Esquecidos e Superestimados

Table of contents :
OdinRights
Capa
Folha de Rosto
Sumário
Prefácio – Literatura e verdade
Epígrafe
Apresentação
Capítulo 1 – À espera de justiça
Figuras complexas
Diálogos e descrições
Problemas
Capítulo 2 – Escondido e desprezado
Teoria do engrossamento
Linguagem e primitivismo
Fantasmas
Resposta ao enigma
Capítulo 3 – Combate interminável
Misterioso defunto
“Celeiro agreste”
Síntese e ampliação
Vencer e não vencer
Capítulo 4 – Perseguido, mas brilhante
Ilusória liberdade
Torpezas e amor
Diálogos e oratória
Desafio à história
Excelência
Capítulo 5 – Perfumaria bilaquiana
Clichês e elogios
Hipérboles
Ritmo ternário
Pequenos escritores
Tédio
Capítulo 6 – A salvação pelo duplo
Contar ou mostrar
Artimanhas e personagens
Doppelgänger
Luta
Capítulo 7 – Retorno à querência
Alegoria e epizeuxe
Anáfora e humor
O narrador ideal
Capítulo 8 – Manual de literatice
Extravagâncias
Verborragia
Naturalismo
Pedido de desculpas
Capítulo 9 – Salvo da banalidade
Destemor e covardia
Linguagem
Apuro
Língua portuguesa
Capítulo 10 – Canalhice e afetação
Difamadores
Falsa elegância
“Espuma inconsistente”
Capítulo 11 – Salvo pela ironia
Ouro falso
Acidez
Capítulo 12 – Ideologia e azedume
Homem estéril
Morte e vida
Condenação
Naturalismo
Capítulo 13 – Psicopatia e racismo
Crítica involuntária
Miscigenação e decadência
Descrições
Diálogos e cantilena
Narciso e Don Juan
Capítulo 14 – Injustamente esquecido
Fisgar o leitor
O traçado
Desenlaces
Tempo e consciência
Capítulo 15 – Corrosivo e sempre contemporâneo
Audácia editorial
Sem artificialismos
Riso e desprezo
Retrato do Brasil
Literatura e demonologia
Fracos e fortes
Desequilíbrio
Gótico
Sarcasmo
Sintaxe e humor
Pré-modernista?
Capítulo 16 – O filho tardio de Alencar
Filas de adjetivos
Idealização e melodrama
Linguajar e esquematismo
Lacunas e romantismo
Bom humor e Iracema
Estilo bombástico
Dois gaúchos
Capítulo 17 – Sobriedade e sutileza
Papéis invertidos
Metáfora
Capítulo 18 – Equívocos e retórica
Escolhas repreensíveis
Debilidades
Sinceridade
Créditos
Sobre o Autor
Sobre a Obra

Citation preview

Rodrigo Gurgel

ESQUECIDOS & SUPERESTIMADOS Prefácio de Jessé Almeida Primo

SUMÁRIO

Capa Folha de Rosto Prefácio – Literatura e verdade Epígrafe Apresentação Capítulo 1 – À espera de justiça Figuras complexas Diálogos e descrições Problemas Capítulo 2 – Escondido e desprezado Teoria do engrossamento Linguagem e primitivismo Fantasmas Resposta ao enigma Capítulo 3 – Combate interminável Misterioso defunto “Celeiro agreste” Síntese e ampliação Vencer e não vencer Capítulo 4 – Perseguido, mas brilhante Ilusória liberdade Torpezas e amor Diálogos e oratória Desafio à história Excelência Capítulo 5 – Perfumaria bilaquiana Clichês e elogios

Hipérboles Ritmo ternário Pequenos escritores Tédio Capítulo 6 – A salvação pelo duplo Contar ou mostrar Artimanhas e personagens Doppelgänger Luta Capítulo 7 – Retorno à querência Alegoria e epizeuxe Anáfora e humor O narrador ideal Capítulo 8 – Manual de literatice Extravagâncias Verborragia Naturalismo Pedido de desculpas Capítulo 9 – Salvo da banalidade Destemor e covardia Linguagem Apuro Língua portuguesa Capítulo 10 – Canalhice e afetação Difamadores Falsa elegância “Espuma inconsistente” Capítulo 11 – Salvo pela ironia Ouro falso Acidez Capítulo 12 – Ideologia e azedume Homem estéril

Morte e vida Condenação Naturalismo Capítulo 13 – Psicopatia e racismo Crítica involuntária Miscigenação e decadência Descrições Diálogos e cantilena Narciso e Don Juan Capítulo 14 – Injustamente esquecido Fisgar o leitor O traçado Desenlaces Tempo e consciência Capítulo 15 – Corrosivo e sempre contemporâneo Audácia editorial Sem artificialismos Riso e desprezo Retrato do Brasil Literatura e demonologia Fracos e fortes Desequilíbrio Gótico Sarcasmo Sintaxe e humor Pré-modernista? Capítulo 16 – O filho tardio de Alencar Filas de adjetivos Idealização e melodrama Linguajar e esquematismo Lacunas e romantismo Bom humor e Iracema

Estilo bombástico Dois gaúchos Capítulo 17 – Sobriedade e sutileza Papéis invertidos Metáfora Capítulo 18 – Equívocos e retórica Escolhas repreensíveis Debilidades Sinceridade Créditos Sobre o Autor Sobre a Obra

PREFÁCIO

Literatura e verdade

Não obstante a obviedade da afirmação, a forma explicita o conteúdo. Claro está que isso não é uma obrigação circunscrita a textos literários, mas a qualquer outro que busque comunicar algo. Dessa maneira, não é por acaso que o autor deste volume também dedica sua crítica às obras de prosadores que militaram em nome de alguma causa, como o pensador católico Jackson de Figueiredo e o polemista anti-republicano – e divertidíssimo – Carlos de Laet, e escreve a sua “história da inteligência brasileira”. É salutar, por sua vez, que numa nação haja um número significante de indivíduos com inteligência ao menos mediana, cuja formação dê estímulo ao que se produz, ou o ecoe, e o que seja produzido venha acompanhado de senso de dever, de prestação de contas ao leitor; que seja algo feito para ser lido, entendido e apreciado, e assim não se abram espaços largos aos narcisismos e solipsismos literários de que fala o crítico Rodrigo Gurgel nos textos que compõem seu primeiro livro, Muita retórica – Pouca literatura (de Alencar a Graça Aranha), e nos espraiados em dezoito capítulos deste que leva um título que por si mesmo é bem elucidativo, Esquecidos & superestimados . Como esse é também um assunto de que se ocuparam outros escritores, é inevitável que Gurgel tenha ou antecessores ou companheiros de viagem com a mesma percepção. Se este tem como interesse a prosa, a qual não se restringe à de ficção, uma vez que abrange a ensaística, a de reflexão, obras sobre história, de filosofia etc. – mas que têm em comum o terem se destacado bem ou mal estilisticamente –, outros há, como Bruno Tolentino, que se

dedicaram ao mesmo assunto no exame da lírica: “De que modo dar um sentido mais puro à língua que um só homem, ou dois, ou mesmo três, falam sozinhos?”. [ 1 ] Para quem acompanha os textos críticos de Gurgel, essa é a pergunta inevitável. Em tempo, o alvo de Tolentino foram os irmãos Campos, que, de tanto radicalizar no que julgavam ser uma peculiaridade literária, não conseguiram senão eliminar “um padrão comum de lucidez e participação”, [ 2 ] a cultivar assim, em sua torre “verbicovisual”, o que “se passa por poesia / porque se afasta do chão...”. [ 3 ] Ocupando-se com essa literatura de umbigo, afastaram-se de modo prejudicial da tradição do verso e, ao mesmo tempo e ironicamente, aproximaram-se dos vícios retóricos comuns nessa mesma tradição. Ou seja, quem se volta contra a tradição acaba de um modo ou de outro se contaminando com o que dela há de pior, com a sua caricatura. [ 4 ] E nesse complexo de Adão, os abusos formalistas, mais a crescente desfiguração da linguagem, com a posterior bênção acadêmica e sua formulação em decretos educacionais, criaram o isolamento do escritor que primeiro se ressentia de sua marginalização e depois a tornou numa ética – com licença da rima – de sua estética. Contra uma prosa que se pretende literatura porque se afasta do chão comum de cada dia é que se insurge, em continuação ao Muita retórica , Rodrigo Gurgel, que denunciou a cumplicidade da própria crítica literária nesse vício: O crítico e historiador [Sérgio Buarque de Holanda] lastima-se pelo fato de Oswald de Andrade e Clarice Lispector não terem intensificado seu experimentalismo nas obras que se seguiram a Serafim Ponte Grande e Perto do coração selvagem – e, defendendo a prevalência da técnica sobre a mensagem, aponta, em Coelho Neto, a falta de uma “moldura adequada”. Ora, idéias desse tipo deságuam em dois erros, faces da mesma moeda: menosprezam-se grandes narradores que não optaram pelo vanguardismo tout court – como Buarque de Holanda faz, no mesmo ensaio, em relação à obra de José Lins do Rego – ou condena-se a linguagem literária à ingrata tarefa de reinventar a si mesma permanentemente, o que produz obras

passíveis de serem compreendidas apenas por seus próprios autores ou por um seleto grupo de iluminados – beco do qual a literatura brasileira luta para sair.

Essa é uma passagem sobre Coelho Neto, um romancista que, segundo é observado no mesmo texto, é o “escritor mais detestado pela crítica brasileira” e “atingido pela fúria modernista com os piores adjetivos, os julgamentos mais levianos” – e sobre quem “tripudiam, até hoje, os prosélitos de Lima Barreto e Oswald de Andrade”. Se nesse trecho o crítico acusa as manifestações de ódio contra qualquer escritor que lembre o passado, nesta outra passagem, dessa vez sobre Monteiro Lobato, vemos a denúncia do mais idolátrico filofuturismo que anima o citado ódio: A verdade é que o escritor [com o artigo “Paranóia ou mistificação”] se mostrou lúcido o suficiente para, cinco anos antes da Semana de 22, colocarse de prontidão contra a típica maneira de proceder dos subdesenvolvidos: acatar modelos estéticos importados, já diluidíssimos, desgastados de sua força original, como se fossem verdades atemporais; e aceitar de forma acrítica o que aparenta ser novo, apenas por trazer o rótulo de vanguarda ou escândalo. Não por outro motivo parte dos jovens escritores nacionais – e também dos não tão jovens – insiste em reescrever o Finnegans Wake ...

O crítico Luís Augusto Fischer [ 5 ] critica o desejo que os modernistas têm de apresentar-se como marco zero da literatura, o começo de tudo no mundo da cultura. Ainda de acordo com Fischer, o próprio termo “pré-modernismo” é mais uma estratégia para os modernistas se colocarem no centro, restando aos que os antecederam o papel de meros “Joões Batistas”. Acrescente-se que o comentário ao termo pré-modernismo corrobora a desconfiança de Gurgel acerca do assunto. Em seu blogue, [ 6 ] anunciando aos leitores a conclusão deste presente volume, disse ter se debruçado sobre “livros das duas décadas iniciais do século XX , período que nossos estudiosos se acostumaram a tratar como prémodernismo, conceito impregnado de confusão, que se liquefaz quanto mais estudamos os escritores ali enfiados”. Rodrigo Gurgel, diga-se, não escreveu esta obra com o intuito ranzinza de resgatar autores desconhecidos contra

os escritores que se tornaram celebridades, o que seria outra forma de manifestar a sanha de originalidade dos modernistas, sob disfarce de arqueologia crítica. Está se falando, sim – pautado em princípios pedagógicos e de independência crítica, sem as comodidades ideológicas –, de ter curiosidade por saber o que foi produzido, de querer saber o que realmente diz o texto, e dessa maneira, como está entendido no ensaio sobre Coelho Neto, desfazer enganos ou confusões causadas por maledicências: Trata-se, portanto, de desprezar o continuum de erros e injustiças [...], ignorar o vale-tudo em que nossos estudos se transformam quando se trata de defender a Semana de 22 e seus herdeiros e dedicar-se à releitura da ampla, multíplice bibliografia que Coelho Neto nos legou, ou seja, deixar as obras falarem.

A não ser assim, cairia no erro, ainda segundo esse ensaio, “de escolher, para justificar sua reabilitação – como sugere Alfredo Bosi em O pré-modernismo –, entre ‘uma determinada doutrina estética’ ou ‘um pensamento estreitamente casualista’” e, dessa maneira, condenar o escritor a permanecer na camisa-de-força em que o enfiaram o superficialismo e o preconceito de grande parcela da academia e da crítica literária, satisfeita no seu exercício de papaguear o que aprendeu neste ou naquele manual, mas raramente disposta a ler, com espírito despojado de ideologias, a produção dos autores.

Com isso chegamos ao título deste volume, Esquecidos & superestimados. Como este sugere, há de fato o que se chamaria de resgate, o fazer-se justiça. Por outro lado, o “superestimados” não se limita, como veremos agora, às celebridades. Afinal, desde algum tempo difundiu-se o hábito de superestimar certos autores por serem desconhecidos, o qual é muitas vezes motivado pela vaidade de se ver como o primeiro que “percebeu” enquanto os outros estavam “cegos”, na tentativa de construir-se uma identidade “interessante” e, de algum modo, valendo-se do privilégio da obscuridade do que se descobre – e também criando um ambiente de tão infernal quanto de interminável revisionismo reativo –, legitimar

procedimentos duvidosos. Recorrendo mais uma vez a Bruno Tolentino, o poeta percebeu esse mesmo ardil nos irmãos Campos que organizaram os espólios dos poetas Kilkerry e Sousândrade: A reunião dos contorcidos e “incompreendidos” espólios de Titio Kilroy & Vovó Sousândrade – respectivamente o Homem Torso e a Mulher Barbada das sub-letras tropicais – mais que um consolo à solidão da Família Adams do Beletrismo Futurista, seria um modo a mais de torpedear a idéia mesma de uma ordem possível no acervo cultural de um povo, especialmente uma que unisse beleza e verdade como traços da fisionomia nacional. [ 7 ]

José Guilherme Merquior, por sua vez, disse que Foucault, ao dedicar-se a autores obscuros da Renascença em detrimento aos célebres do mesmo período, como “Leonardo, Erasmo, Rabelais ou Montaigne, emprestou à sua obra uma áurea de erudição que, para muitos leitores, disfarçava a sua principal fraqueza: a notória falta de intimidade com a rica literatura sobre os temas tratados por esses autores”. [ 8 ] O filósofo Olavo de Carvalho, no Jardim das aflições , fizera observação semelhante a respeito dos philosophes brasileiros que, parasitando o charme da antiguidade grega, pretenderam resgatar Epicuro para dar legitimidade à busca tão adolescente do “prazer” e da liberdade total, justificar o falseamento da realidade pelas ideologias e assim criar um mundo sem culpas e cuja obra, força é dizer, tinha seu interesse mais ou menos restrito a alguns poetas libertários ou a desocupados da época. E quem passou pelo curso de História deve lembrar-se do volume O queijos e os vermes , uma bobagem sobre a criação do mundo elaborada por um camponês obscuro, condenado e morto pela Inquisição, o qual só conseguiu reputação por ter sido um mártir do “esclarecimento” perseguido pela Igreja, uma espécie de Manuel de Barros da gnose. O critério de Gurgel, portanto, não é o grau de obscuridade de que determinado autor usufrui, como de resto já foi notado. Mas o da relevância das obras. O que elas têm para

dizer e como o dizem. Seu temperamento conservador, portanto, não o obriga a referendar obras de outros autores com os quais compartilha valores comuns, e assim, quando é justo fazê-lo, não os poupa de censuras nem atenua os termos contundentes que lhes são dirigidos. Atesta-o a avaliação dura ao pensamento de Jackson de Figueiredo, que é também um autor conservador e, em seu tempo, um dos notórios militantes católicos: À parte (...) [o] elogiável caráter anti-revolucionário de Jackson de Figueiredo, que o impelia a lutar em favor da legalidade e da ordem pública, os textos descambam, muitas vezes, para uma defesa acrítica do fascismo italiano, da ditadura de Primo de Rivera e do Integralismo Lusitano, na figura do poeta António Sardinha. Ao enaltecer a “Ordem” e a “Hierarquia”, Jackson de Figueiredo chega a elogiar Augusto Comte – “gênio realmente formidável” – e Charles Maurras, desconhecendo, presumo, o tanto de pensamento agnóstico e anticatólico que havia na obra do líder da Action Française . Conseqüência fatal dessas escolhas, é possível entrever laivos de antisemitismo ao menos em dois artigos. [ 9 ]

Essa contundência se prolonga em observações negativas a respeito dos meios expressivos: Há méritos, sem dúvida, em apresentar aos brasileiros, por exemplo, a obra de Auguste Viatte, mas Jackson de Figueiredo o faz numa linguagem que está sempre pronta a cair no elogio fácil e no circunlóquio, tão caros à retórica nacional [...]. Venerador do advérbio “máxime”, repetido de forma cansativa, e de longas citações em francês, típicas do eruditismo que até hoje nos assedia, Jackson de Figueiredo não tem a vivacidade e a ironia do católico e anti-republicano Carlos de Laet. Seu texto enfada [...].

E comungando com a escritora católica Flannery O’Connor, por ele citada, que diz de certos escritores da mesma religião serem “extasiados com sua condição cristã, esquecem sua natureza de escritor”: Jackson de Figueiredo defende uma idéia doutrinal de literatura: se acerta ao dizer que “mais larga que a categoria do belo é a do bem”, erra ao proclamar a “absoluta superioridade da obra de arte católica em relação a qualquer outra obra de arte”.

O que está em perfeito acordo com o que Lúcia Miguel Pereira escreveu em 1934: Nada afasta mais a religião, nada dificulta mais o entendimento da psicologia do crente do que os romances ditos de piedade: deveriam ser

proibidos às meninas sabidas dos colégios de freiras; essa humanidade insossa, com bons sentimentos em lugar de sangue, é, do católico de carne e osso, uma caricatura escandalosamente empobrecida, retocada, adoçada, inconsistente. A encruzilhada sempre perigosa e sempre renovada do bem e do mal – a grande tentação e a grande aventura cristã – não é nos livros virtuosos que se encontra. [ 10 ]

Com isso Rodrigo Gurgel não apenas mostra as fragilidades também presentes nas produções de quem batalha no mesmo lado, bem como sua obra é uma advertência aos críticos conservadores – pelo bem da causa que defendem – para não cometer os mesmos erros dos adversários, i. e., corromper os meios sob pretexto de construir um mundo melhor, posto que seja um mundo onde todos são cristãos e conservadores. E para terminar essas digressões, Rodrigo Gurgel também avalia a qualidade das idéias e suas implicações morais, e desse modo o crítico é temperado pelo moralista, não um moralista segundo algumas definições viciadas que aparecem em vários escritos mundo afora e atingiram os dicionários, corrompendo o sentido original da expressão, como o faz de forma tão primária Evanildo Bechara no dicionário que leva seu nome: “Que ou quem adota um critério moral rígido”[sic], [ 11 ] não escapando certa insuficiência da edição brasileira de Aulete: “Que ou o quem escreve sobre moral, que trata de moral, que preconiza preceitos de moral” [ 12 ] e sim mais de acordo ao moraliste do dicionário Larousse : “autor que escreve sobre a moral, a natureza e sobre a condição humana” [ 13 ] ou, como bem disse o editor José Mário Pereira a respeito de Bruno Tolentino, “ moraliste , na linhagem cristã de um Pascal, um Kierkegaard, um Tolstoi”. [ 14 ] Mas por que deveria um crítico literário se ocupar de assuntos morais? Antes leiamos o que escreveu Merquior: Nos parnasianos, nos narradores naturalistas, prevaleceu constantemente o velho fundo pirotécnico, gratuitamente exibicionista, da infância “gongórica” das letras ibero-americanas. Os primeiros fazem espocar o verso opulento, mas oco; os segundos alardeiam sem maior significação as teses científicas

em voga. É que a ascensão da classe média pela literatura parece ter-se inconscientemente pautado pelo antigo ethos senhorial, antipragmático e ornamental. Ascendendo socialmente pelo domínio das técnicas de expressão, o escritor esposava sem saber valores hidalguistas: valores de uma aristocracia ociosa, estranha ao gesto funcional. Idéias e formas passaram então a ser manipuladas por si, sem a preocupação de fazê-las ferramentas de uma visão crítica do real. [ 15 ]

Sem senso moral, sem conhecimento da natureza humana, como seria possível fazer avaliação tão acurada a respeito da doença retórica denunciada por Rodrigo Gurgel em sua obra, apresentando-lhe a raiz? Não se está falando afinal de questões morais que determinaram de modo definitivo uma literatura e pensamento? Quando Lúcia Miguel Pereira diz “respeitamos demais a palavra, expressão da idéia, para vêla desperdiçada, arredondando períodos” [ 16 ] não está a um só tempo fazendo crítica literária e assumindo uma posição moral? O papel do crítico de separar o joio do trigo, de descobrir e apontar qualidades ou defeitos de obras e dizer por que tal livro deve ser lido, não depende antes de um posicionamento moral que se revela em qualidades igualmente morais como honestidade e coragem? Os recursos retóricos de que se valem certos autores para disfarçar o vazio das idéias não são uma atitude moral, na qual se podem revelar o medo, o senso de conveniência ou a vaidade, que também são sentimentos morais? O retrato corrosivo que Machado faz da humanidade é apenas uma atitude literária? Será que ele gostaria que a filosofia subjacente a suas narrativas fosse ignorada? Será que Aluísio de Azevedo ou Eça de Queirós gostariam que fosse ignorada para o bem da estética a visão determinista que anima seus romances e muitas vezes exposta – vide o final de O cortiço – com indisfarçável sadismo? Não há, pois, como escapar ao fato de que o exercício da crítica é, sim, uma escolha e uma atividade morais que em nada atrapalham o juízo. Ao contrário, realçam-no. Podemos incluir nesse realce o entusiasmo, a falta dele e a contrariedade. Chega a ser tocante a indisfarçável alegria

com que nosso polêmico autor procura – em aplicação impressionante da técnica do close-reading – convencer o leitor a perceber a dignidade e força narrativa de Júlia Lopes de Almeida ou “enfrentar as páginas iniciais de ‘A Terra’” do livro Os sertões de Euclides da Cunha, a desejar que esse leitor experimente as mesmas sensações que ele experimentou, de fazer uma travessia deliciosamente difícil e que é deliciosa, entre outras razões, justamente pelas dificuldades: [O leitor] encontra-se dividido entre abandonar o volume ou seguir em frente. [...] Mas questiona-se se poderá suportar a descrição de “cristais de feldspato”, “estratos de um talcoxisto”, “formações silurianas”, “cachopos de quartzito” e quejandos. Nesse momento, quando suas vísceras começam a gemer, salva-o da escuridão o narrador, abraçado à tarefa de explicar as características climáticas, mudando subitamente a inflexão da voz para tornar-se íntimo, lírico...

Dito isso, o esforço de impessoalidade, pela qual se aprecia uma obra com o ar de quem finge não ser tocado emocionalmente por ela, é pura afetação. Corrobora o que Tolentino disse do crítico que não tem “capacidade de admiração” e assemelha-se a um pica-pau que introduz o bico num picolé mas sem saboreá-lo. Não é por outro motivo que Olavo de Carvalho disse que “uma cultura em que as regras de bom-tom são mais relevantes do que a veracidade intrínseca dos argumentos é uma cultura moribunda”. [ 17 ] E se a imprensa ficou assustada – e o público gratamente surpreso – com o desembaraço com que Rodrigo Gurgel mostra seu gosto, a alegria e as contrariedades que algumas leituras lhe proporcionam, e sem abrir mão de rara exposição pedagógica que se traduz numa expressão de Schlegel que lhe é muito cara, “um leitor que rumina”, e tornando assim o seu leitor algo como um cúmplice de suas leituras, deve-se ao seguinte fenômeno que Olavo de Carvalho mais uma vez explica: Nas últimas décadas, como é público e notório, a crítica literária andou desaparecida do nosso cenário cultural, e isto é provavelmente o motivo pelo qual a linguagem pessoal e desabrida em que se escreveram algumas das

produções clássicas desse gênero se tornou destoante no nosso ambiente jornalístico, onde as normas de impessoalidade e frieza que devem imperar no noticiário acabaram alastrando sua jurisdição, indevidamente, para as páginas culturais e literárias. [ 18 ]

Diremos, portanto, com o Apocalipse de São João: “Oxalá, fosses frio ou quente! Mas, como és morno, nem frio nem quente, vou vomitar-te” (3, 15-17), que ilustra com contundência a citação acima. Que Rodrigo Gurgel com este livro, caro leitor, não apenas lhe proporcione uma boa leitura, bem como tire a crítica literária da tepidez infernal e não seja mais intimidada pela boa educação luciferina. Jessé de Almeida Primo Ensaísta, autor de A natureza da poesia (Editora Tulle), colunista de poesia da revista Dicta & Contradicta e da revista eletrônica LeiaTom [ 1 ] Os sapos de ontem , 1995, Editora Diadorim, p. 32. [ 2 ] Idem , p. 31. [ 3 ] Idem , p. 81. [ 4 ] Fenômeno esse também percebido por Bruno Tolentino ao declarar que os irmãos Campos fizeram, antes de qualquer coisa, poesia subparnasiana e deram continuidade, ainda que pela negação, ao que já estava sendo praticado pela Geração de 45: “O espantoso, o flagrantemente artificial, pois, não era apenas que os gaguejos futuristóides de Noigandres nascessem dos ainda recentes bocejos parnasianísticos e abarrocados de três autores [i.e., Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari] em nada distintos da pior mediocridade morna da dita Geração de 45, à qual o trio de fato pertence em estilo, mentalidade e fôlego... não havia como perceber diferença alguma, fosse qualitativa, fosse de dicção, vocabulário, sintaxe ou sensibilidade, entre a fraternidade de Noigandres e o resto que fumegava então do pior calibre 45. Atestava-o o estilo penteadeira-de-velha do Sr. Augusto de Campos por volta de 1953: “em glaromas de Amil e penubis / (...) / com estas mornas flores de oromãs / morigerantes ou cansadas corças” .... (in Os sapos de ontem , op. cit. p.14) [ 5 ] “Contra São Paulo” in Para fazer a diferença , Ed. Artes e Ofícios, 1998. [ 6 ] http://rodrigogurgel.blogspot.com.br/. [ 7 ] Op. cit. , 31n. [ 8 ] “From the prose of the world to the death of man” in Foucault , Fontana Press, Londres, 1991, p. 44 (segunda edição). [ 9 ] Termos esses que se afinam com a observação que Gustavo Corção fizera contra o oficialismo da Igreja na Argentina: “Como católico, solidário com todos os irmãos perseguidos, não posso alegrar-me com o fato de uma perseguição; mas posso rejubilar-me com o epílogo de uma impostura, com o termo de um equívoco que é certamente pior, mais danoso do que a própria perseguição. E é

isto, é sobretudo isto que vejo nas boas, nas excelentes notícias que chegam da Argentina. Cai a máscara do tiranete [refere-se a Perón], que se apresentava como protetor da Igreja, e assim é de esperar que se abram os olhos daqueles que se deliciavam com a proteção, com aquela proteção. Contestará alguém que a veracidade seja um lucro? Por mais penosas que sejam as conseqüências para as igrejas na Argentina, é melhor esse sofrimento que vem da liberdade essencial da Igreja do que a cômoda continuação de um catolicismo oficial fundamentado na momentânea conveniência de uma política maquiavélica”. “Perón e a Igreja”, artigo de 1954, incluído no volume de crônicas Dez anos , Agir Editora, 1957, p. 224. [ 10 ] “Romance de tese e individualidade”, in A leitora e seus personagens , Editora Graphia, 1992, RJ, p. 75. [ 11 ] Evanildo Bechara, Dicionário da língua portuguesa , Nova Fronteira, 2012. [ 12 ] Caldas Aulete, Dicionário contemporâneo da língua portuguesa (5 vols., Rio de Janeiro, Ed. Delta S.A, 1965). [ 13 ] Dictionnaire Larrousse maxi poche , Ed. Larrousse, 2009. [ 14 ] Orelhas do livro A balada do cárcere , de Bruno Tolentino. [ 15 ] “O segundo oitocentos”, De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira , I, Rio, José Olympio, 1977, cap. IV, p. 108. [ 16 ] “O ofício de compreender”, in op. cit., Editora. Graphia, 1992, p. 75.” [ 17 ] “Carta do filósofo Olavo de Carvalho ao Sr. Editor de Cultura”, incluído em Os Sapos de ontem , de Bruno Tolentino, p. 66, op. cit. [ 18 ] Idem , p. 67.

São dois os portões dos sonhos destituídos de vigor: um é feito de chifres; o outro, de marfim. Os sonhos que passam pelos portões de marfim talhado são nocivos e trazem palavras que nunca se cumprem. Mas os que saem cá para fora dos portões de chifre polido, esses trazem coisas verdadeiras, quando um mortal os vê. Homero, Odisséia , Canto XIX (Tradução de Frederico Lourenço)

APRESENTAÇÃO

Este livro é a continuação de Muita Retórica – Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha) e reúne ensaios publicados, entre 2012 e 2013, no jornal Rascunho , na série, ainda não terminada, em que releio os prosadores da literatura brasileira. Nada mudou em minha visão do papel da crítica literária, no meu método de análise ou, como afirmei no volume anterior, citando Friedrich Schlegel, na necessidade de, enquanto crítico, ser um leitor que rumina. Ao contrário, a recepção de Muita Retórica – Pouca Literatura reafirmou minha intuição de que número considerável de leitores, estudantes de Letras, escritores e membros da academia estão cansados da crítica que há bom tempo viceja entre nós, sempre pronta a papaguear, com nova camada de verniz, antigos julgamentos – ou, igualmente desolador, apenas referendar a produção literária atual. Assim, minha leitura prossegue na contramão, recusando, prazerosamente, formalismo, niilismo e solipsismo – a tríade infernal denunciada por Tzvetan Todorov. Rodrigo Gurgel Janeiro de 2014

CAPÍTULO 1

À espera de justiça – Júlia Lopes de Almeida e A falência

No tecido da literatura brasileira há um vigor que não cansa de pulsar. São os autores esquecidos, sobranceados pelos que, injustamente, se tornaram famosos. Traídos pelas convenções estéticas, pelas panelinhas que controlam os cadernos culturais e pelos críticos obedientes a modismos, esses menosprezados cumprem, no entanto, digno papel: o de aguilhoar o establishment e comprovar que, andando na contramão, também é possível produzir boa literatura. Silentes, preenchendo as prateleiras dos sebos ou o canto úmido das bibliotecas, tais obras sussurram aos novos escritores: “Não receiem tomar emprestados meus acertos e melhores lições”. Incluo nesse rol de livros depreciados o romance A falência , de Júlia Lopes de Almeida. Se alguns erram por nem mesmo citá-lo, outros – entre eles, Lúcia Miguel- Pereira [ 19 ] – falham ao classificar a autora como “monótona” ou destituída de estilo pessoal. Nada pode ser mais falso em relação à escritora que nos deixou vasta obra e teve a alegria de conhecer o sucesso em vida. Figuras complexas Poucos autores nacionais conseguiram criar tramas que se impusessem como panoramas de uma época ou de determinado contexto social. E um número ainda menor mostrou habilidade para dar vida a personagens variados, que não representassem existências isoladas, mas interagissem de forma dramática. Júlia Lopes de Almeida alcançou essas qualidades e concedeu a algumas de suas

obras a perfeita característica do romanesco, ou seja, um conjunto ficcional harmonioso, em que se somam, à diversidade de tipos, peripécias, anseios e decepções pessoais, personalidades contraditórias e, no caso de A falência , o cenário da nascente República e do Encilhamento. Francisco Teodoro, protagonista da história, é o imigrante português de origem humilde que enriqueceu graças ao esforço pessoal. Proprietário de um armazém exportador de café, vive a euforia econômica do início da República Velha. Critica as inovações do novo regime, resiste à investida dos especuladores, mas, afligido pelo enriquecimento frenético do rival Gama Torres, deixa-se engolfar na promessa de lucros fáceis. A luta para emergir da pobreza concedeu-lhe não apenas o gosto da pompa, mas também um leve traço de distúrbio obsessivo-compulsivo, o cacoete de “remexer com a mão curta e gorda o dinheiro e as chaves guardadas no bolso direito das calças”. Esse homem de bom coração – que sustenta inclusive pais e irmãos da esposa, cujas cartas, pedindo sempre mais dinheiro, não param de chegar do Sergipe –, capaz de defender a Monarquia sem dissimulações, é o centro em torno do qual gravitam as demais personagens: Mário, o primogênito, esbanjador e boêmio; Nina, a sobrinha pobre, abandonada pelo pai, que adora Mário e cujo amor não será correspondido; Ruth, a filha sensível, imaginosa, hábil violinista; Noca, a mulata agregada, contadora de histórias, supersticiosa, intérprete de sonhos; as pequenas Raquel e Lia, filhas caçulas e gêmeas, sempre prontas a fazer estripulias; Camila, a esposa egocêntrica e adúltera, que finge estar resignada ao casamento sem amor; as tias de Camila, Itelvina, avarenta e rancorosa, e Joana, devota e bonachona; Gervásio, médico da família e amante de Camila; Rino, tímido rival de Gervásio; e a corte formada por amigos, conhecidos, empregados.

Cada um desses personagens possui idiossincrasias que não surgem de forma esquemática, mas contextualizadas, respondendo à dinâmica da trama. A avareza de Itelvina, por exemplo, não é mero penduricalho, mas uma compulsão que a leva a roubar as esmolas que Joana consegue para a Igreja e, na ausência da irmã, até mesmo apagar, por economia, a lamparina do oratório. Bisbilhoteira, fria e arrogante, chega ao extremo de surrar a empregada Sancha por motivos que não passam de invenções da sua imaginação doentia. Mas cada um dos seus gestos e falas jamais é gratuito – ao contrário, corresponde a determinada situação e provoca alguma conseqüência, ainda que insignificante. Assim, no Capítulo III , o ótimo diálogo entre Itelvina e Noca revela a memória autocomplacente da primeira, que não enxerga a própria sovinice, a ponto de transferir o drama ocorrido em sua casa a outras circunstâncias, irreais. A capacidade de criar pormenores reveladores, impregnados de psicologia, é, sem dúvida, uma das qualidades de Júlia Lopes de Almeida. Camila, salva da pobreza graças ao casamento com Francisco Teodoro, revela-se por inteiro nos breves comentários de insatisfação que verbaliza, no Capítulo II , ao entrar, recém-casada, no lar decorado pelo marido: A sua maior comoção fora ao entrar em casa, na rua da Candelária. Supusera sempre que ela apalpasse, com sofreguidão, todo o seu ninho, na alegria de ser a dona, a senhora de tantas coisas compradas para o agasalho do seu amor. Mas não: em vez de ir para o interior, Camila fora para a sacada. Ele acompanhou-a. Em frente, os telhados mais baixos sucediam-se irregulares, cortando-se em linhas angulosas de um vermelho sujo; as casas, desiguais, acumulavam-se, paredes ameaçando paredes, janelinhas de sótãos espiando as telhas estriadas de limo, de onde emergiam chaminés negras e curtas, baforando fumo. Camila murmurava, como quem fala só: – Se ao menos se visse o mar... Disse; e curvava-se para a rua quando a badalada de um sino reboou perto, formidável, prolongando-se num som que era como um gemido da cidade

inteira. Mila ergueu-se com um estremeção e voltou para o perfil da igreja o olhar estático. Ele sorrira do susto, enquanto ela dizia: – Como é alto!

Tal descompasso de sentimentos só aumentará – e anos depois, residindo no palacete de Botafogo, em que grande parte do romance transcorre, enquanto Francisco dorme na cadeira de balanço e a casa oscila entre as histórias de Noca, a partida de Mário para mais uma noitada, a brincadeira das crianças e a solidão de Nina, a autora fecha o Capítulo II de maneira a confirmar nossas suspeitas: “[...] Lá em cima, no terraço, ao lado do marido adormecido, Camila curvou-se para o dr. Gervásio e beijou-o na boca”. Submissa apenas na aparência, Camila justifica o adultério como uma resposta às traições de Francisco Teodoro, quando recém-casado. Mas a verdade é que o fato de sentirse desejada por Gervásio e Rino alimenta seu amor-próprio, sentimento ao qual se abandona com evidente luxúria. Ser infiel, contudo, ganha outros contornos e transborda para a forma como acoberta os erros de Mário, mente sobre questões insignificantes e age de maneira perdulária. Seu apego ao caso de amor é maior, inclusive, do que a vergonha de ser desmascarada pelo filho. E quando o amante, a pedido de Francisco Teodoro, lhe comunica a falência, suas reações passam por diferentes estágios: da crítica ultrajante às acusações infundadas, da revolta ao desejo de proteger o marido. Camila, portanto, não está condenada pela autora a ser apenas uma esposa volúvel. Depois do suicídio do marido, parte de sua complexidade mostra-se na cena em que, vestida de luto, recebe de Gervásio a chave do esquife: “[...] sentia na palma da mão a friagem daquela chave pequenina e pesada sem saber onde guardá-la, com medo de a pôr no seio, achando irreverente guardá-la no bolso”. São as dúvidas de uma viúva fútil, mas que demonstra saber o preço que deve pagar à opinião alheia. Meses mais tarde, quando ainda reluta em aceitar a

pobreza, após se decepcionar com Gervásio ela enfim abraçará o real sem teatralismos, demonstrando maturidade e resiliência. O hipócrita e falante Gervásio Gomes impõe-se gradativamente à família, ocupando o vazio deixado por Francisco Teodoro, mais preocupado com os negócios. Sob o olhar ciumento de Rino, ele não passa de um “tipo escanifrado”, com “ar de ironia, às vezes perversa, às vezes insulsa”. Na verdade, por trás das frases prontas e dos rasgos de ácido humor há o homem cético, o esnobe que também foi traído pela esposa. Gervásio nos provoca repulsa, mas é impossível não rir dos seus comentários cheios de afetação, como este, quando pretende redirecionar os interesses musicais de Ruth: “Chopin é um músico perigoso, minha filha; é um torturador, um excitador de almas. Contente-se com os seus clássicos, mais sadios e mais frescos”. Ele incorpora, de maneira crescente, a tarefa de refinar os gostos da família de Camila – e suas intromissões não conhecem limite: Ele agora demorava-se no palacete dias inteiros. Fora ele quem determinara a transformação de duas alcovas inúteis em uma sala de música, em que essa aplicação fosse indicada por pinturas a fresco: foi ele quem contratou artistas, quem escolheu mobílias novas e harmonizou o conjunto em todas as peças. Tudo que saía das suas mãos parecia a Camila perfeito.

A família vive, assim, de forma promíscua, aceitando a autoridade do amante, cujas ordens podem descer a detalhes: Entretanto, o dr. Gervásio perguntou a Mila: – Seu marido está melhor? – Não sei; anda amofinado... Sentiu muito o casamento de Mário. Ele não quer que se diga que está doente. E efetivamente não está. Não sei o que é aquilo. Gervásio calou-se, pensativo. As gêmeas começaram a rir, uma da outra. – Viu que bonito cróton está no vaso da entrada, doutor? – perguntou Ruth ao médico. – Vi. O cróton é bonito, o vaso é que é medonho. Tirem aquele vaso de alabastro dali, ou eu não volto cá.

– Acha feio? – Horrível.

Joana será a única a enfrentá-lo, quando o encontra, por acaso, num bairro da periferia. Depois de ouvir as censuras, o amante se revolta: [...] Sentia-se colado de espanto àquele chão poeirento. Os seus amores, que ele julgava bem ocultos, tinham varado as sacristias e ido do Botafogo elegante até aos casebres do Castelo e da Conceição! Quis desmentir a velha; mas os seus olhos claros, de um castanho louro, não o deixaram falar, cortando-lhe pela raiz qualquer protesto. Ela não falara só pela boca, que a tinha sincera; mas também pelos olhos, em cuja limpidez aparecera toda a verdade. O médico viu-a, com ódio, ir arrastando, na sua peregrinação de fé, as pernas inchadas, rebolando os quadris largos, bem fornidos e que ainda os franzidos da saia exageravam. Apressou-se em voltar-lhe as costas, com medo que ela tornasse, para lhe dizer ainda alguma coisa do pecado.

Mas, tão fútil quanto Camila, sua indignação é falsa, pouco resiste: Cansado, nervoso, picado pelo sol, o dr. Gervásio seguiu à toa, desceu o morro, andou pelas ruas, mal respondendo aos cumprimentos dos conhecidos, que ia encontrando à proporção que se aproximava do seu centro habitual. Já nada do que vira e o impressionara naquele giro, se lhe esboçava na lembrança. Aquelas riquezas, aquele movimento, aquelas casas, aquele rumor de população atarefada, baixa e mesclada, aquelas altas ruas despenhadas em escadarias imundas e barrancos, tudo se dissipava e se fundia numa impressão de mar e de lixo, de onde surgia a voz melada, untuosa da tia Joana, oferecendo promessas, confidenciando com estranhos sobre os seus amores e os seus adorados segredos. Uma raiva surda roncava-lhe no peito, quando chegou à rua do Ouvidor. Veio-lhe então em cheio o aroma das flores frescas, à venda na esquina; e a graça de uma mulher que passava com um chapéu atrevido e um vestido bem feito, distraíram-no um pouco...

Não há, portanto, em A falência , nenhuma personagem destituída de variado conjunto de atributos. Até mesmo o secundário Negreiros é presenteado com momentos em que pode revelar seu caráter. Já decretada a falência, ele e Francisco Teodoro se encontram. Enquanto o segundo aguarda o bonde, um cupê passa, levando Inocêncio, o banqueiro que arruinara o exportador de café. Há um rápido diálogo:

Francisco Teodoro nem tocou no chapéu e murmurou com ódio: – Cão! – Vai para a Europa... segue diretamente para Londres, num paquete da Nova Zelândia, amanhã. – Com o meu dinheiro... Negreiros engoliu uma palavra qualquer, afagou o nariz e depois, corando um pouco, aproximou-se mais de Teodoro e murmurou: – Se precisar de mim... os amigos são para as ocasiões... Francisco Teodoro estremeceu e apertou-lhe a mão com força; houve nos olhos de ambos como que o brilho passageiro e eloqüente de uma lágrima. Vinha um bonde; o negociante tornou a sacudir em silêncio a mão de Negreiros e partiu.

O narrador não deixará de observar que, dias depois, antes de seguir para o velório, “Negreiros levou a carteira cheia, pensando em fazer o enterro”. Diálogos e descrições Os aspectos positivos de A falência não se esgotam na psicologia dos personagens – da qual, aliás, demos poucos exemplos. Há ótimos diálogos, plenos de fluidez e naturalidade; e descrições abrangentes – que não negligenciam nenhum aspecto do real –, nas quais há espaço para cores, movimentos, aromas, sensações. A abertura do Capítulo I é clássica: O Rio de Janeiro ardia sob o sol de dezembro, que escaldava as pedras, bafejando um ar de fornalha na atmosfera. Toda a rua de S. Bento, atravancada por veículos pesadões e estrepitosos, cheirava a café cru. Era hora de trabalho. Entre o fragor das ferragens sacudidas, o giro ameaçador das rodas e os corcovos de animais contidos por mãos brutas, o povo negrejava suando, compacto e esbaforido. [...] Um carroceiro, em pé dentro do caminhão, onde ajeitava as sacas, gritava zangado, voltando-se para o fundo negro da casa: – Andem com isso, que às onze horas tenho de estar nas Docas! E os carregadores vinham, sucedendo-se com uma pressa fantástica, atirar as sacas para o fundo do caminhão, levantando no baque nuvens de pó que os envolvia. Uns eram brancos, de peitos cabeludos mal cobertos pela camisa de meia enrugada de algodão sujo: outros negros, nus da cintura para cima, reluzentes de suor, com olhos esbugalhados. Ao cheiro do café misturava-se o do suor daqueles corpos agitados, cujo sangue se via palpitar nas veias entumescidas do pescoço e dos braços.

Da balbúrdia que se desenrola na rua, o narrador nos leva ao interior do armazém, chegando ao “extenso porão”, sem janelas, ladeado de sacos sobrepostos e adornado nas vigas sujas do teto por infinita quantidade de teias de aranha, enredadas, como longas sanefas viscosas de crepe russo.

Para depois subir ao escritório, onde encontramos o proprietário, Francisco Teodoro: Toda a sua pessoa ressumava fartura e a altivez de quem sai vitorioso de teimosa luta. Gordo, calvo, de barba grisalha rente ao rosto claro, com os olhos garços tranqüilos e os dentes brancos e pequeninos, tinha um belo ar de burguês satisfeito. Não era alto e quando andava fazia tremer a casa, tal a firmeza dos seus passos pesados.

Problemas A falência , contudo, apresenta alguns traços naturalistas e muitas vezes resvala para um romantismo sentimentalóide – a pior escolha talvez seja comparar os olhos de Camila a “duas nascentes de agonia, choravam sem cessar”. Mas há outros elementos que destoam do conjunto. Em certos trechos, o tema do feminismo se desvincula da narração, ganha vida própria, e torna-se mero discurso panfletário. Em outros, o narrador exagera no cromatismo e acaba por criar pinturas de mau gosto: Ao longe, a Serra dos Órgãos desenhava no céu os seus contornos de um azul de ardósia. Para os lados da barra havia montes de prata fosca em que o sol, cintilando nas pedras, escorria laivos de prata polida, e rochedos cor de violeta espelhavam-se nágua; entre montanhas de um verdor intensíssimo.

Júlia Lopes de Almeida chega, inclusive, a repetir algumas figuras, insistindo na presença dourada do sol, no azul de tons variados, na vespa solitária que, perdida no aposento, ressalta o silêncio, nas cigarras a cantar enquanto a ruína se instala, no personagem que caminha e aproveita para refletir... É como se, de repente, ela esquecesse os múltiplos recursos de que provou ter domínio. E se tivesse controlado um pouco o seu narrador, principalmente quando ele desanda em divagações infantis ou sente-se obrigado a

bordar com razões e filigranas tudo que vê, teria feito um benefício ainda maior à nossa literatura. De qualquer modo, quando terminamos o livro torna- se ainda mais inacreditável que péssimos autores – como Franklin Távora, Adolfo Caminha ou Afonso Arinos [ 20 ] – continuem recebendo elogios, enquanto Júlia Lopes de Almeida, passado mais de um século da publicação de A falência , ainda não mereceu profunda e extensa releitura. [ 19 ] Em Prosa de Ficção (De 1870 a 1920) , 2ª edição, revista, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1957. [ 20 ] Escritores analisados em Muita Retórica — Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha) , Vide Editorial, 2012.

CAPÍTULO 2

Escondido e desprezado – Emanuel Guimarães e A todo transe!...

A todo transe!... é um tipo peculiar de roman à clef : à parte o fato de pertencer a certo elogiável grupo – no qual encontramos, por exemplo, Os Buddenbrooks ou O sol também se levanta –, a obra de Emanuel Guimarães, publicada em 1902, permanece atual não apenas graças às qualidades literárias, mas porque sua “chave”, passados mais de cem anos, pode ser encontrada em Brasília ou nas assembléias estaduais, como se os políticos encobertos pelas personagens ainda estivessem vivos, cadáveres embalsamados por meio de alguma técnica miraculosa, capaz de mantê-los respirando e, principalmente, cometendo os mesmos delitos. De fato, a semelhança entre o romance e as piores páginas do noticiário político chega a ser assustadora, mas não devemos nos prender a tal característica, pois ela apequena as virtudes desse livro injustamente esquecido, que nos ensina como a ficção pode descrever não só uma época, mas, partindo de fatos mesquinhos, retratar a índole duradoura da classe dirigente e a feliz alienação do povo. Não por outro motivo, aliás, A todo transe!... foi expulso das nossas histórias literárias, escorraçado das antologias e banido das livrarias: o brasileiro é condicionado, sempre e cada vez mais, a enganar-se quanto a seus defeitos e qualidades, travestindo-os por meio do sentimentalismo, da farra, da autocomiseração ou do comportamento ufanista. O que é o Carnaval, senão a exasperação da tristeza e da derrota? E a crescente hegemonia do marxismo – inclusive,

é claro, na crítica literária – só agravou o problema: para a esquerda, o brasileiro, olhando-se ao espelho, deve ver não a realidade, mas a utopia – a idéia benévola que faz de si mesmo. O romance de Emanuel Guimarães vai na contramão dessa cultura. Se há idealismo, está somente nas falas de Andrade e Melo, o deputado monarquista – o último deles; ou o último que tem coragem de se afirmar como tal. Desviandose do óbvio e da ilusão, A todo transe!... é um panorama dos bastidores da política e das regiões mais escuras do coração humano. Um romance sem ideais, mas que recusa o sarcasmo machadiano, pois seu narrador sabe diferenciar o certo do errado, o bem do mal. Teoria do engrossamento A perfeita definição da política, o narrador a coloca na boca do velho deputado Soares, experiente mas de poucas luzes, que assim explica ao novato Júlio César Betarry, protagonista do romance: Isto de política é um ofício como outro qualquer: um homem, como o visconde de Mauá, que tem idéias grandes de progresso, é um perfeito imbecil ao lado de um lorpa como o Jotajota, que ganha dinheiro em jogo de câmbio e de bichos; aos olhos do mundo este vale muito mais que aquele. Na política é a mesma cousa: quem tem idéias, quem quer ser estadista cai no ridículo e na miséria; político é o Juca Lima [líder do governo na Câmara Federal]: é o rei do Brasil, nem sabe ler, não sabe nem quer saber senão de bobagens.

Ao que Betarry, rindo, pergunta o motivo de manterem Juca Lima na liderança, se realmente todos pensam assim. Impassível, Soares responde: “[...] Ora, porque ele é o ideal do político, nulo de inteligência, fácil de moral e prático de eleições”. A visão crua de Soares voltará logo a seguir, quando Betarry, inebriado pela vida no Rio de Janeiro (até então era um obscuro representante na assembléia estadual mineira), percebe que os deputados, diferente do que sempre imaginara, “apenas saíam do parlamento procuravam

afugentar todas as idéias que dissessem respeito à sua profissão”. Surpreso com os temas dos diálogos – “mulheres, o escândalo do dia, o pagode de amanhã” –, com as rápidas sessões da Câmara, em que nunca se discutia realmente, e com a visita diária a teatros, clubes e prostíbulos, Betarry questiona o velho deputado, que lhe responde na voz do narrador: [...] O governo era o governo, a ele é que incumbia de trabalhar; quando surgia uma questão qualquer, o partido, o leader os convocava para uma reunião onde se dava a cada qual o papel a representar; quanto a ele, era apenas um número, um voto; não tinha outro mister: sim ou não, conforme lhe diziam. Muita vez discordava do que se fazia: mas para que buscar embaraços e maçadas quando as tinha já tantas involuntariamente? Aquilo tudo era uma pachouchada: eles entendem lá de governo? Mas estão de cima, são quem manda: querem assim? Sua alma, sua palma! Se essa bambochata desse em droga, ao menos ele não teria remorsos de haver sido o causador, nenhuma responsabilidade lhe poderia caber nos acontecimentos, eram todas dos que mandavam.

Loureiro, outro deputado, da mesma roda, apresenta justificativas mais elaboradas – e não menos cínicas –, para assim concluir: [...] Ajunta que a vida é curta, o voto popular incerto quanto o bel-prazer do governo. Ora, hei de eu perder meu tempo de deputado eleito, com alfarrábios e estatísticas, trocar pela eloqüência dos algarismos, muito cacete, muito trabalhosa, muito falsa e muito pouco eficaz nos ânimos, a minha bela e fácil eloqüência, do verbo agradável, oco, de inevitável efeito, e de absoluta inanidade, em vez de aproveitar enquanto o Brás é o tesoureiro? E sacrificar-me estupidamente, à toa, porque o meu embrutecimento não redundaria em benefício nem meu nem de ninguém? Então pensas que nós é que fazemos a política? A política é que nos faz a nós, quem a faz é a arca onipotente da rua do Sacramento [à época, endereço do Tesouro Nacional], quem faz a esta é o café e a borracha, que são as duas tetas do Estado [...].

A essas explicações, destituídas de eufemismo, o próprio Betarry, depois de eleito à Câmara, somará outras, adquiridas em rápido aprendizado. Na carta que escreve ao cunhado – Fabiano de Alencar, fazendeiro e chefe político em Juiz de Fora –, responsável por seu ingresso na vida política, o novo deputado federal comemora o resultado das urnas e desculpa-se por não ter visitado a cidade nem mesmo durante a campanha:

[...] Para que iria eu lá? Tinha-te a ti como patrono, e sobretudo, não me queiras mal, tinha a promessa do ministro: ainda quando eu fora nascituro, com tal garantia sairia eleito; para que deixar isto aqui, este Rio de Janeiro onde me prendi douda, doudamente?...

A essa lição – sucinta e esclarecedora – a respeito do sistema eleitoral da República Velha, Betarry adicionará outra, na qual elucida a técnica para se criar notabilidades, aperfeiçoamento do puxa-saquismo: [...] A palavra engrossamento , hoje em moda, é característica da época. Hoje não se adula, não se lisonjeia, nem mesmo se bajula: hoje engrossa-se : aqueles vocábulos eram mais finos, aplicavam-se a um certo ato, no fundo ignóbil, mas que se praticava como que envolvido em panos quentes, às ocultas: hoje o ato é o mesmo mas sem cobertas, às escâncaras, tão ignóbil no fundo como na aparência, e por isso a gíria popular criou o engrossa , palavra indecente, obscena, como a cousa que representa [grifos do autor].

Didático, Betarry esmiúça o tema, usando como exemplo o ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas, o médico Jerônimo Moreira, seu protetor, a quem chama de “nulidade” por ter produzido um “plano geral de viação para o Brasil” capaz de estupidificar seus leitores: [...] Ele quer ser engrossado, exige o engrossamento constante, perene, criou o engrossamento para uso próprio, hoje vive dele. [...] O tal plano de viação geral do Brasil foi levado aos cornos da lua: o Clube Politécnico não hesitou em declarar que a salvação do país está na realização daquela monstruosidade. Não te assustes: ninguém acredita nisso; os membros do Clube são os primeiros a se admirar de como um homem pôde imaginar tanta asneira; mas houve engrossamento – Ite, missa est . Tenho refletido muito neste fenômeno: um homem galga por acaso uma posição social: os competentes, que precisam dele, começam a engrossá-lo, aos poucos o povo se capacita que o engrossamento é a verdade, e o cujo passa a notabilidade; depois os acontecimentos entram a demonstrar-lhe a ignorância palpável, os engrossadores lhe a revelam, o povo lhe ri às barbas; o engrossado tornou-se sabedor. Ninguém mais persuadirá ao país que o Dr. Jerônimo Moreira, ministro da Viação, é o que ele é, uma ignorância forrada de presunção catedrática: está consagrado. [...]

São os fatos que prevalecem até hoje, caso acreditemos nas informações da mídia, em certas pessoas escolhidas para cargos de confiança e no perfil desolador dos eleitos, com os agravantes típicos das democracias representativas, cujos vícios não enumeraremos aqui.

Linguagem e primitivismo Mas se desconsiderarmos o contagiante pessimismo que brota dessas linhas, veremos, a sustentar o enredo, a linguagem fluida, espontânea, em grande parte coloquial – que se submete, infelizmente, à retórica em alguns trechos –, capaz de recriar, além das falcatruas, dos bastidores do jogo político, a vida social carioca do início do século XX , o crescente desenvolvimento da cidade. Linguagem hábil em descrever o comportamento da massa ou a vida íntima das classes sociais que tinham acesso ao poder, com seus dramas, traições, imoralidades. Aos 31 anos, quando publicou A todo transe!... , Emanuel Guimarães tinha absoluto controle da sintaxe, dos meios de expressão oferecidos pela língua, construindo um estilo muito distante dos períodos quase telegráficos que encontramos na literatura contemporânea, reflexos não de uma opção estética consciente, mas, em grande parte, da nítida insegurança dos escritores. Um breve parágrafo, simples descrição do hall da residência de Joca, a amante do ministro Moreira, mostra como a estrutura frasal pode refletir a emoção intensa, a confusão que o reencontro de Betarry – por quem permanece apaixonada, passados vários anos – provoca nessa mulher; e também a perfeita idéia de movimento, dos personagens que se deslocam para o interior da casa: Um vestíbulo pequeno, com um cabide esguio, do espelho estreito e comprido de cristal grosso, onde ela dependurava o chapéu de Júlio César e depunha-lhe a bengala, flanqueado de três portas, das quais uma fronteira à da entrada, abria-se, por trás de um reposteiro espesso de seda desmaiada, dum tom brando de folhagem seca, para a sala de visitas, onde Joca ia fazendo-o entrar, quase arrastando-o.

Emanuel Guimarães mostra-se igualmente feliz na descrição das personalidades, às vezes estendendo-se em demasia, mas sempre conseguindo uma frase que sintetiza o personagem. De Jerônimo Moreira, ressaltará sua “nulidade empertigada”. Sobre Juca Lima: “Sua própria

nulidade fora seu melhor título: sem passado, sem opiniões divulgadas, era o tipo por excelência do constituinte desejado”. Pimenta, um intendente municipal, promotor de festas quase diárias em sua casa – em relação às quais Soares dirá estarem “num ponto em que ninguém sabe onde começa a prostituição e acaba a honestidade” –, surge como um tipo hediondo: Crivado de cicatrizes de bexigas, o bigode falhado, as faces rechonchudas, ele tinha o aspecto dos sórdidos gozadores, desses rebotalhos sociais que em épocas críticas sobrenadam, mancos de senso moral, legião torpe que devora a cousa pública sem rebuço e clamam com um muxoxo cínico: depois de mim o dilúvio.

E o narrador se mantém inflexível ao apresentar o falso luxo da residência que Pimenta divide com as filhas: [...] Tudo aquilo bonitinhos, móveis quer e não pode. constantemente a usanças.

pequenino, guarnecido de uns móveis efeminados, de fancaria, casquilhos, de uma graça luxenta de quem [...] Em tudo transluzia a dificuldade que atribulava existência daquela gente, curta de recursos, larga de

Os diálogos merecem especial atenção, pois estão repletos de indiretas e ironias, ferinas ou não, trocadas entre companheiros de partido e suborno ou inimigos que se suportam em nome da convivência quiçá democrática. Uma seqüência de falas entre personagens pode ser construída utilizando-se o coloquialismo típico dos rápidos encontros entre conhecidos, plenos de comentários airosos ou divertidos, entremeados por rápidas cenas urbanas, que dão vida e autenticidade à história. Veja-se, por exemplo, no Capítulo V , o longo trecho em que os personagens se deslocam pelas ruas centrais do Rio de Janeiro, encontrando-se e despedindo-se, interrompidos pelos bondes, pela massa que se desloca, por figuras que se aproximam, agregando-se temporariamente ao grupo, enquanto o narrador capta os gestos, as expressões, o burburinho. Então, quando percebemos, estamos no centro dessas conversas ligeiras, ouvindo vozes dessemelhantes, tomando consciência de suas peculiaridades; entramos com

eles numa joalheria e assistimos ao fútil quinteto operístico expor sentimentos diversos, mas formando um todo harmônico, coerente. Mais que o perfeito controle dos elementos da frase, construir cenas desse tipo requer sensibilidade, vivência, argúcia. Observem como Emanuel Guimarães, indo além do diálogo, acrescenta verossimilhança à descrição da rua do Ouvidor – encaixa um incidente curioso, que reforça o descompasso entre a paisagem urbana rústica e o aparente progresso, salientando a conhecida negligência brasileira: O sol caindo sob a Cidade Nova deitava os raios oblíquos, e as casas altas sobre a estreiteza da rua banhavam-na em sombra amena, bruscamente cortada, nas esquinas das ruas transversais, com uma mancha dura de claridade. As bandeiras, permanentes nas sacadas dos prédios, ondulavam com a viração agradável que soprava do mar, e no movimento daquelas fraldas largas dos pavilhões desbotados, de cores mortas pela exposição constante à atmosfera, roçando penosamente nos arcos de bicos de gás de lado a lado na rua, desprendia-se um característico ar de rudez primitiva, como que prolongando e acentuando o contraste estranho entre as edificações da rua e as vitrinas, do povo imenso grulhando e o exíguo espaço da calçada, estrambótica com os esgotos em meio, a mescla indizível de civilização e barbaria que ressumbra da rua do Ouvidor. De súbito, a gente toda que acercava a esquina da rua da Quitanda, alvoroçou-se, e uma nuvem densa de poeira levantou-se. – Que diabo! Exclamou Garcia tapando o nariz com o lenço e atirando-se para o lado oposto. Isto é um desaforo! Em plena rua do Ouvidor, a estas horas. Era uma carrocinha cheia de terra, puxada à mão, que dous trabalhadores tinham naquele instante virado à entrada do andaime de uma reedificação ali, na esquina. A terra fina produzira um pó alvacento que toldava o ar, sufocando. [...] Andrade e Melo puxou do lenço e espanou a poeira que lhe enxovalhara a roupa.

Essa crítica de Guimarães ao progresso destituído de civilização retorna em diferentes momentos. O narrador faz Júlio César Betarry ver a rua do Ouvidor como um símbolo da “aversão hedionda e indomável” que o país tem “pela beleza, pelo conforto, pelo polimento”, observando, com repulsa, a rua abjeta com as vitrines repletas dos mais requintados lavores da indústria moderna, no contrassenso dos luxuosos vestuários, roçando podridões amontoadas pelas sarjetas, na imoralidade das fachadas

ornamentadas com os fundos internos pestilentos, na tristeza da aparência civilizada com a realidade selvagem e primitiva, símbolo mordaz do povo todo pompeando com a fama de suas grandezas e esbofado de miséria íntima, encurralado nos costumes grosseiros, lembrando o caipira de pé descalço e enfiados no varapau os sapatos que calça à entrada da vila, para assistir à festa!

Se essa visão das contradições do Brasil urbano não fosse assumida pelo narrador, não poderíamos confiar nas impressões de Betarry, pois ele é o protótipo do político desleal e fingido – e não é minha culpa que esta última expressão tenha se tornado um pleonasmo. Fantasmas A construção psicológica do protagonista – e dos demais personagens – é outro mérito de Emanuel Guimarães. Fazendo perfeito corte na narrativa, ele abandona o Betarry que acabara de chegar à capital e volta no tempo, a fim de mostrar a formação, no Capítulo II , desse jovem interiorano que olha todos com arrogância e compara os políticos a prostitutas. Filho de um descendente de ciganos que se torna criador de porcos, Júlio César forma-se, com brilhantismo, na antiga Escola de Minas, em Ouro Preto. O prenúncio de sua ambição já se encontra no universitário que “não estudava por amor ao estudo, mas pela satisfação de orgulho que o estudo lhe proporcionava”. Isolado, sem amigos, mantendo “apenas as relações de camaradagem forçada pela pequenez do meio social”, logo percebe que apenas a política lhe permitiria erguer a cabeça acima da pobreza: Viu que ela dá tudo: por ela, salientando o indivíduo, galgam-se as posições iminentes e dominadoras, e a importância que se adquire ou os proventos que se pode auferir dela, abrem de par em par todas as portas de todas as satisfações.

Escolhido orador da turma, os temas do discurso formam a síntese do pensamento que norteará sua carreira: Darwin, Nietzsche e um visceral anti-cristianismo. Para nossa surpresa, contudo, os sonhos morrem ao primeiro golpe da realidade – e ele se transforma num funcionário público

medíocre. Apaixonado pela trapezista do circo que se instala na cidade – a mesma Joca que o reencontrará no Rio de Janeiro –, seu pai o impede de fugir com a jovem. O cunhado leva-o, então, para sua fazenda, onde Betarry rapidamente esquece a aventura. Sob circunstâncias favoráveis, acaba escolhido pelo parente para derrotar, no interior do partido, um representante da oposição. É o primeiro passo para ser eleito deputado estadual. A partir desse ponto, o que vemos é sua crescente e insaciável ambição. Famoso e respeitado na província, sonha com mulheres fantasiosas: “[...] Ele aspirava acorrentar após si, como uma teoria de lânguidas vitórias, inúmeras amadas umas após outras, suplicantes em torno dele, impávido, coroado de glória e amor”. Este é Betarry, pronto a ser objeto de adoração, mas jamais disposto a amar verdadeiramente. E, na política, suas posições se definem não segundo princípios ou certezas, mas por obediência à cupidez: A única possibilidade que ele entrevia eram as futuras eleições federais. Mas três longos anos ainda o separavam daquele prazo fatal e o ardor que lhe fervia no peito não se padecia com tal demora. Do estado d’alma que lhe formou aquele desequilíbrio entre o que possuía e o que almejava, resultoulhe uma aspereza no trato que inflamou a campanha de oposição que combatia contra o governo. Um azedume o enfebreceu contra tudo e contra todos.

Inseguro, imaturo, Betarry avança às apalpadelas. Na capital da República, seduzido pelas festas e pelo meretrício, continua, no fundo, o envergonhado mineiro. Ganha importância, sim, não pelas qualidades de articulador, mas por servir às pessoas certas, estar à mão, com sua vibrante oratória, pronto a agir enquanto marionete. Durante a madrugada em que caminha ao lado de Andrade e Melo, ouve a fala repleta de indignação do ético deputado monarquista – mas recebe-a como estímulo para sua própria desonestidade. E ao reencontrar Joca, aceita possuí-la não em nome dos sentimentos passados, mas, obedecendo ao desejo de grandeza, por ela ser amante do ministro – de quem, aliás, corromperá a esposa.

Assim, finalmente alcança fama e conquista mulheres. Mas ainda lhe falta riqueza. Na manhã seguinte à de sua primeira noite com a esposa do ministro, só consegue ver o quanto outros são mais ricos que ele: E enquanto ele ia-se vestindo às pressas, seus olhos erravam da cama de ferro, com lençóis de cretone, à colcha grosseira de algodão branco, para o lavatório de vinhático com o espelho já todo sarapintado, o aço desfeito pelo ar salitrado do mar, as duas cadeiras de palha velhas, o sofá de reps safado, e suas roupas dependuradas em pregos pelas paredes, e o baú de couro peludo com as tachas de metal, tudo pobre, pobre, pobre, pobre! Em vez disso, o ministro, lá nas Laranjeiras ou na praia de Botafogo, nadava em luxo; o Jotajota, boçal e torpe, fruía palacete pomposo; o Barão da Concórdia rolava em vitória macia com bestas ajaezadas de prata; o Pimenta indecente tinha dinheiro a rodo para pagar-se cocottes de preço [...].

Em seu delírio, Betarry obedece à frase síntese do livro: “O que se procura é o dinheiro, venha como vier, donde vier, o dinheiro a todo transe...”. Fiel à desmesurada ambição, aceita se casar com a filha natural do Barão da Concórdia, feia, quase disforme, mas dona de incrível dote. A segunda carta que escreve ao cunhado, no Capítulo XII , é o resumo do que há de mais sórdido na política. Por um momento, Betarry ensaia questionar-se acerca de sua própria identidade: O que me atormenta ligeiramente é apenas isto: para quê? Sim, para que sou eu o que sou, que fim demando, de que serve toda esta força que me está nas mãos? A inanidade do poder está-me agora ante os olhos, clara como um período do Padre Vieira.

Mas não tem fibra moral para ir adiante; e as linhas seguintes, gasta-as em generalizações, pretendendo defender sua perversidade, até chegar ao lugar-comum citado por todos os corruptos: “O mal, o mal político, a nulidade prática do governo, dos homens públicos, faz parte da organização brasileira: se o governo deixasse de ser inútil e pernicioso, o Brasil deixaria de ser Brasil”. À fácil desculpa do atavismo político, Betarry acrescenta galhofas a respeito do seu próprio comportamento, cada vez mais laxo:

E sobretudo te peço que não tires do fundo do teu arsenal de mineiro, reprovações à minha conduta como costumas fazer. Não penses em casamento interesseiro nem glorifiques o amor ao lar, dignidade da família, como não penses em honra, em pátria, bem da nação e todas as suas usuais mineiradas. São cousas passadas, só em Minas, lá no fundo dos sertões e das fazendas, é que se sonha ainda com esses fantasmas.

O livro termina com terrível metáfora: a massa espremendo-se contra os portões da igreja, ensandecida para assistir ao casamento de Betarry – o povo reduzido a insignificante, mas satisfeito espectador da festança alheia. Resposta ao enigma O leitor que chegou até aqui certamente se pergunta por qual motivo nossos peritos em literatura fazem questão de esconder e desprezar A todo transe!... Parte da resposta está no próprio livro; parte nas linhas acima. Mas aos que desejarem se aprofundar no enigma, proponho um salutar exercício: leiam a educadíssima carta que Elio Vittorini – cujo projeto era o da suposta “renovação moderna da literatura” – enviou, em julho de 1957, a Giuseppe Tomasi di Lampedusa, explicando por qual motivo se recusava a publicar O Leopardo . Ali, nas entrelinhas, nas razões ideológicas que Vittorini dissimula, encontrarão o fragmento fundamental da resposta.

CAPÍTULO 3

Combate interminável – Euclides da Cunha e Os Sertões

Excêntrico e híbrido, Os Sertões , de Euclides da Cunha, assemelha-se ao mostrengo de Fernando Pessoa, que se ergue a voar na “noite de breu”, em pleno oceano, e circunda a nau do explorador, interrogando-o: “Quem é que ousou entrar / Nas minhas cavernas que não desvendo, / Meus tectos negros do fim do mundo?”. E a reação do leitor, ao se deparar com o grosso volume e seu texto muitas vezes excessivamente rebuscado, quase sempre não corresponde à do navegante que enfrenta a terrível criatura – “Aqui ao leme sou mais do que eu: / Sou um povo que quer o mar que é teu [...]” –, pois tornou-se comum a desistência logo às primeiras páginas, quando o inexperto marinheiro se depara com descrições topográficas e geológicas que parecem conduzi-lo ao abismo; e não à passagem do Bojador. O desejo euclidiano de erigir uma obra total pagou o preço da desmesura, semelhante aos personagens mitológicos julgados por sua hybris . Mas o livro, que veio à luz em 1902, continua a merecer atenção – cuidadosa e necessária. Em relação a Os Sertões é preciso distanciar-se das leituras fossilizadas, pois excessivamente laudativas, capazes somente de coroar a obra com jaculatórias, segundo o feliz ensinamento do seu principal estudioso contemporâneo, Leopoldo Bernucci, no evento Euclides da Cunha 360º , realizado em 2009. O pesquisador, aliás, salientava o fato de, no Brasil, cultuar-se esse autor controverso que, ao invés de ser endeusado, deveria ser debatido. Prática, completa Bernucci, fruto de uma cultura em que não se

aprende a ler de maneira compenetrada e crítica, na qual o fascínio pela palavra escrita se sobrepõe à sua compreensão. Tais cuidados fazem-se ainda mais necessários quando recordamos a melhor biografia de Euclides da Cunha, escrita pelo norte-americano Frederic Amory. [ 21 ] Para o autor de Euclides da Cunha: uma Odisséia nos Trópicos , a leitura proveitosa de Os Sertões exige isolar o valor estilístico dos erros geográficos e das análises deterministas e racistas. A força da narrativa supera, é verdade, em inúmeros trechos, o conteúdo analítico datado; mas não podemos esquecer as sábias observações de Gilberto Freyre, para quem Euclides está perigosamente próximo do precioso, do pedante, do bombástico, do oratório, do retórico, do gongórico, sem afundar-se em nenhum desses perigos: deixando-o apenas tocar por eles; roçando por vezes pelos seus excessos; salvando-se como um bailarino perito em saltos-mortais, de extremos de má eloqüência que o teriam levado à desgraça literária ou ao fracasso artístico. [ 22 ]

Há quem prefira alimentar opinião mais radical, como Roberto Schwarz, que critica, ao falar de Euclides e Raul Pompéia, a “monstruosa salada que junta naturalismo e parnasianismo, écriture artistique e racismo científico, eloqüência épica e terminologia técnica”. Para Schwarz, a “prosa franca e espirituosa” de Helena Morley (em Minha vida de menina ), “inimiga de afetações de superioridade” e livre das “alienações ideológicas e artísticas”, encontra-se num patamar superior ao de Os Sertões . Trata-se, sem dúvida, no que se refere a Euclides, de uma “dialética envenenada”, mera provocação, como aliás anunciava o próprio título da entrevista. [ 23 ] Na verdade, guarda mais razão Franklin de Oliveira, no ensaio “Um problema de ontologia literária”, presente em Euclydes: a espada e a letra . [ 24 ] Ao recuperar o histórico dos termos phantasia e imaginatio , passando por Leonardo da Vinci – para quem a ciência era “uma segunda criação

realizada pela fantasia”, pois “a criação artística contém todas as formas que estão na natureza e as que não estão” –, o estudioso maranhense demonstra que, para Euclides, “a fantasia é o fermento, a levedura das criações artísticas e científicas”. Ainda que, páginas depois, Franklin acabe por acorrentar Os Sertões à categoria de “ensaio de crítica histórica”, comparando-o, de forma absurdamente exagerada, a Johan Huizinga ( O outono da Idade Média ) e Jacob Burckhardt ( A cultura do Renascimento na Itália ), a intuição do ensaísta plantou boa semente: a base de Os Sertões é a fantasia – e o livro, de fato, está recheado de ficção. Misterioso defunto Um dos trechos mais belos e instigantes de Os Sertões é “Higrômetros singulares”, no qual Euclides apresenta a “secura da atmosfera”, na região de Canudos, por meio de uma cena perturbadora. O leitor acaba de enfrentar as páginas iniciais de “A Terra”, primeira parte do livro, e encontra-se dividido entre abandonar o volume ou seguir em frente. É a reação natural de quem, não sendo geólogo, pergunta-se o que significam, por exemplo, “assomadas gnáissicas caprichosamente cindidas em planos quase geométricos, à maneira de silhares”. Ele percebe, graças a seu instinto panglossiano e à eufonia, a relativa beleza de dizer que Pelas abas dos cerros, que tumultuam em roda – restos de velhíssimas chapadas corroídas – se derramam ora em alinhamentos relembrando velhos caminhos de geleiras, ora esparsos a esmo, espessos lastros de seixos e lajes fraturadas, delatando idênticas violências.

Mas questiona-se se poderá suportar a descrição de “cristais de feldspato”, “estratos de um talcoxisto”, “formações silurianas”, “cachopos de quartzito” e quejandos. Nesse momento, quando suas vísceras começam a gemer, salva-o da escuridão o narrador, abraçado à tarefa de explicar as características climáticas,

mudando subitamente a inflexão da voz para torna-se íntimo, lírico: Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneiro frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas se dispunham circulando um vale único. Pequenos arbustos, icozeiros virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado uma árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina.

Nesse cenário idílico, no qual “icozeiros virentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes” explodem não só graças ao brilho que ofusca, mas à aliteração da frase, um soldado “descansava... havia três meses”. A antinomia dos elementos seduz. Passadas dezenas de páginas em que o linguajar técnico enfastiava, no centro do jardim luxuriante surge o morto: Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da Mannlicher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido.

A cena, trágica, tem uma beleza que atordoa. Ali está o defunto, protegido pela longa sombra do sol poente, “braços largamente abertos, face volvida para os céus”. Euclides acrescenta o comentário enternecedor: “O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante [...]”. E prolonga nossa pena por meio de uma sugestiva amplificação: “[...] e deixara-o ali há três meses – braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes...”. As linhas finais servem não só à comprovação científica da “secura extrema dos ares”, mas acrescentam caráter filosófico ao texto. O narrador contrapõe uma nota de enlevo à sua constatação, lacônica e aguda, colocada entre

travessões, sobre o fim da matéria, como se a degradação invulgar daquele corpo pudesse fugir à lei universal: E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme – o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria – lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível.

São trechos desse tipo, nos quais a fantasia estraçalha o ensaio histórico, que justificam a leitura de Os Sertões . E o colocam bem acima do livro pueril de Helena Morley – e de grande parte da literatura produzida no Brasil até o início do século XX . Esse trecho encerra também uma característica misteriosa. Como afirmei em meu blog , em 2006, considero “Higrômetros singulares” uma espécie de paráfrase do poema “Le dormeur du val”, de Arthur Rimbaud. A semelhança entre os textos é fascinante, inclusive se utilizarmos a tradução impecável de Ivo Barroso. [ 25 ] Em Euclides, “um velho jardim em abandono”, com uma “árvore única, uma quixabeira alta, sobranceando a vegetação franzina”; em Rimbaud, “um recanto verde onde um regato canta / doidamente a enredar nas ervas seus pendões / De prata”. No brasileiro, “o sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão”; no francês, “o sol, no monte que suplanta, / Brilha: um pequeno vale a espumejar clarões”. Se o soldado, em Os Sertões , tem “os braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas fulgurantes...”, no poema ele apresenta a “boca aberta, fronte ao vento, / [...] estendido sobre as relvas, ao relento, / Branco em seu leito verde onde chovia luz”. Luz que fulge na “flores rutilantes” de Euclides. Este fala da “ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranqüilo sono”; no poema, o verbo dormir surge duas vezes.

A transposição é clara. Euclides tirou o soldado do vale verdejante de Rimbaud e colocou-o entre seus “icozeiros virentes”, também num vale, descrito no seu estilo algo hiperbólico. A similaridade me encanta. Leopoldo Bernucci já demonstrou as relações intertextuais que Os sertões mantém com, entre outros, Victor Hugo e Domingo Sarmiento. [ 26 ] E há um dado, de ordem biográfica, que corrobora minha hipótese: sabe-se da influência que teve – não só no que se refere a sugestões de leitura, mas, de maneira indireta, na própria elaboração de Os sertões – o intendente de São José do Rio Pardo, Francisco Escobar. Entre 1898 e 1901, período durante o qual Euclides viveu na cidade do interior paulista, ocupando-se da reconstrução da ponte que ruíra, os dois estabeleceram profunda relação de amizade, prolongada depois em razoável número de cartas. Ora, Escobar foi um autodidata culto, além de bibliófilo, dono de farta biblioteca, que deve ter representado universo sem precedentes para Euclides. Há quem afirme, inclusive, que Escobar apresentou ao amigo os clássicos portugueses, como Alexandre Herculano, além de inúmeros escritores, exercendo, assim, influência sobre o estilo do autor. Dessas constatações surgem várias perguntas: Escobar teria apresentado Rimbaud a Euclides? “Le dormeur du val” aparece em duas edições: Reliquaire, poésies [ 27 ] e Poésies completes . [ 28 ] Um desses livros faria parte da biblioteca do intendente? Teria importado o volume? Acompanhava os lançamentos editoriais franceses, hábito comum entre os brasileiros cultos da época? Ou trata-se apenas de um tema recorrente na literatura, mera coincidência? Mas se Euclides da Cunha leu o poeta Maurice Rollinat, como afirma Frederic Amory, por que não conheceria Rimbaud? Se existir um catálogo ou lista dos

livros de Francisco Escobar, ali poderemos descobrir parte das respostas. “Celeiro agreste” Não é preciso sair de “A Terra” para encontrar mais páginas memoráveis. Veja-se, por exemplo, a descrição da seca. Euclides interrompe a narração de algumas tradições locais, como os desafios, para descrever a estiagem prolongada que susta a vida e a esperança simples do sertanejo: De repente, uma variante trágica. Aproxima-se a seca. O sertanejo adivinha-a e prefixa-a graças ao ritmo singular com que se desencadeia o flagelo. Entretanto não foge logo, abandonando a terra a pouco e pouco invadida pelo limbo candente que irradia do Ceará.

As frases bruscas introduzem o fenômeno de maneira cortante, pois o autor sabe que este é o centro da tragédia – parte fundamental das causas que desencadearão a guerra. Podemos lastimar o discurso que idealiza o sertanejo, transformado num estóico quando, na verdade, age não por opção consciente, heróica, mas porque só tem duas escolhas, submeter-se ou fugir. E há trechos de exagerada retórica, como ao qualificar a seca de “sezão assombradora da Terra”. No entanto, o crescendo que Euclides descreve está além da épica; marcado por extremo realismo, evidencia cada gesto da luta pela sobrevivência – e o malogro que se renova: Passam as “chuvas do caju” em outubro, rápidas, em chuvisqueiros prestes delidos nos ares ardentes, sem deixarem traços; e pintam as caatingas, aqui, ali, por toda a parte, mosqueadas de tufos pardos de árvores marcescentes, cada vez mais numerosos e maiores, lembrando cinzeiros de uma combustão abafada, sem chamas; e greta-se o chão; e abaixa-se vagarosamente o nível das cacimbas... Do mesmo passo nota que os dias, estuando logo ao alvorecer, transcorrem abrasantes, à medida que as noites se vão tornando cada vez mais frias. A atmosfera absorve-lhe, com avidez de esponja, o suor na fronte, enquanto a armadura de couro, sem mais a flexibilidade primitiva, se lhe endurece aos ombros, esturrada, rígida, feito uma couraça de bronze. E ao descer das tardes, dia a dia menores e sem crepúsculos, considera, entristecido, nos ares, em bandos, as primeiras aves emigrantes, transvoando a outros climas...

O ritmo da frase alcança, muitas vezes, musicalidade poética. Tal afirmação, repetida por dezenas de autores, recebeu atenção criteriosa de Augusto de Campos, [ 29 ] que dissecou o texto, demonstrando, com inúmeros exemplos, a ocorrência da métrica clássica na prosa euclidiana e como ela constrói uma estrutura em tudo oposta à mera “caricatura do parnasianismo”. Poesia encontrada na descrição das manifestações de religiosidade que acompanham “a insurreição da terra contra o homem”: Ecoam largos dias, monótonas, pelos ermos, por onde passam as lentas procissões propiciatórias, as ladainhas tristes. Rebrilham longas noites nas chapadas, pervagantes, as velas dos penitentes...

A caatinga transforma-se, então, num “celeiro agreste”, oximoro que sintetiza a busca por alimento, cada vez mais desesperada, na qual parcela da fauna volta-se contra o gado e contra o homem. No fim, os próprios urubus rejeitam a carne dos “bois mortos há dias e intactos”, pois “não rompem a bicadas as suas peles esturradas”. Banido pela seca, o sertanejo migra. E mesmo sabendo que o final feliz da narrativa, contestado pela realidade, nem sempre é verdadeiro, não podemos negar-lhe o acerto dos termos, a simetria dos períodos, a harmonia à qual colabora perfeita pontuação: Passa certo dia, à sua porta, a primeira turma de “retirantes”. Vê-a, assombrado, atravessar o terreiro, miseranda, desaparecendo adiante, numa nuvem de poeira, na curva do caminho... No outro dia, outra. E outras. É o sertão que se esvazia. Não resiste mais. Amatula-se num daqueles bandos, que lá se vão caminho em fora, debruando de ossadas as veredas, e lá se vai ele no êxodo penosíssimo para a costa, para as serras distantes, para quaisquer lugares onde o não mate o elemento primordial da vida. Atinge-os. Salva-se. Passam-se meses. Acaba-se o flagelo. Ei-lo de volta. Vence-o saudade do sertão. Remigra. E torna feliz, revigorado, cantando; esquecido de infortúnios, buscando as mesmas horas passageiras da ventura perdidiça e instável, os mesmos dias longos de transes e provações demorados.

Síntese e ampliação

Os Sertões também está polvilhado de personagens que, apesar de serem reais, ganham contornos próximos do fantástico. Na terceira parte do livro, “A Luta”, encontramos o coronel Moreira César, cuja “legenda de bravura” Euclides desmonta com perfeita ironia, primeiro inserindo-o no quadro maior da história do país, cuja “sentimentalidade suspeita” está – até hoje – pronta a criar “heróis de quarto de hora destinados à suprema consagração de uma placa à esquina das ruas”. Tão lunático quanto Antônio Conselheiro, Moreira César, servil à pior face do ditador Floriano Peixoto, é apresentado como criminoso contumaz, responsável, durante a Revolução Federalista, por um dos mais sangrentos episódios, no qual ordenou prisões e fuzilamentos sumários. Não por outro motivo o coronel é escolhido para comandar a primeira tentativa séria de debelar Canudos: Ora, entre nós, se exercitava o domínio do caput mortuum das sociedades. Despontavam, efêmeras, individualidades singulares; e entre elas o coronel César destacava-se em relevo forte, como se a niilidade do seu passado salientasse melhor a energia feroz que desdobrara nos últimos tempos.

A expedição é descrita pormenorizadamente, incluindo-se os erros táticos, a arrogância do comandante que se considerava imbatível e o absoluto despreparo da tropa. No fim, em plena debandada do exército, até o corpo de Moreira César é atirado “à beira do caminho”. Na última cena, os jagunços decapitam os cadáveres: Alinharam, depois, nas duas bordas da estrada as cabeças, regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho. Por cima, nos arbustos marginais mais altos, dependuraram os restos de fardas, calças e dólmãs multicores, selins, cinturões, quepes de listras rubras, capotes, mantas, cantis e mochilas...

E ao perverso estetismo do sertanejo, Euclides adiciona o seu comentário, não menos mórbido: A caatinga, mirrada e nua, apareceu repentinamente desabrochando numa florescência extravagantemente colorida no vermelho forte das divisas, no azul desmaiado dos dólmãs e nos brilhos vivos das chapas dos talins e estribos oscilantes...

Euclides da Cunha também se mostra hábil nas cenas breves, capazes de sintetizar todo o horror da guerra: Numa das refregas subsequentes ao assalto, ficara prisioneiro um curiboca ainda moço que a todas as perguntas respondia automaticamente, com indiferença altiva: “Sei não!” Perguntaram-lhe por fim como queria morrer. “De tiro!” “Pois há de ser a faca!”, contraveio, terrivelmente, o soldado. Assim foi. E quando o ferro embotado lhe rangia nas cartilagens da glote, a primeira onda de sangue borbulhou, escumando, à passagem do último grito gargarejando na boca ensanguentada: “Viva o Bom Jesus!...”

Mas é nos longos períodos, perfeitamente encadeados, que o escritor revela suas melhores qualidades. Perto do fim da guerra, antes que a solução definitiva – o uso da dinamite – seja colocada em prática, a insânia do combate surge reconstruída num parágrafo do qual transbordam, em iguais proporções, armamentos e força abusiva, vitória e devastação: E volvendo de improviso às trincheiras, volvendo em corridas para os pontos abrigados, agachados em todos os anteparos, esgueirando-se cosidos às barrancas protetoras do rio, retransidos de espanto, tragando amargos desapontamentos, singularmente menoscabados na iminência do triunfo, chasqueados em pleno agonizar dos vencidos – os triunfadores, aqueles triunfadores, os mais originais entre todos os triunfadores memorados pela história, compreenderam que naquele andar acabaria por devorá-los, um a um, o último reduto combatido. Não lhes bastavam 6 mil mannlichers e 6 mil sabres; e o golpear de 12 mil braços, e o acalcanhar de 12 mil coturnos; e 6 mil revólveres; e vinte canhões, e milhares de granadas, e milhares de schrapnels; e os degolamentos, e os incêndios, e a fome, e a sede; e dez meses de combates, e cem dias de canhoneio contínuo; e o esmagamento das ruínas; e o quadro indefinível dos templos derrocados; e, por fim, na ciscalhagem das imagens rotas, dos altares abatidos, dos santos em pedaços – sob a impassibilidade dos céus tranqüilos e claros – a queda de um ideal ardente, a extinção absoluta de uma crença consoladora e forte...

Vencer e não vencer Retomando os primeiros parágrafos deste ensaio, poderíamos tê-lo escrito de modo diverso, salientando o que é afetado, grandiloqüente e pleno de preciosismo em Os

Sertões . Ou, tarefa ainda mais fácil, detalhando equívocos e impropriedades nascidos do olhar determinista e de tantas outras influências, mais que datadas. No entanto, mal começa-se a reler esse livro, contaminado de idéias envelhecidas, ressurge o mostrengo indomável, que nos condena a repetir a luta do sertanejo, “recontro que não vence e em que se não deixa vencer”. Não é outra a tarefa – interminável – do leitor que se dispõe a abrir Os Sertões . [ 21 ] Ver minha análise em “Trágica ingenuidade”, Jornal Rascunho , junho de 2011. [ 22 ] Em “Euclides da Cunha, revelador da realidade brasileira”: http://bvgf.fgf.org.br/frances/obra/pref_p_tercei/euclides.htm [ 23 ] “Dialética envenenada – Duas meninas na periferia do capitalismo”, Folha de S. Paulo , Caderno Mais, 1º de junho de 1997. [ 24 ] Editora Paz e Terra, São Paulo, 1983. [ 25 ] Rimbaud, Arthur. Poesia Completa , 2ª edição revista, Rio de Janeiro, Editora Topbooks, 1995. [ 26 ] Ver A Imitação dos Sentidos – prógonos, contemporâneos e epígonos de Euclides da Cunha , Edusp/University of Colorado at Boulder, São Paulo, 1995. [ 27 ] L. Genonceaux, Paris, 1891; prefácio de Rodolphe Darzens. [ 28 ] L. Vanier, 1895; prefácio de Paul Verlaine. [ 29 ] No ensaio “Transertões”, em Os sertões dos Campos – duas vezes Euclides da Cunha , Editora 7Letras, Rio de Janeiro, 1997.

CAPÍTULO 4

Perseguido, mas brilhante – Coelho Neto e Turbilhão

O escritor mais detestado pela crítica brasileira, Coelho Neto, atingido pela fúria modernista com os piores adjetivos, os julgamentos mais levianos – sobre ele tripudiam, até hoje, os prosélitos de Lima Barreto e Oswald de Andrade –, merece, inclusive por esse motivo, cuidadoso estudo. Não se trata de escolher, para justificar sua reabilitação – como sugere Alfredo Bosi em O prémodernismo [ 30 ] –, entre “uma determinada doutrina estética” ou “um pensamento estreitamente casualista”. Optar por um desses atalhos seria condenar o escritor a permanecer na camisa-de-força em que o enfiaram o superficialismo e o preconceito de grande parcela da academia e da crítica literária, satisfeita no seu exercício de papaguear o que aprendeu neste ou naquele manual, mas raramente disposta a ler, com espírito despojado de ideologias, a produção dos autores. Trata-se, portanto, de desprezar o continuum de erros e injustiças – no qual até mesmo a sensata Lúcia MiguelPereira caiu, escorando-se, em Prosa de ficção , [ 31 ] no juízo, dentre outros, de Adolfo Caminha, um ninguém da literatura brasileira –, ignorar o vale-tudo em que nossos estudos se transformam quando se trata de defender a Semana de 22 e seus herdeiros e dedicar-se à releitura da ampla, multíplice bibliografia que Coelho Neto nos legou, ou seja, deixar as obras falarem. Ilusória liberdade

Publicado em 1906, Turbilhão é um dos vários romances que poderiam ser escolhidos para apresentar os méritos de Coelho Neto. A fim de melhor aproveitá-los, o leitor deve estar aberto ao vocabulário cujas acepções nem sempre são corriqueiras, e exatamente por isso acrescentam rigor e força à narrativa. O que parte da crítica chama de “parnasianismo” é, na verdade, destemor para utilizar os recursos que o português oferece, busca apaixonada, flaubertiana, do termo justo – sem descuidar do emprego da linguagem coloquial, quando ela se faz necessária. Veja-se, por exemplo, este parágrafo do Capítulo 1 : Subitamente um bufo, como da expansão de uma válvula, subiu das oficinas, e foi depois um chiado e logo um silvo de jato, e, lentamente, com rumor de ferragens, como à partida de um comboio, as máquinas moveramse, abalando o soalho em trepidações contínuas.

O período coeso – que muitos escritores contemporâneos transformariam, por imperícia, numa sucessão de frases independentes – recria com exatidão os movimentos iniciais de uma impressora de jornal do início do século XX . Logo a seguir, o tipógrafo começa seu trabalho: Parado, coçando a barba, como em grande cuidado, um velho olhava para uma das marinônis, em cujos cilindros já reluziam as matrizes. De repente afastou-se, tomou várias folhas de papel tisnadas, andou com elas em volta do “Monstro” vendo, revendo, curvado, de cócoras. Meteu o papel entre os cilindros, ergueu-se, deu um puxão à alavanca e a máquina moveu-se com rapidez trepidando, a espichar aquelas folhas de papel que os rolos apertavam e impeliam manchadas de tachas sórdidas, como as primeiras vasas anunciadoras do parto.

Perceba-se não só a precisão das palavras, a descrição que nos permite visualizar a cena, a analogia inusitada entre os primeiros resultados da impressão e um parto, mas também o julgamento feito pelo narrador, ao usar o substantivo “tacha”, referindo-se às manchas de tinta, cujo sentido comporta uma alusão a defeitos ou máculas morais propagados pelas notícias – idéia reforçada pelo adjetivo “sórdidas”.

A história da pequena família suburbana – formada por uma viúva, D.ª Júlia, e seus filhos, Paulo e Violante – é perturbada de maneira dramática, logo no Capítulo 2, pela fuga da jovem. A descrição do quarto da irmã, em plena madrugada, depois de Paulo ter enfrentado, para encontrála, a chuva e também o descaso da polícia, reflete o sentimento de abandono: Deteve-se um momento, limpou os olhos e, tomando da mesa uma caixa de fósforos, fez luz e entrou. Sobre o lavatório de vinhático, numa palmatória de cristal, havia um coto de vela; acendeu-o. À luz, que se foi, aos poucos, difundindo, lançou os olhos pelo interior desolado e, cruzando os braços, ficou a olhar como se estivesse diante dum cadáver. A cama estreita, alva, com um fino cortinado enastrado de fitas, tinha uma ligeira depressão; o travesseiro macio, de paina, com a fronha de crivo, estava machucado. Um lenço jazia aos pés da cama, amarfanhado e odorante. [...] Voltou-se: o lavatório estava em ordem, com os vidrinhos de essências, os vasos de flores, as escovas, os pentes. Sobre a cômoda o retrato do pai, fardado, em grande gala, de pé junto a um rochedo; e outros retratos de moças, de crianças; e cromos e a cestinha que ele lhe dera pelo Natal com amêndoas. No fundo, o guarda-vestidos entreaberto. Puxou a porta, que rangeu, emperrada, e viu, a um canto, sobre a caixa de chapéu, a boneca, muito loura, com os braços abertos, rindo, toda de azul; e os vestidos escorridos nos cabides, a sombrinha, caixas, embrulhos. Afastou as saias, sentindo um perfume morno e sensual de essência e de carne – faltava a de seda preta, a mais nova. Fora com ela, a linda saia que ele lhe havia dado meses antes, no dia em que ela completara dezoito anos, e que a mãe cortara e cosera, cantarolando as suas modinhas tristes.

Coisas insignificantes adquirem relevo extraordinário. E Coelho Neto nos leva, de pormenor em pormenor, a um dos elementos que ganham importância crescente na história, sobre o qual falarei adiante. O narrador apresenta igual vigor quando abandona a intimidade do lar e descreve cenas urbanas, com seus personagens anônimos flagrados, de maneira cinematográfica, em meio aos hábitos do cotidiano, aos gestos reveladores de sua condição social:

À porta de uma casinha robusta mulher, encostada ao umbral, uma das mãos engastando o queixo, olhava, com melancolia, o céu carregado, cinzento, sem esperança de sol. Adiante, em outra casinha, a família jantava. O homem, já grisalho, em mangas de camisa, à cabeceira da mesa, os braços muito abertos, as bochechas cheias, todo derreado sobre o prato, devorava. Um pequenote, balançando as perninhas escalavradas, esmagava o bolo de feijão; a mulher, magra, triste, comia lentamente, com ar enfastiado. De pé, na penumbra, ao fundo, uma rapariga ruiva, com um prato sob o queixo, chupava talhadas de laranja, chuchurreando tão alto que se ouvia de fora, e um cão negro, sentado, com as orelhas atentamente fincadas, olhava o homem, à espera de algum bocado. Meninos, com as calças arregaçadas, chapinhavam sordidamente na lama, aos gritos. Entrava gente – um velho mascate, curvado ao peso da grande caixa; um vendedor de fósforos, com o tabuleiro suspenso à altura do ventre, coberto por um encerado; operários, com as ferramentas, e, à porta da venda, que comunicava com a larga entrada da estalagem, em túnel, havia um ajuntamento: homens de pé, outros sentados em pedras, fumando, conversando. Fora, ao portão, um garoto apregoava os jornais da tarde. Cães morrinhentos dormitavam pelos cantos e, defronte, num sobradinho amarelo, uma mulher gorda, com fofos de renda à volta do pescoço, chupava roletes de cana, atirando o bagaço à rua.

Mas Coelho Neto descomprometida, leve, cenários da vida social a no interior de um cômodo

pode passar da exposição ainda que detalhista, desses certo momento dramático, tenso, lúgubre:

Quando Paulo tornou ao quarto a moribunda arquejava em agonia maior, respirando a espaços, ficava longo tempo imóvel, como se já houvesse acabado; de repente, porém, abria-se-lhe a boca imensa e o ar entrava de raspão como se fosse rompendo passagem. Ritinha chegou-se ao leito e ficou contemplando a velha, cuja fisionomia cavava-se com a angústia. Apalpou-a, sentiu-a fria até o ventre – era a morte que começava a subir. Súbito, abriram-se-lhe dilatadamente os olhos vítreos, assombrados e fitos. Os dois recuaram, um estremecimento sacudiu-a toda. Os braços enrijaramse, a cabeça soergueu-se de leve, um gargarejo rolou no fundo da garganta, as pálpebras tremeram. Ritinha pôs-lhe a vela na mão. Paulo ajoelhou-se soluçando. Fecharam-selhe os olhos e ficou imóvel. Ele ainda esperou ouvir o estertor angustioso, mas a morte passara [...].

Ênclises e mesóclises incomodam o leitor que se viciou no folgado predomínio das próclises, mas, superando-se tal estranhamento, o trecho se revigora, livre das conhecidas e cansativas reflexões naturalistas sobre o caráter

irremediável do processo biológico que comanda nossa espécie, etc. ou do olhar romântico, que buscaria idealizar o fato e incluir na cena algum elemento edulcorante. Aqui, o narrador está livre de qualquer imposição – e um personagem, a fim de completar essa ilusória liberdade, pode apalpar de maneira desrespeitosa, quase promíscua, a pobre moribunda. Torpezas e amor O fim indigno de D.ª Júlia, contudo, não se resume a esse pequeno trecho. Na verdade, o romance enfoca o ápice da desagregação familiar, o breve período no qual essa derrocada, até então mero anúncio, finalmente se materializa, condenando a idosa à decepção e à morte, expressão concreta de sua impotência diante da ruína moral. Perfeito corte no tempo, a narrativa nos informa sobre o passado não por meio do narrador onisciente, mas, sugestivo recurso, de um personagem secundário, Fábio, compadre da pobre matriarca: suas censuras a Paulo e Violante revelam a verdade suavizada, até aquele momento, pelo excessivo amor de D.ª Júlia. Desse ponto em diante, o comportamento, as decisões dos personagens só confirmarão as palavras do velho Fábio, de início aparentemente severas. Paulo, que nas primeiras páginas do romance surge como revisor de jornal cansado das longas horas de trabalho e crítico implacável da irmã, mostra-se egocêntrico, sensual, ciclotímico, supersticioso, desfibrado. O jovem que bravateia, como se fosse a palmatória do mundo, revolta-se com a fuga de Violante – mas não demonstra preocupação. Ao contrário, sua inquietude concentra-se no que pensarão dele os vizinhos, os amigos, os colegas de trabalho e da faculdade. Em nenhum instante ele se questiona seriamente sobre a repentina decisão da irmã, chegando a assobiar

enquanto a mãe chora e reza, destruída pela angústia. Para sua mente perturbada, as pessoas que o observam na rua ou riem num restaurante na verdade zombam dele. É também um hipócrita, a quem notícias da fugitiva, se estampadas num jornal, serviriam para enaltecer sua própria moralidade. Ele engana D.ª Júlia repetidas vezes, gasta na roleta o dinheiro de uma jóia penhorada para pagar o aluguel e introduzirá na casa a própria amante, a volúvel Ritinha, que finge ser a caridosa esposa de um amigo, disposta a cuidar da doente. Paulo, no entanto, revela mais que inversão de valores. Na sua completa desorientação, a realidade não é um dado nítido, palpável, mas o cenário onírico que se modifica conforme as variações do seu humor: impedido, pela chuva, de ir à jogatina, entende o aguaceiro como castigo divino, e imediatamente passa a murmurar desculpas estapafúrdias... O romance é construído de maneira a nos surpreender sempre. Ultrapassada a primeira metade, quando imaginamos que todas as cartas foram distribuídas, Coelho Neto oferece novos elementos para compor a personalidade de Paulo: a compulsão em fazer cálculos, distribuindo o que sonha ganhar no jogo em listas de compras mirabolantes – e sua atração sexual pela irmã. O jovem que abre o armário e sente o “perfume morno e sensual de essência e de carne”, pouco antes descrevia Violante, ao delegado, ressaltando não os traços principais, mas aqueles que o encantam. Quando os irmãos se reencontram por acaso e Paulo descobre que a fugitiva tornou-se uma prostituta de luxo, o moralista desaparece, restando o homem dividido entre a beleza da irmã e a possibilidade de ela o proteger, fazê-lo participar de sua fortuna. O desejo incestuoso atinge o clímax na visita que Paulo faz a Violante horas depois. O ato não se consuma, mas o cenário destila volúpia:

Cortinas escuras temperavam a luz, quebrando a violência do sol que entrava por quatro janelas abertas sobre balcões. Na mesa do centro, incrustada de marfim, dentro duma linda jarra de porcelana, morriam rosas. Aroma tépido e voluptuoso impregnava o recinto. Os rumores da rua chegavam abafados, ensurdecidos, como se viessem de muito longe. [...] E, de pé, os braços cruzados, pôs-se a examinar os quadros, as estatuetas das peanhas. Uma sandália cor-de-rosa jazia no meio do salão embarcada. Sobre um dos divãs uma saia de rendas amarrotada parecia uma grande e estranha flor, murchando em abandono.

Da depravação ao cinismo salta-se com extrema facilidade. Assim, Paulo e Ritinha copulam na sala enquanto D.ª Júlia agoniza. Poucas horas depois, o corpo da boa mulher é esquecido – e a família obscena senta-se à mesa para jantar, rindo e travando saborosa discussão a respeito das características da comida francesa. Cabe a D.ª Júlia o papel de contraponto em meio a tanta torpeza. E ela o desempenha com humildade e brandura, sob a pressão do desespero e da doença, amando os filhos – mas, ainda que eles não percebam, sem se deixar enganar, sem perder a lucidez, conhecendo seus defeitos e momentâneas qualidades. Diálogos e oratória Merecem estudo à parte os diálogos de Turbilhão . Paulo e D.ª Júlia estão inteiramente personificados nestas breves falas: Soprou uma baforada e, vendo a mãe curvar-se a esfregar a perna, gemendo, quis saber se estava sentindo alguma coisa. – Tenho sofrido muito nestes últimos dias. É da umidade... E hoje andei tanto! – Eu também não tenho passado bem: dores de cabeça, fastio... É fadiga. Também, com a vida que levo não é para admirar: não paro. – É, precisas ficar um dia em casa descansando. – Pudesse eu! – suspirou encaminhando-se para o quarto. – Mamãe pode arranjar-me uma xícara de café? – Sim. A velha levantou-se pesadamente e foi devagar, claudicando, a amparar-se pelas paredes do corredor. [...]

O jovem que passou dois dias na jogatina, abandonando a mãe às grosserias do cobrador do aluguel, obrigando-a a caminhar pela cidade em busca de uma casa de penhores, retorna com o dinheiro que conseguiu e finge ter perdido horas em algum trabalho cansativo. As mentiras brotam de Paulo com tal naturalidade que, a partir de certo ponto, percebemos sua mitomania. O desmesurado egotismo torna-o indiferente à condição em que a mãe se encontra há semanas – e pede-lhe o café como se estivesse diante de uma mulher saudável, lépida. A mãe amorosa se enternece pelo filho que só consegue enxergar a si mesmo, despreza suas próprias dores e levanta-se para servi-lo. A viciosa intencionalidade das falas de Paulo nos revoltam, mas é admirável como o autor une as palavras à personagem delirante. Não há exagero nos termos utilizados, naturalidade e fluidez ampliam a verossimilhança e nenhum dos dois expressa sentimentos ou reações imprevistos. O diálogo contribui para desenhar a cena e reforça no leitor suas certezas em relação aos personagens, impulsionando-o a seguir na leitura, ao menos para descobrir quão pernicioso Paulo pode ser ou quanto de bondade D.ª Júlia ainda guarda em sua alma. Outro exemplo, distinto mas de igual qualidade, encontrase no Capítulo 4, quando Paulo procura Mamede, o expolicial, para que o ajude a encontrar Violante. A linguagem, aqui, sofre adequada transformação. As falas do mulato, repletas de coloquialismo, expressam, primeiro, falsa humildade, para, a seguir, transbordarem de jactância, pois suas promessas não se realizam, ele não localiza a jovem e todas as pistas que apresenta são apenas desculpas para extorquir alguns trocados de Paulo. O discurso malandro, contudo, anuncia o que saberemos mais tarde: o suposto amigo foi expulso da polícia, não passa de um larápio, ágil no uso da navalha, expedito para o jogo e o crime.

Há, no entanto, alguns problemas no texto. É uma pena que Coelho Neto às vezes abuse dos gerúndios: [...] Frias lufadas balançavam as lanternas, enfunavam as bandeiras, retorciam as flâmulas que faziam uma aleia triunfal à entrada e circulavam o pátio, subindo às negras folhagens das árvores raquíticas como estranhos frutos d’oiro e farrapos espadanando, alongando-se no ar, coleando, tufando.

Em raros momentos, o escritor cede à tentação da retórica, não consegue se libertar do incontrolável amor que muitos escritores brasileiros, ontem e hoje, têm pela própria voz. E acaba cometendo parágrafos assim: Era a hora maior do sol, a hora do esplendor máximo. Como que a natureza quedava em humilhação estática, adorando silenciosamente o grande astro a pino, na glória de toda a sua magnitude, dominando d’alto a terra que se prostrava como uma fêmea que se agacha sentindo o peso do macho sobre o seu corpo vibrante de emoção lúbrica. O silêncio dilatava-se abafando todos os rumores como se a vida fosse, aos poucos, parando – só um piano, na vizinhança, zaragalhava em notas fanhas, que discordavam do grande e solene arroubo daquele luminoso espasmo.

Esse tipo de orgiástica grandiloqüência – que faz também alguns autores repetirem sempre o mesmo narrador, com os mesmos cacoetes, certos de estarem escrevendo um novo livro, defeito a que dão o nome de “estilo” – é um índice de como permanecemos nos estágios iniciais das culturas escritas: neles, recordando a lição de Northrop Frye, o mais importante porta-voz é o orador. Desafio à história Mas coloquemos de lado essas imperfeições, superadas pelas características exemplares que apontei, e retomemos o início deste ensaio. Na verdade, esconde-se, sob o preconceito que há contra Coelho Neto, uma visão deformada de literatura. Faz tempo, a maioria dos críticos insiste que a arte literária deve expressar, necessariamente, não as experiências ou a maneira de ver o mundo de cada escritor, mas, sim, o modus vivendi de sua época – e precisa fazê-lo não só em termos de conteúdo, mas principalmente de forma. Leiam, por exemplo, o ensaio “Tema e técnica”, de Sérgio Buarque de Hollanda. [ 32 ] Escrito em 1950, as

idéias ali presentes se repetem, com palavras diversas, até hoje. O crítico e historiador lastima-se pelo fato de Oswald de Andrade e Clarice Lispector não terem intensificado seu experimentalismo nas obras que se seguiram a Serafim Ponte Grande e Perto do coração selvagem – e, defendendo a prevalência da técnica sobre a mensagem, aponta, em Coelho Neto, a falta de uma “moldura adequada”. Ora, idéias desse tipo deságuam em dois erros, faces da mesma moeda: menosprezam-se grandes narradores que não optaram pelo vanguardismo tout court – como Buarque de Hollanda faz, no mesmo ensaio, em relação à obra de José Lins do Rego – ou condena-se a linguagem literária à ingrata tarefa de reinventar a si mesma permanentemente, o que produz obras passíveis de serem compreendidas apenas por seus próprios autores ou por um seleto grupo de iluminados – beco do qual a literatura brasileira luta para sair. Sim, é verdade que a literatura está parcialmente condicionada pela história – mas é verdade também, como afirma Northrop Frye, que ela forja a sua própria história. Ela “responde a um processo histórico externo”, sustenta o estudioso canadense em O caminho crítico , [ 33 ] “mas não é determinada por ele no que diz respeito à sua forma”. E, completo, pode se contrapor ao seu tempo também no que se refere ao conteúdo. Deste modo, se queremos analisar um escritor, não devemos investigar se ele representa ou não sua época, mas, antes, ver seus livros, ainda citando Frye, como “estruturas coerentes”. Nossa difícil tarefa, portanto, é “permanecer a meia distância dos dois extremos não críticos”: a tese de que “a literatura necessita de uma referência social, sob pena de sua estrutura ser ignorada e seu conteúdo associado a alguma coisa não literária”; e a “crítica avaliadora que impõe os valores pessoais do crítico,

decorrentes dos preconceitos e ansiedades de sua própria época, a toda a literatura do passado”. Enquanto não nos libertarmos desses “extremos não críticos” ou “sofismas”, como Northrop Frye os denomina – em minha opinião, degenerescências das propostas que defendiam uma literatura engagée –, continuaremos desprezando obras que, intencionalmente ou não, negam-se a ser um eco do seu tempo. Exemplo elucidativo sobre essa questão encontra-se no ensaio “Improviso em homenagem a Stravinski”, de Milan Kundera, [ 34 ] mas referindo-se à música. Ali, o romancista tcheco mostra como a escolha de Bach pela polifonia pura significou, na prática, um “gesto de desafio para com a História, uma recusa tácita do futuro”. A mais radical escolha de Bach, portanto, denuncia o que muitos de nós esqueceram, que a História não é necessariamente um caminho ascendente (em direção ao mais rico, ao mais culto), que as exigências da arte podem estar em contradição com as exigências do dia (dessa ou daquela modernidade) e que o novo (o único, o inimitável, o que nunca foi dito) pode ser encontrado numa direção diferente daquela traçada por aquilo que todo mundo sente como progresso. Com efeito, Bach pôde ler na arte dos seus contemporâneos e dos mais jovens do que ele um futuro que deveria parecer, a seus olhos, uma queda.

Excelência Desconheço se as escolhas estéticas de Coelho Neto foram conscientes, mas sua obra nos afirma que ele recusou seguir a via aberta por Machado de Assis com Memórias póstumas de Brás Cubas , publicado em 1880, mais de duas décadas antes do romance que aqui analisamos – e nem por isso deixou de escrever “uma obra-prima indiscutível”, como Wilson Martins [ 35 ] classifica, acertadamente, Turbilhão . Entre minhas certezas, só posso repetir o que o poetastro Aurélio afirma no Capítulo 14 de Turbilhão , vociferando, exaltado, em favor da “Arte Nova” que estaria a caminho, “sonora e rica, luminosa e forte”, anunciando ter ele mesmo no fundo da gaveta “dois poemas e um romance [...] cuja

tese era a emancipação da mulher, com um surdo protesto contra o celibato clerical”. Por meio de Aurélio, Coelho Neto ironiza o futuro, sem saber que tal predição se realizaria da pior forma: numa tentativa de estraçalhar sua obra. Mas, apesar das conseqüências nada desprezíveis, comemoremos: o futuro não se realizou plenamente. [ 30 ] Volume V de A Literatura Brasileira , 5ª edição, Editora Cultrix. [ 31 ] 2ª edição, revista, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1957. [ 32 ] Ver O Espírito e a Letra , volume 2, Editora Cia. das Letras, São Paulo, 1996. [ 33 ] Editora Perspectiva, São Paulo, 1994. [ 34 ] Em Os testamentos traídos , 2ª edição, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1994. [ 35 ] História da Inteligência do Brasil , Volume V (1897-1914), 2ª edição, T. A. Queiroz Editor, São Paulo, 1996.

CAPÍTULO 5

Perfumaria bilaquiana – Olavo Bilac e suas crônicas

Dentre os gêneros literários, a crônica é o mais ingrato. Servos do transitório, são raríssimos os cronistas que conseguem impregnar seus textos com elementos capazes de extrapolar o banal, conceder ao corriqueiro uma perspectiva inusitada. Esses – como Rubem Braga, de quem comemoramos o centenário de nascimento quando escrevo este ensaio – conquistam sobrevida; a maioria, no entanto, está condenada ao esquecimento ou a ter suas produções lidas não pelo valor literário, mas por serem documentos curiosos, úteis a sociólogos, historiadores e quejandos. O poeta Olavo Bilac, que produziu crônicas, com maior ou menor intermitência, de 1883 a 1908, escrevendo, em períodos diferentes, para quase três dezenas de revistas e jornais, situa-se no grupo maior. É o que pode ser verificado ao lermos o criterioso trabalho de Antonio Dimas, Bilac, o jornalista . [ 36 ] Uma crestomatia anterior – Vossa insolência , [ 37 ] também organizada por Antonio Dimas – serve ao leitor interessado em conhecer, de forma não extensiva, a prosa de Bilac. Clichês e elogios A pobreza da imagística bilaquiana aproxima-se do vexaminoso. Seus textos são escritos sob a autoridade do lugar-comum. O “lento evoluir da aldeia em cidade” é definido como “lenta passagem do estado de lagarta ao estado de borboleta”, no qual o substantivo masculino repete-se de forma desnecessária e desagradável. Dizer que o “desejo andava, tonto e ansioso, rodando em torno dela

como um animal faminto em torno de uma presa cobiçada” é utilizar a comparação mais previsível. A mesma observação serve para “alegre como um canário, fresca como uma madrugada”, “ardendo no fogo de todas as paixões” e “lareira em que um lume alegre crepitava”. Espera-se, a cada crônica, uma figura que fuja à banalidade, mas o clichê predomina: “Tudo se renova, tudo progride, e nada morre. Morremos nós, que nada somos. Mas as cidades ficam e perduram, devoradoras de gerações”. Ou: “A primavera simboliza a mocidade das cousas e das almas”. E ainda: as palavras que “entram como cunhas de aço na alma de quem as lê”; a terra que “somente se abre em verduras de primavera e em frutos do outono depois de ter o seio dolorosamente rasgado pelo arado”. Por mais que se esforce – e prefiro imaginar que se esforçava –, Bilac não consegue fugir da expansão dos sentimentos melosos. Ao relembrar a juventude, exclama: [...] Doce e clara manhã! talvez fosse, realmente, uma agreste manhã, feia e chuvosa; mas a minha alegria, o meu orgulho de rimador novato, a minha vaidade de poeta “impresso” eram capazes de acender um sol de verão na mais nevoenta alvorada de inverno.

Referindo-se à casa de Eça de Queirós em Paris, define-a: “[...] um encantado recanto de paz e trabalho no meio da tumultuosa agitação da grande cidade”. E utiliza os mesmos artifícios, que cansei de ler nos almanaques farmacêuticos da minha infância, para qualificar o trabalho do romancista português: “paciente e sublime ofício de corporificador de idéias e de desbastador de palavras”. São raras as crônicas em que Bilac não paga alto preço à eloqüência vazia – no Brasil, a maior destruidora de talentos, depois da idealização romântica: [...] Ao cair da tarde, esgotada a sua provisão cotidiana, o semeador dá um último olhar à terra palpitante, mira-lhe com amor o seio fecundo preparador para a glória da messe futura, e já pensa no trabalho do dia seguinte, na continuação do labor sagrado, que é a única preocupação e o único orgulho de sua existência...

Na mesma crônica, dedicada a Émile Zola, as conseqüências da adjetivação incontrolável voltam a se mostrar, nefastas: [...] De pedra em pedra, o edifício da sua obra hercúlea crescia e subia. Nascido do lodo, com a base no fundo asqueroso do pântano humano, esse edifício demandava o céu, a claridade serena, a alta glória da luz.

Peço ao leitor que tire o sorriso do rosto. O caso é dramático. Esse tipo de estilística piegas fez escola no Brasil – e sofremos suas conseqüências até hoje. Há, acreditem, acadêmicos que têm a mesma poética avaliação da obra de Aluísio Azevedo, ainda que, mutatis mutandis, tomem o cuidado de esconder um pouco os adjetivos... Mas voltemos ao rol de elogios a Zola. Não satisfeito, Bilac ainda pespega: [...] – era apenas um poeta, um grande poeta, cuja alma de criança sonhara pôr o céu ao alcance da terra, e que, dia e noite, via sorrir sobre as tristezas da vida contemporânea o prenúncio de uma vida melhor, o primeiro rubor de uma aurora fecunda, toda de paz e igualdade, toda de amor e de fartura.

E já que recordamos o autor de O Cortiço , Bilac pertence, sim, ao grupo dos admiradores de Azevedo. Chama o amigo de “vigoroso operário das nossas letras”, cujo “estilo freme e fulgura com as palpitações do ideal que as inflama” – mero circunlóquio para construir a discutível glorificação. Como percebemos, não faltam elogios fáceis à imaginação do nosso cronista. Referindo-se a O Defunto , de Eça de Queirós, chama o conto de “obra-prima”, “novela admirável [...] animada de um vasto sopro de gênio”, “a mais notável, talvez, das criações de Eça”. De Artur Azevedo, dirá que “foi artista em todas as manifestações da existência, no escrever, no pensar, no falar, no viver”. E termina o necrológio, incansável, com este período manco: “[...] Não desaparece verdadeiramente o Artista, que ficará vivendo na história deste país, quando a Morte também já tiver consumido todos os corações e todas as inteligências que admiram a sua inteligência”. José Carlos Rodrigues, diretor do Jornal do Comércio , tem não apenas “tato”, mas

“prudência” e “atilado espírito”; seu jornal é “grave, pesada, seriíssima e formidável folha”, ainda que no passado tenha apresentado “enorme face impassível de paquiderme monstruoso” – deplorável conjunto de adjetivos. Outro jornalista, Ferreira de Araújo, “viveu servindo à Arte e à Poesia, e alimentando com o seu talento e a sua dedicação esta atmosfera moral de sentimento e inteligência, que é o nosso maior orgulho de povo”; “aliavam-se no seu estilo a força e a graça, a impetuosidade e a leveza, a solidez e a malícia”. Um gênio, felizmente desconhecido. Hipérboles O exagero permeia grande parte dos exemplos acima, afinal, o que seria da eloqüência sem a hipérbole? Ambas trabalham juntas para criar os balões de gás que encantam leitores ineptos. O mero projeto de colocar bustos de escritores no Passeio Público transformará o local no “templo umbroso e perfumado dos numes tutelares da nossa Inteligência”. Mas Bilac esquece que o enaltecimento despropositado pode tornar certas virtudes irreais: [...] Émile Zola não conheceu nunca os desfalecimentos que desmoralizam o trabalhador, as dúvidas, as hesitações, as síncopes da vontade, as fases de trágico e tremendo desespero em que o espírito a si mesmo pergunta se não é uma loucura perder as forças num trabalho vão. Zola não duvidou nunca da nobreza e da utilidade de sua tarefa.

Muito além do razoável e do bom senso, Bilac exalta e dramatiza, criando efeito diverso do pretendido também nestas linhas dedicadas a José do Patrocínio e sua tentativa de construir um dirigível que cruzasse o Atlântico: Ali dentro, o gênio humano está armazenando forças para alcançar uma nova conquista; ali fermenta e ferve uma idéia imensa, ali cresce e se empluma, para a grande viagem da luz, um sonho radiante. E quem vê o pesado bonachão, que parece calmamente dormir, sob a soalheira ardente do dia ou sob a paz estrelada da noite, não pode imaginar que assombroso e misturado mundo de esperanças, de desesperos, de desenganos, de surtos de fé, de assomos de coragem, de sacrifícios, de desilusões, de milagres de pertinácia e de prodígios de trabalho está vivendo e palpitando entre aquelas quatro paredes mudas...

Destrambelhado, o cronista substitui “cama” por um ridículo “vale dos lençóis” e transforma certo bonde em alucinação: Haja sol ou chuva, labute ou durma a cidade, o trabalho metódico do bonde não cessa: à alta noite, ou alta madrugada, quando já os mais terríveis noctívagos se meteram no vale dos lençóis, ainda ele está cumprindo o seu fadário, deslizando sobre os trilhos, abrindo clareiras na treva com as suas lanternas vermelhas ou azuis, acordando o eco das ruas desertas, velando incansável pela comodidade, pelo conforto, pelo serviço da população.

E a cascata de gerúndios, anunciada no trecho acima, finalmente surge: Mas que te importa que digamos mal de ti, condescendente e impassível bonde? Tu não dás ouvido às nossas recriminações, e vais largando o teu domínio, dilatando o teu aranhol, suprimindo as distâncias, confraternizando pela aproximação o Saco do Alferes com Botafogo e a Vila Guarani com o Cosme Velho, e reinando como senhor absoluto e indispensável sobre a nossa vida.

Ritmo ternário A fraseologia bilaquiana guarda outra particularidade maçante: a tríade de palavras encadeadas – esquemática forma de acumulação. Certo jornalista é “o mais completo, o mais brilhante e o mais popular”. Depois de ir aos cinematógrafos, o autor se diz “derreado, tonto, moído”; e afirma, sem perceber a importuna cacofonia, que seu acompanhante “olhava, mirava, admirava, embevecido, deliciado, enlevado”. O texto ganha ritmo de modinhas e o leitor segue um bando de crianças, “lenta e ruidosa maré de frescura, de mocidade, de animação”. Surge, de repente, o perfil gerenciador de Bilac: “Administrar não é somente gerir: é também, e principalmente, assistir, acudir, prover”. Falando sobre a Revolta da Vacina, o cronista se transforma num militante ecológico: “[...] a alcatéia arrancara, torcera, espezinhara, destruíra todas as pobres árvores pequenas, que, ainda fracas e humildes, dentro de suas frágeis grades de ferro, só pediam, para crescer e dar sombra, um pouco de sol ao céu, um pouco de umidade à terra e um pouco de carinho aos homens”. O povo brasileiro, eis a irretorquível

certeza do cronista, “tem uma inteligência nativa, exuberante, pronta”. E o ecologista retorna, agora para somar obviedade ao discurso monótono: “Aves e borboletas são felizes: em tendo um pedaço de céu azul, um bocado de jardim verde, um raio tépido de sol, não pedem mais nada”. Aferrado à receita medíocre, Bilac não descansa: “que vida agoniada, inquieta, sobressaltada” exclama, nesse estilo saltitante, referindo-se a Carlos Gomes; e conclui, decidido a romper drasticamente o ritmo da frase, mas preservando as rimas: “[...] numa perpétua luta com os editores, com os empresários, com os cantores, e com os credores!”. Em certa crônica, Bilac reclama, de forma surpreendente, da “retórica que se encarrega de estragar tudo”. Concluímos, então, que ele de fato não tinha consciência da própria inabilidade. Pequenos escritores Canhestro no estilo, às vezes o cronista oferece informações jocosas. Sua visão do sistema literário em 1905, por exemplo, repete-se, sem grandes modificações, atualmente. Para ele, o Rio de Janeiro era a capital de uma nação que, sobre todas as outras do continente, sempre teve a primazia em cousas da Inteligência. [...] É ela que possui a literatura mais vibrante, mais original, e mais forte.

E conclui, depois desse jato de otimismo carioca, sem atinar com o absurdo: Uma só cousa tem prejudicado essa literatura: é o círculo restrito, em que se expande acanhadamente a língua que falamos e escrevemos... Se os nossos escritores ainda não têm trabalho fácil e vida folgada, é porque ainda não existe no país uma grande massa de leitores.

Termina o raciocínio voltando ao júbilo infundado, à comemoração dessa literatura sem leitores: É forçoso reconhecer que só nos falta isso: expansão literária. A matériaprima já a possuímos: temos literatura nossa, como temos arte nossa – e esta supremacia intelectual e artística, ainda não a perdemos (graças a todos os deuses!) no continente sul-americano.

Na crônica “Flaubert”, ao recordar viagem feita à França, em 1890, para assistir, na cidade de Rouen, à inauguração de um singelo busto do autor de Madame Bovary , Bilac revela a faceta suburbana dos nossos escritores. De Paris a Rouen, ele, Eduardo Prado, Paulo Prado e Domício da Gama ocupam quatro lugares num vagão de primeira classe com apenas oito poltronas. Nas quatro restantes, Émile Zola, Edmond de Goncourt, Guy de Maupassant e o editor Georges Charpentier. Mais presumidos que acanhados, os brasileiros só conseguem rir dos franceses. A descrição que Bilac faz é patética – ou melhor, vergonhosa, tamanha a pequenez. Tédio No entanto, se os textos de Bilac estão recheados de pompa pretensiosa, isto não se deve apenas ao estilo maljeitoso, mas também ao narcisismo do autor: O noticiarista retira da mina a ganga de quartzo em que o ouro dorme, sem brilho e sem préstimo; o cronista separa o metal precioso da matéria bruta que o abriga, e faz esplender ao sol a pepita rutilante.

Entre as “pepitas”, cuja prolixidade destila enfado e bolor, há críticas e elogios à imprensa e aos políticos, ditos irônicos, traços de humor, trechos autobiográficos, descrições das causas e conseqüências da febre amarela etc. E discurso ornamentado. Muita, muita perfumaria. [ 36 ] 3 volumes, Edusp / Imprensa Oficial do Estado de São Paulo / Editora da Unicamp, 2006. [ 37 ] Editora Cia. das Letras, 1996.

CAPÍTULO 6

A salvação pelo duplo – Lindolfo Rocha e Maria Dusá

Pode-se definir Maria Dusá , de Lindolfo Rocha, como um romance no qual certa ótima idéia é constrangida pela linguagem claudicante. No afã de apresentar múltiplos pormenores, incluindo-se as características climáticas e sociológicas da Chapada Diamantina, região em que a maior parte do enredo transcorre, o autor não se satisfaz com escrever uma boa história, mas perde-se em trechos retóricos ou de teor ensaístico. O próprio subtítulo de Maria Dusá , suprimido nas edições contemporâneas, revela parte da intenção do autor: Garimpeiros (romance de costumes sertanejos e chapadistas) . Logo na abertura do Capítulo III , de maneira a reforçar a descrição da seca de 1860, cujas conseqüências foram perfeitamente expostas no início do livro – não por meio de digressões cansativas, mas de fatos dramáticos, sobre os quais falaremos adiante –, o narrador insiste: Nesse ano de tristíssimas recordações a zona ubertosa do interior da província da Bahia transformou-se em terra sáfara, imprestável; de nutriz fecunda e dadivosa, que era, mudou-se em madrasta irritadiça e ilacrimável; de liberal e opulenta, em mendicante e miseranda. Em grandes extensões de terreno não se vislumbrava sinal de clorofila senão no Icó, a planta que resiste a todas as secas, e nas diversas espécies de cactos, entre as quais sobressaíam o mandacaru, a palmatória e o xiquexique formando este sempre e em grande cópia os grandes e bizarros candelabros de Humboldt.

Poucos parágrafos à frente, do relatório passamos à verborragia sentimentalóide:

climático

Nas estradas, de espaço a espaço, encontravam-se quadros vivos da mais completa consternação. Aqui, um velho, cercado de filhos e netos famintos, num cirro interminável de durar dias e dias; ali, um desventurado pedindo

pelo amor de Deus um punhado de farinha para que o filho pudesse morrer; adiante a figura esquelética doutra mater dolorosa , na última agonia, deixando que o filhinho lhe sugasse a derradeira gota de leite sanguinoso; além, orlando a estrada, arranchamentos provisórios, retirantes famintos, movendo-se lentamente, em busca d’água ou de raízes, extremamente magros, cheios de escaras, de doenças, de achaques, ou aniquilados de anemia profunda, e dentre os quais partiam gritos que aterravam, gemidos que cortavam o coração, e, de envolta com esses, imprecações dos desesperados, pragas dos cínicos, gargalhadas dos desalmados, choro de crianças, tudo isso lembrando alguma coisa daquele choro e ranger de dentes do Juízo Final.

A imperiosa necessidade que o autor se impõe, de desenhar um retrato social, quebra, em inúmeros trechos, a espontaneidade da narrativa. Assim, por exemplo, nada acrescenta à trama a notícia, no início do Capítulo V , de que Mucujê chama-se, desde 1847, Vila de Santa Isabel. Ou a informação, no mesmo capítulo, que certo personagem, anos depois, teria um filho governador do Estado. Ao descrever as conseqüências do tiro dado contra um arruaceiro, o narrador torna-se perito em anatomia: “Apenas quatro caroços de chumbo empregaram-se na omoplata direita, interessando somente o tecido celular subcutâneo”. Da mesma forma, no Capítulo VI , assume a personalidade de um topógrafo e fala sobre as “anfractuosidades do terreno”. Mais à frente, no Capítulo VII , a fim de detalhar o sentimento de saudade, transforma-se em psicólogo, explicando como, “por um fenômeno de autopersuasão, mui freqüente nas pessoas predispostas ao histerismo, a gratidão [...] transformava-se em benquerer”. Na seqüência, uma personagem não sente fome, mas procura “não sucumbir à dor que lhe torturava a principal fonte de renovação da vida animal”. Suposto bioquímico, o narrador nos explica também os efeitos do “cloreto de sódio em organismos desacostumados e enfraquecidos”. Ainda preso a teses naturalistas, justifica, utilizando-se de um biologismo rasteiro, a independência financeira que algumas prostitutas conquistavam à época:

Na Chapada Nova, como na Chapada Velha, era coisa vulgar verem-se mulheres de vida livre, no auge da influência, transformadas repentinamente em negociantes, capitalistas, garimpeiras, hoteleiras, e até alquiladoras, abandonando dessarte, sem confissão nem penitência a poliandria do tom. Era isso efeito de intuitiva previdência, reunida ao instinto monogâmico, ou da conservação da espécie, que mui alto fala, exatamente entre as mais baixas classes dos sertões brasileiros.

Não satisfeito, o narrador assume papel de geólogo, fornecendo, no Capítulo XIX , longa e fastidiosa explicação sobre o processo de formação do diamante, bem como das técnicas de garimpagem. Quanto à maldita retórica, renasce sempre. Recurso nefasto, pronto a poluir e desequilibrar a narrativa, como neste trecho: Águas e serras! Que filho, que habitante destas regiões criadoras do “diamante e do gênio”, não sentiu alguma vez toda a grandiosa poesia dessas paisagens alpestres, que, se desnutrem ambições evangélicas, de pobreza e santidade, tonificam o caráter para as mais rudes conquistas da vida! Águas e serras! Que desventurado, ausente, ou que feliz, mas ao entardecer da existência, não rememora, saudoso, os dias idos, de sonhadora contemplação das altas serranias, que dilaceram as nuvens com o itacolumito de seus visos, ouvindo o escachoar das águas límpidas, por entre as arestas do granito de seus flancos! Águas e serras! Que filho ou ádvena não traz de memória o selo de grandeza dessas altanadas serras, e o cunho fisiológico dessas águas salubérrimas!

Suportamos parágrafos assim, de arrebatamento meloso, apenas para nos deparar, no Capítulo XXXIX , com outros ainda piores, aos quais se acrescenta patriotismo avassalador. Contar ou mostrar Penso que uma das grandes dificuldades de Lindolfo Rocha é a de efetivamente crer na sua capacidade de narrar. Durante a leitura, lembrei-me do sábio conselho de Anton Tchekhov: “Não diga que a lua está brilhando; mostre o brilho da luz num copo quebrado”. Chega a ser dramático perceber como o autor cumpre perfeitamente a

recomendação do escritor russo, caindo, logo a seguir, no erro apontado na primeira parte da citação. Vejamos um exemplo da insegurança de Lindolfo Rocha. No início da história, na Fazenda Lagoa Seca, devastada pela estiagem prolongada, encontramos a família de Raimundo e Maria Rosa Alves, destruída também por “incurável preguiça”. A desolação do cenário impressiona – e o narrador nos fornece detalhes iluminadores da pobreza, como o das filhas do casal, que utilizam, na confecção das rendas de bilro, não alfinetes, mas espinhos de mandacaru. Quando chega a inesperada tropa, sob o comando de Ricardo Brandão, temos a cena de terrível aviltamento, em que a velha Maria Rosa não só desnuda as filhas diante do tropeiro, a fim de ressaltar sua pobreza, como as oferece em troca de um celamim de sal. A reação de Ricardo expressa toda a sua personalidade: circunspecto, ele analisa o quadro jamais imaginado; aceita comprar a filha mais velha, Maria; entrega aos pais não só sal, mas toucinho e carne; e aproxima-se da jovem: – Não chore, não, moça; seus pais venderam a filha, mas a filha não foi comprada: fica aí, com eles; somente lembre-se que o mineiro se chama Ricardo Brandão. Aqui está mais uma lembrança, que eu destinava a uma irmã. E assim dizendo, tirou da escarcela uma pequena medalha de prata e a entregou com mão trêmula.

Ora, a configuração ética do personagem está dada. Quando o jovem monta seu cavalo, já não é um tropeiro qualquer, mas o herói, verdadeiro ginete do sertão. A luz brilhou no copo quebrado. Lindolfo Rocha conseguiu o que todo escritor deseja: mostrar algo – e não apenas contá-lo. Qualquer outra informação que possa ser adicionada deve cumprir, a partir desse ponto, duas funções: reafirmar tais virtudes ou, a fim de desenvolver a trama, negá-las, momentaneamente ou não. O problema é que nosso autor parece, muitas vezes, não ter consciência da técnica que utiliza. Assemelha-se a um

intuitivo cujos acertos nascem do acaso. Assim, ao longo do texto, Lindolfo Rocha sente-se obrigado a ressaltar as qualidades e defeitos de Ricardo, às vezes por meio de novos fatos, bem narrados, mas desgraçadamente repetindo, em inúmeros trechos, que “a lua está brilhando”. Perde-se, então, nos insistentes adjetivos ou nas longas, enfadonhas digressões. Artimanhas e personagens Todavia, é inacreditável que tal somatório de truculências textuais não consiga destruir Maria Dusá . E se a obra ainda é legível, deve isso, em parte, ao enredo nem um pouco esquemático. A imagem de Maria permanecerá, na mente de Ricardo, como a da mulher idealizada. Depois de fugir da perseguição policial, devido ao tiro que poderia ter matado um arruaceiro, Ricardo volta a Minas Gerais, para vender a tropa e rever a mãe. Ao mesmo tempo, morrem Raimundo, Maria Rosa e o único filho homem. Decidida a encontrar o tropeiro, cansada da pobreza, Maria foge para a Chapada Diamantina. Na fuga, inocente, une-se a um grupo de meretrizes. Recusando-se a se prostituir, acaba sendo protegida, em Mucugê, por D.ª Rosária. Aprende a ler e escrever; e começa a fazer flores artesanais. Ricardo, que sonha com os diamantes, volta à Bahia, acompanhado de um fiel tropeiro, João Felipe, e de um cão, Amigo, que desempenha papel importante na história. Ao chegar a Xiquexique, é hospedado por um sertanejo, que a princípio não reconhece, a quem matara a fome depois de abandonar Lagoa Seca. Os dois saem, certa noite, e são atraídos pela festa que se realiza na casa de uma famosa prostituta, Maria Dusá. Quando Ricardo vê a mulher, acredita ser a Maria que se recusara a comprar, tamanha a semelhança entre as duas. Invade a casa e, para sua surpresa, é ridicularizado pela mulher e seus convidados. Pari passu , D.ª Rosária e Maria, pressionadas por mexericos, já haviam

se transferido também para Xiquexique; e, certa noite, durante uma novena, Maria vê Ricardo na igreja. Tímida, pede que sua protetora fale com ele. Contudo, quando a mulher se aproxima, a confusão está formada: Ricardo acredita que Maria Dusá é Maria – e vê em D.ª Rosária a portadora do recado de uma pessoa ingrata, que, esquecida do passado recente, agora o humilha. Com seu insultuoso revide, o protagonista afasta de si, sem saber, a Maria com que ainda sonha. Por outro lado, Dusá não consegue tirar o mineiro voluntarioso de seus pensamentos. A partir daí, os destinos dessas três pessoas se entrecruzarão cada vez mais. Ricardo progride com os diamantes, mas logo conhece a ruína, embriagado pelo dinheiro fácil, por falsos amigos e prostitutas. Dusá toma consciência do vazio de sua vida e decide mudá-la radicalmente. Instigada por sua semelhança com outra mulher – fato que, gradativamente, torna-se público –, aproxima-se de Maria e coloca-a sob sua proteção. Da mesma forma que, a princípio sem o conhecimento do garimpeiro, ajuda Ricardo em seus reveses. A trama também ganha complexidade graças ao recurso de retardar o esclarecimento de dúvidas e confusões. No Capítulo X , a estranheza de Ricardo em relação à forma exageradamente atenciosa com que é tratado por seu anfitrião contamina o leitor, e passamos a desconfiar do personagem. Só parágrafos à frente descobrimos, junto com Ricardo, que se trata do sertanejo a quem dera de comer capítulos antes. A mesma técnica de retardamento é utilizada depois que Ricardo invade a casa de Maria Dusá, certo de ter sob os olhos a sua Maria. Somos iludidos por várias páginas. O leitor acredita que o narrador exagera e não sabe concatenar os fatos com a passagem do tempo. No entanto, o que parecia uma falha – responsável por transformar

Maria, de maneira assaz rápida, numa prostituta famosa – torna-se efeito elogiável, sedutora artimanha. O romance apresenta outras características relevantes. Há maravilhoso grupo de personagens secundários, para os quais o autor construiu cenas antológicas. Veja-se, no Capítulo XXI , o trecho em que Antônio Roxo – honesto, fiel a Maria Dusá, sonhador inveterado – vinga sua amiga e patroa, submetendo o malevolente Aristo Alfaiate a sábia punição, obrigando-o a comer o pasquim anônimo que publicara para caluniar Dusá. Ao final, um elemento inesperado completa a vingança: Em poucos minutos tinha engolido todo o pasquim. No último, Antônio voltou ao tom zombeteiro, e ria. – Agora, sim, disse ele, podemos ser camaradas. Com essa cura você ainda pode fazer boa figura na sociedade, porque inteligência tem. Assim não lhe dê ela pra aperrear os outros... Sim, já comeu tudo... agora só bebendo um pouquinho do azeite da candeia, que eu acho que papel comido assim faz um mal danado à barriga da gente. E assim falando, procurava uma vasilha para tirar azeite. – Tira aqui, Manuel Pedro. O camarada assomou à porta. [...] Manuel Pedro apanhou uma xícara na saleta que servia de cozinha e trouxe. – Ah! Sô Antônio! O azeite da candeia está quente! olhe ali no canto uma garrafa! – Como é sabido! chasqueou o garimpeiro. Não gosta de azeite quente pela boca! Porém no inferno você há de tomar fervendo por outros lugares! A garrafa estava cheia de azeite de mamona, retinto; o garimpeiro encheu a xícara, e o Alfaiate bebeu-a de um fôlego. – Bem, agora estamos de pazes. Adeusinho, e queira-me bem que não custa dinheiro, disse Antônio, saindo adiante do camarada. O alfaiate chorava debruçado sobre a mesa do quarto. Pela porta da rua, que ficara aberta, entrou apressado um vulto de mulher. Na porta do quarto, apostrofou: – Mas isso é que é miséria no mundo! Toma estas saias e dá cá essas calças, peste! Disse e fez meia volta, retirando-se. Era a vizinha predileta do Aristo.

Outro personagem cativante é Amigo, perdigueiro que não tem os dotes quase humanos da Baleia de Graciliano Ramos, mas cujas inteligência e afeição pelo dono

empolgam, enternecem. Ocupa papel crucial na terrível luta do Capítulo XXIII , ao defender Ricardo de seus captores. O trecho, aliás, termina com duas cenas de grande humanidade: o divertido diálogo entre o inspetor de polícia e sua esposa, quando esta o censura pela covardia; e o encontro de dois apenados com um terceiro, que fora atacado por Amigo e morria: os personagens demonstram ternura pelo agonizante, cumprem as ordens do inspetor, de se desfazer dos outros corpos, e ainda têm a esperteza de fugir. Humor, perfeito coloquialismo, respeito, benevolência e maternal fidelidade estão presentes em todos os diálogos que Dusá mantém com Rita, a escrava à qual, no fim da trama, dará carta de alforria. Mas é uma pena que o narrador mostre-se vacilante em sua maneira de retratar as mulheres: ao mesmo tempo que compõe Dusá, protagonista capaz de altruísmo e autoconhecimento, às vezes assume certa posição preconceituosa, como no Capítulo XIV , em que generaliza, acusando todas de serem supersticiosas. Doppelgänger É curioso que parcela da crítica insista em permanecer cega às qualidades de Maria Dusá . Alfredo Bosi restringe-se a recomendar sua leitura, não sem alguma ironia, aos “críticos que, por gosto ou convicção doutrinária, amam a projeção romanesca do trabalho humano, com toda a fadiga e a esperança que implica”. Massaud Moisés explicita, em duas páginas, o que define como “luz dissonante imprevista”; e, seguindo os passos de Lúcia Miguel-Pereira, chama de “solução primária ou de mau gosto” a semelhança entre Maria e Maria Dusá. Penso de maneira oposta. Na verdade, o tema do doppelgänger – do duplo – é dos mais recorrentes na literatura: de Plauto, e sua Menaechmi , a Shakespeare e A comédia dos erros , chegando, apenas para citar dois

exemplos, aos contos O parceiro secreto , de Joseph Conrad, e O outro , de Jorge Luis Borges. São inúmeros os desdobramentos do tema, demonstrando a indiscutível riqueza que oferece à arquitetura narrativa, romanesca ou não. À parte a confusão que permite – nos personagens que vêem a duplicidade ou a experimentam em suas próprias vidas –, o duplo surge, também, como ensejo à mudança ou à reafirmação da própria identidade. No caso de Maria Dusá, a insatisfação com sua vida e a decisão de mudar são anteriores à descoberta de Maria, mas o encontro com a igual reforça a urgência de ser diferente. Colocada diante de Maria – virgem, pobre, abandonada –, Dusá vê com maior nitidez sua condição: é rica e famosa; mas riqueza e fama que durarão, bem sabe, apenas enquanto for atraente. Neste romance, ver o duplo não é enlouquecer, como ocorre em parte das narrativas que utilizam o doppelgänger . Ao contrário, a solução de Lindolfo Rocha mostra-se agradavelmente complexa, pois constrói dois destinos opostos: Maria Dusá recusa o presente vivido enquanto ilusão, abandona as fantasias da vida depravada e abraça o real; não se definirá mais pelo que sonha ser, mas pela realidade; sua lucidez cresce – e mesmo que, de início, sofra com a maledicência das pessoas ou com a dúvida em relação aos sentimentos de Ricardo, seu prêmio, no fim, será a felicidade. Ocorre o inverso com Maria. Deixando-se levar pelos acontecimentos, inclusive por certo incontrolável sensualismo, assume, a princípio, uma posição leviana, depois cínica, finalmente diabólica. Veja-se o perturbador Capítulo XXVI , em que a transformação de Maria se consuma diante de Dusá: a jovem parece incorporar a personalidade da prostituta e de sua pior inimiga, tentando, inclusive, seduzir a protetora. Mais tarde, chega, por acidente, a casar-se, mas a viuvez – provocada pela semelhança que tem com Dusá – leva-a, finalmente, à prostituição e à morte.

Em Maria Dusá , o encontro com o duplo não oblitera o eu, mas, ao contrário, afirma-o. Permite às personagens fugir da ambivalência – para o bem e para o mal. Há no romance, portanto, instigadora dimensão ética, na qual a escolha entre objetividade e sonho, realidade e fantasia, impõe, como na própria vida, conseqüências. No caso específico de Dusá, o encontro com sua mítica metade significa uma salvadora reintegração ao real. Luta O romance que Wilson Martins chamou de “superestimado [...], ficção folhetinesca e melodramática”, [ 38 ] tem, portanto, qualidades que não podem ser desprezadas. E o que menos importa em Maria Dusá é exatamente o seu regionalismo, apesar de ter servido, segundo informações de Múcio Leão, à Comissão de Filologia da Academia Brasileira de Letras “como uma das suas fontes de abonação de brasileirismos”. Na verdade, os aspectos positivos do livro revelam a luta do escritor, consciente ou não, para libertar-se da retórica oitocentista e buscar o que, até aquele princípio do século XX , poucos autores nacionais tinham encontrado: a literatura. [ 38 ] História da Inteligência do Brasil , Volume V (1897-1914), 2ª edição, T. A. Queiroz Editor, São Paulo, 1996.

CAPÍTULO 7

Retorno à querência – Simões Lopes Neto e Lendas do Sul

Vem de longe minha admiração pelo gaúcho João Simões Lopes Neto. Na biblioteca de meu pai havia um exemplar ricamente ilustrado do Lendas do Sul . Ainda menino, eu tinha certeza de que, aberto o volume, o sortilégio mais uma vez me atingiria – mas recalcitrava contra o medo e retornava às gravuras, àquele início perturbador de “A Mboitatá”: Foi assim: num tempo muito antigo, muito, houve uma noite tão comprida que pareceu que nunca mais haveria luz do dia. Noite escura como breu, sem lume no céu, sem vento, sem serenada e sem rumores, sem cheiro dos pastos maduros nem das flores da mataria.

Lá estava eu novamente, cego imerso no caos, tocando às apalpadelas o vazio que me circundava, temendo que a cobra-grande aparecesse. Depois, à noite, como cruzar o corredor – pequeno trecho do conto, pleno de escuridão – que levava do meu quarto ao banheiro? Hoje, quando me disponho a escrever sobre Lendas do Sul , há, no entanto, outro obstáculo. É difícil tratar de aspectos que não tenham sido analisados por Augusto Meyer, um dos poucos mestres da crítica literária nacional, que em três ensaios – presentes no volume Prosa dos Pagos (1941-1959) [ 39 ] – praticamente esgotou os elogios, os estudos pormenorizados e o levantamento histórico dos temas e das fontes de Simões Lopes Neto. E o fez com seu estilo nobre, inconfundível. Na verdade, qualquer análise da obra do escritor pelotense guarda uma dívida com esse crítico, ainda que prefira escondê-lo na bibliografia...

Alegoria e epizeuxe A lenda do Negrinho do Pastoreio, que Simões Lopes Neto reconta, nasce, como bem definiu Augusto Meyer, do “estrume da escravidão”. Saliente-se, aliás, a sugestiva analogia que o crítico estabelece entre a narrativa e a descrição do naturalista e viajante Auguste de Saint-Hilaire, que tivera a oportunidade de encontrar – e deixou gravado em seu Notícia descritiva da Província do Rio Grande de S. Pedro do Sul – um dos possíveis arquétipos que inspiraram a tradição popular: Há sempre na sala um negrinho de dez a doze anos que permanece de pé, pronto a ir chamar os outros escravos, a trazer um copo d’água e a fazer todos os pequenos recados necessários ao serviço interior da casa. Não conheço criatura mais desgraçada que esta criança. Não se assenta, nunca ninguém lhe sorri, nunca se diverte, passa a vida tristemente apoiado à parede e é muitas vezes martirizado pelos filhos de seu senhor.

Voltemos à lenda. Depois de nos remeter a um tempo imemorial, o narrador apresenta o estancieiro “muito mau, muito”. Vilão da história, ele perseguirá, com a ajuda do filho – “menino maleva” e “cargoso” –, o pobre Negrinho, ginete numa corrida de cavalos da qual sai, desgraçadamente, derrotado. O estancieiro, apesar de ter o melhor animal, não vence a disputa, talvez por causa de sua ganância: ao combinar a corrida com o vizinho, não aceita a proposta do oponente, de doar o prêmio de mil onças de ouro aos pobres. Na volta para casa, a descrição do perdedor deixa antever a maldade que recairá sobre o escravo: O estancieiro [...] veio pensando, pensando, calado, em todo o caminho. A cara dele vinha lisa, mas o coração vinha corcoveando como touro de banhado laçado meia espalda. O trompaço das mil onças tinha-lhe arrebentado a alma.

A frustração do personagem atinge o protagonista, elemento mais fraco, indefeso, que se torna, portanto, bode expiatório. De surra em surra, o drama do Negrinho se agiganta graças à diligente maldade do filho do estancieiro, sempre pronto a criar novas dificuldades quando a solução

se avizinha e o escravo está a um passo de retomar seu cotidiano. Bem e mal se enfrentam numa cena evangélica: o Negrinho é a vítima sem palavras – o narrador permite-lhe apenas gemer ou sorrir –, enquanto estancieiro e filho tripudiam, entregam-se ao sadismo incontrolável. No derradeiro castigo, quando o corpo do cândido escravo é lançado às formigas, o narrador prenuncia: “pareceu que morreu”. Seguem-se noites e dias estranhos, de cerração forte, durante os quais o estancieiro sonha que ele era ele mesmo, mil vezes e que tinha mil filhos e mil negrinhos, mil cavalos baios e mil vezes mil onças de ouro… e que tudo isto cabia folgado dentro de um formigueiro pequeno...

Poder, riqueza e maldade transformam-se, assim, no que realmente são: desprezível, impotente formigueiro. Trata-se de sonho profético, cuja chave o truculento latifundiário só perceberá na terceira e alegórica manhã, quando, dirigindose à boca do formigueiro, encontra o Negrinho “de pé, com a pele lisa, perfeita, sacudindo de si as formigas que o cobriam ainda” – e a seu lado, “a Virgem, Nossa Senhora, tão serena, pousada na terra, mas mostrando que estava no céu”. Montado no baio e comandando a tropilha do senhor, o Negrinho parte a galope, agora transformado em milagre, pronto a repetir na vida dos fiéis o que tentou fazer desesperadamente por seu torturador: encontrar-lhe os cavalos perdidos e trazê-los com segurança à fazenda. De fato, em nosso imaginário, só a alegoria – e não apenas o símbolo – pode explicar, dado o seu sentido moral, o sofrimento absurdo e despropositado, a “infância triturada na engrenagem da estrutura colonial”, como afirmou, com agudeza, Augusto Meyer. Mas a técnica de Simões Lopes Neto não se revela apenas na imagística. “Onde o modelo rasteja, ele voa”, diz Meyer. Vejam, por exemplo, a habilidade do autor ao retardar a informação de que é o Negrinho quem, durante a corrida, cavalga o baio do estancieiro, o que lança o personagem no

centro de seu drama de forma abrupta, com ele em plena disputa, a pedir auxílio à “Virgem Madrinha”. E, melhor, sempre reencontro com prazer o uso que ele faz da epizeuxe, enfatizando, por meio de certas repetições, as experiências dramáticas do protagonista. Tais construções pleonásticas amoldam-se bem ao modelo dessa legenda típica de alguns martirológios, ampliando nossa compaixão. Anáfora e humor A “Salamanca do Jarau” é narrativa mais complexa. O protagonista, o vaqueiro pobre Blau Nunes, típico anti-herói, já inicia a história sob o feitiço do Caipora, que, encontrado em certo campo, trouxera-lhe má sorte: “Gaúcho valente que era dantes, ainda era valente, agora; mas, quando cruzava o facão com qualquer paisano, o ferro da sua mão ia mermando e o do contrário o lanhava...”. É nesse estado frágil que se deparará, enquanto busca um boi barroso, com a figura mítica do “santão da salamanca do cerro”. Instigado por este, repetirá a lenda que a avó lhe contava, sobre como o Anhangá-pitã, o demônio, encontra-se, na América, com os mouros fugidos da Guerra da Reconquista, seus servos na Península Ibérica. Vinham em busca de riquezas, a fim de “alçar de novo a Meia-Lua sobre a Estrela de Belém”. Anhangá-pitã os recebe com alegria, pois introduzirão, finalmente, a ganância numa “gente sem cobiça de riquezas”. Trata-se, percebemos, do reconto da introdução do Mal no Jardim do Éden. Ocorre, a seguir, dupla transformação: o demônio segura o “condão mágico” que eles traziam e transforma-o numa “pedra transparente”. Quanto à fada moura que também os acompanhava, “demudou-a em teiniaguá, sem cabeça. E por cabeça encravou então no novo corpo da encantada a pedra, aquela, que era condão, aquele”. A essa híbrida lagartixa o demônio ensina os caminhos secretos que levam a cavernas repletas de tesouros.

Conclui-se, assim, a primeira parte da história. A segunda, o narrador deixa a cargo do santão “de face branca e tristonha”, que passa a completar o que Blau Nunes lhe contara. A narrativa torna-se, então, autobiográfica – e descobrimos que o velho fora, na longínqua juventude, em tempos que remontam à primeira presença jesuítica no Sul, um sacristão devotado. Ele encontra, certo dia, a teiniaguá, “a lagartixa engraçada e buliçosa”, prende-a num chifre e leva-a consigo, escondendo-a numa canastra, certo de que as promessas de riqueza que a lenda contava se realizariam em sua vida. Essa história é, portanto, a concretização do relato maravilhoso que Blau Nunes narrara. O sacristão delira em seu sonho de fortuna. E quando abre, à noite, a canastra, para, em sua inocência, alimentar a lagartixa, esta se transforma na princesa moura – será ela, mulher de esplêndida beleza, que esconde, entretanto, essência rasteira, quem lhe proporá o pacto fáustico. A dívida contraída deverá ser paga da pior forma, a do ser destruído em sua unidade, obrigado a servir a dois senhores: Cada noite era meu ninho o regaço da moura; mas, quando batia a alva, ela desaparecia ante a minha face cavada de olheiras... E crivado de pecados mortais, no adjutório da missa trocava os amém, e todo me estortegava e doía quando o padre lançava a bênção sobre a gente ajoelhada, que rezava para alívio dos seus pobres pecados, que nem pecados eram, comparados com os meus...

Antagonismo que o sacristão experimentará de forma paroxística, quase livre da prisão a que os padres o condenam quando descobrem seus crimes, mas definitivamente acorrentado ao Mal. Vejam como Simões Lopes Neto constrói o quadro, compondo um texto sedutoramente anafórico: Fiquei sozinho, ouvindo com os ouvidos da minha cabeça as ladainhas que iam minguando, em retirada… mas também ouvindo com os ouvidos do pensamento o chamado carinhoso da teiniaguá; os olhos do meu rosto viam a consolação da graça de Maria Puríssima que se alonjava... mas os olhos do pensamento viam a tentação do riso mimoso da teiniaguá; o nariz do meu rosto tomava o faro do incenso que fugia, ardendo e perfumando as santidades… mas o faro do pensamento sorvia a essência das flores do mel

fino de que a teiniaguá tanto gostava; a língua da minha boca estava seca, de agonia, dura de terror, amarga de doença… mas a língua do pensamento saboreava os beijos da teiniaguá, doces e macios, frescos e sumarentos como polpa de guabiju colhido ao nascer do sol; o tato das minhas mãos tocava manilhas de ferro, que me prendiam por braços e pernas… mas o tato do pensamento roçava sôfrego pelo corpo da encantada, torneado e rijo, que se encolhia em ânsias, arrepiado como um lombo de jaguar no cio, que se estendia planchado como um corpo de cascavel em fúria...

Agora, passados duzentos anos, o sacristão lamenta-se ao paciente vaqueiro: tem todas as riquezas escondidas nas cavernas cujos caminhos o demônio ensinou à lagartixaprincesa, mas é como se não as possuísse: E eu olho para tudo, enfarado de ter tanto e de não poder gozar nada entre os homens, como quando era como eles e como eles gemia necessidades e cuspia invejas, tendo horas de bom coração por dias de maldade e sempre aborrecimento do que possuía, ambicionando o que não possuía...

É o preço a pagar pela hybris , pela ambição desmedida. Inicia-se, então, a terceira história dentro da narrativa, com o comando de volta ao narrador onisciente. Como o vaqueiro, ao chegar, saudou o velho usando uma fórmula cristã – e foi o primeiro a fazê-lo em tantos anos –, tem direito a entrar na caverna do Jarau, passar por sete provas e, se não for vencido, encontrar-se com a princesa e ver seus sonhos realizados. Blau aceita, vence as provas e recusa os favores que a moura, agora uma “velha carquincha e curvada, tremendo de caduca”, lhe oferece. Mas não age assim por ser bom ou honesto; ao contrário, diz não a cada um dos favores apresentados apenas por querer todos. Na verdade, repete a ganância do sacristão, revelando sua frágil condição humana. O resultado é ver-se expulso da caverna. Monta seu cavalo, cheio de desânimo, mas o sacristão reaparece, oferecendo-lhe consolo: uma onça de ouro que lhe “dará tantas outras quantas quiseres, mas sempre de uma em uma e nunca mais que uma por vez”. Começa assim a verdadeira prova moral do vaqueiro Blau Nunes. A princípio, tudo corre bem. A cada onça de ouro

retirada do cinto sob o poncho, nova onça surge. Simões Lopes Neto insere, então, um quadro agradavelmente jocoso: ao comprar certo campo e dez mil cabeças de gado, o vaqueiro precisa desembolsar três mil onças, o que leva um dia inteiro: Cansou-lhe o braço; cansou-lhe o corpo; não falhava golpe, mas tinha de ser como martelada, que não se dá duas ao mesmo tempo... O vendedor, à espera que Blau completasse a soma, saiu, mateou, sesteou; e quando, sobre a tarde, voltou à ramada, lá estava ele ainda aparando onça trás onça!... Ao escurecer estava completo o ajuste.

A fama do vaqueiro se alastra. Mas tudo que recebe em seus negócios evapora-se “como água em tijolo quente”. E quem aceita negociar com ele, a seguir perde as onças que recebe. Blau Nunes, abandonado por todos, condenado ao isolamento, toma sua primeira decisão realmente heróica: volta ao cerro do Jarau para devolver a onça ao velho. Sua resolução resgata-o para a verdade, transformando-o, novamente, no vaqueiro destemido e simples – mas salva também seu interlocutor. Este, ao receber de Blau, na chegada e na despedida, cumprimentos cristãos, alcança o número cabalístico exigido para se ver livre da lagartixaprincesa. Nesse mesmo instante, como prometia a lenda, a caverna explode e os tesouros do demônio transformam-se em fumaça: Blau Nunes também não quis mais ver; traçou sobre o seu peito uma cruz larga, de defesa, na testa do seu cavalo outra, e deu de rédea e despacito foi baixando a encosta do cerro, com o coração aliviado e retinindo como se dentro dele cantasse o passarinho verde... E agora, estava certo de que era pobre como dantes, porém que comeria em paz o seu churrasco...; e em paz o seu chimarrão, em paz a sua sesta, em paz a sua vida!...

Ao recusar a quimera demoníaca, Blau Nunes não salva apenas a si mesmo, mas quebra a corrente de uma história de sujeição ao Mal. No ensaio em que analisa o conto, Augusto Meyer recupera as tradições que formaram essa lenda hoje politicamente

incorreta, que coloca os muçulmanos como sócios do demônio – o que certamente levará algum esquerdista membro do Conselho Nacional de Educação a, em breve, propor a censura de Simões Lopes Neto... E ao analisar as linhas que abrem a narrativa, plenas do que ele chama de “boleio de frase”, Meyer sintetiza as qualidades estilísticas: Escolhi esta nesga de exemplo porque, ao primeiro relance, não há nada mais banal; é o tom da própria banalidade. Bem examinada a construção, todavia, nada mais sutil; as freqüentes pausas respiratórias, o descosido e alinhavado no modo de contar, a habilidade na repetição – a meu ver proposital – das preposições, que nesse caso logo sugerem a pronúncia da nossa gente da campanha, tudo se acha amalgamado com arte perfeita, que não poderia ter sido simples intuição, mas fruto de longo amadurecimento. Como esse, há outros exemplos, noutro registro de expressão, todos passíveis do mesmo reparo.

O narrador ideal “A Mboitatá”, contudo, é a narrativa mais admirável. Simões Lopes Neto conseguiu criar um exemplo perfeito de sintetismo, construindo-o por meio de elementos que, de forma reiterada, transportam-nos ao universo mítico. Numa cosmologia primitiva, a longa noite está instaurada – e o que veio antes dela permanecerá incógnito. O homem, anulado diante do cosmo que se desorganizou, encontra-se no anti-gênesis. Estamos in illo tempore : um passado indefinido, em meio ao caos. A desordem absoluta, que enche de pavor homens e animais, favorece o surgimento do prodígio maléfico: a serpente que devora olhos. O narrador assume o papel de quem detém uma verdade ancestral. Há austeridade no narrar. E ele não permite dúvidas ao dizer que “os homens viveram abichornados, na tristeza dura”, usando o verbo no pretérito perfeito, de maneira a salientar, semelhante a uma testemunha, os fatos que se desenrolaram num tempo indeterminado. Vejam com que habilidade o narrador rejeita, no início de diferentes trechos, partes do seu próprio testemunho – “Minto”, ele diz –, de maneira a intensificar a dramaticidade

do relato e inserir novos elementos, que desequilibram as poucas certezas do leitor: por exemplo, na Parte II, o canto do pássaro que “agüenta a esperança dos homens” – bela figura, construída graças à acepção inusual do verbo. A reflexão moral da Parte IV pausa a narrativa e enfatiza seu caráter universal, destruindo a possibilidade de os leitores reduzirem o impacto da mensagem ao microcosmo rio-grandense. E, logo a seguir, ao retomar a linha mestra do relato, o discurso se hiperboliza, a fim de materializar ainda mais a cobra-grande e sua fome descomunal. Na Parte VI, o “vai” anafórico cria o continuum , trecho síntese que faz nascer a cobra, “uma luzerna, um clarão sem chamas, [...] um fogaréu azulado, de luz amarela e triste e fria, saída dos olhos, que fora guardada neles, quando ainda estavam vivos...”. Encontramo-nos, assim, em plena “persuasão da continuidade”, para recordar a feliz expressão de Northrop Frye. A morte do ser mítico não diminui a intensidade do relato. Ao contrário, é a conseqüência esperada, pois não há outro destino possível a quem se alimenta do que está morto, ainda que lhe reste alguma frágil luz. O sol renasce, então, tímido, e lentamente a natureza recupera sua ordem. Mas a luz da boitatá permanece como fantasmagoria ou malefício. No entanto, aquilo que ainda causa medo serve também à coragem: Quem encontra a boitatá pode até ficar cego... Quando alguém topa com ela só tem dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito quieto, de olhos fechados apertados e sem respirar, até ir-se ela embora, ou, se anda a cavalo, desenrodilhar o laço, fazer uma armada grande e atirar-lha em cima, e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto, todo solto, até a ilhapa! A boitatá vem acompanhando o ferro da argola... mas de repente, batendo numa macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz, para emulitar-se de novo, com vagar, na aragem que ajuda.

Simões Lopes Neto é o mestre e sábio de que nos fala Walter Benjamin em seu “O narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”: ele sabe, intuitivamente, que os

relatos sobre nossos medos primevos ensinam os homens a “enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância”. A prova de destreza à qual o gaúcho é chamado, venceu-a Simões Lopes Neto, ao não se render às fórmulas regionalistas fáceis, que, edificando um monumento ao localismo, acreditam ter encontrado receita infalível de originalidade. Ele é o narrador ideal de Benjamin, “que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida”. Superou o mero registro da oralidade e soube controlar, com perfeição, os elementos da sintaxe, da riqueza vocabular – e também da imagística, da simbólica. Em “A Mboitatá”, experimentamos, sim, o horror – mas hoje, ao abrir a porta do quarto e deparar-me com a escuridão, cruzo-a sem me dar ao trabalho de acender a luz, pois o narrador conduziu-me de volta à sonhada querência. [ 39 ] Livraria São José, Rio de Janeiro, 1960.

CAPÍTULO 8

Manual de literatice – Antônio Sales e Aves de arribação

Se existe mérito em Aves de arribação , do cearense Antônio Sales, é o de concentrar, em quase duas centenas de páginas, os defeitos da literatura brasileira, mostrar que eles conseguiram vencer, incólumes, o século XIX e ressurgir nesse romance anacrônico, repleto da ornamentação piegas que polui os livros de José de Alencar, do naturalismo exacerbado de Aluísio de Azevedo e da retórica afetada de Raul Pompéia. Obra que Lúcia Miguel-Pereira não leu ou leu mal, a ponto de não explicar o que tentou dizer, em Prosa de ficção , [ 40 ] ao chamá-lo de “livro de qualidades”. Elogio impreciso, de certa forma repetido por Alfredo Bosi, para quem Aves de arribação “se lê ainda hoje com agrado”. [ 41 ] Ninguém, contudo, foi tão enfático quanto Massaud Moisés: Tudo bem ponderado, parecendo acima ou à margem das ortodoxias estéticas, colhendo na realidade o assunto galante e transfundindo-o em arte com “sensação e força”, fundando-se na observação do cotidiano, mas sem apelo aos maniqueísmos patológicos ou sentimentais, Aves de arribação pode bem situar-se na ficção que prenuncia o romance nordestino dos anos 30. [ 42 ]

Não é, decididamente, o que encontrei nesse romance verboso, no qual o talento escasseia. Extravagâncias Os perfis e rascunhos de trama apresentados no Capítulo I morrem ali mesmo, pouco restando das diferenças políticas tão salientadas, que acabam servindo apenas como tênue pano de fundo para uma história de mexericos, sentimentalismo provinciano e dramas mesquinhos.

Subtraídas as incongruências, resta o parágrafo que fecha o capítulo, síntese dos problemas repetidos até o final: Por todas as abertas do templo se escapavam morcegos para a razia noturna, tomando rumos diversos, num vôo trôpego, a que faltava a flutuação serena da plumagem. Nos tamarindeiros do quintal as graúnas faziam as despedidas ao sol, desferindo as notas agudas e limpas do seu canto, a estalarem cristalinamente na calma religiosa do ar.

A plumagem que falta aos morcegos sobrará, logo a seguir, nos galos cujos cantos “se repetiam de quintal em quintal num concertante wagneriano”. Não bastasse o despropósito da imagem, o narrador a esmiúça, por masoquismo ou sadismo, salientando as “notas grossas e arrastadas de galos velhos, outras limpas e retinidas de galos novos, tudo entremeado dos falsetes dos franguinhos pretensiosos e dominado pelas fanfarras intermitentes das galinhasd’angola”. Trata-se de verdadeira banda marcial, reveladora da fixação ornitológica desse antipatizante de Wagner. Apenas anunciada no Capítulo II , alcançará o clímax no Capítulo VII , quando uma epidemia de pássaros ataca o leitor, precedida deste parágrafo, outro resumo do estrago causado pela eloqüência: Já saturado d’água, o solo não emitia esse calor de cio que lhe irradia das entranhas ao contato das primeiras chuvas. Os rios corriam túrgidos, na majestade soberana das grandes forças, atingindo a orla das altas ribanceiras, de onde se debruçavam os mofumbos folhudos e os canoés alongavam as raízes longas e retilíneas como os tubos de um órgão. O marulho surdo das águas, rolando sobre as lajes do leito, acompanhava o grande coro das aves, cujas vozes, diferentes de som e expressão, se harmonizavam no mesmo hosana festivo em honra da estação bendita.

Na seqüência, insistindo na metáfora sinfônica, o autor nos oferece aborrecida “confusão maviosa de uma Babel musical”, com nada menos que onze parágrafos dedicados, cada um, a um pássaro diferente: exercício artificial de estilo, perfeito talvez num livro de zoologia, mas que, no romance, além de descontextualizado, serve apenas para comprovar o demérito do escritor, cuja incansável atração pelo tema ainda produz, no final do capítulo, terrível paralelo: “E, tomando o pé da rapariga na mão direita e

segurando-lhe a cinta com a esquerda, guindou-a até a altura da sela, onde ela se sentou com um donaire de ave que pousa num ramo”. Outra excentricidade do narrador é composta pelas paisagens evocativas – nas quais é necessário sempre inserir um elemento dourado. As nuvens, no final da tarde, podem ser – não obstante a cacofonia – “pardas oureladas de ouro”. Mais à frente, também o sol matinal “redourava magnificamente” as “ruas mesquinhas”; e o próprio capim mostra-se “salpicado aqui e ali de pequeninas flores de ouro”. A cor retorna neste trecho de tom horrivelmente hiperbólico: De volta, encontraram toda a família, que saíra ao encontro deles, a passear pelo pátio, todo fulgurante de uma póstuma claridade solar, que projetava em todas as superfícies fronteiras uma ardente coloração de incêndio. Os morcegos surpreendidos doidejavam no espaço e mergulhavam no estendal das frondes em busca da escuridão foragida. Florzinha, de branco, rutilava naquele fundo incandescente como uma estátua de ouro; e naquele instante Alípio sentiu que, com o seu vestido de cambraia e ao clarão daquele pôr do sol fantástico, ela era mais formosa que se estivesse coberta de seda num salão flamejante de luz.

As nuvens “oureladas de ouro” voltarão no início do Capítulo XVIII , agora aguardando “o carro ígneo do estio”. E adivinhamos a mesma repetida imagem no último capítulo, no poente “todo em fogo” que “corroía os contornos caprichosos dos formidáveis torrões de nuvens por cujas seteiras se derramava a luz como jorros de metal em fusão”. Verborragia A tediosa predileção de Sales pelo adjetivo produz aberrações diversas. Não há dificuldade em imaginar “pintinhos gritadores”, mas que eles sejam inclusive “flocosos”, bem, certamente há formas melhores de descrevê-los. A desmedida pode criar monstros: a personagem que apresenta “brilho úmido dos olhos a arderem inquietos sob o velário negro das pestanas

palpitantes” ou esta, que, ao discursar, atinge “o delírio lúcido dos oradores da raça”. Após farto almoço, os personagens fumam e conversam, “enquanto passava a crise da digestão”, talvez pontuada de algumas cólicas. E muito pode ser subtraído destes pobres cavalos de feira, perdidos numa cidadezinha do interior do Ceará, mas transformados em seres mitológicos: [...] nédios animais de sela, tratados com esmero, gordos de se “poder laválos com uma bochecha d’água”, aprendidos em todas as marchas, quer na estrada, quer na meia marcha, quer por cima, na alta esquipação, em que desfilam vertiginosamente, de pescoço encapotado, a tocar com o beiço inferior no largo peito branco de espuma, as fartas crinas agitadas ao vento e a cauda longa e crespa desfraldada e soberba como um pavilhão triunfante.

O mesmo hiperbolismo agiganta “uma sensação de deslumbramento produzida pela visão fulgurante de um vestido branco ao sol e de uns cabelos soltos que o vento repuxava num feixe luminoso, como a cauda de um cometa”. E Alencar, esteja onde estiver, com certeza alegrase ao ver o conterrâneo passarinheiro aprimorar, até o paroxismo, suas lições: A emoção só não atingira às graúnas, que, do alto dos tamarindeiros, garganteavam ao cair da tarde notas sublimes ressoando cristalinamente sob um céu purpureado que se arqueava sobre a cidade com uma majestade feita de serenidade e de mistério.

O rebuscamento não conhece limites, a lista de horrores é infindável, os lugares-comuns se repetem e o resultado cria, inúmeras vezes, efeito cômico, diverso do pretendido pelo autor: certa personagem tem as palavras “cortadas freqüentemente pelos ecos dos soluços extintos, como lufadas de um temporal que se afastava”; outra “praticara em seu eu a mutilação da consciência, e adquirira por isso a indiferença feroz de um eunuco moral” – descrição no mínimo grotesca. Não bastam “sonhos epitalâmicos” – e é preciso repetir as lições de eloqüência forense aprendidas com Raul Pompéia, [ 43 ] como neste trecho em que a humilde professorinha tem de enfrentar seu primeiro amanhecer sem hímen:

A certeza do desastre era nítida fisicamente; mas havia ainda uma porção de sombra do extinto e agitado sono a povoar-lhe o espírito, a envolver, como no aconchego protetor de um nimbo escuro, os pensamentos alucinados com que adormecera morbidamente ao tombar despojada de suas asas, numa queda rápida e brutal, com todo o peso inerte de sua carne maculada para sempre.

Asas que voltarão na ênfase desmesurada, cheia de lugares-comuns, por meio da qual o narrador descreve o resultado de um emotivo mas fortuito diálogo entre mãe e filha: A conversação tinha girado indiferentemente à superfície da alma, cada uma das duas mulheres evitando descer ao âmago do sentimento, onde a dor latente latejava, pronta a sangrar ao primeiro contato da realidade. Foi refletindo mudamente, sem o derivativo nervoso da palavra, enquanto ambas aprofundavam com o pensamento os sítios dolorosos de seus corações, que se romperam os diques das lágrimas. Os braços se entrelaçaram com ímpeto, as faces se procuraram com frenesi, os peitos unidos bateram no descompasso da aflição. Elas eram como duas aves de asas feridas que se juntassem para voar ainda, ou como duas naves em perigo que se unissem para flutuar ou soçobrar juntas. Os seus soluços valiam por juramentos de um pacto de vida e morte, contra o qual nada pode uma vontade estranha.

É o que, linhas à frente, o autor chamará, acreditem, de “correlação magnética das duas almas”. Tal narrador verborrágico e de ferozes tendências ornitológicas perde páginas e páginas esmiuçando os sentimentos dos personagens ao invés de fazê-los interagir. Ele realmente acredita que pode sustentar frágeis personalidades utilizando apenas discursos melodramáticos. Prolixo, transforma um rapaz tímido e uma jovem que apenas se ressente de não ser amada em excrescências da imaginação: Entre Matias e Luizinha, ao contrário, o namoro se delineava claramente, e a lembrança de seu antigo afeto a Florzinha começava a tomar na alma do rapaz o feitio apagado e disforme de um sonho distante e que já começava a parecer absurdo. E assim essa paixão, nunca traduzida por uma palavra, existindo embora latente nessas duas almas, ia morrer, agonizava já dentro do berço a que faltou o calor fecundo e ativo da coragem animal do homem; tivesse-a Matias e encontraria em Florzinha a força passiva que recebe, concentra e assimila essa coragem em prodígios de resistência contra os obstáculos opostos pelas vontades estranhas. Morria a larva no casulo; mas

Florzinha pensava naquele momento que em toda a sua vida havia de sentir o corpo estranho daquele esquifezinho a pesar-lhe dolorosamente num ponto do coração. [...]

Terminado o trecho, devemos agradecer ao autor por não ter oferecido mais detalhes sobre o pequeno caixão de defunto. Naturalismo Esse tal “calor fecundo e ativo da coragem animal do homem” faz parte das influências naturalistas de Antônio Sales, principalmente quando se trata de expor o drama de Bilinha, professora seduzida pelo promotor Alípio, a fim de cumprir o que sua própria mãe, velha prostituta, chama de “fado ruim”, marca de todas as mulheres de sua família, “funesto desenlace” que a velha espera com “indiferença budista” e chega até a comemorar. Conclusão à qual a própria Bilinha desperta, enquanto observa suas alunas, não sem antes – sim, o narrador abusa da nossa paciência – compará-las a pássaros: Lá estavam as inocentes a grazinarem baixinho, descuidosas como um bando de aves pousadas sobre o lamaçal de um caminho. Nascer para ser mulher... Qual seria o destino de cada uma dessas criaturinhas? Umas casariam, estas bem, aquelas mal; outras morreriam sem ter conhecido os mistérios do amor com seus gozos e suplícios; outras... Não haveria entre elas algumas, ao menos uma, fadada para o infortúnio que a ferira de maneira tão desastrosa? Alguma devia ter vindo ao mundo eivada do vírus maléfico que mais cedo ou mais tarde destrói uma existência, como acontece aos herdeiros dos morbos implacáveis. [...]

Bolorentas teses naturalistas, que permeiam todo o romance, como no encontro casual de Alípio com um estrangeiro: Logo adiante deu de cara com um sujeito vermelho, cara raspada, vestido de brim branco, chapéu de chile, desabado, sem fita, perneiras de couro amarelo: era um moço americano, comprador de peles de cabra. E Alípio sentiu o forte contraste daquela atividade enérgica e vencedora com a moleza enervada de um rapaz da terra, que, em mangas de camisa, derreado de uma janela olhava basbaque o estrangeiro mover-se direito e rápido na faina do seu negócio.

Pedido de desculpas

Nada se sustenta nesse livro. Devemos, portanto, à conterraneidade ou a algum tipo especial de febre os elogios que Rachel de Queiroz fez ao romance. Quanto a Tristão de Athayde, ao festejar a reedição da obra, em 1929, soube escrever um desses textos, tão comuns ainda hoje, em que a falsa cordialidade brasileira sobrepuja a necessária independência da crítica. Resta a Wilson Martins o papel de única voz lúcida, por ter salientado o caráter menor livro – “quanto ao estilo romanesco e à técnica narrativa” – e o fato de Antônio Sales “não ter sabido escrever o romance que soubera imaginar”. Na verdade, o próprio autor tinha consciência de sua imperícia. Publicado na forma de folhetim, no jornal Correio da Manhã , do Rio de Janeiro, em 1902, Aves de arribação ganhou o formato de livro em 1913, com uma “Nota ao Leitor” algo melancólica: Escrevi há muitos anos esta novela [...]. Desde então nunca mais a reli senão agora quando, animado por alguns amigos, resolvi editá-la em volume. Desta leitura verifiquei que muita coisa teria nela a modificar; mas preferi deixar que apareça tal como saiu no jornal, salvo ligeiras correções. A crítica encontrará, por certo, neste trabalho, muitas falhas e inexperiências, que já são sensíveis para mim agora [...].

Podemos, é claro, acatar este pedido de desculpas, compreender o embaraço do autor, a difícil decisão de, consciente dos problemas, aceitar a publicação do romance. Mas nada justifica os elogios irrefletidos que Aves de arribação tem merecido, obra massacrante à qual podemos conceder, sem injustiça, o título de vade-mécum da literatagem nacional. [ 40 ] 2ª edição, revista, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1957. [ 41 ] Histórica Concisa da Literatura Brasileira , 34ª edição, São Paulo, Editora Cultrix. [ 42 ] História da Literatura Brasileira , volume II – Realismo e Simbolismo, edição revista e atualizada, São Paulo, Editora Cultrix. [ 43 ] Ver, a respeito de Raul Pompéia, o Capítulo 14 de Muita Retórica – Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha) .

CAPÍTULO 9

Salvo da banalidade – Hugo de Carvalho Ramos e Tropas e boiadas

Hugo de Carvalho Ramos sofre, desde 1917, as avaliações errôneas e injustas que cansamos de descobrir no substrato do nosso cânone. A recepção superficial dos contos de Tropas e boiadas torna ainda mais indecoroso o derramamento de elogios a, por exemplo, Afonso Arinos, cujas lenga-lengas medíocres analisei no ensaio “Arenga sertanista”. [ 44 ] As sementes desse incompreensível desdém, bem como da exagerada preferência que a academia reserva ao beletrismo de Arinos, talvez possam ser encontradas em nossa devoção – tão apaixonada quanto inconsciente – à eloqüência. Ou talvez a injustiça nasça apenas de um erro de reiteração, no qual muitos estudiosos incorrem por absoluta preguiça. A verdade, entretanto, é que as narrativas do goiano Hugo de Carvalho Ramos estão acima do que se costumou chamar, entre nós, de regionalismo, termo dúbio e sempre aberto a revisões. Impregnados de tom épico, alguns contos parecem nascer de episódios da Chanson de Roland e outras canções de gesta, com seus personagens heróicos, reticentes no que se refere a introspecções, mas sempre prontos à presteza e à coragem, aceitando com naturalidade a vida sob permanente tensão. Tal influência, aliás, é apresentada de forma clara no transcorrer do livro, em que as histórias dos doze pares da França e do imperador Carlos Magno são recordadas mais de uma vez. O autor ultrapassa, assim, a mera recopilação de costumes ou vocábulos dos tropeiros do Centro-Oeste, nega à linguagem típica o papel de protagonista e, desobrigando o

leitor de visitas freqüentes ao dicionário, prefere seduzi-lo com a trama instigante. Destemor e covardia O elogio do destemor nasce logo no início do volume, no conto “Caminho das tropas”, em que um dos tropeiros define, orgulhoso, seu desprezo pela covardia: “Assombramento, tenho ouvido casos, verdade seja, mas as mais das vezes falta de coragem, turvação do medo e da bebida”. A própria narrativa é construída de forma a enaltecer a ousadia: o pavor, crescente, acaba reforçado pela pausa do arreeiro, que saboreia a expectativa dos que o escutam; a seguir, o anticlímax fecha a história com o ensinamento moral: “Enfim, creiam mecês, é ter sempre desapego ao perigo”. A perfeita cena de luta – em “Nostalgias” – não é apenas um modelo de descrição: O crioulo marrou-lhe, a bem dizer, uma pontada direita ao coração; ele torceu e deixou-o passar. De novo, frechou-lhe em cima a anspeçada, faca a prumo, num bote curto, procurando aberta; novamente ele furtou o corpo, mas esperava-o dessa vez na ponta do ferro, onde o cabra veio espetar-se, bruscamente, o sangue esguichando com fartura para os lados, aos borbotões.

A febre do instinto jorra semelhante às golfadas que o vencedor comemora: “– Ah, como que ainda sentia pelas mãos, na cara – vão quarenta e cinco anos – o sangue do Minguinhos salpicando-o d’alto abaixo, todo fumegante, como brasa!”. O conto “Ninho de periquitos” apresenta outra face da coragem, desta vez contra a natureza, e mostra-nos como, muitas vezes, a bravura precisa vir acompanhada de agilidade: no meio da mata, o roceiro não hesita em, depois de arrancar a cabeça da serpente, decepar a própria mão, a fim de impedir os efeitos do veneno. Não há espaço para a dor, mas apenas o saborear da vitória: E enrolando o punho mutilado na camisola de algodão, que foi rasgando entre os dentes, saiu do cerrado, calcando duro, sobranceiro e altivo, rumo

de casa, como um deus selvagem e triunfante apontando da mata companheira [...].

“Peru de roda” abre com a figura solar e excêntrica do Coronel Pedrinho, desde menino percorrendo as estradas de Goiás. Seu arreeiro, Joaquim Percevejo, descrito de forma impressionante, é, no entanto, o falso corajoso, cujo destino moral encontra-se anunciado no título da história. Parágrafo a parágrafo, o narrador desmonta os estereótipos e chega ao fim surpreendente, em que a intrepidez do coronel vence seu empregado e paralisa enorme grupo de homens armados, reunidos na propriedade de um rival. O estilo conciso ressalta os gestos, a firmeza: Bateu violentamente a cancela, entrou montado no terreiro, saltou da sela; e, a corda na mão, caminhou direito sobre Percevejo. Nem um único olhar lançara ao fazendeiro. Pegou o arrieiro pela barba, atou-a num ápice, em nó-de-porco, à embira; prendeu a ponta desta ao rabo da mula e achou-se montado de novo. O coronel encarava-o aparvalhado, os olhos remelentos, rindo constrangido. Nem um gesto sequer. E ninguém se movera naquele rápido segundo. Olhavam, estarrecidos. Viram-no ferrar esporas, a besta arrancar num trote largo. E, ao primeiro puxão, Percevejo se pusera também a trotar atrás, desesperadamente. Sumiram-se na quebra do cerrado. E nenhum tiro se ouviu.

Mais tarde, antes de ser despedido pelo Coronel Pedrinho, Joaquim Percevejo é obrigado a escutar a sentença: “– Vai-te perrengue! Um homem que se deixa amarrar pela barba, não é homem, não é homem! [...]”. E a decisão posterior do tropeiro só confirma sua covardia: não muda de comportamento, mas prefere, apenas, cortar a barba... Benedito dos Dourados, protagonista do desigual “Gente da gleba”, será derrotado por sua audácia irrefletida, mas a cena da captura de Malaquias poderia estar num western de Howard Hawks: Mas alguém batera à porta. A festeira foi abrir. Montado, o pala escorrendo água, as abas do chapéu dobradas sobre o rosto, o forasteiro num relance varejou aquela cena. Descobriu Malaquias agachado sobre o garrafão de cachaça, a despejar o seu conteúdo no prato de açúcar, e berrou: – Negro! Vim buscar-te!

Ele olhou, turvo, e apanhando sobre a mesa um facão amolado com que raspara a rapadura, saiu ao terreiro.

Da luta, em que o fugitivo sairá perdedor, a dupla passa a uma relação de companheirismo, na qual a honradez prevalecerá até o terrível, injusto fim de Benedito. Quanto à narrativa “Alma das aves”, poderia inspirar Horacio Quiroga, que deixou vários contos protagonizados por animais. O que Hugo de Carvalho Ramos chama de “minúscula tragédia” é o embate desproporcional entre uma galinha e certa inconveniente cascavel. A valentia da ave tem arroubo humano – e contrapõe-se a outro famoso galináceo da nossa literatura, pertencente a Clarice Lispector: no interior do Centro-Oeste, as galinhas não podem ser “estúpidas, tímidas e livres”, mas apenas entregam-se ao instinto, dormindo para sempre depois, intoxicadas pela peçonha. São histórias sem as soluções fáceis de enaltecimento ou idealização da vida sertaneja. A realidade pulsa, inquestionável, observada por um narrador que às vezes se permite momentos de lirismo – realidade em cujo centro encontra-se o homem, pronto a viver com desassombro e, se possível, alegria. E se há melancolia ou angústia, permanecem reservadas às poucas personagens femininas. Linguagem Em termos estilísticos, Hugo de Carvalho Ramos consegue criar trechos antológicos, nos quais ao encadeamento das frases corresponde plena visualização dos gestos: O tropeiro empilhou a carregação fronteira aos fardos do dianteiro, e recolheu depois uma a uma as cangalhas suadas ao alpendre. Abriu após um couro largo no terreiro, despejou por cima meia quarta de milho, ao tempo que o resto da tropa ruminava em embornais a ração daquela tarde. O cabra, atentando na lombeira da burrada, tirou dum surrãozito de ferramentas, metido nas bruacas da cozinha, o chifre de tutano de boi, e armado duma dedada percorreu todo o lote, curando aqui uma pisadura antiga, ali raspando, com a aspereza dum sabuco, o dolorido dum inchaço em princípio, aparando além com o gume do freme os rebordos das feridas de mau caráter.

Em “Mágoa de vaqueiro”, a cena da fuga de Maria, filha única que abandona o pai, ergue-se diante do leitor como um exemplo de síntese, no qual verbos, adjetivos e substantivos harmonizam-se graças também à pontuação perfeita, formando o período em que nenhum elemento é excessivo: Em pontas de pé, dissimulando o tilintar das rosetas no cachorro das esporas, Zeca Menino alcançou o alpendre à banda, desamarrou a mula estradeira e voltou montado ao oitão da casa, raspando-se no peitoril duma janela, que arranhou suavemente com o cabo da açoiteira. Os tampos descerraram-se sem rumor; um vulto esquivo deixou-se escorregar para a garupa roliça da besta, e o estrépito abafado do animal, que ganhara a porteira e se afastava na cerração, misturou-se perdido aos zangarreios da sanfona, reavivando dentro a animação dos comparsas.

No final, vencido pela tristeza, o pai entrega-se à morte. A dramaticidade é intensificada não só pela seqüência de verbos construída em crescente sinonímia, mas graças à oposição entre, de um lado, a roupa humilde e a carne morta, e, de outro, a voracidade dos insetos: Ao pé, na roupeta singela de algodão em que se enfatiotara, nas axilas, nos braços, pela boca e orelhas, ia cerce a faina das térmitas em rasgar, picar, cortar e estraçalhar aquele estorvo molengo que se lhes abatera desde cedo por cima da casa...

Em “Alma das aves”, o mero gesto de alimentar o galinhame no terreiro alcança novas dimensões e cumpre o esperado da literatura, isto é, que salve da banalidade inclusive as mínimas coisas: E eram punhadas sábias para um lado, para o outro, de grãos saltitados, rápido estrelando o solo com o seu brilho alegre de ouro novo, mais depressa subvertendo-se naquela multidão de mendigos, cada qual apostado em exceder o vizinho em gula e solércia; o cuidado da mulher em ter uns dos outros afastados os galos de rinha, de aculeado esporão, ciosos e espancadores; e depois, tufada a paparia fulva, o pedinchar de quem ainda atende e a sua dispersão final – a custo resolvida – pelo cerrado dos arredores.

Há grandes cenas, em que a paisagem se mescla ao movimento dos tropeiros, às cores e ao brilho das vestimentas e dos arreios:

Ao longe, os peões bracejavam e sacudiam a taca, achegados à retranca dos lotes; e nos volteios do caminho, as suas cabeças amarradas em lenço de alcobaça – as pontas sarapintadas voltadas para trás – passavam como asas de borboletas, adejando num vôo indolente rasteiras ao solo, uma azul, outra amarela, outra encarnada, por sobre o verde-pálido indefinível da campina. Faiscavam às vezes, num movimento involuntário do pescoço, os metais das cabeçadas de prata; subia a toada contínua dos guizos e cincerros; e, a perder de vista, a terra estuava e desdobrava-se uniforme, na mesma e epitalâmica pujança de arruídos e de vida.

Sim, o período verga-se, principalmente no final, à eloqüência, pois “epitalâmica pujança” é nítido exagero. Mas o resultado cria um conjunto intenso, vivo. Apuro O autor também nos mostra como é possível, usando inteligência, sensibilidade e apuro lingüístico, fugir dos lugares-comuns. A lua, uma das mais batidas referências da literatura universal, surge renovada nestes breves trechos: A noite descia mansa e silenciosa, perturbada apenas pelo clamor longínquo das seriemas da campina no fundo dos vargedos, e a lua assomava como uma grande moeda de cobre novo por sobre os descampados, em vago nevoeiro. [“Caminho das tropas”] Parei o pingo. Os pretos, imitando, pararam. Fiquei ali imóvel longo tempo, os olhos neles grudados, sem tino, enquanto que o minguante principiava a tingir de açafrão a copa folhuda das árvores, e lentamente ia abaixando a sua luz amarelada sobre o carreiro. [“À beira do pouso”] E como a lua surdia no horizonte, como uma enorme roda de carro, avermelhada e triste dentre os vapores das derradeiras queimadas, alumiando ao longe os carreiros cor de barro e inundando o rosto pálido de Nhá Lica... [“Gente da gleba”]

Há o mesmo cuidado em relação ao sol, que, após sucessivos dias de queimada, semelha de eito a eito um enorme carvão aceso e sangra pelos flancos a sua luz avermelhada e mortiça, numa atmosfera de forja, que nenhum sopro de aragem alenta.

Língua portuguesa Encontram-se, claro, problemas no livro. Mas um conto péssimo, “A bruxa dos marinhos” – de que se salva apenas o diálogo final –, as irregularidades de “Nostalgias” – principalmente o último parágrafo, de excessiva

adjetivação, preso ao desgastado tema do contraste entre campo e cidade –, as longas e desnecessárias digressões de “Gente da gleba” – que só confirmam a vocação do autor para a narrativa curta – e a insipidez de “A madre de ouro” não diminuem o vigor de Tropas e boiadas , não maculam os trechos que assomam como inesperadas descobertas. Saborosas expressões locais podem iluminar certas passagens: “– Homem, a modo que já vão andando... Ah, meu tempo, agüentava firme no sapateio até pegar o sol com a mão!...” ou “– Qual, isso é ainda efeito da beijoca que dei ali atrás ao frasco de cachaça [...]”. A breve frase consegue recriar um galope: “Engolimos num trago aquele chão”. A correta inserção de um detalhe concede nova perspectiva à cena: o fim iminente da festa, em “Mágoa de vaqueiro”, é anunciado, no primeiro parágrafo, pela mesa em que se encontram os “sobejos da ceia – frascos de licor e o doce de buriti esparramando-se na toalha besuntada [...]”; no conto “Gente da gleba”, “as botas esturradas de mormaço ringindo ásperas no assoalho desigual, rumo à cozinha” revelam o vaqueiro que, apesar de livre para entrar na casa-grande, baralha no seu íntimo dedicação e subserviência. E não poderia faltar o perfeito sentido do riso e da ironia, presente no conto “O Saci”. A última narrativa, “Dias de chuva”, surge plena de saudosismo. Não chega a ser um conto, mas destila linguagem extraordinária, às vezes lírica: “A chuvarada continuava aberta, naquele seu grande choro de desconforto, ensopando os campos”. Aqui, estamos muito além do que Wilson Martins chamou, ao se referir a Tropas e boiadas , de “implicações apotegmáticas”. [ 45 ] O que temos diante de nós é a língua portuguesa em seus momentos límpidos. Inculta, talvez – e também por isso capaz de produzir coisas belas.

[ 44 ] Capítulo 18 de Muita Retórica – Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha) . [ 45 ] História da Inteligência Brasileira , volume VI (1915-1933), 2ª edição, T. A. Queiroz Editor, São Paulo, 1996.

CAPÍTULO 10

Canalhice e afetação – João do Rio e A correspondência de uma estação de cura

A correspondência de uma estação de cura , de João do Rio (pseudônimo de Paulo Barreto), obra publicada em 1918, pertence a um gênero praticamente desconhecido em nosso país, o das narrativas epistolares. Tratada como “romance” pela crítica, não passa, entretanto, de um conjunto de crônicas travestidas em cartas, o que fez surgir uma noveleta na qual, segundo Antonio Candido, “a felicidade do método é superior à relativa banalidade do tom e da visão de mundo”. [ 46 ] A história desse gênero pouco valorizado no Brasil confunde-se, na Inglaterra, com o surgimento do próprio romance. Quando o impressor Samuel Richardson aceitou, em 1739, a encomenda dos livreiros Rivington e Osborn de escrever um volume de cartas que servisse como modelo a leitores sem grande preparo para a escrita, não previa o resultado da sua concordância. A concepção da obra obrigou-o a elaborar contextos inusitados, a fim de diversificar os modelos e criar um manual o mais completo possível. Esses exercícios de estilo estimularam sua imaginação, a ponto de fazê-lo escrever o romance epistolar Pamela , que se tornou uma das obras mais influentes do século 18 (também produziria, seguindo o mesmo gênero, dois outros romances de sucesso: Clarissa e The History of Sir Charles Grandison ). A importância do romance persiste até hoje. O crítico Frank Kermode mostra, no ensaio “Richardson and Fielding”, [ 47 ]

que a prosa epistolar em geral e a obra de Richardson anteciparam questões colocadas, séculos mais tarde, por Joseph Conrad e Henry James, como a do desaparecimento do autor, pois a técnica de escrever por meio de cartas permite às personagens que falem com suas vozes características, sem a intermediação de narradores. Não por outro motivo, estudiosos consideram Richardson um dos criadores do romance psicológico, já que as cartas e o diário de Pamela apresentam os complexos sentimentos e reflexões de uma jovem de quinze anos. O que foi grandioso nas mãos de um impressor inglês – e se aperfeiçoou com Rousseau ( Julie ou la Nouvelle Héloïse , 1761), Goethe ( Os sofrimentos do jovem Werther , 1774), Chordelos de Laclos ( As ligações perigosas , 1782) e Ugo Foscolo ( Ultime lettere di Jacopo Ortis , 1802) – tornou-se, contudo, medíocre sob a pena de João do Rio. Difamadores As cartas que compõem A correspondência de uma estação de cura pertencem a diversos missivistas instalados em Poços de Caldas, famosa estância hidromineral na primeira metade do século XX . A elite carioca e paulista, impedida de ir à Europa pela Guerra de 1914, ocupa o melhor hotel do município mineiro e entrega-se aos divertimentos possíveis: jogatina, banhos sulfurosos, shows noturnos, cavalgadas – e mexericos, intrigas, a nobilíssima arte de falar mal uns dos outros. De carta a carta, das fofocas irônicas do dândi Antero Pedreira às lamúrias de José Bento, misto de empresário artístico e reclamador profissional, passando pelas teses naturalistas do neurastênico Teodomiro Pacheco, os narradores repetem o mesmo exercício: caluniar e rir, à socapa, das pessoas com as quais convivem diariamente. Se confiarmos no que diz Lêdo Ivo na “Apresentação” de Cinematógrafo (Crônicas cariocas) , [ 48 ] o cronista

conhecia bem a classe que descreveu: o gordo e triunfante e bebedor de champagne João do Rio transitava nos salões mundanos e nas embaixadas, com os seus ternos de fazenda inglesa, o seu monóculo, e a sua frase cintilante. E, em grandes e demoradas viagens, respirava a brisa dos transatlânticos.

Além de, completa Ivo, posicionar-se “ostensivamente ao lado dos ricos e bem-nascidos” e cortejar “desembaraçadamente os comendadores portugueses que costumavam abastecer-lhe os bolsos sempre furados de dissipador incorrigível”. Infiel ou não à classe que o sustentava, João do Rio alinhavou essas crônicas em que o exagero, as repetidas maledicências e o tom monocórdio da correspondência ativa dos difamadores destroem qualquer possibilidade de verossimilhança. No que se refere à psicologia dos personagens, não há conflito entre o papel que desempenham em sociedade e o que realmente pensam, pois são incapazes de realizar qualquer mínima autoanálise. Com exceção de algumas das cartas de Teodomiro Pacheco e das escritas pela jovem Olga da Luz, o olhar dos narradores está sempre voltado aos supostos defeitos de outrem. A obstinação para descrever casos frívolos concede à narrativa irrefreável tendência ao episódico, o que faz a noveleta se dissolver numa clara falta de unidade estrutural. A única trama curiosa, citada em algumas cartas, é a sedução da inocente Olga da Luz, dona de imensa fortuna, pelo imoral Olivério Gomes – e a tentativa, dos outros pretendentes, de atrapalhar o possível noivado, trazendo a Poços a amante de Olivério, uma prostituta. Tudo transcorre, no entanto, em clima de vaudeville . Ou seja, se o tema é ordinário, o método, diferente do que argumentou Antonio Candido, mostra-se frouxo, debilitado. Mais razão tem Lúcia Miguel-Pereira (em Prosa de ficção ),

para quem o livrinho “nem chega a merecer o título de novela”. Falsa elegância Em meio à coleção de pedantismos e ao persistente tom de zombaria, surgem ilhas de curiosidade, como a carta do Capítulo XIII , na qual Teodomiro narra a história bemhumorada do caboclo que se alimenta apenas de café – um faquir do interior mineiro. No entanto, a maior parte dos capítulos pouco acrescenta para formar um eixo consistente. O lugar-comum predomina, como no Capítulo XXXV , assinado pela casamenteira Maria de Albuquerque, em que João do Rio plagia, sem pudor, certo episódio de A Dama das Camélias . Além dos chavões, não faltam figuras melosas, pois os narradores escrevem mal; e se repetem, tamanha a semelhança de sentimentos ou, quem sabe, a falta de criatividade do autor: o luar tem a “doçura de lírios diluídos” numa carta de Antero Pedreira, que completa: “[...] Sobre as árvores, recamando as colinas, abrindo no espaço o êxtase azul da luz, ligando céu e terra no mesmo espasmo, o luar esplendia”; imagem que surge, sob o mesmo véu de preciosismo, na carta seguinte, assinada por Olga da Luz: “[...] Faz um esplêndido luar, desses luares que choram sobre a terra”. O máximo de reflexão que essa manada de pulhas alcança – sem nunca revelar a menor chama de integridade – é dizer, num rompante: [...] A esposa deve ser inteligentíssima sempre. As amantes, pouco importa. Ça ne compte pas ... Para que o amor não fosse uma cacetada seria preciso que as esposas fossem a tal ponto inteligentes que deixassem o ciúme para diversão das amantes estúpidas... [...]

Dos ricos aos falidos, dos aristocratas aos sanguessugas, todos usam linguagem semelhante – nos discursos da elite há mais anglicismos e galicismos, recurso que o autor utiliza

para demonstrar a elegância de certos personagens. E todos são vis, mesquinhos, afetados. “Espuma inconsistente” Na resposta que escreveu à crítica de Viriato Correia, [ 49 ] em julho de 1918, João do Rio diz que o romance em língua portuguesa, depois de Eça e de Aluísio de Azevedo [...] chegou à indigência impossível de leitura. Total ausência de idéias, uma história qualquer dividida em capítulos e nesses capítulos o que eles chamam de observação natural. Coisas enfim que não interessam a ninguém.

E defendia – depois de afirmar que Machado de Assis era “autor de volumes que poderiam ter todos o título geral de Memórias ” – a tese de que, artisticamente, a individualidade é tudo. A individualidade começa pela técnica. Há mil modos de fazer uma jarra. Criar o seu modo e pôr-lhe o sangue das suas idéias é sempre fazer jarras – mas de outra maneira.

Tais superficialidades demonstram como a avaliação errônea e a incompetência podem levar um escritor a resultados grosseiros. Monteiro Lobato, nos comentários que fez sobre o livro – e que podem ser lidos no volume Crítica e outras notas [ 50 ] –, aponta o “linguajar cambaio”, a “charrice” das “idéias simiescas” e a “pretensa elegância canalha”. Lúcia MiguelPereira classifica o texto do cronista como “espuma inconsistente”. [ 51 ] Ambos estão certos. Errados são aqueles que elogiam tais coisas. [ 46 ] “Atualidade de um romance inatual”, em A correspondência de uma estação de cura , Editora Scipione / Fundação Casa de Rui Barbosa / Instituto Moreira Salles, 1992. [ 47 ] Cambridge Journal 4, 1950-1951. [ 48 ] Cinematógrafo: crônicas cariocas , João do Rio, Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 2009. [ 49 ] “A forma do romance”, em A correspondência de uma estação de cura , op. cit. [ 50 ] Editora Globo, Rio de Janeiro, 2009. [ 51 ] Prosa de Ficção (De 1870 a 1920) , 2ª edição, revista, Livraria José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1957.

CAPÍTULO 11

Salvo pela ironia – Carlos de Laet e suas crônicas

Meio século escrevendo ininterruptamente na imprensa, assim pode-se resumir a carreira do polígrafo Carlos de Laet. Mas não seria inadequado completar: exercitando fina ironia, segunda pele desse polemista que, consciente do seu papel, afirmava estar “sempre em divergência com alguém, o que muito me apraz, porque é sinal de que agito idéias”. Ironia, contudo, jamais presa aos artigos e às crônicas, mas pronta a temperar o cotidiano. Derrubada a monarquia, certa manhã, caminhando para o trabalho numa das escolas do Rio de Janeiro, Laet vê que trocam o nome do Campo de Santana pelo de Praça da República; minutos depois, ao entrar na classe, diz aos alunos: “Não posso explicar o ponto marcado, porque ia falar sobre sintaxe da regência, e o novo governo é capaz de mandar que se fale sobre sintaxe da república”. Comentando o Hino da Proclamação da República, afirma que a letra tem apenas uma coisa certa: os pontos de exclamação. Certa vez, um aluno retruca diante das críticas que o professor faz ao evolucionismo: “– Mas papai disse que nós descendemos do macaco”. Ao que Laet responde: “– Não me interessam questões particulares de sua família...”. No ensaio biográfico que escreveu sobre nosso escritor, do qual retiramos estes casos, o jesuíta Francisco Leme Lopes assevera que, segundo depoimento de Mário de Alencar, amigo íntimo de Machado de Assis, este, no fim da vida, só lia o Jornal do Brasil das quintas-feiras, quando podia encontrar o texto de Laet.

Mas, nos dias de hoje, quem se lembra de Laet? Pouco sobrou dos cinqüenta anos de colaboração na imprensa e do ácido humor. A culpa não é da ironia, figura que está longe de ser efêmera ou superficial, mas cabe, parcialmente, aos modernistas, que talvez até pudessem fazer vista grossa ao catolicismo de Laet, mas jamais aceitaram suas críticas – ele já troçava do futurismo em 1910, antes mesmo que Oswald de Andrade (Oswald Júnior, à época) e seu pai criassem O Pirralho – e seu conservadorismo, em tudo oposto à idéia central do movimento, sintetizada no conhecido trecho da conferência de Graça Aranha, “A emoção estética na arte moderna”, que inaugura a Semana de 22: o que hoje fixamos não é a renascença de uma arte que não existe. É o próprio comovente nascimento da arte no Brasil, e como não temos felizmente a pérfida sombra do passado para matar a germinação, tudo promete uma admirável florada artística.

Essa presunção de iniciar uma nova era, típica das vanguardas e das ideologias revolucionárias, contagiou não apenas a Semana, mas grande parte do que se produziu depois dela; e nos casos radicais – ou seja, patológicos –, continua a impossibilitar que o artista entenda a história e, pior, veja a realidade. Ouro falso Mas parte da culpa de que falávamos acima cabe ao próprio Laet. Incansável em sua defesa da monarquia, acabou se tornando repetitivo. Ler a coletânea de suas crônicas, [ 52 ] pequena amostra de tudo que ainda não foi coligido, torna-se experiência às vezes tediosa, ainda que o escritor possua méritos indiscutíveis: rompe com a visão histórica dos golpistas – que se tornou hegemônica, pronta a detratar a monarquia e endeusar a república, escondendo a vocação despótica que esta forma de governo assumiu entre nós – e reapresenta, aos leitores modernos, figuras cruciais, diminuídas ou menosprezadas nos livros didáticos. Vejam-se, por exemplo, as crônicas sobre o marechal Osório

– herói da Guerra do Paraguai, personagem só recentemente recuperada, graças ao historiador Francisco Doratioto – e o barão de Rio Branco: elogiosas, sim, mas sóbrias, em tudo diferentes do tom encomiástico que utilizou para retratar, anos mais tarde, o pintor Victor Meirelles. Laet também testemunhou momentos que, passado mais de um século, a historiografia marxista deseja transformar em meros acidentes ou pérfidas manipulações oligárquicas, mas aos quais o cronista concede emoção genuína, ainda que possamos criticar seu estilo, como o da votação, no Senado, do projeto que se transformou na Lei Áurea. Descontada a irrestrita defesa da monarquia, o perfil que desenha de Benjamin Constant serve para mostrar a ascensão da ideologia positivista no Brasil e suas conseqüências até hoje mal estudadas – o que só reafirma a coragem de Laet, pronto a contrariar os militares e denunciar seus crimes, incluindo os de Floriano Peixoto, outro capítulo ditatorial esquecido da nossa história. Sofrendo do mal típico dos escritores brasileiros, Laet confunde retórica com magniloqüência. Critica o vício dos “pedantes sequiosos de tropos” que povoam este “país de advogados”, mas não consegue se livrar da doença. E reza o Evangelho narrando a história daquela miraculosa alvorada em que, junto ao sepulcro do Grande Mártir, se quedava um celeste mensageiro anunciando a estupenda nova da ressurreição,

diz ele, por exemplo, colando adjetivos desnecessários, certo de que compõe um período harmônico, elegante. A tese da crônica “Ela”, dedicada à Princesa Isabel, é justa, mas a linguagem mata a boa intenção. O mesmo desequilíbrio ocorre no texto dedicado a Machado de Assis: Laet percebe, com agudeza, o que chama de “eurritmia estética” – “incapaz de censurar com veemência um abuso, ele também o era de baixar à lisonja” –, mas perde-se em procedimentos enfáticos, vazios. A crônica salva-se, no fim, graças ao diálogo revelador, em que Machado demonstra

seu horror às polêmicas, e à narração dos encontros nos quais o romancista sofre um ataque epiléptico ou chora, lamentando a morte da esposa, Carolina. O problema não é a sintaxe de Laet, que apresenta agradável anacronismo, principalmente hoje, quando a maioria escreve como se telegrafasse ou preenchesse um formulário. A agrura surge do discurso que circunvaga e demora a chegar ao porto, do preciosismo, das citações em latim – esnobismo igual ao dos críticos que, atualmente, abusam dos termos estruturalistas e da linguagem hermética –, dos lugares-comuns, da verbosidade estafante: Rebrilhava o sol em uma apoteose tropical. Um dilúvio de luz inundava as alamedas por onde escoava o fúnebre préstito, espelhava-se nas folhas lisas, nas arestas dos túmulos, nos doirados dos ataúdes... Por cima deste havia, concitando atenções, um pano colorido, uma bandeira, a bandeira do Império, a que flutuou no mastro do Amazonas quando se ganhou Riachuelo, a que seguiam nossos bravos quando se pelejava em Tuiuti, aquela que também na terra do exílio cobriu o féretro de Pedro II... E o sol, dardejante, em uma ardente carícia de amor e entusiasmo envolvia todo aquele cenário – fagulhando nas folhas e nos túmulos, naquela bandeira que parecia evocada por hipogeus da História, e naquele féretro que, de coração apertado e olhos turvados de lágrimas, silencioso eu acompanhava à derradeira estância.

Semelhante terror ressurge na crônica, gordurenta de palavrório, dedicada à memória de Euclides da Cunha: Todo túmulo é digno de lágrimas. Em todo féretro vão a esconder-se mundos de afeto. Não há tumba, por mais humilde que seja, onde não chore uma saudade ou não se lamente uma esperança. Mas quando o morto tem vivido dessa larga vida da publicidade em que comungam milhares de inteligências, há nas tristezas que o acompanham ao cemitério, alguma cousa mais solene que os lutos da família. Chora também essa grande e pujante mãe, que todos amamos e tanto que por ela daríamos a vida, chora Pátria, orfanada de mais um filho que a ilustrava e que dos resplendores de seu nome lhe entretecia um trecho da formosa auréola.

Lamuriento em sua defesa saudosista da monarquia, Laet raramente apresenta o ímpeto, o apelo, o ataque preciso à república que Eduardo Prado compôs em Fastos da ditadura militar no Brasil . [ 53 ] E quando digressiona, oferece, principalmente ao elogiar, um ouro falso, pedante,

exagerado, como neste trecho, em que analisa os artigos de certo jornalista: [...] Não são tímidas aves a tomarem o primeiro vôo, incertas do destino que as aguarda: são hostes que retornam do combate, e que, frementes ainda com a febre da pugna, vitoriosas demandam os quartéis da História. [...].

Há também crônicas dedicadas a arengas chatíssimas, como “Com a Academia”, na qual, para justificar a suposta tolerância da Academia Brasileira de Letras, perde-se explicando as linhas ideológicas dos seus membros. Infelizmente, nesses textos, Laet exclui-se da minoria que ele mesmo define: “O jornal é um edifício, uma estátua, uma tela, um livro feito para apenas durar um dia, e no qual só por exceção se inscreve o nome do artífice”. Acidez Todos esses problemas desaparecem quando surge a ironia – e o estilo de Laet se transfigura. A sanha adesista que toma conta da sociedade, assim que os republicanos dão o golpe, é sintetizada neste episódio: [...] Existiam no estabelecimento umas talhas da Bahia, nas quais ostentosamente se viam as armas imperiais, como então muito se usava. De ordem superior infalivelmente haviam de ser retiradas. Água bebida em talhas tão sediciosas até poderia fazer mal à saúde... [...] Eu o vi, o pretinho incumbido da espinhosa tarefa de tirar as coroas. Com uma faquinha ele procurava raspar o barro em que se modelara o nefando símbolo, e ao mesmo tempo, e com máximo cuidado, evitar o estrago total daqueles produtos cerâmicos. Mas era impossível... – Perdes tempo, meu velho, disse eu ao servente da República... A coroa sai, mas a talha fica furada! Meu dito, meu feito. Instantes depois abria-se um furo medonho, por onde despejava grosso jorro de água. Desconfio que nunca mais se consertou a talha republicana.

Que a república continue a fazer água, isso só demonstra a qualidade profética – e metafórica – da ironia de Laet. A compulsão por reformas ortográficas vem de longe em nosso país. Em 1907, a chamada reforma Medeiros e

Albuquerque recebe crítica sarcástica, publicada no Jornal do Brasil , na forma de uma carta a Machado de Assis: Meu karu Maxadu Dasis. Não temus estado juntus, á muintus meses, i konpletamente ignoru kual a tua maneira de pensar a respeitu da nova reforma ortografica, de invenção du Medeiros Albukerke. Não axas tu ke para uma revolusão é muito pôku, i para uma desorden já é demais? Á, nu ke vai fazendu a Akademia, grande falta de lojica. Vêjase, por exenplu, akilu du agá! Não u admite nu meiu das palavras, i todavia u tolera nu principiu dalgumas. Ô u agá é bom, ô é mau. Si é bon, kontinúe a viver onde ker ke seja; si é mau, suprima-se de todu.

Era o que Laet chamava, com seu espírito debochado, de “fonetismo jacobino”. Graças à sua lucidez – e à de vários outros –, a reforma não vingou. Ao criticar o futurismo de Marinetti, faz não só exercício de futurologia, mas de perfeita vidência: Eu não conheço o Sr. Marinetti; mas entendo que, se leva a peito a sua propaganda, só tem um caminho a seguir: tome um transatlântico e venha cá ao Brasil fazer conferências. Este conselho de um desconhecido poderá parecer exorbitante das boas normas: mas eu lho dou, ao já ilustre propagandista, com espírito de simpatia e para o bem dele e da sua novidade. Realmente, não conheço país em que mais probabilidades de ótimo êxito se lhe possam deparar. Direi mais, sem contudo, nem de leve, apoucar a originalidade do Sr. Marinetti: nós, os brasileiros, somos os genuínos precursores de sua filosofia. Há vinte anos, seguramente, não fazemos senão rasgar e queimar a História. Pode-se dizer que os anais destes últimos quatro lustros nada mais são do que um imenso auto-de-fé, em que arde a tradição. Venha para cá o Sr. Marinetti e, em vez de recalcitrantes discutidores, achará cordatos discípulos e talvez mesmo provados mestres.

Dezesseis anos depois, em 1926, o fascista Filippo Tommaso Marinetti chegava ao Brasil, aclamado por um séquito de intelectuais babões e triunfalmente apresentado por Graça Aranha no Teatro Lírico do Rio de Janeiro. Laet estava certo: “[...] O marinetismo já entre nós tinha adeptos antes de brotar o Sr. Marinetti”. A relação de Carlos de Laet com Graça Aranha foi marcada por zombarias. Em 1924, o autor de Canaã envia um telegrama cifrado, anunciando o início da Revolução

Paulista: “Tumor mole virá a furo esta noite”. A polícia, no entanto, não tem dificuldade para decifrar a mensagem explícita e prende o escritor. É a inspiração perfeita para Laet, que destila acidez: O Aranha publicou um livro simbólico, Canaã, que ninguém compreendeu... Agora faz um telegrama secreto, que todo o mundo decifrou. Obscuro, quando quer a claridade; diáfano, quando busca o mistério. Que estilista!

Não satisfeito, ainda compõe um soneto em que faz dupla crítica, pois aproveita o telegrama funesto para ridicularizar o estilo telegráfico de Marinetti, então já imitado pelos modernistas: Noite. Calor. Concerto nos telhados. Cubos esferoidais. Gatas e gatos. Vênus. Graças. Aranhas. Carrapatos. Melindrosas. Poetas assanhados. Rabanetes azuis. Sóis encarnados. Comida no alguidar. Cuspo nos pratos. Três rondas a cavalo. Mil boatos. Prosa sesquipedal. Tropos safados. Avenida deserta. Bondes. Grama. Chopes Fidalga. Leite. Pão de ló. Carros de irrigação. Salpicos. Lama. Vacas magras. Esfinge. Triste. Só. Tumor mole. São Paulo. Telegrama. Dois secretas. Cubismo. Xilindró.

Em 1926, numa crônica publicada em O Jornal , Laet ataca novamente. Relembra o telegrama e usa rimas, a fim de criticar a poesia modernista, que “planeia o verso” e, na verdade, escreve prosa: Meu querido Graça Aranha – Para mitigar saudades, traço esta carta poética. Não é potoca ou patranha: são velhuscas novidades, sem respeito à tua estética. Grafo seguido o meu verso; mas, lido com certo jeito, canta a rima sonorosa. Tua escola faz o inverso: calcando norma e preceito, planeia o verso e sai prosa. [...] Tudo, Aranha, aqui te chama. Ingratos os que se ausentam! Volta, surge sem detença. (Não te espeço telegrama, porque os tumores rebentam quando a gente menos pensa.)

Mando um abraço apertado à tua grei futurista. Beija a mão do Marinetti, que deve andar espantado. Teu confrade passadista, e sempre amigo, Laet.

Imaginando os ensinamentos de um Catecismo revolucionário , Carlos de Laet cria definições perfeitas, sábias, adequadas a todos os tempos – e segue a forma clássica dos antigos catecismos católicos, com perguntas e respostas. Questionado sobre o que é a igualdade, o revolucionário responde: O nivelamento de todas as condições sociais. Nosso ideal em fisiografia seria uma planície. Detestamos as colinas pretensiosas e os cabeços das montanhas coroados de nuvens. Em geometria suprimiríamos uma das três dimensões. Adoramos o largo e o chato.

Quanto à liberdade, depois de muito hesitar, o personagem conclui: É a licença de fazer cada qual o que bem lhe pareça, contanto que não vá contra o que instituímos.

Mas a melhor resposta – resumo do que são revoluções, golpes e governos que se autoproclamam renovadores – irrompe quando o interlocutor sugere a possibilidade de ocorrer relutância em alguns setores da sociedade: Em verdade assim pode acontecer; mas para que tal não suceda, deve-se proceder com a devida cautela. Sonda-se a opinião; contra os cobardes, que são a maioria, emprega-se o terror; dão-se gorjetas aos venais, acena-se aos ávidos com o quinhão do confisco.

Agripino Grieco estava certo quando definiu Laet como o “‘não’ eterno” que “nunca se deixou açaimar pelas cédulas do tesouro”. Suas polêmicas – com Camilo Castelo Branco, João Ribeiro, Jackson de Figueiredo e outros –, também reunidas em volume publicado pela Fundação Casa de Rui Barbosa, [ 54 ] estão repletas de inteligência e liberdade incomparáveis, difíceis de encontrar neste reinado do populismo em que se transformou o Brasil. Laet tem o dom raro de condensar, por meio do gracejo ou do deboche, as diversas formas do ridículo. Ao ler seus textos, rimos ou choramos, dos outros ou de nós mesmos – e só ignorantes ou deslumbrados insistem na indiferença.

[ 52 ] Obras seletas de Carlos de Laet — Crônicas (Volume I), Editora Agir / Instituto Nacional do Livro / Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983. [ 53 ] Obra que analisei no ensaio “O anti-revolucionário”, Capítulo 17 de Muita Retórica — Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha) . [ 54 ] Obras seletas de Carlos de Laet — Polêmicas (Volume II), Editora Agir / Instituto Nacional do Livro / Fundação Casa de Rui Barbosa, 1983.

CAPÍTULO 12

Ideologia e azedume – Lima Barreto e Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá

A definição de “literatura militante” elaborada por Lima Barreto, à sombra de Jean-Marie Guyau – pensador que foi lido atentamente por Kropotkin e Nietzsche –, impõe à obra literária “o destino de revelar umas almas às outras, de restabelecer entre elas uma ligação necessária ao mútuo entendimento dos homens”. Em nosso país, onde, segundo Barreto, não há passado, mas só futuro, “nós nos precisamos ligar; precisamos nos compreender uns aos outros; precisamos dizer as qualidades que cada um de nós tem, para bem suportarmos o fardo da vida e dos nossos destinos”, dizia o romancista. E completava, depois de excluir do seu sonho os “cavalheiros de fidalguia suspeita” e as “damas de uma aristocracia de armazém por atacado”: “[...] Devemos mostrar nas nossas obras que um negro, um índio, um português ou um italiano se podem entender e se podem amar, no interesse comum de todos nós”. Esse anseio de solidariedade utópica – e, portanto, excludente – surgiria em outras crônicas do autor, incluindo o “Manifesto Maximalista”, de apoio à Revolução Russa – encerrado com o grito “Ave Rússia!” –, sempre voltando ao desejo de tornar “os homens mais capazes para a conquista do planeta e se entenderem melhor, no único intuito de sua felicidade”. Para Lima Barreto, o dever dos “escritores sinceros e honestos” é o de

tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm de comum e dependente entre si.

Tais esboços de espírito revolucionário, esses lampejos de fraternidade universal, não se concretizaram, no entanto, na ficção de Lima Barreto, marcada, desde Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), pelo sentimento de derrota: Lembrava-me de que deixara toda a minha vida ao acaso e que a não pusera ao estudo e ao trabalho com a força de que era capaz. Sentia-me repelente, repelente de fraqueza, de decisão e mais amolecido agora com o álcool e os prazeres... Sentia-me parasita, adulando o diretor para obter dinheiro... Às minhas aspirações, àquele forte sonhar da minha meninice eu não tinha dado as satisfações devidas. A má vontade geral, a excomunhão dos outros tinham-me amedrontado, atemorizado, feito adormecer em mim o Orgulho, com seu cortejo de grandeza e de força. Rebaixara-me, tendo medo de fantasmas e não obedecera ao seu império.

Não é outra a conclusão que explode no final de Clara dos Anjos (publicado postumamente, em 1948), quando a jovem sentencia à mãe: “– Nós não somos nada nesta vida”; ou nas reflexões sobre o conceito de “pátria” que o narrador de Triste fim de Policarpo Quaresma (1915) coloca na mente do major, pouco antes de sua morte: Mas, como é que ele, tão sereno, tão lúcido, empregara sua vida, gastara o seu tempo, envelhecera atrás de tal quimera? Como é que não viu nitidamente a realidade, não a pressentiu logo e se deixou enganar por um falaz ídolo, absorver-se nele, dar-lhe em holocausto toda a sua existência? Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de si mesmo; e assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e sem sequer uma asneira! Nada deixava que afirmasse a sua passagem e a terra não lhe dera nada de saboroso.

Não importa se essas vítimas da ingenuidade, do ideal, de uma visão fatalista da existência e, principalmente, do autoengano, refletem as características pessoais do autor, ainda que seja possível estabelecermos inúmeros paralelos. O que ressalta é o abismo a separar a vontade da ação, o projeto de “literatura militante” das obras em que amor, compreensão entre os homens e felicidade nunca se

concretizam. O que sobressai é o iniludível vitimismo, no qual as personagens às vezes até conseguem captar a medida de responsabilidade que tiveram em seus destinos, mas sem jamais lograr verdadeiras mudanças. Homem estéril O problema se repete em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919). Logo no Capítulo I , o narrador, o jovem Augusto Machado, anuncia que contará as “cousas íntimas” da “bela obscuridade” de seu amigo, Gonzaga de Sá, funcionário da inútil Secretaria dos Cultos; e o primeiro documento que nos oferece é o breve texto descoberto entre papéis e livros do burocrata: a história de um inventor derrotado, metáfora, logo percebemos, da existência de Gonzaga. O próprio narrador, aliás, já anunciara, nas justificativas apresentadas antes de iniciar a biografia, que as possíveis críticas lhe darão “alento para viver, cousa que me vai faltando dentro de mim mesmo”. E as conclusões que Machado extrai do relato sobre o inventor antecipam muito de sua cosmovisão: “[...] o Acaso, mais que qualquer outro Deus, é capaz de perturbar imprevistamente os mais sábios planos que tenhamos traçado e zombar da nossa ciência e da nossa vontade”. O livro nasce, assim, do encontro desses dois homens, prontos a revelar, em diferentes momentos, sua inadequação à vida. Às reflexões que Machado tece, no Capítulo II , acerca da burocracia – à qual aderem os intelectuais independentes, mas que ali acabam soterrados pelo “enfado”, pela “depressão mental”, perdendo o “viço, a coragem e mesmo o ânimo de estudar” – correspondem os estudos e leituras de Gonzaga, “sem filhos, membro de família a extinguir-se”, condenado à “obscuridade a que se havia voluntariamente imposto”; situação que o narrador definirá, páginas depois,

no Capítulo VII , tentando criar certo duvidoso elogio, como uma “fraqueza de gênio prático”. O vencido Gonzaga está sempre propenso, portanto, a fazer o discurso dos ressentidos: sua crítica ao Barão de Rio Branco – tema caro a Lima Barreto – é impiedosa, parcial, injusta. Lastima não ter mantido relações amorosas duradouras; confessa, de forma digressiva e indireta, ser virgem; e acaba por revelar sua misoginia, camuflada quando diz sentir pelas mulheres “uma grande afeição de ordem puramente intelectual”. Tenta envernizar seus pensamentos, mostra-se capaz de gestos solidários em relação a algumas raras pessoas, mas o que prevalece é o ceticismo carregado de ironia: – Levamos a procurar as causas [...] da civilização para reverenciá-las como se fossem deuses... Engraçado! É como se a civilização tivesse sido boa e nos tivesse dado a felicidade!

Augusto Machado chega a tocar a superfície da personalidade do amigo, mas não consegue ir além de uma interrogação: Gonzaga de Sá seria um apaixonado que não conseguira a tempo encaminhar o seu temperamento para um objeto qualquer, ficara de parte, guardando suas paixões, escondendo seus estos, tanto por timidez como por orgulho?

A pergunta ecoa as questões do narrador de Policarpo Quaresma , citadas acima. Quanto às respostas, Gonzaga de Sá não deixa espaço a dúvidas. Para ele, “a morte tem sido útil, e será sempre [...]. Não é só a sabedoria que é uma meditação sobre ela – toda a civilização resultou da morte”. Mais à frente, diz: “Eu julgo [...] que os desgraçados se deviam matar em massa a um só tempo”. E logo depois ilustra sua reprovável tese com uma história: [...] Recordo-me que, uma vez, por acaso, entrei numa pretoria e assisti um casamento de duas pessoas pobres... Creio que até eram de cor... Em face de todas as teorias do Estado, era uma coisa justa e louvável; pois bem, juízes, escrivães, rábulas enchiam de chacotas, de deboches aquele pobre par que se fiara nas declamações governamentais.

Ao fim desse relato, quando esperamos que ele, numa reviravolta da consciência, se transforme no porta-voz do “mútuo entendimento dos homens” defendido por Lima Barreto, sua fala descamba para o niilismo feroz: Não sei porque essa gente vive, ou antes, porque teima em viver! O melhor seria matarem-se, ao menos os princípios químicos, dos seus corpos, logo às toneladas, iriam fertilizar as terras pobres. Não seria melhor?

Por um momento, Gonzaga de Sá parece reencontrar a bondade; interrompe sua fala e conclui: “Não; a maior força do mundo é a doçura. Deixemo-nos de barulhos...”. Esse pensamento, entretanto, será corroído pela frustração que se revela no penúltimo capítulo, em tudo semelhante à de Isaías Caminha: “[...] As noções que acumulei, não as soube empregar nem para a minha glória, nem para a minha fortuna... Não saíram de mim mesmo... Sou estéril e morro estéril...”. E o burocrata destrambelha, lançando a culpa do seu desgosto sobre os que não o compreenderam: [...] A burrice humana é insondável! Tenho desgosto de mim, da minha covardia... Tenho desgosto de não ter procurado a luz, as alturas, de me ter deixado covardemente entre patos, entre tais perus, burros e maus, agaloados ou não, ignorantes e sórdidos, incapazes de simpatia, de gratidão e de respeito pelo valor dos outros... [...] Que bestas! O que mais me aborrece é ter chegado a esta idade vazio de tudo, vazio de glória, de amizade, só, e quase isolado dos meus e dos que me podiam entender. [...] Fugi das posições, do amor, do casamento, para viver mais independente... Arrependo-me!... Vênus é uma deusa vingativa!

De fato, é alto o preço de não viver, de dar as costas à realidade, procurando apenas certo mundo ideal. Morte e vida De igual patologia sofre Augusto Machado – o “interlocutor indulgente” de Gonzaga de Sá, segundo a perfeita definição de Eugênio Gomes [ 55 ] –, que, também insignificante funcionário público, imaturo, quase despersonalizado, incorpora, sem crítica, as conclusões dos amigos. Se Gonzaga demonstra misoginia, logo no capítulo seguinte Machado amplifica, de maneira pueril, o sentimento:

[...] Basta que as mulheres, sejam quais forem as condições delas, não pensem em outra coisa, e queiram-na de qualquer modo até o ponto de fazer a raça humana a mais perfeitamente desgraçada de todas as raças, espécies, gêneros e variedades animais e vegetais do planeta. Eu as acuso!

No Capítulo IX , esse narrador nos oferece longo trecho dedicado às mulheres, no qual o bordão de Gonzaga de Sá – “A dama fácil é o eixo da vida” – repercute, influencia, confunde. As páginas estão entre as mais bem escritas da literatura brasileira, apesar de algumas cacofonias – semelhante ao que Lima Barreto executa no início do Capítulo XI , quando Machado penetra na multidão para esquecer de si mesmo. As prostitutas de origem estrangeira, “cheias de jóias, com espaventosos chapéus de altas plumas”, surgem semelhantes a “velas enfunadas ao vento, impelindo grandes cascos [...], transtornando tudo pelas ruas em fora”: Elas seguem... É a Rua do Ouvidor. Então é a vertigem; todas as almas e corpos são arrebatados e sacudidos pelo vórtice. Há uma energia poderosíssima nelas todas e nas coisas de que se vestem; há atração, fascinação para esquecimento de nós mesmos e apagamento da nossa personalidade na luminosidade dos seus olhos. É mágico e sobrenatural.

Tudo se perde sob o fascínio que elas impõem, tudo se anula: Esvaziam-se os pecúlios pacientemente acumulados; vão-se as heranças que tantas dores resumem, e os cofres das repartições e dos bancos sangram... As inteligências trabalham, as imaginações associam elementos para estelionatos, peculatos e concessões... E tudo acaba nelas; é a elas que se encaminham as riquezas ancestrais, em terras longínquas, em gado nédio e plantações virentes. São para elas que se drenam os ordenados, os subsídios; é a elas também que vão ter os frutos dos roubos e os ganhos das tavolagens. É uma população, um país inteiro que converge para aqueles seres de corpos lassos.

Machado recorda outra afirmação de Gonzaga, para quem essas mulheres “estão se dando ao trabalho de nos polir”, e suas impressões enveredam por um infame utilitarismo, em que as prostitutas são vistas como peças do que ele entende ser a máquina civilizadora: [...] A sua missão era afinar a nossa sociedade, tirar as asperezas que tinham ficado da gente dada à chatinagem e à veniaga dos escravos

soturnos que nos formaram; era trazer aos intelectuais as emoções dos traços corretos apesar de tudo, das fisionomias regulares e clássicas daquela Grécia de receita com que eles sonham. [...] Os maridos que as freqüentassem, levariam aos lares, ao conselho daquelas estrangeiras, o sainete mais moderno, o bibelot última moda, e o móvel, e o tecido, e o chapéu, e a renda. Assim, ateariam o comércio e estimulariam o contato entre a nossa terra e os grandes centros do mundo, requintando o gosto e o luxo.

Vê-se que nem Gonzaga nem Machado vão além de suas teses naturalistas. E a única definição de amor presente no livro é a que o narrador plagia de seu colega Rangel. Este afirma: “Em meu parecer, nesse negócio de amor o que vale são os preliminares, os estados d’alma preambulares, a agonia da esperança de obter ou não o objeto amado. Mas, quando se toca...”. E Machado, incapaz de ter idéias próprias, resume, respondendo ao conselho de Gonzaga para que namore: “Qual! O namoro é a negação do amor...”. Mas a realidade se encarregará de perturbar, ainda que momentaneamente, suas falsas certezas. No velório do compadre de Gonzaga de Sá, sentado na sala de jantar, enquanto admira o crepúsculo, a idéia da morte o obseda: [...] Tinha pensado muito – é verdade; mas sem ter concluído coisa alguma. Nada me ficou palpável na inteligência; tudo era fugidio, escapava-me como se tivesse a cabeça furada. Evaporou-se tudo e eu só sabia dizer: a Morte! a Morte! [...]

Poucos minutos depois, ainda no velório, conhece Alcmena, a jovem que o desequilibrará ainda mais. Ela não só discorda, com desembaraço, das suas teorias socialistas e de outras falsas certezas, típicas da juventude, mas o aniquila com sua beleza, lançando-o num estranhamento em que ele, desorientado, se surpreende por estar longe da Rua do Ouvidor. Esses extremos de morte e vida o impulsionam a sair do mundo cerebral a que se aferra: [...] era o cadáver que me impelia, que me empurrava para a moça; era sua mudez de fim que me ditava o único ato da minha vida capaz de fugir à lei a que ele se curvara. Vivente, tinha vivido, pois tanto é forte em nós o viver, que só em nós mesmos encontramos a razão e o fim da vida, sabendo todos

nós que devemos continuá-la a todo o transe, custe o que custar, em nós mesmos e nos nossos descendentes.

A mulher talvez pudesse libertá-lo. Seu nome guarda essa promessa: na mitologia grega, Alcmena, possuída por Zeus, dá à luz o poderoso Héracles. Mas Augusto Machado é um cerebrino incorrigível; e deixa as emoções serem sufocadas pelo idílio que só consegue manter – e o faz cansativas vezes no decorrer da história – com a natureza. Condenação Decorridos alguns dias, após “uma noite má, povoada de recordações amargas”, o narrador, “covardemente desejoso de fugir para lugares longínquos”, pretende desaparecer entre o povo que assiste a um desfile militar. Mas a cena de dois populares orgulhosos dos batalhões, dos regimentos, das bandeiras, desencadeia seu amargor, seu espírito destrutivo. Evidente ressentimento o faz questionar: Por que aqueles homens maltratados pela vida, pela engrenagem social, cheios de necessidades, excomungados falariam tão santamente entusiasmados pelas coisas de uma sociedade em que sofriam? Por que a queriam de pé, vitoriosa – eles que nada recebiam dela, eles que seriam espezinhados pela mais alta ou pela mais baixa das autoridades, se alguma vez caíssem na asneira de ter negócios a liquidar com alguma delas?

Para Augusto Machado, todos os males, incluindo sua própria insignificância, seus próprios limites, têm um só culpado: o “corpo social em que vivemos”. Dessa forma, resta-lhe apenas a batida oratória revolucionária: E eu ascendi a todas as injustiças da nossa vida; eu colhi num momento todos os males com que nos cobriam os conceitos e preconceitos, as organizações e as disciplinas. Quis ali, em segundos, organizar a minha República, erguer a minha Utopia, e, por instantes, vi resplandecer sobre a terra dias de Bem, de Satisfação e Contentamento. Vi todas as faces humanas sem angústia, felizes, num baile!

Logo a seguir, o fatalismo assoma. Suas frustrações não só o isolam da realidade, mas lançam-no de miragem a miragem, de um extremo a outro: Não sei que diabólica lógica me dominava; não sei que inveterados hábitos de reflexão vieram derrubar meus sonhos: eu abanei a cabeça desalentado. Tudo isto era sem remédio. Morto um preconceito ou uma superstição,

nasciam outros. Tudo na terra concorre para criá-los: a Arte, a Ciência e a Religião são as suas fontes, são as matrizes de onde saem, e só a morte dessas ilusões, só o esquecimento dos seus cânones, dos seus delírios e dos seus preceitos trariam à humanidade o reino feliz da perfeita ausência de todas as noções entibiadoras.

A conseqüência de tal raciocínio é a pulsão de morte, de assassinato, chave das mentes revolucionárias: Tive um louco desejo de acabar com tudo; queria aquelas casas abaixo, aqueles jardins e aqueles veículos, queria a terra sem o homem, sem a humanidade, já que eu não era feliz e sentia que ninguém o era... Nada! Nada!

Essa antiética, essa pseudofilosofia acabam por se expressar, de forma mais concreta, no microcosmo da vida familiar de Gonzaga de Sá. Este decidira, após a morte do compadre, garantir os estudos do órfão, menino inteligente, aplicado. Machado louva a “missão educadora” que a tia de Gonzaga, depois que seu amigo falece, leva adiante, mas não deixa de destilar o fel do pessimismo nos parágrafos que fecham a obra. Segundo ele, Gonzaga e sua tia contribuíam apenas para ampliar, com o hábito de análise e reflexão que o estudo traz, a consciência da criança que devia ficar restrita aos dados elementares para o uso do viver comum, sem que viessem surgir nela uma mágoa constante e um fatal princípio permanente de inadaptação ao meio, criando-lhe um malestar irremediável e, conseqüentemente, um desgosto da Vida mais atroz do que o pensamento sempre presente da Morte!

Para nossa surpresa, as idéias que Lima Barreto propugnava, de “difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens”, transformam-se na disposição de condenar a criança à total inconsciência. Naturalismo Há, como vimos, predominância do naturalismo na obra. Teses infectadas de biologismo surgem logo no primeiro capítulo, em um dos insistentes idílios do narrador com a natureza: Façam como eu: sofram durante quatro séculos, em vidas separadas, o clima e o eito, para que possam sentir nas mais baixas células do organismo

a beleza da senhora – a desordenada e delirante natureza do trópico de Capricórnio!...

No Capítulo IX , a ótima descrição dos trabalhadores que retornam ao lar acaba corrompida pelo determinismo, pela necessidade de encontrar condicionamentos biológicos que justifiquem a existência do mal, louvando-o como elemento purificador da realidade: Operários e pequenos burgueses, eram eles que formavam a trama da nossa vida social, trama imortal, depósito sagrado, fonte de onde saem e sairão os grandes exemplares da Pátria, e também os ruins para excitar e fermentar a vida do nosso agrupamento e não deixá-lo enlanguescer... Quiçá não soubessem disso e, se o soubessem não se consolariam do duro fardo de viver... Viviam, sob o aguilhão dos deveres e com a vaga esperança consoladora da afeição eterna dos filhos.

Não deixa de ser curioso esse tom de superioridade que perpassa o livro. O narrador quer nos fazer acreditar que só ele detém a verdade – mas o que vibra sob cada ironia, sob cada comentário ferino, é a inadaptação de Augusto Machado e, tal como Gonzaga de Sá, a personalidade fatalista, o medo de viver, seu complexo de inferioridade, os inconfessáveis ressentimentos que o condenam a emoções e comportamentos distorcidos, a fraqueza moral. Esses venenos sangram inclusive os melhores trechos, como a descrição do subúrbio, nesse mesmo capítulo: em meio ao “arruamento delirante”, o narrador não deixa de lembrar que a “casinha acaçapada” mostra-se “saudosa da toca troglodita”. Ao tentar romper a retórica ornamentada e vazia da “língua da Bruzundanga”, Lima Barreto não conseguiu dar vida a seu projeto utópico, o de criar a almejada literatura de comunhão entre os homens. Abatido pelo azedume – seu e de suas personagens –, submeteu-se aos discursinhos ideológicos que tencionam, ontem e sempre, comprimir a realidade em poucos, estreitos padrões. [ 55 ] Em A Literatura no Brasil , direção de Afrânio Coutinho, volume 4, Capítulo 39 (Global Editora, 7ª edição, São Paulo, 2004).

CAPÍTULO 13

Psicopatia e racismo – Afrânio Peixoto e Fruta do mato

O médico Afrânio Peixoto, eleito, a 7 de maio de 1910, para a Academia Brasileira de Letras, publicou seu primeiro romance apenas no ano seguinte, quando tomou posse na instituição. Discípulo do lombrosiano Nina Rodrigues, divulgou o darwinismo social e a eugenia típicos do seu tempo. Não foi, entre nossos escritores, o primeiro a fazê-lo. Graça Aranha e Euclides da Cunha já haviam se espojado na arrogância positivista – de nefasta influência no Brasil – e repetiriam, com maior ou menor intensidade, as idéias que, durante largo tempo, dominaram inclusive a literatura. Basta pensar, por exemplo, no romancista Aluísio Azevedo e seu naturalismo, em que degradação e promiscuidade se tornam a lei à qual todos estão definitivamente submetidos. [ 56 ] No âmbito da ciência, alguns estudiosos apontam Afrânio Peixoto como responsável por uma campanha de difamação realizada contra seu rival, Carlos Chagas, fato que teria impedido o descobridor do protozoário Trypanosoma cruzi de receber o Nobel de Medicina. À parte essa vergonhosa questão ética, é curioso verificar que o romantismo alencariano se agrega, no romance Fruta do mato , de 1920, às influências apresentadas acima. As ficções de Afrânio Peixoto são bons exemplos de como a tradição formada por Manuel Antônio de Almeida e Machado de Assis – ou seja, o que de melhor se produziu em nossa literatura durante quase um século – demorou a vingar ou produziu frutos esparsos, às vezes esquecidos. Afrânio Peixoto e a maioria dos escritores nacionais sofreram a pior influência ao escolherem os modelos mais fáceis, prenhes

de cientificismo ou retórica – e por isso mesmo desbotados de literatura. Crítica involuntária O narrador e protagonista de Fruta do mato , o jovem Vergílio de Aguiar, declara-se, cheio de orgulho, leitor de Auguste Comte e Herbert Spencer. Tais leituras o impediriam de acreditar nas superstições que rondam a fazenda do Corre-Costa, cujos proprietários, um traficante de escravos e a esposa sádica, seriam demoníacos. É o que demonstra, logo no início do livro, ao debater, com os colegas Zoroastro e Espiridião, sobre a possível compra da propriedade, oferecida a preço irrisório. Forasteiro na cidadezinha de Canavieiras, no sul da Bahia, em busca de fortuna fácil, Vergílio sente-se superior a todos, mostra-se arrogante inclusive na forma de se referir à região, tratando-a como se não fizesse parte da Bahia – ou como se apenas a capital do estado representasse a verdadeira cultura baiana. Vergílio esconde, no entanto, uma contradição: é tão imaturo e frágil quanto o narrador de Lucíola , que, se recordarmos o enredo desse romance alencariano, acaba submetido à morbidez da protagonista. [ 57 ] No caso de Vergílio, ele vence, graças às certezas que a ciência lhe infunde, as assombrações, mas termina derrotado pela sedução de Joaninha, neta do Corre-Costa, ela própria sádica desde a infância, personagem estereotipada, presuntivo símbolo do feminino, no qual se concentram manipulação e melifluidade. Afrânio Peixoto não busca construir, como ocorre em Lucíola , um arquétipo que passa, abruptamente, do extremo pecado à exaltada santidade, mas personificar o mal, retratá-lo em minúcias, desenhá-lo numa personagem plana, destituída de contrastes – e exatamente por isso inconvincente. No que se refere ao narrador, as certezas antimetafísicas só ressaltam seu infantilismo, sua fragilidade moral: ele descobre as tramóias

de Joaninha, seus deletérios jogos de sedução; o que, de início, é dúvida em que se mesclam arroubo romântico, atração sexual e credulidade, torna-se certeza; nas páginas finais, o positivista obtém o testemunho, a prova almejada, que desnuda a mulher-demônio – mas termina seu relato infenso à verdade. Assim, de forma involuntária, a obra, apesar das poucas qualidades estéticas, torna-se risonha crítica ao cientificismo. Miscigenação e decadência Às teses caras ao naturalismo – o homem escravo da hereditariedade e o preconceito racial –, Peixoto acrescenta sua visão deturpada das relações entre homem e mulher, criando um protagonista que vê a si mesmo como eterno dependente do sexo feminino: “Parece que é da natureza do homem ter uma mulher no sentido”, conclui Vergílio, a princípio dividido entre Gracinha, jovem que disputa com Zoroastro e Espiridião, e Joaninha. Os diminutivos, aliás, não expressam valorização afetiva ou carinho, mas julgamento moral, que se revela logo às primeiras páginas: “Sexo prevenido, desconfiado, desunido!”. As bobagens racistas espraiam-se por todo o romance. Onofre, mulato e feitor da fazenda do Corre-Costa, também apaixonado por Joaninha, é mestiço, ser ambíguo, transitório, em que duas raças ainda se digladiam num homem, quase um híbrido: resulta que despreza o negro, que já não é, mas cuja inferioridade ainda o envergonha, e inveja o branco, que não chegou a ser, e de cuja superioridade se vinga, detraindo, rebaixando-o à própria condição...

Não satisfeito com a breve e pseudocientífica descrição, o narrador prossegue: Lembraram-me os infinitos mestiços que andam por aí além, por este Brasil, e cuja psicologia só pode ser esta: rancor mais ou menos declarado a todas as virtudes, méritos, talentos, instituições, costumes dos brancos, ainda hoje em dia, como outrora o votaram aos outros seus parentes os pretos, esses bons, humildes, pacientes, serviçais, afetuosos, que, com o seu sangue, o seu braço e o seu coração, do mato grosso de nossa terra fizeram o Brasil colonial.

A benevolência do narrador em relação aos negros só esclarece e sublinha seu racismo e sua interpretação da mestiçagem. Partindo dessas avaliações, Vergílio cria um excêntrico, bárbaro tribunal antropológico-histórico, no qual os mulatos seriam a pena que os brancos devem suportar: A civilização branca tem no Brasil, ainda por trezentos anos, seus inimigos latentes na mestiçagem em que vamos purgando os milhões de africanos do tráfico. É a desforra de Cam.

Já não é mais o narrador quem fala no trecho a seguir, mas, sim, o médico Afrânio Peixoto, professor e escritor na área de Medicina Legal, cuja tese, depois de formado, intitulava-se Epilepsia e crime : [...] O que o Brasil sofre, de degradação familiar, social, cívica, religiosa, moral, política, por influxo da escravidão africana, vinga o martírio de uma raça nos quatro séculos em que ajudou a criar nossa nacionalidade. A escravatura forra em 88 nos terá, sob a vergonha das suas presas, durante ainda quanto tempo? Havemos de purgar lentamente essa corrupção, o nosso castigo... se não morrermos de infecção...

O próprio Onofre, mulato responsável por castigar os escravos da fazenda, incorpora as idéias do autor e revela, em seu longo depoimento, no final do romance: [...] Eu vingava neles toda a minha raiva e meu arrependimento, e, quanto mais sofria, mais era ruim. Também não me arrependo, porque essa raça amaldiçoada nasceu para o açoite... ruins, falsos, perversos, não veio outra assim no mundo.

Há teses análogas em Canaã , publicado dezoito anos antes. Surpreendentemente, contudo, o pernóstico romance de Graça Aranha foi enaltecido pelos modernistas e, até hoje, tem fervorosos admiradores, enquanto Afrânio Peixoto permanece esquecido. [ 58 ] O critério seletivo, portanto, não é estético ou ideológico, mas partidário, fazendo-nos pensar se o lema dos modernistas de 22 não era o mesmo que Sébastien-Roch-Nicolas de Chamfort descobriu, a duras penas, entre os radicais franceses de 1789: “Seja meu amigo – ou eu te matarei”. Descrições

Como afirmei acima, o romantismo piegas de Alencar contamina Fruta do mato desde as primeiras páginas. Está presente no narrador que, caminhando solitário à noite, fala: “Sob meus pés incendiavam-se, como estrelas perdidas na grama, os clarões efêmeros dos vaga-lumes”. O mesmo narrador que, logo a seguir, anseia que Gracinha estivesse com ele, mirando estrelas e vaga-lumes, eu a aspirar, com o das boas-noites, o cheiro das suas pesadas e lustrosas tranças; e, além da palpitação dos mundos, sentindo bater, junto ao dela, meu coração desejoso e indeciso...

Ao encontrar Joaninha a primeira vez, voltam imagens semelhantes, idealizadas, melosas, comuns: Quis rapidamente analisá-lo [refere-se ao suposto feitiço da mulher], mas não consegui. Seria de cabelos pretos, profusos, lustrosos, pesados, que se derramavam encaracolados pelas fontes e pelas espáduas? Seria da face pálida, cor de marfim antigo, que dois olhos negros, redondos, polidos e grandes como jaboticabas, iluminavam como faróis obscuros? Seria do corpo todo, esbelto, gracioso, torneado, que as vestes sem-cerimônia, roceiras e domésticas, nem encobriam nem dissimulavam? Seria do prestígio que realçava essa realidade confirmada? Não sei; tudo isso talvez...

Não satisfeito, o narrador retoma a descrição páginas à frente: [...] Os cabelos fartos que choviam encaracolados pelas espáduas até a pala da blusa, às oscilações da marcha, se afastavam às vezes, entremostrando a nuca morena, roliça, como um torso de mármore antigo, penugenta e provocante como de mulher moça e faceira, porque oculta e esquiva, atrás da sua móvel cortina de seda preta... O tronco bem feito, a cintura fina, as ancas ondeadas, que o ritmo do andar fazia alternativamente menear, num gesto impudico.

É uma das características de Afrânio Peixoto: pouco acrescentar de uma descrição a outra – ou apenas repetir. A confirmar essa observação, veja-se o que ele escreve dez páginas depois: Abria a porta do meu quarto para sair à sala, quando dei com ela, Joaninha, que entrava na varanda. Tinha ainda roupa de manhã, um roupão alvo, amplo, rendado, que não a vestia, ajustado, mas no qual se movia, solta, livre, independente, como um fruto raro ou um diamante lapidado, que se tivesse deposto na sua coifa de algodão. [...] Os cabelos negros e anelados caíam em rolos e cachos sobre as fontes e escorriam retorcidos, pesados e lustrosos, pelas espáduas. [...]

Não bastasse repisar imagens, o autor esbanja lugarescomuns e apenas rodeia sua personagem, incapaz de descrevê-la, a não ser enfileirando adjetivos. Trinta anos antes, no conto “Missa do Galo”, presente na coletânea Páginas recolhidas , Machado de Assis já descrevera o roupão mais famoso da literatura brasileira, que dava a Conceição um “desalinho honesto”, despindo-a sem desvesti-la. E o fez com economia de recursos até hoje invejável – lição que Afrânio Peixoto desconhecia ou recusou. Diálogos e cantilena Se desconsiderarmos as interferências enfadonhas do narrador, há alguns diálogos razoáveis em Fruta do mato , como este, no Capítulo IX : – Vergílio? Tomou-me um arrepio de frio ou de excitação. Quis volver para prendê-la nos meus braços, mas seu corpo me pesou com mais lassidão, forçando a manter-me na mesma atitude, docemente coacto. Ela continuava: – Você acha que gosta de mim... Eu só desejo crer. Você vai me dar a prova... – ... – Vamos fugir... Parece-me que o mundo desabava sobre mim... Num instante tomou-me uma perplexidade, diante do abismo que via se me cavar aos pés... Não achei movimento nem resposta. Depois, uma onda de sangue me cobriu a face de uma quentura. Ela me sacudiu: – Responda... quer? A muito custo, pude dizer: – E o Américo? – Se o abandono, é porque não gosto dele... Não o posso mais suportar... – E eu... seu amigo de infância... seu hóspede? – Você não se lembrou disso, para me cobiçar... Como eu não respondesse, a voz lhe tomou uma entonação de ironia: – Compreendo... Para você não lhe sirvo. Uma mulher é muito para um homem... é demais! Preferiria dividida pelos dois, o outro com a responsabilidade, você com a distração... Que belo passeio pelo rio da Salsa!... Enganou-se, meu amigo, eu não sou destas... [...] – Pois sim! fujamos... Quando? [...]

– Qual! Você não é dos que roubam, nem dos que matam... [...] – Sou dos que são tentados e atormentados... Por que você me aborrece? – Porque ainda não gosta de mim, como eu quero que goste... Como eu queria ser amada... Está escrito talvez que não acharei o meu, um “homem” na vida... Vivo a procurá-lo, e a me enganar...

Mal terminada a conversa, no entanto, retorna o narrador com sua cantilena, seu psicologismo, pronto a explicar o que o leitor já compreendeu e, dessa forma, diluir a tensão, arruinar o efeito criado: A provocação da faceirice, a maldade da zombaria, passariam... um véu de tristeza, trágica e silenciosa, cobriu-a com seu manto grave de sofrimento e de piedade. Talvez na vida lhe fosse a única palavra não mentirosa, arrancada pela decepção à sinceridade. O coração se lhe exibia nu, nessa revelação. Uma mulher nunca o revela, porque não tem consciência dele, e se tem, porque lhe resta um pudor na alma, quando o do corpo já não subsiste mais. Andam por isso tantas, de braços a braços, errantes e envergonhadas, nas experiências e decepções, procurando, sem achar o seu, o par, que deve haver para cada uma... A essa, acudira a razão aos lábios...

Narciso e Don Juan Da obra em que Alfredo Bosi encontrou “elegância simples e corrente” salvam-se, com esforço, a longa cena do desafio, no Capítulo VII – desde que eliminados os trechos em que o narrador se intromete desnecessariamente –, e, no Capítulo XVII , o diálogo entre Joaninha e Onofre, que este relata a Vergílio, no qual vemos, com nitidez, a personalidade psicopática da mulher. Afora esses trechos, Afrânio Peixoto antecipa-se a Nelson Rodrigues. Depois da surra que leva do marido, Joaninha comenta com sua fiel empregada: “– Umbelina, nunca pensei que Américo me quisesse tanto bem...”. É o que resta dessa doentia personagem, misto de Narciso e Don Juan, e desse romance medíocre, de final entanguido, filho tardio do romantismo e do naturalismo. [ 56 ] Ver, em Muita Retórica — Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha) , o Capítulo 9, “O preço do naturalismo”, em que analiso O Cortiço . [ 57 ] Ver minha análise de Lucíola no Capítulo 1 de Muita Retórica — Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha) .

[ 58 ] Minha análise de Canaã pode ser encontrada no ensaio “Puro pedantismo”, Capítulo 20 de Muita Retórica — Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha) .

CAPÍTULO 14

Injustamente esquecido – Valdomiro Silveira e Os caboclos

O paulista Valdomiro Silveira – que passou a vida publicando seus contos em jornais e revistas, reunindo-os, de tempos em tempos, no formato de livro – sofre, até hoje, a incompreensão de parte da crítica literária. Mas não se pode esperar muito de alguns mandarins, sempre prontos a enaltecer o beletrismo cabotino de Afonso Arinos – como não me canso de dizer – e desprezar, como vimos no Capítulo 8, a espontaneidade e a tensão épica do goiano Hugo de Carvalho Ramos. Aliás, este último forma, ao lado de Simões Lopes Neto e do próprio Valdomiro Silveira, a tríade que não ergueu suas preocupações regionalistas à condição de um mausoléu da linguagem ou dos costumes locais. Fisgar o leitor Os caboclos , primeiro livro de Valdomiro Silveira, publicado em 1920, reúne 24 contos elaborados entre 1897 e 1906, com exceção da narrativa que fecha o volume, “Desespero de amor”, escrita especialmente para a Revista do Brasil , em 1915. São histórias singelas ou dramáticas, de inícios contagiantes, que quase sempre capturam o protagonista num momento revelador. É o que ocorre em “Esperando”: A Maruca trepou ao lugar mais alto daquela pedra e pôs-se a olhar o rio. O rio estava repontado de uma vez, e corria quase em silêncio: tinham-se-lhe encoberto as rochas das corredeiras por sob as águas da última chuvarada. Um martim-pescador, sentado no guatambu da ribanceira, olhava para o largo, tocaiando os peixes. E o vulto do martim-pescador, fazendo sombra no rio, depois da sombra da Maruca, tinha jeito de lhe estar de pé na cabeça.

Perceba-se a forma algo simples de narrar, obediente à tentativa de reconstituir a fala caipira – avessa, certamente, à mesóclise –, claro propósito do autor, que sequer evita repetir certos vocábulos, o que não o impede de descrever com habilidade a posição curiosa assumida pelas sombras. Iniciar bem é uma arte, ainda que os teóricos do conto insistam na importância dos finais. Em “Na tapera de Nhô Tico”, as exclamações que irrompem sob o sol fisgam o leitor: – Ota! Solama bruta! – ia dizendo Chico Pica-pau, sozinho, pela estrada vermelha, ao pino do dia. O suor caía-lhe em grossas gotas pela testa e rosto abaixo, banhando-lhe a camisa de algodão e um bentinho de baeta azul que vestia a oração livradeira das cobras e dos outros bichos da peçonha [...].

No conto “Salvação”, os pássaros espocam, antropomorfizados, numa barulheira tremenda:

quase

Um gurundi pegara a chiar, muito aflito, no meio do cambuizal: e perto dele, em gritaria alvoroçada, enrufando penas, iam pelo ar os bem-te-vis, as cabeçudas e as sapucaias. Chegou a aparecer no tumulto, curiosa e assustada, ua meia-pataca: mas, pousando em galho vizinho ao em que estava o gurundi, tomou-se logo de tamanho terror, que abriu vôo, desmanchado e cor de havana, entre os ramos povoados de frutinhas vermelhas.

Não de forma tão abrupta, mas com desagradável surpresa, começa a narrativa “Camunhengue”: Um belo dia, sem mais esta nem aquela, pegaram a aparecer pelo rosto do Zeca Estevo umas grossuras, uma vermelhidão, uma pressama que ninguém sabia como explicar. Engrossavam-lhe as asas do nariz, iam-se-lhe sumindo os olhos sob a carne tumefeita, que os vencia por todos os lados, recrescente, e as pestanas principiaram a fazer-se-lhe ralas, esfiapadas, ao mesmo tempo que a cabeça despovoava de cabelos e uma quase contínua fraqueza lhe bambeava as pernas, para baixo dos joelhos.

O traçado Esses começos, capazes de prender nossa atenção, anunciam outra das qualidades de Valdomiro Silveira: a de criar narradores que se expressam com desembaraço, colocando o leitor diante da cena viva, nítida. Como em “Por mexericos”:

O Fernando, enlevado no trabalho, não viu quando lhe chegou à porta o Chico Ferro: corria a plaina por um toro de peroba e, rasgando fitas e fitas cor-de-rosa, punha gosto em ver que se enrolavam como uma trança desfeita, pendiam para a banda e caíam no chão, entre os sarrafos e a serragem [...].

Sua técnica pode se revelar numa composição metafórica que resume, de forma poética, certo estado de espírito: “[...] Para quem trazia saudade velha, não havia hora melhor: tudo em roda estava quieto, o sol ardia, e a sombra dos arvoredos era boa e serena como um perdão” (“Hora quieta”); ou pode se distender em analogias aliciantes: Mas a calma fugiu logo: o José começou a falar-lhe um dilúvio de coisas, com a voz abafada como a dos urus na grota do ninho, e sempre se lhe ia chegando mais para perto, a ponto de ser preciso que ela às vezes recuasse para um lado e outro. A voz do José tinha o som de um enxame de mirins fumegando à porta do mel: e o que a voz dizia, naquele pouco som, tinha a mesma doçura que o mel dos mirins. (“As fruitas”)

Nas mãos desse contista, as frases se encadeiam sem adereços desnecessários, o ritmo torna-se leve – e a paixão é descrita com perfeito toque de humor: O carreiro levava uma carregação de sal para o Tibagi; mas ficou tão enlevado na Vicença (agora, que ela era linda, isso era!), ficou tão enlevado, que por um triz não se lhe derreteu o sal com os aguaceiros de maio, caídos sem mais tirte, nem guarte, nem licença dos que andam apaixonados. Estava quase aguando, o pobre! com sal e tudo, a boiada engordando na grama larga, e o tempo dando trinta dias por mês: até que enfim, ganhando coragem, pediu a moça, numa janta, em cima da última colher de cocada preta e antes da tigela de café. (“Última vez”)

O inusitado dos verbos não recupera apenas a linguagem típica do interior paulista, mas areja a frase e soma-se aos adjetivos e ao advérbio para tornar a personagem visível: [...] O Valério machucava um parelho de brim de algodão trançado, tinha um lenço de ramos atado à camisa de morim e quebrara à testa, vitoriosamente, um chapéu cor de leite com café. [...] (“Saudade do Natal”)

Em “Os curiangos”, desoladora história do coveiro Pedro Mariano, a febre, talvez a gripe espanhola, se instala na cidade. O estranho bater dos sinos e a pobreza dos funerais ampliam a dor das sucessivas mortes:

[...] Não acabava o sino de bater por um defunto, devagar, devagarzinho, já pega a bater por outro, mais de pressa, até que o toque dos mortos já parecia repique de festa, credo em cruz! Os que tinham alguma coisa de seu, lá iam meio arranjados p’r’o carro preto, depois de um terno de homens de fora esborrifá-lo de quanta água esquisita há; os outros, que morriam p’r’o hospital ou p’r esses ermos, a carrocinha de pão vinha buscá-los, e, depois que os tais home’s os deixavam molhados duma vez, lá iam p’r’o alto da estação, toca-que-toca, sofrendo a birra dos cocheiros e o trote duro dos cavalos arrebentados.

A devastação irrompe diante da personagem que volta, sem avisar, à cidade e, ao descer do trem, vê apenas abandono, destruição. “É a viração do mundo”, sintetiza o narrador, “o que onte’ era doce devera, amarga hoje; o que fora bom, fica ruim”, recuperando a clássica figura do “mundo às avessas”, tão bem descrita por Ernst Robert Curtius. [ 59 ] Logo depois, quando o protagonista se vê forçado a enterrar a mulher que amava em segredo, o infortúnio leva-o à loucura. Vagando enlouquecido, Mariano imagina sofrer o ataque da natureza: Chegou à porteira que dá p’r’a chacra do João Júlio, dobrou às canhas, atormentado, sem tino e sem tento, e foi beirando os trilhos. Agora, a barulhada não era só dos curiangos, em roda: lá dentro da cabeça também a bicharia amotinada lhe fazia um guaiú de ensurdecer, como se tivesse ânsia de voar, no mesmo auto, p’r’aquele milheiro de gargantas despregadas. E sentiu recrescer a loucura dos curiangos, e a raiva, enquanto os bitus e içás estalavam de leve as asas tremidas, e as escumanas se lhe encaminhavam p’r’o meio dos miolos, campeando saída a toda pressa.

Mas Valdomiro Silveira também sabe ser lírico, como neste trecho de “Desespero de amor”, em que sol e lua se alternam não só para reforçar a idéia da passagem do tempo, mas também criar uma ilusão pictórica: A paixão lavrou depressa: não podia passar muitas horas longe dele, esperava-o à porta com flores no cabelo, no peito ou na cintura; e ficava a acompanhá-lo com os olhos, tempo esquecido, até que o vulto desaparecesse no caminho e sobre o caminho caísse toda a poeira que aquele vulto erguera na passagem. Quantas vezes o sol a cobrira de ouro, vendo ela o Chico Só a sumir na lonjura de um morro, e a lua viera cobri-la de prata, sem que ela se afastasse ainda da porta, enamorada e sonhadora!

Desenlaces

Valdomiro Silveira tinha a exata noção de como os finais podem ser impactantes num conto, sejam eles o desfecho clássico que Edgar Allan Poe advogava, com sua tese de que o dénouement deve ser escrito antes de tudo, [ 60 ] ou apresentem a perturbadora sensação de permanência – e muitas vezes de irresolução – da narrativa tchekhoviana. Em “Por mexericos”, Nhô Fernando, interrompido no trabalho, ouve as reclamações de Chico Ferro com aparente paciência – até correr o falastrão de sua oficina, confirmando o velho ditado: “Cão que ladra não morde”. A história do topetudo que se acovarda retorna no conto “Valentia”, mais cômico, com Ana Triste – “pixaim repuxado para as orelhas, à força de pente, remexido em caracóis e todo besuntado de banha com essência de rosa” – enfrentando o brigão Imbuava. No conto “Missa da Páscoa”, a alegria antecipada, os cuidados da vaidade, os sonhos do amor correspondido – maiores do que os da paixão impossível – são destruídos de repente, restando apenas o vazio num final em que a protagonista sequer tem a chance de reagir. “Pinhã refugada” termina com o golpe de insolência e desprezo sobre a prostituta que começa a envelhecer, mas cuja inabalável dignidade se revela, em meio a soluços, na última frase. Em “Desespero de amor”, a confirmação do adultério é anunciada de forma sutil mas inquestionável, também por meio de breve sentença. Mas os causos de Valdomiro Silveira podem terminar sem surpresa, ratificando a expectativa do leitor, que se vê, contudo, cingido por uma nota lírica ou comovente: em “Cena de Amor”, Chico Luís e Candoca, ambos feios, se apaixonam, mas o gesto involuntário do final, da mão que toca a trança da mulher – trança, aliás, sutilmente anunciada parágrafos antes –, sintetiza a narrativa; o fecho de “Hora quieta” chega a ser pueril, mas, graças à espirituosa exclamação da jovem apaixonada, o leitor é transferido a delicioso universo, no qual não há espaço para

angústias ou dúvidas existenciais – sentimento que se repete em “Salvação”, por meio do saudosismo feliz do velho e bom Albino. Em “Mamãe”, ao contrário, a dor materna, subitamente revelada, expõe ao filho doente a dimensão do seu próprio drama. De nada adianta a Chiquinha Sabiá, protagonista do “Faiscador de Carumbé”, sua devoção ao galanteador Zé Saúva; previsto, o desgosto permite-lhe apenas aflitiva reação: “Agora (ela gaguejou um tempinho), agora (e pôs-se a tremer os lábios), agora (e desatou a chorar), agora só morrendo!”. O choro convulso e o arrependimento dominam Lainha, em “Constância”, quando esta percebe, tarde demais, que não fora fiel ao próprio coração. Tempo e consciência O talento desse contista pode se revelar, ainda, na composição dos diálogos. Em “Saudades do Natal”, as memórias de Valério e Doninha se alternam – uma verbalizada pelo apaixonado, outra, puro assentimento, desfiando-se nas lembranças da silenciosa ouvinte. Compõe-se, assim, o dueto no qual o amor, sobressaindo da festa familiar, realimenta-se em emocionado continuum . A fim de marcar o progresso da morféia, o tempo ganha relevância em “Camunhengue”, mas avança segundo os ciclos da natureza: ainda cai “uma neblina muito fria, embora fosse tempo de milho verde”, quando Zeca Estevo sai em busca do curandeiro; ao chegar “o tempo das águas, com uma ventania nunca vista e um poder de tempestade todo santo dia”, a esposa já se recusa a dormir com ele na mesma cama; na estiagem, numa manhã de dezembro, Zeca parte definitivamente, rejeitado por todos. Narrativa concisa, “Cena de amor” revela, sob a trama em que alguns encontraram apenas ingenuidade, a plena abertura de Nhá Candoca à vida – apesar da feiúra, esta mulher não se permite a mínima autocomiseração.

Semelhante força moral está presente em “Na tapera de Nhô Tido”: Chico Pica-pau, o protagonista, passa da inquietação e do desejo de vingança ao estupor que lhe permite reencontrar o sentido da própria consciência. Não há banalidade, portanto, em Valdomiro Silveira. Abandonado por certos críticos num limbo nada honroso, ele merece leitura atenta – inclusive para lembrarmos que a literatura não deve espelhar apenas derrotismo, misantropia e tédio. [ 59 ] Em Literatura Européia e Idade Média Latina , MEC — Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957. [ 60 ] Em “A Filosofia da Composição”, Poemas e ensaios , Editora Globo, Rio de Janeiro, 1987.

CAPÍTULO 15

Corrosivo e sempre contemporâneo – Monteiro Lobato, Urupês e Negrinha

A reedição da obra completa de Monteiro Lobato pela Editora Globo, após longo e controvertido litígio entre os herdeiros e a Brasiliense, é um dos melhores acontecimentos do mercado editorial na primeira década do século XXI – principalmente àqueles leitores que discordam de Alfredo Bosi, para quem o escritor – “um intelectual participante que empunhou a bandeira do progresso social e mental de nossa gente” – não passa de um “medíocre paisagista acadêmico”. [ 61 ] Se considerar Lobato “acadêmico” é inaceitável – pois não foi um seguidor rigoroso dos modelos consagrados pela tradição nem se manteve infenso a inovações –, chamá-lo de “medíocre” parece-me escolha, no mínimo, inadequada. Mas esse tipo de reação não é difícil de se encontrar quando falamos de Lobato. Para a maioria dos seus detratores, o artigo “Paranóia ou mistificação? – A propósito da exposição Malfatti” [ 62 ] estigmatizou o escritor, transformando-o em inimigo de tudo o que significa avanço na arte brasileira. Lido com atenção, o texto apresenta inclusive elogios à obra de Anita Malfatti, porém, aos criadores do senso comum não importa a verdade – interessa, sim, preservar certa posição a qualquer custo. Passam a valer, dessa forma, as versões que, reafirmando a voz geral, garantem aos incansáveis repetidores a aprovação do partido, a chancela dos iguais. O gregarismo cobra, sem dúvida, alto preço da inteligência.

Mas, à parte os comentários de Lobato sobre a obra da artista, sua crítica às vanguardas está lá, indefectível, no famoso artigo: Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma – mas caricatura que não visa, como a verdadeira, ressaltar uma idéia, mas sim desnortear, aparvalhar, atordoar a ingenuidade do espectador. A fisionomia de quem sai de uma de tais exposições é das mais sugestivas. Nenhuma impressão de prazer ou de beleza denunciam as caras; em todas se lê o desapontamento de quem está incerto, duvidoso de si próprio e dos outros, incapaz de raciocinar e muito desconfiado de que o mistificaram grosseiramente. Outros, certos críticos sobretudo, aproveitam a vasa para épater le bourgeois (chocar o burguês). Teorizam aquilo com grande dispêndio de palavreado técnico, descobrem na tela intenções inacessíveis ao vulgo, justificam-nas com a independência de interpretação do artista; a conclusão é que o público é uma besta e eles, os entendidos, um grupo genial de iniciados nas transcendências sublimes duma Estética Superior. No fundo, riem-se uns dos outros – o artista do crítico, o crítico do pintor. É mister que o público se ria de ambos.

Que alguns ainda se condoam da crise emocional em que Anita Malfatti teria imergido, supostamente por causa das palavras de Lobato, bem, esse é um problema de psicanalistas e biógrafos. A verdade é que o escritor se mostrou lúcido o suficiente para, cinco anos antes da Semana de 22, colocar-se de prontidão contra a típica maneira de proceder dos subdesenvolvidos: acatar modelos estéticos importados, já diluidíssimos, desgastados de sua força original, como se fossem verdades atemporais; e aceitar de forma acrítica o que aparenta ser novo, apenas por trazer o rótulo de vanguarda ou escândalo. Não por outro motivo parte dos jovens escritores nacionais – e também dos não tão jovens – insiste em reescrever o Finnegans Wake ... Um ano depois do polêmico artigo, a publicação de Urupês , contendo textos produzidos entre 1915 e 1917, definiria o perfil não de um modernista, mas – como bem sintetizou José Aderaldo Castello [ 63 ] – de um moderno que, no papel

de escritor e empresário, foi uma das principais influências da Semana de 22. Audácia editorial De fato, não há melhor resposta ao comentário de Luciana Stegagno Picchio – segundo a filóloga, “a prepotente personalidade” de Lobato “cava um vazio” em torno dele “nas batalhas cívico-literárias” [ 64 ] – do que a coragem do autor de Urupês para, enquanto editor, publicar tantos e tão jovens autores nacionais. Sem a explosão do mercado editorial patrocinada por ele, a Semana de Arte Moderna teria de esperar, certamente, por José Olympio. De promotor público no interior do Estado de São Paulo e fazendeiro, Lobato passou, em 1918, a proprietário da Revista do Brasil . Além de revitalizar a publicação, deu vida a uma editora. O panorama do mercado editorial e a revolução empreendida pelo escritor foram delineados por Laurence Hallewell: [ 65 ] em meio ao desalentador comércio de livros do pós-guerra, as obras da maioria dos autores nacionais eram importadas de Paris, onde a Editora Garnier as produzia, ou de Portugal. Inconformado, Monteiro Lobato sabe que, primeiro, deve criar uma ampla rede de distribuidores. Escreve, então, a todos os 1.300 agentes postais do país, “solicitando nome e endereço de bancas de jornal, papelarias, farmácias ou armazéns que pudessem estar interessados em vender livros”. Quase todos responderam. No final do processo, Lobato dispunha de dois mil distribuidores. Ele diria: “Os únicos lugares em que não vendi foi nos açougues, por temor de que os livros ficassem sujos de sangue”. Também se mostrou original na propaganda, fazendo publicidade em jornais, coisa raríssima na época. Importou novos tipos, mais modernos, e alterou os padrões de diagramação e ilustração, não só para melhorar a aparência do produto, mas preocupado com a legibilidade das obras. No início de 1919, importava seu próprio papel e começou a montar a oficina gráfica. Em

1923, tinha quase duzentos títulos em catálogo e se tornara uma referência no mercado. O grande impulso à cultura, no entanto, o que Hallewell chama de “pequeno renascimento literário”, centralizou-se na publicação de novos autores. Seguindo seus princípios – “Nada de medalhões, nada de acadêmicos com farda de general de opereta do tempo de Luís XIV, armado daquela espadinha de cortar-papel. Gente nova, de paletó saco, humilde nas suas pretensões” –, Lobato publicou, entre outros, Guilherme de Almeida, Amadeu Amaral, Gilberto Amado e ao menos dois dos seus “inimigos” modernistas: Oswald de Andrade e Menotti del Picchia. Ainda segundo Hallewell, “a todos pagava generosamente, e freqüentemente antes da publicação”. O caso de Lima Barreto é exemplar: em novembro de 1918 ofereceu ao escritor “metade dos lucros de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá , com o que o autor não concordou” – no fim, acabou oferecendo uma cifra que representou “direitos de mais de 13% sobre toda a edição de três mil exemplares”, assumindo possível prejuízo. Esse Lobato pronto a ajudar os escritores seguiu atuante mesmo depois da falência do seu primeiro projeto editorial, ocorrida em 1925. Vinte anos mais tarde, o sergipano Paulo Dantas, depois de tentar a sorte no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, chegou a São Paulo. Já havia recebido o Prêmio Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, pelo romance Aquelas muralhas cinzentas , mas estava doente, desempregado e sem economias. Além de pagar seu tratamento em um sanatório de Campos do Jordão, o “prepotente” de Luciana Stegagno Picchio abriu para ele as portas da sua nova editora, a Brasiliense. [ 66 ] Sem artificialismos Voltando ao ano de 1918, a publicação de Urupês trouxe a público não a linguagem de um vanguardista, mas a de um

escritor que, sem se render a modismos, optando por escrever sobre a flora, a fauna e os habitantes do interior do Brasil, e, acima de tudo, pelo seu constante uso do diálogo idiomático natural, talvez tenha desempenhado papel tão importante quanto o de qualquer outro escritor no abrasileiramento da linguagem literária.

O veredicto de Hallewell não é apenas equilibrado, mas justo. Talvez, como também afirma o pesquisador, não tenha existido, da parte de Lobato, “o desejo consciente de inovar”, mas considero essa ausência um mérito, qualidade que o distanciou dos artificialismos típicos da vanguarda. Ler Urupês nos dias de hoje não exige as sucessivas consultas ao dicionário que são imprescindíveis, por exemplo, em Euclides da Cunha. E se há um tom coloquial, não é aquele utilizado nos grandes centros urbanos da época, mas outro, próprio da zona rural paulista. No conto “A vingança da peroba”, por exemplo, duas famílias de sitiantes se enfrentam em rivalidades mesquinhas: Boa peça! Nunes gozava-se da picuinha, planeando derrubar a árvore à noite, de modo que pela madrugada, quando os Porungas dessem pela coisa, nem Santo Antônio remediaria o mal. – Está resolvido: derrubo a peroba! Dito e feito. Dois machados roncaram no pau alta noite, e ainda não raiava a manhã quando a peroba estrondeou por terra, tombada do lado do Nunes. Mal rompeu o dia, os Porungas, advertidos pela ronqueira, saíram a sondar o que fora. Deram logo com a marosca, e Pedro, à frente do bando, interpelou: – Com ordem de quem, seu... – Com ordem da paca, ouviu? – revidou Nunes provocativamente. – Mas paca é paca e essa peroba era o marco do rumo, meia minha, meia sua. – Pois eu quero gastar a minha parte. Deixo a sua pra aí!... – retrucou Nunes apontando com o beiço a cavacaria cor-de-rosa. Pedro continha-se a custo. – Ah, cachorro! Não sei onde estou que não... – Pois eu sei que estou em minha casa e que bato fogo na primeira “cuia” que passar o rumo!... Esquentou o bate-boca. Houve nome feio a valer. O mulherio interveio com grande descabelamento de palavrões. De espingardinha na mão, radiante no meio da barulhada, Nunes dizia ao Maneta: – Vá lavrando, compadre, que eu sozinho escoro este cuiame!... A Porungada, afinal, abandonou o campo – para não haver sangue.

– Você fica com o pau, cachaceiro à toa, mas inda há de chorar muita lágrima por amor disso... – Bééé!... – estrugiu Nunes triunfalmente. Os Porungas desceram resmoneando em conciliábulo, seguidos do olhar vitorioso de Nunes. – Então, compadre, viu que cuiada choca? É só chá de língua, pé, pé, pé; mas chegar mesmo, quando! O guampudo conheceu a arruda pelo cheiro! E assombrou o velho com muitos lances heróicos, quebramentos de cara, escoras de três e quatro, o diabo.

A cena não é só divertida, mas tem agilidade incrível. Lobato faz Nunes caçoar da família rival com um jogo de palavras no qual troca o sobrenome “Porunga” pelo substantivo “cuia”, praticamente sinônimos – sem esquecer que “cuia”, em algumas regiões, significa “meretriz”. E há outras boas escolhas: o “ronco” dos machados, o uso das interjeições e o dito popular, chulo, referindo-se a Pedro como “guampudo”, ou seja, corno. Seria plausível dizer que o conto, por sua modernidade, foi produzido em 1930 ou 1940, mas Lobato o escreveu em 1915. Em “O faroleiro”, do mesmo ano, o narrador, ávido pela história que o amigo hesita em contar, diz-se “esporeado na curiosidade” – invulgar, deliciosa expressão. E no conto “Bucólica”, também de 1915, a contraposição – clara desde o início da narrativa – entre a natureza exuberante e a humanidade que só decepciona ganha ainda maior evidência no diálogo entre patrão e empregado: – Então, meu velho, na mesma? – Melhorzinho. A quina sempre é remédio. – Isso mesmo, quina, quina. – É... mas está cara, patrão! Um vidrinho assim, três cruzados. Estou vendo que tenho de vender a paineira. – ?? – Não vê que o Chico Bastião dá dezoito mil réis por ela – e inda um capadinho de choro. Como este ano carregou demais, vem paina pra arrobas. Ele quer aproveitar; derruba e... – Derruba!... – Derruba e... – Por que não colhe a paina com vara, homem de Deus? – Não vê que é mais fácil derrubar...

– Derruba!... Fujo dali com este horrível som a azoinar-me a cabeça. Aquela maleita ambulante é “dona” da árvore. Urunduva está classificado no gênero “Homo”. Goza de direitos. É rei da criação e dizem que feito à imagem e semelhança de Deus.

Essa, aliás, é outra das características presentes em Urupês : o pessimismo em relação à humanidade. Empresário arrojado, cidadão idealista cujo espírito cívico promoveu campanhas nacionais que se transformaram em atos de resistência contra o governo – chegando a ser silenciado com a prisão –, fundador da literatura infantil brasileira, parece contraditório que Lobato não tivesse, também no que se refere à sua literatura adulta, um pó de pirlimpimpim mágico o suficiente para transportá-lo a um universo em que os aspectos negativos do homem não fossem plenamente vitoriosos. No conto “Um suplício moderno”, por exemplo, ele diz que “a humanidade é sempre a mesma cruel chacinadora de si própria”. E em “Meu conto de Maupassant”, a reflexão, acompanhada de fatalismo, surge logo nos primeiros parágrafos: “A morte e o amor, meu caro, são os dois únicos momentos em que a jogralice da vida arranca a máscara e freme num delírio trágico”. Aqui, estamos próximos de Schopenhauer – e a anos-luz da sabedoria de D.ª Benta. Essa inexorabilidade do destino, marcada, na maioria das vezes, pela tragédia, é outro elemento essencial das narrativas de Lobato. O piadista Francisco Teixeira de Souza Prates, de “O engraçado arrependido”, termina sua jornada tragicômica enforcando-se com a ceroula. Da neta ingrata, em “A colcha de retalhos”, resta apenas a colcha inutilmente costurada, que servirá de mortalha à avó. Nunes sofre a maldição dos Porungas: a peroba, transformada em monjolo, esmaga a cabeça de seu filho. No tétrico “Bocatorta”, não basta que a heroína morra sem conhecer o amor: deve ser condenada à necrofilia, recebendo de um ser hediondo “o único beijo de sua vida”.

Riso e desprezo Um só personagem livra-se do final terrível: Izé Biriba, de “Um suplício moderno”, o melhor conto de Urupês . E é sintomático que o escritor conceda a essa triste figura um destino de liberdade: os inimigos de Biriba são o Estado, os políticos e a burocracia – exatamente aqueles que perseguirão Lobato por toda a vida. Conto de tese, a história de Biriba apresenta o quadro da política brasileira. As quatro páginas iniciais formam um libelo sarcástico contra a burocracia, a “falange gorda dos carrapatos orçamentívoros que pacientemente devoram o país”, centralizando suas atenções no estafetamento, “avatar moderno das antigas torturas”. Izé Biriba, cabo eleitoral premiado com um cargo na administração pública, torna-se estafeta. Mal sabe os suplícios que o aguardam. No fim, cansado da escravidão, vinga-se do chefe político local e desaparece na estrada, pouco depois de dizer o seu último “Sim senhor”. Lobato nada perdoa: critica os altos salários, o nepotismo, a mediocridade das leis. E apresenta a burocracia como o lugar dos falidos, dos incompetentes, do restolho da nação. A narrativa provoca riso e desprezo. Quanto a Biriba, o personagem mostra a habilidade do escritor para construir tipos singulares: por meio de um só gesto – erguer a mão esquerda à altura da testa, arrumando o topete – temos o homem inteiro diante de nós. Retrato do Brasil Além dos contos, Urupês traz dois artigos. “Velha praga”, introduzido no volume apenas na segunda edição e originalmente publicado em 1914, no jornal O Estado de S. Paulo – “violenta diatribe”, na perfeita definição de José Aderaldo Castello –, apresenta severas críticas ao país: “Infelizmente, no Brasil subtrai-se; somar ninguém soma...”. O discurso de Lobato lembra o profético missionário frei Vicente do Salvador, em sua pouco conhecida História do

Brasil , na qual critica brasileiros e portugueses que vivem na colônia: Uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída. Donde nasce também que nem um homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular.

Lobato investe também contra o método das queimadas, até hoje comuns, criticando impiedosamente o roceiro, o matuto paulista: Tala cinqüenta alqueires de terra para extrair deles o com que passar fome e frio durante o ano. Calcula as sementeiras pelo máximo da sua resistência às privações. Nem mais, nem menos. “Dando para passar forme”, sem virem a morrer disso, ele, a mulher e o cachorro – está tudo muito bem; assim fez o pai, o avô; assim fará a prole empanzinada que naquele momento brinca nua no terreiro.

A mordacidade retornará no libelo que fecha o livro – e que dá título à obra. Lobato nega-se a idealizar o homem do campo. Não repetirá o erro cometido pelos românticos, que criaram “aimorés sanhudos, com virtudes romanas por dentro e penas de tucano por fora”. Para certa antropologia contemporânea, que costuma ser indulgente com o atraso e a ignorância, a tudo desculpando em nome da infraestrutura econômica, a verve de Lobato continua a provocar reações histéricas. O Jeca Tatu não é “um forte”: [...] A verdade nua manda dizer que entre as raças de variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o aborígine de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao progresso. [...] Pobre Jeca Tatu! Como é bonito no romance e feio na realidade! [...] Seu grande cuidado é espremer todas as conseqüências da lei do menor esforço – e nisto vai longe.

De certa forma, o escritor se antecipa aos críticos do regionalismo que romantiza o subdesenvolvimento e tenta criar heróis onde só existem derrotados. “Urupês” é a síntese do Brasil agrícola, primitivo, no qual a boçalidade se irmana ao misticismo:

Na mansão do Jeca a parede dos fundos bojou para fora um ventre empanzinado, ameaçando ruir; os barrotes, cortados pela umidade, oscilam na podriqueira do baldrame. A fim de neutralizar o desaprumo e prevenir suas conseqüências, ele grudou na parede uma Nossa Senhora enquadrada em moldurinha amarela – santo de mascate. – “Por que não remenda essa parede, homem de Deus?” – “Ela não tem coragem de cair. Não vê a escora?” Não obstante, “por via das dúvidas”, quando ronca a trovoada Jeca abandona a toca e vai agachar-se no oco dum velho embiruçu do quintal – para se saborear de longe com a eficácia da escora santa. Um pedaço de pau dispensaria o milagre; mas entre pendurar o santo e tomar a foice, subir ao morro, cortar a madeira, atorá-la, baldeá-la e especar a parede, o sacerdote da Grande Lei do Menor Esforço não vacila. É coerente.

O artigo permanece como um repto ao país. É verdade que, na quarta edição do livro, Lobato publicou um pedido de desculpas ao Jeca, reconhecendo outras causas, mais profundas, para o primitivismo do caboclo. Mas a radiografia do Sudeste rural estava feita – e a denúncia repercute até hoje. Literatura e demonologia Lúcia Miguel-Pereira, no artigo “De Peri a Jeca Tatu”, [ 67 ] afirma, com acerto, que “Jeca Tatu é o único matuto de ficção que tem nome e personalidade, que se tornou um símbolo. O símbolo que Alencar tentou em vão fazer de Peri”. Depois de analisar a “melancólica falta de personalidade” de grande parte da ficção publicada até aquele período, reconhece, na arte de Lobato, não só a habilidade de criar um anti-herói, digamos, marcante. Com sabedoria, a crítica resgata “Urupês” do âmbito da mera denúncia e o insere no espaço da literatura: E foi quando, no homem brasileiro, não procurou mais o herói, quando não o quis mais exaltar, e sim quando nele viu um pobre coitado, desamparado e humilde, que a literatura o logrou perpetuar como tipo. A piedade humana foi mais criadora do que a imaginação.

A confirmar as conclusões de Lúcia Miguel-Pereira, Edgar Cavalheiro afirma, em sua biografia de Lobato, que Oswald de Andrade colocava Urupês “como o autêntico ‘Marco Zero’ do movimento modernista”. [ 68 ]

Por tudo o que vimos até aqui – pequena parcela do que Lobato empreendeu durante seus 66 anos –, reconhecer os méritos desse escritor não é apenas uma questão de justiça, mas de respeito à verdade. Antes de Urupês , Lobato publicou um longo estudo etnográfico sobre o saci-pererê, assinando-o, provocativo, com o pseudônimo “Demonólogo Amador”. Talvez essa tenha sido, realmente, sua principal vocação: estudar e combater as forças que intimidam e corrompem o homem, impedindo-o de ser o protagonista da sua breve existência. Não só demonólogo, portanto, mas exorcista mordaz, que se empenhou na tarefa de passar a limpo o Brasil. Acompanhando com rigor o país e seus contemporâneos, foi em tudo semelhante à sua adorável Emília: audacioso, moderno e corrosivo. *** Não é diferente o que ocorre com Negrinha , cuja primeira edição, publicada em 1920, apresentava seis narrativas: além da que serve como título, “As fitas da vida”, “O drama da geada”, “Bugio moqueado”, “O jardineiro Timóteo” e, fechando a obra, “O colocador de pronomes”. A escassez de histórias, contudo, não diminui o valor da obra. Na verdade, se uma hecatombe assolasse o país e restassem apenas, no gigantesco monturo que substituiria a Biblioteca Nacional, as 28 páginas finais do livrinho, os raros sobreviventes, se alfabetizados, poderiam revivificar nossa literatura, então libertada do pessimismo machadiano, dos ressentimentos de Lima Barreto, do pansexualismo de Aluísio Azevedo, do romantismo sentimentalóide de Alencar e da retórica enfadonha de Raul Pompéia. E começariam seu trabalho fazendo o que há de mais prazeroso no destino da humanidade: rir, pois “O colocador de pronomes” é exemplo do melhor humor, dessa “centelha divina que descobre o mundo na sua ambigüidade moral e o homem

em sua profunda incompetência para julgar os outros”, como resumiu Milan Kundera no belo ensaio “O dia em que Panurge não mais fará rir”. [ 69 ] A primeira frase de “O colocador de pronomes” já é um encanto de insanidade: “Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática”. Esse começo inesperadíssimo captura o leitor – e o que vem a seguir o acorrenta, obriga-o a se surpreender mais uma vez: Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no Itaoquense , com bastante sucesso.

Em poucas linhas, frases curtas, temos o tipo completo, de espantosa mediocridade. E, logo a seguir, a descrição de seu carrasco, o Coronel Triburtino. Neste caso, a linguagem lobatiana trabalha, de forma irônica, com lugares-comuns e expressões coloquiais. Estas, como “tutu da terra”, utilizadas raramente na atualidade, concedem tempero adicional à leitura: Triburtino não era homem de brincadeiras. Esgoelara um vereador oposicionista em plena sessão da Câmara e desde aí se transformou no tutu da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.

“Sarna filológica”, “pronominúria”, “furúnculo filológico”, “pronomorréia” – não há limites para concretizar a loucura do personagem cuja vida “foi sempre o mesmo poento idílio com as veneráveis costaneiras onde cabeceiam os clássicos lusitanos”, estudioso que “escabichava belchiores na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte de narrar”. Lobato abusa da linguagem ornamentada exatamente para espicaçar a retórica, para denunciar a patologia dos mestres da eloqüência nacional – no fim do conto, inclusive, presta sutil e irônica homenagem a Rui Barbosa. A obsessão de Aldrovando – protagonista, não por acaso, de nome bombástico – leva-o a se apartar da realidade:

Aldrovando nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava o presente. Passarinho, conhecia um só: o rouxinol de Bernardim Ribeiro. E se acaso o sabiá de Gonçalves Dias vinha bicar “pomos de Hespérides” na laranjeira do seu quintal, Aldrovando esfogueteava-o com apóstrofes: – Salta fora, regionalismo de má sonância!

Panfletário, médico, engenheiro e, finalmente, “apóstolo”, o amante dos pronomes vagueia, incapaz de encontrar quem aceite suas críticas, seus conselhos. O diálogo com o ferreiro da esquina é antológico; e a justificativa do profissional para o erro da tabuleta que anuncia seus serviços – “Ferra-se cavalos” – leva o nonsense ao paroxismo: – Vossa senhoria me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele “se” da tabuleta refere-se cá a este seu criado. É como quem diz: “Serafim ferra cavalos – Ferra Serafim cavalos”. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e ficou como está: “Ferra Se (rafim) cavalos”. – Isto me explicou o pintor, e entendi-o muito bem.

O crescente desespero de Aldrovando desemboca no capítulo central de seu livro, “Do método automático de bem colocar os pronomes”, promessa não apenas de solução gramatical, mas primeiro passo rumo ao fármaco infalível, o “Pronominol Cantagalo”. É pena que a utopia tenha tropeçado no tipógrafo que, certamente movido por boas intenções, transforma o herói no “primeiro santo da gramática, o mártir número 1 da Colocação dos Pronomes”. Fracos e fortes Ainda que esse conto formidável diminua o brilho das outras histórias, todas, em maior ou menor grau, merecem elogios. “Negrinha” tem uma de suas melhores partes na quebra do estereótipo de maldade que Dona Inácia representa: a matrona se torna verossímil quando permite à órfã brincar com as sobrinhas. Até esse ponto, a narrativa, apesar de ser um libelo contra o racismo, não convence. O segundo trecho importante é o final – e não me refiro à morte da

protagonista, mas aos dois comentários insensíveis que formam a lápide da menina. “O drama da geada” se desequilibra entre o beletrismo de certos trechos, algumas boas descrições, o dom de Lobato para captar falas coloquiais e um final trágico, que faz a leitura valer a pena. A estrutura de “Bugio moqueado” é perfeita. Depois de um começo informal, carregado de gírias, o narrador vai sobrepondo camadas de mistério, a fim de consolidar o tom soturno. Há certo exagero, principalmente na descrição da mulher, mas o desvio, pouco antes do fim, e a conclusão repulsiva acabam submetendo o leitor. Triste lição sobre a impermanência das coisas, “O jardineiro Timóteo” é metáfora da tradição destruída por modismos. Apesar do final óbvio, merece atenção a semiótica das flores que o jardineiro elabora para dialogar com a realidade e torná-la suportável. Quando acreditamos que Lobato não conseguirá criar novos devaneios, ele surpreende. O desabafo que antecede o triste final serve com perfeição à estrutura da narrativa. “As fitas da vida” apresenta um dos pontos fortes de Lobato, os diálogos. Primeiro, entre o funcionário da Hospedaria dos Imigrantes e o cego; a seguir, deste com o major: as vozes intercalam-se de forma ágil; as falas do exsoldado constroem o núcleo da narrativa, pleno de honradez e lealdade. Nenhum comportamento é estereotipado – e temos certeza de estar frente a emoções genuínas quando o pobre cego esmorece, fraco e desprotegido, incapaz de reagir aos insistentes ultrajes do major. Toda a trama se resolve com a revelação que oferece esperança ao sofredor. Trata-se de um conto moral, edificante mas sem pieguice, exemplo raro na literatura brasileira. Desequilíbrio

As narrativas incluídas nas edições posteriores de Negrinha criaram um todo mais desigual. Há historinhas divertidas, como “A policitemia de Dona Lindoca” e “Sorte grande”; uma tentativa frustrada de censura à avareza (“Herdeiro de si mesmo”); duas narrativas híbridas, que não se decidem entre o conto e a crônica (“O fisco” e “Quero ajudar o Brasil”); o inocente “Uma narrativa de mil anos”, espécie de Un cœur simple quase esquemático, apesar do início sugestivo; “Barba Azul”, de tema interessantíssimo mas sem dramaticidade; e “Os pequeninos”, que soma duas histórias curiosas, principalmente a segunda, em que o protagonista é derrotado por inimigos insólitos. Restam, no entanto, três ótimos contos. Gótico “Os negros” revisita o velho tema dos viajantes obrigados a passar a noite numa casa mal-assombrada. O que Afonso Arinos realizou, de forma capenga, em “Assombramento”, Lobato eleva à condição de narrativa gótica, com os elementos característicos: tempestade inesperada, propriedade em decadência, ambiente lúgubre, amor impossível e cena trágica – além, claro, da alma penada. Na dupla de viajantes, formada pelo narrador e seu amigo, Jonas, será este – zombeteiro e racista – o alvo do espírito de um subalterno da fazenda, jovem português que cometera o erro de se apaixonar pela filha do latifundiário, o capitão Aleixo. A história é contextualizada por meio de diálogos desembaraçados, nos quais ressalta a figura do hospitaleiro Tio Bento. Há boas falas, em que Lobato transmite de maneira perfeita as inflexões coloquiais, e esta figura impressionante, síntese do horror do tráfico negreiro: “Aportamos em África para recolher pretos de Angola, metidos nos porões como fardos de couro suado com carne viva por dentro. Pobres pretos!”.

Saliente-se o cuidado de Lobato ao criar uma voz sobrenatural que, apesar de editada, como o próprio narrador explica, ganha características peculiares. Outro aspecto positivo é não se apelar ao grotesco no final, mas oferecer rápida visão do local da morte, certa parede sinistra. Sarcasmo Lobato exercita sua ironia em “A facada imortal”, cujo título, escolhido com perspicácia, causa boa confusão no leitor, intensificada pelos dois primeiros parágrafos, em que se passa do enxadrismo ao faquista Indalício Ararigbóia. Logo percebemos tratar-se de um compêndio de escroqueria, técnica que o protagonista exerce com refinado academicismo: [...] O escultor nobilitará até um paralelepípedo de rua, se lhe der forma estética. Por que não nobilitaria eu o deprimentíssimo ato de pedir? Quando lanço a minha facada, sempre depois de sérios estudos, a vítima não me dá o seu dinheiro, apenas paga a finíssima demonstração técnica com que o tonteio. Paga-me a facada do mesmo modo que o amador de pintura paga o arranjo de tintas que o pintor faz sobre uma estopa, um quadrado de papelão, uma relíssima tábua. O faquista comum, notem, nada dá em troca do miserável dinheirinho que tira. Eu dou emoções gratíssimas à sensibilidade das criaturas finas. Minha vítima tem de ser fina. O simples fato da minha escolha já é um honroso diploma, porque nunca me desonrei em esfaquear criaturas vulgares, de alma grosseira. Só procuro gente na altura de compreender as sutilezas das paisagens de Corot ou dos versos de Verlaine.

Em suas reflexões, o delicado anti-herói tece, inclusive, laivos de teoria literária: – E eu, que caço? – perguntei. – Antíteses – respondeu de pronto Indalício. – Fazes contos, e que é o conto senão uma antítese estilizada?

A morte banal desse especialista em “caçar otários com a espingarda da psicologia” arremata o exercício de sarcasmo. Sintaxe e humor

“Dona Expedita”, narrado com naturalidade e humor impressionantes, demonstra também o controle de Lobato sobre a sintaxe. Vejam como o narrador apresenta, de forma oblíqua e irônica, a verdadeira idade da protagonista: E, como só tem 36 anos, veste-se à moda dessa idade, um pouco mais vistosamente do que a justa medida aconselha. Erro grande! Se à força de cores claras, ruges e batons, não mantivesse aos olhos do mundo os seus famosos 36, era provável que desse a idéia duma bem aceitável matrona de 60...

Autores contemporâneos optariam por um discurso sem rodeios, destituído de sutilezas, para relatar o mesmo fato – e justificariam a pobreza de seu estilo alegando obediência a supostas teorias estéticas ou sociolingüísticas... O longo diálogo que encerra o conto – e, gradativamente, inverte as expectativas das interlocutoras – é peça sugestiva, tem humor, fluidez, precisão. Pré-modernista? Referindo-se a Urupês , Edgard Cavalheiro resumiu as qualidades da contística lobatiana: “Nada de falsa literatice tão em moda, da superafetação bombástica, do palavreado vazio, e sim literatura da boa, fonte não somente de emoção e sabedoria, mas também de humanidade [...]”. [ 70 ] O correto elogio pode se estender a outros livros de Lobato – e bastam “Um suplício moderno” e “O colocador de pronomes” para implodir a esdrúxula periodização da nossa literatura. Encarcerar Lobato num caótico e liquefeito prémodernismo ou condená-lo por meio de avaliações preconceituosas e superficiais só diminui esse autor de narrativas cáusticas, exemplares e sempre contemporâneas. [ 61 ] História concisa da literatura brasileira , 34ª edição, revista e aumentada, Editora Cultrix. [ 62 ] O Estado de S. Paulo , 20 de dezembro de 1917. [ 63 ] A literatura brasileira – origens e unidade , volume II , Edusp, 1999. [ 64 ] História da Literatura Brasileira , Editora Nova Aguillar, 1997. [ 65 ] O livro no Brasil (sua história) , T. A. Queiroz Editor / Edusp, 1985.

[ 66 ] Ver o depoimento de Paulo Dantas em seu livro Presença de Lobato , RG Editores, 1973. [ 67 ] Texto publicado no jornal Correio da Manhã , em 19 de novembro de 1944. Pode ser lido em Escritos da maturidade , Graphia Editorial, 1994. [ 68 ] Apud José Aderaldo Castello. Op. cit . [ 69 ] Em Os testamentos traídos , Editora Nova Fronteira, 2ª edição, 1994. [ 70 ] Ver “Ciclo Paulista”, Capítulo 40 de A literatura no Brasil , volume 4, direção de Afrânio Coutinho, Global Editora, 7ª edição, São Paulo, 2004.

CAPÍTULO 16

O filho tardio de Alencar – Alcides Maya e Alma bárbara

No ensaio que dedica a Alcides Maya em Prosa dos Pagos – 1941-1959 , [ 71 ] Augusto Meyer afirma, logo no primeiro parágrafo, que “há um imperativo de saudade e uma deleitação de fundo nostálgico na leitura” da obra desse escritor, salientando, poucas linhas depois, “a monotonia que transparece de suas páginas”, característica analisada não como algo negativo, mas como “um atestado de fidelidade” à “constância”, ao apego do escritor às suas raízes. Para dar vida a tal afeição, Maya, ainda segundo Augusto Meyer, buscava “surpreender os vestígios de um estilo de vida já em recuo para o passado, evanescente e apenas sobrevivendo em crise”. As observações de Meyer resumem, de maneira fidedigna, a temática dos contos reunidos em Alma bárbara , publicado em 1922, mas não abrangem a forma escolhida por Alcides Maya para exteriorizar a invariabilidade que, diferente do crítico otimista, considero exemplo de mesmice. Assim, se as histórias estão circunscritas à idealização do gaucho ou à narração de causos cujo limite geográfico e cultural é a vida pampiana, a linguagem utilizada mostra-se refém de soluções monocórdias e retóricas. Filas de adjetivos “Água parada”, que abre o volume, anuncia o saudosismo do autor e seu apego aos adjetivos. A narrativa idílica, que não chega a criar um conto, fixa-se no tema bucólico e aí permanece, definindo certa idealizada lagoa como

“profunda, singular, diferente de todas”, com águas também “profundas”, novamente “diferentes” e, por fim, “atraentes”. Vencidos poucos parágrafos, a água torna-se “calada, solitária, arrastadora”, mais uma vez “atraente” e, a seguir, “indiferente”. Sob o domínio de tal adjetivação, o discurso pernóstico, de nítida influência alencariana, é conseqüência inevitável: “Lá embaixo, bem no fundo, estremeceria ainda, na algidez dos seus desejos torpentes, alguma iara sonolenta, das que outrora seduziam os guerreiros com seus olhos cerúleos e as suas verdes madeixas?”, pergunta-se o narrador. Não faltam, elementos indispensáveis nesse tipo de texto, os lugares-comuns, na forma de “beijos de brisas perfumadas pelas flores da encosta”. O problema se agrava no relato seguinte, “Fábula de hoje”, no qual temos a história do gato Mephisto e sua fugaz amizade por um passarinho. Enumerar as qualificações do felino pode ser um exercício divertido para quem deseja conhecer este modelo de antiliteratura, em que o enfileiramento de adjetivos pretende definir tudo. O gato chega a ter “formosura moral”, logo destruída pela fome, que o obriga a, num desfecho previsível, devorar seu amigo. Em “Monarcas”, descobrimos Neco Alves, o campeiro que não consegue fazer jus plenamente à herança de coragem dos antepassados. Além da cascata de adjetivos, o narrador passa mais da metade da história construindo um gaúcho idealizado, símbolo de bondade e inocência, em perfeita harmonia com a natureza, mas que, dado o excesso de qualidades, acaba se tornando ridículo. No último terço da narrativa, quando pensamos que surgirá alguma trama, o escritor opta pela solução mais fácil, frouxa de tão resumida. Idealização e melodrama

“Chica-Balaio (historieta de dragões)” nos oferece, novamente, a linguagem empolada: em certo trecho, a mendiga continua a bater na cobra que acaba de matar, mas o autor prefere dizer que “a mulher continuava a contundir a serpe, atingindo-lhe o dorso crispado e a cauda açoitante”. Além disso, há um erro de composição que torna a cena inverossímil: num momento, Chica-Balaio está longe, concentrada em “ajuntar gravetos”; no seguinte, consegue, graças à sua visão telescópica, perceber a cobra pronta a atacar o menino e, o principal, correr na incrível velocidade que lhe permite impedir o ataque. Depois de ultrapassarmos “China-Flor”, crônica ultraromântica, plena de soluções melodramáticas, chegamos a “Alvos”, história do vaqueano Silvério Torres, obcecado por atirar. O gaúcho sofre a transformação cara a Alcides Maya, sempre movido por irrefreável ânsia de idealização, e é descrito como um esteta, “amante do ser em movimento”, capaz de, acreditem, entre madressilvas, margaridas e outras florinhas, acertar numa borboleta “mimosa, trêfega, pequenina”. Na verdade, Torres não passa de um sádico que, em busca de alvos humanos, favorecerá a traição da mulher. Dez parágrafos antes do fim, já sabemos qual será o desfecho. “Lenda guerreira” é história sentimentalista, com “arrebóis longínquos do poente – mancha de frágua entre o azul cerúleo e o verde-montanha dos campos” e um beija-flor que morre e cai no colo da mãezinha sofredora, anunciandolhe a morte do filho na Guerra do Paraguai. Nem Alfredo Le Pera e Horacio Pettorossi conseguiram, na letra do famoso tango Silencio , ser tão melodramáticos. Linguajar e esquematismo Às vezes, Alcides Maya dá a impressão de tatear em busca do estilo ideal. No conto “História gaúcha”, narrativa de ódio

e vingança que transcorre em torno de certa adaga satânica, o escritor tenta reproduzir o linguajar dos Pampas: A rapariga consentiu, dei-le umas boquinhas (ah! tempo!) e, à meia-noite, atei o ca’alo na frente e empurrei na porta um manotaço. Um aviso... Inda o bruto não tinha saltado do catre e já eu penetrava no rancho. Derrubei a relho aquel’tebas! Quando o companheiro acudiu, já eu fazia relampear a adaga do bugre, minha herança de fado, que outro bem nunca tive, mas esse me apertencia. Lascou-me fogo e errou (havia de ser!) e ali mesmo lo acuchilhei, como rês, no sangradouro... E nem alimpei o ferro: de vereda, fuime ao primeiro, que se boqueava no chão, e le taquei um tiro no ouvido, mas bem dentro, bem no fundo... Não se abichorne, moço, que a vida é assim... Vocemecê queria, ’tá ouvindo. E dê-me no mais do seu místico, que o meu isqueiro se quebrou e este pito está manheirando...

O principal limite de experiências desse tipo, sem dúvida curiosas, é óbvio: a linguagem torna-se o principal personagem – e ao assumir o protagonismo, desbanca ou enfraquece o enredo. Na seqüência, a brevidade de “Ritornelo romântico” não permite nem mesmo que a trama se concretize – tudo se resume a esquematismo, nada mais. Problema, aliás, semelhante ao de “Supérstite”, conjunto de cenas rápidas que se dividem entre a coragem e a morte. Lacunas e romantismo “Entre bandidos (do diário de um amigo)” é a tentativa mais esforçada do autor para se aproximar do conto clássico. O resultado, pífio, deve-se principalmente ao entrecho repleto de lacunas. Dois amigos escutam a história de um terceiro, Heitor Mendes, proprietário da Estância dos Álamos, que relembra um inimigo “de nascença”. Este é o primeiro problema: não há justificativa para o ódio comum – o primeiro olhar foi de “ódio profundo, inelutável, definitivo”. À força desses adjetivos, o autor acredita ter materializado o sentimento para os leitores e segue, decidido, adiante. Após alguns encontros, Heitor afirma que Padilha, o adversário, “sustenta com a polícia uma luta desigual e épica”, sem descrever, entretanto, o embate, certo de que apenas o fato de mencioná-lo constitui literatura. Mais

tarde, reencontrará o inimigo, agora com a amante – por coincidência, sua ex-namorada. Enciumado, decide montar uma cilada para Padilha e capturar a jovem. Quando a ação está prestes a ocorrer, o narrador inventa esta desculpa: Tentei reproduzir o diálogo em homenagem a vocês, e porque, além de revelar o meu desvario, me dispensa de insistir sobre o que, em seguida, aconteceu. Felizmente, não houve morte de homem... Arrebatada por mim, pessoalmente, a rapariga esteve aqui, em segredo, três semanas, três séculos do inferno... Não se rendeu: fugiu...

O autor nos rouba, assim, a melhor parte da narrativa – e, no parágrafo seguinte, a jovem encontra-se na estância. Incapaz de submetê-la, pois permanece apaixonada por Padilha, Heitor a liberta. Os inimigos se reencontram – mas apenas para que Padilha, melancólico, relate a Heitor a morte e o enterro da sua paixão. Novíssima histórica romântica, portanto. No “Conto... realista”, é curioso perceber como o narrador chega a abandonar a história, perdendo-se em explicações pseudo-antropológicas sobre a religiosidade e as superstições gaúchas. No fim, o elemento que prometia desvendar a solidão e a estranha personalidade do velho curandeiro – uma trança negra, de cabelo crespo – permanece inexplícito. Bom humor e Iracema A melhor narrativa do livro, “Duas tragédias...”, apresentase na forma de um diálogo repleto de bom humor, no qual o linguajar gaúcho não pretende se impor de maneira absoluta, mas apenas ser o veículo das histórias contadas por Zeno, mentiroso e extrovertido campeiro. O personagem pueril, interrompido, aqui e ali, pelo patrão gozador, é mal aproveitado e o conjunto se resume a dois causos sem nenhuma inter-relação. Em “Caturrita”, o narrador se perde, logo no início, numa cansativa digressão, romântica e pseudo-filosófica. Estamos, então, de volta ao estilo pegajoso:

Malvina era de todos, espontânea e cantante, qual uma fonte à sombra, nascente mansa de água múrmura, que desaltera e fica para trás, esquecida, na verdura macia, aromática, hospitaleira dos capões...

Quanto ao corpo dessa “femeazita”, como a denomina o narrador, era ágil e rijo, trigueiro e penugento, elástico e serpentino, cheirando a araçá maduro, a trevo pisado, a flechilha e a espinilho, a todas as flores. A todas as gemas silvestres reunidas na mesma adorável carnadura de mulher.

Sem dúvida, trata-se da reencarnação sulista de Iracema, que se sacrifica por “um amor imprevisto, repelido, arrastador, aniquilador...”. Estilo bombástico Considero “Ceguinho de estrada”, que fecha o volume, a narrativa mais dramática, exatamente por reunir os defeitos de Maya. É surpreendente que Augusto Meyer tenha considerado essa história verdadeira obra-prima, em que a expressão da piedade se apresenta nua, direta, simples na sua humilde franqueza, como se o autor, despido de todos os preconceitos, deixasse falar pela sua voz a força de um destino.

O pobre cego é destruído, parágrafo a parágrafo, pela linguagem que, afetada, pretende criar um ser mirífico: Não tivera mestre, não passava de um mísero ceguinho, e, contudo, sentia ser o seu espírito um centro convergente e consciente de vibrações. Falavalhe à alma encarcerada a alma errante, envolvente, arrastadora, dominadora das cousas, e eis porque entrevia, percebia, completava os aspectos. [...] Os outros eram instinto; ele, espírito e coração. Sofria por isso, por ser assim, por ânsia de amar o desconhecido, que lhe povoava de longínquos esplendores, fugazes, mas contínuos, a treva insondável do seu destino. [...] Ele amava a brisa, os sibilos do vento, o perfume das flores invisíveis, o tatalar dos pássaros, as folhas cobertas de orvalho, a tépida carícia das alvoradas [...].

Os derramamentos do autor enaltecem de maneira cansativa o protagonista – semelhante ao que ocorrera em “Monarcas” e “Alvos” – apenas para, no final, condená-lo “às mágoas cruciantes do seu viver, de todo, para sempre, desamparado, perdido...”. Mal contada e sentimentalóide, a narrativa é ótimo exemplo do estilo bombástico de Alcides Maya.

Dois gaúchos A esgotante tarefa de ler Alma bárbara serviu para me lembrar do argentino Ricardo Güiraldes (1886-1927) e seu Don Segundo Sombra , publicado em 1926 – a melhor contraposição à linguagem e aos gaúchos de Alcides Maya. Romance de formação, em que o jovem Fabio Cáceres se relaciona com o vaqueiro que dá nome ao livro, aprendendo com ele os valores, a ética da gauchería , Don Segundo Sombra é exemplo de sutileza, de lirismo comedido, síntese do imaginário da llanura pampeana . Esse mestre altivo, que leva Fabio às portas da maturidade, percorre, cruzando os Pampas, o trajeto inverso dos personagens de Maya: torna-se, página a página, uma figura mítica – até o momento da despedida, em que Cáceres afirma: Aquello que se alejaba era más una idea que un hombre . Trata-se de romance superior: nada de efusões incontroláveis; a adjetivação, sóbria; as frases, buriladas, muitas vezes lacônicas, reproduzem a personalidade do gaucho altivo, de heroísmo ático. Güiraldes produziu um clássico que, em inúmeros trechos, nos transporta a certo universo épico, enquanto Maya, romântico decadente, é apenas o filho tardio de Alencar. [ 71 ] Livraria São José, Rio de Janeiro, 1960.

CAPÍTULO 17

Sobriedade e sutileza – Amadeu Amaral e A pulseira de ferro

Amadeu Amaral permanece indispensável à cultura brasileira graças a O Dialeto Caipira – estudo pioneiro sobre as características da linguagem no interior do Estado de São Paulo –, à permanente campanha em defesa do folclore, cujas pesquisas nos permitiriam alcançar o que ele chamava de “conhecimento exato da nossa gente” e aos insights das análises literárias reunidas em O Elogio da Mediocridade , incluindo o ensaio que dá título ao livro, deliciosa peça de ironia sobre o papel do crítico e dos escritores. Poeta menor, deixou uma novela exemplar, A pulseira de ferro , presente no volume Novela e Conto de suas Obras Completas [ 72 ] – publicadas sob a direção de Paulo Duarte, intelectual paulista injustamente esquecido. Papéis invertidos O escritor não teme iniciar A pulseira de ferro utilizando a fórmula “Era uma vez um vigário da vila de Candeias, chamado Guilherme de Meneses...” – assim o narrador finaliza o Prólogo, em que também avisa o leitor sobre suas opções lingüísticas, despojadas de preocupações literárias regionalistas. De fato, padre Guilherme assume, num primeiro momento, o papel de protagonista. Na pacata vilazinha começa a história desse vigário bonachão, dedicado, em algum dia entre 1875 e 1880, ao seu almoço, “oloroso assado” que pretende saborear. Interrompido por Chico, o sacristão, que o chama para um batizado urgente, pois a criança estaria à morte, segue para a igreja. Lá, encontra o recém-nascido,

mas abandonado pelos pais. Decide, então, acolhê-lo em sua casa, confiando que a cozinheira, Rosa, cuidará dele. O que ressalta na personalidade do clérigo é o caráter pueril, presente já nos seus primeiros comentários, quando se mostra incomodado ao perceber a forma como Chico o julga, pois este acredita que, entre o almoço e o batismo, padre Guilherme prefere o primeiro. Para um homem de quarenta anos, acostumado a conviver com diferentes tipos de pessoas e a ouvir delas, no confessionário, o que têm de pior, a insistência para provar ao sacristão suas verdadeiras intenções fornece os primeiros sinais da imaturidade que a trama comprovará. Ao decidir adotar a criança, o clérigo atesta, mais que compaixão, nítida carência afetiva, necessidade de conceder amor especial, particular, a uma única pessoa. O diálogo do Capítulo III , em que troca idéias com a cozinheira sobre o nome que dará à criança e sua dúvida em relação aos padrinhos, confirma a personalidade de um homem despreparado para seu ofício, tolo a ponto de acreditar em superstições. O próprio narrador trata-o com ironia, no Capítulo VII , descrevendo-o “quase como uma senhora na doçura e na paz da maternidade recente”. Em pouco tempo, o vigário torna-se alvo de mexericos: a adoção, apesar de informal, revelaria que ele é o verdadeiro pai da criança. O diálogo que mantém com o professor Camacho, único redator do jornal da vila, desencadeia sua indignação: Camacho abanou a cabeça e esboçou um sorrisinho indeciso. Depois, levantando as sobrancelhas e apertando os beiços numa caramunha de contrariedade, arrulhou: – Eu julgava que vossa reverendíssima estava ao fato de tudo, e foi por isso que me atrevi a falar... – Desembuche. – Referia-me ao pequeno, ao enjeitadinho, que as línguas perversas deram agora para assoalhar que é filho do sr. vigário...

Padre Guilherme baixou as sobrancelhas híspidas sobre o olhar coruscante, enquanto ouvia o professor, e assim se conservou por um tempo. – Então dizem isso de mim? Camacho fungou um suspiro. – Por toda a parte, sr. padre. – Mas dá-se crédito a semelhante infâmia? Que caráter tem isso? De notícia certa? De boato vago? De pilhéria? E quem é que o diz, sr. Camacho? A quem é que o senhor já ouviu dizer isso, sr. Camacho?... O mestre-escola gaguejou umas evasivas. E o padre, pegando-lhe na manga e dando-lhe pequenos repelões: – Dessas “minudências” o senhor não sabe, hem! sr. Camacho... O senhor sabe que me caluniam, que me arrastam o nome por essas sarjetas, mas não sabe mais nada, não viu, não percebeu... não quis perceber mais nada!

À parte o diálogo perfeito, bem construído, as reações do clérigo, que se intensificarão a partir desse ponto, reafirmam sua total incapacidade para lidar com questões controversas. Mesmo tentando fingir que nada acontecera, ter consciência dos boatos é algo insuportável para ele. E apesar do apoio que recebe do único amigo, o advogado Veloso, sucumbe às maledicências e decide partir da cidade. Seu rancor fica claro nas palavras que, num rompante, diz a Veloso, pouco antes de partir: – Por ter a consciência limpa é que me revolto, Veloso (bradava o padre). Não, não me posso conformar com esta idéia de que a “minha” pessoa não é afinal “minha”, não me pertence, não é aquilo que eu quero que ela seja, aquilo que eu tenho o direito de querer que ela seja, aquilo que eu vivo a trabalhar toda a minha vida para que ela seja!... E essa idéia estúpida, essa idéia trágica é a realidade, a realidade objetiva, a realidade tangível! A “minha” pessoa é uma coisa como qualquer outra, é um objeto, é um traste, é um punhado de matéria desprezível que o primeiro ladrão apanha, desconjunta, torce e deforma à sua vontade, por desfastio, por malvadez, por pilhéria, sei lá!...

De nada servem os argumentos de Veloso, que confirmam os papéis invertidos desses personagens, pois o advogado mostra-se mais próximo da firmeza de caráter que o senso comum espera do sacerdote: – Que culpa tem Deus de que você exagere a sua sensibilidade? Você é que devia ter a força de desprezar o que é desprezível; mas não desprezar de gesto e de palavra – desprezar de toda a vontade, de toda a alma, num desprezo integral e sereno... Você não tem essa força, e padece... Mas reconheça ao menos que também esse padecimento é providencial. Nós nos

orgulhamos facilmente das nossas boas partes; e aquele que se compraz em reconhecê-las em si mesmo, já desmereceu um pouco, só por isso. A málíngua chama-nos à realidade, força-nos a ser modestos, a juntar ainda uma qualidade, preciosa entre as mais, às qualidades que já possuímos...

Metáfora Esses comentários, no Capítulo X , representam apenas um dos inúmeros trechos que contribuem para transformar Veloso no personagem central da narrativa. Página a página, o narrador torce com habilidade a trama, passa a segundo plano o vigário, utiliza as calúnias sofridas pelo padre para provocar no advogado a recordação pungente do próprio passado – e Veloso, por sua personalidade diligente e solícita, seu poder de análise, assume o protagonismo da história. O núcleo dessa mutação encontra-se no Capítulo IX , no qual o advogado relata ao padre, para que lhe sirva de exemplo, a história do ferreiro Manuel da Costa, morador de Candeias, durante longos cinco anos dedicado a moldar, nas horas de lazer, a delicada “pulseira de ferro”, presente que dará a Raquel, sua jovem filha, por quem Veloso, já homem maduro, se apaixona. A família, contudo, é destruída pelas intrigas da população – e Veloso partilha da violência das calúnias, responsáveis inclusive pelo suicídio de Raquel. Essa experiência anterior é o drama que permite ao advogado ironizar a indignação do padre, correta, sem dúvida, mas desproporcional. Pouco antes, depois de salientar que o vigário vive apenas a “estréia de caluniado”, Veloso expusera, num diálogo central, no Capítulo VIII , sua teoria sobre como a índole violenta do homem depurou-se até se transformar em difamação: [...] O bruto ganhou em peçonha, em perversidade recolhida e fedorenta o que perdeu em brutalidade esbarrondante e sadia: já não assalta nem esquarteja o inimigo, amargura-lhe, comodamente, a existência; envenenalhe os prazeres, se os têm; agrava-lhe as dores e as melancolias, que as têm pela certa; põe-lhe um sabor de lama na água que ele bebe, um cheiro

excrementício nos perfumes que ele respira; entra-lhe pelo corpo com o pão que ele come, tornando-lho duro e dissaborido; precipita-se-lhe na torrente do sangue, e queima-o em febre; fustiga-lhe as fibras recônditas dos nervos, e chama-se insônia; põe-lhe nos olhos as lágrimas que ele deve estilar em silêncio, às escondidas, e é então a amargura que mata. E ninguém escapa! ninguém! [...]

A pulseira de ferro não é, contudo, ficção de tese; não está presa aos esquematismos darwinistas do nosso naturalismo e o advogado não busca nenhuma suposta verdade científica. Não. Mais que a história de um padre destituído de firmeza, a novela retrata os infortúnios de Veloso, homem sensível, íntegro, sagaz, obrigado a ser vítima indireta dos mexericos, devido aos quais perde, primeiro, o grande amor, e depois, o melhor amigo. A pulseira de ferro torna-se, assim, metáfora dos sentimentos que alimentamos, durante longo tempo, com empenho sincero, mas que são destruídos, aniquilados pela malevolência de outrem. O narrador completa, dessa forma, a inversão – e o que prometia ser uma história óbvia ganha agradável, inesperada sutileza. Sua sensibilidade aguda completa o trabalho revelando, no final, não os caluniadores, mas os artífices do plano de abandonar a criança à porta da igreja. Tratados, no início da narrativa, como parvos, eram, na verdade, dissimulados, conhecedores da índole do vigário. A essas qualidades somam-se outros personagens – o ferino boticário Felisberto; o barbeiro Nicola; Camacho, “polimórfico sábio” – e diálogos reveladores, que impulsionam a história e substituem possíveis cansativas descrições do narrador, como este, entre Veloso e Felisberto, quando se anuncia a difamação em curso: – Olá! Sirva-se de um cafezinho, descanse um pouco. Diga-me! como vai o filho do padre? Veloso estacou intrigado. E Felisberto explicou, passando-lhe uma xícara: – Aquele mulatinho achado ali na igreja, outro dia, não sabe? que caiu do céu por obra do Espírito Santo...

Ouviu-se uma risada geral. Veloso riu-se com os mais, sem exagero e sem ruído, mas também sem constrangimento aparente, e informou: – O pequeno vai bem. – Saiu parecido com o pai? Veloso, sem se desconsertar, tomando o seu café: – Mas quem é o pai? – Ora, ora, doutor Veloso... – Quem é? – Sou eu. Está ouvindo? Eu! Fui eu quem mandou largar o bodinho, de manhã muito cedo, ali na porta da igreja; por uns excomungados de uns pretos que ninguém viu, de quem ninguém dá notícia... Qual, “seu” dr. Veloso, nisso tudo há grosso... milagre! Quem não vê que aí anda dedo... de Deus! Veloso sorriu, abanou a cabeça, olhou para o ar, tornou a sorrir, e saiu da botica aterrado.

O narrador cumpre, graças à sua habilidade, o que prometera no Prólogo: “[...] Uns amam nas histórias as próprias histórias, e não querem delas senão o que pedem à música – um pouco de esquecimento e de embriaguez”. É o que Amadeu Amaral nos oferece nessa novela sóbria na extensão, mas de enredo penetrante, pleno do que os leitores desejam – exatamente o que muitos escritores de hoje nos recusam. [ 72 ] 11 volumes, Editora Hucitec / Secretaria de Cultura e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1976.

CAPÍTULO 18

Equívocos e retórica – Jackson de Figueiredo e Literatura reacionária

O início da década de 1920 necessita de um estudo aprofundado e livre das imposições teóricas marxistas, que se tornaram, desgraçadamente, hegemônicas entre nós. Só um espírito que não esteja disposto a, de forma cega, enaltecer a mentalidade revolucionária poderá elaborar a análise que Antônio Carlos Villaça esboçou em trechos d’ O Pensamento Católico no Brasil , [ 73 ] ao recordar a concomitância de fatos tão díspares quanto relevantes: em meio às crises políticas dos governos Epitácio Pessoa e Artur Bernardes, o surgimento da revista A Ordem , a fundação do Partido Comunista Brasileiro e do Centro Dom Vital, a Revolta dos 18 do Forte, início do Tenentismo, a Semana de Arte Moderna, a Revolução Paulista de 1924 e o princípio da Coluna Prestes – sem nos esquecermos, é claro, das comemorações do Centenário da Independência, que podem ou não se encontrar no substrato desses acontecimentos. É nesse contexto que surge, em 1924, Literatura reacionária , de Jackson de Figueiredo, ele próprio fundador do Centro Dom Vital, sob influência direta do então arcebispo-coadjutor do Rio de Janeiro, dom Sebastião Leme da Silveira Cintra. Reunião de quinze artigos publicados na imprensa carioca entre dezembro de 1923 e maio de 1924, o livro sintetiza o pensamento desse ensaísta que havia se contraposto ao Tenentismo – em A reação do bom senso; contra o demagogismo e a anarquia militar (1922) – e tornara pública, em Pascal e a inquietação moderna (1922), sua conversão à Igreja Católica.

Escolhas repreensíveis Os artigos que compõem Literatura reacionária nascem da oposição do autor ao que ele chama de “desmandos de um romantismo político”; por meio desses textos, Jackson de Figueiredo deseja apresentar a seus leitores alguns aspectos dessa literatura de reação, anti-revolucionária, antisentimental, anti-romântica, que vai, ora definidamente católica, ora revestindo-se somente do senso prático social do catolicismo, não só reduzindo a poeira dos abalados créditos das doutrinas individualistas e materialistas, como, de alguns anos para cá, assentando já as bases de uma remodelação social, consciente e positivamente inspirada nos ensinamentos da Igreja.

À parte a índole onírica das afirmações – revelam o ideal do autor, mas não a realidade – e do elogiável caráter antirevolucionário de Jackson de Figueiredo, que o impelia a lutar em favor da legalidade e da ordem pública, os textos descambam, muitas vezes, para uma defesa acrítica do fascismo italiano, da ditadura de Primo de Rivera e do Integralismo Lusitano, na figura do poeta António Sardinha. Ao enaltecer a “Ordem” e a “Hierarquia”, Jackson de Figueiredo chega a elogiar Augusto Comte – “gênio realmente formidável” – e Charles Maurras, desconhecendo, presumo, o tanto de pensamento agnóstico e anticatólico que havia na obra do líder da Action Française . Conseqüência fatal dessas escolhas, é possível entrever laivos de anti-semitismo ao menos em dois artigos. Há méritos, sem dúvida, em apresentar aos brasileiros, por exemplo, a obra de Auguste Viatte, mas Jackson de Figueiredo o faz numa linguagem que está sempre pronta a cair no elogio fácil e no circunlóquio, tão caros à retórica nacional: O homem que [...] possui [...] o gênio da língua francesa, não foge, não pode fugir às leis mesmas do pensamento daquela pátria espiritual, onde o próprio ceticismo e a própria revolta como que guardam da harmonia de suas tradições, pelo menos o aspecto exterior, como são exemplos um SaintBeuve, um Renan, um Rivarol, um Paul Louis Courier ou um Anatole.

Não bastasse a falsa correlação que abre o período – como definir o “gênio da língua francesa”? E por qual motivo quem o possui não pode fugir às imaginárias “leis do pensamento” que a França supostamente detém? –, a citação, num mesmo grupo, de Ernest Renan e Antoine de Rivarol – o primeiro, reconhecido ateu, e o segundo, famoso anti-revolucionário – demonstram, no mínimo, alguma confusão. No mesmo artigo, próximo do final, Jackson de Figueiredo compõe uma sucessão de adjetivos inúteis, fechando o trecho com nova generalização sobre o “espírito francês”: Uma coisa, porém, é indiscutivelmente admirável na obra do ilustre crítico suíço, e essa é a demonstração da superior humanidade do espírito tradicional ou clássico, só completado, no Ocidente, pela magnitude do Cristianismo, e de quanto esse espírito se identifica com o espírito francês.

Tal retórica dilui a força de uma idéia correta – a importância do Cristianismo para a civilização. Reutilizada em outro texto, transforma numa peça encomiástica, simplesmente ilegível, o que poderia ser um estudo provocativo sobre o padre Júlio Maria, defensor da doutrina social de Leão XIII. Problema semelhante ocorre nesta definição – mais vazia do que superficial – do “verdadeiro poeta cristão”: [...] Aquele em que realmente a poesia não é um acidente da sensibilidade, mas um feliz resultado do contato de toda a totalidade humana, do eu, em toda a sua complexidade, e o mundo.

Venerador do advérbio “máxime”, repetido de forma cansativa, e de longas citações em francês, típicas do eruditismo que até hoje nos assedia, Jackson de Figueiredo não tem a vivacidade e a ironia do católico e antirepublicano Carlos de Laet. [ 74 ] Seu texto enfada, como nesta seqüência de elogios a Ronald de Carvalho: [...] Tudo o mais já estava em “Luz Gloriosa”, como nos “Poemas e Sonetos”: uma tranqüila exaltação diante de toda a beleza, assim do mundo exterior como do interior, naquele, impressionando-te mais as cores vivas, máxime o rubro e o amarelo, neste, que envolve aquele, uma certa cinza de enfaro e desencanto, de que resulta que a tua obra se mantém sempre como

expressão da inquieta fortaleza de um mundo coroado de luzes e cores de um crepúsculo matutino, que tanto evoca o heroísmo como a renúncia, que tanto impele a amar a vida com ardor e entusiasmo, como a lastimá-la e, por assim dizer, tangenciá-la nas asas da mais delicada mas, ao mesmo tempo, da mais desoladora melancolia.

Debilidades Jackson de Figueiredo defende uma idéia doutrinal de literatura: se acerta ao dizer que “mais larga que a categoria do belo é a do bem”, erra ao proclamar a “absoluta superioridade da obra de arte católica em relação a qualquer outra obra de arte”, como afirma no texto dedicado a Henri Massis. De fato, tem razão quando salienta que “o artista é um ser moral”, que “o produto da sua atividade tem de refletir a ordem da sua consciência” e que a arte precisa ser julgada inclusive sob o aspecto ético – exercício que a crítica literária contemporânea pretende esquecer quando desvincula a obra literária da vida real, como se fosse apenas híbrido conjunto de signos, produto de geração espontânea. Mas nenhum desses acertos garante ao escritor católico qualquer tipo de superioridade estética. Na verdade, Jackson de Figueiredo mostra-se contraditório, pois, semanas antes de fazer esses comentários, escreve a respeito do jesuíta Leonel Franca e denuncia a “formidável afirmação de mau gosto” da literatura católica brasileira... De qualquer forma, não viveu o suficiente para ler a crítica de Flannery O’Connor – no ensaio “Os romancistas católicos e seus leitores” ( Mistery and Manners; occasional prose ) [ 75 ] – àqueles que, “extasiados com sua condição cristã, esquecem sua natureza de escritor”. Flannery recorda a tais autores a história do lobo de Gubbio: convencido por São Francisco de Assis a se tornar um lobo bom, nem por isso muda sua natureza e passa a andar sobre duas patas. Mas Jackson de Figueiredo poderia ter lido o ensaio “The Morality of the Profession of Letters”, [ 76 ] de Robert Louis Stevenson, para quem “algo ruim pobremente executado é

algo ruim do princípio ao fim”, não importando a religião ou a teoria estética que o escritor segue. Encontramos superficialidade e contradições também nos artigos dedicados a contestar Ronald de Carvalho, como se nosso ensaísta experimentasse algum tipo de dissociação. Em 30 de janeiro de 1924, numa resposta cheia de dedos ao autor de Pequena História da Literatura Brasileira , afirma não querer provocar polêmicas com ninguém desse nosso (quero dizer: brasileiro) inquieto campo de letras, do qual, por muitos motivos, como já te tenho dito, me julgo afastado.

Logo a seguir, quase se desculpando pelas críticas frouxas aos modernistas, repete a argumentação insípida: É claro que tudo isso faço “de fora”, como de um campo para outro, isento de paixão propriamente estética, sem fazer, portanto, concorrência a nenhuma espécie de homem de letras, nem ao crítico literário, nem ao poeta, nem ao ficcionista, em geral. Sou pura e exclusivamente um católico, que aliás só atua pela pena, por falta de outras capacidades mais positivas de homem de ação.

Contudo, dias depois, em 6 de fevereiro, ao escrever sobre Perillo Gomes, parece ter esquecido a ladainha inconvincente e a autodefinição algo melíflua, pois, ao dissertar sobre a relação entre escritores e críticos literários, assume claramente outra posição: Note-se que quem está falando não pode ser suspeito aos nossos críticos, em primeiro lugar, porque também já tem sido classificado entre eles, em segundo lugar, porque algumas das suas mais sérias admirações, no meio literário brasileiro, é por alguns dos nobres espíritos que, da minha geração e da imediatamente anterior, se têm feito notáveis nessa lata missão intelectual.

Por vezes, tem-se a impressão de que o combatente despertará, como no final do artigo dedicado a Auguste Viatte, em que tece observações a respeito dos futuristas – “sereias de indisciplina e fuliginosas imaginações” –, criticando o movimento estético que vem “ao Brasil cantar de galo, como se não os houvera no terreiro...”. Mas Jackson de Figueiredo não enfrenta o mais deslumbrado dos que

aderiam a tais idéias e prefere contemporizar: “Ninguém nega a sinceridade nem o talento do Sr. Graça Aranha, que aparece como chefe desses ‘envolvimentos’ futuristas”. Em 2 de julho, no artigo “A lição de Paul Bureau”, parece, por um momento, que finalmente abandonará o tom impessoal, mas está acima de suas forças dar nome aos bois: E, ao contrário do que pensam muitos, julgo que chegou mesmo a hora em que é necessário acabar, destruir, acabar de vez com umas certas originalidades do nosso meio, que são piores que a pior imitação, e redundam em incrível degradação da nossa vida social. Não se compreende, realmente, que se arvorem em iracundos pedagogos, em duros mestres de moral, em juízes de tudo quanto vive num dado meio, justamente os indivíduos que nele nem se dão ao cuidado de fingir um certo amor à virtude e algum horror ao vício. [...]

Sinceridade Se lermos Jackson de Figueiredo com uma pinça, ainda é possível colher seus acertos. Sua crítica ao romantismo – “cuja característica é a exaltação, até quando essa exaltação seja a da mais depressiva melancolia, o que é fácil apreender do mais ou menos ridículo profetismo de todos os chefes românticos” – permanece instigante. No artigo “Problemas de educação nacional e de instrução pública”, publicado em maio de 1924, arremete contra inominados intelectuais, denunciando o que sempre foi e continua a ser regra entre nós: A coisa que já parece a mais natural deste mesmo mundo [...] é alçar o colo à petulância de um gaguejador de alguns nomes difíceis, roubados à técnica de um forjador de novidades pedagógicas, e com armas tão fracas atirar-se em cheio contra verdades que têm resistido ao arrojo de homens mais prudentes e mais entendidos do que falam. Não raro esses pobres espíritos são incapazes de filiarem no sistema filosófico originário as meias idéias que agitam e os agitam. Não raro são absolutamente ignorantes do que representam na história do pensamento humano as idéias que neles se fizeram preconceitos.

Descontados seus equívocos estéticos e políticos – estes últimos o levaram, inclusive, segundo Wilson Martins, [ 77 ] a trabalhar como chefe da censura no governo Artur

Bernardes –, Jackson de Figueiredo deixou ampla correspondência, parte dela ainda inédita, cujo estudo pode oferecer às novas gerações um perfil completo – distante, em igual medida, do elogio desmesurado e da aversão preconceituosa –, permitindo que surja o homem sincero, que dizia só compreender plenamente o seu cristianismo quando estava só. [ 73 ] Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2006. [ 74 ] Ver, neste Esquecidos & superestimados , o Capítulo 11, “Salvo pela ironia”. [ 75 ] Seleção e edição de Sally e Robert Fitzgerald, Editora Farrar, Straus and Giroux, 1969. [ 76 ] Em The Art of Writing : http://classiclit.about.com/library/bletexts/rlstevenson/bl-rlst-wri-2.htm. [ 77 ] História da Inteligência Brasileira , volume VI (1915-1933), 2ª edição, T. A. Queiroz Editor, São Paulo, 1996.

Esquecidos & superestimados Copyright © Rodrigo Gurgel 1ª edição – maio de 2014 – CEDET Os direitos desta edição pertencem ao CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Rua Angelo Vicentin, 70 CEP: 13084-060 - Campinas - SP Telefone: 19-3249-0580 e-mail : [email protected] Editor: Diogo Chiuso Revisão: Gustavo Nogy Capa: Arno Alcântara Diagramação: Maurício Amaral Desenvolvimento de eBook Loope – design e publicações digitais www.loope.com.br Conselho Editorial: Adelice Godoy César Kyn d’Ávila Diogo Chiuso Silvio Grimaldo de Camargo VIDE Editorial www.videeditorial.com.br Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Gurgel, Rodrigo Esquecidos e superestimados [recurso eletrônico]/ Rodrigo Gurgel – Campinas, SP : Vide Editorial, 2014. eISBN: 978-85-67394-25-1 1. Literatura Brasileira – Ensaios I. Rodrigo Gurgel II. Título

CDD – B869.45 Índice para Catálogo Sistemático 1. Literatura Brasileira – Ensaios – B869.45

Sobre o Autor

Crítico literário do jornal Rascunho , colaborador da Folha de S. Paulo e colunista do site Mídia sem Máscara , Rodrigo Gurgel é autor de Muita Retórica – Pouca Literatura (de Alencar a Graça Aranha) , também publicado pela Vide Editorial. Leitor crítico de editoras, agências literárias e particulares, trabalha como coach literário, assessorando escritores. Jurado do Prêmio Jabuti de 2009 a 2012, Gurgel foi um dos dez vencedores do Concurso de Contos “Caderno 2”, do jornal O Estado de S. Paulo , em 2004.

Sobre a Obra Permitam-me, caros leitores, fazer desta orelha não apenas um texto de apresentação, mas um agradecimento sincērus , genuíno, ao autor. Rodrigo Gurgel me fez voltar a ler crítica literária em português brasileiro. Não é pouco. Já havia reconhecido no seu Muita Retórica, Pouca Literatura – de Alencar a Graça Aranha (Vide Editorial, 2012) a ambição de escrever sobre literatura com a dose adequada de paixão e rigor, de amor e conhecimento, da necessária frieza e abertura para a descoberta (e redescoberta) das preciosidades da literatura e crítica literária brasileiras. Ler os ensaios críticos de Rodrigo Gurgel é ser convidado para um clube privado de conversação erudita e estimulante; para um debate entre adultos que respeitam mutuamente a inteligência e, num sentido mais amplo, respeitam o próprio fato de canalizar adequadamente a bênção, a maravilha e as virtudes de ser humano. Neste Esquecidos & superestimados, Gurgel amplia a sua ambição de, como ele mesmo afirmou ancorando-se em Friedrich Schlegel, ser um leitor que rumina e que recusa prazerosamente a tríade infernal apontada por Tzvetan Todorov: formalismo, niilismo e solipsismo. Consegue sê-lo e fazê-lo, para a nossa sorte. Se há um elemento comum apontado por Gurgel nos autores analisados nos 18 capítulos deste livro é o fato de serem, positivamente, escritores de seu tempo, o que significa dizer que são autores que refletem e trabalham literariamente as virtudes e vicissitudes de sua época, e que nos permitem não só conhecer e aprender com o passado, mas compreender o legado benéfico e maléfico da

preservação e alteração de certos aspectos culturais, considerando a cultura como o grande círculo dentro do qual residem as dimensões literárias e políticas. O doutor Samuel Johnson, ao falar sobre o grande John Dryden, escreveu que “para julgar corretamente um autor, devemos nos transportar para a sua época e investigar o que eles esperavam de seus contemporâneos e quais eram os instrumentos que utilizavam para criticá-los”. Gurgel o faz, mas também tentando, como Edmund Wilson em O Castelo de Axel , rastrear as origens de certas tendências da literatura do passado – não apenas a da contemporânea – para mostrar o seu desenvolvimento e legado, literário e crítico, na literatura brasileira. Graças à inteligência e ao trabalho de Gurgel, temos aqui, pelas mãos da competente Vide Editorial , o segundo livro desse intelectual que honra o legado e certa tradição highbrow da crítica literária brasileira representada por críticos como Álvaro Lins. Que vocês tenham o mesmo prazer e aprendizado que eu tive, e que se orgulhem também de o autor escrever de forma correta, aguçada e bela no nosso tão vilipendiado idioma pátrio. — Bruno Garschagen