Editora UnB Fragmentos do espólio - Julho de 1882 a inverno de 1883/1887 8523007970

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Fragmentos do espólio - Julho de 1882 a inverno de 1883/1887
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Fragmentos do espólio Julho de 1882 a inverno de 1883/ 1884

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Seleção, tradução e prefácio Flávio R. Kothe

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Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) ·. nasceu em Rõcken, na Saxônia, como filho e neto de pastores protestantes. Seu pai faleceu quando ele ainda era criança. Foi educado em Naumburg, na famosa Fürstenschule de Pforta. No outono de 1864, foi estudar n~ Universidade de Bonn. Aos 25 anos de idade, foi aceito como professor de filologia clássica na Universidade de Base!, na Suíça. Quando tentou lecionar filosofia, sofreu recusas. Foi profundamente influenciado por Schopenhauer e tornou-se amigo de Richard Wagner, com o qual rompeu mais tarde por divergências ideológicas. Apresentou-se como volunt{ :·10 na Guerra de 1870. Ten(: ···.·. -......

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O que buscam, afinal, todos os que donnem? Novas linguagens todos procuram: cansados ficaram já das antigas línguas: o espírito não quer m_ais trotar para eles por aí sobre essas solas demasiado gastas e finhs. Vosso olhar em busca de mares longínquos, vossa ânsia de tocar o penhasco e seu ápice - isso é uma linguagem apenas para a vossa saudade. Humanos, buscai apenas o vosso olhar e o vosso desejo, e aquilo que é mais que humano! Aqueloutros chamavam de Deus o que os contradizia e lhes fazia sofrer: assim era o modo de ser de tais heróis. E não sabiam amar de outro modo o seu Deus do que pregando o ser humano na cruz. E, portanto, deixai-nos ser inimigos, meus amigos! Assim como sobre vós se dobram os arcos das abóbadas e se jogam uns contra os outros: como luzes e sombras sobre vós, divinamente seguras e belas são em sua inimizade: por isso, vossos pensamentos e os pensamentos dos vossos amigos precisam ser divinamente seguros e belos em sua inimizade.

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13: Verão de 1883

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· Não quereis ouvir nada disso: de que alguém passeia por cima das vossas cabeças. E então jogais madeira e terra e entulho entre ele e vossas cabeças - abafais assim o discurso dos seus passos. De todos os seres hmnanos, falha e fraqueza deitais entre mim e vós: assoalho falso denominais isso em vossas casas. Mas, apesar disso, passeio com meus pensamentos por cima das vossas cabeças: e, mesmo quando eu quisesse passear sobre as minhas próprias falhas e assoalhos falsos, eu ainda estaria sobre vós e vossas cabeças! E agora queimam também ainda o gelo e a inocência do meu cume. Vós, subversivos, será que ainda não entendeis o que faz a subversão? Na lama do vosso desprezo jazia derrubado o pedestal: - e justamente do vosso desprezo acordastes de repente de novo a vida e vivas belezas. Com traços mais divinos e sedutoramente sofredores, ele se reergueu, oh vós, derrubadores do pedestal! - e ele ainda vos agradeceu por sua divinização! Dionísio em cima de um tigre: o crânio de uma cabra: uma pantera. Ariadne sonhando: "abandonada pelo herói, sonho com o acima-do-herói". Para não falar de Dionísio! De interpretação precisa cada ação: ela acena a todos os decifradores de enigmas. Novas palavras e maneiras dei aos interpretadores: para que eles façam falar melhor os sinais climáticos do ser humano. Sou um visionário: mas sem piedade a consciência persegue o meu olhar: por isso, eu sou também o exegeta das minhas feições. Açudes negros, de dentro dos quais canta a doce melancolia da rã: isso para mim sois vós, oh, sacerdotes! Qual de vós agüentaria mostrar-se nu!

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Fragmentos do espólio

Fazeis bem ao expor em negro o vosso cadáver, e de vossos discursos me ressoa o sufoco malcheiroso de câmaras mortuárias. Como eu odeio a enganosa convulsão da vossa humildade! Em vosso dobrar os joelhos revejo os hábitos dos escravos, oh lambedores de saliva do vosso Deus! Quando ontem a lua surgiu, imaginei que ela quisesse parir um sol: tão larga e portentosa ela jazia no horizonte. Mas uma mentirosa ela era com sua gravidez: e eu não acredito mais no homem da lua e menos ainda realmente na mulher da lua. Essa parábola vos dou, oh sonhadores e lunáticos. Infrutífera e amarelada ela apareceu, ficando cada vez menor, olhando sempre mais pálida e falsa ao subir. Na verdade, a sua má consciência olhava de dentro dela, a lasciva. Em busca dessa Terra, o luar é lascivo, e como ainda se envergonha dessa lascívia, gostaria de dar aos seus olhares santidade e isenção. E se vós também ficais deitados largos e prenhes no horizonte: realmente, não ireis me parir nenhum sol! (românticos) Lascivo em busca da Terra: no entanto, vossa má consciência vos morde em vossa lascívia: então escolheis a melancolia. Deserto pradaria e estepe sois para mim: mas eu quero fazer de vós fogo que corre e profetas com línguas de chamas. Como em um olho, olho em ti, vida! Ouro fulge do seu olho: um barco dourado nele navega sobre águas escuras. Olhai-me, afinal: sobe e desce a dança desse ouro! Sois hábeis e tendes dedos espertos. Mas não sabeis como fazer um punho cerrado. Só quando vossos dedos espertos tiverem se curvado em punho cerrado pretendo acreditar em vossa força. · O verme com que estou lutando, desse eu me fiz primeiro um dragão: tão novinho e pequeno era ele, e por isso luto a luta com o vosso futuro.

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13: Verão de 1883

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Mas, se quereis lutar e vencer, então precisais primeiro transformar os dragões de hoje em minhocas! ferramentas e relógios sois para mim e nada mais: assim quero vos educar com o meu escárnio, tendo vós de me ronronar enquanto isso! E eu ainda prefiro dormir sobre peles de boi do que sobre a cama de vossa acomodação e de vosso amor. Vós enxergais apenas as minhas faíscas: mas não enxergais a bigorna que eu sou, não adivinhais a crueldade do meu martelo. Não com pavores de cabelo de serpente pretendo vos transformar em pedras e em seres mudos: só com o meu escudo "beleza" eu me protejo de vós. Escutais ecos e risos desse escudo? Da beleza a sacra risada isso é: com ela tereis de ficar mudos para mim! Sei montar em vós: e quem se entende bem em cima do cavalo, bem se entende também em cima da sela. Ainda pareço o galo em terreiro alheio sendo bicado pelas galinhas. Um fogaréu e um perigo quero denominar todas as almas ressequidas: cinzas em brasa precisam refulgir e revoar diante de mim. Solitário estou novamente e exilado. Pelos meus amigos, estou exilado para a minha solidão e por aqueles que me amam. Por isso quero, então, falar aos meus inimigos. Quero falar àqueles que me odeiam: talvez eu possa convencêlos melhor para o meu lado do que aos meus amigos. E, por isso, atraído estou hoje na direção dos meus inimigos, como outrora eu era atraído na direção de toda verdade. Verdade chamava eu outrora tudo aquilo que me doía e que mais me doía.

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Fragmentos do espólio

Todas as maldades da minha alma quero derramar contra os meus amigos: talvez eu seduza assim os meus inimigos para aquilo que me conduz. Sobre o vosso amor? Ah, agora isso retoma a mim, o horrendo saber - quem foi que me levou à vida selvagem e me transformou em selvagem? Em vão! Em vão! Eu mesmo forcei o selvagem a aparecer: a vontade dos amigos fez de mim, afinal, um urso das cavernas. Ah, quem foi que me tornou solitário e selvagem e um urso das cavernas na vida selvagem? Ah, quem me exilou entre pedras sem amor e tempo ruim Não chamaram não! três trovões e três raios a cair no meio da noite.? .

E quando fico olhando o meu livro de figuras, cachorro e criança precisam me espiar por cima do ombro. A gentileza faz parte da magnanimidade de quem tem a mente aberta. Igual aos búfalos, presto atenção em vós perto da areia, mais perto ainda das macegas, mas o mais próximo possível do pantanal. Com muitas pequenas pólvoras, pode-se treinar o corajoso a ser covarde. Por esse inimigo precisas ir passando quieto e com a espada embainhada. Evita atacá-lo! pois, quem o ataca, esse se suja. As doenças do sol ·1ivencio eu, o nascido na Terra, como obscurecimento pessoal e dilúvio universal da própria alma. Eu acreditava ser o mais rico, e ainda o creio: mas ninguém aceita isso de mim. Portanto, eu sofro da loucura cio pródigo.

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13: Verão de 1883

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Eu não toco a sua alma: e logo J. á não vou , . . , sequer e11egar até a sua pele. O ultimo pequeno abismo e O mais di'fi'c i'I de atravessar. Será que não vos machuquei mais quando eu agi·a com o ma10r . amor? O meu amor e a minha fome devoradora por eles crescem com o meu exílio, e mesmo a minha loucura de amor me torna ainda mais distante e mais incompreensível para eles. Mas eu sou utn ex_ilado: eles desviaram de mim os olhos. E eu mesmo não toco mais a pele de sua alma. Ah, e agora cresce a minha fome por eles, desde que sou chamado de exilado: e essa loucura de amor torna-me ainda mais estranho e terrível.

Meu prazer em falar. Contra os calados. Com peito elevado e igual àqueles que seguram a respiração: por isso vós sois, oh sublimes! calados. Beleza denomino eu a revelação do bem para os sentidos: o meu bem! para os meus - sentidos! E o que era espírito há de ser para mim apenas como que espírito! Agora a minha esperança ficou mais que saciada: daí ela deixou de ter esperança (não pertenço mais aos esperançosos). Voei longe demais na direção do futuro, uma aversão me tomou. Quando por fim olhei em torno de mim, vejam, o tempo era então o meu único contemporâneo. Foi assim que senti saudades de vós, os contemporâneos. E até aquele que quer preparar veneno para si mesmo precisa

colocar luvas de vidro. Dei-lhes o seu nada para devorarem, daí eles se engasgaram em ~eu nada.

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Fragmentos do espólio

Coloquei o espelho diante da feiúra deles: daí não suportaram a visão de si 111esmos: no maldoso olhar do seu olho, eles mesmos ficaram no prejuízo. Fiz penitência por toda essa injustiça; ainda mais injusta era a minha veneração do que o meu desprezo. Por mais cegos que já sejais: em vossos olhos encontrei maior a vontade de ser cego. Ah, eu conheço as azuis distâncias noturnas da vossa falsidade: mais que a vossa mentira, eu realmente prefiro a mentira daquele que sabe da sua mentira! E, 1nais pesada ainda que o meu orgulho, tereis de agüentar a minha modéstia, caso ela uma vez queira falar. Entre dois perigos corre o meu estreito caminho: urna altura é meu perigo, que se chama "arrogância"; um abismo é meu perigo, que se chama "compaixão". " Quanto eu quero recuperar o fôlego e espichar os membros quando eu tiver carregado a minha carga até a última altura!" assim pensava o herói com freqüência durante o caminho. Mas quando chegou em cima e se livrou da carga, então já não pensava assim - então ele dominou até mesmo o seu cansaço : e cmn isso um calafrio divino percorreu-lhe o corpo. Grande demais e longa demais era a tensão da minha nuvem: em meio a raios e trovões, ela por fim lançou gelo e granizo nas profundezas: poderoso ergueu-se aí o seu peito, poderosa ela soprou a sua tempestade por cima das montanhas - assim lhe veio alívio. Realmente, igual a uma tempestade me chegam a minha felicidade e a minha liberdade: mas vós pensais que a própria maldade está correndo por cima das vossas cabeças! O braço colocado por cima da cabeça: assim descansa o herói, assim ele supera até o seu descanso.

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13: Verão de 1883

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Hoje quero os meus escravos e ser eti mesm o o escravo . libertar . deles e seu d1vert11nento: que a bebida da liberdade lhes suba à cabeça e ao coração. · Vós, conterrâneos, estais aí, afinal, em primeiro plano para mim: se não quereis significar ruínas para mim, como quereria eu vos suportar em minha imagem! E o melhor em vós é para mim a vossa erva daninha! Os figos caem da árvore: eles são doces e bons. E, ao caírem, a pele vermelha deles se rompe. Sou um vento nórdico para figos maduros. Temeis a veemência dos sons, oh, harpistas e poetas? Hálito e perpassar de espectros é para mim todo o vosso plim-plim de harpas: com mãos áridas tocais cordas áridas, mas quando se comoveu convosco alguma vez um coração? - apenas a piedade por vossa pobreza se moveu! Que não chegueis a me desbotar e apagar o retrato da mulher, oh, oportunistas! A que altura habito? Nunca ainda - quando subi - contei os degraus até mim: - mas tanto eu sei da minha alh1ra: meu teto e tema começam lá onde acabam todas as escadarias. - aquele a quem ainda se precisa puxar pelos cabelos para o céu! Como sacos de farinha, espalhais poeira em tomo de vós, oh intelectuais, e sem querer! Mas quem adivinharia que vossa poeira provém da cevada e do encanto amarelo dos campos do verão? Para o herói , a beleza de todas as coisas é o mais dificil: justamente para o herói, o belo é inconquistável e inalcançável. . Um pouco mais, um pouco menos: justamente isso é muito aqui, Justamente isso é o máximo aqui.

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Com ribombos de trovão e fogaréus celestiais, é preciso falar para sentidos donnentes e adormecidos: mas as luzes da beleza falam de leve, elas só se insinuam nas almas mais espertas e despertas. Vós estais pensando em temas melhores, oh sonhadores? Mas eu vos digo, vós só entendeis melhor de tecidos e disfarces, vós sabeis revestir bem um texto ruim! Aqui e ali, até mesmo o miserável se torna correto: isso ocorre de modo bastante raro! - Daí se deve ouvir a sua voz e entrar em seu lodaçal. E até eu já me enfiei outrora entre os juncos e ouvi, portanto, o sapo da miséria humana fazer as suas declamações. E, no orgulho sobre um punhado de justiça, cometeis ultraje a todas as coisas e afogais o mundo com as águas da vossa injustiça. Durante horas ficam parados na estrada, olhando as pessoas que passam: e outros de sua espécie ficam ociosos sentados em seus aposentos, olhando os pensamentos que passam e perpassam por eles. Eu fico rindo dessa contemplação. Diga-lhes não e vá cuspindo: eles se jogarão então rapidamente no chão e lamberão a vossa saliva. Mas, entre humildes, todo padre vira safado: sua humilhação se vinga em todos os humilhados. Ninguém é mais vingativo do que a humildade do padre. Com músculos indolentes e belo, como cabe a alguém rico em graças: e realmente : o que é beleza, se não é o tornar-se visível da graça? Se o poder superior se torna concessor de graça e sua graça desce e aparece no visível : beleza chamo eu a tal descida, a tal condescendência. Sobre o mar sombrio da vossa alma, o sol jamais apareceu: e menos ainda conheceis a sua bem-aventurança no crepúsculo.

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13: Verão de 188 3

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Minha compaixão se tomou assassina·• e , qua nd o mais · amei· o . humano, preguei o h01nem na cruz. Mais pobre estou agora do que qualquer pessoa: 0 cálice ficou vazio. Minhas riquezas se foram: agora, na verdade, eu mesmo me tornei novamente humano. Salvei-os dos seus salvadores. - Mas como poderia o ser-acima-do-humano suportar compreender os seres humanos! Assim é preciso convencer os seres humanos a fazê-lo e, em função dele, deixare1n-se aniquilar: para que ele possa viver? O perigo do ser-acima-do-humano é a compaixão. Evitemos conceder-lhe junto a compaixão! - mas minha bem-aventurança é, agora, desaparecer. (Do último discurso) Com suas virtudes, eles e elas querem arrancar os olhos de seus inimigos. Elevam-se porque pretendem rebaixar outros. Só no poderoso quero a mansidão como sua auto-superação, e fico rindo do fracote que acredita ser " bom" por ter patas aleijadas. Quando alguma vez um grande homem foi o seu próprio seguidor e amante? Não ficou ele fora de si ao ficar do lado da grandeza! Um poder eu até quero ser, mas não ser um grande dirigente e comandante: mas para onde sopra um vento, quero puxar junto com ele: e se em geral sou invisível, quero me tornar visível como chama nos mastros de navegadores solitários e descobridores. Tal como a coluna, precisas crescer para o alto, mais suave e elegante, mas por dentro mais duro e com a respiração contida: por isso, a coluna busca o alto.

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"Assim eu gostaria de morrer! E morrer várias vezes! E viver para então morrer!" E, ao morrer, ela ainda sorria: pois amava Zaratustra. Do céu murmurava uma tempestade, ainda invisível. Daí ecoou um trovão: e em seguida veio uma calmaria - como se tivesse terríveis anéis, esse quieto silêncio nos envolveu e prendeu: o inundo estava silente e calmo. Daí a 1nulher anunciou o advento de águias e serpentes. O sinal. Fuga geral. A peste. Ela puxou o braço de Zaratustra para o seu seio. E de novo ocorreu a respiração do abismo: ele gemeu e rugiu o seu fogo para cima. Aqui está a cova da tarântula: queres vê-la? Soma então o zumbido de uma mosca. Aí pende a sua rede: toca nela, para que trema. Dançar eu quero te ensinar danças extasiantes: pois tu te tomaste mais melancólico com todos os humanos. Através da loucura quero curar o teu pesadume. Ele expôs a imagem nua de um deus: mesmo o mais sulino deseja, portanto, ainda um (segundo) sul. Tu és uma tarântula para mim: e negro pousa em tuas costas o triângulo, a marca da tarântula. Morda-me essa superficialidade com a tua mordida venenosa, para que suas almas recebam primeiro profundidade e pesadume e crosta escura. Aos mestres do pessimismo. 13 (3) Põe um santo num navio: o próprio mar há de xingar e berrar de medo diante dele. Traz a tempestade, então, ao mais quieto dos

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13: Verão de 18

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humanos: e quem era vento e onda há de f • d . ' ug1r e mim com pés apressa d os. De fato sou um .matagal e uma noite de ct'prestes.. mas quem nao ~ . ~ teme a mmha escundao encontra até pencas de rosas so b os meus ciprestes. Quero vos dar olhos abertos e arrepios diante da realidade: assim tereis de aprender a flutuar atrás de mim em futuros distantes. E não fiquem irados comigo se eu açoito um pouco esse pequeno deus: ele pegou no sono cá junto ao poço, esse mandrião; será que correu muito atrás de borboletas? "De fato acabei com o matrimônio: mas primeiro o matrimônio acabou comigo", dizia a mulher. "Agora vou para o mar com rosas brancas: os ventos das alturas brincam comigo e ficam rindo feito crianças. O que foi que eu não esqueci! Quem tudo não me esqueceu! E com freqüência ainda me esqueço até do meu esquecimento." Zaratustra entre crianças. O penhasco distante me joga de volta a minha palavra e zomba, assim, do meu esquecimento - já esqueci, sim, o que gritei a distância. Ah, o que tudo já não esqueci! "Ele já esteve no mundo inferior?" "Com certeza ele era isso: ele esteve, afinal, entre nós! O ser humano, apenas o ser humano, é o mundo inferior, o submundo!" "Zaratustra está morto? Vós não sabeis o que estais dizendo! Não o vemos andando! De fato, ele quer salvar ainda o mundo inferior e trazê-lo à luz." - "Ele vai para o inferno, o demônio vem buscá-lo!" "Acreditem em minha palavra, o demônio não vai buscá!o - como poderia! mas ele ainda se b usca o d emo1110.I" - o s barqueiros. Fim. A



"Numa cova de neve joguei o meu espírito."

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Fragmentos do espólio

E se as estrelas do céu não quiserem cair para ti, joga então as tuas estrelas para o céu: que esta seja toda a tua maldade. "Eu falo: pois eu vi. Agora preciso ser todo boca: pois antes eu era todo olho e inocência de espelho." Assim fala o artista. "Tu bem sabes, Pana, minha criança, minha estrelinha, meu ouvido de ouro - tu bem sabes que também eu te amo?" O amor por mim te convenceu, isso eu vejo: mas ainda não entendo a vontade do teu amor, Pana! Mas, quando ele viu a sua serpente estender a língua, então o seu rosto se transformou lentamente, lentamente: contra a vontade, o portal do conhecimento se abriu para ele: como um raio voou para as profundezas do seu olho e de novo feito um raio: faltava apenas um instante, e ele saberia - Quando a mulher viu essa mudança, ela gritou como se da máxima necessidade. "Morra Zaratustra" Com a sua mão esquerda ele empurrou de volta a águia que batia contra ele com o ímpeto de suas asas: ele gritou como quem aconselha a fugir; bem que ele gostaria de tê-la carregado embora. À sua direita, por cima da mesa, a pedra do penhasco Quem quer ser apenas um expectador da vida, esse pode evitar se assentar lá onde o sol queima sobre os degraus: a não ser que queira ficar cego. "E que devo fazer com a minha faca, Pana? Devo cortar as uvas amarelas da videira? Veja, que abundância há ao meu redor!" E também à noite ele não deve descair para vós; porém, vermelho como o sangue, igual a um sol da meia-noite, deve permanecer no horizonte. Homen s, que queriam se esconder e que tinham de se envergonhar do céu puro, fizeram para si essas cavernas de cheiro adocicado.

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13: Verão de 188

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E só quando vicejarem grama e papoula Ih , , verme a sobre os muros e o ceu olhar atraves de telhados quebrado , . s, quero voltar o meu coração as cidadelas do vosso Deus.

Como teria eu suportado se não amasse mai·s a

• o ser-ac1ma-do-

, humano do que a vos!

Para que vos dei, afinal, o espelho de cem dobras? E os olhares eternos? Eu superei inclusive o amor a vós com o amor ao ser-acima-dohumano. E assim como eu vos suporto, vós mesmos tendes então de vos suportar, por amor ao ser-acima-do-humano. Sois para 1nim a pedra em que dorme a mais sublime de todas as estátuas: não há nenhuma outra pedra. E assim como o meu martelo bate por vós, assim também vós precisais bater em mim por vós. O apelo do martelo precisa despertar a imagem que dorme. '

E se eu quero subir no meu cavalo mais selvagem, então a minha lança é o que melhor me ajuda a subir: ela é a mais prestativa serviçal do meu pé. A melhor máscara que temos é o nosso próprio rosto. Estradas tumulares: para levar até onde é mais bonito, alegre e claro. Não em lugares sombrios. E se eu ponho o espelho diante da minha própria beleza, a minha alma estremece de desejos divinos: e adoração ainda está em minha vaidade. E reis ainda terão de conduzir o asno da minha sabedoria. Digitalizado com CamScanner

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Fragmentos do espólio

E, quando eu jazia no sono, uma ovelha andou comendo na coroa de hera da minha cabeça. Enquanto eu me esforçava com a minha carga, rejuvenesci: e justamente quando me tomei mais duro em mim, aprendi também ainda a elegância. Inventivas em pequenas espertezas e ansiosos por aqueles cuja esperteza caminha sobre pés aleijados: assim estão de pé e esperam em frente de suas lojas, esses pequenos mercadores! Ai de todos aqueles que amam e não têm um nível que esteja acima até do amor e da compaixão. Sobre cinzas eu marcho para o alto do Monte das Cinzas, ao anoitecer: a minha sombra se torna longa e cada vez mais longa. Num mar violeta profundo está um barco: seu barqueiro olha para o alto na minha direção com a mão por cima dos olhos. Agora Zaratustra vai para os infernos - assim fala o barqueiro com um calafrio e faz o sinal da cruz. Deixa comigo a cruz, oh errante! O diabo ainda não veio me buscar, oh barqueiro! talvez eu busque o diabo para mim! Ao menos o seu cão infernal precisa ser correto comigo: quero uma resposta lá do fundo da sua garganta. Fogo e cinza ele tem de gemer e berrar para o alto: eu gosto que monstros me respondam assim. Poucos conseguem permanecer nobres mesmo ao apodrecer: e eu ainda prefiro ver o desavergonhado e sua inocência do que os olhos revirados da vossa adoração e culto! Agora existe somente ainda a fenda mínima entre mim e ti: mas, cuidado! Quem já conseguiu alguma vez construir uma ponte por cima da fenda mínima? Teus joelhos veneram e tuas mãos glorificam: mas teu coração não sabe nada disso.

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13: Verão de 188

3 _ _ _ _ _~3~15 -----------.:.:...:.....:::..~:.:._

Para o alto tne joguei outrora com mãos d d " 1anças me apararam - por isso and · oras: mas caí tres . . ' quando ' ei como v1t1ma 0 caminho para a Terra vindo do alto. meu

ºª

no queixal inferior do lobo pus o meu pé· assr· b · , J:': · m a n a 1orça a sua garganta. rindo morrem os reis do norte uma corda trançada com a barba de uma donzela e passo de um gato -

O

eco do

Quem me coloca a tigela diante do rosto para o veneno da víbora gotejar dentro? Eu não quero que da sabedoria se forme um hospital e albergue para maus poetas. Como se houvesse apenas uma única pequena ponte para o futuro: como ovelhas eles se apertam sobre a sua pequena ponte. "de quem busca o conhecimento fazer um fazedor criativo"! E o que vos afeta se minha torrente se joga em errâncias e gargantas inviáveis: pois como deixaria uma torrente de encontrar o caminho para o mar? De fato encontrei em mim um lago: um solitário e um arrogante ele é: nele se jogou a minha torrente do amor: e agora ela arrasta consigo o lago na direção do mar! "Nós nem sequer temos opinião se não se dá uma opinião a nós: e ela nos é dada. Nós nem sequer temos força se não se presume uma força em nós: e qualquer um nos presume fortes" - os míseros conterrâneos. Eu vos suporto e carrego, até agora sempre vos achei de peso leve. E mesmo quando fico resfolegando sob a minha própria carga,

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Fragmentos do espólio

sobrecarregado comigo mesmo, pouco importa que vós, besouros e vermes alados, ainda pouseis sobre o meu fardo! contra a "moral" E quando eu, em vez do puro "eu quero" de focinhos simplórios, ouvi que me gritavam "tu tens de", aí começou o meu perigo: detestei o meu puro "eu quero" vindo de focinhos simplórios Eu aniquilei o vosso bem e mal, rebentei essas cordas: só assim aprendi o amor ao meu bem. Negra e enegrecedora é a arte de todas as tarântulas: tarântulas chamo eu, porém, aos nicromantes do espírito, que se chamam de mestres "do pior dos mundos". Se houvesse deuses, quem suportaria não ser um deus? Mas deuses não há. A sua alma se regozija em segredo porque vingança ainda se exerce em toda justiça: e a minha porque em toda vingança ainda salta uma faísca da bigorna da justiça. Estais apaixonados por palavras grandiloqüentes como por peles coloridas: e sobre tapetes de mentiras o vosso pé sabe se fazer uma festa, oh molengas! (idealistas) Mas calou: sombria e duplamente calou. Ah, vós não a conheceis, a dupla quietude, a opressora de corações. Alpa! gritei. O temor e a saudade gritaram de dentro de mim: uma voz eu queria ouvir de novo ~ma voz vinda de seres humanos, como a carrega um vento ou um passara. Vontade forte? Jsso · · ~ · e muito, mas nao basta. De uma vontad e 1onga e forte cu pre · d ~ d ciso, e uma resolução eterna e de coraçao uro .

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13: Verão de 1

883 -------------.:....:....::.:.._~~~~-------23~17

Como essa risada 1ne quebrou as 1-anel I C . as. orno se me b asse os órgãos internos e fizesse fendas n ... arre eno coraçao! t Isso é o 1nais imperdoável em ti: tens O d .. . po er, e nao queres dommar. Não vês, afinal, do que todos mais precisam?· E' daque1e que saiba mandar. Eles todos _não querem carregar o fardo do não-mandado, mas executam o mais pesado quando lhes dás ordens. Rara é a vontade que exija o monstruoso: mais facilmente encontras quem o faça. A vós não arrastam ainda um vento e uma vontade fortes: rígidos demais e de costas eretas ainda estais aí para mim. Ah, que andásseis primeiro arredondados e inflados pelo mar, qual uma vela, a tremer diante da tempestade e da respiração de uma vontade! Agora todo o ar está aquecido, fogaréu é a respiração da Terra. Agora andais todos pelados, oh bons e maus! Assim, o conhecedor tem a sua festa. Sim, esse é o mundo sem roupas. O que fez a Terra tremer? Não são as palavras mais quietas de um santo? Frio escorre todo o conhecimento profundo, gélidos são os poços mais interiores: e assim isso é refrigério de todas as mãos quentes e de todos os que agem. Amo o borbulhar da má fama: assim como o navio gosta de esnd cutar a dicção contrária da onda pela qual sua quilha vai ~-ompe º· Mais fácil se torna o meu caminho quando em to1110 de mun espuma a resistência. . . , · a ;,n assim também Mas assim como eu acordei e1e vos e vm1 111 · , ' digo que vós deveis ficar acordados e acordar de vós.

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E por que não quisestes - meus irmãos - "vir a mim"? Perto da fonte com mão modesta: assim se enche para ti mais facilmente. Salvadores? Atnarradores fostes, e amansadores: diga-se isso em vossa honra. Hoje estou cansado dos seres humanos, hoje os animais terão de me ser caros. E hoje tenho rnancheias de amor para jogar fora neles. Ah, se eu pudesse ser um semeador e jardineiro entre animais! Decerto, eu ainda encontraria um reino terrestre no qual crescesse algo mais orgulhoso que o ente do qual me cansei. Vai dizendo a tua palavra! Quebra nela. O que importam tu e tua modéstia! Indizível é a minha modéstia. Quisestes provar que o vosso avô estava certo e que a verdade sempre esteve com os avós. Mais povo é de fato sempre o avô do que um neto qualquer. Olhais para trás até quando caminhais para a frente: e com freqüência é preciso correr contra o vosso corpo.

É de fato com prazer que construís a cidade do futuro: mas para isso convidais os mausoléus e os dignitários dos mundos pretéritos. 13 (5)

Não pelo direito lutais todos vós, oh justos, mas para que vençam as vossas imagens do ser humano. E que se quebrem em minha imagem do ser-acima-do-humano todas as vossas imagens do ser humano: vede, essa é por direito a vontade de Zaratustra.

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13 (6) Aos doutrinadores da igualdade Vós não quereis ouvir nada a respeito de que ai , · . _ . . guem passeia por cima das vossas cabeças. E entao de1ta1s madeira e terra e entulho entre ele e vossas cabeças. Portanto, vós abafais o discurso dos meus passos. Falhas e fraquezas de todos os humanos colocais entre mim e vós: fundo falso chamais a isso em vossas casas. Mas, apesar disso, passeio com meus pensamentos por cima das vossas cabeças: e mesmo que eu quisesse passear por cima dos meus próprios erros, eu ainda estaria acima de vós e de vossas cabeças. Pois os seres humanos não são iguais - assim reza a eqüidade. E o que eu quero, vós não podeis querer. Com suas virtudes, querem arrancar os olhos dos seus inimigos: eles só se elevam porque pretendem rebaixar outros. "Agora estou justiçado" "agora estou vingado" - isso soa semelhante e com freqüência não somente soa semelhante! Suas péssimas qualidades lhe permitem compensar quando se deixaram superar pela virtude. Em cada uma de suas queixas há vingança. Quero trazer à luz todos os vossos segredos: por isso fico rindo na vossa cara minha gargalhada das alturas. Que minha palavra mais doce se torne fermento para vós: tereis de fermentar de vingança. E só quando tiverdes transbordado da panela e desabrochado em minha maldade é que eu quero vos degustar e vos considerar saborosos.

13 (7) Os escultores de ídolos Quando o vosso ódio e o vosso ciúme tiverem um dia ficado podres e esticado as canelas: só então o vosso senso de justiça há de ficar bem-disposto e há de esfregar os olhos cheios de sono. Tereis de espirrar por causa da minha bebida: o meu vinh~ espumante terá de fazer cócegas em vosso nariz e vos tornar lascivos.

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Sacralizar a gargalhada e passear pelo mundo feito uma tenda coloridae mesmo que eu tenha sido forçado a fabricar para vós noites mais escuras, trouxe-vos também novas estrelas e novas maravilhas noturnas. Como o focinho do javali, minha palavra precisa remexer o fimdo das vossas almas: arado quero ser chamado. Por mais cegos que sejais: maior encontrei em vossos olhos a vontade de ser cego. Ah, eu conheço as distâncias azuis da vossa falsidade: e mais amada que vossa mentira é-me ainda a mentira daquele que está sabendo da sua mentira. Já onde a vossa correção acaba o vosso olho não vê mais nada. A 1nelhor máscara que usamos é o nosso próprio rosto. O que há com o fato de eles retratarem nus os seus deuses? Portanto, o mais sulino dos sulinos anseia ainda por um novo sul. 13 (8)

Os penitentes do espírito És tu um astro? Então precisas também querer migrar, oh tu, ser sem pátria e sem paradeiro. Agora ele está aí, tão magro nas costelas que fica admirado com s1 mesmo. E daí ele diz: "será que um deus me retirou algo em segredo, enquanto eu dormia? Na verdade, ele retirou o suficiente para montar uma mulherzinha com isso. Espantosa é a pobreza das minhas costelas!" A Justiça apresentou-se diante de mim: daí quebrei meus ídolos e envergonhei-me. Submeti-me a uma penitência: obriguei o meu olho a olhar para onde ele não queria olhar - e levar amor para lá. E, quem quiser preparar veneno para si mesmo, precisa pôr luvas de vidro. Ainda mais injusta era a minha veneração que o meu desprezo. Os figos caem da árvore: são doces e bons. E, ao caírem, a pele vermelha deles se rompe. Sou um vento nórdico para figos maduros.

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E, no ~rgulho sob~e um punhado de justiça, cometeis ultraje a todas as c01sas e afogais o mundo com as águas da vossa injustiça. E O que outrora para mim significava espírito é para mim apenas ainda como que espírito. Pode-se morrer de inanição por sede no mar, e também no meio de verdades salgadas demais. Quem vai longe demais acaba se deitando para donnir até sobre a neve - de cansaço. Mordidas da consciência ensinam a morder. Às vezes a verdade acaba realmente vencendo: um erro qualquer lutou por ela. O ser humano é o animal com maçãs n1bras no rosto: o ser humano é o animal que com demasiada freqüência tem precisado se envergonhar. Há lascivos do espírito: também há penitentes do espírito. 13 (1 O) Onde vida eu vi, encontrei vontade de poder: e até mesmo na vontade de quem serve encontrei vontade de poder. A gente se submete ao grande para se tornar senhqr sobre pequenos: esse prazer nos convence à submissão. O que não é, isso não pode querer! Mas o que tem existência como isso ainda poderia - "querer para a existência!" Pretendeis conhecer as coisas e todas as coisas: então elaborais valores e tabelas de virtudes. Essa é a superstição de todos os avaliadores. Sois para mim apenas um rio em que um barco flutua adiante: mas no barquinho estão as apreciações mascaradas de valores, as festivas . Assim começa a ciência honesta: ela pergunta: "o que é?" e não: "quanto vale?" O que está aí para os seres humanos de tal modo que o ser humano seja preservado: esse é o nosso limite. Mesmo o teu ideal ainda não é o teu limite: mais longe vai a tua força do que a saudade do teu olho.

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O sol já descambou há muito tempo, os campos estão relvados, das matas vem o frio: algo ignoto está ao meu redor e olha para mim meditando. Como, tu ainda vives! Por que vives ainda? O que nos comove no íntimo, isso nós contemplamos estupefatos como algo incompreensível: daí inventamos som e palavra para issoe daí supomos até mesmo que tenha se tornado compreensível. Essa superstição está em tudo o que ressoa: o delírio do ouvido. Vontade voltada para a verdade? Oh, meus irmãos mais sábios, essa é uma vontade para a pensabilidade do mundo! Visível deve se tomar também o mundo ainda no menor de tudo: então vós pensais estar entendendo: essa é a bobagem do olho. Falemos disso: se é igualmente ruim, calar a respeito é terrível! Outros mares eu vi, incrível me pareceu o seu azul, pareceu-me um creme sobre pele hirsuta: cinza e horrível o sangue corria por baixo. Mas aqui o sangue do mar é - azul. Nada é mais caro do que um falso delírio sobre bem e mal! "O homem bom é impossível: na própria vida o não-bem é delírio e injustiça. E essa seria a última vontade voltada para a bondade: negar toda a vida!" Com o vosso bem e mal, vós vos magoastes a vida, cansastes a vossa vontade; e a própria apreciação vossa era o sinal da vontade declinante, que busca a morte. 13(11) O caminho por muitas almas Venho de lá como um vento forte; e esse conselho eu dou aos que me desprezam: evitai cuspir contra - o vento! Por cem almas eu fiz o meu caminho, muitas despedidas já fiz, conheço as últimas horas que partem o coração. Mas assim quer o meu destino. Ou, para que eu vos fale com correção: tal destino quer - minha vontade!

Quem quer encontrar a si mesmo precisa ser considerado longamente um perdido. Quand~ alguma vez um grande ser humano já foi discípulo e amante de s1 mesmo? será que ele não ficou de lado ao ficar do lado - da grandeza!

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Em escura tempestade eu quero desaparec . , . er. e no u1ttmo momento quero ser h~t~em e raio ao mesmo tempo! Bem que eu ttret a conclusão: agora ela me tira. A onda ~ugiu ao passar: a criança chora porque ela arrastou consigo o seu brinquedo para o abismo. . Mas a mesma onda joga-lhe cem outros brinquedos na alva areia. Portanto, não choreis por mim, meus irmãos, por eu estar passando! E eternamente, igual à sede do anel, é também a minha sede por mim: para alcançar a si mesmo de novo, todo anel se torce, retorce e

anela. Soberana veio a vivência: mas o meu querer falou: e já .estava ela suplicante de joelhos. Já disse 1nuito adeus: mas não joguei as portas ao fechar - por isso os vossos ouvidos moucos nada disso ouviram.

13 ( 12) Dos absolvidos

Que um raio caia em vosso alimento e vossos focinhos tenham de comer fogo por algum tempo! Um peixe vós quisestes pegar e lançastes a vossa rede ao mar. Mas daí puxastes a cabeça de um deus antigo. Portanto, o mar deu a vós, os famintos, uma pedra: daí desististes. Aí jaz sempre a deusa: indolente e maldosa, a onda desliza sobre os seus seios alvos. Meio estava ela enterrada pela areia e meio pelo ciúme da onda. Vossos ditados e vossas pequenas verdades cresceram bem nas proximidades dos pântanos? Pois sempre escuto coaxar dentro deles um sapo frio. Sois hábeis e tendes dedos espertos: mas não sabeis fazer um punho cerrado. Só quando vossos dedos espertos _tiverem se curvado em vosso punho, quero acreditar em vossa força. Ferramentas e relógios sois para mim e nada mais! Assim quero vos educar com O meu escárnio, tendo vós de me ronronar enquanto isso!

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"Assim sempre foi! Assim sempre será!" E eu prefiro dormir sobre couros de bois a ficar na cama da vossa acomodação. De cada um se sabe algo demais. 13 (] 3) Contra os medianeiros De todo puro eu sou amigo: como poderia ser amigo de vós,

conci 1iadores ! Todos vós, mediadores e misturadores, oh, médios e medianos, vós, reconciliadores altamente tensos - vós não sois limpos! Quão divinamente se quebram aqui as abóbadas e os arcos, em luta corpo a corpo: como com luz e sombras eles se jçgam uns contra os outros, os divinos jogadores: Por isso, de modo seguro e belo, vamos ser também inimigos, meus amigos! Divinamente - queremos jogar uns contra os outros! Vós, obscurecedores, vós perguntais o que será de vós caso disserdes a verdade mas a verdade precisa arrebentar o mundo, para que o mundo possa ser construído! É preciso educar o coração: fazendo que ele seja forçado. Quem deixa andar o seu coração, logo perde a cabeça. É nobre ficar envergonhado com nossas melhores coisas, porque só nós as temos. "Eu me incomodo: pois tu não tens razão" - assim pensa quem ama. Amo a vida: desprezo o ser humano. Mas, por amor à vida, quero acabar com ele. 13(14)

Aprendizes e sociedades A vós, meus contemporâneos, eu não levo muito a sério: finos e transparentes sois para mim! Véus rasgados , ·1trnvc' · espia · a etern idade; • ' ' •s cl os quais portas sern1-· abertas, nas quais coveiros esperam!

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E como quereria eu viver entre vós se nem sequer percebesse 0 ue tendes pela frente! q Necessários não vos considerei, nem mesmo supérfluos me pareceis: po~co há em ~ós p~ra - transbordar! Vós rugis contra mim, pois bato em vós com o meu remo: e mes1110 assim tereis de carregar o meu barquinho para a imortalidade. E muita mulher me disse: "De fato quebrei o casamento: mas primeiro o casamento me quebrou". E se eu tenho de vos amar desde o fundo, então precisais ser minha cria ou minha criação. Quem não nos toma -fértil acaba, com certeza, se tomando indiferente. Certamente se age para o seu próximo, mas não se cria para ele. Orgulhoso e tímido demais é ainda o teu querer! se quiseres andar bem, atrela então um burrico diante do cavalo do teu querer! Favos de abelha eles construirão como torres de Babel. 13 16) Não será o mar o pavão dos pavões? Mesmo diante do mais horrível de todos os búfalos, ele estende a sua cauda, jamais se cansando do seu leque rendado de prata e seda. Teimoso, o búfalo olha perto da areia em sua alma, mais perto ainda da selva, mas ainda mais perto do pântano: o que já é para ele beleza e mar e enfeite de pavão! Essa comparação eu dou a vós, atores. Na verdade, o vosso espírito é ele mesmo o pavão dos pavões e um mar de vaidade. Vós encenais: e quereis que vossas encenações sejam vistas - a todos vós eu chamo de encenadores. Quer vós vos celebreis como poetas ou como dançarinos, quer vós vos denomineis voz do povo e de servidores do bem-comum: Quer doutrineis ou pinteis ou façais música ou jogueis o jogo "preto sobre branco" o miserável: ' Um dogma e uma ambição falam em todo o vosso fazer: "eu quero me fabricar um renome! - assim diz. A crença torna bem-aventurado - assim dizeis todos vós -, sobretudo a crença em nós.

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Auscultei o eco, mas só escutei elogio. Eu queria edificá-los e elevá-los - mas essa corja quer ser justamente derrubada! Falar muito de si é também um modo de esconder-se.

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Das tarântulas Aí está a cova da tarântula: queres vê-la? Acresce então o zumbido de uma mosca. Aí pende a sua rede: toca nela, para que trema. Tu és uma tarântula para mim : e negro pousa em tuas costas o triângulo, a marca da tarântula. Morda-me toda essa superficialidade com a tua mordida mais venenosa, para que suas almas recebam primeiro profundidade e pesadume e crosta escura. Longe demais voei para dentro do futuro, um horror me atacou. E quando olhei ao redor, apenas o tempo era o meu contemporâneo. Daí tive saudades de vós, os contemporâneos! Negra e enegrecedora é a arte de todas as tarântulas: tarântulas chamo eu, porém, aos nicromantes do espírito, que se chamam de doutrinadores "do pior dos mundos". Se tu queres tomar torto para ti todo reto? Pensa então que o tempo tenha se ido e o passado seja uma mentira. Pensar isso é a pior loucura, e veneno de tarântula. Um turbilhão há de ser até para o teu esqueleto e um vômito para o teu estômago. 13 (18)

Dos poetas O imortal - trata-se apenas de uma comparação; e os poetas mentem demais. Eles também sabem de menos e são maus aprendizes: já por isso precisam mentir. E do que eles mais gostam é de nuvens: colocam sobre elas os seus bonecos coloridos, chamando-os de deuses. E quando eles estão deitados na grama debaixo das árvores, e quando delicados impulsos lhes advêm: então supõem sempre que a própria natureza estaria apaixonada por eles.

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E ela viria, dizendo-lhe segredos e falas sedutoras; sim, 0 poeta fica todo inchado e exibido em função de tamanha confiança diante de todos os mortais. Ele vai afundando e os seus demônios o puxam: mas, quanto mais ele afunda, tanto mais em brasa brilha o seu olho e O anelo em relação aos seus deuses. Sei montar em vós e colocar novas selas. E quem se entende em cima do cavalo, bem se entende também em cima da sela. Oh harpistas e poetas, o que soubestes vós até agora da veemência dos sons! Sopros gélidos e andanças súbitas de espectros são para mim todo esse vosso plim-plim de harpas: com mãos duras lacerais cordas duras! E se as estrelas não vos querem cair do céu, então lançai vossas estrelas ao céu: que seja essa toda a vossa maldade! Louvamos apenas aquilo que está de acordo com o nosso gosto: ou seja, nós louvamos, quando louvamos, sempre o nosso gosto: o que é, por sua vez, contrário a todo bom gosto! Pensavam ser espertos quando diziam: "todo o saber não está com nada". quente atrás de coisas que mulheres velhas se contam "Louvado seja aquele que não sabe e pobre de espírito!" aquilo que não está mais em vosso ouvinte, nesse sentido provocailhe saudades e escrúpulos: mas eu vos digo: vós teríeis de deixá-lo sedento pelo "ainda-não"! Quem cria, ama a si mesmo nisso; assim, ele precisa também se odiar a fundo - ele é dispersivo nesse ódio. "Louvados sejam os pobres de espírito, especialmente se forem femeazinhas novas!" Quem de vós, poetas, não teria falsificado o seu vinho? Muita mistura venenosa ocorreu em vossos porões. 13 ( 19)

Entre a!eUões E eu ainda prefiro viver entre aleijões do que entre esses supostos inteiros. ·

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Para a frente lança a perfeição suas sombras: de beleza eu chamo tais sombras. A mais leve e silenciosa de todas as coisas veio a mim como sombra do ser-acima-do-humano. Mesmo Deus tem o seu inferno - disse o Diabo: é o seu amor aos seres humanos.

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14: Verão de 1883

14 (2) Do mal: i. é, os entes inferiores querem exercer uma preponde-

rância sobre os entes superiores, fazendo mau uso das propriedades individuais do superior (p. ex., sua confiança). O mal é: fazer mau uso da virtude de outros entes que são de espécie mais elevada (parasitismo, gigolagem). Um poder organizatório de primeira ordem, p ex. Napoleão, precisa estar em proporção com a espécie que precisa ser organizada (ou seja, pouco importa que ele tenha sentimentos "nobres": basta que ele aprecie de modo total e pleno aquilo que em muitos é o mais forte e o mais determinante.) Mau uso das características do outro que ficaram para trás, no todo mais nobre - mais parasitário. (Mulheres) A humanidade tem com a natureza em geral uma atitude de llli/itarismo calculista : mas o que nos deixa indignados se um indivíduo humano espolia e explora outro para si? - O pressuposto é o de que ele não seria suficientemente v~lioso. Supondo-se, porém, que ele seja considerado como suficientemente valioso (p . ex., como príncipe), então ele terá de ser suportado e . , ·e de fellc1 · 'd ade ("d·1spos1çao · ~ de Deus") ge1a uma espec1 A gente luta para não ser explorado por entes mais baixos do que nós mesmos somos. Digit alizado com CamScanner

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Assim, eu me defendo contra o atual Estado, sistema educacional, etc. Mal é antes de tudo um juízo sobre outros entes: se consideramos como 1nal algo em nós, então se trata de uma comparação _ nós não queremos que um instinto por nós taxado como inferior passe a fazer o papel de senhor - não é preciso nem de longe negálo, mas ele tem de assumir um papel subalterno, e nada mais! 14 (3) No topo do Estado precisa estar o homem mais elevado: todas as demais formas são tentativas de se dar um substitutivo a uma autoridade que demonstre isso. (A lei antiga só recebe a sua sacralidade quando faltam forças coercitivas.) Todos os instintos inferiores precisam estar aí, e em revigorada força, caso os instintos mais elevados queiram prevalecer, e prevalecer de modo abundante: só que a dominação sobre o todo precisa estar em mãos firmes! se não, o perigo é grande demais! - Em vista desse perigo, tem-se desejado matar completamente as características inferiores (mas estão enganados quanto a isso: o cristão manteve consigo os seus afetos, mas aplicou-os de modo diferente, assim como o cínico manteve a sua boca debochada) ou querer que eles aprendam a ser "suaves e domesticados", não querendo mais considerar positivo o impetus supremo, p. ex., os ep1cureus. 14 (4) A humanidade tem ainda muito mais pela frente - como é que ela poderia ao menos permitir-se extrair do pretérito o ideal! Talvez sempre ainda em relação ao agora, que talvez seja um baixio, uma depressão do terreno.

14 (5) O mau uso do poder pelos imperadores romanos desviou e desvairou os conceitos morais para a Europa: a moral dos impotentes tornou-se vitoriosa, •· - e m decorrencia, " · uma 11nensa • . e monstruosa falsificação.

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14: Verão de 1883

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A verdadeira fonte das percepções mais elevadas está na alma oderosos. Autotestemunha da alegria em si e no seu próprio dos P . . ,e a origem de todos os JU1gamentos de valor - crença em s1 razer ' rnesmo.

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15: Verão-outono de 1883

15 (2) Odeio pessoas que não sabem perdoar. 15 (20) Assim que acreditais que haveria, ao lado da causalidade absoluta, ainda um deus ou uma finalidade - pensar então na necessidade torna-se insuportável. 15 (23) Meu amigo, tu és como a rolha, feito para a luz e a superfície de todos os mares - eras chamado de felizardo 15 (26) Vosso falso amor ao passado é um roubo ao futuro (origem divina dos valores) I 5 (36) Onde há perigo, estou presente e cresço de dentro da terra. Fazer exercícios militares sob o fogo da artilharia que atira para alvos distantes. "Um viajante em armas, impaciente que alguém pudesse retardá-lo." Não se deve deixar descansar nem o vencedor nem o vencido, como general ficar tranqüilo quando o grande perigo se aproxima.

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quero fazer isso ou morrer "Sem raiva não se vence em nada" Aristóteles aparentar ser belo e terrível Zaratustra 4, final. Atrás dos exércitos, um regimento racional do terror. "os erros que ocorrem por bondade são os piores nas coisas perigosas" Clausewitz Coragem por sentimento de honra e amor próprio não devem ser confundidos com a coragem orgânica: uma coerção em que se perde 1nuito da sua capacidade. "Astúcia melhor que força". "Como essa Terra é pequena para uma grande ambição! " "Amor à fama, o verdadeiro mérito de um príncipe" Frederico 15 (37) "Divido tudo o que tenho - agora nada me resta senão a grande esperança" Zaratustra 4 Zaratustra 4. Será que preciso deles? Mas eles precisam de mim! 15 (40) Com o "para quê" fabricou-se uma coerção e aniquilou-se a liberdade. Para a redenção dos fins. 15(41) O perfeito serve tão pouco com propósito quanto ele com propósito prejudica. 15 (51) não querer os meios apenas em função dos fins! Consciência é a sensação na qual a hierarquia dos nossos instintos é conscientizada. 15 (52) Memória inconsciente Comodidade (como felicidade maximamente duradoura dos antigos filósofos) Contra toda metafisica basta o ceticismo

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16: Outono de 1883

16 (1) A natureza precisa ser concebida, em ana logia com o ser humano, como errante, experimental, boa e má - como lutadora e auto-superadora.

16 (2) Três solidões existem: a do criador, a de quem espera, a da vergonha. - Eu sei a palavra e o sinal do ser-acima-do-humano; mas não os digo, escondo-os de mim mesmo. - Viver na vergonha diante de uma grande verdade. 16(5) 1 A profunda esterilidade do século XIX. Nunca encontrei um ser humano que realmente tivesse trazido um novo ideal. Mais longamente me deu esperanças o caráter da música alemã. Um tipo mais forte, no qual as nossas forças estejam ligadas sinteticamente minha crença. Na aparência tudo é décadence. É preciso conduzir esse aniqui lamento de tal q1~do que ele possibilite aos mais fortes uma nova forma de existência. 16 (6)

. Nenhuma impaciência! O ser-acima-do-humano é o nosso próximo estágio! Disso, dessa limitação, fazem parte ponderação e lllasculinidade. Digitalizado com CamScanner

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16 (1 O) Conquistar para mim toda a imoralidade do artista em relação ao seu tema (humanidade): esse foi o trabalho dos meus últimos anos. Conquistar para mim a liberdade e a alegria espirituais para poder criar e não ser tiranizado por ideais alheios. (No fundo, pouco importa do que eu teria de me livrar: minha forma predileta de liberação era, porém, a mais artística: ou seja, eu projetei uma imagem daquilo que até então havia me prendido: assim, Schopenhauer, Wagner, os gregos (gênio, o santo, a metafisica, todos os ideais anteriores, a suprema moralidade) - ao mesmo tempo um tributo de gratidão. 16 (12)

Agradece a quem aí aceita! 16(13)

Tem piedade com o teu pé para que não pise no lodo: a quem trai um amigo não se deve sequer pisar com o pé. 16(14)

Para a superação dos ideais anteriores (filósofo, artista, santo), seria necessária uma história da sua formação . No lugar do santo-amante, coloquei quem sente com amor e justiça novamente todas as fases da cultura: o homem histórico de suprema piedade. No lugar do gênio, coloquei o ser humano que leva o ser humano para além de si mesmo (novo conceito de arte (contra a arte das obras de arte) No lugar do filósofo, coloquei o espírito livre, que é superior ao erudito, ao pesquisador, ao crítico, e que continua vivo acima de muito ideais: aquele que, sem se tomar jesuíta, examina a constituição ilógica da existência: o redentor em relação à moral. Schopenhauer como educador p. 60: "Só quando nós mesmos, na atual encarnação ou em uma próxima, tivermos sido aceitos nessa sublime ordem dos filósofos, dos artistas e dos santos, há de nos ser também imposta uma nova meta·-para o nosso amor e o nosso ódio por enquanto temos a nossa tarefa".

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16: Outono de 1883

-------------~.:..::..~~~------_:3~37 O valor do erro (loucura) do olvido por fim o valor do mal da hostilidade

I6 (16) Luz errante sobre um pântano. 16 ( 18) Contra Rée: onde há sofrimento, aí foi feito algo que era contra 0 útil - na natureza, algo contrário às finalidades. 16(19) Se é verdadeiro que o ponto de vista da utilidade para a comunidade determinou o valor do altruísmo: então resta agora ainda a pergunta: o julgamento é verdadeiro, justo? Será que o benevolente é útil? 16 (20) Onde há algo vivo, aí ocorrem súbitas explosões de força: a sensação subjetiva aí é "vontade livre". O número e o poderio dessas explosões determinam primeiro o valor de um vivente: depois o direcionamento dado a essas explosões. Se falamos de "motivos para agir", pensamos sempre apenas nos " motivos para o direcionamento". 16 (21) Meta: formação mais elevada de todo o corpo e não só do cérebro! 16 (22) Sobre as massas, precisamos pensar sem piedade como a natureza: elas preservam a espécie. 16 (24) NB! História dos seres humanos mais elevados. A criação do ser humano melhor é muitíssimo mais dolorosa. DemonStrar no

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Zaratustra o ideal dos sacriflcios aí necessários: abandonar lar, família, pátria. Viver sob o desprezo dos bons costumes dominantes (desprezado). Tortura das tentativas e dos enganos. Afastar-se de todos os prazeres que os ideais anteriores ofereciam (são sentidos na língua em pa1ie como hostis, em parte como estranhos) 16 (25) O prazer em fazer sofrer, pois traz consigo um aumento da sensação de poder: máximo, quando foi precedido por uma diminuição - portanto, na vingança. O prazer em fazer o bem cresceu sobre uma base bem semelhante - e magnanimidade é uma vingança sublimada e, por isso, um prazer muito grande. 16 (27) O juízo axiológico moral refere-se primeiro à distinção entre seres humanos superiores e inferiores (ou castas). Moral é primeiro autoglorificação dos poderosos: e desprezo em relação aos sempoder. A percepção original não é "bem" e "mal", mas "nobre" e "ordinário, baixo, vil". Só então as atividades e características distintivas são consideras nobres, e ordinárias, baixas, vis as contrárias a elas. 16 (28) O ladrão não age para ter o prazer de um poder, ele não se coloca dentro do efeito que a sua ação provoca em outros. Tampouco o assaltante, ou quem mata o outro para lhe tirar algo. Mas eles revelam que nos temem, por isso - - 16 (29) Em que medida ferimento é injusto?- Com o ferimento surge a necessidade de revide: mas o que é isso? Não confundir com a sensação de ter reconhecido um inimigo, ao qual tornamos impossível que continue prejudicando. Ou o propósito de obter de volta aquilo que nos foi tirado ou um equivalente. Uma amargura ainda

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16: Outono de l 883

--------------=....::..:=~::...~~~-------~3~39 está junto. Etn si, o inimigo não é perceb •d . e: . I o como mau· m sempre existe no 1endo uma auto-acu ~ • , · as quase saçao • nos forno d · incautos, nossas armas não estavam em d , s emas1ado or em nos dev ' nos considerado avisados bem antes et E ' . . enamos ter, ' c. ssa irritação quanto a nos. mesmos portanto, um menor resp -1 d' , . _ et o 1ante de nos _éa pnnc1pal razao da amargura na vingança·· e tam b,em o pretexto para 0 refinamento na execução da vingança.

Que por tudo se acaba pagando e que para cada coisa existe um equivalente, isso levou a fantasia a inventar também um equivalente de prejuízos: e falar em retaliação e compensação. Mas no fundo isso está voltado para outra coisa, para muito mais do que uma indenização. Compensação é apenas uma hipocrisia e uma tinturaria de quem se vinga. "Culpa". O sentimento do prazer na vingança cessa quando quem feriu se humilha, quando compensa o prejuízo: com isso ele está vencido. O intencional no prejudicar não é originariamente encarado de frente: mas que se está prejudicado e em quanto. A pena se segue a isso. O prejudicar é compensado - é a forma mais antiga, não a intencionalidade hostil. A indignação surge por se ter sido prejudicado, portanto em função do êxito do inimigo, não em função da hostilidade. É a sensação do vencido - a ânsia de vingança: não a sensação de que tenha ocorrido uma injustiça. Vinga~ça, querer retaliação, não é a sensação de que algo injusto tenha ocorrido, mas de que eu estou vencido - e de que eu, com todos os meios, preciso agora restabelecer a minha validade. Injustiça surge só onde um contrato é rompido, portanto onde paz e fidelidade são rompidas. Essa é a indignação quanto a uma ação indigna, indigna da pressuposta igualdade das percepções. Portanto, algo bem baixo, desprezível, precisa estar nisso, que aponte para um nível mais baixo. A intenção contraposta só pode ser a de colocar o ente indigno nesse nível mais baixo: portanr_o, ~epará-l~ de nós, expulsá-lo, rebaixá-lo, causar-lhe ultraje e oprobno. Sentzdo da pena. Digitalizado com CamScanner

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Fragmentos do espólio

O sentido da pena não é intimidar, mas colocar alguém num nível mais baixo na ordem social: ele não pertence mais aos que nos são iguais. Cada medida que provoca isso é suficiente. "Proscrição". O sistema penal precisa se desenvolver nessa direção! 16 (30) Zaratustra 3: Os outros devem obedecer: e sua vaidade exige que eles não pareçam dependentes de gran~es seres humanos, porém de "princípios". 16(31) A amargura em relação a nós mesmos, na vingança, transforma-se muito rapidamente, nas naturezas limitadas, em indignação contra o inimigo e no desejo de culpá-lo por algo desprezível, aviltante 16 (32)

A violência e a arrogância do poderoso em relação aos subordinados: o desenvolvimento da esperteza e da humanização vai no sentido de fazer que se torne cada vez mais espiritual essa violência e essa arrogância. Mas como poderia o poder não querer gozar a si mesmo! A relação suprema continua sendo a do sujeito criador com o seu material: essa é a última fonna de arrogância e supremacia. Só assim a forma orgânica é levada até o fim: portanto, como o corpo depende dos impulsos da vontade e usufrui ainda a si mesmo quando é mais bem dominado. 16 (34)

O mais fraco cede e submete-se quando a vingança não tem sentido. 16 (36)

Regi~tremos que o ser humano é o predador de todos os predadores! Diz-se que ele ama a si mesmo: mas isso é cordialmente pouco amor!

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16: Outono de 1883

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t6 (40) Trata-se de algo mais que presentear de faz • t·1va• er ena 1 111cnte, de violentar. Pensamento básico da segunda solidão (Início

do III.) Os nossos "presentes" são perigosos!

16(41) Dominação da humanidade com a finalidade de superá-la Superação por meio de doutri_n as em que ela se aniquila,

excetuados aqueles que a suportam. 16 (44) "Por amor causei a maior dor: agora me esvaio na dor que causei -

16 (46) Não se tem tempo para mim? Bem, então eu vou esperar. O que importa um tempo que "não tem tempo"! 16 (59) É preciso liberar a mulher na mulher! 16 (60)

Não basta pregar uma doutrina: é preciso também ainda modificar violentamente os seres humanos, para que eles a aceitem! Zaratustra acaba entendendo isso. 16 (68) A curta força motriz dos artistas - ele ficam parados na cópia do seu ideal e nc7o seguem mais o próprio ideal. Canção de escárnio. E até o público! Deveriam ser professores - esses artistas! 16 (71)

O conflito do governante é o amor aos distantes em sua luta com o amor aos próximos. Ser criador e bondade não são antíteses, porém um-e-o-mestno, mas com perspectivas distantes ou próximas.

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Fragmentos do espólio

16 (72) Os fracos precisam obedecer. 16 (75) Toda vítima que o governante gera é compensada cem vezes. 16 (76) Visão geral talvez: o próprio orgânico é a lei, nós nem podemos diferente - Determinismo absoluto. As muitas possibilidades que vemos, elas nos perturbam. 16 (77) A massa maior da energia do indivíduo é tão dispersada quanto a do sol. Ou? 16 (78) Um fato, uma obra é, para cada época e para cada nova espécie de ser humano, objeto de nova leitura. A história fala sempre

novas verdades . I 6 (81)

Além da metade da vida - sacrificada de modo irrevocável sem retorno! 16 (90)

Arrependimento: isso é vingança contra si mesmo. e esse conselho eu aconselho aos meus inimigos e a todos os espectros e espumantes: como o doutrinador do grande desprezo (no penúltimo) Como eu suportaria de outro modo ensinar-vos o grande desprezo? -

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17: Outono de 188 3

17 (1) E quando uma vez não conseguires mais suportar a vida, terás de procurar ganhá-la com carinho - esse foi sempre, afinal, o artificio dos mais sábios. De fato, o truque mais esperto de sua arte era justamente acreditar, então, em um Deus quando sentiam o diabo perto demais. Eles aprenderam a trocar os nomes: e assim eles se enganaram sobre as coisas - vede aí toda a arte dos mais sábios! Para proveito próprio, a maioria é doida demais - a sua felicidade toma-os todos doidos. Eles sacrificam tudo por uma só coisa - isso é um amor qualquer; essa obsessão e esse pendor próprio pendem sobre todos. Do seu amor emana a sua quente doideira - mas essa é péssima calculadora e despreza as virtudes do pequeno negociante. Mas a virtude do negociante e o dedo que gruda em dinheiro e o olho frio - isso está abaixo até mesmo da dignidade do animal. Tudo o que pode ser pago tem pouco valor: esse ensinamento eu cuspo na cara dos pequenos mercadores. Há coisas, mesmo que os pequenos mercadores não as conheçam - em cuja proximidade o dinheiro soa como sem-vergonhice. Dinheiro passa por todos os dedos: aprenda, por isso, a pegar dinheiro com luvas. Louvada seja a pequena pobreza: pois todos os pequenos mercadores pelejam por grande riqueza.

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17 (3) Quem sempre se resguardou muito, esse acaba adoecendo de tanto resguardo. Ele fala asperamente - mas não por ter alma áspera: cada lufada de vento faz que ele fale mais roucamente, esse delicado! A terra melhor e mais fecunda por último (dos maus)

17 (7) Oh, essas almas estreitas e abafadas dos pequenos mercadores! Quando o dinheiro pula no caixa, o negociante pula junto para dentro. Aquele do qual a alma foi um baú de dinheiro e cuja felicidade foram papéis sujos - como poderia o seu sangue ficar limpo um dia? Até a décima geração ele ainda escorre apagado e venenoso e mal-cheiroso. apagado e espumoso 17 (8) Desaprendeu-se isso: não há virtude para todos, há seres humanos superiores e inferiores: direitos iguais para todos é a mais portentosa injustiça.

17 (1 O) E se não posso viver como gostaria, então eu não gostaria de viver - assim pensa ainda o maior santo. Será que um instinto quer, então, ser satisfeito? Será que ele quer liberdade e paz de si mesmo? Será que algum querer já quis alguma vez não-querer? Que ele faça, produza criativamente, esse é o instinto de todos os instintos, essa é a pulsão de todas as pulsões: e bem também que descanse por algum tempo - para se acordar fazendo! Mas vós pervertestes a essência da vontade, tornando-a mávontade e vontade-contra-si-mesma vós interpretastes mal a voz da vontade cansada

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É então o sono uma invenção para a morte? E quem quer dormir, seria um cansado da morte? Resfo]egar e roncar pode o mais vivo. Escrevinhadores e gritalhões, vagabundos militantes, ambiciosos que soltam vapor, penetras e desavergonhados. "A virtude cotidiana basta" - é preciso aprender modéstia também na virtude

17 ( 12) Cuidado, oh ricaços: vossas pequenas caridades geram mais impaciência e indignação do que toda a avareza: pingais como garrafas bojudas com pescoços estreitos demais - com freqüência já se quebraram os pescoços de tais garrafas. Esse vizinho e sua pequena necessidade, essa cidade e sua pequena felicidade - isso alquebra lentamente a tua fortaleza: tu desaprendes a causar grandes ferimentos. 17(13)

Porcas satisfeitas ou espadachins moribundos - será que não há, afinal, nenhuma outra escolha? Um olho lascivo sobre uma alma biliosa Quando se escava o que está morto, muito do que está vivo fica doente; sob os escombros moram doenças e vapores malsãos. Os coveiros se escavam doenças, - - Começamos como imitadores e acabamos nos imitando - essa é a última infância. A compaixão do maior é dura, igual ao aperto de mãos do gigante.

Eu queria ser uma luz para eles, mas deixei-os cegos; assim lamenta todo sol, ele fura os olhos.

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34-6

Como é que passo pelo portão da cidade? dizia Zaratustra _ desaprendi a ser anão. O maior no grande é o matemo: o pai é apenas um acaso. Que elas tenham de parir significa futuro para elas; elas não entendem o que há de ser a sua felicidade - elas não exibem nenhuma "liberdade". Ao descer dos meus picos nevados encontro cada flor, sou humano demais, sou também ainda quase-anima1. Minha correria ainda me é submissa e nem sempre as criancinhas vão a quem as deixa vir. Estais tossindo, mas isso não é nenhuma objeção contra ventos fortes. A vossa bocarra b.erra: comer e beber! Vossa barriga berra junto: muito! Vosso olho lúbrico: e bem! Ah, dizia Zaratustra, eu não posso me permitir o inferno - o submundo, no qual tudo o que é morto se levanta contra mim, e mesmo as sombras dizem ainda: vida é tortura. Vossas doenças levantam-se contra vós e acusam-vos por causa das virtudes de que vos vangloriais Em vossas opiniões públicas, estais ainda mais doentes do que em vossas mulheres públicas: e justamente essas são as vossas doenças mais secretas. Há uma grande hipocrisia entre vós: aqueles que mandam fingem as virtudes dos que obedecem

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17: Outono de 1883

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Nascido para dominar, mas onde poderia eu encontrar um mestre da dominação? Então procuro convencer onde eu deveria mandar! Convencer é, porém, a lisonja do mais elevado em relação ao inferior e do senhor em relação - - E só quando tudo vai de acordo com a nossa vontade, tudo também anda de acordo com o nosso desejo. Retorce-se como diante de um martírio: não falou, assume o martírio de ficar calado. Oh, Zaratustra, defensor da vida! Tu precisas ser também defensor do sofrimento! Os seres humanos precisam se tomar mais maldosos. Zaratustra 4, esse é para mim o maior sofrimento - eu preciso torná-los mais maldosos! E, onde vejo os dedos longos do pequeno mercador, prefiro ficar nap10r. O negro e triste mar jaz diante de ti - também por isso tens de passar! viver entre anões Vejo casas comprimidas - uma criança tirou-as decerto da caixa. Almas reprimidas No escuro sente-se o tempo de modo diferente do que no claro. corrompido por muitos pequenos êxitos - ele teve um jogo cada vez mais fácil - confiante e franco, mas baixo feito uma porta pela qual um grande não entra. A sábia capacidade de olvidar e a arte de navegar com qualquer vento - duas novas virtudes. Só quem navega com metas tem ventos propícios.

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Venc'er o acaso pela astúcia e conduzi-lo pela mão - deixai vir a mim o acaso, ele é inocente feito uma criancinha. O ensinamento da vida Zaratustra 4 terrível-ditirâmbico Semente da vida lançada de estrela em estrela. Beleza esconde o homem - lisa e dura, é preciso carregar consigo a própria solidão secreta na multidão. "dói, portanto é ruim" - essa é a mais antiga e a mais recente conclusão e a mais comum de todas as coisas comuns. Desde que entendi a origem do que é ruim, fico rindo sobre toda a conversa em torno de bem e mal. Além do bem e do mal. Eu reverencio a virtude, quando ela é a cautela da gravidez: mas o que me importa a virtude dos estéreis! 17 (19)

O que murmuras contra ti mesmo? 17 (20) uma pequena comunidade encolhida, e sua mal disfarçada presunção

Z[aratustra] o sem-deus? És perseguido, a tua cabeça foi posta a prêmio Ora, que sejamos bem perseguidos: até agora o êxito sempre esteve com bem per[seguidos] 17 (21)

~e onde_ nos vem Zaratustra? Quem são dele pai e mãe? Destino e nsada sao de Zaratustra pai e mãe: o destino terrível e a risada amável geraram tal criatura.

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_________ l _7:_o __ut.::..::o...:.:n=o....:d:.::e:_1~8~8::3~_ _ _ _ _ __:3~49

Euforia como o secreto gozo antecipado da morte. "Eu procuro Zaratustra. Zaratustra perdeu-se de mim.

I 7 (25) bem perseguido, mal cativo! sangue apodrecido,_morno, espumante vós quisestes tirar a selvageria do ser humano, mas o enfraquecestes do lobo fizestes o cão, e do próprio ser humano o melhor animal doméstico do ser humano 17 (30) Há atores sem saber e atores contra a vontade. Alguns querem: mas a maioria só é mandada. No dedinho mais esquerdo, ter ainda mais sentido para o correto do que eles na sua cabeça Enquanto o egoísmo for considerado basicamente mau,jamais podereis derivar honestamente dele algo bom - e honestamente vós tendes de derivar tudo dele. Daí tenho eu o orgânico-moral. 17 (32)

não chegar a ser queimado por suas crenças, mas por suas dúvidas! Tu cavalgas rápido para a meta; mas o teu pé aleijado há de chegar ao mesmo tempo contigo! Moral seria fazer o bem ao próximo? Mas para isso precisarias já saber o que é bom p ara ele!

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17 (35) Profundamente desconfiado com o destino, pronto para decisões repentinas, malgovernado Amo eu os seres humanos? Eu me amo? Mas eles pertencem aos meus projetos, como eu. 17 (38) Essa é a escolha, diante da qual me coloquei: o que eu não quis antes, isso eu tenho de querer depois (fazer as pazes, fazer um acréscimo - fazer um dique - mas ficar olhando se eu posso fazer isso! 17 ( 46) eles querem aprender a brincar, e nem sequer ainda aprenderam a seriedade. Já se poderia voar - mas primeiro precisas saber dançar como um anJo. Na virtude, nada de saltos! Mas um outro caminho para cada um! Não, porém, qualquer um para o mais elevado! Mas cada um pode ser, no entanto, uma ponte e um ensinamento para os outros! 17 ( 47) Talvez não seja justamente agora permitido pensar assim sobre o sentido e o valor da arte e dos artistas como o faço aqui: talvez escrever assim como escrevo - ainda menos: talvez eu tenha de purgar por várias coisas. 17 (48)

Uma pequena luz, mas todavia um grande consolo

necessária a desconfiança profitnda ( em relação à natureza) a formação de seres humanos fortes.

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17: Outono de 1883

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Façais.. o que quiserdes - desde que se!iai·s da que Ies que sabem 'J querer e nao paus-mandados. Amai o vosso próximo como a vós mesmos, desde que vos ameis a vós mesmos

17 (49) O atual ser humano médio é o meu maior inimigo - agradeço a Rée por tê-lo conhecido. Ele não tinha caráter: de que adianta? Então, ele tinha de se roubar um. 17 (50) Não acreditar em Deus. Portanto, as coisas não andam como Deus quer. (Contra a covarde resignação que tomou fracos os seres humanos: contra isso professo uma profunda desconfiança.) 17 (57) O pensamento de que a moral deve a sua origem aos legisladores e que - - 17 (58) Afastai-vos de todo meio querer: sede decididos para a preguiça e para a ação. E quem quer ser raio precisa longamente ser nuvem. Tendes de aprender o longo silêncio: e ninguém deve poder vos ver no fundo. Mas não porque a vossa água seja turva e vosso rosto seja fechado, mas porque o vosso fundamento é fundo demais. 17 (59) E quem namora as virtudes dos fortes, precisa desistir das virtudes dos fracos: e que não haja desprezo em vossa desistência. Como queres aprender a dançar se nem sequer aprendeste a andar? E acima do dançarino está ainda aquele que voa e sua beatitude

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Fragmentos do espólio

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Já sinto que estou sonhando: estou então bem perto de acordar? Só se deve furtar onde não se pode roubar: assim a lei da honra entre canalhas. 17 (65) Maldição de que os melhores se retraíram, sem filhos. 17 (70) E quem mais desprezou até hoje os seres humanos - não foi ele, por isso, sempre o seu maior benfeitor? Retirai a criança - o seu olhar mata! 17 (71) envolto numa nuvem negra - eu vos trago a peste? a eterna satisfação jogou-se em sua antítese 17 (72) os jornalistas como ladrões de cadáveres, tirando algo dos semimortos e mortos Zaratustra 4 "deixai vir a mim!" "Trazes boa-nova: o pantanal se move" Se o homem superior não for senhor do povo, pequenos negociantes serão. Fala cedo e à noitinha: desprezo os pequenos negociantes, quero quebrar os seus dedos. Antes ainda comerciar do que comerciantes! contra os professores que não são modelares Conclusão Veja, essa é a bem-aventurança contra a vontade

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17: Outono de 188 3

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17 (73)

A. Blanqui I'éten1ité par les astres Paris 1872

17 (74) os sofrimentos do mais elevado com as imperfeições do mais baixo [o sofrimento] de Deus com a h[ umanidadeJ soubestes estrangular a ambição neles: serdes os últimos entre vós - isso lhes dá mais prazer do que serem os primeiros O sofrimento do ser humano mais elevado não é o seu mais baixo, porém que exista mais elevado ainda

17 (76) Arranjar-se inimigos cada vez mais espiritualizados - ou tudo fica fosco Será que eu vim para tomar felizes os seres humanos? Quem busca volúpia há de encontrar pouca - mesmo que seja para outros A volúpia é uma fêmea : ela corre atrás de quem a despreza.

17 (78) calculais a felicidade e esqueceis aí todo o vindouro Conta falsa em relação àfelicidade - é preciso querer a infelicidade. sacrificar a felicidade dos conterrâneos em prol dos futuros seres humanos. Perguntai às mulheres: não se pare porque dá prazer. 17 (82)

- como os sons do sino correm sobre sapatos macios -

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Fragmentos do espólio

E se o orvalho faz nossas almas estralarem e rangerem, então rejubilamo-nos: e nós não louvamos a terra em que manteiga e mel correm. Num corpo de gelo escondida uma gota preciosa de vinho doce e forte - isso é para mim a felicidade - sim, se deuses houvesse, eles ficariam com inveja de mim por essa gota. E se alguém quiser se deitar em nosso sol, então ritnos cheios de dúvidas, perguntando-nos: seremos feitos para tomarmos felizes?! Felicidade é para nós a grande exceção e maravilha: trememos diante dela e nos tememos dentro dela, nós a cutucamos suavemente à nossa frente como um amante desconfiado. 17 (83)

astuto como portas que se abrem em segredo para que um vento ladrão passe por elas 17 (84)

Contemplai esse céu azul! Não engoliu e bebeu ele todas as estrelas para dentro de si - e ainda assim reencontrou a sua inocência? . Minha felicidade desceu outrora para o vale, procurando um abrigo, mmha doce e abrasiva felicidade pessoal, daí encontrei essas almas puras dispostas como portões hospitaleiros. Ai, aí ele se mexe e me enche de minhocas, n1eu néscio minhoco e abismo de pensamentos!

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18: Outono de 188 3

18 (1) Se não sabes rezar, por que não xingas, ao menos? Não vês que lutamos pela vida? Eu te temo porque tu mordes, enquanto nós lutamos pela vida: tu pareces alguém que tem certeza de sua vida. Ou de sua morte - dizia Zaratustra.

E, se escaparmos dessa, vou querer dizer: "não há nenhum Deus - e Zaratustra me ensinou isso". Eu perdôo a tua desconfiança, mas não te dou nada pela tua confiança. Em todas as coisas encontrei uma altivez que chamei de divina. E porque encontrei essa altivez também na minha alma, chamo também a minha alma de divina. Tu acreditas em milagres e em fazedores de milagres; a verdadeira necessidade iria te ensinar até mesmo a rezar. Os velhos falsários do espírito falsificaram até mesmo o teu entendimento. Ele põe a mão em milênios. 18 (8) Uma pequena canção, mas um grande consolo para quem pode cantá-Ia: e na verdade é preciso ser um bom pássaro canoro!

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Fragmentos do espólio

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18 (9) Um excesso de sofrimento havia nele: isso rebentou e escorreu para um mar do paternal. Ao mar de todo o paternal ele chamou de Deus - homens corretos chamaram-no então de blasfemador de Deus. 18 (12) Quando o ouro tilinta, a puta pisca os olhos. E há mais putas do que moedas de ouro. Quem é venal, a esse chamo de puta. E há mais venais que moedas de ouro. 18 (13) Desprezo a vida supremamente: e eu amo a vida ao máximo: não há nisso nenhum contra-senso - nenhuma contradição. Tortura do coração 18(14)

§ Minha cabeça é boba, mas meu coração é sábio. § Tudo vai e se esvai - tudo retorna. - e o ir e se esvair retoma ele mesmo Esse agora aí já era - inúmeras vezes já era Esse ensinamento jamais foi ensinado. Como? Inúmeras vezes ele já foi ensinado - inúmeras vezes ensinou-o Zaratustra. 18 (15) A dor ensina galinhas e artistas a cacarejar. Perguntem às mulheres: não se dá cria por ser divertido. Vi uma pilha de lenha amontoada: humilde e oprimida ela esperava a centelha: o seu próprio peso a oprimia Aos garotos ela soprou o seu desejo: com o céu da boca seco, ela estertorou a sua palavra, mas os garotos não a escutaram. Para garotos é p · · b · . reciso gritar: a nr sempre à força a porta de seus ouvidos e olhos

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18: Outono de 1883

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18 (16) No mundo mais idiota, já uma pequena razão contém indizível prazer. Com freqüência, já não sei mais o que devo afastar de prefiro jogar-me dentro e me tentar e testar.

mim· '

A energia sempre crescente de me transformar em mim. Se houvesse um Deus, o mundo não poderia ser pensado idiota o suficiente para Ele.

18 (17) com grandeza encarar a dor- com freqüência só o terceiro sexo resolve a nossa dor, ou seja, uma nova força lhe cresce. com grandeza em vista do vindouro - e essa é a grandeza de quem cria, de quem mais ama a sua obra do que o seu hoje. os satisfeitos como os mais perigosos (satisfeitos com os ideais dados), até os melancólicos satisfeitos.

18 (24) Se tens tua virtude nas orelhas, então cuida como vais agüentar a barulhenta vida. Somos punidos principalmente em virtude das nossas virtudes. 18 (26) Quantas cavernas têm a vida! Nosso costume de cavernas, nossa saudade delas - um percurso por estreitos duetos sombrios 18 (27) Tu raio, diamante cortante, ziguezague de ouro! Responde-me, para que eu veja se tu és cortante e afiado apenas na aparência. Com freqüência vi em ti um pensador - porque, como tu, o pensamento percorre nuvens: e, como tu, o pensamento acorda o trovão, que atrás das nuvens donne e ronca o seu rancor. 18 (28) Em pleno dia aprendi a caminhar: a caminhar sobre pés firmes em pleno dia.

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Fragmentos do espólio

Ao donnir e em sonhos - diga-me, o que aprendi que me anime também ao dormir e ao sonhar? 18 (34)

Todos falam, tudo vira falação; e o que hoje ainda parece duro demais para o dente da época, já estará amanhã estraçalhado e esculhambado, pendendo para fora de cem bocas. Todos falam, tudo deixa de ser escutado; pode-se repenicar a sua sabedoria com sinos, os pequenos comerciantes no mercado hão de abafar o seu som com centavos. Todos falam, ninguém quer escutar. Todas as águas murmuram para o mar, todo regato só escuta o próprio murmúrio. Todos falam, ninguém quer entender. Tudo cai na água, mas nada cai em poços profundos. Todos falam, todos julgam poder julgar. Injustiça é perseguidabem perseguida, mas mal pega. Todos falam, nada avança; todos cacarejam, mas ninguém quer pôr ovos. Oh, meus irmãos! Que não venhais a aprender silêncio de mim. E solidão! Todos falam, ninguém sabe dizer. Todos correm, ninguém mais aprende a andar. Todos falam, ninguém me ouve cantar: oh, que venhais a aprender quietude e silêncio de mim! E o sofrimento da solidão! 18 (35) Com os deuses, há muito já se está no fim : eles todos moo-eram - de rir. Isso ocorreu quando começou a rodar o dito mais ateu já vindo de um deus - o dito: tu não deverás ter nenhum outro deus além de mim: uma velha barba iracunda de Deus esqueceu portanto a si. pobr: jamais fora um deus em seu ciúme a ponto de impor: tu nao deveras ter nenhum outro deus além de mitn!" E todos os deuses riram então e se sacudiram nas cadeiras e exclamaram·· "Não sera' JUS · tamente d'1vmo • que haja deuses mas nenhum Deus único?" '

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l 8: Outono de 1883 359 -------.:....:..:..:.:.:.:::__~~---~

Tu, bu~0 Zaratus~ra, quão divinamente falaste ao último ser humano que ainda acredita em Deus!

I8 (37)

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E como poderia eu te dissuadir disso, oh coração de leão! Pois leio todo o teu querer em teus olhos.

18 (39) Essa é a minha palavra, que queria me estrangular!! Essa é a minha serpente, que me arrastou ao sorvedouro

18 (40 Minha tarefa mais pesada eu aprendi a fazer escondido: quem tinha olhos quando eu me pus a navegar sozinho na direção de terríveis mares novos? E quando dei as costas a todos os deuses amados, quem me viu andar! Sem ser visto, pus-me a andar na direção dos ardores dos desertos. 18 ( 42) E sempre que eu repensava a minha solidão, era sempre, no entanto, quando eu falava de longe: "oh, boa solidão! " 18 (43) "O ser humano é algo que precisa ser superado": isso soa em meus ouvidos como uma sorridente sabedoria dançante. Mas eles acham que eu digo que eles deveriam - arrastar-se para a cn1z! De fato: antes de aprender a dançar, é preciso aprender a caminhar. 18 (44) Viver por amor ao futuro § quebrar as tábuas da lei 18 (49) O ser humano é algo que precisa ser superado: esse é o ensinamento da vida como a grande auto-superação.

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Fragmentos do espólio

18 (50) . Eu sou fazedor de leis, escrevo algo novo em mmhas tábuas; para os próprios legisladores, sou lei e tábua e proclamação de arauto. 18 (53) Encontrei pelo meu caminho suas longas orelhas de jumento encontrei ainda minha serpente: a cabeça, ela já tinha perdido. 18 (56) o próprio ser humano superado foi o pai do ser-acima-dohumano. Por isso ensino e não me canso de ensinar: o ser humano é algo que precisa ser superado: pois vede, eu sei que ele pode ser superado - eu o vi, o ser-acima-do-humano. 18 (58) Quanto calor conseguimos - reter 18 (60) Pois que sóis teriam descambado e que outrora ainda brilhavam para ti nas alturas e na inocência dos teus cumes! 18(61) O que é comum à videira e à tempestade, algo indizível - até nisso tens de ser videira e tempestade.

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19: Outono de 1883

19 (1)

Consolo 1) que tanta coisa não pode ser adivinhada 2) que tanta coisa precisa ser reparada.

Prometendo amor para um malvado que sofre Trilhas do mar

quebrando antigas tábuas da lei 19 (5) Oh, meus irmãos, por conta da maldade quero fazer uma vez como pequenos retirantes: vede, eu os desenho aqui na areia! Que venha alguém e os recolha e leia na areia! A alguns, uma crença qualquer já deixa bem-aventurados: ora, sirvam-se então!

Oh, meus irmãos. Entre vós há daqueles que sabem aniquilar pelo riso - fazer morrer de rir! E, de fato, bem que se pode matar de rir! A esses eu digo que ajam de acordo com o meu exemplo: para eles apareço como o seu intróito. E aqueles que não têm descanso de maneira nenhuma, exceto se eles finalmente virem o mundo de trás, eu aconselho: não seria o mundo uma diabrura de Deus?

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19 (6) no riso, todos os instintos maus são sacralizados: mas que todo o pesado se tome leve 19 (7) . E toda vez que o leão ria, Zaratustra sentia-se comovido como nunca antes, de tal maneira que pôs a mão no coração: pois era para ele sempre como se uma pedra lhe caísse do coração e mais uma pedra e novamente uma pedra. 19 (9) Tu te mexes, te esticas? - Tu estertoras. Não há mais nada novo - estertoras em agonia - deixa-me dormir! É isso: não há m_ais nada novo, tu és isso mesmo, pensamento abissal: agora estás acordado! 19 (11) O que não se tem, mas de que se necessita, disso é preciso se apossar: por isso me apossei da consciência tranqüila.

19 ( 12) Sou entre eles como o diamante entre carvões de lenha: eles não me acreditam quando digo: oh, meus irmãos! Somos parentes tão próximos! 19 (I 3) Propício ao mar e a tudo o que for de espécie marítima, ele há de ser mais propício justamente quando isso nos contradiz 19 (16) Animais do mato De futuros cantos tua saudade [-]

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20: Outono

de 1883

20 (1) Tu percorres o caminho da grandeza: para ti já está decidido: em um só, abismo e - ápice. Não olhes ao redor: Que a tua melhor coragem seja atrás de ti não haver mais nenhum caminho. · Aqui ninguém deverá seguir-te em segredo: onde apenas o teu pé pisou, aí o caminho estará apagado e sobre ele escrito: "impossibilidade". Agora se tomou o teu último refúgio o que até há pouco era o teu último perigo. Já se passou o tempo em que tu ainda podias ser desejo: o que tu ainda és tem de ser mão e vontade e garra do querer. Alguns querem, mas a maioria é apenas objeto do _querer. E tudo o que há de bom tu precisas te conceder como alguém que até poderia renunciar a isso. Há atores sem consciência de que são e há atores contra a vontade. Que nós pudéssemos suportar a nossa imortalidade - isso seria o máximo. Será que eu vim para ensinar às gentes pequenas as suas pequenas virtudes? Elas já sabem encontrá-las por si mesmas e ficam me cobrando caro que o seu achado não me deixe com inveja.

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21: Outono de 1883

21 (4) Coro dos ateus (superação das Igrejas) Coro dos corretos (superação da tartufaria moral) Coro dos penitentes do espírito (superação da vaidade idealista) Das ordenações do coração de pedra (superação da compaixão) Os bufões. 1. Novo ordenamento do ser humano e nova distribuição dos direitos. 2. A necessidade de escravos. Visitas a Zaratustra, a lhe pedir ajuda 1. rebelião geral dos escravos 2. o amolecimento dos corações, fraqueza 3. a desertificação e a loucura a felicidade da comunidade (mas os solitários é que a usufruem!) a felicidade dos sinceros (contra todo o esforço do jogo de esconde-esconde). Os prenúncios. o incêndio da cidade grande. 21 (5)

finito como espaço: infinito como tempo com a indestrutibilidade está dada a eternidade e a ausência de início com a determinação um limite à multiplicidade de novas formas.

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21 (6)

.

.

o ser humano é aquilo que precisa ser superado. Aquz seguro o

martelo que o supera! Esse ponto de vista é abençoado por Zaratustra no final da III parte. ele amadurece com isso. as escapulidas e as tentativas de fuga diante do supremo pensamento: nirvana, inebriar o pensamento no nada. · a miraculosa metamorfose no além e depois continuar a viver eternamente (no cristianismo) a bestificação como bien public - conseqüênc ia dos eudemonistas socialistas jesuítas etc. ó ceticismo absoluto quanto ao nosso espírito e o prático deixar-correr. "O que sei eu do agir!" o determinismo: eu mesmo sou o fado e determino a existência há eternidades. Muitos instintos e pulsões lutam em mim pela predominância. nisso eu sou uma cópia de tudo o que vive e posso me explicar ISSO.

De repente se abre a terrível câmara da verdade. Há uma inconsciente autodefesa, cautela, precaução, camuflagem, proteção diante do reconhecimento mais pesado: assim vivi eu até agora. Eu me silenciei algo; mas o ficar manifestando incansavelmente e ficar rodando pedras por aí tornou superpoderoso o meu instinto. Agora rodopio a última pedra: a verdade mais terrível ainda está à minha

frente.

I. Esconjurar a verdade de dentro do túmulo. Nós a fabricamos, nós a despertamos: manifestação suprema da coragem e da sensação de poder. Menosprezo de todo o pessimismo pretérito! Lutamos contra ele - descobrimos que o nosso único meio de suportá-lo é fabricar um ente que o suporte: exceto se nós voluntariamente nos cegássemos

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21 : Outono de 1883

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de novo, tomando-nos cegos diante dele. Mas disso não somos mais capazes! decepar a cabeça da serpente mordendo! . formulamos o pensamento mais pesado - deixai-nos elaborar agora o ente para o qual ele é leve e abençoado! Para poder produzir, precisamos nos dar mais liberdade do que jamais nos foi dada até hoje; além disso, libertar..se da moral e ficar aliviado por meio de festas (premonições do futuro! celebrar o futuro, não o passado! inventar o mito do futuro! viver na esperança!) Instantes abençoados! E daí novamente fechar o pano e firmar os pensamentos, mobilizar as metas seguintes!

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22: Final

de 1883

22 (1) Sozinho comigo e com minha consciência jubilosa Numa pequena ilha terias os teus amigos por perto e os teus inimigos entre eles: quão doce é a_mar e odiar! Será que o pai não precisa se contrapor ao filho até mesmo no que tem de melhor? E quem uma vez conquistot: um direito, por amor não deve dar esse direito nem mesmo ao próprio filho. Nós somos punidos mais duramente por nossas virtudes. E aprende, portanto, a adivinhar onde reside a tua virtude: lá onde foste mais duramente punido. Dias solitários querem caminhar s~bre pés corajosos. Clarividente me tomei: uma espada diamantina me estraçalha toda a escuridão. O antibrilho da sua alegria voou como sombras sobre mim: e quando se sentiram fortes e com o pé seguro, serpentearam por mim a desconfiança e sua irmã, a fraqueza. É preciso redimir a mulher na mulher! E que a mulher possa

desejar o homem, mas não a masculinidade!

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Ainda não se tem tempo para mim. Mas o que importa um tempo que não tem tempo para Zaratustra! Dizem-me que o ser humano ama a si mes1no? Será isso verdadeiro? Sempre ainda achei o ser humano, inclusive em relação a si mesmo, como o predador de todos os predadores. "O que Zaratustra detenninou, há de acontecer: como poderia a sua grande alma alterar a sua decisão!" Tem piedade com o teu pé, para que ele não pise no lodo: e por isso nem sequer deves pisar com o pé quem traiu o seu amigo. Nisso eu reconheço o super-rico: agradece a quem dele tira. Esse é para mim o verdadeiro orador e superorador: aquele que passa as próprias razões na conversa para correrem atrás dele. Rápido bastante cavalgas para a tua meta: mas o teu pé aleijado também está em cima do cavalo e há de chegar ao mesmo tempo contigo. Esse é o meu temor para contigo: justamente quando estiveres no teu apogeu, hás de tropeçar! Há atores inconscientes e há atores involuntários. Alguns têm querer, mas a maioria é apenas pau-mandado.

Já se foi o tempo em que tu ainda podias ter desejos. As pequenas virtudes são necessárias para pessoas pequenas: mas quem me convence a crer que pessoas pequenas são necessárias! Tu não tens invejas de suas virtudes - isso eles não te perdoam jamais!

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V

22: Final de 188

3 -----------~~~=---=~~--------...:3~7~1

mo

Tu estás no caminho da grandeza. ora t, d . . · es a ec1d1do, para ti· ab'ise ápice unos.

Não olhes mais ao redor: que se,a tua d d . • • 'J erra eira coragem n ~ haver mais caminho nenhum atrás de ti. ao Aqui ninguém deve te seguir em segredo· 0 d , . , . , · n e apenas o teu pe · 'b'l'd Pisou, a1 o caminho esta apagado , . e sobre ele escri' to·. 1mpossi 1 1 ade. Agora. se tornou o teu ultnno refúgio o qtie antes era para t·1o teu último pengo. Essa é a sua idiotia: ele não consegue suportar todos as advertências e vozes de pássaros - ele corre para o seu abismo por ter sido advertido quanto a ele. "Acaso" é como os fracos chamam a isso. Mas eu vos digo: o que poderia recair sobre mim que não coagisse a minha gravidade e não atraísse para si? Vejam como eu me cozinho cada acaso primeiro no meu caldo: e quando está pronto, ele significa para mim "minha vontade e meu destino". O que é estranho ao meu corpo e à minha vontade no meu acaso, como poderia eu oferecer-lhe hospitalidade! Pois vejam, apenas amigos vão até o amigo. Mesmo da minha felicidade saíram voando pássaros alertadores. Soberana veio a vivência: mas minha vontade lhe falou- e já ela estava suplicante de joelhos. Queres te tornar um choque para quem caminha? Queres ficar claudicando por aí, diante daquele que tem pressa? , · I ra a firente precisamos esA quem olha para tras e camm rn pa ' ' . ~ • · idt'qtie com mentiras os seus barrar no corpo: para que nao mais preJt olhos por meio dos pés. "J a, vai. d ar,,, d'1ze1s . vos, , a comodados·· mas a própria . acomodação .1 . , d -t mar ainda mais para s1. t orna sempre para s1 e sempre 11a e 0

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Também o que deixamos de lado tece no tecido de todo o futuro: também o nosso nada é mestre-tecelão e fa2edor de teias. Muitos estavam cansados de si mesmos: e só então buscou-os a felicidade que lhes havia sido poupada - mas ela correu sempre sobre pés rápidos demais! Tereis de espirrar por causa da minha bebida: meus vinhos espumantes devem fazer cócegas em vossos narizes e deixar-vos animados. Perguntai ao,.m eu pé se me agrada a vossa maneira de ser: pois o dançarino tem a orelha no dedo do pé. Essa é a minha última 1-mmanidade: eu, o mais suave, tomei-me o mais duro Será que me deitei na cama em cima da minha fama? De pregos foi a cama em que se deitou minha fama. Não serei eu a mudança de clima? Não estão vindo todos os ventos a mim e anunciando-me a sua vontade? E agor~ queimam até mesmo o gelo e a inocência dos meus cumes. Ainda pareço o galo em terreiro estranho, bicado até pelas galinhas. Há mais injustiça em vossa veneração do que em vosso desprezo Fazei como eu: só aprende quem faz; e só como fazedor eu quero ser vosso professor. Que um raio caia em vossa comida! Que as vossas bocarras aprendam primeiro a comer fogo!

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22: Final de 18 83

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Ergueis murmúrios contra mim com 0 on das.. mas eu bato em vossas cabeças com . . . o meu remo. Vede ' esta·ts 1evan do o meu barqmnho para a 11nortahdade. Eis aí a n1inha vontade: nela se quebram ate' mesmo as on das do meu orgulho. Quero fazer de vós serpentes de fogo e profetas de línguas de fogo: mas até agora fostes apenas grama ressequida e estepe. No olho escuro, ouro brilha: um barco dourado navega nele sobre águas negras. Atores não têm tempo de esperar por justiça: e eu fiquei olhando com freqüência os impacientes para ver se não seriam atores. Todos eles querem perdurar - e a isso chamam de eqüidade. E "equiparação" - proteger demais - assim são uns: ceder demais - os outros Só se deve surrupiar quando não se pode assaltar: assim fala a

voz da honra entre gatunos Já sinto que estou sonhando: já estou então perto de acordar? Como queres tu aprender a dançar se nem sequer apr~ndeste primeiro a andar? Mas acima do dançarino está ainda aquele que voa e a beatitude do alto e baixo. E quem corteja as virtudes do forte não precisa olhar com desejo para as virtudes dos fracos, mas passar rigorosamente ao largo dessas belas beldades. Ah, que creias ter de desprezar aquilo que tu simplesmente

abandonaste!

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Um dia notei que eu havia perdido a minha paciência: daí saí a procurá-la - e procurei bastante. Mas acreditais, meus amigos, que eu a teria de fato novamente encontrado? Pelo contrário: mas encontrei tanto a caminho em minha viagem que preciso vos contar sobre isso - e juro, já agora em nosso pritneiro passeio, que ireis perder a vossa paciência. - E não precisais supor que eu o queira diferente: pois o melhor de tudo o que aprendi e encontrei, entrementes, é justamente isso: "para muitos chegou a época de perder a paciência". E sobretudo para vós, meus amigos! Evitai todo semiquerer e estai prontos tanto para a omissão quanto para a ação. E, quem quiser um dia despejar raios, precisa pender longamente no céu feito nuvem. Deveis aprender o lcngo silêncio; e ninguém vos deve ver até o fundo. E não são os melhores silenciadores esses que escondem o rosto com véus e tornam sombria a sua água para que não se possa ver através dela. Mas os claros, os honrados, os transparentes são os melhores silenciadores, cujo fundo é tão fundo que ele não é revelado nem pela água mais clara. Neles o silêncio não se revela como silêncio. Ainda é cedo demais para mim: por enquanto f-tti apenas o meu próprio precursor e grito de arauto. Não deves vadear o lodo alheio: a tua arte seria, porém, rápido correr por cima dele como um olhar divino de desprezo. Todas as coisas bem perseguidas até hoje tiveram êxito. Minhas covas abriram-se, minha dor enterrada viva ressuscitou. Sob lençóis funerários ela havia se escondido para ficar donnindo por inteiro - para agora, ai de mim, acordar por inteiro!

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------------=2..::2.:..:~F~in~a~l_:d~e~l8~8~3

Minha felicidade corre atrás de mim, . dizia . . Zar tu t . porque eu nao corro atrás das mulh ª s ra - isso ocorre . eres vulgares· e .. uma mulherzinha. · e a 1e1icidade é E tanto o ser humano se rebaixou d'iante de Deus e fi01· t · contra si mesmo que ele agora quer ter uma vmgança . mortal·eimoso e or isso, aquele que tudo via teve de morrer! · 'P A vingança no testemunho e na geração __ , Eis a as~úc~a n_a pudicí~ia: ela quer fazer crer a si mesma que so foge da violencia; e aqutlo de que ela mais gostaria tem de ser somente um ceder e o desespero da parte mais fraca. Quem nada tem a fazer tem muito afazer com um nada. O que eu não quero que vós me façais, por que não poderia eu fazer a vós? E, na verdade, isso que eu tenho de fazer a vós, justamente isso vós não podeis fazer a mim! Todos eles não têm caráter: de que adianta! eles tiveram de se roubar um. Fazer sempre o que se quer: mas ser primeiro daqueles que sabem querer! Amai sim o vosso próximo como a vós mesmos: mas primeiro sejais daqueles que amam a si mesmos Uma luz pequena, mas mesmo assim um grande consolo pata o navegador que a noite quer trair ao mar selvagem. Olvidar: esse é um talento divino. E quem quer subir às alturas e · · · fit1ndezas e tornar-se leve voar, precisa Jogar muito lastro nas pro ' isso eu chamo de divina leviandade. d tros Mas dois seres huma· 1erer bem' nos juntos - como poderiam eles nao se qt · . ,..

.

A distancia pensa-se ma1uns os ou

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A solidão amadurece: ela não planta. Ai de ti, quiseste comprá-lo, mas ofereceste tão pouco, e agora tornaste a sua virtude mais forte porque ela uma vez disse não. Humildemente abraçar uma pequena felicidade e, daí, já ficar humildemente de olho em uma nova felicidade Mesmo nas prisões revoaram a minha liberdade e sua nova ânsia. Tanta bondade, tanta fraqueza eu vejo: e vós sois corretos e gentis uns com os outros como pequenos grãos de areia. A finalidade é o qae dessacraliza toda coisa e todo fazer: pois o que é sacralidade, se e!a não está no coração e na consciência da coisa e do fazer! Eu quero que tu não faças coisa alguma "para" ou "porque" ou "a fim de" - mas cada coisa em função da coisa e por amor a ela. E se alguém desprezou profundamente os seres humanos - será que ele não foi justamente por isso sempre o seu maior benfeitor? "O que quer essa sombria nuvem de ser humano? Quer nos trazer a peste!" "Retirai as crianças: tais olhos chamuscam ahnas jovens." Falais falsamente de acontecimentos e acasos! Jamais há de vos acontecer algo diferente a vós do que vós mesmos! E aquilo que chamais de acaso - vós mesmos sois aquilo que vos recai e que sobre vós cai! Minha alegria estava quente sobre mim ao meio-dia 1neu sol bebeu sedento no ma1· , · de ' nuvens e ' - ,agora c11egam d e I'a uma noite ventos repentinos. Bem sabeis de onde vêm os ventos e para onde eles sopram

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22: Final de 188

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plantar a sua vontade para que se tom , e uma arvore alta e ainda uma gera d ora d e sombras para gerações ct· t t IS an es - uma vontade longa.1 Mas o que é isso que chamais de vossa consciência? N~ · t d . . ao uma Je1, e sim que en es necessidade de uma lei e de u b , 'b · m raço que sustentem a vos, e nos tropeçantes!

·

"macio, fugaz, humilde" devo ficar aí parado, xingando a sorte meretriz? Ou a "natureza madrasta"? Com louvores e críticas puxas uma cerca em tomo de ti. E se tu não consegues suportar a vida, precisas procurar conquistá-la com carinho - esse foi sempre, afinal, o artificio dos mais sábios. O jeito mais afoito de sua arte era, quando eles sentiam o diabo perto demais, acreditar em Deus. Eles aprenderam a trocar os nomes: e assim se enganaram sobre as coisas. Vede aí toda a arte dos mais sábios! Para proveito próprio, a maioria é louca demais: a sua felicidade toma-os todos loucos. Eles sacrificam tudo por !.!ma só coisa - isso é um amor qualquer. Essa pendência e esse pendor pessoal pendem sobre todos. Do seu amor emana a sua quente doidice - mas essa é má calculista e despreza as virtudes do pequeno mercador. A virtude do pequeno mercador, em especial do mercador cujo dedo gruda em dinheiro e cujo olho é cheio de cobiça - isso está abaixo até da dignidade do animal. Tudo o que pode ser pago tem pouco valor: essa doutrina eu cuspo na cara do pequeno negociante.

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Dinheiro passa por todos os dedos: por isso aprende a pegar com luvas dinheiro e cambistas. Louvada seja a pequena pobreza: pois todos os pequenos negociantes pelejam por grande riqueza. . . Onde ressoa o dinheiro, a prostituta ve1n pruneiro. Quem sempre muito se poupou, esse acaba adoecendo de tanto se poupar. Ele fala roucamente, mas não de uma garganta rouca; cada corrente de ar faz que fale mais rouco, esse delicado! E muitas vezes não se ensina fortaleza ao desesperado, exceto na medida em que se fala a ele de sua fraqueza. Comilões uns, borboleteantes degustadores outros - desprezíveis ambos. Educador e punidor. Formador e deformador. Oh, essas almas estreitas de pequenos negociantes! Quando o dinheiro salta no caixa, a alma do pequeno negociante salta junto lá dentro. Aquele cuja altna foi mna burra de dinheiro e cuja felicidade foram papéis sujos - como poderia o seu sangue ficar li1npo u1n dia? Até a décima geração, ele ainda escorre frouxo e venenoso e mal-cheiroso: dos pequenos negociantes os descendentes são indecentes. Dos escrevinhadores e dos gritalhões. Dos professores de um dia só. Fuja de mim, meu tentador, dizia Zaratustra ao velho, beijandolhe, ao. mesmo tempo a mao ~ t ." . . 1en1u1a, e 1e ficou sornndo c01n suas propnas palavras, pois lhe veio uma lembrança.

É ª época das pessoas pequenas.

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22: Final de 1883

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Ter ainda mais senso para O certo no d d . e o mais esquerdo do pé que aqueloutro tem na própria cabeça.

Coro dos idiotas, i. é, dos sábios que temporariamente se sentem se1n saber e idiotas.

Coro dos pobres, i. é, dos limitados supérfluos, cujo jugo é fácil. - Emerson, p. 2 83. Não ser queimado por suas crenças, mas pela dúvida em suas crenças Não quero mais esconder como me sinto: o que estais a me falar da verdade! O seu espírito está preso na gaiola do seu estreito coração. Amo eu, então, os seres humanos? Mas eles pertencem ao meu projeto - mas esse é todo o meu amor. Desconfiado e ulcerado, pronto para um querer súbito, decidido guardião e espião O que eu não quis antes, preciso querer depois - outra escolha não me foi dada. Contra os sábios rígidos, livrando-se deles - a alma para a qual tudo se torna jogo. Eles querem que ninguém os faça sofrer: então eles se adiantam a qualquer um e lhe fazem o bem - esses covardes! "Fazer o que se quer, mas sem chamar a atenção! Fazer o que se pode, mas sem causar escândalo!" Receita para ser bem comum. A virtude não dá saltos. procurar seu inimigo, encontrar seu amigo

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Fragmentos do espólio

Receita: querer longamente, nenhuma concupiscência, aprender a calar, aprender a solidão, aprender a profunda desconfiança a pedra acaba cedendo ananjar uma espinha-dorsal para a vontade - por meio de uma organização xingar o fato de que os melhores se afastam sem filhos. Ao assassino de Deus, ao sedutor dos melhores, ao amigo dos maus Quem até hoje mais desprezou os seres humanos, será que não foi justamente por isso o seu maior benfeitor? - ladrões de cadáveres, que ainda sabem roubar algo desses mortos e semimortos Antes comerciar do que comerciante! Fala cedo e à noitinha: "eu desprezo o pequeno mercador, dele quero quebrar os dedos compridos". O sofrimento do ser humano superior não é o seu lado inferior, mas ele saber: "existe algo ainda mais elevado". Chutados para as alturas, feito bola - isso eles chamam de "subir". Estrangulastes a sua ambição! Para vós, estar entre os últimos atrai mais que estar entre os primeiros. "A volúpia é uma mulher: ela corre atrás de quen1 a despreza." Contabilizais a felkidade de todos e esquecestes aí os vindouros - a felicidade da maioria. Perguntai às mulheres! Não se fi e~ parindo por ser divertido.

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22: Final de 1883

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"Quer me comandar? Bem, lutemos uns contra os outros: talvez a minha vontade seja mais forte!" - para a fonnação do mal. Agora não vive mais ninguém que eu ame; como teria eu de ainda amar a vida! Os anjos derretem-se em lágrimas quando eles o vêem sorrir. Cansado e feliz, como qualquer fazedor criativo no sétimo dia. Meu coração era cordial mesmo em relação a acasos malignos: ser cheio de farpas contra o destino parece-me uma sabedoria para ouriços. Já correm as horas de pé leve sobre nossos corações E se escada me faltou, subi sempre sobre a minha própria cabeça. O primeiro é calmaria: ninguém pensa em mim e todos falam de mim. Eu procurei a mim e onde o meu eu pudesse estar em casa essa foi a minha pior busca de lar. Eu procurei o meu jugo mais pesado: encontrei daí o meu egoísmo. Ele é inabalável e, quando se queixa, então há ainda mais consideração convosco: um manto ele espalha em tomo de sua dureza. Eu não louvo a terra em que manteiga e mel - correm. "O pior já passou" "eu te considerava um sábio - o que me deixava admirado acima de tudo era a tua esperteza. virtudes patetas

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"Quero viver como eu tiver prazer, ou não terei prazer algum em viver" - assim pensa mesmo o maior santo. Onde eu sempre temia, hei de por fim desejar - oh, pensamento profundo, agora ainda vou aprender a amar o fundo do abismo! Egoísmo e desejo de dominar levaram a mentira à altura máxima. Vês então a pedra das montanhas mais elevadas? Não se formou ela sob os mares? Tomai cuidado, oh, mais ricos: em vós gera indignação mais a pequena bondade do que a grande avareza. Pingais feito garrafas bojudas com pescoços estreitos demais - com freqüência já se quebraram os pescoços de tais garrafas. Esse vizinho e sua necessidade restrita, essa cidade e sua atmosfera estreita - isso alquebra a cada dia as tuas forças. Como querias aprender aí a fazer grandes entes! Impossível de socorrer feito um cadáver "Sejamos modestos também na virtude! Com satisfação suporta-se apenas a virtude modesta" Escrevinhadores e gritalhões, ambiciosos fumegantes, importunas e sem-vergonha Quer então um instinto, segundo ensinais, ser "satisfeito"? Quer fic~r liv~e de si mesmo e ter paz? Será que alguma vez um querer quis o nao-querer? Que ele produza, isso é o impulso de todas as pulsões instintivas: e, se ele dorme por algum tempo, apenas descansa para depois acordar.

É preciso acabar de dormir para ficar acordado.

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2 2: Final de 1883

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Mas vós, pervertidos do ser da vontade para o ser da má vontade e para O querer-contra-si, interpretais sempre mal a voz da vontade cansada e os arquejos e roncos de quem dorme.

. É, ~ntão, o sono uma invenção para a morte? E quem quer dormir, se_ra ~m morto de cansaço? Arquejar e roncar pode também o ser mais vivo. Direitos iguais para todos - essa é a injustiça mais modelar; pois nela os seres humanos mais elevados ficam por baixo. A justiça foi sempre mais bem louvada: ela tem o louvor da maioria - daqueles que não deviam ter os mesmos direitos! Ele fica chocando em cima do seu infortúnio como em cima de um ovo. Oh, tu, que buscas o conhecimento, também tu tens impertinência! E esse deve ser o teu galardão: o de que tu vês sempre a fachada de todas as coisas! O seu espírito abandona-o - agora o seu lado bom e o seu pior tornam-se mais visíveis: ele se toma mais escuro - ah, se fossem apenas novas estrelas o que agora vai se tornando visível! 22 (3) É sintomático buscar grandeza: quem a tem busca bondade. O amor mais profundo não sabe se dar um nome e se pergunta: "Será que não sou ódio?" - Se uma vez se - - Será que não fazemos acordados, como no sonho? Nós primeiro inventamos e ficcionalizamos sempre o s·e r humano com o qual nos relacionamos - e um momento depois já nos esquecemos disso. Quando homem e mulher deixarão de se desentender? As suas paixões andam em passo diferente - medem o tempo com outra escala.

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Aprender a abstrair de si é necessário para ver longe. E quem acredita em sua vida após a morte, aprende com certeza também a estar morto em vida. O crente odeia bem mais não o espírito livre, porém o espírito novo que tem uma nova crença. Pessoas pesadas, cheias de pesadume, tornam-se mais leves por meio do ódio e do amor: elas chegam assim à sua superficie. A questão se esclarece: daí ela não nos importa mais. Evita que tu te tornes esclarecido demais sobre ti mesmo! Compaixão com a espécie toda - isso leva à dureza com todo indivíduo. As vivências terríveis se procuram os terríveis. Também eu sou bronze de êneo destino: senti assim sempre que chamastes isso de destino. Ele tem o seu próprio Deus para si: mas, desde que o vi, encontrei nele apenas o macaco do seu Deus. Há um grau de falsidade entranhada que se chama de "a boa consciência". Eles correm atrás daquele que os convence de que teriam perdido o caminho. Adula-os ouvir que eles teriam tido um caminho. Os grandes pensamentos, que brotam do coração, e os pequenos, que brotam da cabeça - mal pensados são ambos. Tu queres ser mensurado de acordo com os teus propósitos e não de acordo com os teus efeitos? Mas de onde conheces tu os teus propósitos? A partir dos teus efeitos!

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22: Final de 1883

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Quem. não soube encontrar · de . o caminho para , a s ua me ta, vive modo mais setn-vergonha e mcauto do que aquele que nem sequer tem meta: da sua perda ele quer fazer diversão e digestão. O perigo do sábio é idiotizar-se na insensatez.

Ele se sacrifica, mas não por compaixão, e sim por riqueza: ele concede, ele se cede! O demônio, um amigo do conhecimento, fica longe de Deus: só

de longe é que se tem a perspectiva para deuses. O amor traz à luz o elevado e o raro que há num ser humano:

nessa medida ele o embeleza - engana-o a seu respeito (a respeito de si mesmo principalmente!). Mas presta atenção no que acontece quando alguém sabe que é amado, mas não ama: daí uma alma revela por si mesma o solo em que se assenta. Não apenas o rebanho, também o pastor precisa de um cameirogma. Por que tão de lado? - Não encontro mais ninguém a quem eu possa obedecer e também ninguém a q-;,.1;;m gostaria de comandar. Um elefante que tentar plantar bananeira. Vós pensais que tudo estaria feito quando tivésseis neutralizado o raio? Mas eu quero que ele trabalhe para mim. - Assim penso sobre todo o mal em ti e em mim. A inocência na mentira é sinal de boa-fé em um assunto. Ama-se sempre apenas o seu próprio desejo e não o desejado. No escuro a gente sente o tempo diferente do que na claridade.

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E onde eu vejo os longos dedos do pequeno mercador, prefiro levar a pior. Aí jaz o mar negro e triste - também por cima disso precisas passar! Zaratustra 3. Casas amassadas, idiotas feito um brinquedo de criança: que uma criança as reponha logo na caixa! - almas amassadas Confiante e aberto, mas baixo como portas que só deixam entrar o rasteiro. Estragado por muitos pequenos êxitos - sempre teve jogo fácil: ele não chegou a conhecer a melhor seriedade. Os seres humanos precisam tomar-se mais maldosos - esse é o maior sofrimento de quem trata de conhecer! E quem quiser gerar seres ·humanos mais elevados precisa tomá-los também mais maldosos - essa é a dor do fazedor criativo e do bondoso! Oh, Zaratustra, advogado da vida! Tu precisas ser também o advogado da dor! Eu não posso dispensar-te do inferno - o mundo ínfero precisa ressurgir contra ti, as sombras precisam ainda dar testemunho: "viver é tortura". 1

Um olho cheio de cobiça - o adendo de uma alma biliosa Quando a própria metrópole se alastra para o cainpo, então ela não leva adubo para a terra, e sim podridão e atrocidade. Onde eu ouviria ser educado e formado aquele que um dia terá de comandar? Com as lições da obediência ele teria de fazer agrados e hipocrisias aos obedientes. Vossas virtudes não vos servem ao corpo: as doenças do vosso corpo acusam_as vossas virtudes, das quais vos vangloriais. ..... Digitalizado com CamScanner

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Doente em opiniões públicas como e Ih , . - • m mu eres publicas· e essas sao JUstainente as vossas doenças ma·1s secretas. · . .Há uma grande hipocrisia entre vós·· aqueles que mandam baJulam as virtudes dos que obedecem. Procuro convencer onde eu deveria mandar: assim quer a minha má educação. Tal convencer não é melhor do que bajular_ aqui 0 superior bajula o inferior. Se tudo anda conforme a nossa vontade, também anda conforme o nosso desejo. Todo o pretérito é uma escrita com cem sentidos e interpretações e, realmente!, um caminho para muitos futuros! quem dá, porém, um sentido ao futuro, esse determina também determinada interpretação do pretérito. "Ainda não chegou o tempo de eu ser bobo", diz Zaratustra quando o bobo diz: "lança tudo longe de ti, dança e sê humano em relação a ti e a nós!" De um a solidão é a fuga do doente, de outro a solidão é a fuga diante do doente. Uns tomam o povo tão maluco e cheio de si que a jarra transborda - eles servem ao tirano; outros fazem que o tirano fique cheio de si e pule e arrebente - assim eles servem ao povo. Esse ri feito um raio-mas atrás rumoreja feito um longo trovão. Porcas satisfeitas ou espadachins moribundos - não tendes nenhuma outra escolha? Os coveiros se escavam doenças; sob entulho antigo jazem vapores péssimos. Não se deve revolver o lodaçal.

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Fragmentos do espólio

Ele imita a si mesmo - essa é a sua segunda infância. A compaixão do supremo é dura, igual ao aperto de mão de um gigante. Não se queixa o sol: "eu queria ser luz para eles, mas eu lhes arranquei os olhos fora - eu os ceguei!" "Como posso passar pelo portão da cidade? Desaprendi a viver entre anões." O maior nos grandes é o matemo. - O pai - esse é sempre apenas um acaso. Minha correria ainda me é obediente. Abaixo do meu topo e da minha neve encontro todas as zonas do que vive e nem sempre as criancinhas chegam para quem as deixa vir. Vós tossis e pensais que isso seja uma objeção a ventos fortes. "Nós queremos comer" berrais: a vossa barriga acrescenta "muito!", vosso olho sequioso: "bem!" O que é o mais comum a todas as coisas comuns? Uma conclusão, de todas as conclusões a conclusão mais antiga e a mais recente: "Isso dói, portanto é ruim". Desde que entendi esse "portanto" e essa origem do ruim, fico rindo de todo o vosso "bom e ruim"! Para além do vosso "bom e ruim", minha gargalhada ressoa. O homem esconde a beleza.

É preciso tornar-se liso e duro ao adentrar a multidão, mas levar consigo a sua solidão secreta.

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Como sêmen da vida lançada de estrela em estrela? Teníve] ditirambo da vida em Zaratustra 4. Deixai vir a mim o acaso! Ele é inocente feito uma criancinha. Driblar com astúcia o acaso e conduzi-lo pela mão. Só quem sabe para onde se dirige também sabe qual é o seu vento favorável. Duas novas virtudes- o sábio olvido e a arte de posicionar velas de acordo com o vento. As mulheres estão virando homens: homens mesmo há bem poucos. Na afabilidade há muito desprezo, mas nada de ódio e amor pelo ser humano. Quando o demônio troca a pele, descama também o seu nome. A consciência pesada, um peso de Deus, e se esse Deus é um Deus do amor - um peso de amor? Vejo a estrela deles, e estou comovido: mas agora até acham que seja a minha estrela. Não escuteis o que eles dizem - mas dai uma olhada em sua cara! Com a língua talvez mintam, mas com a boca dizem a verdade! E para que existe toda a natureza, senão para que eu tenha signos com os quais possa falar às almas! Ora está tudo acabado! Pois agora os pequenos mercadores ostentam sabres e bigodões, e até o regimento veio para os pernas tortas.

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Fragmentos do espólio

Esse é o triste mar negro, ele jaz diante de mim como o meu próprio destino Ah, essa grávida apatia noturna! Um olho aberto, mas ainda bêbado de sono, e ainda estranho é o seu olhar aí em minha direção. Com respiração quente o mar respira até mim como o meu destino, retorcendo-se sobre o seu travesseiro de penhascos: boceja como diante de más expectativas Estou triste contigo, tu, monstro escuro, e comigo mesmo estou ainda aflito por tua causa. Ah, que eu não tenha energia suficiente para te separar dos sonhos maus! O que fazes, Zaratustra? Queres cantar consolos para o mar? Tu mesmo já te tomaste um expectador e prenunciador do teu próprio futuro? O que fazes, amoroso idiota, tu, super-bem-aventurado-da-confiança? Mas tu sempre foste confiante a todo terrífico, a todo monstro querias ainda acariciar. Um sopro de respiração quente, um pouco de feltro macio na pata: - e já fumegam sons de locomotiva da tua flauta, ansioso tu te aproximas sempre de todo ser vivo! Agora tu tens de me apresentar esse monstro! Melhor, tu confias em teu destino, enquanto ele berra como um mar de mil bocarras, mostrando ainda melhor os seus dentes contra ti na tempestade do que a mais grávida angústia noturna. Nada mais bravo existe do que um mar dormente e um destino grávido: como queres ir além dessa maré negra se não fores mais maldoso e mais negro do que ela? O que mesmo agora ainda te encontra, isso te advém como o teu destino: já passou o tempo em que até um acaso podia ainda te encontrar! Se não consegues rezar, por que ao menos não amaldiçoas? Temo-te porque ris enquanto lutamos pela vida - tu também pareces alguém que está certo do seu viver. Do seu viver ou do seu morrer - disse Zaratustra.

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E, se escaparmos dessa quero dizer· "na~o h ' h . .' · a nen um Zaratustra f01 quem me ensinou isso".

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Eu perdôo a tua desconfiança, mas não dou um tostão furado por tua confiança. Tu ainda acreditas em milagres e fazedores de milagres, a real necessidade ainda iria te ensinar até mesmo a rezar. Os velhos falsificadores de 1noedas do espírito andaram falsificando inclusive a moeda do teu entendimento -

Fico enojado, e estou apenas três dias distante de - - Alacridade como secreta degustação antecipada da morte - livra-nos da grande carga da nossa tarefa. Zaratustra: de onde vem Zaratustra? Quem é pai e quem é mãe dele? "Destino e risada são pai e mãe de Zaratustra; o destino cruel e a risada amorosa procriaram juntos tal rebento." O céu está em chamas, o mar cospe para ele uma pequena comunidade encolhida e vapores e trevas de toda beatice

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23: Final de 1883

23 (1) Uma pequena história inocente, mas que acarretou muita confusão: ela eu vos conto-, a confusão vós mesmos podeis vos contar! Havia uma vez um menino, ao qual se disse com olhares e falas: "aquele que é teu pai não é bem teu pai!" Isso aborreceu a criança, tomando-a pensativa; e por fim ela se disse ao seu coração, bem em segredo: "será que não há nada mais bonito no mundo do que um pai certo?" E quando a criança aprendeu a rezar, foi seu primeiro pedido: "Deus, dá-me afinal um pai certo!" Mas a criança cresceu e, com a criança, o seu amor secreto e a sua reza: entre mulheres e sacerdotes cresceu o jovem: Um jovem, tomando-se profundo entre mulheres e sacerdotes e pudico diante do amor e até diante da palavra "amor" tornando-se profundo e sedento pelo orvalho do amor, como o tomilho à noitesedento e trêmulo com sua sede ardente e amigo da noite, pois a noite está repleta de pudicícia e de incensos aromáticos Até sua alma cheirava a incenso de sacerdotes e a inocência de mulheres: mas ela ainda se envergonhava desse aroma. E assim como um jovem costuma desejar rezando para que uma mulher o ame, assim rezava ele pelo amor.de um pai, envergonhando-se até mesmo ainda de sua oração. Daí aconteceu que a sua oração se dissolveu uma vez em nuvens iluminadas e palavras brotaram de nuvens iluminadas: " Vede,

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Fragmentos do espólio

esse é o meu filho bem-amado, em quem depus toda a minha complacência." . Será isso possível! disse o jovem. Eu, o filho amado daquele a quem eu justamente pedi um pai? Deus, meu pai! Será isso possível? Esse velho onipotente enrugador de testas e porta-voz do deus judeu - é meu pai! Será isso possível? Mas, se eu sou seu filho, então eu sou deus: mas, se sou deus, cmno posso eu ser humano? - Isso não é possível - mas preciso crer por ele! O ser humano em mim - isso é decerto só a sua amada necessidade vital: pois assim como eu desejo ardentemente um pai, assim ele deseja os seus filhos . Que eu seja um humano, isso decerto se deve aos humanos: eu tenho de atraí-los para o meu pai - atraí-los para o amor: oh, esses idiotas, que é preciso primeiro atrair até para o amor! Eles devem amar a Deus: esse é um ensinamento fácil e um favor - um jugo leve é imposto a nós, os filhos de Deus: temos de fazer aquilo que preferimos fazer. Esse ensinamento e essa sabedoria são fáceis de assimilar: mesmo os pobres de espírito podem estender as mãos para ela Muita coisa no ser humano é pouco divina: quando se larga bosta, como se pode ser Deus, então? Mas pior ainda é com a outra bosta, que é chamada de pecado: essa os seres humanos querem guardar consigo e não largar de si. Mas agora eu preciso crer: pode-se ser Deus e ainda largar bosta: então eu os ensino a largar sua bosta e a se tomar deuses. 23 (2) Bebi recentemente uma antiga sabedoria, de imemoriais tempos antigos um forte vinho da sabedoria. 23 (3)

Da fama Uma coisa é fama; outra, parir. Perguntai as mulheres! .Não se fica parindo por ser divertido.

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23: Final de 1883

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A dor faz galinhas e artistas cacarejar. A volúpia faz gaguejar-: ora escutai gaguejar a minha palavra da fama. Volúpia é imprimir sua mão sobre milênios como sobre a cera. Volúpia, escrever sobre a vontade de milênios como sobre O bronze. Volúpia é derreter estrelas do futuro no almofariz da própria vontade; volúpia, derramar diante de si em culto mundos sobre os tapetes da eternidade. 23 (4) Um! Meia-noite principia! Soprada de longe, ascendendo de um mundo profundo - em mim, o solitário, busca a sua palavra o último descanso? Dois! O último descanso do mundo profundo - está ela então à altura de um solitário? Busca ela, se o seu som anda por ouvido e medula e perna - busca e encontra ainda, portanto, a sua paz? Três!

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Dos caminhos de quem busca o conhecimento "Como chegaste, oh, Zaratustra, à tua sabedoria: chegaste voando? - assim me perguntais - ao que aprendemos de ti, como gostaríamos de voar à nossa sabedoria?" Bem perguntais: bem tendes de ser também ensinados. A quem bem pergunta, meia resposta já está dada. Por muitos caminhos e modos cheguei à minha verdade, não subi por uma única escada e escadaria às alturas nas quais meus olhos vagueiam ao longe meu. E jamais perguntei a seres humanos: eu mesmo perguntava e tentava os caminhos. Um tentar e perguntar era todo o meu andar. Entre os humanos, eu era sempre o bem escondido: quer eu subisse ou voasse ou ficasse parado ou vacilasse: eles não me viam com os seus olhos. Eles não me ouviam com os seus ouvidos: e com freqüência eu prestava atenção no eco, mas ouvia apenas - louvação. Eu disse a eles no ouvido, quando me pus a navegar em novos terríveis mares: teria, por isso, escondido? Mas ora, quando eu

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Fragmentos do espólio

andava diante dos seus olhos em novos terríveis desertos - quem me viu migrar? E quando trepei com escadas de cordas por muita janela, com pernas ágeis cavalguei muito mastro: para eles continuei sendo o bem escondido, até com minhas maldades e aventuras. Uma bem-aventurança maldosa parecia-me posta feito uma chama nos mastros mais altos: uma luz pequena, é verdade, mas mesmo assim um grande consolo para navegadores e para náufragos manhosos. Uma outra bem-aventurança aprendi quando um tépido vento me adveio: que minha torrente subia e subia e meu gelo se acumulava -daí rejubilei. Dos fracos e delicados encontrei bastante - eles se chamam de bons e são até mesmo delicados com a virtude; de hipócritas encontrei também bastante, os quais do nome da justiça fazem mau uso. Os que mentiam para si mesmos, eu os ouvi falar a mim, aqueles aos quais a mentira pousa inocentemente no coração e nos lábios; também muito parasita se meteu com volúpia na refeição da minha sabedoria. 23 (6) Só quando estais bem sedentos é que deveis beber: e só quando o espírito vos impulsiona é que deveis dançar. E aprendei prüneiro a mentir, para que aprendais o que é falar a verdade! Somente a fome é que vos deve levar de volta à verdade: e quando estiverdes cheios do vinho da verdade é que ireis também querer dançar. 23 (7)

Prelúdio Oh, meus irmãos! Que de mim aprendêsseis primeiro quietude! E solidão!

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24: Inverno de 1883-1884

24 (1) Que é dificil se aproximar dos gregos, que a gente se sinta até mais distante deles quando os estudou longamente: essa é a tese e esse é o suspiro bem pessoal que eu quero manifestar em meu exame dos gregos como conhecedores do ser humano. Pode-se viver com eles tendo uma crença antitética e aprendemos que nossa estranheza é ainda mais instrutiva que nossa sensação de intimidade Talvez um grego considerasse uma falta de respeito e piedade com a natureza, uma falta de vergonha, o modo como cavamos fundo para descobrir o ser humano. De modo que seríamos estra' nhados - yvcoµ17; ouvir que "se o saber existe, a ação deve ser conseqüente" e que virtude tem de ser bem-aventurança, isso nos soa tão estranho e incrível que ficamos olhando se não foi dito por gozação. É como se tivessem dado mais uma pele ao intelecto. 24 (2) repercussão filosófica da Antigüidade: "finalidade" Deus e ser humano (a perspectiva antes de Copérnico) prazer como 1notivo - a Lógica, a avaliação exagerada da consciência. - a alma

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Fragmentos do espólio

há tampouco a "coisa em si" quanto pode haver "conhecimento absoluto". No lugar de verdades básicas, coloco probabilidades básicas diretrizes provisoriamente admitidas, de acordo com as quais se pode viver e pensar , . essas diretrizes não de modo arbitrário, mas segundo a media de um hábito. O hábito é a conseqüência de uma escolha que os meus diversos afetos fizeram, todos querendo se dar bem e sobreviver. 24 (7) os dois maiores pontos de vista filosóficos (descobertos por alemães) o do vir a ser, do desenvolvimento o do valor da existência (mas primeiro superar a mísera forma do pessimismo alemão!) por mim reunidos de modo decisivo tudo retorna e é retomado eternamente - escapar não é possível! digamos que pudéssemos julgar o valor, o que decorreria disso? a concepção do retorno como um princípio seletivo, a serviço da força (e barbárie!!) Maturidade da humanidade para essas concepções. Esclarecimento de que não há nenhuma coisa em si e as grandes negações: 1) não há nenhum conhecimento em si! 2) nenhum bem e mal cm si! 3) nenhuma finalidade e nenhuma origem!

A essência do orgânico é o conceito mais inocente. As finalidades como fenômeno acessório das necessidades. Também as filosofias: a nossa necessidade é agora desconstruir a moralização do mundo: se não, não se poderia mais viver. A absoluta "não-liberdade da vontade" desperta, do ponto de vista moral, má-vontade.

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24: Inverno de 1883-1884

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24 (16) Sobre a origem dos nossos julgamentos de valor

Nós podemos desmontar o nosso corpo espacialmente, chegando daí à concepção dele exatamente como de sistemas estelares, e a diferença entre orgânico e inorgânico deixa de chamar a atenção Hino ao julgamento de valor. Antes se explicavam os movimentos estelares como efeitos de seres conscientes de finalidades: já não se precisa mais disso, e também no que tange ao movimento corpóreo e da própria modificação há muito já não se crê que se possa resolver com a consciência que se coloca propósitos e metas. A grande maioria dos movimentos nada tem a ver com consciência: também não com percepção. As percepções e os pensamentos são algo extremamente limitado e raro em relação aos inúmeros acontecimentos a cada instante. Inversamente, percebemos que uma adequação a fins prepondera no acontecer menor, à altura do qual não estão o nosso melhor saber, uma precaução, uma seleção, uma conjuminância, um fazer as pazes, etc. Em suma, nós nos deparamos com uma atividade que teria de ser atribuída a um intelecto muito mais elevado que aquele de que temos consciência. Aprendemos a pensar de modo mais restrito de todo o consciente: desaprendemos a nos considerar responsáveis pelo nosso eu-mesmo, já que nós, como seres conscientes, que se colocam metas, somos apenas a menor parte disso. Dos inúmeros fatores atuantes em cada instante, p. ex., luz, eletricidade, não sentimos quase nada: poderia existir muita força que nos influenciasse continuamente, embora jamais se tornasse perceptível a nós. Prazer e dor são fenômenos bem raros e escassos em comparação com os inúmeros estímulos que uma célula ou um órgão exercem sobre uma outra célula, um outro órgão. Está-se na fase da modéstia da consciência. Enfim, entendemos o ego consciente apenas como um instrumento a serviço daquele intelecto mais elevado e supervisor: e daí podemos perguntar se todo querer consciente, se todas as finalidades conscientes e se todos os julgamentos de valor talvez sejam apenas meios com os quais deva ser alcançado algo essencialmente diverso do que aparece no âmbito da consciência. Nós supomos: trata-se do nosso agrado e desagrado - - - mas agrado e desagrado podem ser

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meios com os quais nós feriamos de executar algo que está fora da nossa consciência - - - É preciso mostrar como todo o consciente pennanece sobre a superficie: como ação e imagem da ação são diferentes, quão pouco se sabe sobre o que precede uma ação: quão fantasiosos são os nossos sentimentos "livre-arbítrio" "causa e efeito": como pensamentos são apenas imagens, como palavras são apenas sinais de pensamentos: a impossibilidade de ir ao fundo de toda ação: a superficialidade de todo louvor e de toda censura: quão essenciais são invenção e imaginação onde vivemos conscientes, como falamos de percepções em todas as nossas palavras (também de afetos) e como a conexão da h[uman}idade repousa numa canalização e numa ficcionalização contínua dessas invencionices: enquanto no fundo a verdadeira conexão (por meio da procriação, da educação e do testemunho) percorre seu caminho ignoto. Modifica realmente os seres humanos essa crença nas invenções coletivas? Ou será que todo o sistema de apreciação de idéias e de valores é ele mesmo apenas uma expressão de modificações desconhecidas? Será que existem então realmente vontade, finalidade, pensamento, valores? Será toda a vida consciente talvez apenas uma imagem espelhada? E mesmo quando a apreciação de valor de um ser humano parece determinar, acontece no fundo algo bem diferente? Em suma: suponhamos que se conseguisse explicar a adequação a fins na atuação da natureza sem a hipótese de ego postulador de finalidades: talvez pudessem, por fim, também a nossa postulação de finalidades o nosso querer, etc. ser apenas uma mímica, uma linguagem de sinais para algo completamente diverso - otrseja, algo não-volitivo e algo inconsciente? Apenas a aparição mais fina daquela adequação natural a finalidades do orgân ico, mas nada diferente disso? E dito curtamente: trata-se em todo o desenvolvimento do espírito talvez do corpo: é a história que se torna perceptível de que 11111 corpo mais elevado se constitui. O orgânico. O orgânico ascende a níveis mais elevados. A nossa ânsia de conhecimento da natureza é um meio pelo qual o corpo quer se aperfeiçoar. Ou antes: são feitas centenas de milhares de experiências para modificar a alimentação, 0 modo de morar, a maneira de viver cio corpo: a consciência e as

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apreciações de valor, todas as espécies de agrado e desagrado são sinalizações dessas mod{ficações e experiências. Por último, nem sequer se trata do ser humano: ele precisa ser superado. 24 (17)

Na formação dos organismos, ele se pensa presente: o que tem sido perceptível, nesse processo, com olhos e tato? O que se pode mostrar em números? Quais regras se mostram nos movimentos? Logo: o ser humano quer se ordenar todo acontecer como um acontecer para olhos e tato, portanto como movimentos: e quer encontrar fórmulas para simplificar a imensa massa dessas experiê.ncias. Redução de todo acontecer aos homens sensoriais e matemáticos. Trata-se de um inventário das experiências humanas: supondo-se que o ser humano, ou melhor, o olho humano e a capacidade conceptual tenham sido a eterna testemunha de todas as c01sas. 24 (21)

A crença no querer. É uma crença em milagres colocar um

pensamento como causa de um movimento mecânico. A conseqüência da ciência exige que, depois de nos termos tornado o mundo pensável em imagenzinhas, nós tornamos pensáveis para nós também os afetos desejos impulsos volitivos, ou seja, nós os negamos e tratamos como erros do intelecto.. 24 (22)

O que deve ser xingado chegou primeiro na pena de tal modo que ce1ias punições aplicadas a seres humanos desprezíveis (escravos, etc.) ficaram ligadas a eles. Aqueles que mais foram punidos eram seres humanos considerados desprezíveis, e por fim havia na punição algo de xingação. -

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SBD / FFLCH / USP SEÇÃO DE: G

TOMBO: 263254

PROC.03/03070-8 / N.F.Nº 366641CULTURA DATA: 27/09/05

PREÇO : 39,6

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No final de 1888, sofreu um colapso, decorrência provável , ·"' ... de uma sífilis craniana, e não mais se recuperou. Conta-se que o colapso ocorreu quando ele viu um carroceiro açoitando violentamente o cavalo e não conseguiu conter a agressividade do homem contra o animal. Embora tivesse sido considerado "a vergonha da família", havia se ~

reconciliado com a mãe e a irmã, que cuidaram dele nos seus últimos doze anos de vida: primeiro, sua mãe, em Naumburg; depois, com a morte desta, sua irmã, em Weimar. No arquivo de sua casa em Weimar ficaram guardados os manuscritos que ora vão sendo aqui publicados em português. Outros lançamentos da Editora Universidade de Brasília Filosofia e conhecimento Samuel Simon (Organizador) A evolução da sociedade internacional · Adam Watson Literatura e vida Cassiano Nunes Ciências da mente e do cérebro no século XXI Robert L. Solso (Organizador)

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Fragmentos do espólio - Aqui estão textos inéditos de Nietzsche em português, escritos de 1882 a 1884, que ficarám guardad_o s no espólio por mais de um século, .talvez porque ·fossem mais avançados do que toda a filosofia do século XX. Formam uma grande reflexão sobre a ética e suas relações com a estêtica,.a política, a legislação, o sistema judicial, a consciência do inconsciente e a inconsciência do consciente: ·



Constifuem um livro de autodesajuda, o melhor modo de se ajudar _q uem não queira apenas apaziguar inquietações e -éultL:Jar . fraquezas. Por causa do caráter intrincado dos temas, foi mantida a seqüência cronológica da escrita, com o fluxo ca9tico e saltitante da vida. Isso leva a pensar adiante. O tradutor teve de reinventar a linguagem para ficar à altura do original. Reflete-se_aqui um perfil .si~niticativo das preocupações de Nietzsche. Res'gata-se, por exemplo, seu caráter precursor em relação à psicanálise. Várias teses atribuídas a Freud já estão aí formuladas, mas com maior amplitude filosófica. Teses básicas do socialismo, da _democracia, do-totalitarismo e da cultura de massas tambêm estão 'discutidas, mostrando a clarividência do pensador·em perquirir seus pressupostos teológicos e seus impasses práticos.

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· Oprimidq P?!ós pr_~~oriceitos de sua ép~ca, que continuam vigent_ es ero,;)rar-,-:!s p·arte, Nietzsche procurou uma formulação tão certeira:' cfHJ1 ,srú trezentos anos, ela ainda faria efeito. O que fica r~gistrado·_·c c ?;\\ç; píncaro de um-novo espaço do pensamento, ·· noutro .m omen1o'já ~ visto de outrq píncaro, com outra visão da paisagem, sem àmilé?-r o que foi dito antes. . Um modo de le~ o te~to ·é crer primeiro no que diz e depois lê-lo pelo avesso. A ironi~·~\ur:1 m~d~ de dize~ algo pelo aves_s~.. sem que o literalmente dito seJa ehm,nado. O Jogo entre pos_s1b1hdades contrárias abre caminh9 '_para um novo horizonte. í •.

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Código EDU:368393 ISB~ 85- 230 -0797-0 JI

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