Curso de Psicologia Geral: Sensações e Percepção - Psicologia dos Processos Cognitivos [II]

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A. R. Luria

C u rso de Psicologia G eral Volume II Sensações e Percepção Psicologia dos Processos C ognitivos Tradução de P aulo B ezerra

Revisão técnica de H elmuth R. ICrüger

Professor de Psicologia da uprj e da uerj

civilização brasileira

Titulo do original em russo: OSCHUSCHÊNIYA I VOSPRIYATIE

Capa: DOUNÈ

Revisão: U mberto F. P into c N ilo F ernandes

Direitos desta edição adquiridos, com exclusividade para a língua portuguesa, pela EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A. Rua Muniz Barreto, 91/93, RIO DE JANEIRO — RJ, que se reserva a propriedade desta tradução.

1979 Impresso no Brasil Printed in Brazil

Sumário I — Sensações

O problema A sensação como fonte de conhecimento Teorias receptora e reflectora das sensações Classificação das sensações Classificação sistemática da sensações Tipos de sensações exteroceptivas Interação das sensações e o fenômeno da sinestesia Níveis de organização das sensações Medição das sensações. Estudos do limiar abso­ luto das sensações Estudo da sensibilidade relativa (diferencial) Variação da sensibilidade (adaptação e sensi­ bilização) П — P ercepção

A atividade perceptiva do homem. Característi­ cas gerais Percepção tátil Formas simples de percepção tátil Formas complexas de percepção tátil Percepção visual Estrutura do sistema visual Percepção das estruturas Percepção dos objetos e situações Fatores determinantes da percepção de objetos complexos ,

1

I 2 6 8 9 14 15 18 21 27 29 37

37 45 45 49 54 55 61 64 68

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Métodos de estudo da percepção visual falsa Desenvolvimento da percepção material Patologia da percepção material Percepção do espaço Percepção auditiva Bases fisiológicas e morfológicas da audição Organização psicológica da percepção auditiva Patologia da percepção auditiva Percepção do tempo

72 75 77 82 86 86 89 93 96

I Sensações

O problema A à sensações constituem a fonte básica dos nossos conhecimentos atinentes ao mundo exterior e ao nosso pró­ prio corpo. Elas representam os principais canais, por onde a informação relativa aos fenômenos do mundo exterior e ao estado do organismo chega ao cérebro, permitindo ao homem compreender o meio ambiente e o seu próprio cor­ po. Se esses canais estivessem fechados e os órgãos dos sen­ tidos não fornecessem a informação necessária, nenhuma atividade consciente seria possível. Há fatos conhecidos segundo os quais o homem, pri­ vado da afluência constante de informação, cai em estado de sonolência. Esses casos se verificam quando o homem perde subitamente a visão, a audição e o olfato e quando suas sensações táteis são limitadas por algum processo patológico. * Г

Obtém-se resultado semelhante quando, durante algum tempo, coloca-se o homem numa câmara à prova de som e luz, que o isola do contato com o mundo exterior e ele se mantém na mesma posição (deitado) durante certo tempo. Essa situação a princípio provocava sono, toman­ do-se mais tarde dificilmente suportável para os sujeitos experimentais*. Inúmeras observações demonstraram que a interrupção da afluência de informação na tenra infância, suscitada por surdez e cegueira, provoca bruscas contenções do desenvol­ vimento psíquico. Se as crianças que nasceram cegas e sur­ das ou perderam a audição e a visão em idade tenra não receberem educação por métodos especiais, que compensem esses defeitos à custa do tato, tornar-se-á impossível seu de­ senvolvimento psíquico normal e elas não conseguirão desenvolver-se com autonomia.

A sensação como fonte de conhecimento As sensações permitem ao homem perceber os sinais e refletir as propriedades e os indícios dos objetos do mundo exterior e dos estados do organismo. Elas ligam o homem ao mundo exterior e tanto representam a fonte principal do conhecimento quanto a condição fundamental do desenvol­ vimento psíquico do indivíduo. No entanto, apesar da evidência dessa tese, essa afirma­ ção fundamental foi reiteradamente posta em dúvida na his­ tória da filosofia idealista. Os filósofos idealistas expressavam freqüentemente a idéia segundo a qual a fonte autêntica da nossa vida cons­ ciente não é constituída pelas sensações mas pelo estado inte­ rior da consciência e pela capacidade do conhecimento racio­ nal, que são dados pela natureza e independentes da afluên­ cia da informação que chega do mundo exterior. Essas concepções serviram de base à filosofia do “ra­ cionalismo” (eles tiveram expressão nítida em Cristian • Em testes psicológicos empregaremos sempre o termo "sujeito”, suben­ tendendo “sujeito experimental”. (N. do T.)

Wolf, filósofo racionalista alemão). A essência dessa filo­ sofia consiste em que os processos psíquicos não são um produto do complexo desenvolvimento histórico e seus adep­ tos interpretavam erroneamente a consciência e a razão não como o resultado de uma complexa evolução histórica mas co­ mo uma propriedade primária e inexplicável do “espírito” humano. É fácil perceber que todos os dados da ciência moderna, antes referidos, rejeitam radicalmente essa tese. Mas os filósofos idealistas e psicólogos a eles afetos ten­ taram reiteradamente refutar uma tese que pareceria eviden­ te — a tese segundo a qual as sensações colocam o homem em contato com o mundo exterior — e demonstrar uma teso oposta e paradoxal, segundo a qual as sensações sepa­ ram o homem do mundo exterior por serem uma muralha intransponível entre ele e esse mundo. Essa tese partiu de filósofos idealistas como G. Ber­ keley, D. Hume e E. Mach e psicólogos como H. Helmholtz e Johannes Müller, que formularam a teoria da “energia específica dos órgãos dos sentidos”. Segundo essa teoria, os órgãos dos sentidos (o olho, o ouvido, a língua e a pele) não refletem a influência do mun­ do exterior nem informam acerca dos processos reais que ocorrem no meio ambiente, limitando-se a receber das ações exteriores os impulsos que lhes estimulam os seus próprios processos. Para essa teoria, cada órgão dos sentidos possui sua própria “energia específica”, que é estimulada por qual­ quer ação procedente do mundo exterior. Assim sendo, bas­ ta pressionar o olho, agindo sobre ele através de choque elétrico, para ele ter a sensação de luz; é bastante uma ex­ citação mecânica ou elétrica do ouvido para surgir a sen­ sação do som. Logo, os órgãos dos sentidos não refletem as influências exteriores mas são apenas excitados por elas e o homem não percebe os objetos do mundo exterior mas somente os seus próprios estados subjetivos, que refletem a atividade dos órgãos dos sentidos. Noutros termos, isto sig­ nifica que os órgãos dos sentidos não põem o homem em contato com o mundo exterior mas, ao contrário, o separam deste. Percebe-se facilmente que essa teoria levou à afirma­ ção: “o homem não pode perceber o mundo exterior e a ¿nica realidade são os processos subjetivos, que refletem a atividade dos órgãos dos sentidos, estes sim criadores dos ‘elementos do mundo’ subjetivamente perceptfveis”. 3

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Todas essas teses foram tomadas por base da filosofia do “idealismo subjetivo”, por afirmarem que o homem só pode conhecer a si mesmo e não dispõe de nenhuma prova de que existe alguma coisa além dele. Essa teoria idealista recebeu o nome de “solipsismo” (do latim solus, só, e ipse, eu próprio: existo só [um] eu próprio). A teoria do idealismo subjetivo, inteiramente oposta às concepções materialistas da possibilidade de representação objetiva do mundo (particularmente a “teoria do reflexo" de Lênin) foi a fonte de um profundo equívoco cuja essên­ cia se torna cada vez mais evidente com as sucessivas con­ quistas da ciência. O estudo atento da evolução dos órgãos dos sentidos mostra de modo convincente que, no processo de um longo desenvolvimento histórico, formaram-se órgãos especiais de percepção (órgãos dos sentidos ou receptores), que se espe­ cializaram em refletir tipos especiais de formas objetivamen­ te existentes de movimento da matéria (ou “energias”); re­ ceptores da pele, que refletem as influências mecânicas; receptores auditivos, que refletem as oscilações sonoras; re­ ceptores visuais, que refletem certos diapasões das oscila­ ções eletromagnéticas, etc. Examinemos os dados atinentes à elevadíssima especia­ lização dos órgãos receptores e aos tipos concretos de mo­ vimento da matéria que cada um deles percebe. A tabela 1 apresenta dados gerais. Vemos que entre todos os possíveis tipos de movimen­ to da matéria, dispostos em ordem de redução do compri­ mento da onda e aumento do número de oscilações por segundo, apenas alguns são refletidos por aparelhos altamen­ te especializados dos órgãos dos sentidos. Assim, ondas me­ cânicas de determinado diapasão são percebidas pela pele, provocando sensações de tato ou pressão; oscilações sono­ ras com onda acima de 12mm de comprimento e freqiiência inferior a 20-30 oscilações por segundo e com onda de mais de 12mm de comprimento, freqiiência superior a 30000 os­ cilações, não são percebidas, ao passo que oscilações sono­ ras com onda de 12-13mm de comprimento e freqiiência de 20 a 20000 oscilações por segundo são percebidas pelo ouvi­ do humano e provocam sensações auditivas. 4

TABELA 1 Característica das influências objetivas, dos aparelhos perceptivos e das sensações Processos físicos

Com pri­ m en to cias ondas em mm

N ú m e ro de oscilações por segundo

Ó rgão p e r­ c e p tivo

Sensação

mecênicos oscilações sonoras



até 1,5 mil

pele

tiltil

abaixo de 20 20-20 000 acima de 30 000 30.1012 8.10м 4.10м 8.10м 8.10м 5.10м 4. ЮТ 6.1010

ouvido in­ terno

auditiva

ultra-som ondas clétrlcas ondas luminonas

acima de 12 12-13 abaixo de 12 até 0,1 0,1-0.004 0.008-0.004 0.004-

ondas radiológicas

0.00001

0.00000080.0000005









pele retina olhos —

calor luz, cor





Oscilações elétricas com onda de 0,lmm de comprimento e 30.1014 de freqiiência também não são percebidas, embora a pele perceba como calor as mesmas oscilações com onda de 0.1 a 0.004mm de comprimento e freqiiência de 8.1014 oscilações por segundo. Ê sobretudo interessante o quadro que surge em relação à percepção das ondas sono­ ras: a retina do olho humano percebe ondas sonoras de 0.008-0.004mm de comprimento com freqiiência de 4.10м8.1014 oscilações por segundo, provocando sensações de luz e cor. No entanto ela não percebe ondas luminosas de 0.004 a 0.00001 mm de comprimento e freqiiência de 8.10,4-5.1015 oscilações por segundo; as ondas radiológicas também não têm receptores especializados nem provocam sensação no homem. Uma análise atenta desses dados mos­ tra que os nossos aparelhos perceptivos se especializaram em distinguir apenas algumas influências e continuam imunes a outras influências. Isto tem fundamento biológico. Se a re­ tina percebesse influência ababco e acima do referido dia5

pasão, o homem perceberia o calor do seu próprio corpo como sensação visual e transformaria em sensações visuais as influências que para ele não têm importância biológica. O mesmo se refere ao funcionamento dos analisadores audi­ tivos: se o homem percebesse com o ouvido oscilações ultrasonoras, suas percepções auditivas seriam acrescidas de mui­ tos ruídos excessivos que dificultariam a distinção de exci­ tações sonoras essenciais para ele. É característico o fato de que os animais têm outros limites de sensações: o morcego, por exemplo, ao voar na escuridão e enfrentar obstáculos, o faz através do reflexo de ondas ultra-sonoras, seu aparelho auditivo lhe serve de radar e ele percebe oscilações ultra-sonoras que o homem não percebe. Assim, na evolução dos organismos surgiram aparelhos especializados na percepção de diversos tipos de movimento da matéria (diferentes “energias”) c nós, em realidade, não possuímos “energias específicas dos órgãos dos sentidos” mas órgãos específicos que refletem ohfetivamente diver­ sos tipos de energia. O fato de que, quando estímulos inadequados ao olho ou ao ouvido agem sobre esses órgãos, surge uma sensação “específica” (visual ou auditiva), alude apenas à alta espe­ cialização desses dispositivos perceptivos e à incapacida­ de de refletir as influências em cuja recepção cies não são especializados. Como veremos adiante, a alta especialização de diversos órgãos receptores se baseia não só nas peculiaridades da es­ trutura dos “receptores” periféricos (órgãos dos sentidos) mas também na elevadíssima especialização dos neurônios que integram a composição dos aparelhos nervosos centrais, aos quais chegam os sinais percebidos pelos órgãos perifé­ ricos dos sentidos. Este fato será novamente focalizado quando abordamos os tipos especiais de sensações.

Teorias receptora e reflectora das sensações Formou-se na Psicologia clássica a concepção segundo a qual um órgão dos sentidos (receptor) reage passivamente às influências dos estímulos sendo essa reação passiva

constituída pelas sensações correspondentes. Chamava-se a essa concepção teoria receptora das sensações, segundo a qual a sensação enquanto processo passivo se opunha ao movimento que era visto como processo ativo. Hoje essa teoria é considerada inconsistente e refutada pela maioria dos estudiosos, que a ela opõem a concep­ ção da sensação como processo ativo. Essa concepção serve de base a outra teoria, denominada teoria reflecto­ ra das sensações. Ao examinar as sensações dos animais já observamos o fato de que estas não têm caráter passivo, indiferente e que os animais distinguem ativamente entre as influências do mundo exterior somente aquelas de grande importância bio­ lógica para eles. Já dissemos que a abelha reage a cores mis­ tas de modo bem mais ativo do que a cores puras; observa­ mos que o esmerilhão reage aos cheiros de podre, ignorando os cheiros de relva e grãos, ao passo que o pato revela pe­ culiaridades opostas em suas reações; o gato distingue ativa­ mente o ruído do rato mas não reage aos sons do diapa­ são que lhe são indiferentes. Este fato indica o caráter ativo e seletivo das sensações. Os fatos posteriores mostram que, em termos fisioló­ gicos, a sensação não é absolutamente um processo pas­ sivo mas sempre incorpora à sua composição componen­ tes motores. Assim, as observações realizadas pelo psicolólogo ame­ ricano Neff, há mais de quarenta anos, deram oportunidade para que nos convencêssemos de que, se observarmos pelo microscópio a parte da pele irritada por uma agulha, pode­ remos ver que o momento do surgimento da sensação é acompanhado por reações reflectoras motoras dessa área da pele. Posteriormente, foi estabelecido através de inúmeras pesquisas que a composição de cada sensação é integra­ da por um movimento, às vezes em forma de reação vege­ tativa (compressão dos vasos, reflexo cutânco-galvânico), às vezes em forma de reações musculares (virada de olhos, ten­ são dos nervos do pescoço, reações motoras do braço, etc.). Foi estabelecido que as sensações complexas, que exi­ gem a distinção ou identificação de um objeto, são possíveis sem movimentos ativos. Assim, para distinguir, de olhos fe­ chados, um objeto, é necessário apalpá-lo ativamente; ató Indícios como os aspecto plano ou rugoso deri um objeto,

suas dimensões, etc., são percebidos apenas se a mão que os apalpa é ativa; as sensações que surgem do objeto da superfície passiva da pele, são extremamente imperfeitas. O mesmo foi estabelecido em relação à percepçâo vi­ sual. Setchenov já indicara que, para perceber visualmente o objeto, é necessário que o olho o “apalpe”. Ultimamente foi estabelecido que cada percepçâo visual se realiza de fato com a participação ativa dos movimentos dos olhos, que às vezes têm caráter de grandes “movimentos de apalpaçào”, tomando às vezes o aspecto de pequenos movimentos dos olhos. Ainda abordaremos especialmente o fato de que a sensação auditiva ocorre com a participação imediata dos componentes motores tanto no próprio aparelho auditivo como no aparelho oral a ela relacionado. Ê sabido que para definir um som é necessário cantá-lo e só neste caso o som será suficientemente preciso e separado dos sons semelhan­ tes a ele. Tudo isto mostra que as sensações não são absoluta­ mente processos passivos, que elas têm caráter ativo e a participação de componentes motores na sensação pode ser efetuada em nível variado, ocorrendo, às vezes, como pro­ cesso reflector elementar (por exemplo, na redução dos va­ sos ou das tensões musculares que surgem em resposta a cada excitação sentida), às vezes como um complicado pro­ cesso de atividade receptora intensa (por exemplo, durante a palpação ativa do objeto ou a contemplação de uma ima­ gem complexa). A teoria reflectora das sensações consiste justamente em indicar o caráter ativo de todos esses processos. Ainda veremos a grande importância dessa teoria tan­ to para a teoria dos processos cognitivos do homem quanto para a análise das mudanças que ocorrem na sensação e na percepçâo durante os estados patológicos do cérebro.

Classificação das sensações Há muito tempo costuma-se distinguir cinco tipos bási­ cos (modalidades) de sensações, distinguindo-se o tato, o olfato, o paladar, a audição e a visão.

Para uma resposta suficientemente completa ao proble­ ma das modalidades principais de sensações, devemos con­ siderar que sua classificação pode ser feita pelo menos se­ gundo dois princípios básicos: o princípio sistemático e o genético, noutros termos, pelo princípio da modalidade, por um lado, e pelo princípio da complexidade ou do nível de sua construção, por outro. Classificação sistemática das sensações Ao distinguirmos os grupos maiores e mais importantes de sensações, podemos dividi-las em três tipos principais: sensações interoceptivas, proprioceptivas e extraceptivas. As primeiras reúnem os sinais que nos chegam do meio interior do organismo e garantem a regulação das inclinações ele­ mentares; as proprioceptivas garantem a informação sobre o corpo no espaço e a posição do aparelho de apoio e movi­ mento, assegurando a regulação dos nossos movimentos; as extraceptivas constituem o maior grupo e asseguram a re­ cepção de sinais do mundo exterior, criando a base do nosso comportamento consciente. Examinemos separadamente os três tipos básicos de sensações. As sensações interoceptivas, que produzem sinais acerca do estado dos processos internos do organismo, fazem che­ gar ao cérebro as excitações procedentes das paredes do in­ testino e do estômago, do coração e do sistema sanguíneo, bem como de outros órgãos viscerais. Esse grupo constitui o grupo mais antigo e mais elementar de sensações. Os apa­ relhos receptores dessas sensações estão dispersos nas pa­ redes dos órgãos internos que acabamos de citar. Os impulsos que surgem passam pelos filamentos que integram parcialmente a composição do sistema vegetativo, particular­ mente a composição das colunas laterais da medula espi­ nhal. O aparelho central, que recebe os impulsos interoceptivos, é constituído parcialmente pelos núcleos das formações subcorticais (núcleo medial do tálamo ótico), parcialmente pelos órgãos do córtex antigo (límbico) do encéfalo. É a isto que se deve o fato de que as sensações intero­ ceptivas estão entre as formas menos conscientes e mais 9

difusas e sempre conservam sua semelhança com os es­ tados emocionais. O caráter elementar e difuso dessa modalidade de sen­ sações manifesta-se no fato de que, na Psicologia, não exis­ te uma classificação precisa desses fenômenos. Situam-se en­ tre as interoceptivas a sensação de fome, a “sensação de des­ conforto”, que pode surgir como sintoma inicial de doença dos órgãos internos, “a sensação de tensão” que surge com frustração de uma necessidade qualquer e “a sensação de calma” ou “conforto” que indica a satisfação das necessida­ des ou o desenvolvimento normal dos processos viscerais. Vemos que, em todos esses casos, as sensações intero­ ceptivas se manifestam como o ponto intermediário entre as sensações autênticas e as emoções; apesar de a Psicologia ainda ter estudado de modo muito insuficiente as manifes­ tações subjetivas dessas sensações, incluindo-as no campo das “sensações obscuras”, o conhecimento destas é necessário tendo em vista que a sua mudança pode desempenhar pa­ pel decisivo para a descrição do “quadro interior da doen­ ça” que surge nos estados patológicos dos órgãos interiores e desempenha papel considerável no diagnóstico das doen­ ças interiores (A. R. Luria). Essas sensações não-conscientizadas podem manifestar-se muito cedo, podendo sua ex­ pressão assumir formas originais: elas podem aparecer em forma de “pressentimentos” que o homem não pode for­ mular, podem manifestar-se nos sonhos que, às vezes, é como se anunciassem a doença que está em início (em es­ sência, elas apenas refletem mudanças que começaram cedo e foram pouco conscientizadas, ou seja, mudanças das sen­ sações interoceptivas, que surgem em fases iniciais da doen­ ça). Elas se manifestam na mudança do estado de espírito e nas reações emocionais, provocando na criança freqiientes manifestações singulares no comportamento. Sabe-se, por exemplo, que uma criança doente, que ainda não tem cons­ ciência das mudanças interoceptivas, apresenta indícios de mudança geral de comportamento, ou começa a acalentar e dar remédio a uma boneca “doente", refletindo deste modo mudanças em suas próprias sensações interoceptivas. A importância objetiva das sensações interoceptivas é muito grande: elas são fundamentais na regulação da balan­ ça dos processos internos de metabolismo ou daquilo a que se chama homeostase dos processos de troca no organismo.

Os sinais que surgem por via interoceptiva provocam um comportamento voltado para a satisfação de inclinações ou para a eliminação dos estados de tensão (“stress”) que po­ dem manifestar-se em decorrência de fatores que perturbam o funcionamento equilibrado dos órgãos internos. Por isto a consideração das sensações interoceptivas desempenha pa­ pel decisivo na parte da medicina denominada “psicossomá­ tica”, que estuda a correlação dos processos somáticos e vis­ cerais e dos estados psíquicos. Os mecanismos fisiológicos, com a participação da interocepção, foram minuciosamente estudados por К. M. Bikov e V. N. Tchemigovsky, que descreveram os mecanismos da atividade reflectora condicionada, que surgem à base de sensações interoceptivas. O segundo grande grupo é constituído pelas sensações proprioceptivas, que asseguram os sinais referentes à posi­ ção do corpo no espaço e, em primeiro lugar, à posição do aparelho de apoio e movimento no espaço. Elas represen­ tam a base aferente dos movimentos do homem e desempe­ nham papel decisivo na regulação destes. Os receptores periféricos da sensibilidade proprioceptiva ou profunda encontram-se nos músculos e superfícies articulatórias (tendões, ligamentos) e apresentam formas de corpos nervosos especiais (corpos de Paccini). As excitações que surgem nesses corpos refletem as mudanças que ocor­ rem na distensão dos músculos e na mudança da posição das articulações, passam pelos filamentos que compõem as co­ lunas posteriores da substância branca da medula espinhal. As excitações irrompem nas zonas inferiores dos núcleos de Holl e Burdach e, passando para o lado oposto, avançam, atingindo os nós subcorticais (do sistema talâmico-estriado) e terminando na região parietal do córtex do hemisfério, opos­ to (particularmente na região pós-central). Por isto o inter­ valo entre os condutores da sensibilidade proprioceptiva ou profunda, em qualquer ponto desta via (afecção das colu­ nas posteriores dos núcleos de Holl e Burdach, das .vias con­ dutoras ou do córtex da circunvolução pós-central), sem per­ turbar a sensibilidade superficial (tátil), leva a perturbações da sensibilidade proprioceptiva ou profunda cujos sintomas são perfeitamente conhecidos pelos neuropatologistas. A pes­ soa doente não é capaz de determinar a posição do seu braço (ou perna) no espaço, sente às vezes indícios de mudança do 11

“esquema do corpo” (o tamanho dos membros. ou do corpo começa a lhe parecer incomum, às vezes intensamente gran­ de). É natural que em decorrência da perturbação ou queda da sensibilidade proprioceptiva (ou profunda), ela comece a experimentar grandes dificuldades nos movimentos: os im­ pulsos que costumam partir dos receptores muscular-articulatórios e constituem a base aferente dos movimentos, neste caso são perturbados e os movimentos, privados do apoio sensorial, tornam-se in controláveis. Na fisiologia e psicofisiologia modernas, o papel da propriocepção como base aferente dos movimentos nos animais foi detalhadamente estudado por A. A. Orbeli, P. K. Ano­ khin; em relação ao homem, o problema foi estudado por N. A. Bernstein. Ainda voltaremos à análise do papel da sensibilidade proprioceptiva na construção dos movimentos quando exa­ minarmos, em caráter especial, a psicofisiologia dos processos motores. O grupo de sensações, que indica a posição do corpo no espaço, tem entre seus componentes uma modalidade espe­ cial de sensibilidade, denominada sensação de equilíbrio ou sensação estática. Os receptores periféricos dessas sensações estão situados nos canais semicirculares do ouvido interno, que estão distribuídos em três superfícies mutuamente per­ pendiculares: o líquido que enche esses canais muda de po­ sição dependendo da posição do corpo, particularmente da cabeça, excita células “capilares” específicas que se mistu­ ram sob a influência do fluxo desse líquido (endolinfa) e, deste modo, anuncia as mudanças da posição da cabeça no espaço. A excitação, que surge como resultado dessas esti­ mulações, é transmitida através dos filamentos que compõem o nervo auditivo como parte especial deste (o chamado ner­ vo vestibular) e se dirige às regiões têmpo-parietais do cór­ tex cerebral e do aparelho do cerebelo. Ao contrário dos aparelhos da sensibilidade sinestésica (profunda), os aparelhos da sensibilidade vestibular estão estreitamente relacionados com a visão, que também parti­ cipa do processo de orientação no espaço. Por isto o cons­ tante vislumbramento de excitações visuais (por exemplo, quando se passa de carro ao longo de uma floresta densa) pode provocar a sensação de perda do equilíbrio e enjôo. Sensação análoga (acompanhada da mudança do esquema

do corpo) pode ser provocada também durante um vóo com rápidas mudanças da posição do corpo no espaço. As mesmas perturbações da sensação de equilíbrio podem ser pro­ vocadas também por processos patológicos (inchações, por exemplo) localizados nas regiões têmporo-parietais do cére­ bro ou no cerebelo. O terceiro — e maior — grupo de sensações é consti­ tuído pelas sensações exteroceptivas. Estas fazem chegar ao homem a informação procedente do mundo exterior e são o principal grupo de sensações que colocam o homem em con­ tato com o meio exterior. É justamente entre esse grupo que se situa o olfato, o paladar, o tato, a visão e a audição. Convencionou-se dividir todo o grupo de sensações ex­ teroceptivas em dois subgrupos: as sensações de contato e distância. Entre as sensações de contato, situam-se aquelas nas quais a ação que provoca a sensação deve ser aplicada ime­ diatamente à superfície de um corpo e ao respectivo órgão perceptivo. O exemplo típico da sensação de contato pode ser visto no tato e no paladar. É perfeitamente compreensí­ vel que os dois tipos de sensação possam ser provocados por ações à distância. Entre as sensações de distância, ao contrário, situam-se aquelas nas quais o estímulo provoca sensações que atuam sobre os órgãos dos sentidos a partir de certa distância. A estas pertencem o olfato, e especialmente a visão e a audi­ ção. O estímulo situado às vezes à grande distância do sujeito (por exemplo, o som de uma campainha, a luz de uma lâmpada) pode provocar sensações mesmo que a fonte destas esteja distante e as respectivas ações (por exemplo, ondas sonoras ou luminosas) devam percorrer uma grande distância antes de que possam atuar sobre os respectivos ór­ gãos dos sentidos. A classificação de todos os tipos de sensações é repre­ sentada no seguinte esquema: Sensações interoceptivas Sensações proprioceptivas Sensações exteroceptivas — de contato (paladar, tato) de distância (olfato, visão, audição)

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Tipos de sensações exteroceptivas

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Como se sabe, entre as sensações exteroceptivas situamse as cinco “modalidades” acima referidas: olfato, paladar, tato, audição e visão. Esta enumeração é correta mas não esgota os cinco tipos de sensibilidade. No entanto cabe acrescentar a essa relação duas catego­ rias: as sensações intermediárias ou intermoáais e os tipos não específicos de sensação. Ê fato notório que se o tato percebe sinais das influên­ cias mecânicas e a audição percebe sinais das ondas sonoras com uma freqüéncia de vinte-trinta a vinte-trinta mil oscila­ ções por segundo, o homem é capaz de perceber oscilações de freqüéncia inferior à das ondas sonoras acima referidas. Entre essas oscilações situam-se as vibrações cuja frequên­ cia é calculada em aproximadamente 10-15 oscilações por segundo. Essas vibrações não são percebidas pelo ouvido mas pelos ossos (do crânio ou dos membros), enquanto que as sensações que percebem essas vibrações são denominadas sensibilidade vibrátil. O exemplo típico dessa sensibilidade é a pcrcepção dos sons pelos surdos. Sabe-se que os surdos podem perceber a música mantendo a mão na coberta do instrumento de som, percebendo os sons, às vezes, até por meio de vibrações do piso ou de um móvel. Deste modo, a sensibilidade vibrátil é um exemplo de sensação intermodal, que ocupa posição intermediária entre a visão e o tato. Outro exemplo de sensibilidade intermodal é a percepção de alguns cheiros agudos por sensações agudas de sabor, bem como de sons ultrafortes ou luz ultraforte; todas essas ações provocam sensações mistas, situadas entre as sensa­ ções táteis, audiitivas ou visuais e as sensações de dor que se difundem a filamentos sensoriais não específicos. Na neu­ rologia esses componentes não específicos dessas modalida­ des de sensibilidade são conhecidos pomo “trigeminais” do nervo trifacial cuja excitação é incorporada à sensação bási­ ca em caso de iirritações superfortes. O segundo acréscimo à classificação comum das sensa­ ções exteroceptiwas é a existência de uma forma não espe­ cífica de sensibálidade. Essa “sensibilidade não específica” pode ser constitiuída pela fotossensibilidade da pele, que é a 14

capacidade de percepção dos matizes de cor pela pele da mão ou das pontas dos dedos. Os fenómenos da fotossensibilidade não específica foram descritos por A. N. Leontyev c outros. Esse autor realizou um estudo preciso no qual a superfície da mão recebeu luz colorida (verde ou vermelha), sendo que, neste caso, a temperatura dos raios luminosos foi igualada por um filtro de água. Após várias centenas de combinações de determinado sinal colorido com o estímulo de dor, foi demonstrado que, sob a condição de uma orientação ativa do sujeito, era possível ensiná-lo a distinguir os raios luminosos pela pele da mão, embora essa distinção fosse dúbia e difusa. A natureza da fotossensibilidade da pele continua obs­ cura até hoje, embora se possa supor que ela esteja relacio­ nada com o fato de o sistema nervoso e a pele terem sido originados por um embrião de folha (ectoderma) e na pele possam encontrar-se elementos fotossensíveis difusos e rudi­ mentares que começam a agir com êxito sob condições es­ peciais (particularmente sob excitação elevada dos sistemas subcorticais, palâmicos). Existem formas de sensibilidade ainda não suficiente­ mente estudadas às quais pertencem, por exemplo, o “sentido de distância” (ou o “sexto sentido”) dos cegos, que lhes per­ mite perceber à distância o obstáculo que surge à sua fren­ te. Há fundamentos para supor que a base do “sexto senti­ do” é a percepção das ondas de calor pela pele do rosto ou o reflexo das ondas sonoras do obstáculo distante (essas on­ das atuam à semelhança do radar). No entanto essas formas de sensibilidade ainda não foram suficientemente estudadas, sendo ainda difícil falar dos seus mecanismos fisiológicos.

Interação das sensações e o fenômeno da sinestesia

Alguns órgãos dos sentidos que acabamos de descrever uem sempre funcionam isoladamente. Eles podem estar em in­ teração, podendo essa interação assumir duas formas. Por um lado, algumas sensações podem influenciarse mutuamente, sendo que o funcionamento de um órgão do 15

sentido pode estimular ou reprimir o funcionamento de outro órgão do sentido. Por outro lado, existem formas mais pro­ fundas de interação sob as quais os órgãos dos sentidos tra­ balham em conjunto, condicionando uma nova modalidade materna de sensibilidade que em Psicologia recebeu a deno­ minação de Sinestesia. Examinemos separadamente cada uma dessas formas de interação. Os estudos efetuados pelos psicólogos (particular­ mente o psicólogo soviético S. V. Kravkov) mostraram que o funcionamento de um órgão dos sentidos não deixa de influir no processo de trabalho de outros órgãos dos sentidos. Verificou-se, por exemplo, que a irritação sonora (um as­ sobio, por exemplo) pode aguçar o trabalho da sensação vi­ sual, aumentando-lhe a sensibilidade aos estímulos lumi­ nosos. Assim alguns cheiros também influem, aumentando ou diminuindo a sensibilidade sonora e auditiva. Ao que parece, semelhante influência de umas sensações sobre outras ocorre no nível das regiões superiores do tronco cerebral e no tálamo ótico, onde os filamentos que conduzem as excita­ ções de diversos órgãos dos sentidos se aproximam, tornando possível uma realização perfeita da transmissão das excita­ ções de um sistema a outro. Os fenômenos do estímulo mú­ tuo e da inibição mútua do funcionamento dos órgãos dos sentidos constituem um grande interesse prático em situa­ ções sob as quais surge a necessidade de estimular ou repri­ mir artificialmente a sensibilidade desses órgãos (por exem­ plo, nas condições de vôo na hora do crepúsculo quando não há direção automática). Em Psicologia são bastante conhecidos os fatos da “au­ dição colorida", que é acionada em muitas pessoas e se ma­ nifestam com nitidez especial em alguns músicos (em Skryabin, por exemplo). Assim sendo, é fato amplamente conhecido que os sons altos são considerados “claros” en­ quanto os sons baixos são considerados “escuros”. O mesmo ocorre eom os cheiros, pois, como é sabido, uns são consi­ derados “claros” e outros, “escuros”. Esses fatos não são casuais ou subjetivos; são regidos por lei, o que foi demonstrado pelo psicólogo alemão Hombostel que sugeriu aos sujeitos uma série de cheiros e pro­ pôs compará-los a uma série de tons e uma série de tona­ lidades de luz. Os resultados foram muito interessantes e de-

n moristfaram uma grande permanência; ó que foi mais impor­ tante porém é que os cheiros das substâncias cujas moléculas continham um grande número de átomos de carbono foram comparados a tonalidades escuras enquanto que os cheiros das substâncias cujas moléculas continham poucas moléculas de carbono foram comparados a matizes de luz. Isto mostra que a sinestesia se baseia em propriedades objetivas (ainda não suficientemente estudadas) dos agentes que atuam sobre o homem. É característico que o fenómeno da sinestesia nem de longe se difunde em pessoas idênticas. Ele se manifesta com nitidez especial nas pessoas de excitabilidade elevada das formações subcorticais. Sabemos que ele predomina nos casos de histerismo, pode aumentar visivelmente no período de gravidez e ser artificialmente provocado pelo uso de várias substâncias farmacológicas (a mescalina, por exemplo). Em alguns casos, os fenômenos da sinestesia se mani­ festam com absoluta nitidez. Um dos sujeitos com manifes­ tação muito acentuada de sinestesia, o conhecido mnêmico S., foi estudado minuciosamente na Psicologia soviética (A. R. Luria). Esse homem percebia todas as vozes como sendo coloridas e dizia freqüentemente que a voz da pessoa que a ele se dirigia era “amarela e dispersa”. Os tons que ele ou­ via lhe provocavam sensações visuais de diversos matizes (de amarelo-claro a negro-prateadò ou violeta). As cores perce­ bidas eram por ele sentidas como “sonoras” ou “surdas”, como “salgadas” ou “estaladas”. Semelhantes fenómenos são encontrados em formas mais obliteradas com muita freqiiência como tendência direta a “pintar” os números, dias da se­ mana, nomes dos meses em diferentes cores. O fenômeno da sinestesia representa grande interesse a psicopatologia, onde a sua análise pode adquirir imdiagnóstica. As formas descritas de interação das sensações são as elementares e parecem ocorrer predominantemente no do tronco superior e das formações subcorticais. No existem formas mais complexas de interação dos dos sentidos ou, segundo Pavlov, analisadores. Sabeàs vezes, quase não percebemos as irritações táteis, e auditivas isoladamente: ao percebermos os objetos mundo exterior, nós os vemos com os olhos, sentimos

pelo contato, às vezes lhes percebemos o cheiro e o som, etc. É natural que isso exige a interação dos órgãos dos sentidos (ou analisadores) e é determinado pelo trabalho sintético deles. Esse trabalho sintético dos órgãos dos sen­ tidos ocorre com a participação imediata do córtex cerebral e antes de tudo das zonas “terciárias” ou ("zonas de cober­ tura”) nas quais estão representados os neurônios pertencen­ tes a várias modalidades. Essas “zonas de cobertura” (a elas já nos referimos) são as que asseguram as formas mais com­ plexas de funcionamento conjunto dos analisadores, as quais servem de base à percepção dos objetos. Adiante faremos uma análise psicológica das formas básicas de funcionamento desses analisadores.

Niveis de organização das sensações A classificação das sensações não se limita à descrição de sensações isoladas de “modalidades” diversas. Paralela­ mente à classificação sistemática das sensações, existe a clas­ sificação patético-estrutural, ou melhor existe uma relação com diferentes níveis de organização e a discriminação das sensações que surgem em diversas etapas da evolução e tem uma estrutura de complexidade variada. Quando antes nos referimos às sensações interoceptivas, observamos o caráter primitivo e difuso que se manifestava na sua semelhança com os estados emocionais e no fato de que é difícil distribuí-las em categorias isoladas precisas. Passando às sensações exteroceptivas, tivemos oportuni­ dade de observar também a diferença de complexidade des­ tas. Assim as sensações olfativas e gustativas têm caráter bem mais subjetivo e conservam uma relação bem maior com os estados emocionais (a sensação do agradável e do desagradável) do que as sensações visuais (particularmente as auditivas) que refletem os objetos do mundo exterior, que podem ocorrer sem provocar obrigatoriamente proble­ mas emocionais e têm caráter bem mais objetivo e diferen­ ciado, refletindo a forma, as dimensões e a disposição espa­ cial dos objetos que atuam sobre o homem. Por último as sensações táteis têm duplo caráter, englobando tanto compo­ nentes primitivos, semelhantes aos problemas emocionais

(por exemplo, a sensação do calor, do frío, de dor) quanto componentes complexos (sensação das dimensões, da forma e da disposição dos objetos que atuam sobre a pele). Isto levou os estudiosos a discriminar duas formas ou dois níveis de sensação e, por sugestão do neurologista in­ glês H. Head, falar de sensações primitivas — protopáticas e complexas — epicríiicas. Por sensações protopáticas (do grego protos — tenro e patos — emoção) costuma-se entender as formas mais anti­ gas de sensação que ainda não têm caráter objetivo diferen­ ciado. Essas sensações são separáveis dos estados emocio­ nais e não refletem com a devida precisão os objetos con­ cretos do mundo exterior, têm caráter imediato, estão dis­ tante do pensamento e não podem ser divididas em catego­ rias precisas que se possam designar com certos termos ge­ néricos. As sensações interoceptivas são o exemplo mais nírido dessa sensibilidade protopática. Por sensações epicríiicas (do grego superior, superficial, suscetível de elaboração complexa) entendem-se os tipos su­ periores de sensação que não têm caráter subjetivo, estão separados dos estados emocionais, apresentam estrutura di­ ferenciada, refletem as coisas objetivas do mundo exterior e estão bem mais próximos dos complexos processos inte­ lectuais. Esse tipo de sensação surgiu em etapas mais tar­ dias da evolução e tem como exemplo mais patente as sensações visuais. A sensibilidade protopática e a epicrítica têm organiza­ ção cerebral diversa. Seus aparelhos nervosos centrais se lo­ calizam em diferentes níveis. Os aparelhos cerebrais da sen­ sibilidade protopática estão localizados no nível do tronco superior, do tálamo ótico e do córtex límbico antigo, ao pas­ so que os aparelhos da sensibilidade epicrítica são representa­ dos nas áreas respectivas do córtex visual, auditivo e tátil com sua organização complexa e suas zonas de cobertura. Tsto explica o fato de que as mudanças patológicas da senBibil idade protopática (por exemplo, o alto tônus emocio­ nal das sensações, a estreita ligação entre estas e as sensa­ ções de dor) surgem com a afecção do tálamo ótico e das paredes dos ventrículos cerebrais, ao passo que a perturba­ ção da sensibilidade epicrítica manifesta-se como resultado do afecções locais das respectivas áreas do córtex cerebral.

Observações mostraram que no funcionamento de qua­ se todos os órgãos dos sentidos há elementos da sensibilida­ de tanto prctopática como epicrítica, embora isso se verifique em correlações diferentes. Assim sendo, nas sensações vi­ suais os ccmponentes protopáticos são representados pelo tono emocicnal das cores “frias” e “mornas'’, enquanto os componentes epicríticos são representados pela percepção de grupos de (ores que podem ser designados pelos conceitos genéricos d*, “vermelho”, “amarelo”, “verde”, “azul”, etc. Ocorrência análoga nas sensações auditivas, onde o tônus emocional d) som pertence à sensibilidade protopática e seu caráter concreto (o som de uma campainha, das badaladas do relógio, *,tc.) se situa entre os componentes epicríticos. Os componentes protopáticos e epicríticos se manifestam com nitidez especial nas sensações táteis. Os componentes protopáticos se manifestam acima de tudo nas sensações de frio e calor que sempre são agradáveis ou desagradáveis, bem como nas sensações de dor quais os elementos das sen­ sações quase não podem ser separados das manifestações emocionais. Os componentes epicríticos atuam na precisa localização dg cada excitação, na discriminação de dois con­ tatos simultâneos, na avaliação do sentido no qual se pro­ duz a irritação da pele (por exemplo, na irritação da pele numa direçãc, distante ou próxima) e, por último, na com­ plexa avaliaçso da forma dos riscos feitos na pele por via tátil. Os neuropatologistas conhecem perfeitamente todos procedimento? especiais que permitem distinguir o estado da sensibilidade protopática e epicrítica e os aplicam com êxito para revelar 0 nível em que se situa o foco patológico. As sensibilidades protopáticas e epicríticas não estão apenas desertas mas também separadas experimentalmen­ te uma da outra. O neuropatologista inglês Hed fez em si mesmo um teste clássico desta separação experimental das sensibilidades pro­ topática e epicrítica. Com fins experimentais, ele cortou em sua própria rnão uma ramificação de cada nervo sensível e observou o restabelecimento paulatino da sensibilidade que começava na medida em que crescia o corte central do ner­ vo seccionado em decorrência do seu corte periférico. Esse experimento permitiu a Hed estabelecer certa ordem de res­ tauração da sensibilidade. Durante vários meses inexistiu in­ teiramente sensibilidade da pele na respectiva área da mão.

Em seguida surgiram sensações vagas dificilmente localizá­ veis, que apresentavam caráter emocional expresso e se si­ tuava no limite entre as sensações táteis e as de dor: era o período em que a sensibilidade protopática primitiva já co­ meçava a restabelecer-se e a complexa sensibilidade epicrí­ tica era capaz de localizar a irritação em determinado pon­ to da pele, de distinguir a direção dessa irritação e suas for­ mas. Nessa etapa mais tardia já se podia falar do restabele­ cimento de uma sensibilidade mais nova — a epicrítica... Os experimentos de Hed tiveram grande importância teórica e prática. Mostraram que a sensação engloba meca­ nismos construídos em diversos níveis, deram fundamento fbara uma classificação genética das sensações que permitiram estabelecer uma série de indícios da perturbação da sensibi­ lidade, que são de grande importância para o diagnóstico tópico das afecções cerebrais. Medição das sensações. Estudos do limiar absoluto das sensações . Até agora nós nos detivemos na análise qualitativa de di­ ferentes modalidades de sensação. No entanto não é menos importante o estudo quantitativo, noutros termos, a medição das sensações. É sabido que os órgãos das sensações humanas são apa­ relhos que funcionam com uma precisão impressionante. O olho humano, por exemplo, pode distinguir um sinal lumino­ so de 1/1000 velas a um quilómetro de distância. A ener­ gia dessa excitação é tão insignificante que seriam necessá­ rios 60 mil anos para com ela aquecer um centímetro cúbico de água a 1°C. O ouvido humano é tão sutil que se o dupli­ cássemos poderíamos ouvir o movimento browníano das par­ tículas. O nosso olfato e o paladar são capazes de sentir o cheiro ou gosto de uma partícula de substância diluída um milhão de vezes. Surge, porém, um problema: como medir a sutileza das sensações (ou dos limiares absolutos da sensibilidade)? Que métodos podem ser aplicados para esse fim e em que unida­ des objetivas pode-se expressar a sutileza das sensações? 21

Há dois métodos básicos de medição das sensações: o primeiro deles é o método direto (ou método de avaliação subjetiva), o segundo, o método indireto (ou método objeti­ vo de avaliação dos indícios da existência da sensação). O método direto (ou método das avaliações verbais das excitações) consiste no seguinte: propõe-se ao sujeito um determinado estímulo (um contato de pele, um som, uma luz) que inicialmente tem uma intensidade mínima que em seguida cresce paulatinamente. Propõe-se-lhe responder quan­ do sentir a primeira respectiva sensação. Para medir a sensibilidade da pele, aplica-se um dis­ positivo especial denominado estesiômetro. A sutileza da sensibilidade auditiva se mede por meio de um gerador de som ou audiómetro, que permite definir sons de intensidade variada, ou por meio de um mecanismo mais simples no qual o som é provocado pela queda de uma pequena esfera de diferentes alturas. A sutileza da sensibilidade visual é medida por um ins­ trumento que permite levar ao olho do sujeito, situado em ambiente escuro, um raio de luz de intensidade variada, co­ meçando com um de intensidade baixa ainda não percebida que aumenta paulatinamente. A sutileza das sensibilidades paladar e olfativa é medida por meio de dispositivos especiais que permitem anunciar ao sujeito crescentes excitações do paladar e do olfato, come­ çando por dissoluções mínimas de uma substância saborosa ou cheirosa com aumento paulatino da concentração dessas dissoluções. Variantes simples desses instrumentos são amplamente empregadas na prática clínica. O sujeito, com â qual se faz semelhante experimento, deve observar o momento em que ele começa a perceber pela primeira vez o estímulo. A excitação mínima, inicialmente denominada sensação, que o sujeito ressalta no seu relató­ rio verbal, denomina-se limiar inferior da sensação. O limiar inferior das sensações da sensibilidade tátil é expresso em bares (unidade de pressão), o limiar inferior da sensibilidade auditiva se traduz em decibéis (unidades de intensidade acústi­ ca), o limiar inferior da sensibilidade à luz mede-se em luxos (unidade de intensidade da luz), etc. Quanto maior é a agudeza da sensibilidade tanto menor é o seu limiar, em ou­ tros termos, a agudeza da sensibilidade é inversamente pro-

porcional aos índices do limiar inferior em unidades de inten­ sidade do respectivo estímulo. I

sendo E a sensibilidade absoluta, P a grandeza do limiar inferior das sensações. Os índices dos limiares inferiores das diversas sensações não constituem uma grandeza nitidamente “delineada”. Exis­ te toda uma faixa de influências mínimas nas quais o sujei­ to ora percebe, ora não percebe a presença do respectivo estímulo ou, por último, questiona que tenha havido tal estí­ mulo. Por isto adota-se como limiar inferior da sensação, habitualmente, uma grandeza na qual o número de respostas positivas, que indicam que o sujeito teve a respectiva sen­ sação, é superior a 50%. Este limiar é denominado limiar inferior estatisticamente autêntico das sensações. É característico que os limiares inferiores das sensações não continuam constantes, mudando na dependência de vá­ rios fatores: da habituação aos estímulos, do fundo inicial e das condições suplementares que podem elevar ou reduzir a sensibilidade. Paralelamente aos limiares inferiores das sensações po­ demos discriminar os seus limiares superiores. Entende-se por limiar superior a grandeza máxima do estímulo além de cujos limites o estímulo não é percebido ou começa a assu­ mir um novo colorido, sendo substituído pelo estímulo doloroso. ' ‘ ‘Vv Já dissemos que o ouvido humano pode perceber osci­ lações sonoras num diapasão de 20 a 20000 oscilações por segundo, sendo que as baixas frequências sãò percebidas como tons baixos e as altas como tons altos. Se apresen­ tarmos ao sujeito sons com freqiiências acima de 20-30 mil oscilações por segundo (hertz-Hz), i.e., ultra-sons, ele não os perceberá. Assim, os sons situados além dos limites dos limiares superiores deixam de suscitar sensações. Por sua intensidade, os sons provocam sensações auditi­ vas apenas em certos limites. Sons de intensidade inferior a 1 decibel podem não ser percebidos e constituem o limiar inferior das sensações, ao passo que os sons de intensidade superior a 130 decibéis começam a suscitar sensações dolo23

rosas e constituem o limiar superior das sensações auditivas. A mensuração dos limiares superiores e inferiores das sensações são de grande importância prática: ela permite dis­ tinguir as pessoas de sensibilidade reduzida de um ou outro analisador, enquanto o sintoma de redução da sensibilidade pode ser empregado para os diagnósticos da afecção (perifé­ rica ou central). Assim, a perturbação da sensibilidade tá­ til pode ser sintoma de afecção situada na circunvolução cen­ tral posterior do hemisfério oposto ou numa das etapas de suas vias condutoras. A redução da sensibilidade visual pode sugerir a afecção da retina, das áreas centrais da via audi­ tiva ou da região occipital (a redução da agudeza da visão, vinculada a ocorrências de estagnação no fundo do olho, é freqiientemente um sintoma de aumento da pressão craniana interna, que surge nos casos de tumor no cérebro). A re­ dução da sensibilidade auditiva em um ouvido pode indicar afecção do receptor auditivo periférico (ouvido interno) ou um foco patológico na área temporal dq hemisfério oposto. Neste caso é essencial o fato (descoberto por G. V. Gershunii, A. V. Baru e T. A. Karaseva) de que, nos casos de afecção do lobo temporal, cai acentuadamente no doente a sensibilidade aos sons breves (cuja duração é de 1 a 5 milissegundos), ou seja, aumentam os limiares da percepção des­ ses estímulos. A importância deste fato consiste em que ele é, amiúde, o único sintoma a indicar a afecção da região temporal do cérebro. Não é menos importante a medição dos limiares supe­ riores das sensações. Um exemplo do valor prático dessas medições é o esta­ belecimento de limiares superiores das sensações auditivas nas pessoas de audição difícil. É sabido que essas pessoas não percebem sons fracos. Poderia parecer que para a superação desse defeito seria bas­ tante aumentar a intensidade dos sons através de mecanismos de intensificação. No entanto, a intensificação desmedida dos sons que chegam aos duros de ouvido logo começa a pro­ vocar sensações de dor, pois a “zona de conforto” (isto é, o diapasão em cujos limites os sons começam a provocar sensações auditivas plenas) é neles muito restrita. Por isto a medição precisa dos limiares inferiores e superiores das sensações auditivas permite indicar os limites nos quais se devem intensificar os sons para que estes conservem o efeito

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necessário. É fácil perceber a grande importância que isto tem para a construção de aparelhos de intensificação do som. Até agora analisamos fatos obtidos com a mudança das sensações mediante a aplicação do primeiro dos referidos mé­ todos, ou seja, o método da avaliação subjetiva das sensa­ ções (ou método do relatório verbal do surgimento ou desa­ parecimento das sensações). Existe, entretanto, uma segunda via de medição das sensações, através da aplicação de mé­ todos objetivos ou indiretos, noutros termos, mediante a ava­ liação dos indícios objetivos do surgimento das sensações. Essa via é o resultado de pesquisas realizadas nos últi­ mos decénios em vários laboratórios psicofisiológicos e foi elaborada de maneira especialmente minuciosa pelos psicólo­ gos soviéticos G. V. Guershuni, E. N. Sokolov, O. S. Vino­ gradova e outros. ' Como já indicamos, as sensações não constituem ura processo passivo, são sempre acompanhadas de uma série de mudanças dos processos vegetativos, eletrofisiojógicos c respiratórios e são reflectores por natureza. É este fato que permite usar as mudanças reflectoras que acompanham as sensações como indicador objetivo da manifestação destas. É sabido que cada estímulo, que leva ao surgimento das sensações, provoca processos que surgem por via reflec­ tora como o estreitamente dos vasos, o surgimento do refle­ xo pele-galvânico (mudança da capacidade de resistência elé­ trica da pele), mudança das freqiiências da atividade elétrica do cérebro (antes de tudo o surgimento da depressão do alfa-ritmo, a virada do olho em direção ao estímulo, a ten­ são dos músculos do pescoço, etc.) Todos esses sintomas objetivos surgem quando o estímu­ lo chega ao sujeito e provoca sensações. SSo. eles que podem ser usados como indicador objetivo do surgimento das sensações. Os testes realizados por pesquisadores mostraram que se propusermos ao sujeito um estímulo muito fraco, este não provoca nenhuma sensação e não se verificam as mudanças reflectoras descritas. Se a intensidade do estímulo aumenta, ultrapassa os limites do limiar inferior e começa a provocar sensações, surgem mudanças objetivas nas reações vasculares eletrofisiológicas e musculares. É justamente por isto que o 2$

surgimemc ¿as mudanças descritas pode servir de indicador objetivo Óqs Umiares inferiores da sensação, É dig>io de atenção o fato de que quanto mais intensivo é ° estímalo tanto mais forte é a reação vascular e eletrofisiológica qUe ele provoca. Isto dá fundamentos para em­ pregar essis procedimentos com o fim de medir objetivamen­ te a iniensdade das sensações, o que foi muito difícil quando se aplicarían apenas os métodos subjetivos. Cabe observar que as reações vasculares ou as eletrofisiológicas a estímulos mal distinguíveis (“pré-liminares”) podem ser expressas de modo bem mais acentuado do que aos estímaos comuns bem perceptíveis. Este fato reflete objetívamele as dúvidas que o sujeito experimenta quando se lhe propõem excitações dificilmente perceptíveis e o fun­ do emocional em que ocorrem as tentativas de distinguir nitidaraenU o estímulo dos sons neutros. Por isto a inten­ sificação qas reações objetivas às excitações pré-liminares (mal perceptíveis) pode ser utilizada como importante indi­ cador compiementar do diapasão pré-liminar das sensações. É fácil notar que os métodos objetivos de medição das sensações £qUi descritos são de importância especialmente sé­ rias nos C£SOs em que, por motivos desconhecidos, é impos­ sível a obt2nção de dados mediante enquête direta aos sujei­ tos (entre crianças pequenas, alguns doentes mentais ou sob estímulo ir tencionai). No entanto surge uma pergunta natural: qual é a rela­ ção entre cs dados obtidos por questionário direto e os dados obtidos pel0 estudo de indicadores fisiológicos objetivos? Da resposta a essa pergunta depende a resposta a outra: sere­ mos capazes de empregar com a suficiente fidedignidade índi­ ces objetivas como sintomas seguros do surgimento de sen­ sações subjetivas? Pesqui£as realizadas pelo psicólogo soviético J. V. Guershuni mostraram que é norma os indicadores objetivos dos limiares dc¿ sensações corresponderem com precisão aos li­ miares subjetivos, noutros termos, as mudanças descritas das reações pele-galvânicas e eletroencefalográficas manifestam-se justamente quando, no sujeito, as sensações subjetivas surgem pela primeira Vez. As divergências entre os indicadores sub­ jetivos e objetivos surgem apenas em alguns casos especiais, por exempl0; nos estados inibitórios do córtex. Isto ocor­ re, por exemp]0) nos casos da chamada queda pós-contusão

da audição ou surdez pós-contusão, que começa como resul­ tado do golpe de uma onda de ar. Entre os sujeitos desse grupo, cujo córtex auditivo encontra-se em estado de inibição patológica, a apresentação de estímulos sonoros não provoca quaisquer sensações sub­ jetivas, embora leve ao surgimento das mudanças fisioló­ gicas objetivas das reações pele-galvânicas e eletroencefalográficas. Entre esses sujeitos, a apresentação do som (que o dcente não registra) provoca um nítido reflexo cócleo-pupilar (compressão da pupila em resposta à excitação sonora). Essa divergência entre as reações objetivas e subjetivas às excitações auditivas permitiu a Guershuni lançar a tese se­ gundo a qual o homem tem um diapasão subsensorial espe­ cial, que indica as reações fisiológicas não-conscientizáveis e estímulos não sensíveis. À medida da evolução inversa da doença, os limiares das sensações subjetivas se restringem paulatinamente e no fim das contas começam a coincidir. As pesquisas do diapasão subsensorial, realizadas por Guershuni, são de grande importância teórica e prática para o diagnóstico de algumas formas do estado inibitório do córtex. Estudo da sensibilidade relativa (dijerencial) Até agora nós nos detivemos na mudança da sensibilida­ de absoluta dos nossos órgãos dos sentidos: dos limiares su­ periores e inferiores das sensações. Existe, não obstante, a sensibilidade relativa (diferencial), que também pode ser dida embora a medição apresente grandes dificuldades.: Se nos encontrarmos num quarto escuro, ilumiri uma vela acesa, o acréscimo de outra vela idêhticô ,f' mente percebido; neste caso a iluminação ■: diferença de claridade será facilmente I rio ocorre se estivermos numa muitas lâmpadas acesas; neste case o acréscimo de outra vela de 100 velas (neste caso a i e sua mudança permanecerá O mesmo podemos dizer lêncio absoluto distinguimos perfeitátnente um scrrjn mínimo; num lugar barulhento, esse mesmo som será imperceptível. >:: 27

Isto significa que a sensibilidade relativa (ou diferencial) pode expressar-se em medidas diferentes das que se empre­ gam na sensibilidade absoluta. Se a sensibilidade absoluta se expressa na intensidade de uma excitação mínima que gera a primeira sensação, a sensibilidade relativa se manifesta no acréscimo relativo ao fundo inicial, acréscimo esse que é su­ ficiente para que o sujeito perceba a sua mudança. É essencial que essa sensibilidade relativa, que pela pri­ meira vez se torna distinguível, se manifeste em números va­ riados para os diversos órgãos dos sentidos: para as sensa­ ções visuais é bastante acrescentar 1/100 da iluminação an­ terior para que a mudança desta seja perceptível; para o ou­ vido esse acréscimo relativo deve superar em 1/10 o fundo sonoro inicial; para o tato é bastante aumentar em 1/30 a força do contato inicial. Os pesquisadores tentaram traduzir essa lei numa fór­ mula matemática única; esta foi encontrada pelos pesquisa-* dores (os psicofisiologistas alemães Weber e Fechner) e foi expressa na fórmula: P E = -----Др

(1)

onde E é o índice de sensibilidade variável, P é o fundo ini­ cial e Др é a magnitude da adição a essa sensibilidade inicial, magnitude que é suficiente para que se manifeste a sensação de mudança. É característico que a magnitude desse acréscimo (Др) varia para diferentes modalidades que se expressam na fórmula: Др ------ = К P

(2)

A possibilidade de medição da sensibilidade relativa é considerada pelos psicólogos como uma grande conquista da ciência, pois verificou-se que emoções que pareceriam muito subjetivas como o surgimento de diferenças no fundo inicial das sensações, são acessíveis à análise quantitativa. Foi por isto que o psicofisiologista Fechner supôs que só esse aumen­ to muito pouco perceptível da excitação (ou o limiar dife-

ливня

rencial da sensação) deve ser considerado uma unidade de sensação. Nas suas pesquisas posteriores ele chegou à con­ clusão de que esse limiar relativo (diferencial) pode ser tra­ duzido em fórmula matemática segundo a qual a magnitude da sensação é proporcional ao logaritmo da intensidade da excitação ativa. Essa fórmula, que foi denominada lei de Fechner, foi urna das primeiras leis exatas formuladas na Ciência Psicológica. A regra de Weber-Fechner (as fórmulas 1 e 2) é ade­ quada apenas numa zona média (embora bastante ampla) de excitações. Nos casos em que a intensidade do estímulo é muito baixa (e se aproxima do limiar) ou muito alta, a sensibilidade relativa é bem mais aproximada. Este fato su­ gere urna certa condicionalidade biológica dos limiares rela­ tivos e exige ainda explicação complementar.

Variação da sensibilidade (adaptação e sensibilização) Seria erróneo pensar que tanto a sensibilidade relativa como a absoluta dos nossos órgãos dos sentidos conti­ nuam invariáveis e seus limiares se manifestam em nú­ meros permanentes. Como mostraram as pesquisas, a sensibilidade dos nossos órgãos dos sentidos pode variar em limites muito grandes. Essa variação da sensibilidade . depende tanto das condições do meio exterior como . de urna s где de condições quí­ interiores (fisiológicas e cofisii" micas das orientações do sujeito, etc. Distinguem-se dúos formas básicas de mudança da sen­ sibilidade, entre as quais uma depende das condições do meio e é chamada adaptação, e a outra das condições do estado do organismo e é denominada sensibilização. Examinemos separadamente cada forma de mudança da sensibilidade. Adaptação. Sabe-se que na escuridão a nossa visão se aguça e sua sensibilidade diminui sob iluminação forte. Isto nós percebemos quando passamos de um quarto escuro para um claro ou de um ambiente muito iluminado para um es­ curo. No primeiro caso, os nossos olhos começam a sentir 29

uma dor lancinante, ficamos “cegos” por um instante e é necessário algum tempo para que os olhos se adaptem à cla­ ridade intensa. No segundo caso, observa-se um fenômeno inverso. Quando passamos de um ambiente intensamente ilu­ minado ou de um recinto aberto com luz solar para um re­ cinto escuro, inicialmente não enxergamos nada e precisamos de uns 20-30 minutos para nos orientarmos bem na escuridão. Isto mostra que, dependendo da situação ambiente (da iluminação), a sensibilidade visual do homem muda brusca­ mente. Como mostraram as pesquisas, essa mudança é mui­ to grande e a sensibilidade dos olhos se aguça em 200 mil vezes quando ele passa da iluminação intensa para o escuro! A fisiologia conhece bem os mecanismos que servem de base a essa grande mudança da sensibilidade. No funciona­ mento dos olhos há vários mecanismos específicos dessa na­ tureza.'Alguns destes, ao distinguirem a claridade, fazem mu­ dar a faixa de luz da pupila (a pupila se expande na escuri­ dão e se restringe na claridade, podendo mudar sua faixa de luz em 17 vezes), regulando, desse modo, o fluxo global de luz. Outro mecanismo consiste em que, na retina, ocorre um deslocamento do pigmento, que é uma espécie de obstá­ culo protetor contra a penetração excessiva de raios lumino­ sos na camada sensível. É de igual importância para o au­ mento da sensibilidade da retina na escuridão o processo de restabelecimento da púrpura visual, essa importantíssima subs­ tância fotossensível, que faz parte na composição das células sensíveis à luz. Como mostraram estudos especiais (P. G. Snyakh), a retina do olho possui ainda um mecanismo es­ pecial de “mobilização” de um número máximo de elemen­ tos fotossensíveis ativos na escuridão e de “desmobilização” ou inclusão de um número considerável de elementos fotos­ sensíveis na claridade; por este motivo, varia a sensibilidade da retina em horas diferentes do dia e da noite e inclusive em períodos diferentes do ano. Por último, ocorrem na reti­ na importantes reorganizações funcionais que consistem em que, sob as condições de claridade (de dia) entram em ação aparelhos fotossensíveis menos sensíveis — “pequenas matrazes” — que, não obstante, são capazes de distinguir as cores. Continuam ativos outros aparelhos da retina — os bacilos, que possuem maior sensibilidade mas não podem discriminar as tonalidades das cores; é exatamente a isto que

se deve o fato de o homem deixar de distinguir as cores no crepúsculo, embora sua visão se aguce. Paralelamente aos mecanismos periféricos de mudan­ ça da sensibilidade aqui descritos, existem mecanismos cen­ trais que permitem regular a agudez da sensibilidade depen­ dendo das condições ambientais. Situam-se entre eles os me­ canismos que mudam o tônus do córtex sob a influência dos impulsos que a estes chegam através dos filamentos da for­ mação reticular. As referidas mudanças da sensibilidade, que dependem das condições do meio e são chamadas de adaptação dos !órgãos dos sentidos às condições ambientes, existem também no campo do olfato, do tato e do paladar (mudança da sen­ sibilidade auditiva em condições de silêncio e ruído). A mudança da sensibilidade, que ocorre segundo o tipo de adaptação, não é imediata, requer certo tempo e muda suas características temporais. ■ , O importante é que essas características temporais são diferentes para os diversos órgãos dos sentidos. Sabemos perfeitamente que para a visão adquirir a necessária sensibi­ lidade no recinto escuro, deve passar-se cerca de 30 minu­ tos e só após isto o homem adquire a capacidade de orien­ tar-se bem na escuridão. O processo de adaptação dos ór­ gãos auditivos é bem mais rápido. O ouvido do homem se adapta ao fundo ambiente em 15 segundos. Com essa mesma rapidez, ocorre a mudança da sensibilidade no tato (um con­ tato fraco com a pele deixa de ser percebido em alguns segundos). São bem conhecidos os fenômenos de adaptação ao ca­ lor (adaptação à mudança de temperatura); esses fenômenos, entretanto, se manifestam com nitidez apenas numa faixa média, quase não ocorrendo adaptação ao frio intenso ou . ao calor forte assim como às excitações de dor. São conheci­ dos tamb'ém os fenômenos de adaptação aos cheiros. Nestes casos, a mudança da sensibilidade ocorre lentamente: o chei­ ro de cânfora deixa de ser sensível em 1-2 minutos. Ê ca. racterístico que a adaptação aos cheiros intensos que provo­ cam excitáções de dor (ou incluem o componente trigemi­ nal) não ocorre de modo algum. A adaptação é um dos tipos mais importantes da sen­ sibilidade, que sugere uma grande plasticidade do organismo em seu processo de adaptação às condições do meio.

Sensibilização. O processo de sensibilização difere do processo de adaptação em dois sentidos. Por um lado, se no processo de adaptação a sensibilidade muda em ambos os sentidos, aumentando e reduzindo a sua agudez, já no pro­ cesso de sensibilização muda apenas no sentido do aumento da agudez. Por outro lado, se no processo de adaptação as mudanças de sensibilidade dependem das condições do meio ambiente, no processo de sensibilização elas dependem pre­ dominantemente da mudança do próprio organismo — de condições fisiológicas ou psicológicas. Distinguem-se dois aspectos básicos do aumento da sensibilidade conforme o tipo de sensibilização: um desses aspectos tem caráter longo e permanente e depende predo­ minantemente de mudanças estáveis que ocorrem no orga­ nismo; o segundo tem caráter provisório e depende de in­ fluências extraordinárias sobre o estado do sujeito — de influências fisiológicas ou psicológicas. Entre o primeiro grupo de condições que mudam a sen­ sibilidade situam-se a idade, as condições tipológicas, os deslocamentos endocrinos e o estado geral do sujeito relacio­ nado com a estafa. A idade do sujeito está nitidamente relacionada com a mudança da sensibilidade. As pesquisas mostraram que a su­ tileza da sensibilidade dos órgãos dos sentidos aumenta com a idade, atingindo o seu ponto máximo na faixa de 20-30 anos para, posteriormente, decair em termos graduais. Esse processo reflete o dinamismo geral do funcionamento do sis­ tema nervoso do organismo. As peculiaridades substanciais do funcionamento dos ór­ gãos dos sentidos dependem do tipo de sistema nervoso do sujeito. Ê sabido que pessoas dotadas de um forte sistema nervoso apresentam grande resistência e estabilidade, ao pas­ so que as pessoas dotadas de um sistema nervoso fraco são dotadas de menor resistência e maior sensibilidade (В. M. Teplov). É de grande importância para a sensibilidade a balança endócrina do organismo. É sabido que durante a gravidez a capacidade olfativa pode aguçar-se acentuadamente, ao pas­ so que a agudez da sensibilidade visual e auditiva decresce. Devemos, evidentemente, mencionar os fenômenos essen­ ciais do aguçamento da sensibilidade, que se verificam duran-

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te alguns disturbios endócrinos, como, por exetrijSlo, na hlperfunção da tireóide. Mudanças importantes da sensibilidade podem ocorrer, por último, em estado de estoja. A estafa, que provoca esta­ dos inibitórios (fásicos) do córtex, pode provocar inicial­ mente o agravamento da sensibilidade para, em seguida, com a evolução desse agravamento passar à redução da sensibilidade. É necessário indicar ainda que as mudanças longas e estacionárias da sensibilidade podem começar durante o es­ tado asténico do sistema nervoso conhecido como “debilida­ de excitadora”, por um lado, e das manifestações clássicas de histerismo, por outro. Dessas mudanças estacionárias da sensibilidade depen­ dem as formas de mudança (de agravamento) da sensibilida­ de, provocadas por fatores extraordinários e que, via de re­ gra, apresentam caráter relativamente breve. Entre os fatores que provocam a sensibilidade extra si­ tuam-se antes de tudo as influências farmacológicos. É sabi­ do que existem substâncias que provocam o aguçamento da sensibilidade. Entre tais fatores situa-se, por exemplo, a adrenalina, cuja ingestão provoca excitação do sistema ner­ voso vegetativo e através da formação reticular pode sus­ citar um nítido aguçamento da sensibilidade. Ação análoga, que aguça a sensibilidade dos receptores, pode ser provocada por substâncias como fenalina (bengidrina) e várias outras substâncias. Ao contrário, as substâncias cuja ingestão leva a uma nítida queda da sensibilidade; entre estas situa-se a pilocarpina. Nos últimos decénios, a aplicação de meios farmacológi­ cos como vias de regulação do funcionamento óo sistema nervoso, particularmente de mudança da sensibilidade, acumu­ lou grande experiência e hoje podemos mencionar vários pre­ parados que exercem grande influência sobre a regulação do funcionamento dos órgãos dos sentidos. A ação farmacológica não é o único meio de provocar a sensibilização extra das sensações. O segundo meio é a inte­ ração das sensações. Já lembramos que a ação sobre o órgão da percepção pode provocar aumento da sensibilidade de ou­ tro órgão. Assim, o acadêmico P. P. Lazarev mostrou que, se num auditório ecoa um som demorado, a inclusão da luz faz com que a produção do tom comece a parecer maiS intensiva, 33

Ao contrário, a ação de um ruído forte pode provocar a re­ dução da sensibilidade à luz. Estímulos bastante fracos de analisador idêntico podem possuir capacidade sensibilizadora para mudar a sensibilidade. Assim, se a iluminação da peri­ feria da retina por luz fraca pode aumentar a sensibilidade de outras áreas da retina, a iluminação de um olho aumenta a sensibilidade do outro olho. Por último, foi demonstrado nu­ ma série de experimentos que a excitação sonora e, às vezes, a excitação da pele podem provocar aumento da sensibilida­ de visual. Todos esses experimentos não só mostram a estreita in­ teração de formas particulares de sensação como também abrem caminho para um aumento mais complexo da sensi­ bilidade por reflexo condicionado. O famoso fisiologista so­ viético A. O. Dolin mostrou numa série de experimentos essa possibilidade. Verificou-se que se dermos inicialmente ao sujeito um som metronômico, este não exerce grande influência sobre a mudança da sensibilidade à luz; mas se combinarmos este som com a luz dos olhos várias vezes seguidas, dentro de certo tempo a simples aplicação do som provocará uma que­ da da sensibilidade. É digno de nota que semelhantes mudanças da sensibili­ dade podem ser provocadas se usarmos uma palavra qual­ quer como estímulo condicionado. Esse efeito é sobretudo nítido quando, antes de testar a sensibilidade do olho, pro­ nuncia-se uma palavra que tivera sentido de luz no teste an­ terior do sujeito. Dolin mostrou em seus experimentos que mudança idêntica da sensibilidade ocorria quando ante a me­ dição da sensibilidade o sujeito pronunciava a palavra “dra­ ma”, não ocorrendo esse efeito quando o sujeito pronuncia­ va uma palavra de som aproximado mas de significado dife­ rente como, por exemplo, a palavra “trama”. Todos esses experimentos mostram como são grandes as possibilidades através das quais podemos provocar mudança da sensibilidade, aplicando procedimentos fisiológicos (inclu­ sive o reflexo condicionado). Mudanças consideráveis da sensibilidade podem ser pro­ vocadas por via psicológica, mudando-se os interesses ou os “objetivos do sujeito”. Já sabemos que o animal é especialmente sensível a ações substanciais de importância biológica. O mesmo fe-

iiômeno podemos verificar no homem se, sem mudar as par­ ticularidades físicas dos estímulos que atuam sobre ele, nós lhe mudarmos o significado através da instrução verbal. Podemos citar apenas alguns exemplos de como a mu­ dança do significado do estímulo pode aumentar substan­ cialmente a sensibilidade (ou reduzir os limiares absolutos •da percepção da excitação). Podem servir de exemplo ilustrativo os testes de labo­ ratório do conhecido psicofisiologista soviético G. V. Gueishuni. Nesses testes propuseram-se ao sujeito dois quadra­ dos iluminados entre os quais havia um ponto luminoso fra­ co (imperceptível). Em condições habituais o sujeito não percebia esse ponto. O ponto luminoso fraco começava ser percebido pelo sujeito quando era reforçado por um estí­ mulo de dor, enquanto a outra combinação dos dois qua­ drados iluminados entre os quais não havia esse ponto lumi­ noso, não era reforçada por nenhum estímulo e, conseqiientemente, as excitações luminosas subliminares pela inten­ sidade se tomavam o único indício pelo qual era possível dis­ tinguir a combinação acompanhada da dor da combinação indiferente. É fácil perceber que esse experimento mostra de maneira patente a possibilidade de aguçar a sensibilidade dando-se à excitação subliminar fraca o valor de sinal. Elevação análoga da sensibilidade pode ser obtida, en­ tretanto, por meio de uma simples instrução verbal, na qual se dá o valor de “sinal” ao indício fracamente distinguido. Neste sentido os psicólogos soviéticos A. V. Zaporojets e T. V. Endovitskaya fizeram um experimento interessante com crianças de idade pré-escolar e estudaram a maneira pela qual a atribuição de significado a um certo estímulo aumen­ tada agudez da percepção visual. Foram tomados como mé­ todos de avaliação da agudeza da percepção visual círculos não fechados, nos quais a ruptura se encontra ora em cima, ora embaixo (os chamados círculos de Lamdoldt, aplicados pelos oculistas). Num experimento propõe-se às crianças avaliar a posição da ruptura apertando um botão se a ruptu­ ra estiver situada embaixo, apertando outro botão se a rup­ tura estiver na parte superior. Noutro experimento a avalia­ ção da posição da ruptura era incluída num jogo: colocavase o círculo de Lamdoldt sobre portões dos quais saía um automóvel de brinquedo quando a avaliação da posição da ruptura era correta. O experimento mostrou que, se a ínsJí

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truçâo verbal que dava à posição da ruptura o valor de sinal ainda não influenciava a agudeza da sensibilidade visual das crianças pequenas, ela exercia influência substancial nas crian­ ças em idade igual e superior a 5-6 anos. As crianças que, sob as condições do teste indiferente distinguiam a posição da ruptura do círculos de Lamdoldt apenas a uma distância de 200-300cm, captavam a posição dessa ruptura a uma dis­ tância de 310-320 cm quando se dava a essa posição valor de sinal correspondente. Esses experimentos, que mostram o quanto a atribuição de valor de sinal ao estímulo pode aguçar a sensibilidade, são de grande importância psicológica, constituindo um exem­ plo da extraordinária plasticidade que existe no funciona­ mento dos órgãos dos nossos sentidos e varia dependendo da importância do estímulo. O aumento da sutileza da sensibilidade sob a influên­ cia do significado do indício perceptível pode ocorrer tanto na sensibilidade absoluta quanto na relativa. Sabc-se que a discriminação dos matizes da cor, das mudanças significan­ tes do tom ou das mínimas variações gustativas pode tomar­ se acentuadamente aguda como resultado de atividade pro­ fissional. Foi estabelecido que os pintores podem distinguir de 50 a 60 matizes do negro; os fundidores de aço distinguem os matizes mais sutis do fluxo incandescente de metal, que indicam mudanças mínimas de impurezas estranhas, cuja dis­ tinção é inacessível a observador de fora. É sabido que su­ tileza pode atingir a discriminação de nuances gustativas en­ tre os degustadores, que são capazes de determinar a marca do vinho ou do tabaco pelos mínimos matizes da degusta­ ção, chegando às vezes até a dizer de que lado do desfiladei­ ro foi cultivada a uva usada para o preparo de um deter­ minado vinho. Por último, sabe-se a que sutileza pode che­ gar a capacidade dos músicos para distinguir os sons; eles se tomam capazes de captar variações de tons absolutamente imperceptíveis para o ouvinte comum. Todos esses fatos demonstram que, sob as condições do desenvolvimento de formas complexas de atividade conscien­ te, a agudeza da sensibilidade absoluta e da diferencial pode mudar substancialmente, e que a inclusão desse ou daquele indício na atividade consciente do homem pode, em limites consideráveis, mudar a agudeza dessa sensibilidade.

II Percepção

A atividade perceptiva do homem. Características gerais

A té agora examinamos as formas mais elementares de reflexo da realidade, os processos através dos quais o homem reflete indícios particulares do mundo exterior ou os sinais que indicam o estado do seu organismo.

Vimos que esses processos, que sâo as fontes básicas da informação que o homem recebe dos meios exterior e in­ terior, são executados por órgãos dos sentidos pertencentes a modalidades distintas; esses órgãos receptores pertencem aos grupos dos intero, próprio e extero-receptores, dividin­ do-se o último grupo, por sua vez, em dois subgrupos de re­ ceptores de contato (tato, paladar) e receptores de distân­ cia (olfato, visão e audição). Vimos ainda que os proces­ sos de percepção dos indícios do mundo exterior e do meio interno podem distribuir-se em níveis variados e apresentai complexidade diversa. À forma protopática estruturalraente 37

mais elementar de sensibilidade pertencem antes de tudo o olfato e o paladar, bem como as formas mais simples de sensibilidade tátil; à forma de sensibilidade epicrítica estru­ turalmente mais complexa pertencem a visão, a audição e os tipos mais complexos de atividade tátil. Vimos, por último, que os processos de reflexo de in­ dícios particulares que atuam sobre o homem a partir do meio exterior ou interior ou os processos das sensações po­ dem ser objetivamente medidos; tomamos conhecimento dos meios de medição da sensibilidade absoluta e relativa c dos fenômenos da variação dessa sensibilidade. Nada do que falamos no capítulo anterior foi além dos limites do estudo das formas mais elementares de reflexo ou dos limites do estudo de elementos particulares de reflexo do mundo exterior ou interior. Mas os processos reais de re­ flexos do mundo exterior vão muito além dos limites das for­ mas mais elementares. O homem não vive em um mundo de pontos luminosos ou coloridos isolados, de sons ou conta­ tos, mas em um mundo de coisas, objetos e formas, em um mundo de situações complexas; independentemente de ele perceber as coisas que o cercam em casa, na rua, as árvores e a relva dos bosques, as pessoas com quem se comunica, os quadros que examina e os livros que lê, ele está invariavel­ mente em contato não com sensações isoladas mas com ima­ gens inteiras; o reflexo dessas imagens ultrapassa os limites das sensações isoladas, baseia-se no trabalho conjunto dos órgãos dos sentidos, na síntese de sensações isoladas e nos complexos sistemas conjuntos. Essa síntese pode ocorrer tan­ to nos limites de uma modalidade (ao analisarmos um qua­ dro, reunimos impressões visuais isoladas numa imagem inte­ gral) como nos limites de várias modalidades (ao perceber­ mos uma laranja, unimos de fato impressões visuais, táteis e gustativas e acrescentamos os nossos conhecimentos a respei­ to da fruta). Somente como resultado dessa unificação é que transformamos sensações isoladas numa percepçâo integral, passamos do reflexo de indícios isolados ao reflexo de obje­ tos ou situações inteiros. Seria profundamente erróneo pensar que esse processo de transição de sensações relativamente simples a sensações complexas é um simples processo de soma de sensações iso-

lada ou, como costumam dizer os psicólogos, o resultado de simples “associações” de indícios isolados. Em realidade, o processo de percepção (ou o reflexo de objetos inteiros ou situações) é bem mais complexo. Esse processo requer que se discriminem do conjunto de indícios atuantes (cor, forma, propriedades táteis, peso, sa­ bor, etc.) os indícios básicos determinantes com a abstra­ ção simultânea de indícios inexistentes. Requer a unificação do grupo dos principais indícios e o cotejo do conjunto de indícios percebidos e despercebidos com os conhecimentos an­ teriores do objeto. Se no processo dessa comparação a hi­ pótese do objeto proposto coincidir com a informação que chega, ocorrerá a identificação do objeto e o processo de per­ cepção deste se concluirá; se como resultado dessa compa­ ração não ocorrer a coincidência da hipótese com a informa­ ção que realmente chega ao sujeito, a procura da solução adequada continuará enquanto o sujeito não encontrá-la, nou­ tros termos, enquanto ele não identificar o objeto ou não incluí-lo em determinada categoria. Na percepção de objetos conhecidos (um copo, uma gar­ rafa, uma mesa), esse processo de identificação do objeto ocorre com muita rapidez, bastando ao homem unir dois-três indícios perceptíveis para chegar à solução adequada. Na percepção de objetos novos ou desconhecidos, o processo de sua identificação é bem mais complexo e assume formas bem mais desenvolvidas. Imaginemos que o homem examina um dispositivo his­ tológico desconhecido para a obtenção de delicadíssimos cor­ tes de tecidos; o micrótomo. Inicialmente ele percebe uma complexa construção instalada numa pesada base de ferro fundido, em seguida distingue partes metálicas isoladas e pode ter a súbita impressão de tratar-se de uma balança. No entanto ele não vê os pratos indispensáveis à balança ou as escalas que representam o peso. Ele continua a examinar esse objeto desconhecido até que seus olhos distinguem a su­ perfície plana do aparelho, e uma lâmina muito afiada. En­ tão ele pode lembrar-se de que viu algo semelhante numa mercearia e que esse aparelho era empregado para cortar presunto ou salame em fatias finas. Somente depois disto a lâmina aguda, contígua à superfície metálica, toma-se indí­ cio determinante e o sujeito começa a formar a idéia de que 39

o objeto percebido tem relação cora os instrumentos de cor­ te cujas hélices micrmétricas parecem assegurar uma regu­ lação precisa da espessura dos cortes. Deste modo, a percepção plena do objeto surge como resultado de um com­ plexo trabalho de análises e síntese, que ressalta os indícios essenciais e inibe os indícios secundários, combinando os de­ talhes percebidos num todo apreendido. É a esse processo complexo de reflexo de objetos ou situações inteiras que em Psicologia se chama sensação. Vê-se facilmente que a sensação é o processo complexo e ativo que às vezes requer um considerável trabalho de análise e síntese. Eis porque a percepção, num grau ainda menor do que a sensação, pode ser considerada reflexo passivo da realida­ de, registro passivo da informação que chega ao organismo. Esse caráter complexo e ativo da percepção manifesta­ se em toda uma série de indícios que requerem uma análise especial. O processo de informação não é, de modo algum, o resultado da simples excitação dos órgãos dos sentidos e da simples chegada ao córtex cerebral das excitações que sur­ gem nos receptores periféricos (a pele, os olhos). No pro­ cesso de percepção estão sempre incluídos componentes mo­ tores em forma de apalpação do objeto, de movimento dos olhos que distingue os pontos mais informativos, de emis­ são de sons correspondentes que desempenham papel essen­ cial no estabelecimento das peculiaridades mais importantes do fluxo sonoro. Ainda abordaremos essa tese básica quando analisarmos os diversos tipos de percepção. Por isso é mais correto considerar o processo de percepção como atividade receptora do sujeito. A seguir o processo de percepção está intimamente liga­ do à reanimação dos remanescentes da experiência anterior, à comparação da informação que chega ao sujeito com as concepções anteriores, ao cotejo das ações atuais com as con­ cepções do passado, com a discriminação dos indícios essen­ ciais, com a criação de hipóteses do valor suposto da in­ formação que a ele chega e com a sintetização dos indí­ cios perceptíveis em totalidades e com a (tomada de deci­ são) a respeito da categoria a que pertence o objeto per-

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ceptível. Noutros termos, a atividade receptora do sujeito se assemelha aos processos de pensamento direto e essa seme­ lhança será tanto maior quanto mais novo e mais complexo for o objeto perceptível. Por isto é natural que a atividade perceptiva quase nunca se limita a uma modalidade mas compreende o resul­ tado do trabalho conjunto dos vários órgãos dos sentidos (analisadores) em cujo processo formaram-se as concepções do sujeito. Por último é essencial, ainda, a circunstância de que o processo de percepção do objeto nunca se realiza em nível elementar e sua composição tem sempre como inte­ grante o nível superior de atividade psíquica, particularmen­ te a fala (discurso). O homem não contempla simplesmente os objetos ou lhes registra passivamente os indícios. Ao discriminar e reu­ nir os indícios essenciais, ele sempre designa pela palavra os objetos perceptíveis, nomeando-os, e deste modo apreendelhes mais a fundo as propriedades e as atribui a determina­ das categorias. Ao perceber o relógio e nomeá-lo mental­ mente com essa palavra, ele abstrai indícios secundários como a cor, o tamanho, a forma e põe em destaque o traço funda­ mental representado no nome relógio, destaca a função de indicar o tempo (as horas); ao mesmo tempo, ele situa o objeto perceptível em determinada categoria, separa-о de ou­ tros objetos exteriormente semelhantes mas pertencentes a outras categorias (o telefone, por exemplo, que também tem mostrador com os respectivos números mas sua função é in­ teiramente distinta). Tudo isso torna a confirmar a tese se­ gundo a qual a atividade receptora do sujeito pode, pela es­ trutura psicológica, aproximar-se do pensamento direto. O ca­ ráter complexo e ativo da atividade receptora do homem leva a uma série de particularidades da percepção humana que pertencem, no mesmo grau, a todas as formas dessa per­ cepção, O primeiro traço peculiar da percepção consiste em seu caráter ativo e imediato. Como já lembramos, a percepção do homem é mediada pelos seus conhecimentos anteriores, decor­ rentes da experiência anterior e constitui uma complexa ativi­ dade de análise e síntese que compreende a criação da hipó­ tese do caráter do objeto perceptível e a decisão acerca da correspondência do objeto perceptível a essa hipótese. 41

A segunda peculiaridade da percepção do homem consis­ te em seu caráter material e genérico. Como já indicamos, o homem percebe não só o conjunto de indícios que lhe che­ gam mas também analisa esse conjunto como um objeto de­ terminado, não se limitando a estabelecer os traços indicado­ res desse objeto mas sempre atribuindo-o a certa categoria, considerando-o “relógio”, “mesa”, “edifício”, "animal”, etc. Esse caráter generalizado da percepção evolui com a idade e o desenvolvimento mental, tomando-se cada vez mais níti­ do e refletindo o objeto perceptível com profundidade cada vez maior, englobando todo o grande número de traços essen­ ciais que caracterizam o objeto e as conexões e relações cm que este entra. A terceira peculiaridade da percepção humana consiste em sua constância e correção (ortoscopicidade). A experiên­ cia com objetos nos dá uma informação bastante precisa das suas propriedades fundamentais; sabemos que o prato é re­ dondo, que a caixa de fósforo é retangular, que o lírio é branco, o rato é pequeno e o cavalo é grande. Esse conhecimento anterior do objeto incorpora-se à sua percepção direta e torna esta mais constante e mais correta (ortoscópica); compreende certa correção às peculiaridades que a percepção do objeto pode adquirir em condições va­ riáveis. É fato conhecido que se girarmos um prato para o qual o sujeito está olhando, a marca desse objeto na retina muda­ rá, assumindo paulatinamente um caráter oval ou até de um retângulo alongado; mas continuamos por muito tempo a per­ ceber a forma que muda a posição do prato como "redondo” fazendo a respectiva correção do conhecimento real da forma desse objeto. O mesmo ocorre na percepção da cor. É sabido que um pedaço de carvão colocado num ambiente de iluminação cla­ ra, reflete mais raios luminosos do que um pedaço de papel branco ao crepúsculo. No entanto continuamos a perceber o carvão como negro, corrigindo imediatamente a impressão imediata que muda em decorrência da situação. Em suma, a última peculiaridade da percepção humana consiste em set ela móvel e dirigível. O processo de atividade perceptiva é sempre determi­ nado pela tarefa que se coloca diante do sujeito. Ao exanii-

nar um quadro, visando a determinar o método de trabalho do pintor, o homem ignora o conteúdo e destaca a maneira da distribuição da tinta no quadro; propondo-se a tarefa de determinar o tempo a que pertence o quadro, ele destaca as maneiras do desenho, a roupa dos personagens representados, a forma arquitetônica dos edifícios; tentando analisar a ima­ gem do quadro ou o acontecimento nele representado, ele amplia o círculo de informações que vai recebendo e analisa todo o quadro em conjunto; ao contrário, propondo-se a ta­ refa de captar a mímica das pessoas representadas no qua­ dro, ele restringe aparentemente o volume de sua percepção e se concentra em detalhes isolados do quadro. É natural que esse determinismo da percepção pela ta­ refa que se coloca diante do homem ou do seu objetivo tor­ na a percepção elástica e dirigível, e essas peculiaridades da percepção humana dependem altamente do papel que na ati­ vidade receptora desempenha a experiência prática do su­ jeito e o seu discurso interior, que permite formular e mudar as tarefas. É perfeitamente compreensível que tudo isto distingue essencialmente a atividade receptora do homem da percepção do animal, que, apesar de. toda a sua mobilidade, carece das qualidades dirigíveis e arbitrárias que caracterizam a ativida­ de perceptiva consciente do homem. Todas as referidas peculiaridades da atividade receptora do homem permitem compreender melhor as condições das quais ela depende. É natural que a percepção correta dos complexos obje­ tos não depende apenas da precisão do funcionamento dos nossos órgãos dos sentidos mas também de várias outras con­ dições essenciais. Situam-se entre estas a experiência ante­ rior do sujeito e a amplitude de profundidade das suas con­ cepções, a tarefa a que ele se propõe ao analisar determina­ do objeto, o caráter ativo, coerente e crítico da sua atividade receptora, a manutenção dos movimentos ativos que inte­ gram a atividade receptora, a capacidade de reprimir a tempo as hipóteses do significado do objeto perceptível se estas não corresponderem à informação afluente. A complexidade do desempenho perceptivo ativo permite explicar também as falhas que se verificam na percepção da 43

criança nas etapas tenras do desenvolvimento bem como as peculiaridades do distúrbio da percepção que podem surgir nos estados patológicos do cérebro. Essas peculiaridades po­ dem assumir caráter variado dependendo do elo da atividade receptora insuficientemente desenvolvido ou perturbado. Assim, a insuficiente agudez da sensibilidade (visual ou auditiva) pode acarretar erros de percepção que, não obstan­ te. podem ser compensados com êxito com o emprego de aparelhos de reforço da sensibilidade ou pela concentração da atenção do sujeito. As falhab, relacionadas com a distorção da síntese dos indícios perceptíveis (verificadas na afecção das zonas ter­ ciárias e sintéticas do córtex cerebral), podem levar a que alguns indícios do objeto visível continuem a ser bem perce­ bidos enquanto o sujeito se mostra incapaz de perceber o objeto no conjunto e é forçado a fazer angustiantes conjetu­ ras tentando descobrir o que pode significar a combinação dos indícios por ele percebidos. É inteiramente distinto o caráter das falhas da percepção durante a perturbação do processo de percepção ativo. Nes­ tes casos, todo o complexo processo de discriminação dos in­ dícios essenciais do objeto e a comparação da hipótese que surge com a informação que realmente chega pode ser per­ turbado e o homem pode limitar-se a fazer suposições impul­ sivas do significado do objeto perceptível com base nos indí­ cios particulares deste e, às vezes, com base em detalhes mais nítidos ou que mais saltam à vista, sem comparar a sua hi­ pótese com a informação que recebe nem corrigir as suas conjeturas erróneas. Por último, podem adquirir novamente outro caráter as falhas da percepção nos casos em que o objetivo do homem adquire inércia patológica e ele começa a perceber não o que corresponde às peculiaridades do objeto que atua sobre ele quanto o que ele espera ver e que corresponde aos seus obje­ tivos inertes preconcebidos. Algumas fprmas de engano da percepção, que ocorrem em determinados grupos de doentes com patologia cerebral, adquirem justamente esse caráter. Analisamos as teses mais gerais da psicologia da ativida­ de perceptiva do homem e agora podemos passar ao exa­ me de algumas formas isoladas de percepção humana.

Formas simples de percepção tátil Como já dissemos o tato é uma forma de sensibilida­ de. que compreende tanto componentes elementares (protopáticos) quanto complexos (epicríticos). Entre os primeiros situam-se a sensação de frio e calor e a sensação de dor, situando-se entre os últimos as sensa­ ções propriamente táteis (contatos e pressões) e os tipos de sensibilidade profunda e sinestésica que fazem parte da com­ posição das sensações proprioceptivas. Os aparelhos periféricos da sensação de calor e frio são os pequenos “bulbos” espalhados pelas camadas da pele. O aparelho das sensações de dor é constituído pelas extremi­ dades livres dos filamentos nervosos finos, que percebem os sinais de dor; o aparelho periférico das sensações de contato e pressão é constituído por formações nervosas sul generis conhecidas como corpúsculos de Maysner, corpús­ culos de Fater-Paccini, também distribuídas nas camadas da pele. Os receptores da sensibilidade profunda (propriocepti­ vas) são os mesmos aparelhos situados na superfície das articulações, dos ligamentos e no âmago dos músculos. ■; Os aparelhos receptores que acabamos de enumerar estão distribuídos na superfície da pele de maneira desigual e a densidade de sua distribuição tem base biológica: quanto mais sutil é a sensibilidade que se requer do trabalho de um órgão, tanto maior é a densidade com que se distribuem em sua su­ perfície os respectivos componentes receptores e tanto mais baixos são os limiares da percepção que a eles chegam, nou­ tros termos, tanto maior é a sua sensibilidade. A tabela 2 apresenta um quadro da freqiiêocia média com a qual se encontram os respectivos receptores em 1 milímetro quadrado de pele de determinada região do corpo. Verificamos que nas pontas dos dedos há freqiiéncia má­ xima e um número relativamente grande de receptores de dor, ao passo que não há um só receptor de frio e calor. Quadro diferente se observa na pele do antebraço que, como se sabe, não tem participação ativa no apalpamento: aqui o número de elementos táteis por mm2 diminui, aumentando o número 45

de receptores de dor, calor e frio. O mesmo se verifica na pele das costas. TABELA 2 Número de diversos receptores da sensibilidade da pele e n lmm2 de diferentes partes da pele

Ponías dos dedos Do antebraço Costas Lingua

de dor

táteis

60 203

120 15 +

de frió

0 6 _L

de calor

0 0.4 + + (Segundo Anancv.)

Nota-se que, se na ponta dos dedos, o número de aparelhos periféricos por mm2 de pele é igual a 120, este é de ape­ nas 14 por mm2 de pele das costas da mão, 15 de pele da palma da mão, 29 do peito, 50 da testa t 100 da ponta do nariz. Percebe-se facilmente a importância biológica dessa distribuição dos elementos táteis em diversos pontos da pele. A sutileza da sensibilidade de diferentes superficies do corpo é assegurada não só pela densidade da distribuição dos receptores periféricos ñas respectivas áreas da pele mas também pela área relativa das zonas pós-centrais do córtex cerebral, aonde chegam os filamentos originários das respec­ tivas áreas da periferia. Já dissemos que quanto raais sutil é a função dessa ou daquela área da pele, tanto maior é a área que sua projeção ocupa no córtex cerebral. Os fatos que acabamos de descrever mostram que a sensi­ bilidade da pele constitui um sistema especial, adaptado à análise tátil e sinestésica dos sinais oriundos do mundo ex­ terior e do próprio corpo. Lembremos que enquanto os im­ pulsos táteis procedentes dos receptores da pele chegam aos cornos posteriores da medula espinhal, fazem parte da com­ posição das colunas laterais desta e, mudando de rumo nos nós subcorticais, terminam no córtex da circunvolução pos­ terior central, os impulsos condutores dos sinais da sensibili-

dade profunda (proprioceptive) chegam inicialmente aos cor­ nos posteriores da medula espinhal e avançam pelas colunas laterais e, cessando nos núcleos de Holl e Burdach, chegam ao córtex da circunvolução posterior central e às suas áreas secundárias. Cabe observar que a divergência das vias con­ dutoras da sensibilidade superficial, por um lado, e da sen­ sibilidade profunda (sinestésica), por outro, explica o fato de que, durante a afecção das colunas posteriores ou dos núcleos de Holl e Burdach, mantém-se a sensibilidade super­ ficial e perturba-se simultaneamente a profunda. É justa­ mente este caso que se verifica na tabe da espinha (tabes dorsalis), na qual a afecção atinge os sistemas da sensibili­ dade profunda sem se manifestar no sistema da sensibilida­ de superficial. Merece destaque também a segunda diver­ gência substancial que é importante levar em conta por tier grande significado clínico. Isto leva à possibilidade de distanciamento entre я sen­ sibilidade tátil e a de dor, que surge nos casos dé afecção da substância parda situada ao redor do canal cía medula espinhal (siringomielia). Nestes casos, os filamentos por­ tadores dos impulsos da sensibilidade tátil podem chegar ao córtex, enquanto os filamentos que conduzem os impulsos da sensibilidade à dor se interrompem e passam para o lado Oposto. Resulta daí a manutenção da sensibilidade superficial (tátil) do doente, desaparecendo a sensibilidade à dor; o doente não percebe as queimaduras que recebe ao tocar obje­ tos quentes embora continue a sentir o contato com estes. Por último, cabe observar que os impulsos da sensibili­ dade tátil, que são conduzidos através dos filamentos sen­ síveis grossos, são percebidos mais rapidamente do que os «inais de dor que passam através de filamentos' mais finos. Esta tese é bem ilustrada pela observação atenta da seqíiência das sensações táteis e de dor que temos ao tocarmos uma chapa quente. Como já dissemos, a sensibilidade tátil é de estrutura he­ terogénea: a ela pertencem as formas mais simples de sen­ sibilidade superficial (sensação de contato e pressão) e as formas mais complexas de sensibilidade tátil como a sensa­ ção de localização do contato, a sensibilidade distintiva (sen­ sação da distância entre dois contatos em relação às áreas próximas da pele) e, por último, a sensação do sentido do 47

esticamento da pele (quando a pele do antebraço é esticada, no sentido da mão ou a partir desta) e a sensação da forma feita pelo contato de urna lámina que produz na pele urna fi­ gura de círculo, triángulo, número ou letra (esta última é freqüentemente chamada em neurologia de “sensação de Fors­ ter”). Situam-se entre as formas complexas também a sensi­ bilidade profunda (sinestésica) que permite identificar a posi­ ção em que se encontra o braço direito que se move passiva­ mente, ou dá ao braço direito a posição que se dá passiva­ mente ao esquerdo (e vice-versa). Percebe-se facilmente que as últimas modalidades de sensibilidade são de caráter espe­ cialmente complexo e de sua realização participam as com­ plexas zonas secundárias das áreas pós-centrais do córtex. Por isto, se a supressão das formas elementares de sensibi­ lidade tátil pode ocorrer com a afecção de quaisquer áreas da via tátil do lado oposto do cérebro, a perturbação das formas superiores de sensibilidade tátil com a conservação de suas formas elementares pode servir de sintoma da afec­ ção de áreas secundárias mais complexas do córtex pós-central do cérebro. Eis porque o estudo separado de diversas for­ mas de sensibilidade tátil é de grande importância para o diagnóstico tônico das afecções cerebrais. Para estudar os diferentes tipos de sensibilidade tátil ou proprioceptivas, empregam-se procedimentos simples que hoje integram sólidamente o exame neurológico dos doentes. Para estudar a sensibilidade tátil simples, toca-se uma área da pele com a ponta afiada ou rombuda de um alfinete ou de um lápis e propõe-se ao sujeito responder se sente o contato, qual o caráter deste e em que lugar ele sente a picada. ¡Numa pesquisa exata, emprega-se o estenciômetro ou um conjunto de fios de diferentes comprimentos. Para estudar a sensação de localização, aplica-se a ponta a várias áreas do antebraço e propõe-se ao sujeito indicar o lugar que foi tocado pelo pesquisador. Para estudar a sensibilidade distintiva, aplica-se o esten­ ciômetro de Weber cujas hastes são colocadas em distâncias diferentes. Um índice da sutileza da sensibilidade distintiva é a distância mínima na qual o sujeito distingue não um mas dois contatos separados. Outro procedimento muito importante é o teste de Talher, no qual o pesquisador toca simultaneamente dois pontos si­ métricos do peito e do rosto. A afecção de um dos hemisfé-

rios manifesta-se rio fato de que o doente que percebe bem cada contato isolado, ignora um dos contatos com os pontos simétricos caso esses contatos sejam simultâneos. Neste caso, costuma cessar a sensação de contato com ponto oposto ao hemisfério afetado. Por último, é muito importante o estudo da sensibilidade pele-sinestésica (para cuja análise conduz-se a pele do antebraço no sentido da mão ou a partir desta, de­ vendo o sujeito determinar o sentido do deslocamento passivo da pele) ou o estudo da sensibilidade profunda; aqui o pes­ quisador curva (ou descurva) o braço ou um dedo do sujeito, propondo-lhe determinar em que sentido foi feito o movi­ mento, ou coloca o braço numa posição e propõe ao sujeito colocar o outro nessa mesma posição. A perturbação da sensi­ bilidade profunda em um dos braços sugere a afecção das áreas sinestéticas complexas do córtex do hemisfério oposto. Por último, o estudo do sentido espacial bidimensional (ou sentido de Forster) é feito da seguinte maneira: o pesqui­ sador desenha com a ponta de uma agulha ou de um fósforo uma figura (ou número) na pele do antebraço e propõe de­ terminar o tipo de figura ou número que foi desenhado. A impossibilidade de executar essa tarefa com tentativas ativas do sujeito sugere a afecção das áreas secundárias do córtex parietal do hemisfério oposto. Formas complexas de percepçâo tátil