Direito Penal - Parte Especial: Arts. 121 a 154-A do CP [2, 2019 ed.]

1,304 110 3MB

Portuguese Pages 302 Year 2019

Report DMCA / Copyright

DOWNLOAD FILE

Polecaj historie

Direito Penal - Parte Especial: Arts. 121 a 154-A do CP [2, 2019 ed.]

Citation preview

2020 - 03 - 24

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPA

PAGE I

2020 - 03 - 24

PAGE IV

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 DEDICATÓRIA

Dedicatória Aos meus pais, Maria e Daniel (em memória)

2020 - 03 - 24

PAGE V

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 NOTA DO AUTOR AO V. 2

Nota do Autor ao v. 2 Muito feliz pela enorme acolhida que nosso Direito Penal: Parte Geral, v. 2, vem recebendo, mesmo tendo sido lançado apenas há pouco tempo, apresentamos ao público leitor o presente volume, concernente aos crimes contra a pessoa, constantes do Título I da Parte Especial do Código Penal brasileiro (arts. 121 a 154-B). Uma vez mais, a preocupação foi a de trazer ao estudante e ao profissional jurídico uma noção clara e atualizada do Direito Penal pátrio. Não bastassem as tradicionais dificuldades, decorrentes da comum má-técnica legislativa e das modificações nas compreensões jurisprudenciais, naturais com o perpassar do tempo, vivenciamos atualmente constantes e incisivas modificações no texto legal. Tudo isso obriga a uma constante atualização e à necessidade de escrutinar as mais diversas correntes de pensamento, tanto na doutrina como nos julgados. Destaca-se, mais uma vez, que o objetivo desta obra é o de trazer informações atuais e confiáveis, com a devida profundidade e simultaneamente clareza, sem se afastar de um viés sistemático e crítico. Novamente agradeço ao incentivo de meus alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), bem como aos profissionais do selo editorial Revista dos Tribunais da Thomson Reuters Brasil pela competência e por acreditar na difusão de conhecimento jurídico de qualidade, em prol de um mundo melhor. São Paulo, abril de 2019. O AUTOR.

© desta edição [2019]

2020 - 03 - 24

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 REVISTA DOS TRIBUNAIS

This PDF Contains CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO À PARTE ESPECIAL DO DIREITO PENAL, p.RB-1.1 CAPÍTULO 2. HOMICÍDIO (ART. 121), p.RB-2.1 CAPÍTULO 3. INDUZIMENTO, INSTIGAÇÃO OU AUXÍLIO A SUICÍDIO (ART. 122), p.RB-3.1 CAPÍTULO 4. INFANTICÍDIO (ART. 123), p.RB-4.1 CAPÍTULO 5. ABORTO (ARTS. 124 A 128), p.RB-5.1

2020 - 03 - 24

PAGE RB-1.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO À PARTE ESPECIAL DO DIREITO PENAL

Capítulo 1. Introdução à parte Especial do Direito Penal 1.1.Considerações iniciais A razão de ser da existência do Direito Penal, em termos dogmáticos, encontra-se em cada uma das específicas previsões criminosas, isto é, nas particulares figuras delitivas, como homicídio, furto, roubo, estupro, corrupção passiva, etc. O âmbito do proibido, delimitado mediante a gravosa ameaça de cominação penal, escora-se, basicamente, nos tipos penais incriminadores. São esses últimos que ressoam perante a sociedade1, prevenindo e reprimindo os comportamentos politicamente tidos como intoleráveis. As infrações penais, não obstante, encontram-se, conforme a tradição jurídica europeiacontinental que envolve o ordenamento brasileiro, agrupadas na Parte Especial do Código Penal, ou, ainda, em leis esparsas, chamadas leis penais especiais, ou, também, legislação penal extravagante. Essas constatações podem ensejar a reflexão não apenas acerca do porquê existe um Código Penal, mas também quanto aos motivos de sua peculiar divisão em Parte Geral e Parte Especial. Demais disso, referida cisão pode trazer ao intérprete dúvidas quanto a uma possível hierarquia entre tais partes, bem como sobre suas eventuais contradições, mormente diante do fato que, particularmente, o Brasil atualmente possui em vigor um Código Penal cuja Parte Geral é de 1984, enquanto que a Parte Especial é de 1940, apesar de pontuais modificações em ambas. Todas as problematizações mencionadas são procedentes, no fundo, para verificação da coerência do ramo jurídico-penal nacional. Além disso, obviamente, estão atreladas a muitas outras indagações, como as que questionam qual seria a missão do Direito Penal ou as que ponderam acerca dos fins da pena criminal2. Com o propósito de introduzir o estudo específico de cada um dos crimes da Parte Especial do Código Penal cumpre, preliminarmente, aferir as motivações da própria existência dessa última.

1.2.Direito Penal e movimento codificador Inicialmente, a investigação quanto à Parte Especial do Código Penal remonta à própria origem daquilo que se entende por Direito Penal, bem como ao surgimento das codificações, o que se deu em um momento histórico preciso. O Direito Penal, com os delineamentos com os quais o compreendemos na contemporaneidade, nasceu na península itálica, tendo como marco referencial a obra de Beccaria, Dos Delitos e das Penas, de 1764. O pensamento trazido por essa obra foi influenciado por um racionalismo de coloração contratualista3, razão pela qual denota que a cessão de parte da liberdade de cada um, por meio de um contrato político, seria condição necessária para manutenção do convívio social, sendo injustas as punições que vão além do que as precisas para tanto. O pensamento de Beccaria, disseminado durante o Iluminismo – momento histórico marcado como de antítese ao Antigo Regime, isto é, o Absolutismo –, denota uma enorme significação para a política criminal e a criminologia, servindo de base para a construção de um Direito Penal guiado pela ideia liberal de estabelecimento de um sistema de garantias frente ao arbítrio do Estado,

fixando a necessária legitimidade para esse ramo jurídico. As ideias do pensador milanês assentam-se, basicamente, nos postulados da estrita legalidade dos crimes e das penas, da utilidade, humanização e proporcionalidade dessas últimas, da separação de funções estatais e da igualdade de todos perante a lei. Em uma palavra, racionalidade. O que havia antes do Iluminismo era o puro arbítrio, a violência do Estado contra seus súditos, inexistindo quaisquer garantias aos componentes do corpo social. Os iluministas insurgiram-se contra esse estado de coisas, procurando disciplinar sistematicamente o direito de punir do Estado. Isso porque o Direito Penal desvela-se como um mal necessário. Não há vida social civilizada sem a possibilidade de se punir quem atente contra essa própria vida social, sendo, por conseguinte, o Direito Penal uma decorrência natural do contrato social. Se ele é inevitável, não obstante, há de ser disciplinado da forma mais digna e inteligente possível, e não como se dava até então, em meados do século XVIII. Singelo exemplo do absurdo que vigia até então se deu com o chamado caso das unções pestilentas, descrito por Pietro Verri, contemporâneo de Beccaria4, na obra Observações sobre a tortura5. Essa foi escrita por Verri entre os anos de 1770 e 1777. Em seu relato aterrador, o texto rememora os autos de um processo criminal verdadeiro, levado a cabo em Milão, no ano de 1630, denominado “processo dos untores” – uma vez que a imputação consistia na suposta prática de colocação de uma poção venenosa em muros para fins de disseminação da peste. O irracional procedimento inquisitorial foi deflagrado a partir de simples impressões populares e boatos, sendo construído com base em sequenciais e impiedosas torturas. Fruto de uma espécie de catarse coletiva, sequer as autoridades se questionaram quanto à impossibilidade de os agentes poderem espelhar uma peste sem seu próprio comprometimento, ou ainda, em caso de eventuais “poderes mágicos”, não terem simplesmente os utilizado para escapar da ação repressiva. Cuida-se o caso de emblemático exemplo que demonstra o irracionalismo e arbitrariedade que reinava até então e contra o qual se insurgiram os iluministas, como Verri e Beccaria, entre outros. Todo esse ideário, como sabido, desembocou na Revolução Francesa e na Revolução Americana. As concepções iluministas influenciaram a Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), o Bill of Rights (1789-1791) e a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Nesse sentido, veja-se, até pelas referências a todas essas “Declarações” e “Cartas”, isto é, compromissos, no fundo, contratos, visavam à fixação de regras e garantias contra o arbítrio estatal. Tais noções, aliadas a mudanças políticas, produziram resultados para o desenvolvimento de uma ampla mudança legislativa penal – movimento codificador –, o qual se inicia ainda no final do século XVIII. Na Rússia, em 1767, Catarina II, ao promover a elaboração de um novo Código Penal, acolheu-as integralmente. Ainda, desembocou-se no Código da Toscana, de Leopoldo II, em 1786, no Código Penal da Baviera, de 1813, cuja autoria foi de Feuerbach. Na França, surgem os Códigos Penais de 1791 e 1810. No Brasil, surgiu o Código Penal do Império, de 1830. Menciona-se também, posteriormente, os códigos da Bélgica, em 1867, e da Itália, em 1889. A codificação, além de fornecer certeza ao Direito, e significar uma garantia ao cidadão, expressa uma necessidade lógica, por meio da qual são sistematizados princípios e regras esparsas, facilitando o conhecimento, a interpretação e a aplicação das normas jurídicas. Permite, dessa maneira, a racionalização das regras sociais e a segurança jurídica. Nesse sentido, o movimento codificador, inclusive não apenas quanto ao ramo jurídico-penal, prioriza a criação de uma Parte Geral, com viés generalizante, opondo-se ao culto ao individual e ao particular do Antigo Regime6. Perseguia-se, por conseguinte, simplicidade, coerência e generalização. Desse contexto, exsurge grande desenvolvimento da Teoria Geral do Delito, particularmente do

princípio da legalidade, da irretroatividade da lei penal, da responsabilidade pessoal, das causas gerais de exclusão da antijuridicidade etc. O jusnaturalismo, então dominante na ciência, contribui para esse desenvolvimento. Consoante o pensamento de Feuerbach, a Parte Geral corresponderia como que a uma emanação do direito natural racional, um ius criminale universale, enquanto a Parte Especial, apesar de partilhar de um divisor comum, deveria ser encarada como expressão das caraterísticas contingenciais das sociedades concretamente analisadas7. Esse ideário, inclusive, denota uma noção de maior perenidade da Parte Geral em face da Especial. A origem do pensamento acerca de uma Parte Geral remonta a Deciano, em seu Tractatus criminalis, editado em 1590. O humanismo decorrente da Baixa Idade Média propiciou as condições para um novo estágio evolutivo da Ciência do Direito em geral, especialmente da dogmática penal8. Não obstante, apenas as mudanças político-sociais posteriores à segunda metade do século XVIII – especialmente no século XIX – é que propiciaram as condições para surgimento de códigos, no sentido de corpo legislativo harmônico e sistemático, com uma parte inicial de cunho geral. Tudo isso explica, curiosamente, a predileção, até hoje, por relevante parte da doutrina, por questões e estudos da Parte Geral em detrimento da Parte Especial. Todavia, em realidade, uma não existe sem a outra. Parte Geral singela, sem a existência de uma Parte Especial, carece de sentido, sendo algo ilógico. Por outro lado, Parte Especial sozinha, que já existiu desde a Antiguidade até o Antigo Regime, significa pura força, mera coerção do governante, ainda que sob o manto de um Estado organizado. De toda forma, isso não é Direito Penal. Como notícia histórica, veja-se que o chamado Código de Hamurabi (Mesopotâmia – séc. XVIII a.C.), e.g., não possuía Parte Geral. Muito posteriormente, mais de um século após a consagração do Iluminismo, o Código Penal soviético dos anos de 1920 (denominado “Krylenko”) também não a detinha. Tecnicamente falando, não poderiam ser alcunhados de verdadeira codificação. O primeiro código com Parte Geral foi o da Baviera, em 1751. No Brasil, o primeiro Código Penal, que detinha uma Parte Geral chamada “Parte Primeira”, foi o de 1830. As Ordenações do Reino, como conjunto de regras derivadas do Antigo Regime, não consistiam em verdadeira codificação.

1.3.A importância de um Código e sua estrutura O Código Penal revela uma função essencial sistematizadora da legislação penal. A incumbência precípua da Parte Geral é a de fixar as regras fundamentais de imputação, ou seja, os mecanismos de atribuição de um fato criminoso a um agente responsável. A Parte Especial, a seu turno, abriga os tipos penais basilares, protetivos dos bens jurídicos elementares para a convivência pacífica dos indivíduos. A previsão de crimes em leis penais especiais, por sua vez, consiste em escolha política do legislador. Em termos dogmáticos, ela faz sentido quando há necessidade de tratamento multidisciplinar sobre um tema, ou seja, não apenas por parte do Direito Penal, mas também por outros ramos jurídicos, como Civil, Administrativo etc., conformando um subsistema com leis mistas, ou, ainda, nos casos de leis mais dinâmicas – de maior mutabilidade em relação ao tratado em um Código, que se pretende mais estável –, como o caso de leis penais econômicas9. É o que ocorre, no primeiro caso, e.g., com os temas de drogas10, de trânsito11 ou de meio ambiente12, ou, no último, v.g., com os crimes contra o sistema financeiro nacional13. Não há propriamente uma hierarquia entre Parte Geral e Parte Especial, mas, isto sim, uma relação de dependência recíproca. Como as regras constantes em ambas as partes consistem, no geral, em cerceamento aos direitos fundamentais do cidadão, por meio do mais grave instrumento de controle social formal existente, pode-se afirmar que tanto a Parte Geral como a Especial são dotadas de tipicidade14, devendo, ademais, suas mais diversas normas serem interpretadas de

forma restritiva, quando repressivas, ou de modo ampliativo, quando benéficas. Pode-se afirmar que tanto a Parte Geral quanto a Parte Especial são espaços de ponderação, ou reflexão, político-criminal, não podendo permanecer alheias à realidade15. Basta imaginar, de um lado, no alcance e sentido de conceitos e delimitações fundamentais para aplicação da lei penal, como o de dolo eventual, de erro, de culpabilidade, de prescrição, assim como, de outro, no manejo da punição ao furto de algo insignificante, ao crime de lesões corporais praticado após provocação da vítima, às injúrias recíprocas, ao estelionato com dolo bilateral, entre inúmeras outras possibilidades. O ideal de Justiça ganha possibilidade de concreção em cada previsão feita. Como reveladora do catálogo protetivo dos bens jurídicos fundamentais – o que se deflui de cada incriminação prevista –, a Parte Especial, especificamente, é um aglutinado de sentimentos e representações da comunidade e, simultaneamente, a expressão desses sentimentos e representações16. Isso significa que, quando da elaboração da lei por parte do legislativo, ela é um repositório desses valores. Ao entrar em vigor, não obstante, ela os descreve. Por consequência, a Parte Especial não é um mero somatório de peças, revelando algo mais17. No caso brasileiro, ao erigir a proteção dos crimes contra a pessoa em primeiro lugar (Título I da Parte Especial), com o delito de homicídio como primeira incriminação (art. 121), o legislador parece sinalizar encontrar-se aí a mais relevante das tutelas18. Por razões de coerência, a verificação desses sentimentos e representações mencionados enseja a necessidade de respeito à proporcionalidade. Dessa forma, por exemplo, o homicídio deve ser punido mais gravemente que o furto, esse menos severamente que o roubo, e assim por diante. A sistematização brasileira atual, não obstante, revela graves distorções. O crime de lesões corporais não poderia ser menos grave que a falsificação de cosméticos, que é o que denota o Código Penal brasileiro. A falsificação de cosméticos (art. 273, § 1º-A), um crime de perigo abstrato – o qual, então, não exige que qualquer pessoa seja concretamente prejudicada – possui pena muito mais grave do que lesões corporais (10 a 15 anos de reclusão e multa daquele, contra 3 meses a 1 ano de detenção, desse último). De qualquer modo, em que pese pontuais incongruências, a Parte Especial do Código Penal revela uma estrutura orgânica, baseada nos interesses tutelados.

1.4.Estrutura da Parte Especial do Código Penal brasileiro em vigor A Parte Especial do Código Penal brasileiro apresenta onze títulos, correspondentes aos crimes contra: (I) a pessoa; (II) o patrimônio; (III) a propriedade imaterial; (IV) a organização do trabalho; (V) o sentimento religioso e o respeito aos mortos; (VI) a dignidade sexual; (VII) a família; (VIII) a incolumidade pública; (IX) a paz pública; (X) a fé pública e (XI) a administração pública. Em cada um desses setores, cumpre identificar o bem jurídico protegido, ou mesmo sua pluralidade – conforme figuras penais complexas –, mediante diversas formas de ataque. Em outras palavras, em geral, em cada título, as mais diversas incriminações representam formas diferenciadas de agressão ao mesmo interesse fundamental. Pense-se, e.g., nos crimes de furto, roubo, estelionato, receptação etc., correspondentes a maneiras diversas de afronta ao mesmo bem jurídico, consistente no patrimônio.

1.5.Crise das codificações e Legislação Penal Especial Relativamente à Parte Geral, é de se notar que há problemas específicos, “especiais”, na Parte Especial. Problemas esses, notadamente de deficiências técnicas e incoerências sistemáticas, que não são seu privilégio, aliás, pois se replicam, com muito maior intensidade na Legislação Penal Especial. Tudo isso, destacadamente, fruto de um movimento expansionista penal das últimas três décadas e da falta de técnica legislativa a ele relacionada.

Vivencia-se um momento mundial e sem precedentes para o Direito Penal, no geral. Seu exponencial alargamento, quer horizontal – tutelando-se mais situações, ou seja, criminalizando-se cada vez mais condutas, antes atípicas –, quer vertical –recrudescendo-se o tratamento de comportamentos já criminalizados, por meio do agravamento de penas –, não encontra paralelo na história jurídico-criminal pós-iluminista. A conformação da sociedade do risco, na expressão de Beck19, por conta da radicalização da industrialização no momento histórico subsequente transformou profundamente o ramo jurídicopenal. O extraordinário progresso tecnológico das últimas décadas conformou uma avançada realidade de produção em série, de divisão de trabalho, e de notável incremento dos meios de transporte e de comunicações. Isso gerou novos riscos sociais, atrelados a situações de degradação ambiental, de produção de mercadorias nocivas à saúde, de possibilidade de atos atentatórios à ordem econômica e de configuração de crime organizado de caráter transnacional, entre outras novéis problemáticas atinentes a interesses difusos. Tais dificuldades, reais ou fictícias, propulsionadas pelo mass media, ensejaram a sociedade mundial de riscos, quiçá do medo. A resposta aos inéditos desafios humanos da pós-modernidade tem sido, todavia, no mais das vezes, a singela elaboração de leis penais por parte dos Estados, de forma aguda. Com isso, abstrai-se por completo dos contornos iluministas da ciência penal – como o de ultima ratio –, promanando leis de duvidosa validade, quer quanto à forma ou quanto ao conteúdo. O resultado, no mais das vezes, consiste na produção de leis penais simbólicas, o que apenas deslegitima diuturnamente o Direito Penal, visto que esse se mostra ineficaz. A consequência disso são leis penais ainda mais duras, em um verdadeiro círculo vicioso. Cuida-se de um fenômeno legislativo mundial, que influencia na elaboração de acordos internacionais e é também influenciado por eles. Não bastassem as dificuldades de assimilação de interesses inéditos e pouco palpáveis por uma sociedade complexa, globalizada, multifacetada, permeada de grupos conflitantes, a tutela penal ainda abusa de formulações pouco consistentes. É o que ocorre, por exemplo, com a constante utilização de categorias de perigo abstrato, normas penais em branco, tipos culposos e abertos, comprometendo-se mais ainda a pretendida eficácia da drástica opção pela tutela criminal. É nesse contexto de desconstrução do paradigma liberal do Direito Penal, mitigando-se o princípio da legalidade, ostentando-se uma desenfreada tipificação e cerceando-se garantias dos imputados, que o ramo jurídico-criminal vem tentando intervir, por exemplo, na ordem econômica, ou, ainda, cerceando a corrupção ou o terrorismo, entre inúmeros outros assuntos. A globalização, por seu turno, tenciona ainda mais a situação no sentido do alargamento das fronteiras do Direito Penal. Se a globalização é, antes de tudo, um fenômeno econômico de reafirmação do modo de produção capitalista, consistente no estreitamento dos agentes de produção de riquezas, ignorando-se as fronteiras nacionais, com o fomento da interligação econômica, da divisão de trabalho e de etapas produtivas, de distribuição de produtos e da facilitação de consumo e assunção de capital, o sistema econômico atual revela características únicas de uma modernização reflexiva, isto é, de exasperação, ou radicalização, de seus característicos tradicionais. A representação jurídica do modelo socioeconômico, somada à influência de grupos de pressão, consagra o erigimento à categoria de infrações penais das mais variadas e complexas condutas supostamente atentatórias ao modelo econômico vigente e reclamos sociais gerais. Os crimes contra a ordem econômica e financeira, contra o meio ambiente, contra as relações de consumo, contra a ordem tributária e previdenciária, de lavagem de dinheiro, criminalidade organizada, violência doméstica, contra o idoso, de trânsito etc., encontram-se dentro dessa contextualização. A tônica dessa construção expandida de tipos penais e recrudescimento penal geral ocorre, preponderantemente, por meio de Legislação Penal Especial, mas também afeta a Parte Especial do Código por meio do agravamento de penas, inserção de novas categorias como crimes

hediondos e criação de novos tipos, com a aposição de letras aos números (casos dos artigos 168-A, apropriação indébita previdenciária; 217-A, estupro de vulnerável; 273, §1º-A, falsificação de cosméticos; 288-A, milícia; e 359-A a 359-H, os crimes contra as finanças públicas). O resultado disso, muitas vezes, são enormes desproporcionalidades e criminalizações por más técnicas. Em primeiro lugar, isso enseja a discussão acerca da reserva de Código ou utilização da Legislação Penal Especial, como referido. É, no fundo, a discussão sobre a pertinência da codificação versus subsistemas próprios a tutelar de forma integral determinados assuntos. Ademais, em termos doutrinários, o fenômeno de expansão de tipos penais legislação afora tem sido enormemente estudado, com inúmeras críticas e, também, adesões. Quanto a esse último aspecto, diversos autores, em uma postura que parece denotar uma impossibilidade ao suposto apego ao passado, defende uma funcionalização no sentido de alargamento horizontal e vertical do Direito Penal, que deveria enfrentar as novas questões20. Os expansionistas entendem que os novos bens jurídicos surgidos com os avanços tecnológicos e culturais merecem e carecem de uma proteção efetiva, alcançável apenas pela intervenção jurídico-criminal. Os minimalistas, por seu turno, identificam as dificuldades em recorrer-se ao Direito Penal para a proteção de bens jurídicos difusos, etéreos e, muitas vezes, pouco palpáveis. O controle das novas situações sociais, que envolvem os bens jurídicos decorrentes da pósmodernidade, recebe então novas propostas de regulação, como pela criação de um Direito de Intervenção21 ou pela total administrativização desse controle, relegando ao Direito Administrativo sancionador a incumbência de regulação e intervenção social nesses novos domínios. Por outro lado, e.g., Jesús-María Silva Sánchez22 sugere a manutenção de tais condutas sob os auspícios de um Direito Penal menos garantista, chamado Direito Penal de segunda velocidade, cuja característica principal, em seu entender, deveria passar pela impossibilidade de cominação de penas privativas de liberdade. De todo modo, cuidam-se de propostas doutrinárias, as quais não se sinalizam com condições políticas de viabilidade de adoção, ao menos no curto prazo. Toda essa discussão, socialmente embasada, encontra sua raiz, sua limitação e seu reflexo na estrutura constitucionalmente estabelecida para a sociedade. Assim, o conceito de bem jurídico e sua forma de tutela só podem ser obtidos da análise dos valores constitucionalmente plasmados, bem como de nossa estrutura constitucional, democrática de Direito. Um caminho para essa constatação é o de reconhecer que a missão do Direito Penal é a de proteção subsidiária de bens jurídicos, que são os interesses tutelados em uma Parte Especial e na legislação extravagante. Não se admite, então, um crime sem bem jurídico tutelado, que é o fundamento necessário e constitucional tanto para conceber um dever de proteção como para determinar os limites à intervenção penal. Essa é a visão que trará coerência e harmonia à análise da Parte Especial. Isso não significa que a legislação penal deva se mostrar impermeável às mudanças sociais, fruto da sociedade altamente complexa e evoluída de nossos dias, com feições pós-industriais. O Direito é um meio racional de enfrentamento de desafios humanos decorrentes da convivência intersubjetiva. Nesse sentido, novos interesses podem surgir e ser tutelados pelo Direito Penal. Todavia, o respeito a parâmetros claros e seguros para delimitação de seus contornos, como o conseguido por meio da noção de bem jurídico, é essencial para sua legitimidade. Portanto, a análise dos crimes em espécie, que se inicia pela Parte Especial do Código Penal, somente pode se dar atentando-se para todas as regras e princípios decorrentes de nossa ordem constitucional, em coadunação, de forma complementar23, com o insculpido na Parte Geral.

FOOTNOTES 1

COSTA, José de Faria. Direito penal especial: contributo a uma sistematização dos problemas “especiais” da parte especial. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 13.

2

Temas tratados nos capítulos 9 e 21 do v. 1 desta obra.

3

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1996, pp. 15-16.

4

Vide capítulo 4, item “4.1”, do v. 1 desta obra.

5

VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. Trad. Federico Carotti. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

6

COSTA, José de Faria. Direito penal.... cit., p. 16.

7

COSTA, José de Faria. Direito penal.... cit., p. 16.

8

SCHAFFSTEIN, Federico. La ciencia europea del derecho penal en la epoca del humanismo. Trad. Jose Maria Rodriguez Devesa. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1957, p. 33.

9

Em sentido oposto ao do texto, acolhendo posição doutrinária minoritária, a qual defende a reserva de Código, isto é, a inclusão da legislação penal extravagante no interior do Codex, vide GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Teoria geral da parte especial do direito penal. São Paulo: Atlas, 2014, p. 156 e ss.

10

Lei nº 11.343/2006.

11

Lei nº 9.503/1997.

12

Lei nº 9.605/1998.

13

Lei nº 7.492/1986.

14

REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do delito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 163 e ss.

15

COSTA, José de Faria. Direito penal.... cit., p. 20.

16

COSTA, José de Faria. Direito penal.... cit., p. 14.

17

COSTA, José de Faria. Direito penal.... cit., p. 14.

18

Lamentavelmente, o caótico catálogo de sanções previstas em incriminações as mais diversas, que não contra a pessoa, sinalizará pela negativa do afirmado, conforme se verá ao longo da presente obra.

19

BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro, Daniel Jiménez y Maria Rosa Borras. Barcelona: Paidos, 1998, passim.

20

GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegómenos para la lucha por la modernización y expansión del Derecho penal y para la crítica del discurso de resistencia. Valencia: Tirant lo Blanch, 2003, passim.

21

HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. Driana Beckman Meirelles, Carlos Eduardo de Oliveira Vasconcelos, Flipe Rhenius Nitzke, Mariana Ribeiro de Souza e Odim Brandão Ferreira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 259 e ss.

22

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 144 e ss.

23

BALCARCE, Fabián Ignacio. Introducción a la parte especial del derecho penal: su vinculación con la parte general. Montevideo-Buenos Aires: B de F, 2009, p. 27.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-2.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 2. HOMICÍDIO (ART. 121)

Capítulo 2. Homicídio (art. 121) Homicídio simples Art. 121. Matar alguém: Pena – reclusão, de seis a vinte anos. Caso de diminuição de pena § 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. Homicídio qualificado § 2° Se o homicídio é cometido: I – mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe; II – por motivo fútil; III – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; IV – à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; V – para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime: Pena – reclusão, de doze a trinta anos. Feminicídio VI – contra a mulher por razões da condição de sexo feminino: VII – contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição: Pena – reclusão, de doze a trinta anos. § 2o-A Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I – violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Homicídio culposo

§ 3º Se o homicídio é culposo: Pena – detenção, de um a três anos. Aumento de pena § 4o  No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as consequências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos. § 5º – Na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária. § 6o A pena é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por grupo de extermínio. § 7o A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado: I – durante a gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto; II – contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos, com deficiência ou portadora de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental; III – na presença física ou virtual de descendente ou de ascendente da vítima; IV – em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 22 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.

2.1.Considerações iniciais O crime de homicídio, há tempos, comove e fascina a sociedade, constatação aferível por conta de sua referência quer em termos de ficção – como pela literatura, pelo teatro ou pelo cinema –, ou por consideração de preocupações reveladas pela imprensa na divulgação de situações concretas ocorridas no cotidiano1. Todavia, conforme a realidade nacional o demonstra na aferição de alguns dados de fácil acesso, o crime de homicídio nem é o mais praticado, tampouco o mais reprimido pelas instâncias de controle e muito menos o mais gravemente punido pelo ordenamento jurídico. Quanto ao primeiro aspecto, observa-se que, exemplificativamente, no ano de 2017, no Estado de São Paulo, em números aproximados, foram registrados 3.300 homicídios dolosos2, ante, e.g., mais de 300.000 roubos. Esse pequeno recorte denota, claramente, não ser o crime mais cometido na prática. Efetivamente, ano a ano, constata-se que os crimes patrimoniais superam, em muito, os registros de crimes contra a vida. Se o delito de homicídio não é o mais praticado, naturalmente, não seria o mais cerceado pelas instâncias penais de controle (polícia, ministério público e poder judiciário) em sua atividade persecutória, o que é verificado por outra fonte de informações. Conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), ligado ao Ministério da Justiça, em 2017, de um universo de cerca de 725.000 presos no Brasil, dentre definitivos e provisórios, ao redor de 11% assim se encontravam por conta de acusações de homicídio, diante de cerca de 40% por conta de crimes patrimoniais e por volta de 30% por delitos relativos a drogas. Por conseguinte, nota-se que não é o crime mais reprimido. Individualmente tratando, aliás, vê-se que o tráfico de drogas é a infração penal que mais gera encarceramentos (tanto na população carcerária masculina como, principalmente, na feminina).

Por fim, considerando-se o tamanho da sanção prisional como critério objetivo idôneo de mensuração da gravidade e da relevância de um tipo penal, valorativamente consideradas no bojo da atividade política do legislador, forçoso verificar-se que, a despeito do delito de homicídio ser a primeira infração penal insculpida na Parte Especial do Código Penal – o que naturalmente sinalizaria uma indicação simbólica de sua maior importância na legislação –, não se trata, contudo, do crime mais gravemente punido pela legislação brasileira. Assim é que, e.g., as penas mínimas dos crimes de estupro de vulnerável (artigo 217-A do Código Penal) ou de falsificação de cosméticos (artigo 273, §1º-A) são superiores à do homicídio simples, enquanto a de extorsão mediante sequestro com resultado de lesão corporal grave (artigo 159, § 2º), ademais, é superior a do homicídio qualificado. Dessa maneira, tampouco o homicídio consiste no crime mais severamente reprimido pela lei pátria, dando-se a impressão que não seria o considerado como mais significativo. Longe de se tentar menosprezar a relevância do tipo penal em destaque, as constatações aduzidas servem, muito pelo contrário, para sinalizar o porquê da proeminência a ele dada, além de também, desde já, ressaltar distorções ocorrentes no sistema sancionatório estabelecido em nossa legislação penal. O enorme interesse pelo crime de homicídio é verificado a partir da constatação de seu significado e do que efetivamente ele tutela. Nessa investigação, possivelmente pode-se surpreender com a constatação de que as coisas não são tão óbvias como podem parecer à primeira vista. Preliminarmente, para tentar auxiliar a compreensão, pode-se, genericamente, referir que Carmignani3, autor da Escola Clássica italiana, definia o homicídio como a morte de um homem ocasionada pelo comportamento ilícito de outro homem. Hungria4, por sua vez, na doutrina brasileira, dimensionando essa conduta de modo mais agudo, observava que o homicídio seria a mais chocante violação do senso moral médio da humanidade civilizada. Entretanto, poder-se-ia questionar tal assertiva a partir de algumas constatações históricas. Se, por um lado, o Código de Hamurabi (de cerca de 1.700 a.C.) punia o crime de homicídio com pena de morte, por outro, também estabelecia a mesma pena para inúmeras outras situações, como, v.g., o adultério, parecendo demonstrar, simultaneamente, alguma importância e grande falta de importância pela vida humana. Ademais, como observa Manzini5, os povos antigos, como egípcios, gregos e romanos, tinham por hábito a prática de sacrifícios humanos, em homenagem aos deuses ou a seus governantes. Na Roma antiga, ainda, como o mostra Fustel de Coulanges6, o pater familias detinha poder de vida e morte sobre os seus familiares, sendo a morte de escravos tratada não como a eliminação de uma vida humana, mas destruição de uma coisa. No mesmo sentido odioso de tratamento de escravos como coisas, veja-se o período escravista no Brasil. Demais disso, por largo período, a resposta penal típica foi a pena de morte, como que banalizando a vida humana na cominação de tratamento de interesses estatais ou da sociedade. A disseminação da prisão como resposta punitiva, e não meramente como custódia cautelar, somente vai ocorrer na Idade Moderna, isto é, muito tardiamente na história da humanidade7. Efetivamente, e apesar do irracionalismo revelado no período inquisitorial, a vida humana sedimenta-se como interesse de maior valor a partir da doutrina cristã, iniciada ainda em Roma e consolidada no medievo, baseada na ideia de que o homem foi criado à imagem e semelhança da divindade, possuindo diferenciado valor. Essa valorização do homem, visto como centro do universo, revela seu ponto culminante no período iluminista, com toda sua postura humanizadora e racionalizadora do Direito Penal. É por conta de todo esse pensamento que nos dias atuais parece intuitivo imaginar que o crime de homicídio protege a vida humana, e que isso seria o interesse mais importante na sociedade. Mas, como sinalizado, há desafios dogmáticos e políticocriminais em torno do tema.

2.2.Objetividade jurídica Conforme sinalizado pela nomenclatura do Capítulo 1 do Título I da Parte Especial do Código Penal brasileiro, o bem jurídico tutelado pelo crime de homicídio é a vida humana, atingida pela

conduta ilícita de outrem, agente culpável. A vida humana é um interesse fundamental, assegurado pelo caput do artigo 5º da Constituição brasileira. Não se pode imaginar, no atual estágio civilizatório, uma organização social sem a proteção desse interesse enquanto o mais essencial para a convivência pacífica dos indivíduos. Insta notar, todavia, que aquilo que parece simples e intuitivo, em realidade, pode se mostrar enormemente dificultoso, tanto em termos teóricos como práticos. Afinal de contas, dúvidas persistem sobre o exato significado de vida, bem como quanto ao marco de reconhecimento do início e fim da vida humana. A provocação da morte de um ser nascente pode ser catalogada de modos distintos a depender do momento em que ocorra. Demais disso, e.g., o ocasionamento da morte de alguém que respira, mas cuja função cerebral não mais funciona, ou vice-versa, pode ter soluções diversas a depender do ordenamento jurídico, não existindo uma solução natural acolhida por todas as sociedades. As constatações históricas anteriormente mencionadas, assim como as últimas inquietações formuladas, demonstram, no fundo, a relatividade dos conceitos jurídicos, histórico e socialmente condicionados. O Direito é valorativo, não podendo defluir de ontologismos. De outra sorte, claramente se vê que a metodologia positivista jurídica mostra-se insuficiente, vez que ignora o ínsito axiologismo de cada problematização posta. Muito embora o Direito Penal proteja a vida humana desde a concepção, para efeitos de reconhecimento do crime de homicídio, em termos estritos, considera-se a vida humana extrauterina, pois a intrauterina possui tipos próprios, de aborto. Prevalece o entendimento de que se a morte se dá durante o parto, ressalvada a hipótese do infanticídio, cuida-se de homicídio. Como atinge um único bem jurídico, o homicídio é considerado crime simples.

2.3.Sujeitos do delito Relativamente aos sujeitos do delito, insta observar que o homicídio é crime comum, ou seja, pode ser praticado por qualquer indivíduo culpável enquanto sujeito ativo. Sujeito passivo é qualquer pessoa após o início do parto, o que ocorre com rompimento da bolsa amniótica8. É preciso se atentar para o fato de que algumas características particulares do ofendido ensejarão tratamento jurídico diferenciado para o autor do crime, conforme regramento constante no próprio art. 121 do Código Penal ou, ainda, estabelecido em legislação extravagante. Nessas hipóteses, deverá haver intencionalidade homicida (animus necandi) por parte do agente, que necessita conhecer a respectiva condição peculiar do sujeito passivo, sob pena de se consagrar uma responsabilização penal objetiva, o que é vedado. Dessa maneira, se a vítima for mulher, que sofre a ação delitiva por razões da condição de sexo feminino (circunstância aclarada no § 2º-A do artigo em destaque, analisado abaixo), incide a qualificadora do feminicídio. Ainda, se a pessoa ofendida é autoridade ou agente de segurança pública, assim como respectivos parentes, nos termos do inciso VII do § 2º do art. 121, aplica-se essa qualificadora. Por fim, se a pessoa morta tiver menos de 14 ou mais de 60 anos, há uma causa de aumento de pena prevista no § 4º, in fine, do mesmo artigo. Se a pessoa morta dolosamente é o presidente da República, do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal, pelo princípio da especialidade, o crime desloca-se para o previsto no artigo 29 da Lei nº 7.170/1983 (Lei de Segurança Nacional), deixando, dessa maneira, de incidir o art. 121 do Código Penal. A seu turno, caso atente contra a vida de alguém com o intuito de destruir grupo nacional, étnico, racial ou religioso, responderá pelo crime de genocídio, conforme o previsto no artigo 1º da Lei nº 2.889/1956.

2.4.Tipicidade objetiva e subjetiva

O Código Penal de 1940, seguindo o que fora adotado pelo Código Penal Republicano (1890), consagrou o nomen iuris de homicídio para a totalidade do artigo em análise, ao contrário da orientação de alguns outros países, os quais denominam “homicídio” para o homicídio simples e “assassinato” para o que para nós seria o homicídio qualificado9. O art. 121 apresenta situações diferenciadas de homicídio, mais ou menos graves, conforme as circunstâncias, ensejando, dessa maneira, respostas penais distintas. A legislação brasileira insculpe, então, as seguintes categorias quanto ao tipo penal em análise: homicídio simples; homicídio privilegiado; homicídio qualificado e homicídio culposo. Fora deste último caso, quanto ao elemento subjetivo do dolo direto no homicídio, é também chamado de animus necandi. À exceção do homicídio culposo, todas as demais hipóteses são julgadas pelo Tribunal do Júri, consoante previsão constitucional.

2.4.1.Consumação e tentativa Com relação ao momento consumativo do crime de homicídio, isto é, de lesão ao bem jurídico tutelado, consistente na morte da vítima, a princípio, o critério seria relativo, já que as funções circulatória, respiratória e encefálica, concretamente, podem cessar seu funcionamento em momentos distintos. Nesse sentido, procurando resolver um grave problema prático e que inviabilizaria os transplantes de órgãos no Brasil, a Lei nº 9.434/1997 (Lei de Transplantes), em seu artigo 3º, seguindo a tendência da maioria dos países, estabeleceu como diagnóstico de óbito a morte encefálica. Esse é o critério jurídico-penal pacificado desde então, conforme o reconhece doutrina e jurisprudência. A consumação do crime é verificada, dessa forma, com a morte da vítima, ou seja, a partir da parada de sua função cerebral, provocada por conduta humana dolosa ou culposa. Esse fato é aferido em momento preciso, sendo irreversível, razão pela qual o delito de homicídio é classificado como crime instantâneo de efeitos permanentes. A morte prova-se materialmente por exame de corpo de delito – chamado in casu exame necroscópico, ou autópsia –, eis que se trata de uma infração penal que deixa vestígios (artigo 158 do Código de Processo Penal10). Se não for possível a realização do exame de corpo de delito direto, ou seja, sobre o corpo da vítima, a lei processual admite o indireto, como a análise de outros elementos materiais, como sangue da vítima encontrado no local do crime. Na impossibilidade também do exame indireto, admite-se a prova testemunhal11. Diante desse último regramento, frise-se que há possibilidade de se condenar alguém sem que se encontre o cadáver. De qualquer forma, o critério na análise das provas indiretas ou testemunhais há de ser redobrado, para que não se repita um dos mais famosos erros judiciários do Brasil, que se deu no conhecido “caso dos irmãos Naves”, o corrido no final dos anos 30 do século passado, em Minas Gerais12. Como crime material, o homicídio admite tentativa, menos, por óbvio, em sua modalidade culposa, vez que nenhum crime culposo admite tentativa. Ocorre a tentativa (conatus) quando, após o início da execução, o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Assim, por exemplo, ocorre tentativa tanto no caso do agente ter efetuado diversos disparos de arma de fogo, não acertando qualquer deles no corpo da vítima, por má pontaria, como na hipótese de ter atingido todos, mas tendo ela sobrevivido após ser socorrida ao hospital a tempo por terceiros. Se o corpo da vítima não é atingido, a tentativa é denominada branca ou incruenta. Se ocorre lesão corporal como resultado da ação agressora, isto é, se o corpo da vítima é atingido pela conduta homicida, a tentativa é chamada de vermelha ou cruenta. Uma ou outra situação impactará o quantum de diminuição de pena em razão do reconhecimento da tentativa (art. 14, inciso II, do Código Penal). A tentativa incruenta recebe maior patamar de diminuição.

2.4.2.Homicídio simples

O homicídio simples, tipo básico de homicídio, possui emblemático enunciado em termos de tipicidade penal, qual seja, “matar alguém”. Algo singelo, conciso, objetivo, taxativo e de enorme significado. O núcleo do tipo, consistente no verbo “matar”, expressa a ideia de fazer cessar a vida, enquanto o elemento objetivo do tipo “alguém” tem o sentido de ser humano diverso do próprio agente, razão pela qual a infração penal denota a acepção de eliminar a vida de outra pessoa. A importância do tipo é enorme para a Teoria Geral do Delito. Essa, também denominada de teoria do fato punível, conforme Claus Roxin13, auxilia a identificação e a delimitação dos pressupostos gerais da ação punível e os correspondentes requisitos de imputação. Segundo Silva Sánchez14, a Teoria Geral do Delito é, então, a teoria de uma atribuição teleológica de sentido a um fato de um sujeito. Ao longo de sua trajetória, assim, buscam-se soluções dogmáticas generalizantes aos casos apresentados. A Teoria do Delito, de tradição germânica, a partir do século XIX, erigiu-se a partir do modelo de crime de homicídio, crime material que tutela o interesse fundamental da pessoa. Nesse contexto, a referência típica de crime da Teoria Geral do Delito, não apenas da fase clássica, mas também posterior, é o crime de homicídio. Diversas categorias e classificações penais foram erigidas a partir desse paradigma. O homicídio é um crime de forma livre (ativa ou omissiva), perpetrado por qualquer meio, por qualquer pessoa, como visto, contra outra. Assim, se o indivíduo atira em quem já está morto, há crime impossível por absoluta impropriedade do objeto. Não responde por vilipêndio a cadáver (art. 212 do Código Penal), pois esse é crime doloso. A expressão “homicídio simples” foi insculpida apenas para diferenciá-lo das demais categorias apontadas. No homicídio simples não se constata qualquer motivação específica (ausência de motivo aparente não é motivo fútil, conforme o reconhece a doutrina e jurisprudência) ou forma de execução que revele maior reprovação da conduta. Na verdade, cuida-se de um tipo residual. Há homicídio simples quando não verificado um homicídio em outra modalidade. O homicídio simples é crime hediondo (Lei nº 8.072/1990, com a redação dada pela Lei nº 8.930/1994) apenas se praticado em atividade típica de grupo de extermínio (matança generalizada), ainda que perpetrado por um só agente.

2.4.3.Homicídio privilegiado O nome “homicídio privilegiado” não existe na legislação, tendo sido criado doutrinariamente e acolhido pela jurisprudência. Está previsto no artigo 121, § 1º, do Código Penal, o qual estabelece que, “se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço”. Cuida-se de uma causa especial de diminuição de pena (ou minorante) que não existia antes do Código de 194015. Há, no caso, aferição de menor desvalor na ação do agente, razão pela qual ele é punido com menor rigor. Por óbvio, isso não quer dizer que o legislador aprova a conduta homicida em tais situações, que continuam consideradas delitivas, mas tão somente que reconhece uma menor censurabilidade nas específicas hipóteses descritas, abrandando-se a pena na terceira fase do procedimento trifásico de aplicação desta. As circunstâncias de privilégio possuem natureza subjetiva, isto é, dizem respeito às motivações do agente para a prática homicida. Em face de tal caráter subjetivo, tratando-se de causas de diminuição de pena e não elementares de crime, conforme a regra do art. 30 do Código Penal16, não há comunicabilidade a eventuais coautores ou partícipes. Apesar de a lei estabelecer que o juiz “pode” reduzir a pena, entende-se que a redução é obrigatória, em face da soberania dos veredictos do júri (art. 5º, XXXVIII, c, da Constituição). Assim, havendo o reconhecimento do privilégio pelo Conselho de Sentença, isto é, pelos jurados, a redução deve necessariamente ser procedida pelo magistrado sentenciante, o qual, todavia, deverá

determinar o quantum de redução conforme as circunstâncias do caso concreto17. Nosso Código estabelece três situações alternativas de homicídio privilegiado: a) crime praticado por motivo de relevante valor social; b) crime praticado por motivo de relevante valor moral e c) crime praticado sob o domínio de violenta emoção, logo após injusta provocação da vítima. São, como referido, razões subjetivas especiais que levam o agente à prática da ação homicida. As duas primeiras, de difícil diferenciação, cuidam-se propositadamente de cláusulas mais abertas para fins de permitir maior liberdade de reconhecimento pelo Tribunal do Júri nos casos concretos, uma vez que não seria possível ao legislador fixar de forma taxativa todas as hipóteses factíveis. Motivo de relevante valor social é aquele imaginado para situações em que a morte da vítima é consentânea com os interesses da coletividade em geral18, revelando preocupações sociais nobres em si mesmas19. Assim como o relevante valor moral, trata-se de motivo aferido segundo a consciência ético-social geral, motivo pelo qual muitos veem dificuldades em distingui-las. Exemplo tradicional da doutrina, a partir do apontado na Exposição de Motivos do Codex, é a morte do traidor da pátria. Até pelo inusitado exemplo, nota-se que não existe jurisprudência sobre referido privilégio. Relevante valor moral diz respeito a sentimentos pessoais do homicida, aprovados pela moralidade coletiva. A referida Exposição de Motivos cita a eutanásia, ou seja, o abreviamento da vida de pessoa que apresenta grave sofrimento em decorrência de enfermidade, conduta realizada a seu pedido ou ao menos se levando em conta sua vontade presumida20. A eutanásia, também chamada “homicídio piedoso”, consubstancia-se em uma conduta ativa, antecipando-se a morte da pessoa enferma. Nesse caso, ressalte-se, o agente efetivamente elimina uma vida, envolto em sentimentos de compaixão. A eutanásia, assim, não se confunde com a ortotanásia, conduta omissiva consistente na não utilização de tratamentos paliativos para fins de se prolongar a vida do paciente. A ortotanásia não é entendida como crime, vez que, nesse caso, a morte ocorre de forma natural, sem antecipações ou prolongamentos. A Resolução nº 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina admite que o paciente possa rejeitar antecipadamente os métodos artificiais de prolongamento da vida. Complexa questão, a seu turno, ocorre quando o paciente encontra-se em distanásia, também chamada de obstinação terapêutica, isto é, sob procedimento médico que prolonga sua vida – dotada de enfermidade incurável – exclusivamente de modo artificial e desproporcional, e tal recurso terapêutico vem a ser finalizado. Nesse caso, a ação do agente converte a distanásia em eutanásia ou ortotanásia? Em 2006, o Conselho Federal de Medicina compreendeu o fato como ortotanásia, em resolução questionada judicialmente, mas assumida como lícita pelo julgador21. Outro exemplo de homicídio privilegiado por relevante valor moral normalmente citado pela doutrina é o do pai que mata o estuprador de sua filha. Evidentemente, para caracterização do delito – com a causa de diminuição de pena em destaque –, o fato há de ocorrer após o crime sexual, quando não se cogita mais de legítima defesa de terceiro. A derradeira possibilidade de minorante é aquela em que o crime foi praticado sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima. Referida redução remonta à Idade Média22. Na hipótese, o agente pratica a ação homicida envolto em exasperação, isto é, aguda excitação, deflagrada por comportamento injusto daquele que culmina por se tornar sua vítima. Esta perturba de modo iníquo propositadamente o agente, que se enerva a ponto de praticar homicídio. Por conseguinte, exige-se a convergência dos seguintes fatores, sem os quais o reconhecimento da causa de diminuição de pena não poderá ocorrer: a) injusta provocação por parte da vítima; b) domínio de violenta emoção por parte do agente e c) curto lapso temporal entre aquela e esta última. A provocação da vítima há de ser, naturalmente, deliberada e injusta. Em outras palavras, deve se revestir de um mínimo de gravidade. Por injusta pode se entender ilícita, não necessariamente criminosa. A análise há de ser cuidadosa porque, se a ação provocadora for criminosa, é possível

estar-se diante de um caso de legítima defesa, regular ou com excesso por parte daquele que perpetrou a morte, e não de homicídio privilegiado. Caso a provocação não seja minimamente grave, possivelmente cuidar-se-á de hipótese de homicídio qualificado por motivo fútil, como no exemplo do agente que mata outrem porque este ironizou a perda de partida de futebol pelo time de preferência daquele. O domínio de violenta emoção, a seu turno, é uma relevante e passageira perturbação dos sentimentos deflagrada pela provocação ilegítima. Dessa forma, trata-se de uma indignação súbita e aguda, desencadeada pelo comportamento irrazoável da vítima. Certamente, esse elemento é de difícil constatação quando da análise do processo criminal, havendo grande peso nas palavras de testemunhas e do próprio acusado, bem como se sobressaindo a análise objetiva do caso concreto. Quanto ao lapso temporal entre a provocação e a reação emocionada e violenta, forçosa a constatação de brevidade. Contudo, observa-se que não se exige atualidade ou iminência de agressão, como na legítima defesa. Desse modo, o lapso temporal pode ser um pouco mais alargado, mas no mesmo contexto fático da provocação ou poucos momentos após ela, já que a lei fixa “logo em seguida”. Assim, não existe qualquer empecilho em se reconhecer a minorante se, por exemplo, o indivíduo é ofendido no bar, vai para casa, pega sua arma e, retornando àquele ainda enfurecido, atira no ofensor. O momento “logo em seguida” à “injusta provocação” conta-se a partir do conhecimento da provocação. Por derradeiro, importa notar que na presente causa de privilégio não se exige o uso moderado dos meios necessários, como ocorre na legítima defesa, de forma que a reação colérica pode ser desproporcional (e.g., o agente mata a vítima após levar dela um tapa no rosto). A maior exigência na legítima defesa se dá porque essa exclui a antijuridicidade do fato, enquanto no homicídio privilegiado, por óbvio, o agente responde pelo crime, ainda que com atenuação. Consoante doutrina e jurisprudência dominantes, é possível reconhecer o homicídio privilegiado na presente hipótese para aquele que, quando flagra o cônjuge em adultério, mata-o ou a seu amante, ou a ambos, pois isso seria uma injusta provocação com reação sine intervallo. Em que pese as reservas que poderiam ser postas a tal compreensão, relativa aos chamados “crimes passionais”, rótulo popular tradicionalmente utilizado para justificar em maior ou menor medida toda sorte de violência machista, forçoso, todavia, advertir-se que não se cuida tal situação da denominada legítima defesa da honra. Sobre essa, alguns esclarecimentos se fazem precisos. As Ordenações Filipinas, diploma legal português de triste memória, dispunham que “achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar a ela e ao adúltero, salvo se o marido for peão e o adúltero fidalgo, ou nosso desembargador, ou pessoa de maior qualidade”. Cuidava-se da consagração, embora sem a adoção oficial desse nome, da chamada “legítima defesa da honra”, imbuída de moralismo ensejador de profundo vilipêndio da dignidade humana das mulheres, acrescida, ademais, de hipócrita distinção socioeconômica entre indivíduos. Muito embora essa indigna previsão não tenha se repetido em qualquer legislação posterior genuinamente brasileira, o fato é que o ideário subjacente prevaleceu nas entranhas do preconceito social nacional durante o século XIX e boa parte do século XX, com, segundo o demonstra a historiografia, inúmeras absolvições nos tribunais do júri tendo se escorado nessa argumentação. A reação social à morte do escritor Euclides da Cunha, e.g., a isso bem dimensiona, sinalizando-se que se o escritor tivesse sobrevivido, e não o amante de sua esposa, muito provavelmente teria sido absolvido por essa razão23. Nos dias atuais, felizmente, esse tipo de argumentação não encontra mais respaldo social, sendo que, se esporadicamente ocorrente, enseja a anulação do julgamento por decisão manifestamente contrária à prova dos autos (art. 593, III, d, do Código de Processo Penal).

2.4.4.Homicídio qualificado Ao contrário do homicídio privilegiado, a figura do homicídio qualificado revela maior desvalor na ação do agente, por isso, fixa-se a ele punição mais rigorosa: 12 a 30 anos de reclusão. Aliás, não se pode olvidar que “qualificadora” possui pena própria, sendo, assim, um tipo penal autônomo,

decorrente de uma figura fundamental menos gravosa, prevista no caput do mesmo artigo. O homicídio qualificado encontra-se previsto no §2º do art. 121, que prevê situações mais graves que cercam a morte dolosa de alguém. Referidas circunstâncias são objetivas ou subjetivas, aduzidas em sete incisos. Homicídio qualificado é considerado crime hediondo, conforme alteração legislativa promovida pela Lei nº 8.930, de 1994, que modificou a Lei nº 8.072/1990, aprovada após a pressão midiática e popular em decorrência da morte da atriz Daniela Perez, ocorrida em 1992. Os crimes hediondos recebem tratamento jurídico recrudescido. Proíbe-se a eles concessão de fiança, anistia, graça e indulto, assim como se estabelecem condições mais rigorosas de cumprimento de pena24. A doutrina reconhece às qualificadoras do crime de homicídio quatro ordens distintas, conforme classificação tradicional: a) pelos motivos; b) pelos meios empregados; c) pelos modos de execução e d) pelos fins ou conexão (teleológica ou consequencial). Referidas rotulações foram erigidas antes dos acréscimos de duas novas qualificadoras, no ano de 2015, relativas ao feminicídio e à morte de autoridades ou agentes de segurança ou seus parentes, em razão de sua condição (incisos VI e VII do § 2º), as quais não se subsumem exatamente a nenhuma delas. O homicídio qualifica-se pelos motivos quando praticado mediante paga ou promessa de recompensa; por outro motivo torpe ou, por fim, por motivo fútil. Referidas hipóteses, de cunho subjetivo, constam dos incisos I e II do § 2º do art. 121. Os meios empregados qualificam o homicídio quando esse é levado a cabo utilizando-se de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar em perigo comum, consoante a dicção do inciso III. Trata-se de circunstâncias objetivas que tornam o fato mais gravoso. Pelos modos de execução, o homicídio é considerado qualificado se perpetrado mediante traição, emboscada, dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido, conforme o inciso IV. Assim como a hipótese anterior, cuidam-se de razões objetivas que tornam o fato mais censurável. Por derradeiro, considera-se qualificado pelos fins ou conexão com outro crime o homicídio praticado com o intuito de assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou a vantagem de outro crime. São hipóteses subjetivas, previstas no inciso V, que denotam especial fim de agir do agente. Por tal motivo, segundo Bitencourt25, constituem a categoria de elemento subjetivo especial do tipo.

2.4.4.1.Mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe A morte de outrem levada a efeito mediante paga ou promessa de recompensa caracteriza o chamado homicídio mercenário. Cuida-se de especial motivação de caráter venal que leva o agente à prática homicida, caso típico da atuação dos chamados “matadores de aluguel”, “sicários” ou “matadores profissionais”26. Pela redação completa do inciso I do § 2º, a qual se refere ao final a “outro” motivo torpe, percebe-se que o homicídio mercenário é considerado pela lei como espécie de motivação torpe. O homicídio mercenário obrigatoriamente pressupõe concurso de agentes (crime bilateral ou de concurso necessário), com ao menos dois indivíduos compondo o polo da subjetividade ativa da conduta, em situações distintas: um na condição de mandante do crime e outro na de seu executor. Aquele, considerado partícipe da ação, oferece pagamento ou promete recompensa para que este último, entendido como autor, elimine a vida de alguém. Não se faz preciso, para reconhecimento da qualificadora, que o pagamento ocorra ou que a promessa se cumpra, bastando que a ação tenha sido motivada por uma dessas razões. Em todos os casos apontados, inquestionavelmente, o executor incide na situação descrita no inciso. Doutrina e jurisprudência divergem, no entanto, sobre a comunicabilidade da presente

qualificadora ao mandante do delito. Para uma corrente, a circunstância seria elementar do crime, razão pela qual, diante da redação do art. 30 do Código Penal27, haveria comunicação. Em outras palavras, para esse ponto de vista, tanto mandante como executor responderiam por homicídio mercenário. Perfilham dessa compreensão na doutrina, e.g., Mirabete28 e Costa29, e, na jurisprudência, encontram-se alguns julgados30 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) no mesmo sentido. Para outra compreensão, todavia, não se pode cogitar da aplicação da qualificadora em destaque, pois o mandante não age por motivo de pagamento ou promessa de recompensa. Quem assim o faz é apenas o executor, conforme propugnam na doutrina, v.g., Fragoso31, Prado32 e Greco33, e, na jurisprudência, outros julgados34 do STJ. Assiste razão a essa última compreensão. O mandante não almeja pagamento ou recompensa, proporciona-os. As motivações do mandante poderão eventualmente caracterizar outra razão qualificadora, mas não a ora analisada. Inclusive, o mandante pode pagar ou prometer vantagem estando envolto em motivação catalogada como privilegiadora de motivo de relevante valor social ou moral, algo que se mostra incompatível com a atuação venal daquele que mata para fins de auferimento de pagamento ou vantagem. Por fim, entende-se, majoritariamente,35 que a prestação em destaque (pagamento ou recompensa) deve possuir valor econômico. Por conseguinte, não constitui homicídio mercenário aquele realizado mediante, por exemplo, o efetivo ou prometido favor sexual, sendo este, de qualquer forma, motivo torpe, aplicando-se, de qualquer modo, a qualificadora do inciso em estudo36. Motivo torpe, por sua vez, é o motivo abjeto, repugnante, vil, ignóbil, imoral. Consoante Fragoso37, “torpe é o motivo que ofende gravemente a moralidade média ou os princípios éticos dominantes em determinado meio social”. Além do exemplo do homicídio praticado com vistas ao favor sexual, são casos de motivação torpe as mortes ocasionadas por vingança ou por motivo de preconceitos racial, de religião, origem ou orientação sexual. Até a edição da Lei nº 13.104/2015, que criou a qualificadora do feminicídio, o homicídio misógino era considerado torpe.

2.4.4.2.Por motivo fútil Motivo fútil é o desarrazoado, desproporcional, insignificante. Dessa forma, homicídio por motivação fútil é a morte deflagrada por razões de mínima importância. Ocorre, por exemplo, na situação em que o agente mata a vítima porque foi ultrapassado por ela no trânsito, porque ela reclamou da música alta que aquele ouvia ou, ainda, porque ela estava utilizando camiseta de time de futebol de seu desagrado. Doutrina e jurisprudência majoritárias entendem que o ciúme não seria motivo fútil, porque não consiste em algo irrelevante para o agente. Aliás, como já advertia Hungria38, motivo fútil não pode ser confundido com motivo injusto, vez que, dadas as circunstâncias, algo aparentemente frívolo – como no exemplo de um apelido de desagrado do agente – pode desencadear uma reação impulsiva de cólera. Embora moralmente reprovável uma situação nesses moldes, poderá até haver o reconhecimento de homicídio privilegiado, afastando-se a ideia de futilidade. De qualquer forma, para a correta resolução das situações dúbias, não se pode olvidar que a privilegiadora de violenta emoção logo em seguida a injusta provocação da vítima enseja a aferição de uma atuação ilegítima desta em direção ao agente, ou seja, uma hostilidade deliberada e irrazoável conforme o senso comum. E, por causa desse ultraje, ademais, o agente revela, em um curto espaço de tempo, uma reação de ira que o leva a matar. A ausência de qualquer desses elementos, ressalte-se, afasta a possibilidade de reconhecimento do homicídio privilegiado. Por outro lado, também importante frisar, uma vez mais, que ausência de motivo aparente não enseja ipso facto o reconhecimento de motivo fútil. Este deverá necessariamente ser comprovado nos autos, não sendo possível presumir-se a qualificadora.

2.4.4.3.Com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum O art. 121, § 2º, inciso III, prevê hipóteses de meios de execução do homicídio considerados mais gravosos por parte do legislador. Há uma previsão casuística (veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura), seguida de uma fórmula genérica (outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum), que denota serem três as considerações levadas a efeito para tal valoração negativa: insídia, crueldade ou possibilidade de perigo comum. Meio insidioso é aquele velado, dissimulado, o qual, a um só tempo, revela maior malícia do agente e impossibilidade de defesa por parte da vítima. Cruel é o meio que denota brutalidade fora do comum, aumentando gratuitamente o sofrimento da vítima, conforme referido pela Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal (item 38). Meio de que possa resultar perigo comum é aquele expediente que pode causar dano a número indeterminado de pessoas. A lei se utiliza do elenco de exemplos de meio insidioso (veneno), cruel (asfixia, tortura ou fogo) e com possibilidade de resultado de perigo comum (fogo, a depender das circunstâncias, e explosivo), não descartando outros similares, como visto, por meio de interpretação analógica no caso concreto. Há de se atentar para o fato de que não se cuida de analogia in malam partem, método de integração vedado para normas incriminadoras, mas sim de interpretação analógica, possível quando a própria lei determina a ampliação de seu alcance e conteúdo39. O homicídio por emprego de veneno é denominado venefício. Entende-se por veneno a substância química ou biológica capaz de causar a morte quando introduzida no organismo40. Para caracterização da presente qualificadora, o veneno deve ser introduzido no corpo da vítima de forma velada ou sub-reptícia41, consubstanciando-se a ingestão forçada de veneno por esta última como meio cruel. Diverge a doutrina na hipótese de a substância normalmente não ser capaz de causar a morte de alguém, a não ser, excepcionalmente, em determinadas pessoas. É o caso do fornecimento de açúcar para o diabético. Segundo Hungria42, seguido pela doutrina dominante43, há a qualificadora em apreço, sendo o conceito de veneno relativo. Para outra corrente (v.g., Mirabete44, Prado45), contudo, o conceito de veneno é algo objetivo, podendo ser reconhecido no exemplo em foco, de utilização de substância inócua, o emprego de meio insidioso. Este último, repita-se, é o meio fraudulento, velado, isto é, sem o conhecimento da vítima. Outros exemplos de meios insidiosos que podem ser abarcados pela fórmula genérica do dispositivo são os do agente que corta os freios do veículo que vem a ser utilizado pela vítima ou, ainda, daquele que propositadamente troca o remédio do portador de grave moléstia por pílula de farinha. O emprego de fogo também qualifica o homicídio, constituindo um meio cruel o qual, ainda, a depender da situação, pode resultar perigo comum46. A lei não se utiliza da palavra “incêndio”, como no Código Penal de 1890, mas sim fogo, podendo não haver na situação concreta perigo comum, como no caso da vítima ser atirada dentro de um forno47. A eliminação da vida de alguém mediante a utilização de explosivo (como bomba caseira, dinamite ou granada) também qualifica o homicídio. Nessa hipótese, a decomposição brusca da matéria ocasionada pela explosão normalmente traz consigo um perigo a número indeterminado de pessoas. Não sendo tal efetivamente verificado, mesmo assim justifica-se o reconhecimento da qualificadora em razão da extrema gravidade da ação. A qualificadora de homicídio com emprego de tortura consiste na inflição de sofrimentos desnecessários para a eliminação da vida da vítima. É meio cruel por excelência48, podendo se dar por meios físicos ou morais49. Com relação à tortura, é o elemento subjetivo que diferencia a figura qualificada em foco do delito de tortura com resultado morte (art. 1º, § 3º, in fine, da Lei nº 9.455/1997). No primeiro caso, o agente deseja matar vítima torturando-a; no segundo, não há animus necandi, o intuito é apenas o de torturar a vítima, sendo sua morte culposa. Em outras

palavras, neste último caso, cuida-se de crime preterdoloso. A asfixia, segundo Aníbal Bruno, é também um meio torturante, pois “produz a morte em meio à mais horrível angústia”50. Asfixia resulta de obstáculo à passagem de ar através das vias respiratórias ou pulmões51. Pode se dar por meios violentos, como esganadura, enforcamento, afogamento, estrangulamento, soterramento, sufocação direta ou indireta, ou, ainda, por intermédio da utilização de gases irrespiráveis52. Como referido, meio cruel é aquele que provoca grave e desnecessário sofrimento à vítima. São infinitas as possibilidades de morte perpetrada por meio cruel (v.g., jogar a vítima na jaula de animais ferozes para que morra devorada por estes, atirá-la no tanque com ácido ou atropelá-la). O número de tiros ou facadas, por si só, apesar de julgados contraditórios a respeito, não configura meio cruel, devendo ser analisada a situação concreta. Assim, e.g., o lento esfaqueamento, em partes não vitais, para se comprazer com a dor da vítima, é meio cruel, mas inúmeras facadas sequenciais em situação de ódio, não.

2.4.4.4.À traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido Traição, emboscada, dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido são modos de execução aptos a desvalorar mais negativamente o homicídio. A razão de ser das qualificadoras insculpidas no art. 121, § 2º, inciso IV, é a surpresa ocasionada na vítima, dificultando ou impossibilitando sua defesa. O Código Penal Republicano previa expressamente a surpresa como qualificadora do homicídio, o que foi abandonado pelo Código de 1940; contudo, ela se encontra perfeitamente subjacente às hipóteses em foco. Na traição, há uma quebra de confiança por meio de um ataque sorrateiro. Pressupõe-se uma perfídia e deslealdade53 por parte do agente, como nos exemplos da esganadura realizada durante o ato sexual ou do ataque efetuado pelas costas54. O homicídio à traição é denominado homicidium proditorium. Na emboscada, a seu turno, ocorre uma tocaia, uma armadilha mediante a qual o agente, escondido, surpreende a vítima. Cuida-se da espera dissimulada da vítima em lugar por onde ela terá de passar55. Como cilada que é, a emboscada compõe-se de dois fatores: premeditação e surpresa56. Tudo com vistas a obstar qualquer reação por parte da vítima. Dissimulação é um expediente fraudulento, apto a iludir a vítima, utilizado com vistas a ocultar a intenção criminosa do agente. Segundo Hungria57, na hipótese “o criminoso age com falsas mostras de amizade, ou de tal modo que a vítima, iludida, não tem motivo para desconfiar do ataque e é apanhada desatenta e indefesa”. Em outras palavras, a fraude antecede a violência58. O emprego de disfarces59, como, v.g., o agente fingir ser carteiro e matar a vítima ao fazer uma falsa entrega, ou ainda, vestir farda de policial para abordar a vítima em uma falsa blitz e matá-la, caracterizam o presente modo de execução. Outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido é uma fórmula genérica utilizada quando há aplicação de algum outro procedimento ocasionador de surpresa, não subsumível às hipóteses anteriores. Nota-se, uma vez mais, a utilização do expediente de interpretação analógica por parte do legislador. É o caso do exemplo da utilização de sonífero com vistas a eliminar a vítima em momento no qual não pode esboçar qualquer reação. A qualificadora em destaque pressupõe o emprego de um estratagema60, vez que se fala em uso de “recurso”. Por essa razão, o simples fato de o delito ser praticado enquanto a vítima dormia não a caracteriza61. A mera superioridade de armas do agente em relação à sua vítima, do mesmo modo, não constitui a qualificadora62.

2.4.4.5.Para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime

As qualificadoras de homicídio efetivado para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime são hipóteses de especiais fins de agir que conformam o animus necandi. Denotam, dessa maneira, razões subjetivas aptas a desvalorar a ação homicida de modo mais censurável. Isso porque há uma conexão (teleológica ou consequencial) com outro crime, ou seja, um vínculo do homicídio com outro delito, no qual este é a razão de ser daquele. Nas palavras de Prado63, “nessas hipóteses, o homicídio não é o objetivo central da ação, mas sim o outro delito, e é praticado, tão somente com o intuito de propiciar a execução deste último ou sua ocultação, impunidade ou vantagem”. Morte praticada com o fim de assegurar a execução de outro crime significa que o homicídio é perpetrado com o intuito de permitir a realização subsequente de outro delito com maior facilidade, como nos exemplos do agente que mata o segurança para sequestrar o patrão deste ou, ainda, daquele que elimina o vigia para roubar o banco. Essa hipótese é entendida como de conexão teleológica, porque o homicídio é realizado com vistas a se permitir a prática de um crime posterior. Homicídio cometido para assegurar a ocultação de outro crime é o levado a efeito com vistas a não permitir a descoberta de delito anterior. Exemplo da hipótese de assegurar a ocultação: agente estupra a vítima e a enterra, para que o estupro não seja descoberto. O crime de homicídio perpetrado para assegurar a impunidade de outro crime ocorre quando o agente mata para escapar da punição de crime anterior conhecido. Caracteriza a presente hipótese de assegurar a impunidade, v.g., o agente que mata a única testemunha do crime anterior. No caso de morte efetivada para assegurar a vantagem de outro crime, o agente elimina a vítima para obter maior proveito da empreitada criminosa anterior, como no exemplo do agente que mata o comparsa do crime patrimonial cometido para ficar com todos os bens subtraídos apenas para si. Os casos de homicídio realizados para assegurar a ocultação, a impunidade ou a vantagem de outro crime são compreendidos como de conexão consequencial, porque se prestam a algum benefício ao agente em relação a outro crime, anterior ao homicídio. Por conseguinte, o homicídio é entendido como consequência de um delito pretérito.

2.4.4.6.Feminicídio A Lei nº 13.104/2015 trouxe a qualificadora do feminicídio, fixando um inciso VI ao § 2º do art. 121 do Código Penal. Assim, o homicídio é qualificado se cometido contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. O novel § 2º-A, por sua vez, estabelece que se considera que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I – violência doméstica e familiar ou II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Ademais, na mesma lei insculpiram-se causas de aumento de pena exclusivas para o feminicídio, o que já se viu alterado posteriormente pela edição da Lei nº 13.771/2018. Por conseguinte, conforme a redação atual, o § 7º determina que a pena do feminicídio é aumentada de 1/3 até a metade se o crime for praticado: I – durante a gestação ou nos 3 meses posteriores ao parto; II – contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60 anos, com deficiência ou portadora de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental; III – na presença física ou virtual de descendente ou de ascendente da vítima; IV – em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 22 da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha)64.

2.4.4.6.1.Origem e noção político-criminal de feminicídio Feminicídio é termo originário do “femicide” da língua inglesa, tendo se popularizado a partir de meados de 1970 por conta de movimentos feministas65. A maior propagadora da expressão foi a

socióloga feminista sul-africana Diane Russel. Segundo esta, após alguns anos depurando a noção, a expressão é utilizada para descrever a morte de uma pessoa do sexo feminino, por essa razão, realizada por pessoa do sexo masculino. Em outras palavras, assassinatos misóginos perpetrados por homens. A importância e o real alcance da definição são verificados por conta de sua contextualização, em razão de vivenciarmos – milenarmente – uma estrutura social machista e patriarcal, a qual, em sua ínsita desigualdade, gera as mais diversas formas de violência às mulheres, incluindo-se a mais grave delas, isto é, a provocação de suas mortes. A partir do início do século XXI, em virtude da pressão de movimentos feministas e da repercussão ocasionada pelo chamado “caso do campo de algodão”, pelo qual o México viu-se condenado, em 2009, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, disseminou-se na América Latina a disciplina jurídico-penal do feminicídio (ou “femicídio”, conforme o país). Desse modo, atualmente, mais de 15 países latino-americanos possuem a figura delitiva. No Brasil, a edição da Lei 13.104/2015, que criou a qualificadora do feminicídio, foi capitaneada por representantes progressistas do Poder Legislativo, vindo a coadunar-se com o sentido políticocriminal sinalizado pela Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). Legislação interdisciplinar, esta última criou mecanismos com vistas ao cerceamento da violência contra a mulher. Divergem os movimentos feministas e a doutrina jurídico-penal acerca da necessidade ou não da criação da qualificadora do feminicídio. A principal crítica foca no suposto simbolismo penal da medida66, a qual, desacompanhada de outras políticas, representaria simples demagogia legislativa. Os defensores, por outro lado, embora ressaltem a necessidade de estabelecimento de políticas públicas para fins de se coibir efetivamente a violência de gênero, destacam a necessidade de se simbolizar e dar visibilidade67 ao problema por meio da lei, o que, ademais, passaria a permitir o melhor acompanhamento de dados e oferecimento de soluções sobre o problema68. Além disso, a resposta penal sinalizaria – como em qualquer outra incriminação – um determinado interesse social especialmente vulnerado69, tendo em vista que mais de cinco mil mulheres são mortas todos os anos, a maioria em seus lares, por pessoas de seu relacionamento íntimo.

2.4.4.6.2.Disciplina legal brasileira Importante observar que não foi criado um novo tipo penal com o feminicídio70. O crime continua sendo de homicídio. Tecnicamente, trata-se de qualificadora, isto é, subtipo penal desta última figura delitiva fundamental, com margens penais próprias e contornos específicos sopesados político-criminalmente pelo legislador brasileiro. O inusitado diante da conformação do art. 121 do Código Penal foi a inédita utilização de um nomen iuris dentre as qualificadoras, algo levado a eleito certamente com vistas ao caráter simbólico que se pretendeu ressaltar com a criação legal em destaque. Feminicídio não é o simples homicídio de uma mulher. Há, como visto, um contexto de violência de gênero que justifica e conforma a elaboração legislativa. Em outras palavras, exigemse, para reconhecimento da qualificadora, mais elementos que a mera condição feminina da vítima. Nesse sentido, o legislador estabelece que a qualificadora se perfaz com o homicídio cometido contra a mulher, por razões da condição de sexo feminino. A seguir, aclara-se o significado dessa última cláusula, afirmando-se sua existência quando o crime envolver violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Independentemente de considerar-se positiva71, questionável72 ou negativa73 a utilização do Direito Penal para cerceamento da violência de gênero – debate político-criminal importante em aberto -, fato é que a lei brasileira está posta e, em termos dogmáticos, sua construção traz algumas dificuldades ao intérprete em face de sua redação.

2.4.4.6.2.1.Sujeitos ativo e passivo do feminicídio Da maneira construída, sem ressalvas, nota-se que sujeito ativo do crime pode ser homem ou mulher. Não se limitou a autoria delitiva a homens, criando-se modalidade de crime próprio, como o fez, por exemplo, a legislação argentina74. No Brasil, o crime é comum, o que se mostra mais adequado, tendo que vista que um casal de lésbicas pode perfeitamente reproduzir a violência machista que se procura coibir, ou que, por qualquer razão, embora incomum, uma mulher possa agir imbuída de sentimento misógino. Sobre a vítima da ação feminicida, questiona-se o elemento objetivo do tipo “mulher”, caracterizador do sujeito passivo da ação75, tema que importa para a pessoa transexual. Nesse influxo, a dúvida diz respeito à adoção de um critério biológico, psicológico ou jurídico para seu reconhecimento. A discussão possui interesse essencial, tendo em vista que não se admite analogia in malam partem em Direito Penal. Em termos biológicos, há uma determinação sexual cromossômica, sendo mulher a pessoa com genótipo “XX”. O critério, dessa maneira, é de estruturas de DNA, pouco importando a identificação psíquica do indivíduo com este ou aquele sexo, tampouco a alteração de sua conformação genital. Para essa compreensão, gênero seria algo biologicamente determinado76. O parâmetro psicológico77, por sua vez, é aquele atrelado à identidade de gênero. A pessoa é considerada como pertencente ao sexo com o qual se identifica psicologicamente. É o caso das pessoas transexuais. Nessa hipótese, forçoso notar que também não possui relevo a morfologia genital: feita ou não cirurgia de redesignação genital, o que possui relevo é a crença pessoal do indivíduo. Por fim, o critério jurídico78, de cunho pragmático, é aquele que considera o reconhecimento legal dado à pessoa. No caso, não possui relevo a conformação biológica, morfológica ou psicológica, mas apenas o que consta na documentação civil, tenha ou não havido decisão judicial a respeito. Isso significa que pode ter havido mudança no reconhecimento oficial ao longo da vida da pessoa, que passou posteriormente a ser reconhecida mulher pelo Estado. Os critérios biológico e jurídico, embora em princípio seguros, mostram-se inadequados para a realidade que se pretende disciplinar. A qualificadora foi erigida com vistas a situações de violência de gênero, em um contexto de sociedade machista. A vítima transexual feminina, independentemente de sua genética ou do que entende o Estado a seu respeito – mesmo porque, ninguém é obrigado a tomar nenhuma medida legal –, é mulher e pode se encontrar inserida em um ambiente que reproduz a violência machista. De qualquer modo, sem dúvidas, seria melhor o legislador aclarar a situação por meio de uma norma explicativa, evitando-se discussões judiciais. Inexistem incertezas para o descarte de aplicação da qualificadora para a vítima homem homossexual, ou para sua aplicação ao casal de lésbicas. Todavia, a justiça no reconhecimento para a vítima transexual enseja a premência de norma com vistas à segurança jurídica.

2.4.4.6.2.2. Tipicidade objetiva e subjetiva do feminicídio A eliminação da vida de uma mulher, “em razão da condição do sexo feminino”, foi cláusula posta com o intuito de caracterizar o assassinato misógino. Se nada mais tivesse sido dito, consubstanciar-se-ia referida expressão em elemento subjetivo especial do tipo a ser aclarado pelo julgador no caso concreto. Todavia, a lei, por razões pragmáticas, resolveu esclarecer de forma autêntica o significado do termo. Dessa forma, como visto, reconhece-se o feminicídio se a morte da mulher ocorre em um contexto de “violência doméstica e familiar” ou se decorre de “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. A razão de ser da primeira hipótese, qual seja, morte de uma mulher em um contexto de

violência doméstica e familiar, decorre do fato de que, empiricamente, a maior parte dos homicídios de mulheres ocorre no interior de seus lares. Nesse caso, o legislador está presumindo a discriminação ao gênero feminino em face do contexto social machista79. Por conseguinte, aquilo que aparentemente seriam motivações subjetivas da qualificação (mortes misóginas), transmutam-se em viés objetivo, bastando verificar-se a morte dolosa de uma mulher envolta em violência doméstica e familiar. Aparentemente, seria então possível cogitar-se de feminicídio mesmo que o autor não possua com a vítima qualquer relacionamento íntimo, nem tampouco detenha ódio ao gênero feminino. Se, e.g., um irmão ou uma irmã da vítima que coabita com ela vier a matá-la por desavenças familiares, ao que tudo indica, praticaria feminicídio, o que seria disparatado, pois não foi esse o sentido de criação da qualificadora, consoante o contexto de sociedade machista e patriarcal que se pretende cercear. Nesses casos, a princípio, estariam atendidos os requisitos objetivos exigidos, quais sejam, vítima mulher, morta em um contexto de violência doméstica e familiar, não se atendendo, todavia, o sentido do maior juízo de censurabilidade. Somente a interpretação judicial conforme a ratio essendi do dispositivo, sem apegos positivistas, pode evitar esse disparate. Nesse sentido, alguns80 acolhem a necessidade de conformação do dispositivo do feminicídio consoante uma interpretação sistemática com o art. 5º da Lei Maria da Penha81, exigindo-se que a morte tenha sido baseada no gênero. As dificuldades estariam dissipadas se a qualificadora fizesse menção expressa ao dispositivo da lei especial em destaque, evitando-se dúvidas. Também foi infeliz o legislador ao lançar a conjunção aditiva “e” no inciso I do § 2º-A, o que dá margem a se entender que a violência deve ser simultaneamente doméstica e familiar, o que não faz sentido. Como nota Bitencourt82, melhor seria sua substituição pela fórmula alternativa. Com relação à hipótese de feminicídio em decorrência de morte de mulher praticada por menosprezo ou discriminação à condição do gênero feminino, trata-se de motivação subjetiva de desdém, desprezo, desvalorização, preconceito, raiva ou ódio à vítima por ela ser mulher. Não se trata de tais sentimentos negativos à pessoa da vítima, mas a ela por pertencer ao universo feminino. É o assassinato misógino por excelência.

2.4.4.6.3.Causas de aumento de pena específicas ao feminicídio Como visto, foram criadas três causas de aumento de pena exclusivas para a qualificadora em análise. Desse modo, consoante o art. 121, § 7º, aumenta-se a pena do feminicídio de 1/3 até a metade: a) se o crime é cometido durante a gestação da vítima ou nos três meses posteriores ao parto; b) se a vítima é pessoa menor de 14 ou maior de 60 anos, com deficiência ou portadora de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental; c) se a ação ocorre na presença física ou virtual de descendente ou de ascendente da vítima; d) em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 22 da Lei Maria da Penha. Evidentemente, o agente deve conhecer a respectiva circunstância para fins de seu reconhecimento, sob pena de consagrar-se responsabilização penal objetiva. A majorante relativa ao feminicídio cometido contra vítima gestante ou nos três meses subsequentes ao parto possui como marcos iniciais, no caso da gestação, a nidação, ou seja, a implantação do óvulo fecundado no útero materno, e, no último, o rompimento da bolsa amniótica. Assim sendo, desde o início da gravidez e até 3 meses após o início do parto, em caso de feminicídio, aplica-se a causa de aumento específica. A segunda causa de aumento fixada, condizente com características da vítima, incide se esta é pessoa menor de 14 anos, maior de 60 anos, com deficiência ou portadora de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental. Nos dois primeiros casos, o legislador olvidou-se que já existiam similares causas de aumento para a totalidade de situações de homicídio doloso, conforme o § 4º do art. 12183. Com a nova previsão, apenas aumenta a possibilidade de majoração em feminicídio para até a metade, vez que o

parágrafo 4º possui patamar fixo de 1/3. A Lei 13.771/2018, reitere-se, modificou a redação dessa majorante específica do feminicídio, acrescendo nova hipótese, qual seja, quando o sujeito passivo for pessoa “portadora de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental”. Buscou-se, assim, ampliar a incidência de tal causa de aumento, incluindo-se mais uma condição de vulnerabilidade da vítima. Além disso, também majora o feminicídio a circunstância de sua prática na presença física ou virtual de descendente ou de ascendente da vítima. Originariamente, a Lei do Feminicídio mencionava apenas a prática “na presença de descendente ou ascendente da vítima”, o que significava que o crime haveria de ser perpetrado diante desses últimos, que testemunhavam a ação no local de sua ocorrência. Como norma restritiva interpreta-se restritivamente, não era possível subsumir à majorante situações em que o fato fosse perceptível por via tecnológica, como telefone ou computador84. Exatamente por isso, a Lei nº 13.771/2018 modificou o dispositivo, para fins de incluir a possibilidade do que chamou de presença virtual, ou seja, o testemunho da morte por meios eletrônicos. Por fim, referida lei de 2018 criou mais uma de causa de aumento aplicável exclusivamente ao feminicídio, isto é, se o crime ocorrer em um contexto de descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 22 da Lei Maria da Penha. Referidas medidas são as estabelecidas judicialmente, de modo isolado ou em conjunto, em face da constatação da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. As citadas na presente majorante – existem outras – são as de: a) suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos do Estatuto do Desarmamento, b) afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida e c) proibição de determinadas condutas, entre as quais, a aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor, o contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação ou a frequência de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida. Dessa maneira, caso o feminicídio seja praticado em um contexto violador de uma das citadas medidas protetivas por parte do agente, sua pena aumenta-se de um terço até a metade. O legislador procurou, mediante a exacerbação do simbolismo penal, reforçar a coercitividade de tais medidas protetivas. Note-se que, pouco antes dessa inserção no art. 121 do Código Penal, houve, com o mesmo objetivo, a tipificação do crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência85. Não é possível reconhecer-se a causa de aumento em destaque em conjunto com esse novo delito, pelos mesmos fatos, sob pena de bis in idem. Em caso de feminicídio, consumado ou tentado, em um contexto que viola as medidas judicialmente estabelecidas, aplica-se a majorante do art. 121, § 7º, inciso IV, do Codex, afastando-se o crime citado. Tais causas de aumento consubstanciam-se em situações objetivamente aferíveis, porém, em grande parte, de duvidosa constitucionalidade, vez que, com reparos, em sua maioria, poderiam ser insculpidas para qualquer situação de homicídio e não apenas ao feminicídio. Denota-se, dessa maneira, uma proteção discriminatória. Se, nas duas primeiras hipóteses, o que justifica a majoração é, em tese, a maior dificuldade de autodefesa da vítima, não haveria motivos para limitá-las ao feminicídio. Do mesmo modo, quanto à terceira, se a razão de ser de sua previsão é a maior gravidade das consequências do crime, ocasionadoras de agudos traumas nos parentes que o presenciam, não há explicação razoável para circunscrevê-la somente à qualificadora em questão.

2.4.4.7.Contra autoridades ou agentes de segurança e seus familiares A Lei nº 13.142/2015 criou, no art. 121, § 2º, do Código Penal, o inciso VII, considerando qualificado o homicídio cometido contra autoridade ou agente descrito nos artigos 142  e  144 da

Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição. O dispositivo abrange a morte dolosa de: a) integrantes das Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica); b) integrantes das polícias federal, rodoviária federal, civis e militares, bem como de corpos de bombeiros militares; c) guardas municipais; d) agentes de trânsito; e) integrantes do sistema prisional (diretor de presídio, agentes penitenciários etc.); f) integrantes da Força Nacional de Segurança Pública; g) cônjuge ou companheiro de qualquer das pessoas anteriormente referidas, desde que em razão dessa condição, e h) parente consanguíneo até terceiro grau de qualquer das pessoas anteriormente mencionadas, desde que em razão dessa condição. Como o legislador fez menção ao art. 144 da Constituição Federal, não se limitando ao seu caput, ressalte-se que são também abrangidas as situações em que o sujeito passivo é guarda municipal (art. 144, § 8º, da Carta) ou agente de trânsito (art. 144, § 10)86, bem como respectivos cônjuges, companheiros ou parentes até terceiro grau, se vitimados pela ação delitiva por essa razão. A qualificadora em destaque, erigida com a justificativa de fornecer maior proteção às funções públicas87, possui natureza híbrida, podendo revestir-se de cunho objetivo ou subjetivo, a depender da situação. Caso as pessoas descritas sofram a ação homicida no exercício da função, denota característica objetiva. Ao revés, se a conduta ocorrer em decorrência da função exercida ou motivada pela ligação de casamento, companheirismo ou parentesco da vítima com os específicos funcionários públicos descritos, detém contorno subjetivo. Nesse último caso, isto é, morte em virtude da função da vítima ou do liame dela com o seu exercente, antes da edição da Lei nº 13.142/2015, o homicídio já seria considerado qualificado, por motivo torpe, como no exemplo do assaltante que mata a vítima depois que percebe que ela é policial. Em outras palavras, caso o sujeito ativo elimine a vida de alguém porque essa pessoa pertence às citadas instituições de segurança, ou ainda, ligado a tais pessoas, claramente, a motivação mostra-se torpe, tendo sido despicienda a criação legal. Por conseguinte, a lei apenas inovou pelo sentido objetivo, ao qualificar a morte do integrante dos quadros descritos quando esse se encontre no exercício da função. Obviamente, o sujeito ativo deve conhecer esse fato, sob pena de não incidência da qualificadora. Ademais, a qualificadora, em seu sentido objetivo, também não se reconhece se a vítima encontra-se de folga (nesse caso, apenas é possível no sentido subjetivo). As hipóteses concretas mais comuns de homicídio no exercício da função são aquelas de troca de tiros entre policiais e criminosos em fuga, o que desvela ser questionável a qualificadora em destaque. Isso pois, se um particular – e.g., segurança privado – troca tiros com assaltantes ou sequestradores, vindo a morrer, o homicídio mostra-se, a princípio, simples, enquanto se o mesmo fato se der com policial civil ou guarda municipal o homicídio é qualificado. A alteração legislativa em comento, assim, sinaliza uma discriminação irrazoável. Ademais, pelo teor do dispositivo criado, observa-se que a qualificadora em questão não se aplica caso o funcionário público do órgão de segurança – sujeito passivo ou parente do sujeito passivo do crime – deixe as funções públicas (e.g., aposente-se), mesmo que o crime seja motivado pelo exercício da função pública anterior88. Nessa circunstância, no entanto, incide a qualificadora do motivo torpe. Por fim, há que se observar que a incidência da presente qualificadora mostra-se bastante reduzida no caso da vítima militar. Isso porque, pela redação do art. 9º, inciso III, do Código Penal Militar89 (CPM), o civil que comete crime contra militar no exercício da função ou em instalação militar, dentre outras possibilidades, responde pela legislação militar e não comum. Dessa forma, no caso de homicídio, incidirá não o art. 121 do Código Penal, mas o art. 205 do CPM90, sendo o autor do delito julgado pela justiça castrense, mesmo não sendo militar. Isso,

inclusive, gera uma discrepância, pois, a princípio, o fato será o de homicídio simples do CPM, não havendo aplicação de qualificadora. Em outros termos, a pena será menor. Apenas se vislumbra a incidência do art. 121, § 2º, inc. VII, do Código Penal quando o civil ceifar a vida do militar em folga, motivado pelo fato dele ser militar (aspecto subjetivo da qualificadora).

2.4.4.8.Problemáticas especiais relativas ao homicídio qualificado Ainda com relação ao homicídio qualificado, finalmente, algumas observações são importantes. Dúvidas podem existir quando o fato concreto revelar premeditação do agente ou emprego de arma. Do mesmo modo, se a situação subsumir-se, em tese, a mais de uma qualificadora, ou, por fim, se seria possível coexistir o homicídio privilegiado com qualificadora.

2.4.4.8.1.Premeditação ou emprego de arma Primeiramente, há que se destacar que a premeditação não qualifica o homicídio91, nem o emprego de arma para matar (seja arma de qualquer espécie, de fogo ou não), hipóteses muito comuns na prática, porém não desvaloradas pelo legislador como ensejadoras de uma específica qualificação. No que tange ao emprego de arma, aliás, insta observar que o crime fim absorve o crime meio, não respondendo o agente por porte ilegal de arma quando a utiliza para a prática de homicídio.

2.4.4.8.2.Existência de mais de uma circunstância prevista como qualificadora Ainda, há que se atentar que apenas uma qualificadora já basta para alçar o crime de homicídio a essa condição especial, ou seja, a subsumir o fato a este tipo denominado “homicídio qualificado”, devendo o juiz fixar a pena-base justificadamente conforme os parâmetros dados pela lei, ou seja, 12 a 30 anos de reclusão. Se ocorrerem mais hipóteses qualificadoras, a pena base será a mesma, devendo o juiz utilizar uma circunstância para entender o crime como qualificado e as demais serem utilizadas como agravantes (artigo 61 do Código Penal) à exceção da asfixia, não prevista. Na prática, se o homicídio se dá mediante asfixia, utiliza-se esta para qualificá-lo e as demais circunstâncias como agravantes. Não existe homicídio “duplamente”, ou “triplamente”, qualificado, tratando-se estas de expressões atécnicas.

2.4.4.8.3.Homicídio privilegiado-qualificado Cumpre observar que é possível a concomitância do privilégio com qualificadora, ou seja, o homicídio privilegiado-qualificado, também chamado de homicídio qualificado-privilegiado ou, ainda, homicídio híbrido. Tal qual o melhor entendimento doutrinário, o Supremo Tribunal Federal atualmente admite a hipótese, desde que não haja incompatibilidades de circunstâncias. O homicídio privilegiado somente apresenta motivos subjetivos, enquanto o qualificado assim se caracteriza ou por aspectos objetivos ou subjetivos, que revestem o fato delitivo de maior gravidade. É possível, e.g., praticar homicídio sob o domínio de violenta emoção, logo após injusta provocação da vítima, asfixiando esta. Já não é possível, contudo, v.g., praticar homicídio por motivo de relevante valor moral que seja considerado fútil simultaneamente. O homicídio privilegiado-qualificado, segundo doutrina e jurisprudência dominantes, não é considerado hediondo92. Por analogia ao artigo 67 do Código Penal (concurso de circunstâncias agravantes e atenuantes93), que considera os motivos subjetivos preponderantes, entende-se que o privilégio prepondera. Ademais, seria uma ilogicidade profunda um crime hediondo praticado por motivo de relevante valor social ou moral94.

2.4.5.Homicídio culposo A previsão expressa do homicídio culposo, constante do art. 121, § 3º, decorre da regra da excepcionalidade do crime culposo (art. 18, parágrafo único, do Código Penal: “salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”). Nesse sentido, para que se possa reconhecer a categoria não intencional de uma figura delitiva – já que a infração penal dolosa é a diretriz, quando o tipo nada indica –, deverá a

lei a ela referir-se expressamente, como no caso. Na hipótese de homicídio culposo, em que o agente não deseja nem assume o risco de morte da vítima, a pena aplicada é a de detenção de 1 a 3 anos. A culpa é um elemento normativo do tipo. Sua aferição somente é possível mediante um juízo valorativo. Como se trata justamente da ausência de intenção, consistindo em um comportamento mal dirigido, não se consubstancia tecnicamente em elemento subjetivo do tipo. No delito culposo, o fim perseguido pelo agente é lícito, isto é, um indiferente penal, sendo ilícito apenas o modo de agir mediante o qual se procura alcançar tal fim. O injusto culposo possui, então, estruturação diversa do injusto doloso, uma vez que seus requisitos são: violação do dever objetivo de cuidado, resultado, nexo causal e previsibilidade. A violação do dever objetivo de cuidado denota a realização de um risco socialmente não permitido por parte do agente95. Em suma, uma conduta perigosa96, não tolerada pelo corpo social. Pela precisa inclusão da noção de violação do dever objetivo de cuidado, denota-se evidente que a análise da culpa é uma questão normativa, vez que apenas com inferências a regramento – jurídicos ou sociais – fora do injusto penal é possível verificar o particular cuidado violado. Dessa maneira, a doutrina apresenta uma tentativa de catalogar quais seriam as espécies de normas que aperfeiçoariam o cuidado a ser observado e, em consequência, violado. Roxin97 prevê um rol pertinente, destacando as regras jurídicas não penais (v.g., regras de trânsito98), regras técnicas de atividade estatal, privada, e esportivas, bem como regras do senso comum, cuidados mínimos que, nos dizeres de Hungria99, não escapam da ponderação comum. Mas não basta a simples realização de uma conduta perigosa não aceita socialmente por parte do agente. À violação de um dever objetivo de cuidado deve seguir um resultado danoso. Se o agente é descuidado, mas nada ocorre, pode até infringir outras normas, como de trânsito, trabalhista etc., mas sua conduta será jurídico-penalmente irrelevante. Para que se conforme um crime culposo é necessário uma efetiva lesão material ou, a depender do tipo penal, de perigo concreto ao bem jurídico tutelado, inexistindo crime culposo que não seja de resultado de dano ou de perigo concreto. O resultado danoso referido, logicamente, deve decorrer da ação descuidada, elemento que a Teoria Geral do Delito destaca como o nexo de causalidade. Em outras palavras, o resultado há de ser consequência da inobservância do dever objetivo de cuidado. Demais disso, o resultado danoso deve ser objetivamente previsível. O elemento da previsibilidade é imprescindível para a caracterização dos crimes culposos. Previsível é o fato cuja possível superveniência não escapa à perspicácia comum, conforme Hungria100. Note-se que o evento danoso deve ser previsível ao conhecimento comum das pessoas, não se exigindo que tenha sido efetivamente previsto no caso concreto. Se ele foi previsto, porém o agente não acreditava em sua ocorrência, ocorre a culpa consciente. Já se sequer foi previsto, mas sendo cognoscível, está-se diante da culpa inconsciente. As espécies de culpa descritas no art. 18, inciso II, do Código Penal, quais sejam, imprudência, negligência ou imperícia, consistem em especificações conceituais de maior relevância teórica do que prática. No exterior, atualmente, utiliza-se em geral a linguagem “delito imprudente” para designar o crime culposo, não havendo os conceitos-exemplos brasileiros. De qualquer modo, tradicionalmente, a doutrina nacional entende ser a imprudência a culpa positiva, isto é, a realização de uma ação perigosa não admitida socialmente, da qual decorre um resultado lesivo. Negligência, ou culpa negativa, a omissão diante das cautelas devidas, sobrevindo o evento danoso. E, por fim, imperícia a culpa profissional, ou seja, a falta de aptidão para o exercício de profissão, arte ou ofício.

2.4.5.1.Perdão judicial no homicídio culposo No caso do homicídio culposo, há previsão de perdão judicial (art. 121, § 5º) se as consequências da infração penal atingirem o agente de forma tão grave que a sanção penal se torne

desnecessária101. É o caso do exemplo clássico do pai, ou mãe, que mata por imprudência o próprio filho (e.g., o agente esquece no carro o recém-nascido, que morre asfixiado pelo confinamento). Em uma situação desse jaez, a pena criminal perde qualquer sentido. Importante notar que o perdão não precisa ser aceito e possui natureza de causa extintiva da punibilidade (art. 107, inciso IX, do Código Penal). Apesar de veto quanto à previsão expressa que constava do art. 300 do Código de Trânsito, doutrina e jurisprudência majoritárias entendem, acertadamente, ser possível reconhecer o perdão judicial em homicídio culposo praticado na condução de veículo automotor, por analogia in bonam partem.

2.4.5.2.Homicídio culposo na condução de veículo automotor Significativa parcela dos homicídios culposos ocorre em decorrência do tráfico de automóveis. Nessas hipóteses, consoante o princípio da especialidade, afasta-se a aplicação do art. 121, § 3º, do Código Penal, incidindo a previsão constante no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/1997)102. Desse modo, foi estabelecida legislativamente figura especial de homicídio culposo na direção de veículo automotor, com pena de detenção de 2 a 4 anos, mais a suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. Como alerta Prado103, há inadequação técnica na redação do tipo, o qual, de maneira inusitada em nossa legislação, insculpe: “praticar homicídio culposo”. Demais disso, verifica-se desproporcionalidade sancionatória no dispositivo da lei especial em relação à norma geral do art. 121, § 3º, do Código Penal. Se o desvalor da conduta é similar, igualmente se eliminando a vida humana por meio de uma violação de dever objetivo de cuidado, nada justifica que a pena mínima dobre no caso disso ocorrer na condução de veículos automotores. Apesar disso, nos últimos anos, principalmente face à comoção midiática gerada por mortes no trânsito ocasionadas por motoristas embriagados, sob a bandeira de se “evitar injustiças” em uma sistemática legislativa que supostamente daria azo a “impunidades”, muitas vezes, vinha-se ainda pervertendo a dogmática penal em casos concretos, tratando-se sob a rubrica do “dolo eventual” condutas inequivocamente culposas. Malgrado a vazia referência legal, no art. 18, inciso I, do Código Penal, quanto à assunção do risco de produção do resultado, dolo eventual, no entanto, não deixa de ser dolo, significando resignação, conformação, anuência, com um resultado lesivo. Se o agente prevê a possibilidade de acidente, porém crê que ele não ocorrerá – mesmo porque não agiria se imaginasse que sofreria acidente no qual poderia ele próprio morrer –, cuida-se de culpa consciente104. De qualquer forma, ao que tudo indica, essa distorção de compreensão dogmática eventualmente ocorrente na prática encontra-se superada pela promulgação da Lei nº 13.546/2017, a qual inseriu um § 3º ao art. 302 do Código de Trânsito fixando que “se o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”, aplicam-se as penas de “reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”. Isso significa que se o homicídio culposo de trânsito ocorre com o motorista embriagado, a pena mínima prevista aproxima-se abstratamente daquela estabelecida para o homicídio doloso simples, o que viola o princípio da proporcionalidade105.

2.5.Causas de aumento de pena Não previstas originariamente com a edição do Código Penal de 1940, atualmente existem específicas causas de aumento de pena aplicáveis ao homicídio culposo e outras ao homicídio doloso. Elas estão fixadas, no primeiro caso, no art. 121, § 4º, primeira parte, enquanto, no último, no art. 121, § 4º, segunda parte, bem como no § 6º do mesmo dispositivo. Demais disso, como visto acima, há majorantes elencadas especialmente ao feminicídio (§ 7º).

As causas de aumento de pena, como referido, incidem na terceira fase do procedimento trifásico de aplicação de pena, após as circunstâncias judiciais e legais, respectivamente. Como se cuida da última conta feita pelo aplicador da lei penal, nota-se que referida majoração altera de modo significativo o quantum sancionatório, podendo ser ultrapassado a baliza máxima de pena abstratamente cominada ao tipo penal.

2.5.1.Causas de aumento de pena aplicáveis ao homicídio culposo Ao homicídio culposo a lei elenca quatro hipóteses capazes de aumentar a pena do agente consoante um patamar fixo de um terço, a saber: a) morte resultante de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício; b) omissão de socorro imediato à vítima; c) ausência de comportamento destinado à diminuição das consequências de seu ato; d) fuga para evitar prisão em flagrante. A inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício não se confunde com imperícia. Nessa, o agente não possui conhecimento, ou aptidão, suficiente para o exercício de profissão, arte ou ofício, como no exemplo do médico dermatologista que resolve operar o coração de paciente cardíaco, vindo esse a morrer. Na majorante em questão, ao revés, o agente possui as habilidades necessárias para o desempenho respectivo, mas, no caso concreto, deliberadamente ou por desleixo, não respeita específica regra inerente à sua função, ocasionando, por isso, o óbito de alguém. É o caso, e.g., de um médico cirurgião que deixa de esterilizar um instrumento, vindo o paciente a morrer pela infecção por isso ocasionada. A razão de ser dessa majoração decorre da mais significativa censurabilidade incidente àqueles que possuem maior dever objetivo de cuidado em face da atividade exercida. Também é aumentada a pena do homicídio culposo se o agente se omite na prestação imediata de socorro à vítima. O agente que vulnera a vida de outrem por uma ação descuidada possui, consoante a lei, um dever especial de prestação de auxílio à sua vítima, com vistas à sua salvação. Caso se omita, em face da maior censura de seu comportamento egoísta, indiferente ao bem jurídico vida humana, receberá pena mais severa. Nesse caso, pelo princípio da especialidade, afasta-se a incidência do crime de omissão de socorro (art. 135). A majoração não se aplica se a vítima vier a morrer instantaneamente, se o agente não possuir condições da prestar socorro – incluindo-se nessa hipótese a presença de risco pessoal – ou, ainda, se alguém em melhores condições, ou mesmo antes do agente, prestar referido socorro. Quanto a essa causa de aumento de pena – tal como qualquer das demais –, por fim, cumpre ressaltar sua não aplicação ao homicídio culposo de trânsito. Nos casos similares no trânsito, isto é, homicídio culposo na condução de veículo automotor em que o agente se omita na prestação de socorro possível à vítima, consoante a regra da especialidade, incidirão, conjuntamente, os crimes previstos nos arts. 302 e 304106 da Lei nº 9.503/1997. A majorante relativa à ausência de comportamento do agente destinado à diminuição das consequências de seu ato, segundo a doutrina dominante, é despicienda, sendo mera especificação da anterior107. Abarcaria a hipótese de omissão diante da possibilidade de chamada de socorro, quando não possível sua execução pessoal. A última causa de aumento de pena prevista ao homicídio culposo refere-se à fuga para evitar a prisão em flagrante. O objetivo do legislador foi o de compelir o agente a submeter-se à ação das autoridades, permanecendo à disposição dessas tenha ou não havido prestação de socorro. Buscou-se, assim, favorecer a eficiência da administração da justiça, segundo Prado108. No entanto, o dispositivo, que já mostraria falta de razoabilidade ao impor desproporcional consequência a delito afiançável, revela-se inconstitucional109, uma vez que não se pode, mediante ameaça de nova punição, obrigar alguém a se submeter à prisão. Se o agente se omite do socorro possível à vítima que lesionou culposamente, vindo ela a falecer, deve por isso responder com maior severidade, mas não porque fugiu das autoridades. Aliás, convém dizer que, caso incida, no caso concreto, mais de uma causa de aumento, conforme a dicção do art. 68, parágrafo único, do Código Penal, o juiz deverá proceder a um só aumento.

2.5.2.Causas de aumento aplicáveis ao homicídio doloso Quanto ao homicídio doloso, existem três causas de aumento de pena, de natureza objetiva, previstas no art. 121, § 4º, 2ª parte, e § 6º. São elas: a) se a vítima é menor de 14 anos; b) se a vítima é maior de 60 anos; c) se o crime envolve milícia privada ou grupo de extermínio. Do mesmo modo que com relação às causas de aumento relativas ao homicídio culposo, as majorantes aplicáveis ao homicídio doloso são fruto de alterações legislativas posteriores à redação original do art. 121 do Código Penal em vigor. A primeira inserção ocorreu por meio da Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a qual se referiu à idade da vítima no art. 121, § 4º. Dessa maneira, possuindo essa menos de 14 anos, isto é, 14 anos incompletos, a pena passou a ser majorada em um terço. Posteriormente, sem alterar o regrame anterior, a Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso) acresceu mais uma majorante, também relativa à idade da vítima, quando essa possuir mais de 60 anos, ou seja, 60 anos completos. Assim como na hipótese anterior, a circunstância se afere ao tempo do crime (teoria da atividade) – o que releva observar para a hipótese de tentativa –, bem como o agente deve conhecê-la, ou seja, deve saber que a vítima possui menos de 14 ou mais de 60 anos. Pelo princípio do ne bis in idem, há que se notar que o reconhecimento das causas de aumento anteriores afasta a possibilidade concomitante de aplicação das agravantes genéricas previstas no art. 61, inciso II, h, do Código Penal (crime cometido contra criança ou maior de 60 anos). Em cada caso, aplica-se exclusivamente a previsão especial constante no art. 121 como majorante. Finalmente, por alteração legislativa no ano de 2012 (Lei nº 12.720/2012), foi inserida majorante quando “o crime for praticado por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por grupo de extermínio”. Nesse caso, estatuído no art. 121, § 6º, diferentemente das majorantes anteriores, a pena aumenta-se de um terço até a metade. A lei especial em foco, produzida às pressas110, foi justificada por motivações de segurança pública, após incessante exploração midiática de mortes violentas produzidas por “grupos paramilitares”111 nas grandes cidades brasileiras. Conforme aponta expressamente sua epígrafe, procurou-se legislar “sobre o crime de extermínio de seres humanos”112. Além da especial causa de aumento em análise, o diploma erigiu similar majorante para o delito de lesões corporais, além de criar o crime de “constituição de milícia privada” (art. 288-A do Código Penal). A lei não define o que seria milícia privada, pretexto de prestação de serviço de segurança ou grupo de extermínio, para os fins de grave causa de aumento de pena, o que traz grande insegurança jurídica. Para Prado113, milícia privada constituiria “uma organização de indivíduos que, sob pretexto da prestação de um serviço de segurança, atua de forma ilegal em determinados territórios, desempenhando um papel que originariamente deveria ser função do Estado”. Já “grupo de extermínio” seria uma milícia privada com intuito de eliminar indivíduos ou grupos de indivíduos “que não colaborem ou representem entraves à consecução de seus objetivos”114. Em ambos os casos, podem participar de referidos grupamentos quaisquer indivíduos, como particulares, policiais ou ex-policiais, entre outros, cuidando-se de crime comum, eis que a lei não exige qualquer característica especial do sujeito ativo do delito115. Será muito difícil o reconhecimento da presente majorante no caso concreto. Isso porque não pode ocorrer sua aplicação simultaneamente ao do art. 288-A, sob pena de consagração de bis in idem, como alerta com razão Bitencourt116. Se o agente integra milícia privada ou grupo de extermínio e pratica homicídio nesse contexto deve responder pelo crime de constituição de milícia privada e homicídio simples ou qualificado, sem a majoração em análise. A um mesmo fato – conduta de integrar a societas sceleris – não pode recair dupla punição criminal (pelo crime em si e por uma majoração em outro pela mesma circunstância). Apenas seria imaginável uma condenação por homicídio majorado por essa razão caso o agente, que

integra o grupamento miliciano ou de extermínio, não tenha por isso respondido117, o que, ademais, desvela ter havido uma falha na acusação, vez que se cuida de crime permanente.

2.6.Homicídio e Lei dos Crimes Hediondos Conforme referido, todo homicídio qualificado (art. 121, § 2º) é considerado crime hediondo, necessariamente. Em caso de homicídio simples (art. 121, caput), apenas se praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que perpetrado por um só agente. A figura jurídica do “crime hediondo” surgiu na Constituição Federal de 1988, fruto de embates entre grupos parlamentares ideologicamente contrapostos. Diante de reação conservadora a um ambiente então majoritariamente garantista, insculpiu-se o inciso XLIII ao artigo 5º da Carta, com a seguinte redação: “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. Cumpriu à lei ordinária regulamentar o dispositivo constitucional, o que se deu com a edição da Lei nº 8.072/1990, fruto de um contexto de exploração midiática de casos de extorsão mediante sequestro envolvendo empresários, bem como do discurso político demagógico preponderante naquele momento histórico118. Referido diploma encontra-se ainda em vigor, tendo sofrido, ao longo dos anos, inúmeras alterações. A legislação jamais definiu o que vem a ser crime hediondo. Apenas os cataloga taxativamente, estabelecendo tratamento jurídico-penal mais recrudescido, tanto em termos materiais como processuais. Proíbe-se a eles concessão de fiança, anistia, graça e indulto, assim como se estabelecem condições mais rigorosas de cumprimento de pena. Originariamente, nenhuma hipótese de homicídio constava no rol de crimes hediondos. A inserção do homicídio qualificado e do homicídio simples praticado em atividade típica de grupo de extermínio ocorreu por meio da Lei nº 8.930/1994, aprovada após a pressão midiática e popular em decorrência da morte de atriz televisiva, ocorrida em 1992, bem como de chacinas então noticiadas.

2.7.Pena e ação penal O homicídio simples é punido com pena de reclusão de seis a vinte anos. Ao homicídio qualificado, por sua vez, comina-se pena de reclusão de doze a trinta anos. Por fim, o homicídio culposo possui pena de detenção de um a três anos. Nesse último caso, apurável mediante ação penal pública incondicionada consoante o rito sumário (art. 394, § 1º, inciso II, do Código de Processo Penal), admite-se a suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/1995, à exceção dos casos de violência doméstica e familiar contra mulher (art. 41 da Lei Maria da Penha). O crime de homicídio doloso, simples ou qualificado, consumado ou tentado, por sua vez, também apurável mediante ação penal pública incondicionada, possui a particularidade de ser processado e julgado perante o Tribunal do Júri, conforme a previsão constitucional que fixa como competência desse os crimes dolosos contra a vida (art. 5º, inciso XXXVIII, d, da Carta). São crimes dolosos contra a vida, além do homicídio doloso, o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, o infanticídio e os tipos de aborto. No Brasil, o Tribunal do Júri foi criado em 1822, para julgamento de crimes de imprensa. A Constituição de 1946, por vez primeira, fixou sua competência para os crimes dolosos contra a vida. A ideia por detrás disso é a de que a sociedade teria mais sensibilidade para julgamento de seus pares nessa grave particular situação de eliminação da vida de um ser humano por seu concidadão. O processo perante o Tribunal do Júri é atualmente regulamentado conforme o artigo

406 e ss. do Código de Processo Penal.

FOOTNOTES 1

Sobre a relação da imprensa com o Direito Penal, cf. SOUZA, Luciano Anderson de;  FERREIRA, Regina Cirino Alves. Discurso midiático penal e exasperação repressiva. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 94, 2012, pp. 363-382.

2

No Brasil, no período, foram catalogados mais de 50.000 homicídios dolosos.

3

CARMIGNANI, Giovanni. Elementi del diritto criminale. Napoli: Dallo Stabilimento Tipografico di P. Androsio, 1854, p. 251.

4

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. V, p. 25.

5

MANZINI, Vincenzo. L’omicidio rituale e i sacrifici umani. Torino: Fratelli Bocca, 1925, p. 2 e ss.

6

COULANGES, Fustel de. A cidade antiga: estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia antiga e de Roma. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 2009, p. 73 e ss. e passim.

7

Acerca da história e evolução da pena de prisão, cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 25 e ss.

8

Claus Roxin noticia que a jurisprudência alemã fixa-se no momento das dores de abertura do parto. Cf. ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 176.

9

Caso, e.g., do artigo 139 do Código Penal espanhol. A expressão “assassinato” foi cunhada pelo Direito

Canônico e remonta ao período das Cruzadas, em razão das mortes de cristãos ocasionadas por sicários sob o efeito de haxixe a mando de Hassan Sabbah. Nesse sentido, HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 30.

10

“Art.  158. Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”.

11

“Art.  167. Não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta”.

12

Sucintamente, cuida-se do desaparecimento de Benedito Caetano, que era sócio de seus primos Joaquim e Sebastião Naves em um pequeno e informal comércio agrícola. O caso se deu em 1937, no triângulo mineiro. Diante da falta de respostas das autoridades locais, foi enviado, para esclarecer o caso, o tenente Francisco Vieira, o qual, desconfiado dos irmãos Naves, os prendeu e os torturou, até que confessassem o crime de homicídio de seu primo, cujo corpo não fora encontrado. Para tanto, inclusive, prendeu, torturou e determinou o estupro da mãe dos irmãos diante desses. Absolvidos em dois júris, os irmãos Naves foram condenados na segunda instância mineira. Ficaram presos pelo crime por cerca de dez anos, sendo soltos por livramento condicional. Joaquim, debilitado em razão da prisão, morreu logo a seguir. Determinado a descobrir o que ocorreu com seu primo, a fim de resgatar sua honra e de seu irmão, Sebastião descobre Benedito vivo, em 1952. O lamentável episódio foi imortalizado em livro pelo advogado João Alamy Filho, que defendeu os irmãos Naves, e por um filme de 1967.

13

ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos – la estructura de la teoria del delito. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2008, p. 192.

14

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Aproximación al derecho penal contemporáneo. Barcelona: Bosch Editor, 2002, p. 192.

15

Assim se manifestou a Exposição de Motivos do Código Penal, em seu item 39: “Ao lado do homicídio com pena especialmente agravada, cuida o projeto do homicídio com pena especialmente atenuada, isto é, o homicídio praticado ‘por motivo de relevante valor social, ou moral’, ou ‘sob o domínio de emoção violenta, logo em seguida a injusta provocação da vítima’. Por ‘motivo de relevante valor social ou moral’, o projeto entende significar o motivo que, em si mesmo, é aprovado pela moral prática, como, por exemplo, a compaixão ante o irremediável sofrimento da vítima (caso do homicídio eutanásico), a indignação contra um

traidor da pátria etc.”.

16

“Art. 30 – Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime”.

17

PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: São Paulo: Thomson Reuters, 2018, v. II, p. 65.

18

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 76.

19

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., p. 155.

20

Roxin define a eutanásia como “(...) a ajuda que se presta a uma pessoa gravemente doente, a seu pedido ou ao menos levando em conta sua vontade presumida, no sentido de proporcionar-lhe uma morte em consonância com a sua noção de dignidade humana”. ROXIN, Claus. Estudos de..., cit., p. 177. Observe-se que, no direito alemão, ao contrário do brasileiro, pune-se o “homicídio a pedido da vítima” (§ 216 do StG), mas, como nota o professor de Munique, há uma saída jurídica, consistente em se entender a eutanásia como participação em suicídio, que lá é fato atípico. ROXIN, Claus. Estudos de..., cit., p. 180.

21

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Art. 121. In: REALE JÚNIOR, Miguel Reale. Código Penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 351.

22

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., p. 64.

23

Um dos maiores escritores brasileiros, Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha, autor de Os sertões, foi morto em 15 de agosto de 1909, numa trágica situação envolta em uma causa de justificação. Após descobrir a traição de sua esposa Anna com um jovem cadete chamado Dilermando de Assis, em nome de uma “defesa da honra”, o escritor resolve matá-lo com emprego de arma de fogo, não vindo, no entanto, a feri-lo mortalmente, mesmo após acertar vários tiros. Em consequência, foi morto pelo cadete. Anos mais tarde, um dos filhos de Euclides da Cunha resolve vingar a morte de seu pai do mesmo modo, sendo também morto por Dilermando. Nas três vezes em que foi julgado, Dilermando foi absolvido por legítima defesa. No entanto, houve reações indignadas na sociedade da época por conta do adultério, então, para

alguns, justificador da ação do escritor. Tanto foi assim que em 1911 o jornal O Estado de S. Paulo noticiou que “enquanto o marido apodrece na sepultura, o amante é posto na rua pelos senhores jurados”. Nesse sentido, estudiosos, notoriamente, relatam que o cadete passou à história como o grande vilão da tragédia. Sobre o tema, cf. PONTES, Eloy. A vida dramática de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938; ELUF, Luiza Nagib. Matar ou Morrer. O Caso Euclides da Cunha. São Paulo: Saraiva, 2012; Crônica de uma tragédia inesquecível: autos do processo de Dilermando de Assis, que matou Euclides da Cunha. Apresentação de Walnice Nogueira Galvão; consultoria de Domício Pacheco e Silva Neto. São Paulo: Albatroz, 2007.

24

Para uma visão aprofundada dos crimes hediondos e suas inconstitucionalidades, FRANCO, Alberto Silva et al. Crimes hediondos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, passim.

25

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 92.

26

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 25.

27

“Art. 30. Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime”.

28

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. São Paulo: Atlas, 2010, v. II, p. 34.

29

COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 2008, v. 4, p. 144.

30

No STJ, e.g.: HC nº 291.604/PI, rel. min. Ericson Maranho (desembargador convocado do TJ/SP), DJe 22/10/2015; HC nº 99.144/RJ, rel. min. Og Fernandes, 6ª Turma, 04/11/2008, DJe 09/12/2008. Já no STF, v.g., HC nº 71.582. rel. min. Sepúlveda Pertence, 28/03/1995, DJe 09/06/1995.

31

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988, v. I, p. 68.

32

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 67.

33

GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. Niterói: Impetus, 2009, p. 166.

34

Assim, por exemplo: REsp. nº 467810/SP, 5ª Turma,  rel.  min.  Felix Fischer,DJ  19/12/2003; REsp. nº 1209852/PR, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, DJ 02/02/2016.

35

V.g., FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., pp. 68-69; HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 161; NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 25; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 84; MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de..., cit., p. 34; PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 67.

36

Razão pela qual Busato, e.g., considera a discussão vazia, cf. BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte especial 1. São Paulo: Atlas, 2014, p. 37. No entanto, ao revés, a discussão permanece viva em hipóteses como as promessas de casamento, de um cargo ou de um título honorífico, pelo que se vê sua importância.

37

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 68.

38

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 162.

39

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 1, p. 199.

40

O Código Penal de 1890, da República, definia veneno no art. 296, parágrafo único, do seguinte modo: “Veneno é toda substância mineral ou orgânica, que ingerida no organismo ou aplicada ao seu exterior, sendo absorvida, determine a morte, ponha em perigo a vida, ou altere profundamente a saúde”.

41

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 163; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 71; NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., p. 25; COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal: parte

especial. São Paulo: Saraiva,1992, v. 2, p. 15; PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 68; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 87.

42

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 162.

43

E.g., NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 25; COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal..., p. 148; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 87.

44

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de..., cit., p. 36.

45

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 68.

46

COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de ..., cit., p. 15; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 87.

47

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 163.

48

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 71.

49

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 26.

50

BRUNO, Aníbal. Direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1966, v. IV, p. 81.

51

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 72.

52

FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina legal. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2015, p. 8.

53

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 73; PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 68.

54

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de..., cit., p. 38. Bitencourt chama a atenção, com acerto, para o fato de que “tiro pelas costas” difere de simples “tiro nas costas”, devendo-se, então, analisar com cuidado o caso concreto para fins de aferição da traição. Cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 90. No mesmo sentido, cf. COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal..., cit., p. 154.

55

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, pp. 90-91.

56

COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal..., cit., p. 153.

57

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 166.

58

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 27; COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de ..., cit., p. 16.

59

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 27.

60

BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 40.

61

Nesse sentido, v.g., BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 40. A doutrina majoritária, todavia, acolhe a compreensão oposta, e.g., COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de..., cit., p. 16; PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 68; MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de..., cit., p. 38.

62

COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal..., cit., p. 154.

63

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 69.

64

“Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III – proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; [...]”.

65

Para uma descrição minuciosa da evolução do termo, cf. SOUZA, Regina Cirino Alves Ferreira de. Ódio e direito penal. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Direito da USP, 2016. p. 136 e ss.

66

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Art. 121..., cit., p. 355.

67

MELLO, Adriana Ramos de. Feminicídio: uma análise sociojurídica da violência contra a mulher no Brasil. Rio de Janeiro: GZ, 2016, p. 185.

68

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 95.

69

SOUZA, Luciano Anderson de;  BARROS, Paula Pécora de. Questões controversas com relação à lei do feminicídio (Lei n. 13.104/2015). Revista da Faculdade de Direito (USP), v. 111, 2016, pp. 275-276.

70

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 95.

71

E.g., BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 95; SOUZA, Luciano Anderson de;  FERREIRA, Regina Cirino Alves. Feminicídio: primeiras observações. Boletim IBCCRIM, v. 269, abr./2015, pp. 3-4.

72

E.g., PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 70.

73

E.g., SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Art. 121..., cit., pp. 354-355.

74

Artigo 80, 11, do Código Penal da Argentina.

75

A respeito do tema, MELLO, Adriana Ramos de. Feminicídio..., cit., p. 141 e ss.; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 98 e ss.

76

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 69.

77

Nesse sentido, MELLO, Adriana Ramos de. Feminicídio..., cit., p. 142.

78

Partilhando desse ponto de vista, vide BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 101.

79

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 97.

80

MELLO, Adriana Ramos de. Feminicídio..., cit., p. 144.

81

“Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente

de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”.

82

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 97.

83

Isso se deu tanto na previsão originária da Lei nº 13.104/2015, ao elencar tais causas, quanto na modificação posterior dada pela Lei nº 13.771/2018, a qual manteve o equívoco.

84

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 103.

85

Dessa maneira, inseriu-se na Lei Maria da Penha: “art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos. § 1o A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas. § 2o Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança. § 3o O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis”. Para uma reflexão sobre esse delito, cf. SOUZA, Luciano Anderson de Souza; YANG, Eloisa. O crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência e o desafio em torno da violência de gênero. Boletim IBCCRIM, nº 26, maio/2018, pp. 12-13.

86

No mesmo sentido, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, pp. 106-107. Em sentido oposto, entendendo não terem sido incluídos os guardas municipais, cf. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Art. 121..., cit., p. 355.

87

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 108. Para Prado, “essa qualificadora enseja grau mais acentuado de culpabilidade do agente (reprovabilidade pessoal pelo injusto), em razão da importância inerente à atividade desenvolvida pela vítima, que diz respeito à manutenção da ordem pública e segurança nacional”. PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 70.

88

Nesse sentido, e.g., MASSON, Cleber. Código penal comentado. Rio de Janeiro: GEN, 2016, p. 620. Em sentido oposto, entendendo que no caso reconhece-se o homicídio em decorrência da função, cf.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 107. Este último autor, assim, entende ser possível incidir apenas a hipótese subjetiva da qualificadora quando o servidor for aposentado. Nessa circunstância, todavia, conforme mencionado, ainda que não se reconheça a qualificadora em foco, haverá homicídio qualificado, por motivo torpe.

89

“Art. 9º. Consideram-se crimes militares, em tempo de paz: (...) III – os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos: a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar; b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo; c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras; d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior”.

90

“Homicídio simples: Art. 205. Matar alguém: Pena – reclusão, de seis a vinte anos. Minoração facultativa da pena: § 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena, de um sexto a um terço. Homicídio qualificado:  § 2° Se o homicídio é cometido: I – por motivo fútil; II – mediante paga ou promessa de recompensa, por cupidez, para excitar ou saciar desejos sexuais, ou por outro motivo torpe; III – com emprego de veneno, asfixia, tortura, fogo, explosivo, ou qualquer outro meio dissimulado ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; IV – à traição, de emboscada, com surpresa ou mediante outro recurso insidioso, que dificultou ou tornou impossível a defesa da vítima; V – para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime; VI – prevalecendo-se o agente da situação de serviço: Pena – reclusão, de doze a trinta anos”.

91

O Código de 1890 previa a premeditação como qualificadora do homicídio.

92

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., pp. 82-83.

93

“Art. 67 – No concurso de agravantes e atenuantes, a pena deve aproximar-se do limite indicado pelas circunstâncias preponderantes, entendendo-se como tais as que resultam dos motivos determinantes do crime, da personalidade do agente e da reincidência”.

94

Nesse sentido, cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 83; NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. Rio de Janeiro: Forense. 2017, p. 757.

95

ROXIN, Claus. Derecho penal…, cit., p. 998.

96

TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 245.

97

ROXIN, Claus. Derecho penal…, cit., p. 1001 e ss.

98

No caso brasileiro, o homicídio culposo de trânsito encontra-se regulado pelo art. 302 do Código de Trânsito, conforme será analisado abaixo.

99

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 176.

100

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 181.

101

O dispositivo em foco foi inserido pela Lei nº 6.416/1977.

102

“Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor: Penas – detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. § 1o  No homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) à metade, se o agente: I – não possuir Permissão para Dirigir ou Carteira de Habilitação; II – praticá-lo em faixa de pedestres ou na calçada; III – deixar de prestar socorro, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à vítima do acidente; IV – no exercício de sua profissão ou atividade, estiver conduzindo veículo de transporte de passageiros. § 3o Se o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Penas – reclusão, de cinco a oito anos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”.

103

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 71.

104

Sobre a embriaguez ao volante não significar, por si só, assunção de risco de produção do resultado lesivo, cf. HC nº 107.801/SP, do STF, relª. minª. Cármen Lúcia.

105

Nesse sentido, e.g., PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 71.

106

“Art. 304. Deixar o condutor do veículo, na ocasião do acidente, de prestar imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública: Penas – detenção, de seis meses a um ano, ou multa, se o fato não constituir elemento de crime mais grave. Parágrafo único. Incide nas penas previstas neste artigo o condutor do veículo, ainda que a sua omissão seja suprida por terceiros ou que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves”.

107

E.g., PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 72; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 79; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 133; COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal..., p. 210. Em sentido contrário, v.g., Greco entende que na hipótese se incluiria, por exemplo, o caso de ausência de custo de tratamento à vítima sem condições financeiras. Cf. GRECO, Rogério. Curso de..., cit., p. 182.

108

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 72.

109

Assim, e.g., MASSON, Cleber. Código penal..., cit., p. 621.

110

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 72.

111

SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Art. 121…, cit., p. 357.

112

Sobre as raízes históricas do extermínio de pessoas no Brasil, com foco especial em meninos de rua, cf.

SUDBRACK, Umberto Guaspari. O extermínio de meninos de rua no Brasil. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 18, nº 1, mar. 2004, pp. 22-30.

113

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 73.

114

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 73.

115

Nesse sentido, PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 73. Contrariamente, cf. BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 55.

116

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 138.

117

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 138.

118

Sobre o contexto de tal produção legislativa, entre outros, cf. KUWAHARA, Shigueo. Proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas no Brasil: o papel do estado e da sociedade civil. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2016; PAIVA, Luiz Guilherme Mendes de.  A fábrica de penas:  racionalidade legislativa e a Lei dos crimes hediondos. Rio de Janeiro: Revan, 2009, p. 80 e ss.; LEAL, João José. Crimes hediondos: a lei nº 8.072/90 como expressão do direito penal da severidade. Curitiba: Juruá, 2018, p. 27 e ss.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-3.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 3. INDUZIMENTO, INSTIGAÇÃO OU AUXÍLIO A SUICÍDIO (ART. 122)

Capítulo 3. Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio (art. 122) Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio Art. 122 - Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça: Pena – reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; oureclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesãocorporal de natureza grave. Parágrafo único – A pena é duplicada: Aumento de pena I – se o crime é praticado por motivo egoístico; II – se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência.

3.1.Considerações iniciais Suicídio é a supressão direta e voluntária da própria vida1. Por mais estranho que soe à percepção dos dias atuais, o suicídio, ou sua tentativa, já foram punidos criminalmente. Na Roma Antiga, se alguém fosse acusado de ilícito sancionado com a pena de perda de bens e, a seguir, essa pessoa se suicidasse, puniam-se os herdeiros com o confisco patrimonial. Isso porque se entendia que o suicídio, em tal hipótese, seria uma reprovável tentativa de preservação do patrimônio familiar2. Ainda, no mesmo período histórico, em regra, aos soldados que tentassem suicídio, era cominada a pena de morte. Na Idade Média, a seu turno, houve uma radicalização do cerceamento ao suicídio, por razões religiosas e morais. O Direito Canônico equiparava o suicídio ao homicídio, cominando àqueles que ceifassem a própria vida a pena de excomunhão (ou seja, a colocação de alguém fora da comunhão), bem como a impossibilidade de sepultamento cristão3. Por conta desse ideário, durante o medievo, comumente o corpo do suicida era levado à forca e os bens por ele deixados eram confiscados4. O Iluminismo insurgiu-se contra tudo isso, por seu irracionalismo. No capítulo XXXV de seu opúsculo, nominado Dos Delitos e das Penas, Beccaria expressamente advertiu que o suicídio não poderia ser criminalmente punido, pois essa punição somente recairia sobre um corpo insensível ou sobre familiares inocentes, o que seria despótico e odioso. Por conta desse pensamento, o suicídio ou sua tentativa não foram considerados crimes no movimento codificador e legislação posterior. Com relação ao suicídio consumado, seria impossível cogitar-se de uma punição pessoal. Já quanto à tentativa de suicídio, não apenas não haveria sentido em se reprimir criminalmente um ato sem alteridade, isto é, carente de prejudicialidade a terceiros, como tampouco ostentaria a pena criminal qualquer função na hipótese. Nenhuma sanção penal é capaz de prevenir a resolução daquele que pretende tirar a própria vida, bem como uma punição concreta aplicada ao indivíduo que tentou isso apenas reforçaria sua resolução5.

Por tudo isso, em suma, as legislações ocidentais pós-iluministas não preveem referida incriminação. Dito de outro modo, não existe crime de suicídio. Todavia, em nome da tutela da vida humana, a maior parte das legislações de referida herança sociocultural pune a participação em suicídio alheio, ou seja, o ato de colaboração, de alguma maneira, para que alguém retire a própria vida. O antecedente mais remoto dessa criminalização foi o Projeto de Código Penal da Louisiana, elaborado na década de 1820 por Edward Livingston, político e jurista norte-americano. Por razões políticas, citado projeto nunca entrou em vigor. Entretanto, influenciou o Código Criminal do Império do Brasil, de 1830, e, a partir desse, o Código Penal espanhol de 1848 e o toscano de 1853. No Código de 1830, o crime em questão era previsto como modalidade de homicídio, no artigo 196: “ajudar alguém a suicidar-se, ou fornecer-lhe meios para esse fim com conhecimento da causa”. A pena cominada era a mesma de hoje, ou seja, de 2 a 6 anos de prisão. A seguir, o Código Penal Republicano, de 1890, contava com previsão similar, porém, com pena menor e nomen iuris atécnico, visto que alcunhava o crime em foco de “suicídio”, e a punição circunscrevia-se à colaboração em suicídio alheio: “induzir, ou ajudar alguém a suicidar-se, ou para esse fim fornecer-lhe meios, com conhecimento de causa: pena – de prisão celular por 2 a 4 anos”. Atualmente, a infração penal em comento consta do artigo 122 do Código Penal, conforme redação originária de 1940. Em outras palavras, cuida-se de um dos crimes previstos no Codex que não sofreu qualquer modificação desde sua entrada em vigor. Como se verá infra, a construção do tipo em foco, graças a seu preceito secundário, isto é, sua punição, mostra-se bastante peculiar. Além disso, importa notar que há duas causas de aumento de pena previstas – de percentual fixo bastante elevado, visto que duplicam a sanção –, voltadas, respectivamente, às razões da prática do delito e ao comprometimento, presumido ou real, da capacidade de resistência da vítima.

3.2.Objetividade jurídica Consoante o sinalizado pela própria nomenclatura do Capítulo 1 do Título I da Parte Especial do Código Penal brasileiro, o bem jurídico tutelado pelo crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio é a vida humana, atingida pela conduta ilícita de outrem, agente culpável, que culminou por contribuir de forma relevante a seu perecimento ou, ao menos, a sua significativa vulneração – caso da ação suicida produzir resultado de lesão corporal de natureza grave, conforme a segunda parte do preceito sancionador. Ainda que não tenha levado a cabo o ato direto de ataque à vida de alguém – realizado pelo próprio suicida –, político-criminalmente o legislador reconhece a gravidade da conduta daquele que colabora decisivamente para tanto. A vida humana é um interesse fundamental, tutelado pelo artigo 5º, caput, da Constituição Federal. Não é possível conceber, no atual estágio civilizacional, uma organização social sem a proteção desse interesse enquanto o mais essencial para a convivência pacífica dos indivíduos. O crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio representa, por conseguinte, uma forma especial de ataque ao mesmo bem jurídico tutelado pelo crime de homicídio. Sua posição tópica, logo em seguida a esse último, mostra-se absolutamente pertinente.

3.3.Sujeitos do delito Com relação aos sujeitos do crime, de se notar que sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, tratando-se, por isso, de crime comum. Já no que diz respeito ao sujeito passivo, cuida-se de qualquer pessoa com capacidade para entender que o ato é suicida. Neste diapasão, se quem retira a própria vida é criança, doente mental, hipnotizado ou sonâmbulo, será reconhecido o crime de homicídio, por autoria mediata.

3.4.Tipicidade objetiva O crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio é normalmente denominado por doutrina e jurisprudência de “participação em suicídio”6, expressão que pode, verdadeiramente, trazer confusões interpretativas. Isso porque quem perpetra o delito de “participação em suicídio” é, em realidade, autor – não partícipe – do crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio. A ideia é a de punir quem colaborar, em maior ou menor medida, com o suicídio alheio. Como esse último ato não é crime, veja-se que há na hipótese a criminalização da participação em fato não criminoso7, mas pela peculiaridade da situação que contribui com o fim de uma vida humana alheia. Há de se ter cuidado na análise dogmática. Se alguém induz, instiga ou auxilia alguém a praticar homicídio, quem executa o crime é autor e aquele que instigou ou auxiliou, por exemplo, é partícipe. Insta rememorar que autor é quem pratica o núcleo do tipo, dominando o curso causal, e partícipe é quem colabora com fato alheio. No caso do artigo 122 do Código Penal, quem se mata é a vítima, sujeito passivo do delito, e quem instiga, induz ou auxilia a isso é seu autor. Importante questionamento dogmático diz respeito à admissibilidade ou não de participação em “participação em suicídio”. Em outras palavras, admite-se participação no crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio? A resposta é positiva, bastando se imaginar a hipótese de “A” convencer “B” a, por sua vez, convencer “C” a se matar, o que este último faz. No caso, “A” é partícipe, enquanto “B” é autor, ambos do crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio. O delito em destaque consiste em crime simples, protegendo exclusivamente o bem jurídico vida humana extrauterina. Para a conformação do tipo objetivo, não basta que haja a mera supressão da própria vida, mas que isso se dê de modo voluntário e consciente8. Por exemplo, se alguém entrega uma granada verdadeira a alguém dizendo que se trata de um recipiente de água (“squeeze”) em forma de granada e a vítima retira o pino de boa-fé, há um emprego de fraude que atinge a consciência. Cuida-se, destarte, de um delito de homicídio. Ainda, e. g., se há coação para que alguém se suicide, sob pena de eliminação de toda sua família, vilipendia-se a vontade, tratando-se, igualmente, de homicídio. A infração penal prevista no artigo 122 do Código Penal consiste em um tipo misto alternativo, ou de conteúdo variado, isto é, várias condutas são vedadas, de forma alternativa, consoante o indica a conjunção alternativa “ou”, prevista no tipo incriminador. Perpetrando o agente uma, duas ou todas as condutas, haverá a prática de um único crime. Mas a prática de mais de uma conduta, não obstante, pode ser sopesada quando da análise das circunstâncias judiciais, previstas no artigo 59 do Codex, para fins de imposição de pena em patamar superior ao mínimo. Induzimento significa a criação de um propósito inexistente, ou seja, fazer surgir a ideia. Em uma palavra, persuasão9. Foi o que, lamentavelmente, ocorreu em 1978, nas Guianas, no chamado caso Jim Jones, quando mais de 900 pessoas se mataram no chamado “Templo dos Povos”. Se alguém, v. g., convence o consorte doente a se matar, fingindo acidente, para fins de deixar o valor de seguro, haverá concurso material entre o delito do artigo 122, na forma de induzimento, e o do artigo 171, § 2º, V, ambos do Código Penal (fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro). Ainda, exemplificativamente, se alguém convence um terrorista a se explodir no metrô, haverá concurso formal impróprio entre o crime de induzimento a suicídio conjuntamente com homicídio. Instigação cuida-se de reforçar propósito existente. Nessa hipótese, a vítima já possuía a ideia de tirar a própria vida e o agente consolida tal pensamento em sua mente. É o caso do “amigo” no bar, o qual, ao saber das intenções suicidas de seu conhecido, assegura a esse que de fato trata-se da melhor solução, vindo a vítima a matar-se. Também ocorrerá o delito em foco, na forma de

instigação, e. g., na hipótese de populares que gritem favoravelmente a que o suicida no alto de prédio venha a pular, o que ocorre. Nessa hipótese, cada um que tenha gritado responde pelo crime. Por fim, auxílio significa colaboração, de qualquer forma, facilitação ou ajuda à concretização do ato suicida. Em outras palavras, significa criar condições de viabilidade do suicídio10. São as situações de fornecimento de revólver ou de veneno para o suicida, sabendo-se de sua intenção. Há de se atentar para o fato de que tais colaborações são indiretas para a morte do suicida, o qual se mata sozinho. Do contrário, ou seja, se a colaboração for direta, haverá homicídio. A doutrina costuma referir-se à “participação material” para o caso de auxílio e de “participação moral” para as hipóteses anteriores, de induzimento ou de instigação. Todavia, insta observar que o auxílio pode ser verbal, como o caso, e. g., do químico que orienta o suicida sobre o veneno. V. g., no final dos anos de 1980, Jack Kevorkian, que ficou conhecido como “doutor morte”, criou, nos Estados Unidos da América, uma “máquina do suicídio”, tendo posteriormente ensinado sobre como construí-la, o que acabou gerando 130 mortes. O tipo do artigo 122 em foco fala em “prestar auxílio”, razão pela qual dúvidas podem existir sobre a possibilidade ou não de um auxílio por omissão. Para uma primeira corrente, não seria possível, pois “prestar auxílio” seria incompatível com omissão11. Cuida-se, não obstante, de pensamento minoritário. Para a corrente que prevalece12, é possível o auxílio por omissão, desde que haja o dever jurídico de evitar o resultado e o agente nada faça. Tal ocorre, por exemplo, na hipótese do bombeiro que poderia agarrar o suicida e vai embora, ou do diretor da prisão que deixa o preso morrer em greve de fome. Para a corrente minoritária, seriam casos de omissão de socorro agravada pelo resultado morte. Há que se observar que, para reconhecimento do crime estudado, a conduta objetiva, de induzimento, instigação ou auxílio, deve se dar antes do ato de suicídio. Assim é que, por exemplo, se o indivíduo corta os pulsos e, a seguir, arrepende-se, pedindo ajuda ao vizinho, que nada faz, incide esse último no crime de omissão de socorro (art. 135 do Código Penal). Já se o agente impede o socorro do suicida, que vem a morrer, o crime a ele imputável é o de homicídio consumado. Também importa não olvidar, para fins de reconhecimento da infração penal prevista no artigo 122, a necessidade de nexo causal que deve haver entre a conduta do agente e o ato de suicídio. Por conseguinte, v. g., se alguém pede uma arma para se matar e o agente a empresta, mas aquele se suicida pulando do prédio, não haverá qualquer crime.

3.5.Tipicidade subjetiva De se notar que o crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio somente é cerceado na modalidade dolosa, podendo o dolo ser direto ou eventual. Quanto a esse último, é o que ocorre, por exemplo, no caso do carcereiro que nada faz sobre a greve de fome do preso, ainda que não desejando diretamente a morte desse. Frise-se que o dolo deve necessariamente ser dirigido à pessoa determinada, ou a pessoas determinadas13. Nesse sentido, obras literárias ou artísticas não podem ensejar a punibilidade de seus autores pelo crime em questão. No século XVIII, diversos suicídios formam atribuídos à obra Os sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe14. Nos anos 1980, Ozzy Osbourne foi processado por sua música Suicide Solution, nos EUA, restando o caso arquivado.

3.6.Consumação e tentativa O tipo de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio revela peculiaridades quanto ao tema da consumação e tentativa. Isso por conta da particular redação da infração em foco que, no preceito secundário, fixa: “reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três

anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave”. Por conseguinte, o crime só se consuma se há no caso concreto resultado morte ou lesão corporal de natureza grave. O teor da redação legal gerou consequências especiais e diferenciadas para a consumação e tentativa desse crime do artigo 122, quais sejam: a) o crime é consumado já com lesão corporal grave (e. g., deformidade permanente ou perda de membro, sentido ou função); b) se do fato resulta lesão corporal de natureza leve, o fato é atípico, o que enseja que a tentativa, a qual seria em tese possível, não é admitida no caso; e c) se o ato suicida não é praticado, aquele que induziu, instigou ou auxiliou não é responsabilizado por nada. A não admissão de tentativa no crime em questão é a posição predominante na doutrina nacional15. Em sentido contrário, Bitencourt16, e. g., entende que referida corrente confunde a presente incriminação com um crime formal. Ocorre que, embora faticamente seja possível imaginar a tentativa na hipótese, a redação peculiar dada pela lei no presente dispositivo demonstra apenas que o legislador tomou uma opção político-criminal nesse específico delito material, qual seja, a de não punir criminalmente hipóteses em que sequer sobrevenha o ato suicida, ou, mesmo tendo este ocorrido, em que não tenha como consequência lesões corporais mais sérias. Como nada mais grave ocorreu nestes casos, não se vislumbra qualquer interesse em se forçar a vítima a que tenha de se explicar às autoridades, passando pelo constrangimento da análise de uma intenção suicida pretérita.

3.7.Causas de aumento de pena Há duas causas de aumento de pena previstas no parágrafo único do artigo 122 do Código Penal. Dessa forma, a pena é duplicada se o crime é praticado por motivo egoístico (inciso I) ou se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência (inciso II). Motivo egoístico é aquele relacionado à obtenção de vantagem pessoal (por exemplo, induzir, instigar ou auxiliar alguém a se suicidar com o objetivo de ficar com dinheiro da herança)17. Com relação à vítima ser menor, dúvidas não existem no sentido de referir-se ao menor de 18 anos. Mas a divergência ocorre quanto à baliza mínima da menoridade para fins de reconhecimento desta causa de aumento, já que, v. g., uma criança de pouca idade convencida a um ato de suicídio é vítima de homicídio, não de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, pois não possui consciência do que faz. A doutrina tradicional aplicava ao caso analogia ao artigo 224, “a”, do Código Penal, o qual se referia à presunção de violência nos crimes sexuais, acolhendo-se, dessa forma, a idade de 14 anos como marco mínimo para a majorante em foco. Hoje, o pensamento prevalece, sob a escora no artigo 217-A (crime de estupro de vulnerável), já que o artigo 224 citado foi revogado. De se notar que tal sorte de raciocínio implica em analogia “in malam partem”, devendo ser preciso aferir concretamente a capacidade de consciência e vontade no menor de 14 anos. Em outros termos, não há espaço para presunções absolutas18. Por fim, ocorre a diminuição da capacidade de resistência nas hipóteses de convencer ao suicídio pessoa ébria, deprimida, com leve comprometimento mental, etc. Observe-se que, se a pessoa não possui capacidade de resistência, haverá crime de homicídio.

3.8.Hipóteses complexas A doutrina costuma referir-se a duas hipóteses complexas, que merecem menção a título ilustrativo com vistas ao interesse dogmático suscitado. Trata-se dos casos da “roleta-russa” e do “pacto de morte”. A “roleta-russa” cuida-se de uma infeliz brincadeira coletiva consistente em deixar uma só bala

no tambor de um revólver, fazê-lo girar, apontar o cano da arma para si próprio, desconhecendose a posição exata da bala, e apertar o gatilho, cada “jogador” a seu turno, da qual algum poderá morrer. Ao que consta, essa prática foi referida na literatura russa do século XIX, mas acabou propagada por conta do cinema norte-americano do século XX. Sobrevindo uma morte, os “jogadores” sobreviventes respondem pelo crime do artigo 122 do Código Penal. Com relação ao “pacto de morte”, ou seja, acerto de suicídio simultâneo19, se um dos agentes desiste do ato, sobrevindo apenas a morte alheia, aquele responde pelo crime em análise. Se o sobrevivente jamais teve a intenção suicida para si, subsiste mesmo assim o crime do artigo 122, pois não matou ninguém, apenas induziu ou instigou o suicídio de terceiro com mentiras. Ainda, se em citado pacto letal ninguém morrer, mas um sofrer lesão corporal leve e o outro lesão corporal de natureza grave, para esse último, o fato será atípico. Mas o primeiro responderá pelo crime do artigo 122. Finalmente, se o pacto consistir em que “A” mate “B” e depois se mate, algumas hipóteses diferenciadas podem se dar. Se somente “B” sobreviver, responderá pelo crime do artigo 122. Se o sobrevivente for apenas “A”, responderá por homicídio20. Já se ambos sobreviverem, “A” responderá por tentativa de homicídio e “B” pelo crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, desde que “A” tenha sofrido lesões corporais de natureza grave.

3.9.Análise de caso paradigmático: “estrela Sirius” O delito de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio enseja rica discussão com a análise de um caso paradigmático ocorrido na Alemanha, entre 1974 e 1980, que ficou conhecido como caso da “estrela Sirius”. Uma jovem então com 23 anos, bastante complexada e dependente, conheceu em uma discoteca um jovem quatro anos mais velho que ela, bastante envolvente. Logo, passaram a ser amigos muito próximos, contudo, no relacionamento deles, o sexo não era o essencial. Basicamente, discutiam filosofia e psicologia, sendo o jovem bastante envolvente, razão pela qual ela passou a ter nele uma figura de mestre e conselheiro. Depois de algum tempo, ele a convenceu ser habitante da estrela Sirius, que iria destruir a terra, somente salvando-se seres superiores, selecionados por enviados do planeta extraterrestre. Assim é que ele a persuadiu de que o corpo dela não possuía a energia necessária para tanto, propondo, como meio de salvação, a mutação de corpo, que ele providenciaria. Ela teria de morrer e, imediatamente, ele levaria a cabo a transposição de sua alma a um corpo mais evoluído. Tendo em vista os custos terrenos da operação, convenceu-a a efetuar um seguro de vida, tendo ele como beneficiário. Ademais, ela teria de simular um acidente, para fins de êxito do plano. Para tanto, combinaram que ela deveria derrubar o secador na banheira, em um momento em que ele desse o sinal. Isso foi feito, todavia, ela não morreu. Na oportunidade, o agente ainda tentou convencê-la a adotar outras medidas para se suicidar, mas não houve êxito. Na Alemanha, não existe o crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, e a defesa alegou que, por isso, o fato seria atípico. O tribunal local e o Tribunal Federal alemão (BGH), no entanto, entenderam que houve tentativa de homicídio por autoria mediata, condenando o sujeito a 7 anos de prisão. Prevaleceu o entendimento de que a vítima era sã e não desejava se matar, mas apenas viver em outro corpo. Segundo Carolina Bolea Bardon21, ela obviamente queria se matar, tendo havido apenas erro quanto aos motivos para tanto, o que não infirmaria a participação em suicídio. Portanto, conclui que há a carência de um crime como o de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio na Alemanha.

3.10.Pena e ação penal O delito de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio é sancionado com pena de reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma, ou de reclusão de um a três anos, se da tentativa de

suicídio resulta lesão corporal de natureza grave. Existem formas majoradas, isto é, causas de aumento de pena, em patamar fixo de seu dobro, se o crime for praticado por motivo egoístico ou na hipótese de a vítima ser menor ou ter diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência. Cuida-se de infração penal apurável mediante ação penal pública incondicionada consoante o rito processual do Tribunal do Júri, conforme a previsão constitucional que fixa como competência desse os crimes dolosos contra a vida (art. 5º, inciso XXXVIII, d, da Carta, bem como arts. 74, § 1º, e 406 e ss. do Código de Processo Penal). Na específica hipótese de tentativa qualificada (isto é, “se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave”), sem a presença de qualquer das causas de aumento (parágrafo único do art. 122) ou, ainda, de relação com violência doméstica (art. 41 da Lei nº 11.340/2006), admite-se a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei nº 9.099/1995).

FOOTNOTES 1

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 35.

2

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988, v. I, p. 113; PRADO, Luiz Regis. Tratado de direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, v. 4, p. 84.

3

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. V, p. 219; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 114; PRADO, Luiz Regis. Tratado de..., cit., p. 84.

4

PRADO, Luiz Regis. Tratado de..., cit., p. 84.

5

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 220.

6

V. g., HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 218; MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. Campinas: Millennium, 2002, v. V, p. 182.

7

Embora não exista em nosso país um crime de suicídio, o ato suicida não pode ser considerado tecnicamente um fato lícito, visto que é legítima a coação exercida para impedir suicídio, de acordo com a

previsão do art. 146, § 3º, II, do Código Penal. Dessa maneira, não se mostra ilegítima a criminalização da participação em fato não criminoso insculpida pelo citado art. 122, conforme HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 222. Em sentido similar, e. g., NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 36; MARQUES, José Frederico. Tratado de..., cit., pp. 130-132; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 119.

8

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 226.

9

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 37.

10

FARIA, Bento de. Código Penal brasileiro (comentado). Rio de Janeiro: Record, 1959, v. IV, p. 38.

11

Neste sentido, e. g., FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 124.

12

V. g., HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 227; NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 38.

13

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 229.

14

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 42.

15

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 231; NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 42; COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 1992, v. 2, p. 20; MARQUES, José Frederico. Tratado de..., cit., p. 144; PRADO, Luiz Regis. Tratado de..., cit., p. 95; etc.

16

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 161.

17

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 232.

18

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 128.

19

Também chamado de “suicídio a dois”, MARQUES, José Frederico. Tratado de..., cit., p. 147.

20

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 231; MARQUES, José Frederico. Tratado de..., cit., p. 147.

21

BOLEA BARDON, Carolina. Caso Sirius. In: SÁNCHEZ-OSTIZ GUTIÉRREZ, Pablo (Coord.). Casos que hicieron doctrina en derecho penal. Madrid: La Ley, 2001, pp. 277-290.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-4.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 4. INFANTICÍDIO (ART. 123)

Capítulo 4. Infanticídio (art. 123) Infanticídio Art. 123 – Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena – detenção, de dois a seis anos.

4.1.Considerações iniciais O crime de infanticídio, tecnicamente, não é a simples morte de uma criança, como coloquialmente se pode imaginar – muito embora, em termos etimológicos, signifique exatamente isso. O delito de infanticídio, previsto no artigo 123 do Código Penal brasileiro, exige muito mais requisitos do que a singela morte dolosa de um infante. Nesse sentido, por exemplo, o conhecido “caso Isabella Nardoni”, triste e brutal morte de uma menina de 5 anos, lançada do sexto andar de um edifício na cidade de São Paulo, em março de 2008, não se tratou de infanticídio, mas de crime de homicídio. Delimitando a tipicidade do fato, fixa o preceito primário do artigo 123 referido: “matar, sob influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”. Infelizmente de não incomum ocorrência prática, esse delito suscita importantes questionamentos político-criminais e dogmáticos, em face de seus contornos sui generis. Aliás, a polêmica já se inicia por seus próprios delineamentos históricos, que ensejam a reflexão acerca do tratamento social dispensado às mulheres. O Direito Romano equiparava o infanticídio ao parricídio, ou seja, o homicídio qualificado pelo vínculo de sangue, cominando sanções severas à mãe1. Durante largo período, se o pai fosse o autor da morte do filho recém-nascido, todavia, o fato era atípico, pois o pater familias detinha o poder de vida e de morte sobre sua prole2. A Lei das XII Tábuas, de 450 a. C., cerne da legislação da República romana, ademais, permitia, conforme a Tábua IV, que o pai matasse o filho recém-nascido de aspecto disforme ou monstruoso, bastando para isso apenas a anuência de cinco vizinhos. Essa pouca valorização da vida humana só vai ser alterada, ainda na Roma Antiga, com a adoção do Cristianismo como religião oficial, no século IV, pelo imperador Teodósio. Concernentemente à realidade não ocidental, no período árabe pré-Maomé, isto é, até o século V, o infanticídio seletivo de gênero era comum, vez que o patriarcalismo tolerava a eliminação da vida de recém-nascidos do sexo feminino. O Alcorão, posteriormente, passou a considerar pecado essa prática. No Oriente, veja-se, mais do que curiosidade histórica, o problema de infanticídio de gênero ainda se põe nos dias atuais. O Direito germânico punia criminalmente o infanticídio, limitando-o à autoria da mãe3. Na Idade Média, sob influência da doutrina cristã, robustecendo-se a postura de valorização da vida humana, o infanticídio era equiparado ao homicídio. Cominavam-se, assim, penas cruéis. A legislação Carolina (Carlos V, imperador do Sacro Império Romano-Germânico), nesse influxo,

estabelecia que as mães autoras de infanticídio deveriam ser empaladas e enterradas vivas, consagrando o costume da época4. Estabelecia ainda que, em locais de maior incidência do infanticídio, deveria haver, antes da derradeira brutalidade, a dilaceração do corpo da mulher5. No século XVIII, sob influxo filosófico do Naturalismo e do movimento político-filosófico iluminista, houve um abrandamento do tema, o qual foi abordado, e. g., por Beccaria e Feuerbach6. Dessa maneira, passou-se a entender o infanticídio como um homicídio privilegiado, praticado pela mãe ou mesmo por parentes, fundamentalmente em situações honoris causa, ou seja, para defesa de sua própria honra perante a comunidade, em face de uma gravidez socialmente malvista. A primeira previsão com tais contornos deu-se no Código Penal austríaco de 1803. A partir de então, esse ideário foi se disseminando nos demais países. Uma exceção digna de menção foi o ordenamento inglês, que somente em 1922, com o Infanticide Act, deixou de punir o infanticídio com pena de morte. A partir de 1938, todavia, passou-se a entender a situação como atrelada a razões psicofísicas. No Brasil, o Código de 1830 previu o crime de infanticídio, em razão de desonra, quando praticado pela própria mãe. No entanto, previu um crime de morte de recém-nascido, sem qualquer ressalva, com pena menor que a do homicídio, o que levava ao estabelecimento de um valor menor da vida do recém-nascido relativamente à de outros seres humanos, o que era absurdo. O Código Penal Republicano (1890), por sua vez, considerava o infanticídio a morte ocasionada ao recém-nascido, nos sete primeiros dias de vida, praticada pela mãe ou terceiros, por motivo de honra. Havia má técnica, pois o Código tencionava estabelecer um abrandamento de pena, mas, se o autor fosse terceiro, a pena seria igual à do delito de homicídio simples, havendo apenas diminuição para a prática da mãe. O Código de 1940, por seu turno, abandona o critério psicológico (motivo da honra) e adota o critério psicofísico. De qualquer modo, de se observar que ambos foram critérios para se entender o infanticídio como deliptum exceptum, isto é, um homicídio merecedor de tratamento mais benigno. Em outras palavras, no fundo, o crime de infanticídio nada mais é dogmaticamente do que um homicídio privilegiado, isto é, espécie de homicídio com pena abrandada. O critério psicológico, qual seja, honra, era calcado em preconceitos sociais relativos a uma gravidez que a doutrina chamava ilegítima7 (v. g., da mulher casada adulterina, da mulher solteira e da freira). Causa clássica do infanticídio, chamada pela doutrina de impetus pudoris8. Já o critério psicofísico, ou fisiopsicológico, que remonta ao Projeto de Código Penal suíço de 1916, convertido em lei em 1937, vincula-se ao motivo da particular perturbação decorrente do parto, capaz de levar a mãe a eliminar seu próprio filho nascente ou recém-nascido. Dessa maneira, a causa do infanticídio seria o impetus doloris. Isso decorre da evolução da ciência na análise do tema. Entende-se que a responsabilidade da mulher nesses casos resta diminuída, pois age sob influência do estado puerperal, durante o parto ou logo em seguida. Por isso, diminui-se a pena comparativamente ao delito de homicídio. Conforme Hungria, a identificação do infanticídio mostra-se “subordinada à averiguação de que o estado puerperal, ou seja, o estado consequente às dores do parto, ou de excitação ou angústia por este produzidas, aliado ao psiquismo particular (não anormal) da parturiente, contribuiu no ato voluntário da ocisão do infante”9. A redação do delito de infanticídio permanece a mesma desde a entrada em vigor do Código Penal de 1940.

4.2.Objetividade jurídica O bem jurídico tutelado pelo delito de infanticídio é a vida humana, do ser nascente ou recém-

nascido. A existência dessa específica figura delitiva é justificada pela especial forma de ataque sofrida pelo interesse protegido, isto é, por conta da ação da mãe que atua sob influência do estado puerperal. Ao criar o presente tipo penal, o legislador entendeu que, no caso, há menor desvalor do comportamento delitivo em relação a um homicídio.

4.3.Sujeitos do delito Sujeito ativo do delito de infanticídio é a mãe, a qual, sob influência do estado puerperal, elimina a vida do próprio filho nascente ou recém-nascido, necessariamente durante o parto ou logo em seguida. Por conseguinte, trata-se de delito próprio. A questão dogmática mais polêmica envolvendo o crime de infanticídio na doutrina brasileira diz respeito à coautoria e participação. Tradicionais autores10 não admitiam a coautoria na hipótese, com a justificativa de que o terceiro envolvido na ação delitiva não ostenta da condição de mãe no estado puerperal, razão de ser do delictum exceptum. Hungria11 defendeu, na maior parte de sua vida, que haveria uma condição personalíssima, não comunicável. Todavia, o artigo 30 do Código Penal fixa que as circunstâncias e as condições de caráter pessoal são incomunicáveis, salvo se elementares do crime. Efetivamente, cuida-se a condição de mãe sob influência do estado puerperal de uma elementar do crime, pois sem ela haverá homicídio. Dessa forma, sem sombra de dúvidas isso se comunica, admitindo o tipo a coautoria, o que é reconhecido pela majoritária doutrina12 e praticamente pacífica jurisprudência. Importante notar que até Hungria mudou de opinião ao final de sua vida. A razão de ser da polêmica talvez se escore na injustiça da solução, pois o terceiro, que não tem qualquer alteração psicofísica, efetivamente, aproveita-se de uma redução de pena13. Por esta razão, inclusive, o Projeto de Lei do Senado nº 236/2012, Projeto de Novo Código Penal, propõe excepcionar a regra da comunicabilidade de circunstâncias, estabelecendo que o terceiro responderia por homicídio. Perfeitamente admissível a participação no infanticídio. Dúvidas existem se no caso concreto só o terceiro praticar o ato executório e a mãe, sob influência do estado puerperal, é partícipe (por exemplo, incitando o terceiro a eliminar o recém-nascido). Qual seria a melhor solução no caso? Inquestionavelmente, na hipótese, o executor perpetra o crime de homicídio, pois perfaz o tipo do artigo 121, sem qualquer elemento especializante previsto no artigo 123. As condições da mãe não se comunicam no específico caso pois ela não é autora do crime. Parte da doutrina, então, entende que haveria nessa particular situação uma quebra da teoria monista do concurso de pessoas, pois a mãe não poderia responder por homicídio, já que, se tivesse ela mesma morto o infante, a pena seria mais branda14. Assim, a mãe responderia por infanticídio. Por sua vez, Bitencourt e Regis Prado, e. g., com razão, não admitem a quebra da teoria monista do concurso de pessoas. Regis Prado15 entende que a mãe responde nesse exemplo como partícipe de homicídio, aplicando a pena mínima e com redução máxima se a participação dela for de menor importância (artigo 29, § 1º, do Código Penal). Já Bitencourt16 oferece uma coerente e interessante solução, relativa à cooperação penal dolosamente distinta (artigo 29, § 2º): como a mãe queria participar de crime menos grave (infanticídio), há um desvio subjetivo de conduta que faz com que ela responda pelo delito do artigo 123, enquanto o autor responde por homicídio. Tratase, de fato, da melhor solução jurídica. O sujeito passivo do crime é o filho que está nascendo (nascente) ou que acaba de nascer (neonato). Caso a mulher, ainda que durante ou parto ou logo em seguida, sob a influência do estado puerperal, mate outro filho que não o nascente ou recém-nascido, o crime será o de homicídio, podendo ser analisada pericialmente a questão de sua imputabilidade para fins de eventual aplicação de medida de segurança17. Contudo, se ela, sob o estado puerperal, mata outro bebê, seu

descendente ou não, pensando tratar-se de seu filho recém-nascido, responderá por infanticídio (crime putativo).

4.4.Tipicidade objetiva O infanticídio é, de fato, uma modalidade de homicídio – veja-se que o núcleo do tipo é o mesmo, isto é, o verbo “matar” – com peculiares circunstâncias. Referidos delineamentos, inclusive, ensejam fortes controvérsias de opinião quanto à necessidade ou não de existência desse particular delito, discussão essa eminentemente doutrinária. Não obstante, uma vez presentes todos os requisitos legais constantes do art. 123 do Código Penal, a incriminação há de ser reconhecida. Dessa maneira, importante observar que o crime de infanticídio prevalece sobre o homicídio, em razão do princípio daespecialidade, já conhecido dos romanos (lex specialis derogat legi generali), e posteriormente insculpido como regra fundamental quanto ao concurso aparente de normas. A lei especial derroga a geral, pois há entre elas relação hierárquica de gênero e espécie, prevalecendo sempre a que contém os elementos especializantes. O tipo penal em foco é um delictum exceptum que tem como bem jurídico tutelado a vida humana, como referido. Trata-se de uma forma privilegiada de homicídio. “Matar, sob influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após” consubstancia-se em um crime próprio, praticado pela mãe em detrimento de seu filho nascente ou recém-nascido, sob certo domínio de uma peculiar e passageira condição fisiopsíquica, denominada estado puerperal. Por conseguinte, há que se observar que o legislador de 1940 afastou-se do critério da desonra, escorando-se exclusivamente no critério fisiopsíquico18. Essa solução era criticada, e. g., por von Liszt19, para quem o melhor regrame seria o que combina simultaneamente o critério psicológico com o fisiopsicológico. De qualquer forma, como notava Hungria20, nada obsta que o fator psicológico (desonra, isto é, caso de gravidez socialmente censurada, como a de relação adulterina) entre no contexto deflagrador da particular perturbação referida pela lei. Mas, por certo, não pode, conforme o Código atual, ser critério exclusivo. Hodiernamente, dessarte, no ordenamento brasileiro, a razão de ser deste delictum exceptum é a consideração de menor gravidade da morte ocasionada nas circunstâncias previstas. A polêmica inicial do insculpido pelo Código de 1940, quanto a este aspecto, centra-se na enorme dificuldade de conceituação e de aferição do elemento normativo do tipo chamado estado puerperal. Tanto que o Código Penal de 1969, que jamais entrou em vigor, abandonava o critério fisiopsicológico, retornando ao regrame pré-1940. O estado puerperal, conforme Maranhão21, é uma situação sui generis, pois não se cuida nem de uma alienação ou semialienação, mas tampouco de uma situação normal. Conforme Hungria22, o desvio do normal não é tamanho a se cogitar de uma irresponsabilidade ou responsabilidade diminuída (inimputabilidade ou semi-imputabilidade), ou seja, não há exatamente uma patologia, mas apenas uma situação peculiar de anormalidade em razão do parto23. De modo extremado, França24, a seu turno, em seu curso de medicina legal, entende que o estado puerperal seria uma ficção jurídica, “fantasiosa”, segundo suas palavras, pois sequer há um limite de duração definido. Todavia, muito embora haja controvérsia, bem como efetivamente carência de maiores estudos acerca dessa especial condição, aceita-se majoritariamente a existência do estado puerperal. Período puerperal, ou simplesmente puerpério, consiste no intervalo de tempo entre a dequitação placentária e o retorno do organismo materno às condições pré-gravídicas, o que dura em média cerca de seis semanas, permitindo à mulher estar apta a nova fecundação. Trata-se de uma noção da medicina obstetrícia.

Já o estado puerperal, aspecto psicopatológico decorrente do contexto do puerpério, trata-se, conforme compreensão prevalente, de uma alteração temporária em mulher previamente sã, caracterizada pelo comprometimento do senso moral e capacidade cognitiva, seguida de liberação de instintos que levam à agressão ao filho nascente ou recém-nascido25. A ciência atualmente entende que o parto deflagra súbita queda de níveis hormonais e alterações bioquímicas no sistema nervoso central. Isso pode levar, em alguns casos, às seguintes condições anômalas, em grau crescente de gravidade: a) depressão pós-parto; b) estado puerperal; c) psicose puerperal; e d) inimputabilidade. A depressão pós-parto cuida-se de uma perturbação psíquica, muito comum, que acomete a mulher, podendo durar até meses. Se, em razão da depressão, tempos depois do parto, ela mata seu filho – que não é mais recém-nascido – não se pode reconhecer o crime de infanticídio, pois não se atende a um requisito objetivo do tipo. Já se, durante o parto ou logo em seguida, a mãe mata seu filho nascente ou neonato em razão da depressão, muito provavelmente a perícia terá dificuldades de diferenciar sua condição do estado puerperal, que haverá de ser reconhecido (in dubio pro reo). A psicose puerperal, situação rara, cuida-se de um momentâneo descontrole completo, com perda da capacidade de entendimento ou de autodeterminação. Trata-se de uma doença mental, ainda que passageira, condição, não obstante, mais grave que o estado puerperal. No caso, afastase o infanticídio e a agente responde por homicídio, avaliando-se sua imputabilidade26. Constatando-se a inimputabilidade, há absolvição imprópria, aplicando-se medida de segurança. Já na inequívoca situação de inimputabilidade, a agente também é isenta de pena, sendo cominada medida de segurança. Insta notar, por fim, que a aferição do estado puerperal deve ser realizada por perícia, o que normalmente é feito na prática quando a mulher não mais se encontra no estado puerperal. Isso traz muitas dificuldades práticas, debatendo-se a doutrina e a jurisprudência se, em razão disso, o estado puerperal há de ser presumido. Inclina-se, atualmente, por uma compreensão de que nessas hipóteses a presunção se impõe27, pois, na dúvida, a solução mais favorável é a necessária. Embora não haja unanimidade, hoje, na maioria dos casos, entende-se pela ocorrência do estado puerperal sem maiores dificuldades. Outro desafio do crime em questão circunscreve-se ao elemento normativo temporal que o tipo prevê, qual seja, “durante o parto ou logo após”. Isso porque se a morte dolosa do nascituro se dá antes do início do parto o crime será o de aborto, bem como, se não respeitado o elemento “logo após”, o crime será de homicídio. O parto inicia-se com o rompimento da bolsa amniótica e termina com o corte do cordão umbilical. Dessa forma, caso haja morte dolosa do nascituro antes do natural rompimento da bolsa amniótica, o crime será de aborto. A partir desse momento, ainda que o cordão umbilical não tenha sido segmentado, preenchidos todos os demais requisitos do art. 123, o crime será o de infanticídio (na ausência de qualquer elemento legal, haverá homicídio). Maior dificuldade, todavia, encontra-se na expressão “logo após”. Para Fragoso28, e. g., isso significa logo em seguida, prontamente, sem intervalo. Mas a doutrina majoritária sempre se inclinou por uma compreensão mais ampla, sem critérios rígidos, normalmente entendendo que a expressão temporal “logo após” abarca todo o período do puerpério29. No mesmo sentido, é a jurisprudência dominante. Se o parto é provocado pela gestante para fins de eliminação do nascituro, o crime é o de aborto. Hungria30 expõe, ainda, o exemplo do feto expulso naturalmente que teria vida inquestionavelmente inviável, mas tem esta abreviada em poucos momentos pela parturiente, entendendo tratar-se de fato atípico. Matar significa eliminar a vida, o que no caso é perpetrado pela mãe do ser nascente ou recém-

nascido. Muito embora isso normalmente ocorra de modo ativo, nada obsta que o crime seja perpetrado na modalidade omissiva, como nos exemplos da proposital ausência de amamentação da criança, para que morra por desnutrição, ou da falta de sutura do cordão umbilical, com animus necandi.

4.5.Tipicidade subjetiva O crime de infanticídio é punido apenas na modalidade dolosa (dolo direto ou eventual). A simples suposta “frieza” ou “indiferença para com a vida” do ser nascente ou neonato, por parte da agente, na consecução do delito, já integram o dolo do tipo, não podendo ser considerados para fins de aumento de pena acima do mínimo31. O estado puerperal não significa necessariamente que a mãe não saiba o que faz. Uma observação importante a respeito do tema é a relativa à necessidade de se diferenciar o crime de infanticídio do delito de exposição ou abandono de recém-nascido (artigo 134 do Código Penal). A distinção consiste no fato de que no crime de exposição ou abandono de recém-nascido (“expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria”) não há animus necandi, ou seja, o intuito homicida, nem direto ou eventual. Se, da exposição ou abandono, resulta morte da criança, há a figura preterdolosa do § 2º do artigo 134, cuja pena, aliás, é igual à do infanticídio. Demais disso, debate-se a doutrina se, durante ou logo depois do parto, a mãe, sob influência do estado puerperal, mata o filho por imprudência, isto é, culposamente, qual seria a correta solução jurídica. Para uma corrente32, haveria homicídio culposo, já que não haveria o dolo de infanticídio (constatação necessária para este crime). É o entendimento majoritário. Para um posicionamento minoritário33, no entanto, o fato seria atípico, já que o artigo 123 não admite modalidade culposa e não se pode exigir o atendimento dos cuidados devidos de alguém sob influência do estado puerperal. Ademais, segundo essa última linha de pensamento, se homicídio houvesse, seria aplicável o perdão judicial.

4.6.Consumação e tentativa Como crime de resultado, tal qual a hipótese de homicídio, o infanticídio se consuma com a morte do ser humano nascente ou recém-nascido. É perfeitamente admissível a tentativa, que acontece quando, iniciada a execução, a morte do sujeito passivo não ocorre por circunstâncias alheias à vontade da mãe.

4.7.Reflexões político-criminais pertinentes O infanticídio está presente em todas as épocas e classes sociais34, havendo muitas vezes a falsa impressão de sua pequena ocorrência em razão das condenações impostas a mulheres nessa situação pela prática de homicídio35. Portanto, além de maior aprofundamento médico, como referido quanto ao “estado puerperal”, faltam estudos empíricos e sociológicos sobre o fenômeno. Ademais, carece o Estado da implementação de práticas preventivas a essa ocorrência36. Em estudo37 publicado em 1999, fruto de pesquisa de campo levada a efeito no Estado do Rio de Janeiro, observou-se que 88% das infanticidas eram solteiras, 94% mantinham a gravidez em segredo e 100% não tiveram parto assistido na rede hospitalar. Dessa forma, acompanhamento médico e psicológico de gestantes, facilitação do encaminhamento de crianças para adoção e outras políticas públicas sinalizam-se como medidas imperiosas na questão. 4.8. Pena e ação penal

O crime de infanticídio é sancionado com pena de detenção, de dois a seis anos. Por já integrar os contornos do tipo penal, explícita ou implicitamente, não podem incidir ao infanticídio – sob pena de bis in idem – as agravantes genéricas insculpidas no artigo 61, inciso II, alíneas e (crime cometido contra descendente), f (crime cometido prevalecendo-se de relações domésticas) e h (crime contra criança). Cuida-se de infração penal apurável mediante ação penal pública incondicionada consoante o rito processual do Tribunal do Júri, conforme a previsão constitucional que fixa como competência desse os crimes dolosos contra a vida (art. 5º, inciso XXXVIII, d, da Carta, bem como arts. 74, § 1º, e 406 e ss. do Código de Processo Penal). De se notar que o crime suscita problemas práticos no procedimento especial do júri. O cotidiano forense impõe desafios quando os jurados negam a existência do estado puerperal a acusadas de infanticídio. Alguns entendem que nesse caso o juiz deva condenar por homicídio, outros que a absolvição se faz precisa, devendo o Ministério Público, caso assim delibere, propor nova denúncia. Uma terceira visão, tecnicamente correta, propugna pela dissolução do conselho de sentença e envio dos autos para nova pronúncia.

FOOTNOTES 1

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988, v. I, p. 89.

2

MOMMSEN, T. El derecho penal romano. Trad. P. Dorado. Pamplona: Anacleta, 1999, v. I, p. 17 e ss.

3

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 89.

4

LISZT, Franz von. Tratado de direito penal. Trad. José Higino Duarte Pereira. Campinas: Russell, 2003, t. II, p. 41; HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. V, p. 234; NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 44.

5

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., pp. 234-235.

6

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 235.

7

LISZT, Franz von. Tratado de..., cit., p. 43; HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., p. 237.

8

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 238.

9

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 245.

10

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 259; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., pp. 96-97.

11

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 259.

12

Entre outros, NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 52; FARIA, Bento de. Código Penal brasileiro (comentado). Rio de Janeiro: Record, 1959, v. IV, p. 39; COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 1992, v. 2, p. 21; PRADO, Luiz Regis. Tratado de direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, v. 4, p. 103.

13

Neste sentido, e. g., NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 52.

14

Conforme posicionamento de Flávio Monteiro de Barros, citado por BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 181.

15

PRADO, Luiz Regis. Tratado de..., cit., pp. 103-104.

16

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., pp. 181-182.

17

Cabendo aqui a observação de Hungria, “(...) o estado puerperal pode determinar, mas nem sempre determina a alteração do psiquismo da mulher normal”. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 241.

18

Na Espanha, v. g., o critério da honra somente foi abandonado em 1995.

19

LISZT, Franz von. Tratado de..., cit., p. 43.

20

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 241.

21

MARANHÃO, Odon Ramos. Curso básico de medicina legal. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 202.

22

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., pp. 244-245.

23

Consoante Noronha, “as dores, apreensões, temores etc. concorrem para que a parturiente, exausta e esgotada, apresente conturbação da vontade e do raciocínio, não estando, pois, em estado normal”. NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 45.

24

FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina legal. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2015, pp. 343-345.

25

ALMEIDA JÚNIOR, A.; COSTA JÚNIOR, J. B. de O. e. Lições de medicina legal. São Paulo: Nacional, 1981, p. 382.

26

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 250.

27

Nesse sentido, p. ex., PASCHOAL, Janaína. In: REALE JÚNIOR, Miguel (Coord.). Direito penal: jurisprudência em debate – crimes contra a pessoa. Rio de Janeiro: GZ, 2011, v. 1, p. 60.

28

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 94.

29

Exemplos: HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 258; MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. Campinas: Millennium, 2002, v. V, pp. 155-156; NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 46.

30

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 258.

31

No sentido do texto, v. g., veja-se trecho de decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: “de fato, ainda que consideradas as circunstâncias fáticas relacionadas à forma como a ré perpetrou o crime, enrolando sua filha, à qual acabara de dar à luz, em um saco plástico e uma toalha e a escondendo em outro cômodo da casa da outra filha de tenra idade, tais circunstâncias demonstram, sem dúvida alguma, frieza e indiferença à vida, mas que já integram o dolo normal do tipo, inviável de se exasperar a pena-base no ‘quantum’ adotado pela Julgadora” (TJSP, ApCrim nº 0001976-47.2004.8.26.0052, j. 19/4/2012, rel. Des. Christiano Kuntz).

32

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 259; NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 51; PRADO, Luiz Regis. Tratado de..., cit., p. 109.

33

COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de..., cit., p. 22.

34

Embora, como já advertia Hungria, via de regra, é um crime das camadas mais pobres. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., p. 247.

35

PASCHOAL, Janaína. Infanticídio. In: REALE JÚNIOR, Miguel (Coord.). Direito penal: jurisprudência em debate – crimes contra a pessoa. Rio de Janeiro: GZ, 2011, v. 1, p. 62.

36

PASCHOAL, Janaína. Infanticídio..., cit., p. 64.

37

MENDLOWICZ, M. V. Neonaticide in the city of Rio de Janeiro: forensic and psycholegal perspectives. J Forensic Sci. jul. 1999; 44(4): 741-745.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-5.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 5. ABORTO (ARTS. 124 A 128)

Capítulo 5. Aborto (arts. 124 a 128) Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena – detenção, de um a três anos. Aborto provocado por terceiro Art. 125 – Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de três a dez anos. Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena – reclusão, de um a quatro anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. Forma qualificada Art. 127 – As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte. Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

5.1. Considerações iniciais Aborto é a interrupção da gravidez, com a consequente morte do produto da concepção. A literatura médico-legal critica a utilização da palavra “aborto” pela lei penal, tendo em vista que essa designaria o ser humano em formação morto, isto é, o produto, ou resultado, do “abortamento”1. De qualquer modo, a expressão aborto consagrou-se legislativamente, subentendendo-se sua referência à conduta abortiva. O aborto pode ser natural, culposo,criminoso ou legal. O primeiro, também chamado de aborto espontâneo, ocorre por razões naturais, como rejeição do organismo materno à gestação,

malformação fetal, etc. O aborto culposo, ou acidental, por sua vez, é aquele que deflui de razões traumáticas não queridas, como atropelamento, queda, colisões, entre outros. Tanto o aborto natural como o aborto culposo, os quais, em comum, pressupõem a falta de intencionalidade da gestante ou de terceiros para sua ocorrência, não possuem interesse jurídico-penal. Em outros termos, as figuras criminosas de aborto são dolosas, inexistindo crime de aborto culposo, consoante escolha política de nossos legisladores. Demais disso, importa observar que existem ainda casos especiais de exclusão da ilicitude insculpidas na própria lei, chamadas hipóteses de aborto legal ou permitido. Nessas situações, afasta-se o reconhecimento do crime por expressa previsão constante na legislação, a saber: a) quando não há outro meio de salvar a vida da gestante (aborto necessário ou terapêutico); ou b) quando a gravidez resulta de estupro (aborto sentimental ou humanitário). As incriminações em torno de práticas abortivas, que inexistiam num passado remoto2, há tempos são envoltas em controvérsias3. Isso ocorre, principalmente, por razões religiosas, éticas, morais e filosóficas. O tema, ademais, revela importantes questões de gênero, sendo pauta de movimentos feministas que reivindicam autonomia das mulheres sobre seus corpos4. Essa, inclusive, foi a tônica de caso concreto incidentalmente julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no ano de 2016 – HC nº 124.306/RJ –, o qual rechaçou a criminalização do aborto, sob a pecha de inconstitucional5. A polêmica em torno do temário, não obstante, leva a tratamentos legais díspares ao redor do mundo, em que pese seja possível identificar, claramente, maior permissividade em países economicamente mais desenvolvidos, mesmo de maioria cristã. Exemplificativamente, no continente africano e na América Latina, à exceção de Cuba e do Uruguai, em geral, há maior recrudescimento na disciplina jurídica da matéria. É o que ocorre no Brasil, cuja legislação penal sobre o aborto permanece inalterada desde a edição do Código Penal de 1940. Atualmente, tramita no STF Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 442 –, ajuizada por partido político (PSOL) com o pedido de interpretação conforme dos artigos 124 a 126 do Código Penal de modo a descriminalizar o aborto efetuado até a 12ª semana de gestação.

5.2. O panorama internacional sobre o tema Na atualidade, a maioria dos países do hemisfério norte ocidental permite o aborto sem maiores restrições, em geral até a 10ª ou 12ª semana de gestação, por livre escolha da gestante. É o que ocorre, e. g., em Portugal, Itália, Alemanha, França, Espanha, Suíça, Áustria, Dinamarca, Holanda, Bélgica, Inglaterra e Estados Unidos da América6. Também é o caso, fora dessa localização geográfica, da Austrália. Na América Latina, ao revés, a regra é a da proibição do aborto, salvo estreitas exceções, como se dá no Brasil. Afora desse paradigma – chamado de modelo de indicações legais –, encontram-se as citadas legislações de Cuba e Uruguai, mais permissivas, e a da Nicarágua, essa de absoluta intolerância, a qual proíbe o aborto mesmo se único meio necessário para salvar a vida da gestante.

5.3. Objetividade jurídica O bem jurídico tutelado pelas figuras delitivas previstas nos artigos 124 a 126 do Código Penal é a vida humana intrauterina, isto é, a vida humana em formação7. Secundariamente, tanto no tipo de aborto provocado sem o consentimento da gestante (art. 125) como nas causas de aumento de pena previstas no art. 127, protege-se a integridade física da mulher gestante. Quanto à delimitação do interesse essencial tutelado nas incriminações em destaque, o maior desafio está na compreensão do momento em que se inicia a vida humana. Isso porque, anteriormente ao marco estabelecido, não haverá incidência penal. Existem, a respeito, quatro correntes fundamentais: a da fecundação; a da nidação; a dos batimentos cardíacos; e a dos

impulsos cerebrais. Segundo a corrente da fecundação, a vida humana inicia-se a partir da junção dos gametas masculino e feminino no interior do corpo da mulher, isto é, parte do momento em que o óvulo materno é penetrado pelo espermatozoide. A contar de referido fato, iniciar-se-ia o ciclo da vida do ser humano. Caso acolhido esse entendimento, por exemplo, a chamada “pílula do dia seguinte”8, que obsta a fixação do óvulo fecundado na parede uterina, poderá ser considerada método abortivo. Para o ponto de vista da nidação, todavia, a simples fecundação não representa a presença de uma gravidez viável, eis que, para que isso ocorra, o óvulo fecundado deverá ser efetivamente implantado no útero materno, fenômeno ocorrente por volta de até sete dias depois da fecundação. O percentual de abortamento espontâneo, ou seja, natural, entre a fecundação e a nidação gira em torno de 50%. Embora essa constatação, em si, não possua interesse jurídicopenal, dela se pode extrair a corroboração de adequação do critério da nidação no lugar do da fecundação. Segundo a terceira compreensão, quanto aos batimentos cardíacos, apenas o desenvolvimento desses no ser humano em formação revelaria uma vida factível, porque, até esse instante biológico, não passaria de mera expectativa. Os batimentos cardíacos desenvolvem-se por volta da terceira ou quarta semana de gestação. Por fim, para a corrente dos impulsos cerebrais, tão somente o desenvolvimento desses denotaria uma vida humana viável em formação, sendo os anteriores entendimentos imperfeitos. Os impulsos cerebrais surgem por volta da 9ª semana de gestação. O feto anencefálico, de impossível sobrevivência autônoma pós-parto por tempo juridicamente relevante, revelaria gravidez patológica, não biológica, motivo pelo qual esse seria o critério mais pertinente. Em que pesem os argumentos das demais teorias, doutrina e jurisprudência acolhem o entendimento da nidação9. De certa maneira, não deixa de haver nisso certa incoerência na interpretação sistemática, uma vez que se aceita pacificamente o critério da parada das funções cerebrais para caracterização da morte, de acordo com o estabelecido no art. 3º da Lei de Transplantes (Lei nº 9.434/1997). Se a vida humana finda com o esgotamento das atividades cerebrais, por consequência, não seria irrazoável compreender seu início a partir do mesmo parâmetro. De todo modo, importa notar que o conceito de vida e sua delimitação cronológica decorrem, mais do que tudo, de um processo de construção cultural. Demais disso, nunca é demais lembrar que o Direito Penal não pode almejar o utópico estabelecimento de verdades absolutas, mas tão somente a fixação de critérios razoáveis para disciplina de problemas concretos. Além do imprescindível marco inicial da vida humana para fins de reconhecimento das incriminações de aborto, mostra-se preciso aferir a baliza temporal final para sua incidência, uma vez que as figuras de aborto cuidam-se de especializações do tipo penal de homicídio. Como esse protege a vida humana extrauterina e aquelas tutelam a vida humana intrauterina, o início do parto consubstancia-se no momento fático-biológico que demarca uma ou outra situação. Por conseguinte, se é provocada dolosamente a morte de ser humano em formação intrauterina, depois da nidação e sem que tenha havido o rompimento da bolsa amniótica, tratarse-á de uma das figuras de aborto. Do contrário, ou seja, iniciado o parto – momento demarcado por citada ruptura –, ainda que o nascituro esteja dentro do corpo da mãe, uma vez que haja a eliminação dolosa de sua vida, haverá homicídio ou infanticídio, a depender das circunstâncias concretas.

5.4. Sujeitos do delito A particular construção dos crimes de aborto, nos arts. 124 a 126, ensejou, para tais hipóteses, a quebra da teoria monista do concurso de pessoas. Para essa última, agasalhada no art. 2910 do

Código Penal, todos os agentes intervenientes na empreitada criminosa respondem pelo mesmo delito. Essa é a regra que pode ser excepcionada pelo legislador penal ao conformar as construções típicas, como no caso. Por conseguinte, quanto aos sujeitos ativos do delito, é possível que a gestante responda por uma infração penal e o terceiro por outra. Nas modalidades descritas alternativamente no art. 124 (aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento), somente a gestante pode ser sujeito ativo do delito. Dessa maneira, cuidase de crime próprio. Os demais casos de crimes de aborto (arts. 125 e 126, respectivamente, aborto sofrido e aborto com consentimento) podem ser perpetrados por qualquer pessoa, consubstanciando-se em crimes comuns. Sujeito passivo do delito é sempre o produto da concepção11. Não se revela invariavelmente correta a referência a esse último como “feto”, uma vez que o ser humano em formação passa por diversas fases, consoante a biologia. Nesse sentido, com até dois meses de formação é chamado zigoto, ou ovo; de dois a quatro meses, é denominado embrião; por fim, somente posteriormente a esse período é conhecido como feto. No caso do crime previsto no art. 125 (aborto sofrido, isto é, aborto provocado sem o consentimento da gestante), também é sujeito passivo a mulher grávida, vilipendiada em sua integridade física e autonomia da vontade. O mesmo ocorre com relação às causas de aumento de pena previstas no art. 127, quando do fato resulta culposamente lesão corporal de natureza grave ou morte da gestante.

5.5. Tipicidade objetiva e subjetiva São três as figuras delitivas relativas ao aborto: a) autoaborto ou consentimento ao aborto (art. 124); b) aborto sofrido (art. 125); e c) aborto consentido ou consensual (art. 126). Como apontado, são todas incriminações dolosas, não existindo previsão criminal de modalidade de aborto culposo. Os delitos de aborto podem ser realizados de forma livre, isto é, revelam a possibilidade de perpetração por qualquer meio12. Na prática, a conduta abortiva costuma ocorrer mediante ingestão de substância abortiva, aspiração, curetagem, punção, provocação de quedas, golpes na barriga, etc.

5.5.1. Autoaborto ou consentimento ao aborto (art. 124) A primeira previsão de incriminação do aborto refere-se ao aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento. Segundo o art. 124, as condutas vedadas consistem em “provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”. A proibição penal volta-se à mulher gestante, consubstanciando-se em crime próprio: somente ela pode autoabortar ou consentir ao aborto. São duas as figuras típicas, previstas de modo alternativo (tipo misto alternativo ou de conteúdo variado): o autoaborto (art. 124, 1ª parte) e o consentimento ao aborto (art. 124, 2ª parte). A pena cominada é de detenção de um a três anos, cominação legal menos grave entre as incriminações de aborto. No autoaborto, é a própria gestante quem provoca, em conduta comissiva, a manobra abortiva capaz de levar à morte o produto da concepção. É o que ocorre, por exemplo, quando deliberadamente ingere a substância abortiva, provoca em si mesma propositadamente uma queda, autolesiona-se com golpes, etc. De se notar que a conduta de autoaborto pode também se dar de maneira comissiva por omissão, como na hipótese da gestante parar de se alimentar ou de tomar medicação prescrita pelo médico em gravidez de risco, tudo com vistas ao aborto. O consentimento ao aborto, por sua vez, ocorre quando a gestante anui a que outrem realize a manobra abortiva. Em outras palavras, sua conduta é omissiva13, pois ela não realiza o aborto diretamente, permitindo que outra pessoa – que não precisa ser necessariamente médico – assim o faça. Nesse caso, diante da citada quebra da teoria monista quanto ao concurso de pessoas, cada

qual responde por crime diverso: a gestante pelo previsto no art. 124, 2ª parte, e o terceiro pelo insculpido no art. 126, tendo o legislador entendido que a conduta desse último seria mais censurável. O consentimento tem de ser válido; do contrário, a mulher grávida não responde por crime algum e o terceiro culpável, que responderia pelo crime do art. 126 (aborto consentido), responderá pela figura mais grave, a do art. 125 (aborto sofrido). Além de as previsões em análise caracterizarem um crime próprio, como referenciado, de se notar que conformam, também, hipótese de crime de mão própria, vez que somente a gestante pode pessoalmente autoabortar ou consentir ao aborto. Isso significa, com relação ao concurso de pessoas, que não é possível coautoria, apenas participação, como nos exemplos daquele que instiga, isto é, estimula, a gestante a consentir ao aborto desejado por seu namorado ou companheiro, ou a auxilia a autoabortar, fornecendo-lhe a pílula abortiva. Caso o terceiro execute a manobra abortiva consentida, como visto, não será coautor do crime do art. 124, mas autor do delito do art. 126. Diverge a doutrina acerca da solução jurídica quando a mulher, consciente de sua condição de gestante, tenta o suicídio, fato em si mesmo atípico, mas questionado na hipótese justamente porque ela se encontra grávida. Se, mesmo diante da tentativa de suicídio, não ocorre o aborto, entende-se majoritariamente14 que não há qualquer imputação, pois a autolesão é impunível. Em sentido contrário, Prado15 compreende haver in casu tentativa de autoaborto. A seu turno, caso haja aborto como resultado da tentativa malsucedida de suicídio, a maioria entende não haver crime de aborto por ausência de dolo, uma vez que a gestante deseja exclusivamente eliminar a própria vida. Observe-se que essa é uma solução mais político-criminal do que dogmática. Conforme Hungria16 e Prado17, em posicionamento minoritário, mas tecnicamente coerente, consiste o caso em autoaborto, visto que praticado com dolo eventual.

5.5.2. Aborto sofrido (art. 125) O art. 125 prevê a hipótese do aborto sofrido, consoante a seguinte redação: “provocar aborto, sem o consentimento da gestante”. Cuida-se da modalidade de aborto mais grave, pois ela se realiza, ademais, sem a anuência da gestante, conformando-se dois sujeitos passivos do delito (crime de dupla subjetividade passiva). A punição prevista é de reclusão de três a dez anos, significativamente superior às demais. A ausência de consentimento pode ser caracterizada tanto pela efetiva falta de autorização propriamente dita como pelo assentimento inválido, consoante sinaliza o art. 127, parágrafo único. Desse modo, concretiza-se de quatro formas possíveis: a) violência; b) grave ameaça; c) fraude; e d) incapacidade da gestante para decidir. Em qualquer caso, considera-se não haver anuência válida, o que ensejaria punição mais branda ao agente. No primeiro caso, isto é, provocação de aborto em mulher grávida mediante violência (vis absoluta), o agente emprega nessa força física por ela indesejada, apta à interrupção da gestação mediante eliminação da vida do produto da concepção. É o que ocorre, e. g., quando o agente agride a barriga da gestante mediante socos e pontapés ou empurra-a da escada. A segunda hipótese, qual seja, aborto provocado mediante grave ameaça (vis relativa), consiste na situação em que o agente, mediante promessa de mal injusto e grave a ser impingido à própria grávida ou a terceiros, obriga-a à prática abortiva. Neste caso, a gestante mesma perpetra a manobra abortiva, mas por isso nada responde, pois se viu forçada a tanto. O agente, embora não tenha executado o abortamento, responde como se tal tivesse feito. É o caso do exemplo em que o agente ameaça matar outro filho da gestante, a menos que ela aborte. O aborto praticado mediante fraude, isto é, por meio da utilização de artifício ou ardil, também caracteriza a ausência de consentimento válido, apto ao reconhecimento do crime previsto no art. 125. Isso ocorre, v. g., quando o agente coloca substância abortiva na bebida da gestante, sem seu conhecimento, sobrevindo o aborto.

Por fim, incapacidade da gestante para decidir também caracteriza, em termos jurídicos, ausência de consentimento. Assim, ainda que ela tenha concretamente consentido à manobra abortiva realizada por outrem, caso possua menos de 14 anos ou detenha enfermidade mental que afete sua capacidade cognitiva, o assentimento é considerado inválido. Diante disso, o agente responderá pelo crime do art. 125, mais grave. Nesse último caso, uma observação se faz importante. Se a gestante possui menos de 14 anos ou enfermidade mental, significa que foi vítima de estupro de vulnerável (art. 217-A). Em tais situações, é permitido o aborto legal (art. 128, inciso II), desde que haja autorização do representante legal, ou do juiz em seu lugar. Se o aborto foi realizado sem referida autorização, há crime, podendo-se, a depender das circunstâncias, cogitar da excludente de culpabilidade de inexigibilidade de conduta diversa. O crime de aborto sofrido, ademais, enseja dúvidas em comparação a outras figuras delitivas, a depender dos fatos analisados. Em outros termos, dificuldades podem existir quanto ao concurso de crimes. Três são as situações mais emblemáticas: a) se o agente mata a mulher, ciente de sua gravidez, mas não deseja o aborto, que ocorre; b) se o agente mata a mulher, sem conhecer sua situação gravídica, sobrevindo o aborto; e c) se o agente deseja apenas praticar lesão corporal em mulher grávida, mas acaba ocasionando também o aborto. No primeiro caso, isto é, se o agente mata a mulher, conhecendo sua condição de gestante, sobrevindo também o aborto, ainda que não desejado, incide, em concurso formal, nas práticas de homicídio e aborto. Mesmo não tendo querido diretamente esse, o sujeito age, no mínimo, com dolo eventual com relação a ele. No exemplo seguinte, consistente na situação em que o agente elimina a vida da mulher sem saber que ela estava grávida, sobrevindo também o aborto, não se pode imputar o delito do art. 125. O agente, nesse caso, responde apenas por homicídio, vez que o crime de aborto é doloso, não existindo responsabilidade objetiva em Direito Penal. Finalmente, na circunstância em que o agente tem por objetivo exclusivo lesionar mulher que sabe grávida, mas, por conta disso, também provoca o aborto, incide no crime de lesão corporal gravíssima, consoante o previsto no art. 129, § 2º, inciso V, do Código Penal.

5.5.3. Aborto com consentimento ou aborto consensual (art. 126) A terceira e última incriminação de aborto é aquela doutrinariamente denominada de aborto com consentimento, aborto consensual ou aborto consentido. Segundo fixa o dispositivo, o crime se perfaz quando o agente “provocar aborto, com o consentimento da gestante”. Trata-se de figura intermediária, punida com reclusão de 1 a 4 anos, também caracterizadora de quebra da teoria monista do concurso de pessoas. Caso esse crime não existisse, o terceiro responderia pelo crime do art. 124, em concurso com a gestante. Todavia, em razão da previsão especial, o sujeito ativo do delito previsto no art. 126 é seu autor, não coautor do crime do art. 124. Para caracterização do delito de aborto com consentimento, note-se, a gestante deve ser capaz de consentir, bem como o consentimento há de ter sido obtido de forma livre e espontânea, sob pena de incidência do crime mais gravoso do art. 125.

5.6. Consumação e tentativa O crime de aborto, em qualquer de suas modalidades, consubstancia-se em crime de resultado. Por conseguinte, o delito consuma-se com a morte do produto da concepção, não importando se isso ocorre dentro ou fora do ventre materno. Evidentemente, a ação criminosa deve se dar enquanto o objeto material encontra-se no ventre materno, mas seu efetivo perecimento pode suceder depois da expulsão forçada18, daquela conduta decorrente. A consumação do aborto pressupõe, logicamente, gravidez em curso de produto da concepção

vivo. Desse modo, como infração que deixa vestígios (arts. 158 e ss. do Código de Processo Penal), é necessária a comprovação de ambas as circunstâncias. A gestação pode ser demonstrada, e. g., por exame de sangue, enquanto a prova de vida do produto da concepção pode se dar pela perícia de tumor do parto, hidrostática de Galeno, etc. Como crime de resultado, o aborto admite tentativa (conatus). Em tese, isso é possível para todas as hipóteses (arts. 124 a 126). Todavia, por razões político-criminais humanitárias, parte da doutrina defende a impossibilidade de reconhecimento de tentativa na figura do autoaborto (art. 124, 1ª parte), alegando-se que a simples autolesão é impunível19. Se, em virtude de manobras abortivas, decorre simples aceleração do parto, vindo o produto da concepção a sobreviver, há tentativa de aborto. Caso as manobras abortivas ocorram em mulher que apenas imagina estar grávida (gravidez psicológica), reconhece-se o crime impossível de aborto, por impropriedade absoluta do objeto. Nessa última hipótese, se a conduta é realizada por terceiro, vindo a mulher a morrer, fato não abrangido por seu dolo, ocorrerá homicídio culposo.

5.7. Causas de aumento de pena De maneira equivocada, o Código Penal denomina de “forma qualificada” as causas de aumento de pena previstas em seu art. 127. Como não se cuidam de subtipos penais, com margens sancionatórias próprias, não são qualificadoras. Trata-se, isto sim, de majorantes, eis que estabelecem percentuais de aumento, os quais devem ser fixados pelo aplicador da lei penal na terceira fase do procedimento trifásico de aplicação de pena. Conforme a previsão em destaque, as penas cominadas ao terceiro nos delitos de aborto sofrido (art. 125) ou de aborto com consentimento (art. 126): a) são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e b) são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte. Trata-se de hipóteses preterdolosas. A previsão do art. 127, voltada ao aborto praticado por terceiro, olvidou-se que esse pode participar do crime do art. 124, como no exemplo daquele que fornece a substância abortiva para a gestante, que vem a morrer em consequência disso. Nessa possibilidade, a solução, que deveria ser a imputação das penas do art. 124 com a majorante do art. 127, in fine, não poderá se realizar, por falta de previsão legal. A solução será a incidência das penas do art. 124, a título de participação, e do art. 121, § 3º, por autoria de homicídio culposo. Outra dificuldade gerada pelo texto legal sucede se o agente, com exclusivo dolo de aborto, mata a gestante durante a manobra abortiva, sobrevivendo o produto da concepção. Segundo a doutrina majoritária, em tais situações ocorreria aquilo que Hungria20 denominou de “aborto qualificado tentado”. Divergindo desse posicionamento, vez que crime qualificado pelo resultado não admite tentativa, bem como pelo fato de que a redação do art. 127 não exigiria o aborto consumado, Prado21 defende o reconhecimento do “aborto qualificado consumado”. Todavia, nenhuma dessas soluções revela-se satisfatória. Em tais circunstâncias, melhor seria admitir a incidência do crime de aborto, em sua forma tentada, em concurso formal com o delito de homicídio culposo.

5.8. Aborto legal O Código Penal estabelece um rol de causas especiais excludentes de ilicitude para os crimes de aborto no art. 128, consagrando-se o chamado sistema de indicações. Isso significa que a prática é criminalmente vedada, salvo exceções. A doutrina denomina o dispositivo do art. 128 de aborto legal ou permitido.

Consoante o artigo em comento, não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante (aborto necessário); II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal (aborto no caso de gravidez resultante de estupro). O aborto necessário é também chamado terapêutico, curativo ou profilático, sendo meio imprescindível para a sobrevivência da mulher gestante. Nele, caracteriza-se a colidência de dois interesses fundamentais: o da vida da gestante e o da vida do produto da concepção. Ponderando esses últimos, o legislador optou por privilegiar expressamente a vida já formada daquela em formação. Em realidade, a previsão do aborto necessário é absolutamente supérflua, uma vez que a situação descrita – assim como, inclusive, a menos drástica de sérios riscos à saúde da mulher22 – consiste em autêntico estado de necessidade, causa de exclusão da ilicitude. Por essa razão, inclusive, mostra-se anacrônica a exigência de que o procedimento abortivo seja levado a efeito por médico, como faz a lei. Qualquer pessoa que assim o faça agirá sob o mando da excludente em destaque, para salvaguarda de interesse de terceiro23. Caso o perigo para a vida da gestante seja iminente, doutrina e jurisprudência entendem ser dispensável a concordância daquela ou de seu representante legal. Realizado o aborto, com o intuito de salvá-la, o fato é considerado atípico. O aborto humanitário é aquele que resulta de crime sexual. É também denominado de aborto ético, sentimental ou piedoso. Muito embora a lei refira-se a “estupro”, entende-se, por analogiain bonam partem, abranger a previsão a gravidez decorrente de qualquer outro delito sexual, como estupro de vulnerável (art. 217-A) e violação sexual mediante fraude (art. 215)24. A analogia benéfica é perfeitamente admissível no caso, vez que se cuida de norma permissiva, fundando-se na mesma valoração. A razão da presente previsão, dita piedosa, é a de se evitar o trauma psicológico ocasionado à mulher caso fosse obrigada a gestar e a ter de conviver com o fruto de uma violência sexual. Seu ideário já era aceito no período medieval. É muito comum na prática a criação de obstáculos para que a mulher grávida em decorrência de violência sexual possa se submeter ao procedimento abortivo. No entanto, forçoso observar que a lei não exige formalidades, tais como autorização judicial, boletim de ocorrência, inquérito policial ou processo judicial, bastando a convicção do médico, que deve presumir a boa-fé da gestante25. Os empecilhos comumente criados na realidade são ilegais. Caso se constate posteriormente que a mulher mentiu, responderá pelo crime do art. 124, enquanto o profissional da medicina por nada responde, vez que o erro de tipo exclui o dolo26. Demais disso, caso o procedimento de aborto humanitário seja efetivado por terceiro, não médico, afasta-se a culpabilidade, por inexigibilidade de conduta diversa27, muito embora haja compreensões diversas28.

5.9. Hipóteses particulares A discussão quanto às mais diversas hipóteses que podem levar ao aborto no caso concreto enseja um repensar acerca do tratamento penal da questão, em termos gerais ou, ao menos, com relação ao modelo de indicações do aborto legal. Sobre esse último, há muito já se percebeu que o legislador não possui condições de prever todas as situações justificadoras possíveis, tal como sinalizado na Alemanha nos idos de 1927 quando do julgamento do chamado “caso da depressão reativa”29. O processo em destaque tratou de aborto realizado por ginecologista, orientado por psiquiatra, tendo em vista que a paciente, em estado gravídico decorrente de relacionamento frugal com turista que desaparecera, passou a revelar ideia fixa de suicídio em razão da gestação. A decisão

paradigmática da Suprema Corte alemã reconheceu, na oportunidade, o estado de necessidade supralegal para fins de se afastar a antijuridicidade. De todo modo, nada obsta o reconhecimento de possibilidades não previstas em lei, em termos de analogiain bonam partem ou, ainda, sob a rubrica de uma excludente de antijuridicidade supralegal ou mesmo de uma excludente de culpabilidade. Algumas situações mais emblemáticas, justificadoras ou não da prática abortiva, podem ser apontadas nos casos econômico, eugênico, de feto anencéfalo e do portador de microcefalia em decorrência do zika virus.

5.9.1. Aborto econômico O denominado aborto econômico, também chamado de social ou miserável, é aquele fundamentado em razão da situação de pobreza da gestante ou de sua família, que não possuem condições econômicas de arcar com a criação de uma criança. Diante desse quadro, a gestante que o desejar poderá licitamente abortar até determinado período de gravidez. É expressamente previsto, e. g., na Bélgica e na França, até a 12ª semana de gestação. No Brasil, não se admite o aborto econômico, sendo tal prática, a princípio, delitiva. Todavia, nada obsta que, a depender da situação de penúria e desespero da gestante, aferível no caso concreto, reconheça-se a inexigibilidade de conduta diversa, para fins de afastamento da culpabilidade30.

5.9.2. Aborto eugênico Aborto eugênico, ou eugenésico, é a interrupção voluntária da gestação fundamentada na detenção de graves anomalias genéticas por parte do produto da concepção, ensejadoras de significativos comprometimentos físicos ou psíquicos. Referida hipótese é uma das admitidas em Portugal31, até a 24ª semana de gestação, ou na Espanha, a qualquer tempo. Não é permitida no Brasil.

5.9.3. Aborto em caso de gravidez incestuosa Gravidez incestuosa é aquela decorrente de relacionamento sexual entre parentes, como irmãos ou pais e filhos. Se ela for fruto de crime sexual, como estupro ou estupro de vulnerável, o aborto é permitido pela regra humanitária. No entanto, se não houver crime sexual, dúvidas surgem diante do estigma e rejeição social que a situação provoca32, mesmo essa não estando expressa no sistema de indicações legais. Nesse sentido, nada obsta o reconhecimento da exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa quando o aborto é praticado em razão de gravidez resultante de relação incestuosa33.

5.9.4. Aborto de feto anencéfalo Anencefalia é grave enfermidade fetal consistente na ausência total ou parcial do encéfalo34. Trata-se de má-formação congênita letal, inexistindo possibilidade de existência extrauterina por período de tempo relevante (a quase totalidade das mortes ocorrem em, no máximo, uma semana)35. Em termos médicos, compreende-se que não há vida humana viável em formação36. A questão de abortos de anencéfalos, não constante do sistema de indicações de aborto legal, foi apreciada pelo STF por meio da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, de 2012, tendo, depois de ampla coleta de provas e debates, o órgão declarado a constitucionalidade da interrupção da gravidez nessas situações37. A Corte compreendeu, sinalizando retórica argumentativa com vistas a se evitar maiores polêmicas, não se cuidar o caso de delito de aborto, porém, apenas uma antecipação consentida de

parto de vida inviável, fato atípico o qual, ademais, prescinde de autorização judicial. A mulher gestante possui a livre escolha de realizar ou não a conduta. A compreensão acolhida vai ao encontro da reflexão humanitária quanto à matéria, vez que seria extremamente perverso obrigar a gestante a levar adiante inutilmente a gravidez para, ao final, constatar um óbito, providenciando um funeral em momento que deveria ser de alegria. Ademais, corroborando a argumentação, e conforme parcela da doutrina38, se a morte é cerebral, conforme a Lei nº 9.434/1997, o feto anencefálico jamais foi vivo.

5.9.5. Aborto no caso do zika virus A partir de 2015, lamentavelmente, o Brasil começou a revelar surto do chamado zika virus, transmitido por picada de mosquito, e que, em relação a mulheres grávidas, pode causar microcefalia no ser humano em formação39. Nessa hipótese, o cérebro do produto da concepção não cresce o suficiente durante a gestação. Em consequência, na maioria dos casos, o nascituro sobreviverá depois do parto, porém, será possuidor de graves comprometimentos físicos e mentais, como problemas motores, de visão e de audição, incapacidade mental e quadro epilético. O desafio é complexo, mormente diante do fato que a microcefalia somente é detectada tardiamente, em geral por volta da 24ª, mas, na melhor das hipóteses, a partir da 18ª semana de gestação. Dessa maneira, a possibilidade de aborto em tais situações, não prevista legalmente, mostra-se controversa. Os que defendem sua impossibilidade acusam-na de se aproximar da lógica da eugenia, uma vez que o produto da concepção sobreviverá, somente demandando cuidados especiais. Os que sustentam sua possibilidade escoram-se, basicamente, na dignidade da mulher. A Organização das Nações Unidas (ONU) manifestou-se, por meio de seu Alto Comissariado de Direitos Humanos, pela possibilidade de aborto legal em tais casos. Atualmente, tramita no Supremo Tribunal Federal Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN nº 5581) a respeito do tema, pleiteando-se o reconhecimento do estado de necessidade, direito à saúde e dignidade feminina quando a mulher opta por não levar adiante a gestação em referidos casos.

5.10. Pena e ação penal O autoaborto ou consentimento ao aborto (art. 124) é punido com pena de detenção de um a três anos. Ao aborto sofrido (art. 125), por sua vez, comina-se pena de reclusão de três a dez anos. Por fim, o aborto consensual (art. 126) possui pena de reclusão de um a quatro anos. Todas as modalidades de aborto são apuráveis mediante ação penal pública incondicionada consoante o procedimento especial do Tribunal do Júri (arts. 74, § 1º, e 406 e ss. do Código de Processo Penal). O autoaborto ou consentimento ao aborto (art. 124) admite a suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/1995, à exceção dos casos de violência doméstica e familiar contra mulher (art. 41 da Lei Maria da Penha).

FOOTNOTES 1

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 53; BRANDÃO, Cláudio. Trajetória dogmática do tipo de aborto. Revista Duc In Altum – Cadernos de Direito, vol. 7, nº 12, maio-ago. 2015, p. 62.

2

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v. V, p. 262 e ss.; GALEOTTI, Giulia. História do aborto. Lisboa: 70, 2003, p. 25 e ss.

3

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988, v. I, p. 131 e ss.

4

Demais disso, segundo o Conselho Federal de Medicina, que já se manifestou favoravelmente a uma legislação mais permissiva, o aborto ilegal é a quinta maior causa de mortalidade materna no país.

5

A ementa do paradigmático voto-vista do ministro Luís Roberto Barroso é a seguinte: “Direito Processual Penal.

Habeas

Corpus.

Prisão

preventiva.

Ausência

dos

requisitos

para

sua

decretação.

Inconstitucionalidade da incidência do tipo penal do aborto no caso de interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre. Ordem concedida de ofício”.

6

No caso norte-americano, a Suprema Corte do país decidiu, em 1973, pela liberdade de escolha da gestante com escora no direito à privacidade no paradigmático feito Roe v. Wade. Sobre o tema, cf. FILIPPO, Thiago Baldani Gomes De. Aborto – Estados Unidos e Brasil: um estudo comparado. São Paulo: IPAM, 2015, p. 28 e ss.

7

Também se pode falar em “vida humana não autônoma”, cf. BRANDÃO, Cláudio. Trajetória dogmática..., cit., p. 63.

8

A pílula, cujo princípio ativo é um tipo de progesterona chamado levonorgestrel, isto é, um hormônio sintético, não permite a ovulação, ou, caso isso já tenha ocorrido, inibe a formação do endométrio gravídico. Sua eficácia se mostra em até três dias depois da relação sexual. No Brasil, não só a pílula do dia seguinte é lícita como disponibilizada pelo Estado em atendimento obrigatório e integral a pessoas em situação de violência sexual, conforme disciplina a Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013, sob a rubrica de “profilaxiadagravidez” (art. 3º, IV).

9

E. g., FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 137; COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal: parte

especial. Rio de Janeiro: Forense, 2008, v. 4, p. 283; BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte especial 1. São Paulo: Atlas, 2014, p. 89; PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters, 2018, v. II, p. 92; BRANDÃO, Cláudio. Trajetória dogmática..., cit., p. 66.

10

“Art. 29 – Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. § 1º Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço. § 2º Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave”.

11

Fragoso e Mirabete, de modo peculiar e isolado na doutrina, entendem que o produto da concepção não pode ser titular de bem jurídico, razão pela qual sujeito passivo nos crimes de aborto seria o Estado ou a coletividade. Cf. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 137; MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. São Paulo: Atlas, 2010, v. II, p. 58.

12

Conforme Brandão: “A natureza do meio empregado para causar dita interrupção e a consequente morte do feto é indiferente. O autor poderá se utilizar de um meio físico, químico (como, v. g., um remédio abortivo) ou, inclusive, um meio que se traduza em uma relevante influência psíquica, como assustar gravemente a gestante (NUÑEZ, 1988, p. 33). O que objetivamente deve se verificar é o nexo de causalidade entre o meio que o agente empregou e o resultado morte do feto”. Cf. BRANDÃO, Cláudio. Trajetória dogmática..., cit., p. 66.

13

BRANDÃO, Cláudio. Trajetória dogmática..., cit., p. 66.

14

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 139; COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva,1992, v. 2, p. 24.

15

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 94.

16

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 282.

17

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 94.

18

Para caracterização do delito, observe-se, não importa se há ou não expulsão. Previsão anacrônica do Código Penal de 1890 distinguia as situações, punindo mais severamente os casos em que houvesse a expulsão do produto da concepção.

19

Criticando essa solução, que entende mais aproximada da desistência voluntária ou arrependimento eficaz, cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 192.

20

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 296.

21

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 97.

22

COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal..., cit., p. 305.

23

Partilhando do mesmo ponto de vista, cf. BRANDÃO, Cláudio. Trajetória dogmática..., cit., pp. 71-72.

24

Em sentido contrário, e. g., PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 100.

25

Contrariamente na doutrina, cf. COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de..., cit., p. 26.

26

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 66.

27

Em sentido similar, cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., pp. 196-197. Segundo compreendemos, as razões que levaram os povos a admitir a hipótese de aborto piedoso persistem independentemente de quem realize a manobra abortiva. Inclusive, a própria gestante, num ato de desespero diante da violência sexual sofrida, pode autoabortar, não havendo qualquer sentido em cogitarse, diante desse quadro, de uma imputação penal.

28

V. g., negando o ponto de vista do texto, cf. MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. Campinas: Millennium, 2002, v. IV, p. 194.

29

GARCÍA CAVERO, Percy. Caso de la depresión reactiva. In: SÁNCHEZ-OSTIZ GUTIÉRREZ, Pablo. Casos que hicieron doctrina en derecho penal. Madrid: La Ley, 2011, pp. 129-142.

30

Em sentido contrário, PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 103.

31

Consoante o Código Penal português: “Artigo 142º – Interrupção da gravidez não punível. 1 – Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando: (...) c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo; (...)”

32

A ponto de, v. g., na Alemanha, haver previsão do crime de incesto (§ 173 do Código Penal do país). Criticado pela doutrina e questionado judicialmente, o Tribunal Constitucional Alemão, em 2008, reconheceu a constitucionalidade do delito em questão.

33

No mesmo sentido, DELMANTO, Celso et al. Código Penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2016, pp. 462-463.

34

FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina legal. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2015, p. 301.

35

LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e anencefalia: direitos fundamentais em colisão. Curitiba: Juruá, 2009, p. 78.

36

FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina legal..., cit., p. 302.

37

Conforme a decisão final: “O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal”.

38

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., pp. 203-205. Contrariamente, vide LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e..., cit., p. 84 e ss.

39

Importante observar que a microcefalia pode decorrer de outras causas além do zika virus, como, e. g., infecções intrauterinas, permanecendo, de qualquer forma, a presente discussão.

© desta edição [2019]

2020 - 03 - 24

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 REVISTA DOS TRIBUNAIS

This PDF Contains CAPÍTULO 6. LESÃO CORPORAL (ART. 129), p.RB-6.1 CAPÍTULO 7. PERIGO DE CONTÁGIO VENÉREO (ART. 130), p.RB-7.1 CAPÍTULO 8. PERIGO DE CONTÁGIO DE MOLÉSTIA GRAVE (ART. 131), p.RB-8.1 CAPÍTULO 9. PERIGO PARA A VIDA OU A SAÚDE DE OUTREM (ART. 132), p.RB-9.1 CAPÍTULO 10. ABANDONO DE INCAPAZ (ART. 133), p.RB-10.1

2020 - 03 - 24

PAGE RB-6.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 6. LESÃO CORPORAL (ART. 129)

Capítulo 6. Lesão corporal (art. 129) Lesão corporal Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena – detenção, de três meses a um ano. Lesão corporal de natureza grave § 1º Se resulta: I – Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias; II – perigo de vida; III – debilidade permanente de membro, sentido ou função; IV – aceleração de parto: Pena – reclusão, de um a cinco anos. § 2º Se resulta: I – Incapacidade permanente para o trabalho; II – enfermidade incurável; III – perda ou inutilização do membro, sentido ou função; IV – deformidade permanente; V – aborto: Pena – reclusão, de dois a oito anos. Lesão corporal seguida de morte § 3º Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo: Pena – reclusão, de quatro a doze anos. Diminuição de pena § 4º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço. Substituição da pena

§ 5º O juiz, não sendo graves as lesões, pode ainda substituir a pena de detenção pela de multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis: I – se ocorre qualquer das hipóteses do parágrafo anterior; II – se as lesões são recíprocas. Lesão corporal culposa § 6º Se a lesão é culposa: Pena – detenção, de dois meses a um ano. Aumento de pena § 7º Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se ocorrer qualquer das hipóteses dos §§ 4º e 6º do art. 121 deste Código. § 8º Aplica-se à lesão culposa o disposto no § 5º do art. 121. Violência Doméstica § 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. § 10. Nos casos previstos nos §§ 1º a 3º deste artigo, se as circunstâncias são as indicadas no § 9º deste artigo, aumenta-se a pena em 1/3 (um terço). § 11. Na hipótese do § 9º deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência. § 12. Se a lesão for praticada contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição, a pena é aumentada de um a dois terços.

6.1. Considerações iniciais O crime de lesão corporal revela complexidade um pouco maior que à primeira vista pode parecer. Muitas vezes, tido como desimportante na prática ou mesmo entendido como sem maiores indagações por parte do intérprete, o delito em questão, além de tutelar bem jurídico fundamental, enseja, não raro, dificuldades dogmáticas, por conta de seu escorreito reconhecimento – em face da possibilidade de incidência, em seu lugar, de outro tipo penal, consoante o concurso aparente de normas. Demais disso, a construção tipológica do art. 129 do Código Penal, na forma atualmente em vigor, depois de inúmeras alterações legislativas sofridas ao longo dos anos1, denota-se bastante intrincada, devendo se ter atenção, principalmente, ao fato de que existem figuras diversas, e as causas de aumento insculpidas nos parágrafos nem sempre se ligam a todas elas. Por fim, político-criminalmente, em face dos contornos da sociedade de risco atual, vê-se que o interesse tutelado, ocasionalmente, denota-se vulnerado em situações bastante complicadas, por conta de novos produtos de alimentação, medicamentos, doenças inéditas, etc. A peculiaridade do tipo penal em questão já é aferida por sua evolução histórica, que é sui generis.

As legislações antigas não conheceram a figura penal autônoma de lesão corporal2. O Código de Hamurabi (Mesopotâmia – séc. XVIII a. C.) revelava previsões esparsas que diziam respeito a lesões corporais, sem qualquer sistematização, como a que cominava idêntica consequência ao homem livre que ocasionasse a perda de um olho, ou de um dente, ou que quebrasse um osso, de outro homem livre. O Direito Romano não conheceu a figura do crime de lesão corporal, que era compreendido no conceito de injúria, o qual era bastante amplo3, abarcando agressões físicas, ofensas à honra e violação de domicílio, entre outras condutas. Ademais, não havia distinção entre lesões dolosas ou culposas. Curiosamente, o tema foi melhor disciplinado pelos povos bárbaros, que distinguiam as ofensas físicas em injúria real, ferimentos e mutilações. Isso se deu uma vez que os germânicos adotavam o sistema da composição, e o pagamento pela ofensa física variava de acordo com a sua magnitude. É a legislação bárbara que influencia posteriormente a evolução do tema na Europa, principalmente o direito intermédio italiano. Referida elaboração científica deu-se de modo bastante vagaroso até a construção do delito de lesões corporais (violatio corporis ou lesa sanitas) como figura autônoma, o que ocorreu pela primeira vez no Código Penal austríaco de 1803. Sua adoção pelo Código Penal francês de 1810 passou a influenciar as legislações ocidentais posteriores. O primeiro Código a se referir ao tipo em questão como “lesão corporal” foi o da Toscana, de 1853. Com relação à evolução jurídica do delito em questão na realidade luso-brasileira, nota-se que as Ordenações do Reino não conheceram maior sistematização do tema. No caso das Ordenações Filipinas, falava-se em “ferimento” no Título XXXV, tratando-a conjuntamente com o homicídio. Por exemplo, o “ferimento” ocasionado por dinheiro era punido com a morte. Em termos de legislação genuinamente brasileira, o Código Criminal do Império (1830) trazia o delito no artigo 201 (“ferimentos e outras ofensas físicas”), destacando apenas as ofensas físicas: “ferir ou cortar qualquer parte do corpo humano, ou fazer qualquer outra ofensa física, com que se cause dor ao ofendido”. Os artigos subsequentes já distinguiam situações diferenciadas de maior gravidade. No mesmo sentido, o Código Penal Republicano (1890) previa em seu artigo 303: “ofender fisicamente alguém, produzindo-lhe dor ou alguma lesão no corpo, embora sem derramamento de sangue”. Derradeiramente, o Código Penal de 1940, em seu art. 129, trouxe as seguintes figuras: lesão corporal simples, lesões corporais qualificadas (grave, gravíssima e lesão corporal seguida de morte) e lesão corporal culposa. Ao longo dos anos, como mencionado, foram diversas as alterações sofridas pelo dispositivo, destacando-se, em 2006, a inserção, por meio da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340), da figura de lesão corporal com violência doméstica. A figura básica do crime, chamada de lesão corporal leve, ou simples, prevista no art. 129, caput, estabelece “ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem”. Esse tipo fundamental, que aparentemente poderia parecer uma construção legal bastante singela, pode, como referido, apresentar inúmeras dificuldades, como nos casos de intervenções médicas, especialmente de “mudança de sexo”, de lesões desportivas, de transmissão dolosa de AIDS, corte forçado de cabelo para venda e furo da orelha de bebês, exemplos tradicionais com alguma controvérsia.

6.2. Objetividade jurídica O bem jurídico tutelado pelo crime de lesão corporal é a incolumidade física, em sentido amplo, o que abrange a integridade corporal e a saúde do ser humano.

Não se cuida, tecnicamente, de um crime contra a vida, pois essa última não é diretamente atacada. Por essa razão, o crime de lesão corporal figura no Capítulo II – “das lesões corporais” – do Título I – “dos crimes contra a pessoa” – da Parte Especial do Código Penal. Protege-se a incolumidade tanto física quanto psíquica dos indivíduos. Na visão de Hungria4, além de um interesse individual, atende-se a um interesse social, qual seja, “o da normal eficiência e aptidão de cada um dos indivíduos, que constituem elementos de sinergia da prosperidade geral da sociedade e do Estado”. A partir de tal ideia, o autor considera que o consentimento do ofendido seria irrelevante para excluir o crime; compreensão, todavia, atualmente superada. Com a evolução do Direito Penal, a integridade física e a saúde do indivíduo passaram a não mais ser consideradas como bens jurídicos indisponíveis, sendo admitida sua relativa disponibilidade, de modo que o consentimento do ofendido pode ser invocado para afastar a ilicitude da conduta. Sendo assim, admite-se o consentimento da vítima como causa supralegal de exclusão de ilicitude5. Destaque-se que tal consentimento se refere a uma anuência livre, consciente e anterior, ou ao menos concomitante, à prática da lesão. Além disso, é preciso verificar a capacidade de consentir por parte daquele que suporta a lesão6.

6.3. Sujeitos do delito Sujeito ativo do crime de lesão corporal pode ser qualquer pessoa, cuidando-se, dessa maneira, de crime comum. Caso o agressor seja autoridade pública que pratica o delito no exercício das funções será também responsabilizado pelo crime de abuso de autoridade (art. 3º, i, da Lei nº 4.898/1965). Nesse último caso, a jurisprudência entende não haver bis in idem já que são vulnerados bens jurídicos distintos. Sujeito passivo, a princípio, também pode ser qualquer pessoa, exigindo o tipo apenas que seja terceiro. Em pontuais situações, no entanto, exige-se certas características da vítima, caso da lesão grave de resultado aceleração do parto, lesão gravíssima de resultado aborto e de lesão com violência doméstica. Nos dois primeiros casos, o sujeito passivo deve ser gestante, enquanto, no último, há de se tratar de ascendente, descendente, irmã, cônjuge ou companheiro do agente. A autolesão não é criminalmente punida. Sujeitos ativo e passivo de um crime não podem coincidir. Nos casos dos delitos previstos no art. 171, § 2º , V, do Código Penal7 – fraude para recebimento de indenização ou valor de seguro –, que é uma modalidade de estelionato, bem como no art. 184 do Código Penal Militar8 – criação ou simulação de incapacidade física para não prestar serviço militar –, o que se pune não é a autolesão em si, sendo ela apenas um meio para um comportamento enganoso. Em ambos os casos, o bem jurídico tutelado é diverso do relativo à integridade física: na primeira hipótese, cuida-se do patrimônio, enquanto na última, do serviço e dever militar9. Caso alguém incapaz de entender ou de querer seja levado a praticar em si mesmo uma lesão por determinação de outrem, quem o conduziu à autolesão responderá pelo crime, na condição de autor mediato (art. 20, § 2º, do Código Penal)10. Ainda, com relação ao sujeito passivo, pondera-se que o crime de lesão corporal diz respeito à proteção do ser humano vivo e já formado e não ao produto da concepção, ou seja, o ser humano em formação, vez que esse é tutelado pelas figuras de aborto11. As lesões dolosas produzidas em cadáver – que não é sujeito passivo de crime, mas sim simples objeto material – podem consistir na figura do art. 211 (destruição, subtração ou ocultação de cadáver) ou na do art. 212 (vilipêndio a cadáver), ambas do Código Penal.

6.4. Tipicidade objetiva e subjetiva

O tipo penal de lesão corporal se perfaz com a ofensa à integridade corporal ou à saúde de outrem. O núcleo do tipo é ofender, sinônimo de prejudicar, lesionar, danificar. Ofensa à integridade corporal significa o dano anatômico fruto de uma agressão, o qual pode ser externo ou interno, como escoriações, cortes, equimoses, hematomas, luxações, fraturas, fissuras, queimaduras, mutilações, etc. Doutrina e jurisprudência entendem que eritemas – ou seja, a vermelhidão momentânea decorrente de breve deslocamento sanguíneo, como o produzido por uma bofetada – ou a simples dor, sem qualquer alteração interna ou externa, como ocorrente em uma cutucada, não perfazem o crime de lesão corporal. Ofensa à saúde, por sua vez, compreende as perturbações fisiológicas ou mentais. Perturbação fisiológica consiste na alteração no funcionamento de algum órgão ou sistema do corpo humano. É o que se dá, e. g., com a ministração de alguma substância que leve a vítima ao vômito, diarreia ou náuseas. Perturbação mental representa a alteração prejudicial no funcionamento cerebral, como o que se constata com convulsão, depressão, choque nervoso, entre outros. Dessa maneira, importa ressaltar que o desarranjo mental também é abarcado pelo crime em análise12. Note-se, porém, que a singela alteração de ânimo, por si só, não caracteriza o delito, sendo necessária uma relevante afetação no funcionamento normal do psiquismo. Tampouco caracteriza o crime em questão a dor meramente moral13, tutelada pelos crimes contra a honra. Perdas de memória, não obstante, podem caracterizar o tipo de lesão corporal. Na doutrina estrangeira, Muñoz Conde pondera que a perturbação mental que enseja o reconhecimento de lesão corporal não se resume a um efeito colateral em si inerente ao resultado do delito, mas sim trata-se de um dano psíquico que se traduz posteriormente em “distintas patologias ou transtornos psicológicos e que se produz diretamente como consequência de uma ação brutal” 14. A lesão corporal pode ser perpetrada por qualquer modo ou meio de execução15. Modo de execução diz respeito à forma da conduta, a qual, no caso da lesão corporal, pode ser ativa ou omissiva. Admite-se a prática de tal delito na forma omissiva se o agente tem a posição de garantidor e possibilidade de evitar o resultado e não o faz16. Meio de execução consiste no instrumento de que o agente se utiliza para a prática da infração penal. No caso da lesão corporal, pode ser direto ou indireto. Ocorre o meio direto, e. g., com a utilização de uma faca para ferir a vítima, o desferimento de socos ou até na provocação de sustos. Já exemplo de meio indireto é o que ocorre no caso de o agente atrair a vítima para um local em que sofrerá lesões pelo ataque de animais17. Cuida-se, dessa maneira, de um crime de forma livre. O delito em questão pode se perfazer por um único gesto ou por diversos movimentos – v. g., um soco ou inúmeros socos –, fatores a serem considerados na dosimetria da pena, conforme as circunstâncias do art. 59 do Código Penal. Havendo múltiplas lesões, porém, dirigidas a uma mesma vítima, dentro do mesmo contexto fático, ocorre crime único18. Deve-se observar, não obstante, que tal multiplicidade também deve ser levada em conta no momento da aplicação da pena, para fins de sua exasperação. O tipo penal de lesão corporal tem significativa influência do princípio da adequação social, como se vê no caso da realização consentida de tatuagens em pessoas adultas ou no furo de orelhas de crianças, a pedido de seus genitores, fatos os quais, em tese, estariam caracterizando lesão à pessoa, mas de evidente consonância com as práticas sociais. Igualmente, admite-se a aplicação do princípio da insignificância em casos de danos mínimos sofridos19. A insignificância há de ser valorada por meio da consideração global da ordem jurídica, em atendimento à proporcionalidade e, em especial, à pequena magnitude da lesão sofrida pelo

bem jurídico tutelado20, o que é perfeitamente compatível com o crime em análise. Aliás, veja-se que, no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), a primeira decisão aplicadora do princípio em foco é de 1988, versando sobre lesão corporal (pequena equimose) decorrente de acidente de trânsito21. Note-se que há crimes que guardam especialidade em relação à lesão corporal, como os delitos previstos no artigo 14 da Lei nº 9.434/199722, ou as figuras de tortura, constantes do art. 1º da Lei nº 9.455/199723. Nesses casos, afasta-se o crime de lesão corporal, aplicando-se a figura que contém os elementos especializantes. O Código Penal pátrio traz o nomen iuris “lesão corporal” para o que se convencionou, doutrinária e jurisprudencialmente, denominar lesão corporal leve, ou simples (art. 129, caput). A lei ainda se refere, no dispositivo, à lesão corporal de natureza grave para as previsões de determinados resultados qualificadores (§§ 1º e 2º), que foram, contudo, classificados doutrinariamente em duas espécies, isto é, lesão corporal grave e lesão corporal gravíssima, expressões aceitas pela jurisprudência. A lesão corporal seguida de morte, segundo a nomenclatura legislativa, refere-se ao crime preterdoloso insculpido no § 3º. Há também a lesão corporal “privilegiada”, causa de diminuição de pena prevista no § 4º e assim denominada doutrinariamente por analogia com o disposto no homicídio privilegiado. O § 6º, ainda, prevê a modalidade culposa de lesão corporal (com possibilidade de perdão judicial consoante o § 8º). O § 9º, a seu turno, traz a figura de violência doméstica, outro subtipo penal de lesão corporal. Por fim, há diversas causas de aumento de pena (§§ 7º, 10, 11 e 12). O dolo – direto ou eventual – é o elemento subjetivo presente nas figuras das lesões corporais leves, graves e gravíssimas, bem como lesão corporal com violência doméstica. Reitere-se que o agente não possui animus necandi, ou seja, o dolo homicida, pois, do contrário, incidiriam as hipóteses de homicídio. Em verdade, há nos casos apontados o chamado animus laedendi, que é o intuito de ferir. Na lesão corporal culposa, o elemento subjetivo do tipo é substituído pelo elemento normativo “culpa”, consubstanciado na violação de um dever objetivo de cuidado, com previsibilidade, que culmina por causar a lesão corporal em alguém. Quanto à lesão seguida de morte, há dolo no antecedente – a lesão corporal – e culpa no consequente – o resultado morte. Há controvérsias sobre qual seria o elemento subjetivo dos resultados qualificadores previstos em lesões corporais graves ou gravíssimas, tais como a aceleração do parto e o aborto, dado que a existência do dolo no resultado poderia apontar para outro crime autônomo além da lesão corporal. Nesse âmbito, considera-se ser possível em tais figuras tanto o dolo (e. g., ferir a vítima para que ela perca a visão) quanto a culpa (v. g., desferir socos os quais, culposamente, levam à cegueira da vítima). Todavia, o magistrado deve observar a gravidade do comportamento ao fazer a dosimetria penal, visto que o elemento subjetivo presente no caso concreto pode revelar o grau de reprovabilidade da conduta, merecedora de tratamento mais gravoso24.

6.4.1. Lesão corporal leve Não há definição legal do que venha a ser lesão corporal leve, também chamada de lesão corporal simples, expressões, aliás, de caráter doutrinário, amplamente aceitas pela jurisprudência. O tipo em questão possui caráter residual, ou seja, configura-se caso não seja possível a subsunção dos fatos lesivos à integridade corporal ou à saúde de outrem em uma das modalidades qualificadas, previstas nos parágrafos do art. 129. Nessa hipótese, isto é, não se tratando a conduta dolosa de lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, nem lesão corporal com violência doméstica, incidirá a figura descrita no caput do art.

129 do Código Penal, a qual, desta feita, conforma-se como um tipo básico, ou fundamental. Lesão corporal leve não é sinônima de lesão corporal insignificante25. Essa última, inclusive, mostra-se como fato atípico. A figura em análise apenas não detém as consequências ou circunstâncias mais sérias exigidas pelas demais previsões dolosas do art. 129. Dessa maneira, no caso concreto, e. g., um soco, uma facada ou até mesmo um tiro – quando dado propositadamente de raspão no corpo da vítima –, entre outras situações similares, sem a caracterização dos elementos descritos como grave, gravíssimo ou com violência doméstica, podem perfeitamente se ajustar a uma lesão corporal de natureza leve. Parcela da doutrina considera, acertadamente, que se encontra nesse âmbito, ou seja, de lesão corporal simples, o corte forçado de cabelo, barba, etc., da vítima. Contudo, frise-se, caso a conduta seja praticada com o ânimo de humilhar, encontra-se configurado o crime de injúria real (art. 140, § 2º, do Código Penal: “se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes”). Destaque-se que, se alguma hipótese qualificadora da lesão corporal se der por caso fortuito, ou sendo imprevisível o resultado agravador, não será possível a imputação da qualificadora, apenas o reconhecimento da lesão corporal leve, conforme a o contexto.

6.4.2. Lesão corporal grave As hipóteses de lesão corporal de natureza grave, em sentido estrito, encontram-se elencadas nos incisos do § 1º do art. 129, totalizando quatro: a) incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias; b) perigo de vida; c) debilidade permanente de membro, sentido ou função; e d) aceleração de parto. De se notar que, no caso concreto, é possível a coexistência de mais de uma forma de lesão corporal grave, isto é, de verificação de incidência de mais de um inciso do § 1º mencionado. Em tais situações, o crime é único, devendo o juiz considerar a presença de mais de um resultado gravoso no momento de aplicação de pena, de acordo com as circunstâncias judiciais insculpidas no art. 59 do Código Penal, em face das consequências do crime.

6.4.2.1. Incapacidade para as ocupações habituais por mais de trinta dias A ocupação habitual a que se refere o art. 129, § 1º, inciso I, abrange não apenas as atividades laborativas, mas sim qualquer ocupação que seja realizada com constância pela vítima, desde que não seja ilícita – pouco importando se moral ou imoral26. Do contrário, seria praticamente impossível, por exemplo, que uma criança ou um aposentado fossem vítimas de lesão corporal grave pela presente razão, o que se mostraria um disparate. Por conseguinte, subsiste a qualificadora em situações em que a vítima, qualquer que seja sua idade, não consegue realizar comportamentos rotineiros, como caminhar, praticar esportes, trabalhar, tomar banho, ler, manter relações sexuais, etc., por mais de trinta dias. A incapacidade não depende necessariamente de cicatrização ou de cura da lesão, bastando que a vítima esteja impedida, sem maiores sacrifícios físicos ou mentais, de retomar suas ocupações pelo prazo exigido27. Para a caracterização da qualificadora em destaque, reitere-se, há que se observar o requisito temporal de que a incapacidade deve perdurar por mais de trinta dias. Consoante o previsto no art. 168, § 2º, do Código de Processo Penal, para atestar a gravidade da lesão, deve ser realizado exame pericial complementar, decorridos trinta dias contados da data do cometimento do crime. A ausência de tal exame pode eventualmente ser suprida por prova testemunhal (art. 168, § 3º, do mesmo diploma).

6.4.2.2. Perigo de vida Perigo de vida significa a probabilidade concreta e iminente de morte da vítima. Majoritariamente, se entende que tal resultado deva ser dado com culpa – e apenas a conduta

genericamente lesiva com dolo. Isso porque, caso houvesse dolo tanto na lesão quanto no resultado de perigo de vida, haveria, em verdade, tentativa de homicídio28. Como tal perigo configura-se na probabilidade concreta de a lesão poder levar à morte29, há que ser demonstrado no caso sub judice, não podendo ser presumido.

6.4.2.3. Debilidade permanente de membro, sentido ou função A debilidade permanente prevista no art. 129, § 1º, inciso III, traz a ideia de que o membro, o sentido ou a função tem sua dinâmica prejudicada, ou enfraquecida, mas não completamente aniquilada, pois, nessa última hipótese, seria o caso de lesão gravíssima. Membro diz respeito às partes ligadas ao tronco, isto é, braços, pernas, pés e mãos. Sentido refere-se a tato, olfato, audição, visão e paladar. Função liga-se às atividades dos órgãos do corpo, como a digestão, circulação e respiração. Em casos de órgãos duplos, como olhos, rins ou ouvidos, a perda de apenas um caracteriza a debilidade permanente, já que a funcionalidade ainda pode ser mantida pelo outro, conformandose, então, lesão corporal grave. Caso haja a perda de ambos, será configurada lesão corporal gravíssima por perda ou inutilização (art. 129, § 2º, inciso III). A permanência da debilidade não significa que esta há de ser perpétua, bastando que seja duradoura. A recuperação por meio cirúrgico ou ortopédico do membro, sentido ou função não afasta a qualificadora. Vale destacar decisão relativamente recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ)30, que classificou a perda de dois dentes como lesão corporal grave, decorrente de debilidade permanente da capacidade mastigatória, e não como lesão gravíssima, oriunda de deformidade permanente.

6.4.2.4. Aceleração de parto A qualificadora de aceleração do parto – art. 129, § 1º, inciso IV – traz como pressuposto que haja no parto antecipado o nascimento com vida, pois, do contrário, configura-se o resultado aborto, entendido como lesão corporal gravíssima. Aceleração de parto consiste em sua antecipação, ou seja, em um parto prematuro, porém, bem-sucedido. Vale destacar que o agente deve conhecer o estado de gravidez, como, por exemplo, ao notar a fisionomia da vítima, que ostenta uma gestação já avançada.

6.4.3. Lesão corporal gravíssima Como referido, a terminologia “gravíssima” não se encontra positivada na legislação, sendo fruto de construção doutrinária e jurisprudencial, para fins de diferenciar os mais sérios resultados previstos no § 2º em relação aos já graves constantes do § 1º, ambos do art. 129 do Código Penal. Suas cinco hipóteses previstas, para as quais se comina uma pena de reclusão de 2 a 8 anos, são: a) incapacidade permanente para o trabalho; b) enfermidade incurável; c) perda ou inutilização do membro, sentido ou função; d) deformidade permanente; e e) aborto. Do mesmo modo que o observado com relação à lesão corporal de natureza grave, é possível coexistir mais de uma forma de lesão corporal gravíssima. Nesses casos, o crime deve ser entendido como único, devendo o aplicador da lei penal considerar a maior gravidade da situação quando da análise das circunstâncias judiciais (art. 59 do Código Penal), impondo patamar superior ao mínimo. Note-se, todavia, que na hipótese de coexistência de lesão grave e gravíssima, fruto de um mesmo comportamento delitivo, o fato deverá ser considerado lesão corporal gravíssima, ficando

absorvida a lesão grave. Observe-se, por fim, que a Lei nº 13.142/2015 passou a considerar crime hediondo a lesão corporal dolosa de natureza gravíssima – e também a lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3o) –, quando praticadas contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição.

6.4.3.1. Incapacidade permanente para o trabalho Há controvérsias relativas ao entendimento do alcance do resultado “incapacidade permanente para o trabalho” – art. 129, § 2º, inciso I. Nesse sentido, existem três compreensões quanto ao exato significado do elemento normativo “trabalho” previsto no dispositivo, havendo apenas convergência quanto a cuidar-se de atividade remunerada. Para a corrente tradicional, o trabalho refere-se a qualquer tipo de trabalho lícito31. Nesse influxo, para a caracterização da qualificadora, a vítima haveria de restar desvalida para o trabalho em geral – incapacidade total –, não podendo mais exercer nenhuma atividade legalmente aceita. É a situação, e. g., do dentista que resta tetraplégico e, em razão da gravidade de sua situação, de imobilidade absoluta, não consegue exercer nenhuma outra atividade remunerada. Para o posicionamento diametralmente oposto, minoritário, a expressão seria relativa apenas ao que era especificamente exercido pela vítima. Dessa forma, v. g., ocorreria a incapacidade permanente para o trabalho quando a vítima, que era cirurgião cardíaco, em razão das lesões, não pode mais operar, caracterizando-se assim a qualificadora. Por fim, um posicionamento intermediário32, que atualmente ganha destaque, vislumbra o perfazimento da previsão em foco quando comprometido o ramo de atuação da vítima (medicina, docência, esporte profissional, etc.). Isso porque não se pode cogitar da obrigação do indivíduo em adentrar em campo completamente diverso de sua atuação anterior à lesão sofrida, nem seria razoável exigir-se sua completa incapacidade – vida vegetativa – para fins da situação em análise. Dessa forma, há que se considerar uma incapacidade relativa, ligada ao trabalho que era exercido pela vítima. É o exemplo do obstetra que não pode mais exercer a medicina, visto que, caso possa ainda exercê-la como clínico geral, não incidirá a qualificadora. Perceba-se que a diferença de compreensão é fundamental, já que, se o que for exigido for o comprometimento para qualquer atividade laborativa, a qualificadora em questão só se aperfeiçoaria com um grau muito maior de atingimento do objeto material do delito, em termos bastante exagerados, quase irreais na prática, sendo o posicionamento menos defensável. O posicionamento intermediário desvela-se, então, como o mais razoável para a correta interpretação legal. Quanto à expressão “incapacidade permanente” entende-se majoritariamente que seu significado compreende uma impossibilidade longa e duradoura, indefinida no tempo, porém, não necessariamente perpétua.

6.4.3.2. Enfermidade incurável A enfermidade incurável (art. 129, § 2º, inciso II) consiste na alteração prejudicial da saúde da pessoa por processo patológico, físico ou psíquico. Ela deve ser avaliada no momento do cometimento do crime, verificando o estágio de desenvolvimento da medicina na época, de modo que tal qualificadora não é descaracterizada se depois do crime é desenvolvida a cura. Ainda, é admitida tal qualificadora em casos em que a cura só é possível em situações excepcionais ou requeira intervenções de arriscado resultado.

6.4.3.3. Perda ou inutilização do membro, sentido ou função

A perda de membro pode se configurar quando há mutilação, ocorrida no momento da prática delituosa, bem como posterior amputação decorrente da lesão praticada, para resguardar a vida da vítima. A inutilização traz a ideia de não é obrigatório que uma parte do corpo seja retirada, basta que ela não mais exerça suas capacidades, por exemplo, no caso de o ofendido tornar-se paraplégico.

6.4.3.4. Deformidade permanente A majoritária doutrina considera que a lesão corporal gravíssima que resulta deformidade permanente (art. 129, § 2º, inciso IV) deve ser visível a ponto de constranger a vítima, causar-lhe vexame33. Ainda, muitas vezes, invocam-se características pessoais da vítima para se falar da deformidade – por exemplo, distinguir a lesão causada em um idoso da causada em um modelo –, como apontava Hungria34. Não se mostra razoável essa compreensão, bastando a configuração de uma deformidade duradoura35. A possibilidade de realização de cirurgia plástica não impede a incidência dessa qualificadora. Em sentido oposto, e. g., Regis Prado36 considera que, uma vez realizada a cirurgia, desaparecendo a lesão, restaria descaracterizada a qualificadora.

6.4.3.5. Aborto No resultado qualificado do aborto (art. 129, § 2º, inciso V), é majoritário que esse deva ocorrer por culpa37. Do contrário, incidiria o crime de aborto em concurso com lesão corporal. Igualmente à aceleração do parto, por evidência, é preciso que o agente tenha conhecimento da gravidez. Não há responsabilidade objetiva em Direito Penal.

6.4.4. Lesão corporal seguida de morte O art. 129, § 3º, traz um tratamento recrudescido caso a lesão corporal resulte em morte “e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo”. Pela redação do dispositivo, fica evidenciado que o resultado morte deve ter ocorrido com culpa, apontando para um crime preterdoloso, ou preterintencional (dolo no antecedente e culpa no consequente). Do contrário, haveria homicídio doloso consumado. Em outras palavras, deve haver, por parte do agente, animus laedendi, não animus necandi. Dessa forma, não é possível haver tentativa na lesão corporal seguida de morte, o que seria ilógico. A lesão antecedente deve ser dolosa, pois se culposa, há, em verdade, homicídio culposo38. Insta observar que é preciso que haja a devida comprovação do nexo de causalidade entre a lesão e a morte. Ainda, o resultado morte deve ter previsibilidade objetiva, senão, tal qualificadora não pode ser imputada ao agente. Reitere-se, por fim, que a Lei nº 13.142/2015 inseriu no rol de crimes hediondos a lesão corporal seguida de morte, quando praticada contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição.

6.4.5. Lesão corporal privilegiada O Código Penal prevê para o crime de lesão corporal o mesmo instituto estabelecido em relação ao homicídio, qual seja, a forma privilegiada. Consoante o art. 129, § 4º, “se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço”.

Trata-se de causa de diminuição de pena, também chamada minorante, consistente em direito público subjetivo do acusado. Pode ocorrer em casos em que o agente comete o delito de lesões corporais dolosas – leve, grave, gravíssima, seguida de morte e com violência doméstica – impelido: a) por motivo de relevante valor social; b) por motivo de relevante valor moral; ou c) sob domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima. Em tais situações, o legislador considera a conduta lesiva menos desvaliosa, razão pela qual abranda a punição, conforme cálculo a ser empregado na terceira fase do procedimento trifásico de aplicação de pena. Consoante referido quando da análise do crime de homicídio, motivo de relevante valor social é aquele imaginado para situações em que a lesão da vítima é consentânea com os interesses da coletividade em geral, enquanto relevante valor moral diz respeito a sentimentos pessoais do homicida, aprovados pela moralidade coletiva. Destaque-se que “o valor social ou moral do motivo deve ser considerado sempre objetivamente, segundo a média existente na sociedade, e não subjetivamente, segundo a opinião do agente, que pode ser mais ou menos sensível”39. O domínio de violenta emoção traz a ideia de que essa, oriunda de injusta provocação da vítima, é capaz de praticamente aniquilar o autocontrole do agente, dominando-o. Há que se observar o curto lapso temporal entre a injusta provocação e a conduta do sujeito ativo. Reitere-se que o § 4º aplica-se às lesões corporais dolosas leves, graves, gravíssimas, seguidas de morte e com violência doméstica, apenas não podendo ser reconhecido, por falta de sentido, à lesão corporal culposa (situação na qual não há elemento subjetivo do tipo, não se podendo aplicar qualquer das hipóteses previstas como minorante). Quanto à lesão corporal leve, não obstante, desde que não se trate de lesão leve com violência doméstica, o juiz possui uma alternativa, podendo aplicar o disposto no § 4º (causa de diminuição de pena) ou o insculpido no § 5º (substituição de pena), ambos do art. 129. É o que estabelece o art. 129, § 5º, inciso I: “o juiz, não sendo graves as lesões, pode ainda substituir a pena de detenção por multa: I – se ocorrer qualquer das hipóteses do parágrafo anterior”. Observe-se que a proibição dessa substituição em caso de lesão corporal leve qualificada por violência doméstica decorre de expressa vedação legal (art. 17 da Lei nº 11.340/200640). Por fim, de se notar que existe mais uma hipótese de substituição de pena. Caso se esteja diante de lesões corporais leves recíprocas, isto é, situação em que dois indivíduos praticam o crime um contra o outro, é possível ainda que o aplicador da lei penal substitua a pena prisional por multa, conforme o art. 129, § 5º, inciso II.

6.4.6. Lesão corporal culposa A modalidade culposa de lesão corporal está prevista no art. 129, § 6º. Dessa maneira, pune-se a lesão corporal produzida sem intenção, mas em desatendimento a um dever objetivo de cuidado, com resultado objetivamente previsível. A pena estabelecida é a de detenção, de dois meses a um ano. Não há nas lesões corporais culposas um tratamento distinto conforme a gravidade objetiva do resultado, como nas lesões dolosas. Em outras palavras, a princípio, não se distingue a gravidade das lesões sofridas. Todavia, o resultado pode influenciar na aplicação da pena, dentro da margem estipulada para a lesão culposa. Cumpre salientar que a lesão corporal culposa praticada na direção veículo automotor é disciplinada no art. 303 do Código de Trânsito Brasileiro41, dispositivo bastante criticado em termos de proporcionalidade e taxatividade. Por força do estabelecido no 129, § 8º, aplica-se à lesão corporal culposa a previsão constante do art. 121, § 5º (“o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”). Assim, é a única

próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”). Assim, é a única modalidade de lesão corporal que admite o perdão judicial.

6.4.7. Lesão corporal leve com violência doméstica O art. 129, § 9º, do Código Penal, erige a qualificadora de lesão corporal leve com violência doméstica. Embora a dicção legal não afirme expressamente que essa qualificadora incide apenas em caso de lesão corporal de natureza leve, em face do estabelecido no § 10 – causa de aumento de pena para as mesmas razões insculpidas no § 9º, taxativamente incidentes para os §§ 1º a 3º, ou seja, lesão corporal grave, gravíssima e seguida de morte –, por consequência, essa é, inquestionavelmente, a construção legislativa decorrente da interpretação sistemática dos dispositivos. De qualquer forma, de se notar que, ao se mencionar simplesmente “violência doméstica” em tema de lesões corporais, pode se estar a referir ou à qualificadora (§ 9º) ou à causa de aumento de pena (§ 10), devendo-se o intérprete ter atenção ao que se trata. As hipóteses relativas à qualificadora de violência doméstica são casos de lesões corporais leves praticadas “contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”. Com essa figura, tutelam-se não apenas a integridade e a saúde, mas também o respeito à pessoa no âmbito familiar42. Tal dispositivo foi incluído pela Lei nº 10.886/200443, sendo posteriormente modificado pela Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), a qual diminuiu a margem mínima de pena e aumentou a máxima, resultando em uma punição de 3 meses a 3 anos44. Apesar de a lei ter se voltado, principalmente, para a tutela da mulher, cumpre salientar, não obstante, que a qualificadora em destaque pode ser aplicada caso a vítima seja homem. Veja-se que a previsão em análise afasta a agravante prevista no art. 61, II, e (crime cometido contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge), sob pena de bis in idem. Pela peculiar redação legal, dúvidas podem existir quanto aos exatos sujeitos passivos apontados ou, ainda, quanto à necessidade ou não da agressão dever se dar estritamente no ambiente doméstico. Em realidade, a parte final da redação legal, construída logo em seguida à conjunção alternativa “ou”, isto é, o trecho “ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade”, aclara ambas as possíveis dúvidas. Desse modo, o sujeito passivo pode ser ascendente, descendente, irmão, cônjuge, companheiro, convivente, ex-convivente, ou, ainda, qualquer pessoa que esteja em situação de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade em face do sujeito ativo do delito. Por conseguinte, vítima pode ser pai, mãe, filho, esposa, empregada em serviço, colega de república estudantil, etc. Ademais, note-se que somente é necessário que o crime ocorra no ambiente doméstico nas hipóteses de prevalecimento de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, por razões lógicas. Quanto às demais situações (crime contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge, companheiro, convivente ou ex-convivente), não importa que os fatos tenham se dado fora do contexto domiciliar (e. g., crime na rua ou no shopping center), incidindo, de qualquer modo, a qualificadora. Isso porque, nesses últimos casos, a lei não distingue, não competindo ao intérprete o fazer.

6.5. Consumação e tentativa Consuma-se o crime de lesão corporal quando ocorre o efetivo dano à saúde ou à integridade física da vítima. Trata-se de um crime material, ou de dano. Em regra, admite-se a tentativa (conatus) de lesões corporais dolosas, hipótese em que o agente atua com consciência e vontade de ofender a incolumidade física ou psíquica de outrem, não logrando êxito por circunstâncias alheias à sua vontade (e. g., o agente é contido por populares

quando se dirige para agredir a vítima com um pedaço de madeira). Exceção apontada é na hipótese de lesão corporal seguida de morte, visto que não há dolo em relação ao resultado morte, e sim culpa, sendo inimaginável a tentativa da figura preterintencional. Do mesmo modo, não é possível tentativa em caso de lesão corporal culposa. No que tange a certas qualificadoras, discute-se se há a presença obrigatória do elemento culpa, afastando a possibilidade de tentativa, visto que o dolo ensejaria um crime autônomo. São os casos da lesão corporal grave com resultado perigo de vida e da lesão corporal gravíssima com resultado aborto. Nesse âmbito, leciona Marques que “se o resultado que qualifica a lesão pode ser intencional sem que o delito tome outra configuração legal, não há porque negar-se a possibilidade de tentativa”45. Tudo isso significa que, afora essas duas hipóteses mencionadas (resultado perigo de vida e resultado aborto), em havendo dolo de lesão corporal de natureza grave ou de natureza gravíssima, é perfeitamente admissível a tentativa da figura qualificada. Por fim, há que se observar que a distinção entre tentativa de lesão corporal e a contravenção penal de vias de fato46 encontra-se em sede subjetiva. No crime, o dolo é o de lesionar a integridade física ou a saúde da vítima, enquanto que, na contravenção, o agende deseja agredir sem lesionar a vítima, como ocorre em um empurrão, por exemplo.

6.6. Substituição da pena Como mencionado, o § 5º do art. 129 permite que, não sendo as lesões graves – ou seja, tratando-se de lesão corporal leve –, o juiz substitua a pena de detenção pela de multa, caso: a) tenha ocorrido alguma hipótese do § 4º (motivo de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima); ou b) as lesões sejam recíprocas47. Pelo texto legal, o juiz “pode” realizar tal substituição. Apesar da expressão apontar para uma faculdade, atualmente, entende-se majoritariamente que, preenchidos os requisitos legais, a situação mais favorável constitui direito do réu.

6.7. Causas de aumento de pena Como mencionado na presente obra, a diferença entre qualificadora e causa de aumento de pena consiste no seguinte: qualificadora é um subtipo penal e, como tal, possui pena própria, com margens mínima e máxima (v. g., reclusão, de 1 a 5 anos), distintas de um tipo fundamental, previsto no caput de um artigo, enquanto causa de aumento de pena constitui circunstância majorante da punição, conforme patamar estabelecido caso a caso pela lei (e. g., 1/3, metade, dobro). Existem quatro previsões de causas de aumento de pena quanto às lesões corporais, constantes do art. 129: a) a do § 7º, aplicável, na primeira parte, às lesões culposas, e na segunda, às lesões dolosas (leve, grave e gravíssima) e lesão seguida de morte; b) a do § 10, quando lesões corporais grave, gravíssima e seguida de morte forem praticadas com violência doméstica; c) a do § 11, incidente exclusivamente para lesão corporal leve com violência doméstica; e, por fim, d) a do § 12, passível de aplicação para lesões dolosas (leve, grave e gravíssima), bem como lesão seguida de morte. A primeira disciplina de causas de aumento de pena encontra-se no art. 129, § 7º, que dispõe: “aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se ocorrer qualquer das hipóteses dos §§ 4º e 6º do art. 121 deste Código”. Por conseguinte, são previstas certas hipóteses de majoração para situações de lesão culposa, bem como outras para lesões dolosas e lesão seguida de morte. A lesão corporal culposa tem a pena aumentada de um terço se: a) resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício; b) se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima;

c) se o agente não procura diminuir as consequências do seu ato; ou d) se o agente foge para evitar prisão em flagrante. Na primeira hipótese mencionada, ensina Marques que “não falando o texto em regra regulamentar, e sim em regra técnica,não importa que a norma de conduta inobservada não conste de regulamento da profissão, arte ou ofício. Basta que se prove a exigibilidade técnica do cumprimento da regra desobedecida, para que se verifique a existência da qualificadora”48. A inobservância da regra técnica não se confunde com a imperícia, dado que nessa o agente não tem o conhecimento suficiente da regra. Ao mencionar a prestação de socorro e a diminuição das consequências da conduta criminosa, há criação de uma obrigação legal para que o agente atue para dirimir os desdobramentos da lesão corporal, de modo que, se agir diversamente, sua conduta será penalmente ilícita49. Ainda, conforme a regra estabelecida, a lesão corporal dolosa (leve, grave e gravíssima), assim como a lesão corporal seguida de morte, tem a pena aumentada de um terço se praticada contra pessoa menor de 14 ou maior de 60 anos. Caso a lesão corporal tenha sido praticada por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por grupo de extermínio, a pena é aumentada de um terço até a metade. Ressalte-se que, caso o agente tenha sido condenado pelo crime de constituição de milícia privada (art. 288-A), não cabe a incidência de tal majorante, sob pena de bis in idem50. O segundo regramento de causa de aumento de pena em matéria de lesão corporal encontra-se no art. 129, § 10, segundo o qual, nos casos de lesões corporais graves, gravíssimas e seguidas de morte, incide a majoração de um terço caso o crime seja cometido nas circunstâncias de violência doméstica. Como visto, essa causa de aumento não incide para lesões leves tendo em vista que, em tal circunstância, já há previsão de qualificadora (§ 9º). Em terceiro lugar, consta majorante específica para a hipótese de lesão corporal de natureza leve praticada em situação de violência doméstica. Conforme o art. 129, § 11, insculpido pela Lei nº 11.340/2006, ocorrida a hipótese do § 9º, há causa de aumento de um terço caso a vítima seja portadora de deficiência51. Político-criminalmente, critica-se o fato de que tal causa de aumento somente incida na circunstância de lesão corporal leve praticada em situação de violência doméstica52. De fato, se a razão de ser da previsão é a maior censurabilidade por conta da menor possibilidade de defesa da vítima, não faz sentido limitá-la para lesão corporal leve praticada com violência doméstica. Por fim, a quarta e última previsão de majoração em crime de lesão corporal encontra-se no art. 129, § 12, que estabelece: “se a lesão for praticada contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição, a pena é aumentada de um a dois terços”. A previsão aplica-se para lesões dolosas (leve, grave e gravíssima), bem como para lesão seguida de morte. Assim, para a incidência de tal causa de aumento, é necessário que o sujeito passivo detenha determinadas características, quais sejam: a) ser integrante das Forças Armadas; b) fazer parte da polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis, polícias militares e corpos de bombeiros militares; c) ser agente ou autoridade integrante do sistema prisional; e) ser agente ou autoridade integrante da Força Nacional de Segurança Pública; ou f) ser cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau das autoridades mencionadas anteriormente. Ressalte-se que o crime deve ser praticado no exercício ou em razão da função exercida pela vítima. Dessa forma, nota-se que a função exercida por essa última deve ser o móvel do agente, ou, ao menos, o crime deve ter ocorrido durante o exercício dessa função. O mesmo aplica-se para o cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, de modo que o sujeito ativo

deve conhecer essa condição e ser motivado por ela. Somente às lesões corporais culposas, não se aplica tal majorante. Cumpre salientar que a lesão corporal gravíssima e a lesão corporal seguida de morte, quando praticadas no contexto do art. 129, § 12, são consideradas crimes hediondos (art. 1º, I-A, da Lei nº 8.072/199053).

6.8. Questões especiais Algumas situações concretas específicas ensejam dúvidas de interpretação. São os casos de intervenções médicas, lesões desportivas, transmissão dolosa de AIDS, corte de cabelo forçado para fins de venda e furo de orelha de crianças.

6.8.1. Intervenções médicas Em geral, as cirurgias médicas não se subsumem em lesão corporal, visto que o médico, devidamente habilitado e com o consentimento do paciente ou de seu representante legal, age em exercício regular de direito, inexistindo a intenção de lesionar. Ainda, há os que também apontam que o médico deve seguir os métodos aconselháveis ao caso. Há possibilidade, não obstante, de ocorrer lesão corporal culposa, caso o resultado lesivo tenha se dado pela inobservância de cuidado objetivamente devido. Inspirado nos critérios de criação e realização de riscos de Roxin, considera-se que nas intervenções médico-cirúrgicas, caso o médico comporte-se dentro da lex artis, eventual lesão estaria inclusa entre os fatos capazes de excluir a imputação pela ausência de criação do risco não permitido54. Já se o médico se desvia, culposa ou dolosamente, da atuação recomendada para curar, estaria criando um risco não permitido, devendo, nessa hipótese, responder pelo resultado. A atuação voltada para a diminuição do risco de produção do resultado torna o fato atípico. Já em cirurgias de fins estéticos, em virtude do consentimento, haveria exclusão de ilicitude. Muñoz Conde55 elenca alguns critérios para verificar a existência ou não de imprudência na atuação médica, tais como: capacidade profissional, preparação e experiência do médico; as circunstâncias de tempo e lugar; e a valoração da atuação médica na fase em que foi produzida. Maiores controvérsias se deram em torno da cirurgia comumente chamada de “mudança de sexo”, em realidade, tecnicamente denominada de cirurgia de redesignação genital56. Longa foi a trajetória até que a cirurgia em foco fosse considerada lícita57, dado que envolve uma série de aspectos, tanto no campo do Direito quanto no campo da Medicina58. Destarte, já chegou até mesmo a ser classificada como lesão corporal gravíssima, pois se enquadraria, por exemplo, em perda de função. Nesse âmbito, Regis Prado59 considera que, em certas cirurgias, como a analisada, é necessária uma maior atenção à legitimidade do consentimento do paciente, que deve ser informado exaustivamente sobre consequências e riscos, por exemplo. Para Reale Júnior60, essa cirurgia enquadra-se em ausência de tipicidade, “pois de imediato, ictu oculi, verifica-se a licitude da conduta movida por valores do respeito à decisão do paciente, de prestígio à dignidade da pessoa humana, em uma situação limite, impedindo a continuidade do sofrimento e do constrangimento do paciente torturado psíquica e socialmente”.

6.8.2. Lesões desportivas No que tange às lesões ocorridas em práticas desportivas, a incriminação é afastada pela excludente de ilicitude do exercício regular de direito. Contudo, não se afasta a possibilidade de o esportista ter agido com o dolo de lesionar, e não com o ânimo de praticar o esporte. Ainda, pode se configurar a lesão culposa caso haja a inobservância de cuidado objetivamente devido, por exemplo, quando do desrespeito às regras do esporte61.

6.8.3. Transmissão dolosa de AIDS Quanto à transmissão intencional do vírus HIV, deflagrador de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), doença que ainda não possui cura, há divergências de compreensão quanto à correta capitulação jurídica. Há duas correntes. Para um primeiro posicionamento, cuida-se de tentativa de homicídio ou homicídio consumado (prevalecia quando das primeiras manifestações da doença, nas décadas de 80 e 90 do século XX). Outra visão, todavia, entende tratar-se o comportamento de lesão corporal gravíssima (art. 129, § 2º, II: “se resulta enfermidade incurável”), pois é uma doença que não tem cura e a morte, hoje mais rara, sobrevém de uma doença oportunista e não diretamente de AIDS. Esse último entendimento, que analisa com maior propriedade a relação de causalidade na hipótese, com acerto, atualmente prevalece62.

6.8.4. Corte forçado de cabelo para venda Não há entendimento pacífico quanto à escorreita análise da situação em que a vítima tem seus cabelos cortados para fins de venda, não obstante, cuida-se de crime de lesão corporal. Se o fato é perpetrado para fins de causar humilhação, como referido, trata-se de injúria real.

6.8.5. Furo de orelha da criança Como visto anteriormente, desde que haja plena anuência dos pais ou responsáveis, o furo da orelha da criança para fins de colocação de brincos trata-se de fato atípico em razão do princípio da adequação social.

6.9. Pena e ação penal O crime de lesão corporal leve, ou simples (art. 129, caput), possui pena de detenção, de três meses a um ano. À lesão corporal grave (art. 129, § 1º) comina-se punição de reclusão, de um a cinco anos. Lesão corporal gravíssima (art. 129, § 2º), a seu turno, tem pena de reclusão, de dois a oito anos. A lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3º) é sancionada com pena de reclusão, de quatro a doze anos. Se a lesão corporal for culposa (art. 129, § 6º), apena-se com detenção, de dois meses a um ano. Em caso de lesão corporal leve com violência doméstica (art. 129, § 9º), a pena prevista é de detenção, de três meses a três anos. Consoante o art. 88 da Lei 9.099/1995, para as lesões corporais leves e culposas, a ação penal é pública condicionada à representação. Nessas hipóteses, o processo e o julgamento competem aos Juizados Especiais Criminais (art. 61 da Lei nº 9.099/1995). Destaca-se, não obstante, o disposto no art. 41 da Lei 11.340/2006, pelo qual não se aplica a Lei nº 9.099/95 “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista”. Assim, a ação penal será pública incondicionada na lesão corporal praticada com violência doméstica e familiar contra a mulher. Nesse âmbito, inclusive, corroborando decisão anterior do Plenário do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.424/DF, no mesmo sentido, foi editada, em 2015, a Súmula nº 542 do STJ: “a ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada”. Conforme o disposto no art. 89 da Lei 9.099/1995, é possível que haja a suspensão condicional do processo em casos de lesões corporais leves, culposas e graves. Há que se observar, mais uma vez, todavia, o mencionado art. 41 da Lei Maria da Penha, de modo que não é possível tal suspensão em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher, conforme o reconheceu a Súmula nº 536 do STJ (“a suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha”). Caso a vítima seja homem, a presente ressalva, assim como a anterior, não se aplica.

Nos demais casos, a ação penal será pública incondicionada.

FOOTNOTES 1

Desde a promulgação do Código de 1940, foram seis, nos anos de 1964, 1990, 2004, 2006, 2012 e 2015.

2

BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa. Rio de Janeiro: Rio, 1979, p. 181.

3

Dessa forma, “não foi senão lentamente que se elaborou no direito científico, de modo nítido, o conceito de violatio corporis ou lesa sanitas como entidade criminal autônoma, podendo dizer-se que só foi definitivamente destacada como tal depois dos Códigos austríaco de 1803 e francês de 1810”. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. V, pp. 312-313.

4

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 314. No mesmo sentido, v. g., NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 68.

5

Entre outros, v. g., NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte especial – arts. 121 a 212 do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2018, v. 2, p. 141.

6

Analisando o Código Penal espanhol, Muñoz Conde pondera que “o consentimento, validamente concedido, pode e deve, pois, não só atenuar, mas sim eximir de pena no delito de lesão sempre que a ação que a produziu se realize dentro dos limites que o consentimento estabeleceu”. MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal: parte especial. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010, p. 123 (tradução livre).

7

“Art. 171 [...] § 2º – Nas mesmas penas incorre quem: [...] V – destrói, total ou parcialmente, ou oculta coisa própria, ou lesa o próprio corpo ou a saúde, ou agrava as consequências da lesão ou doença, com o intuito de haver indenização ou valor de seguro; [...]”.

8

“Art. 184. Criar ou simular incapacidade física, que inabilite o convocado para o serviço militar: Pena –

detenção, de seis meses a dois anos”.

9

Hungria considerava que a ausência de punição da autolesão se dava pelo fato de que ela seria um evento anômalo, raro de ocorrer, de modo que se ocorresse com frequência haveria a incriminação – como na hipótese prevista no Código Penal Militar. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 314.

10

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 213.

11

Segundo parcela da doutrina, contudo, seria possível a lesão corporal se configurar a longo prazo, quando a conduta criminosa, não voltada para a eliminação da vida do produto da concepção, voltar-se-ia para a produção de lesões no futuro, manifestadas depois do nascimento. Nesse sentido, e. g., BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte especial 1. São Paulo: Atlas, 2014, pp. 105-106.

12

Assim, “não se trata, como o nomen iuris poderia sugerir prima facie, apenas do mal infligido à inteireza anatômica da pessoa. [...] Mesmo a desintegração da saúde mental é lesão corporal, pois a inteligência, a vontade ou a memória dizem com a atividade funcional do cérebro, que é um dos mais importantes órgãos do corpo”. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 313.

13

Nesse sentido, citando Manzini, NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 70.

14

MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal..., cit., p. 107 (tradução livre).

15

Como observa Marques, “somente no âmbito das circunstâncias judiciais do art. 59 do Código Penal, é que o meio e modo para a prática do crime podem influir na fixação da sanctio juris cabível”. MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. Campinas: Millennium, 2002, v. IV, p. 200.

16

E. g., PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters, 2018, v. II, p. 109.

17

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 109. Hungria dá como exemplo de lesão corporal dolosa, ocorrida por ação indireta, o caso em que um indivíduo atira uma pedra contra o desafeto e este, ao desviar, cai e fere-se. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 317.

18

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 316. Assim, “somente desaparecerá a unidade de crime quando houver uma interrupção da atividade criminosa e o ato sucessivo for produto de nova determinação de vontade, constituindo novo fato, ou melhor, novo crime”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 217.

19

Vale ressaltar, no entanto, o que dispõe a Súmula nº 589 do STJ, editada em 2017: “é inaplicável o princípio da insignificância nos crimes ou contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas”.

20

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 216.

21

RHC nº 66.869/PR, rel. Min. Aldir Passarinho, de 06.12.1988.

22

“Art. 14. Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições desta Lei: Pena – reclusão, de dois a seis anos, e multa, de 100 a 360 dias-multa. § 1.º Se o crime é cometido mediante paga ou promessa de recompensa ou por outro motivo torpe: Pena – reclusão, de três a oito anos, e multa, de 100 a 150 dias-multa. § 2.º Se o crime é praticado em pessoa viva, e resulta para o ofendido: I – incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias; II – perigo de vida; III – debilidade permanente de membro, sentido ou função; IV – aceleração de parto: Pena – reclusão, de três a dez anos, e multa, de 100 a 200 dias-multa. § 3.º Se o crime é praticado em pessoa viva e resulta para o ofendido: I – Incapacidade para o trabalho; II – Enfermidade incurável; III – perda ou inutilização de membro, sentido ou função; IV – deformidade permanente; V – aborto: Pena – reclusão, de quatro a doze anos, e multa, de 150 a 300 dias-multa. § 4.º Se o crime é praticado em pessoa viva e resulta morte: Pena – reclusão, de oito a vinte anos, e multa de 200 a 360 dias-multa”.

23

“Art. 1º Constitui crime de tortura: I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religiosa; II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena – reclusão, de dois a oito anos. § 1º Na mesma pena incorre quem

submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal. § 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos. § 3º Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos [...]”.

24

Nesse sentido, e. g., BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., pp. 218-220; NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., pp. 71-72.

25

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 111.

26

Bitencourt, e. g., ressalta que é possível que tal qualificadora possa incidir caso a vítima seja prostituta, visto que não se trata de atividade ilícita. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 221.

27

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 320. O autor ressalta que a incapacidade cessa apenas quando o indivíduo pode retomar todas as suas ocupações, não só parte delas.

28

Nesse sentido, PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 110, apontando que, por tal razão, não se pode falar em figura tentada na hipótese do art. 129, § 1º, II. Discordando de tal posicionamento, NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de..., cit., p. 145.

29

Consoante Hungria, trata-se de conceito objetivo-subjetivo, sendo necessária uma realidade objetiva para fundamentar um juízo de probabilidade, motivo pelo qual “o perigo deve ser atual, sério, efetivo e não remoto ou meramente presumido”. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 321.

30

REsp. nº 1.620.158-RJ, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, j. 13/9/2016, DJe 20/9/2016.

31

Conhecido posicionamento de HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 320.

32

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 113.

33

Hungria lecionava que “a deformidade deve ser tal que cause uma impressão, se não de repugnância ou de mal-estar, pelo menos de desgosto, de desagrado. É a cicatriz que acarreta chocante assimetria, é a desfiguração notável”. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 327. Muñoz Conde aduz que fatores como idade, sexo e profissão da vítima são decisivos para determinar o que se entende por deformidade. MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal..., cit., p. 117.

34

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 330.

35

E. g., NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de..., cit., pp. 153-154.

36

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 114.

37

Nessa linha, PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 114, considera que se há dolo, direto ou eventual, no resultado do aborto, há concurso entre aborto e a lesão à mulher grávida. Explica Bitencourt que “para que possa caracterizar-se a qualificadora da lesão corporal gravíssima, não pode ter sido objeto de dolo do agente, pois, nesse caso, terá de responder pelos dois crimes, lesão corporal e aborto, em concurso formal impróprio, ou, ainda, por aborto qualificado, se a lesão em si mesma for grave”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 227. Discordando de tal posicionamento, e. g., NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de..., cit., p. 155.

38

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 115.

39

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 231.

40

“Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa”.

41

“Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor: Penas – detenção, de seis meses a dois anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. § 1º Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) à metade, se ocorrer qualquer das hipóteses do § 1º do art. 302. § 2º A pena privativa de liberdade é de reclusão de dois a cinco anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo, se o agente conduz o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime resultar lesão corporal de natureza grave ou gravíssima”.

42

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 106.

43

A Lei Maria da Penha, desde sua edição, em 2006, tem sofrido diversas modificações no intuito de ampliação da proteção conferida às vítimas de violência doméstica. A mais recente deu-se com a edição da Lei nº 13.827/2019, de cunho procedimental, que permitiu a adoção de medidas protetivas de urgência por parte de autoridades policiais, bem como criou um banco de dados a respeito de tais medidas por parte do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

44

Pela Lei nº 10.886/2004, a sanção era de seis meses a um ano. Há que se observar que a Lei Maria da Penha, nesse particular aspecto, criou um sancionamento desproporcional, com penas mínima e máxima de desbalanceada distância.

45

MARQUES, José Frederico. Tratado de..., cit., p. 206.

46

“Art. 21. Praticar vias de fato contra alguém: Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de cem mil réis a um conto de réis, se o fato não constitui crime. Parágrafo único. Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) até a metade se a vítima é maior de 60 (sessenta) anos”.

47

Marques pondera que há, no caso, um pressuposto especial, qual seja, a coautoria necessária com condutas contrapostas. MARQUES, José Frederico. Tratado de..., cit., p. 214. Para que se configure a hipótese das lesões recíprocas, Nucci considera que ambas as partes entraram em luta injustamente, não sendo cabível em situação de legítima defesa. NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de..., cit., p. 157. Em sentido contrário, MARQUES, José Frederico. Tratado de..., cit., p. 215.

48

MARQUES, José Frederico. Tratado de..., cit., p. 225.

49

MARQUES, José Frederico. Tratado de..., cit., p. 226.

50

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., pp. 228-229.

51

Sobre o tema, observar que a recente Lei nº 13.836/2019 modificou a Lei Maria da Penha, nela inserindo um inciso IV no § 1º de seu art. 12, com vistas a criar a obrigatoriedade, por parte da autoridade policial, em registrar expressamente “a condição de a ofendida ser pessoa com deficiência e se da violência sofrida resultou deficiência ou agravamento de deficiência preexistente”.

52

BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 124.

53

Consoante o insculpido pela Lei nº 13.142/2015.

54

BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., pp. 113-114.

55

MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal..., cit., p. 127.

56

Isso porque hoje se entende que não há mudança de sexo na hipótese, mas apenas a readequação genital do indivíduo que se reconhece em sexo diverso daquele de sua composição genética.

57

Caso emblemático ocorreu no fim da década de 1970, em que um médico realizou cirurgia de mudança de sexo e foi condenado em primeira instância, porém, foi absolvido por maioria de votos em grau de apelação, sendo aceita a tese de ausência de dolo.

58

REALE JÚNIOR, Miguel. In: HUNGRIA, Nélson; REALE JÚNIOR, Miguel; SOUZA, Luciano Anderson. Comentários ao Código Penal: Dec.-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2018, v. V, p. 425 e ss.

59

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 107.

60

HUNGRIA, Nélson; REALE JÚNIOR, Miguel; SOUZA, Luciano Anderson. Comentários ao..., cit., p. 435. Nucci considera que a questão pode ser resolvida pelo consentimento do ofendido ou pela atipicidade material, conforme a perspectiva adotada. NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de..., cit., p. 150.

61

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 108. Já Marques não considera a possibilidade de lesões desportivas serem entendidas como lesões corporais culposas, mesmo havendo excessivo ardor na luta e disputa. MARQUES, José Frederico. Tratado de..., cit., p. 221.

62

Nesse sentido, e. g., Habeas Corpus nº 160.982–DF, 5ª Turma do STJ, relª. Minª. Laurita Vaz, j. 09/02/2010.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-7.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 7. PERIGO DE CONTÁGIO VENÉREO (ART. 130)

Capítulo 7. Perigo de contágio venéreo (art. 130) Perigo de contágio venéreo Art. 130 - Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa. § 1º - Se é intenção do agente transmitir a moléstia: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. § 2º - Somente se procede mediante representação.

7.1. Considerações iniciais O crime de perigo de contágio venéreo, previsto no art. 130 do Código Penal, inaugura o Capítulo III do Título I da Parte Especial do diploma, versando sobre a “periclitação da vida e da saúde”, no contexto “dos crimes contra a pessoa”. Nesse sentido, veja-se que, enquanto nos arts. 121 a 129 constam crimes de dano, voltados à proteção da vida ou da incolumidade pessoal (integridade física e psíquica do ser humano), diretamente atingidas pelas condutas descritas – em outros termos, exigindo-se a constatação do resultado naturalístico para sua consumação –, nos arts. 130 a 136, por sua vez, o legislador fixou crimes de perigo, antecipando-se a tutela penal para comportamentos relativos a um momento anterior a qualquer dano, vedando-se, então, ações arriscadas à saúde do indivíduo. Por conseguinte, preliminarmente, importa à análise das figuras apontadas a categoria dos crimes de perigo, principalmente em suas duas subclassificações, quais sejam a de perigo individual e perigo coletivo, bem como a de perigo concreto e perigo abstrato. Perigo individual é aquele que atinge indivíduos determinados, ou seja, uma ou mais pessoas específicas. Os crimes previstos nos arts. 130 e seguintes do Código Penal são crimes de perigo individual. Já perigo coletivo, ou comum, é o que afeta pessoas indeterminadas, isto é, uma pluralidade indefinível de sujeitos passivos. Esse último é o caso dos delitos constantes nos arts. 250 e seguintes do Codex (incêndio, inundação, desabamento etc.). O crime de perigo concreto demanda a efetiva comprovação de colocação em perigo do bem jurídico protegido, como ocorre com o crime de perigo de inundação (art. 255). O crime de perigo abstrato, presumido ou de simples desobediência, a seu turno, é aquele em que se presume a existência do perigo ao bem jurídico, como no exemplo do crime de tráfico de drogas (art. 33 da Lei 11.343/2006). A majoritária doutrina entende que referida presunção é absoluta (iuris et de iure), ou seja, não admite prova em contrário. Em suma, a categoria dos crimes de perigo é a construção tipológica dos artigos 130 e seguintes do Código Penal.

Especificamente quanto ao delito do art. 130, observando o panorama histórico, Hungria1 aponta a Lei Koch, surgida na Alemanha, em 1927, como principal antecedente na abordagem do cerceamento às doenças venéreas, tendo inspirado outras legislações. Em realidade, trata-se de uma sinalização da significativa preocupação social com doenças venéreas no final do século XIX e início do século XX, principalmente a sífilis. A Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal brasileiro, em seu item 44, ao falar sobre a incriminação em destaque, aduz que “[...] a dificuldade de prova não é razão para deixarse de incriminar um fato gravemente atentatório de um relevante bem jurídico”. Ressalta-se, de qualquer modo, que tal crime é de rara ocorrência forense, dado que “[...] há uma situação de conflito entre bens jurídicos, sendo que, muitas vezes, a intimidade e a privacidade tendem a prevalecer, tanto mais, porque aqui está se tratando de crimes de perigo e não de dano”2. Em síntese, seja porque a conduta envolve a sexualidade das pessoas, seja porque a figura em destaque não se volta à necessidade de qualquer lesão concreta (em geral, despreocupando-se os indivíduos se nada de efetivo ocorreu), o crime em questão culmina por denotar maior interesse teórico do que prático.

7.2. Objetividade jurídica Protege-se a saúde dos indivíduos, isto é, sua incolumidade física. Esse é o bem jurídico tutelado. Mesmo havendo preponderância da proteção à saúde individual, também se considera, indiretamente, o aspecto da saúde pública envolvido, dada a existência de riscos epidêmicos3, visão que remonta às origens da presente incriminação. Ressaltando esse último aspecto, parte da doutrina entende que o consentimento do ofendido não afastaria a configuração do crime4. Tal carece de maior sentido, teórico ou prático. Isso porque, em primeiro lugar, a saúde individual é bem jurídico disponível5. Demais disso, nota-se que a ação penal insculpida para a hipótese é pública condicionada à representação, o que não apenas reafirma tal disponibilidade, como, também, concretamente torna inócua a eventual ocorrência de infração penal frente à vontade da vítima.

7.3. Sujeitos do delito O sujeito ativo do delito em questão é a pessoa contaminada por moléstia venérea. Por conseguinte, trata-se de crime próprio, ou especial, contrariamente ao que afirma parte da doutrina6. Qualquer pessoa pode ser sujeito passivo. Há que se destacar, no entanto, o entendimento segundo o qual “[...] se se averiguar que o sujeito passivo é pessoa com especial imunidade ao contágio, ou já contagiada (de moléstia da mesma natureza, e afastada a hipótese de uma possível recrudescência), inexiste o crime”7. Nesse âmbito, e.g., Busato8 considera que tal questão envolve o princípio da intervenção mínima, de modo que se a vítima já era contaminada e a exposição à doença não afetaria seu quadro de saúde, não há delito; do contrário, se a exposição à doença pode piorar o quadro do ofendido já contaminado, haveria crime, tendo em vista a situação concreta de incremento do risco. Apesar da atraente linha de argumentação do autor, não lhe assiste a costumeira razão. Isso porque a questão se resolve pura e simplesmente no âmbito da tipicidade: o tipo do art. 130 fala em “expor a contágio”, o que significa a submissão a uma possibilidade de transmissão de patologia. Se a pessoa já se encontra contagiada (ou se detém imunidade), não há qualquer possibilidade de submissão a uma transmissão de doença – que já existe ou é impossível –, não se perfazendo o tipo objetivo, inexistindo, então, crime. Muito embora faticamente seja possível a piora da situação de saúde do já contaminado, a

depender da doença e do quadro de saúde do indivíduo, o legislador não previu a hipótese, não sendo possível uma interpretação ampliativa. Em outras palavras, não tendo sido descrita legislativamente a circunstância de exposição a um agravamento de moléstia, circunscrevendo-se tão somente à possibilidade de contágio, não se mostra admissível ao intérprete fazê-lo. Dessa forma, se ambos os sujeitos envolvidos se encontram doentes, o fato é atípico. Em face dos preconceitos sociais lamentavelmente ainda vigentes, vale ressaltar, como comumente o faz a doutrina, que não há tratamento diferenciado em, sendo os envolvidos na relação sexual, ou ato libidinoso, cônjuges ou pessoas prostituídas, heterossexuais ou não, de modo que qualquer pessoa pode ser tanto sujeito passivo como ativo do delito, exigindo-se apenas a presença da moléstia venérea nesse último.

7.4. Tipicidade objetiva O tipo penal do art. 130 dispõe sobre “expor” a contágio de moléstia venérea, indicando que o agente contaminado submete outro indivíduo ao perigo de contaminação, colocando, dessa maneira, em risco sua saúde. Apesar de relevante parcela da doutrina entender tratar-se de crime de perigo abstrato pela própria conformação da conduta proibida, cuida-se, em realidade, de crime de perigo concreto9. A truncada redação legal, ao lançar “expor alguém a contágio”, subentende necessariamente a ideia de submissão ao perigo de contágio, o que se traduz na ideia de necessidade de aferição de real perigo. Demais disso, a corroborar tratar-se de modalidade de crime de perigo concreto, de se notar que se admite a comprovação de ausência de perigo, afastando-se o crime, quando a vítima já for pessoa contaminada ou se imune, por qualquer razão, à contaminação. Como a presunção do crime de perigo abstrato é absoluta, não admitindo prova em contrário, vê-se que o delito em questão é de perigo concreto. Ressalte-se que, para caracterização do crime, não é necessário que haja a contaminação, basta a exposição ao perigo. Eventual contaminação revela-se como mero exaurimento do crime, devendo, não obstante, ser considerada quando da fixação da pena-base por parte do aplicador da lei (art. 59 do Código Penal). Há previsão de meio específico para a configuração do delito – sendo crime de forma vinculada –, de modo que a exposição a perigo de contágio deve se dar por intermédio de relações sexuais ou qualquer outro ato libidinoso10. Assim, observa-se que os termos empregados possuem maior abrangência do que apenas a “conjunção carnal”, isto é, cópula vagínica, admitindo, além disso, os sexos oral e anal, o beijo dado para satisfação da lascívia, ou qualquer outro ato de libidinagem, como, por exemplo, a ejaculação realizada ao se esfregar no corpo da vítima. Nesse âmbito, no caso concreto, o uso de preservativos pode afastar o delito, desde que tal proteção impeça a ocorrência do núcleo do tipo11. Pela redação legal, é imprescindível o contato físico destinado à satisfação da concupiscência sexual. Destarte, o perigo de contágio ocasionado por contato físico extrassexual, como um aperto de mão, não configura o tipo do art. 130, podendo enquadrar-se no art. 131, conforme o caso concreto12. “Moléstia venérea” trata-se de elemento normativo do tipo que diz respeito a doenças transmitidas por meio de contato sexual, como sífilis, cancro mole, gonorreia, HPV etc. Destarte, cabe ao campo da medicina definir quais são as doenças venéreas13. Cumpre salientar que a AIDS não é classificada como doença venérea, vez que pode ser transmitida por outros meios.

7.5. Tipicidade subjetiva Relativamente à tipicidade subjetiva, o delito de perigo de contágio venéreo mostra-se bastante peculiar, contendo, ademais, uma relevante polêmica interpretativa quanto ao significado da expressão “deve saber”. Nesse sentido, Frederico Marques considera que o tipo do art. 130 “[...] é de natureza anômala, pois que nele se contêm elementos subjetivos do injusto, muito especiais, além daquele de caráter geral dos crimes de perigo à vida e saúde”14. O dolo, em realidade, é o de manter relações sexuais, ciente de que há a possibilidade de transmissão de doença venérea ao parceiro. De se notar, então, que o dolo é de perigo, não de dano. O intuito de transmissão é abarcado exclusivamente na hipótese da figura qualificada do § 1º. O tipo fala em moléstia venérea cuja o agente “sabe” ou “deve saber” que está contaminado. A doutrina considera que a primeira hipótese – “sabe” – indica que o agente tem consciência de que está infectado e mesmo assim expõe a vítima ao contágio, denotando dolo direto de perigo. Já no segundo caso – “deve saber” –, há divergências. A corrente de pensamento tradicional sinaliza que haveria culpa, hipótese em que o agente não tem ciência da contaminação, mas essa poderia ser alcançada no caso concreto15. Outro ponto de vista, de autores mais recentes, entende que a expressão “deve saber” sinaliza dolo eventual16, caso em que o agente, observando sua saúde, desconfia do risco de infecção e, mesmo assim, age, de modo que assume o risco da transmissão. Esse último ponto de vista mostra-se correto. Não faz sentido entender a expressão “deve saber” como autorizadora de identificação de crime culposo. Primeiro, porque isso violaria a legalidade penal, que exige, consoante o art. 18, parágrafo único, do Código Penal, menção expressa da lei à figura culposa. Segundo, porque a equiparação da modalidade dolosa e culposa, atribuindo a ambas a mesma pena, violaria o princípio da proporcionalidade, vez que a figura culposa demonstra menor desvalor de conduta, devendo, necessariamente, receber pena abstratamente menor em relação à figura dolosa. Cumpre salientar que a própria Exposição de Motivos do Código de 1940, item n. 44, aponta para a modalidade culposa, aduzindo que “[...] o crime é punido não só a título de dolo de perigo, como a título de culpa (isto é, não só quando o agente sabia achar-se infeccionado, como quando devia sabê-lo pelas circunstâncias)”. Apesar disso, e rememorando que uma exposição de motivos, embora importante fonte de interpretação da lei penal, representa o pensamento doutrinário, não vinculando o intérprete, e um ponto de vista não se sustenta dogmaticamente. Se era intenção do legislador criar uma figura culposa, não logrou êxito, não tendo se utilizado da melhor técnica a tanto.

7.6. Forma qualificada O § 1º do art. 13017 traz hipótese de qualificadora em que o agente tem a intenção de transmitir a doença venérea, apontando para um dolo diferenciado da figura do caput. Nesse caso, o agente deseja transmitir a moléstia venérea, mantendo a relação sexual com tal objetivo. A expressão “se é intenção do agente transmitir a moléstia” revela não apenas uma hipótese de qualificadora, mas também um elemento subjetivo especial do injusto. Destarte, “[...] o legislador utiliza uma técnica sui generis, porque emprega o especial fim de agir não como simples elemento subjetivo do tipo, mas como elemento identificador e especializante do tipo derivado (qualificado)”18. O legislador criou, assim, no art. 130, § 1º, um crime de perigo com dolo de dano. Havendo transmissão da doença, admite-se a possibilidade de responsabilização por lesão corporal grave ou gravíssima, conforme o caso concreto. Isso porque o agente agiu com dolo,

perfazendo-se as almejadas lesões. Caso as lesões produzidas sejam leves, mantém-se a figura do art. 130, § 1º, que possui pena maior. Se do contágio resultar morte, reconhece-se o delito de lesão corporal seguida de morte. É possível que o tipo do art. 130 seja cometido em concurso formal com crimes contra a dignidade sexual. Nesse quadro, havendo a intenção de transmitir a moléstia, há concurso formal impróprio19.

7.7. Consumação e tentativa Para a consumação do crime, seja na modalidade fundamental ou na qualificadora, não é necessário o efetivo contágio, bastando a ocorrência do contato sexual ou libidinoso, expondo a vítima ao perigo de contágio. Há autores que consideram, conforme o caso, o contágio como mero exaurimento do crime20. No caso da qualificadora (§ 1º), valem as observações feitas no item anterior. Admite-se a tentativa, dada a possibilidade de fracionamento de condutas verificando-se um iter criminis. Ocorre, por exemplo, quando o agente inicia preliminares sexuais, mas não consegue a sua concretização. 7.8. Pena e ação penal O perigo de contágio venéreo, em sua figura simples (art. 130, caput), possui cominada pena de detenção, de três meses a um ano, ou multa. A modalidade qualificada (art. 130, § 1º), isto é, em havendo intenção do agente em transmitir a moléstia, detém pena de reclusão, de um a quatro anos, e multa. Em qualquer caso, consoante o § 2º do art. 130, a ação penal é pública condicionada à representação da vítima. A figura simples, como infração penal de menor potencial ofensivo, é processada e julgada perante o Juizado Especial Criminal (art. 61 da Lei 9.099/1995). Conforme o art. 89 da Lei 9.099/1995, é possível que haja a suspensão condicional do processo, exceto em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 41 da Lei 11.340/2006).

FOOTNOTES 1

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. V, p. 387 e ss. Assim, “[...] foi com o advento da Lei Koch, por sua grande repercussão, que se retirou do debate doutrinário a legitimidade da incriminação do contágio venéreo”. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 389.

2

BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte especial 1. São Paulo: Atlas, 2014. p. 132. Em sentido semelhante, Bitencourt acrescenta que “[...] com o surgimento dos antibióticos, especialmente da penicilina, eventuais vítimas de contágio venéreo preferem essa medicação a expor-se ao strepitus fori, desnudando também sua privacidade”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016. v. 2, p. 245.

3

Nessa linha, Busato, v.g., pontua que “[...] existe um interesse público na evitação da contaminação e difusão de moléstias venéreas, ou seja, há também um bem jurídico secundário, que é a saúde pública, também afligida”. BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 140.

4

E.g., HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 394; PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2018. v. II, p. 127; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 246.

5

Em sentido similar, mas limitando a compreensão apenas para a perturbação de saúde leve, temos GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. Niterói: Impetus, 2019. v. II, p. 222.

6

Entendendo tratar-se de crime comum, e.g., PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 127.

7

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 398.

8

BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 134. Bitencourt considera tratar-se de crime impossível tanto a situação em que o ofendido já era contaminado – absoluta impropriedade do objeto – como o caso em que o agente supõe erroneamente que está contaminado. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., pp. 258-259.

9

Na lição de Bitencourt, “[...] o perigo deve ser direto e iminente, isto é, concreto, demonstrado e não presumido. A possibilidade incerta ou remota é insuficiente”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 247. Na mesma linha, v.g., GRECO, Rogério. Curso de..., cit., p. 228.

10

Para Fragoso, o conceito de ato libidinoso é “[...] objetivo e subjetivo, porque exige que seja manifestação de luxúria e concupiscência”. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988. v. I, p. 176.

11

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte especial – arts. 121 a 212 do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2018. v. 2, p. 168. No mesmo sentido, BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 139. Bitencourt pontua que o uso do preservativo afasta o dolo, de modo que caso sobrevenha contaminação, o

agente, em tese, não deve sequer responder por lesão corporal culposa, pois tomou os cuidados objetivos devidos. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 248.

12

PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 128.

13

O comumente citado pela doutrina Decreto-Lei 16.300/1923, que catalogava referidas moléstias, foi revogado pelo Decreto de 5 de setembro de 1991. De qualquer modo, as doenças venéreas constam da Classificação Internacional de Doenças (CID), devendo ser aferidas, no caso concreto, por perícia.

14

MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. Campinas: Millennium, 2002. v. IV, p. 282.

15

Por exemplo, segundo Noronha, ocorre a hipótese “[...] se não se dá conta de certos sintomas que se manifestam depois de haver mantido relações sexuais com prostituta”. NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998. v. 2, p. 85. Em sentido similar, HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 395; MARQUES, José Frederico. Tratado de..., cit., p. 288; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 176,

16

Dentre outros, COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 1992. v. 2, p. 35; PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 128; BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 139. GRECO, Rogério. Curso de..., cit., p. 314; NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de..., cit., p. 229.

17

Hungria considerava que a hipótese do art. 130, § 1º deveria estar no âmbito da lesão corporal, por tratarse de tentativa de lesão corporal, punida como crime autônomo. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 395. Criticando tal posicionamento, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 257.

18

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 259.

19

Ibidem, p. 261.

20

Ibidem, p. 247; PRADO, Luiz Regis. Curso de..., cit., p. 128.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-8.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 8. PERIGO DE CONTÁGIO DE MOLÉSTIA GRAVE (ART. 131)

Capítulo 8. Perigo de contágio de moléstia grave (art. 131) Perigo de contágio de moléstia grave Art. 131 – Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.

8.1.Considerações iniciais No contexto de proteção da saúde individual do ser humano, o crime de perigo de contágio de moléstia grave foi insculpido dentro da ideia geral de fixação de uma tutela de caráter amplo, a qual inspira os arts. 130 e seguintes do Código Penal. Isso significa que, no Capítulo III do Título I da Parte Especial do diploma, o legislador buscou evitar, pela via penal, a prática de situações meramente arriscadas, as mais diversas, para a higidez das pessoas. Perceba que isso representa a sinalização de pouca tolerância para com a afetação do bem jurídico em jogo. A tradução dogmática dessa postura é a construção dos tipos por meio de figuras de perigo, com suas características punições anteriores a um dano, seja de perigo concreto (representativo de intolerância média na proteção, visto que há de se verificar a efetiva colocação em perigo) ou de perigo abstrato (sinalizador de intolerância máxima na tutela, tendo em vista que se pune um simples comportamento, presumindo-o perigoso). O presente delito – que surge no ordenamento brasileiro originariamente com o Código Penal de 1940 –, tal qual a figura qualificada prevista no art. 130, § 1º, isto é, “[...] exposição dolosa, por via sexual ou libidinosa, a transmissão de moléstia venérea, revela-se como um crime de perigo com dolo de dano”1. Isso porque o legislador pune a conduta arriscada – no caso, praticada com propósito lesivo –, não se cogitando do dano pretendido. Em outros termos, antecipa a tutela penal. Pela peculiaridade da construção legislativa, Hungria considera que o tipo do art. 131 seria “[...] uma tentativa de lesão corporal grave, especialmente punida como crime sui generis ou autônomo”2. O efetivo contágio pela doença pode ou não representar mero exaurimento do crime do art. 131. Se a transmissão trouxer ao indivíduo contagiado lesões simplesmente leves, será mero exaurimento, devendo a circunstância, não obstante, ser considerada no momento de aplicação da pena para fins de sua fixação acima do mínimo (art. 59 do Código Penal, em razão das consequências do crime). Todavia, caso sobrevenha na vítima lesão corporal de natureza grave, gravíssima ou lesão corporal seguida de morte, afasta-se o crime do art. 131, para fins de reconhecimento das espécies mais gravosas de lesões corporais. Também pode ocorrer homicídio, consumado ou tentado, se a moléstia transmitida for idônea a causar a morte da vítima e se ficar comprovado que o agente detinha animus necandi.

Por tudo isso, vê-se que o crime de perigo de contágio de moléstia grave detém caráter subsidiário, restando afastado em hipóteses mais graves3. Tratando-se de vítima maior e capaz, em razão de cuidar-se de bem jurídico disponível, admitese o consentimento do ofendido como causa supralegal de justificação4.

8.2.Objetividade jurídica Protege-se a saúde dos indivíduos, ou seja, sua incolumidade física. A doutrina majoritária, com acerto, não considera a vida como bem jurídico diretamente protegido no tipo do art. 131, apesar de poder ter sua proteção abrangida de maneira indireta5.

8.3.Sujeitos do delito O sujeito ativo há de ser pessoa contaminada por moléstia grave que é contagiosa, tal como, por exemplo, AIDS, tuberculose, cólera etc. Por essa razão, trata-se de “crime próprio”6, e não comum, como afirma significativa parcela da doutrina. O sujeito passivo pode ser qualquer pessoa. Contudo, caso já seja portador da mesma moléstia grave, não há crime. Importante observar, quanto ao aspecto da subjetividade passiva, que a prática delitiva há de se voltar contra pessoa determinada ou pessoas específicas. Caso a conduta volte-se a um número indeterminado de pessoas, estar-se-á diante de um crime contra a incolumidade pública, como, provavelmente, epidemia (art. 267 do Código Penal).

8.4.Tipicidade objetiva e subjetiva O crime em análise se perfaz com a prática intencional de qualquer ato capaz de transmitir moléstia grave, de que o agente é portador. Tais atos podem ser diretos, como, por exemplo, aperto de mão, beijo, abraço, aleitamento; ou mesmo indiretos, como os realizados com emprego de objetos – e.g., copos, garfos ou seringas –, que o agente infectou ou sabe infectados da moléstia de que padece7. Caso o agente não seja portador da moléstia, mas a transmita por meio de objetos, não haverá o presente crime por ausência da elementar “[...] de que está contaminado”. Nessa hipótese, poderá ocorrer a prática do delito previsto no art. 132 (perigo para a vida ou a saúde de outrem). Nota-se que, diferentemente do delito de perigo de contágio de moléstia venérea (art. 130), o tipo do art. 131 não requer um meio específico para seu cometimento, configurando-se como crime de forma livre. É possível, inclusive, o reconhecimento da prática do presente crime caso o meio utilizado seja ato sexual ou libidinoso, desde que não se trate de doença venérea, como no caso da AIDS8. Ademais, tratando-se de moléstia venérea e de meio que não o sexual ou libidinoso, igualmente se estará diante do art. 131, dado que moléstias venéreas são consideradas graves. Observa-se que é condição sine qua non para o perfazimento do tipo do art. 131 que o agente esteja infectado por moléstia grave e contagiosa9, isto é, um processo patológico capaz de lesionar significativamente a saúde humana e passível de transmissão. O emprego de “moléstia grave” é caracterizador, conforme o pensamento doutrinário majoritário, de norma penal em branco, de modo que seu conceito remete a normas de saúde. Quanto a esse último aspecto, Bitencourt10, v.g., discorda da classificação como norma penal em branco, compreendendo “moléstia grave” como elemento normativo. Assim, leciona que

“[...] não será, com efeito, o regulamento da ONU ou do Ministério da Justiça que determinará a gravidade ou contagiosidade de uma ou outra moléstia. Ademais, o fato de determinada moléstia grave não constar, eventualmente, de regulamentos oficiais não lhe retirará, por certo, a idoneidade para tipificar esse crime. Ser grave e contagiosa decorre da essência da moléstia e não de eventuais escalas oficiais”.

De fato, a expressão em destaque é melhor caracterizada na categoria de elemento normativo do tipo11. Parece difícil que os fatos se deem mediante moléstia não catalogada pela medicina. No entanto, nada obsta que ocorra, o que não afastaria o perfazimento do tipo, objetiva e subjetivamente, devendo tal ser aferido pericialmente. De qualquer forma, apontam-se como moléstias graves e contagiosas AIDS, febre amarela, lepra, tuberculose, tifo, difteria, cólera, meningite, sarampo, “gripe suína” etc. Perceba-se que a moléstia há de ser grave, mas não necessariamente incurável. Além disso, reitera-se, a doença deve ser contagiosa, isto é, propagável. Em face da necessidade de comprovação efetiva de ato capaz de produzir contágio de moléstia grave, ou seja, de um perigo de transmissão, vê-se que a redação legal, implicitamente, denota tratar-se de figura de perigo concreto. Em regra, em face do núcleo do tipo (“praticar”) o delito é praticado de maneira ativa. Excepcionalmente, admite-se a forma omissiva imprópria, caso o agente seja garantidor e não evite o resultado12. O tipo de perigo de contágio de moléstia grave, ao estabelecer a necessidade de “fim de transmitir a outrem” a moléstia grave, insculpe um elemento subjetivo especial do tipo, isto é, um especial fim de agir (o que a doutrina antiga denominava “dolo específico”). Em outras palavras, dado que necessariamente o agente atua com o fim de transmitir a moléstia grave, o crime é doloso, com intencionalidade especial. Na ausência de tal especial fim de agir, descaracterizado está o tipo do art. 131. Diante de tal finalidade específica de transmitir a moléstia grave, o crime apenas admite o dolo direto, sendo incabível cogitar-se de dolo eventual13. Não há previsão de modalidade culposa. Caso o indivíduo ignore a contagiosidade da moléstia e pratique atos idôneos para contágio, não há crime. Sendo inescusável a ignorância, e ocorrendo o contágio, o agente poderá responder por lesão corporal culposa ou por homicídio culposo, caso o ofendido venha a falecer14.

8.5.Consumação e tentativa Consuma-se o crime com a prática de atos capazes de transmitir moléstiagrave, independentemente de ocorrer ou não o efetivo contágio que era almejado pelo agente. Por conseguinte, trata-se de crime formal. A efetiva transmissão constitui-se em mero exaurimento, como visto acima, desde que provoque apenas lesões leves. Do contrário, haverá outro delito (lesões graves, gravíssimas, seguida de morte ou homicídio, a depender do caso). Admite-se tentativa tendo em vista tratar-se de delito plurissubsistente. Haverá crime impossível se é absolutamente inidôneo o meio utilizado, bem como na hipótese de o agente supor erroneamente que sua moléstia é contagiosa15.

8.6.Pena e ação penal O perigo de contágio de moléstia grave (art. 131) é sancionado com pena de reclusão, de um a quatro anos e multa.

A ação penal é pública incondicionada. Conforme o art. 89 da Lei 9.099/1995, é possível que haja a suspensão condicional do processo, exceto em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 41 da Lei 11.340/2006).

FOOTNOTES 1

Em face dessa similitude de construção, a Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal trata das figuras conjuntamente em seu item 45: “[...] é especialmente prefigurado, para o efeito de majoração da pena, o caso em que o agente tenha procedido com intenção de transmitir a moléstia venérea. É possível que o rigor técnico exigisse a inclusão de tal hipótese no capítulo das lesões corporais, desde que seu elemento subjetivo é o dolo de dano, mas como se trata, ainda nessa modalidade, de um crime para cuja consumação basta o dano potencial, pareceu à Comissão revisora que não havia despropósito em classificar o fato entre os crimes de perigo contra a pessoa. No caso de dolo de dano, a incriminação é extensiva à criação do perigo de contágio de qualquer moléstia grave”.

2

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. V, p. 401. No mesmo sentido, e.g., FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988. v. I, p. 178.

3

BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa. Rio de Janeiro: Rio, 1979. p. 220.

4

Nesse influxo, e.g., BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte especial 1. São Paulo: Atlas, 2014. p. 147. Em sentido oposto, entendendo ser o bem jurídico indisponível, v.g., COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 2008. v. 4, p. 409.

5

No sentido do texto, v.g., COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal..., cit., p. 405. Contrariamente, Prado, e.g., inclui a vida como bem jurídico protegido. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2018. v. II, p. 131.

6

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte especial – arts. 121 a 212 do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2018. v. 2, p. 174.

7

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., pp. 401-402.

8

BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 144.

9

MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. Campinas: Millennium, 2002. v. IV, p. 293.

10

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016. v. 2, pp. 264-265.

11

No mesmo sentido, e.g., NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de..., cit., p. 173.

12

Bitencourt, v.g. refere-se à possibilidade de forma omissiva, mencionando exemplo de Flávio Augusto Monteiro de Barros, no qual “[...] a mãe contaminada por moléstia grave e contagiosa permite que o filho a toque, com a intenção de transmitir-lhe a moléstia”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 271.

13

Bitencourt, v.g, pontua, mencionando a lição de Fragoso, que havendo dolo eventual, poderá haver hipótese de tentativa de lesão corporal ou o tipo do art. 132 consumado; ainda, acrescenta o autor que ocorrendo a transmissão, também pode ser o caso de lesão corporal dolosa ou seguida de morte, conforme o caso concreto. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 267.

14

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 402.

15

Ibidem, p. 402.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-9.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 9. PERIGO PARA A VIDA OU A SAÚDE DE OUTREM (ART. 132)

Capítulo 9. Perigo para a vida ou a saúde de outrem (art. 132) Perigo para a vida ou saúde de outrem Art. 132 – Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente: Pena – detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave. Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais.

9.1.Considerações iniciais O art. 132 do Código Penal tem inspiração no anteprojeto de Código Penal suíço de 1908, no projeto austríaco de 1912 e no Código Penal dinamarquês1. A intenção original do tipo era a de prevenir acidentes de trabalho, muitas vezes ocorridos por conta da escassa estrutura do meio laboral proporcionada pelos patrões em meados do século XX. Apesar de tal inspiração, a legislação brasileira foi além, dado que o Código suíço apenas mencionava o perigo à vida, enquanto que aqui também se incluiu o perigo à saúde2. Por conseguinte, erigiu-se no Brasil uma disciplina penal mais ampla.

9.2.Objetividade jurídica Protege-se a vida e a incolumidade física dos indivíduos. Nesse sentido, nota-se que a titularidade do bem jurídico tutelado é individual, ou seja, de pessoa – ou grupo de pessoas – identificada ou identificável. Nas palavras de Busato3, “[...] a definição do bem jurídico é o que delimita o tema, pois, ao estar inserido o tipo nos crimes contra a pessoa, o bem jurídico a que se refere há de ser individual ou, ao menos, individualizável”.

9.3.Sujeitos do delito Qualquer pessoa pode ser tanto sujeito ativo (crime comum) quanto sujeito passivo do delito em questão. Contudo, é preciso haver vítima determinada, ou vítimas determinadas. Nesse âmbito, se o perigo recair sobre um número indeterminado de pessoas, o crime poderá ser de perigo comum, conforme os tipos descritos nos arts. 250 a 259 do Código Penal4. A majoritária doutrina tradicionalmente salienta que não podem ser classificadas como sujeito passivo do crime do art. 132 pessoas que têm o dever legal de enfrentar o perigo, como bombeiros e policiais, bem como em caso de profissões e atividades que possuam perigo inerente, como enfermeiros5. Contudo, tal afirmação pode levar a entendimentos equivocados, devendo ser interpretada com devida cautela, visto que apenas significa dizer que o simples enfrentamento de situação arriscada não torna referidas pessoas necessariamente vítimas do crime em questão6.

Caso a situação perigosa tenha sido dolosamente criada para atingir policiais, bombeiros ou demais agentes que detenham dever legal de enfrentar o perigo, nada obsta o reconhecimento do crime. Dessa maneira, por exemplo, se o sujeito ativo passa com seu veículo em velocidade excessiva rente ao policial em patrulhamento ostensivo, com o intuito de assustá-lo, pratica o crime em questão.

9.4.Tipicidade objetiva e subjetiva O tipo do art. 132 do Código Penal fala em “[...] expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente”. Por conseguinte, é necessária a criação de uma situação efetivamente arriscada, isto é, que ponha em risco direto e iminente, a vida ou a saúde de alguém. Perigo direto é o que se volta a pessoa determinada ou a grupo de pessoas determinadas. Perigo iminente, a seu turno, é o capaz de provocação imediata de dano7. Nucci8 considera que o melhor termo seria perigo “atual”, e não “iminente”, lecionando que “[...] se perigo atual é um risco de dano, perigo iminente é a possibilidade de colocar uma pessoa em estágio imediatamente anterior àquele que irá gerar o risco de dano, ou seja, sem a concretude e garantia exigidas pelo direito penal”. Admite-se tanto a forma comissiva quanto a omissiva na prática do crime de perigo para a vida ou saúde de outrem. Trata-se, assim, de crime de forma livre. Exemplos de práticas comissivas são encontrados no abalroamento doloso do carro da vítima com ela em seu interior, no “fechamento” proposital de outro veículo em movimento na estrada, na aceleração intencional do carro em direção ao pedestre que atravessa a via para fazê-lo correr etc. Como exemplo de omissão, há o caso do patrão que não fornece o material de proteção necessário aos seus funcionários, desde que, em razão dessa omissão, decorra uma situação concreta de perigo9. Cuida-se de crime de perigo concreto, razão pela qual deve ser verificada a criação de uma situação efetivamente arriscada, apta a vulnerar a vida ou a incolumidade física de alguém. A expressão “se o fato não constitui crime mais grave” é indicadora que o tipo do art. 132 é subsidiário (subsidiariedade expressa). Dessa forma, “[...] pela função subsidiária que lhe foi dada, vem descrito em forma bastante ampla e dilatada, de maneira a abranger, em seus elementos constitutivos ou típicos, outras infrações penais que com ele se relacionam como a espécie para o gênero”10. Em síntese, o tipo em questão possui a característica de crime residual, apenas incidindo quando não se conformar a prática de outro mais grave. Há que se destacar o art. 1511 da Lei 10.826/2003, que tipifica o delito de disparo de arma de fogo. Tal crime possui tratamento mais gravoso que o delito do art. 132 do Código Penal, não exigindo que se prove o perigo, mas apenas o disparo12, visto tratar-se de infração de perigo abstrato. Dessa forma, se há exposição a perigo por meio de disparo de arma de fogo em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, incide o art. 15 da referida Lei, e não o art. 132 do Código Penal. No momento da fixação da pena, há que se observar a gravidade da exposição a perigo, variando ainda conforme envolver a saúde ou a vida do indivíduo, por exemplo13. Nada obsta o reconhecimento de concurso de crimes quando o agente expõe a perigo, intencionalmente, mediante uma só conduta, a saúde ou a vida de diversos indivíduos, hipótese de concurso formal (art. 70 do Código Penal). O delito resta caracterizado independentemente da motivação do agente, seja meramente por maldade, egoísmo ou lucri faciendi causa – como o dono de circo que promove espetáculos excessivamente perigosos para atrair clientela14 etc.

O elemento subjetivo é o dolo de perigo, admitindo-se dolo direto ou eventual. A existência de dolo de dano descaracteriza o delito de perigo para a vida ou a saúde de outrem, estando-se diante de uma tentativa de homicídio ou de lesão corporal. Não há previsão de modalidade culposa. Se, em razão da criação de uma situação arriscada com mero dolo de perigo, resulta, no entanto, dano que ocasiona morte, o agente responderá por homicídio culposo. Havendo, nas mesmas condições, resultado de lesão corporal, o crime continuará sendo o do art. 132 e não o de lesão corporal culposa, que tem pena menos grave que aquele – desde que se observe, reitera-se, o dolo de perigo15. Há possibilidade de incidir na lesão corporal culposa prevista no Código de Trânsito Brasileiro.

9.5.Consumação e tentativa Consuma-se o crime com a ocorrência efetiva do perigo direto e iminente à saúde ou à vida de outrem, demonstrando devidamente sua existência. Admite-se tentativa na forma comissiva. A doutrina majoritária considera irrelevante o consentimento do ofendido. Nesse âmbito, todavia, pondera-se que o delito trata tanto de bem jurídico indisponível, isto é, a vida, quanto de bem jurídico disponível, ou seja, a saúde16. Assim, havendo exposição a perigo da vida, o consentimento é irrelevante. No entanto, quando houver a exposição da saúde, deve admitir-se o consentimento como causa supralegal de justificação.

9.6.Causa de aumento de pena Em face da precária situação de transporte de trabalhadores rurais, chamados “boias-frias”17, a Lei 9.777/1998 incluiu o parágrafo único do art. 132, que prevê causa de aumento de pena de um sexto a um terço “[...] se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais”. Nesse influxo, a situação de perigo concreto tem de estar no contexto de transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza que estão em desacordo com os preceitos legais18. A previsão de causa de aumento visa atingir o transporte clandestino, que não oferece as devidas condições de segurança. Tal hipótese pode incidir caso ocorra tanto em via pública quanto em propriedades privadas19.

9.7.Pena e ação penal O delito de perigo para a vida ou saúde de outrem é sancionado com pena de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave (como homicídio tentado, perigo de contágio de moléstia grave etc.). A ação penal é pública incondicionada. Tratando-se de infração penal de menor potencial ofensivo – cuja pena máxima não supera dois anos –, o processo e julgamento compete ao Juizado Especial Criminal. Conforme o art. 89 da Lei 9.099/1995, é possível que haja a suspensão condicional do processo, exceto em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 41 da Lei 11.340/2006).

FOOTNOTES 1

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. V, pp. 403-405.

2

Observa Hungria que houve o mesmo tratamento para o perigo de vida e de saúde pela dificuldade prática de distingui-los. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 404.

3

BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte especial 1. São Paulo: Atlas, 2014. p. 159.

4

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016. v. 2, p. 276. Nesse âmbito, Prado considera que “[...] se o perigo comum criado não está previsto como delito por nenhum dispositivo especial, é possível a aplicação supletiva do artigo 132”. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2018. v. II, p. 133.

5

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 409. Em sentido semelhante, atualmente, e.g., BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 159.

6

Ademais, não se exige que a pessoa realize atos heroicos, razão pela qual é preciso que, além do dever, haja também a possibilidade de agir, ainda que com risco pessoal. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 279.

7

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 407. Nucci fala em um “[...] risco palpável de dano voltado a pessoa determinada”. NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte especial – arts. 121 a 212 do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2018. v. 2, p. 176. Para Bitencourt, o perigo “[...] deve apresentarse, necessariamente, como uma anormalidade, como uma ação desaprovada pela moral jurídica e pela moral social, representando, em outros termos, o perigo não tolerável”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 276.

8

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de..., cit., p. 176.

9

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 276.

10

MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. Campinas: Millennium, 2002. v. IV, p. 299.

11

“Art. 15. Disparar arma de fogo ou acionar munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável”.

12

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de..., cit., p. 178.

13

BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 151.

14

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., pp. 407-408.

15

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 279. Nesse âmbito, o autor destaca que é preciso ter em mente que “[...] o dolo do agente não é de dano, mas tão somente de perigo, e sempre que a conduta dolosamente orientada encontrar adequação típica, com sanção maior, deverá prevalecer ante eventual tipificação culposa, quando mais não fosse, até pelo princípio da excepcionalidade do crime culposo”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 278. Em sentido semelhante, v.g., MARQUES, José Frederico. Tratado de..., cit., p. 304.

16

BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., pp. 155-157.

17

Sobre o contexto do período, Busato explica que “[...] os populares gatos ou boias-frias, que são trabalhadores rurais avulsos, vinham sendo, na época da edição da legislação, frequentemente recrutados e transportados em veículos não apropriados para tanto. Os trabalhadores eram alocados na carroceria de caminhões e caminhonetes sem qualquer cobertura, sem local apropriado para sentar-se ou mesmo

cinturões de segurança. Com isso, não era infrequente a ocorrência de acidentes gravíssimos derivados das manobras bruscas de trânsito, derivando em ferimentos e mortes”. BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 153.

18

Segundo Bitencourt, “[...] seu conteúdo contém determinadas elementares que lhe dão características de um novo tipo penal — derivado”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 281.

19

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de..., cit., p. 178.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-10.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 10. ABANDONO DE INCAPAZ (ART. 133)

Capítulo 10. Abandono de incapaz (art. 133) Abandono de incapaz Art. 133 – Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono: Pena – detenção, de seis meses a três anos. § 1º – Se do abandono resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de um a cinco anos. § 2º – Se resulta a morte: Pena – reclusão, de quatro a doze anos. Aumento de pena § 3º – As penas cominadas neste artigo aumentam-se de um terço: I – se o abandono ocorre em lugar ermo; II – se o agente é ascendente ou descendente, cônjuge, irmão, tutor ou curador da vítima. III – se a vítima é maior de 60 (sessenta) anos.

10.1.Considerações iniciais Na Antiguidade, destaca-se que em Esparta era permitido o abandono de crianças que não fossem capazes para o serviço de armas. Em Roma, o pater familias não podia expor o recémnascido, porém, há indícios históricos de que a proibição só dizia respeito aos filhos homens e às filhas primogênitas, e ainda assim quando não fossem enfermos mentais ou disformes, pois nestas últimas hipóteses a exposição era legitimada moralmente1. A figura do abandono de incapaz não se mostra na maioria das antigas legislações, de modo que foi no direito canônico que se desenvolveu como um crime autônomo. Nesse sentido, o Código Penal da Baviera de 1813 foi um marco, dado que estabeleceu como “sujeito ativo qualquer pessoa e como sujeito passivo qualquer incapaz”2. No caso brasileiro, o Código Criminal de 1830 não possuía tal figura, enquanto o Código Penal de 1890 apenas vedava o abandono de infante menor de sete anos. Nos termos amplos que se encontram, constitui-se o delito em foco como uma novidade introduzida pelo Código Penal de 1940, em seu artigo 133. A redação legal permanece a mesma desde então, a não ser pela inclusão de uma causa de aumento de pena, no § 3º, inciso III, realizada pela Lei nº 10.741, de 2003 (Estatuto do Idoso).

10.2.Objetividade jurídica

Protege-se a vida e a saúde da pessoa faticamente incapaz, exposta à situação de perigo decorrente do abandono.

10.3.Sujeitos do delito O artigo 133 do Código Penal requer tanto sujeito ativo quanto passivo com características próprias, sendo necessário que haja uma relação especial de assistência entre eles3. Pelas características especiais exigidas do sujeito ativo do delito, trata-se de crime próprio. O sujeito ativo deve, assim, ter relação de “cuidado, guarda, vigilância ou autoridade” com relação à vítima, como pode se dar com médico, enfermeiro, cuidador, carcereiro, policial etc. Ressalta-se que as características exigidas pelo tipo devem encontrar-se na pessoa do autor do crime (mediato ou imediato), e não na do eventual executor 4. Isso porque o incapaz pode, por exemplo, ser colocado em local abandonado por alguém que simplesmente atende a pedido do autor, pessoa com o dever assistencial. O executor, no caso, pode ser partícipe do crime ou não, caso atue em situação de erro. O sujeito passivo é aquele que se encontra em relação de cuidado, guarda, vigilância ou autoridade em face do sujeito ativo, além de ser incapaz de defender-se dos perigos advindos do abandono – ou seja, está inapto a cuidar da própria segurança5. Cumpre salientar que a incapacidade referida não tem o mesmo sentido que o presente no âmbito do Direito Civil. Dessa maneira, abrange a pessoa que não pode defender-se dos perigos a que foi exposta pelo abandono6. O tipo refere-se, então, a qualquer pessoa, juridicamente capaz ou incapaz, porém faticamente incapaz, por qualquer razão, de cuidar, pessoalmente, de sua própria defesa7. Por conseguinte, pode ser, e.g., a criança, o idoso, o inválido, a pessoa imobilizada por fraturas no corpo, o preso etc.

10.4.Tipicidade objetiva e subjetiva O tipo refere-se ao abandono físico, de modo que se pune o afastamento ou inação em face da pessoa desvalida, relegada às intempéries, e não exatamente a omissão do dever de assistência8. O crime admite modalidade comissiva ou omissiva9. Ocorrerá por meio comissivo na hipótese de deslocamento no espaço, quando o agende leva a vítima a um determinado lugar e dela se afasta10. Já poderá se perfazer por omissão quando o agente não retira o sujeito passivo da situação de desalento em que se encontra11. O abandono pode ser temporário ou definitivo, desde que seja suficiente para pôr em risco efetivo a vítima. O crime não se perfaz se, por exemplo, ao afastar-se da vítima, o agente procura evitar o risco permanecendo na espreita, aguardando e observando alguém prestar o devido e eficaz socorro 12. Neste último caso, efetivamente não há abandono. É preciso que haja uma relação especial entre autor e vítima, anterior ao cometimento do crime, que pode ser oriunda de várias fontes, como de preceito de lei, seja no âmbito de direito público ou privado, seja contrato ou convenção, e fatos lícitos ou ilícitos13. Caso isso não ocorra, poderá se perfazer o crime de omissão de socorro. O autor deve guardar relação de “cuidado, guarda, vigilância ou autoridade” com relação ao ofendido. O termo “cuidado” refere-se a pessoas que acidentalmente perdem a aptidão para defenderem-se sozinhas. “Guarda” diz respeito a pessoas que precisam de assistência mais duradoura que o cuidado. “Vigilância” consiste em assistência acauteladora, de menor rigor que a guarda. Já “autoridade” liga-se a um vínculo de poder de uma pessoa em relação à outra14. A incapacidade da vítima, como visto, liga-se às circunstâncias fáticas do abandono, não dependendo do fato de a pessoa ser ou não civilmente capaz. Nas palavras de Hungria, adota-se

uma “fórmula extensiva de incriminação, de modo a compreender o abandono de toda pessoa inapta, por qualquer motivo, a defender-se dos riscos resultantes do abandono”15. Dessa forma, o conceito é relativo e circunstancial, dependendo sempre de verificação das possibilidades da pessoa abandonada no tocante à aptidão para defender-se de perigos e riscos à sua vida e saúde16. Observa-se que o tipo requer não apenas uma relação especial de assistência entre sujeito ativo e passivo, mas também que a vítima seja exposta a risco efetivo, concreto, ocasionado pela situação do abandono. Portanto, está-se diante de um crime de perigo concreto. O elemento subjetivo do tipo é o dolo de perigo, seja direto, seja eventual. O dolo de dano afasta a incidência do artigo 133, podendo caracterizar homicídio tentado ou lesão corporal tentada. Não há previsão da modalidade culposa. Contudo, ressalta-se que, se o abandono decorrer de culpa, sobrevindo dano para a vítima, o agente poderá responder por lesão corporal culposa ou homicídio culposo17. Por fim, cumpre salientar que, a depender da situação concreta, o estado de necessidade pode afastar a ilicitude penal18, como em caso de extrema penúria em que o agente abandona o incapaz para salvar a si próprio.

10.5.Consumação e tentativa Consuma-se o crime com o abandono efetivo da pessoa incapaz, desde que haja a exposição da vítima a perigo concreto. Admite-se tentativa na forma comissiva, apesar de difícil verificação19.

10.6.Formas qualificadas Os §§ 1º e 2º do artigo 133 trazem a previsão de qualificadoras em caso de o crime resultar em lesão corporal de natureza grave ou se resultar morte da vítima, respectivamente. São formas preterdolosas, reveladoras de dolo no abandono perigoso e culpa na superveniência do resultado mais grave. Caso haja animus necandi, o crime será de homicídio doloso, restando absorvida a figura de abandono. De modo similar, na hipótese de o agente revelar animus laedendi, desde que as lesões produzidas sejam graves ou gravíssimas. Se as lesões produzidas forem leves, subsiste a figura de abandono de incapaz, em razão de possuir pena mais elevada, ficando absorvidas as lesões. Visão doutrinária minoritária20 entende que as figuras qualificadas em análise teriam sido revogadas pela Parte Geral insculpida em 1984, por conta da previsão constante do art. 13, § 2º21 do Código Penal. Dessa forma, tais passariam a “identificar-se com a condição de garantidor da não produção do resultado, de modo que responderá o agente autonomamente sempre pelo resultado produzido”22. Em outras palavras, segundo esse pensamento, entende-se que, em havendo resultado morte ou lesões corporais, somente poderão ser reconhecidas essas figuras (dolosas ou culposas, a depender do elemento subjetivo), uma vez que o sujeito ativo, enquanto garantidor, teria o dever de evitar o resultado. Em sentido oposto, e.g., Bitencourt23 considera que, apesar da similitude nas fontes de relação especial de assistência verificada na comparação entre os arts. 13 e 133, ambos do Código Penal, tendo em vista o princípio da tipicidade e as garantias que o tipo penal representa, havendo específica previsão da Parte Especial, destaca-se a hipótese especial da regra geral. Dessa maneira, a previsão particular transforma o sujeito ativo no que chama de “garantidor privilegiado”, que não responde pelo resultado como crime autônomo, conforme determina o art. 13, § 2º, mas somente pelo simples crime de abandono agravado pelo resultado (art. 133 e parágrafos)24.

10.7.Causas de aumento de pena Os incisos do § 3º do artigo 133 trazem hipóteses em que há aumento de pena em patamar fixo de um terço, a saber: a) se o abandono ocorre em local ermo; b) se o agente é ascendente ou descendente, cônjuge, irmão, tutor ou curador da vítima; c) se a vítima é maior de 60 anos. O inciso I traz o caso em que o abandono ocorre em lugar ermo, o qual consiste em local isolado, afastado, distante da possibilidade de assistência25. De se notar, ainda, que deve haver tal característica no momento do abandono, não configurando a majorante se, excepcionalmente, o lugar habitualmente ermo estiver frequentado. O inciso II, por sua vez, faz menção a um grau de proximidade específico, além da relação especial de assistência, para a incidência da majorante, tratando do agente que é ascendente ou descendente, cônjuge, irmão, tutor ou curador da vítima26. Não se admite interpretação extensiva para incluir, por exemplo, companheiros, dado que o rol é taxativo, o que consistiria em analogia in malam partem. Por fim, o inciso III, incluído pelo Estatuto do Idoso, estabelece hipótese de causa de aumento quando a vítima é maior de 60 anos27.

10.8.Pena e ação penal O abandono de incapaz tem pena de detenção, de seis meses a três anos (art. 133, caput). Se do abandono resulta lesão corporal grave, a pena é de reclusão, de um a cinco anos (art. 133, § 1º). Ocorrendo o resultado morte, a pena é de reclusão, de quatro a doze anos (art. 133, § 2º). A ação penal é pública incondicionada. De se notar que, não sendo caso de infração penal de menor potencial ofensivo, o processo e julgamento de qualquer hipótese prevista no dispositivo, isto é, tipo básico e formas qualificadas, é da Justiça Criminal Comum. Conforme o art. 89 da Lei 9.099/1995, é possível que haja a suspensão condicional do processo, tanto em relação à figura fundamental (caput) quanto às qualificadoras (§§ 1º e 2º), exceto em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 41 da Lei nº 11.340/2006).

FOOTNOTES 1

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. V, p. 412.

2

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 289.

3

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 418. Dessa forma, “comete o crime aquele que deixa em abandono pessoa em relação à qual tem o dever de zelar pela segurança e incolumidade”. MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. Campinas: Millennium, 2002, v. IV, p. 306.

4

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 292.

5

MARQUES, José Frederico. Tratado de..., cit., p. 307.

6

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 422.

7

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 293.

8

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 293. Assim, “não é o caso de se enquadrar, nesta figura, o pai que deixa de dar alimentos ao filho menor, e sim aquele que larga a criança ao léu, sem condições de se proteger sozinha”. NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte especial – arts. 121 a 212 do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2018, v. 2, p. 180.

9

Busato, e.g., discorda, considerando não ser possível a prática do crime de modo comissivo, dado que “no abandono, o sujeito deixa a vítima sem assistência, consistindo em uma omissão”. BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte especial 1. São Paulo: Atlas, 2014, p. 163.

10

Nas palavras de von Liszt, o abandono não requer necessariamente a remoção para outro lugar; assim, tem de haver uma separação no espaço, “ou porque o agente se tenha afastado ou porque fora interceptada a entrada etc. A simples falta do cuidado que o dever impõe não basta”. LISZT, Franz von. Tratado de direito penal. Trad. José Higino Duarte Pereira. Campinas: Russell, 2003, t. II, pp. 57-58.

11

Hungria dá como exemplo “deixar de observar o conteúdo ativo do dever de assistência, não mais procurando a vítima, que fica abandonada no lugar onde se acha”. Contudo, ressalta que não há crime se quem é beneficiário da assistência espontaneamente se subtrai a essa e o obrigado não vai procurá-lo. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 418.

12

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 293.

13

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 418.

14

MARQUES, José Frederico. Tratado de..., cit., pp. 308-309; HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., pp. 418419.

15

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 415.

16

MARQUES, José Frederico. Tratado de..., cit., p. 307. Nas palavras de Bitencourt, “a incapacidade, mais que fática, é jurídica; mais que anatômica, é físico-psíquica; mais que genética, é normativa”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 293.

17

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 300.

18

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 423.

19

Bitencourt pontua como hipótese de tentativa que “o agente pode abandonar alguém, por exemplo, nas circunstâncias descritas pelo tipo penal, mas a pronta e imediata intervenção de terceiros pode impedir que o risco se concretize”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 298. Em sentido oposto, e.g., Busato não admite tentativa, visto considerar que o tipo do art. 133 só pode ser cometido na forma omissiva; assim, o autor considera que há consumação quando sobrevém a situação de perigo que faz surgir o dever de agir. BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., pp. 165-166.

20

BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 162.

21

“Art. 13 – O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. [...] § 2º – A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.”

22

BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 162.

23

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 296.

24

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 296. Dessarte, “não deixa de ser paradoxal negar maior proteção exatamente ao incapaz, a quem o ordenamento jurídico considera hipossuficiente, pois, contraditoriamente, se do abandono de alguém capaz, maior, plenamente válido, resultar-lhe a morte, havendo aquele vínculo de ‘assistência’, o agente responderá pelo crime de homicídio, na forma comissiva omissiva, ao passo que, nas mesmas circunstâncias, se do abandono de um incapaz resultar-lhe a morte, o agente responderá somente pelo abandono de incapaz, qualificado pelo resultado (art. 133)”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., pp. 296-297.

25

Hungria leciona que lugar ermo “deve ser entendido no sentido material ou geográfico: é o lugar habitualmente (quer de dia, quer de noite), e não acidentalmente solitário”. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 424. Para o autor, “se absolutamente excluída a possibilidade de socorro”, o abandono é meio executivo de homicídio. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 424.

26

Frederico Marques aponta que essa maior gravidade se dá pelo fato de que o dever que liga os sujeitos ativo e passivo funda-se “ou em laços de família, ou em encargos legais impostos em virtude da falta de aptidão da vítima para defender-se e zelar pela própria pessoa”. MARQUES, José Frederico. Tratado de..., cit., p. 312.

27

Para Nucci, trata-se de medida “salutar tendo em vista a grande quantidade de casos registrados de abandono de idosos, por parentes ou responsáveis, quando, em verdade, mereceriam eles carinho e proteção por terem atingido a fase madura da vida”. NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de..., cit., p. 182.

© desta edição [2019]

2020 - 03 - 24

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 REVISTA DOS TRIBUNAIS

This PDF Contains CAPÍTULO 11. EXPOSIÇÃO OU ABANDONO DE RECÉM-NASCIDO (ART. 134), p.RB-11.1 CAPÍTULO 12. OMISSÃO DE SOCORRO (ART. 135), p.RB-12.1 CAPÍTULO 13. CONDICIONAMENTO DE ATENDIMENTO MÉDICO-HOSPITALAR EMERGENCIAL (ART. 135-A), p.RB-13.1 CAPÍTULO 14. MAUS-TRATOS (ART. 136), p.RB-14.1 CAPÍTULO 15. RIXA (ART. 137), p.RB-15.1

2020 - 03 - 24

PAGE RB-11.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 11. EXPOSIÇÃO OU ABANDONO DE RECÉM-NASCIDO (ART. 134)

Capítulo 11. Exposição ou abandono de recém-nascido (art. 134) Exposição ou abandono de recém-nascido Art. 134 – Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria: Pena – detenção, de seis meses a dois anos. § 1º – Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – detenção, de um a três anos. § 2º – Se resulta a morte: Pena – detenção, de dois a seis anos.

11.1.Considerações iniciais Dado que os artigos 133 e 134 do Código Penal encontram-se no mesmo contexto, cabem as mesmas considerações históricas feitas no capítulo anterior, no sentido de que as legislações antigas não conheceram a figura do abandono. No caso brasileiro, somente o Código Penal de 1890 adentrou nesse âmbito, inovando ao trazer a figura do abandono de infante menor de sete anos. O Código Penal de 1940, a seu turno, optou pela criação de figuras autônomas, tratando em apartado do abandono de incapaz (art. 133) o delito de exposição ou abandono de recém-nascido (art. 134). Este último consiste, em realidade, em modalidade privilegiada (delictum exceptum) do artigo 133, de modo que poderia ter sido previsto em um parágrafo deste1. Isso porque seria a figura em análise uma espécie de abandono praticado honoris causa. A doutrina brasileira revela duas significativas controvérsias quanto ao crime de exposição ou abandono de recém-nascido. A primeira diz respeito a quem pode ser o sujeito ativo do delito, se apenas a mãe ou também o pai do neonato. A segunda, por sua vez, refere-se ao alcance da expressão “recém-nascido”, caracterizadora do sujeito passivo da infração.

11.2.Objetividade jurídica Protege-se a vida e a saúde da pessoa recém-nascida, sujeita à situação de perigo decorrente de exposição ou de abandono. Não se pode olvidar que o artigo 134 encontra-se no capítulo referente à periclitação da vida e da saúde, o que, somado à redação do tipo, sinaliza o interesse penalmente tutelado.

11.3.Sujeitos do delito Como mencionado, há divergências doutrinárias quanto ao sujeito ativo do delito ser exclusivamente a mãe ou também poder incluir o pai do recém-nascido. A corrente majoritária, com razão, entende que o delito pode ser cometido tanto pela mãe,

solteira ou casada, que concebeu um filho fruto de relação adulterina ou incestuosa, como pelo pai, em mesmas condições. Essa interpretação é alcançada por conta do elemento “para ocultar desonra própria”, o qual, para além de revelar elemento subjetivo especial do tipo, delimita o sentido da incriminação. Nesse sentido, Hungria2 pontua que sujeito ativo somente será “mãe que concebe extra matrimonium ou, quando muito, o pai adulterino ou incestuoso”. Dessarte, não será autor, por exemplo, o marido de esposa infiel, pois não se trataria de desonra própria – assim, ocultar desonra de outrem enseja a aplicação do artigo 1333. Por conseguinte, não importa se o agente é homem ou mulher, desde que seja o pai ou a mãe da criança gerada em relação socialmente censurada, apta a ser entendida como “desonrosa”4. Já a corrente minoritária5 considera como sujeito ativo somente a mãe do neonato, seja ela viúva, adúltera, adolescente, ou mesmo prostituta – não a excluindo a priori. Isso porque somente a mãe do recém-nascido poderia intencionar ocultar desonra própria. Qualquer que seja a linha de pensamento adotado quanto ao tema, de se notar, não obstante, que se cuida a figura de exposição ou abandono de recém-nascido de crime próprio. Admite tanto coautoria como participação. Sujeito passivo é o recém-nascido, filho do sujeito ativo do crime. Há controvérsias quanto até que momento se pode considerar alguém recém-nascido. Corrente minoritária6 entende que o marco seria a queda do que resta do cordão umbilical no neonato, o que normalmente varia de 10 a 20 dias. O pensamento majoritário7, no entanto, compreende que a condição de recém-nascido perdura por um mês após o parto. Neste último sentido, Bitencourt8, considera que neonato “só pode ser quem veio ao mundo há poucos dias, não ultrapassando a um mês e cujo nascimento não se tenha tornado de conhecimento público”. Em posicionamento isolado, Hungria9 considera que o limite de tempo para se considerar que a criança é recém-nascida seria até que o fato não se tornasse conhecido de outrem, pois, nesse caso, não haveria mais como ocultar desonra.

11.4.Tipicidade objetiva e subjetiva Na visão de Hungria10, os verbos “expor” e “abandonar” seriam empregados com sentidos idênticos, como sinônimos. Em contrapartida, e.g., Bitencourt11 ressalta que o uso desses dois verbos não tem função meramente ornamental, dado que deve se ter em mente que a lei não contém palavras inúteis. Dessarte, leciona o professor gaúcho que expor a perigo é “exercer uma atividade sobre a vítima, transportando-a, no espaço, da situação de segurança mais ou menos efetiva em que se encontrava para lugar onde ficará sujeita a risco contra a sua incolumidade pessoal”; já o abandono seria “impropriamente um não fazer”, visto que está relacionado a uma recusa do agente em prestar os cuidados que o neonato precisa, havendo a criação do perigo12. Observa-se então que o delito pode ser cometido tanto na forma omissiva quanto na forma comissiva. Em síntese, expor significa remover o recém-nascido do local em que se encontra, deixando-o em lugar sem assistência, enquanto abandonar possui o sentido de se afastar do local em que está o recém-nascido, que resta desassistido. Em qualquer caso, exige-se o perfazimento de uma situação de risco efetivo, cuidando-se de crime de perigo concreto13. Não é prevista uma maneira específica para a realização do tipo penal, pelo que se observa tratar-se de crime de forma livre. Diferentemente do que ocorre no artigo 133, § 3º, inciso I, isto é, abandono em “local ermo”, não há na presente incriminação previsão de causa de aumento de

pena relativa ao local em que o neonato é abandonado. O elemento subjetivo é o dolo de perigo, isto é, a intencionalidade de criação de uma situação necessariamente arriscada. O dolo de dano afasta a incidência do artigo 134. Não há previsão de modalidade culposa. Havendo “abandono culposo” em que ocorra dano ao neonato, deve o agente, conforme o caso, responder por lesão corporal culposa ou homicídio culposo14. Há previsão de elemento subjetivo especial do tipo, isto é, um especial fim de agir, consistente no intuito de “ocultar desonra própria”. Isso significa o objetivo de separação do recém-nascido para que a reputação sexual do indivíduo não se veja abalada15. Sendo ausente esse intuito particular, poderá incidir o delito do artigo 133 do Codex. Diante do especial fim de agir, afasta-se a possibilidade de se configurar o dolo eventual. Nucci16 pondera que, atualmente, recém-nascidos são abandonados por razões diversas do intuito de ocultar desonra própria, como uma condição econômica desfavorável, o que levaria à aplicação do artigo 133. Assim, o autor considera que seria mais indicado fazer uma interpretação extensiva do artigo 134, incluindo na noção desse crime expor ou abandonar recém-nascido “por outros motivos emocionais similares”, o que seria mais benéfico para o sujeito ativo. Em caso de uma segunda prática de abandono de recém-nascido por parte do agente, desde que conhecido o fato anterior, não há subsunção ao artigo 134, mas sim ao artigo 133. Isso porque que o fato precedente já ocasionara publicidade e repercussão obliteradora da honra, não sendo mais possível, dessa maneira, “ocultar desonra”17. Ainda, abandonando-se apenas um dos filhos gêmeos, não há incidência do tipo do artigo 134, sim do artigo 133, pois não há a desonra a ser ocultada. Caso, no entanto, abandone-se ambos, haverá concurso formal. Na hipótese de concurso de agentes, comunica-se o motivo de desonra própria, por tratar-se de elementar do crime. Destaque-se que não se perfazerá o crime, pela ausência de perigo concreto, se o agente, ocultando-se, aguarda que alguém recolha o exposto, assim atuando para, caso preciso, reassumir a devida assistência18.

11.5.Consumação e tentativa Consuma-se o crime com o afastamento do neonato, desde que ele corra perigo concreto decorrente da situação em que foi colocado. Bitencourt considera que há uma presunção absoluta que o recém-nascido é incapaz de autodefender-se, mas não em relação ao perigo que o abandono pode ocasionar, que deve ser demonstrado no caso concreto19. Admite-se a tentativa na forma comissiva.

11.6.Formas qualificadas Os §§ 1º e 2º do artigo 134 do Código Penal trazem figuras qualificadas caso haja resultado de lesão corporal grave ou morte, respectivamente. Tendo em vista que se trata de crime em que há dolo de perigo, tais resultados são oriundos de culpa, do contrário, não incidiria a figura de exposição ou abandono de recém-nascido. Em outros termos, as formas qualificadas são preterdolosas. Posicionamento minoritário considera que tais figuras qualificadas teriam sido revogadas pela nova Parte Geral do Código Penal, de modo que, nas hipóteses descritas nas formas qualificadas, o autor sempre responderia pelo resultado de lesões ou de homicídio, em comissão por omissão20.

11.7.Pena e ação penal O crime de exposição ou abandono de recém-nascido, em sua figura básica (art. 134, caput), é sancionado com detenção, de seis meses a dois anos. Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena é de detenção, de um a três anos (art. 134, § 1º). Já se ocorre o resultado morte há pena de detenção, de dois a seis anos (art. 134, § 2º). A ação penal é pública incondicionada. O tipo penal básico é infração penal de menor potencial ofensivo, razão pela qual seu processo e julgamento competem ao Juizado Especial Criminal. As formas qualificadas são de competência da Justiça Comum. Conforme o art. 89 da Lei 9.099/1995, é possível que haja a suspensão condicional do processo, tanto em relação à figura fundamental (caput) quanto à qualificadora do § 1º, exceto em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 41 da Lei nº 11.340/2006).

FOOTNOTES 1

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. V, p. 411.

2

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 426. Hungria coloca que não será autor “mulher já decaída no conceito público ou o indivíduo de notória impudência”. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 426. Em sentido semelhante, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 304.

3

MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. Campinas: Millennium, 2002, v. IV, p. 319.

4

BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte especial 1. São Paulo: Atlas, 2014, pp. 173-174. Regis Prado aduz que “o sujeito ativo encontra-se em um estado de tortura íntima, ante a perspectiva iminente da perda da reputação que até então desfrutava”. REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2018, v. II, p. 143.

5

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., pp. 304-305. Assim, o autor não considera o pai adúltero ou incestuoso como autor da figura “privilegiada” do artigo 134, “pois representaria somente um incentivo a mais para o extermínio de menores desafortunados e, até pouco tempo, discriminados inclusive pela ordem jurídica”; deve ele responder então pela figura do artigo 133 do Código Penal. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 305.

6

MARQUES, José Frederico. Tratado de..., cit., pp. 318-319; MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. São Paulo: Atlas, 2010, v. II, p. 99.

7

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988, v. I, p. 189.

8

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 304.

9

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 426.

10

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 416.

11

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 303.

12

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 307. Busato estabelece diferença entre os verbos “expor” e “abandonar”, de modo que o primeiro se refere a uma conduta comissiva, enquanto o segundo, a uma omissiva; dessa forma, o uso de ambos amplia a abrangência do tipo. BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., pp. 169-170.

13

Dessa forma, “tanto como no art. 133, também é imprescindível uma situação de perigo concreto, no caso do art. 134, para que exista a adequação do abandono ou exposição ao tipo abstrato da norma incriminadora”. MARQUES, José Frederico. Tratado de..., cit., p. 316.

14

Nesse sentido, v.g., BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 311.

15

No influxo do texto, e.g., BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 170. Contrariamente, Bitencourt discorda da menção à honra sexual, ponderando que é atingido “um universo ético-moral muito mais abrangente, pois macula o dogma da fidelidade matrimonial, mancha e quebra a pureza da descendência

sanguíneo-familiar (ao incluir stranneus na prole), viola os deveres conjugais e destrói a harmonia do lar”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 308. Para o autor, “estão excluídos do tipo privilegiado o orgulho injustificado, a concepção de eventual matrimônio anulado ou mesmo a mulher devassa, que já não tem honra a defender”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 309.

16

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte especial – Arts. 121 a 212 do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2018, v. 2, p. 185.

17

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., pp. 308-309.

18

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 310.

19

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 309.

20

BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 174. De maneira semelhante, Bitencourt pontua que tais figuras foram revogadas, lecionando que “na verdade, a mãe que abandona recém-nascido, absolutamente incapaz de defender-se de qualquer perigo, é duplamente garantidora, na condição de genitora (decorrente de lei — art. 13, § 2º, alínea a, do CP) e como criadora, com a conduta anterior, do risco da ocorrência do resultado (art. 13, § 2º, alínea c, do CP). Logo, se sobrevier algum crime de dano, a mãe responderá por este, como autora, na forma de comissão por omissão”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., pp. 310311.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-12.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 12. OMISSÃO DE SOCORRO (ART. 135)

Capítulo 12. Omissão de socorro (art. 135) Omissão de socorro Art. 135 – Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa. Parágrafo único – A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.

12.1. Considerações iniciais As legislações antigas desconheceram a figura da omissão de socorro. Destaca-se que, entre os romanos, havia casos excepcionais em que, por exemplo, militares e escravos eram compelidos, com o risco da própria vida, a defender, respectivamente, seus superiores ou senhores1. Na maior parte da história jurídico-penal, não obstante, inexistiu qualquer figura aproximada ao tema. A conformação de um tipo penal com imposição de um dever de agir genérico, isto é, voltado a todas as pessoas, com vistas à assistência a quem quer que se encontre em perigo, surge apenas no Regulamento toscano de polícia punitiva, de 18532. No caso brasileiro, o Código Criminal do Império, de 1830, não incriminava a omissão de socorro, enquanto o Código de 1890, por sua vez, apenas trazia uma particular forma de omissão de socorro, relativa a recém-nascido ou criança menor de sete anos3. Nos moldes com que hoje compreendemos o delito de omissão de socorro, cuidou-se de novidade do Código Penal de 1940, não tendo sua redação recebido qualquer alteração desde então. Apesar desta última observação, o tema culminou por sofrer, em certa medida, modificações por conta da legislação extravagante. Isso porque específicas situações, as quais anteriormente poderiam subsumir-se ao tipo do art. 135, em face do princípio da especialidade, receberam novas capitulações, fora do Código Penal. São os casos envolvendo trânsito e vítima pessoa idosa. O Código de Trânsito Brasileiro – Lei nº 9.503/1997 – prevê três situações em que há uma particular forma de omissão de socorro: duas enquanto causas de aumento de pena e uma como tipo penal autônomo. A primeira previsão é aquela em que o condutor culposamente provoca acidente, não socorrendo a vítima, que vem a morrer. Nessa situação, reconhece-se a prática do crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302 da lei4), com incidência de causa de aumento de pena de um terço pela ausência de socorro (art. 302, § 1º, inciso III, do mesmo estatuto). Já aquele que, na condução de veículo automotor, provoca lesões corporais culposas na vítima e, em seguida, não a socorre, comete o crime de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor (art. 303, caput, do Código de Trânsito5) com causa de aumento de pena em razão de sua

omissão (art. 303, § 1º, do diploma especial). O artigo 3046 do Código de Trânsito, por fim, trata de hipótese de omissão de socorro praticada por condutor de veículo automotor envolvido em acidente não provocado por ele, isto é, motorista que sofre um abalroamento – frise-se, ocorrido sem sua culpa. Nessa situação, caso este último se ausente sem prestar socorro a terceiro que dele necessita ou, não podendo fazê-lo diretamente, deixe de solicitar auxílio às autoridades, comete o crime especial omissivo da lei de trânsito, o qual não possui um nomen iuris específico. Nesse sentido, analisando tal artigo juntamente com outros dispositivos, como os artigos 302 e 303 da referida lei, Reale Júnior7 destaca que o artigo 304 do Código de Trânsito somente será aplicável “caso não se tipifique o homicídio culposo ou a lesão corporal culposa, sendo o condutor inocente com relação a estes crimes, mas tendo se omitido de prestar assistência à vítima do acidente”8. Cumpre salientar que o parágrafo único do artigo 304 prevê que é mantida a incidência do crime mesmo que terceiros prestem assistência à vítima, o que colide com o entendimento doutrinário construído no âmbito do artigo 135 do Código Penal, no sentido de que, havendo o socorro exitoso por algum dos presentes, não incorrerão em crime os demais. A seu turno, o Estatuto do Idoso – Lei nº 10.741/2003 –, em seu artigo 979, trata das hipóteses de omissão de socorro em que o sujeito passivo é pessoa idosa, ou seja, a partir dos sessenta anos de idade, criminalizando: a) deixar de prestar assistência ao idoso, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, em situação de iminente perigo; b) recusar, retardar ou dificultar sua assistência à saúde, sem justa causa; e c) não pedir o socorro de autoridade pública. Dessa maneira, observa-se uma criminalização mais abrangente em relação ao tipo do artigo 135 do Codex, pois, junto à falta de assistência e de comunicação à autoridade pública, inclui-se a conduta comissiva de recusar, retardar ou dificultar a assistência à saúde do idoso, sem justa causa, por parte do sujeito ativo.

12.2. Objetividade jurídica Com o crime de omissão de socorro, protege-se a vida e a saúde do indivíduo10. Parte significativa da doutrina entende que o bem jurídico abrange um dever de solidariedade humana11.

12.3.Sujeitos do delito Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime de omissão de socorro. Por conseguinte, cuidase de crime comum. Todavia, destaca-se que, se o omitente for destinatário de uma norma especial que lhe imponha o dever de agir, consoante o disposto no art. 13, § 2º, do Código Penal, a depender da forma e grau de atingimento do bem jurídico tutelado, pode-se afastar o presente crime, incidindo, conforme o caso, os delitos comissivos por omissão (ou omissivos impróprios) de perigo para a vida ou a saúde de outrem (art. 132), lesão corporal (art. 129) ou homicídio (art. 121)12. Nesse contexto, a princípio, incorre no crime de omissão de socorro o médico que recusa atendimento a pessoas feridas ou enfermas em situação emergencial, o que, na prática, comumente se dá mediante alegação por parte do profissional de que não está em sua hora de serviço, que a pessoa não possui convênio hospitalar ou, ainda, que não terá condições de pagar seus honorários, por exemplo13. Referidas justificativas são inadmissíveis e não afastam o delito. Não obstante, caso dessa recusa de atendimento a vítima venha a se lesionar ou a morrer, o crime de omissão de socorro cede lugar ao reconhecimento do delito de lesões corporais ou homicídio, respectivamente, devendo se analisar, caso a caso, se presente dolo eventual ou culpa.

Isso porque o médico possui um dever especial de garantia, decorrente da ordem jurídica, possuindo a obrigação de agir para salvaguardar o bem jurídico tutelado14. Na hipótese de não se dar resultado lesivo, mas tendo havido sujeição da vítima à exposição de sua vida ou saúde a perigo direto e iminente, o crime será o do art. 132 do Código Penal. Caso duas ou mais pessoas recusem socorro ao necessitado, respondem todas pelo crime, segundo a regra geral. Ou seja, caso não possuam liame subjetivo, cada qual será autora do delito; caso contrário, admite-se tanto coautoria como participação, conforme referido a seguir. Não obstante, se qualquer das pessoas presentes prestar o socorro, exime-se a responsabilidade também das outras. Existe, no caso, uma obrigação solidária15. Na dicção do artigo 135 do Codex, sujeito passivo da omissão de socorro será: a) criança abandonada ou extraviada; b) pessoa inválida ou ferida, ao desamparo; e c) qualquer pessoa em grave e iminente perigo. Cuida-se de enumeração taxativa. A compreensão de “criança” enseja interpretações para a sua delimitação. A vertente majoritária, com razão, segue o parâmetro do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), sendo criança o ser humano com doze anos incompletos16. Criança abandonada é, assim, a pessoa menor de doze anos propositadamente exposta ou deixada em local sem vigilância, relegada ao desamparo. Criança extraviada, a seu turno, é a pessoa menor de doze anos perdida, incapaz de retornar por conta própria a sua residência ou de encontrar local de proteção. Tais menções no artigo 135 não se confundem com os tipos dos artigos 133 e 134, visto que nestes últimos é o sujeito ativo quem abandona a criança, enquanto que, na omissão de socorro, o indivíduo já encontra a criança em tal situação17. Pessoa inválida ao desamparo é o indivíduo física ou mentalmente comprometido, por qualquer razão, incapaz de se defender. Já pessoa ferida ao desamparo é aquela que sofreu lesão corporal, acidentalmente ou não, e que não consegue afastar sozinha a fonte do perigo, necessitando de auxílio. Finalmente, pode ser sujeito passivo do crime qualquer pessoa em grave e iminente perigo, ou seja, o indivíduo que se encontre na iminência de sofrer séria afetação em sua saúde ou obliteração de sua vida. Em outras palavras, o grave e iminente perigo diz respeito a uma situação em que o perigo está prestes a ocorrer, sendo este suficiente para pôr em risco a saúde e a vida humana. Muñoz Conde18 leciona que a gravidade do perigo depende tanto da natureza do mal que paira sobre o sujeito como do grau de probabilidade e iminência. Hungria19 considera que nos casos de “criança abandonada ou extraviada” e “pessoa inválida ou ferida, ao desamparo” há uma presunção absoluta de perigo; já a situação de “grave e iminente perigo” precisaria ser demonstrada in concreto.

12.4. Tipicidade objetiva e subjetiva Os crimes comissivos – caso da maioria dos delitos – traduzem a ideia de vedação de condutas indesejadas por parte da norma penal, a qual denota, assim, cunho proibitivo. Os crimes omissivos, a seu turno, conformam a determinação de um dever de agir por parte da norma, que é, dessa feita, imperativa. Em outros termos, no caso dos delitos omissivos, a norma penal mostra-se mandamental, determinando a adoção de comportamentos desejados pelo ordenamento jurídico20. Referido comando, não obstante, pode se voltar à generalidade dos indivíduos, isto é, a toda e qualquer pessoa, caso dos crimes omissivos próprios, também chamados de puros, ou a pessoas específicas, caso dos crimes omissivos impróprios, impuros, ou comissivos por omissão. No primeiro caso, ou seja, para os crimes omissivos puros, deve haver previsão, caso a caso, de tipos penais específicos, como a omissão de socorro (art. 135), a omissão de notificação de doença

(art. 269) etc. Já quanto aos crimes omissivos impuros, cuidam-se, em realidade, de crimes de resultado, como homicídio (art. 121) ou lesão corporal (art. 129), previstos, portanto, em normas proibitivas, porém imputáveis a alguém a título de omissão por meio do regramento de reenvio constante do art. 13, § 2º, do Código Penal. O tipo do artigo 135 do Código Penal apresenta um crime omissivo puro com dois núcleos: a) deixar de prestar assistência, desde que ausente o risco pessoal, e b) não pedir o socorro da autoridade pública. O primeiro núcleo, tido como forma direta, ou imediata, de cometer o delito, traz a ideia de uma conduta omissiva em que um indivíduo não ajuda outrem a sair de uma situação de perigo, sendo que poderia fazê-lo diante das circunstâncias. O segundo, forma indireta, ou mediata, trata do caso em que a autoridade pública não é comunicada da situação de perigo existente. Entende-se que a forma indireta é subsidiária, não alternativa, de modo que o pedido de socorro à autoridade somente afasta o crime se não houver possibilidade de auxílio direto, como nos casos em que há risco pessoal ou quando a espera não aumentar as chances da ocorrência de danos à vítima21. Dessa maneira, nota-se que não fica a critério do indivíduo escolher entre prestar o socorro ou comunicar a autoridade pública. Sendo possível prestar pessoalmente o socorro, deverá fazê-lo. Assim, por exemplo, se alguém visualiza outrem se afogando, só poderá cogitar da busca de auxílio do socorrista se não souber nadar ou estiver impedido por qualquer razão, como estar com a perna fraturada ou gravemente enfermo. Observa-se que, com o tipo de omissão de socorro, há a incriminação da abstenção de uma conduta socialmente útil, de modo que um dever ético passou a ser um dever jurídico22. A expressão “quando possível fazê-lo sem risco pessoal” traduz a noção de que não se pode exigir que uma pessoa coloque em risco sua vida para salvar a de outrem, não se exigindo atos heroicos. O “risco pessoal” diz respeito à integridade física da pessoa, não a prejuízos de ordem material ou moral, por exemplo23. A ausência de risco pessoal aplica-se não só no caso da assistência direta, mas também na exigência de pedir socorro à autoridade pública24. No que tange à autoridade pública, tal expressão detém sentido de qualquer agente estatal com funções de intervenção na situação de perigo, abrangendo não apenas policiais como também bombeiros, guardas de trânsito, salva-vidas etc.25 Se o perigo foi provocado pelo próprio agente que se omite, este responderá não por omissão de socorro, mas por outro delito, uma vez que passa à condição de garantidor pela ingerência (art. 13, § 2º, c)26. O elemento subjetivo é o dolo de perigo, seja ele direto, seja eventual. Não há previsão da modalidade culposa. Bitencourt27 admite, com acerto, ser possível coautoria ou participação em sentido estrito no delito em análise, de forma que “se, por exemplo, duas ou mais pessoas presentes recusam-se a prestar socorro ao periclitante, respondem todas pelo crime, individualmente, segundo a regra geral. No entanto, se deliberarem, umas anuindo à vontade das outras, todas responderão pelo mesmo crime, mas em coautoria, em razão do vínculo subjetivo. Se alguém, porém, que não está no local, mas por telefone, sugere, induz ou instiga a quem está em condições de socorrer que não o faça, responderá também pelo crime, mas na condição de partícipe”.

12.5. Consumação e tentativa Consuma-se o crime no lugar e quando a atividade devida deveria ter sido realizada, ou seja, onde e quando o sujeito ativo deveria agir e não o fez28. Não há possibilidade de tentativa no crime de omissão de socorro, de modo que, ultrapassado o momento de agir, consuma-se o crime e, ainda havendo possibilidade de ação, não resta

configurado o delito29.

12.6. Causas de aumento de pena O parágrafo único do artigo 135 prevê causa de aumento de pena de metade se a omissão de socorro resulta em lesão corporal de natureza grave. Ocorrendo o resultado morte, a pena é triplicada. O resultado de lesão corporal grave ou morte deve decorrer de culpa, visto que, havendo o dolo de dano, desconfigura-se o delito previsto no artigo 135, sendo possível o reconhecimento de outro tipo penal, como os dos artigos 121 e 129 do Código Penal. Dessa forma, as causas de aumento em questão são preterdolosas.

12.7. Pena e ação penal A figura penal de omissão de socorro é sancionada, alternativamente, com pena de detenção, de um a seis meses, ou pena de multa. Há causa de aumento de pena de metade, se sobrevém à vítima lesão corporal de natureza grave, e triplicada, na hipótese de morte (art. 135, parágrafo único). A ação penal é pública incondicionada. Trata-se de infração penal de menor potencial ofensivo, razão pela qual seu processo e julgamento compete ao Juizado Especial Criminal. Conforme o art. 89 da Lei 9.099/1995, é possível que haja a suspensão condicional do processo, exceto em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 41 da Lei nº 11.340/2006).

FOOTNOTES 1

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. V, p. 428.

2

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 428.

3

Na observação de Fragoso, “desprezou, assim, o exemplo do CP italiano de 1889 (código Zanardelli), que, em seu art. 389, já continha ampla fórmula desse crime”. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988, v. I, p. 191.

4

“Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor: Penas – detenção, de dois a quatro anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.”

5

“Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor: Penas – detenção, de seis meses a

dois anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.”

6

“Art. 304. Deixar o condutor do veículo, na ocasião do acidente, de prestar imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública: Penas – detenção, de seis meses a um ano, ou multa, se o fato não constituir elemento de crime mais grave. Parágrafo único. Incide nas penas previstas neste artigo o condutor do veículo, ainda que a sua omissão seja suprida por terceiros ou que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves.”

7

HUNGRIA, Nélson; REALE JÚNIOR, Miguel; SOUZA, Luciano Anderson. Comentários ao Código Penal: Dec.Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2018, v. V, p. 455 e ss.

8

HUNGRIA, Nélson; REALE JÚNIOR, Miguel; SOUZA, Luciano Anderson. Comentários ao..., cit., p. 457.

9

“Art. 97. Deixar de prestar assistência ao idoso, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, em situação de iminente perigo, ou recusar, retardar ou dificultar sua assistência à saúde, sem justa causa, ou não pedir, nesses casos, o socorro de autoridade pública: Pena – detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.”

10

Nas palavras de Fragoso, há a tutela jurídica do “interesse relativo à segurança da pessoa, no que concerne à vida e à saúde”. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 192.

11

Por exemplo, NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 98; BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa. Rio de Janeiro: Rio, 1979, p. 234; COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva,1992, v. 2, p. 40; COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 2008, v. 4, p. 446. Divergindo desse posicionamento, Nucci, e.g., destaca que não é apenas “um problema de solidariedade humana que este crime quer resolver, mas sim uma situação concreta de perigo à vida ou à saúde das pessoas”. Assim, não considera que a solidariedade humana seja objeto da proteção do tipo da omissão de socorro. NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte especial – Arts. 121 a 212 do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2018, v. 2, p. 188.

12

GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte especial, crimes contra a pessoa. Belo Horizonte: Editora D’ Plácido, 2017, p. 226.

13

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de..., cit., p. 189.

14

Nesse sentido, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 1, p. 314.

15

Nesse âmbito, por tratar-se de obrigação solidária, se a intervenção for insuficiente para lograr êxito, os outros continuam obrigados a agir, do contrário, cometerão o crime. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 433. Em sentido semelhante, v.g., BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 313.

16

Em posicionamento divergente, Bitencourt, e.g., considera que “a solução deverá continuar sendo casuística e que será criança, para efeitos penais, toda aquela que, concretamente, for incapaz de autodefesa”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 315. Para Nucci, não se enquadra no tipo penal em questão a criança que vive habitualmente na rua. Cf. NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de..., cit., pp. 187-188.

17

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 315.

18

MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal: parte especial. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2010, p. 340.

19

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 430. Nucci, por sua vez, considera que em quaisquer das situações deve ser demonstrado o perigo concreto. Cf. NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de..., cit., pp. 190191.

20

Sobre o tema, vide SOUZA, Luciano Anderson de. Direito penal: parte geral. São Paulo: Ed. RT, 2019, v. 1, p. 219 e ss.

21

GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 233. No mesmo sentido, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de...,

cit., pp. 194-195.

22

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 429.

23

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 433; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 320.

24

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, pp. 319-320.

25

Nas palavras de Galvão, o termo “não restringe o atendimento aos órgãos incumbidos de preservar o direito fundamental do cidadão à segurança pública (art. 144 da CR/88). Qualquer agente público que exerça funções de proteção a pessoas pode ser acionado para ajudar a pessoa que se encontra em situação de perigo”. GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 230.

26

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 318.

27

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 320. Em sentido contrário, REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2018, v. II, p. 145.

28

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., v. 2, p. 322.

29

Em contrapartida, Galvão considera ser possível a tentativa “quando a omissão puder prolongar-se no tempo sem que ocorra alteração na situação de perigo”. GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 235.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-13.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 13. CONDICIONAMENTO DE ATENDIMENTO MÉDICO-HOSPITALAR EMERGENCIAL (ART. 135-A)

Capítulo 13. Condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial (art. 135-A) Condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial Art. 135-A. Exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médicohospitalar emergencial: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte.

13.1. Considerações iniciais O crime de condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial foi incluído no Código Penal pela Lei nº 12.653/2012, produzida sob influxo midiático em decorrência da morte de integrante do governo federal, o qual, no início daquele ano, ao sofrer infarto agudo do miocárdio em Brasília, fora vítima de recusa de atendimento, então condicionado à apresentação de cheque caução. Parcela da doutrina pontua que se trata de delito atentatório ao princípio da intervenção mínima, seja porque o tema já se mostrava tutelado por outros ramos jurídicos – Direito Administrativo1 e Direito Civil2 –, seja porque sua incidência poderia ser suficientemente abarcada pelo crime de omissão de socorro3. Destaque-se que a referida legislação especial, além de trazer o novo tipo penal, prevê em seu artigo 2º a obrigação de o estabelecimento de saúde que realize atendimento médico-hospitalar emergencial afixar, em local visível, cartaz ou equivalente, informando sobre a existência do delito previsto no artigo 135-A do Código Penal4. Bitencourt5 considera tratar-se o delito em análise de uma espécie sui generis de omissão de socorro condicionada, lecionando que, na hipótese descrita, ocorre uma omissão (de socorro) seguida de uma comissão (exigências de garantias e formalidades), resultando criminalizado, contudo, somente o segundo momento, isto é, a exigência da condição imposta para o atendimento.

13.2. Objetividade jurídica Protege-se a saúde e a vida do indivíduo.

13.3. Sujeitos do delito Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (crime comum), desde que tenha possibilidade de condicionar o atendimento emergencial às hipóteses previstas no tipo – o que, ressalte-se, não é uma qualidade pessoal, mas uma circunstância fática.

Dessarte, o sujeito ativo deve deter o poder de obstar o referido atendimento, caso não seja satisfeita a condição imposta6. Em termos concretos, pode ser o atendente, recepcionista, enfermeiro, médico, residente, estagiário etc.7 O crime admite tanto coautoria como participação. Bitencourt8 não considera que o funcionário administrativo, como o encarregado ou atendente, o qual cumpre ordem dada pela direção, possa figurar como coautor, de modo que este não passaria de longa manus de quem detém o poder de decisão, ou seja, daquele que possui o domínio do fato. Assim, para o autor, tal funcionário seria mero executor ou, no máximo, mero partícipe. Qualquer pessoa pode ser sujeito passivo do crime, não necessariamente quem necessita do atendimento emergencial, visto que a vítima é o indivíduo de quem se exige a garantia que condiciona o atendimento emergencial médico-hospitalar, seja o próprio paciente, um familiar, seja um terceiro acompanhante9.

13.4. Tipicidade objetiva e subjetiva O verbo núcleo do tipo é “exigir”, que traz o sentido de obrigar, ordenar, coagir. Dessa forma, há a imposição de uma condição para que seja efetuado o atendimento emergencial. Não incide o delito em estudo caso a exigência seja efetuada após o socorro ser prestado. O tipo visa coibir condutas que prorroguem o socorro ao indivíduo, que tem sua saúde e vida em risco por conta da demora. As condições mencionadas pelo artigo 135-A do Codex são a) cheque caução, nota promissória ou qualquer garantia; e b) preenchimento prévio de formulários administrativos. Cheque caução é termo representativo do título de crédito cheque, que é uma ordem de pagamento à vista, aqui utilizado como uma garantia de pagamento futuro. Nota promissória é um título cambiário concernente à assunção da obrigação direta e principal de pagar o valor correspondente no título. A expressão “qualquer garantia” permite uma maior abrangência do tipo penal, de modo que poderá se enquadrar na configuração do delito qualquer documento representativo de reconhecimento de dívida, e que, posteriormente, possa fundamentar uma ação de cobrança ou de execução10. Referido termo já seria suficiente na construção legislativa, pois abarca os anteriores (cheque caução e nota promissória), que não deixam de ser formas de garantias. Igualmente, ocorre o crime se há condicionamento do atendimento a preenchimento de formulários, aspecto burocrático, em detrimento do socorro à vítima. Contudo, ressalta-se que não perfaz o tipo a solicitação de informações relevantes para o próprio atendimento, conduta de salvaguarda do bem jurídico tutelado, não de sua obliteração. No tocante à expressão “atendimento médico-hospitalar emergencial”, o uso da palavra “médicohospitalar” indica que o tipo se refere ao atendimento realizado por médico no ambiente hospitalar, ou seja, ambas as características devem coexistir, não bastando apenas o atendimento por profissional da medicina que não se encontra em hospital, ou o atendimento feito em hospital, mas sem a orientação de um médico11. Embora a Lei nº 9.656/1998 distinga as situações de emergência das de urgência, no sentido da primeira traduzir casos de maior gravidade, Bitencourt12 julga ser melhor considerar as palavras “urgência” e “emergência” como sinônimas, de maneira que, além do atendimento emergencial, o tipo deve abarcar o atendimento urgente, sendo aquele que não pode ser adiado. A doutrina majoritária reconhece que deve haver um perigo concreto à saúde e à vida do indivíduo que necessita do socorro, o que deflui da redação do tipo, em face do óbice que a exigência ilícita representa diante da necessidade de um “atendimento médico-hospitalar emergencial”. Dessa feita, deve ser aferido um perigo real na hipótese, pois, do contrário, não há situação de emergência13.

Trata-se, então, de crime de perigo concreto, comissivo, unissubjetivo, instantâneo e unissubsistente. Ademais, possui a figura do art. 135-A forma vinculada, pois o comportamento do agente dirige-se à exigência de garantia, bem como ao preenchimento prévio de formulários administrativos14. O elemento subjetivo do crime de condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial é o dolo direto, sendo incabível cogitar-se de dolo eventual. Ademais, não há elemento subjetivo especial do tipo. Por fim, inexiste previsão de modalidade culposa.

13.5. Consumação e tentativa Consuma-se o crime quando é feita a exigência da garantia, bem como do preenchimento prévio de formulário administrativo, antes do atendimento emergencial que a vítima necessita. Trata-se, então, de crime formal. A efetiva entrega da garantia e o preenchimento do formulário são tidos como exaurimento do crime. Em tese, é possível a tentativa (conatus), uma vez que há divisibilidade do iter criminis, embora dificilmente isso se desvele factível15.

13.6. Causas de aumento de pena O parágrafo único do artigo 135-A prevê resultados que majoram a sanção aplicada. Dessarte, a pena pode ser aumentada até a metade se ocorre o resultado de lesão corporal grave. Havendo o resultado morte, a pena pode ser aumentada até o triplo. Cumpre salientar que será preciso demonstrar o nexo de causalidade entre o condicionamento do atendimento e os referidos resultados naturalísticos. Ainda, tais resultados devem ter ocorrido por culpa, sendo as causas de aumento preterdolosas. Do contrário, isto é, havendo dolo quanto ao resultado lesivo, não se perfaz o tipo do art. 135-A, incidindo a conduta em outra figura, como as do art. 129 e 121 do Código Penal. Observe-se que o aumento previsto não é fixo, como na omissão de socorro. Há a previsão de um teto caso a majorante verifique-se no caso concreto, sendo o patamar mínimo o de 1/6.

13.7. Pena e ação penal A sanção prevista para o crime do artigo 135-A do Código Penal é de detenção, de três meses a um ano, cumulada com multa. Há previsão de causa de aumento de pena até o dobro, se ocorrer o resultado de lesão corporal grave, ou até o triplo, se houver o resultado morte. A ação penal é pública incondicionada. Trata-se de infração penal de menor potencial ofensivo, razão pela qual seu processo e julgamento compete ao Juizado Especial Criminal, exceto no caso de haver resultado morte. Conforme o art. 89 da Lei nº 9.099/1995, é possível que haja a suspensão condicional do processo, salvo em situações que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 41 da Lei nº 11.340/2006).

FOOTNOTES 1

Resolução Normativa nº 44, de 24 de julho de 2003, da Agência Nacional de Saúde Suplementar, em seu

art. 1º: “fica vedada, em qualquer situação, a exigência, por parte dos prestadores de serviços contratados, credenciados, cooperados ou referenciados das Operadoras de Planos de Assistência à Saúde e Seguradoras Especializadas em Saúde, de caução, depósito de qualquer natureza, nota promissória ou quaisquer outros títulos de crédito, no ato ou anteriormente à prestação do serviço”.

2

Art. 171, inciso II, do Código Civil, que dispõe sobre a anulabilidade de negócio decorrente de estado de perigo.

3

Frisando o primeiro aspecto, e.g., MASSON, Cleber. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2019, v. 2, p. 146, enquanto o último, v.g., NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito penal: parte especial – Arts. 121 a 212 do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2018, v. 2, pp. 192-193. Em sentido oposto, adotando um posicionamento político-criminal favorável à edição da presente incriminação, uma vez que os ramos extrapenais se mostraram insuficientes, vide BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 326.

4

A esse respeito, Nucci considera tratar-se de uma ilogicidade afrontosa, que aponta para o caminho de um direito penal “puramente simbólico, quando a ameaça de punição passa a ser o real objetivo da norma”. NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de..., cit., p. 195.

5

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., p. 325.

6

GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte especial, crimes contra a pessoa. Belo Horizonte: Editora D’ Plácido, 2017, p. 239.

7

REGIS PRADO, Luiz. Tratado de direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, v. 4, p. 149.

8

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 327.

9

E.g., BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 327; GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 239.

10

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 328.

11

GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 242.

12

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 329.

13

Em sentido oposto, e.g., Reale Júnior entende que o crime é de perigo abstrato. HUNGRIA, Nélson; REALE JÚNIOR, Miguel; SOUZA, Luciano Anderson. Comentários ao Código Penal: Dec.-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2018, v. V, p. 441.

14

Nesse sentido, e.g., BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 329, e GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 238. Já, v.g., NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de..., cit., p. 193, considera ser o delito de forma livre.

15

Galvão admite tentativa diante da possibilidade de fracionamento da execução do crime, exemplificando com o caso de uma exigência verbal, em que o sujeito ativo foi interrompido antes de conseguir se expressar completamente. GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 245. Não parece assistir razão ao autor quanto ao exemplo, uma vez que se o agente não pôde se expressar, não há qualquer exigência. Teoricamente, seria possível reconhecer a tentativa na exigência feita por escrito que se extravie, muito embora isso se denote com pouco realismo.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-14.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 14. MAUS-TRATOS (ART. 136)

Capítulo 14. Maus-tratos (art. 136) Maus-tratos Art. 136 – Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina: Pena – detenção, de dois meses a um ano, ou multa. § 1º – Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de um a quatro anos. § 2º – Se resulta a morte: Pena – reclusão, de quatro a doze anos. § 3º – Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (catorze) anos.

14.1. Considerações iniciais Na Antiguidade romana, o pater familias detinha grande poder sobre sua família, inclusive, nos primórdios, o absoluto de vida e morte, sendo desconhecida então a figura de maus-tratos. Posteriormente, o cristianismo abrandou tal disciplina e, inclusive, na Idade Média, apesar de permitido o castigo corporal, este não poderia causar ferimentos graves nem a morte. Na codificação do século XIX, os castigos só eram puníveis se culminassem em lesão corporal ou morte1. O Código sardo de 1859 foi o primeiro a cuidar dos maus-tratos de maneira autônoma. Ao depois, o Código italiano de 1889, a primeira codificação penal da Itália unida, tratou separadamente dos crimes de abuso de meios de correção e maus-tratos na parte referente aos crimes contra pessoa. Por fim, o Código Rocco, isto é, a legislação penal italiana fascista da década de 1930, manteve tal distinção, mas transportou a figura em destaque para os crimes contra a família2. No caso brasileiro, o Código de 1830 não trazia a figura de maus-tratos, pelo contrário, estabelecia como justificativa de conduta o castigo moderado de pais em relação aos filhos, de senhores a seus escravos e dos mestres a seus discípulos. Tampouco previu tal incriminação o Código Penal Republicano (1890). A primeira disciplina penal nacional quanto ao tema veio apenas com o Código de Menores de 1927, tratando de quatro figuras diferentes, tendo como sujeito passivo menor de 18 anos. Esses tipos foram todos englobados pelo artigo 136 do Código Penal de 1940, que possui maior amplitude no que tange às possíveis vítimas. Na técnica legislativa do diploma ainda em vigor, trata-se da última previsão entre os crimes do Capítulo III (“da periclitação da vida e da saúde”) do Título I (“dos crimes contra a pessoa”) da Parte

Especial. Desde a entrada em vigor do Código de 1940, o art. 136 sofreu apenas uma modificação, mais precisamente, um acréscimo de parágrafo, promovido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), relativo a uma causa de aumento de pena de 1/3 na hipótese da vítima ser pessoa menor de catorze anos. Cumpre salientar, ademais, que o artigo 993 do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003) prevê uma figura especial de maus-tratos, na hipótese da vítima ser pessoa idosa, trazendo, além da privação de alimentos e cuidados indispensáveis e da sujeição a trabalho excessivo ou inadequado, a submissão a condições desumanas ou degradantes.

14.2. Objetividade jurídica Protege-se a incolumidade fisiopsíquica e a vida do ser humano, sobretudo aquele que está submetido a certa relação de subordinação.

14.3. Sujeitos do delito Sujeito ativo é a pessoa que detém com o sujeito passivo vínculo de autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia. Por conseguinte, é necessária a existência de uma relação jurídica, ou seja, um vínculo legal ou obrigacional, entre o agente e a vítima, importando o crime na violação de um dever preexistente4. Não havendo tal relação, não incide o tipo penal constante do artigo 136, mas sim, possivelmente, o insculpido pelo artigo 132 do Código Penal (perigo para a vida ou saúde de outrem). Em razão de citadas características exigidas do sujeito ativo do delito, trata-se de crime próprio. Sujeito passivo é qualquer pessoa subordinada ao sujeito ativo por conta da relação de autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia. Exemplos de autores seriam, então, os pais em relações aos filhos, os professores relativamente aos seus alunos, os enfermeiros em face de seus pacientes, os carcereiros no tocante aos detentos e os tutores e os curadores com referência, respectivamente, a seus pupilos e curatelados. Cumpre salientar que a mulher não pode ser sujeito passivo desse crime com fundamento em seu vínculo com o cônjuge ou o companheiro, visto que não há relação de subordinação entre eles. No caso de agressão à esposa ou à companheira por parte do marido ou do companheiro, incide o delito de lesão corporal leve com violência doméstica (art. 129, § 9º, do Código Penal). No caso de produção de lesões graves ou gravíssimas, bem como de simples exposição a perigo de sua vida ou saúde, incidem as figuras penais respectivas, em qualquer caso com o reconhecimento da agravante genérica prevista no art. 61, inciso II, e (crime contra cônjuge) ou f (delito cometido com violência contra a mulher), a depender das circunstâncias concretas.

14.4. Tipicidade objetiva e subjetiva O tipo penal de maus-tratos descreve a conduta de “expor a perigo a vida ou a saúde” de pessoa que guarda relação especial com o sujeito ativo. Desse modo, o sujeito ativo adota um comportamento que é capaz de colocar o sujeito passivo em situação de risco à sua saúde e vida, sendo que deve existir entre autor e ofendido uma relação de “autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia”. Essa relação de subordinação entre os sujeitos ativo e passivo denota-se como uma elementar típica especializante, trazendo, como visto, a característica de delito próprio, dado que sua ausência afasta o reconhecimento do crime de maus-tratos5. As noções de autoridade,guarda e vigilância são as mesmas utilizadas no artigo 133 do Código Penal (abandono de incapaz)6. Dessa maneira, autoridade liga-se a um vínculo de poder de uma pessoa em relação a outra, o que pode decorrer de uma disciplina de direito público ou privado. Guarda refere-se a pessoas que precisam de assistência mais duradoura que o cuidado, como, e.g.,

os filhos menores em face de seus pais. Por fim, vigilância consiste em assistência acauteladora, de menor rigor que a guarda, v.g., a do guia alpino com referência aos turistas ou a do instrutor de mergulho em face de seus alunos. A relação de subordinação (de autoridade, guarda ou vigilância) deve se dar necessariamente com o objetivo de educação, ensino, tratamento ou custódia. Educação diz respeito à atividade docente destinada a aperfeiçoar, sob o aspecto intelectual, moral, técnico ou profissional, a capacidade do indivíduo; ensino refere-se à transmissão de conhecimentos culturais; tratamento é o esforço realizado com fins de curar moléstia, bem como de prover a subsistência da pessoa; e, por fim, custódia é o cerceamento da liberdade de alguém para fim autorizado em lei7. Demais disso, de se notar que o crime de maus-tratos possui ação vinculada. Em outras palavras, o delito somente se perfaz se a exposição a perigo da vida e da saúde da vítima for realizada por uma de determinadas maneiras especificadas de modo alternativo no tipo. Dessa forma, os meios de execução previstos para a prática do delito contra a vítima são: a) privá-la de alimentação ou cuidados indispensáveis; b) sujeitá-la a trabalho excessivo ou inadequado; ou c) abusar de meios de correção ou disciplina. A privação de alimentos e de cuidados indispensáveis aponta para uma modalidade omissiva do crime, enquanto os demais casos denotam comportamentos comissivos. Privação de alimentos corresponde à dolosa falta de fornecimento de comida ao sujeito passivo. Na lição de Hungria8, basta que “a vítima seja privada da alimentação estritamente suficiente, de modo a fazer periclitar a sua vida ou saúde”, isto é, não é necessário que haja uma privação total de alimentos para a configuração do delito. A privação de cuidados indispensáveis liga-se ao fato de o sujeito ativo não prestar cuidados mínimos para a preservação da saúde e vida do indivíduo, como os concernentes a cuidados médicos, asseio, agasalho etc. O trabalho excessivo é aquele superior às forças ou às capacidades da vítima, bem como aquele que causa cansaço além do suportável. Já o trabalho inadequado é o que não condiz com as aptidões ou condições físicas do indivíduo, de acordo com suas características (idade, desenvolvimento físico etc.)9. Em qualquer caso, perceba-se que há um descompasso na imposição laboral, que culmina por colocar em risco a saúde ou vida da vítima. O abuso dos meios de correção ou disciplina diz respeito à “inflição de castigos exorbitantes, o mau uso ou o uso excessivo, aberrante, do jus corrigendi ou disciplinandi”10. Por conseguinte, incrimina-se não o direito de correção ou de disciplina em si mesmo, mas sim o seu uso imoderado, que arrisca a saúde e vida da pessoa. Em síntese, o que a lei penal veda são os castigos imoderados, não representando crime, a princípio, as palmadas leves ou chineladas dadas pelos pais em seus filhos crianças. Destaca Bitencourt11 que os genitores possuem limites de atribuições superiores aos outros possíveis autores do crime de maus-tratos, de modo que a conduta de um genitor que resultasse em hematomas ou escoriações sem pôr em risco o menor, não configuraria tal delito; contudo, a mesma ação praticada por outro possível sujeito ativo, como tutor e professor, seria capaz de configurar o tipo do art. 136. De qualquer forma, observe-se que o fato de inexistir reconhecimento de crime nos castigos moderados aplicados pelos genitores em seus filhos não significa plena licitude da conduta, uma vez que o assunto é disciplinado nos arts. 18-A12 e 18-B13 do Estatuto da Criança e do Adolescente, introduzidos pela chamada Lei da Palmada (Lei nº 13.010/2014), estabelecendo-se consequências cíveis e administrativas. Demais disso, insta notar que, a depender do grau de inflição de sofrimento físico ou mental na vítima, independentemente de quem seja o sujeito ativo, pode caracterizar crime de tortura (art. 1º, inciso II, da Lei nº 9.455/199714).

No delito de maus-tratos, o elemento subjetivo é o dolo de perigo, seja direto, seja eventual15. Não há previsão de modalidade culposa.

14.5.Consumação e tentativa Consuma-se o crime do art. 136 do Código Penal com a exposição a perigo concreto, efetivo, do bem jurídico tutelado, de modo que a vítima tem sua saúde ou sua vida posta em risco. Para sua configuração, não é necessário que se constante um dano ao indivíduo, o qual, se ocorrente, pode, inclusive, ensejar o reconhecimento de outro delito, como lesão corporal ou homicídio. A depender da modalidade de prática da conduta, o delito será instantâneo ou permanente. As modalidades de privação de alimentos ou cuidados indispensáveis e sujeição a trabalho excessivo ou inadequado configuram crime permanente, enquanto as demais são instantâneas16. Admite-se a tentativa apenas na forma comissiva da prática do crime de maus-tratos. Considera-se não ser possível a tentativa na privação de alimentos ou cuidados essenciais por serem formas omissivas, as quais, ademais, exigem certa habitualidade.

14.6. Figuras qualificadas Os §§ 1º e 2º do artigo 136 trazem previsão de qualificadoras, quais sejam, se dos maus-tratos resulta a ocorrência do resultado lesão corporal grave ou morte, respectivamente. Tais resultados não podem estar abrangidos pelo dolo do agente, o que configuraria outro crime que não o de maus-tratos (lesão corporal de natureza grave ou gravíssima ou homicídio). Por consequência, vê-se que as formas qualificadas previstas são preterdolosas, havendo dolo nos maus-tratos e culpa no resultado lesivo de lesão corporal grave ou morte. Caso se verifique o resultado de lesão corporal leve, a incidência é do caput do artigo 136 do Código Penal, e não da lesão corporal culposa, que possui sanção inferior aos maus-tratos17. Finalmente, note-se que se a vítima sofre lesão corporal de natureza grave, cuja sanção é de reclusão, o juiz pode aplicar, como efeito da condenação, a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela (art. 92, inciso II, do Código Penal18).

14.7. Causa de aumento de pena Como mencionado, o Estatuto da Criança e do Adolescente acrescentou ao art. 136 do Código Penal o § 3º, prevendo majorante em patamar fixo de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de catorze anos. Cumpre salientar que o sujeito ativo deve ter consciência de tal condição da vítima, pois, do contrário, o erro de tipo exclui o dolo, não podendo incidir a majorante. Uma vez que o legislador insculpiu a presente causa de aumento de pena para o crime de maustratos, não se aplica a esse a agravante genérica prevista no art. 61, inciso II, h, do Código Penal, referente a crimes cometidos contra criança, sob pena de bis in idem.

14.8. Pena e ação penal O crime de maus-tratos é sancionado alternativamente com pena de detenção, de dois meses a um ano, ou multa (art. 136, caput). Há previsão de figuras qualificadas: se há o resultado de lesão corporal grave, a pena é de reclusão, de um a quatro anos (art. 136, § 1º); se ocorre o resultado morte, a pena é de reclusão, de quatro a doze anos (art. 136, § 2º). Existe, ademais, causa de aumento de pena de um terço, se o crime é praticado contra menor de catorze anos.

A ação penal é pública incondicionada. A figura simples, ou básica (art. 136, caput), exclusivamente, trata-se de infração penal de menor potencial ofensivo, razão pela qual seu processo e julgamento compete ao Juizado Especial Criminal. O tipo básico e a qualificadora do art. 136, § 1º, admitem a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/1995), exceto em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 41 da Lei nº 11.340/2006).

FOOTNOTES 1

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. V, p. 435.

2

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 436; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988, v. I, p. 199.

3

“Art. 99. Expor a perigo a integridade e a saúde, física ou psíquica, do idoso, submetendo-o a condições desumanas ou degradantes ou privando-o de alimentos e cuidados indispensáveis, quando obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-o a trabalho excessivo ou inadequado: Pena – detenção de 2 (dois) meses a 1 (um) ano e multa. § 1º Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos. § 2º Se resulta a morte: Pena – reclusão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos.”

4

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 200.

5

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 335.

6

Tratado no Capítulo 10 da presente obra.

7

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., pp. 438-439.

8

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 439.

9

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 336.

10

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 439.

11

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., pp. 336-337.

12

“Art. 18-A. A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educálos ou protegê-los. Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se: I – castigo físico: ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em: a) sofrimento físico; ou b) lesão; II – tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança ou ao adolescente que: a) humilhe; ou b) ameace gravemente; ou c) ridicularize.”

13

“Art. 18-B. Os pais, os integrantes da família ampliada, os responsáveis, os agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou qualquer pessoa encarregada de cuidar de crianças e de adolescentes, tratá-los, educá-los ou protegê-los que utilizarem castigo físico ou tratamento cruel ou degradante como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto estarão sujeitos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, às seguintes medidas, que serão aplicadas de acordo com a gravidade do caso: I – encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família; II – encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; III – encaminhamento a cursos ou programas de orientação; IV – obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado; V – advertência. Parágrafo único. As medidas previstas neste artigo serão aplicadas pelo Conselho Tutelar, sem prejuízo de outras providências legais.”

14

“Art. 1º Constitui crime de tortura: [...] II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena – reclusão, de dois a oito anos. [...]”.

15

Em posicionamento minoritário, considera-se que também haveria um especial fim de agir, de modo que o sujeito ativo orientar-se-ia pelo “fim específico de dar educação ou ensino, ou promover tratamento ou custódia.” GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte especial, crimes contra a pessoa. Belo Horizonte:

Editora D’ Plácido, 2017, p. 254. Todavia, não assiste razão a esse entendimento. O fim de educação, ensino, tratamento ou custódia referido no tipo atrela-se à posição de autoridade, guarda ou vigilância, delimitando tais condições, não se consubstanciando em elemento subjetivo da conduta proibida.

16

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 442. No mesmo sentido, e.g., BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 338, pontuando que, em regra, o abuso dos meios de correção ou disciplina configura crime instantâneo.

17

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 338.

18

Conforme a redação dada pela Lei nº 13.715/2018.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-15.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 15. RIXA (ART. 137)

Capítulo 15. Rixa (art. 137) Rixa Art. 137 – Participar de rixa, salvo para separar os contendores: Pena – detenção, de quinze dias a dois meses, ou multa. Parágrafo único – Se ocorre morte ou lesão corporal de natureza grave, aplica-se, pelo fato da participação na rixa, a pena de detenção, de seis meses a dois anos.

15.1. Considerações iniciais A rixa não era tratada como crime autônomo nas legislações antigas. O Direito Romano somente tratava da rixa se nela ocorresse um homicídio. Na Idade Média, a rixa também era referida apenas nos casos de morte, sendo predominante o princípio da solidariedade, de modo que, havendo incerteza da autoria do homicídio, aplicava-se uma pena extraordinária, menos gravosa que a do homicídio; assim, havia “uma transação de responsabilidade e de pena, baseada numa transação de prova”1. Com o movimento das codificações, foram adotados dois sistemas, o de homicídio e lesão corporal em rixa e o de participação em rixa2. O primeiro subdividia-se na forma da solidariedade e da cumplicidade correlativa. O segundo subdividia-se na forma da punibilidade da rixa em si mesma, quando ocorresse homicídio ou lesão corporal, e da punibilidade da rixa simples, havendo condição de maior punibilidade se ocorresse resultado letal ou lesivo, ressalvada a responsabilidade do autor de tais resultados. Os Códigos brasileiros de 1830 e 1890 não tratavam da rixa como crime autônomo nem mencionavam lesões corporais ou homicídios que poderiam ocorrer nela. Dessarte, foi o Código Penal de 1940 que introduziu, no art. 137, a rixa como figura autônoma no ordenamento brasileiro, permanecendo a redação legal inalterada desde então.

15.2. Objetividade jurídica Protege-se a incolumidade físico-psíquica do indivíduo, observando-se que, apesar de a descrição típica não se referir expressamente à vida ou à saúde, sua preocupação com tais bens jurídicos encontra-se implícita a punição da simples participação na rixa3. Na lição de Fragoso4, há proteção da segurança da pessoa física e, de forma secundária, da tranquilidade e da ordem pública.

15.3. Sujeitos do delito Qualquer pessoa pode figurar como autor (crime comum) ou vítima desse tipo penal, mas há a peculiaridade de aqueles que fazem parte da rixa serem, ao mesmo tempo, sujeitos ativo e passivo da infração. Não significa que o indivíduo agride a si próprio, mas que há agressões recíprocas,

isto é, contrapostas, de modo que cada rixoso é sujeito ativo da conduta que pratica em relação aos demais e sujeito passivo das ações dos demais rixosos5. Cuida-se de crime de concurso necessário, exigindo-se ao menos três rixosos para sua configuração6. Para a aferição de referido número mínimo, incluem-se os inimputáveis que tenham tomado parte da contenda7. Além de quem faz parte da briga, pode ser sujeito passivo terceiro atingido pela confusão generalizada característica da rixa.

15.4. Tipicidade objetiva e subjetiva O tipo penal fala em “participar de rixa”. A rixa é tida como uma briga entre três ou mais pessoas, visto que o conflito entre duas pessoas não é considerado suficiente para caracterizar a “situação de confusão e perigo, criada com uma luta generalizada e violenta”8. De mais a mais, o crime só existe por conta da inviabilidade de se distinguir quem agrediu quem em um tumulto generalizado, razão pela qual não haveria sentido lógico em conceber tal figura para dois agentes. É indispensável que haja violência física, não bastando a mera discussão ou altercação, por maior que seja a perturbação de ânimos ou a confusão criada9. A exigência de violência física, não obstante, não implica necessariamente que haja corpo a corpo, uma vez que os contendores podem se agredir à distância, com paus, pedras ou qualquer outro meio idôneo, como ocorre, por exemplo, entre torcidas organizadas10. A participação referida no tipo do artigo 137, indicativa de uma conduta comissiva, diz respeito ao indivíduo integrar diretamente a rixa, contribuindo para a instalação do conflito generalizado, por exemplo, desferindo golpes ou arremessando objetos, como paus e pedras. A rixa, apesar de ser crime de concurso necessário, admite a participação em sentido estrito, o que ocorre quando alguém induz, instiga ou auxilia a contenda, não se envolvendo diretamente com ela. Induzimento significa a criação de propósito inexistente, como no fornecimento da ideia de uma briga entre grupos rivais. Instigação é o reforço de um propósito já existente, como no estímulo em que haja a contenda por meio de mensagens em redes sociais. Por fim, o auxílio significa fornecimento de meios para a briga, como na entrega de paus e garrafas. O partícipe em sentido estrito deve ser, ao menos, uma quarta pessoa envolvida nos fatos, uma vez que, reitere-se, o número mínimo de rixosos há de ser três. Não incorre no delito aquele que intervém com o intuito de separar os envolvidos, dado que há ausência de ânimo de integrar a rixa. Contudo, se o interventor se exceder ao apartar a briga, poderá responder pelo crime. Admite-se que o crime seja cometido por omissão imprópria por quem está na posição de garantidor, como o caso do pai que vê filho menor participando de rixa e omite-se em relação a tal11. Do mesmo modo, e.g., um policial que poderia ter evitado o encontro de grupos rivais na saída de um estádio e propositadamente não o faz, esperando poder assistir a briga, responde pelo crime. Havendo a devida identificação de autoria, é possível o concurso material entre rixa e outro crime, como homicídio ou lesões corporais, mesmo em caso de rixa qualificada, pois “há uma duplicidade subjetiva do agente, isto é, age com duplo dolo, qual seja, o de participar na rixa e o de causar a lesão grave ou a morte de alguém”12. A rixa simulada não atrai a incidência do artigo 137 do Código Penal, não constituindo crime. Se de tal simulação ocorrer o resultado de lesão corporal ou morte, o autor deve responder pela modalidade culposa de lesão corporal ou homicídio, conforme o caso13. O elemento subjetivo é o dolo, direto ou eventual. Não há previsão da modalidade culposa.

Bitencourt14 admite a aplicação da legítima defesa para afastar o crime de rixa, pois não haveria nesse caso o animus rixandi, e, pelo mesmo motivo, reconhece que não há rixa em caso de legítima defesa putativa.

15.5. Consumação e tentativa Consuma-se o crime com o início do conflito entre os participantes da rixa, independentemente de qualquer resultado. Há uma presunção absoluta de perigo que é gerado pela existência da rixa15. Em outros termos, cuida-se de crime de perigo abstrato. A doutrina majoritária não admite tentativa no crime de rixa. Posicionamento minoritário, ao revés, entende que, em regra, não se admite a possibilidade de tentativa, uma vez que, em geral, os fatos se dão de improviso (ex improviso); no entanto, na rixa ex proposito, ou seja, a que é previamente combinada, seria possível a tentativa16. Sem razão o pensamento minoritário. Ou o indivíduo participa de rixa, e o crime se consuma, ou a contenda não se inicia, sendo o fato atípico. Há de se rememorar que atos preparatórios são impuníveis. Afirmar a atipicidade da simples combinação de uma rixa não significa que as autoridades nada devam fazer quando de sua ciência. A eventual intervenção policial para se evitar o delito quando se sabe da iminência da contenda, v.g., por manifestações nas redes sociais ou palavras de ordem proferidas na via pública em saídas de estádios, é mais do que desejada e função das autoridades responsáveis por zelar pela segurança pública. Todavia, frise-se, isso não implica reconhecimento do presente crime, o que, por outro lado, tampouco impede que outras infrações penais sejam investigadas (associação criminosa, apologia ao crime etc.).

15.6. Qualificadora O parágrafo único do artigo 137 prevê qualificadora se ocorre o resultado de lesão corporal de natureza grave ou morte. Não importa se tais resultados sobrevieram para pessoa que fez parte da rixa ou por terceiro estranho a ela, mas por ela atingido. Todos os que participaram da rixa respondem por sua forma qualificada, independentemente do reconhecimento da pessoa que causou a lesão grave ou morte, inclusive a pessoa que sofreu a lesão corporal grave, se esta também integrou a rixa. Hungria17 destaca que não se trata de responsabilidade objetiva, pois cada corrixante “contribuiu para criar e fomentar a situação de perigo, de que era previsível resultasse o evento morte ou lesão corporal grave. Nenhum deles, portanto, responde pelas consequências que não produziu, mas pelas consequências não imprevisíveis de uma situação ilícita, a que consciente e voluntariamente prestou sua cota de causalidade”. Segundo doutrina e jurisprudência dominantes, identificado o indivíduo que deu causa à lesão corporal grave ou à morte, esse responderá pela rixa qualificada (artigo 137, parágrafo único), em concurso material com o art. 129 ou 121 do Código Penal, de acordo com o caso concreto, enquanto os demais rixosos responderão por rixa qualificada18. Perceba-se, no entanto, quanto ao reconhecido autor da morte ou lesão, que essa compreensão se mostra equivocada, uma vez que representativa de bis in idem19. Destaca Fragoso20 que os resultados qualificadores devem ocorrer durante a rixa ou em consequência desta, dado que, se ocorridos anteriormente, seriam a causa, e não a consequência da rixa. Incide na rixa qualificada aquele que entrou na rixa e desistiu dela antes da ocorrência dos resultados qualificadores, mas não para aquele que ingressou na rixa após a ocorrência de tais resultados21.

De se notar que a pena da rixa qualificada é a mesma qualquer que seja o resultado agravador, lesão corporal de natureza grave ou morte: detenção, de seis meses a dois anos. Em termos de técnica penal, tal não se sinaliza adequado, não podendo o legislador nivelar abstratamente situações tão díspares.

15.7. Pena e ação penal A rixa, em sua modalidade simples (art. 137, caput), é sancionada alternativamente com pena de detenção, de quinze dias a dois meses, ou pena de multa. Ocorrendo o resultado de lesão corporal grave ou morte, pelo fato da participação na rixa, existe uma figura qualificada (art. 137, parágrafo único), cuja pena é de detenção, de seis meses a dois anos. A ação penal é pública incondicionada. Tanto a figura básica quanto a qualificada trata-se de infração penal de menor potencial ofensivo, razão pela qual seus respectivos processo e julgamento competem ao Juizado Especial Criminal. O tipo básico e a qualificadora admitem a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei nº 9.099/1995), exceto em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 41 da Lei nº 11.340/2006).

FOOTNOTES 1

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. VI, p. 7.

2

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., pp. 8-9. Na síntese de Fragoso, “os autores e os códigos antigos somente se ocupavam da rixa como ocasião do crime de lesões graves ou homicídio, seja para imputar a todos os partícipes o crime de homicídio ou lesões, seja para indagar quais os causadores das feridas que a vítima apresentava”. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988, v. I, p. 203.

3

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 341.

4

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 203.

5

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 342.

6

Leciona Fragoso que se trata de crime plurissubjetivo bilateral, visto que “todos os participantes são, ao mesmo tempo, sujeito ativo e passivo, uns em relação aos outros”. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 204.

7

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 205.

8

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 205. Hungria ressaltava que a rixa não deveria ser confundida com o crime de multidão, pois neste “há uma multiplicidade de agentes, espontaneamente organizada no sentido da ação comum contra pessoas ou coisas, e não para um ataque recíproco”. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 12.

9

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 206.

10

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 206.

11

GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte especial, crimes contra a pessoa. Belo Horizonte: Editora D’ Plácido, 2017, pp. 262-263.

12

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 343. Galvão considera que se o participante da rixa tinha a intenção de lesionar ou matar, deve ser reconhecido o concurso formal entre lesão corporal ou homicídio e rixa simples. GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 267.

13

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 344. Em sentido semelhante, HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 19.

14

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., pp. 345-346. No mesmo sentido, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 206; HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 19.

15

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 206.

16

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 345. Hungria admite a tentativa exemplificando com um caso de grupos esportivos que se desafiam para a briga, mas ao chegarem ao local combinado, são impedidos de brigarem pela polícia. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 26.

17

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 21.

18

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., pp. 346-347. Fragoso considera ser o caso de concurso formal o homicídio praticado durante a rixa. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 207.

19

Em sentido similar, REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2018, v. II, p. 164; JESUS, Damásio de. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 2004, v. 2, p. 198.

20

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 208.

21

GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 264.

© desta edição [2019]

2020 - 03 - 24

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 REVISTA DOS TRIBUNAIS

This PDF Contains CAPÍTULO 16. INTRODUÇÃO AOS CRIMES CONTRA A HONRA, p.RB-16.1 CAPÍTULO 17. CALÚNIA (ART. 138), p.RB-17.1 CAPÍTULO 18. DIFAMAÇÃO (ART. 139), p.RB-18.1 CAPÍTULO 19. INJÚRIA (ART. 140), p.RB-19.1 CAPÍTULO 20. DISPOSIÇÕES COMUNS E REGRAS ESPECIAIS NOS CRIMES CONTRA A HONRA (ARTS. 141 A 145), p.RB-20.1

2020 - 03 - 24

PAGE RB-16.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 16. INTRODUÇÃO AOS CRIMES CONTRA A HONRA

Capítulo 16. Introdução aos crimes contra a honra 16.1.Considerações iniciais Apesar de remontar à antiga proteção jurídica1, é ainda hoje controversa a conceituação de honra ou o erigimento dogmático dos exatos contornos de sua legitimação jurídica2. Em outras palavras, são diversas as contendas e as divergências em torno da questão, tanto entre os autores nacionais como estrangeiros. Se, por um lado, a doutrina penal não revela maior dificuldade ao justificar a tutela de interesses individuais palpáveis, como vida, integridade física ou patrimônio, por outro, quando se trata de bens etéreos, ainda que não supraindividuais, como no caso, verifica-se maior porosidade argumentativa. Não obstante, hodiernamente, o tema dos crimes contra a honra assume significativa relevância concreta em razão da própria conformação da sociedade dita da informação, ou pós-moderna, o que enseja uma acurada reflexão a respeito. Os povos primitivos já protegiam a honra, ainda que com agudas variações de significado3. O Código de Manu, o Direito Romano e a legislação bárbara já cerceavam, de modo mais ou menos incipiente e em linhas gerais, as lesões à fama dos indivíduos4. O assunto, no entanto, recebeu maior sistematização e refinamento jurídico-penal apenas com o Código Penal francês de 1810, isto é, o Código Penal de Napoleão. Este último diferenciou calúnia e injúria, sendo a primeira a imputação de fato delituoso ou difamatório falso ou não comprovado verdadeiro, e a segunda a expressão de caráter ultrajante. A tônica da calúnia era, portanto, na falsidade da assertiva. Em seguida, todavia, a Lei de Imprensa francesa de 1819 substituiu o termo calúnia por difamação e eliminou o requisito da falsidade do fato imputado. Desde então, a compreensão francesa passou a influenciar as legislações dos países de tradição jurídica europeia continental, como é o caso da brasileira. Apesar da aparência de preocupação histórica de tutela à honra que esse breve traçado possa sinalizar, há verdadeiramente dificuldades de compreensão e de fundamentação quanto aos crimes em foco, tidos como os menos eficazmente protegidos pelo ramo jurídico-criminal, consoante Maurach5. Em singular e expressiva afirmação, o autor declarou que honra seria o bem jurídico mais sutil e difícil de se apreender com as “mãos grossas” do Direito Penal.

16.2. A evolução do tema e a questão do bem jurídico envolvido A doutrina, no geral, vê-se envolta em ideários bastante genéricos quanto aos crimes contra a honra, havendo difícil precisão, segundo Gómez De La Torre6, seja por seu viés imaterial, seja pela divergência de sentidos que revela em termos históricos ou sociais. Por essas razões, as dificuldades que mostra a disciplina delitiva em foco decorrem mais da falta de acordo sobre o seu exato conteúdo do que da carência de idoneidade de sua tutela. A confusão já fora notada, aliás, por Carrara7, mais importante autor da Escola Clássica italiana. Atualmente, Laurenzo Copello8, em trabalho específico sobre o tema, chama atenção para o fato de que os estudos sobre o assunto simplesmente se referem às habituais distinções entre honra

objetiva e subjetiva, de modo pouco claro e com conteúdos nem sempre coincidentes. Assim, verdadeiramente, ainda persiste ao intérprete, diante das legislações editadas, a pergunta sobre o que pode tutelar validamente os crimes dessa natureza. Diante da teoria do bem jurídico, solução metodológica consoante nossa evolução jurídicopenal, em matéria de crimes contra a honra, de início, há que se aferir acerca de sua adequação ou capacidade de rendimento na hipótese em foco. Em outras palavras, uma vez adotado esse ideário, imperioso verificar se o mais grave meio de controle estatal de condutas humanas pode ter por referencial preceitos dessa natureza, dificuldade acentuada por seu cunho etéreo, isto é, sem maior concretude. No século XIX, von Liszt9, com base em Ihering, entendeu consistir a honra no “valor pessoal correspondente à posição que o indivíduo ocupa entre os seus concidadãos”. Já Carrara, a seu turno, observou que a honra é objeto de um direito inerente à personalidade humana10. Essa foi, no geral, a tônica analítica da doutrina estrangeira desde então. Welzel11, em posição minoritária, entendia que a honra seria a pretensão jurídica ao respeito que o indivíduo detém, não se confundindo com reputação ou sentimentos próprios. O penalista alemão frisava que o conceito de honra seria normativo e não fático. Entre nós, foi a compreensão, por exemplo, de Fragoso12 e, mais recentemente, o revelado por Regis Prado13 e Bitencourt14. No Brasil, aliás, por influência de Hungria, em geral, a doutrina simplesmente diferencia o bem jurídico em honra subjetiva, ou interna, entendida como sentimento da própria dignidade, e honra objetiva, ou externa, relativa ao apreço e respeito de que cada qual é objeto ou merecedor perante os demais concidadãos15. Em análise mais abstrata, em busca de uma noção unitária, ainda na doutrina nacional, similar a Noronha16, Costa Júnior17, por exemplo, define honra como “(...) o contingente mínimo de prestígio que um cidadão pode obter para merecer o respeito da coletividade”. Essa conceituação, por um lado, ostenta uma aproximação mais clara da ideia. Apesar disso, por outro, faz persistir o questionamento acerca da legitimidade do Direito Penal nessa seara, a qual se aproxima do Direito Civil, principalmente no que diz respeito à regulação dos danos morais. Em estudo específico sobre o tema, Zaczyk18, professor de Bonn, na Alemanha, entendendo bem jurídico como “elementos essenciais da liberdade”, que abarcariam não apenas a vida, o corpo e a propriedade, mas também instituições sociais e estatais, conclui que o instituto denotaria seu traço diferencial na ação recíproca das pessoas, daí porque se revelam como “relações de reconhecimentos”, disciplinadas pelo Estado. Por conseguinte, a honra, mais que uma singela sensação interna significativa, consiste em parte da condição de “pessoa” reconhecida pelo Direito e, assim, componente de sua liberdade, ou autodeterminação. Em sentido similar, Gómez De La Torre19 afirma com precisão que a honra é composta das relações de reconhecimento entre os diversos integrantes da comunidade, que emanam da dignidade e do livre desenvolvimento da personalidade. Referidas relações são, segundo o professor de Salamanca, pressupostos da participação do indivíduo no sistema social. Desse modo, a honra consiste em um valor digno de tutela pelo Direito Penal, consubstanciando-se não apenas em um elemento íntimo, mas também propiciador da interação com os demais indivíduos, conforme Zaczyk20. Nesse diapasão, e.g., carece de substrato o ideário de Jakobs21, o qual, em seu funcionalismo sistêmico – que visa a assecuração do sistema social –, entende a honra como mero interesse público a informações verídicas. A Constituição Federal de 1988 agasalha a proteção da honra, considerando-a um bem inviolável, conforme a dicção do inciso X do art. 5º: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material e moral decorrente de sua violação”. Em sentido similar, a tutela da honra é prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), art. 1122.

A honra, quer em seu aspecto objetivo, que é a reputação que o sujeito detém num contexto social, quer em seu aspecto subjetivo, que é o sentimento da própria dignidade ou decoro, tem por fundamento resguardar a inserção igualitária do indivíduo na interação social num contexto democrático. A afetação do bem jurídico honra, então, em qualquer de seus dois aspectos – a boa reputação exterior ou a autoestima, respectivamente, conforme as expressões típicas da jurisprudência alemã –, abala a capacidade de participação igualitária do indivíduo no relacionamento social com os demais, razão pela qual recebe a tutela penal. De toda forma, insta observar que se cuida de bem jurídico disponível, sendo que o consentimento do ofendido exclui a ilicitude da conduta23.

16.3. Os crimes contra a honra na sociedade da informação Se o imbricamento das liberdades recíprocas se vê num contexto social geral vulnerado pela afetação da honra do indivíduo, isso sobreleva em importância nos dias que correm. Isso porque a sociedade dita do risco24, da informação, pós-industrial, modernidade líquida25, entre inúmeras outras possíveis denominações, revela um contexto de inter-relação social e de exposição pública das pessoas sem precedentes na história da humanidade. Em primeiro lugar, nota-se que a pós-industrialização radicalizou os característicos ínsitos do modelo industrial, gerando-se uma divisão de tarefas produtivas de cunho transnacional, sem referencial anterior26. A produção, a distribuição e a circulação de riquezas agudizaram-se profundamente nesse modelo, refletindo-se, por via de consequência, na dependência intersubjetiva. Se a ideia-força de honra se encontra nas relações de reconhecimento, essa maior interconexão social faz sobrelevar o valor na contemporaneidade. Mas há algo mais que merece particular menção. O forte desenvolvimento do sistema comunicacional na sociedade hodierna – alcunhada por parte da sociologia por esta razão de “sociedade da informação” – ocasiona uma maior interação e exposição da honra, em seus dois aspectos. Os meios de comunicação de massas detêm alcance mundial e simultâneo ao acontecimento dos fatos. A rede mundial de computadores – internet – permite enorme interação entre as pessoas, inclusive de modo praticamente anônimo. Isso tudo faz com que a notícia ou o comentário, falsos ou verdadeiros, revelem enorme alcance e capacidade de ressonância, efetivamente possibilitando o devastamento de honras, como se pode notar num exemplo de acusação falsa de crime sexual. De triste memória, a respeito, ficou conhecido o caso “Escola de Base”, ocorrido em São Paulo, em 199427. Nesse influxo é que, segundo Nilo Batista28, “a imprensa tem o formidável poder de apagar a Constituição e o princípio da presunção de inocência, ou, o que é pior, de invertê-lo”. Dessa forma, o tema se renova em atualidade e importância29, ensejando a necessidade de uma particular reflexão por parte das ciências criminais, mormente em questões como a da liberdade de expressão, a da proporcionalidade das sanções, a do possível caráter internacional dos crimes e sua investigação, dentre outras. Ainda, a prática de crimes contra a honra por meio da imprensa é tema bastante sensível.

16.4. Crimes contra a honra perpetrados pela imprensa O vilipêndio à honra por meio da imprensa possuía, até recentemente, regramento em lei extravagante no país. Em subsistema que cuidava do temário sob diversas disciplinas jurídicas, a Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/67) previa crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria) praticados por meio de veículos de informação. Referida legislação especial tinha sua existência justificada por alguns pela disciplina ampla do assunto. Isso porque os eventuais abusos da imprensa ensejam inúmeros consectários – cíveis, penais e administrativos –, o que sinaliza pela necessidade de disciplina coerente em uma única lei.

Em termos penais, especificamente, a Lei nº 5.250/67 era criticada pela doutrina por prever, em seu art. 37, a responsabilidade penal sucessiva, que atribuía responsabilidade sequencial a determinadas pessoas quando não identificado o autor da ofensa. Por óbvio, isso era inconstitucional, eis que consagrador da responsabilização penal objetiva, inadmissível num ordenamento democrático. De todo modo, referido diploma foi afastado integralmente de nosso ordenamento em 2009 em face da procedência dada pelo Supremo Tribunal Federal em ação declaratória de descumprimento de preceito fundamental (ADPF nº 130) interposta por partido político. Decisão esta festejada pelos meios de comunicações de massas, envolta em observações de cunho político que entendia que a produção legislativa durante o período militar se voltava para o cerceamento da liberdade de informação e expressão, o quadro dela decorrente permite uma observação curiosa quanto ao Direito Penal. Como nota Reale Júnior30, ao se deter nas penas mínimas – comumente aplicadas na prática – dos crimes da Lei de Imprensa relativamente ao Código Penal, bem como às causas de aumento de pena previstas neste último em relação ao cometimento dos crimes por meios que facilitem sua divulgação (art. 141, III), a situação piorou para o jornalista com a incidência do Código. Ademais, como lembra o autor, este diploma não contém regras específicas sobre o direito à informação, o que denota um vácuo legislativo. Em outras palavras, há insegurança jurídica. Um tratamento específico quanto ao tema, a princípio, justifica-se político-criminalmente pela maior ofensividade da conduta para com o bem jurídico protegido, bem como pela regulação de direito de resposta e outros aspectos ínsitos ao direito de informar e de ser informado em confronto com a preservação da honra dos cidadãos. Nesse sentido, de lege ferenda mostra-se adequado nova elaboração legislativa quanto ao temário.

16.5. Outras questões preliminares acerca da matéria Os crimes contra a honra surgem no Brasil com o Código Criminal do Império, de 1830, o qual, sob influência do Código napoleônico, tipificava a calúnia e a injúria. No mesmo sentido foi a disciplina do Código Penal Republicano (1890). A Lei de Imprensa de 1934, no geral, manteve a configuração. O Código Penal brasileiro atual insculpe três modalidades de crimes contra a honra: calúnia (art. 138), difamação (art. 139) e injúria (art. 140). Os tipos de calúnia e difamação tutelam a honra objetiva dos indivíduos, isto é, a reputação de cada um, enquanto a injúria assim o faz com relação à honra subjetiva, ou seja, a autoestima da pessoa. Existem figuras especiais assemelhadas na legislação extravagante. Por conseguinte, a depender da situação concreta, o fato pode se subsumir ao previsto no Código Eleitoral (Lei nº 4.737/1967), no Código Penal Militar (Decreto-lei nº 1.001/1969) ou na Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/1983). Reitere-se que a Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/1967) foi afastada do ordenamento pelo STF em 2009. Os crimes contra a honra podem ser perpetrados por qualquer meio, o que significa que são classificados como delitos de forma livre. Concretamente, poderão se dar face a face, pelo telefone, por meio de carta ou mensagem eletrônica etc. Em regra, referidas infrações não admitem tentativa, a não ser que sejam perpetradas de forma plurissubsistente, ou seja, por constituição de vários atos, como ocorre em casos mensagens escritas ou gravações. Os delitos contra a honra somente admitem a modalidade dolosa e com tendência intensificada, o que significa que deve haver a presença de elemento subjetivo especial do tipo (animus calumniandi, diffamandi e injuriandi). Dessa maneira, sem o propósito de ofender não há infração penal. Sujeito ativo dos crimes em análise pode ser qualquer pessoa (delitos comuns). A imunidade material de deputados e senadores, prevista no art. 53, caput, da Constituição31, não significa

autorização para ofensa de honras alheias. Para esses parlamentares, assim como para vereadores no âmbito da circunscrição do município (art. 29, inciso VIII, da Carta32), o reconhecimento da ausência de responsabilização por suas opiniões, palavras e votos limita-se a manifestações dadas no exercício do mandato e relacionadas à atividade pública33. Com relação ao sujeito passivo nos crimes contra a honra, em regra, é a pessoa física, que não necessita estar individualizada na ofensa do agente, bastando que possa ser identificada. Conforme se analisará, há divergências doutrinárias e jurisprudenciais no que pertine às pessoas jurídicas quanto à calúnia (a maioria não admite) e à difamação (a maioria admite). Também existe controvérsia no que se refere aos inimputáveis (menores e enfermos mentais). Por fim, o Código Penal prevê causas de aumento de pena para os crimes em destaque (art. 141), assim como, em alguns casos, a possibilidade de oferecimento de exceção da verdade (arts. 138, § 3º, e 139, parágrafo único) para fins do acusado do delito demonstrar a veracidade do afirmado, evidenciando sua inocência, e a chance de retratação, hipótese em que o ofensor se desdiz com escopo de evitar uma condenação. O art. 142, a seu turno, disciplina casos de exclusão da ilicitude. Em regra, os crimes contra a honra são apurados mediante ação penal privada.

FOOTNOTES 1

Segundo Hungria, “entre todos os povos e em todos os tempos, depara-se a noção da honra como um interesse ou direito penalmente tutelável”. Cf. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. VI, p. 32.

2

No mesmo sentido, cf. REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro: São Paulo: Ed. RT, 2018, v. II, p. 166.

3

LISZT, Franz von. Tratado de direito penal. Trad. José Higino Duarte Pereira. Campinas: Russell, 2003, t. I, p. 77.

4

Franz von Liszt salienta que a noção dos povos germânicos foi diversa da anterior romana, segundo a qual honra consistia na plenitude de gozo dos direitos cívicos. A única proximidade ao posterior ideário alemão deu-se com a Lei das XII Tábuas. Cf. LISZT, Franz von. Tratado de..., cit., pp. 77-78.

5

MAURACH; SCHROEDER; MAIWALD. Strafrecht, Besonderer Teil. Heidelberg: C. F. Müller, 2009. v. 1, p. 139.

6

GÓMEZ DE LA TORRE, Ignacio Berdugo. Honor y libertad de expressión. Madrid: Tecnos, 1987, p. 57. Também frisando a dificuldade no estabelecimento de uma precisa conceituação, cf. MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal: parte especial. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2010, p. 296; MEINI, Iván. Delitos contra el honor. In: TERRADILLOS BASOCO, Juan. María (Coord.). Lecciones y materiales para el estúdio del derecho penal. Madrid: Iustel, 2011, t. III, v. I, p. 269.

7

CARRARA, Francesco. Programa del curso de derecho criminal: dictado en la Real Universidad de Pisa. Trad. Sebastian Soler. Buenos Aires: Depalma, 1946. v. III, p. 3.

8

LAURENZO COPELLO, Patricia. Los delitos contra el honor. Valencia: Tirant Lo Blach, 2002, p. 14.

9

LISZT, Franz von. Tratado de..., cit., p. 79.

10

CARRARA, Francesco. Programa del..., cit., p. 2.

11

WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Trad. Juan Bustos Ramírez y Sergio Yánez Pérez. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1976, p. 15.

12

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988. v. I, p. 215.

13

REGIS PRADO, Luiz. Curso de..., cit., p. 167.

14

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2016. v. 2, p. 350.

15

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 36. No mesmo sentido, e.g., cf. FARIA, Bento de. Código penal brasileiro (comentado). Rio de Janeiro: Record, 1959, v. IV, p. 159; MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. São Paulo: Atlas, 2010. v. II, p. 117; COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal:

parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 2008, v. 4, p. 513; GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte especial, crimes contra a pessoa. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017, p. 271; NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 671 e ss.; GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. Niterói: Impetus, 2019, p. 328; BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte especial 1. São Paulo: Atlas, 2014, p. 215.

16

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998. v. 2, p. 116.

17

COSTA JÚNIOR, Paulo José da. O direito de estar só: a tutela penal do direito à intimidade. São Paulo: Siciliano, 2004, p. 110.

18

ZACZYK, Rainer. La lesión al honor de la persona como lesión punible. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 77, mar./abr. 2009, pp. 128-140.

19

GÓMEZ DE LA TORRE, Ignacio Berdugo. Honor y..., cit., p. 57.

20

ZACZYK, Rainer. La lesión..., cit., p. 135.

21

Apud ZACZYK, Rainer. La lesión..., cit., pp. 137-138.

22

“Artigo 11.Proteção da honra e da dignidade: 1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade; 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação; 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.”

23

REGIS PRADO, Luiz. Curso de..., cit., p. 167.

24

BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro, Daniel Jiménez e

Maria Rosa Borras. Barcelona: Paidos, 1998.

25

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

26

SOUZA, Luciano Anderson de. Expansão do direito penal e globalização. São Paulo: Quartier Latin, 2007, pp. 107-112.

27

SOUZA, Luciano Anderson de; FERREIRA, Regina Cirino Alves. Discurso midiático penal e exasperação repressiva. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 94, jan./fev. 2012, pp. 372-373.

28

BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 138.

29

Em sentido similar, inclusive entendendo que a honra passa, no âmbito social atual, a possuir estreita correlação com a questão patrimonial, cf. BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 213.

30

REALE JÚNIOR, Miguel (Coord.). Direito penal: jurisprudência em debate – Crimes contra a pessoa. Rio de Janeiro: GZ, 2011, p. 175.

31

Fixa o art. 53, caput, da Carta: “os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.

32

“Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: (...) VIII – inviolabilidade dos Vereadores por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município; (...).”

33

No mesmo sentido, cf. GRECO, Rogério. Curso de..., cit., p. 331.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-17.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 17. CALÚNIA (ART. 138)

Capítulo 17. Calúnia (art. 138) Calúnia Art. 138 – Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa. § 1º – Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga. § 2º – É punível a calúnia contra os mortos. Exceção da verdade § 3º – Admite-se a prova da verdade, salvo: I – se, constituindo o fato imputado crime de ação privada, o ofendido não foi condenado por sentença irrecorrível; II – se o fato é imputado a qualquer das pessoas indicadas no nº I do art. 141; III – se do crime imputado, embora de ação pública, o ofendido foi absolvido por sentença irrecorrível.

17.1.Considerações iniciais A primeira previsão entre os crimes contra a honra no Código Penal é de sua modalidade mais grave, isto é, a calúnia. O art. 138 prevê em seu caput a modalidade básica do delito, qual seja, a imputação falsa de fato tido como criminoso a alguém. O § 1º insculpe duas modalidades assemelhadas, relativas àquele que propala ou ao que divulga a imputação que sabe inverídica. Em seguida, o § 2º fixa regrame extensivo, determinando a responsabilização pelo crime em questão se a atribuição falsa de fato definido como delitivo recair sobre pessoas mortas. Por fim, insculpe-se a possibilidade, de cunho processual, de exceção da verdade, salvo exceções. Afora o estabelecido no art. 138, outras regras previstas no Capítulo V do Título I da Parte Especial do Código Penal incidem diretamente no crime em análise. São as constantes dos arts. 141 (disposições comuns), 143 (retratação), 144 (pedido de explicações) e 145 (ação penal) do diploma. Observe-se que o art. 138 não sofreu qualquer alteração desde a promulgação do Código de 1940, ainda em vigor em sua Parte Especial. O crime de calúnia possui natureza subsidiária, ou residual. De acordo com o princípio da especialidade, a depender das circunstâncias fáticas, podem incidir os delitos assemelhados previstos no art. 324 do Código Eleitoral1, no art. 214 do Código Penal Militar2 ou no art. 26 da Lei de Segurança Nacional3, afastando-se a figura do art. 138 do Codex. O tipo especial de calúnia que constava da Lei de Imprensa tornou-se inaplicável após o julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130/DF, no ano de

julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130/DF, no ano de 2009, por parte do Supremo Tribunal Federal, incidindo, desde então, a disciplina do Código Penal.

17.2.Objetividade jurídica A calúnia tutela a honra, interesse composto das relações de reconhecimento entre os integrantes da comunidade, que emanam da dignidade e do livre desenvolvimento da personalidade4. Por meio desse bem jurídico imaterial, o indivíduo é reconhecido pelos demais cidadãos e se reconhece neles para fins de participação igualitária nas relações sociais. Por conseguinte, sua apreciação emerge da relação recíproca das pessoas5. No caso brasileiro, o bem jurídico honra possui expresso assento constitucional, conforme o insculpido no art. 5º, inciso X, da Carta de 1988. Do mesmo modo, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), em seu art. 11, consagra o interesse em destaque. A honra possui dois aspectos, um objetivo e outro subjetivo. A honra objetiva consiste na reputação, ou conceito social, que o sujeito detém num contexto coletivo. Em outras palavras, consiste na consideração social que o indivíduo possui. Honra subjetiva é o sentimento da própria dignidade, ou decoro, isto é, a consideração que a pessoa tem de si própria, mensurada a partir da visão alheia. Tanto a honra em sentido objetivo como em sentido subjetivo tem por fundamento resguardar a inserção igualitária do indivíduo na interação social num contexto democrático. A afetação do bem jurídico honra, então, em qualquer de seus dois aspectos – a boa reputação exterior ou a autoestima –, vulnera a capacidade de participação isonômica da pessoa no relacionamento social com os demais, razão pela qual recebe proteção penal. A pessoa publicamente ofendida (caráter objetivo) ou sem respeito próprio a partir de ofensa a ela dirigida (caráter subjetivo) tem afetada sua participação social enquanto cidadão igual aos demais. Essa, em suma, a tônica dos crimes contra a honra. O crime de calúnia, especificamente, tutela a honra em seu caráter objetivo, isto é, no que diz respeito à reputação do indivíduo perante a coletividade. Cuida-se do mesmo foco de tutela do relativo à difamação, isto é, ambas consistem em formas de ataque ao mesmo bem jurídico, com o mesmo aspecto. Há apenas um diferencial, consistente no fato de que na calúnia o ataque é mais acentuado, pois se atribui falsamente ao ofendido a prática de um crime que não existiu ou que não foi por ele cometido. Dessa maneira, a desonra ocasionada pela calúnia é maior do que a que se afere na difamação, pois o que é falsamente atribuído ao sujeito passivo é mais grave. Há em torno do fato imputado inveridicamente a pecha de criminoso dirigida ao ofendido6. Por tutelar um único bem jurídico, classifica-se a calúnia como um crime simples.

17.3.Sujeitos do delito Sujeito ativo do delito de calúnia é qualquer indivíduo culpável, eis que o tipo do art. 138 não exige nenhuma qualidade especial daquele. Dessa maneira, trata-se de crime comum. Sujeito passivo da calúnia pode ser também qualquer pessoa. Divergem doutrina e jurisprudência, todavia, quanto à pessoa jurídica poder ser vítima de calúnia. Com base nos pensamentos de Hungria7 e, também, Fragoso8, doutrina e jurisprudência majoritárias tradicionalmente entenderam que isso não seria possível, tendo em vista que honra seria um atributo exclusivo do ser humano. No entanto, isso vem sendo temperado com o tempo, admitindo-se a hipótese, hoje majoritariamente, com relação à difamação. Quanto à calúnia, permanece ainda a compreensão dominante de que não seria possível.

Contudo, em razão da adoção da responsabilidade penal da pessoa jurídica, ao menos para os crimes ambientais (art. 225, § 3º, da Constituição Federal, e Lei nº 9.605/98), não se mostra acertado esse posicionamento, porque nesse caso, e.g., pode-se atribuir falsamente um fato delitivo ambiental à pessoa jurídica, aperfeiçoando-se assim a descrição típica da calúnia9. Note-se, ainda, que o Código Penal admite que a calúnia possa referir-se aos mortos (art. 138, § 2º). Isso não significa que os mortos sejam considerados sujeitos passivos10. No caso, sujeitos passivos são os parentes da pessoa falecida, que detêm interesse na preservação de sua memória. Quanto aos desonrados, isto é, indivíduos que já não detêm mais boa fama perante a coletividade, compreende-se pacificamente que podem ser vítimas de calúnia, bem como dos demais crimes contra a honra11. Relativamente aos menores e aos enfermos mentais, prevalece a compreensão de que podem ser vitimados por calúnia e difamação, pois possuem honra objetiva12. Podem ainda, segundo a maioria, ser sujeitos passivos de injúria, desde que possam entender o significado da ofensa13. A honra é atributo da dignidade humana e tanto os menores como os doentes mentais podem, a depender da idade ou do grau de enfermidade, respectivamente, compreender o ataque àquela. Especificamente quanto à calúnia, a princípio, essa compreensão poderia se mostrar equivocada, pois inimputável não pratica crime, por ausência de culpabilidade, não se aperfeiçoando, supostamente, o elemento “crime” do art. 13814. Todavia, como notam alguns autores15, o tipo exige a atribuição falsa de “fato definido como crime”, e não de imputação “de crime”. Dessa maneira, por poder o inimputável perpetrar fato que corresponde a crime, pode ser vítima de calúnia.

17.4.Tipicidade objetiva e subjetiva A conduta típica de calúnia consiste em imputar falsamente a alguém fato definido como crime. Isso significa que o agente atribui inveridicamente a uma pessoa delito por ela não cometido, o que abala a honra objetiva do ofendido, isto é, sua reputação, ou imagem, perante a sociedade. A falsidade pode referir-se tanto ao próprio fato criminoso como à sua autoria. Em outros termos, ou o delito imputado não existiu, ou ele pode até ter materialmente ocorrido, mas o caluniado não foi seu autor. A calúnia refere-se a fato criminoso e determinado, ainda que a descrição não seja pormenorizada. Se a atribuição falsa é de contravenção penal, perfaz-se o crime de difamação, e não de calúnia. Para caracterização do crime em análise, o imputado não precisa revelar maiores detalhes nem referir-se expressamente a qualquer figura da lei penal, bastando que se possa antever minimamente um fato, o qual corresponde a um crime. Por exemplo, ocorre calúnia se agente alega falsamente que o sujeito passivo matou determinada pessoa no passado, ou que se apropriou do telefone celular de um conhecido numa festa recente. Caso a narrativa falsa seja por demais vaga e genérica, e.g., simplesmente dizer-se falsamente que outrem é assassino e um dia já matou alguém, o crime será de injúria (já que a difamação também exige descrição fática). Por violar o mesmo bem jurídico tutelado, a lei penal considera também criminosa a conduta daquele que, tendo ciência da falsidade da imputação, a propala ou a divulga. São as figuras equiparadas à calúnia previstas no art. 138, § 1º. Propalar significa relatar a número limitado de indivíduos. Já divulgar consiste em tornar público, isto é, comunicar a quantidade indeterminada de pessoas. Dessa maneira, a divulgação possui conotação mais extensiva16. A calúnia é um delito de ação livre, ou seja, pode ser praticada por qualquer meio, verbal ou escrito17. Por conseguinte, é possível a prática de calúnia numa conversa a dois; utilizando-se de

um megafone num comício; por mensagem em redes sociais; por entrevista na televisão ou no rádio; por carta etc. O tipo subjetivo na calúnia é integrado pelo dolo, acrescido de tendência intensificada (animus calumniandi). Segundo Welzel18, referidas tendências intensificadas são aquelas que trazem um colorido diferente de sentido aos tipos, um adicional conteúdo ético-social para a ação. Isso significa que o agende deve revelar o propósito de ofender. Apesar de ser essa a compreensão predominante, observe-se que, e.g., na Espanha, atualmente, tal vem sendo questionado por parte da jurisprudência e da doutrina, que entendem não ser preciso o animus infamandi para a caracterização do crime contra a honra19. Conforme essa corrente, bastaria a singela atribuição falsa a alguém de fato criminoso ciente da ausência de veracidade, isto é, em desprezo completo pela verdade, ou, ainda, ausente de mínimas precauções para averiguar essa última20. Esse ideário faria sentido caso se adotasse a noção de Jakobs21 quanto aos crimes contra a honra como referenciados ao mero interesse público a informações verídicas. Contudo, não é esse o sentido do bem jurídico honra, atrelado ao reconhecimento social fruto das relações intersubjetivas. Por conseguinte, apesar dessa linha, no fundo, de objetivação do elemento subjetivo na hipótese, facilite sobremaneira a comprovação do crime contra a honra, sendo, dessa feita, pragmática, olvida-se ela, todavia, da essência da incriminação. O agente atua voltado para o vilipêndio da honra de alguém e não propriamente em desprezo à verdade. Assim, em que pese as dificuldades de aferição concreta, a presença do animus calumniandi mostra-se imprescindível para caracterização do ilícito em foco, sendo por isso que o simples ânimo de narrar ou de se defender não configuram o elemento subjetivo do tipo22. De semelhante, o animus jocandi ou o erro quanto à falsidade do fato ou à sua autoria afastam o crime. No primeiro caso, porque não há tipo subjetivo, no último, porque o erro de tipo exclui o dolo. Finalmente, ainda quanto ao elemento subjetivo na calúnia, observe-se que doutrina e jurisprudência entendem que se admite tanto o dolo direto como o eventual.

17.5.Consumação e tentativa Uma vez que tutela a honra objetiva, o delito de calúnia consuma-se quando a imputação falsa chega ao conhecimento de terceiros. Cuida-se de delito formal (ou de consumação antecipada), tendo em vista que, apesar do tipo descrever ação e resultado, a consumação ocorre independentemente de o agente conseguir ofender a honra alheia. A tentativa (conatus) é em regra inadmissível, como nos demais crimes contra a honra. A calúnia verbal não possibilita tentativa, porque nesse caso o delito se perfaz em um único ato23. A exceção ocorre, ou seja, admite-se a tentativa, quando o meio de execução é plurissubsistente, como na modalidade escrita (o tradicional exemplo da carta extraviada), ou por meio de uma gravação.

17.6.Exceção da verdade O art. 138, § 3º, prevê a hipótese de exceção da verdade (exceptio veritatis) para a calúnia. Tratase de norma de caráter processual, consistente na possibilidade de o sujeito ativo da calúnia (querelado no processo criminal correspondente) demonstrar, no curso do processo, que o fato afirmado por ele é verdadeiro, afastando-se com isso o reconhecimento do crime. No fundo, a regra permite ao querelado demonstrar que não houve fato típico. Na calúnia, a exceção da verdade é em regra admissível, visto que se trata de atribuição de fato delitivo a alguém. Por conseguinte, há possibilidade concreta e interesse público em se constatar se o fato é

verídico ou não. Essa é a regra, porém há exceções, relativas ao grau de interesse público em torno da questão. Dessa maneira, para o delito em análise, não se admite a exceção da verdade em três casos. Primeiramente, o querelado (sujeito ativo da calúnia) não pode pretender comprovar a veracidade do que revelou se o fato imputado for crime de ação privada e não houver condenação definitiva sobre o assunto. Isso em respeito ao interesse da vítima do crime de ação penal privada, que pode, por qualquer razão, não desejar processar seu ofensor ou expor sua intimidade em juízo por via reversa. Em segundo lugar, também não é admissível exceção da verdade se a calúnia envolver imputação de crime contra o Presidente da República ou chefe de governo estrangeiro, em nome do interesse público envolvido. Finalmente, não se cogita de exceção da verdade se o crime imputado for julgado em definitivo pelo Poder Judiciário, havendo absolvição do ofendido, isso em respeito à coisa julgada. A vedação da admissibilidade da exceção da verdade nos casos previstos pelo § 3º do art. 138 pode levar à iniquidade de condenação de alguém por calúnia pela imputação a outrem de fato delitivo verdadeiro. Apesar de, em geral, doutrina e jurisprudência não se questionarem a respeito, parece-nos que isso viola os princípios maiores da ampla defesa e da verdade real no processo penal.

17.7.Pena e ação penal O crime de calúnia é punido com pena de detenção, de seis meses a dois anos, além de multa, tanto em sua modalidade básica (art. 138, caput) como nas formas equiparadas (art. 138, § 1º). Podem incidir causas de aumento de pena para o delito em foco, conforme previsão constante das disposições comuns aos crimes contra a honra (art. 141). Nesse sentido, existem hipóteses com dois percentuais de majoração diferenciados. A pena aumenta-se de um terço se o crime for cometido: a) contra o Presidente da República, ou contra chefe de governo estrangeiro; b) contra funcionário público, em razão de suas funções; c) na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a sua divulgação; d) contra pessoa maior de sessenta anos ou portadora de deficiência. Já se o crime for cometido mediante paga ou promessa de recompensa, isto é, a título mercenário, duplica-se a pena. Em regra, o crime de calúnia é apurável mediante ação penal privada (art. 145), ou seja, imperioso o oferecimento de queixa-crime por parte do ofendido. Existem duas exceções a isso, previstas no art. 145, parágrafo único. Em primeiro lugar, se o crime é praticado contra o Presidente da República, ou contra chefe de governo estrangeiro, a ação penal é pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça. Além disso, se a calúnia é perpetrada contra funcionário público, em razão de suas funções, a ação penal é pública condicionada à representação do ofendido. Quanto a este último caso, todavia, há que se observar que o STF editou, no ano de 2003, a Súmula nº 714, admitindo legitimidade concorrente para o funcionário público vitimado ofertar ação penal privada, conforme seu interesse: “é concorrente a legitimidade do ofendido, mediante queixa, e do Ministério Público, condicionada à representação do ofendido, para a ação penal por crime contra a honra de servidor público em razão do exercício de suas funções”24. O processo e julgamento do delito de calúnia compete ao Juizado Especial Criminal, consoante o procedimento sumaríssimo (arts. 98, inciso I, da Constituição Federal, e 60 e ss. da Lei nº 9.099/1995). A calúnia admite a suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/1995, à exceção dos casos de violência doméstica e familiar contra mulher (art. 41 da Lei Maria da Penha, isto é, Lei nº 11.340/2006).

A retratação cabal, ocorrida antes da sentença, extingue a punibilidade do agente, nos termos do art. 143 e seu parágrafo único.

FOOTNOTES 1

“Art. 324. Caluniar alguém, na propaganda eleitoral, ou visando fins de propaganda, imputando-lhe falsamente fato definido como crime: Pena – detenção de seis meses a dois anos, e pagamento de 10 a 40 diasmulta. § 1° Nas mesmas penas incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga. § 2º A prova da verdade do fato imputado exclui o crime, mas não é admitida: I – se, constituindo o fato imputado crime de ação privada, o ofendido, não foi condenado por sentença irrecorrível; II – se o fato é imputado ao Presidente da República ou chefe de governo estrangeiro; III – se do crime imputado, embora de ação pública, o ofendido foi absolvido por sentença irrecorrível.”

2

“Art. 214. Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime: Pena – detenção, de seis meses a dois anos. § 1º Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga. Exceção da verdade:§ 2º A prova da verdade do fato imputado exclui o crime, mas não é admitida: I – se, constituindo o fato imputado crime de ação privada, o ofendido não foi condenado por sentença irrecorrível; II – se o fato é imputado a qualquer das pessoas indicadas no nº I do art. 218; III – se do crime imputado, embora de ação pública, o ofendido foi absolvido por sentença irrecorrível.”

3

“Art. 26 – Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação. Pena: reclusão, de 1 a 4 anos. Parágrafo único – Na mesma pena incorre quem, conhecendo o caráter ilícito da imputação, a propala ou divulga.”

4

GÓMEZ DE LA TORRE, Ignacio Berdugo. Honor y libertad de expressión. Madrid: Tecnos, 1987, p. 57.

5

ZACZYK, Rainer. La lesión al honor de la persona como lesión punible. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 77, mar./abr. 2009, pp. 128-140.

6

Consoante Fragoso, a calúnia “(...) é o mais grave dos crimes contra a honra, pois aqui não se atribui ao ofendido um defeito ou um vício – o que constitui acusação vaga – mas um fato determinado, e, mais ainda, um fato criminoso”. Cf. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro:

Forense, 1988. v. I, p. 223.

7

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. VI, p. 41.

8

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 218.

9

Partilha do mesmo posicionamento, v.g., BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte especial 1. São Paulo: Atlas, 2014, p. 218; GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. Niterói: Impetus, 2019, pp. 338339.

10

Assim, e.g., FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 219; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 353. REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro: São Paulo: Ed. RT, 2018, v. II, p. 168; COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 2008, v. 4, p. 547.

11

A respeito do tema, afirma Prado: “(...), os desonrados e aqueles que não mais detêm a estima pública podem, também, ser sujeitos passivos da calúnia. Com efeito, sempre existe uma parcela de honra, um ‘oásis moral’, como bem definia Manzini, ainda intocado e passível de ser atingido pela ofensa”. REGIS PRADO, Luiz. Curso de..., cit., p. 168.

12

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 352.

13

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit. pp. 46-47; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 382.

14

Nesse sentido, NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998. v. 2, p. 119; HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit. p. 47.

15

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. São Paulo: Atlas, 2010. v. II, p. 119;

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 352; BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., pp. 219220.

16

COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 1992, v. 2, p. 50.

17

Conforme Fragoso, também o delito pode se dar por meio de mímica, cf. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 224.

18

WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Trad. Juan Bustos Ramírez y Sergio Yánez Pérez. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1976, p. 113.

19

BACIGALUPO, Enrique. Delitos contra el honor. Buenos Aires: Hammurabi, 2006, pp. 70-72.

20

CASTIÑERA PALOU, Mª Teresa. Delitos contra el honor. In: SILVA SÁNCHEZ (Dir.). Jesús-María (Dir.). Lecciones de derecho penal: parte especial. Barcelona: Atelier, 2011, p. 165.

21

Apud ZACZYK, Rainer. La lesión..., cit., pp. 137-138.

22

REALE JÚNIOR, Miguel (Coord.). Direito penal: jurisprudência em debate – Crimes contra a pessoa. Rio de Janeiro: GZ, 2011, p. 162.

23

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 63.

24

Isso porque a hipótese envolve tanto o interesse público quanto o particular na apuração dos fatos. Nesse influxo, já decidiu o STF, após a edição da súmula referenciada: “Exige-se, para o fim de balizar a legitimação concorrente do Ministério Público (Súmula 714, deste STF) quando o funcionário público é ofendido em razão de suas funções, contemporaneidade entre as ofensas e o exercício do cargo, mas não contemporaneidade entre a data da denúncia e o exercício do cargo. O ordenamento jurídico confere

legitimação ao Ministério Público em razão da necessidade de se tutelar, nessas hipóteses, além da honra objetiva ou subjetiva do funcionário, o interesse público atingido quando as ofensas são irrogadas em razão da função exercida. Ocorre que, nesses casos – quando há nexo de causa e efeito entre a função exercida pelo ofendido e as ofensas por ele sofridas –, também vulnerado resta de forma reflexa o bem jurídico Administração Pública” (Inq. 3438, relª. ministra Rosa Weber, Primeira Turma, julgamento em 11.11.2014, DJe de 10.2.2015).

2020 - 03 - 24

PAGE RB-18.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 18. DIFAMAÇÃO (ART. 139)

Capítulo 18. Difamação (art. 139) Difamação Art. 139 – Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa. Exceção da verdade Parágrafo único – A exceção da verdade somente se admite se o ofendido é funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções.

18.1.Considerações iniciais A incriminação de segunda maior ofensividade relativa à vulneração da honra prevista no Código Penal é a de difamação (art. 139)1. A difamação, do mesmo modo que a calúnia, tutela a honra objetiva, isto é, o conceito social da pessoa. Na difamação, o agente leva ao conhecimento de terceiros fato desonroso alusivo à vítima. Diferentemente da calúnia, contudo, não se exige falsidade do fato imputado, que pode até ser verdadeiro. O delito de difamação remonta a um ideário antigo, do Direito Canônico medieval, de que não se disseminem fatos negativos acerca dos semelhantes2, evitando-se um contexto social degradado por maledicências e fofocas. Em que pese algumas controvérsias específicas, o crime em análise revela menos dificuldades interpretativas em comparação com a calúnia por parte da doutrina e da jurisprudência. A difamação não foi prevista como delito autônomo no Código Criminal do Império (1830). Sob influência do Código Penal napoleônico (1810), a primeira codificação penal brasileira tipificou apenas a calúnia e a injúria. Porém, aquilo que hoje entendemos como difamação era, na verdade, uma das modalidades de injúria (art. 236 do Código imperial3). O Código Penal Republicano (1890)4 foi no mesmo sentido, assim como, no geral, a Lei de Imprensa de 1934. O Código Penal de 1940 fixou as três figuras típicas, mantidas até hoje: calúnia (art. 138), difamação (art. 139) e injúria (art. 140), as duas primeiras para tutela da honra objetiva, enquanto a última para proteção da honra subjetiva. Desde a entrada em vigor desse diploma legal, o artigo 139, tal como o antecedente, não recebeu qualquer modificação. O caput prevê o delito, ao passo que o parágrafo único estabelece a única possibilidade de oferecimento de exceção da verdade por parte do querelado, ou seja, do acusado de ser sujeito ativo da difamação. O crime de difamação – tal como os demais delitos contra a honra constantes do Código Penal – possui natureza subsidiária, ou residual. De acordo com o princípio da especialidade, a depender das circunstâncias concretas, podem incidir os delitos assemelhados previstos no art. 325 do Código Eleitoral5, no art. 215 do Código Penal Militar6 ou no art. 26 da Lei de Segurança Nacional7, afastando-se a figura do art. 139 do diploma penal comum. O tipo especial de difamação que constava da Lei de Imprensa tornou-se inaplicável após o julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130/DF, no ano de

2009, por parte do Supremo Tribunal Federal, incidindo, desde então, a disciplina do Código Penal. O Brasil não possui mais, ao menos por enquanto, uma Lei de Imprensa.

18.2.Objetividade jurídica A difamação tutela a honra, interesse composto das relações de reconhecimento entre os integrantes do corpo social, que emanam da dignidade e do livre desenvolvimento da personalidade8. Por meio desse bem jurídico imaterial, a pessoa é reconhecida pelos demais cidadãos e se reconhece nesses para fins de participação igualitária nas relações sociais. Por conseguinte, sua apreciação emerge da relação recíproca das pessoas9. Insta observar que se cuida de bem jurídico disponível. No ordenamento nacional, a honra possui expresso assento constitucional, consoante o previsto no art. 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988. Igualmente, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), no art. 11, consagra o bem jurídico em foco. A difamação é crime que tutela a honra em seu aspecto objetivo, ou seja, a reputação, ou conceito social, que o indivíduo possui perante a coletividade10. O atingimento da consideração que a pessoa detém perante as outras abala a sua capacidade de participação isonômica nas relações intersubjetivas. Trata-se de crime simples, por circunscrever-se à proteção de um único bem jurídico. Apesar de a difamação consistir em ataque ao mesmo bem jurídico e com igual aspecto ao ocorrente em relação ao crime de calúnia, isto é, lesão à honra objetiva, na difamação o ataque é menos acentuado, pois não se imputa falsamente à vítima a prática de um crime, mas apenas um fato atípico desonroso. Por essa razão, a pena do crime de difamação é menor que a da calúnia.

18.3.Sujeitos do delito A difamação é um crime comum, o que significa que qualquer indivíduo penalmente culpável pode ser seu sujeito ativo. Todos os delitos contra a honra são comuns. A pessoa jurídica não pode ser sujeito ativo de crimes contra a honra, uma vez que a responsabilidade penal da pessoa jurídica no Brasil limita-se aos crimes ambientais, conforme a previsão do art. 225 da Constituição e a disciplina da Lei dos Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998). A discussão jurídica circunscreve-se à possibilidade ou não dos entes morais serem sujeitos passivos de calúnia e difamação. Sujeito passivo da difamação é qualquer pessoa, física ou jurídica, apesar de divergências doutrinárias e jurisprudenciais com relação a esta última. A tradicional compreensão de Hungria11, que não admitia a hipótese por suposta carência de valores social e moral – entendidos como atributos humanos – das corporações, vem sendo abandonada por doutrina e jurisprudência nos últimos anos. Atualmente, a maioria dos doutrinadores12, bem como das decisões do STF13, admite a possibilidade de pessoas jurídicas, tanto de Direito Privado como de Direito Público, serem vitimadas por difamação. O Código Penal previu expressamente a possibilidade de calúnia contra os mortos (art. 138, § 2º), mas silenciou com relação a isso na difamação. Em face da ausência de previsão legal há controvérsias, prevalecendo, no entanto, a compreensão pela sua impossibilidade14. Referido posicionamento mostra-se correto, uma vez que não se admite analogia in malam partem em Direito Penal. Desse modo, não é possível cogitar-se de difamação contra pessoa morta. Quanto aos desonrados, ou seja, pessoas que já não detêm mais estima pública, entende-se pacificamente que podem sofrer ação delitiva contra a honra, como a de difamação. A honra é atributo decorrente da dignidade da pessoa humana, razão pela qual, embora interesse disponível, não é socialmente anulável.

Por fim, com relação aos menores e aos enfermos mentais, prepondera o entendimento de que podem ser vitimados por calúnia e difamação, uma vez que possuem honra objetiva15. Também podem ainda ser sujeitos passivos de injúrias, com a condição de que possam compreender o significado da ofensa.

18.4.Tipicidade objetiva e subjetiva O delito de difamação consiste em imputar a alguém fato ofensivo à sua reputação, o que significa atribuir a outrem um acontecimento humano capaz de macular seu conceito social. Difamar significa “causar má fama”. Por esse motivo, o objeto jurídico em questão é a honra objetiva, isto é, a reputação, ou imagem, da pessoa perante as demais. O fato atribuído ao sujeito passivo deve ser determinado e pode até ser verdadeiro, uma vez que o tipo não exige falsidade, tal como ocorre no crime de calúnia. Não se faz preciso maiores detalhes sobre o acontecimento, apenas que se possa antever um fato preciso apto a macular a consideração social da vítima. Por conseguinte, são exemplos de difamação dizer que determinada pessoa casada frequenta habitualmente o apartamento de outrem para manter relações sexuais extraconjugais16 ou quando o agente alega a terceiros que viu alguém ingressando na casa de prostituição, situações que podem até ter ocorrido. Evidentemente, os preconceitos sociais são considerados para fins de reconhecimento do delito, o qual, no fundo, é praticado pelo sujeito ativo com maledicência (animus diffamandi). Como o delito de calúnia significa atribuição de fato criminoso a alguém, se o agente imputa a outrem contravenção penal, tratar-se-á de difamação, e não calúnia, como no exemplo de dizer-se que viu certa pessoa realizando apontamento do jogo do bicho. Ao contrário do estabelecido com relação à calúnia no art. 138, § 1º, o legislador não previu no artigo 139 figuras equiparadas de propalação ou divulgação de difamação. Tal omissão, no entanto, não faz qualquer diferença17, uma vez que quem propalar ou divulgar fato ofensivo à reputação de outrem com propósito de ofender responderá pelo crime, pouco importando que não tenha sido o primeiro a fazê-lo. Havendo dolo com tendência intensificada, cada qual responde pelo crime autonomamente. Quanto aos meios de execução, assim como nos demais crimes contra a honra, a difamação consiste em crime de ação livre, podendo ser perpetrado por qualquer forma idônea a tanto. Por conseguinte, o delito pode ser praticado numa conversa pessoal ou telefônica, por carta ou mensagem eletrônica etc. Por fim, relativamente ao tipo subjetivo, há que se observar que difamação é crime doloso, acrescido de tendência intensificada (animus diffamandi). Minoritariamente, na doutrina estrangeira, há correntes divergentes que negam essa última afirmação, defendendo a ausência de elemento subjetivo especial do tipo18. O propósito humorístico (animus jocandi) ou a singela intenção de informar (animus narrandi) afastam o delito. Admite-se o dolo direto ou eventual. Para a configuração do delito não importa se a vítima se sentiu ou não ofendida. Não se tutelam melindres, o que significa que a maior suscetibilidade do suposto ofendido não torna fato atípico em típico. Demais disso, tampouco possui relevância a maior tolerância social do ofendido para com ofensas, uma vez que até mesmo os desonrados recebem proteção penal. Dessarte, a tipicidade perfaz-se se presentes os elementos objetivos e subjetivos do tipo, ou seja, se a afirmação efetuada pelo sujeito ativo possui idoneidade para macular a honra do sujeito passivo, tendo sido lançada com dolo acrescido de tendência intensificada, haverá injusto penal.

18.5.Consumação e tentativa

Como regra, o delito de difamação não admite a tentativa (conatus), visto que normalmente é praticado de modo unissubsistente, isto é, por meio de ato único. A exceção é feita quando o meio de execução é plurissubsistente, como na forma escrita (e.g., carta extraviada ou mensagem de email que vai direto para a lixeira), ou por meio de uma gravação. Do mesmo modo que o ocorrente na calúnia, que igualmente tutela a honra objetiva das pessoas, a difamação vê-se consumada quando a imputação ofensiva chega ao conhecimento de terceiros.

18.6.Exceção da verdade A exceptio veritatis consiste na chance de o suposto ofensor (acusado de ser sujeito ativo de crime contra a honra) comprovar que o fato por ele afirmado é verídico. Com isso, afasta-se o reconhecimento do crime, por ausência de tipicidade. A exceção da verdade trata-se de uma oportunidade processual oferecida pela lei ao querelado, mas não em todas as hipóteses. Na difamação, ao contrário da calúnia, a exceção da verdade é em regra inadmissível. Isso se mostra normal, uma vez que para caracterização do delito de difamação não se exige falsidade do fato imputado. Por conseguinte, não haveria nada a ser provado, já que o fato pode até ser verdadeiro. A impossibilidade geral de oferecimento de exceção da verdade na difamação possui um quebrantamento, qual seja, se o ofendido é servidor público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções (art. 139, parágrafo único). Nesse único caso, é possível a exceptio. A razão de ser dessa singela possibilidade decorre do interesse público envolvido, pois nesse caso a exceção da verdade pode revelar um desvio no exercício das funções públicas. Existe controvérsia com relação ao indivíduo supostamente ofendido que não mais se encontra investido na função pública, isto é, quando o difamado deixou, por qualquer razão, a posição que ocupava. Fragoso19 e Noronha20, e.g., compreendiam que se o sujeito deixou a função pública, não mais seria possível a admissão da exceção da verdade, porque o art. 139, parágrafo único, fixa: “se o ofendido é funcionário público”. Já Bento de Faria21, com razão, pontuava não importar se o sujeito passivo deixou a função pública, uma vez que a razão de ser da regra em foco é a presença de sua relação com o exercício da função pública.

18.7.Pena e ação penal O crime de difamação é punido com pena de detenção, de três meses a um ano, além de multa (art. 139, caput). Existem causas de aumento de pena para o delito em destaque, consoante previsão das disposições comuns aos crimes contra a honra (art. 141). São fixadas hipóteses com dois percentuais de majoração distintos. A pena aumenta-se de um terço se o crime for cometido: a) contra o Presidente da República, ou contra chefe de governo estrangeiro; b) contra funcionário público, em razão de suas funções; c) na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a sua divulgação; d) contra pessoa maior de sessenta anos ou portadora de deficiência. Já se a infração penal é cometida mediante paga ou promessa de recompensa, isto é, a título mercenário, duplicase a pena. Em regra, o crime de difamação, assim como o de calúnia, é apurável mediante ação penal privada (art. 145), ou seja, imperioso o oferecimento de queixa-crime por parte do ofendido. Há duas exceções a isso, previstas no art. 145, parágrafo único. Primeiramente, se o crime é praticado contra o Presidente da República, ou contra chefe de governo estrangeiro, a ação penal é pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça. Por fim, se a difamação é praticada contra funcionário público, em razão de suas funções, a ação penal é pública condicionada à representação do ofendido. Nesta última hipótese, no entanto, admite-se legitimidade concorrente do funcionário público para intentar queixa-crime, conforme a súmula 714 do STF (“é concorrente a legitimidade do ofendido, mediante queixa, e do Ministério Público, condicionada à representação do ofendido, para a ação penal por crime contra a honra de servidor público em razão do exercício de suas

funções”). O processo e julgamento do delito de difamação compete ao Juizado Especial Criminal, consoante o procedimento sumaríssimo (arts. 98, inciso I, da Constituição Federal, e 60 e ss. da Lei nº 9.099/1995). A difamação admite a suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/1995, à exceção dos casos de violência doméstica e familiar contra mulher (art. 41 da Lei Maria da Penha, isto é, Lei nº 11.340/2006). A retratação cabal, ocorrida antes da sentença, extingue a punibilidade do agente, nos termos do art. 143 e seu parágrafo único.

FOOTNOTES 1

“A difamação compõe o nível intermediário de ofensa à honra, considerado menos grave do que a calúnia, na medida em que o fato imputado não constitui crime, e é mais grave do que a injúria, porquanto afeta o ofendido em uma dimensão superior à da autoestima, conspurcando também sua reputação.” Cf. BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte especial. São Paulo: Atlas, 2014, v. 1, p. 232.

2

Nesse influxo, como curiosidade histórica, observe-se que as Ordenações Filipinas insculpiam a criminalização dos “mexeriqueiros” (Livro V, Título LXXXV), para “se evitarem os inconvenientes, que dos mexericos nascem”.

3

“Art. 236. Julgar-se-ha crime de injuria: 1º Na imputação do um facto criminoso não comprehendido no artigo duzentos e vinte e nove. 2º Na imputação de vicios ou defeitos, que possam expôr ao odio, ou desprezo publico. 3º Na imputação vaga de crimes, ou vicios sem factos especificados. 4º Em tudo o que pôde prejudicar a reputação de alguem. 5º Em discursos, gestos, ou signaes reputados insultantes na opinião publica.”

4

“Art. 317. Julgar-se-há injuria: a) a imputação de vicios ou defeitos, com ou sem factos especificados, que possam expor a pessoa ao odio ou desprezo publico; b) a imputação de factos offensivos da reputação, do decoro e da honra; c) a palavra, o gesto, ou signal reputado insultante na opinião publica.”

5

“Art. 325. Difamar alguém, na propaganda eleitoral, ou visando a fins de propaganda, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação: Pena – detenção de três meses a um ano, e pagamento de 5 a 30 dias-multa. Parágrafo único. A exceção da verdade somente se admite se ofendido é funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções.”

6

“Art. 215. Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação: Pena – detenção, de três meses a um ano. Parágrafo único. A exceção da verdade somente se admite se a ofensa é relativa ao exercício da função pública, militar ou civil, do ofendido.”

7

“Art. 26 – Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação. Pena: reclusão, de 1 a 4 anos. Parágrafo único – Na mesma pena incorre quem, conhecendo o caráter ilícito da imputação, a propala ou divulga.”

8

GÓMEZ DE LA TORRE, Ignacio Berdugo. Honor y libertad de expressión. Madrid: Tecnos, 1987, p. 57.

9

ZACZYK, Rainer. La lesión al honor de la persona como lesión punible. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 77, mar./abr. 2009, pp. 128-140.

10

Segundo Noronha, “A difamação fere a reputação do indivíduo, isto é, o conceito, a estima, o apreço de que goza no meio social e que é o bem jurídico tutelado”. Cf. NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998. v. 2, p. 125.

11

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. VI, p. 41.

12

Assim, por exemplo, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2016. v. 2, p. 372; GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. Niterói: Impetus, 2019, p. 359; COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 2008, v. 4, p. 561; GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte especial – Crimes contra a pessoa. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017, p. 316; BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 235. Em sentido contrário, v.g., NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 127.

13

E.g., RHC nº 83091, rel. min. Marco Aurélio, 1ª Turma, DJ 26/09/2003.

14

Em sentido contrário, e.g., GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 315.

15

V.g., HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., pp. 46-47; BRUNO, Aníbal. Direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1966, v. IV, p. 289; REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro: São Paulo: Ed. RT, 2018, v. II, p. 174; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 372; COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal..., cit., p. 561; GRECO, Rogério. Curso de..., cit., p. 359; BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 235.

16

O exemplo é de NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 125.

17

No mesmo sentido, inclusive observando, com razão, que a previsão referida na calúnia é desnecessária, cf. NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 25.

18

BACIGALUPO, Enrique. Delitos contra el honor. Buenos Aires: Hammurabi, 2006, pp. 70-72; CASTIÑERA PALOU, Mª. Teresa. Delitos contra el honor. In: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María (Dir.). Lecciones de derecho penal: parte especial. Barcelona: Atelier, 2011, p. 173.

19

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988. v. I, pp. 228-229.

20

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 127.

21

FARIA, Bento de. Código penal brasileiro (comentado). Rio de Janeiro: Record, 1959, v. IV, p. 180.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-19.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 19. INJÚRIA (ART. 140)

Capítulo 19. Injúria (art. 140) Injúria Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa. § 1º – O juiz pode deixar de aplicar a pena: I – quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria; II – no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria. § 2º – Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes: Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência. § 3oSe a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: Pena – reclusão de um a três anos e multa.

19.1.Considerações iniciais É antiga a utilização do termo injúria, porém com acepção diversa da contemporânea. Na Roma antiga, injúria possuía sentido amplo, abarcando inclusive lesões físicas aos indivíduos. A idealização começou a ser refinada no direito germânico1, assumindo sentido claro e autônomo apenas em 1810, com o Código Penal de Napoleão. A injúria refere-se ao atingimento da honra subjetiva dos indivíduos, isto é, sua autoestima, ou avaliação que cada qual faz de si próprio. A primeira previsão brasileira quanto ao crime de injúria ocorreu com o Código Criminal do Império (1830)2. Neste, a incriminação abrangia também aquilo que hoje se compreende como difamação. A seguir, essa formatação foi mantida no Código Penal Republicano (1890)3. A Lei de Imprensa de 1934, no geral, também manteve similar tratamento. As três figuras delitivas contra a honra hodiernamente conhecidas, quais sejam, calúnia, difamação e injúria, foram erigidas autonomamente no Brasil apenas com o Código Penal de 1940. No caso da injúria, houve modificações posteriores. O art. 140 foi alterado nos anos de 1997 e de 2003. Primeiramente, a Lei nº 9.459/1997 trouxe a qualificadora do § 3º, que não possui nomen iuris, mas é comumente chamada “injúria racial”, concernente à utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem para a prática injuriosa. Em seguida, o mesmo parágrafo foi ampliado pela Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), a qual acresceu ao rol referenciado a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. A estruturação legal do artigo em destaque, desde então, mostra-se do seguinte modo: no caput,

prevê-se a doutrinariamente denominada injúria simples; no § 1º, o legislador fixou duas hipóteses de perdão judicial, aplicáveis a esta última; o § 2º, por sua vez, insculpe a qualificadora de injúria real e, por fim, o § 3º traz a qualificadora de injúria discriminatória (“injúria racial”). Como nos demais crimes contra a honra previstos no Código Penal, o delito de injúria possui natureza subsidiária. De acordo com o princípio da especialidade, a depender das circunstâncias que cercam o fato, podem incidir as incriminações assemelhadas fixadas no Código Eleitoral (Lei nº 4.737/1965)4 ou no Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001/1969)5. Ao contrário do que ocorre em comparação com a calúnia e a difamação, não existe figura assemelhada à injúria na Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/1983). Por derradeiro, note-se que as infrações contra a honra constantes da Lei de Imprensa, de 1967, foram retiradas do ordenamento brasileiro pelo Supremo Tribunal Federal com o julgamento da ADPF nº 130/DF, em 2009. Na oportunidade, a maioria dos ministros entendeu pela total inconstitucionalidade da Lei nº 5.250/1967.

19.2.Objetividade jurídica O interesse tutelado pela injúria consiste na honra, atributo da personalidade composto pelas relações de reconhecimento entre os indivíduos. Cuida-se de bem jurídico imaterial e disponível. O crime de injúria atinge especificamente a honra subjetiva do ser humano ofendido, ou seja, sua autoestima, conceito de si mesmo ou a avaliação que ele faz de si próprio. Em suma, consiste na honra interna da pessoa. A honra possui referência constitucional (art. 5º, inciso X), bem como previsão na Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 11). Como se trata de delito com apenas um bem jurídico protegido, a injúria, assim como os demais crimes contra a honra, é classificada como delito simples.

19.3.Sujeitos do delito Qualquer pessoa pode figurar como sujeito ativo do crime de injúria, que é delito comum. Em outras palavras, qualquer ser humano culpável pode praticar a infração penal em destaque, não se exigindo características especiais do agente. Com relação ao sujeito passivo, a seu turno, também qualquer pessoa pode ser vítima de injúria. Ressalta-se apenas a necessidade de que esse indivíduo possua capacidade para o sentimento da própria respeitabilidade. Prevalece o entendimento pacífico de que não é possível injúria com relação aos mortos. Seria, de fato, um disparate imaginar-se autoestima para quem não mais existe. Ademais, a previsão legal com relação a isso foi fixada exclusivamente para o crime de calúnia, no art. 138, § 2º. Do mesmo modo, também não se reconhece poder ser a pessoa jurídica sujeito passivo de injúria, por ausência de sensação moral, isto é, de citada capacidade para o sentimento da própria respeitabilidade. A injúria tutela a honra em seu caráter subjetivo, atributo exclusivo do ser humano, fruto de sua ínsita dignidade. Quanto aos chamados desonrados, isto é, pessoas que já não gozam mais de qualquer prestígio perante as demais, entende-se que podem ser vítimas de quaisquer dos delitos contra a honra, como a injúria. Relativamente aos menores e aos enfermos mentais, prevalece o entendimento de que podem ser sujeitos passivos de crimes contra a honra. Apenas, quanto à injúria, há uma ressalva: podem ser vitimados pelo crime, desde que tenham condições de entender o significado da ofensa que contra eles é proferida.

19.4.Tipicidade objetiva e subjetiva

Injúria é a ofensa à autoestima do indivíduo, em face de sua dignidade (ou seja, moralidade) ou de seu decoro (isto é, aspectos físicos ou intelectuais). A dignidade e o decoro são elementos da honra subjetiva do ser humano6. Consiste, então, a injúria em uma ação ou expressão que lesiona o sentimento da própria respeitabilidade de outra pessoa, menosprezando sua fama ou atentando contra seus aspectos fisiopsíquicos. Na injúria, há uma manifestação intencional de desprezo, menoscabo, ou desrespeito, para com o ofendido, por meio da realização de um comportamento negativo humilhante7. Em geral, este último se traduz em xingamento ou na atribuição genérica de qualidades negativas ou de fatos vagos e indeterminados, também desfavoráveis, a alguém, prescindindo-se de falsidade. Nesse sentido, e.g., há injúria quando o agente afirma que alguém é “desonesto”, “ladrão”, “burro”, “corno”, “impotente” ou que sai com pessoas prostituídas. Também há injúria quando o sujeito ativo assevera que determinado juiz “vende sentenças”. Mesmo que isso signifique, no fundo, que se está a atribuir a prática de crime de corrupção passiva ao ofendido, a imputação é por demais genérica, não delimitada em termos fáticos8. De se notar que insinuações ou afirmações relacionadas, por exemplo, à sexualidade LGBT de alguém – a despeito de sua veracidade – não deveriam, mas são comumente lançadas em nossa preconceituosa sociedade com o propósito de ofender. Em tais situações, há o crime contra a honra em análise. A injúria, como os demais delitos contra a honra, consiste em crime de ação livre. Pode, assim, a infração ser praticada por qualquer meio, como verbal, gestual ou escrito, bem como por desenhos ou, ainda, por atitudes, como, e.g., colocar lixo na porta da residência da vítima9 ou dirigir-lhe risadas de escárnio. Normalmente, o crime é praticado de forma ativa. Conforme Noronha10, é possível injúria por omissão, como no exemplo daquele que recusa o aperto de mão para quem lhe estende a sua. Não desnatura a injúria sua prática por meios dubitativos ou por intermédio de ironias. Quanto ao tipo subjetivo, o crime é integrado pelo dolo, direto ou eventual, acrescido de tendência intensificada (animus injuriandi), o que a doutrina antiga chamava de “dolo específico”. Há, em suma, o propósito de ofender. Como afirmado alhures, embora comecem a despontar, no exterior, pensamentos minoritários que rechaçam a necessidade de um elemento subjetivo especial do tipo nos crimes contra a honra11, isso se sinaliza sem sentido no caso da injúria. Não há injúria se o agente atua imbuído de animus jocandi, isto é, com fins humorísticos, desde que isso não seja simples artifício para ofender, o que deve ser aferido no caso concreto. A brincadeira infeliz, sem animus injuriandi, pode circunscrever-se à esfera cível, ensejando indenização, mas não é bastante para o reconhecimento do delito contra a honra. Na dúvida, impõe-se a absolvição pelo crime. O art. 140, caput, fixa a figura fundamental de injúria, denominada injúria simples. Há, ademais, duas qualificadoras previstas. O art. 140, § 2º, insculpe a injúria real, que é a perpetrada mediante violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considerem aviltantes, enquanto o art. 140, § 3º, estabelece a injúria discriminatória.

19.4.1.Injúria simples O nome injúria simples, como referido, é doutrinário, concernente à conduta de “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro”, figura delitiva insculpida no art. 140, caput. Cuidase da modalidade essencial de injúria, a ser reconhecida quando não presentes os elementos especializantes constantes das qualificadoras previstas nos §§ 2º e 3º. O núcleo do tipo, qual seja, a ação de “injuriar”, tem o significado de ofender, ultrajar, desonrar.

A conduta vedada é delimitada pelos elementos normativos “dignidade” e “decoro”. Conforme Hungria12, “dignidade é o sentimento da nossa própria honorabilidade ou valor moral”, enquanto “decoro é o sentimento, a consciência de nossa respeitabilidade pessoal”. Em outros termos, a dignidade diz com a moralidade do indivíduo e o decoro com suas características físicas e mentais. O comportamento criminoso se perfaz por uma conduta intencionalmente ofensiva que atinge a pessoa quanto ao juízo que faz de si mesma enquanto cidadã (dignidade) ou ser humano (decoro). A dignidade é um atributo da pessoa enquanto cidadã, enquanto o decoro decorre de suas características humanas. A autoestima do ofendido pode ser vulnerada por um aspecto ou outro. Advirta-se, no entanto, que a análise de tal vulneração deve ser feita a partir de critérios objetivos em relação ao bem jurídico, e não por considerações pessoais de humilhação conforme a suscetibilidade da vítima13. Em suma, o delito de injúria não abrange melindres diante de simples descortesias ou manifestações desfavoráveis14. Por fim, como critério hermenêutico corretivo, nada obsta que se reconheça o princípio da insignificância no caso concreto, afastando-se a tipicidade do fato.

19.4.1.1.Perdão judicial O art. 140, § 1º, fixa duas hipóteses de incidência do instituto do perdão judicial, o qual detém a natureza jurídica de causa de extinção da punibilidade (art. 107, inciso IX, do Código Penal). Dessa maneira, afasta-se a punibilidade quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria ou, no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria. Malgrado, em geral, a doutrina não se refira a respeito, sinalizando por uma aplicação ampla, tais casos de perdão judicial são aplicáveis exclusivamente à injúria simples. Isso se justifica seja pela posição tópica do § 1º, que abarca apenas o que foi insculpido até então, isto é, o caput, seja pela maior censurabilidade – e consequentemente, maior pena estabelecida – quanto às qualificadoras de injúria real e injúria discriminatória15. Em outras palavras, formalmente, quisesse o legislador ter estatuído o perdão para todos os casos, tê-lo-ia feito ao final; materialmente, por sua vez, não parece aceitável fixar hipótese de perdão quando há sucessivas injúrias com violência, ou vias de fato, aviltantes e muito menos com injúrias discriminatórias, cuja pena é bastante elevada, casos todos mais graves a ponto da lei prever apuração mediante ação penal pública, ainda que condicionada. Apesar de o legislador ter se utilizado da palavra “pode” no dispositivo em destaque, trata-se de um direito público subjetivo do acusado, que não pode ficar à mercê de puro arbítrio judicial, como nota com propriedade Bitencourt16. Satisfeitos os requisitos legais, o imputado faz jus ao reconhecimento da causa extintiva de punibilidade em foco, não assistindo razão ao posicionamento doutrinário tradicional a respeito17. Dessa maneira, o aplicador da lei penal deixará de impor punição: a) quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria, ou b) no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria. No primeiro caso, a finalidade da regra é a de afastar a punição àquele que ofende outra pessoa por conta de provocação feita diretamente por ela. Na hipótese, existe apenas um delito de injúria, praticado por quem foi provocado e, por essa razão, apesar de ter havido crime, a pena não é aplicada. A segunda previsão de perdão judicial, apesar de certa semelhança com a anterior, com ela não se confunde, pois há uma injúria em resposta incontinenti a outra, isto é, ocorre um revide. Nessa situação, de injúrias sucessivas, o juiz deixará de aplicar a punição exclusivamente àquele que retorquiu a ofensa que acabou de sofrer. De se notar que a razão de ser da norma é idêntica à do inciso anterior. Em havendo perdão para aquele que injuriou porque fora direta e reprovavelmente provocado, com muito mais razão haveria para o indivíduo que acabou de ser injuriado e respondeu da mesma maneira. Não existe qualquer motivo lógico para se conceder o perdão a ambos, como pensam alguns, porque isso

representaria premiar indevidamente aquele que, de forma criminosa, culminou por desencadear o crime de sua vítima. Por conseguinte, não existe compensação de injúrias na legislação penal brasileira18.

19.4.2.Injúria real Injúria real é uma das qualificadoras do crime de injúria, consistente na ofensa à dignidade ou decoro de alguém praticada por meio de agressão física, podendo disso decorrer ou não lesões no corpo da vítima. Na injúria real, o agente utiliza-se de violência ou vias de fato que se considerem, em qualquer dos dois casos, aviltantes, isto é, ultrajantes. Na injúria praticada por meio de violência, o agente agride fisicamente a vítima com o intuito de humilhá-la, ridicularizá-la, ademais, lesionando-a, como no exemplo da chicotada19. Nessa hipótese, há o intuito de ofender tanto a integridade física como a moral da vítima, razão pena qual se somam as penas, consoante determina o preceito secundário do art. 140, § 2º (detenção, de três meses a um ano, além da pena correspondente à violência). Se a intenção fosse apenas a de lesionar, o delito seria tão somente o de lesões corporais. A injúria real ainda pode ocorrer por meio de vias de fato, que consiste em uma contravenção penal (art. 21 da Lei das Contravenções Penais20). Vias de fato é a agressão praticada sem a intenção de lesionar (tapas, empurrões, puxões de cabelo ou de orelha etc.). Na qualificadora em foco, exige-se que as vias de fato sejam aviltantes, por si mesmas ou pela forma empregada. Nesse caso, também o intuito do sujeito ativo é exclusivamente o de ofender de forma vexaminosa, seja pela natureza da conduta, seja pelo meio empregado, como nos exemplos de rasgar as vestes de alguém, tosar-lhe o cabelo, cuspir-lhe no rosto, atirar-lhe fezes, dar-lhe chute nas nádegas etc.21 Em tais situações, tendo em vista o previsto no preceito secundário do § 2º, a contravenção será sempre absorvida pela injúria real22.

19.4.3.Injúria discriminatória O art. 140, § 3º, prevê a qualificadora de injúria discriminatória, também denominada de injúria preconceituosa23 ou, por vezes, de “injúria racial”. Consiste na ofensa efetivada com a utilização de elementos discriminatórios relativos a raça, cor, etnia, religião, origem, condição de idoso ou deficiente físico24. Lamentáveis exemplos trazidos pela jurisprudência são os de chamar alguém de “negro sujo”, “cão judeu”, “velho gagá” etc. Observe-se que a construção legal em análise não se limita ao elemento “raça”, motivo pelo qual se mostra equivocada a utilização do termo “injúria racial”. É maior a amplitude da qualificadora, abarcando-se um total de sete circunstâncias alternativas. Todavia, não há referência à sexualidade ou a gênero, o que sinaliza uma lacuna de proteção penal, em razão dos preconceitos sofridos pela comunidade LGBT e pelas mulheres no Brasil, país de sociedade marcadamente machista. A injúria discriminatória não se confunde com o crime de “racismo”, previsto no art. 20 da Lei nº 7.716/89. O “racismo”, tipo penal inafiançável e imprescritível, de acordo com o artigo 5º, inciso XLII, da Constituição, consiste numa ação discriminatória em razão de raça, cor, etnia, religião ou procedência (e.g., impedir o acesso de alguém a um clube porque é negro ou judeu etc.) ou, ainda, na efetivação de comentários genéricos capazes de induzir ou incitar a discriminação (v.g., publicar panfleto acusando os negros de serem inferiores ou de serem os responsáveis pela pobreza no Brasil). Da mesma forma que dito para a “injúria racial”, a utilização da expressão “racismo” para denominar o crime em questão é equívoca, uma vez que não se limita o tipo a raça. Certo seria chamá-lo de delito de “preconceito” ou “discriminação”. A pena da injúria discriminatória (reclusão de um a três anos e multa) é considerada desproporcional pela maioria da doutrina25, uma vez que é idêntica à do “racismo” – conduta mais

grave – e, v.g., similar à do homicídio culposo e autoaborto e, ainda, muito superior à da injúria simples (detenção de 1 a 6 meses ou multa), que é infração penal de menor potencial ofensivo. Em 2015, nos autos do AREsp nº 686.965/DF, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a “injúria racial” deve ser considerada imprescritível. Na oportunidade, afirmou-se que “com o advento da Lei 9.459/97, introduzindo a denominada injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão”. No entanto, a Constituição não se referiu à injúria preconceituosa26, tratando-se de decisão minoritária representativa de analogia in malam partem, inaceitável em matéria penal.

19.5.Consumação e tentativa Por tutelar a honra subjetiva dos indivíduos, o crime de injúria se consuma quando a ofensa chega ao conhecimento do sujeito passivo. Por conseguinte, forçoso observar que a injúria pode ser praticada tanto na presença como na ausência da vítima, mas, neste último caso, apenas se aperfeiçoará quando o ofendido tiver ciência do afirmado. Em regra, a injúria não admite o reconhecimento da tentativa (conatus), visto que comumente unissubsistente, como na ofensa verbal dita em presença do ofendido. No entanto, quando a conduta se dá de modo plurissubsistente, é teoricamente admissível a tentativa, como quando a ofensa é efetivada na modalidade escrita ou por meio de gravação, ou quando dita a terceiros na ausência da vítima e o fato não chega por qualquer razão ao conhecimento do ofendido.

19.6.Exceção da verdade A exceção da verdade é a possibilidade de o sujeito ativo do crime contra a honra demonstrar que o fato por ele afirmado é verdadeiro, afastando, por conseguinte, o reconhecimento da incriminação por atipicidade da conduta. A exceptio veritatis é inadmissível na injúria, pois nela não há atribuição de fato.

19.7.Pena e ação penal O crime de injúria simples é punido de forma alternativa com pena de detenção, de um a seis meses, ou de multa (art. 140, caput). A qualificadora de injúria real (art. 140, § 2º), a seu turno, possui sanção de detenção, de três meses a um ano, além da pena correspondente à violência. Finalmente, à qualificadora de injúria discriminatória (art. 140, § 3º) é cominada punição de reclusão de um a três anos, acrescida de multa. Como nos demais casos de crimes contra a honra previstos no Código Penal, podem incidir causas de aumento de pena para a injúria, conforme previsão constante das disposições comuns aos crimes contra a honra (art. 141). A respeito, existem hipóteses com dois percentuais de majoração distintos. A pena aumenta-se de um terço se o crime for cometido: a) contra o Presidente da República, ou contra chefe de governo estrangeiro; b) contra funcionário público, em razão de suas funções; c) na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a sua divulgação. Já se o crime for cometido mediante paga ou promessa de recompensa, isto é, a título mercenário, duplica-se a pena (art. 141, parágrafo único). Não é prevista majorante de delito praticado “contra pessoa maior de sessenta anos ou portadora de deficiência” para a injúria em razão da existência da qualificadora do § 3º. A ressalva legislativa é feita para fins de se evitar bis in idem. Em regra, o crime de injúria é apurável mediante ação penal privada (art. 145), ou seja, imperioso o oferecimento de queixa-crime por parte do ofendido. Há, contudo, quatro exceções a isso, previstas no art. 145, caput e parágrafo único.

Em primeiro lugar, se o crime é praticado contra o Presidente da República, ou contra chefe de governo estrangeiro, a ação penal é pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça. Caso a injúria seja perpetrada contra funcionário público, em razão de suas funções, a ação penal é pública condicionada à representação do ofendido, admitindo-se, ainda, de forma concorrente, a ação penal privada, conforme o teor da súmula 71427, editada em 2003 pelo STF. Demais disso, a injúria discriminatória (art. 140, § 3º) é apurada mediante ação penal pública condicionada à representação do ofendido. Na injúria real, se dela resultar lesão corporal de natureza grave (art. 129, §§ 1º e 2º), a ação é penal pública incondicionada; enquanto se decorrer lesões leves, a ação é pública condicionada à representação do ofendido (art. 100, § 1º, do Código Penal, e art. 88 da Lei nº 9.099/1995). Por fim, se a injúria real for praticada mediante vias de fato que se considerem aviltantes, a ação penal é privada (art. 145, caput). O processo e julgamento do delito de injúria simples e da qualificadora de injúria real competem ao Juizado Especial Criminal, consoante o procedimento sumaríssimo (arts. 98, inciso I, da Constituição Federal, e 60 e ss. da Lei nº 9.099/1995). A qualificadora de injúria discriminatória, por sua vez, é competência das varas criminais comuns. Todas as figuras de injúria – simples, real ou discriminatória – admitem a suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/1995, à exceção dos casos de violência doméstica e familiar contra mulher (art. 41 da Lei Maria da Penha, isto é, Lei nº 11.340/2006). Não se admite retratação no delito de injúria, nos termos do art. 143, caput. Caso o sujeito ativo do delito se desdiga, pedindo desculpas pela ofensa perpetrada, tal somente pode ser mensurado favoravelmente no momento de aplicação da pena por parte do juiz.

FOOTNOTES 1

LISZT, Franz von. Tratado de direito penal. Trad. José Higino Duarte Pereira. Campinas: Russell, 2003, t. I, p. 77.

2

“Art. 236. Julgar-se-ha crime de injuria: 1º Na imputação do um facto criminoso não comprehendido no artigo duzentos e vinte e nove. 2º Na imputação de vicios ou defeitos, que possam expôr ao odio, ou desprezo publico. 3º Na imputação vaga de crimes, ou vicios sem factos especificados. 4º Em tudo o que pôde prejudicar a reputação de alguem. 5º Em discursos, gestos, ou signaes reputados insultantes na opinião publica.”

3

“Art. 317. Julgar-se-há injuria: a) a imputação de vicios ou defeitos, com ou sem factos especificados, que possam expor a pessoa ao odio ou desprezo publico; b) a imputação de factos offensivos da reputação, do decoro e da honra; c) a palavra, o gesto, ou signal reputado insultante na opinião publica.”

4

“Art. 326. Injuriar alguém, na propaganda eleitoral, ou visando a fins de propaganda, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena – detenção até seis meses, ou pagamento de 30 a 60 dias-multa. § 1º O juiz pode deixar de aplicar a pena: I – se o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria; II – no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria. § 2º Se a injúria consiste em violência ou vias de fato, que, por sua natureza ou meio empregado, se considerem aviltantes: Pena – detenção de três meses a um ano e pagamento de 5 a 20 dias-multa, além das penas correspondentes à violência prevista no Código Penal.”

5

Nesse diploma, há previsão autônoma da injúria real em relação à injúria simples. Assim, o art. 216 traz a injúria simples: “Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena – detenção, até seis meses”, enquanto o art. 217 prevê a injúria real: “Se a injúria consiste em violência, ou outro ato que atinja a pessoa, e, por sua natureza ou pelo meio empregado, se considera aviltante: Pena – detenção, de três meses a um ano, além da pena correspondente à violência”.

6

Observa Noronha a respeito: “Lexicologicamente, dignidade e decoro são sinônimos, mas, na lei, apresentam nuanças. A primeira é o juízo que a pessoa tem da própria honra ou honorabilidade, que é ofendida com expressões como ‘ladrão’, ‘estelionatário’, ‘pederasta’ etc. Decoro é decência, respeitabilidade e consideração que merecemos e que é lesado, v.g., quando se chama alguém de ‘estúpido’, ‘ignorante’, ‘arara’ etc. Já agora, não há ofensa à honra – ser apoucado de inteligência não é desonroso – mas lesão ao respeito pessoal”. Cf. NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998. v. 2, p. 130.

7

Conforme Hungria, injúria “é a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo ou vilipêndio contra alguém”. Cf. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955. v. VI, p. 85.

8

Nesse sentido, como observa com razão Bitencourt, havendo dúvida quanto à atribuição de fato ou qualidade negativa, o intérprete deve optar pela injúria, figura menos grave e mais abrangente entre os crimes contra a honra, cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 381.

9

BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte especial 1. São Paulo: Atlas, 2014, p. 240.

10

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 134.

11

BACIGALUPO, Enrique. Delitos contra el honor. Buenos Aires: Hammurabi, 2006, pp. 70-72; CASTIÑERA PALOU, Mª. Teresa. Delitos contra el honor. In: SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María (Dir.). Lecciones de derecho penal: parte especial. Barcelona: Atelier, 2011, p. 173.

12

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 86.

13

FARIA, Bento de. Código penal brasileiro (comentado). Rio de Janeiro: Record, 1959, v. IV, pp. 183-184.

14

Em sentido similar, cf. NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 132.

15

Em sentido contrário ao texto, Bitencourt admite o perdão para a injúria real, desde que haja proporcionalidade entre as condutas, cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 388. Também entendendo por se abarcar quer a injúria simples como a qualificada, v.g., GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte especial – Crimes contra a pessoa. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017, p. 341.

16

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 387. No mesmo diapasão, entendendo tratar-se de direito público subjetivo, e.g., GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 341; COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 2008, v. 4, p. 592.

17

Assim, e.g., FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988. v. I, p. 230; REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro: São Paulo: Ed. RT, 2018, v. II, p. 182; GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. Niterói: Impetus, 2019, pp. 375-376.

18

No mesmo influxo, e.g., COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal. São Paulo: Saraiva, v. 2, p. 54; NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 136; REGIS PRADO, Luiz. Curso de..., cit., p. 183; MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. São Paulo: Atlas, 2010. v. II, p. 132.

19

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 137.

20

“Art. 21. Praticar vias de fato contra alguém: Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de cem mil réis a um conto de réis, se o fato não constitue crime. Parágrafo único. Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) até a metade se a vítima é maior de 60 (sessenta) anos.”

21

Para Noronha, o próprio beijo pode constituir injúria real, se dado para humilhar. Cf. NORONHA, p. 137.

22

Consoante notava FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 232.

23

GRECO, Rogério. Curso de..., cit., p. 378; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 396.

24

Como afirmado supra, a redação do artigo em análise foi alterada em 2003, pelo Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741), o qual incluiu as duas últimas circunstâncias.

25

BUSATO, Paulo César. Direito penal..., cit., p. 247; GRECO, Rogério. Curso de..., cit., p. 379.

26

No mesmo sentido, GRECO, Rogério. Curso de..., cit., p. 379.

27

“É concorrente a legitimidade do ofendido, mediante queixa, e do Ministério Público, condicionada à representação do ofendido, para a ação penal por crime contra a honra de servidor público em razão do exercício de suas funções.”

2020 - 03 - 24

PAGE RB-20.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 20. DISPOSIÇÕES COMUNS E REGRAS ESPECIAIS NOS CRIMES CONTRA A HONRA (ARTS. 141 A 145)

Capítulo 20. Disposições comuns e regras especiais nos crimes contra a honra (arts. 141 a 145) Disposições comuns Art. 141 – As penas cominadas neste Capítulo aumentam-se de um terço, se qualquer dos crimes é cometido: I – contra o Presidente da República, ou contra chefe de governo estrangeiro; II – contra funcionário público, em razão de suas funções; III – na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria. IV – contra pessoa maior de 60 (sessenta) anos ou portadora de deficiência, exceto no caso de injúria. Parágrafo único – Se o crime é cometido mediante paga ou promessa de recompensa, aplica-se a pena em dobro. Exclusão do crime Art. 142 – Não constituem injúria ou difamação punível: I – a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador; II – a opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica, salvo quando inequívoca a intenção de injuriar ou difamar; III – o conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação ou informação que preste no cumprimento de dever do ofício. Parágrafo único – Nos casos dos ns. I e III, responde pela injúria ou pela difamação quem lhe dá publicidade. Retratação Art. 143 – O querelado que, antes da sentença, se retrata cabalmente da calúnia ou da difamação, fica isento de pena. Parágrafo único. Nos casos em que o querelado tenha praticado a calúnia ou a difamação utilizando-se de meios de comunicação, a retratação dar-se-á, se assim desejar o ofendido, pelos mesmos meios em que se praticou a ofensa. Art. 144 – Se, de referências, alusões ou frases, se infere calúnia, difamação ou injúria, quem se julga ofendido pode pedir explicações em juízo. Aquele que se recusa a dá-las ou, a critério do juiz, não as dá satisfatórias, responde pela ofensa.

Art. 145 – Nos crimes previstos neste Capítulo somente se procede mediante queixa, salvo quando, no caso do art. 140, § 2º, da violência resulta lesão corporal. Parágrafo único. Procede-se mediante requisição do Ministro da Justiça, no caso do inciso I do caput do art. 141 deste Código, e mediante representação do ofendido, no caso do inciso II do mesmo artigo, bem como no caso do § 3o do art. 140 deste Código.

20.1.Considerações iniciais O art. 141 do Código Penal – tanto no caput quanto no parágrafo único – traz causas de aumento de pena. Dessa maneira, as circunstâncias mais gravosas previstas devem ser sopesadas pelo aplicador da lei penal na terceira fase do sistema trifásico de aplicação de pena. Depois de referida consideração, ter-se-á a pena definitiva cominada ao agente. A redação do artigo em análise foi alterada em 2003, pelo Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741), para inclusão do inciso IV, que trouxe o aumento de pena de um terço se a calúnia e a difamação são perpetradas contra pessoa maior de 60 anos ou portadora de deficiência. A exclusão da injúria nestas situações decorre da existência de qualificadora de injúria discriminatória específica na parte final do § 3º do art. 140.

20.2.Causas de aumento de pena As penas de todos os crimes contra a honra aumentam-se de um terço se o delito é cometido contra o presidente da República ou contra chefe de governo estrangeiro; contra funcionário público em razão de sua função; na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação; contra pessoa maior de 60 anos ou portadora de deficiência, exceto nos casos de injúria (pois nessa hipótese há qualificadora). A majoração em decorrência da condição de a vítima ser o presidente da República ou algum chefe de governo estrangeiro decorre do significado político de tais cargos. Cuida-se de medida político-criminal voltada à honorabilidade do cargo. Também com viés público, ou seja, tendo em vista a importância e a respeitabilidade do cargo, é que há a mesma causa de aumento se o ofendido for servidor público e, por via de consequência, essa ofensa tenha se dado em razão de suas funções. Observe-se que a ofensa em razão da condição de funcionário público ostenta caráter subjetivo, ou seja, diz respeito ao motivo da ofensa. Assim, não basta a simples condição objetiva de ser a vítima servidor; deve ela ter sido vilipendiada em sua honra por isso. Para a caracterização do crime contra a honra com esta causa de aumento, a ofensa deve se dar sem a presença do funcionário público, pois nesse caso o crime passa a ser de desacato (art. 331 do Código Penal). Conforme Noronha1, “por presença não se há de entender unicamente a ofensa atirada face a face; basta que o ofendido esteja presente, podendo até não ter visto ou ouvido a ofensa”. A majoração em razão de ter sido o crime perpetrado na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação, decorre da maior ofensividade da ação. Em razão do afastamento da Lei de Imprensa de nosso ordenamento, ganha importância a presente causa de aumento de pena, que deverá ser reconhecida sempre que o delito contra a honra for praticado pelos meios de comunicações de massas. Da mesma forma, incide a presente causa se a ofensa é efetuada numa festa, na frente dos convidados; numa sala de aula com diversos alunos; utilizando-se de um megafone na via pública diante de transeuntes; mediante a distribuição de folhetos; por meio de um “blog” ou página na “internet” etc. A causa de aumento prevista para injúria ou difamação praticadas contra pessoa maior de 60 anos ou portadora de deficiência, não parece ter a mesma justificativa que a injúria discriminatória pelas mesmas razões. Isso porque uma coisa é ofender alguém porque essa pessoa é idosa ou

deficiente, algo lamentável e, a nosso juízo, revelador de maior censurabilidade da conduta. Todavia, a presente causa de aumento é objetiva, ou seja, apenas porque o ofendido é deficiente ou idoso – e, nunca é demais frisar, o agente deve conhecer a circunstância – entendeu-se ser o fato mais grave. Não há sentido nisso. A calúnia e a difamação não seriam consideradas mais graves apenas por ser a vítima negra, por exemplo, se a ofensa contra a honra nada tem a ver com isso. Da mesma forma, só haveria razão na majoração se a calúnia ou a difamação comprovadamente ocorresse em razão da condição idosa ou deficiente da vítima. Não foi o que estabeleceu o legislador com a redação do inciso IV2, que, assim, viola os princípios da ofensividade e proporcionalidade penais. Por fim, a pena aplica-se em dobro se o crime contra a honra é mercenário, isto é, se o ofensor age mediante paga ou promessa de recompensa. Aquele que pagou ou prometeu a vantagem patrimonial para que a ofensa fosse levada a efeito é partícipe do crime contra a honra, sem a presente causa de aumento, pois não agiu por motivos econômicos3. Afora a injúria, os crimes contra a honra não possuem formas qualificadas. Desse modo, em determinados casos, quando presentes circunstâncias mais gravosas, o legislador fez a opção político-criminal de censurá-los com maior rigor por meio de causas de aumento de pena, de patamar de um terço ou do dobro, o que na prática eleva sensivelmente a pena imposta.

20.3.Exclusão do crime Há dissenso doutrinário com relação à natureza jurídica da presente previsão legislativa. Para Hungria4, não seria uma causa de exclusão da ilicitude, mas da punibilidade, insculpida por razões político-criminais. Ou seja, o crime subsistiria, mas excepcionalmente não seria apenado. Fragoso5, todavia, em ponderada análise, lecionava que são causas de exclusão do crime, ou pela ausência do elemento subjetivo especial do tipo “animus infamandi”, ou porque se exclui a antijuridicidade da conduta, que passa a ser permitida pelo Direito. Frise-se que a restrição disciplinada no presente artigo não se aplica ao delito de calúnia e sim apenas ao de difamação e ao de injúria. A primeira causa de exclusão prevista é a chamada imunidade judiciária, a qual beneficia especificamente a parte e seu procurador, não se abarcando, assim, por exemplo, o magistrado, o serventuário da justiça, a testemunha etc. Escora-se na liberdade de discussão da causa, que pode redundar em declarações – orais ou escritas – impetuosas ou impensadas ofensivas quanto ao objeto do processo. A expressão “na discussão da causa” significa que a imunidade não é absoluta, ou seja, não se cuida de “carta branca” para ofensas pessoais prolatadas pelas partes e seus procuradores. Deve ter nexo com o objeto da demanda. Noronha6, na esteira do asseverado por Fragoso7, entendia que a ofensa dirigida ao servidor público – como o juiz – nas condições descritas no inciso I do artigo em foco não estaria abarcada pela imunidade em questão. Todavia, a lei não faz essa distinção, representando referida interpretação analogia in malam partem, vedada em Direito Penal. A segunda imunidade descrita no art. 142 cuida-se da opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica, salvo quando inequívoca a intenção de injuriar ou difamar. Regrame assegurador da liberdade de expressão, as opiniões desfavoráveis quanto a um trabalho literário, artístico ou científico só encontram limites na incontroversa intenção de ofender, algo não tão simples de se aferir na prática. De todo modo, na dúvida impõe-se a solução mais favorável ao suposto ofensor. Também não configura crime contra a honra a opinião desfavorável emitida por servidor público, em apreciação ou informação que preste no cumprimento de sua função (inciso III do art. 142). Se, por um lado, a regra corretamente ampara o servidor quanto à sua liberdade de apreciação das hipóteses que lhe são afetas, por outro, não significa autorização ampla para

vilipêndio da honra alheia. Assim, aqui também existem limites, que devem ser aferidos no caso concreto. O conceito desfavorável emitido deve se restringir aos estreitos limites do apreciado, isto é, deve ter conexão quanto ao objeto da apreciação funcional. Tanto há limites na ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador e na opinião desfavorável emitida por funcionário público, em apreciação ou informação que preste no cumprimento de dever do ofício, que, de modo coerente, em havendo injúria ou difamação, também responde pelo crime quem lhe dá publicidade, conforme a previsão do parágrafo único do art. 142. De se notar, entretanto, que não foi razoável a exclusão do inciso II por parte do legislador no citado parágrafo único. Alguém pode perfeitamente dar publicidade a uma crítica artística, científica ou literária inequivocamente ofensiva, o que amplifica o vilipêndio ao bem jurídico tutelado. Mas, por falta de previsão legal, restará impune. O art. 142 do Código Penal fixa causas de exclusão dos crimes de difamação e de injúria. A divergência doutrinária quanto à sua natureza jurídica, ainda persistente no Brasil, parece decorrer de açodada análise feita por Hungria quanto ao tema. De toda forma, mais que teóricos, a disciplina em questão parece trazer muito mais desafios práticos, na análise concreta de situações pontuais, em razão das paixões que envolvem os litígios forenses, as opiniões literárias, artísticas e científicas ou as apreciações feitas por servidores públicos em seus misteres. Em situações dúbias, no entanto, há que se reconhecer a excludente.

20.4.Retratação Atendendo ao regrame estabelecido no art. 107, inciso VI, do Código Penal, o presente dispositivo traz uma causa expressa de extinção da punibilidade aplicável apenas aos crimes de calúnia e de difamação. A limitação a eles decorre do interesse envolvido, de cunho social, qual seja, a honra objetiva. A retratação é uma causa de extinção da punibilidade, consistente no ato de desdizer-se, negando-se cabalmente o fato delitivo ou desonroso imputado. Ela é admissível apenas nos crimes de calúnia e difamação porque estes atingem o conceito social do ofendido, que pode ser resgatado pela retratação. Essa deve ser cabal, irrestrita e feita antes da sentença, isentando de pena. Feita posteriormente, cuida-se de atenuante genérica (art. 65, inciso III, alínea “b”, do Código Penal). Não há fórmula sacramental, mas entende-se que deve constar por escrito no processo. Pode ser feita por querelado ou por procurador com poderes constituídos. Pelo próprio teor da redação do art. 143, deve-se notar que a retratação feita por coautor não se comunica aos demais, visto que de caráter pessoal. Aliás, ao revés, na prática, poderá a retratação de um coautor ser sopesada como elemento de convicção do julgador para a condenação do comparsa que não se retratou. Doutrina e jurisprudência dominantes entendem ser incabível a presente causa de extinção da punibilidade em hipóteses de ação penal pública condicionada (caso, e.g., da calúnia ou da difamação feita a funcionário público em razão de suas funções). Isso porque o legislador utilizouse da palavra “querelado” no dispositivo. Retratação, reitere-se, é o ato de desdizer-se, de retirar o que foi dito, e não de simplesmente negar que tenha sido praticado crime contra a honra. É uma espécie de arrependimento eficaz, consoante Hungria8. Cuida-se de ato unilateral – independe de aceitação por parte do ofendido – que tem por escopo buscar e resguardar a verdade – interesse superior da Justiça9. A retratação é causa de extinção da punibilidade do agente que praticou calúnia ou difamação e, posteriormente, retirou o que foi dito, desdizendo-se. Sua limitada utilização na prática, apesar do que o presente dispositivo poderia sinalizar, decorre do fato de que o instituto somente possui

efeitos penais. Assim, não só não obsta a ação civil reparatória correspondente, como certamente serve de elemento de prova para uma condenação nesta seara. O agente escapa de uma condenação penal, porém não tem a possibilidade, por exemplo, de negar a autoria do fato.

20.5.Pedido de explicações criminal Estabelece o art. 144 que “se, de referências, alusões ou frases, se infere calúnia, difamação ou injúria, quem se julga ofendido pode pedir explicações em juízo. Aquele que se recusa a dá-las ou, a critério do juiz, não as dá satisfatórias, responde pela ofensa”. Trata-se do pedido de explicações criminais, que é possível diante da dubiedade da ofensa à honra alheia, forma covarde de atingimento do bem jurídico tutelado, consoante Fragoso10. Diante de assertivas com duplo sentido ou insinuações, ou mesmo de intencionalidade controversa, conforme se analisará infra, o possível ofendido pode interpelar em juízo o possível ofensor. O art. 144 do Código Penal estabelece uma regra processual diretamente relacionada com o assunto tratado no presente capítulo. Por vezes, frases dúbias são lançadas, verbalmente ou por escrito, com intuito criminoso ou não. Hungria11 considerava que a equivocidade poderia dizer respeito ao conteúdo ofensivo ou a seu destinatário. Mas, segundo compreendemos, de modo similar, frases inequívocas podem ser lançadas com intuito controverso. Assim, se de referências, alusões ou frases, infere-se, ou seja, pode-se deduzir, calúnia, difamação ou injúria, quem se julga ofendido pode pedir explicações em juízo. Cuida-se da previsão do pedido de explicações criminais, que tem a possibilidade simultânea de salvaguardar a honra possivelmente atingida e de evitar um processo criminal para o autor das assertivas dúbias. Sem dúvidas, o pedido de explicações criminais consiste em uma medida preparatória e facultativa ao oferecimento de queixa-crime ou mesmo de representação em caso de ação penal pública condicionada. É uma medida de prudência a todos os envolvidos, a qual, lamentavelmente, tem sido interpretada de modo, a nosso ver, formalista e equivocado por doutrina e jurisprudência ao longo dos anos. Isso porque é comum a compreensão que sustenta a inviabilidade do pedido de explicações quando as frases são supostamente inequívocas (entre outros, Aníbal Bruno, Mirabete, Costa Júnior e Bitencourt)12. Ora, mesmo a frase inequívoca pode ser dita sem o animus infamandi, o que poderia ser esclarecido na resposta ao pedido de explicações criminais. Assim, por exemplo, o suposto ofensor teria a oportunidade de explicar e eventualmente demonstrar que agiu com animus jocandi, não tendo intuito de vilipendiar a honra de ninguém e, ao mesmo tempo, claramente desculpar-se. Com isso, evitar-se-iam processos desnecessários e movidos apenas por rancores num Judiciário enormemente assoberbado. Aliás, não se pode deixar de observar que a maior tolerância e flexibilidade com relação à aceitação de pedidos de explicações criminais possibilitaria aos ofensores de fato o oferecimento de retratações, também se evitando futuros processos. O formalismo ou simples desejo de rechaço de labor imediato por parte de alguns apenas gera mais conflituosidade futura. De qualquer modo, frise-se que o pedido de explicações criminais não é obrigatório, sendo apenas uma chance de se evitar batalhas processuais subsequentes. Não compete ao juiz a formulação de qualquer juízo quanto à resposta dada, de interesse exclusivo do peticionário. Por fim, de se notar que a frase final do artigo em análise é absolutamente infeliz e pode gerar equívocos. O legislador estabeleceu que quem se recusa a fornecer explicações ou, a critério do juiz, não as dá satisfatórias, responde pela ofensa. O silêncio legislativo teria sido melhor. A frase não significa que a ausência de resposta ou a resposta mal dada levam ipso facto à responsabilização pelo crime contra a honra, como poderia parecer. Estabelece-se, tão somente, que a omissão do requerido, ou seu esclarecimento malfeito,

possibilitam o oferecimento de uma acusação. E o juiz referido no artigo não é o que oficia no pedido de explicações, mas sim ao competente para processamento da queixa-crime ou denúncia13, que avalia se o requerido esclareceu a situação, evitando o recebimento da acusação. O dispositivo em destaque não possui uma construção jurídica das mais felizes e, por via de consequência, vem recebendo da doutrina e jurisprudência interpretações bastante formalistas, que restringem sua aplicabilidade. Isso porque a dubiedade da ofensa pode não envolver apenas o conteúdo ofensivo ou o seu destinatário, mas também a intenção do agente, não se podendo olvidar que os crimes contra a honra possuem elemento subjetivo especial do tipo. Ademais, político-criminalmente, pulula às escâncaras o interesse social e dos envolvidos em se evitar processos desnecessários, por meio do oferecimento de retratações ou esclarecimentos necessários por parte do possível ofensor. Por fim, de se notar que, como não se cuida de norma restritiva, a interpretação mais abrangente não apenas não é vedada, mas, isso sim, recomendada.

20.6.Ação penal nos crimes contra a honra O art. 145 ostenta cunho processual, disciplinando as formas de provocação da persecução penal nos crimes contra a honra. O estabelecido harmoniza-se com o regrame geral previsto nos arts. 100 a 106 do Código Penal, que fixa os modos de se invocar a prestação jurisdicional na seara criminal. Dessa maneira, classifica-se a ação penal em pública (incondicionada ou condicionada) ou privada (exclusivamente ou subsidiária). No primeiro caso, em regra, o Estado é que promove a ação penal, por meio da atuação do Ministério Público. Na segunda hipótese, o particular, excepcionalmente, assume essa tarefa. O legislador levou em consideração no art. 145 o interesse da vítima em face do delito, pois no caso em análise, no geral, o fato ilícito interessa muito mais à sua pessoa que à sociedade. Ademais, de se ver que o bem jurídico em jogo é disponível. Contrariamente à sistemática comum, a regra geral é a de que, nos crimes contra a honra, a ação penal seja de exclusiva iniciativa privada. Por conseguinte, deverá haver o oferecimento da queixa-crime, dentro do prazo legal, na maior parte das situações. As hipóteses diferenciadas restam apontadas no caput e parágrafo único do art. 145. A primeira exceção ocorre quando, na injúria real (art. 140, § 2º), resulta lesão corporal grave ou gravíssima, caso em que a ação penal será pública incondicionada. Muito embora o dispositivo refira-se simplesmente a “lesão corporal”, de se notar que se da injúria real resultar lesão corporal leve, não poderá ser a ação penal pública incondicionada, pois o art. 88 da Lei nº 9.099/1995, fixou a necessidade de representação para lesões corporais leves (art. 129, caput), devendo haver aqui uma interpretação sistemática. A próxima exceção ocorre em crimes contra a honra praticados contra o Presidente da República ou contra chefe de governo estrangeiro. Pelo interesse público envolvido, não se esperaria que tais mandatários necessitassem aduzir uma queixa-crime. Por essa razão, nesses casos, a ação é pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça. Ainda em nome do interesse público envolvido, é pública condicionada à representação do ofendido a ação penal por crimes contra a honra perpetrados contra o servidor público em razão de suas funções. Findando com antiga divergência jurisprudencial, a Súmula 714 do Supremo Tribunal Federal estabelece que: “É concorrente a legitimidade do ofendido, mediante queixa, e do Ministério Público, condicionada à representação do ofendido, para a ação penal por crime contra a honra de servidor público em razão do exercício de suas funções”. Por fim, em hipótese acrescida por modificação legislativa trazida pela Lei nº 12.033/2009, também é pública condicionada à representação do ofendido a ação penal por crime de injúria discriminatória, comumente chamada de injúria “racial” (art. 140, § 3º). A gravidade dessa conduta preconceituosa, verdadeiro crime de ódio, interessa também ao Estado, que deve assegurar o pluralismo e a igualdade dos cidadãos num Estado Democrático de Direito.

Excepcionando a regra geral do Código Penal, segundo a qual a ação penal é a princípio sempre pública incondicionada, os crimes contra a honra, no presente dispositivo disciplinados em termos processuais penais, em geral são de exclusiva iniciativa privada. Ou seja, em regra são ajuizados mediante queixa-crime. As exceções a isso decorrem da gravidade dos fatos ou natureza do interesse envolvido.

FOOTNOTES 1

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 139.

2

Ao utilizar-se da palavra “contra” em vez da expressão “por ser a”. Caso fosse esta última a construção legislativa, a causa de aumento revelaria cunho subjetivo e, como crime de ódio (“hate crime”) a grupos, faria sentido.

3

Em sentido oposto, e.g., BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 407.

4

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. VI, p. 110.

5

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988, v. I, p. 237.

6

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 138.

7

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 238.

8

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 120.

9

REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2018, p. 188.

10

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 242.

11

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., pp. 121-122.

12

Na jurisprudência, e.g., RT 488/316, RT 519/402, RT 534/377, JTACrSP 86/227 e JTACrSP 97/287.

13

Nesse sentido, v.g., HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p.123, e FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 243.

© desta edição [2019]

2020 - 03 - 24

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 REVISTA DOS TRIBUNAIS

This PDF Contains CAPÍTULO 21. CONSTRANGIMENTO ILEGAL (ART. 146), p.RB-21.1 CAPÍTULO 22. AMEAÇA (ART. 147), p.RB-22.1 CAPÍTULO 23. SEQUESTRO E CÁRCERE PRIVADO (ART. 148), p.RB-23.1 CAPÍTULO 24. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO (ART. 149), p.RB-24.1 CAPÍTULO 25. TRÁFICO DE PESSOAS (ART. 149-A), p.RB-25.1

2020 - 03 - 24

PAGE RB-21.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 21. CONSTRANGIMENTO ILEGAL (ART. 146)

Capítulo 21. Constrangimento ilegal (art. 146) Constrangimento ilegal Art. 146 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda: Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa. Aumento de pena § 1º – As penas aplicam-se cumulativamente e em dobro, quando, para a execução do crime, se reúnem mais de três pessoas, ou há emprego de armas. § 2º – Além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à violência. § 3º – Não se compreendem na disposição deste artigo: I – a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida; II – a coação exercida para impedir suicídio.

21.1. Nota prévia sobre os crimes contra a liberdade individual Dentro dos crimes contra a liberdade individual (capítulo VI do título dos crimes contra a pessoa) encontram-se: os crimes contra a liberdade pessoal, os crimes contra a inviolabilidade do domicílio, os crimes contra a inviolabilidade de correspondência, e, por fim, os crimes contra a inviolabilidade dos segredos. Tutela-se, assim, a autodeterminação dos indivíduos, em seus diversos aspectos, a começar pelo mais essencial, qual seja, a liberdade pessoal. Os crimes contra a liberdade pessoal abrangem as seguintes figuras em nossa legislação: constrangimento ilegal (art. 146); ameaça (art.147); sequestro e cárcere privado (art.148) e redução a condição análoga à de escravo (art.149). Os delitos dos artigos 146, 147 e 148 podem consubstanciar-se em meios da prática de outros crimes (e.g., estupro, assédio sexual, roubo, extorsão e extorsão mediante sequestro). Não contendo os elementos especializantes, cuidam-se das presentes figuras. Por conseguinte, observase que os delitos em foco são crimes subsidiários ou suplementares, consoante compreensão majoritária. A delimitação desses crimes com a tônica atual, isto é, de proteção à liberdade humana, deve-se ao Iluminismo e ao jusnaturalismo, que procurou dar o substrato filosófico aos ideais políticos de então. É o influxo decorrente, por exemplo, das diversas declarações de direitos do século XVIII. A elaboração científica dessas figuras delitivas deve-se, fundamentalmente, à ciência jurídica alemã do final do século XVIII e início do XIX, a qual entendia que os tipos em questão diziam respeito à liberdade individual, um direito natural do ser humano.

Em realidade, com tais incriminações, segundo irretocável observação de Hungria1, tutela-se a liberdade jurídica. Sob um ponto de vista jurídico, o limite é inseparável do conceito de liberdade, conforme o autor. Liberdade pessoal é, então, face da liberdade individual. Compreende o interesse jurídico do indivíduo à imperturbada formação e atuação de sua vontade, à sua tranquila possibilidade de ir e vir, à livre disposição de si mesmo ou ao seu status libertatis, nos limites traçados pela lei. Trata-se, em suma, do direito à independência de injusto poder estranho sobre a nossa pessoa. Como referido, a primeira figura que tutela esse interesse é a do constrangimento ilegal.

21.2. Considerações iniciais sobre o delito de constrangimento ilegal Embora o Direito Romano já coibisse atos violentos, o tipo de constrangimento ilegal somente foi delimitado, conforme os contornos com que hoje o assimilamos, após o Iluminismo2. Dessa maneira, observa-se que o constrangimento ilegal “como forma delituosa pela qual a liberdade pessoal, como interesse tutelável por si mesmo, é passível de violação, traduz uma noção jurídicopenal relativamente moderna”3. Foi na época da Revolução Francesa que a liberdade passou a ser vista como um interesse que poderia ser tutelado independentemente de qualquer outro4. No Brasil, o tipo surge no Código Criminal do Império (1830), sendo mantido no diploma republicano (1890). Tanto o primeiro, na parte dos crimes contra a liberdade individual, quanto o segundo, entre os crimes contra a liberdade pessoal, traziam tipificação semelhante ao constrangimento ilegal, mas sem usar tal nomen iuris. Foi o Projeto Sá Pereira – projeto de Código Penal de 1928, que não logrou êxito – que primeiro utilizou no país a denominação, a qual, uma vez acolhida pelo Projeto Alcântara Machado, de 1937 – origem do Código de 1940 –, perdura até hoje. O artigo 146 do Código Penal não sofreu qualquer alteração desde sua entrada em vigor. Atualmente, o tipo penal de constrangimento ilegal dá azo a inúmeros desafios dogmáticos, com importantes consequências práticas. Além disso, reflexões político-criminais se impõem. Assim é que seu viés subsidiário pode muitas vezes trazer problemas de conflito aparente de normas, conforme se verá infra. Ainda, por esse mesmo cunho secundário, a verificação de suas sanções desnuda questões de proporcionalidade, comumente negligenciadas na doutrina e jurisprudência brasileiras. Também suas excludentes de tipicidade referentes à intervenção médica indesejada ou à coação para impedir suicídio ensejam importantes debates sobre paternalismo estatal na relação médico/paciente e a imposição de tratamentos não desejados por esse último, bem como relativamente ao suicídio.

21.3. Objetividade jurídica Protege-se a autodeterminação humana, isto é, a liberdade individual, que abarca tanto a liberdade psíquica – livre formação da vontade, sem qualquer coação – como a liberdade física – a liberdade de movimentar-se5. Vale ressaltar que há resguardo constitucional da liberdade, observado no preceito de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (artigo 5º, inciso II, da Carta). Em outros termos, cada um pode fazer livremente tudo o que a lei não veda, sem que haja interferências externas. Interesse de destacada importância, o livre exercício da dignidade humana é o que está em jogo na presente tutela penal6.

21.4. Sujeitos do delito A princípio, quanto aos sujeitos ativo e passivo, o crime de constrangimento ilegal pode ser

perpetrado por qualquer pessoa (crime comum) contra qualquer pessoa. Entretanto, há peculiaridades a respeito. Senão vejamos. Quanto ao sujeito ativo, apesar de tratar-se de delito comum, não obstante, se o constrangimento ilegal for praticado por funcionário público no exercício de suas funções, conforme as circunstâncias, poderá se dar os tipos dos artigos 322 (violência arbitrária7), 350 (exercício arbitrário ou abuso de poder8) ou, ainda, 3º da Lei nº 4.898/1965 (abuso de autoridade). Dessa maneira, a qualidade especial do sujeito ativo, isto é, funcionário público, pode ensejar a modificação do tipo penal. No que diz respeito ao sujeito passivo, por sua vez, deve ele possuir capacidade de autodeterminação, sob pena de se tratar de crime impossível ou de se levar a subsunção do fato a outro tipo penal. Dessa forma, excluídos estão os enfermos mentais que não possam entender a violência ou motivar-se a partir dela9. Caso o constrangimento recaia sobre criança ou adolescente sob a autoridade, guarda ou vigilância do agente, há incidência do crime do artigo 232 do Estatuto da Criança e do Adolescente10. Por fim, ainda relativamente ao sujeito passivo, a doutrina, acertadamente, observa que a incapacidade física (e.g., aleijão) da vítima não obsta o reconhecimento do tipo penal em destaque.

21.5. Tipicidade objetiva e subjetiva O crime de constrangimento ilegal cuida-se, segundo o art. 146 do Código Penal brasileiro, de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda”. Com a figura delitiva em questão, impede-se a liberdade de ação ou inação do sujeito passivo, a qual, no ordenamento brasileiro, como visto, possui acento constitucional. Constranger tem o sentido de coagir, forçar, compelir, obrigar alguém a algo. No caso, o legislador delimitou a que se refere a imposição: a) a não fazer o que a lei permite, isto é, omitir-se; ou b) a fazer o que a lei não manda, ou seja, realizar uma ação, ou seja, um comportamento comissivo. Não configura o tipo do artigo 146 impedir a prática de um crime – visto que não há liberdade de delinquir – ou de qualquer ato antijurídico11. O tipo refere-se a “não fazer o que a lei permite”. Se o ato for imoral, há perfazimento do tipo do art. 146. Dessa maneira, quem, por exemplo, impede, mediante violência, pessoa maior e capaz de se prostituir comete constrangimento ilegal12. A lei permite a prática de atos imorais. São exemplos de constrangimento ilegal os de se obrigar, mediante os meios previstos, alguém a não viajar, a não ir a uma festa, a escrever uma carta, a realizar uma ligação telefônica, a ser revistado em uma loja, a devolver um animal de estimação adquirido, a fazer ou não fazer uma tatuagem, a dizer onde se encontra uma pessoa, entre inúmeros outros que a realidade concreta oferece. Embora não se costume frisar, de se notar que a tônica dogmática está no desrespeito à capacidade de consentimento da vítima do delito. Em outras palavras, o dissenso da vítima encontra-se subjacente ao tipo em comento. O constrangimento deve ter a característica da ilegitimidade, quer absoluta, quer relativa, ocorrendo quando o sujeito passivo não está por lei obrigado a fazer ou deixar de fazer o que pretende o agente, ou quando não é lícito a esse empregar violência ou ameaça para conseguir a conduta desejada13. Há ilegitimidade absoluta quando o agente não possui qualquer faculdade de impor algo à vítima, e ilegitimidade relativa quando o agente não tem direito de empregar coação, apesar de não ser a ele vedada a exigência extra judicium da ação ou omissão14. Existindo uma pretensão legítima do sujeito ativo, exigível judicialmente, poderá incidir o crime

de exercício arbitrário das próprias razões (art. 34515 do Código Penal). Nesses casos, o indivíduo que possui o direito pretendido deve procurar o Poder Judiciário, não podendo se substituir ao Estado. De se notar que o constrangimento deve perdurar durante todo o período em que o sujeito passivo realiza a conduta exigida, uma vez que, caso haja concordância superveniente, ele será descaracterizado16. O crime de constrangimento ilegal é normalmente perpetrado por meio comissivo. Contudo, nada obsta que seja praticado por meio omissivo (crime comissivo por omissão, ou omissivo impróprio), havendo a situação de garantia por parte do sujeito ativo17. Exemplos desta última situação são os da enfermeira que não alimenta o doente a menos que este realize certa conduta ou, ainda, do cônjuge que não abre a porta a seu consorte no frio invernal a menos que faça algo. Quanto aos meios de execução do crime, o constrangimento pode ser realizado18: a) mediante violência; b) mediante grave ameaça; ou c) por qualquer outro meio que reduza a capacidade de resistência. Apesar da enumeração taxativa, a amplitude material com que cada qual pode ser concretizada denota tratar-se de crime de forma livre. Uma vez mais, observe-se que são as formas de vilipêndio à livre decisão do sujeito passivo. Violência é o emprego de força física (vis corporalis), seja pelo impulso direto do agente, seja pela utilização de outros meios, como fogo e privação de alimentos, não sendo necessária uma violência irresistível19. A violência referida no tipo pode, ainda, ser imediata ou mediata. Imediata pode-se dar quando diretamente empregada sobre o sujeito passivo. Mediata ocorre quando exercida sobre terceiro (e.g., o filho da vítima) ou sobre coisa estritamente vinculada ao sujeito passivo (v.g., retirar a cadeira de rodas do cadeirante). A nota característica típica do delito em questão, ou seja, sua situação paradigmática, ocorre pelo emprego da violência. No ordenamento espanhol, v.g., Ragués I Vallés20 observa uma tendência jurisprudencial pela espiritualização da compreensão do que seria violência, havendo, efetivamente, em muitos casos, sua prescindibilidade no reconhecimento do delito correspondente, lá chamado de coação (art. 172 do Código Penal da Espanha). O professor espanhol, acertadamente, lança dúvidas sobre essa postura, eis que não se permite analogia in malam partem em Direito Penal. A ameaça é a violência moral (“vis compulsiva”), ou seja, a manifestação do intuito de causar a outrem, direta ou indiretamente, imediata ou futuramente, um mal relevante. O mal ameaçado não precisa ser injusto, como no crime de ameaça, mas tem de incutir medo, isto é, mostrar-se grave, além de determinado, possível de se realizar. Note-se, então, que a ideia de mal relevante abarca a simples pretensão ilegítima amedrontadora, independentemente de sua justiça, razão pela qual caracteriza o crime, por exemplo, o agente ameaçar o sujeito passivo de denunciá-lo às autoridades por crime que realmente tenha praticado, caso não se divorcie da esposa. Admite-se como ameaça a superstição, desde que a vítima acredite nisso (por exemplo, exigir algo sob pena de realizar “macumba” contra a vítima). A ameaça pode ser direta ou indireta, conforme se dirija à própria vítima ou a terceiro, podendo ser feita por qualquer meio, como o verbal, o escrito ou simbólico. Por fim, note-se que a ameaça condicionada não deixa de ser ameaça (v.g., ameaçar matar alguém na hipótese de ela vir a se casar). A menção de qualquer outro meio de redução da capacidade de resistência da vítima caracteriza formas fraudulentas de se retirar a capacidade de oposição desta. Refere-se, por exemplo, ao uso de substâncias entorpecentes, soníferos, entre outras, idôneas para violar a liberdade da vítima, e que sejam ministradas fraudulentamente, pois o emprego de violência ou grave ameaça configuraria uma das hipóteses tratadas anteriormente21.

Com relação ao elemento subjetivo do tipo, o crime de constrangimento ilegal admite o dolo, direto ou eventual. Ademais, há a presença de um elemento subjetivo especial, isto é, o especial fim de agir visado pelo agente, qual seja, o de constranger a uma específica ação ou a uma omissão por parte do sujeito passivo22. Importante notar que, se o fim objetivado é o de provocar ação ou omissão de natureza criminosa, pelo princípio da especialidade, o crime será o de tortura, conforme previsão constante do art. 1º, inciso I, “b”, da Lei nº 9.455/1997 (Lei de Tortura). O dispositivo insculpe como modalidade de crime de tortura o ato de “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental”, prevendo, dentre outras hipóteses, o intuito específico de “provocar ação ou omissão de natureza criminosa”. Não há previsão da modalidade culposa. Por fim, mencione-se que outras peculiaridades objetivas e subjetivas na conduta modificam o tipo penal aplicável. Exemplos: se o escopo é forçar o eleitor a votar em determinada candidatura política, o crime é o do art. 301 do Código Eleitoral23; se a intenção é compelir consumidor a pagar dívida, o crime será o do art. 71 da Lei nº 8.078/199024; finalmente, se o objetivo é obrigar idoso a doar, a testar ou a outorgar procuração, o crime é o do art. 107 do Estatuto do Idoso25.

21.6. Consumação e tentativa O constrangimento ilegal é um crime material, ou seja, exige resultado naturalístico, o qual, no caso, consiste na ação ou na omissão do coagido. Por conseguinte, a consumação do delito se dá quando o sujeito passivo, por ter sofrido violência, grave ameaça ou ter reduzida sua capacidade de resistência, faz ou deixa de fazer aquilo que lhe foi imposto pelo agente. Em suma, consuma-se o crime com o efetivo constrangimento da vítima26. Observa-se que há uma duplicidade comportamental a ser verificada para reconhecimento da consumação, pois, além, da ação coativa do sujeito ativo, deve necessariamente ser constatada a atividade coagida do sujeito passivo, que faz ou não aquilo a que foi constrangido27. Admite-se a tentativa. O conatus ocorre, por exemplo, quando há emprego de meios idôneos para constranger o indivíduo, mas a vítima não atende à conduta desejada pelo sujeito ativo, ou ainda quando, após a coação, o agente é preso pela polícia.

21.7. Causas de aumento de pena Há duas causas de aumento de pena previstas para o delito de constrangimento ilegal28. O art. 146, § 1º, prevê como majorantes a execução delitiva com: a) a reunião de mais de três pessoas; ou b) o emprego de armas. A primeira hipótese ocorre quando o crime é executado por mais de três agentes. A razão de ser da majorante é a maior ofensividade da conduta. Parte da doutrina entende, acertadamente, que a lei se refere no presente dispositivo apenas a coautores, não se contabilizando para a causa de aumento em análise eventuais partícipes29. Isso pois a redação legal expressamente refere-se à reunião de quatro ou mais pessoas para a execução do crime, ou seja, para a prática do descrito no tipo penal. Computam-se, não obstante, para formação do número exigido, inimputáveis30. A violência ou grave ameaça podem se dar pelo emprego de armas, o que é a outra causa de aumento de pena prevista no §1º. Arma pode ser própria ou imprópria31. Arma própria é o instrumento produzido especificamente para defesa ou ataque (e.g., arma de fogo). Arma imprópria é o objeto fabricado para outra finalidade que é desvirtuado para defesa ou ataque (v.g., faca de cozinha, tesoura ou enxada). O uso da arma deve ser ostensivo. Isto é, não basta portar a arma, é preciso que o agente a use “para o ataque ou que a empunhe ameaçadoramente ou a traga ostensivamente, com o propósito de infundir temor à vítima” 32.

O Código Penal refere-se a “armas”, no plural. Segundo a doutrina majoritária, como Hungria33 e Noronha34, e, mais recentemente, Regis Prado35, a lei referir-se-ia apenas ao gênero no caso, não se exigindo para reconhecimento da causa de aumento a utilização de mais de uma arma. Em sentido contrário, v.g., Bitencourt36 entende ser necessária a presença de pluralidade de armas. De fato, embora minoritária, parece ser essa a compreensão acertada, eis que a lei não contém palavras inúteis. Ademais, não se pode olvidar que norma restritiva deve ser interpretada restritivamente, bem como que o Código Penal cita “arma”, no singular, em outras passagens (e.g., art. 157, § 2º-A, inciso II). Arma de brinquedo, desmuniciada ou inidônea, assim como arma simulada (situação em que, efetivamente não há arma alguma), não autorizam o reconhecimento da causa de aumento, servindo apenas para configurar a “grave ameaça” prevista no caput do artigo 146 (tal como ocorre no crime de roubo)37. A subjetividade da vítima quanto à sua intimidação não é a razão de ser da causa de aumento, mas a potencialidade lesiva no caso concreto. Havendo quaisquer das majorantes, a pena de detenção será aplicada cumulativamente com a de multa, e ambas serão aumentadas em dobro, de modo que “primeiro se encontram as penas definitivas, depois se as soma e, finalmente, duplica-se”38. O § 2º do artigo 146 dispõe que “além das penas cominadas, aplicam-se as correspondentes à violência”. Majoritariamente, entende-se que sua dicção traduz a ideia de que haverá concurso material sempre que da violência empregada no constrangimento resultarem lesões39. Bitencourt40, por sua vez, considera que “o § 2º do art. 146 não criou uma espécie sui generis de concurso material, mas adotou tão somente o sistema do cúmulo material de aplicação de pena, a exemplo do que fez em relação ao concurso formal impróprio (art. 70, 2ª parte)”, o que não impede a existência de concurso material no caso concreto.

21.8. Excludentes de tipicidade O artigo 146, § 3º, traz como excludentes de tipicidade: a) a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida (inciso I); e b) a coação exercida para impedir suicídio (inciso II). O art. 146, § 3º, inciso I, estabelece: “não se compreendem na disposição desse artigo: I – a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida”. A intervenção médica ou cirúrgica justificada por iminente perigo de vida já configuraria uma causa de exclusão da antijuridicidade baseada no estado de necessidade. Todavia, ao insculpir o presente regrame, o legislador foi além, denotando uma clara excludente de tipicidade, o que, por si só, deveria, na prática, obstar a instauração de qualquer procedimento criminal em desfavor do profissional da medicina que tenha agido com o intuito de salvar a vida do paciente. Para configurar o inciso I, é preciso que a intervenção seja necessária, urgente, inadiável, dado o perigo concreto de vida41. A disciplina em destaque se sensibiliza diante de uma peculiar situação factual, isto é, as transfusões de sangue recusadas por pacientes Testemunhas de Jeová. Em estudo jurisprudencial sobre o tema, Reale Júnior42 observa que os tribunais nacionais entendem que os médicos que realizam referida transfusão, contra a vontade dos pacientes, não praticam constrangimento ilegal, estando acobertados pela regra do § 3º. Não obstante, a questão é palpitante, pois, como nota o doutrinador43, para o integrante de referido segmento religioso, a transfusão é mais grave que a própria morte, pois o privaria da eternidade, razão pela qual isso enseja o debate sobre a autodeterminação do paciente, havendo dúvidas se não se estaria a consagrar um indesejado paternalismo sobre pessoas adultas.

Tendo em vista que as convicções religiosas fazem parte do livre desenvolvimento da personalidade, aspecto da ínsita dignidade da pessoa humana, Reale Júnior44 rechaça a imposição da transfusão à pessoa maior e capaz que a isso conscientemente rejeite. De outro lado, apesar da polêmica em torno do assunto, frisa que não se mostra razoável que o crente decida sobre isso relativamente a terceiros, mesmo seu filho menor, por exemplo, uma vez que não é lícito a ninguém decidir pela morte de outrem. Dessa forma, segundo essa linha de pensamento, se o paciente não possui autonomia para decidir, o direito nessa hipótese impõe a melhor solução à pessoa, indiscutivelmente a consagração da vida. Veja-se que, ao atingir o pleno desenvolvimento de sua personalidade, o menor pode, inclusive, rejeitar a convicção religiosa em foco. Por fim, ainda, se for alienado mental ou senil, jamais poderia escolher conscientemente por ela, não sendo razoável que isso seja optado por seu responsável, levando-o à morte. O § 3º, inciso II, do artigo em análise, por sua vez, estabelece que não configura constrangimento ilegal a coação exercida para impedir suicídio. A questão se põe pelo fato de que o suicídio ou sua tentativa não configuram ilícitos, razão pela qual se poderia entender que a coação empreendida para os impedir poderia configurar constranger alguém violentamente a não fazer o que a lei permite, ou seja, constrangimento ilegal. A hipótese trazida pelo legislador seria um claro caso de estado de necessidade de terceiro, mas se desejou com a presente previsão fixar a atipicidade da conduta do agente. Apesar de autores45 afirmarem que a vida seria um bem jurídico indisponível, fato é que a previsão em comento enseja um debate normalmente negligenciado em nosso país acerca do paternalismo legal e do direito de alguém a dispor de sua própria vida. Mais do que o prosaico exemplo de um bombeiro que agarra quem está prestes a pular de um edifício, pode a hipótese se dar quando um médico impede o suicídio de alguém enfermo que não mais suporta o próprio fardo. Desse modo, urge um debate político-criminal significativo sobre o tema no Brasil. Não está claro sobre o que a sociedade brasileira deseja realmente acerca de um tema como o presente, mesmo porque parece que ela não se encontra suficientemente esclarecida pelo poder público sobre este importante assunto, prevalecendo muitas vezes na prática a simples hipocrisia e a segregação econômica.

21.9. Sanções aplicadas e a necessária reflexão sobre proporcionalidade do sistema de penas A sanção cominada ao crime de constrangimento ilegal é de 3 meses a 1 ano de detenção ou multa, havendo aplicação cumulativa e em dobro no caso de prática do crime por mais de três pessoas ou emprego de armas. O § 2º do art. 146 estabelece, ainda, o somatório de penas em caso de provocação de lesões corporais ou vias de fato. Observe-se que, em qualquer caso, cuida-se de infração penal de menor potencial ofensivo, conforme a legislação pertinente. Isso enseja graves e importantes reflexões, tendo-se em conta que o crime em foco é subsidiário, conforme a doutrina. Dessa maneira, basta a comparação das penas do constrangimento ilegal com a dos crimes de roubo e de extorsão, que são de 4 a 10 anos de reclusão e multa, para verificação de uma ampla distorção. Nesse sentido, se o agente, mediante violência ou grave ameaça, obriga outra pessoa a realizar uma enorme tatuagem, a simplesmente tirar a roupa ou a usar um cinto de castidade46, conforme graves exemplos da jurisprudência, cuida-se de infração de menor potencial ofensivo, havendo inúmeras possibilidades que, na prática, inviabilizam a adoção de qualquer medida prisional. Já se, com emprego do mesmo meio violento ou ameaçador, simplesmente se aufere um celular (o qual, muitas vezes, possui seguro), a pena passa a ser de 4 a 10 anos de prisão, além da multa, não sendo possível a conversão em penas restritivas de direitos, conforme a dicção do art. 44, inciso I, do Código Penal! Essa disparidade somente decorre da verdadeira hipervalorização do patrimônio que ocorre

em nossa sistemática. O simples despojo de um bem não exacerba de forma tão gritante uma ação violenta que no fundo é idêntica à do delito de constrangimento ilegal. Mesmo porque nos exemplos citados, se tivesse de optar entre a perda de um bem de pequeno valor e ser obrigada a fazer uma grande tatuagem, ser desnuda por um estranho ou ter de utilizar um cinto de castidade, muito provavelmente a maioria das pessoas preferiria ser despojada do bem. Dessa maneira, imperiosa uma maior reflexão de nossa sociedade também acerca do sistema de penas, que de há muito dá sinais de significativo desgaste, apenas agravando a desalentadora situação da criminalidade em nosso país, por meio de um círculo vicioso fomentado por um sistema prisional falido.

21.10. Pena e ação penal O constrangimento ilegal é sancionado alternativamente com pena de detenção, de três meses a um ano, ou pena de multa (art. 146, caput). Aplicam-se as penas de modo cumulativo e em dobro no caso de execução do crime por mais de três pessoas ou emprego de armas (art. 146, § 1º). O § 2º do art. 146 estabelece, ainda, o somatório de penas em caso de provocação de lesões corporais ou vias de fato. A ação penal é pública incondicionada. Trata-se de infração penal de menor potencial ofensivo, razão pela qual seu processo e julgamento compete ao Juizado Especial Criminal. Admite-se a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei nº 9.099/1995), exceto em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 41 da Lei nº 11.340/2006).

FOOTNOTES 1

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. VI, p. 129.

2

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988, v. I, p. 251.

3

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 139.

4

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 140.

5

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 251.

6

Pondera Bitencourt que “o que se viola ou restringe, no crime de constrangimento ilegal, não é propriamente uma vontade juridicamente válida, mas a liberdade e o direito de querer e atuar (agir ou não agir), de acordo com as condições pessoais e individuais de cada um”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 427.

7

“Art. 322. Praticar violência, no exercício de função ou a pretexto de exercê-la: pena – detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, além da pena correspondente à violência.”

8

“Art. 350. Ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder: pena – detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano (...).”

9

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 428. Leciona Fragoso que “o incapaz de ter vontade (ex.: recém-nascido, louco, inconsciente) poderá eventualmente ser objeto do crime, sendo sujeito passivo, nesse caso, seu responsável”. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 252.

10

“Art. 232. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento: Pena – detenção de seis meses a dois anos.”

11

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 144.

12

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 145. A esse respeito, mostra-se infeliz o exemplo, dado por alguns autores, apontando a homossexualidade como ato imoral.

13

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 252.

14

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 143.

15

“Art. 345 – Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei

o permite: Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência. Parágrafo único – Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.”

16

GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte especial, crimes contra a pessoa. Belo Horizonte: Editora D’ Plácido, 2017, p. 350.

17

REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2018, v. II, p. 195.

18

Hungria ressalta que se trata de processo executivo taxativamente delimitado, não considerando a fraude, o engano ou a ilusão como meios de praticar constrangimento ilegal. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 145.

19

Na lição de Hungria, a violência refere-se a “todo meio físico idôneo a cercear materialmente em outrem a faculdade de agir segundo a própria vontade”. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 146.

20

RAGUÉS I VALLÉS, Ramon. Delitos contra la libertad. In: SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María (Dir.). Lecciones de derecho penal: parte especial. Barcelona: Atelier, 2011, pp. 93-96.

21

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 147.

22

Fragoso, sem mencionar expressamente a existência de elemento subjetivo especial do tipo, leciona que “se não houver o propósito de forçar ou constranger a vítima a fazer ou não fazer algo, o crime será apenas o que resultar da violência ou ameaça”. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 254.

23

“Art. 301. Usar de violência ou grave ameaça para coagir alguém a votar, ou não votar, em determinado candidato ou partido, ainda que os fins visados não sejam conseguidos: Pena – reclusão até quatro anos e pagamento de cinco a quinze dias-multa.”

24

“Art. 71. Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer: Pena Detenção de três meses a um ano e multa.”

25

“Art. 107.Coagir, de qualquer modo, o idoso a doar, contratar, testar ou outorgar procuração: Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.”

26

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 253.

27

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 433.

28

Galvão considera tratar-se de previsão legal sui generis, pois “ao mesmo tempo estabelece duas figuras derivadas qualificadas do crime de constrangimento ilegal e impõe a estes uma causa obrigatória de aumento de pena a ser observada na terceira fase da dosimetria da pena”. GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 363.

29

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 435; MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. São Paulo: Atlas, 2010, v. 2, p. 146.

30

REGIS PRADO, Luiz. Curso de..., cit., p. 196; BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 435.

31

Pela dicção legal, veja-se que a majorante não se limita a armas de fogo, abarcando outros tipos de armas. De qualquer forma, note-se que, caso não se reconheça a inconstitucionalidade dos recentes Decretos federais ns. 9.785 e 9.797, ambos de 2019, os quais pretendem facilitar o acesso a armamentos de fogo no país – em sentido oposto ao insculpido no Estatuto do Desarmamento –, o comportamento delitivo com emprego de armas de fogo tende a aumentar na prática.

32

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 163.

33

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 154.

34

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 160.

35

REGIS PRADO, Luiz. Curso de..., cit., p. 196.

36

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 435.

37

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 255.

38

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 439.

39

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 254.

40

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 434.

41

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 171.

42

REALE JÚNIOR, Miguel (Coord.). Direito penal: jurisprudência em debate – Crimes contra a pessoa. Rio de Janeiro: GZ, 2011, pp. 185-195.

43

REALE JÚNIOR, Miguel (Coord.). Direito penal..., cit., pp. 193-194.

44

REALE JÚNIOR, Miguel (Coord.). Direito penal..., cit., p. 194.

45

E.g., BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 439.

46

RJTAMG 51/289. In: DELMANTO, Celso et alii. Código penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 523.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-22.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 22. AMEAÇA (ART. 147)

Capítulo 22. Ameaça (art. 147) Art. 147 – Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa. Parágrafo único – Somente se procede mediante representação.

22.1. Considerações iniciais O Direito Romano não trazia a ameaça como crime autônomo, de modo que “ora punia-a como tentativa, quando o mal ameaçado constituía crime, ora a incluía no vasto gênero da injúria”1. Na Idade Média, manteve-se tal critério, mas a ameaça também podia ser considerada, por parte do direito germânico, como modo de violação da paz. O Código Penal francês de 1810, a seu turno, somente considerava como crime a ameaça que era imperativa, ou seja, a que trazia ordem ou condição. Foi o direito positivo alemão que deteve a iniciativa de distinguir a incriminação da ameaça simples do constrangimento ilegal2. No caso brasileiro, o Código de 1830 trouxe a ameaça como delito autônomo, elencada entre os crimes contra a segurança individual. O Código de 1890, por sua vez, inspirado nos modelos italiano e germânico, incluiu a ameaça nos crimes contra a liberdade pessoal, somente punindo a ameaça de crime. A previsão constante do art. 147 do Código Penal de 1940 permanece inalterada desde então. Houve, não obstante, importantes mudanças supervenientes a respeito do tema na seara processual, em face das edições da lei do Juizado Especial Criminal (Lei nº 9.099/1995) e da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006).

22.2.Objetividade jurídica Protege-se a autodeterminação humana, isto é, sua liberdade individual, em especial a liberdade psíquica, visto que esta se vê afetada pelo temor infundido pela ameaça3. Cada pessoa possui o direito de determinar-se livremente, segundo a própria motivação, sendo esse o interesse em destaque4.

22.3. Sujeitos do delito Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime de ameaça (crime comum). Caso a ameaça seja feita por funcionário público no exercício das funções, não obstante, o crime será de abuso de autoridade (art. 3º da Lei nº 4.898/1965). Sujeito passivo pode ser qualquer pessoa com capacidade para compreender a ameaça, caso contrário, tratar-se-á de crime impossível, como na ameaça dirigida a um bebê, a uma pessoa em coma ou em estado de embriaguez completa, por exemplo. Nada obsta que a vítima seja uma

criança, desde que ela consiga compreender a intimidação. O mesmo se diga em relação a um deficiente mental, o qual pode eventualmente deter alguma capacidade de cognição do fato. Não há crime se a ameaça é dirigida a pessoas indeterminadas, uma vez que o tipo penal se refere a “alguém”. Por conseguinte, a ameaça deve necessariamente se voltar a pessoa determinada ou a grupo determinado de pessoas. Ademais, pessoa jurídica não pode figurar como vítima de ameaça, visto que não possui liberdade psíquica5.

22.4. Tipicidade objetiva e subjetiva O tipo penal do art. 147 do Código Penal estabelece: “ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave”. O núcleo do tipo, ameaçar, possui o mesmo sentido do insculpido no artigo 146 do Codex (constrangimento ilegal), trazendo a ideia de provocar medo, causar intimidação em alguém, prometendo-lhe causar mal injusto e grave. A ameaça deve ser vista sob aspecto objetivo6, segundo “a média da sensibilidade humana”, observando-se o que normalmente acontece7. Como ultima ratio de controle social de condutas, a lei penal não abre espaço para simples melindres pessoais8. O mal prometido deve referir-se ao atingimento de um bem jurídico de natureza penal, ademais considerado significativo para o sujeito passivo, como vida, integridade física, liberdade, honra, patrimônio etc. Além disso, a ameaça diz respeito a mal injusto e grave, e deve ser idônea para incutir medo, sendo que não importa se o agente estava ou não disposto a cumprir a ameaça, desde que tenha ela a aparência de séria e o agente possuía consciência disso9. Injusta é a ameaça contrária ao Direito, ou seja, ilícita. Mal injusto é aquele “dano ou agravo que o sujeito não tenha o direito de causar” 10. Caso o mal prometido esteja conforme o ordenamento jurídico, o fato será atípico (e.g., afirmar que vai processar alguém, prometer demitir empregado desidioso, garantir que irá reprovar o aluno se ele não estudar etc.). Grave é o mal sério, relevante, isto é, representativo de um crível e significativo ataque a um bem jurídico penalmente tutelado. Considera-se que para aferir a gravidade do mal é preciso levar em conta a qualidade e a extensão do mal que é prometido e as circunstâncias e condições pessoais daquele contra quem ele é dirigido11. Em outros termos, a ameaça deve ser verossímil e expressiva para aquele a quem é encaminhada. Desse modo, v.g., a ameaça fantasiosa é fato atípico para a generalidade das pessoas, mas não para uma criança. A ameaça pode ser direta, isto é, voltada à pessoa ou ao patrimônio da vítima (v.g., dizer a alguém que irá matá-lo ou que irá queimar seu carro), ou indireta, ou seja, relativa a terceiro ligado ao sujeito passivo por especial relação de afeto (e.g., dizer ao pai que matará o filho dele). Ainda, pode a intimidação ser explícita ou implícita. Explícita é a ameaça inequívoca, que não fornece margens a dúvidas (e.g., “vou te matar”). Já a ameaça implícita é aquela velada, dissimulada, como nos exemplos do indivíduo que diz a outro que “não tem medo de ir para a cadeia”12, ou que o último que agiu assim com ele “não estourou champagne no ano-novo” etc. A redação do dispositivo, ao admitir como meio da prática delituosa “palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico”, apenas reconhece que a ameaça pode ser veiculada por qualquer forma, e.g., cartas, desenhos, palavras, gestos, desde que idôneas para causar temor. Exemplo de gesto é o de passar o dedo no pescoço simulando um degolamento, enquanto de outro meio simbólico pode se dar com o envio de coroa de flores de velório para a vítima. Cuida-se, então, de crime de forma livre. Ameaça condicional, ou condicionada, é aquela subordinada a algum fato ou evento. Se a condição se atrelar a algum comportamento – comissivo ou omissivo – exigido da vítima (e.g., afirmar que matará a pessoa se ela for a uma festa), o crime será de constrangimento ilegal. Já se o

condicionamento incidir sobre evento não controlável pelo sujeito passivo, o crime será de ameaça (v.g., prometer matar alguém caso o seu candidato não seja eleito presidente da República, ou caso seu time de futebol perca o campeonato). Para Hungria13, neste último caso, o principal fim do agente não deixa de ser o de simples incutimento de medo. O singelo praguejar não configura o delito, como no exemplo de dizer a alguém: “o diabo que te carregue”. Tampouco consiste em crime a ameaça proferida de modo vago (como afirmar a alguém, “você vai ver”). O elemento subjetivo do crime de ameaça é o dolo, direto ou eventual. Há elemento subjetivo especial do tipo, qual seja, o especial fim de intimidar, que se identifica na intenção de incutir medo, exteriorizada de modo sério14. Considera-se que o propósito de brincar (animus jocandi) afasta o dolo. Não há previsão da modalidade culposa. A doutrina diverge quanto à ameaça proferida em momento de ira ou cólera, já que o art. 28, inciso I, do Código Penal, fixa que a emoção não exclui o crime. A princípio, em tese, o estado de raiva, por si mesmo, não tem o condão de afastar o delito em questão. Tudo dependerá do contexto fático. Se o agente proferiu a ameaça a sério, em um estado de alteração de ânimo, isso denota, inclusive, maior gravidade, uma vez que pode se concretizar de forma iminente. Todavia, se houve simples agitação, no fundo não séria, dita popularmente “da boca para fora”, não existe crime. Tendo em vista que o delito de ameaça é subsidiário, restará ele absorvido por outra figura, mais grave, a depender da intencionalidade do agente15. Dessa maneira, os fatos poderão se subsumir, nas modalidades tentada ou consumada, aos crimes de constrangimento ilegal (art. 146), roubo (art. 157), extorsão (art. 158), estupro (art. 213), resistência (art. 329), coação no curso do processo (art. 344) ou tortura (art. 1º da Lei nº 9.455/1997).

22.5. Consumação e tentativa Consuma-se o crime quando o sujeito passivo tem conhecimento da ameaça, não sendo necessária sua presença quando ela é proferida16 nem que o tenha abalada sua liberdade psíquica. Cuida-se de crime formal. Admite-se a tentativa quando a conduta delitiva for fracionada, isto é, plurissubsistente17. São os casos da ameaça por escrito ou da gravação ameaçadora que não chegam ao conhecimento do sujeito passivo. Apesar da difícil ocorrência prática, já que se trata de crime apurável mediante representação, veja-se que se o representante legal da vítima (e.g., pai de filho menor) tomar conhecimento da ameaça antes dela, não a cientificando disso, conformar-se-á hipótese em que poderá haver processo por tentativa do crime.

22.6. Pena e ação penal O crime de ameaça é sancionado alternativamente com pena de detenção, de um a seis meses, ou pena de multa (art. 147, caput). Consoante a previsão do parágrafo único do artigo 147, a ação penal é pública condicionada à representação. Trata-se de infração penal de menor potencial ofensivo, razão pela qual seu processo e julgamento compete ao Juizado Especial Criminal. Admite-se a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/1995), exceto em caso de violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 41 da Lei nº 11.340/2006). Neste último caso, ademais, caso a vítima, após o oferecimento da retratação, deseje se retratar antes do início da

ação penal, deverá fazê-lo em audiência própria, perante o juízo, conforme dicção do art. 16 da Lei Maria da Penha.

FOOTNOTES 1

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. VI, p. 172.

2

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 173.

3

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988, v. I, p. 257.

4

COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva,1992, v. 2, p. 60.

5

Pondera Hungria que “a ameaça dirigida a uma coletividade orgânica só é crime quando represente uma atemorização às pessoas físicas que a compõem”. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 178.

6

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 177.

7

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 259.

8

Segundo Hungria, a lei penal “não é tutela dos que temem assombrações ao meio-dia”. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 177.

9

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 177.

10

GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte especial, crimes contra a pessoa. Belo Horizonte: Editora D’ Plácido, 2017, p. 378.

11

Já para Hungria, a medida da gravidade se dá “pela quantidade objetiva do dano que a ameaça põe em perspectiva”. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 178.

12

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 176.

13

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 177.

14

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 446.

15

Na lição de Bitencourt, “se a ameaça deixa de ser um fim em si mesmo, já não se configura um crime autônomo, passando a constituir elemento, essencial ou acidental, de outro crime”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 447.

16

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 179. Analisando a legislação de sua época, destaca Von Liszt que para a consumação é preciso que o ofendido “tenha conhecimento da ameaça contra si dirigida, mas não que de fato tenha sido perturbado na sua seguridade”. LISZT, Franz von. Tratado de direito penal. Trad. José Higino Duarte Pereira. Campinas: Russell, 2003, t. II, p. 161.

17

Em sentido contrário, em posição minoritária, HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 179, considera que, nesse caso, a carta extraviada não passaria de ato preparatório.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-23.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 23. SEQUESTRO E CÁRCERE PRIVADO (ART. 148)

Capítulo 23. Sequestro e cárcere privado (art. 148) Sequestro e cárcere privado Art. 148 – Privar alguém de sua liberdade, mediante sequestro ou cárcere privado: Pena – reclusão, de um a três anos. § 1º – A pena é de reclusão, de dois a cinco anos: I – se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou maior de 60 (sessenta) anos; II – se o crime é praticado mediante internação da vítima em casa de saúde ou hospital; III – se a privação da liberdade dura mais de quinze dias. IV – se o crime é praticado contra menor de 18 (dezoito) anos; V – se o crime é praticado com fins libidinosos. § 2º – Se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da detenção, grave sofrimento físico ou moral: Pena – reclusão, de dois a oito anos.

23.1.Considerações iniciais A privação da liberdade já era punida em Roma, dentro de uma ideia maior de vis, o conceito amplo de violência da época. Ainda na Roma antiga, mais precisamente em 486 d.C., erigiu-se o cárcere privado como crime autônomo, dentro de uma compreensão de lesa-majestade, uma vez que apenas o soberano poderia cercear a liberdade de alguém. Em outros termos, exclusivamente o governante detinha o poder de encarceramento das pessoas. Por essa razão, inicialmente, a pena cominada era de morte. Apenas com Justiniano aplicou-se a lei de talião, sancionando-se o agente pelo mesmo período de privação de liberdade impingida à vítima. O direito germânico também tutelava a liberdade pessoal, cominando significativas punições ao seu cerceamento. Por essa influência, somada ao resgate da tradição romana, o direito medieval manteve o cárcere privado como crime contra a dignidade do soberano. O movimento codificador, em seguida, consagrou a incriminação, com destaque para o Código Penal alemão de 1871, o qual fixou uma construção ampla, relativa a diversas formas de cerceamento da liberdade. Na realidade lusíada, as Ordenações Filipinas previam a incriminação do cárcere privado superior a vinte e quatro horas. No Brasil independente, o delito de cárcere privado surge com o Código Criminal do Império (1830). O tipo abarcava inclusive a ilegal detenção em prisões públicas. O Código Penal Republicano (1890), por influência da legislação portuguesa, equiparou o sequestro ao cárcere privado. Essa sistemática foi mantida no Código Penal de 1940, em seu art.

148. Apesar do nomen iuris do delito referir-se a sequestro “e” cárcere privado, melhor seria a menção à conjunção alternativa “ou”, como comumente faz a doutrina, uma vez que são duas formas distintas de cometimento de crime, bastando uma delas para seu reconhecimento. Desde a entrada em vigor do atual Código Penal, o art. 148 sofreu apenas uma inserção, por meio da Lei nº 11.106/2005, a qual ampliou as hipóteses de qualificadoras.

23.2. Objetividade jurídica O bem jurídico tutelado na hipótese é a liberdade individual, no particular aspecto da liberdade de locomoção (direito de ir, vir e ficar). O sequestro ou cárcere privado, no fundo, é uma espécie de constrangimento ilegal1. O consentimento da vítima, desde que válido, exclui o crime2 (causa supralegal de exclusão da antijuridicidade). Mas há limites, como nota a doutrina3, como na privação perpétua da liberdade ou por muito tempo. Quanto ao tema, também se deve atentar para a chamada “Síndrome de Estocolmo”, estado psicológico que remonta a um assalto na Suécia, ocorrido em 1973, com duração de cerca de uma semana. Após um período, as vítimas, privadas de sua liberdade, passaram a desenvolver um mecanismo mental defensivo de identificação com os sequestradores, com vistas a não os desagradar. A literatura médica registra casos de pessoas privadas da liberdade as quais, após a libertação, espontaneamente procuraram seus algozes. Um consentimento dessa natureza, fruto de estado psíquico anormal, todavia, não é válido.

23.3.Sujeitos do delito Quanto ao sujeito ativo, de se notar que o sequestro ou cárcere privado é crime comum, ou seja, pode ser praticado por qualquer pessoa. Observar que, se o sujeito ativo for funcionário público, o crime será o de abuso de autoridade (art. 3º, “a”, da Lei nº 4.898/1965). Sujeito passivo do presente crime, ao contrário do que se dá com o constrangimento ilegal, é qualquer pessoa, independentemente de qualquer condição. Por conseguinte, pode ser alguém enfermo físico ou mental, criança, idoso, paralítico etc. No caso específico de vítima adolescente, é possível, conforme o preenchimento das demais circunstâncias, o perfazimento do peculiar tipo previsto no art. 235 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990): “descumprir, injustificadamente, prazo fixado nesta Lei em benefício de adolescente privado de liberdade: Pena – detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos”.

23.4. Tipicidade objetiva e subjetiva Estabelece o caput do art. 148 do Código Penal: “privar alguém de sua liberdade, mediante sequestro ou cárcere privado: pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos”. A lei penal não define o que vem a ser sequestro ou cárcere privado, o que, então, compete à doutrina e à jurisprudência. Costuma-se distingui-los do seguinte modo: no sequestro, a vítima tem sua liberdade cerceada em local aberto, com alguma possibilidade de movimentação (e.g., sítio, ilha, praia deserta). Já no cárcere privado, a vítima tem sua liberdade cerceada em local fechado (v.g., quarto, sala, casa, porta-malas do carro). No cárcere privado, então, há confinamento ou clausura4. Atentar para que alguns, como Euclides Custódio da Silveira5, sem razão, entendem que esses termos não seriam sinônimos, sendo a clausura a privação da liberdade em local aberto. As duas modalidades – sequestro e cárcere privado – podem se dar no mesmo contexto fático, o que não desnatura o crime único. Observar que não se cuida de tipo misto alternativo, pois o verbo é um só (“privar”), mas sim de dois modus operandi alternativos. Caso ocorram

verbo é um só (“privar”), mas sim de dois modus operandi alternativos. Caso ocorram conjuntamente, não obstante, apesar de crime único, o juiz deverá sopesar isso na fixação da penabase (art. 59 do Código Penal). Para configuração do tipo, exige-se que a privação da liberdade ocorra por tempo juridicamente relevante. Em outras palavras, é necessário que isso revele certa duração, não bastando alguns minutos. Se a privação da liberdade é rápida, há tentativa do delito do art. 148 do Codex ou a perpetração de constrangimento ilegal, a depender da intencionalidade do agente. Se a privação da liberdade é legítima, por exemplo, prisão em flagrante levada a efeito por qualquer do povo, evidentemente, não há crime, por falta de antijuridicidade6. Não obstante, é possível que a privação da liberdade se inicie legitimamente e, em seguida, torne-se ilegítima. É o caso do indivíduo que recebe alta médica, mas não é permitido de deixar o hospital porque não pagou a conta. Aqueles que obstarem a sua saída respondem pelo crime em análise. O crime de sequestro ou cárcere privado é normalmente comissivo, mas nada obsta que se dê por omissão. Ocorre esta última hipótese no caso de se deixar de liberar o doente mental que recebeu alta médica. Pode ser citado, ainda, o exemplo do zelador que, no meio da noite, alertado pelo porteiro que alguém se encontra preso no elevador, nada faz. Elemento subjetivo do crime em questão é o dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de privar a liberdade do sujeito passivo. Admite-se tanto o dolo direto como eventual. Não se exige qualquer intenção especial do agente. Todavia, deve-se atentar que, se presente alguma intencionalidade especial, o crime poderá ser outro (não se olvidando que o crime de sequestro ou cárcere privado é subsidiário): a) se a intenção for a de obter vantagem ilícita, o crime será o do art. 159 do Código Penal (extorsão mediante sequestro)7; b) se o objetivo é atentar contra a segurança nacional, o crime é o do art. 20 da Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170/1983); c) se o objetivo do sequestro é o de torturar a vítima o crime é o de tortura agravada (art. 1º, § 4º, inciso III, da Lei nº 9.455/1997); d) se o objetivo é levar recém-nascido consigo para criá-lo como se filho do agente fosse, o crime é de subtração de incapazes (art. 249 do Código Penal). Caso o objetivo seja a prática de atos libidinosos, o crime era o de rapto (antigo art. 219 do Código Penal) e hoje se mostra como forma qualificada de sequestro e cárcere privado. A mesma lei que revogou o tipo de rapto, referida Lei nº 11.106/2005, com péssima técnica, criou a qualificadora do sequestro ou cárcere privado consistente em “se o crime é praticado com fins libidinosos”. Observe-se, não obstante, que isso não faz qualquer sentido, pois o bem jurídico tutelado nesse caso não é a liberdade individual, mas sim a dignidade sexual. Não há previsão de modalidade culposa.

23.5. Consumação e tentativa A consumação do crime ocorre com a efetiva privação da liberdade do sujeito passivo por tempo juridicamente relevante. Como crime material, admite-se a tentativa. Ocorre o conatus se o agente é surpreendido quando tenta levar a vítima ao cativeiro. Importante notar que o crime é permanente, ou seja, protrai-se no tempo, renovando a sua consumação a todo instante enquanto a vítima estiver privada de sua liberdade. Tal permite, inclusive, a prisão em flagrante a qualquer momento enquanto isso se der. Caso a vítima fuja do cativeiro, apenas interrompe-se a sua permanência, vez que o crime já estava consumado. Tendo em vista que o crime de sequestro ou cárcere privado é permanente, muitas vezes as autoridades utilizam-no de modo equivocado para escapar do reconhecimento da prescrição de outras figuras, efetivamente aplicáveis às hipóteses fáticas. Isso porque no caso do delito do art. 148, a contagem do prazo prescricional sequer se inicia durante todo o período de perpetração do ilícito. É o que, concretamente, deu-se algumas vezes por conta de mortes ocorridas no período da ditadura militar ou ficou conhecido no famoso “caso Pedrinho”, “sequestrado” em 1986 de uma

maternidade em Brasília. No primeiro caso, os delitos são de homicídio e, neste último, de subtração de incapazes (o objetivo da agente não era privar a liberdade das crianças, mas sim de criá-las como se suas fossem).

23.6. Formas qualificadas O tipo de sequestro ou cárcere privado possui seis qualificadoras (cinco do § 1º, com pena de reclusão de 2 a 5 anos, e uma do § 2º, com pena de reclusão de 2 a 8 anos). Decorrem do maior desvalor da ação ou maior desvalor do resultado. As formas qualificadas previstas no art. 148, § 1º, do Código Penal, verificam-se nos seguintes casos: a) se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou maior de 60 anos; b) se o crime é praticado mediante internação da vítima em casa de saúde ou hospital; c) se a privação da liberdade dura mais de quinze dias; d) se o crime é praticado contra menor de 18 anos; e) se o crime é praticado com fins libidinosos. Já o § 2º traz a qualificadora “se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da detenção, grave sofrimento físico ou moral”. A primeira qualificadora prevista é aquela em que o sequestro ou cárcere privado possui como sujeito passivo alguém que seja ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou, ainda, pessoa maior de 60 anos8. A razão de ser da qualificadora na hipótese é a relação de confiança9 existente que foi vilipendiada pelo sujeito ativo, bem como, no caso do idoso, sua maior fragilidade. Houve falha do legislador ao não prever as figuras do padrasto ou madrasta, filho adotivo, irmão, namorados, em que haveria a mesma quebra de confiança, ou da mulher grávida, em razão de sua maior fragilidade10. Como as hipóteses não foram insculpidas, inadmissível a analogia in malam partem. Observar que a presença simultânea de mais de uma condição (exemplo: mãe idosa) não desnatura o crime único qualificado, tal qual ocorre nas qualificadoras do homicídio. A segunda qualificadora descrita é reconhecida se o crime é praticado mediante internação da vítima em casa de saúde ou hospital. Cuida-se da chamada internação fraudulenta, visto que normalmente o agente é drogado para que não resista a uma internação desnecessária e não desejada. Consoante Bitencourt11, essa hipótese revela “requintada maldade”, pois o agente se utiliza de um meio fraudulento de difícil superação. A terceira hipótese prevista se dá quando a privação da liberdade dura mais de quinze dias. Muito embora o cerceamento da liberdade de outrem seja a essência do delito em análise, não ocorre bis in idem com a presente qualificadora, tendo em vista que sua duradoura privação revela maior ofensividade, ocasionando mais incisivos danos físicos e psicológicos à vítima. O prazo em referência conta-se a partir da consumação do crime, com a privação da liberdade do sujeito passivo por tempo juridicamente relevante, até a sua efetiva libertação ou fuga. Observar que o dia do começo se inclui no cômputo do prazo, consoante a dicção do art. 10 do Código Penal. A quarta forma qualificada fixada ocorre se o crime é praticado contra menor de 18 anos12. A razão de ser é a maior fragilidade ou inexperiência da vítima para se defender da ação criminosa. O reconhecimento dessa qualificadora obsta a incidência da agravante genérica prevista no art. 61, inciso II, alínea “h”, do Código Penal, sob pena de dupla punição pelo mesmo fato. Ademais, de se notar que a qualificadora em foco não se confunde com o crime do art. 230 do Estatuto da Criança e do Adolescente13, tendo em vista que o crime especial cuida-se de retenção ilegal, caracterizada ao se levar ilegalmente a criança ou adolescente à presença da autoridade policial ou, ainda, quando esta última formaliza apreensão indevida. A quinta qualificadora fixada é a referente ao crime ser praticado com fins libidinosos. Reitere-

se, a crítica a essa hipótese, acrescida pela Lei nº 11.106/2005, pela falta de técnica do legislador, já que deveria ser crime contra a dignidade sexual, como o era a previsão do rapto. Essa forma qualificada encontra-se presente em face de um elemento subjetivo especial por parte do sujeito ativo, o qual retira a liberdade da vítima com o intuito de praticar atos sexuais com ela. Perceba-se que, para sua configuração, não é necessário que qualquer violação sexual tenha ocorrido, bastando apenas a demonstração de que essa era a vontade do agente (crime formal, de resultado cortado ou de consumação antecipada). Caso ocorra efetivamente a prática de atos libidinosos, haverá concurso material do crime em apreço com o delito sexual. Por fim, a sexta e última forma qualificada prevista para o crime de sequestro e cárcere privado é aquela em que resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da detenção, grave sofrimento físico ou moral. Muito embora grave sofrimento físico ou moral sejam formulações porosas, veja-se que há meios vinculados: maus-tratos ou natureza da detenção. Hungria14 exemplifica como maus-tratos a ausência de alimentos ou de asseios, ou a contínua zombaria. Já por natureza da detenção, com cunho negativo, pode-se pensar nas hipóteses de falta de ventilação do cárcere, de amarrar ou de acorrentar da vítima etc.

23.7. Pena e ação penal Ao crime de sequestro e cárcere privado comina-se pena de reclusão, de um a três anos (art. 148, caput). Há previsão de formas qualificadas, com sanção de reclusão de dois a cinco anos, nos seguintes casos: se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou maior de 60 anos; se o crime é praticado mediante internação da vítima em casa de saúde ou hospital; se a privação da liberdade dura mais de quinze dias; se o crime é praticado contra menor de 18 anos; se o crime é praticado com fins libidinosos (art. 148, § 1º). Se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da detenção, grave sofrimento físico ou moral, a pena é de reclusão de dois a oito anos (art. 148, § 2º). O crime de sequestro e cárcere privado, tanto em sua forma simples como qualificadoras, é apurável mediante ação penal pública incondicionada. Admite-se, exclusivamente para a modalidade básica (art. 148, caput), a suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/1995, à exceção dos casos de violência doméstica e familiar contra mulher (art. 41 da Lei Maria da Penha).

FOOTNOTES 1

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988, v. I, p. 261.

2

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 262.

3

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, pp. 449-450; NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 168.

4

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 451.

5

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 451, nota de rodapé 4.

6

BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa. Rio de Janeiro: Rio, 1979, pp. 362-363.

7

Aliás, de se ver que o que a imprensa, em geral, chama equivocadamente de “sequestro” é, em realidade, extorsão mediante sequestro.

8

As previsões de hipóteses qualificadoras para vítima companheira do agente ou pessoa maior de sessenta anos foram insculpidas pela Lei nº 11.106/2005.

9

Comentando os três primeiros casos, Fragoso entende que há, nas hipóteses, uma violação do dever familiar. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 263.

10

Nesse sentido, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 454.

11

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 455.

12

Também estabelecida pela Lei nº 11.106/2005.

13

“Art. 230. Privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente: Pena – detenção de seis meses a dois anos. Parágrafo único. Incide na mesma pena aquele que procede à apreensão sem observância das formalidades legais.”

14

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. VI, p. 189.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-24.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 24. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO (ART. 149)

Capítulo 24. Redução a condição análoga à de escravo (art. 149) Redução a condição análoga à de escravo Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1º Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

24.1.Considerações iniciais O Direito Romano, com a Lex Fabia de Plagiariis, passou a punir o ilícito de plagium, que consistia em escravizar homem livre ou assenhorear-se, comprar ou vender escravo alheio1. Essa escravização indevida ou assenhoreamento de vassalo alheio representava então a violação de um direito de propriedade, já que a sociedade da época era escravista. Por conta dessa origem histórica, o crime de redução a condição análoga à de escravo passou a ser chamado doutrinariamente de delito de plágio. A esse plágio, digamos, civil, os práticos medievais acresceram outras duas noções de plágio: o político (alistar pessoa em exército alheio) e o literário (assenhoreamento de obra alheia). A palavra culminou por se consagrar popularmente nesse último sentido, embora, em termos jurídico-penais, refira-se à incriminação presentemente analisada. No Brasil, o Código Criminal do Império, de 1830, vigente no período escravista, incriminava a escravidão de pessoa livre. Já o Código de 1890 não tipificou tal figura, a qual somente retornou, com nova roupagem, por meio do Código Penal de 1940. A redação original do atual Código Penal, em seu art. 149, apenas se referia à conduta de “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”, sancionando-a com pena de reclusão de dois a oito anos. Posteriormente, a Lei nº 10.803/2003 alterou o caput do dispositivo, fixando formas vinculadas de conduta, além de acrescentar a pena de multa e a previsão de cumulação da pena correspondente à violência. Por fim, a legislação em destaque incluiu figuras equiparadas (§1º) e

causas de aumento de pena (§2º) para o crime de plágio. Tal alteração legal decorreu da repercussão midiática de casos concretos envolvendo a exploração de trabalhadores2, bem como de pressão internacional nesse sentido3. No início do século XX, Bento de Faria4, então ministro do Supremo Tribunal Federal, entendia ser raríssimo o crime de plágio em nossa sociedade. Lamentavelmente, o tema é atual, conforme evidenciam diversos escândalos nos últimos anos envolvendo empresas terceirizadas prestadoras de serviços para marcas famosas, assim como, e.g., as descobertas de carvoarias no interior da região Centro-Oeste ou de trabalhadores bolivianos explorados em confecções de grandes centros urbanos. Para Aníbal Bruno5, o crime de redução a condição análoga à de escravo é a forma extrema dos crimes contra a liberdade. Tanto que a pena cominada a essa infração penal é de 2 a 8 anos de reclusão, além da multa, sem prejuízo da pena correspondente à violência, como citado. O tema, ademais, é disciplinado pela Portaria nº 1.293/2017, do Ministério do Trabalho, a qual fornece importantes parâmetros conceituais para a interpretação criminal. Demais disso, desde a edição da Portaria Interministerial nº 4, de 11 de maio de 2016, o Governo Federal publica periodicamente uma atualização do chamado “Cadastro de Empregadores”, mais conhecido como “Lista Suja do Trabalho Escravo”. Consubstancia-se em uma relação com nomes de empregadores e empresas flagrados submetendo trabalhadores a condições análogas à de escravo. A publicação da lista suja é hoje de responsabilidade da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do Ministério da Economia.

24.2.Objetividade jurídica Protege-se a liberdade do indivíduo, isto é, seu status libertatis. A prática do delito em apreço fere a dignidade da pessoa humana, que é transformada em simples res6. Em suma, atinge-se a autodeterminação do ser humano. Insta particularizar, no entanto, que o crime é de redução a condição análoga, isto é, similar, à de escravidão, e não de redução à escravidão. Por conseguinte, para sua configuração, basta situação degradante, a qual se mostra semelhante, parecida, com a de uma escravidão, não sendo necessária a sujeição absoluta do sujeito passivo. Conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal, cuida-se de uma “escravidão moderna”, que muitas vezes emprega meios sutis, como econômicos7.

24.3.Sujeitos do delito Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do delito de redução a condição análoga à de escravo (crime comum). Sujeito passivo do delito em análise pode ser qualquer pessoa, independentemente de sua condição. Dessa maneira, pode atingir criança, idoso, índio, louco etc. Ademais, as características da vítima como idade, sexo, cor, condição social e econômica, tampouco influenciam na configuração do delito, podendo, no máximo, representar razão para incidência de causa de aumento de pena, consoante as hipóteses taxativamente previstas no art. 149, § 2º. Em posicionamento minoritário, Bitencourt8 entende que, com a nova redação do art. 149, dada pela Lei nº 10.803/2003, seria necessário haver um vínculo de natureza trabalhista entre o sujeito ativo e passivo, ou, ao menos, uma relação de prestação de serviço desse último para com o primeiro. Todavia, não lhe assiste o costumeiro acerto nesse ponto. A redação atual do tipo não exige qualquer formalidade contratual ou trabalhista. Pode ser vítima do crime tanto o empregado ou o prestador de serviço como a pessoa simplesmente faticamente coagida à situação descrita no tipo9.

24.4.Tipicidade objetiva e subjetiva

O núcleo do tipo, isto é, o verbo “reduzir”, significa sujeitar, submeter, subjugar, no sentido de forçar alguém a suportar uma situação comparável a um regime de escravidão10. É irrelevante que a vítima possua no caso concreto relativa liberdade ou mesmo que tenha consentido com a situação11. Tampouco é necessário clausura, confinamento, tortura ou maus tratos. A vítima, aliás, pode até receber salário pelo trabalho realizado, o que não desnatura o crime, satisfeitas as demais condições legais. Dessa forma, há de se constatar uma situação na qual uma pessoa fica sujeita à outra, subordinada a uma situação indigna que lhe foi imposta, de modo que o sujeito passivo fica em situação próxima à de um escravo. O tipo prevê, no caput, como modos de reduzir o indivíduo a condição análoga à de escravo: a) submetê-lo a trabalhos forçados; b) submetê-lo à jornada exaustiva; c) sujeitá-lo a condições degradantes de trabalho; e d) restringir, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. Em face de tais previsões, como mencionado, decorrentes de alteração sofrida em 2003, o delito passou a ser de forma vinculada, não mais de ação livre. A primeira hipótese caracterizadora do crime de plágio ocorre na conduta de submeter alguém a trabalhos forçados ou à jornada exaustiva. Trabalhos forçados são as incumbências impostas à vítima contra a sua vontade, por meio de violência física ou coação. A proibição de trabalho compulsório consta na Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XLVII, alínea c. Vale destacar que a Convenção Americana de Direitos Humanos, nas alíneas do item 3 de seu art. 6º, estabelece que não configuram trabalhos forçados: a) os trabalhos ou serviços normalmente exigidos de pessoa reclusa em cumprimento de sentença ou resolução formal expedida pela autoridade judiciária competente, dentro de determinadas condições; b) o serviço militar e, nos países onde se admite a isenção por motivos de consciência, o serviço nacional que a lei estabelecer em seu lugar; c) o serviço imposto em casos de perigo ou calamidade que ameace a existência ou o bem-estar da comunidade; e d) o trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas normais. A jornada exaustiva, por sua vez, liga-se a um trabalho que desgasta severamente o indivíduo, ou seja, esgota-o, refletindo em sua saúde, comportamento, sono etc.12 Para configurar-se, basta a potencialidade de levar à exaustão, não sendo necessário que a vítima chegue a tal estado13. Importa ressaltar que, para a caracterização do crime, deve a vítima ser obrigada a uma jornada excessiva, pois, caso o faça por sua vontade, por exemplo, para ganhar mais com horas-extras, o fato será atípico. Outra hipótese configuradora do crime de redução a condição análoga à de escravo ocorre na conduta de sujeitar alguém a condições degradantes de trabalho. Condições degradantes são aquelas aviltantes ou humilhantes, violadoras da dignidade humana, e.g., o caso de um ambiente sem condições mínimas de higiene, com excesso de barulho, sem água ou banheiro para os trabalhadores etc.14 Ademais, consubstancia o delito em análise o comportamento de restringir, por qualquer meio, a locomoção de alguém em razão de dívida contraída com empregador ou preposto. Consiste no expediente de cercear da liberdade do trabalhador, que não pode deixar o serviço em razão da necessidade de pagamento de dívidas acumuladas com seu empregador ou preposto, tais como as decorrentes de aluguel de casa, transporte e alimentação fornecida, uniforme e material de trabalho vendidos, dentre inúmeras outras possibilidades fáticas. Concretamente, a vítima se torna refém diante de dívidas exorbitantes, incompatíveis com seus rendimentos. Importante observar que, apesar de haver a previsão de modos para a execução do crime, o sujeito ativo pode valer-se de qualquer meio para sua realização15. Caso os meios empregados para a prática do plágio constituam crimes contra a liberdade individual – e.g., sequestro –, restam por

ele absorvidos16. Todavia, se forem de outra natureza, haverá concurso de crimes, respondendo o agente também por lesões corporais, tortura, estupro, homicídio etc. O art. 149, em seu § 1º, traz incriminações adicionais, prevendo figuras equiparadas. Dessarte, estabelece que também comete o crime aquele que: a) cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho (inciso I); e b) mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho (inciso II). Cercear o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho, significa impedir a utilização de formas de deslocamento por parte de alguém, com o intuito de mantê-lo mais tempo que o devido no posto de trabalho. Embora possa também ocorrer no ambiente urbano, normalmente essa prática se dá em áreas rurais afastadas, onde os trabalhadores necessitam do fornecimento de meios de transporte pelos patrões para irem às cidades. Outra figura equiparada é aquela de manter vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apoderar de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. Manter vigilância ostensiva no local de trabalho com o fim de retenção do trabalhador consiste no comportamento coativo de emprego de seguranças ou vigias para fins de obstar a saída do local de trabalho. Perceba-se que não é crime a simples mantença de vigilância, mas aquela praticada com especificamente a intenção descrita. Apoderar-se de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho, a seu turno, consiste na retenção de documentos ou bens da vítima, como forma coativa de impedir o abandono do local de trabalho. Cuida-se de modalidade comum em áreas rurais e urbanas, nesse último caso, geralmente, em desfavor de trabalhadores imigrantes. O elemento subjetivo do crime de redução a condição análoga à de escravo é o dolo, direto ou eventual. As figuras equiparadas (art. 149, § 1º) trata-se de hipóteses em que há elemento subjetivo especial do tipo, consistente na finalidade de reter o indivíduo no local de trabalho17. Não há previsão de modalidade culposa.

24.5.Consumação e tentativa O crime de plágio consuma-se quando a vítima tem atingida sua autodeterminação, isto é, quando tem sua liberdade tolhida, ficando sob o poder do sujeito ativo por tempo juridicamente relevante. Trata-se de delito permanente, pois enquanto a vítima for mantida em condição análoga à de escravo, a consumação se estende, protraindo-se no tempo. Uma vez que se cuida de crime material, admite-se a tentativa. Exemplo de forma tentada ocorre quando o agente é surpreendido levando os trabalhadores à fazenda para fins de submetêlos a trabalhos forçados.

24.6.Causas de aumento de pena O art. 149, § 2º, estabelece causas de aumento de pena da metade caso o crime seja cometido: a) contra criança ou adolescente (inciso I); ou b) por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem (inciso II). A primeira majorante ocorre no caso da redução a condição análoga à de escravo recair contra criança ou adolescente. De acordo com o estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), considera-se criança a pessoa com doze anos incompletos e adolescente o indivíduo entre doze e dezoito anos. A razão de ser da causa de aumento em destaque é a de maior

vulnerabilidade da vítima. Prevê-se também causa de aumento na hipótese de o crime ter sido perpetrado por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. Nesse caso, há elemento subjetivo especial do injusto, tendo em vista que a finalidade de praticar o crime foi por conta de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem18. Cuida-se, por conseguinte, de espécies de motivação torpe, as quais denotam maior reprovabilidade da conduta do agente. Afigura-se, então, como modalidade de crime de ódio19.

24.7.Pena e ação penal O delito de redução a condição análoga à de escravo, tanto em sua modalidade básica (art. 149, caput) como nas figuras equiparadas (art. 149, § 1º), é sancionado com pena de reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. São previstas causas de aumento de pena da metade caso o crime seja cometido contra criança ou adolescente ou por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem (art. 149, § 2º, incisos I e II). A ação penal é pública incondicionada. A jurisprudência do STF é no sentido de que, atingindose um ou poucos trabalhadores, a competência para processo e julgamento do crime de redução a condição análoga à de escravo é da Justiça Estadual, enquanto que, se houver afetação da organização geral do trabalho ou direitos dos trabalhadores considerados coletivamente, a competência passa a ser da Justiça Federal20.

FOOTNOTES 1

MOMMSEN, T. El derecho penal romano. Trad. P. Dorado. Pamplona: Anacleta, 1999, v. II, pp. 238-240; HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. VI, p. 189. Leciona Fragoso que “as penas eram, no primitivo direito romano, pecuniárias, passando, sob a república, a serem aflitivas (relegação, confisco, trabalhos forçados, morte). Na Idade Média, subsistiram a mesma incriminação e as mesmas penas, inclusive o talião (redução à escravidão do plagiário)”. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988, v. I, p. 264.

2

Segundo Bitencourt, “bastou a reportagem de 14 de dezembro de 2002, publicada no jornal Correio Braziliense, que denunciava que o Ministério do Trabalho libertou, nos últimos anos, mais de 29.000 trabalhadores do regime de escravidão em alguns estados da Federação, para justificar a edição de um novo diploma legal”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 466.

3

Iniciada na década de 1930 pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), com a edição da Convenção nº 29, ratificada pelo Brasil apenas em 1957.

4

FARIA, Bento de. Código penal brasileiro (comentado). Rio de Janeiro: Record, 1959, v. IV, p. 268, nota de rodapé 2.

5

BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa. Rio de Janeiro: Rio, 1979, p. 367.

6

Assim, contrariamente à concepção originária romana, “protege-se aqui a liberdade sob o aspecto éticosocial, a própria dignidade do indivíduo, também igualmente elevada ao nível de dogma constitucional”. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 460.

7

“A ‘escravidão moderna’ é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa ‘reduzir alguém a condição análoga à de escravo’”. STF, Inq. nº 3.412, j. 29/3/2012, m.v., rel. Min. Marco Aurélio, DJe 12/11/2012.

8

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 462.

9

“O valor que se tutela por meio deste tipo penal é o da liberdade em face de uma situação de fato que retira da pessoa a possibilidade de escolha do emprego ou a submete a aceitar condições degradantes, que prejudicam a sua saúde física ou mental”. REALE JÚNIOR, Miguel. Art. 149. In: REALE JÚNIOR, Miguel. Código penal comentado (Coord.). São Paulo: Saraiva, 2017, p. 444.

10

Ressalta Hungria que não se fala em redução à escravidão, pois esta traz um conceito em que haveria possibilidade legal de um homem ter domínio sobre outro; assim, “o status libertatis, como estado de direito, permanece inalterado, mas, de fato, é suprimido”. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 191.

11

REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2018, v. II, p. 211. Contrariamente, e.g., GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte especial, crimes contra a pessoa. Belo Horizonte: Editora D’ Plácido, 2017, p. 414, admite que o consentimento possa afastar o crime, conforme o caso, sendo necessário observar se houve uma submissão da vítima à vontade do autor.

12

Consoante o art. 2º, inciso II, da Portaria MTB nº 1.293/2017, “jornada exaustiva é toda forma de trabalho, de natureza física ou mental, que, por sua extensão ou por sua intensidade, acarrete violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os relacionados a segurança, saúde, descanso e convívio familiar e social”.

13

GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 410.

14

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconheceu como cenário desumano e degradante de trabalho: “alojamentos precários, ausência de instalações sanitárias, não fornecimento de equipamento de proteção individual, falta de local adequado para refeições; falta de água potável, jornada de trabalho exaustiva, sistema de servidão por dívidas, retenção de salários, contratação de adolescente, etc.”. STJ, REsp nº 1.223.781, 5ª Turma, j. 23/8/2016, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca.

15

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 468.

16

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 174.

17

Nesse sentido, e.g., BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 469.

18

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 469.

19

SOUZA, Regina Cirino Alves Ferreira de. Crimes de ódio: racismo, feminicídio e homofobia. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 62 e ss.

20

RExtr. nº 459.510, Plenário, j. 26/11/2015, rel. Min. Cezar Peluso; RExtr. nº 398.041, Plenário, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 30/11/2006.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-25.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 25. TRÁFICO DE PESSOAS (ART. 149-A)

Capítulo 25. Tráfico de pessoas (art. 149-A) Tráfico de Pessoas Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: I – remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; II – submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III – submetê-la a qualquer tipo de servidão; IV – adoção ilegal; ou V – exploração sexual. Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. § 1º A pena é aumentada de um terço até a metade se: I – o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las; II – o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência; III – o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou IV – a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional. § 2º A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa.

25.1.Considerações iniciais O tráfico de seres humanos é mal que assola a humanidade desde a Antiguidade. A preocupação em seu cerceamento, ainda que fundada em razões econômicas, e não precipuamente humanitárias, inicia-se de modo mais significativo apenas no século XIX, por iniciativa inglesa, para fins de abolição do tráfico negreiro. Com a tônica atual, o tema ganhou impulso ao longo da primeira metade do século XX, por conta dos mais diversos acordos e documentos internacionais a respeito, principalmente com vistas à proteção de mulheres e crianças1. Posteriormente, ganha novo impulso no final do século XX e início do XXI. O Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial

Mulheres e Crianças, adotado em Nova York em 15 de novembro de 2000 e promulgado no Brasil pelo Decreto nº 5.017/2004, define tráfico de pessoas como “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos” (art. 3º, alínea a). O delito em comento foi incluído pela Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016, que trata sobre a prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas. Tal diploma legal revogou os arts. 231 e 231-A do Código Penal, referentes ao tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual. Observa-se que a construção típica do art. 149-A do Código Penal mostra-se alinhada com o Protocolo mencionado anteriormente. O novo tipo penal veio a suprir uma lacuna, pois anteriormente, afora as incriminações revogadas, apenas se incriminava os aliciamentos para fim de emigração (art. 2062 do Código Penal) e os de trabalhadores de um local para outro do território nacional (art. 2073)4. Esses dois tipos penais não foram revogados, consistindo, não obstante, em condutas menos graves que a ora analisada.

25.2.Objetividade jurídica Protege-se a dignidade e liberdade de pessoa humana, de modo que “a ênfase ou especificação dessa liberdade varia de acordo com a finalidade a que se destina o tráfico da pessoa”5, podendo consistir no estado de liberdade propriamente dito, na personalidade civil e na liberdade sexual. A depender da modalidade de tráfico de pessoas praticado, protege-se, ainda, a vida e a integridade física do indivíduo6.

25.3.Sujeitos do delito Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime em foco (delito comum). Igualmente, qualquer pessoa pode ser sujeito passivo. Vale destacar que poderá incidir alguma das causas de aumento de pena quando o crime envolver sujeitos específicos. É o que ocorre, consoante o art. 149-A, § 1º, I, quando o sujeito ativo for funcionário público – desde que no exercício das funções ou a pretexto de exercê-la – ou, conforme o art. 149-A, § 1º, II, na hipótese do sujeito passivo tratar-se de criança, adolescente, pessoa idosa ou com deficiência.

25.4.Tipicidade objetiva e subjetiva O tipo do art. 149-A, caput, do Código Penal incrimina as condutas de “agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso”. A redação legal do dispositivo estabelece, ademais, cinco meios executórios alternativos para aperfeiçoamento do ilícito: grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso. Por fim, seus incisos são indicativos de finalidades específicas para o cometimento do crime: I – remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo; II – submissão a trabalho em condições análogas à de escravo; III – submissão a qualquer tipo de servidão; IV – adoção ilegal; ou V – exploração sexual. Em síntese, são previstos na construção tipológica oito condutas típicas, cinco meios executórios e cinco elementos subjetivos.

A presença de diversos verbos não implica cometimento de vários crimes no caso de o agente praticar diferentes núcleos do tipo, visto que se trata de um tipo misto alternativo, ou de conteúdo variado7. Por conseguinte, basta a prática de um comportamento proibido, satisfeitas as demais condições, para configuração do crime. Na hipótese de perpetração de mais de uma conduta, isso deverá ser sopesado no momento de aplicação de pena (art. 59 do Código Penal). Agenciar tem sentido de atuar como intermediário, servir de agente de alguém. Aliciar traz a ideia de estimular, persuadir, atrair uma pessoa, o que normalmente ocorre com a entrega ou promessa de vantagem. Recrutar diz respeito a angariar, convocar, levar o indivíduo para que sirva a um determinado propósito. Transportar refere-se a conduzir alguém de um lugar a outro, seja por transporte terrestre, aéreo, marítimo, seja fluvial. Transferir liga-se à noção de deslocar, isto é, mudar de um lugar a outro8. Comprar traz a ideia de adquirir a vítima, a qual é, na hipótese do delito em questão, tratada como coisa, objeto de valor.Alojar tem sentido de acomodar, hospedar, abrigar a pessoa em algum local. Por fim, acolher alude ao fato de se receber, aceitar alguém. As condutas de alojar e acolher configuram crime permanente9. Quanto aos demais casos, constituem-se em espécies de delito instantâneo. A infração penal de tráfico de pessoas deve, necessariamente, ser praticada mediante um dos seguintes meios de execução: grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso. Grave ameaça (vis compulsiva) consiste na promessa de mal injusto e grave à vítima ou a pessoas de seu círculo de afeto, caso esta não atenda à sua vontade, de modo a causar abalo psicológico no sujeito passivo. Violência (vis corporalis) liga-se ao uso da força física, isto é, a agressão voltada à própria vítima ou a outrem. Coação diz respeito à intimidação que pode ser perpetrada por meio da violência ou grave ameaça10. Fraude diz respeito ao engano, ao ardil empregado para que a vítima tenha uma percepção falsa da realidade, por exemplo, a utilização de falsas promessas. Finalmente, abuso é o desmando em face de uma relação de poder, isto é, traz a ideia de que o agente se aproveita da situação de especial vulnerabilidade da vítima, bem como se vale de especial relação de autoridade ou cuidado que tem com ela11. No tocante ao eventual consentimento da vítima, ressalta-se que o emprego de grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso caracterizam situações de seu vício, ou seja, denotam invalidade do assentimento supostamente dado, o que, nesse caso, impede que se reconheça a atipicidade da conduta. Nesse âmbito, vale destacar o art. 3º, alínea b, do supracitado Protocolo, dispondo que “o consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente Artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a)”. O elemento subjetivo do crime de tráfico de pessoas é o dolo, direto ou eventual, acompanhado de um fim específico. Não há previsão da modalidade culposa. Note-se que o delito em comento elenca uma série de elementos subjetivos especiais do tipo que podem se apresentar, cumulativamente ou não, no caso concreto, quais sejam: a) remover órgãos, tecidos ou partes do corpo da pessoa; b) submeter a pessoa a trabalho em condições análogas à de escravo; c) submeter a pessoa a qualquer tipo de servidão; d) adoção ilegal; e) exploração sexual. Reitere-se que, para configuração do tráfico de pessoas, ao menos uma das oitos condutas nucleares deverão se dar mediante pelo menos uma das cinco modalidades executórias apontadas, por fim, desde que presente, no mínimo, uma das cinco finalidades específicas descritas. Faltando qualquer desses fatores, não se perfaz o crime do art. 149-A do Código Penal. O crime em análise é formal, de modo que estará consumado ainda que o específico objetivo visado, descrito como um dos elementos subjetivos especiais do tipo, não seja atingido. A primeira finalidade prevista, de remover órgãos, tecidos ou partes do corpo da pessoa, caracteriza o crime do art. 149-A do Código Penal. Isso significa que a conduta proibida em foco se volta para a traficância humana perpetrada com o fim de transplante. A pessoa é, dessa feita, coisificada, com vistas a esse grave objetivo.

A efetiva remoção de tecidos, órgãos ou partes do corpo, bem como sua comercialização, são fatos por si sós criminosos, previstos, respectivamente, nos arts. 14 e 1512 da Lei 9.434/1997 – Lei de Transplantes –, não pressupondo necessariamente que tenha ocorrido o tráfico de pessoas. Caso ocorra conjuntamente o tráfico de pessoa e uma ou ambas das condutas descritas nos tipos especiais, haverá concurso material. Se em face da remoção de órgão, tecido ou parte do corpo, a vítima vier a morrer ou sofrer lesão corporal grave ou gravíssima, o agente também será responsabilizado pelo crime respectivo. A segunda previsão de elemento subjetivo específico, isto é, submeter a pessoa a trabalho em condições análogas à de escravo, demonstra que o tráfico pode ser perpetrado para que se realize a prática de outro crime contra a liberdade individual, o qual está tipificado no art. 14913 do Codex – redução a condição análoga à de escravo (chamado “crime de plágio”). Se este último delito efetivamente ocorrer, deverá ser reconhecido o concurso de crimes. No que diz respeito ao inciso III, ou seja, o fim de submeter a pessoa a qualquer tipo de servidão, esta última expressão pode amoldar-se a situações que não configuram a estrutura típica do crime de redução a condição análoga à de escravo. Dessa forma, cuidam-se de outras formas de submissão ao sujeito ativo. Na ótica de Greco14, e.g., para o reconhecimento da servidão, deve-se recorrer à Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfego de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura, promulgada pelo Decreto nº 58.563/1956, que em seu art. 1º15 trata de situações caracterizadoras. A menção à adoção ilegal – inciso IV – diz respeito àquela adoção que não segue todas as exigências previstas na legislação, muitas vezes, tratando o indivíduo como mercadoria a ser negociada. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seus arts. 39 a 52-D, disciplina a adoção, seja nacional, seja internacional, de modo que a violação de suas normas pode caracterizar a presente hipóteses O mesmo se diga em relação ao art. 1.619 do Código Civil, que trata da adoção de pessoas maiores de 18 anos. A última possibilidade de elemento subjetivo especial prevista é a do tráfico de pessoas praticado com o intuito de exploração sexual. Explorar significa tirar proveito, na hipótese, da sexualidade alheia. Cuida-se da situação concreta de tráfico de pessoas mais comum. O inciso V, de modo semelhante ao inciso II, trata de um tráfico que realizado para que outro crime seja praticado, por exemplo, os delitos previstos nos arts. 218-B – favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável – e 228 – favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual – do Código Penal. Ocorrendo o delito de cunho sexual visado, haverá concurso de crimes.

25.5.Consumação e tentativa O crime consuma-se com o efetivo tráfico da pessoa, seja nacional, seja internacional, não sendo necessário que a finalidade do agente seja atingida (crime formal). Admite-se a figura da tentativa. É o que se dá, por exemplo, quando o agente, imbuído de um dos intuitos mencionados, como de exploração sexual, emprega violência ou grave ameaça para transportar a vítima, mas essa foge.

25.6.Causas de aumento de pena O § 1º do art. 149-A prevê como majorantes de um terço até a metade as hipóteses em que: a) o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercêlas (inciso I); b) o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência (inciso II); c) o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função (inciso III); d) a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional (inciso IV).

No tocante ao inciso I, a noção de funcionário público pode ser extraída do art. 327 do Código Penal, o qual dispõe que funcionário público é aquele que “embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública” (caput). Ainda, há a figura equiparada daquele que “exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública” (§ 1º). Nesse âmbito, o sujeito ativo age violando seu dever funcional16. No que diz respeito ao inciso II, isto é, crime cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990, art. 2º, caput) traz parâmetros, dispondo que criança é a pessoa com doze anos incompletos, e adolescente, a pessoa entre doze e dezoito anos; o Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03, art. 1º) estabelece que pessoa idosa é aquela de idade igual ou superior a sessenta anos e, por fim, o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015, art. 2º, caput) considera pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. Na terceira hipótese, qual seja, o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função, nota-se que há um aproveitamento da proximidade para com a vítima, reforçando a execução, o que, além de mais reprovável, facilita a perpetração do delito17. A menção a parentesco, sem maiores especificações, abre margem para que seu conceito seja buscado nos arts. 1591 a 1595 do Código Civil, o que abarcaria vínculos conjugais, de consanguinidade e de afinidade18. Por fim, o inciso IV, ao estabelecer a situação em que a vítima do tráfico de pessoas é retirada do território nacional, prevê causa de aumento consistente na realização de tráfico internacional de pessoas. Trata-se de circunstância de enorme gravidade, que dificulta o retorno da vítima ao seu domicílio, além de prejudicar a apuração do delito. De se notar, todavia, que há uma lacuna legislativa, visto que não há majorante no caso em que a vítima é trazida do exterior.

25.7.Causa de diminuição de pena O art. 149-A, § 2º, do Codex estabelece como causa de diminuição de pena no patamar de um a dois terços o caso em que “o agente for primário e não integrar organização criminosa”. Pela dicção do texto legal, usando a conjunção aditiva “e”, nota-se que há duas hipóteses que devem ocorrer concomitantemente. A ideia de réu primário liga-se ao fato de o sujeito ativo não ser considerado reincidente, nos termos do art. 6319 do Código Penal. Dessa maneira, será considerado primário se o juiz não reconhecer a reincidência na sentença pelo crime de tráfico de pessoas. A noção de organização criminosa, por sua vez, está delimitada no art. 1º, § 1º da Lei nº 12.850/2013, referindo-se à associação de quatro ou mais pessoas “estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”. É preciso prova efetiva do fato para seu reconhecimento. Tendo em vista o silêncio legislativo quanto ao regramento da redução de pena, o aplicador da lei penal deverá sempre aplicar a diminuição no patamar máximo.

25.8.Pena e ação penal O tráfico de pessoas é sancionado, cumulativamente, com pena de reclusão, de quatro a oito anos, e multa (art. 149-A, caput).

Prevê-se causa de aumento de pena de um terço até a metade se: I – o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las; II – o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência; III – o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou IV – a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional (art. 149, § 1º). Há causa de diminuição de pena, de um a dois terços, se o agente for primário e não integrar organização criminosa (art. 149, § 2º). A ação penal é pública incondicionada. A competência para processo e julgamento é da Justiça Estadual, à exceção da hipótese de tráfico internacional de pessoas, quando a apuração compete à Justiça Federal (art. 109, inciso V, da Constituição Federal de 1988). Finalmente, veja-se que há regra especial quanto ao livramento condicional para o condenado por tráfico de pessoas, que somente obterá o direito à liberdade antecipada após o cumprimento de mais de dois terços da pena, e desde que não seja reincidente específico em crime dessa natureza (art. 83, inciso V, do Código Penal, conforme alteração dada pela Lei nº 13.344/2016).

FOOTNOTES 1

Na primeira metade do século XX, são eles: Acordo para a Repressão ao tráfico de Mulheres Brancas (Paris, 1905); Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas (Paris, 1910); Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças (Genebra, 1921); Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores (Genebra, 1933); Protocolo de Emenda à Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças e à Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores (Nova York, 1947); Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio (Nova York, 1949).

2

“Art. 206 – Recrutar trabalhadores, mediante fraude, com o fim de levá-los para território estrangeiro. Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos e multa.”

3

“Art. 207 – Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional: Pena – detenção de um a três anos, e multa. § 1º Incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, dentro do território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, não assegurar condições do seu retorno ao local de origem. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental.”

4

REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2018, v. II, p. 215.

5

REGIS PRADO, Luiz. Curso de..., p. 216.

6

GRECO, Rogério. Curso de direito penal: especial. Niterói: Impetus, 2019, v. II, p. 478.

7

Observa Greco que a lei previu “toda a cadeia que diz respeito ao tráfico de pessoas, desde o seu começo, com o aliciamento da vítima, passando pelo seu transporte, até o acolhimento no local de destino”. GRECO, Rogério. Curso de..., cit., p. 464.

8

A distinção entre transportar e transferir é de rigor: a transferência pode se dar sem o uso de meio de transporte, bem como quem transfere pode não ser o exato transportador.

9

Para Regis Prado, as condutas de “transportar” e “transferir” também seriam espécies de crime permanente, REGIS PRADO, Luiz. Curso de..., p. 217.

10

REGIS PRADO, Luiz. Curso de..., p. 216, considera tratar-se de expressão redundante, que equivale à violência ou grave ameaça.

11

REGIS PRADO, Luiz. Curso de..., p. 216.

12

“Art. 15. Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano: Pena – reclusão, de três a oito anos, e multa, de 200 a 360 dias-multa.”

13

“Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1º Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos

pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.”

14

GRECO, Rogério. Curso de..., cit., p. 471.

15

“Artigo 1º. Cada um dos Estados Partes a presente Convenção tomará todas as medidas, legislativas e de outra natureza que sejam viáveis e necessárias, para obter progressivamente logo que possível a abolição completa ou o abandono das instituições e práticas seguintes onde quer ainda subsistam, enquadram-se ou não na definição de escravidão que figura no artigo primeiro da Convenção sobre a escravidão assinada em Genebra, em 25 de setembro de 1926: a) A servidão por dividas, isto é, o estado ou a condição resultante do fato de que um devedor se haja comprometido a fornecer, em garantia de uma dívida, seus serviços pessoais ou os de alguém sobre o qual tenha autoridade, se o valor desses serviços não for equitativamente avaliado no ato da liquidação de dívida ou se a duração desses serviços não for limitada nem sua natureza definida; b) a servidão isto é, a condição de qualquer um que seja obrigado pela lei, pelo costume ou por um acordo, a viver e trabalhar numa terra pertencente a outra pessoa e a fornecer a essa outra pessoa, contra remuneração ou gratuitamente, determinados serviços, sem poder mudar sua condição. c) Toda instituição ou prática em virtude da qual: I, Uma mulher é, sem que tenha o direito de recusa prometida ou dada em casamento, mediante remuneração em dinheiro ou espécie entregue a seus país, tutor, família ou a qualquer outra pessoa ou grupo de pessoas; II, O marido de uma mulher, a família ou o clã deste tem o direito de cedêla a um terceiro, a título oneroso ou não; III, A mulher pode, por morte do marido ser transmitida por sucessão a outra pessoa; d) Toda instituição ou prática em virtude da qual uma criança ou um adolescente de menos de dezoito anos é entregue, quer por seu pais ou um deles, quer por seu tutor, a um terceiro, mediante remuneração ou sem ela, com o fim da exploração da pessoa ou do trabalho da referida criança ou adolescente.”

16

Sobre o tema, cf. SOUZA, Luciano Anderson de. Crimes contra a administração pública. São Paulo: Ed. RT, 2018, p. 62 e ss.

17

Assim, “a vontade da vítima traficada é subjugada pela autoridade do autor, que pode ser um familiar (pai, padrasto, mãe), empregador, cônjuge ou convivente da qual a mesma dependa de alguma forma (econômica, carência de cuidados etc.) e por isso submeta-se ao tráfico ilegal”. REGIS PRADO, Luiz. Curso de..., p. 218.

18

GRECO, Rogério. Curso de..., cit., pp. 481-483.

19

“Art. 63 – – Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.”

© desta edição [2019]

2020 - 03 - 24

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 REVISTA DOS TRIBUNAIS

This PDF Contains CAPÍTULO 26. VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO (ART. 150), p.RB-26.1 CAPÍTULO 27. VIOLAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA (ART. 151), p.RB-27.1 CAPÍTULO 28. CORRESPONDÊNCIA COMERCIAL (ART. 152), p.RB-28.1 CAPÍTULO 29. DIVULGAÇÃO DE SEGREDO (ART. 153), p.RB-29.1 CAPÍTULO 30. VIOLAÇÃO DE SEGREDO PROFISSIONAL (ART. 154), p.RB-30.1

2020 - 03 - 24

PAGE RB-26.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 26. VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO (ART. 150)

Capítulo 26. Violação de domicílio (art. 150) Violação de domicílio Art. 150 – Entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências: Pena – detenção, de um a três meses, ou multa. § 1º – Se o crime é cometido durante a noite, ou em lugar ermo, ou com o emprego de violência ou de arma, ou por duas ou mais pessoas: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, além da pena correspondente à violência. § 2º – Aumenta-se a pena de um terço, se o fato é cometido por funcionário público, fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades estabelecidas em lei, ou com abuso do poder. § 3º – Não constitui crime a entrada ou permanência em casa alheia ou em suas dependências: I – durante o dia, com observância das formalidades legais, para efetuar prisão ou outra diligência; II – a qualquer hora do dia ou da noite, quando algum crime está sendo ali praticado ou na iminência de o ser. § 4º – A expressão "casa" compreende: I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade. § 5º – Não se compreendem na expressão "casa": I – hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo a restrição do n.º II do parágrafo anterior; II – taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero.

26.1.Considerações iniciais Nas legislações antigas, a proteção da moradia detinha cunho religioso, de modo que somente com o perpassar do tempo a habitação passou a ser tutelada como uma projeção da própria pessoa1. Na Roma antiga, não houve autonomia para o delito em questão. O direito germânico, a seu turno, inicialmente punia apenas a invasão armada da casa de outrem, não tendo o tema recebido maior atenção. Na Idade Média, a tutela da casa restou desatendida. Note-se que “os criminalistas do século XVII silenciam sobre a inviolabilidade do domicílio. Ocorreu a tal respeito uma verdadeira involução: tal como no primitivo direito oriental, só se fazia referência à violação do domicílio como meio para outro malefício especialmente incriminado”2. O assunto somente ganhou significado com a Revolução Francesa, com intuito de se coibir abusos por parte das autoridades. Por isso, o Código Penal francês de 1810, de Napoleão, somente

sancionava a violação do domicílio que tivesse como autor agente público. O Código Criminal pátrio de 1830 estabelecia, de forma ampla, nos crimes contra a segurança individual, a “entrada em casa alheia”, não exigindo emprego de violência física ou moral. Já o Código Penal de 1890 seguiu a tipificação anterior e, inspirado no Código italiano de 1889, classificou tal figura entre os crimes contra a liberdade individual. A previsão constante do art. 150 do atual Código Penal, de 1940, permanece a mesma desde a sua entrada em vigor. O legislador utilizou a expressão domicílio como sinônimo de casa, abrangendo suas dependências, preocupando-se com a morada dos indivíduos, isto é, o local de sua habitação ou residência real, bem como espaço de trabalho3. A noção penal, dessa feita, mostra-se diversa da civil. O crime de violação de domicílio consta da Seção II (“dos crimes contra a inviolabilidade do domicílio”) do Capítulo VI (“dos crimes contra a liberdade individual”) do Título I (“dos crimes contra a pessoa”) da Parte Especial do Código Penal. Apesar do nome da seção utilizar-se de plural, há previsão nela de um único crime.

26.2.Objetividade jurídica Protege-se a liberdade individual, sobretudo em seus aspectos de intimidade e privacidade. Em suma, tutela-se o status libertatis, no particular aspecto da inviolabilidade do domicílio4. Inclui-se também no campo de proteção a casa de moradia, o local reservado à vida íntima da pessoa ou à sua atividade privada, seja ou não coincidente com o seu domicílio civil5. Assim, não há vinculação ao conceito de domicílio de Direito Civil. Nesse âmbito, observa-se que a dimensão de tutela encontra escora constitucional no art. 5º, inciso XI, o qual estabelece que: “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

26.3.Sujeitos do delito Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do crime de violação de domicílio (delito comum), inclusive o proprietário do imóvel, uma vez que se protege a intimidade e privacidade, não a posse e propriedade. Por conseguinte, e.g., o proprietário do apartamento alugado que adentra no imóvel sem autorização do inquilino comete o crime em questão. A majorante prevista no § 2º do art. 150 traz um sujeito ativo específico, que deve ser funcionário público. Sujeito passivo é o morador, aquele que pode anuir ou não à entrada ou permanência de pessoas na casa. A lei utiliza a expressão “quem de direito” para se referir àquelas pessoas que detêm a prerrogativa de proibir ou não a entrada ou permanência de terceiros. Em habitações coletivas, pode haver entre os moradores uma relação de subordinação (e.g., patrões em relação a empregados, pais em relação a filhos menores) ou igualdade (v.g., marido e esposa, conviventes, estudantes em uma república). No primeiro caso, prevalece a orientação da figura superior. No segundo, em caso de divergência, persistirá a proibição (princípio do melior est conditio prohibentis, isto é, “melhor é a condição de quem proíbe”). Embora os empregados não possam, por si sós, autorizar o ingresso de alguém na casa sem autorização de seus patrões, deve-se apenas ressaltar que eles têm o direito de proibir a entrada de estranhos em seus aposentos.

26.4.Tipicidade objetiva e subjetiva

A conduta incriminada pelo tipo penal é a de “entrar ou permanecer, clandestina ou astuciosamente, ou contra a vontade expressa ou tácita de quem de direito, em casa alheia ou em suas dependências”. Trata-se de um tipo misto alternativo, ou de conteúdo variado, que revela dois núcleos, entrar e permanecer, respectivamente, um comportamento comissivo e outro omissivo. Entrar significa invadir, ingressar, introduzir-se, em casa alheia ou suas dependências. A entrada deve ser integral, ou seja, o agente deve ultrapassar com todo seu corpo o limite entre a casa e o mundo exterior6. Já permanecer consiste em recusar-se a sair, conservar-se no lugar em que se encontra, não atendendo à vontade do morador da casa. Essa hipótese pressupõe um ingresso anterior na residência alheia com a anuência do responsável, bem como uma permanência ilegítima por tempo juridicamente relevante7. Perceba-se que a entrada em casa alheia constitui crime instantâneo, enquanto que permanecer configura delito permanente. A entrada ou permanência em casa alheia assume caráter criminoso se ocorre contra a vontade expressa ou tácita do responsável, chamada de forma franca, ou ainda, na ausência de seu conhecimento (caso de entrada ou de permanência que seja clandestina ou astuciosa). Os fatos se dão contra a vontade expressa do responsável quando esse se opõe claramente, por palavras ou meios simbólicos, à presença de determinada pessoa em sua casa, proibindo sua entrada ou permanência. Já o dissenso tácito ocorre quando as circunstâncias denotam isso, v.g., trancamento de portas, colocação de campainhas, cercas elétricas etc. Se o ingresso ou permanência ocorre de forma clandestina ou astuciosa presume-se, de forma relativa, o dissenso do responsável, vez que os desconhece. Há clandestinidade quando o agente, desviando a vigilância do morador, entra ou permanece na casa sem que seja visto. Já o meio astucioso se dá quando o indivíduo utiliza de fraude para entrar ou permanecer no local. O próprio tipo penal em destaque, nos §§ 4º e 5º, traz aquilo que está compreendido ou não no conceito de casa, consubstanciando uma norma penal explicativa. Assim, consoante o § 4º, considera-se “casa”: a) qualquer compartimento habitado (inciso I); b) aposento ocupado de habitação coletiva (inciso II); c) compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade (inciso III). A primeira referência legal, isto é, qualquer compartimento habitado, permite que se inclua na noção de casa qualquer local ocupado enquanto residência, independentemente se de forma fixa ou não, permanente ou momentânea. Desse modo, abrange casas, apartamentos, barracos, trailers e barcos. Até um automóvel pode ser considerado casa se utilizado como habitação. A segunda hipótese, consistente em aposento ocupado de habitação coletiva, permite que a proteção do tipo abarque locais como quartos ocupados de hotéis, motéis, repúblicas, pensões, cortiços. Em tais casos, a parte aberta ao público não é alcançada pelo tipo. Por fim, o inciso III, relativo a compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade, protege o lugar em que a pessoa exerce sua profissão, como seu escritório ou consultório, parte interna de oficina etc., desde que não franqueados ao acesso do público8. Por conseguinte, não há crime no ingresso ou permanência em partes abertas de tais locais, e.g., salas de espera e recepções. O art. 150, caput, in fine, menciona casa ou suas dependências. Dependência da casa é o local conexo a ela, que gravita na órbita da habitação9. Dessarte, a proteção penal abarca, e.g., garagens, jardins, quintais, terraços, desde que cercados ou com obstáculos de fácil visualização, consoante entendimento doutrinário e jurisprudencial consagrado.

Em contrapartida, o § 5º exclui do conceito de “casa”: a) hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo a restrição do inciso II do § 4º (inciso I); e b) taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero (inciso II). A primeira hipótese – hospedaria, estalagem ou qualquer outra habitação coletiva, enquanto aberta, salvo a restrição do inciso II do § 4º – refere-se à parte de habitações coletivas abertas ao público, visto que em tais não há a privacidade a ser protegida que está presente em um quarto da habitação ocupado. Dessa forma, excluídos da proteção estão saguões e estacionamentos de hotéis e pensões etc. No que tange ao inciso II, relativo a taverna, casa de jogo e outras do mesmo gênero, taverna é o local onde são vendidas e servidas bebidas e comidas. Já casa de jogo é aquela localidade de livre acesso ao público em que habitualmente se praticam jogos, ilícitos10 ou não11. Por fim, a fórmula “outras do mesmo gênero” abarca estabelecimentos e locais com parte aberta ao público, como cinemas, teatros, igrejas etc. Insta observar que somente ocorre o delito de violação de domicílio quando a conduta se mostra como um fim em si mesmo e não meio para a prática de outro delito (v.g., furto, roubo, estupro etc.), hipótese em que o crime-fim absorve o crime-meio. Caso haja desistência do agente quanto ao crime-fim, apenas responderá por invasão de domicílio. Se o crime-fim for menos severamente punido (como no caso da entrada à noite na casa alheia para ameaçar o morador ou para prática de exercício arbitrário das próprias razões), há divergências de compreensão. Para uma corrente, haveria responsabilização apenas pelo crime mais grave (invasão de domicílio)12, enquanto para outra, o agente deveria ser responsabilizado por ambas13, visto que os bens jurídicos tutelados são distintos. Um terceiro posicionamento, de maior cunho jurisprudencial14, entende que o sujeito ativo deve responder exclusivamente pelo crime visado, ainda que a pena seja menor. O elemento subjetivo é o dolo, direto ou eventual. Não há previsão da modalidade culposa. Não há crime, por ausência de dolo, quando o indivíduo invade a casa alheia ou suas dependências por engano (erro de tipo) ou quando foge de perseguição ou de desastre natural (hipóteses de estado de necessidade).

26.5.Consumação e tentativa O crime se consuma quando o agente ingressa totalmente na casa da vítima, adentrando essa com a totalidade de seu corpo, ou quando, ciente da necessidade de se retirar, por lá permanece por tempo juridicamente relevante. Admite-se a tentativa, em qualquer modalidade. Quanto à entrada, é o que ocorre, e.g., quando o agente é interrompido quando arromba a porta para ingressar na residência. Quanto à permanência, por sua vez, é o que se dá, v.g., quando o agente, convidado a se retirar, recusa-se a tanto, mas é incontinenti retirado à força do local.

26.6.Qualificadoras No art. 150, § 1º, há previsão de qualificadoras nas hipóteses em que o crime for cometido: a) durante a noite; b) em lugar ermo; c) com o emprego de violência ou de arma; ou d) por duas ou mais pessoas. No que tange ao conceito de noite, majoritariamente entende-se que se trata de um período de escuridão, sem iluminação natural, isto é, o período em que não há luz solar, visto que em tal caso a vítima estaria em posição mais vulnerável15. Lugar ermo é aquele habitualmente solitário, afastado, pouco frequentado. Do mesmo modo, há

maior vulnerabilidade da vítima e, desta feita, facilidade para a prática delitiva. Hungria16 entende que o emprego de violência somente se refere à violência física, sendo possível considerar a violência moral se esta é feita com emprego de arma. Ainda, segundo o pensamento majoritário, a violência pode ser tanto contra a pessoa tanto quanto a coisa, pois o legislador não especificou17. O emprego de arma significa a utilização de objeto produzido para defesa ou ataque (arma própria, como revólver, pistola ou punhal etc.) ou de instrumento confeccionado para outro fim, porém desvirtuado para defesa ou ataque (arma imprópria, como, entre outras, faca de cozinha, tesoura, navalha)18. Quanto o crime ser cometido por duas ou mais pessoas, consiste no concurso de agentes, podendo abranger no cálculo autores ou partícipes, incluindo-se inimputáveis (exemplo, crime praticado conjuntamente com um menor de idade).

26.7.Causas de aumento de pena O art. 150, § 2º, traz como causas de aumento de pena de um terço o fato do crime ser cometido por funcionário público: a) fora dos casos legais; b) com inobservância das formalidades estabelecidas em lei; ou c) com abuso do poder. A majorante pode incidir tanto para a modalidade básica de crime (art. 150, caput), como para as figuras qualificadas (art. 150, § 1º). A noção penal de funcionário público é extraída do art. 327 do Código Penal, o qual dispõe que funcionário público é aquele que “embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública” (caput). Ainda, há a figura equiparada daquele que “exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública” (§ 1º). Nesse âmbito, o sujeito ativo age violando seu dever funcional19. O funcionário público pode ingressar em casa alheia se autorizado pelo morador, em caso de flagrante delito ou de desastre, para prestar socorro ou, durante o dia, com mandado judicial. Sem uma dessas hipóteses, agirá fora dos casos legais, reconhecendo-se a majorante (v.g., policial ingressa na casa sem mandado ou flagrante em curso, agente da vigilância epidemiológica a quem se franqueara a entrada se recusa a sair etc.). Do mesmo modo, em qualquer dos casos permissivos, deve-se ater aos estritos limites do autorizado ou do determinado, sob pena de descumprir as formalidades legais (e.g., quando cumpre o mandado judicial à noite). Por fim, abuso de poder significa a prática de atos excessivos por parte do funcionário público no cumprimento de suas funções (v.g., permanece por tempo superior ao necessário). Há divergências quanto ao reconhecimento da violação de domicílio majorada pela condição funcional (art. 150, caput, e § 2º) em face do crime de abuso de autoridade mediante atentado à inviolabilidade de domicílio (art. 3º, b, da Lei nº 4.898/1965). Uma corrente entende que o abuso de autoridade prevalece, pelo princípio da especialidade, bem como por cuidar-se de lei posterior20. Outra posição entende que, se a invasão de domicílio for um fim em si mesmo, o tipo em análise majorado é o aplicado. Uma terceira compreensão advoga pela incidência de ambas as hipóteses (abuso de autoridade e invasão de domicílio majorada)21. Por fim, um quarto posicionamento afirma que incidirá a invasão de domicílio sem majoração em concurso com o abuso de autoridade22.

26.8.Excludentes de antijuridicidade O art. 150, § 3º, elenca situações em que, embora haja a entrada ou permanência em casa alheia ou em suas dependências, não ocorre crime. São elas: a) durante o dia, com observância das

formalidades legais, para efetuar prisão ou outra diligência23 (inciso I); b) a qualquer hora do dia ou da noite, quando algum crime está sendo ali praticado ou na iminência de o ser (inciso II). O dispositivo há de ser interpretado em conjunto com o estabelecido na Constituição, em seu art. 5º, inciso XI, mencionado anteriormente24. Por conseguinte, há duas situações, quais sejam, quando houver ordem judicial ou prisão em flagrante. No caso de cumprimento de ordem judicial, qualquer que seja a razão (e.g., prisão, busca e apreensão), seu cumprimento deverá se dar durante o dia, podendo haver entrada à força. Em se tratando de mandado de prisão é possível ao executor, durante a noite, guardar as saídas da casa, com vistas ao ingresso para seu cumprimento logo ao amanhecer. O art. 293 do Código de Processo Penal estabelece como formalidade que “se o executor do mandado verificar, com segurança, que o réu entrou ou se encontra em alguma casa, o morador será intimado a entregá-lo, à vista da ordem de prisão. Se não for obedecido imediatamente, o executor convocará duas testemunhas e, sendo dia, entrará à força na casa, arrombando as portas, se preciso; sendo noite, o executor, depois da intimação ao morador, se não for atendido, fará guardar todas as saídas, tornando a casa incomunicável, e, logo que amanheça, arrombará as portas e efetuará a prisão”. Ainda, o parágrafo único acrescenta que “o morador que se recusar a entregar o réu oculto em sua casa será levado à presença da autoridade, para que se proceda contra ele como for de direito”. Na hipótese de prisão em flagrante, é possível a invasão de casa alheia, a qualquer hora do dia ou da noite, com vistas à prisão do morador ou não. Observa-se que o inciso II fala em “crime”, o que poderia dar a ideia de não se aplicar na hipótese de haver uma contravenção penal. Não obstante, em face da Constituição referir-se a “flagrante delito” (art. 5º, XI) e o Código de Processo Penal a “infração penal” (art. 302), entende-se que está abrangido o flagrante de contravenção penal. A jurisprudência do STF25 e STJ26 entende pacificamente que deve haver justa causa para a invasão domiciliar sem ordem judicial, a saber: flagrante delito, desastre e prestação de socorro. Estas últimas hipóteses, reitere-se, podem se dar durante o dia ou à noite.

26.9.Pena e ação penal O crime de violação de domicílio é sancionado alternativamente com pena de detenção, de um a três meses, ou multa (art. 150, caput). O § 1º do art. traz figuras qualificadas, cominando pena de detenção, de seis meses a dois anos, além da pena correspondente à violência, se o crime for cometido durante a noite, ou em lugar ermo, ou com o emprego de violência ou de arma, ou por duas ou mais pessoas. Há previsão de causa de aumento de pena de um terço, se o fato é cometido por funcionário público, fora dos casos legais, ou com inobservância das formalidades estabelecidas em lei, ou com abuso do poder (art. 150, § 2º). A ação penal é pública incondicionada. Seu processo e julgamento compete ao Juizado Especial Criminal, tanto na forma simples quanto nas qualificadas (art. 61 da Lei nº 9.099/1995). A violação de domicílio admite a suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/1995, à exceção dos casos de violência doméstica e familiar contra mulher (art. 41 da Lei Maria da Penha, isto é, Lei nº 11.340/2006).

FOOTNOTES 1

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. VI, pp. 195-196. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988, v. I, p. 267.

2

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 197.

3

FARIA, Bento de. Código penal brasileiro (comentado). Rio de Janeiro: Record, 1959, v. IV, pp. 272-274.

4

REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2018, v. II, p. 219.

5

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 198.

6

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 203.

7

Destaque-se que “não basta, para configurar-se a permanência arbitrária, uma momentânea hesitação no atender à injunção de sair: é necessária uma certa duração, a demonstrar uma positiva recalcitrância”. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 203.

8

O quarto do prostíbulo é alcançado pela proteção penal por esse dispositivo. Nesse sentido, e.g., NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte especial – Arts. 121 a 212 do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2018, v. 2, p. 305.

9

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., pp. 206-207.

10

A prática ilegal de jogos de azar é contravenção penal: “Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele: Pena – prisão simples, de três meses a um ano, e multa, de dois a quinze contos de réis, estendendo-se os efeitos da condenação à perda dos moveis e objetos de decoração do local. § 1º A pena é aumentada de um terço, se existe entre os empregados ou participa do jogo pessoa menor de dezoito anos. § 2º Incorre na pena de multa, de R$

2.000,00 (dois mil reais) a R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), quem é encontrado a participar do jogo, ainda que pela internet ou por qualquer outro meio de comunicação, como ponteiro ou apostador. § 3º Consideram-se, jogos de azar: a) o jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte; b) as apostas sobre corrida de cavalos fora de hipódromo ou de local onde sejam autorizadas; c) as apostas sobre qualquer outra competição esportiva. § 4º Equiparam-se, para os efeitos penais, a lugar acessível ao público: a) a casa particular em que se realizam jogos de azar, quando deles habitualmente participam pessoas que não sejam da família de quem a ocupa; b) o hotel ou casa de habitação coletiva, a cujos hóspedes e moradores se proporciona jogo de azar; c) a sede ou dependência de sociedade ou associação, em que se realiza jogo de azar; d) o estabelecimento destinado à exploração de jogo de azar, ainda que se dissimule esse destino”.

11

Exemplos de jogos lícitos ocorrem nos hipódromos e em fliperamas, por exemplo.

12

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., pp. 200-201.

13

BARROS, Flávio Monteiro de. Crimes contra a pessoa. São Paulo: Saraiva, 1997, pp. 269-270.

14

E.g., TJSP, Ap. nº 0000428-42.2015.8.26.0588, 9ª Câmara Criminal Extraordinária, j. 17/2/2017, rel. Alberto Anderson Filho; TJMG, Autos nº 1.0701.16.026245-0/001, 4.ª Câmara Criminal, j. 14/3/2018, rel. Corrêa Camargo.

15

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 181.

16

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 213.

17

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de..., cit., p. 308, v.g., considera que a violência é a exercida somente contra a pessoa.

18

Consoante a redação legal, de se notar que a qualificadora não se limita a armas de fogo, abarcando outros tipos de armas. De qualquer modo, note-se que o comportamento delitivo com emprego de armas próprias de fogo tende a aumentar na prática, em face dos recentes Decretos federais ns. 9.785 e 9.797, ambos de

2019, os quais pretendem facilitar o acesso a armamentos de fogo no país. Advirta-se, no entanto, que é possível que se reconheça a inconstitucionalidade de tais atos normativos presidenciais, tendo em vista que se apresentam em sentido oposto ao insculpido no Estatuto do Desarmamento.

19

Sobre o tema, cf. SOUZA, Luciano Anderson de. Crimes contra a administração pública. São Paulo: Ed. RT, 2018, p. 62 e ss.

20

FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS, Vladimir Passos de. Abuso de autoridade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 40; GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte especial, crimes contra a pessoa. Belo Horizonte: Editora D’ Plácido, 2017, p. 465; NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de..., cit., p. 309.

21

BARROS, Flávio Monteiro de. Crimes contra..., cit., p. 266.

22

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 486; BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte especial 1. São Paulo: Atlas, 2014, p. 340.

23

Hungria considera que a diligência se refere não só às judiciais ou policiais, mas também às administrativas e fiscais. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 215.

24

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 485, observa que há um “aparente paradoxo”, pois a Constituição Federal restringiu as exceções diurnas, porém acrescentou uma hipótese que exclui o crime a qualquer hora.

25

RE n. 603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe 05/11/2015, com repercussão geral, o qual possui a seguinte ementa: “recurso extraordinário representativo da controvérsia. Repercussão geral. 2. Inviolabilidade de domicílio – art. 5º, XI, da CF. Busca e apreensão domiciliar sem mandado judicial em caso de crime permanente. Possibilidade. A Constituição dispensa o mandado judicial para ingresso forçado em residência em caso de flagrante delito. No crime permanente, a situação de flagrância se protrai no tempo. 3. Período noturno. A cláusula que limita o ingresso ao período do dia é aplicável apenas aos casos em que a busca é determinada por ordem judicial. Nos demais casos – flagrante delito, desastre ou para prestar socorro – a Constituição não faz exigência quanto ao período do dia. 4. Controle judicial a posteriori. Necessidade de preservação da inviolabilidade domiciliar. Interpretação da Constituição. Proteção contra ingerências arbitrárias no domicílio. Muito embora o flagrante delito legitime o ingresso forçado em casa

sem determinação judicial, a medida deve ser controlada judicialmente. A inexistência de controle judicial, ainda que posterior à execução da medida, esvaziaria o núcleo fundamental da garantia contra a inviolabilidade da casa (art. 5, XI, da CF) e deixaria de proteger contra ingerências arbitrárias no domicílio (Pacto de São José da Costa Rica, artigo 11, 2, e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigo 17, 1). O controle judicial a posteriori decorre tanto da interpretação da Constituição, quanto da aplicação da proteção consagrada em tratados internacionais sobre direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico. Normas internacionais de caráter judicial que se incorporam à cláusula do devido processo legal. 5. Justa causa. A entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa prévia conforme o direito, é arbitrária. Não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida. Os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida. 6. Fixada a interpretação de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados. 7. Caso concreto. Existência de fundadas razões para suspeitar de flagrante de tráfico de drogas. Negativa de provimento ao recurso”.

26

Recentemente, o STJ reconheceu que a simples fuga de uma iminente abordagem policial, por si só, não autoriza que a polícia entre na casa do cidadão sem mandado judicial. Com isso, invalidou prisão por tráfico de drogas, conforme o HC nº 415.332/SP, rel. Min. Rogério Schietti Cruz, 6ª Turma, j. 16/08/2018.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-27.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 27. VIOLAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA (ART. 151)

Capítulo 27. Violação de correspondência (art. 151) Violação de correspondência Art. 151 – Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa. Sonegação ou destruição de correspondência § 1º – Na mesma pena incorre: I – quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada e, no todo ou em parte, a sonega ou destrói; Violação de comunicação telegráfica, radioelétrica ou telefônica II – quem indevidamente divulga, transmite a outrem ou utiliza abusivamente comunicação telegráfica ou radioelétrica dirigida a terceiro, ou conversação telefônica entre outras pessoas; III – quem impede a comunicação ou a conversação referidas no número anterior; IV – quem instala ou utiliza estação ou aparelho radioelétrico, sem observância de disposição legal. § 2º – As penas aumentam-se de metade, se há dano para outrem. § 3º – Se o agente comete o crime, com abuso de função em serviço postal, telegráfico, radioelétrico ou telefônico: Pena – detenção, de um a três anos. § 4º – Somente se procede mediante representação, salvo nos casos do § 1º, IV, e do § 3º.

27.1.Considerações iniciais O Direito Romano tratava como furto a interceptação de cartas, não havendo uma ideia aproximada do que hoje se entende por violação de correspondência. Na Idade Média, era tratado como falsum rasgar, queimar, ocultar e abrir cartas alheias para revelar seu texto e, caso a carta fosse aberta, mas seu conteúdo não fosse revelado, ocorria o crimen stellionatus1. Foi com a Revolução Francesa que se consolidou o princípio da inviolabilidade da correspondência como expressão da liberdade individual2. O Código Penal francês de 1810, imbuído da ideia de freio ao arbítrio estatal, incriminava a violação de correspondência praticada por funcionário ou agente do governo ou da administração postal. O Código Penal pátrio de 1830 incriminava a “abertura de cartas”. O Código de 1890, a seu turno, trazia seis modalidades de delito, quais sejam, abertura, tirada, assenhoramento, supressão, publicação abusiva e utilização arbitrária de correspondência alheia. O Código Penal de 1940, em seu art. 151, incriminou a violação de correspondência, a sonegação ou destruição de correspondência e a violação de comunicação telegráfica, radiográfica ou telefônica. O art. 403 da Lei nº 6.538/1978, que trata dos serviços postais, revogou tacitamente o caput e o § 1º, inciso I, do art. 151 do Codex. Além disso, o art. 70 da Lei nº 4.117/1962 (Código

Brasileiro de Telecomunicações) revogou tacitamente o art. 151, § 1º, inciso IV, do mesmo diploma.

27.2.Objetividade jurídica Protege-se a inviolabilidade do sigilo da correspondência, das comunicações telegráficas e das comunicações telefônicas, como expressão da liberdade do indivíduo no tocante à sua comunicação com os demais4. Destaque-se que a tutela é garantida pela Constituição Federal, em seu art. 5º, XII, ao dispor que “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Igualmente, estão envolvidos os direitos à intimidade e à vida privada (art. 5º, X, da Carta).

27.3. Sujeitos do delito Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do delito de violação de correspondência5. A pessoa analfabeta ou cega pode igualmente ser sujeito ativo, de modo que não é preciso que o agente faça pessoalmente a leitura do escrito para realizar a conduta típica, bastando que tome conhecimento de seu conteúdo, por exemplo, ao pedir que outrem leia para ela6. São sujeitos passivos tanto o remetente como o destinatário da correspondência.

27.4.Tipicidade objetiva O art. 40, caput, da Lei nº 6.538/1978 (Lei de Serviços Postais), tal qual o fazia o art. 151, caput, do Código Penal, estabelece como violação de correspondência “devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem”. Devassar traz a ideia de tomar conhecimento do conteúdo da carta, total ou parcialmente. Assim, incrimina-se a leitura do conteúdo da correspondência, independentemente de o agente fazer uso de tais informações, ou se estas são ou não relevantes7. Indevidamente8 indica que o devassamento ocorre sem a autorização do ofendido. Correspondência refere-se à comunicação de pessoa a pessoa (diversa da conversação), por meio apto a fixar e transmitir a manifestação do pensamento, como carta e telegrama9. A Lei nº 6.538/1978 estabelece como conceito de correspondência “toda comunicação de pessoa a pessoa, por meio de carta, através da via postal, ou por telegrama” (art. 47). Para reconhecimento do crime, a correspondência tem de estar fechada, de modo que “o fecho seja tal que não possa ser desfeito ou iludido, sem deixar vestígios”10. Além disso, tem de estar dirigida a pessoa determinada, não desconfigurando o tipo se o destinatário estiver ausente ou se já for falecido. O art. 40, § 1º, da Lei nº 6.538/1978, também revogou tacitamente o inciso I do § 1º do art. 151. Cuida-se de figura equiparada que prevê a sonegação ou destruição de correspondência, de modo que incorre na mesma pena da violação de correspondência quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada, para sonegá-la ou destruí-la, no todo ou em parte. Em tal hipótese, é indiferente se a correspondência está fechada ou aberta, ou se o sujeito ativo toma ou não conhecimento de seu conteúdo. Apossar-se tem o sentido de que o agente sujeita a correspondência ao seu arbitrário poder de fato; sonegar significa “desviar uma coisa do seu destino, não manifestá-la, ocultá-la”; e destruir é “inutilizar, danificar uma coisa de modo que não possa mais servir ao seu fim, seja ou não subvertida a sua materialidade específica”11. A rubrica violação de comunicação telegráfica, radioelétrica ou telefônica abarca os demais incisos do § 1º, incluindo na pena prevista no caput quem: a) indevidamente divulga, transmite a

outrem ou utiliza abusivamente comunicação telegráfica ou radioelétrica dirigida a terceiro, ou conversação telefônica entre outras pessoas (inciso II); b) impede a comunicação ou a conversação referidas no inciso anterior (inciso III); c) instala ou utiliza estação ou aparelho radioelétrico, sem observância de disposição legal12 (inciso IV). No tocante ao inciso II, divulgar tem o sentido de tornar público o conteúdo da comunicação telegráfica ou radioelétrica ou da conversação telefônica, seja para uma pessoa, seja para indeterminado número de indivíduos. Na visão de Bitencourt13, o legislador, na hipótese, abusou do direito de utilização de elementos normativos na descrição típica, violando o princípio da taxatividade na hipótese. A última parte do inciso II, referente à conversação telefônica, foi revogada, de modo que deve ser observado o art. 1014 da Lei nº 9.296/1996, que traz como crime “realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”. O inciso III preceitua que também se considera crime a conduta de impedir a comunicação ou a conversação, referidas no inciso anterior. Impedir significa obstar, no caso a corrente ou onda elétrica ou a comunicação telegráfica ou telefônica. Por fim, o inciso IV foi revogado tacitamente pelo Código de Telecomunicações – Lei nº 4.117/1962 –, o qual, em seu art. 70, estabelece que “constitui crime punível com a pena de detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos, aumentada da metade se houver dano a terceiro, a instalação ou utilização de telecomunicações, sem observância do disposto nesta Lei e nos regulamentos”.

27.5.Tipicidade subjetiva O elemento subjetivo é o dolo, direto ou eventual. Não há previsão da modalidade culposa.

27.6.Consumação e tentativa Consuma-se o crime de violação de correspondência com o devassamento, ou seja, quando o sujeito ativo toma conhecimento do conteúdo da correspondência violada, não importando que este tenha conseguido restituir a correspondência ao status quo ante15. Admite-se a tentativa, como no caso em que o agente é impedido por terceiro de ler a correspondência que acaba de abrir. Leciona Hungria16 que “se a correspondência é escrita em cifra ou em idioma desconhecido do agente, e este não dispõe de quem possa decifrá-la ou traduzi-la, o que ocorre é uma tentativa inadequada de devassamento, sem prejuízo da responsabilidade penal a outro título (como quando haja a sonegação ou destruição da correspondência ininteligível para o agente)”. No apossamento de correspondência parasonegação ou destruição, tendo em vista a redação do art. 40, § 1º, da Lei nº 6.538/1978, consuma-se o crime com o apossamento indevido, independentemente da sonegação ou destruição parciais ou totais. É possível a tentativa, como no caso em que o agente é impedido por terceiro de apossar-se da correspondência. Quanto ao impedimento de comunicação ou conversação telegráfica, radiográfica ou telefônica, a consumação ocorre com o efetivo óbice comunicacional. Admite-se a tentativa.

27.7.Causa de aumento de pena O art. 151, § 2º, prevê causa de aumento de pena de metade se há dano para outrem, previsão idêntica ao que consta do art. 40, § 2º, da Lei nº 6.538/1978. Desta feita, formalmente, para os crimes de violação de correspondência e apossamento de correspondência para sonegação ou destruição, incide esse último dispositivo, da lei especial, enquanto para os demais casos (art. 151, § 1º, incisos II e III), recai a previsão do Código Penal.

O dano referido pode ser econômico ou moral, público (isto é, contra a administração pública) ou particular, podendo atingir o destinatário ou remetente, assim como terceiros. Demais disso, não se mostra necessário que ao dano de outrem corresponda uma vantagem para o sujeito ativo.

27.8.Qualificadora O art. 151, § 3º, do Código Penal, prevê figura qualificada na hipótese em que o agente comete o crime “com abuso de função em serviço postal, telegráfico, radioelétrico ou telefônico”. Essa qualificadora foi revogada tacitamente. Na hipótese de abuso por parte de funcionário de telecomunicações, aplica-se o art. 5817 da Lei nº 4.117/1962, enquanto nas demais hipóteses, isto é, art. 40, caput, e § 1º, da Lei nº 6.538/1978, incide o art. 4318 desse último diploma19.

27.9.Pena e ação penal A violação de correspondência (art. 40, caput, da Lei nº 6.538/1978, que revogou tacitamente o art. 151, caput, do Código Penal) é sancionada alternativamente com detenção, até seis meses, ou pagamento não excedente a vinte dias-multa. Incide causa de aumento de pena de metade se ocorre dano para outrem (art. 40, § 2º, da Lei nº 6.538/1978). O apossamento de correspondência para sonegação ou destruição (art. 40, § 1º, da Lei nº 6.538/1978, que revogou tacitamente o art. 151, § 1º, do Código Penal) é sancionado alternativamente com detenção, até seis meses, ou pagamento não excedente a vinte dias-multa. Prevê-se causa de aumento de pena de metade se ocorre dano para outrem (art. 40, § 2º, da Lei nº 6.538/1978). A violação de comunicação telegráfica, radioelétrica ou telefônica (art. 151, § 1º, inciso II, do Código Penal) é punida com pena de detenção, de um a seis meses, ou multa. O art. 151, § 2º, prevê causa de aumento de pena de metade se há dano para outrem. O impedimento de comunicação ou conversação telegráfica, radioelétrica ou telefônica (art. 151, § 1º, inciso III, do Código Penal) é sancionado com pena de detenção, de um a seis meses, ou multa. O art. 151, § 2º, fixa causa de aumento de pena de metade se ocorre dano para outrem. A instalação ou utilização ilegal de estação ou aparelho radioelétrico (art. 70 da Lei nº 4.117/1962, que revogou tacitamente o art. 151, § 1º, inciso IV, do Código Penal) sofre pena de detenção de um a dois anos. O art. 70, caput, da lei especial, estabelece causa de aumento de pena da metade se houver dano a terceiro. A qualificadora insculpida no art. 151, § 3º, do Código Penal (se o agente comete o crime, com abuso de função em serviço postal, telegráfico, radioelétrico ou telefônico), foi revogada tacitamente. Na hipótese de abuso por parte de funcionário de telecomunicações, aplica-se o art. 58 da Lei nº 4.117/1962, enquanto para o art. 40, caput, e § 1º, da Lei nº 6.538/1978, incide o art. 43 da lei postal. Consoante o § 4º do art. 151, a ação penal é pública incondicionada nos casos em que há instalação ou utilização de estação ou aparelho radioelétrico, sem observância de disposição legal (art. 151, § 1º, IV) e na hipótese da figura qualificada, em que o agente comete o crime com abuso de função em serviço postal, telegráfico, radioelétrico ou telefônico (art. 151, § 3º). Nos demais casos, a ação penal é pública condicionada à representação. Discute-se quem seria a pessoa titular do direito de representação, o remetente ou destinatário da correspondência. Seguindo doutrina italiana e discordando da doutrina alemã, Hungria20 considera que tanto o remetente quanto o destinatário têm o direito de representação, pois ambos têm lesada sua liberdade de correspondência. Na hipótese de crime praticado com abuso de autoridade ou função, a ação penal é pública

incondicionada (art. 58, inciso II, a e b, da Lei nº 4.117/1962). O processo e julgamento de qualquer dos crimes descritos compete ao Juizado Especial Criminal, tendo em vista que se cuidam de infrações penais de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei nº 9.099/1995). Admite-se a suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/1995, à exceção dos casos de violência doméstica e familiar contra mulher (art. 41 da Lei Maria da Penha, isto é, Lei nº 11.340/2006).

FOOTNOTES 1

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. VI, p. 218. A correspondência privada, contudo, podia sujeitar-se à sindicância dos delegados do príncipe.

2

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988, v. I, p. 273.

3

“Art. 40 – Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada dirigida a outrem: Pena: detenção, até seis meses, ou pagamento não excedente a vinte dias-multa. § 1º – Incorre nas mesmas penas quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada, para sonegá-la ou destruí-la, no todo ou em parte.”

4

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 221.

5

Hungria considera que não há crime se um cônjuge viola a correspondência de outro, entendendo que a comunhão de vida decorrente do casamento não permite que “se considere alheia a um dos cônjuges a correspondência do outro”. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 229. Em sentido contrário, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 277. Nesse âmbito, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 507, pondera que “a despeito de não admitirmos o direito de qualquer dos cônjuges devassar a correspondência do outro, não chegamos ao extremo de considerá-la crime. Acreditamos que se trata de um desvio de ordem ético-social, censurável, nesse aspecto, mas não chega a tipificar infração penal, embora esteja sujeito à obrigação de reparar eventuais danos morais e/ou materiais, que podem ser objeto de demandas judiciais futuras”.

6

GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte especial, crimes contra a pessoa. Belo Horizonte: Editora D’ Plácido, 2017, p. 469.

7

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 227.

8

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 500, considera tratar-se de elemento normativo especial da ilicitude.

9

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., pp. 222-223. Ressalta Fragoso que desde que o destinatário seja determinado, não escapa da tutela penal a correspondência anônima. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 276.

10

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 226. Destaca o autor que o crime pode ser praticado sem a abertura da correspondência, como no caso em que a leitura é feita pela transparência do invólucro. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 227.

11

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 231.

12

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 280, considera que tal previsão é de conteúdo contravencional, devendo ser disciplinada pela Lei das Contravenções Penais.

13

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 503.

14

“Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei. Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.”

15

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 228.

16

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 227.

17

“Art. 58. Nos crimes de violação da telecomunicação, a que se referem esta Lei e o artigo 151 do Código Penal, caberão, ainda as seguintes penas: I – Para as concessionárias ou permissionárias as previstas nos artigos 62 e 63, se culpados por ação ou omissão e independentemente da ação criminal. II – Para as pessoas físicas: a) 1 (um) a 2 (dois) anos de detenção ou perda de cargo ou emprego, apurada a responsabilidade em processo regular, iniciado com o afastamento imediato do acusado até decisão final; b) para autoridade responsável por violação da telecomunicação, as penas previstas na legislação em vigor serão aplicadas em dobro; c) serão suspensos ou cassados, na proporção da gravidade da infração, os certificados dos operadores profissionais e dos amadores responsáveis pelo crime de violação da telecomunicação.”

18

“Art. 43 – Os crimes contra o serviço postal, ou serviço de telegrama quando praticados por pessoa prevalecendo-se do cargo, ou em abuso da função, terão pena agravada.”

19

REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2018, v. II, p. 232.

20

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 235. Para o autor, “o que se protege não é o direito de propriedade da correspondência, mas o interesse imaterial da liberdade e segurança da comunicação por tal meio, e tal interesse é lesado tanto no remetente quanto no destinatário, independentemente da circunstância de haver a correspondência entrado, ou não, no poder de disposição do último”. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., pp. 235-236. Em sentido semelhante, FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 281. Por sua vez, von Liszt lecionava que a queixa “compete ao dono do documento fechado; se o papel foi expedido, a quem o expediu até que a propriedade passe ao destinatário, e, consequentemente, quando o papel é remetido pelo correio, até que se efetue a entrega; posteriormente, ao destinatário”. LISZT, Franz von. Tratado de direito penal. Trad. José Higino Duarte Pereira. Campinas: Russell, 2003, t. II, p. 156.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-28.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 28. CORRESPONDÊNCIA COMERCIAL (ART. 152)

Capítulo 28. Correspondência comercial (art. 152) Correspondência comercial Art. 152 – Abusar da condição de sócio ou empregado de estabelecimento comercial ou industrial para, no todo ou em parte, desviar, sonegar, subtrair ou suprimir correspondência, ou revelar a estranho seu conteúdo: Pena – detenção, de três meses a dois anos. Parágrafo único – Somente se procede mediante representação.

28.1.Considerações iniciais Observa-se que o crime de correspondência comercial constitui modalidade especial de crime de violação de correspondência, em que o sujeito ativo somente pode ser sócio ou empregado. Nesse âmbito, nota-se que o legislador estabeleceu sanção mais gravosa.

28.2.Objetividade jurídica Protege-se a inviolabilidade do sigilo da correspondência comercial. Dessa maneira, relativamente ao artigo anterior do Código Penal, adicionam-se duas condições especiais, quais sejam, a previsão de sujeito ativo específico – sócio ou empregado – e a limitação do destinatário da correspondência – estabelecimento comercial ou industrial.

28.3.Sujeitos do delito Sujeito ativo é sócio ou empregado de estabelecimento comercial ou industrial, seja da empresa remetente ou da destinatária da correspondência (crime próprio). Não é preciso que o agente esteja trabalhando no momento da conduta ilícita1, nem que tenha qualquer ligação com tarefas especificamente relacionadas a correspondências2. Sujeitos passivos do delito são o remetente e o destinatário da correspondência comercial, sejam estes pessoas físicas, sejam jurídicas3.

28.4.Tipicidade objetiva e subjetiva O art. 152 estabelece como crime “abusar da condição de sócio ou empregado de estabelecimento comercial ou industrial para, no todo ou em parte, desviar, sonegar, subtrair ou suprimir correspondência, ou revelar a estranho seu conteúdo”. De acordo com o tipo penal em análise, o agente faz mau uso de sua especial posição empresarial, violando a correspondência comercial. Abusar da condição de sócio ou empregado diz respeito a praticar as condutas previstas no tipo de forma indevida, há assim uma conduta em desacordo com as atribuições, direitos e deveres de sócio ou de empregado4. O fato delitivo pressupõe a existência de relação jurídica contratual (de sociedade ou trabalhista), entre o agente e a empresa, o que denota a violação de dever implícito de fidelidade e lealdade5.

O tipo prevê condutas alternativas para a prática delituosa, quais sejam, desviar, sonegar, subtrair ou suprimir correspondência, ou relevar seu conteúdo a estranho (tipo misto alternativo ou de conteúdo variado). Desviar tem sentido de retirar a correspondência da via de seu destinatário, isto é, afastá-la de seu real destino. Sonegar significa esconder, obstar, não entregar a correspondência ao destinatário. Suprimir tem sentido de destruir, fazer desaparecer a correspondência. Por fim, revelar significa fornecer acesso, dar conhecimento, no caso, a estranho, ou seja, à pessoa não autorizada a ter contato com o conteúdo da correspondência6. O delito refere-se à correspondência de natureza comercial, de modo que sendo esta de natureza diversa, poderá incidir o tipo do art. 40 da Lei nº 6.538/1978. Consoante o pensamento majoritário, para que haja crime é necessária a possibilidade de dano, seja moral, seja patrimonial, de modo que “se o conteúdo da correspondência é fútil ou inócuo, não pode ser objeto do crime em questão”7. O elemento subjetivo é o dolo, direto ou eventual. Não há previsão da modalidade culposa.

28.5.Consumação e tentativa Majoritariamente, entende-se que a consumação do crime se dá com a conduta de desviar, sonegar, subtrair ou suprimir correspondência, ou revelar seu conteúdo a estranho. A prática de mais de um de tais atos não implica no cometimento de vários crimes. Prescinde-se da produção de resultado naturalístico, qual seja, prejuízo ao sujeito passivo, pelo que se observa tratar-se de crime formal, ou de consumação antecipada. Admite-se a tentativa.

28.6.Pena e ação penal O delito de correspondência comercial é sancionado com pena de detenção, de três meses a dois anos. Consoante a previsão do parágrafo único do art. 152, a ação penal é pública condicionada à representação. O processo e julgamento do crime de correspondência comercial compete ao Juizado Especial Criminal, tendo em vista que se cuida de infração penal de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei nº 9.099/1995). Admite-se a suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/1995.

FOOTNOTES 1

Costa Jr. destaca que “o empregado poderá achar-se afastado, em férias, como o sócio poderá encontrar-se em gozo de licença”. COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 1992, v. 2, p. 73.

2

Observa Hungria que “não é necessário que o agente seja o sócio ou o empregado especialmente incumbido de lidar com a correspondência ou de guardá-la: basta a sua qualidade de membro ou de preposto da sociedade ou estabelecimento”. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense,

1955, v. VI, p. 236.

3

GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte especial, crimes contra a pessoa. Belo Horizonte: Editora D’ Plácido, 2017, p. 488.

4

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 512.

5

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 282.

6

GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., pp. 488-489.

7

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 237.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-29.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 29. DIVULGAÇÃO DE SEGREDO (ART. 153)

Capítulo 29. Divulgação de segredo (art. 153) Divulgação de segredo Art. 153 – Divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa. § 1º Somente se procede mediante representação. § 1º-A. Divulgar, sem justa causa, informações sigilosas ou reservadas, assim definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. § 2º Quando resultar prejuízo para a Administração Pública, a ação penal será incondicionada.

29.1.Considerações iniciais Assevera Hungria1 tratar-se a divulgação de segredo de figura penal que, na sua conceituação moderna, somente passou a constar das legislações com o advento do individualismo político. No Direito Romano, era considerada modalidade de injúria a divulgação do texto do testamento feita pelo seu depositário. Já na Idade Média, era considerada forma de injúria a revelação do conteúdo de cartas e crimen falsi se tal revelação era feita em benefício do adversário do remetente2. O Código de Napoleão apenas tutelava o sigilo de correspondências contra a ação de agentes públicos. No caso brasileiro, o Código Criminal do Império, de 1830, bem como o Código Penal Republicano, de 1890, tutelavam somente a correspondência alheia. O atual diploma, de 1940, na redação original do dispositivo (art. 153), ampliou a tutela para os documentos particulares em geral, apresentando maior abrangência em relação ao Código Rocco. Posteriormente, a Lei nº 9.983/2000 acrescentou o § 1°-A, que traz hipótese qualificadora, bem como o § 2º, que trata do caso em que a ação penal será pública incondicionada. O crime de divulgação de segredos insere-se dentre os crimes contra a inviolabilidade de segredos (seção IV do capítulo dos crimes contra a liberdade individual).

29.2.Objetividade jurídica Protege-se a liberdade individual, no particular aspecto da inviolabilidade dos segredos, contra sua abusiva divulgação3. Na hipótese, o sigilo recai sobre documentos particulares ou correspondência comercial cujo conhecimento por terceiros possa provocar dano4.

29.3.Sujeitos do delito Sujeito ativo, no que tange ao delito simples (art. 153, caput) é o destinatário ou detentor do

documento ou correspondência (crime próprio). Quanto ao detentor, não importa se é legítimo ou ilegítimo, de modo que “tanto pode ser sujeito ativo do crime aquele que possui licitamente o documento ou correspondência, in nomine proprio ou in nomine alieno, como o sonegador ou possuidor furtivo”5. Sujeito passivo pode ser qualquer pessoa. Na figura qualificada (art. 153, § 1º-A), qualquer pessoa pode ser tanto sujeito ativo como sujeito passivo.

29.4.Tipicidade objetiva e subjetiva O art. 153, caput, incrimina a conduta de “divulgar alguém, sem justa causa, conteúdo de documento particular ou de correspondência confidencial, de que é destinatário ou detentor, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem”. Divulgar tem sentido de tornar conhecido, por qualquer meio, seja total ou parcialmente, o conteúdo do documento particular ou correspondência confidencial. O delito, em geral, é praticado de forma comissiva. Admite-se a prática omissiva se o agente está na condição de garantidor, como no exemplo da pessoa que sabe que vai receber visitas em sua casa e não evita que a correspondência confidencial dirigida a ela chegue ao conhecimento de terceiros, almejando produzir dano a outrem6. Documento refere-se a todo escrito de que se resulte a prova de fato juridicamente relevante. No caso, protege-se o documento particular, pois “somente o conteúdo deste pode ser destinado a permanecer secreto”7. Cumpre salientar que pode ser considerado o documento eletrônico bem como a correspondência eletrônica8. O conteúdo divulgado deve ser secreto, isto é, tratar de um segredo. Segredo é um fato da vida que não deve ser revelado ou que se tem motivo ou interesse para ocultar, conforme os interesses de seu titular. A inviolabilidade da vida privada e intimidade é assegurada constitucionalmente (art. 5º, inciso X). A construção legal aponta a necessidade de verificar-se a falta de justa causa para a divulgação do segredo, elemento normativo do tipo que significa a ausência de motivo razoável a tanto. Hungria9 considera como justa causa o consentimento do interessado – visto que está se tratando de direito disponível –, a faculdade de comunicação de crime de ação pública, o dever de testemunho em juízo, a defesa de direito ou interesse legítimo, e a comprovação de crime ou sua autoria. O tipo requer expressamente a possibilidade de produção de dano a outrem. Dessa forma, o dano potencial deve referir-se a interesse outro que não o da própria liberdade de segredos, podendo ser público ou privado, econômico ou moral10. O elemento subjetivo é o dolo, direto ou eventual. Não há previsão da modalidade culposa.

29.5.Consumação e tentativa Consuma-se o delito com a divulgação do segredo, bastando a possibilidade de dano11. Cuida-se de crime formal. O pensamento majoritário considera que deve ocorrer a comunicação do segredo a número indeterminado de pessoas12. De fato, a palavra “divulgar” pressupõe essa compreensão. Admite-se a figura da tentativa.

29.6.Qualificadora

O § 1º-A, inserido pela Lei nº 9.983/2000, traz como figura qualificada “divulgar, sem justa causa, informações sigilosas ou reservadas, assim definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública”. Trata-se de norma penal em branco, por conta da exigência de que o caráter sigiloso ou reservado da informação deva estar previsto em lei. A Lei nº 12.527/2012, que trata do acesso à informação, em seu art. 4º, inciso I, define informação como “dados, processados ou não, que podem ser utilizados para produção e transmissão de conhecimento, contidos em qualquer meio, suporte ou formato”. Ainda, em seu inciso III, estabelece que informação sigilosa é “aquela submetida temporariamente à restrição de acesso público em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado”. Ressalte-se que outras leis podem estabelecer que certa informação é sigilosa, por exemplo, o art. 202 da Lei de Execução Penal dispõe que “cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei”, indicando informações sobre a condenação que são de caráter restrito. Leciona Galvão13 que sistemas de informação referem-se ao “conjunto ordenado de informações que permite o acesso e a gestão das informações armazenadas, que podem ser relacionadas entre si, para a consecução de um ou mais objetivos”; e banco de dados alude a “qualquer tipo de coleção ou arquivo de informações que permita seu armazenamento e organização para viabilizar o acesso quando necessário”. Pela redação do dispositivo, nota-se que não é necessário que se comprove a possibilidade de dano que possa ocorrer por conta da divulgação, assim, há uma presunção do legislador da chance de sobrevir dano14. Demais disso, ao contrário da figura básica, a qualificadora insculpe crime comum, vez que não se exige qualquer caraterística especial do sujeito ativo.

29.7.Pena e ação penal A divulgação de segredo é sancionada alternativamente com pena de detenção, de um a seis meses, ou multa (art. 153, caput). O art. 153, § 1º-A, traz previsão de figura qualificada, estabelecendo penas cumulativas de detenção, de um a quatro anos, e multa. O § 1º do referido artigo estabelece que a ação penal é pública condicionada à representação. Não obstante, o § 2º, introduzido pela Lei 9.983/2000, dispõe que a ação penal será pública incondicionada nos casos em que houver prejuízo para a Administração Pública. A figura simples (art. 153, caput) é processada e julgada perante o Juizado Especial Criminal. Em qualquer caso, admite-se a suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/1995, à exceção de hipótese que envolva violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 41 da Lei nº 11.340/2006).

FOOTNOTES 1

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. VI, p. 239.

2

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., pp. 239-240.

3

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988, v. I, p. 285.

4

Segundo Galvão, o crime em análise “ofende a privacidade das pessoas que se relacionam aos fatos e/ou atos cujas informações devam ser protegidas por confidencialidade ou, em razão de determinação legal, devam ser consideradas sigilosas ou reservadas”. GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte especial, crimes contra a pessoa. Belo Horizonte: Editora D’ Plácido, 2017, p. 498.

5

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 242.

6

GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte especial. Niterói: Impetus, 2019, v. II, p. 536.

7

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 241. Documento particular é “o escrito elaborado e assinado diretamente pelo(s) interessado(s), sem a intervenção de um oficial público”. GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 501.

8

GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., pp. 501-502.

9

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 244. GRECO, Rogério. Curso de..., cit., p. 533 também aponta como justa causa o fato de o agente estar amparado por causa de justificação.

10

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 244. Leciona GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 500 que o dano não se refere àqueles produzidos em desfavor do sujeito ativo, mas pode referir-se tanto ao remetente quanto a qualquer pessoa que tenha interesse no sigilo da informação.

11

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 244.

12

V.g., HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 242. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de..., cit., p. 286; NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 196; COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 1992, v. 2, p. 74; REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2018, v. II, p. 240. Em sentido contrário, e.g., Greco considera que não é necessária a exigência da coletividade. GRECO, Rogério. Curso de..., cit., p. 539.

13

GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 505.

14

GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 509.

2020 - 03 - 24

PAGE RB-30.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 30. VIOLAÇÃO DE SEGREDO PROFISSIONAL (ART. 154)

Capítulo 30. Violação de segredo profissional (art. 154) Violação do segredo profissional Art. 154 – Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa. Parágrafo único – Somente se procede mediante representação.

30.1.Considerações iniciais No Direito Romano, a propagação de segredos alheios a partir de seu conhecimento por determinadas atividades exercidas podia inserir-se na ideia geral de injúria. Na Idade Média, consolidou-se o segredo de confessionário, além de que o médico era equiparado ao padre católico1. O Código Penal francês de 1810 foi precursor da incriminação da violação de segredo profissional, tendo influenciado diversas legislações posteriores. No caso brasileiro, o Código Criminal do Império (1830) insculpiu a figura delitiva consistente na revelação de segredo por parte do funcionário público, entre os crimes contra a boa ordem e a administração pública. O Código Penal Republicano, de 1890, a seu turno, em uma mudança de paradigmas, previu o crime de violação de segredo profissional entre os crimes contra o livre gozo e exercício dos direitos individuais. O Código Penal de 1940 foi no mesmo sentido que o precedente, inserindo o delito em seu art. 154, entre os crimes contra a inviolabilidade de segredos, no capítulo dos crimes contra a liberdade individual. Com o advento da Constituição Federal de 1988, a disciplina encontra pleno assento constitucional, como decorrência da ampla proteção da intimidade (art. 5º, inciso X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”). Para além da revelação de segredos em si, a importância do crime de violação de segredo profissional denota-se também na preservação da liberdade individual, uma vez que a possibilidade de publicização da intimidade como possível fruto do auxílio profissional de terceiros, tolheria o agir do indivíduo, constrangendo-o a não o procurar2. Note-se que o dever de sigilo também é resguardado em outros diplomas legais, como no art. 2073 do Código de Processo Penal e, especificamente em relação à profissão de advogado, no art. 7º, inciso XIX da Lei nº 8.906/19944.

30.2.Objetividade jurídica Protege-se a inviolabilidade do segredo profissional. Note-se, não obstante, que o dever de sigilo não é absoluto, admitindo exceções. Nas palavras de Hungria, “o direito penal resguarda o interesse individual ex accidente, ou seja, somente quando calha com o interesse social”5. Destacam-se três teorias nesse âmbito6. Pela teoria

do interesse, à qual se filia von Liszt, há a proteção do interesse que o indivíduo possui em resguardar seus próprios segredos e de sua família. Na teoria da confiança, entende-se que a proteção recai sobre a confiança imposta aos indivíduos pelas circunstâncias. Na teoria da vontade, a proteção refere-se à vontade determinante da custódia do segredo. Para Hungria7, o critério justo é o que agrega as teorias da vontade e do interesse, assim, o que a lei consagra é o poder vinculativo da vontade, expressa ou tácita, de que seja mantido sigiloso aquilo que pode ocasionar prejuízo material ou moral, de modo que é preciso verificar possibilidade concreta de dano.

30.3.Sujeitos do delito Sujeito ativo é a pessoa que detém conhecimento de segredo por causa de sua função, ministério, ofício ou profissão (crime próprio). Qualquer pessoa pode ser sujeito passivo do crime.

30.4.Tipicidade objetiva e subjetiva O tipo do art. 154 do Codex incrimina a conduta de “revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem”. Revelar tem sentido de manifestar, delatar, levar ao conhecimento de outrem segredo que esse não sabia. Para a delimitação do que seria segredo, aponta-se a fórmula segundo a qual não constitui segredo um fato que já é conhecido por tantas pessoas, que já não esteja mais em poder do seu protetor a possibilidade de que outros venham a tomar conhecimento8. O segredo pressupõe dois elementos: um negativo – a ausência de notoriedade –, e outro positivo – ligado à vontade determinante de sua custódia ou preservação9. A vontade da guarda do segredo pode ser expressa ou tácita, sendo que essa última envolve um desejo implícito de se ocultar fatos desabonadores, como uma doença venérea, um relacionamento incestuoso etc.10 A conformação do delito exige que a revelação ocorra sem justa causa (elemento normativo do tipo). A ausência de justa causa significa a falta de elementos que justifiquem a quebra do sigilo, o que pressupõe uma ponderação de interesses. Dessa maneira, por exemplo, configura o crime a revelação de um segredo empresarial por parte do empregado que o soube no exercício de suas atividades; todavia, tal não se dará se o segredo é violado para se evitar a prática de um crime ou para se defender de uma acusação delitiva injusta. Função refere-se ao encargo que compete a uma pessoa por força de lei, decisão judicial ou contrato, seja ou não remunerado, como tutor, curador, depositário judicial etc. Ministério é o exercício de uma tarefa que pressupõe um estado ou situação fática, não de direito, como o caso de padres – assim, o tipo abrange os segredos de confessionário11 – e assistentes sociais voluntários. Ofício remete à ocupação habitual de prestação de serviços manuais, enquanto profissão trata de qualquer atividade habitual exercida com o fito de lucro, como a de engenheiros, advogados e médicos. É preciso que haja nexo de causalidade entre o exercício da função, ministério, ofício ou profissão e o conhecimento do segredo. Como pontua Greco12, “é preciso que o segredo tenha sido revelado por alguém que o soube, por intermédio da própria pessoa detentora do segredo, em razão de função, ministério, ofício ou profissão”. Dessarte, o exercício da função, ministério, ofício ou profissão deve ser a causa, e não simples ocasião do conhecimento do segredo13. Os auxiliares podem ser abrangidos pelo tipo na medida em que participam da atividade que pode envolver o segredo, assim, e.g., a equipe de limpeza de um médico não estará inclusa na configuração do tipo14.

No âmbito do sigilo médico, Hilgendorf15 aponta a discussão acerca de o sigilo também valer para a pessoa que se faz passar por médico; considera que a visão mais acertada é que entende que “o importante não é que alguém seja realmente um médico licenciado, já sendo suficiente que o paciente o considere médico, porque o interesse pela proteção seria idêntico nesse caso”. Ademais, é necessária a existência de potencialidade lesiva, ou seja, a revelação do segredo tem de trazer o potencial de causar dano a outrem, conforme previsão expressa do tipo do art. 154. O dano pode ser econômico ou moral, público ou privado, pessoal ou familiar. A obtenção do segredo pode se dar por qualquer meio, seja por escrito, forma oral, gestos e símbolos. Trata-se de crime de forma livre. Quando o sujeito passivo autoriza a revelação do segredo o fato é atípico. O dever de sigilo, como mencionado, não é absoluto, de modo que leis podem afastá-lo, bem como podem incidir causas de justificação16. O elemento subjetivo do crime de violação de segredo profissional é o dolo, direto ou eventual. Não há previsão da modalidade culposa. Cumpre salientar que se a violação de segredo é cometida por funcionário público, incide não o art. 154, mas sim o art. 32517 do Código Penal – violação de sigilo profissional. É caso de patrocínio infiel (art. 355), e não de violação de segredo profissional situação em que advogado revela dolosamente à parte contrária segredo de seu cliente, prejudicando sua defesa. Ainda, a Lei Complementar nº 105/2001, que trata do sigilo das operações de instituições financeiras, estabelece em seu art. 10 que “a quebra de sigilo, fora das hipóteses autorizadas nesta Lei Complementar, constitui crime e sujeita os responsáveis à pena de reclusão, de um a quatro anos, e multa, aplicando-se, no que couber, o Código Penal, sem prejuízo de outras sanções cabíveis”; seu parágrafo único acrescenta que “incorre nas mesmas penas quem omitir, retardar injustificadamente ou prestar falsamente as informações requeridas nos termos desta Lei Complementar”. Por fim, a revelação de segredos estatais brasileiros a governos ou grupos estrangeiros ou ilegais constitui crime contra a segurança nacional (art. 1318 da Lei nº 7.170/1983).

30.5.Consumação e tentativa Consuma-se o crime quando ocorre a revelação do segredo, mesmo que já cessado o exercício da profissão, ou seja, quando o fato sigiloso chega a conhecimento de terceiros, devendo estar presente também a possibilidade de dano decorrente de tal revelação. Cuida-se de crime formal. Basta que a revelação seja feita apenas para uma pessoa, não sendo necessário que o segredo chegue ao conhecimento de número indeterminado de pessoas. É possível a tentativa, como no caso em que se intenciona realizar a revelação por meio de carta, que é interceptada.

30.6.Pena e ação penal O delito de violação do segredo profissional é sancionado alternativamente com pena de detenção, de três meses a um ano, ou multa. Consoante a previsão do parágrafo único do art. 154, a ação penal é pública condicionada à representação. É titular do direito de representação qualquer interessado na custódia do segredo, sendo que, no caso de vários interessados no mesmo segredo, o assentimento ou ratificação de uns à revelação não exclui o crime em relação aos demais19.

O processo e julgamento do crime de violação do segredo profissional compete ao Juizado Especial Criminal, tendo em vista que se cuida de infração penal de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei nº 9.099/1995). Admite-se a suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/1995.

FOOTNOTES 1

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. VI, p. 249.

2

Em sentido similar, e.g., HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 246; NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 198.

3

“Art. 207. São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho”.

4

“Art. 7º São direitos do advogado: [...] XIX – recusar-se a depor como testemunha em processo no qual funcionou ou deva funcionar, ou sobre fato relacionado com pessoa de quem seja ou foi advogado, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional.”

5

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 247.

6

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., pp. 246-247; NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., pp. 201-203.

7

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 247.

8

HILGENDORF, Eric. Introdução ao direito penal da medicina. Trad. Orlando Gleizer. São Paulo: Marcial Dons, 2019, p. 166.

9

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 250; NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 202.

10

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal..., cit., p. 202.

11

O item 55 da Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal dispõe que “definindo o crime de ‘violação do segredo profissional’, o projeto procura dirimir qualquer incerteza acerca do que sejam confidentes necessários. Incorrerá na sanção penal todo aquele que revelar segredo, de que tenha ciência em razão de ‘função, ministério, ofício ou profissão’. Assim, já não poderá ser suscitada, como perante a lei vigente, a dúvida sobre se constitui ilícito penal a quebra do ‘sigilo do confessionário’”.

12

GRECO, Rogério. Curso de direito penal: especial. Niterói: Impetuoso, 2019, v. II, p. 542.

13

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 255.

14

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 254. O Código alemão prevê expressamente que o dever de sigilo se estende aos assistentes profissionais; para tal análise, cf. HILGENDORF, Eric. Introdução ao..., cit., p. 164.

15

HILGENDORF, Eric. Introdução ao..., cit., p. 163.

16

No âmbito do dever de sigilo médico, Hilgendorf aponta como possíveis causas de justificação o consentimento, o consentimento presumido, o estado de necessidade justificante, a preservação de interesse legítimo e deveres ou direitos de revelação estipulados por lei. HILGENDORF, Eric. Introdução ao..., cit., p. 171 e ss.

17

“Art. 325 – Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave. § 1º Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: I – permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública; II – se utiliza, indevidamente, do

acesso restrito. § 2º Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.”

18

“Art. 13 – Comunicar, entregar ou permitir a comunicação ou a entrega, a governo ou grupo estrangeiro, ou a organização ou grupo de existência ilegal, de dados, documentos ou cópias de documentos, planos, códigos, cifras ou assuntos que, no interesse do Estado brasileiro, são classificados como sigilosos. Pena: reclusão, de 3 a 15 anos. Parágrafo único – Incorre na mesma pena quem: I – com o objetivo de realizar os atos previstos neste artigo, mantém serviço de espionagem ou dele participa; II – com o mesmo objetivo, realiza atividade aerofotográfica ou de sensoreamento remoto, em qualquer parte do território nacional; III – oculta ou presta auxílio a espião, sabendo-o tal, para subtraí-lo à ação da autoridade pública; IV – obtém ou revela, para fim de espionagem, desenhos, projetos, fotografias, notícias ou informações a respeito de técnicas, de tecnologias, de componentes, de equipamentos, de instalações ou de sistemas de processamento automatizado de dados, em uso ou em desenvolvimento no País, que, reputados essenciais para a sua defesa, segurança ou economia, devem permanecer em segredo.” Observe-se que esse crime é também punido na modalidade culposa (art. 14 do mesmo diploma).

19

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao..., cit., p. 265.

© desta edição [2019]

2020 - 03 - 24

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 REVISTA DOS TRIBUNAIS

This PDF Contains CAPÍTULO 31. INVASÃO DE DISPOSITIVO INFORMÁTICO ALHEIO (ART. 154-A), p.RB-31.1 BIBLIOGRAFIA, p.VI

2020 - 03 - 24

PAGE RB-31.1

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 CAPÍTULO 31. INVASÃO DE DISPOSITIVO INFORMÁTICO ALHEIO (ART. 154-A)

Capítulo 31. Invasão de dispositivo informático alheio (art. 154-A) Invasão de dispositivo informático Art. 154-A. Invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita: Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. § 1º Na mesma pena incorre quem produz, oferece, distribui, vende ou difunde dispositivo ou programa de computador com o intuito de permitir a prática da conduta definida no caput. § 2º Aumenta-se a pena de um sexto a um terço se da invasão resulta prejuízo econômico. § 3º Se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas, segredos comerciais ou industriais, informações sigilosas, assim definidas em lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo invadido: Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave. § 4º Na hipótese do § 3º, aumenta-se a pena de um a dois terços se houver divulgação, comercialização ou transmissão a terceiro, a qualquer título, dos dados ou informações obtidos. § 5º Aumenta-se a pena de um terço à metade se o crime for praticado contra: I – Presidente da República, governadores e prefeitos; II – Presidente do Supremo Tribunal Federal; III – Presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Assembleia Legislativa de Estado, da Câmara Legislativa do Distrito Federal ou de Câmara Municipal; ou IV – dirigente máximo da administração direta e indireta federal, estadual, municipal ou do Distrito Federal. Ação penal Art. 154-B. Nos crimes definidos no art. 154-A, somente se procede mediante representação, salvo se o crime é cometido contra a administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios ou contra empresas concessionárias de serviços públicos.

31.1.Considerações iniciais Os arts. 154-A e 154-B do Código Penal foram incluídos pela Lei nº 12.737/2012, conhecida como “Lei Carolina Dieckmann”, aludindo ao vazamento de fotos íntimas da atriz, decorrente do acesso a arquivos de seu computador1. Posteriormente, ainda que não de cunho penal, merece referência a edição da Lei nº 12.965/2014 (chamada “Marco Civil da Internet”), com vistas ao estabelecimento de balizas para o uso da rede mundial de computadores no Brasil. Além disso, foi em seguida promulgada a denominada Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018), a qual disciplina como dados de cidadãos podem ser coletados e tratados e prevê sanções cíveis e administrativas para transgressões.

31.2.Objetividade jurídica Protege-se a inviolabilidade do sigilo de informações constantes em dispositivo informático. Tal inviolabilidade configura-se a partir da proteção à liberdade individual e ao direito à intimidade. A proteção de dados e dispositivos informáticos e, especialmente, dos conteúdos que armazenam é uma exigência fundamental da vida social hodierna, devendo se notar que a tutela penal não é da rede mundial de computadores, mas da privacidade individual2.

31.3.Sujeitos do delito Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo (crime comum). Sujeito passivo é o indivíduo proprietário do dispositivo informático, bem como qualquer pessoa que possua dados ou informações no dispositivo invadido3. Cumpre salientar que a causa de aumento prevista no § 5º do art. 154-A apenas incide caso o crime seja praticado contra sujeitos passivos específicos, como o Presidente da República.

31.4.Tipicidade objetiva e subjetiva A conduta incriminada no art. 154-A do Codex refere-se a “invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita”. Invadir, no tipo penal em análise, carrega o significado de acessar indevidamente, devassar, dispositivo informático, isto é, aparelho eletrônico com capacidade de processamento e armazenamento de dados, como computadores, tablets e celulares 4. Tal dispositivo deve pertencer a outra pessoa que não o sujeito ativo. Rede de computadores refere-se ao “conjunto formado por computadores que funcionam de maneira independente do outro, mas que se encontram interconectados por cabos (telefônicos, coaxiais ou ópticos), por equipamentos de radiofrequência ou de infravermelho”5. O crime ocorre independentemente de o dispositivo informático estar ou não conectado à internet. Note-se que há forma específica para o cometimento do crime, qual seja, mediante violação indevida de mecanismo de segurança6, por exemplo, violando-se a senha de login do dispositivo. Nesse âmbito, é indiferente o grau de segurança e confiabilidade do mecanismo de segurança, mas é necessário que exista alguma ferramenta utilizada como meio de proteção7. Por conseguinte, se a invasão ocorre sem violação de mecanismo de segurança, não resta configurado o tipo do art. 154A. O elemento subjetivo é o dolo, não havendo previsão de modalidade culposa. Há previsão de elemento subjetivo especial do tipo. O delito prevê como especial fim de agir: a) obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo (primeira parte do caput); e b) obter vantagem ilícita (segunda parte do caput). Obter8 tem sentido de adquirir, ter acesso aos dados ou informações, então, não há crime se o sujeito ativo “visa apenas utilizar uma informação ou conjunto de informações previamente conhecido”9; ainda, não é preciso que a informação que se visa obter esteja no dispositivo invadido, pois se pode invadir um dispositivo para acessar dados que estão em outro. Perceba-se que a mera invasão do dispositivo com fins de obtenção de dados ou informações já configura o delito. Adulterar, por sua vez, refere-se à alteração, à modificação dos dados ou informações. Finalmente, destruir significa apagar, acabar com os dados ou informações. Essas duas condutas

referem-se, por exemplo, à contaminação do computador da vítima, normalmente por meio de spams ou páginas na internet, com vistas a danificar arquivos. A segunda parte do caput fixa como conduta delitiva a instalação de vulnerabilidades com o objetivo específico de obter vantagem ilícita. Isso traz a ideia de introduzir vulnerabilidades, ou seja, mecanismos que tornam o dispositivo mais vulnerável à invasão10; exemplo seria instalar determinado “vírus”, ou “programas espiões”, para conseguir informações pelas quais o sujeito ativo perseguirá a vantagem indevida. Quanto a este último comportamento delitivo, perceba-se que a mera instalação da vulnerabilidade com o objetivo de vantagem ilícita é crime (delito formal ou de consumação antecipada). A exigência da vantagem transmuta o fato em extorsão, por exemplo, vez que a presente infração penal é subsidiária. Observa-se que o consentimento do ofendido atua como causa de exclusão de tipicidade.

31.5.Consumação e tentativa O crime consuma-se quando ocorre a invasão do dispositivo informático. Se o agente também consegue atingir suas finalidades específicas, como adulterar informações, tal será considerado como exaurimento do crime ou poderá, ainda, constituir crime mais grave (e.g., furto, estelionato, extorsão). Admite-se tentativa, como no caso em que o agente é interrompido quando testava senhas para desbloquear o dispositivo, mas não o faz a tempo de ser contido11.

31.6.Figura equiparada O art. 154-A, § 1º, prevê hipótese de equiparação ao caput, dispondo que incorre na mesma pena “quem produz, oferece, distribui, vende ou difunde dispositivo ou programa de computador com o intuito de permitir a prática da conduta definida no caput”. Punem-se, então, diversas formas de contribuição para que alguém venha a devassar dispositivo informático alheio. Produzir significa fabricar. Oferecer traz a ideia de ofertar. Distribuir tem sentido de repartir. Vender trata de alienar. Difundir refere-se a disseminar. Trata-se de tipo misto alternativo, ou de conteúdo variado, de modo que se o agente pratica mais de um núcleo do tipo, haverá crime único, não vários delitos. Consoante o art. 1º da Lei 9.609/1998, programa de computador diz respeito à “expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados”. Observa-se que, igualmente ao tipo básico (art. 154-A, caput), há previsão de um especial fim de agir, qual seja, o intuito de permitir a prática da conduta prevista no caput, ou seja, o dispositivo ou programa de computador é uma espécie de ferramenta para a invasão do dispositivo informático alheio. Pondera Greco12 que a lei buscou “punir de maneira independente aquele que, de alguma forma, auxilia para que terceiro tenha facilitada a prática do tipo penal constante do caput do art. 154-A do diploma repressivo”. Nesse diapasão, o autor das condutas previstas no § 1º não é autor direto da invasão de dispositivo informático, mais sim um colaborador sui generis, previsto em lei, “independentemente de ser alcançado pelo concurso de pessoas, como normalmente ocorreria, pois pratica condutas declaradamente acessórias, para permitir a execução da invasão”13. A figura equiparada do § 1º consuma-se com a produção, oferecimento, distribuição, venda ou

difusão de dispositivo ou programa de computador com o fito de permitir a prática do crime referido no caput. Também se admite tentativa para a hipótese.

31.7.Qualificadora O art. 154-A, § 3º, prevê qualificadora nas hipóteses em que a invasão resultar na obtenção de: a) conteúdo de comunicações eletrônicas privadas; b) segredos comerciais ou industriais; c) informações sigilosas, assim definidas em lei; e d) controle remoto não autorizado do dispositivo invadido. Bitencourt14 considera tratar-se de forma sui generis de crime qualificado pelo resultado. No que tange ao primeiro caso, isto é, obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas, não importa a relevância do conteúdo da comunicação eletrônica violada, estando a tônica do proibido na violação em si15. É o que ocorre, por exemplo, com o acesso a e-mails da vítima. Também se pune de modo mais gravoso se da invasão o agente puder acessar segredos comerciais ou industriais, como fórmulas de alimentos ou remédios, projetos de novos produtos etc. O mesmo ocorre com a obtenção de informações sigilosas, assim definidas em lei, consistindo em norma penal em branco homogênea. A Lei nº 12.527/2012, em seu art. 4º, inciso III, estabelece que informação sigilosa é “aquela submetida temporariamente à restrição de acesso público em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado”. Não obstante, outros diplomas legais podem dispor sobre quais informações seriam sigilosas. No tocante à obtenção de controle remoto não autorizado do dispositivo invadido, leciona Bitencourt16 que tal situação “configura exatamente a concretização do fim da ação incriminada no caput, qual seja, ‘instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita’. [...] o sujeito passivo fica nas mãos do autor do crime, que, à distância, controla todos os movimentos, todos os dados, todos os segredos e sigilos dele. O maior desvalor desta conduta reside na permanência dos efeitos nocivos da conduta do agente, que mantém sob o seu controle as ações da vítima, observando, controlando e lesando, à distância, os bens jurídicos tutelados dela”.

31.8.Causas de aumento de pena A dicção legal estabelece três espécies de causas de aumento de pena no caso do crime de invasão de dispositivo informático: a) uma primeira, prevista no art. 154, § 2º, aplicável exclusivamente à figura simples (caput); b) uma segunda, fixada no art. 154, § 4º, incidente apenas à figura qualificada (§ 3º) e, por fim, c) uma terceira, estabelecida no art. 154, § 5º, a qual pode recair sobre qualquer modalidade (simples ou qualificada). O art. 154-A, § 2º do Código Penal estabelece majorante de um sexto a um terço se da invasão, insculpida na modalidade delitiva básica, resulta prejuízo econômico. Aplica-se essa majorante quando, por exemplo, em razão da invasão, o computador da vítima resta danificado ou com programas apagados. O art. 154-A, § 4º, por sua vez, traz majorante específica para a figura qualificada (art. 154-A, § 3º), prevendo aumento de um a dois terços se houver divulgação, comercialização ou transmissão a terceiro, a qualquer título, dos dados ou informações obtidos. Divulgar refere-se a dar publicidade, por qualquer meio, incidindo a majorante independentemente do conteúdo envolvido. Comercializar refere-se à negociação, alienação daquilo que foi obtido. Transmitir a terceiro tem sentido semelhante a comercializar, podendo abranger a transmissão que ocorre a título gratuito17. Incide a presente majorante quando, e.g., o agente copia vídeos ou fotos nuas da vítima e as vende a sites pornográficos. Por fim, o § 5º do art. 154-A prevê causas de aumento, de um terço à metade, se o crime, na modalidade simples ou qualificada, é praticado contra: a) Presidente da República, governadores e

prefeitos (inciso I); b) Presidente do Supremo Tribunal Federal (inciso II); c) Presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Assembleia Legislativa de Estado, da Câmara Legislativa do Distrito Federal ou de Câmara Municipal (inciso III); e d) dirigente máximo da administração direta e indireta federal, estadual, municipal ou do Distrito Federal (inciso IV).

31.9.Pena e ação penal O delito de invasão de dispositivo informático é sancionado cumulativamente com pena de detenção, de três meses a um ano, e multa (art. 154-A, caput). Se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas, segredos comerciais ou industriais, informações sigilosas, assim definidas em lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo invadido, a pena é de reclusão, de seis meses a dois anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave (figura qualificada, art. 154-A, § 3º). Consoante a previsão do art. 154-B, em regra, a ação penal é pública condicionada a representação. Todavia, se o crime for cometido contra a Administração Pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, Estados, Distrito Federal ou Municípios ou contra empresas concessionárias de serviços públicos, a ação penal é pública incondicionada. O processo e julgamento do crime de invasão do dispositivo informático, exclusivamente em sua modalidade simples (art. 154-A, caput), compete ao Juizado Especial Criminal, tendo em vista que se cuida de infração penal de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei nº 9.099/1995). Admitese, nesse caso, a suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/1995, à exceção dos casos de violência doméstica e familiar contra mulher (art. 41 da Lei Maria da Penha).

FOOTNOTES 1

Ressalva Galvão que “o fato pode até ter estimulado a aprovação do Projeto de Lei da Câmara nº 2.793C/2011, mas o tema já estava sendo discutido no Congresso Nacional há mais de uma década”. GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte especial, crimes contra a pessoa. Belo Horizonte: Editora D’ Plácido, 2017, p. 523.

2

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2, p. 533.

3

GRECO, Rogério. Curso de direito penal: especial. Niterói: Impetus, 2019, v. II, p. 560.

4

REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2018, v. II, p. 246, nota de rodapé 81.

5

GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 530.

6

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 535 considera tratar-se de elemento normativo especial da antijuridicidade.

7

GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 526.

8

GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 527 leciona que basta o conhecimento do conteúdo, não sendo preciso que se retire os dados ou informações da disponibilidade do legítimo titular.

9

GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 527.

10

GALVÃO, Fernando. Direito penal..., cit., p. 533.

11

GRECO, Rogério. Curso de..., cit., p. 561.

12

GRECO, Rogério. Curso de..., cit., p. 564.

13

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 541.

14

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 542.

15

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 542.

16

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 544.

17

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de..., cit., p. 546.

2020 - 03 - 24

PAGE VI

Direito Penal – Vol. 2 – Ed. 2019 BIBLIOGRAFIA

Bibliografia ALMEIDA JÚNIOR, A.; COSTA JÚNIOR, J. B. de O. e Lições de medicina legal. São Paulo: Nacional, 1981. BACIGALUPO, Enrique. Delitos contra el honor. Buenos Aires: Hammurabi, 2006. BALCARCE, Fabián Ignacio. Introducción a la parte especial del derecho penal: su vinculación con la parte general. Montevideo-Buenos Aires: B de F, 2009. BARROS, Flávio Monteiro de. Crimes contra a pessoa. São Paulo: Saraiva, 1997. BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1996. BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Trad. Jorge Navarro, Daniel Jiménez y Maria Rosa Borras. Barcelona: Paidos, 1998. BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Saraiva, 2011. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 1. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2016, v. 2. BOLEA BARDON, Carolina. Caso Sirius. In: SÁNCHEZ-OSTIZ GUTIÉRREZ, Pablo (Coord.). Casos que hicieron doctrina en derecho penal. Madrid: La Ley, 2001. BRANDÃO, Cláudio. Trajetória dogmática do tipo de aborto. Revista Duc In Altum – Cadernos de Direito, vol. 7, nº 12, maio-ago. 2015. BRUNO, Aníbal. Direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1966, v. IV. BRUNO, Aníbal. Crimes contra a pessoa. Rio de Janeiro: Rio, 1979. BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte especial 1. São Paulo: Atlas, 2014. CARMIGNANI, Giovanni. Elementi del diritto criminale. Napoli: Dallo Stabilimento Tipografico di P. Androsio, 1854. CARRARA, Francesco. Programa del curso de derecho criminal: dictado en la Real Universidad de Pisa. Trad. Sebastian Soler. Buenos Aires: Depalma, 1946. v. III. CASTIÑERA PALOU, Mª Teresa. Delitos contra el honor. In: SILVA SÁNCHEZ (Dir.). Jesús-María (Dir.). Lecciones de derecho penal: parte especial. Barcelona: Atelier, 2011.

COSTA, Álvaro Mayrink da. Direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 2008, v. 4. COSTA, José de Faria. Direito penal especial: contributo a uma sistematização dos problemas “especiais” da parte especial. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 1992, v. 2. COSTA JÚNIOR, Paulo José da. O direito de estar só: a tutela penal do direito à intimidade. São Paulo: Siciliano, 2004. COULANGES, Fustel de. A cidade antiga: estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia antiga e de Roma. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 2009. Crônica de uma tragédia inesquecível: autos do processo de Dilermando de Assis, que matou Euclides da Cunha. Apresentação de Walnice Nogueira Galvão; consultoria de Domício Pacheco e Silva Neto. São Paulo: Albatroz, 2007. DELMANTO, Celso et alii. Código penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2016. ELUF, Luiza Nagib. Matar ou Morrer. O Caso Euclides da Cunha. São Paulo: Saraiva, 2012. FARIA, Bento de. Código penal brasileiro (comentado). Rio de Janeiro: Record, 1959, v. IV. FILIPPO, Thiago Baldani Gomes De. Aborto Estados Unidos e Brasil: um estudo comparado. São Paulo: IPAM, 2015. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. Rio de Janeiro: Forense, 1988, v. I. FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina legal. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2015. FRANCO, Alberto Silva et al. Crimes hediondos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. FREITAS, Gilberto Passos de; FREITAS, Vladimir Passos de. Abuso de autoridade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. GALEOTTI, Giulia. História do aborto. Lisboa: 70, 2003. GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte especial, crimes contra a pessoa. Belo Horizonte: Editora D’ Plácido, 2017. GARCÍA CAVERO, Percy. Caso de la depresión reactiva. In: SÁNCHEZ-OSTIZ GUTIÉRREZ, Pablo. Casos que hicieron doctrina en derecho penal. Madrid: La Ley, 2011. GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Teoria geral da parte especial do direito penal. São Paulo: Atlas, 2014. GÓMEZ DE LA TORRE, Ignacio Berdugo. Honor y libertad de expressión. Madrid: Tecnos, 1987. GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegómenos para la lucha por la modernización y expansión del Derecho penal y para la crítica del discurso de resistencia. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2003. GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. Niterói: Impetus, 2009. GRECO, Rogério. Curso de direito penal: especial. Niterói: Impetus, 2019, v. II. HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Trad. Driana Beckman Meirelles, Carlos Eduardo de Oliveira Vasconcelos, Flipe Rhenius Nitzke, Mariana Ribeiro de Souza e Odim Brandão Ferreira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008.

HILGENDORF, Eric. Introdução ao direito penal da medicina. Trad. Orlandino Gleizer. São Paulo: Marcial Pons, 2019. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. V. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1955, v. VI. HUNGRIA, Nélson; REALE JÚNIOR, Miguel; SOUZA, Luciano Anderson. Comentários ao Código Penal: Dec.-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico, 2018, v. V. JESUS, Damásio de. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 2004, v. 2. KUWAHARA, Shigueo. Proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas no Brasil: o papel do estado e da sociedade civil. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2016. LAURENZO COPELLO, Patricia. Los delitos contra el honor. Valencia: Tirant Lo Blach, 2002. LEAL, João José. Crimes hediondos: a Lei nº 8.072/90 como expressão do direito penal da severidade. Curitiba: Juruá, 2018. LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e anencefalia: direitos fundamentais em colisão. Curitiba: Juruá, 2009. LISZT, Franz von. Tratado de direito penal. Trad. José Higino Duarte Pereira. Campinas: Russell, 2003, t. I. LISZT, Franz von. Tratado de direito penal. Trad. José Higino Duarte Pereira. Campinas: Russell, 2003, t. II. MANZINI, Vincenzo. L’omicidio rituale e i sacrifici umani. Torino: Fratelli Bocca, 1925. MARANHÃO, Odon Ramos. Curso básico de medicina legal. São Paulo: Malheiros Editores, 1996. MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. Campinas: Millennium, 2002, v. IV. MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal. Campinas: Millennium, 2002, v. V. MAURACH; SCHROEDER; MAIWALD. Strafrecht, Besonderer Teil. Heidelberg: C. F. Müller, 2009. v. 1. MASSON, Cleber. Código penal comentado. Rio de Janeiro: GEN, 2016. MASSON, Cleber. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2019, v. 2. MEINI, Iván. Delitos contra el honor. In: TERRADILLOS BASOCO, Juan. María (Coord.). Lecciones y materiales para el estúdio del derecho penal. Madrid: Iustel, 2011, t. III, v. I. MELLO, Adriana Ramos de. Feminicídio: uma análise sociojurídica da violência contra a mulher no Brasil. Rio de Janeiro: GZ, 2016. MENDLOWICZ, M.V. Neonaticide in the city of Rio de Janeiro: forensic and psycholegal perspectives. J Forensic Sci. jul. 1999; 44(4): 741-745. MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial. São Paulo: Atlas, 2010, v. II. MOMMSEN, T. El derecho penal romano. Trad. P. Dorado. Pamplona: Anacleta, 1999, v. I. MOMMSEN, T. El derecho penal romano. Trad. P. Dorado. Pamplona: Anacleta, 1999, v. II. MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal: parte especial. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2010.

NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2015. NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. Rio de Janeiro: Forense. 2017. NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte especial – Arts. 121 a 212 do Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 2018, v. 2. PAIVA, Luiz Guilherme Mendes de. A fábrica de penas: racionalidade legislativa e a Lei dos crimes hediondos. Rio de Janeiro: Revan, 2009. PASCHOAL, Janaína. In: REALE JÚNIOR, Miguel (Coord.). Direito penal: jurisprudência em debate – Crimes contra a pessoa. Rio de Janeiro: GZ, 2011, v. 1. PASCHOAL, Janaína. Infanticídio. In: REALE JÚNIOR, Miguel (Coord.). Direito penal: jurisprudência em debate – Crimes contra a pessoa. Rio de Janeiro: GZ, 2011, v. 1. PONTES, Eloy. A vida dramática de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. RAGUÉS I VALLÉS, Ramon. Delitos contra la libertad. In: SILVA-SÁNCHEZ, Jesús-María (dir.). Lecciones de derecho penal: parte especial. Barcelona: Atelier, 2011. REALE JÚNIOR, Miguel. Teoria do delito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. REALE JÚNIOR, Miguel (Coord.). Direito penal: jurisprudência em debate – Crimes contra a pessoa. Rio de Janeiro: GZ, 2011. REALE JÚNIOR, Miguel. Art. 149. In: REALE JÚNIOR, Miguel. Código penal comentado (Coord.). São Paulo: Saraiva, 2017. REGIS PRADO, Luiz. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Ed. RT, 2018, v. II. REGIS PRADO, Luiz. Tratado de direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, v. 4. ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Trad. Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general: tomo I: fundamentos – La estructura de la teoria del delito. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2008. SCHAFFSTEIN, Federico. La ciencia europea del derecho penal en la epoca del humanismo. Trad. Jose Maria Rodriguez Devesa. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1957. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otavio de Oliveira Rocha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Aproximación al derecho penal contemporáneo. Barcelona: Bosch Editor, 2002. SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Art. 121. In: REALE JÚNIOR, Miguel Reale. Código Penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2017. SOUZA, Luciano Anderson de. Expansão do direito penal e globalização. São Paulo: Quartier Latin, 2007. SOUZA, Luciano Anderson de. Crimes contra a administração pública. São Paulo: Ed. RT, 2018.

SOUZA, Luciano Anderson de. Direito penal: parte geral. São Paulo: Ed. RT, 2019, v. 1. SOUZA, Luciano Anderson de; BARROS, Paula Pécora de. Questões controversas com relação à lei do feminicídio (Lei n. 13.104/2015). Revista da Faculdade de Direito (USP), v. 111, p. 263-279, 2016. SOUZA, Luciano Anderson de; FERREIRA, Regina Cirino Alves. Discurso midiático penal e exasperação repressiva. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 94, p. 363-382, 2012. SOUZA, Luciano Anderson de; FERREIRA, Regina Cirino Alves. Feminicídio: primeiras observações. Boletim IBCCRIM, v. 269, p. 3-4, abr./2015. SOUZA, Regina Cirino Alves Ferreira de. Ódio e direito penal. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Direito da USP, 2016. SOUZA, Regina Cirino Alves Ferreira de. Crimes de ódio: racismo, feminicídio e homofobia. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018. SUDBRACK, Umberto Guaspari. O extermínio de meninos de rua no Brasil. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 18, nº 1, p. 22-30, mar. 2004. TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura. Trad. Federico Carotti. São Paulo: Martins Fontes, 2000. WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Trad. Juan Bustos Ramírez y Sergio Yánez Pérez. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1976. ZACZYK, Rainer. La lesión al honor de la persona como lesión punible. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 77, p. 128-140, mar./abr. 2009.

© desta edição [2019]