 'milagre', campeões de venda e das paradas, a dupla Dom & Ravel vive hoje em completa obscuridade ( ..) Para sobreviver, Ravel, 39 anos, desmancha carros velhos e constrói outros em fibra-de-vidro, um progresso para quem até há pouco vendia panelas. Pior é a situação de seu irmão e parceiro Dom, 41 anos: vive com verba de arrecadação de direitos autorais (cada vez mais esparsas) e três salários mínimos por presidir o conselho fiscal da Sociedade Independente dos Compositores e Autores (Sicam) " (493) Quando encontrei os irmãos Dom e Ravel em 1998 - 12 anos depois da reportagem do Estado de S. Paulo - , eles não pareciam continuar em tão precária situação. Ravel, aos 51 anos, embora já praticamente cego, havia deixado para trás a oficina de fundo de quintal e comandava um programa musical na Rede Vida de televisão, tentando reiniciar a carreira solo. Seu irmão Dom, aos 53 anos, trabalhava num escritório de advocacia e preparava-se para prestar vestibular numa faculdade de Direito - projeto interrompido com a sua morte em dezembro de 2000. Para o líder e principal compositor da dupla, a carreira artística já parecia mesmo definitivamente relegada ao passado. E não por um desejo pessoal, mas por força da roda-viva: "O nosso público daquela época nos admirava muito. E eu tenho certeza absoluta que continuaríamos a ser admirados até hoje se nos tivessem deixado continuar com a nossa produção artística, que procurava traduzir para o âmbito musical flagrantes da nossa vida econômica, social e cultural contemporânea. E eu pretendia ainda abordar temas como o do racismo, homossexualismo, a questão dos índios, enfim, das minorias em geral; eu pensava em falar sobre tudo isso, mas infelizmente a nossa carreira artística foi abortada. O meu projeto para Dom & Ravel era uma coisa muito bonita, sabe? Mas o troço foi muito pesado e eu não soube administrar, sei lá, não tive estrutura intelectual para segurar a barra. E hoje estamos totalmente banidos. E por razões puramente ideológicas. Não tem nada a ver com a realidade. Foi criada uma mitologia, e em cima dessa mitologia um julgamento, e dentro desse julgamento uma condenação"

Diante disso, perguntei ao compositor: "Você acha que não tem mais jeito? Vocês não têm como lutar?" "Lutar pra que?" - respondeu ele. "Eu estou com 53 anos, já não tenho mais a mesma energia, a mesma elasticidade e a mesma cabeça para tolerar certas coisas, responder certas coisas. E o ambiente hoje é outro, a vida é outra, as minhas preocupações atualmente são outras, o meu motivo de felicidade e satisfação é outro completamente diferente. O meu irmão também tem um projeto pessoal diferente do meu; então não tem nada a ver a gente tentar recuperar. É o mesmo que você chegar hoje para o Geraldo Vandré e dizer 'escuta, por que calar toda essa genialidade? Bota pra fora isso aí'. Não adianta, a moldura hoje é outra, não encaixa mais aquilo." É interessante esta referencia a Geraldo Vandré porque o autor de Pra não dizer que no falei de flores representa na memória coletiva exatamente o oposto de Dom & Ravel. Enquanto estes ficaram marcados como símbolos do nacionalismo ufanista, o outro é identificado como aquele que resistiu à ditadura e foi torturado. E todos os desmentidos de cada um dos artistas parecem inúteis e insuficientes para desvencilhá-los do mito criado em torno de si. Numa palestra para estudantes na Faculdade de Direito de João Pessoa o cantor Geraldo Vandré garantiu que nunca foi submetido à tortura, enfatizando que "a imprensa quis mistificar Vandré". E quando indagado sobre seu retorno aos palcos, impôs a seguinte condição: "Só volto quando a sociedade civil entender que não fui torturado no passado." (494) Da mesma forma Ravel investe contra a imagem construída em torno do trabalho com seu irmão: "Nos tornamos sacos de pancadas nos palcos e nas ruas porque a mídia sempre se refere a Dom & Ravel como os cantores da ditadura militar. Isto é uma mentira. Nós nunca fomos porta-vozes de ditadura nenhuma.” Mas parece que de nada adianta o que Dom & Ravel ou Geraldo Vandré tenham a dizer sobre o passado de suas carreiras. Para ambos os casos tem prevalecido até agora a máxima proferida por um personagem do Velho Oeste no filme O homem que matou o facínora, de John Ford: "Quando a lenda se transforma em fato, imprima-se a lenda."

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS AO CAPÍTULO (CONFORME A NUMERAÇÃO SEQUENCIAL ENCONTRADAS NO TEXTO)

443. "Cacá Diegues: Por um cinema popular, sem ideologias" - O Estado de S. Paulo, 31-8-1978. 444. Cf. Paulo Franchetti & Alcyr Pécora. Caetano Veloso. (Col. Literatura comentada) São Paulo: Abril Educação, 1981, p. 73. 445. "Caetano e seu novo Lp Bicho: 'Dançar ajuda a pensar melhor. O Globo, 10-4-1977 446. Idem. 447. "É isso aí, bicho?" - O Globo, 15-7-1977. 448. "Rebobagem" - Veja, 20-7-1977. 449. "Caetano Veloso: 'Não quero ser usado pela canalha"' - Diário de Sao Paulo, 16-12-1978. 450. “Caetano tira o dedo do violão e aponta" - IstoÉ, 27-12-1978. 451. Idem. 452. "Playboy entrevista Henfil" - Playboy, maio de 1979. 453. "Então é assim? Nada mudou em dez anos?" - Movimento, 18 a 24 12-1978 454. “ÁBC do Sérgio Cabral" - O Pasquim, 11 a 17-3-1971. 455. Na relação dos maiores sucessos de 1971, o compacto simples com Eu te amo meu Brasil aparece em 1° lugar em vendagem nos meses de Janeiro e Fevereiro. A mesma gravação ocupa o 2º lugar na lista dos 50 discos mais vendidos naquele ano. Fonte: Nopem - pesquisa de mercado sobre venda de discos; Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp. 456. Conforme informação da seção "Gente" - Veja, 3-2-1971, e depoimentos de Dom e Ravel ao autor. Ver Fontes e bibliografia.

457. "Médici preside solenidade de formatura do Mobral em Jundiaí" Jornal do Brasil, 11-9-1971. 458. "Médici em Jundiaí preside festa do Mobral" - Folha de S. Paulo, 119-1971. 459. "Os fabricantes felizes da alegre vitória" - Veja, 24-2-1971. 460. “Quando estou só / me lembro que ela viajou / que o meu sol nas nuvens mergulhou / minha musa às drogas se entregou / como Jimi Hendrix e Brian Jones..." Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 461. Moreira da Silva começou a gravar composições de Miguel Gustavo a partir de 1960 com O conto do pintor, seguindo-se outros sambas-debreque como O último dos moicanos, O rei do gatilho e Morengueira contra 007. 462. "Música para milhões" - O Globo, 24-1-1972. 463. Versos de “Semana do Exército”. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 464. Versos de “A estrada”. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 465. “As estrelas de cinema usam Lever / o sabonete que você deve usar / irradie mais beleza / seja estrela do seu mundo / use sabonete Lever". 466. “Amigo / seu carro já merece uma troca de pneu / mesmo que você esteja duro / compre seus pneus na Rede Zacarias / à vista ou a prazo / você faz as condições / visite a Rede Zacarias / e ao problema de pneus diga adeus." 467. Waldenyr Caldas, op. cit., p. 69. 468. Alberto Moby, op. cit., p. 167. 469. Heloisa Buarque de Hollanda & Marcos Augusto Gonçalves Cultura brasileira e participação nos anos 60. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 96. 470. Gilberto Vasconcelos, op. cit., p. 60. 471. “500 anos”. Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia.

472. Entrevista à Rádio CBN - São Paulo, 25-7-1999. Chico Alencar não é o único que credita a Dom & Ravel a marcha “Este é um pais que vai Pra frente”. O jornalista Marcelo Fróes comete este mesmo equívoco em seu livro Jovem Guarda: em ritmo de aventura”.. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 216. 473. Gilberto Vasconcelos, op. cit., p 101. 474. "Chico Buarque: Construção» - Bondinho, dezembro de 1971. 475. "Ivan Lins, nos dias de hoje" - Nova, novembro de 1979. 476. "Ivan Lins: o que caiu no golpe do Olympia" - O Pasquim, 31-10 a 6-11-1972. 477. Eloí Calage. "Contar comigo e com um afinado parceiro" In: História da música popular brasileira : Ivan Lins”. São Paulo: Abril Cultural, 1982. 478. "Ivan Lins, nos dias de hoje" - Nova, - Novembro de 1979 479. Conforme testemunho do jornalista Mylton Severiano. “Ouça, que não está nos livros" - Caros Amigos, edição de novembro de 1999. Ivan Lins só foi incluído na segunda edição da Enciclopédia da música brasileira, publicada em l998, op. cit., p. 446. 480. Versos do samba “Sete de Setembro”. Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 481. Segundo o general Octávio Costa (chefe da Assessoria Especial de Relações Públicas do governo Médici), o presidente era fã nó 1 da cantora Elizete Cardoso. "Médici tinha verdadeira adoração pela Elizete - e era retribuído. Sempre que se anunciava alguma festa ou solenidade mais informal com a presença de Médici, a Elizete Cardoso era convidada e comparecia". Depoimento ao autor, 21-7-1999. 482. "Nas Olimpíadas" - O Dia, 12-4-1973. 483. Convocação feita por Elis Regina e por outros artistas reproduzida nas páginas de diversos jornais brasileiros; por exemplo, Ultima Hora, 14- 41972. 484. Regina Echeverria. “Furacão Elis”. São Paulo: Globo, 1994, p. 106.

485. Léa Penteado. “Um instante, maestro! A história de um apresentador que fez História na TV”. Rio de Janeiro: Record, 1993, p. 156. 486. “Caetano: Nada mais Z do que a classe A” - Folha de S. Paulo, 15-51973. 487. Regina Echeverria, op. cit., p. 109. 488. Idem, p. 108. 489. "Não dá mais" - Jornal do Chacrinha - A Noticia, 29-1-1973. 490. Documento datado de 28 de agosto de 1991. Cf. Léa Penteado, op. cit., p. 133. 491. Idem, p. 130 e 133. 492. Nelson Motta. “Noites Tropicais”, op. cit., p. 212-213. 493. "Veja o que restou dos cantores do milagre - ”O Estado de S. Paulo, 18-5-1986. 494. ''Vandré nega tortura pelo regime militar” - O Estado de S. Paulo, 112-1990

(CANTORES DO RÁDIO NA ERA DA TV) “Se tivesse nascido no Brasil, o nome de Chaplin seria Chacrinha, nosso Chaplin subdesenvolvido, uma flor do povo” (Nelson Rodrigues) Naquela noite o Rio de Janeiro parou diante da TV. Ninguém queria perder o espetáculo transmitido pela TV Globo. Quem não tinha televisão foi para os bares ou para a casa de parentes e vizinhos. Os números do Ibope registraram a espetacular marca de 100% de aparelhos ligados - fato até então inédito na televisão brasileira. Não, não se trata de uma final de Copa do Mundo ou da primeira viagem do homem à lua. Naquela noite de 4 de Outubro de 1972, quarta-feira, milhões de cariocas (e depois milhões de outros brasileiros) pararam para assistir a um dos capítulos decisivos da novela Selva de Pedra, de Janete Clair.(495) Era a história do atribulado romance entre o bom rapaz Cristiano (Francisco Cuoco) e a meiga e pura Simone (Regina Duarte) - personagem

dada como morta após um acidente mas que reapareceu de peruca e sob a falsa identidade de Rosana Reis. O clímax de audiência se deu no capítulo 152, quando Cristiano iria finalmente descobrir que Rosana era na verdade o seu grande amor Simone. Ao som do hit Rock and Roll Lullaby, com B. J. Thomas, e de canções de Marcos e Paulo Sérgio Valle, o público se extasiava a cada cena da novela. Dirigida por Walter Avancini, Selva de Pedra é um marco na escalada da TV Globo rumo ao monopólio de audiência que exerceria ao longo da década de 70. Ali estava definitivamente comprovado o sucesso da fórmula criada pela dupla Boni e Walter Clark: novelas, muitas novelas, das seis às dez da noite, com produções caríssimas e em cintilante estilo cinematográfico. Quem não se lembra? Irmãos Coragem, Fogo Sobre Terra, Bandeira Dois, Escrava Isaura, Uma Rosa Com Amor... A implantação deste coquetel de dramas foi definida depois de um amplo trabalho de pesquisa em que a emissora constatou que era preciso prender a atenção da dona-de-casa seguindo a tradicional lógica de mercado de que se é o homem quem trabalha e ganha o dinheiro, é a mulher a principal consumidora. "E lá iam Boni, Daniel Filho e Janete Clair criar iscas e mais iscas para capturar essa mulher e garantir índices inacreditáveis de audiência para nós", diz Paulo Cesar Ferreira, ex-diretor da Rede Globo. (496) Mas como não só de novela vive o homem (ou a mulher), entre o drama das sete e o das oito horas, foi estrategicamente programado um telejornal - que não poderia durar mais de 20 minutos - “senão a dona-decasa muda de canal” - dizia Armando Nogueira, primeiro diretor do Jornal Nacional. (497) Feita esta pequena introdução, vamos ao principal ponto deste capítulo, que não é tanto as telenovelas em si, mas a sua trilha musical. Ou seja: quais os cantores e canções que apareciam nas novelas da Globo naquele período? Na década de 70 o dramaturgo Plínio Marcos observava: “Em novela de televisão, prostituta tem todos os dentes e operário come todos os dias.” (498) Eu apenas acrescentaria: e todos os personagens só ouviam, além de músicas estrangeiras, os cantores da MPB. Sim, nos folhetins eletrônicos da Rede Globo as canções do repertório "cafona" não tiveram vez. Na época, aquele foi um espaço ocupado por artistas como Elis Regina, Caetano Veloso e Chico Buarque. Até mesmo a novela O Cafona, de Bráulio Pedroso, teve sua trilha musical encomendada a bossa-novistas como Carlos Lyra, Vinicius de Moraes e Sérgio Ricardo.

A primeira trilha sonora de uma novela da TV Globo foi lançada em 1969: Véu de Noiva, novela de Janete Clair que tinha entre seus principais personagens a menina humilde (Regina Duarte), o piloto de automóveis (Cláudio Marzo) e a jovem vilã (Betty Faria). Produzido por Nelson Motta, o LP reuniu um conjunto de canções que serviu de fundo para realçar o drama dos protagonistas e levar o telespectador ao clímax desejado pela autora e o diretor Daniel Filho. Embora estampando na capa a expressão "trilha sonora original" como nas trilhas de filmes de Hollywood - , nem todas as músicas eram inéditas ou foram compostas especialmente para aquela novela. Caso, por exemplo, de uma canção que Caetano Veloso fizera evocando o sorriso de sua irmã Irene, quando ele ainda estava preso na Vila Militar, no Rio: "Eu quero ir, minha gente / eu não sou daqui / eu não tenho nada / quero ver Irene rir / quero ver Irene dar sua risada...” No texto original de Janete Clair, o personagem da atriz Betty Faria chamava-se "Lúcia", mas pouco antes de começarem as gravações da novela Nelson Motta ouviu a recém-gravada composição de Caetano Veloso. Nelson diz que achou a música tão boa que não hesitou em “convencer Daniel Filho a ligar para Janete Clair e pedir que ela trocasse o nome do personagem para Irene. Janete topou e a música virou um sucesso". (499) O diretor Daniel Filho também recorda uma passagem desta relação entre som e imagem em Véu de Noiva. “Na morte de um dos personagens, o pai da menina, usei o tema Gente humilde, mostrando a casa vazia. Procurei retratar a essência, a perda. Não sei se foi a melhor cena da novela. Mas, para mim, foi uma das mais emocionantes." (500) Naquele ano, tanto Irene como Gente humilde (música do violonista Garoto com letra de Chico Buarque e Vinicius de Moraes) tornaram-se imediatos sucessos nacionais. Segundo Nelson Motta “o disco de Véu de Noiva vendeu mais de 100 mil cópias em poucos meses, lançou um novo produto, abriu uma poderosa frente de exposição para a música brasileira. Todo mundo queria fazer e cantar músicas para novela". (501) De fato, mas se muitos eram chamados, poucos eram escolhidos e invariavelmente do elenco da MPB. As duas trilhas sonoras seguintes, as das novelas Verão Vermelho e Pigmalião 70, trouxeram composições de Milton Nascimento, Roberto Menescal, Egberto Gismonti, com o tema de abertura da primeira cantado por Elis Regina. E assim, os principais nomes da MPB, que se revelaram para o grande

público nos anos 60 através dos festivais da TV Record, entravam na década de 70 com uma nova e poderosa aliada: a TV Globo, e as suas novelas. A cada novo lançamento no video, dois novos LPs (o nacional e o internacional) eram despejados no mercado. E além de engrossar o faturamento das gravadoras com cifras extraordinárias, as trilhas sonoras ajudavam a divulgação do trabalho de um elenco de cantores/compositores que tinha seu público cativo na classe média mais intelectualizada. E todos eles tiveram espaço neste filão. De Tom Jobim a Paulinho da Viola; de Rita Lee a Toquinho e Vinicius, passando por Edu Lobo, Gonzaguinha, Ivan Lins, Baden Powell, Maria Bethânia, Nara Leão, Gilberto Gil, Gal Costa, João Bosco e Beth Carvalho. Até mesmo Chico Buarque, que atravessou os anos 70 em litígio com a TV Globo, teve (porque nunca impediu) várias de suas composições incluídas em trilhas de novelas naquele período. É só ouvir os discos de Dancin' Days (com Chico e Nara cantando João e Maria); O Astro (com Trocando em miúdos); Duas Vidas (Olhos nos olhos); O Casarão (Carolina), Espelho Mágico (Vai levando) ou Pecado Rasgado (com o tema de abertura Não existe pecado ao sul do equador). De outro lado, devo informar que ficaram totalmente de fora cantores/compositores populares como Waldik Soriano, Nelson Ned, Paulo Sérgio, Lindomar Castilho, Cláudia Barroso, Cláudio Fontana, Reginaldo Rossi, Ângelo Máximo, Carmen Silva, Diana, Dom & Ravel e vários outros que não tiveram naquela época qualquer uma de suas gravações incluída numa trilha de novela da TV Globo. As exceções são Wando (com Moça, tema de Pecado Capital) e Fernando Mendes (com Sorte tem quem acredita nela, tema de Duas Vidas), e mais uns dois ou três. É muito pouco considerando-se que de Véu de Noiva, primeira trilha, lançada em 1969, até A sucessora, lançada no fim de 1978 (período limite deste trabalho de pesquisa), a TV Globo despejou no mercado 58 trilhas sonoras nacionais de novelas (48 em LPs e 10 em compactos), totalizando mais de 600 faixas de músicas gravadas. Sem qualquer dúvida, nos anos do AI-5, a trilha de novela global foi monopólio dos cantores/compositores da MPB. Para alguns, isto pode até soar contraditório, já que consideram as paixões avassaladoras, as pérfidas traições e os sofrimentos intermináveis dos folhetins televisivos muito próximos dos dramas amorosos do repertório "cafona".

Chacrinha percebia a contradição e chamava a atenção do público para este aspecto das novelas da TV Globo: "Reparem! Porque, embora realmente bem-feitas e com detalhe de grande produção, o seu conteúdo, a sua mensagem, o seu texto tudo é igual a qualquer bolero de Waldik Soriano!” (502) Ora, bolas, então por que as composições de Waldik Soriano ou de Nelson Ned não entravam numa trilha de novela da Globo? Uma possível resposta para esta questão é que naquela época a Rede Globo estava comprometida com o projeto do "Brasil Grande" e valia-se do design limpo e pasteurizado para vender ao espectador a idéia de um país moderno, bonito, bem-sucedido e desenvolvido. A extrema pobreza e o escândalo dos baixos padrões de vida das classes populares urbanas brasileiras eram ocultados no vídeo pela imagem glamourizada e luxuosa da emissora que, de certa forma, antecipava aquele ideário do carnavalesco Joãozinho Trinta de que "pobre gosta de luxo, quem gosta de pobreza é intelectual”. Pairando acima da realidade, a Globo tornou-se o baluarte da classe média e o principal veículo de divulgação dos sonhos do "milagre" e do ufanismo desenvolvimentista do regime. Implantado neste período, o chamado "padrão Globo de qualidade", que como bem observa Artur da Távola "não é propriamente o patamar de qualidade artística do produto-programa, mas o padrão de qualidade de produção” (503) que se tornou parâmetro de "perfeição", de "eugenia", de "limpeza de imagem", impondo uma assepsia cada vez maior no vídeo. E isto é destacado por vários analistas da televisão brasileira dos anos 70. Elisabeth Carvalho, por exemplo, afirma que na Globo “havia um padrão estético a respeitar: pessoas com defeito físico, de ar muito miserável, sem alguns dentes na boca ou mesmo com roupas rasgadas deveriam a todo custo ser evitadas no video" (504) A ensaísta Maria Rita Khel também destaca que "a opulência visual eletrônica criada pela emissora contribuiu para apagar do imaginário brasileiro a idéia de miséria, de atraso econômico e cultural; e essa imagem glamourizada, luxuosa ou na, pior das hipóteses, anti-séptica (quando é imprescindível mostrar a pobreza convém ao menos desinfetá-la: em vez de classes miseráveis, um povo 'humilde porém decente' para não chocar ninguém), contaminou a linguagem visual de todos os setores da produção cultural e artística que se propõem a atingir o grande público". (505) Embora todos esses autores falem em "opulência visual" e "limpeza de imagem", eu chamo aqui atenção para o fato de que na época a emissora também se preocupava com a "opulência sonora”, a "limpeza de som",

porque visão e audição são dimensões inalienáveis da TV. Ou seja, aquela "imagem asséptica" vinha acompanhada de uma "sonoridade asséptica" - e esta era incompatível com as canções do repertório "cafona". Daí a preferência pelo repertório de artistas como Caetano Veloso e Tom Jobim. A estética da MPB, com suas dissonâncias e ambições literárias, se ajustava melhor ao projeto de se vender a idéia de um país economicamente forte, moderno e desenvolvido. Mas como uma incômoda realidade, as canções de Odair José ou de Waldik Soriano estavam ali, bem próximas, para lembrar que o Brasil, ou grande parte dele, é miserável, sim!; é subdesenvolvido, sim!; é analfabeto, sim!. E isto a emissora do Jardim Botânico queria varrer para debaixo do tapete. Por volta de 1970, juntamente com a consolidação da rede, começa o processo de limpeza da programação da Globo. Atrações consideradas popularescas como Casamento na TV e Balança Mas Não Cai são retiradas do ar e nomes como Dercy Gonçalves e Raul Longras, o "santo casamenteiro", são dispensados da emissora. Numa primeira fase, após a inauguração da TV Globo, em 1965, eles foram importantes para angariar a audiência do público situado nas classes D e E. Agora tornavam-e um estorvo numa programação voltada para os segmentos de maior poder de consumo. A esse respeito disse o ex-diretorgeral da emissora, Walter Clark: "Já não interessava à Globo dar 90 por cento de audiência com programas como o Casamento na TV. Era melhor dar 70 por cento com uma novela adaptada de um livro do Jorge Amado, por exemplo, que daria prestígio à emissora." (506) Seguindo esta estratégia, em 1972 foi a vez de Chacrinha e suas chacretes também serem varridos da TV Globo. Naquele ano, o pernambucano de Surubim José Abelardo Barbosa estava com 55 anos de idade e no auge do sucesso Seus dois programas na TV Globo, a Discoteca do Chacrinha (às quartas-feiras) e A Hora da Buzina (nas noites de domingo), eram líderes de audiência no horário. Foi uma longa trajetória até chegar ali. Sua carreira começou em 1935, como locutor de rádio, ainda em Pernambuco. Em 1940, aos 23 anos, Abelardo Barbosa foi para o Rio de Janeiro, estreando três anos depois na Rádio Clube de Niterói com o programa carnavalesco O Rei Momo na Chacrinha (referencia ao fato de a rádio funcionar numa pequena chácara da cidade). O sucesso foi crescendo, principalmente quando ele se transferiu para a Rádio Tamoio do Rio levando junto o apelido com o qual se tornaria famoso. Nesta época, segundo o próprio Chacrinha, ele teria inaugurado no

Brasil a prática do famigerado jabá: a divulgação de músicas em troca de dinheiro. "Eu fui o primeiro disc-jóquei a ser prostituído. Quem me prostituiu foi o falecido compositor Benedito Lacerda, que era compadre de Herivelto Martins. Ele me levou ao Vicente Vitale e acertamos para tocar somente músicas editadas pelos Irmãos Vitale. E eu recebia o dinheiro." (507) Depois de trabalhar em diversas rádios cariocas, em 1957 o comunicador aceitou o desafio da televisão, estreando o programa Discoteca do Chacrinha, na TV Tupi, mas ainda vestido de terno e gravatinha borboleta. Aos poucos, porém, ele foi definindo sua figura exótica e suas atrações extravagantes: as fantasias, as chacretes, a buzina, o bacalhau, o auditório e o grito de guerra "Teresinha! uhuuuuuuuuuu!" A consagração definitiva viria a partir de 1968, quando tudo isto foi levado para o palco da emergente TV Globo que, montada numa moderna estrutura empresarial, empenhava-se pela conquista da hegemonia do mercado brasileiro. Foi um bom negócio para ambas as partes: Chacrinha deu à emissora a popularidade que ela ainda não tinha; e a Globo deu a Chacrinha a estrutura necessária para lançar seu programa pela primeira vez em rede nacional, consagrando o comunicador como um ícone da nossa televisão. "Se tivesse nascido no Brasil, o nome de Chaplin seria Chacrinha, nosso Chaplin subdesenvolvido, uma flor do povo", dizia Nelson Rodrigues. (508) Aliás, foi a partir desta época que o fenômeno Chacrinha começou a atrair atenção e elogios de setores da intelectualidade - daqui e de fora. O francês Edgar Morin, por exemplo, o classificou como "um gênio da comunicação de massa" (509) e o conterrâneo Gilberto Freyre vaticinava que "como animador de programa de televisão, Chacrinha democratizou, abrasileirou, miscigenou como ninguém esse poderoso meio de comunicação". (570) Mas o número daqueles que o criticavam e acusavam seu programa de vulgar e apelativo era bem maior. Tanto assim que quando em 1969 Chacrinha ouviu pela primeira vez o samba Aquele abraço, de Gilberto Gil, a primeira reação dele foi de bronca e irritação. Gato escaldado, imaginou que aquele negócio de "Chacrinha continua balançando a pança" e "alô, alô, seu Chacrinha, velho palhaço", fosse mais um achincalhe, um piche, dos tantos que diariamente apareciam em jornais e revistas do país. Foi preciso a mediação de amigos e familiares para convencê-lo de que os versos de Gil eram na verdade uma exaltação ao seu nome - que depois do sucesso da música ficou também conhecido como "Velho Guerreiro".

Na época, o programa do Chacrinha foi enquadrado numa categoria que o sociólogo Muniz Sodré chamou de "comunicação do grotesco". (51l) O programa não era apenas musical; precursor do Ratinho, ali havia desde o "concurso do cachorro que tem mais pulga" até atrações como a mulher com trêss peitos e o homem com duas cabeças e tudo misturado às fartas carnes das chacretes e a bordões do tipo: "Alô, alô, Josefina Jordan, vai dar hoje ou amanhã?" Na visão de Muniz Sodré, Chacrinha era "obsceno e ambíguo, oferecia entretenimento falando para as partes baixas. Enquanto a arte sublime, a grande arte, olha para a cabeça, o nariz, os ouvidos, o grotesco olha para o inferno, o porão da casa; apela para o sexo, o xixi, o cocô''. (512) Esta observação do teórico talvez possa ser estendida também ao repertório "cafona". Até certo ponto as canções de artistas como Wando, Agnaldo Timóteo e Odair José também evocam as partes baixas, o sexo, o xixi e o cocô - se adequando tão bem ao palco comandado pelo Velho Guerreiro. E por isso mesmo ambos chocavam os padrões estéticos da TV Globo, comprometida cada vez mais com um grande contingente da classe média urbana. "Os ricos e os pobres me tratam igual, não têm nada a perder", dizia Chacrinha, "só quem não gosta de mim é a classe média " (513) As desavenças com a Globo foram se acentuando gradativamente a partir de 1970. A viúva do Velho Guerreiro, Dona Florinda Barbosa, recorda que naquela época "Boni passou a interferir na produção, dizendo que era preciso reduzir a exposição do brega, da desgraça alheia, restringindo o elenco e sugerindo novos nomes. Chacrinha não aceitava, achava que Boni queria mudar a linha do programa, tornar tudo muito pasteurizado, com cara de show americano". (514) Às pressões internas somavam-se as pressões externas. Centenas de cartas, assinadas por diversos representantes dos setores médios da sociedade, eram enviadas à Censura Federal, pedindo a intervenção no programa. O governo também implicava com aquela exposição da miséria que se traduzia na imagem de bananas e bacalhaus sendo atirados na cara da platéia faminta. O sinal vermelho se acendeu quando Chacrinha lançou o quadro Sua Desgraça Vale um Milhão - no qual o candidato que narrava o pior caso de sua vida, ao ponto de comover o auditório às lágrimas, ganhava o dinheiro na hora. Até o ministro das Comunicações do governo Médici, Higyno Corsetti, se manifestou contra aquele festival de brasileiros miseráveis. (515)

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Representantes da Igreja também protestavam contra os bordões do apresentador e os requebros e detalhes anatômicos de suas chacretes: Índia Poti, Lucinha Apache, Rita Cadillac... Em sua influente coluna no Jornal do Brasil dom Marcos Barbosa perguntava: "Como é possível um programa assim, num horário assim, com duração assim?", argumentando que "se é dever do Estado, por lei, censurar teatro e cinema onde vai quem quer e quem paga”, como deixar ao alcance de cada criança, dentro de casa, uma fonte de poluição?" Nada demais na fala do clérigo, apenas mais uma voz, entre tantas no Brasil, que apoiava e clamava pela censura dos militares. No domingo seguinte, balançando a pança e comandando a massa, o Velho Guerreiro aparecia com um novo bordão: "Dom Marcos é um xarope, Chacrinha dá Ibope." O que mais irritava estes setores da elite era o interesse que o fenômeno Chacrinha despertava no exterior. Televisões da Europa vinham ao Brasil especialmente para gravar cenas de seu programa e publicações como a Time-Life e o Daily Herald escreviam sobre o espalhafatoso comunicador brasileiro. E isto contribuía para aumentar o côro daqueles que queriam puxar-lhe o tapete na TV Globo - como se depreende de mais uma fala do ministro das Comunicações Higyno Corsetti: "O mundo precisa conhecer

o Brasil, mas não irá conhecê-lo através de programações de segunda ordem. Moralizar a televisão é, antes de tudo, uma missão de patriotismo.” (517) Nota-se aí até que ponto chegava a velha preocupação de nossas elites com a imagem do Brasil no concerto das nações. Chacrinha, como sempre, desdenhava: "Não tenho culpa de que venham lá de fora os órgãos mais prestigiosos para me entrevistar."(518) O que Chacrinha não tolerou foi quando o seu programa, transmitido ao vivo, foi abruptamente cortado do ar, por ordem do próprio Boni, no momento em que ele entrevistava o compositor e humorista Juca Chaves. Com aquela ironia que lhe é característica, depois de cantar uma de suas modinhas, Juca deslanchou um discurso contra a televisão, acusando-a de pagar muito mal ao artista brasileiro. Chacrinha não quis ou não conseguiu interrompê-lo e imediatamente Boni determinou que o programa fosse retirado do ar. Isto foi a gota d'água para o apresentador. "O Velho Guerreiro teve um ataque histérico ainda no palco quando soube do corte. Já nas coxias, quebrou tudo o que viu pela frente: mesas, cadeiras, telefone... foi um escândalo", relembra Uadji Moreira, da produção do programa. (5l9) Sem mais nenhum clima para continuar na emissora, no dia seguinte Chacrinha rescindiu seu contrato com a TV Globo, o que foi prontamente aceito : “A saída dele é benéfica, pois nós já não precisamos mais de Ibope e sim de qualidade", disse um dos diretores da casa. (520) A partir daí o Velho Guerreiro iniciou sua via crucis de dez anos por outros canais de TV: Tupi, Record, Bandeirantes... Com produção precária e índice de audiência cada vez menor, seu programa acabou ficando fora do ar muitas vezes, restando a Chacrinha e suas chacretes fazerem shows em boates. Definitivamente, os tempos eram outros e ele teve que começar tudo outra vez "Foram os piores anos da vida do animador, que levou quase uma década para recuperar o que perdeu nesse período", afirma a jornalista Lucia Rito, acrescentando que na época a família Barbosa foi obrigada a vender cerca de dez apartamentos para manter seu padrão de vida. (521) Chacrinha só voltaria à TV Globo nos anos 80, mas fora do horário nobre e já devidamente domesticado e enquadrado no "padrão de qualidade” da emissora. O interessante é que o Velho Guerreiro caiu no momento em que outros apresentadores, seguindo a sua escola, começavam a aparecer no vídeo. Em maio de 1971, numa nota intitulada “Á maior cascata do mundo", Chacrinha perguntava ao seu leitor: "Vocês já viram, não? Na TV

Record tem um careta que faz um programa e tudo o mais igual o Chacrinha. Querem que eu recorde o nome dele? Perfeito: é o Edson Bolinha Cúri que se diz 'o Chacrinha de Araçatuba'. E agora, dona Aurora?" (522) O fato é que quando em dezembro de 1972, Chacrinha saiu da TV Globo, junto com ele foi embora um elenco de cantores populares que tinha naquele programa seu principal palco na emissora. Para a dupla Boni e Clark foi uma limpeza completa: assepsia da imagem e do som. Para cantores como Paulo Sérgio e Waldik Soriano, um video a menos. Já excluídos das novelas, e agora também sem o Chacrinha, eles atravessaram a maior parte dos anos 70 sem espaço na emissora do Jardim Botânico a não ser em esporádicas aparições no programa mensal Globo de Ouro. Clipe no Fantástico, programa que ocupou o espaço do Chacrinha, nem pensar. Até porque nesta época muitos compositores "cafonas" enveredaram por uma temática delicada e não muito agradável para certos ouvidos: o drama dos portadores de deficiência física, grupo social que representa cerca de 6,5 milhões de pessoas no Brasil (4% da população) (523) e, até então, totalmente ignorado pela mídia e pelos órgãos públicos. Basta dizer que ainda hoje a nossa arquitetura urbana é um labirinto de obstáculos que os condena a ficar em casa fazendo todos os dias tudo sempre igual. Nos anos 70, porém, eles alcançaram maior visibilidade ao tornarem-se protagonistas de várias canções: A ceguinha ( Jorge Paiva), Trevas (Roberto José), Tamanho não é documento (Nelson Ned), Canção do paralítico (Carlos Alexandre), Cadeira de rodas (Fernando Mendes) e outras. Pela primeira vez paraplégicos, tetraplégicos, anões, cegos, surdos e mudos mereceram atenção da música popular, revelando para uma multidão de outras pessoas que no peito do deficiente físico também bate um coração. A mais representativa dessas canções é mesmo Cadeira de rodas, gravação de Fernando Mendes que tornou-se um dos maiores sucessos musicais dos anos 70 (524): SENTADA NA PORTA EM SUA CADEIRA DE RODAS FICAVA SEUS OLHOS TÃO LINDOS SEM TER ALEGRIA TÃO TRISTE CHORAVA MAS QUANDO EU PASSAVA A SUA TRISTEZA CHEGAVA AO FIM

SUA BOCA PEQUENA NO MESMO INSTANTE SORRIA PRA MIM... A letra narra a história de um amor platônico entre um rapaz tímido e uma moça paralítica. Segundo o cantor, a idéia da canção surgiu em 1974, durante um show no antigo Cine Glória, em Vitória da Conquista, interior da Bahia. "Do palco daquele cinema eu vi que tinha uma menina sentada numa cadeira de rodas assistindo ao show. Ela estava bem à minha frente, cantando, aplaudindo, sorrindo, um sorriso cativante, ali na cadeira de rodas. E aquela imagem me fascinou na hora. A menina tinha uns treze anos e se chamava Lindalva. Me disseram até que ela morava num hospital lá da cidade Logo depois do show eu falei para o meu parceiro José Wilson: 'Vamos fazer uma música com esse tema aí, alguém apaixonado por uma menina de cadeira de rodas.' No hotel mesmo eu já fui procurando a melodia e ele, escrevendo a letra." De volta ao Rio, Fernando Mendes imediatamente foi ao encontro de seu produtor na Odeon, Miguel Plopschi, para mostrar a nova canção, que ainda não estava totalmente pronta. O entusiasmo dele foi imediato; afinal, aquele era um tema novo, ainda não explorado na música popular, embora delicado por mexer com sensibilidades reprimidas. Por isso mesmo o produtor procurou cercar-se de certos cuidados na hora de gravar o tema. Houve a preocupação com a busca da palavra mais adequada e a interpretação menos exagerada possível. No estúdio, quando Fernando Mendes ameaçava soltar a voz, Miguei Plopschi interrompia: "Pára aí, pára ai. Não é nada disso. O que é que houve? Você já ouviu João Gilberto cantar? Já... então pronto. Olha como João Gilberto canta e agrada ao ouvido de tanta gente. Você não precisa soltar a voz, fica feio. Você não é cantor, você é intérprete. O Agnaldo Timóteo e o Cauby Peixoto podem cantar alto porque eles têm extensão de voz. Você não tem, então procure cantar baixinho, bonitinho, colocadinho.” Embora abordando um tema dramático, da linhagem de antigos sucessos como Coração materno (Vicente Celestino) e Coração de luto (Teixeirinha), diferentemente desses, Cadeira de rodas surgiu num arranjo contido e numa interpretação quase minimalista de Fernando Mendes. O sucesso do disco foi imediato e muitas garotas paralíticas, acostumadas a remoer solidão e abandono, sentiram-se rainhas de uma história de amor cantada de norte a sul do Brasil. "Depois do sucesso da música choveram cadeiras de rodas em meus shows", diz Fernando Mendes "Há pouco tempo mesmo eu estava em Maracapuru, lá no Amazonas, e apareceu mais uma linda moça paraplégica dizendo que queria me conhecer,

que sonhava há milhões de anos de ver um show meu por causa de Cadeira de rodas. Ela até me contou que ficou paraplégica na época do sucesso da música." Sucesso que se deveu basicamente ao rádio, - o principal veículo de divulgação do repertório "cafona' - considerando-se que a outra importante vitrine musical, a televisão (leia-se, a programação da Globo), era ocupada pelo elenco da MPB. Neste sentido, nomes como Paulo Sérgio, Waldik Soriano e Nelson Ned foram cantores do rádio em plena era da TV. Eles não foram revelados em festivais televisivos e nem se nutriam do sistema global de telenovelas. "Quando lanço um disco, vou às cinco horas da manhã pra Rádio Globo, Tupi, Mauá, Nacional, caitituar o meu disco. É assim que eu vendo disco, bicho”, dizia Agnaldo Timóteo em 1972. (525) Já quem tinha sua música numa trilha de novela da Globo podia até se dar ao luxo de acordar tarde porque à noite sua gravação estaria no ar e ao alcance de milhões de telespectadores. Talvez por isso mesmo a Globo nem precisava pedir; os próprios artistas da MPB ofereciam suas criações às novelas da emissora. Tom Jobim era um deles. Segundo Daniel Filho, volta e meia Tom aparecia na Globo com uma nova composição, dizendo: "Eu tenho essa melodia, vamos botar ela onde?" (526) Muito se tem destacado a importância do trabalho de cantoras como Nara Leão, Gal Costa e Elis Regina na revelação de novos talentos da música brasileira. De fato, basta lembrar alguns compositores como João do Vale, João Bosco, Belchior e Luiz Melodia que se projetaram no cenário artístico depois de gravados por essas estrelas. Mas o que o público parece desconhecer é que este mesmo papel também foi desempenhado pelas novelas da TV Globo. Vários nomes hoje consagrados deslancharam suas carreiras depois de aparecer cantando ali pela primeira vez. Um caso exemplar é o do cantor Djavan, que antes mesmo de gravar seu primeiro LP , “AVoz, o Violão, a Música de Djavan" (Som Livre, 1976) já era ouvido diariamente pela grande audiência dos folhetins eletrônicos da Globo. Na época ainda atuando como cantor da noite no Rio de Janeiro, Djavan realizou sua primeira gravação especialmente para a trilha da novela Os Ossos do Barão (1973), seguindose gravações para os discos de outras novelas como Fogo Sobre Terra (1974) e Cuca Legal (1975). Assim, quando o primeiro LP de Djavan foi lançado, em 1976, com o hit Flor de Lis, o público já estava mais do que familiarizado com a voz e o violão do artista alagoano. E diga-se de passagem, que não apenas o

público do Brasil. Ao acompanhar um grupo de artistas numa viagem a Angola, em 1979, Djavan surpreendeu-se ao constatar que a platéia africana já o conhecia por causa da canção Alegre menina, tema que embalava o personagem de Sônia Braga na novela Gabriela. Outro nome da MPB revelado pelas novelas da TV Globo foi a cantora Fafá de Belém, famosa aos 19 anos quando sua primeira gravação, Filho da Bahia, apareceu como um dos principais temas da novela Gabriela, em 1975. No ano seguinte a cantora gravou seu primeiro LP na Philips, deslanchando uma bem-sucedida carreira, que naturalmente contou com outras músicas em novelas da Globo. Trajetória parecida foi a do cantor e compositor Guilherme Arantes, projetado nacionalmente depois que seu tema Meu mundo e nada mais foi incluído na primeira versão da novela Anjo Mau, em 1976. E o soul man Cassiano, embora já conhecido no meio musical, obteve seu maior sucesso popular como intérprete com as gravações de A lua e eu (tema da novela O Grito, 1975); e Coleção (tema de Locomotivas, 1977). Um exemplo da força das novelas da Globo na imposição de um sucesso é o que envolveu o cantor cearense Ednardo que, segundo o critico José Ramos Tinhorão, integra aquela "geração de compositores que dirigem suas criações à minoria de público de nível universitário." (528) Depois de gravar um disco com o grupo Pessoal do Ceará, sem grande repercussão, em 1974 Ednardo lançou pela RCA o seu primeiro LP solo, e tanto ele como a gravadora depositavam grande esperança no sucesso da faixa Pavão Mysteriozo, um tema inusitado que se valia de imagens da literatura de cordel. Entretanto, para desgosto do artista, nem as rádios, nem o público (popular ou universitário) revelaram maiores interesses pela canção e o seu disco ficou encalhado nas prateleiras das lojas. Dois anos depois, quando Ednardo se preparava para lançar um novo LP na praça, a ignorada Pavao Mysteriozo foi escolhida pela Globo como o tema ideal para ilustrar o realismo fantástico da novela Saramandaia, de Dias Gomes. A partir daí o sucesso da música foi rápido e intenso e a tal ponto que Ednardo não conseguiu mais promover o novo disco; passou toda aquela temporada (e até os dias de hoje) cantando "pavão misterioso / pássaro formoso / tudo é mistério nesse teu voar...". Registre-se que o namoro dos compositores da MPB com a telenovela não começou nos anos 70 e nem ficou restrito à TV Globo. Em pleno 1964, o ainda desconhecido Chico Buarque compôs um tema musical exclusivo para a novela Prisioneiro de um Sonho, produção da TV Record com Eva Wilma e John Herbert. E outro futuro ídolo da esquerda, Geraldo Vandré, também compôs naquele mesmo ano o tema de abertura da novela O

Sorriso de Helena, da TV Tupi. Foram produções esporádicas, num tempo em que as telenovelas ainda não tinham suas trilhas sonoras lançadas em disco - produto que seria consagrado pela TV Globo a partir do lançamento da trilha de Véu de Noiva, em 1969. (529 )

Foi dito aqui que esta e outras trilhas sonoras da emissora não foram ocupadas pelo repertório de cantores como Waldik Soriano ou Nelson Ned. Mas, se por um lado, as canções "cafonas" ficaram realmente de fora das novelas da Globo, constata-se que as novelas da Globo não ficaram de fora das canções "cafonas". Há várias gravações comentando ou criticando os folhetins televisivos - atração que efetivamente se consolidou nos anos 70. Na década anterior, a televisão ainda era um bem de consumo restrito às classes média e alta. É a partir do período do "milagre" que a venda de aparelhos-receptores se expande e a TV efetivamente se populariza, interferindo no cotidiano de milhões de brasileiros. (530) "Quando chego do trabalho me aborreço / vejo o seu corpo debruçado no sofá ..", lamenta-se o cantor Luiz Geraldo em uma de suas gravações. (531) Aqui aparece uma diferença fundamental da TV em relação ao rádio. Este último não impede o ouvinte de exercer suas atividades profissionais ou de lazer diárias; já a TV requer a atenção do telespectador à frente do aparelho receptor, calando os diálogos familiares como se vê em um outro protesto intitulado Um grito parado no ar: ESSE QUADRADO NO CANTO DA SALA FECHOU SUA BOCA, ROUBOU SEU OLHAR VOCÊ SE LIGA DEMAIS EM NOVELAS NÓS NEM TEMOS TEMPO DE DIALOGAR... Nota-se que esta crítica ao monopólio da fala televisiva vem acompanhada daquela tradicional visão da mulher como o sexo frágil, romântica, alienada e sonhadora, presa fácil dos dramas de Janete Clair e de seus galãs da televisão. Tema também explorado num bolero de Lindomar Castilho, que fala do homem que chega cansado do trabalho e se depara com a mulher distraída diante da TV: ...SEI QUE VOCÊ TEM MAIS PENA É DO GALÃ DE SUAS NOVELAS E ISSO FAZ DO NOSSO CASO DUAS VIDAS PARALELAS E PRA AUMENTAR O MEU CIÚME E ME DEIXAR QUASE LOUCO VOCÊ MORRE DE AMORES POR UM TAL FRANCISCO CUOCO...(532)

É, sem dúvida, uma visão machista - conforme a média de pensamento do segmento social de onde provém estes compositores - , e também empobrecedora da figura feminina, mas que encontra respaldo na nossa realidade social. É o mesmo processo que leva Chico Buarque a compor canções retratando aquelas mulheres de malandro, submissas, do tipo que só dizem sim. Como explica o compositor, "você coloca na música aquilo que existe, não está dizendo que é bom ser assim". (533) No caso específico do repertório "cafona" aparece a mulher dos baixos estratos da sociedade brasileira que tem nos folhetins televisivos diários seu principal lazer. Como define um especialista no tema, o diretor Daniel Filho, "a telenovela é basicamente feminina. Suas histórias são, acima de tudo, histórias de mulheres; a heroína é a principal protagonista. São sempre histórias românticas, dirigidas às telespectadoras, que são seu grande público". (534) Este estereótipo do comportamento feminino foi levado às últimas conseqüências na canção Noveleira, gravação de Edson Wander que inicia com o mesmo lamento das baladas anteriores: "Vai dar oito horas / e a sua novela já vai começar / eu quero que fique / mas não adianta / não quer me escutar..." - com um refrão em forma de suplica no qual o cantor declara:

...NOVELEIRA EU TE AMO NOVELEIRA ACREDITE EM MIM NEM TONY (RAMOS) NEM CUOCO NEM MESMO O TARCÍSIO MEIRA TE AMAM TANTO ASSIM

A identificação da Rede Globo como a dona da audiência da televisão brasileira nos anos 70 não se esgota nesta citação de seus três principais atores de telenovelas. Numa outra balada em que se queixa de mais uma rejeição amorosa, Odair José se contrapõe ao então todo-poderoso diretorgeral da emissora, Walter Clark, que na época namorava algumas das mais desejadas mulheres da televisão, como Sonia Braga, Sandra Bréa e Betty Faria: AH! SE EU TIVESSE UM CADILLAC OU SE EU FOSSE O WALTER CLARK VOCÊ GOSTAVA MAIS DE MIM MAS NINGUÉM ESCOLHE SEU DESTINO DESDE O TEMPO DE MENINO

QUE EU LUTO PRA VIVER... Mas a canção síntese de protesto contra a massificação de audiência das telenovelas da Globo é uma outra composição de Odair José que diz: "Chega à noite em toda casa / é sempre a mesma novela... /...a gente já não sai por causa da televisão..." Depois de falar em fantasias, sentimentos e "nossos sofrimentos sendo usados pelo esquema", o compositor chama o público para a realidade, arriscando até um conselho educativo: "É melhor ler um bom livro / ou então sair pra rua / abraçar novos amigos / pois a vida continua..” (536) Isto que era cantado por Odair José era dito por Agnaldo Timóteo em algumas de suas entrevistas à imprensa. Numa reportagem de 1974, “Agnaldo Timóteo na solidão da fama", o cantor esbravejou contra os folhetins eletrônicos, responsabilizando-os pelo fim de muitas atrações noturnas nas praças e bairros das cidades: "O público brasileiro está definitivamente bitolado e já transformou em vício o hábito de ver novelas. Ninguém mais quer sair de casa à noite para assistir a algo diferente, pois tem que acompanhar esta praga, obedecendo aos interesses habilmente divulgados das redes de televisão". (537) Naquela época, a crítica à televisão - o "circo eletrônico" - , na definição de Nelson Pereira dos Santos era expressado de várias formas e sob vários ângulos. De uma maneira geral, os setores mais intelectualizados da sociedade questionavam as implicações ideológicas e culturais do fenômeno televisivo. No filme Bye, Bye Brasil, por exemplo, Cacá Diegues mostra através das viagens de uma caravana de artistas mambembes pelo interior do país o processo de massificação da TV e a sua interferência nas manifestações da cultura popular. E em uma de suas canções, Chico Buarque fala da escola de samba que "está aprendendo humildemente / um batuque diferente / que vem lá da televisão...". (538 ) Já no repertório "cafona" estas preocupações não aparecem; ali a critica se concentra mesmo na repercussão das telenovelas em contextos da vida doméstica dos telespectadores - como numa polêmica gravação do cantor Benedito Nunes intitulada É novela demais. Lançada em 1973, logo após o grande sucesso de Selva de Pedra, sua letra critica a interferência da TV no cotidiano dos casais, que não conseguem mais dialogar porque, "tem novela às cinco horas / às seis horas / às sete horas / oito horas / nove horas...", e se ele (o marido) precisa dormir mais cedo "não pode contar com ela / porque lá pra dez horas / vai ter mais uma novela".

Vê-se que aquele projeto dos executivos da Rede Globo de atrair a audiência do grande público através dos folhetins eletrônicos foi muito bem-sucedido, mas à custa da quase saturação do gênero fato que Benedito Nunes aponta em É novela demais. Não se pense, entretanto, que esta e outras canções "cafonas" sobre o tema foram consideradas inócuas ou passaram despercebidas na época. Numa nota de sua coluna, em abril de 1973, o crítico José Fernandes informava ao leitor que "a Rede Globo proibiu em todas as suas emissoras de rádio a execução de um disco de Benedito Nunes, em que ele larga o pau nas novelas". (539) Este é mais um exemplo de que a censura que atingiu a música popular brasileira naquele período não foi apenas aquela subordinada à Polícia Federal em Brasília. E se a canção É novela demais foi vetada nas poderosas Organizações Globo, é possível supor que outras canções "cafonas", com o mesmo conteúdo crítico, tenham sido igualmente proibidas, além de afastar ainda mais seus autores das trilhas de novelas da emissora. "Eu acho que foi um pouco de burrice nossa ficar pichando as novelas naquela época" - , diz Odair José - "porque é a tal coisa, 'já que ele fala mal de novela, não vai ter sua música tocada em novela'. Mas fazer o que, né? Eu realmente considero novela uma merda." É a opinião do cantor que, certamente, não é compartilhada pela maioria de seu público, principalmente aquele grande segmento feminino popularmente chamado de "empregada doméstica" - tema do nosso próximo capítulo.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS (SEGUINDO A NUMERAÇÃO SEQUENCIAL DO CAPÍTULO):

495. Na época, os capítulos das novelas da Globo não eram transmitidos ao mesmo tempo para toda a rede. último capítulo de Selva de Pedra, por exemplo, foi ao ar no Rio em 18 de Janeiro de 1973. Em São Paulo, uma semana depois. 496. Paulo Cesar Ferreira, op. cit., p. 192. 497. Nosso século (1960-1980), op. cit., p. 246.

498. Apud Maurício Kubrusly. "Ostra grudada na pedra Brasil~. ~ História da música popular brasileira (João Bosco - Aldir Blanc). 3a ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 8. 499. Nelson Motta. Noites tropicais, op. cit., p. 197. 500. Daniel Filho. “Antes que me esqueçam”. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1988, p. 145. 501. Nelson Motta. Noites tropicais, op. cit., p. 198. 502. "Novela igual a Waldick” - Jornal do Chacrinha) - A Noticia, 3-101972. 503. Artur da Távola. “A Telenovela brasileira: história, análise e conteúdo”. São Paulo: Globo, 1996, p. 9. 504. Elisabeth Carvalho. "Telejornalismo: a década do jornal da tranqüilidade". In Anos 70 - Televisão. Rio de Janeiro: Europa, 1980, p. 33. 505. Mana Rita Kehl. "Um só povo, uma só cabeça, uma só nação". In Anos 70 - Televisão. Rio de Janeiro: Europa, 1980, p, 12. 506. Walter Clark & Gabriel Priolli, op. cit., p. 232. 507. “Chacrinha" - O Pasquim, 13 a 19-11-1969. 508. Apud. Florinda Barbosa & Lucia Rito. Quem não se comunica se trumbica. São Paulo: Globo, 1996, p. 91.

509. Idem, p. 145. 510. "Um inovador” - Diário de Pernambuco, 2-6-1974. 511. Ver Muniz Sodré. A comunicação do grotesco. Petrópolis: V'ozes, 1972. 512. Apud Florinda Barbosa & Lucia Rito, op. cit., p, 76. 513. Idem, p. 145. 514. Idem, p. 136.

515. Ao ditar normas para a televisão o ministro afirmou que era preciso evitar "a ida de um pobre a um programa de auditório para ganhar um milhão de cruzeiros contando coisas de sua vida". Ver reportagem “As normas da boa conduta"- Veja, 17-5-1972. 516. "televisão" - Jornal do Brasil, 17-9-1971. 517. "Corsetti quer TV sadia e não divertindo o público com misérias alheias" - Jornal do Brasil, 17-9-1971. 518. "Chacrinha no Time!" Jornal do Chacrinha - A Notícia, 30-4-1973. 519. Florinda Barbosa & Lucia Rito, op. cit., p. 137. 520. "Começou a guerra do Ibope" - Veja, 20-12-1972. 521. Florinda Barbosa & Lucia Rito, op. cit., pp. 143-144. 522. “A maior cascata do mundo!" - Jornal do Chacrinha - A Noticia, 6-51971. 523. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde publicados na reportagem “Asas da liberdade" - Veja, 17-5-2000. 524 Lançada no final de 1975, Cadeira de rodas foi galgando as paradas de sucesso, alcançando o 1° lugar de vendagem em São Paulo na semana de 5 a 10 de abril de 1976. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp. 525. “Agnaldo Timóteo (de Caratinga) - O Pasquim, 21 a 27-11-1972. Observo que, apesar da força crescente da televisão, o rádio ainda era o principal veículo para a popularidade de uma música. Numa entrevista em 1974, o diretor-geral da Phonogram, André Midani, dizia que "a venda de discos até hoje, e não só no Brasil, a grande ponta de lança, quer seja no Brasil quer seja nos Estados Unidos, ainda é o rádio, definitivamente". Ver reportagem: "Entrevista com o cara que decide o que você vai ouvir" - O Pasquim, 19 a 25-2-1974. 526. Daniel Filho. “O circo eletrônico: fazendo TV no Brasil”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 334. 527. Nas trilhas das referidas novelas Djavan interpreta os temas Qual é?,

Calmaria e vendaval e Rei do mar. Para outras indicações ver índice canções citadas em Fontes e bibliografia. 528. "O cearense Ednardo, ou de como os gênios usam boné" - Jornal do Brasil, 1-6-1977. 529. Embora sem usar a expressão "trilha sonora original", a TV Tupi já havia lançado discos com músicas de suas telenovelas como, por exemplo, a trilha de Antônio Maria, em 1968, e o álbum de capa dupla com a trilha de Nino, o italianinho, em 1969. 530. O número de aparelhos receptores cresce em rápida progressão a partir dessa época: 4,9 milhões em 1970; 10,2 milhões em 1975, 19,6 milhões em 1980. (dados: Abinee) Apud Renato Ortiz, Silvia Helena Simões BorelIi & José Mario Ortiz Ramos. “Telenovela: história e produção”. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 81. 531. Verso de “Eu queria ter um filho com você”. Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 532. Versos de “Eu não sou nenhum bandido”. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 533. Apud Gilberto de Carvalho. “Chico Bivaque: análise poéticomusical”. Rio de Janeiro: Codecri, 1982, p.145. 534. Daniel Filho. “O circo eletrônico: fazendo TV no Brasil”, op. cit, p. 70. 535. Versos de “Mania de grandeza”. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 536. Versos da balada “Novelas”. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 537. “Agnaldo Timóteo na solidão da fama" - O Dia, 10-3-1974. 538. Versos de “A televisão”. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 539. "Interior, nada?" - A Noticia, 26-4-1973.

OS SONS QUE VÊM DA COZINHA

(ODAIR JOSÉ E O APARTHEID BRASILEIRO “O Seu quartinho abrindo porta para o tanque de lavagens ainda é a senzala.” (Carlos Lemos)

Um rótulo que marca a imagem desta geração de artistas românticos é o de "cantor das empregadas", termo que aparece com certa freqüência na mídia, como se os "cafonas" fossem ouvidos e admirados apenas por este segmento de público. Na verdade, o termo é restritivo porque cada um destes artistas poderia ser chamado também de cantor dos padeiros, dos pedreiros, caminhoneiros, porteiros, ferreiros, lixeiros, açougueiros, coveiros, enfim, da maioria da população brasileira, e não apenas "das empregadas". Mas este rótulo se deve ao fato de o segmento de classe média - que os rotula - ter um contato cotidiano e mais próximo com a empregada doméstica e ouvir da sala os sons que vem da cozinha, através do rádio ou na voz da própria empregada.

De qualquer forma, neste público feminino se concentra mesmo grande parte de consumidores dos discos de artistas como Odair José, Paulo Sérgio e Agnaldo Timóteo. Aliás, ao escrever um artigo na Folha de S. Paulo sobre o alcance popular destes cantores, o jornalista Ruy Castro alertava o seu leitor com a observação de que "você pode não gostar deles, mas a sua empregada gosta. E compra os seus discos com o dinheiro que você lhe paga no dia 30. E, se você mora sozinho e passa o dia fora, adivinhe onde ela toca os discos? No Marantz de 400 watts que você comprou na Breno Rossi e deu de presente aos Mahler e Bártok da sua coleção". (540) Já foi observado que as empregadas domésticas não apenas gostam de ouvir músicas; também costumam cantar - e pelo menos duas delas deixaram a cozinha e tornaram-se nomes de projeção na nossa música popular: a sambista Clementina de Jesus (no campo da MPB) e a baladista Carmen Silva, destaque desta geração de artistas "cafonas" (não confundir com Carmen Costa, cantora da era do rádio). Consagrada como a "Pérola Negra" título de um de seus discos - , Carmen Silva é neta e filha de escravos. Embora ela não cante sambas ou exaltações a divindades afrobrasileiras, na voz de Carmen Silva ouvem-se ecos do porão do primeiro navio negreiro e lamentos do terreiro da primeira senzala. Seu pai Fernando José da Silva (já octogenário quando Carmen nasceu, em 1945), tinha 22 anos de idade quando foi promulgada a Lei Áurea. (54l) Portanto, ele cresceu no cativeiro e como todos os negros de seu tempo derramou muita lágrima clara sobre a pele escura. Um dos grandes sucessos de Carmen Silva é exatamente uma canção que gravou em homenagem à memória do pai faixa de seu LP em 1976: "Meu velho pai / preste atenção no que lhe digo / meu pobre papal querido / enxugue as lágrimas do rosto...” (542) Como a trajetória da maioria dos descendentes de escravos no Brasil, a de Carmen Silva não ficou muito longe da senzala. "Eu fui uma criança que não teve infância. Eu nunca soube o que é ganhar uma boneca no Natal. A gente dormia em cama de pau e colchão de palha. Mas desde pequena eu sempre acreditei que todo ser humano tem direito a uma vida digna.” Nascida num lugarejo próximo à cidade mineira de Uberaba, aos dez anos de idade Carmen começou a trabalhar em casas de família. "Foi uma época importante, quando aprendi a cozinhar, lavar e passar, o que muito me serviu depois na cidade grande.” O primeiro impulso para a carreira musical surgiu quando ela trabalhava na casa de Cecília Palmério, mulher do escritor e acadêmico Mário Palmério. "Dona Cecília um dia me descobriu cantando para as crianças dormir e disse que eu tinha uma voz muito bonita. Aí, ela me fez aprender La Violetera e me incentivou a procurar rádios e programas de calouros."

(543) Com poucas oportunidades no interior de Minas, aos 16 anos Carmen Silva se mudou para São Paulo e ocupava seu tempo entre o fogão das patroas e o microfone das rádios. No fim dos anos 60 foi contratada pela gravadora RCA, que queria lançá-la como sambista na linha de Elza Soares. "Mas eu dizia para eles, 'só porque sou negra tenho que cantar samba?' A gente tem que cantar aquilo que o coração sente, né? E eu gostava de música romântica. Eu até admiro o samba, mas não é minha área, nunca foi. O samba nunca mexeu comigo; eu nunca pulei carnaval, nunca saí em escola de samba. Aliás, quando chega carnaval eu sempre me retiro, vou descansar.” Definitivamente, seu coração não balança ao som de um tamborim e o sucesso veio mesmo com a gravação de baladas como ”Eu posso não prestar mas te amo”, “Que Deus proteja nosso amor” e “Adeus solidão”, faixa que lhe rendeu o primeiro disco de ouro em função das mais de cem mil cópias vendidas, em 1970.(544) A partir daí o tanque e o fogão ficaram para trás, e a cantora se tornou uma referência para muitas ex-colegas de trabalho que lá permaneciam "alegres e sem canseira / trabalhando e cantando / no compasso da torneira .." (545) Sucessora das antigas mucamas - que realizavam o trabalho doméstico durante a escravidão no Brasil - , desde o fim do século XIX a empregada doméstica aluga sua força de trabalho nas casas de família de classe média, mas a categoria foi excluída dos benefícios da legislação social e trabalhista estabelecidos no governo Vargas através da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). (546) No inicio dos anos 70 as domésticas se mobilizaram em busca destes direitos e o disc-jóquei Luiz Aguiar, que tinha neste público grande parte de sua audiência, se solidarizou com a causa e apoiou suas reivindicações através do programa comandado por ele na Rádio Tupi de São Paulo. Numa certa manhã de 1973, Odair José participava do programa de Luiz Aguiar quando ouviu o locutor ler um texto que apresentava as principais reivindicações das trabalhadoras domésticas e descrevia as dificuldades e preconceitos enfrentados por cada uma delas no seu cotidiano. Odair José achou o texto interessante, principalmente a segunda parte, e perguntou ao locutor se poderia usar aquela temática nos versos de uma canção. Luiz Aguiar concordou e o resultado foi a balada “Deixa essa vergonha de lado”, canção que mostra o estigma de sub-trabalho que envolve o ofício das domésticas no Brasil e a barreira social que as impede

de namorar um rapaz de classe média: "Deixa essa vergonha de lado / pois nada disso tem valor / por você ser uma simples empregada / não vai modificar o meu amor..." Mas a letra da música vai além da mera descrição do dilema amoroso dos personagens e, na segunda estrofe, ao fazer referência ao quarto de empregada, aponta para a questão do uso do espaço numa sociedade de classes: "Eu sei que o seu quarto fica lá no fundo / e se você pudesse fugia desse mundo / e nunca mais voltava..." (547) Marca essencial das habitações das famílias de classe média do país, o diminuto cômodo reservado às empregadas domésticas, assim como a segregação destas moças em espaços de circulação apartados daqueles dos patrões - as chamadas "área de serviço" e "elevador de serviço"”, denunciam por si só o alto grau de autoritarismo da nossa sociedade. Como destaca o arquiteto Carlos Lemos, “O Brasil tornou-se o primeiro e único país a possuir edifícios com essa precaução reparadora de circulações". E até hoje este apartheid está presente na maioria das construções brasileiras, e uma comparação com edifícios de outras regiões do planeta "mostra que estamos frente a uma exclusividade nacional”. (548) Este traço peculiar da nossa arquitetura residencial contemporânea traz, segundo o autor, a influência da antiga casa-grande, porque, no subconsciente dos patrões, a empregada doméstica "ainda é a escrava de presença desagradável" e "o seu quartinho abrindo porta para o tanque de lavagens ainda é a senzala". (549) Embora sem a mesma profundidade de um tratado sociológico, a temática da canção composta por Odair José é também um reflexo de toda esta questão social, como ele próprio afirma numa entrevista à Rádio Globo: "Eu me mudei para o Rio de Janeiro por volta de 1966. E chegando aqui dormi em banco de praça, dormi debaixo de marquises, dormi na praia e depois fui morar em quartos de fundos. E ao conviver com essas dificuldades todas eu aprendi a gostar das pessoas que também dormem em quartos de fundos. Foi quando eu fiz a canção Deixa essa vergonha de lado, que conta a história da pessoa que convive com a família, mas não é da família, ou seja, a empregada doméstica, aquela secretária de casa que serve para dar banho nas crianças, serve para levar o filho à escola, serve para passar roupa, serve para fazer a comida, mas não serve para casar com os filhos da gente. E isso é uma coisa que sempre me tocou muito " (550)

Em 1973, as empregadas alcançaram um primeiro resultado da sua mobilização por direitos sociais: em março daquele ano o presidente Médici assinou decreto determinando que a partir dali o trabalho doméstico deveria passar a ser regido pela CLT. E, em conseqüência da repercussão da balada Deixa essa vergonha de lado - que foi lançada em meio a este processo - , Odair José tornou-se o principal porta-voz das domésticas no campo musical e empenhou-se, inclusive, na criação do "Dia Nacional da Empregada Doméstica", data a ser comemorada a cada primeiro sábado de Outubro. Segundo relato do Jornal da Tarde, no inicio do primeiro show comemorativo, em um cinema em São Paulo, a empregada Sebastiana Comes da Silva fez um agradecimento a Odair José em nome da classe, mas ao final houve um quase incidente; as moças avançaram sobre o cantor, que teve que ficar 30 minutos trancado no banheiro de senhoras, para não ser agarrado e beijado pelas domésticas que "protestavam contra a escravidão em que vivem". (551)

Por episódios como este e canções como aquela Odair José recebeu na época a pecha de "o terror das empregadas", termo popularizado pela cantora Rita Lee no rock “Arrombou a festa”. (552) Entretanto, é importante recordar que ele não foi o primeiro a focalizar a personagem na música popular brasileira. Já em 1953, a doméstica é utilizada como tema pelo compositor Miguel Gustavo, autor de “É sopa”, marcha carnavalesco que satiriza um daqueles propalados romances da empregada com o empregador: "Ela deu sopa / e o patrão não bobeou / coitada, coitada / depois de muito tempo / seu patrão não quis mais nada / coitada, coitada / fez tanto sacrifício / e nem ficou como

empregada." Em outra composição dos anos 50, a marcha “Fanzoca de rádio”, Miguel Gustavo novamente reforça os estereótipos das trabalhadoras domésticas ao caracterizá-las como assíduas freqüentadoras de programas de rádio. "Ela é fã da Emilinha / não sai do César de Alencar..." Na época foi até criada a expressão "macacas de auditório", numa referência à cor negra da maioria do público feminino que freqüentava aqueles programas: "É uma faixa aqui / outra faixa ali / o dia inteirinho ela não quer nada / enquanto isso, na minha casa / ninguém arranja uma empregada." E mesmo o compositor Noel Rosa, na década de 30, também as ridicularizava num trecho do “Cordiais saudações”, carta em forma de samba que denuncia o poeta da Vila como o verdadeiro "terror" das empregadas: "Beijinhos no cachorrinho / muitos abraços no passarinho / um chute na empregada / pois já acabou o meu carinho..." Nota-se pelos exemplos citados que o que a canção de Odair José nos apresenta é a possibilidade de um outro enfoque sobre a empregada doméstica na música popular. Enquanto que nas canções de Miguel Gustavo e Noel Rosa- compositores de formação classe média - transparece o preconceito e o autoritarismo com que esta classe trata a doméstica em seu cotidiano, os artistas "cafonas" vão, ao contrário, denunciar a opressão em que vive este segmento da sociedade brasileira. É o que fazem, por exemplo, os cantores Jean Marcel (Você não vai ser minha empregada); Waldik Soriano (Uma empregada vai ser mãe dos filhos meus) e Luiz Carlos Magno, intérprete de “Quarto de empregada”, composição que aprofunda a crítica social já presente na canção de Odair José e aponta a existência de uma espécie de Morte e vida Severina urbana em nossa sociedade: "Dois por dois / mede o quarto da empregada... /... o quarto da empregada não tem janelas / acham que ela não merece olhar as estrelas.. ./... o quarto da empregada não tem espaço... /... dois por dois / mede o quarto da empregada ." Diante disso não é exagero dizer que, ao denunciar a segregação de mulheres trabalhadoras vivendo em quartos de fundos, sem espaço e sem janelas, os "cafonas" revelam ser tão criticas quanto os artistas da MPB que falavam do operário que subia a "construção como se fosse máquina" e comia "feijão com arroz como se fosse o máximo".] Mas a visão crítica-social do repertório popular romântico também alcançou o cotidiano da multidão de brasileiros que sobrevivem com o mísero salário de cada mês, até porque naquela época o arrocho salarial foi um dos pilares da política econômica do governo. O cantor Jacinto José,

por exemplo, em uma de suas gravações, protesta: "O meu salário está tão resumido / do jeito que estou vou acabar despido .." (553) Da mesma forma no samba “O ferroviário”, Wando nos apresenta a dura realidade (e também a fantasia) de um trabalhador que às cinco da manhã já está de pé "...pensando na farmácia que tem pra pagar / pensando no aluguel que não pode atrasar...". Chegando na estação "engole um desaforo / é melhor não ligar / o trem está lotado / é hora de partir...” e entre um apito e outro do trem o ferroviário prossegue, mas se guardando para quando o Carnaval chegar: ...E QUANDO CHEGA FEVEREIRO VESTE A FANTASIA E NA AVENIDA VAI SAMBAR ESQUECE O TREM, TUDO QUE TEM ESTÁ FELIZ, É CARNAVAL. É quando a fantasia carnavalesca opera o que o antropólogo Roberto DaMatta definiu como "rito de inversão". Ou seja, durante os três dias de Carnaval a hierarquia e a desigualdade do universo do cotidiano brasileiro podem ser temporariamente suspensas e anônimos personagens como o ferroviário se transformam em rei, compensando sua inferioridade social e econômica com uma visível e indiscutível superioridade carnavalesca. E assim, enfatiza DaMatta, a sociedade brasileira "consegue por alguns instantes (dias, horas) determinar-se e hierarquizar-se não só pelo bairro, dinheiro, carros, educação, roupas e famílias, mas também em termos de um eixo de pessoas que pode expressar controle e domínio do corpo. Um eixo sobretudo estético, pessoal e obviamente fugaz, marginal e compensatório". (554) Com um sentido de critica social ainda mais acentuado (agora sem o recurso fugaz da fantasia carnavalesca), o mundo do trabalho é novamente focalizado no samba “O operário”, composição de Ismael Prata que narra o cotidiano de um brasileiro que levanta “às quatro horas pra pegar o irem das cinco", enfrenta oito horas de batente que parecem uma semanas e à noite ainda vai "à escola aprender a ser paciente" - crítica ao sistema educacional que, naquela época, através de disciplinas como Educação Moral e Cívica, induzia a população brasileira à passividade e ao conformismo. Depois de também denunciar o precário serviço de transporte que conduz o trabalhador de casa à fábrica, o personagem desabafa: "Operário é um escravo / com papel modificado / se pobre não for pro céu / ninguém mais é perdoado".

A letra desta música expressa o descrédito e a desilusão com a crença de que o trabalho possibilitaria aos indivíduos a ascensão social - máxima defendida pela ideologia capitalista. Se o "operaria é um escravo com papel modificado", o esforço laborioso do cotidiano só lhe permitiria adquirir o mínimo para a própria sobrevivência, restando ao trabalhador (resignado) o consolo da espera de uma vida eterna melhor no céu ou (para os mais combativos) a luta por melhores condições de vida aqui mesmo na Terra Em 1978 quando a composição de Ismael Prata foi lançada a classe operária estava de volta à cena política nacional. "Não estamos fazendo greve para entrar na história, mas para conseguir nossos direitos" , disse Lula em maio daquele ano, ao comandar a primeira grande greve de trabalhadores no período do regime militar. (555) Luis Inácio da Silva tinha 33 anos e era conhecido apenas na região do ABC paulista, onde presidia o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema. Mas, quisesse ou não, naquele ano de 1978 Lula entrou para a história, sim, reconhecido como o mais importante líder sindical surgido no país depois de 64. Nascido no agreste pernambucano, Lula chegara em São Paulo em 1952, aos sete anos de idade, acompanhado da mãe e dos irmãos, depois de uma viagem de treze dias sentados na tábua de um caminhão pau-de-arara. Aos 14 anos o garoto já trabalhava como mecânico numa fábrica de parafusos, iniciando aí seu conflito cotidiano com os patrões, até que... quando foi informado do início da paralisação na Scania. "Nem eu nem meus colegas de diretoria tínhamos participado de uma greve antes. Então a gente não sabia se pulava de alegria ou se ficava com medo", recorda. (556) Esta inexperiência de Lula era resultado de uma conjuntura totalmente adversa para os sindicalistas, porque durante o regime militar vigorava a Lei 4.330, decretada no governo do marechal Castelo Branco e que, praticamente, proibia qualquer movimento grevista no Brasil. Principalmente após o AI-5, quando Lula se tornou líder sindical, as formas de resistência operária não podiam ser muito visíveis e se traduziam em pequenas lutas no interior das fábricas por pagamento de horas extras e melhorias das condições de trabalho Um exemplo citado pelo próprio Lula - e que bem poderia fazer parte do filme Tempos modernos, de Charles Chaplin - ocorreu na fábrica da Chrysler. Ali, em meados dos anos 70, foi montado um dispositivo que acionava uma sereia ensurdecedora toda vez que a linha de montagem parava por qualquer motivo técnico. Neste momento havia um corre-corre

por toda a fábrica e o barulho só cessava quando os operários conseguiam consertar o defeito. No fim do dia muitos deles voltavam para casa com os zumbidos ainda na cabeça. "Protestamos e a sereia foi desligada definitivamente", diz Lula (557) Na greve de 1978 as reivindicações eram mais amplas: iam desde a reposição salarial até a conquista de instrumentos como o contrato coletivo de trabalho. E com a bem-sucedida paralisação dos trabalhadores da Scania, nos dias seguintes foram parando seus companheiros da Ford, Mercedes Benz, VoLkswagen, Chrysler e de outras montadoras, totalizando cerca de 50 mil metalúrgicos de braços cruzados no principal pólo industrial do país. “A Ford é a firma que está vendendo mais carros. Tem capacidade de dar um salário melhor e não dá. A turma está magoada com isso", justificou um dos operários. (558) A primeira reação do governo foi comunicar às emissoras de rádio e TV que estava proibida a divulgação de qualquer notícia sobre os movimentos grevistas. Logo em seguida, atendendo a solicitação dos empresários, o Tribunal Regional do Trabalho decretou a ilegalidade das greves, baseada na Lei 4.330. Marco do surgimento do novo sindicalismo no Brasil, a greve dos metalúrgicos do ABC serviu de referência para diversas outras categorias de trabalhadores, que tomaram consciência de seus direitos e da importância da greve como arma na negociação com os empregadores. Sob o comando de lideranças que não desvinculavam a luta sindical da luta política, o denominado "novo sindicalismo" mostrou, na prática, que a lei anti-greve e outros decretos da legislação trabalhista da ditadura estavam superados. No ano seguinte o movimento grevista se ampliou, atingindo centenas de milhares de trabalhadores metalúrgicos, inicialmente no ABC e depois em outras regiões do país - todos protestando contra o arrocho salarial. Desta vez o governo jogou duro e decretou a intervenção nos sindicatos mais combativos, destituindo seus principais dirigentes entre eles Lula. Com os sindicatos cercados por forte aparato policial, Lula e seus companheiros se abrigaram no interior da igreja matriz de São Bernardo, palco de novas lutas sociais. "Quando olho para estes santos, penso que talvez sejam os únicos do mundo que aspiraram gás lacrimogêneo", disse frei Betto ao retornar àquele templo. (559) Os grevistas do ABC também contaram com o apoio de vários artistas da música brasileira, entre os quais Elis Regina, Chico Buarque, Milton

Nascimento e também o ex-torneiro mecânico Agnaldo Timóteo, que foi pessoalmente a São Bernardo solidarizar-se com seus ex-companheiros de profissão. "Eu fui lá e dei minha solidariedade aos metalúrgicos, porque sei como é a vida deles, as dificuldades que passam", afirma (560) Na época, centenas de operários foram demitidos e por todo o Brasil tropas da polícia e do exército reprimiram os grevistas, resultando em vários deles presos, feridos e até mortos. Na greve dos metalúrgicos em Belo Horizonte, por exemplo, um sindicalista relatou que "a polícia jogava os cavalos em cima dos operários e os agredia com espadas. Um companheiro teve os três dedos cortados e levou um tiro no pé. Um outro levou uma mordida de cavalo na cabeça. Tudo isso culminou na morte do companheiro Guido Leão dos Santos, que, quando fugia da cavalaria, caiu debaixo de um ônibus". (561) Ao comentar a repressão policial que resultou na morte do grevista mineiro, um dos militantes do movimento operário de São Paulo, o metalúrgico Santo Dias da Silva afirmou que ele próprio também poderia vir a ser uma das vítimas porque "o homem morre aí na luta do dia-a-dia, como morreu esse operário em Belo Horizonte, naquela batalha lá reivindicando salário". (562) De fato, meses depois foi a vez de Santo Dias da Silva ser assassinado pela Polícia Militar de São Paulo quando participava com outros companheiros de um piquete na porta da fábrica Sylvana, no bairro de Santo Amaro. O episódio ganhou grande repercussão e provocou uma passeata de protesto de dez mil pessoas pelas ruas da capital paulista. "Quase nada estará certo entre nós enquanto houver dois pesos e duas medidas: uma para o patrão, outra para o empregado", advertia o cardeal dom Paulo Evaristo Arns. (563) Enterrado como um herói da classe operária, Santo Dias mereceu missa na Catedral da Sé e faixas com as frases "O governo mata de fome, a polícia mata a bala" e "Companheiro, você será vingado" Num rápido discurso na escadaria da Igreja, Lula lamentou que o metalúrgico morto "depois de trabalhar 18 anos não pôde deixar nada para sua família, nem mesmo uma pequena casa onde eles pudessem morar". (564) Sem demonstrar desânimo, a viúva Ana Maria do Carmo e Silva afirmava ao lado dos filhos que "a gente tem que lutar até a morte. Santo derramou seu sangue, mas não há vitória sem sangue, e muitos e muitos mais vão morrer. Quero também que ninguém esmoreça, porque a luta continua. Eu continuarei lutando até o fim!" (565) O mito da democracia racial, consagrado no Brasil a partir da década de 30 com a publicação de Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, (566)

encontra forte respaldo entre os ideólogos do regime político implantado no país em 1964. E particularmente durante o AI-5, o governo militar, através de suas agências de propaganda política - inicialmente com a Aerp e depois com a ARP (567) - produziu diversas peças publicitárias enfatizando este mito do congraçamento racial e da solidariedade entre as raças conformadoras do país. (568) Naquele mesmo período, entretanto, algumas gravações "cafonas" vão sinalizar exatamente o contrário. Ou seja, apontam a existência do preconceito e da exclusão na sociedade brasileira. E, acredito, sem que os seus autores tivessem a intenção de formular um contra-discurso à ideologia oficial. Mas isso aparece, por exemplo, nas baladas “Mano africano” (Luiz Prestes), “Eu queria ser negro” (Marcus Pitter), “Estou amando uma garota de cor” (Claudio Fontana) e “Não importa a sua cor”, gravação de Balthazar que enfatiza o grau de dificuldade de um rapaz branco em assumir a relação amorosa com uma moça negra em um país que se acredita pautado pela democracia racial: "Não ligue se algures amigos comentarem / se alguns poucos se afastarem / não quero ver você mais tão tristonha / fugindo do amor e com vergonha / de passear comigo abraçada..." A cantora Janaína enfatiza a mesma problemática agora do ponto de vista feminino - numa canção que denuncia o velho estereótipo escravocrata segundo o qual mulher branca é para casar e mulher negra, apenas um objeto de prazer: "O meu pêlo queimado lhe incomoda / não é artigo de moda / que você usa para se mostrar...” Mas foi a música intitulada “Se Jesus fosse um homem de cor” , composição de Claudio Fontana, aquela que mais incomodou e provocou a mobilização dos aparelhos censórios. Ao contrário de sua outra popular composição, “O homem de Nazareth” , na qual Claudio Fontana apenas exalta a figura de Cristo, em “Se Jesus fosse um homem de cor” ele relaciona a temática religiosa com a questão racial e com isso denuncia a extensão do preconceito em nossa sociedade. Com um refrão em forma de pergunta, a canção convidava corações e mentes à reflexão no início dos anos 70: ...TALVEZ NINGUÉM TENHA PASSADO O QUE PASSEI E OS MEUS PROBLEMAS SÃO DE COR EU QUIS PINTAR MEU CÉU DE AZUL, DE AMOR E PAZ E O MUNDO INTEIRO NÃO DEIXOU A MINHA FÉ NÃO MODIFICA NEM SE ABALA

MAS EU NÃO POSSO ME CALAR MINHA PERGUNTA NECESSITA UMA RESPOSTA SERÁ QUE ALGUÉM ME PODE DAR? VOCÊ TERIA POR ELE ESSE MESMO AMOR SE JESUS FOSSE UM HOMEM DE COR? Esta "pergunta que não pode calar" foi formulada pelo compositor Claudio Fontana em 1973, durante uma visita a Angola, país que naquele ano era ainda colônia portuguesa. Na época o cantor Nelson Ned fazia muito sucesso no continente africano, principalmente em Angola e Moçambique, e em suas excursões a esses países, o seu empresário Genival Melo levava também outros artistas que ele tinha sob contrato, caso do cantor Claudio Fontana. Foi exatamente numa dessas viagens à África que lhe veio a idéia de relacionar a questão racial à temática religiosa. "Quando eu cheguei na portaria de um hotel em Luanda, testemunhei uma cena que me marcou muito: vi um cidadão branco, português, agredir de uma forma terrível um negro que estava ali carregando as malas dos hóspedes. E aquilo me chocou muito na hora. Aí eu fui para o quarto do hotel e fiquei pensando: 'Meu Deus! Se o Cristo que eu amo, e que toda a humanidade ama, não fosse branco e de olhos azuis, como nos é pintado e mostrado, será que as pessoas o amariam da mesma forma? Será que esse cidadão que eu vi agora bater nesse negro, teria por Cristo algum amor se Ele fosse um homem de cor?' Enfim, a coisa foi se avolumando e eu saí de Luanda com esse tema na cabeça. Mais tarde, ao retornar ao Brasil, num daqueles momentos com vontade de compor, peguei o violão e fiz Se Jesus fosse um homem de cor." É evidente que, embora a idéia para esta composição lhe tenha surgido após testemunhar este episódio na África, o compositor Claudio Fontana - que se projetou como "o perigo moreno da juventude" - já vislumbrava a questão racial no cotidiano da sociedade brasileira, tema que ele havia abordado na balada “Estou amando uma garota de cor”. Ou seja, quando ele agora diz "talvez ninguém tenha passado o que eu passei / e os meus problemas são de cor", não está se referindo apenas ao episódio que envolveu um negro africano e um colonizador português em Luanda. Lançada em 1973, numa gravação do cantor Tony Tornado, e depois pelo próprio Claudio Fontana, a composição incomodou as autoridades eclesiásticas e militares da época, ainda mais porque, durante as apresentações da música em programas de TV, no momento do refrão

"você teria por ele esse mesmo amor / se Jesus fosse um homem de cor?" , Tony Tornado erguia o pulso, repetindo o gesto dos militantes do movimento Black-power nos Estados Unidos. Resultado: o cantor e o compositor foram intimados a depor na Polícia Federal. Claudio Fontana recorda: "Eles chamaram a gente lá na Federal e pediram para eu explicar o que eu queria dizer com aquilo; se eu e o Tony Tornado estávamos querendo fazer algum movimento de protesto no Brasil e tal. 'Vocês querem jogar os negros contra os brancos?' Evidentemente, respondemos que não, senão seríamos presos ali mesmo." Apesar deste clima repressivo e inquisitório, alguns outros artistas populares também resistiam. Em pleno 1970, ano de euforia coletiva com o tri-campeonato mundial de futebol, de otimismo com o "Milagre Econômico" e de veiculação de várias mensagens ufanistas, o cantor Agnaldo Timóteo - que estava no auge do sucesso - tornou-se porta-voz de uma canção intitulada “Vergonha de mim”, composição de Sílvio César que aborda o problema dos meninos de rua, questão social que até aquele momento ainda não havia sensibilizado a mídia nem a maioria da população. Na primeira parte da letra da música feita especialmente para Agnaldo Timóteo gravar - , o cantor recorda a sua infância de menino pobre do interior: QUANDO EU ERA CRIANÇA EU TINHA VERGONHA DE NÃO TER NADA DE SER TÃO POBRE EU TINHA, SIM, VERGONHA DE MIM... Na segunda estrofe aparece o cantor sorrindo e orgulhoso por ter finalmente vencido na vida e ser o dito cidadão respeitável: ...MAS EU CRESCI E VENCI E HOJE ESTOU AQUI E SOU O QUE SOU EU TENHO ORGULHO ENFIM EU TENHO ORGULHO, SIM EU TENHO ORGULHO DE MIM... Na terceira estrofe dá-se uma reviravolta no tema e o artista confessa agora sentir-se incomodado por ter conseguido tudo o que quis em um país cujo quadro social exibe crianças morando nas ruas: ...MAS OUTRO DIA EU VI UM MENINO TÃO POBREZINHO E TÃO SOZINHO

QUE EU TIVE VERGONHA DE TER TANTA COISA E DE SER FELIZ TANTO ASSIM E TIVE RAIVA DE MIM, DE NÃO LUTAR DE NÃO PODER FAZER O MUNDO MUDAR... E, no refrão, a ênfase no sentimento de culpa ao descobrir-se uma pessoa individualista, limitada, alienada, distante dos problemas sociais: ...EU SÓ SEI CANTAR, EU SÓ SEI CANTAR MAIS NADA SEI, MAIS NADA SOU ENFIM EU TIVE VERGONHA DE MIM EU TIVE, SIM, VERGONHA DE MIM. De certa forma, já está presente nesta canção gravada por Agnaldo Timóteo em 1970 o sentido crítico daquilo que Raul Seixas mais tarde chamaria de “ouro de tolo”, o deslumbramento com o dinheiro e o sucesso em um país marcado pelo abismo que separa os poucos ricos dos muitos pobres. Este mesmo olhar atento às contradições do nosso "belo" quadro social aparecia na obra do compositor Isaías Souza, parceiro do cantor Evaldo Braga em sucessos como “Tudo fizeram para me derrotar”, e autor da também citada “Não importa sua cor”. A sua composição “Garoto de rua” - talvez uma referência à trajetória do próprio Evaldo Braga - fala mais uma vez daqueles que viviam (e vivem) suas infâncias no espaço público das grandes cidades brasileiras. "Um garoto de rua me pediu um trocado / para comprar um pão / lamentou sua fome / e não me disse seu nome...” Lançada em março de 1976, a canção tornou-se um dos destaques do LP do cantor Balthazar, que em tom dramático, pergunta: "E de quem será filho o garoto que estende a mão? / provocando tumultos / endereços ocultos / precisando de educação..." No início dos anos 90, quando o drama dos meninos de rua finalmente sensibilizou a classe média e alcançou os meios de comunicação do país, a revista Veja publicou a reportagem de capa "Os filhos da miséria e do crime", informando ao leitor que "os primeiros sinais de que havia algo de errado na infância brasileira foram captados há 13 anos (1978), através da arte. Chico Buarque de Hollanda cantava os versos seus e de Francis Hime em “Pivete” : “No sinal fechado / ele vende chicletes / capricha na flanela / e se chama Pelé...” (570) Ao dar o pioneirismo na abordagem do tema à gravação de Chico Buarque, a matéria da revista Veja demonstra de que maneira está cristalizada uma memória da música popular que credita a abordagem da temática social naquele período apenas aos artistas da MPB Entretanto como aqui

procuramos revelar, diversos cantores/compositores "cafonas" estavam também atentos à realidade social brasileira e, em alguns temas, se antecedendo aos seus colegas de formação universitária, até mesmo porque a percepção desta realidade para eles era mais imediata A denúncia do autoritarismo - e entendendo autoritarismo não apenas como uma forma de governo, mas como uma prática que perpassa toda a nossa relação social não foi privilégio naquela época apenas de nomes como Chico Buarque, João Bosco ou Gonzaguinha; pontuou também o trabalho de cantores populares como Paulo Sérgio, Waldik Soriano, Odair José, Fernando Mendes, Dom & Ravel e outros menos conhecidos do público de classe média. Não se quer dizer que haja nos discos desses artistas refutação ou combate aberto à ordem social, mas sim mensagens dotadas de uma lógica que se transforma em atos de resistência, considerando-se as dificuldades de recusar ou mesmo questionar o projeto político-social conduzido pelos militares no período do AI-5. Nunca é demais lembrar que aquele foi um tempo de ênfase no patriotismo e de acentuada crença no mito da união de todas as classes em prol de um objetivo comum. Entretanto, ao descrever a dura realidade dos pobres, dos negros, dos meninos de rua, das empregadas domésticas, dos imigrantes nordestinos, dos camponeses sem terra, dos analfabetos, dos homossexuais e das prostitutas, os artistas "cafonas" revelavam de uma maneira simples e clara - e para um grande público - aquilo que os ideólogos do regime procuravam dissimular ou esconder; ou seja, as desgraças do cotidiano e o caráter conflitivo, autoritário e excludente da sociedade brasileira.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS (SEGUINDO A NUMERAÇÃO SEQUENCIAL DO CAPÍTULO):

540. "Os cafonas também são geniais" - Folha de S. Paulo, 12-11-1983. 541. Decreto promulgado em 13 de maio de 1888. A chamada Lei do Ventre Livre, promulgada em 1871, na prática, em nada favoreceu o negro porque em seu Artigo 1º dizia que os filhos menores da mulher escrava "ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção, ou de receber do estado a indenização de 60$000, ou de utilizar-se dos

serviços do menor até a idade de 21 anos completos". Apud Francisco de Assis Silva. História do Brasil: Colônia, Império, República. São Paulo: Moderna, 1992, p. 182. 542. Versos de “Meu velho pai”. Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 543. "O sucesso transformou a simples empregadinha em cantora famosa: Carmen Silva" - O Fluminense, 23-6-1976. 544. O compacto simples com “Adeus solidão” aparece em 1° lugar em vendagem no mês de maio de 1970, no Rio. Fonte: Ibope - Pesquisa sobre vendas de discos - Acervo do Arquivo Edgar Leuenroth / Unicamp. 545. Versos da canção “Empregada doméstica”. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 546. Aprovada pelo Decreto-lei n° 5.452, de 1° de maio de 1943, a CLT reunia todas as resoluções tomadas pelo governo de Getúlio Vargas na área trabalhista: salário mínimo, carteira profissional, limitação da jornada de trabalho, férias, normas de segurança e regulamentação da Justiça do Trabalho. 547. No rótulo do disco aparece o nome de Andreia Teixeira - pseudônimo utilizado pelo locutor Luiz Aguiar, a quem Odair José ofereceu a parceria na composição. Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 548. Carlos Lemos. História da casa brasileira. São Paulo: Contexto, 1989, p. 79 549. Carlos Lemos. Cozinhas, etc. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 160. O autor também destaca que, oficialmente, o quarto de empregada sempre inexistiu nos projetos de apartamentos, porque isto exigiria área compatível com os mínimos legais. Nos processos de aprovação de plantas, o pequeno cômodo reservado às domésticas aparece sob o eufemismo de "despensa, depósito ou rouparia". Op. cit. p. 161. 550. Programa A vida, o talento e a arte - Rádio Globo, 25-7-1998. 551. "O cantor do Dia da Empregada foi abandonado pelas domésticas” Jornal da Tarde, 8-11-1973.

552. "O Odair José é o terror das empregadas / distribuindo beijos / arranjando namoradas..." Para outras indicações ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 553. Versos de Lá lá lá em três atos. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 554. Roberto DaMatta. “Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro”. 6° ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p 176. 555. 'Á primeira grande greve" - Veja, 24-5-1978 556. Apud Nosso século (1960-1980), op. cit, p. 285. 557. “A vida nas fábricas" - Veja, 27-9-1978. 558. "Greve, greve, greves - Movimento, 22-5-1978. 559. "Sarau político com a fina flor da MPB^N”O Globo, 2-5-2002. 560. "Timóteo não tem medo de Sinatra" - Folha de S. Paulo, 5-1-1980. 561. "Lições da Greve - ”suplemento da revista Tribuna Operária, Outubro de 1980. 562. Depoimento incluído no LP "Santo Dias" - Associação Instrutora da Juventude Feminina / Instituto Sedes Sapientiae E 1982. 563. Apud Nosso século (1960-1980), op. cit, p. 286. 564. "Companheiro, você está presente" – Movimento, 5 a 11-11-1979. 565. Depoimento incluído no LP "Santo Dias" - Associação Instrutora da Juventude Feminina / Instituto Sedes Sapientiae 17 1982. 566. Registre-se que em nenhum momento de seu livro Gilberto Freyre utiliza a expressão "democracia racial", mas o enfoque que ele dá ao tema das relações raciais no Brasil permitiu a propagação deste mito. Ver Gilberto Freyre Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal”. 31ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. 567. Aerp (Assessoria Especial de Relacões Públicas), oficializada no

governo Costa e Silva em Janeiro de 1968; ARP (Assessoria de Relações Públicas), oficializada no governo Geisel em Janeiro de 1976. 568. Ver Carlos Fico, op. cit., especialmente o capítulo “A propaganda da ditaduras. 569. Verso de Pára com isso. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. 570. "Os filhos da miséria e do crime" - Veja, 29-5-1991.

TRADIÇÃO E MODERNIDADE (VERTENTES INTERPRETATIVAS DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA)

“É assim, de repente eles descobrem que o cara é gênio. Como descobriram que o Luiz Gonzaga e o Lupicínio eram gênios. Tudo é uma questão de tempo.”

(Luiz Ayrão)

A música de Waldik Soriano ou de Nelson Ned não costuma ser objeto de análise ou debate, a não ser excepcionalmente, em conversa de botequim. Em determinados lugares, se alguém a evoca, não vem o reforço, o apoio dos outros. A tendência é ainda considerá-la sob a conotação anedótica, como se a produção musical desta geração de cantores/compositores não tivesse nada a ver com a nossa realidade social. Por que o público de classe média universitário associa o período do AI-5 apenas à obra de artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso ou Gonzaguinha? E por que este público geralmente só conhece e canta as canções do repertório da MPB? Em estudo clássico sobre a memória, o francês Maurice Halbwachs destaca a relação direta existente entre as recordações de cada pessoa e as experiências vividas no grupo social, desenvolvendo um conceito de memória que, para além do fenômeno individual e psicológico, a privilegia como um fenômeno coletivo e social. "Nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, na realidade, nunca estamos sós." (571)

Isto significa que as recordações de cada indivíduo dependem de seu relacionamento com a classe social, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a este indivíduo. É o universo no qual nós estamos inseridos que determina o desempenho da nossa memória e fornece as categorias com as quais cada um de nós elabora o seu pensamento. E é esta comunhão de valores que compartilhamos com os membros do grupo social e o entendimento comum dos símbolos e dos significados que definem o caráter social das memórias individuais. Portanto, se evocamos determinadas canções - e esquecemos outras - , é porque o nosso grupo social, a situação presente, nos fazem recordar ou esquecer. Mas, como também destaca Halbwachs, em uma mesma sociedade coexiste

uma pluralidade de memórias coletivas, construídas por diferentes grupos sociais e instituições, com diferentes formas de representar o passado. E este reconhecimento do caráter potencialmente problemático da memória tem levado outros autores da área de ciências sociais a ressaltar a importância de memórias "subterrâneas" (emergentes/instituintes), que, como parte integrante das culturas dominadas, se opõem ao caráter opressor e uniformizados da memória coletiva nacional (oficial/instituída)). (572) Le Goff destaca que a memória coletiva não é somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder, configurando-se um dos mais sólidos alicerces da dominação Da mesma forma que os fatos são conservados e comemorados, diz o autor, "os esquecimentos e os silêncios da História são reveladores deste mecanismo de manipulação da memória coletiva". (573) Assim, o ato de esquecer não está relacionado apenas ao aspecto voluntário, estratégico e harmônico; pode ser também fruto de conflitos e divergências, de manipulação exercida por grupos dominantes sobre dominados, ou de vencedores frente a vencidos.

Esta reflexão acerca da pluralidade de memórias e os conflitos e tensões que as permeiam nos remete ao conceito referido por Michel Pollak de "enquadramento da memória". (574) O autor afirma que a luta pela construção de uma versão única e homogênea do passado levaria os setores dominantes de um grupo social a promover este trabalho de "enquadramento de memória", que é realizado parcialmente por historiadores, sociólogos, jornalistas. E é este trabalho de "enquadramento" de uma memória coletiva em um nível mais global o que permite que a história de uma determinada sociedade passe a ser freqüentemente oficializada e contada a partir da perspectiva dos vencedores e líderes, deixando a memória das minorias ou vencidos relegada ao esquecimento. Como também observa Olga Brites da Silva, "a possibilidade de construção de uma versão unívoca do passado repousa no poder de decidir sobre o que será ou não preservado enquanto registro à disposição da posteridade". (575) No campo específico da música popular brasileira - tema deste livro - a memória é também um objeto de disputa e da mesma forma apresenta os seus "enquadradores" (críticos, pesquisadores, historiadores, musicólogos). Trata-se então de analisar agora que grupos sociais eles representam e de que critérios se valem para determinar quais as canções ou compositores que devem ser esquecidos ou preservados na memória nacional.

No Brasil, após a eclosão da bossa nova, no fim dos anos 50 - quando efetivamente a canção popular começou a ser objeto de debate e análise por parte das elites culturais - , desenvolveram-se duas principais vertentes interpretativas da nossa música: a vertente da "tradição” e a vertente da "modernidade". Dualismo que não surgiu nesta época e nem se restringe ao tema da produção musical. Desde pelo menos 1922, a tensão entre “tradicional" e "moderno" ocupa o centro do debate político-cultural no pais, refletindo o dilema de uma elite em busca de sua identidade nacional. (576) No caso específico da música popular a primeira vertente, a da "tradição", tem na obra do critico e historiador José Ramos Tinhorão a sua principal fonte. Publicado em 1966, seu livro Música popular: um tema em debate é um marco na bibliografia da canção brasileira. Foi o primeiro trabalho de pesquisa e análise sociológico sobre transformação, ascensão e decadência de alguns dos principais gêneros de nossa música urbana. Incorporando o ideário nacionalista estabelecido por Mário de Andrade na década de 20, (577) o livro de Tinhorão, que reúne estudos e alguns artigos publicados anteriormente em jornais e revistas, era direcionado ao público de classe média universitário que naquele momento ouvia, produzia e debatia a música popular. E este debate estava presente nas canções ( Influência do jazz, de Carlos Lyra); nos palcos (show 1º Tempo: 5 x 0, de Miéle e Bôscoli); (578) na imprensa (Revista Civilização Brasileira); e nas ruas (passeata em São Paulo contra a guitarra elétrica).

Em meio a este clima radical e participante e em que diversos intérpretes e compositores assimilavam informações e influências da música norteamericana, Tinhorão fazia a defesa intransigente de uma música popular brasileira "autêntica", "pura", "tradicional" e "legítima", contra a "linguagem universal" pretendida pelos adeptos da bossa nova, que, segundo ele, nada mais era do que uma "pasta sonora, mole e informe". (579) Para o autor não poderia haver o desenvolvimento de uma música popular"autêntica" através da aquisição de elementos "universais" via compositores da classe média. O que haveria, neste caso, seria a "descaracterização" e "alienação" da cultura popular. Produzido num período em que o determinismo econômico imperava na maioria das análises marxistas, o livro de Tinhorão traz uma interpretação da cultura fundada numa certa leitura do materialismo histórico, com que

estabelece relações de determinação entre os níveis econômico e cultural da sociedade Assim, diz ele, dentro do mesmo espírito que levara o presidente Juscelino Kubitschek a saudar com um discurso de afirmação nacionalista o lançamento dos primeiros modelos de automóveis JK no Brasil, "os rapazes dos apartamentos de Copacabana, cansados da importação pura e simples da música norte-americana, resolveram também montar um novo tipo de samba, à base dos procedimentos da música clássica e do jazz", surgindo a partir daí a bossa nova. (580) E já na apresentação do livro Tinhorão justifica a sua preferência pelo samba tradicional "com o fato de no presente instante do desenvolvimento brasileiro, a cultura das camadas mais baixas representar valores permanentes e históricos (o latifúndio não foi ainda abolido), enquanto a cultura da classe média reflete valores transitórios e alienados (o desenvolvimento industrial ainda se submete às implicações do capital estrangeiro)." Assim, conclui ele, "enquanto o que se chama de evolução no campo da cultura não representar uma alteração da estrutura sócio-econômica das camadas populares, o autor continuará a considerar autênticas as formas mais atrasadas (os sambas quadrados de Nelson Cavaquinho, por exemplo) e não autênticas as formas mais adiantadas (as requintadas harmonizações do samba de bossa nova)." (581) Como simbolos de "tradição" e "autenticidade" em nossa música, além de Nelson Cavaquinho, ficaram cristalizados nomes como os de Ismael Silva, Noel Rosa, Wilson Batista, Cartola, Carlos Cachaça, Zé Kéti, Nelson Sargento, Clementina de Jesus e compositores que, mesmo sendo de uma outra geração, estão identificados a esta linhagem - Paulinho da Viola, Elton Medeiros, João Nogueira, Martinho da Vila e outros. Flexibilizandose um pouco o conceito gramscimiano, eu subdefiniria esta vertente interpretativa de “nacional-popular". A segunda vertente, a da "modernidade", foi sistematizada num trabalho do poeta e ensaísta Augusto de Campos. Publicado em março de 1968, seu livro Balanço da bossa (que também inclui textos de Brasil Rocha Brito, Júlio Medaglia e Gilberto Mendes) é outro marco na bibliografia da canção brasileira e uma contundente resposta às posições dos adeptos da vertente da "tradição". E já no texto introdutório Augusto de Campos revela estar consciente de que Balanço da bossa "é um livro parcial, de partido, polêmico. Contra. Definitivamente contra a Tradicional Família Musical.

Contra o nacionalismo-nacionalóide em música. O nacionalismo em escala regional ou hemisférica, sempre alienante. Por uma música nacional universal." (582) Reunindo estudos e artigos publicados anteriormente em alguns suplementos literários de jornais de São Paulo, o livro apresenta o que seria a primeira análise técnica sobre a bossa nova (escrita pelo musicólogo Brasil Rocha Brito) e o primeiro aval teórico para a obra de Caetano Veloso e Gilberto Gil (escrito pelo próprio Augusto de Campos) e isto quando os dois compositores eram ainda pouco conhecidos e o tropicalismo ainda não havia se definido como um movimento. (583) Disposto a combater o que ele ironicamente tachou de "TFM" (Tradicional Família Musical), Augusto de Campos propunha a atualização da música popular brasileira, no sentido da abertura experimental em busca de novos sons e novas letras. Ou seja, uma música popular "moderna", aberta às influencias das principais conquistas da música internacional (notadamente do jazz e do rock inglês) e às conquistas da poesia concreta que o próprio Augusto e o seu irmão Haroldo de Campos ajudaram a consolidar a partir de 1956. E para quem recorria à máxima de Mário de Andrade, segundo a qual "o artista que procura se expressar na arte universal corre o risco de, de repente, se surpreender fazendo arte de outra nacionalidade que não a sua", Augusto de Campos respondia: "E daí? Desde quando a arte tem carteira de identidade? Qual a nacionalidade de Stravinski: russo, francês, americano ou simplesmente humano?" (584) O curioso é que nesta sua batalha a favor do "som universal”, o poeta concretista também recorria a Marx e Engels, citando uma passagem do Manifesto do Partido Comunista na qual os pensadores alemães anteviam que "em lugar do antigo isolamento de regiões e nações que se bastavam a si próprias, desenvolve-se um intercâmbio universal, uma universal interdependência das nações. E isto tanto na produção material quanto na intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comum de todas A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais, nasce uma literatura universal". (585) Em coerência com a ideologia nacional-desenvolvimentista, que ainda envolvia diversos intelectuais brasileiros naquele período, em Balanço da bossa Augusto de Campos defendia uma música popular adequada à realidade de um país que – acreditava-se - estaria ultrapassando o subdesenvolvimento para ingressar numa nova era de país desenvolvido.

Assim, não são poucas as vezes em que ao longo do livro aparecem palavras como "avanço", "evolução", “revolução", “renovação", “vanguarda", em oposição a "atraso", "tradicional", "conservadores", "sectários", "saudosistas", "puritanos" e "xenófobos”. E respondendo quase que diretamente a José Ramos Tinhorão, Augusto de Campos proclamava que "é preciso acabar com essa mentalidade derrotista, segundo a qual um país subdesenvolvido só pode produzir arte subdesenvolvida. A produção artística brasileira (...) já adquiriu maturidade, a partir de 1922, e universalidade desde 1956. Não tem que temer coisa alguma. Pode e deve caminhar livremente. E para tanto não se lhe há de negar nenhum dos recursos da tecnologia moderna dos países mais desenvolvidos: instrumentos elétricos, montagens, arranjos, novas sonoridades". (586) Como símbolos de "modernidade" e "evolução" em nossa música popular ficaram cristalizados nomes como os de Dick Farney, Lúcio Alves, Johnny Alf, Tom Jobim, João Gilberto, e a geração que surgiu da influencia direta da bossa nova - Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Elis Regina, Gal Costa e outros. Para contrapor à primeira vertente, eu sub-definiria esta segunda de "universal-popular". É importante frisar que, passado o momento de radicalismo inicial, estas duas vertentes interpretativas necessariamente não se opõem entre si; na maioria das vezes se complementam. Talvez com as exceções de José Ramos Tinhorão, que permanece contrário a tudo que pareça bossa nova, e do jornalista e escritor Ruy Castro, autor do livro Chega de saudade, que parece contrário a tudo o que não seja bossa nova, (587) todos os demais críticos, pesquisadores e ensaístas da nossa música popular (incluindo Augusto de Campos) vão exaltar tanto os cantores/compositores identificados com a "tradição como os identificados com a "modernidade". Afinal, a chamada "linha evolutiva da música popular brasileira" expressão criada por Caetano Veloso em 1966 (588) e adotada por Augusto de Campos e por alguns críticos de música popular até os dias de hoje acaba dando organicidade ao processo, pois apresenta os compositores "modernos" como aqueles que deram um "passo à frente", mas continuam herdeiros naturais de uma "tradição" da nossa música popular, que remonta aos sambas de Ismael Silva, Noel Rosa, Wilson Batista e outros bambas. E será ancorado nestas duas vertentes interpretativas - a da "tradição" e a da "modernidade" - que, a partir de meados dos anos 60, o público de classe média e formação universitária passará a eleger os cantores/ compositores

de sua preferência. Uma parte deste público, mais identificado com a linha “nacional-popular", preferirá ouvir Paulinho da Viola, Zé Kéti, Cartola, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus, e menos Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa; uma outra parte, mais identificada com o que eu defini de "universalpopular", preferirá ouvir Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Milton Nascimento, e menos Zé Kéti, Cartola, Nelson Cavaquinho e Clementina de Jesus. Mas são exatamente todos estes artistas - os da "tradição" e os da "modernidade"”- que hoje formam aquilo que o público de classe média qualifica de MPB. A análise específica da preferência musical do público de classe média e formação universitária é fundamental porque é deste segmento da população que saem os críticos, pesquisadores, historiadores, musicólogos, enfim, os "enquadradores" da memória da nossa música popular. E isto ajuda a explicar por que a quase totalidade do que existe publicado sobre música popular brasileira biografias, ensaios, estudos acadêmicos e coleções em fascículos se refere a gêneros e compositores identificados ou com a "tradição" ou com a "modernidade". Assim, temos biografias de sambistas como Sinhô, Wilson Batista, Geraldo Pereira, Paulo da Portela; análises sobre a produção musical de Ismael Silva, Noel Rosa, Dorival Caymmi; estudos e ensaios sobre a obra de Caetano Veloso, Gilberto Gil, João Gilberto, Johnny Alf; e teses e livros sobre o tropicalismo, a bossa nova e, principalmente, o samba: samba-enredo, samba malandro, samba de breque, samba de roda, samba-canção, samba-exaltação, origem do samba, mistério do samba, decadência do samba etc. etc (589) Enquanto isso, toda uma outra vasta produção musical popular que não está identificada nem à "tradição" nem à "modernidade" encontra serias dificuldades para obter reconhecimento da crítica ou espaço na historiografia. (590) E é o que acontece com esta geração de cantores/compositores considerados "cafonas". Afinal, nomes como Waldik Soriano, Nelson Ned ou Agnaldo Timóteo estão muito longe de qualquer coisa do que se considera de "raiz" e "tradição" ou "modernidade" e "evolução". Ao contrário, são geralmente associados a "atraso", "subdesenvolvimento" e "pobreza". Na visão positivista de "linha evolutiva da música popular", estes artistas estariam muitos rolos atrás daqueles identificados à "modernidade".

E mesmo aqueles compositores que seguem a linha do samba, como Benito di Paula e Luiz Ayrão, têm a sua produção musical tachada de "sambãojóia", expressão surgida em 1970 para designar um samba considerado descaracterizado, aboletado, distante das chamadas autênticas fontes populares. Portanto, fora da "tradição" ou da "modernidade", não há salvação. Compreende-se assim porque esta geração de cantores/compositores tem sido relegada na maioria das "memórias enquadradas" da nossa música popular e não tenha tido - até agora nenhuma voz na historiografia. (591) E isto se evidencia mais uma vez nas mais recentes publicações sobre a música popular. O livro MPB: A história de um século, do pesquisador Ricardo Cravo Albin, apresenta diversos personagens da história da música popular brasileira, tudo ilustrado através de 400 fotos distribuídas década a década: dos pioneiros do fim do século XIX - Xisto Bahia, Nozinho e Patápio Silva - até a miscelânea do fim do século XX - Daniela Mercury, Skank, Gabriel o Pensador - , passando pelos cantores do rádio (década de 40), pela bossa nova (década de 50), pela jovem guarda e o tropicalismo (década de 60). Porém, ao focalizar os anos 70, o autor destaca apenas os cantores/compositores identificados à MPB: Ivan Lins, João Bosco, Gonzaguinha, Djavan, Luiz Melodia, Ednardo, César Costa Filho, Fausto Nilo e outros. É evidente que um trabalho que procura abranger um século de música popular dificilmente seria completo e o autor adverte sobre isso ao falar dos "riscos das súmulas, ou mesmo das abreviações de uma longa história". (592) Entretanto, o que se quer destacar aqui é que a exclusão da geração de cantores/compositores "cafonas" é recorrente na produção historiográfica da nossa música popular, e o livro de Ricardo Cravo Albin é apenas mais um exemplo. Afinal, ao longo de suas mais de 400 páginas ilustradas com 400 fotos não há nada referente a nenhum dos artistas "cafonas" da década de 70. Nem mesmo Agnaldo Timóteo, que permanece há três décadas em evidência; nem Nelson Ned, apesar do sucesso nacional e internacional; nem Benito di Paula, Luiz Ayrão ou Wando, autores de diversas canções de sucesso. Melhor sorte no livro tiveram os ainda pouco conhecidos cantores Tomaz Lima e Titane, que aparecem com destaque em fotos e texto; o primeiro porque, segundo Cravo Albin, "emprega a música como terapia, adaptando milenares mantras indianos em arranjos de bossa nova", e a segunda porque foi "considerada por intelectuais como Ziraldo e Lélia Coelho Frota a

cantora do ano 2000". (593) Outra obra que ressalta apenas artistas identificados à "tradição" ou à "modernidade" é a coleção História do samba, conjunto de 40 fascículos e CDs lançado pela Editora Globo em 1997. Coordenada pelo artista plástico Elifas Andreato, a coleção traz a gravação de 480 sambas: dos ancestrais João da Baiana, Donga e Sinhô, abarcando Miguel Gustavo, Caetano Veloso, Gilberto Gil e chegando até aos anos 80/90 com composições de Dicró, Bezerra da Silva e Zeca Pagodinho. E a proposta da obra, segundo o texto de apresentação, é contar a história do samba "desde suas origens mais remotas, de suas mais hipotéticas ou estranhas ramificações, passando por todo o processo de crescimento e sedimentação, até o fastígio de fim-de-século, em que, em vez de pelo telefone, o samba agora se comunica até pela internet". (594) Mas, apesar da abrangência alegada, entre os 480 sambas incluídos nos 40 CDs da coleção não há nenhum da autoria de Benito di Paula, Wando ou Luiz Ayrão. O repertório desta geração de artistas também não aparece na coleção MPB/Compositores, conjunto de 40 fascículos e CDs lançado em 1996 pela mesma Editora Globo. Embora focalize nomes como Pixinguinha e Wilson Batista, a coleção privilegia compositores surgidos a partir do período da bossa nova, chegando até os anos 80, com Cazuza. E de certa forma isto está justificado na apresentação da obra, onde se diz que até meados deste século a nossa produção musical é marcada por "ensaios, talentos que foram espalhando sementes no imaginário do povo e dos compositores (...) Foi apenas no final da década de 50 que todas estas sementes se fundiram, se misturaram e deram origem à nova música popular no Brasil” (595) Mas, como já disse anteriormente, neste "popular" não estão incluídos nomes como Waldik Soriano, Odair José ou Nelson Ned. O livro 500 Anos da Música Popular Brasileira, publicação do MIS lançada em 2001, apresenta texto e farto material iconográfico que focalizariam “os aspectos mais relevantes de nosso cancioneiro, das danças de Diogo Dias e seus companheiros com os índios de Porto Seguro, no apogeu das Luzes do século XV, aos sucessos do 'mangue-beat' do crepúsculo do século XX” (596) E de fato, ali há fotos e nomes de representantes da velha guarda, da jovem guarda, da tropicália, da bossa nova, da geração dos festivais, dos roqueiros do Circo Voador, do funk, do punk, do rap, da axé-music e até do gênero heavy-metal com a banda

Sepultura. Já sobre a geração "cafona" dos anos 70, nenhuma foto, nenhuma palavra. Deixando de lado a produção específica sobre música popular e partindo para a análise dos livros didáticos de História que a cada ano contribuem para a formação de milhões de jovens brasileiros e cada vez mais utilizam a letra da canção popular como documento histórico - constata-se que é total a exclusão do repertório "cafona". Em um livro de história bastante utilizado por estudantes do primeiro grau, Brasil vivo, de Chico Alencar, Marcus Ribeiro e Claudius Ceccon, na parte referente ao regime militar, estão citados trechos de 19 canções: todas de compositores identificados à MPB (Milton Nascimento, João Bosco, Tom Zé, Francis Hime e outros). O mesmo se verifica no livro Nova história critica do Brasil: 500 anos de história mal-contada, obra dirigida a estudantes do segundo grau. No capítulo referente aos anos 70 aparecem os nomes de 21 cantores/compositores: de Chico Buarque a Hermeto Pascoal, passando por Tom Zé, Wagner Tiso e Egberto Gismonti; ou seja, mais uma vez, apenas artistas que naquela época eram consumidos por um público intelectualizado e de classe média. O que nos leva à constatação de que, pelo menos no que diz respeito à música popular brasileira, a história continua sendo mal contada. Além desses dois livros citados, consultei outros 15 livros didáticos de História, publicados entre 1992 e 1999, e em todos eles, nas páginas referentes ao período do regime militar, só aparecem músicas e músicos identificados à MPB: Chico Buarque, Geraldo Vandré e Caetano Veloso, os mais freqüentemente citados. É como se cantores populares como Waldik Soriano e canções de sucesso como Eu não sou cachorro, não e Pare de tomar a pílua não tivessem existido na história do Brasil. Portanto, no campo específico da música popular brasileira, estamos diante de uma produção historiográfica autoritária e excludente. O que os "enquadradores" da memória da nossa música popular consideram como parte da "história" ou representativo do período do regime militar é somente aquela produção musical que atingia o público de classe média e nível universitário. Aquilo que apenas as camadas mais pobres da população brasileira ouviam ou admiravam não é considerado digno de registro ou pesquisa. É importante destacar que este processo de silenciamento e esquecimento não atinge apenas esta geração de Odair José e Waldik Soriano. Outras

gerações de artistas populares não identificados à "tradição" ou à "modernidade" também estão excluídas. Veja-se o caso, por exemplo, do cantor mineiro Altemar Dutra. Intérprete de canções como O trovador, Sentimental demais e Brigas (da dupla Jair Amorim e Evaldo Gouveia), o cantor despontou com grande sucesso em 1963, vendendo milhares de discos e alcançando mais tarde grande popularidade em vários outros países da América Latina. Entretanto, durante sua carreira artística, Altemar Dutra jamais conseguiu opinião favorável da crítica, e hoje, passados mais de 20 anos de sua morte, ainda não obteve na produção historiográfica um reconhecimento à altura do talento que milhões de brasileiros lhe atribuem. E isto acontece porque Altemar Dutra se destacou basicamente como intérprete de bolero, gênero que no Brasil não é identificado nem com a "tradição" nem com a "modernidade". É o caso também do cantor e compositor baiano Anísio Silva, um dos maiores fenômenos de popularidade da história da música brasileira e que apareceu no cenário artístico em 1957, com a idade de 37 anos, colecionando a partir daí uma série de sucessos nacionais: Sonhando contigo, Interesseira, Quero beijar-te as mãos, Alguém me disse e várias outras que naquela época giravam nas vitrolas sem parar. O curioso é que para a surpresa dos críticos - que sempre o desprezaram Anísio Silva contava entre os seus milhões de admiradores com um de ouvido insuspeito: o cantor João Gilberto. Porém, a partir de meados dos anos 60, Anísio Silva foi perdendo espaço para outros ídolos do rádio e hoje, mais de uma década após sua morte, é um nome praticamente riscado da produção historiográfica da nossa música popular. Assim como Altemar Dutra, Anisio Silva também se destacou como intérprete de bolero. Nem "tradição", nem "modernidade". Melhor sorte tiveram cantoras de samba como Clementina de Jesus e Aracy de Almeida, que estão identificadas à "tradição" e por isso são hoje exaltadas e decantadas em diversas publicações da música popular brasileira. Como também o são os cantores Dick Farney e Lúcio Alves, identificados à "modernidade". Já Nelson Gonçalves enfrentou fortes resistências. Em 1966, quando o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro iniciou a gravação de uma série de depoimentos para a posteridade com artistas da música popular, a ênfase recaiu sobre personagens da velha guarda ligados à "tradição": João da Baiana, Donga, Pixinguinha, Heitor dos Prazeres, Ataulfo Alves, o que não impediu que um jovem compositor chamado

Chico Buarque, na época com 22 anos, também fosse convidado a falar. Nelson Gonçalves, àquela altura já com quase 50 anos de idade e mais de 25 de carreira, considerava-se também pronto para relatar a sua história de vida ao museu. Entretanto, os integrantes do Conselho Nacional de Música Popular do MIS - que elegiam os nomes para depor (599) - julgaram que a produção musical do cantor não justificava a gravação de seu depoimento naquela instituição. Este fato magoou profundamente Nelson Gonçalves, a tal ponto que, anos mais tarde, quando o MIS finalmente se convenceu de que o cantor merecia ser ouvido, desta vez foi o próprio Nelson que se recusou a falar, morrendo em 1998 sem deixar o seu depoimento gravado. Este episódio envolvendo Nelson Gonçalves e o MIS é mais um exemplo da dificuldade que um artista popular não totalmente identificado à "tradição" ou à "modernidade" encontra para ser "enquadrado" na memória da música popular brasileira. Afinal, o intérprete de A volta do boêmio nunca esteve identificado à "modernidade", pois, ao contrário de artistas como Dick Farney e Johnny Alf, ele nunca revelou influências do jazz; como também nunca esteve totalmente identificado à "tradição", visto que os seus sambas-canções, em grande parte de autoria do compositor Adelino Moreira, eram considerados abolerados, descaracterizados ou simplesmente de mau gosto.

Outra geração de artistas que se defronta com dificuldade semelhante à de Nelson Gonçalves é aquela formada pelos chamados cantores do rádio: Cauby Peixoto, Francisco Carlos, Ivon Curi, Nora Ney, Zezé Gonzaga, Ellen de Lima, Jorge Goulart, Rosita Gonzalez, Adelaide Chiozzo, Marlene, Emilinha Borba e outros que entre os anos de 1945 e 1958 tinham como espaço nobre o programa de César de Alencar, nas tardes de sábado na Rádio Nacional. Situado exatamente entre o tempo da "tradição" (o pré-45) e o tempo da "modernidade" (o pós-58), o mundo musical da era do rádio "é visto como o reino do improviso, do descompromisso profissional, do baixo nível artístico, da futilidade. De certa forma, não se atribui qualquer importância musical a essa época". (600) Mas isto mais uma vez se explica porque a quase totalidade desses artistas também não está devidamente identificada nem à "tradição" nem à "modernidade". Duas exceções são o cantor Jorge Goulart - aquele que mais facilmente consegue ser identificado à "tradição" - e a cantora Nora Ney - a mais próxima da "modernidade" - e que talvez por isso mesmo tenham sido contemplados com um livro-tributo do historiador Alcir Lenharo, que justamente procura enfatizar "o papel inovador exercido por Nora na evolução do canto e na própria relação com o gosto pela

música popular".(602) Já os cantores Cauby Peixoto e Ângela Maria, embora ainda desfrutem maior popularidade que os seus colegas da época, enfrentam maior rejeição dos "enquadradores" e, assim como Nelson Gonçalves, também não foram convidados pelo Conselho Nacional de Música Popular do MIS a registrar os seus depoimentos para a posteridade.(603) Ao concluir esta análise, citarei apenas mais alguns artistas que, ao contrário dos "cantores do rádio", encontram muito mais facilidades para serem "enquadrados" na memória da nossa música popular. É o caso do cantor Moreira da Silva, famoso intérprete de samba de breque e do discurso da malandragem (tema que fascina diversos intelectuais brasileiros), (604) logo identificado à "tradição"; como também a cantora Nara Leão, considerada musa da bossa nova, facilmente identificada à "modernidade".(605) E quando um artista consegue ser identificado ao mesmo tempo tanto a uma vertente quanto a outra, torna-se "unanimidade nacional". É o caso de Chico Buarque, que é admirado pelos adeptos da vertente da "tradição" que vêem em sua obra uma continuação dos sambas dos tempos de Noel Rosa - e também pelos adeptos da vertente da "modernidade" que enxergam inovações harmônicas (606) e, principalmente, elaboradas construções poéticas na obra do compositor. (607) Assim, compreende-se o resultado de uma pesquisa que a revista IstoÉ realizou com seus leitores para a escolha de "o músico brasileiro do século XX". De uma lista de 30 nomes apresentados pela revista - Chico Buarque, Ary Barroso, Caetano Veloso, Pixinguinha, Roberto Carlos, Tom Jobim, Noel Rosa, entre outros - , o seu público leitor, que possui um perfil de classe média e nível universitário, escolheu exatamente Chico Buarque, eleito por 76,48% dos votos. (608) Mas esta escolha do autor de Carolina como o "músico do século" se explica porque, entre todos os artistas da música popular brasileira, ele é aquele que melhor sintetiza em sua obra os anseios dos adeptos da "tradição" e os da "modernidade". Em segundo lugar na pesquisa ficou o compositor Tom Jobim, que embora possua um reconhecimento internacional muitíssimo maior que o de Chico Buarque, é um nome no Brasil muito mais identificado com a "modernidade" e que ao longo de sua carreira sofreu duras críticas dos adeptos da vertente da "tradição", notadamente de José Ramos Tinhorão, que dizia: "O Tom Jobim é importante para a sua cultura de classe

média. Para a música popular não tem importância nenhuma." (609) Ao contrario de Chico Buarque, Tom Jobim não une - segundo ouvidos mais radicais - "tradição" e "modernidade". Observo que esta concepção da nossa música converteu-se numa quase obsessão entre os principais críticos musicais do pais. Os trabalhos mais elogiados são justamente aqueles nos quais eles identificam uma dessas duas vertentes ou, melhor ainda, aqueles que, na percepção dos críticos, apresentam a mistura entre "tradição" e "modernidade", entre "passado" e “presente". A jornalista Ana Maria Bahiana, por exemplo, faz uma análise bastante elogiosa da trajetória musical de Moraes Moreira, qualificando-o de "compositor engenhoso" porque, segundo ela, o artista baiano foi "capaz de trabalhar e misturar as formas mais tradicionais de música brasileira - samba, seresta, trevo principalmente - e dar a tudo uma urgência e uma veemência pessoais, modernas". (610) Pelo mesmo motivo o critico Tárik de Souza louva o trabalho realizado pelo pernambucano Chico Science e sua Nação Zumbi, destacando que com aquela mistura de maracatu/hip hop, rock/baião, "a modernidade, em mais um ciclo vital, acertava seu relógio com a tradição". E Nelson Motta saúda Max de Castro como uma grande revelação do ano 2000 porque "a música dele tem um pé na melhor tradição brasileira - nos afro-sambas de Baden Powell, em Chico Buarque, em Jorge Benjor e um pé no futuro, na música de hoje, em todas as possibilidades que a eletrônica dá de mistura de signos, drum'n’bass, hip hop, em todas estas variantes".(612)

Constata-se, por outro lado, que a força desta vertente interpretativa aparece não apenas no trabalho dos críticos, pesquisadores e divulgadores de histórias da nossa música popular. Reflete-se também na produção discográfica de uma nova geração de artistas da MPB, que teve sua memória musical formada sob a influência destes mesmos criticos, pesquisadores e divulgadores. Um outro exemplo ilustrativo disto é o da cantora carioca Marisa Monte. Filha da alta classe média, ex-estudante de canto lírico, Marisa despontou para o sucesso no fim dos anos 80 com o epíteto de "eclética", notabilizando-se por releituras de antigas canções do repertório popular.

Em entrevistas à imprensa a cantora afirmou que seu conhecimento do passado musical brasileiro se deve muito ao conjunto de discos e fascículos publicados pela Editora Abril nos anos 70, a coleção História da música popular brasileira - obra que, como já vimos, ajudou a consolidar entre o público de classe média esta concepção da nossa música sob o foco da "tradição" e da "modernidade". Pois bem: nos cinco CDs até agora gravados por Marisa Monte, além de composições da própria cantora e algumas outras do repertório internacional, só foram incluídas regravações de temas identificados àquelas duas vertentes interpretativas. (613) Ali ouvem-se, por exemplo, o samba de Bubu da Portela, Esta melodia, e o rock dos Mutantes, Ando meio desligado; composições de Candeia, Monsueto, Cartola, Nelson Cavaquinho, Pixinguinha (todos da "tradição") e de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jorge Benjor, Tim Maia, Lulu Santos, Arnaldo Antunes ("modernidade"). Já todo um outro vasto segmento do repertório musical brasileiro que não se enquadra nesta duas vertentes, não mereceu, até agora, espaço nos discos da "eclética" Marisa Monte. (614)

Em um artigo publicado na Folha de S Paulo, o jornalista Ruy Castro constatava, surpreso, que ninguém se atreve a classificar de "cafona" a letra de Rosa, música de Pixinguinha, que Orlando Silva cantava (e Marisa Monte regravou): "Tu és divina e graciosa / estátua majestosa / do amor por Deus esculturada / e formada com ardor / da alma da mais linda flor..." (615) Ora, a explicação para isto é simples: Pixinguinha, o autor, e Orlando Silva, o intérprete, estão identificados à "tradição" da nossa música popular. É isto que dá a Rosa um valor cultural que provoca suspiros nos ouvintes, em vez de gargalhadas mesmo que a letra desta valsa seja similar a outras gravadas por Waldik Soriano ou Agnaldo Timóteo. Pense-se, por exemplo, em três famosas cantoras brasileiras: Clara Nunes, Elis Regina e Ângela Maria. Qual delas é freqüentemente associada à cafonice? Com certeza, a intérprete de Babalu, porque ao contrário de Clara Nunes, Ângela Maria não canta samba de raiz e nem exalta figuras afro-brasileiras como Oxum e Iemanjá; e diferentemente de Elis, nunca revelou influências do jazz ou da bossa nova. E nisto reside todo o mistério do "brega” ou "cafona": recebem estes adjetivos aqueles artistas e aquela produção musical que o público de classe média não identifica, ou encontra dificuldade de identificar, à "tradição" ou à "modernidade". Quanto mais longe dessas duas vertentes, mais perto do "brega", e vice-versa. Creio que esta explicação acaba de uma vez por todas com aquela máxima de que brega é uma coisa que todo mundo reconhece quando ouve mas não sabe definir o que é. Até porque, algumas tentativas de definição não me pareceram muito satisfatórios. Numa entrevista, perguntaram a Caetano Veloso: "Qual é a sua definição de brega?". O cantor respondeu que "brega é uma palavra há muito tempo utilizada na Bahia para designar a zona de prostituição e que, mais tarde, passou a adjetivar "toda música considerada de mau gosto ou sentimental ou meramente muito popular e não de elite. Terminou virando um conceito mais geral de música não elitizada". (616)

Explicação semelhante foi dada por Tárik de Souza a uma pergunta formulada pela cantora Ângela Maria: "O que é brega?". O critico respondeu que "é um tipo de música feito para vendagem imediata, dentro de um padrão de emoção exagerada, simplificada, mais fácil de ser assimilada". (617) Com poucas palavras, Marisa Monte também respondeu sobre o tema. "O brega é um conceito muito confuso. Para mim, brega é aquilo que se faz com a intenção de ganhar dinheiro." As explicações de Marisa, Tárik e Caetano são pertinentes mas não dão conta do fenômeno porque, insisto: há muita produção musical com aqueles mesmos predicados que, no entanto, não é considerada "brega". Apelo comercial, por exemplo, aparecem nos sambas de Bezerra da Silva, Zeca Pagodinho e Martinho da Vila, três grandes vendedores de discos que também fazem uma música simplificada, fácil de ser assimilada, não elitizada como, aliás, sempre fizeram os autores de antigos sambas e marchinhas carnavalesCO. Ao que me consta não há qualquer complexidade ou riqueza harmônica em temas como Ala-La-Ô, Mamãe eu quero, Chiquita Bacana e várias outras hoje consideradas "clássicos" da música popular brasileira. E forte carga sentimental não é privilégio de Nelson Ned ou Odair José; aparece também no trabalho de Herivelto Martins, Nora Ney, Dalva de Oliveira e até mesmo no de Elizete Cardoso, que acentua a alta dramaticidade de versos como os de Vinicius de Moraes em sua pré-bossa nova Serenata do adeus: "Ah!, mulher, estrela a refulgir / parte, mas antes de partir / rasga o meu coração! / crava as garras no meu peito em dor / e esvai em sangue todo o amor..." Resumindo e simplificando: "brega" ou "cafona" é toda aquela produção musical que o público de classe média não identifica à "tradição" ou a "modernidade". Digo "público de classe média" porque os segmentos populares, o chamado povão, não têm maiores preocupações com raízes ou vanguardas. Por isso eles admiram tanto um Agnaldo Timóteo como um Jackson do Pandeiro, cantor e compositor paraibano que não é considerado "brega", porque no próprio nome dele encontram-se ecos daquelas duas vertentes: Jackson "modernidade", Pandeiro "tradição". Aliás, nenhum artista da música

brasileira que traz em seu nome instrumentos como pandeiro, viola e cavaquinho é rotulado de "brega" ou "cafona". O fato é que o cantor ou compositor deste país que não tiver a sua obra musical identificada à "tradição" ou à "modernidade" está condenado ao desprezo da crítica e ao esquecimento por parte dos "enquadradores" da memória da nossa música popular. E é o que acontece hoje com artistas como Agnaldo Timóteo, Nelson Ned, Waldik Soriano, Odair José e vários outros que não se enquadram em nenhuma daquelas duas vertentes - vão todos para o ralo comum do "brega" ou do "cafona". Mas de que maneira esta geração de cantores/compositores analisa este fato? "Não existe música brega; o que existe são analistas preconceituosos", define Agnaldo Timóteo. (619) E como eles percebem a ausência dos seus nomes na produção historiográfica da música popular brasileira? Perguntado se algum representante do Museu da Imagem e do Som já o teria convidado alguma vez para gravar o seu depoimento naquela instituição, Timóteo respondeu: "Nunca, eles não me dão nem confiança. Nem a mim nem ao Cauby, Benito di Paula, Nilton Cesar, Nelson Ned, Moacir Franco, Waldik Soriano, Reginaldo Rossi. Aqueles idiotas pensam que nós não existimos E nós existimos." Mas este fato deixa Timóteo chateado? "Que nada! Cada vez que eu abro a boca, onde quer que eu esteja, se estiverem dez pessoas, vibram; se estiverem dez mil pessoas, também vibram. Eu sou um monstro de cantor. Eu sei o que represento. Ao abrir a boca, o meu inimigo fica desmoralizado. Um cara como eu, gordo, feio, cabelo duro, preto, se não fosse um monstro de cantor, já teria desaparecido. Eu sei o que sou. Não estou nem aí pra eles. E não adianta: o tempo vai se encarregar de deixar essa discriminação sepultada."

A idéia do tempo como senhor da razão também marca o depoimento do cantor e compositor Luiz Ayrão. Ao analisar o porque de nomes como o seu e o de Benito di Paula não serem destacados nas diversas publicações sobre a história do samba e da música popular brasileira, ele diz: "Hoje não somos reconhecidos, mas daqui a pouco seremos chamados de deuses. Isso é questão de tempo. Antigamente, em determinados locais, se você falasse em Lupicínio Rodrigues, você era chutado para fora. Se você falasse em Luiz Gonzaga, o cara morria de rir na sua cara. Se você falasse em Noel Rosa, sabe o que que eles diziam? 'Porra, cara, isso é compositor de mesa de botequim.' De Lupicínio diziam que era um crioulo que fazia música pra puta, e Luiz Gonzaga, com aquele chapéu engraçado, era um cangaceiro que cantava baião. Sabe de quem que o pessoal gostava? De João Gilberto, Antônio Carlos Jobim, Vinicius de Moraes. Os mais velhos um pouco gostavam de Dick Farney, de Frank Sinatra. Era assim." Luiz Ayrão estaria então convencido de que a sua produção musical poderá conquistar também um lugar na historiografia da nossa música popular? "Claro" afirma ele "tem muita coisa boa na minha obra, tem músicas boas, tem poesia. Eu sei que hoje o meu nome não está em nenhuma dessas coleções de história da música popular brasileira. Mas um dia vai estar. Um dia eles vão dizer 'porra, está faltando alguém... tem mais alguém?' 'Tem o Luiz Ayrão' 'Ih, é um gênio esse cara.' É assim, de repente eles descobrem que o cara é gênio. Como descobriram que o Luiz Gonzaga e o Lupicinio eram gênios. Tudo é uma questão de tempo." Os exemplos citados por Luiz Ayrão efetivamente estão corretos: estes três nomes da música popular brasileira - Noel Rosas Lupicínio Rodrigues e Luiz Gonzaga - só obtiveram reconhecimento da crítica e das elites culturais do país quando o período de maior sucesso popular de cada um deles já havia terminado. Reconhecimento que Noel Rosa - pelo fato de morrer muito jovem - não chegou a testemunhar. Luiz Gonzaga, por exemplo, já um ídolo popular nos anos 40, só começou a obter algum prestígio a partir do fim da década

de 60, quando jovens compositores como Caetano Veloso e Gilberto Gil passaram a destacar a importância que a obra do rei do baião teve para a formação musical de cada um deles. Numa entrevista concedida ao poeta Augusto de Campos em 1968, Gilberto Gil afirmava: "O primeiro fenômeno musical que deixou lastro muito grande em mim foi Luiz Gonzaga. (...) Ele é tão emocionante como Caymmi e João Gilberto." (620) Prestígio que se acentuou com a gravação que, do exílio em Londres, Caetano Veloso fez da famosa Asa branca, enfatizando o parentesco analógico entre a dor do retirante nordestino e a dos exilados brasileiros naquele momento: "Hoje longe muitas léguas / numa triste solidão / espero a chuva cair de novo / pra mim vortá pro meu sertão." Mas como o próprio Caetano Veloso destaca, "havia gente que, na época de Luiz Gonzaga, considerava o baião uma espécie de sujeira". (621) Da mesma forma, as composições de Lupicínio Rodrigues só deixaram o espaço restrito dos cabarés a partir de 1971, quando durante a gravação de um especial de televisão, o cantor João Gilberto, para surpresa de todos, apresentou em versão bossa nova um antigo samba-canção lançado pelo cantor Francisco Alves: "Quem há de dizer / que quem você está vendo / naquela mesa bebendo / é o meu querido amor..." (622) A partir daí, estava dado o sinal verde para que outros intérpretes da MPB também cantassem o que eram consideradas "as horrendas letras" do velho Lupi. (623) É depois desta releitura de João Gilberto que surgem as regravações de Felicidade (com Caetano Veloso), Quem há de dizer (Maria Bethania), Volta (Cal Costa), Nervos de aço (Paulinho da Viola), Esses moços, pobres moços (Gilberto Gil), Maria Rosa e Cadeira vazia (ambas com Elis Regina). Todas versões apresentadas entre 1972 e 1974. Mas além de Lupicínio Rodrigues e Luiz Gonzaga, outros exemplos podem ser citados: Cartola e Nelson Cavaquinho só foram considerados gênios da nossa música quando já eram quase sexagenários. Em meados da década de 50, nos chamados "anos dourados", Cartola lavava carros nas ruas da Zona Sul do Rio de Janeiro. E o compositor Geraldo Pereira, hoje considerado pelos críticos um grande revolucionário do samba, morreu pobre e esquecido em 1955.

Foi só a partir de meados dos anos 60 que a vertente da "tradição", que vai recuperar grande parte desta geração de sambistas, se estruturou em espaços como os do restaurante Zicartola e o do Museu da Imagem e do Som, ambos no Rio de Janeiro.(624) O que hoje é chamado de a "era de ouro da música popular brasileira" - o período compreendido entre 1930 e 1945 - não foi percebido assim por seus contemporâneos. É uma construção posterior, feita pelo crítico de música Lúcio Rangel no fim dos anos 50, e que os demais críticos e historiadores a partir daí adotaram. Para se ter uma idéia, entre 1930 e 1945 não havia nos grandes jornais brasileiros nenhuma seção focalizando o lançamento de discos de música popular. As hoje celebradas gravações de Noel Rosa, Orlando Silva, Carmen Miranda, Mário Reis, Francisco Alves e Silvio Caldas não eram consideradas dignas de serem sequer comentadas pelos jornalistas da grande imprensa do nosso pais. Que naturalmente utilizavam páginas e mais páginas analisando os lançamentos de música clássica, as grandes operetas e as peças de canto lírico. (625) Portanto, os depoimentos de Luiz Ayrão e Agnaldo Timóteo chamam atenção para um traço recorrente na história da nossa sociedade: a de que a passagem de uma obra musical de uma categoria inferior para outra superior é, muitas vezes, uma questão de tempo. É o que aconteceu também nos Estados Unidos com o jazz, que inicialmente restrito aos bordéis e guetos negros, alcançou mais tarde as platéias brancas dos grandes palcos de teatros, sendo hoje saudado por muitos críticos como a melhor música do século XX. E é o que se verifica também em outras manifestações artísticas. Como observa Teixeira Coelho, "com que horror foram recebidas as primeiras imagens de uma garrafa de Coca-Cola ou de um posto de gasolina pintadas onde antes figuravam apenas os 'grandes temas' da arte. Foi fácil esquecer, então, que se Rembrandt pintava um grupo de comerciantes ao redor de uma mesa num ambiente claro-escuro era porque aquela era a realidade de sua época cuja contrapartida atual será, por exemplo, um grupo de mecânicos e frentistas reunidos num posto de gasolina ao redor de um caminhão Ford". (626)

É claro que não devemos cair num relativismo determinista e achar que toda obra de arte e todo artista que não têm reconhecimento no presente terão no futuro. Entretanto, são vários os aspectos que determinam a valorização ou a revalorização de um determinado trabalho artístico - e estes aspectos muitas vezes são exteriores à obra em si. Um exemplo mais recente no campo da música popular é o da canção Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, de Roberto e Erasmo Carlos. Lançada no LP de Roberto Carlos em dezembro de 1971, Debaixo dos caracóis dos seus cabelos fez grande sucesso na época, mas, como tantas outras músicas do cantor, não continuou fazendo parte do seu repertório. Era mais ou menos como Quando as crianças saírem de férias, uma antiga gravação de Roberto Carlos que grande parte do público conhece, mas não revela maior vontade de ouvi-la outra vez em shows ou em especiais de televisão. Porém, isto começa a mudar a partir de 1992, quando durante a temporada do show Circulado, no Canecão, Caetano Veloso rememorava fatos relacionados à sua prisão e exílio e, para a surpresa do público, antes de cantar Debaixo dos caracóis dos seus cabelos confidenciava: "Nós acreditávamos, e eu acredito ainda hoje, que a ditadura militar tenha sido um gesto saído de regiões profundas do ser do Brasil, alguma coisa que dizia muito sobre nosso ser intimo de brasileiros. Vocês não podem imaginar como minha dor era multiplicada por essa certeza. No entanto, uma vez no exílio, chegavam até nós, saídas de regiões não menos profundas do ser do Brasil, vozes que nos tentavam dizer que isso não era tudo. Essa canção, por exemplo, que eu vou cantar agora, foi composta para mim por essa razão: "Um dia a areia branca / seus pés irão tocar / e vai molhar seus cabelos / a água azul do mar / janelas e portas vão se abrir / pra ver você chegar..." A partir desta revelação, o antigo sucesso Debaixo dos caracóis dos seus cabelos foi revestido de outro significado e o seu destino começou a mudar. A tal ponto que hoje, mesmo aquelas pessoas que não se declaram fãs de Roberto Carlos costumam dizer "mas eu gosto daquela música que

ele fez para o Caetano". Portanto, a canção que estava praticamente esquecida, que era apenas mais um daqueles antigos hits de Roberto Carlos, de repente, torna-se bonita, outros cantores começam a gravá-la e, em 1998, é saudada no caderno de cultura do jornal O Globo como "um clássico do cancioneiro popular". (628) E, inclusive, contribuiu para que a produção musical de Roberto e Erasmo Carlos alcançasse maior aceitação por parte de determinados setores que ainda manifestavam certa resistência em relação à dupla. Afinal, só em 1997 os dois artistas receberam o prêmio Shell de Música Brasileira, troféu instituído em 1980 e anualmente oferecido a um compositor popular pelo conjunto de sua obra. Antes de Roberto e Erasmo Carlos, já haviam sido premiados Martinho da Vila, Edu Lobo, Paulinho da Violão Glberto Gil, Braguinha e outros nomes mais facilmente identificados à "tradição" ou à "modernidade". Então, neste sentido, os argumentos de Agnaldo Timóteo e Luiz Ayrão encontram certa base no processo social. A avaliação da obra de um compositor de música popular no Brasil pode mudar e tem mudado com o tempo. E esta esperança também aparece, a seguir, no depoimento de Benito di Paula. Ao comentar a ausência de seu nome nas diversas publicações sobre a história da música popular brasileira, e na do samba em particular, ele diz: "Mas será que os caras conhecem o meu trabalho? A questão está aí, né? Às vezes eles não conhecem, coitados. Eles nunca me perguntaram nada. Mas eu não tenho nada contra. Desde o momento que está se falando da música brasileira, da nossa cultura, acho tudo muito bom. Se incluírem o meu nome, está ótimo; se não incluírem, também está legal. Não tenho a menor preocupação com isso. Eu estou totalmente feliz por ter gravado os meus discos e por ter a minha carreira. Então está legal, acho que não devo me preocupar com eles, nem eles comigo. Aí fica zero a zero. Um a zero pra eles, nunca. Sempre zero a zero, que é um placar salutar. Ninguém ainda ganhou esse jogo. Continuaremos jogando."

Mas será que o jogo ainda não teria mesmo terminado? "Não" - enfatiza o cantor - "o jogo não termina nunca. E nem o samba." Os depoimentos seguintes vão abordar outros aspectos. Dom, por exemplo, vai mais uma vez evocar o boicote ideológico para explicar a ausência da dupla Dom & Ravel no acervo de depoimentos do Museu da Imagem e do Som: "Eu penso que é porque eles têm interesse em que o nosso nome e a nossa imagem fiquem esquecidos na memória nacional. São pessoas que querem que sejam lembradas aquelas personalidades que eles acham que são heróis, que lutaram por uma mudança no processo político brasileiro. Nós, como somos tidos por eles como artistas que ajudaram a manter o retrocesso, não merecemos ser preservados na memória. É uma coisa mais ou menos assim, tipo castigo." Nelson Ned é um nome que transcende a fronteira verde-amarela. Depois de Carmen Miranda, ele é o cantor brasileiro que alcançou maior sucesso popular fora do país - e sem a "política de boa vizinhança" que favoreceu a carreira da Pequena Notável no exterior. (629) Além do enorme público latino dos Estados Unidos, a voz de Nelson Ned conquistou audiência em cerca de 30 países e três continentes: África, Europa e toda a América, do sul ao norte, do Chile ao Canadá, passando pelas Antilhas Holandesas, República Dominicana, México, Colômbia, Venezuela e, principalmente, Cuba, por sinal, único país americano que ainda não assistiu a Nelson Ned ao vivo. "Nunca vou cantar lá, enquanto Cuba for comunista. Sou pela democracia", diz ele,(630) que, no entanto, não se negou a fazer shows na Argentina do ditador Rafael Videla, no Panamá do truculento Omar Torrijos, no Haiti do sanguinário Baby Doc, na Espanha do moribundo Francisco Franco e até na África do Sul sob o regime do apartheid. Aliás, se Nelson Ned só aceitasse realmente cantar em palcos da democracia, nos anos 70 ele não faria show nem mesmo em Ubá, sua cidade natal. A projeção internacional de Nelson Ned começou em Setembro de 1970, quando ele participou do I Festival da Canção Latino-Americana de Nova York. Transmitidas ao vivo pelo canal 47, a voz e a imagem do cantor brasileiro causaram repercussão além de levar o prêmio de melhor intérprete, ele logo recebeu uma proposta de contraio da gravadora United

Artists. Com gravações em espanhol num estúdio de Nova York, em março de 1971 era lançado nos Estados Unidos e em vários países hispanos o seu primeiro LP internacional, "Canción Popular". O sucesso foi rápido e intenso. "Aí a mulherada começou a dar em cima de mim, comecei a ganhar muitos dólares, a ter limusines, Lincolns Continentais e suítes presidenciais à minha disposição - coisas, até aquele momento, inimagináveis para ruim", lembra Nelson Ned. (631) Em fevereiro de 1973 ele se apresentou na concha acústica da La Media Torta, em Bogotá, para uma multidão de aproximadamente 80 mil pessoas, quebrando o recorde de público que ali pertencia a Carlos Gardel. "Loucura por Nelson Ned! Sensacional êxito!", alardeou a manchete do jornal El Espectador, de Bogotá. (632) Grande público também acorreu a shows de Nelson Ned na Cidade do México (Estádio Netza), em Lisboa (Pavilhão dos Esportes), em Madri (Gran-Teatro Real), em Joanesburgo (City Hall), em Los Angeles (Shirine Auditorium) e em Nova York (Madison Square Garden). Mas o ápice desta sua performance internacional se deu no dia 16 Junho de 1974, quando Nelson Ned lotou, por duas vezes, o famoso Carnegie Hall de Nova York palco de artistas como Frank Sinatra, Ella Fitzgerald, Ray Charles, e também da bossa nova de João Gilberto e Tom Jobim, que ali se apresentaram pela primeira vez ao público norte-americano em novembro de 1962. Aliás, o anúncio de que Nelson Ned faria apresentações no mesmo espaço outrora ocupado pela bossa nova não foi bem recebido por alguns setores da Zona Sul carioca: "Tremei sacrossantos cultores da sagrada bossa nova. Dia 16 de Junho, vosso venerado templo será ocupado por nada menos, nada mais que por Nelson Ned, emérito bolerista e baladista lacrimoso", lastimava um colunista do Jornal do Brasil.(633) Mas se a apresentação dos bossa-novistas no Carnegie Hall gerou controvérsias (segundo alguns foi um sucesso, segundo outros, um fracasso), (634), o duplo show de Nelson Ned não deu margem a dúvidas, conforme relato da revista Veja: "Com fama ou sem fama, com talento ou sem talento, quem quiser dar um concerto no Carnegie Hall de Nova York - talvez o auditório de maior prestígio do mundo - só

precisa pagar o preço e alugá-lo. Mas enchê-lo duas vezes no mesmo dia, com ingresso a 5 e 8 dólares, e ser aplaudido de pé por um público delirante, bem, isso é outra história. Pois foi exatamente o que conseguiu realizar, na semana passada, o cantor brasileiro Nelson Ned." (635) Naquele mesmo ano a revista Records World de Nova York lhe concedia o disco de ouro pela grande vendagem nos Estados Unidos da balada Happy Birthday, my Darling (versão de Parabéns, Parabéns Querida), principal faixa do LP "Nelson Ned in Action". "Uma coisa muito importante dos americanos é o respeito que eles tem pelos artistas", afirma o cantor. "Eu gravei a sessão de cordas de um dos meus discos no estúdio Criteria, com 24 músicos da Filarmônica de Miami Quando entrei no estúdio pela primeira vez, os músicos se levantaram e me aplaudiram." (636) Aos que o acusam de divulgar uma produção musical desvinculada da realidade brasileira, Nelson Ned desdenha. "Eu sou um intérprete de identificação mundial. Canto o amor, não falo em morro, em samba. Não sou um cantor geográfico." (637) Engana-se, entretanto, quem imagina que este sucesso do cantor pelo mundo afora atinge somente o cidadão comum e de poucas letras. Um fã confesso de Nelson Ned é o prêmio Nobel de literatura Gabriel García Márquez, que disse ter escrito Crônica de uma morte anunciada ao som de Tudo passará e Se as flores pudessem falar, antigos sucessos de Ned. (638) Aliás, em um programa de televisão, o escritor colombiano ouviu a seguinte pergunta de Chico Buarque. “As suas preferências musicais causam espanto em muita gente, principalmente aqui no Brasil. Eu queria saber se os seus romances fossem música, seriam samba, tango, som cubano ou um bolero vagabundo mesmo?". De forma elegante, García Márquez respondeu: "Eu gostaria que fossem um bolero composto por você e cantado pelo Nelson Ned." (639) Mas de que maneira o hoje cantor gospel Nelson Ned analisa o fato de seu passado musical não merecer maiores atenções dos brasileiros que pesquisam a história da nossa música popular? Afinal, a produção

discográfica do cantor raramente é focalizada em livros sobre o tema. "Eu não estou preocupado com isso. Até porque, hoje eu tenho outros valores. Antes eu não estava preocupado porque tinha status nos Estados Unidos, hoje, porque sou um evangelista. E mais: eu tenho certeza que a resistência em relação ao meu nome se quadruplicou. Porque agora eu tenho um compromisso com a Bíblia. E a Bíblia é a única coisa que essas pessoas não querem ver" Na entrevista que realizei com Odair José ele também procura não dar muita importância ao fato de jamais ter sido convidado a ir gravar um depoimento no MIS. "Não fui e também não iria. O que eu preciso fazer na minha vida é trabalhar. Eu tenho três filhos, tenho uma esposa, tenho alguns amigos, então eu quero apenas trabalhar. Eu não quero ser uma história, não estou mais preocupado com isso. Então, eu não iria, não. As pessoas que preservem isso, eu não. Acho que o meu trabalho foi apenas profissional e continuo fazendo ele, mas não acho que fiz grande coisa. Então, não acho que eu mereça estar em museu, falar em museu, acho que não mereço. Eu vou fazer o quê, lá? Contar mentiras? Se eles acharem que eu mereço, então depois que eu morrer que eles inventem as próprias histórias deles. Não estou preocupado com isso." Odair José não considera então o seu trabalho como parte da história da música popular brasileira? "Considero" - diz o cantor - , "mas o problema é dos historiadores, não é meu. Sei que fiz algumas coisas que serão eternas, mas sei também que eu não sou um grande compositor, não sou um grande músico, não sou um grande cantor, eu sei disso. Eu sempre procurei fazer uma coisa que fosse diferente e procurei me colocar como uma espécie de repórter musical. E o meu trabalho é apenas profissional. Eu sou um rapaz que até hoje trabalha para sustentar a família. Então não quero saber de museu, não quero saber de história, não quero saber de porra nenhuma." Talvez devêssemos relativizar um pouco este discurso da indiferença que aparece nos depoimentos de Nelson Ned e Odair José. Isto porque, procurados para uma entrevista a este livro, os dois foram muito solícitos e

demonstraram satisfação por serem lembrados para um trabalho de pesquisa sobre a história da música popular brasileira. Nelson Ned, por exemplo, ao início do depoimento, declarou sentir-se honrado por ter o seu nome incluído no projeto. "Eu fico muito honrado, sinceramente." Da mesma maneira o cantor Agnaldo Timóteo confessou sentir-se envaidecido com a inclusão do seu nome. Portanto, para além da indiferença, o que o discurso destes artistas deixa transparecer é um certo ressentimento com a freqüente exclusão de seus nomes. E isto, de certa forma, também aparece, a seguir, na resposta de Waldik Soriano ao porquê de seu nome raramente ser citado nos trabalhos produzidos pelos divulgadores de histórias da nossa música popular. "Sei lá" - diz o cantor -, "eu acho que o brasileiro é muito besta. Mas lá aparece o nome de muita gente que não tá com nada, né? E a mim não interessa também, não. Eu sou um cantor de quase cem discos gravados, sou autor de quase mil músicas. Se depois de tudo isso, os caras ainda não reconhecem a gente, eu também não reconheço eles. Não me merecem, não." O cantor Wando expressa sentimento semelhante ao comentar o fato de nomes como o seu, Luiz Ayrão e Benito de Paula não aparecerem entre os 3.500 verbetes da segunda edição, revista e ampliada, da Enciclopédia da musica brasileira, publicada em 1998. (640) "Isto chama-se sonegação de informação. E é uma coisa sacana porque se propaga a idéia de que no Brasil só existe Chico Buarque de Hollanda, Caetano Veloso e Gilberto Gil. E aqui está um cara que já vendeu 10 milhões de discos neste país. E fato de dados só até 1995. Então eu devo ter alguma importância. E estou dando o exemplo do meu trabalho porque tenho quase 400 obras gravadas, e por diversos artistas. Mas vejo que pessoas como Benito di Paula, que também tem uma história muito importante, não se fala dele; não se fala do Luiz Ayrão, e a história da música popular acaba ficando aleijada." E qual a explicação de Wando para este descaso com ele e seus colegas? “Acho que é preconceito mesmo. Porque não se teve a consciência de parar e ouvir, ver, sentir e saber: 'o que que esse cara sabe produzir,

de que que esse cara fala, quem que esse cara escuta, quem é que esse cara está influenciando, a quem que ele está alcançando'. Então não houve esse tipo de cuidado." O MIS não teria convidado Wando a gravar um depoimento para a posteridade? "Não, eles nunca me chamaram. Nunca pediram os meus discos, nunca perguntaram quantas músicas eu tenho gravadas, nunca me perguntaram nada." Portanto, como até agora a história da música popular brasileira foi escrita e "enquadrada" por uma elite intelectual que despreza tudo aquilo que não está identificado à "tradição" ou à "modernidade", é esta elite que, em última análise - e valendo-se daquilo que Marilena Chauí chama de o "discurso competente" (641) - , define o que é bom ou ruim, o que merece ou não ser preservado na memória musical do país. Assim, nomes como Chico Buarque, Cartola, Gilberto Gil, Paulinho da Viola e Milton Nascimento são hoje considerados patrimônios de nossa música. Outros como Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto e Roberto Carlos são apenas aceitos. Já cantores/compositores populares como Wando, Waldik Soriano, Odair José, Nelson Ned, Luiz Ayrão e Benito di Paula foram, por assim dizer, "barrados no baile" da MPB. A historiografia da música popular brasileira não reconhece a obra de nenhum destes artistas. Eles constituem um capítulo da história da canção popular que os críticos, pesquisadores e acadêmicos consideram menor, sem dignidade artística, intelectual e nem mesmo como fenômeno social. É possível dizer que hoje esta geração de cantores/compositores está perdendo a batalha no campo da memória da música popular. Entretanto, como observou Benito di Paula, o jogo continua e, como mostraremos a seguir, lances da partida podem ser vistos à beira de um túmulo no maior cemitério da cidade do Rio de Janeiro.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS (SEGUINDO A NUMERAÇÃO SEQUENCIAL DO CAPÍTULO):

571. Maurice Halbwachs. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990, p. 26. 572. Ver Michel Pollak. "Memória, Esquecimento, Silencio". In Estudos históricos. Rio de Janeiro: Cpdoc/FGV, V. 2 Nº 3,1989; Jacques Le Goff. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 1996. 573. Jacques Le Goff, op. cit., p. 426. 574. Michel Pollak, op. cit, pp. 9-12. 575. Olga Brites da Silva. "Memória, preservação e tradições populares". In O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: SMCIDPH, l992, p. 12. 576. No período do Estado Novo, por exemplo, o debate sobre "tradição" e "modernidade" aparece no discurso de intelectuais como Almir de Andrade e Azevedo Amaral, colaboradores da revista Cultura Política. 577. Ver, por exemplo, de Mário de Andrade. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo: Martins, 1962 e Aspectos da música brasileira. Belo Horizonte: Vila Rica, 1991. Registre-se que embora o autor tenha problematizado diversas questões da música brasileira ao longo da sua obra, a ênfase recaiu sobre a música erudita e folclórica. A chamada canção de consumo, aquela difundida através do rádio, não mereceu maiores atenções de Mário de Andrade. 578. Show de bossa nova estrelado por Claudette Soares e Taiguara no Teatro Princesa Isabel, no Rio. Em determinado momento do espetáculo, Taiguara rasgava exemplares do livro Música popular: um tema em debate, de Tinhorão, e atirava as páginas numa cesta de lixo - para delírio da platéia. 579. José Ramos Tinhorão. Música popular: um tema em debate Rio de Janeiro: Saga, 1966, p.38.

580. Idem, p. 24. 581. Idem, p. 6. 582. Augusto de Campos. Balanço da bossa; antologia critica da moderna música popular brasileira. São Paulo: Perspectiva, 1968, p. 10. Dois dos artigos em que Augusto de Campos chama a atenção para a obra de Caetano Veloso e Gilberto Gil - "Boa palavra sobre a música popular" e "O passo à frente de Caetano Veloso e Gilberto Gil" - foram publicados originalmente no jornal Correio da Manhã, em 14-10-1966 e 19-11-1967, respectivamente. 584 Augusto de Campos, op. cit, p. 148. 585. Idem, p. 130. O trecho citado por Augusto de Campos encontra-se na página 70 do Manifesto do Partido Comunista. Karl Marx & Friedrich Engels. 10ª Edição-Petrópolis: Vozes, 2000. 586. Augusto de Campos, op. cit., pp. 144-145. 587. É com notório desprezo e ironia que nas páginas de seu livro Ruy Castro se refere a vários cantores populares não identificados à bossa nova como, por exemplo, Silvio Caldas, Vicente Celestino, Dalva de Oliveira, Herivelto Martins, Ataulfo Alves, Wilson Batista, Lupicínio Rodrigues e, principalmente, Luiz Gonzaga, o rei do baião, ritmo que "só servia como coreografia para se matar uma barata no canto da sala”. A geração de novos artistas surgida após a bossa nova (Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Roberto Carlos) não merece melhor tratamento no livro, com exceção daqueles que se deixavam acompanhar por Edson Machado ou Milton Banana à bateria. Aliás, o autor confessa que “nunca se conformou quando o Brasil começou a trocar a Bossa Nova por exotismos". Ruy Castro. Chega de saudade: a história e as histórias da bossa nova, op. cit, p.15. 588. "Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação. Dizer que o samba só

se faz com frigideira, tamborim e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema". A idéia de Caetano Veloso foi expressa em uma mesa redonda sobre música popular brasileira promovida pela Revista Civilização Brasileira e transcrita sob o título "Que caminho seguir na música popular brasileira". Revista Civilização Brasileira Nº 7, maio, 1966, p. 378. Em sua fala, Caetano Veloso procurava responder às idéias expressas por José Ramos Tinhorão no livro Música popular: um lema em debate, lançado naquele mesmo ano. 589. Ver, por exemplo, Muniz Sodré. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Codecri, 1979; Hermano Vianna. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Zahar, 1995; Nei Lopes. O samba na realidade... Rio de Janeiro: Codecri, 1981; Beatriz Borges. Samba-canção: fratura e paixão. Rio de Janeiro: Codecri, 1982; Monique Augras. O Brasil do samba-enredo. Rio de Janeiro: FGV, 1989; Luiz Fernando de Carvalho. Ismael Silva: samba e resistência. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980; Pedro Alexandre Sanches. Tropicalismo: decadência bonita do samba. São Paulo: Boitempo, 2000 590. Um exemplo disto é o livro A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras, vol. 2 (19581985), no qual os autores relacionam as canções que, segundo eles, "o povo brasileiro consagrou através dos anos". Era de se esperar que, pelo menos desta vez, a produção musical de nomes como Paulo Sérgio, Odair José e Waldik Soriano aparecesse com algum destaque, visto que esses artistas são reconhecidamente populares em todo o Brasil e, principalmente no período de 1968 a 1978, produziram diversas canções de sucesso. Entretanto, embora afirmem que no livro foram incluídos dois tipos de canções- "as que obtiveram sucesso ao serem lançadas, não importando sua qualidade ou permanência, e as que não obtiveram sucesso imediato, mas, em razão de sua qualidade, acabaram por merecer a consagração popular" - , constata-se que, pelo menos para os anos 68/78, eles privilegiaram claramente o segundo tipo; ou seja, aquelas canções que eles julgam de "qualidade" (leia-se, identificadas à "tradição" ou à "modernidade"). Só isto explicaria o fato de que para aquele período sejam creditados a Chico Buarque 29 composições de sucesso e a Waldik Soriano, apenas

3. Já Caetano Veloso aparece com 21 sucessos; Odair José com 6. E até mesmo a um representante da velha guarda, o compositor Cartola, para o período 68/78 lhe são atribuídas 9 canções de sucesso; ao cantor Lindomar Castilho, nenhuma. Ver Jairo Severiano & Zuza Homem de Mello. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras, vol. 2 (19581985). São Paulo: Ed. 34,1998. 591. Os dois únicos livros publicados até agora destacando artistas desta geração de cantores/compositores "cafonas" – A vida de Waldik Soriano: minhas lutas e minhas glórias, op. cit., e O pequeno gigante da canção: a vida de Nelson Ned, op. cit. - são na verdade a edição de duas longas entrevistas encomendadas pelos dois cantores: a de Waldik Soriano ao seu "amigo de longa data" Bernadino de Campos e a de Nelson Ned ao pastor Jefferson Magno Costa, que aparecem como co-autores de cada uma dos trabalhos. 59~ Ricardo Cravo Albin. MPB - a história de um século. Rio de Janeiro: Funarte; São Paulo: Atração Produções Ilimitadas, 1997, p. 16. 593. Idem, pp. 436-437. 594. História do samba. São Paulo: Ed. Globo, 1997, capítulo 1, p.5. 595. MPB compositores. São Paulo: Ed. Globo, 1996, texto de contracapa dos fascículos. 596. Vários autores. 500 anos da música popular brasileira. Rio de Janeiro: MIS/Faperj, 2001, p.10. 597. A lista completa de todos os livros didáticos de História analisados encontra-se na última parte deste trabalho (Fontes e bibliografia ). 598 O livro Acorde na aurora: música sertaneja e indústria cultural, de Waldenyr Caldas, é uma exceção na historiografia. Ali o autor analisa a obra de duplas sertanejos urbanizadas, com destaque para o trabalho de Léo Canhoto e Robertinho, ou seja, artistas não identificados à "modernidades ou à "tradição", nem mesmo à música caipira. Entretanto, bastante influenciado pela teoria apocalíptica de Adorno (o livro é de 1977), o autor

analisa esta produção musical para concluir que "ela possui o barbitúrico da alienação que causa a ação hipnógena sobre a consciência proletária, embotando-a de tal modo que a sua realidade concreta já não pode ser percebida. Assim, os laivos deixados pelo barbitúricos da canção sertaneja nublam ainda mais o viver sombrio do proletariado paulista, e, por extensão, do próprio proletariado brasileiro". Waldenyr Caldas. Acorde na aurora; música sertanejo e indústria e cultural. 2ª ed. São Paulo: Nacional, 1979, p. 25, 26. 599. Presidido por Ricardo Cravo Albin, o Conselho Nacional de Música Popular Brasileira do MIS era composto de 40 integrantes, entre os quais se incluíam José Ramos Tinhorão, Sérgio Cabral, Ari Vasconcelos, Lúcio Rangel, Hermínio Bello de Carvalho, Guerra-Peixe, Jacob do Bandolim, Almirante, Sergio Porto e Mozart de Araújo. 600. Alcir Lenharo. Cantores do rádio: a trajetória de Nora Ney eJorge Goular e o meio artístico de seu tempo. Campinas: Ed. Unicamp, 1995, p. 8. 601. O crítico musical Tárik de Souza, em texto que acompanha um CD de Jorge Goulart, destaca que o cantor "foi bem-sucedido tanto nos embalos carnavalescos quanto nos sambas. Sua interpretação definitiva de A voz do morro praticamente entronizou o sambista Zé Keti". CD “Jorge Goulart” (Coleção Mestres da MPB) Warner Music - P. 1995. 602. Alcir Lenharo, op. cit., p. 111. 603. Registre-se que em 2001, ao completar 50 anos de carreira e quase 70 de idade, Cauby Peixoto conseguiu, finalmente, maior espaço na historiografia com o lançamento de sua biografia escrita pelo jornalista Rodrigo Faour. Bastidores: Cauby Peixoto, 50 anos da voz e do mito. Rio de Janeiro: Record, 2001. 604. Ver, por exemplo, Claudia Matos. Acertei no milhar: samba e malandragem no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982; Alexandre Augusto Gonçalves. Moreira da Silva: o último dos malandros. Rio de Janeiro: Record, 1996; Gilberto Vasconcelos & Matinas Suzuki Jr. “A malandragem e a formação da música popular brasileira". In Antonio

Flavio Pierucci (org.) O Brasil republicano: economia e cultura (19301964) 3a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995; Letícia Vianna. Bezerra da Silva: produto do morro: trajetória e obra de um sambista que não é santo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. 605. Ver Artur da Távola. "Nara Leão e a Bossa Nova" In Vozes do Rio: o sentir brasileiro na cultura carioca. Brasília: CDI (Camara dos Deputados), 1991; Gilberto Vasconcelos. “A musa popular brasileira" In op. cit. 606. O músico Almir Chediak, por exemplo, defende que "a música de Chico Buarque é sempre muito bonita e de harmonias elaboradas". Ver reportagem "Um autor cada vez mais sofisticado" O Globo, 4-9-1999. 607. Sérgio Cabral afirma que em Chico Buarque “o letrista novo produz o melodista novo. E tudo vira inovação.” (Texto de contracapa do LP "Chico Buarque” - 20 anos de sucesso" - Elenco 111996.) A exaltação do letrista Chico Buarque é compartilhada também pelos seguintes autores: Affonso Romano de Sant'anna. Música popular e moderna poesia brasileira. Petrópolis: Vozes, 1978; Anazildo Vasconcelos da Silva. A poética e a nova poética de Chico Buarque. Rio de Janeiro: Ed. Três A, 1980; Charles A. Perrone. Letras e letras da MPB. Rio de Janeiro: Elo, 1988; Adélia Bezerra de Meneses. Desenho mágico - poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Hucitec, 1982. 608. Istoé – “Chico Buarque: o músico do século". Edição especial, 12-31999. Segundo o texto de apresentação "a indicação dos vencedores obedeceu a um rigoroso processo. Primeiro, um júri de 30 personalidades indicou 30 destaques. A partir dessa lista, o leitor foi convocado a escolher os premiados, indicando sua preferência numa cédula encartada em “IstoÉ”. Do júri formado pela revista fizeram parte José Ramos Tinhorão, Sérgio Cabral, Nelson Motta, Tárik de Souza, Julio Medalha, entre outros.

609. "Tinhorão enterra todo mundo”- O Pasquim, 20 a 26-2-1973. Em seu livro Música popular: um tema em debate, Tinhorão também afirma que Tom Jobim chegou à canção popular "pela frustração das

ambições no campo da música erudita" e que ele é um compositor que "apropria-se de músicas norte-americanas e "esconde o nome Antonio sob o apelido americanizado de Tom". José Ramos Tinhorão, op., cit., p. 25. 610. “O bazar de Moraes Moreira"- Nova, novembro de 1980. 611. "Morte do líder ameaça o maracatu atômico”- Jornal do Brasil, 4-21997. 612. Rodas de leitura: Nelson Motta - Centro Cultural Banco do Brasil, 31-2001. (Acervo Arquivo Histórico CCBB.) Na mesma palestra Nelson Motta também faz rasgados elogios ao CD “Tanto tempo" de Bebel Gilberto, justificando que "o disco da Bebel tem um pé no passado, na melhor tradição brasileira, e um pé no futuro. Por isso é que eu acho interessante". 613. CDs "Marisa Monte"”EMI-Odeon P. 1988/ "Mais" -EMI - P. 1990/ "Verde anil amarelo cor de rosa e carvão" - EMI –P. 1994/ "Barulhinho bom" - EMI - P.1996/ "Memórias, crônicas e declarações de amor"- EMI P. 2000. 614. Em seus shows Marisa Monte tem se permitido uma maior abertura musical com a inclusão de alguns números como, por exemplo, Conga, Conga, Conga, antigo sucesso de Gretchen. Entretanto, como ela mesma afirma, "cantei esta música num show, mas nunca a gravaria. Show é uma coisa mais efêmera, mais etérea. Ele fica registrado apenas nas retinas e na mente das pessoas". Ver reportagem "Marisa Monte juntando talentos, revelando tesouros" - A Tarde, 11-9-1994. 615. "Os cafonas também são geniais" - Folha de S. Paulo, 12-11-1983. 616. CD "Caetano Veloso: um bate-papo exclusivo" - Universal / Shopping Music- s.d. 617. “A voz dos exagerados"- Jornal do Brasil, 9-5-1993. 618. "Marisa Monte mais suave, mais doce"- A Tarde, 26-5-1991.

619. LP "Programa de rádio Agnaldo Timóteo - Continental , P. 1990. 620. Augusto de Campos, op. cit., pp. 179-180. 621. Idem, p. 190. 622. Versos de “Quem há de dizer”. Ver índice de canções citadas em Fontes e bibliografia. O programa de televisão com João Gilberto, do qual também participaram Caetano Veloso e Gal Costa, foi gravado pela TV Tupi em agosto de 1971. 623. É com este adjetivo que Ruy Castro contrasta as letras de canções de Lupicínio Rodrigues às da bossa nova. Ruy Castro. Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova, õp. cit., p. 132. 624. Para esta redescoberta de antigos sambistas muito contribuiu também o trabalho do cantor João Gilberto, que desde o seu primeiro LP na Odeon, em 1959, sempre incluía algum samba antigo: Aos pés da cruz (Marino Pinto-Zé da Zilda); A primeira vez (Bide-Marçal); Bolinha de papel (Geraldo Pereira) e outros. 625. A primeira e única publicação daquele período a dar espaço aos lançamentos de música popular foi a revista Phono Arte, empreendimento dos jornalistas Cruz Cordeiro e Sérgio Vasconcelos que, entretanto, circulou apenas até o número 50 (fevereiro de 1931). Cf. Sérgio Cabral. ABC do Sérgio Cabral: um desfile de craques da MPB. Rio de Janeiro: Codecri, 1979, pp. 140-143. 626. Teixeira Coelho. O que é indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 23. 627. Vídeo Circulado ao vivo´/i] Caetano Veloso – Polygram/Vídeo Filmes - P. 1992. 628. "O amor em espanhol e português"- O Globo, 2-9-1998. 629. A importância da América Latina para a estratégia dos Estados Unidos na Segunda Guerra levou o governo Roosevelt a propalar a defesa hemisférica como necessidade para o combate ao inimigo externo. Como parte deste projeto, a "política de boa vizinhança", inaugurada pelo

Departamento de Estado em 1933, pregava o intercâmbio cultural entre as repúblicas americanas - o que favoreceu a carreira internacional de vários artistas latinos, entre os quais Xavier Cougat, Tito Guizar, Dolores Del Rio, Lupe Vélez, Carole Lombard e, principalmente, Carmen Miranda, "a musa da política de boa Yizinhança". Ver Ana Rita Mendonça. Carmen Miranda foi a Washington. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 65. 630. "O tamanho do sucesso: apenas um metro e meio" - Última Hora, 1-21982. 631. Nelson Ned d'Ávila Pinto & Jefferson Magno Costa, op. cit., p. 79. 632. Manchete citada na reportagem "Nelson Ned faz sucesso na Colômbia" - Jornal do Brasil, 13-2-973. 633. "Ned no (ex?) templo da bossa" - Jornal do Brasil, 2-6-1974. 634. O fracasso do show de bossa nova no Carnegie Hall foi sustentado pela revista O Cruzeiro na reportagem "Bossa nova desafinou nos EUA" (O Cruzeiro, 8-12-962), e por José Ramos Tinhorão no livro O samba agora uai... a farsa da música popular no exterior. Rio de Janeiro: JCM, 1969, pp. 106-107. Já o sucesso dos bossa-novistas - na verdade, os aplausos ocorreram durante todo o show"- é enfatizado por Ruy Castro no livro Chega de saudade: a história e as histórias da Bossa Nova, op. cit. p. 330. 635. "O estrangeiro" - Veja, 26-6-1974. 636. "Nelson Ned: 'Quando canto, as pessoas sentem que meu tamanho é apenas um detalhe físico"”Correio Braziliense, 16-3-1982. 637. "Ned, muito acima da vã filosofia" - Folha de S. Paulo, 31-1-1982. 638. Conforme informação de Ruy Castro. "Os cafonas também são geniais" - Folha de S. Paulo, 12-11-1983. 639. Programa Conexão Internacional - Rede Manchete, Setembro de 1983 (Acervo de videoteca do Museu da Imagem e do Som).

640. Na primeira edição da Enciclopédia da música brasileira, publicação de 1977 - ano em que esta geração de artistas "cafonas" ainda ocupava espaço na mídia - foram induídos os verbetes de Timóteo, Waldik, Odair José, Nelson Ned e Paulo Sérgio. A segunda edição, lançada em 1998, embora atualizada com 400 novos verbetes, não acrescentou nenhum outro "cafona" àquela lista, permanecendo de fora da enciclopédia nomes como Wando, Benito di Paula, Luiz Ayrão, Dom & Ravel, Claudia Barroso, Fernando Mendes, Claudio Fontana, Reginaldo Rossi e outros. 641. Marilena Chauí Cultura e democracia; o discurso competente e outras falas op. cit., pp 3-13.

CAPÍTULO FINAL:

O JOGO DA MEMÓRIA

(FLORES E CANÇÕES À BEIRA DO TÚMULO DE PAULO SÉRGIO)

“Ele não morreu, estará sempre vivo na história da música popular brasileira” (Jeni Macedo Lessa)

Embora esquecida pelos "enquadradores" da memória da nossa música popular, a produção musical "cafona” permanece guardada em determinadas estruturas de comunicações informais e, a partir da análise de certos dados, é possível comprovar que ela é patrimônio afetivo de grandes contingentes da população brasileira. Afinal, a maioria dos artistas desta geração, mesmo afastada da programação diária das principais emissoras de rádio e TV ou dos grandes palcos do Rio e de São Paulo, prossegue cantando suas canções em shows por todo o país. Como destaca o cantor Luiz Ayrão, "não estamos na mídia, mas continuamos trabalhando. Faço show todo fim de semana. Se não tiver passagem aérea, vou dirigindo” (642) Além deste contato direto com o público, estes cantores são ouvidos principalmente através de discos, fitas e agora CDs. E coletâneas reunindo os principais sucessos de Paulo Sérgio, Evaldo Braga, Odair José e outros estão freqüentemente em catálogo e à disposição do público nas lojas de disco. O compositor Nenéo, que teve várias de suas composições lançadas pelo cantor Paulo Sérgio ao longo dos anos 70, e hoje grava com grupos de pagode e duplas sertanejos, afirma que as antigas gravações de Paulo Sérgio continuam lhe rendendo um bom direito autoral. "Tem músicas que eu gravei com ele naquela época que me rendem mais dinheiro no fim do mês do que algumas das que eu gravo atualmente. O Paulo Sérgio continua vendendo disco." De fato, este popular cantor e compositor capixaba, falecido precocemente em 1980, emerge como um emblema da permanência da lembrança da obra musical desta geração de artistas entre determinados segmentos da sociedade brasileira. E, para demonstrar isso, basta ver o culto que os fãs realizam à sua memória, ou seja, à memória do ex-alfaiate que durante toda

a sua carreira artística foi considerado pelos críticos apenas um replicante musical de Roberto Carlos. Após a grande repercussão de seu primeiro LP em 1968, Paulo Sérgio manteve-se regularmente nas paradas de sucesso e com boas vendagens de discos até o fim da década de 70. Mas sempre se apresentando em espaços populares: circos, clubes do subúrbio e programas de auditório como os de Chacrinha, Bolinha e Raul Gil E foi exatamente entre um programa de auditório e o palco de um circo que ele cantou pela última vez. Era um dia de domingo, 29 de julho de 1980. À tarde, Paulo Sérgio esteve na TV Bandeirantes participando mais uma vez do Programa do Bolinha, que naquela data comemorava 13 anos no ar No fim do programa, entretanto, houve um desentendimento entre o cantor e uma das freqüentadoras do auditório. As versões sobre a causa deste desentendimento são contraditórias. As pessoas próximas a Paulo Sérgio afirmam que a senhora Oneida Maria Xavier, na época com 27 anos, casada, residente em São Paulo, tentou se aproximar do cantor e foi rechaçada; ela, por sua vez, afirma que o cantor tentou seduzi-la e, com a negativa, ficou irritado, gerando o bate-boca. "Ele começou a me xingar e me chamou de prostituta. Para irritá-lo, retruquei que ele era um péssimo cantor e que Roberto Carlos era muito melhor do que ele. Ele ameaçou me matar e passar o carro por cima de mim. Quando deixei o teatro, ele abandonou seu carro e correu atrás de mim. Me refugiei na porta de um prédio, enquanto as pessoas o seguravam. Fui depois, dar queixa no 5° Distrito” (643) O fato é que naquele fim de tarde de domingo Paulo Sérgio saiu do programa do Bolinha bastante abalado, dirigindo-se para Santo Amaro, região da Grande São Paulo, onde realizou apresentação em um circo. Embora já demonstrasse evidentes sinais de não estar se sentindo bem, à noite o cantor seguiu para a cidade de Itapecerica da Serra, onde mais tarde faria show em um outro circo. Sueli Coutinho, na época uma das "pauletes" (bailarinas que faziam a coreografia dos shows de Paulo Sérgio), relata como foi esta derradeira apresentação do cantor. "Pouco antes de começar o show, ele já sentia forte dor de cabeça. Logo depois de cantar a

primeira música, levou a mão à fronte e começou a empalidecer. Foi para o seu ônibus-camarim, pedindo ajuda. Dei-lhe dois comprimidos. Ele começou a babar e balbuciar. Entrou em coma no próprio camarim e saiu de lá na ambulância." (644) Levado às pressas para o hospital, Paulo Sérgio foi direto para a UTI, morrendo horas depois de aneurisma cerebral. Tinha 36 anos e 13 LPs gravados. Levado para o Rio de Janeiro, onde residiam seus pais, o corpo do cantor foi enterrado no Cemitério São Francisco Xavier, no Caju. E, desde então, a imprensa vem registrando que o túmulo de número 30.831 da quadra 14, que pertence a Paulo Sérgio, é sempre um dos mais visitados do Rio de Janeiro no Dia de Finados. Com uma área de 864 mil metros quadrados, o cemitério do Caju, como é mais conhecido, é um dos maiores da América Latina, e abriga em seu solo cerca de 500 mil túmulos distribuídos e organizados segundo uma hierarquia da própria sociedade (pobres, remediados e ricos). Ali estão sepultados os ex-presidentes da República Hermes da Fonseca e Prudente de Morais, os atores Procópio Ferreira e Oscarito e vários ídolos da nossa música popular: Noel Rosa, Orlando Silva, Cartola, Wilson Batista, Lamartine Babo, Jackson do Pandeiro, Dolores Duran, Newton Mendonça, Miguel Gustavo e, mais recentemente, o "síndico" Tim Maia e o mangueirense Carlos Cachaça. Mas é ao túmulo do cantor Paulo Sérgio que um número maior de pessoas acorrem para prestar homenagens a cada dia 2 de novembro.

E o registro do fenômeno aparece anualmente na imprensa. Em 1981, por exemplo, o jornal O Dia informava que "Entre os ídolos mais festejados

no Dia de Finados está o cantor Paulo Sérgio, falecido em 1980. Ontem um grupo de mais de 40 pessoas, vindas de São Paulo, realizou uma grande homenagem ao cantor, junto ao seu túmulo, no cemitério do Caju. Capas de discos, reportagens publicadas e fotos de todos os tamanhos e tipos foram espalhados pela sepultura, ao lado de faixas. Uma delas dizia: 'Paulo Sérgio, seus fãs sentem muita saudade; você vive em nós através de suas canções"'. (645) No ano seguinte, com o título de “Fãs não esqueceram o cantor Paulo Sérgio", a reportagem do jornal O Dia voltou a registrar a homenagem, agora com a presença de um número maior de pessoas. "O túmulo do cantor Paulo Sérgio, falecido em 1980, foi o que reuniu maior número de visitantes no Caju. Um grupo de 50 moças vindas especialmente de São Paulo ficou todo o tempo ao lado do mausoléu do artista; pregaram faixas, cartazes e tocaram discos do cantor, com seus maiores sucessos. Às 10 horas foi feita uma homenagem, quando o cantor Gilson Monteiro cantou música especialmente feita para o ídolo. Enquanto ele cantava as fãs choravam e tinham crises nervosas." (646) Além de Gilson Monteiro, outros nomes da música romântica das décadas de 80 e 90 também gravaram canções em homenagem a Paulo Sérgio, fato que confirma a importância do trabalho do cantor para uma nova geração de artistas agora chamados de "bregas". E um primeiro exemplo é a composição Tributo a Paulo Sérgio, na qual o cantor Paulo Moraes recorda o seu cantato inicial com a música do ídolo: "Já faz muitos anos / que num clube eu ouvi uma canção / falava juras de amor / palavras lindas do coração / parei pra perguntar / o nome daquele cantor / foi quando eu ouvi o delírio das fãs / gritando 'Paulo Sérgio chegou!..."' Na balada Lembranças de um amigo, o cantor Luis Geraldo também evoca esta primeira audição e fala da importância da música de Paulo Sérgio em sua vida: "Há muito tempo atrás eu lhe conheci / cantando no rádio o que eu precisava ouvir/ dancei suas músicas / cantei suas canções / o tempo passou / relembro as emoções..." E na canção Lembranças de um ídolo, o cantor Tarcys Andrade faz seu relato do impacto da morte de Paulo Sérgio: "No dia em que você partiu / um povo chorou / chorou sentindo

a falta de você. ." Ausência e saudade que permanecem e se explicitam a cada Dia de Finados no cemitério do Caju. Em 2 de novembro de 1987 sete anos após a morte de Paulo Sérgio - lá estão os jornais novamente a registrar o fato. "No túmulo do cantor Paulo Sérgio a movimentação era intensa. Centenas de fãs colocavam pôsteres, ligavam vitrolas com discos do cantor e conversavam sobre sua vida. Uma caravana de admiradores de São Paulo distribuía letras de suas músicas e Jeni Macedo Lessa e seu marido Candido da Silva Lessa, tios do cantor, explicavam que ele estava vivo na lembrança de todos. 'O Paulo era muito querido, hoje toda a nossa família virá aqui. Ele não morreu, estará sempre vivo na história da música popular brasileira"'. (647) É claro que a "história" a qual os tios do cantor se referem não é a mesma que é escrita por aqueles que se notabilizaram como historiadores da nossa música popular, para quem o nome Paulo Sérgio não tem nenhum significado ou importância. Mas o processo social é assim mesmo, afinal, vivemos em uma sociedade de classes e a versão histórica que sobressai é geralmente a das classes dominantes, das quais os fãs de Paulo Sérgio não fazem parte. E por isso eles resistem, trazendo ao conhecimento da sociedade uma história até então silenciada, ocultada, negada. Se nas manifestações de 1981 os jornais registram a presença de um grupo de 40 moças vindas de São Paulo, e na de 1982, um grupo de 50, nesta última citada, a de 1987, registram a participação de caravanas e a presença de centenas de fãs. O tempo passa e o culto à memória de Paulo Sérgio parece aumentar.

Um aspecto que ao longo desses anos a imprensa também permite verificar é o contraste entre a movimentação em torno do túmulo de Paulo Sérgio e o relativo abandono dos túmulos de outros ídolos da música popular brasileira enterrados no cemitério do Caju. No mesmo dia em que o Jornal do Brasil informa que o túmulo de Paulo Sérgio "amanheceu enfeitado de palmas, rosas e agapantos", (648) a reportagem do jornal O Dia registra "como nota triste, a sepultura de Dolores Duran, esquecida e empoeirada. A autora de versos como 'eu quero a rosa mais linda que houver / para enfeitar a noite de meu bem' passou o Dia de Finados sem que uma só flor fosse colocada no mármore frio que a esconde." (649)

Em outro ano novamente a imprensa constata que no túmulo de Paulo Sérgio, "decorado com flores, fofos e faixas", houve "vigília durante todo o dia", mas que "a sepultura de Noel Rosa estava mais abandonada do que nos anos anteriores. E a de Cartola foi caiada e pintada às pressas, na véspera, por dois funcionários da Santa Casa de Misericórdia". (650) O contraste mais evidente, porém, se verifica na movimentação em torno dos túmulos de Paulo Sérgio e o do cantor Orlando Silva. Isso porque, por um desses caprichos do destino, os túmulos dos dois artistas encontram-se colocados frente a frente no mesmo cemitério. Paulo Sérgio e Orlando Silva. Orlando Silva e Paulo Sérgio. O "cantor das multidões" e o "cantor das empregadas". O ex-alfaiate e o ex-cobrador de bonde. Dois brasileiros de origem humilde, dois cantores românticos, dois ídolos populares em tudo o mais tão diferentes e que agora repousam bastante próximos na mesma quadra 14 do cemitério do Caju. Mas ali, sob a lápide fria que os encobre, o "cantor das multidões" é agora Paulo Sérgio. Na mesma reportagem que informa que no túmulo de Paulo Sérgio "a movimentação era intensa" com a presença de "centenas de fãs", o jornal O Dia descreve que no túmulo de Orlando Silva havia apenas dois solitários fãs reverenciando a sua memória: "Edna Brandão, de 69 anos, residente em Olaria, e conhecedora de todas as músicas do cantor, ficou alguns minutos rezando sobre sua sepultura. Depois chegou outro fã, Israel Barcelos, de 60 anos, morador de Bento Ribeiro", que protestou: "Eu estou revoltado. É um absurdo que um nome da importância de Orlando Silva não seja lembrado num dia como este. O brasileiro tem memória curta." (651) Não se deduza daí que o cantor Orlando Silva ou nomes como Noel Rosa, Cartola e Dolores Duran estejam hoje esquecidos na sociedade brasileira. Afinal, cada um desses artistas tem as suas principais canções freqüentemente cantadas e citadas, são objetos de estudos acadêmicos, possuem biografias publicadas, estão com a sua produção musical catalogada em museus e, de tempos em tempos, tem a sua vida e obra analisadas em artigos de jornais e retratadas em musicais de teatro e especiais de televisão. O que os diferencia em relação a Paulo Sérgio é o espaço onde são cultuadas suas memórias e o grupo social que lhes dá suporte. O culto à memória de Paulo Sérgio alcança maior visibilidade no cemitério do Caju

porque este é único espaço possível para os seus fãs, que pertencem àquele grande segmento da sociedade brasileira que não tem acesso à universidade, não trabalha nas redações de jornais, não produz programas de televisão, não organiza museus ou centros culturais, não escreve livros e nem teses acadêmicas. Já grande parte dos admiradores da obra de Noel Rosa, Cartola, Orlando Silva e Dolores Duran se situa hoje num segmento de classe média urbana que dispõe de todos estes meios para dar visibilidade à memória de seus ídolos e não precisa do cemitério. Se hoje o túmulo de Orlando Silva fica vazio nos dias de finados é porque a maioria daqueles brasileiros de origem humilde que fizeram dele "o cantor das multidões" e com ele tiveram uma relação intensa e profunda, morreram junto com ele, já que a expectativa de vida no Brasil até bem pouco tempo atrás não passava dos 60 anos. O próprio Orlando Silva viveu este limite, falecendo em 1978, aos 62 anos. Então, neste sentido, não é que o brasileiro tenha memória curta; ele tem é vida curta. Os dois solitários fãs do subúrbio carioca que estão à beira do túmulo de Orlando Silva em 1987 são talvez sobreviventes daquela multidão que o acompanhava no fim dos anos 30. E eles têm em comum com os fãs de Paulo Sérgio a origem social e a identificação com os valores de um Brasil mais tradicional, de raízes interioranas, que conserva esta tradição do culto à memória dos entes queridos no Dia de Finados. Como enfatiza à beira do túmulo de Paulo Sérgio a fã Adelina Macedo, que todos os anos organiza uma caravana de admiradores que viaja de São Paulo ao Rio de Janeiro: "Enquanto viver, não deixo de prestar minha homenagem ao Paulo Sérgio." (652) Esta devoção ao cantor pode ser antevista na grande aglomeração ocorrida no dia do seu sepultamento, em 30 de julho de 1980. Embora nenhum dos principais jornais do Rio e de São Paulo tenha dado qualquer destaque à notícia da morte de Paulo Sérgio - - o Jornal do Brasil e O Estado de S. Paulo sequer noticiaram o fato - , as cenas ocorridas no dia do seu sepultamento mereceram manchete. Com o titulo de "Multidão em desespero no enterro do artista", a reportagem do jornal O Dia informava que "mais de 2.000 pessoas compareceram ao enterro do cantor Paulo Sérgio e provocaram um dos maiores tumultos já registrados no cemitério do Caju. As fãs, que chegaram a quebrar as portas da capela onde o corpo estava sendo velado, tiveram que ser contidas por um grupo do Batalhão de Choque da PM (...) A chegada do corpo já provocou o primeiro tumulto.

Familiares e amigos, ajudados por uns poucos policiais, tentaram formar um cordão de isolamento, mas não conseguiram conter a grande massa humana, que exigia que o caixão fosse aberto. Foi solicitado reforço policial e para lá se dirigiram um grupo do Batalhão de Choque da PM e elementos do 4° Batalhão (...) Os soldados presentes só conseguiram retirar o corpo na hora do sepultamento, com muito esforço, fazendo um isolamento humano com ajuda de cordas (...) No momento em que era colocada a tampa na sepultura do cantor, milhares de fãs começaram a cantar a música Ultima canção (...) Os policiais ficaram até o final das cerimônias e só receberam ordens de se retirar depois que a última fã deixou o cemitério. Eles diziam que, em vista do ambiente, quase de loucura, temiam que as mulheres tentassem desenterrar o cadáver e quebrar a tampa da urna." (653) Para concluir, avancemos a escala do tempo. Vamos agora para os anos 90, era da pós-modernidade, da globalização, do neoliberalismo, da decretação do fim da História e de todas as utopias. Mais de uma década após o enterro de Paulo Sérgio e lá estão os seus admiradores a provar que a História não acabou. "O túmulo de Paulo Sérgio é o mais visitado no Caju, apesar de lá estarem enterradas celebridades como o ex-presidente da república Prudente de Morais. A balconista Adibe Menezes, 30 anos, conterrânea do cantor, afirmou que só veio morar no Rio porque é aqui que está o túmulo de Paulo Sérgio." A mesma reportagem informava que o pedreiro Edvan Pereira de Assis, 39 anos, que dirige o fã-clube do artista no Rio, chegou ao cemitério às 5 horas, munido de toca-fitas, faixas e flores. "Há seis anos que eu venho aqui e passo o dia ouvindo música. A de que mais gosto é Ultima canção, comentou o fã." (654) Um pedreiro, dirigente do fã-clube, e uma balconista, que engrossa as estatísticas de migração interna só para ficar mais próxima ao túmulo de seu ídolo, são indicações de que segmento da população brasileira cultua até os dias de hoje a memória do cantor Paulo Sérgio. E se pensarmos na quantidade de tantos outros pedreiros, balconistas, garçons, porteiros empregadas domésticas espalhados pelos mais longínquos recantos do Brasil e que provavelmente gostariam de participar das homenagens ao cantor no Rio de Janeiro e não podem - , é possível chegar à conclusão de que estamos diante de um fenômeno: o fenômeno Paulo Sérgio.

E este fenômeno por si só já revela o fosso que separa a memória de grupos sociais marginalizados da memória nacional dominante. Revela ainda os limites do processo de "enquadramento da memória", referido por Michael Pollak. A maior parte dos críticos, pesquisadores e divulgadores de histórias da música popular brasileira procura sempre ressaltar nomes como os de Cartola, Candeia, Clementina de Jesus, Dick Farney, Lúcio Alves todos identificados à "tradição" ou à "modernidade” -, mas é a um representante da canção popular "cafona" que espontaneamente ano após ano um número maior de brasileiros dirige as suas homenagens. É como se estes brasileiros insistissem em conservar justamente aquilo que os profissionais de uma memória coletiva nacional decidiram esquecer. Mas este fato é apenas mais um sintoma do grande divórcio existente entre elite e povo no Brasil. Além de excluídos dos benefícios do sistema econômico, para grandes contingentes da população brasileira não lhes resta nem o registro da sua história, dos seus ídolos, dos seus intérpretes. Por isso mesmo, ao realizar anualmente à beira do túmulo de Paulo Sérgio uma espécie de ritual em homenagem ao ídolo falecido em 1980, seus fãs realizam também um ato de resistência. Eles dão visibilidade a uma memória que se encontra subterrânea, sem canais de expressão e desprovida de "enquadradores". Em um esforço contrário ao movimento de silenciamento e esquecimento empreendido pelas elites culturais do país, os fãs de Paulo Sérgio formam, assim, uma espécie de memória underground, que segue viva no cemitério, nos cabarés, nos barracas e nas casas simples com cadeiras na calçada em subúrbios de todo o Brasil.

FIM

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS (CONFORME NUMERAÇÃO SEQUENCIAL EXISTENTE NO CAPÍTULO):

642. “A hora e a vez do brega" - Jornal do Brasil, 3-6-1999.

643. “A verdade sobre a morte de Paulo Sérgio" - Fatos & Fotos, 18-81980. Segundo o jornal O Dia, de 29-7-1980, consta de um boletim da 5ª Distrital de São Paulo que “Às 20 horas e 30 minutos de domingo, compareceu àquela delegacia Oneida Maria Xavier Loreto, acompanhada de quatro testemunhas para formalizar uma queixa- crime de ameaça de morte contra o cantor Paulo Sérgio". 644. “A verdade sobre a morte de Paulo Sérgio" - Fatos & Fotos, 18-81980. 645. "Fãs de Paulo Sérgio lembram o seu ídolo" - O Dia, 3-11-1981. 646 "Fãs não esqueceram o cantor Paulo Sérgio" - O Dia, 3-11-1982. 647. "Cardeal lembra em missa o lado misterioso da vida” - O Dia, 3-111987. 648. "Cemitérios recebem 2 milhões de pessoas no Dia de Finados" - Jornal do Brasil, 3-11-1980. 649. "Dom Eugênio lembra verdade básica no Dia de Finados” - O Dia, 311-1980. 650. “Finados leva a cemitérios do Rio 1 milhão 150 mil" - Jornal do Brasil, 3-11-1983. 651. "Cardeal lembra em missa o lado misterioso da vida" - O Dia, 3-111987. 652. "Finados leva mais de 1,5 milhão de pessoas ao Caju" - Jornal do Brasil, 3-11-1991. 653. "Multidão em desespero no enterro do artista" - O Dia, 31-7-1980 654. "Show no túmulo de Paulo Sérgio" - O Dia, 3-11-1992.