Crítica do direito à moradia e das políticas habitacionais

520 100 2MB

Portuguese Pages 249 [133] Year 2017

Report DMCA / Copyright

DOWNLOAD FILE

Polecaj historie

Crítica do direito à moradia e das políticas habitacionais

Citation preview

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

R afael Lessa V. de Sá Menezes

www.lumenjuris.com.br Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida Conselho Editorial

Adriano Pilatti Alexandre Bernardino Costa Alexandre Morais da Rosa Ana Alice De Carli Anderson Soares Madeira Beatriz Souza Costa Bleine Queiroz Caúla Caroline Regina dos Santos Daniele Maghelly Menezes Moreira Diego Araujo Campos Elder Lisboa Ferreira da Costa Emerson Garcia Firly Nascimento Filho Flávio Ahmed Frederico Antonio Lima de Oliveira Frederico Price Grechi Geraldo L. M. Prado

Gina Vidal Marcilio Pompeu Gisele Cittadino Gustavo Noronha de Ávila Gustavo Sénéchal de Goffredo Helena Elias Pinto Jean Carlos Dias Jean Carlos Fernandes Jeferson Antônio Fernandes Bacelar Jerson Carneiro Gonçalves Junior João Carlos Souto João Marcelo de Lima Assafim João Theotonio Mendes de Almeida Jr. José Emílio Medauar José Ricardo Ferreira Cunha Josiane Rose Petry Veronese Leonardo El-Amme Souza e Silva da Cunha Lúcio Antônio Chamon Junior

Luigi Bonizzato Luis Carlos Alcoforado Luiz Henrique Sormani Barbugiani Manoel Messias Peixinho Marcellus Polastri Lima Marcelo Ribeiro Uchôa Márcio Ricardo Staffen Marco Aurélio Bezerra de Melo Marcus Mauricius de Holanda Ricardo Lodi Ribeiro Roberto C. Vale Ferreira Salah Hassan Khaled Jr. Sérgio André Rocha Sidney Guerra Simone Alvarez Lima Victor Gameiro Drummond

Conselheiros beneméritos Denis Borges Barbosa (in memoriam) Marcos Juruena Villela Souto (in memoriam)

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Conselho Consultivo Andreya Mendes de Almeida Scherer Navarro Antonio Carlos Martins Soares Artur de Brito Gueiros Souza

Caio de Oliveira Lima Francisco de Assis M. Tavares Ricardo Máximo Gomes Ferraz

Filiais Sede: Rio de Janeiro Av. Presidente Vargas - n° 446 – 7° andar - Sala 705 CEP: 20071-000 Centro – Rio de Janeiro – RJ Tel. (21) 3933-4004 / (21) 3249-2898 São Paulo (Distribuidor) Rua Sousa Lima, 75 – CEP: 01153-020 Barra Funda – São Paulo – SP Telefax (11) 5908-0240

Minas Gerais (Divulgação) Sergio Ricardo de Souza [email protected] Belo Horizonte – MG Tel. (31) 9-9296-1764 Santa Catarina (Divulgação) Cristiano Alfama Mabilia [email protected] Florianópolis – SC Tel. (48) 9-9981-9353

Editora Lumen Juris Rio de Janeiro 2017

Copyright © 2017 by Rafael Lessa V. de Sá Menezes Categoria: Direito Humanos Produção Editorial Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Diagramação: Bianca Callado A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta obra por seu Autor. É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quanto às características gráficas e/ou editoriais. A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei nº 6.895, de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e indenizações diversas (Lei nº 9.610/98). Todos os direitos desta edição reservados à Livraria e Editora Lumen Juris Ltda. Impresso no Brasil Printed in Brazil CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE ________________________________________

Para Ligia

“Horrorizais-vos por querermos suprimir a propriedade privada. Mas na vossa sociedade existente, a propriedade privada está suprimida para nove décimos dos seus membros; ela existe precisamente pelo facto de não existir para nove décimos”. (Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista)

Prefácio Rafael Lessa V. de Sá Menezes é um defensor público, atuante e inserido na defesa das populações mais vulneráveis da cidade de São Paulo, especialmente, a população em situação de rua. Para além de sua expressiva qualificação técnica, tem sido um lutador intransigente e incansável para que haja respeito à dignidade humana de um segmento que sofre cotidianas violações em seus direitos. Neste livro, Rafael traz análises e reflexões de forma oportuna e atual de como o sistema sociometabólico do capital determina os limites da luta pelo direito à moradia, desvenda os mecanismos jurídicos para a domesticação dos conflitos de classe, traz as contradições do Programa Minha Casa Minha Vida e, ainda, aponta experiências que contribuem para enfrentar de forma mais efetiva o problema da habitação da população em situação de rua. É um trabalho denso de reflexões e críticas, consistentes e comprometidas com a efetivação dos direitos dos mais excluídos, apontando, ao longo dos capítulos, novos conhecimentos que estimulam avaliar nossas práticas, analisar o atual momento de rebaixamento da democracia e de perdas e retrocessos dos direitos sociais e repensar estratégias de ações futuras. Sua análise vai se encaminhando a partir dos conflitos no interior das classes sociais e do contexto das hegemonias presentes, com base nas situações concretas, possibilitando um olhar à frente das ilusões jurídicas, identificando assim, as limitações de um judiciário comprometido com a agenda e os interesses do capital. A propriedade privada da terra urbana, como um dos pilares da acumulação do capital na cidade, tem sido invariavelmente protegida pelo judiciário em detrimento da função social da propriedade e do direito à moradia. Dessa forma, na minha trajetória de atuação na área de habitação, em centenas de ações de reintegrações de posse na cidade de São Paulo, tem sido observado que o direito à propriedade prevalece sobre o direito à moradia, na quase totalidade das decisões judiciais. Muitas vezes, para a defesa da propriedade privada há decisões que sobrepõem até os limites da lei.

IX

Como não existe política fundiária e de inclusão para contribuir na inserção das classes populares nas cidades, e que deem respostas concretas às demandas, os problemas urbanos vão se acumulando cada vez mais nas cidades brasileiras. Outro aspecto interessante destacado por Rafael diz respeito à mobilização social engendrada por movimentos populares de moradia, os quais demandaram e fizeram com que o direito à moradia fosse reconhecido na Constituição Federal como um direito social. Em consequência, houve a aprovação do Estatuto da Cidade, a criação do Ministério das Cidades, a realização das Conferências Nacionais das Cidades, a instituição do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, entre outras legislações urbanas, bem como, a institucionalizações de espaços públicos para a defesa do direito à cidade, que de certa forma também foram capturadas pela agenda do capital. Apesar desses avanços no arcabouço legal, na estrutura institucional e nos mecanismos de participação não resultou na melhoria esperada das condições de vida urbana dos trabalhadores mais pobres. Essa situação explicita a prevalência dos mecanismos do mercado imobiliário e de como são inaptas à aplicação das legislações urbanísticas, não por acaso, como parte estrutural da reprodução do capital. O autor mostra que a disputa sobre a efetivação do direito à cidade é um embate entre as classes, em que, muitas vezes, os trabalhadores que desejam ver suas necessidades básicas efetivadas são capturados pela linguagem e gramática do direito. Com o abandono do Governo Federal ao Plano Nacional de Habitação de Interesse Social (PlanHab), para dar lugar ao Programa Minha Casa Minha Vida, emergiu a instrumentalização do sistema sociometabólico do capital no Estado, fortalecendo a concepção da moradia e a cidade como mercadorias. Assim, este Programa produziu expressivo número de unidades habitacionais, implementado na lógica da eficiência capitalista, reproduziu a segregação espacial nas cidades e favoreceu a especulação imobiliária, deixando uma profunda cicatriz na agenda do direito à cidade. A luta por uma cidade mais igualitária com inserção social pelo acesso à moradia, pautada pela agenda da reforma urbana foi derrotada. Nesse momento, de crescente aumento do número de pessoas em situação de rua em todo Brasil, é de extrema pertinência a reflexão trazida pelo Rafael sobre a questão habitacional. O contexto de sociedade meritocrática e da mercantilização da moradia e dos territórios nas cidades, esta população é estigmatizada e não reconhecida como parte do déficit habitacional. X

A experiência trazida pelo programa “Casa Primeiro” (Housing First) – que coloca a casa como o primeiro passo articulado a outras políticas sociais da assistência, para saída da situação de rua – é uma contribuição importante, para dar luz sobre o tema e avançar as propostas de moradia para este segmento social. Pensar a casa como primeiro passo para a saída da rua provoca também a reflexão sobre os motivos da baixa efetividade dos programas assistenciais a ela destinados. Essa perspectiva de atendimento habitacional como primeiro passo, devo dizer a partir de minha experiência, que é uma política pública acertada, porque são frequentes os relatos de homens e mulheres que vivem nessa situação a respeito das dificuldades de acessar a moradia no mercado imobiliário. Apesar de acesso a um trabalho regular, o rendimento mensal tem sido insuficiente para alugar um quarto em cortiço precário, cujo valor de locação mensal se aproxima do valor de um salário-mínimo na região central da cidade ou de moradia na periferia, onde o valor da locação é relativamente menor, mas elevada a despesa com transporte. Essa situação de precarização e de rebaixamento salarial faz com que, a cada dia, mais pessoas fiquem em situação de rua, mais dependentes de políticas assistenciais, pouco efetivas, deixando-as em um círculo sem saída. O valor pago pela força de trabalho ao trabalhador é insuficiente para sua subsistência. Na reflexão sobre proposta de moradia para população em situação de rua, Rafael destaca que não pode ser feito na lógica da propriedade privada – moradia como mercadoria – mas é necessário avançar no direito à moradia como um serviço público com fornecimento universal da habitação, independente de contrapartida financeira, com programas perenes de atendimento para esse segmento social. Todo o percurso da análise critica mostrou que o sistema jurídico é mais eficaz na proteção do setor que utiliza da propriedade imobiliária para acumulação e rentabilização, do que do direito à moradia. Enquanto a política habitacional estiver focada na produção de casas para o mercado e não para solucionar o problema da exclusão habitacional, as necessidades habitacionais dos trabalhadores de baixa renda e os problemas urbanos continuarão crescendo. Este livro traz o desafio para as organizações populares, considerando que o custo da moradia para os trabalhadores de baixíssima renda é uma barreira intransponível. É essencial retomar o enfrentamento das contradições da relação capital e trabalho para a efetivação de política pública de habitação para XI

os mais pauperizados. E, também, se não houver tensionamento social não será rompida a lógica jurídica reformista e subserviente da reprodução do capital. A leitura de cada capítulo do livro trouxe novos conhecimentos e aprendizados, além de indignação pelas reflexões críticas que me fizeram compreender, como educador popular, muitas lições do grande mestre Paulo Freire. Aqui, destaco a Pedagogia da Indignação – cartas pedagógicas e outros escritos (2000) ... os militantes progressistas precisam, quixotescamente até, opor-se ao discurso domesticador que diz que o povo quer cada vez mais menos política, menos conversa e mais resultados; ... Lidar com a cidade, com a polis, não é uma questão apenas técnica, mas sobretudo política; ... A denúncia e o anúncio criticamente feito no processo da leitura do mundo dão origem ao sonho por que lutamos. Vejo que as contribuições trazidas por este livro são instigantes e essenciais para todos que lutam pelo direito à cidade, direito à moradia, reforma urbana e justiça social.

Luiz Kohara Doutor em arquitetura e urbanismo e pós-doutor em sociologia urbana. Membro do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos.

Sumário Prefácio......................................................................................................... IX Introdução....................................................................................................

1

Capítulo 1. A Crítica do Direito e dos Direitos Humanos....................... 1.1. A Ilusão Jurídica.................................................................................. 1.2. Alicerces da ordem sociometabólica do capital e transformação social.................................................................................... 1.3. Análise do sistema de direito – sobre o direito à moradia...................

7 7

Capítulo 2. A Característica Concomitância entre Enunciação e Ineficácia do Direito à Moradia.................................................................. 2.1. O papel das garantias de direito à moradia.......................................... 2.2. Direito à moradia como direito social................................................. 2.3. O papel da lei e de seus conflitos de interesse na produção habitacional................................................................................ 2.4. Por trás da ideologia: da ineficácia jurídica ao horizonte da transformação radical.................................................................................

17 28 37 37 46 58 66

Capítulo 3. Políticas Públicas de Acesso à Casa Própria – O Programa Minha Casa, Minha Vida.......................................................... 81 3.1. Preliminarmente: o pressuposto da propriedade privada e a terra cativa no Brasil.................................................................................. 81 3.2. Do Projeto Moradia ao Programa Minha Casa, Minha Vida: o sonho da casa própria como ideologia para o desenvolvimento capitalista........................................................................ 95 3.3. Linhas Gerais do Programa Minha Casa, Minha Vida........................ 101 3.3.1. O papel lateral dos Municípios e da participação popular no PMCMV............................................................................... 115 3.3.2. O subsídio e o crédito no PMCMV – papel do Estado e dos fundos públicos................................................................................. 126 3.3.3. Experimentos de movimentos sociais no PMCMV....................... 155

XII

XIII

3.4. Alienação fiduciária como instrumento jurídico de controle fundiário....................................................................................... 158 3.5 Algumas conclusões sobre a política habitacional da “casa própria”............................................................................................. 162 Capítulo 4. Direito à Moradia para Além da Propriedade Privada?........ 167 4.1. Crítica da noção jurídica de segurança da posse.................................. 167 4.2. Renda da Terra e Acesso à Habitação Via Locação............................ 180 4.3. Programas públicos de aluguel social e locação social – a experiência recente da cidade de São Paulo............................................... 192 Capítulo 5. Pessoas em Situação de Rua e a Questão da Habitação....... 203 5.1. Sobre as pessoas em situação de rua ................................................... 203 5.2. Entre Habitação e Assistência Social.................................................. 210 5.3. Acesso à Habitação pela População em Situação de Rua?................... 222 Conclusões................................................................................................... 229 Bibliografia................................................................................................... 233

XIV

Introdução Pessoas sem-teto e pessoas em situação de rua circulam pela cidade tentando vender sua força de trabalho e encontrar meios para sua subsistência. São algumas das parcelas mais pauperizadas da população. Ao redor delas há muitos imóveis vazios e empoeirados à espera de compradores ou inquilinos. Mas também esperam valorização decorrente de melhoramentos no entorno – é o que se costuma chamar especulação imobiliária. Pelos jornais, governos anunciam a construção de milhares ou milhões de imóveis para combater o “déficit habitacional”, mas ainda assim não chegam perto de resolver o problema da moradia. O que separa aquelas pessoas em situação de rua dos imóveis vazios? A habitação é uma necessidade humana básica e precisa ser dia-a-dia satisfeita para a reprodução da própria vida humana. Como alimentar-se e respirar, habitar, com todas as suas funções, é condição para a continuidade da vida humana. Em nossas sociedades, organizadas para fazer funcionar o sociometabolismo do capital, uma série de mediações separa cada ser humano do teto onde possa satisfazer as suas necessidades habitacionais. Estas, como outras necessidades humanas, são historicamente moldadas e dependem do grau de avanço técnico da sociedade. Mas dependem também e sobretudo das relações sociais estabelecidas em tais sociedades. Neste livro, resultado de uma tese de doutorado que defendi na Faculdade de Direito da USP, Largo de São Francisco, em 2016, pretende-se examinar as principais mediações jurídicas e de políticas públicas que promovem ou impedem o acesso à habitação. O direito se ergue sobre a base econômica da sociedade, sendo específico a cada organização econômico-social. No contexto atual, a base econômica da sociedade se apoia na apropriação do tempo do trabalhador pelos capitalistas. Isto é necessário para a produção. Mas também a apropriação do espaço em geral é necessária para a circulação, para manter os complexos e funcionais mecanismos de poupança, especulação, crédito e renda. A produção do espaço e da habitação seguem lógicas próprias, dependentes dos processos de acumulação, expansão e reprodução do capital. Todas estas relações determinam especificamente o direito tal qual o conhecemos. 1

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

O direito reflete, assim, as necessidades do próprio sociometabolismo do capital. Não se trata de uma forma neutra de resolução de conflitos, mas de um conjunto de mecanismos que seleciona os conflitos que devem ser solucionados e que impõe soluções que em seu conjunto devem ser, no limite, funcionais à base material e ao sociometabolismo do capital. Portanto, qualquer reivindicação jurídica de movimentos sociais esbarrará em limites muito claros, limites que basicamente são os que balizam a reprodução do sistema sociometabólico do capital como um todo. Estes limites levam direitos humanos a serem caracteristicamente inefetivos – e este é o caso do direito à moradia. Direto ao ponto: a inefetividade de direitos é inerente ao direito. Com isto fica claro que a legalização de movimentos sociais é antes funcional do que disfuncional aos imperativos jurídicos: a legalização impõe a linguagem jurídica, impõe o terreno e as armas jurídicas para lidar com os conflitos. As demandas sociais se tornam direitos solenemente enunciados, podendo ocasionar a domesticação do conflito de classes. Esta é a função primordial da legalização – e ela tem sido uma estratégia bem-sucedida há um bom tempo. Por isso, a luta pela habitação deve aparecer apenas como luta pelo direito à moradia. Mas contradições não são domesticáveis, elas existem e podem ser explosivas apesar de todos os mecanismos de “resolução de conflitos”. Por isso, as lutas sociais de transformação radical continuam possíveis. A formulação de demandas sociais em forma de demanda jurídica representa à primeira vista uma armadilha, mas a continuidade da luta depois de se cair nesta armadilha é decisiva para o horizonte de transformação radical. As reivindicações jurídicas podem divisar um horizonte para além do direito. Isto ocorre quando há nelas elementos que perturbem o domínio da ideologia jurídica e que tendam a solapar os alicerces do sociometabolismo do capital. A compreensão crítica do fenômeno jurídico passa pelo exame dos seus próprios termos e dos fundamentos materiais destes. Passa também pelo modo como demandas sociais acabam sendo “capturadas” pelo direito, traduzidas para certos modos restritos de expressão. O estudo crítico do direito, além de buscar desvendar a essência por detrás das aparências, além de reinserir o objeto na totalidade da sociedade que o produziu, deve também examinar o tipo de reivindicação que pode cumprir o papel de desestabilizar as estruturas jurídicas de opressão e dominação. Desta maneira, explicita-se o objeto estudado e as suas possíveis transformações. 2

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Nesta linha, as principais questões a serem analisadas no presente livro são: a) o modo pelo qual garantias jurídicas e políticas públicas asseguram o direito à moradia, em contraste com uma realidade em que as necessidades habitacionais das populações de baixa renda apenas se efetivam na medida em que se enquadrem na ordem sociometabólica do capital; b) como o desenvolvimento e a expansão espacial do capitalismo influenciam a escassez de imóveis para habitação e como a mercantilização (prevalência do valor de troca) impede o acesso das pessoas ao valor de uso dos imóveis, mesmo com todas as garantias de direito à moradia juridicamente consagradas; c) como o direito à moradia e a regulação urbanística da cidade se subordinam aos imperativos do sociometabolismo do capital, em especial ao regime da propriedade privada e da posse exclusiva; d) como a exclusão social está intimamente ligada à espoliação das classes trabalhadoras e, na seara da habitação, as especificidades no modo como ocorre esta espoliação; e) como as reivindicações jurídicas das lutas sociais que são absorvidas pelo direito e tendem a levar à mitigação, cooptação, acomodação ou cooperação dos movimentos sociais; f) se e como as contradições mais pulsantes da questão da habitação, quando ativadas e formuladas como reivindicações jurídicas, podem ser propostas para uma renovada dinâmica social, para além do sociometabolismo do capital. Todos estes pontos perpassam os cinco capítulos nos quais o livro está organizado: no primeiro, se trata do método de estudo crítico do direito e dos direitos humanos; no segundo capítulo, das garantias de direito à moradia; no terceiro, das políticas públicas habitacionais focadas em aquisição da “casa própria”, isto é, apoiadas na aquisição da propriedade via financiamento imobiliário e subsídio estatal, com foco especial no Programa Minha Casa, Minha Vida; no quarto capítulo, se trata de acesso à habitação via aluguel público ou privado; no quinto e último capítulo, das políticas de habitação para pessoas em situação de rua. O primeiro capítulo é dividido em três partes: a parte 1 trata das reivindicações jurídicas dos movimentos sociais, das ilusões que as lutas jurídicas criam e do possível elo entre a perspectiva de longo alcance da revolução social e a de alcance mais restrito da luta jurídica; a parte 2 aponta os diversos alicerces do sociometabolismo do capital e explicita como a questão da mudança social deve ser entendida numa perspectiva ampla, para além da ênfase exclusiva na política; a parte 3, por fim, demonstra o modo pelo qual o direito (normas, tribunais, 3

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

políticas públicas, etc.) reflete a separação real entre o trabalhador e seus meios de subsistência, especificamente a habitação. O segundo capítulo é dividido em quatro partes: a parte 1 descreve um conjunto de normas e instituições de direito à moradia, a nível nacional e internacional, bem como o papel real que estas conquistas têm jogado nos conflitos sociais; a parte 2 se apoia numa análise histórica sobre a cidade de São Paulo do início do século XX, onde o incipiente capitalismo já explicitava que a “questão da habitação” deveria estar subordinada aos imperativos da acumulação capitalista (no caso, dependente, periférica), sem qualquer problematização do valor de troca imposto pelas “leis do mercado” e pelos interesses das classes dominantes, explicitando, assim, o papel da lei ou do ordenamento jurídico nas lutas sociais; a parte 3 tematiza as mudanças jurídicas do século XX, como o surgimento dos direitos sociais e a guinada pós-positivista, explicitando as limitações de princípios como o da função social da propriedade; por sim, na parte 4, se discute se a ineficácia do direito à moradia é incontornável em qualquer sentido e, em sendo, enfrenta o problema de quem seriam os sujeitos da transformação social radical no contexto atual. O terceiro e mais longo capítulo do trabalho faz uma detalhada análise da principal política de habitação existente no Brasil, o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV). O ponto de partida é uma análise do pressuposto da propriedade privada, que sustenta a ideologia da “casa própria” e fundamenta as especificidades das políticas públicas para suprimento de habitação para a população de baixa renda, as parcelas mais pauperizadas da classe trabalhadora. As políticas públicas são analisadas como instrumentos jurídicos de atuação estatal, sujeitas, por isso, a todos os limites do direito capitalista explicitados nos capítulos anteriores. Analisa-se, ademais, a centralização do PMCMV no governo federal, o papel central do empresariado da construção civil e do mercado imobiliário no desenho do programa, as pequenas e contestáveis conquistas dos movimentos sociais, a alienação fiduciária como instrumento de apropriação e controle fundiário e o papel do subsídio e do crédito na sustentação e funcionalização do PMCMV. O quarto capítulo tem três partes e o seu mote são os meios de aceso à habitação que não sejam pela aquisição da propriedade privada: na primeira parte, realiza-se uma crítica ao instituto da segurança da posse; na parte 2, estuda-se a natureza da renda fundiária urbana e a questão do acesso à habitação via locação privada; na parte 3, são analisados programas públicos de acesso à 4

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

habitação via “locação social” ou “aluguel social”, com foco especial naqueles desenvolvidos na cidade de São Paulo desde o início do século XXI. Finalmente, o quinto capítulo desenvolve a tese central deste livro, a partir da análise de políticas públicas de habitação para pessoas em situação de rua. Examina-se, assim, as características das pessoas em situação de rua, as políticas de direito assistencial prevalecentes no atendimento delas e as abordagens do tipo “casa primeiro” para lidar com as exclusões múltiplas destas pessoas. A partir deste quadro, os programas do tipo “casa primeiro” serão apontados como um tipo de política habitacional que pode pavimentar um caminho para além do sociometabolismo do capital.

5

Capítulo 1. A Crítica do Direito e dos Direitos Humanos “A melhor vontade jurídica não impedirá que a luta de classes subverta irremediavelmente o direito”. (B. Edelman, A legalização da Classe Operária)

1.1. A Ilusão Jurídica O direito tem exercido grande influência em movimentos sociais em geral e, especificamente, em movimentos sociais que lutam por habitação. De fato, estes movimentos, ao lutarem no contexto político e social em que estão imersos, têm frequentemente buscado que suas demandas sejam asseguradas em normas jurídicas. Nas lutas por habitação, busca-se que seja assegurado ou efetivado o “direito à moradia”. Com isso, se espera tornar a necessidade social da habitação uma obrigação com força vinculativa, obrigando Estado e particulares. Este passa a ser um objetivo a ser alcançado – a vinculação jurídica para satisfazer uma necessidade. Assim, a inscrição da moradia em normas legais, constitucionais e até internacionais, bem como sua efetivação, tem sido um objetivo, uma bandeira de luta dos movimentos de moradia. Mas deve-se colocar a questão em perspectiva crítica: as conquistas jurídicas destes movimentos têm levado à satisfação das necessidades habitacionais? O que se está a assegurar quando se consolidam em normas jurídicas os avanços das lutas sociais? Para enfrentar estas questões, tratemos, primeiramente, a questão do método. Tratemos sobre o caminho a seguir para a reflexão crítica. Segundo Michel Miaille, um pensamento crítico não descreve simplesmente certo acontecimento social, mas o reinsere na totalidade da sociedade que o produziu, tornando o objeto estudado “prenhe de todas as determinações que o produziram e de todas as transformações possíveis que podem afectá-lo”1. Ora, bem examinadas 1

M. MIAILLE, Introdução Crítica ao Direito, 2005, p. 23.

7

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

as determinações do sistema jurídico, logo se percebe que elas decorrem, primeiramente, da base material. Como dizia Karl Marx, a totalidade das relações de produção “constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência”2. Estas formas sociais de consciência, então, passam também a influenciar reciprocamente o direito. Isto informa a investigação crítica do direito: a visão da totalidade social, o exame das determinações dialéticas em questão e o desvendar da essência por trás das aparências na sociedade capitalista. Pois bem. Os movimentos sociais têm avançado em garantir direitos em diplomas nacionais e internacionais. Mas para onde esta garantia ampla de direitos tem levado a luta destes movimentos? Basicamente, o enquadramento jurídico – e também o enquadramento político, mas isto é outra história – tem por efeito restringir as lutas destes movimentos a limites previsíveis e controláveis juridicamente. Os movimentos devem se amoldar aos modos juridicamente consagrados de efetivação das necessidades sociais. Com isso, estes movimentos sociais podem ser controlados e aplacados (muitas vezes com recurso ao poder punitivo, mas também por acomodação e cooptação jurídica). A alternativa a este quadro seria que tais movimentos continuassem a lutar para além das garantias jurídicas. Neste estágio, a “luta por direitos” pode começar a ativar contradições sociais de longo alcance. As tensões com a ordem sociometabólica do capital se acumulam e esta ordem tenta adaptar o conteúdo as reivindicações ao seu funcionamento, à forma jurídica. Isto é possível porque, como aponta Marx, “As formas jurídicas em que essas transações econômicas aparecem como atos de vontade dos participantes, como expressões de sua vontade comum e como contratos cuja execução pode ser imposta à parte individual por meio do Estado não podem, como simples formas, determinar esse conteúdo [das transações que se efetuam entre os agentes da produção]. Elas apenas o expressam. Esse conteúdo é justo contanto que corresponda ao modo de produção, que lhe seja adequado” 3.

2

K. MARX, Contribuição à Crítica da Economia Política, 2008, p. 47.

3

K. MARX, O Capital – Crítica da Economia Política. O Processo Global de Produção Capitalista, Livro III, Tomo I, 1986, p. 256.

8

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Os direitos humanos passam a veicular cada vez mais os anseios das lutas sociais. Mas, na tradição do pensamento marxista, as diversas necessidades humanas não podem ser realizadas a não ser que seja superado o sistema sociometabólico do capital e, portanto, os próprios direitos humanos. Era o próprio Marx que argumentava, ao tratar da “questão judaica”, que “somente a crítica à emancipação política mesma poderia constituir a crítica definitiva à questão judaica e sua verdadeira dissolução na ‘questão geral da época’”4. Mutatis mutandi, somente a crítica ao direito e aos direitos humanos pode constituir a crítica definitiva às conquistas jurídicas. Vejamos o argumento de Marx. A mera emancipação política apenas reduz o ser humano “a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente”5. Ela não supera a alienação religiosa, não supera a religião, apenas consagra a liberdade de religião6. Numa passagem crucial: “nenhum dos assim chamados direitos humanos transcende o homem egoísta, o homem como membro da sociedade burguesa, a saber, como indivíduo recolhido ao seu interesse privado e separado da comunidade”7. Assim, pode haver avanços substanciais em pautas específicas (por exemplo, a emancipação política dos judeus), mas enquanto não se superar o sistema capitalista de produção, estes avanços não levarão à emancipação humana8. É dizer, uma análise crítica da questão da emancipação política leva, a partir da análise da totalidade da sociedade que a produz, à constatação dos limites daquela emancipação. Da mesma maneira, para decifrar o direito à moradia, é necessário examinar a totalidade da sociedade que produz este direito.

4

K. MARX. Sobre a Questão Judaica, 2010, p. 36.

5

Idem, p. 52.

6

Idem, p. 53, onde se lê que “Consequentemente o homem não foi libertado da religião. Ele ganhou a liberdade de religião. Ele não foi libertado da propriedade. Ele ganhou a liberdade de propriedade. Ele não foi libertado do egoísmo do comércio. Ele ganhou a liberdade de comércio”.

7

Idem, p. 50. Os “direitos humanos” tratados por Marx são aqueles que a doutrina dos direitos humanos viria a chamar de direitos de “primeira geração”, os direitos civis e políticos (não se cogitava das categorias de direitos econômicos, sociais e culturais, muito menos como englobadas pela ideia de “direitos do homem”).

8

Neste sentido, G. LUKÁCS, O jovem Marx. Sua evolução filosófica de 1840 a 1844, 2009, p. 167, observa que “Marx anuncia aqui [n’A Questão Judaica], com toda clareza, a compreensão de que a emancipação política (ou seja, a revolução burguesa) cria apenas uma democracia formal, que proclama

9

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

E isto foi feito já em grande medida por Engels em “A Questão da Habitação”, com base na mesma linha de argumentação:

mente diferente, que abrangesse todo o quadro de referências e as ‘microestruturas’ que constituem a sociedade.”12

“A chamada falta de habitação, que hoje em dia desempenha na imprensa um papel tão grande, não consiste no facto de a classe operária em geral viver em casas más, apinhadas e insalubres... ela atingiu de uma forma bastante parecida todas as classes oprimidas de todos os tempos. Para pôr fim a esta falta de habitação, há apenas um meio: eliminar a exploração e opressão da classe trabalhadora pela classe dominante.”9

Claramente, esta linha de argumentação coloca sempre como horizonte a superação do sistema sociometabólico do capital e pouco ou nada acrescenta à questão sobre o que fazer enquanto este for o sistema sociometabólico realmente existente. Que fazer quando as necessidades sociais são balizadas por este sistema? Neste sentido, um desafio para a reflexão crítica é encontrar o elo, se algum, entre a perspectiva de longo alcance (a revolução social) e a de alcance mais restrito (a luta por direitos ou a luta política). A ilusão jurídica de que pode haver transformação radical por meio de soluções engendradas pelo direito deve ser desde logo descartada. Deve-se atentar para o papel que o direito pode ter num contexto de transformação radical – este papel pode ser apenas o de um direito evanescente, não de um direito que se transmuta em novo direito. De fato, “o direito é uma mentira, uma ilusão. No entanto, é uma mentira tão poderosa que não pode ser negligenciada. É uma ilusão tão presente que não pode ser olvidada”13. Daí a necessidade de se refletir sobre o papel do direito quando se pensa na transformação social radical. Isto porque “o mundo jurídico não pode... ser verdadeiramente conhecido, isto é, compreendido, senão em relação a tudo o que permitiu a sua existência e no seu futuro possível”14. Para além do conhecimento da totalidade da sociedade que produziu os direitos humanos, é necessário projetar as transformações possíveis que podem afetar as necessidades dos trabalhadores. Nesta projeção se explicitam os próprios limites do direito e o papel dos direitos humanos. Ora, é com base no estudo das reivindicações de movimentos sociais urbanos que se deve buscar descobrir os caminhos e as implicações de um “direito à moradia” (assim como de um “direito à cidade”) colocado como bandeira de luta, e não o contrário. Como coloca D. Harvey tratando do “direito à cidade” de Henri Lefebvre,

Em outro trecho da mesma obra, Engels afirma que esta mesma linha de raciocínio se aplica a qualquer outra questão social ligada aos trabalhadores: “Enquanto o modo de produção capitalista existir, será disparate pretender resolver isoladamente a questão da habitação ou qualquer outra questão social que diga respeito à sorte dos operários. A solução reside, sim, na abolição do modo de produção capitalista, na apropriação pela classe operária de todos os meios de vida e de trabalho.”10

Nos dias de hoje, a linha de argumentação continua com o mesmo potencial explicativo quando se trata de lutas sociais específicas. Ela foi adotada, por exemplo, por István Mészáros no texto “A liberação das mulheres: a questão da igualdade substantiva”11, em que afirma que “Não se poderia encontrar nenhum ‘espaço especial’ para a emancipação das mulheres no referencial dessa ordem socioeconômica. Por isso, o ‘poder nas mãos das mulheres’ teria de significar poder nas mãos de todos os seres humanos ou nada, exigindo o estabelecimento de uma ordem de produção e reprodução sociometabólica alternativa radical-

direitos e liberdades que não podem existir realmente na sociedade burguesa”. Este entendimento é essencial para a tese desenvolvida neste trabalho, que se apoia na noção de que as garantias jurídicas convivem com uma inerente inefetividade na sociedade burguesa. 9

F. ENGELS. Para a Questão da Habitação, 1873, Primeira Seção, disponível em https://www.marxists. org /portugues/marx/1873/habita/cap01.htm, acesso em 17 jan. 2016.

10 F. ENGELS. Para a Questão da Habitação, 1873, Segunda Seção, disponível em https://www.marxists. org /portugues/marx/1873/habita/cap02.htm, acesso em 17 jan. 2016. 11 I. MÉSZÁROS, Para Além do Capital, 2002, pp. 267 e seguintes.

10

“se, como aconteceu na última década, a ideia do direito à cidade passou por certo ressurgimento, não é para o legado intelectual de Lefebvre que

12 Idem, pp. 286-287. 13 M. ORIONE GONÇALVES CORREIA, Que Fazer, 2013, p. 559. 14 M. MIAILLE, Introdução Crítica ao Direito, 2005, p. 23.

11

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

nos devemos voltar em busca de uma explicação (por mais importante que esse legado possa ser). O que vem acontecendo nas ruas, entre os movimentos sociais urbanos, é muito mais importante... a ideia do direito à cidade não surge fundamentalmente de diferentes caprichos e modismos intelectuais (embora eles existam em grande número, como sabemos). Surge basicamente das ruas, dos bairros, como um grito de socorro e amparo de pessoas oprimidas em tempos de desespero”15.

O “direito à cidade” aparece aí claramente como bandeira de luta dos movimentos sociais urbanos16, não como mero direito posto. Isto pode gerar certa confusão sobre os papéis que pode desempenhar o discurso jurídico. O que se tem verificado no contexto de hegemonia do sistema sociometabólico do capital é que as reivindicações da classe trabalhadora, mais cedo ou mais tarde, esbarraram nos alicerces deste sistema. O choque apenas não ocorrerá se houver acomodação destas reivindicações dentro do sistema. Tratar reivindicações como direito pode facilitar a acomodação – discursivamente, estas reivindicações já chegam prontas para ser capturadas pelos solenes instrumentais jurídicos. O capitalismo se adapta a muitas demandas das classes trabalhadoras e já estamos a meio caminho andado quando a demanda aparece formulada como um “direito”. Mas se o “direito humano à habitação” aparece como uma queixa e como uma exigência, a abordagem imanente do sistema de direito deve captar isso e formular a questão: por que esta exigência não se realiza, embora seja aceita nos mais elevados diplomas jurídicos? São as necessidades do sistema sociometabólico do capital como um todo que sustentam uma característica inefetividade do “direito humano à habitação”. De fato, a questão da “falta de habitações” nos centros urbanos contemporâneos não diz respeito à impossibilidade material de construir moradias suficientes para todos, mas a relações sociais que impõem certa maneira de acesso (ou não acesso) às moradias existentes. A cidade de Detroit, nos Estados Unidos, é

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

um exemplo de como estas relações sociais podem criar uma verdadeira evacuação urbana, deixando-se para trás toda a infraestrutura existente e milhões de moradias vazias e, ao mesmo tempo, pessoas sem teto, em razão de uma dinâmica econômica apoiada na prevalência cega da propriedade privada17. A cidade, que tinha 1,8 milhões de habitantes na década de 1970, contava em 2013 apenas 701.000 habitantes. Mais de 70.000 edifícios estavam abandonados e mais de 30.000 casas vazias. Nem por isso a cidade deixa de ter pessoas em situação de rua: em 2011, contava-se mais de 19.000 pessoas nesta situação. Ainda mais, execuções hipotecárias e execuções fiscais não deixaram de ser comuns, mesmo com a grande quantidade de imóveis vazios. Nestes contextos, o direito é ativado para assegurar certo modo de distribuição da habitação, não para resolver a falta de acesso à habitação. A escassez imobiliária é juridicamente sustentada, mesmo que haja abundância de imóveis. Estes permaneceram vazios até poderem ser integrados ao sistema econômico hegemônico. Este singelo exemplo aponta para a sacralidade de certo modo de acesso à habitação sob as relações sociais vigentes, o modo de acesso via aquisição da propriedade privada. O que impede o acesso à habitação por todos são estas relações sociais, não a falta de imóveis para moradias. O direito reflete e protege, então, necessidades especulativas do próprio sociometabolismo do capital. Neste sentido, o direito não é uma “forma de solução de conflitos”, mas uma forma de solução de certos e determinados conflitos e um ocultador seletivo de outros conflitos18. Elucida-se a natureza do direito. O “direito à moradia” não se confunde com a necessidade humana de habitação. A luta pela produção e reprodução de condições de humanidade não alienada busca a satisfação desta necessidade humana básica. Na luta social, intencionalmente ou não, ela toma a forma de uma reivindicação (política ou jurídica) por um direito ou pela efetivação deste direito. Mas se ela passa a ser efetivamente mediada pelo direito, está aí sua tragédia: passa a estar inexoravelmente adstrita aos limites jurídicos e não

15 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2014, p. 13 e 15. 16 Idem, p. 11, que aponta que o “direito à cidade”, em Lefebvre, “era ao mesmo tempo uma queixa e uma exigência. A queixa era uma resposta à dor existencial de uma crise devastadora da vida cotidiana na cidade. A exigência era, na verdade, uma ordem para encarar a crise nos olhos e criar uma vida urbana alternativa que fosse menos alienada, mais significativa e divertida, porém, como sempre em Lefebvre, conflitante e dialética, aberta ao futuro, aos embates (tanto temíveis como prazerosos), e à eterna busca de uma novidade incognoscível”.

12

17 A respeito, vide http://www.nytimes.com/2012/11/11/magazine/how-detroit-became-the-worldcapital-of-staring-at-abandoned-old-buildings.html?pagewanted=all&_r=0, acesso em 9 mai. 2015 e http://www.huffingtonpost.com/2012/05/17/michigans-campaign-to-end-homelessness-numbersdecreasi ng-statewide-and-detroit_n_1524397.html, acesso em 9 mai. 2015. 18 M. ORIONE GONÇALVES CORREIA, Que Fazer, 2013, p. 538.

13

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

poderá se realizar senão para além destes limites – e, portanto, para além do sociometabolismo do capital. A análise crítica deve elucidar o que um direito promete e o que ele nega. E tudo o que ele nega só se explicita quando se dá a devida atenção à totalidade da sociedade que produziu o direito e, especificamente, à “coerência orgânica do direito”19. Esta coerência orgânica pretende consagrar ilusoriamente uma coerência orgânica da sociedade, que, na essência, está cindida em classes. Para manter aquelas ilusões, devem existir instrumentos e instituições para resolução de conflitos e para a recondução de tudo a sua base (material) adequada. O direito nega, em primeiro lugar, o conflito de classes como um conflito digno de ser tematizado. Nesta toada, negará também os conflitos relacionados ao despojamento do trabalhador dos seus meios de subsistência, como será detalhado adiante. Numa leitura inicial, a perspectiva marxista apontará que lutas sociais por liberdade ou igualdade burguesa não são lutas tendentes a alterar o sistema de reprodução sociometabólico do capital. Trata-se de lutas que apenas conseguem “conquistas parciais” que podem apenas arranhar a reprodução do capital e, não raro, têm até mesmo o condão de assegurar a continuidade desta reprodução. Lenin, entendia mesmo que estas lutas eram levadas a cabo por “operários aburguesados”, por uma “aristocracia operária”, por “verdadeiros agentes da burguesia no seio do movimento operário, capatazes-operários da classe dos capitalistas (“labor lieutenants of the capitalist class”), verdadeiros propagandistas do reformismo e do chauvinismo”20. Mas as “conquistas parciais” das lutas sociais são ambíguas, ora aparecem como conquistas que arrefecem a luta de classes por meio de concessões jurídicas a parcelas das classes trabalhadoras, que passam até mesmo a apoiar (tácita ou ostensivamente) o sociometabolismo do capital e seus instrumentos de tutela jurídica; ora aparecem como avanços que melhoram as condições materiais da classe trabalhadora e que podem impulsionar a luta em direção a uma transformação mais profunda do sistema sociometabólico do capital. Nesta última forma de ver, mais efetividade dos direitos humanos implicaria em novos patamares a partir dos quais as lutas sociais seriam travadas. Lutas sociais como as dos movimentos feministas e as dos movimentos negros, por exemplo, quando 19 B. EDELMAN. A legalização da Classe Operária, 2016, p. 20. 20 V. I. LENIN, O Imperialismo, Etapa Superior do Capitalismo, 2011, p. 115.

14

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

tematizam e buscam a universalização da igualdade formal, têm implicações morais, culturais, jurídicas, etc, e isto implica num salto qualitativo no interior do capitalismo. No fundo, isto tem consolidado o direito, não o superado. Mas as contradições do sistema capitalista continuam latentes. Deve-se rejeitar que haja necessária antinomia entre estas duas formas de ver as “conquistas parciais” das classes trabalhadoras. Conquistas das classes trabalhadoras que levam a acomodações sob o sociometabolismo do capital não implicam em nenhum fim da história e as contradições reais continuam a ser o motor dos conflitos sociais. Estas conquistas implicam em adaptações da estrutura jurídica. Mas os conflitos sociais – e o conflito social mais elementar, o conflito de classe – persistem. O elo entre a perspectiva de longo alcance da revolução social e a de alcance mais restrito da luta jurídica está na própria permanência da exploração capitalista – e, portanto, das suas contradições – que as conquistas jurídicas não rompem. Daí a plausibilidade de se conceber algum tipo de luta jurídica que possa ser levada a cabo sem ilusões e com o horizonte de rompimento do sistema jurídico. Como já apontado, é inerente ao sistema sociometabólico do capital a inefetividade crônica dos direitos humanos. Isto porque é necessário a este sistema o despojamento do trabalhador dos seus meios de subsistência e produção. A contradição aí instaurada – na verdade uma contradição na base com expressão no direito – é um combustível permanente para as lutas sociais. As “reivindicações jurídicas” podem ser negações determinadas das demandas sociais. Tais reivindicações podem conservar algo da contradição dialética existente na base. O direito formula o despojamento como inefetividade, sugerindo que ele próprio possa efetivar as necessidades reais. Mas a efetivação universal das necessidades humanas (inclusive das habitacionais) só pode se dar com a superação do pressuposto de despojamento do trabalhador de seus meios de produção e de subsistência - portanto, com a superação do sociometabolismo do capital e do próprio direito tal qual o conhecemos. Ao mesmo tempo que determinado sistema jurídico se eleva sobre a base material de acordo com as necessidades da reprodução do capitalismo, o próprio direito pode vir a ser ativado para finalidades que divergem daquelas que inicialmente o puseram. Tal ativação ocorre nas lutas sociais, quando estas lutas incidem sobre as contradições da base material subjacente, expressando as reivindicações como direito – e isto tem sido frequentemente feito por 15

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

meio dos direitos humanos. Ao fazerem isto, as lutas sociais geram tensões e forçam os limites do direito, que invariavelmente reagirá para recompor-se, para manter a reprodução social em seu lugar, eventualmente absorvendo sob a forma jurídica as reivindicações. E então estas padeceram de inefetividade, mas dentro do direito. A crítica jurídica pretende, justamente, explicitar quando aquelas contradições aparecem e como elas apontam para possíveis transformações sociais. O ponto de partida aqui é esta ambiguidade dos direitos humanos: do ponto de vista estatal e internacional, aparecem como direitos funcionais à reprodução do direito e da política, descolados da realidade de persistente e crescente disparidade entre os ganhos do trabalho e os do capital21. Já no plano da luta social, os direitos humanos aparecem como uma questão de grande relevância para os movimentos sociais22, e nesta seara explicitam seus limites enquanto “direitos” e aparecem também como discurso político, como instrumento de luta emancipatória e de incitação de contradições no interior do próprio sistema jurídico. Como tais, os direitos humanos podem aparecer como bandeiras táticas em lutas cuja finalidade última é atingir os alicerces do modo de produção capitalista. Pode-se dizer que, ao aparecer como bandeira de luta política, o discurso dos direitos humanos encampado nas lutas sociais reflete, no direito, as contradições reais. Neste sentido, olhar para os movimentos sociais e para as suas demandas pode explicitar cooptação, capitulação ou acomodação a dado contexto, mas mostra também as contradições reais a marcar o caminho das transformações sociais futuras.

21 F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, p. 127, já descrevia este descolamento: “O desenvolvimento social subsequente, fez com que a lei adquirisse a forma de uma legislação mais ou menos abrangente. Quanto mais complexa essa legislação se torna, tanto mais sua forma de expressão se distancia daquela em que são expressas as condições econômicas habituais da vida em sociedade. Ela aparece como um elemento autônomo, que não justifica sua existência e a fundamentação de seu aprimoramento pelas relações econômicas, mas por razões próprias, intrínsecas, como o ‘conceito de vontade’. Os seres humanos esquecem que seu direito descende das condições econômicas vitais, assim como esqueceram que eles próprios descendem do reino animal”. Agora, o movimento da autonomização é típico do direito, não é estranho a ele; assim, não há contradição entre a inefetividade do direito e sua consagração formal. As garantias são consagradas na esfera autônoma, abstrata, formal e a tentativa de efetivá-las juridicamente é vã se não há as condições materiais para tanto. De fato, a inefetividade dos direitos nos dizem muito sobre a realidade das quais são expressão. 22 I. MÉSZÁROS, Marxismo e Direitos Humanos, 2008.

16

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

1.2. Alicerces da ordem sociometabólica do capital e transformação social Ressalte-se o caminho ou método do pensamento crítico: reinserir o objeto estudado na totalidade da sociedade que o produziu e divisar as transformações possíveis que podem afetá-lo. O sociometabolismo do capital envolve todo o complexo da exploração capitalista direta, salário, mais-valia e lucro industrial, bem como das correlativas atividades pelas quais o trabalho socialmente produzido é repartido nas formas de lucro comercial, juro, renda e tributo. A exploração capitalista, segundo a teoria do valor, ocorre porque, após entregar trabalho necessário ao capitalista, o trabalhador é obrigado a entregar trabalho excedente. Este trabalho excedente, cujo valor é a mais-valia, pertence ao capitalista em razão de uma série de relações sociais que legitimam esta operação. Na obrigação de entregar trabalho excedente, na atribuição do produto ao capitalista e no pagamento do salário começa a se erguer o sistema jurídico tal qual o conhecemos. A crítica aos direitos humanos parte da reflexão sobre os alicerces do sistema sociometabólico do capital e envolve a reflexão sobre os horizontes de sua transformação radical. A delimitação de quais sejam estes alicerces é a primeira tarefa da crítica, mais ou menos no sentido do que indica David Harvey quando aponta que “A exposição clara de como as práticas dominantes funcionam deve ser o foco da teorização radical”23. A crítica às experiências ditas socialistas do século XX e das diversas lutas sociais por direitos deve partir de uma observação teórica básica: as diversas dimensões da vida social, material e espiritual não podem ser revolucionadas automaticamente a partir de uma ou outra mudança tida como “central” e “decisiva”, a qual desencadearia necessariamente o revolucionamento centrífugo de todo o tecido social. Carece de sentido prático a enunciação de que esta ou aquela medida levará à superação do sistema sociometabólico do capital – e carece muito mais de sentido prático a discussão sobre que medida “revolucionária” (tomada do poder estatal, apropriação dos meios de produção, etc.) seria esta.

23 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 195.

17

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Deve-se admitir, isto sim, a complexidade da questão da transição para o socialismo ou da transformação social radical. O socialismo aparece no pensamento marxiano, em primeiro lugar, como a negação determinada do sistema capitalista de produção, como aquilo que se descortina teoricamente com a análise das contradições deste sistema. Por isso a revolução social preconizada por Marx não pode ser pensada apenas como revolução econômica ou como revolução política. Ela é, como dito, a negação determinada do sistema capitalista, e só pode sê-lo em todos os seus aspectos – aspectos materiais, econômicos, morais, sociais, jurídicos, políticos, etc, em suma, como a transformação radical de todos os domínios reprodutivos que sustentam o sistema sociometabólico do capital24. Este sistema se assenta em diversos alicerces, em variados domínios reprodutivos, sendo o alicerce fundamental a apropriação privada do tempo de trabalho excedente pelo proprietário dos meios de produção25. Mas este alicerce também só se sustenta em uma relação de implicação mútua com os alicerces relacionados à distribuição ou circulação da riqueza produzida. Realmente, “a dinâmica da exploração de classe não se restringe ao local de trabalho. Todo um conjunto de economias da expropriação e de práticas predatórias, como as dos mercados imobiliários... constitui um caso a ser levado em consideração. Essas formas secundárias de exploração são basicamente organizadas por comerciantes, proprietários de terras e financistas e seus efeitos são basicamente sentidos no local onde se vive, e não na fábrica. Essas formas de exploração são e sempre foram vitais para a dinâmica geral da acumulação de capital e para a perpetuação do poder de classe”26.

Ao lado daquele alicerce “central”, outros alicerces indissociáveis sustentam este sistema, a começar pelo despojamento dos produtores de meios de produ-

24 Em I. MÉSZÁROS, A Teoria da Alienação em Marx, 2006, p. 108, lê-se que a própria noção de produção ou “atividade humana produtiva” não pode ser tida apenas como “produção econômica’”. Em Marx, a economia é o “determinante último”, mas “é também um ‘determinante determinado’: ela não existe fora do complexo sempre concreto e historicamente mutável de mediações concretas, inclusive as mais ‘espirituais’”. 25 Pode-se dizer que esta é a característica descritiva mais básica do capitalismo, relacionando-se à falta de controle dos produtores diretos sobre os produtos do seu trabalho e à prevalência do imperativo da trocabilidade universal. Mas está longe de ser o alicerce único. 26 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2015, p. 230.

18

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

ção e de meios de subsistência, o que os obriga a vender sua força de trabalho; passando pela acumulação primitiva de capital, pelas condições para a circulação de mercadorias num mercado livre, pela propriedade fundiária da terra urbana e rural, pelo contrato de trabalho, pela existência de agentes financeiros, do Estado, das instituições jurídicas, etc. Não se pode aceitar, assim, que apenas no direito do trabalho esteja “todo o mistério do direito burguês”27. Para além do contrato de trabalho e do direito de propriedade na esfera da produção, aqueles outros alicerces da ordem sociometabólica escondem igualmente o mistério do direito burguês. O “direito à moradia”, por exemplo, esconde justamente por trás de suas promessas o despojamento das classes trabalhadoras e a separação destes dos seus meios de subsistência, condição alheia à produção e, no entanto, necessária para a ela. Estes alicerces não são historicamente imutáveis e se adaptam às mais diferentes condições espaço-temporais. De qualquer modo, a superação do sociometabolismo do capital significa a transformação radical de cada um deles, de cada uma das esferas reprodutivas28. Na seara econômica, deve-se compreender que “não é que produção, distribuição, troca e consumo são idênticos, mas que todos eles são membros de uma totalidade, diferenças dentro de uma unidade”29. Daí porque a própria superação do modo de produção capitalista exige a reformulação de cada um dos membros desta totalidade/unidade. “Uma produção determinada, portanto, determina um consumo, uma troca e uma distribuição determinadas, bem como relações determinadas desses diferentes momentos entre si. A produção, por sua vez, certamente é também determinada, em sua forma unilateral, pelos outros momentos”30. As diversas determi-

27 B. EDELMAN, A Legalização da Classe Operária, 2016, p. 21. 28 Mas não se deve entender com isto que todas as esferas reprodutivas deveriam ser revolucionadas ao mesmo tempo. De fato, Marx, no Prefácio de 1859 da Contribuição à Crítica da Economia Política, já pontuava que “Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura” (K. MARX, Contribuição à Crítica da Economia Política, 2008, pp. 47/48). 29 K. MARX. Grundrisse, 2011, p. 53. 30 Idem, p. 53.

19

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

nações só podem ser alteradas se todas as relações e mediações31 são superadas num novo modo de existência econômico e social. Dentre os sustentáculos do sociometabolismo do capital está a contínua transformação do cenário urbano, o que tem clara implicação nas condições de habitação das classes trabalhadoras. O movimento inquieto do capital precisa alterar continuamente o urbano. Como aponta D. HARVEY, “se a urbanização é tão crucial para a história da acumulação do capital e se as forças do capital e seus inumeráveis aliados devem mobilizar-se sem descanso para revolucionar periodicamente a vida urbana, então uma luta de classes de algum tipo, não importa se explicitamente reconhecida como tal, está inevitavelmente envolvida”.32

Neste sentido, David Harvey aponta para a necessidade de uma (mais) sofisticada compreensão sobre o modo como ocorre a transformação social, que guiaria movimentos anticapitalistas ao objetivo fundamental de “assumir o comando social sobre a produção e distribuição de excedentes”33. Esta fórmula sintética não deve levar a enganos sobre a complexidade das questões postas para esta luta, nem sobre os obstáculos que serão erguidos pelo sistema sociometabólico do capital – com especial relevo, no que interessa neste trabalho, para os obstáculos jurídicos – para evitar qualquer transformação radical. No estudo do direito, deve-se abandonar “o modelo da crítica político-ideológica dos interesses protegidos ou da classe a quem aproveita a instituição dos direitos sociais”34. O direito não pode ser tomado de assalto pela classe trabalhadora e servir como instrumento para inverter a hegemonia de classe. Nem os direitos humanos, nem mesmo os direitos sociais, “podem ser direitos anti31 Segundo I. MÉSZÁROS, Estrutura Social e Formas de Consciência, 2009, p. 192, há mediações primárias, as quais são “necessárias para todas as formas viáveis de reprodução”, que se distinguem das mediações secundárias, específicas do contexto histórico do capitalismo. Assim, por exemplo, é uma mediação primária ou de primeira ordem “a regulação do processo de trabalho por meio do qual o necessário intercâmbio da comunidade com a natureza possa produzir os bens necessários para a satisfação humana, como também as ferramentas de trabalho, empreendimentos produtivos e conhecimento apropriados pelos quais o próprio processo reprodutivo passa a ser mantido e aprimorado”, enquanto que a regulação do trabalho especificamente capitalista é uma mediação secundária ou de segunda ordem. Estas é que são transformadas.

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

-capitalistas (...) pois não são capazes de romper a forma jurídica do sujeito de direito”35. É dizer, a transformação social radical não poderá se dá por meio de medidas jurídicas ou da alteração do conteúdo do direito em favor da classe trabalhadora. Realmente, uma abstração como os direitos sociais jamais poderia romper a forma jurídica, a qual só pode ser superada pelo própria superação do sistema sociometabólico do capital como um todo. Um direito consagrado abstratamente em diplomas legislativos não rompe este sistema, mas o confirma. O seu rompimento continua a ser matéria dependente das contradições reais e da viabilidade de os trabalhadores superá-las na luta de classes. Flávio Roberto Batista, em análise “sobre a possibilidade de que o direito contribua para a emancipação humana e em que termos”, deixa algumas pistas sobre o assunto e, em especial, aponta a importância da mobilização popular e dos movimentos sociais, as quais poderiam conter o avanço da lógica “excludente, exploradora e punitiva” do neoliberalismo. O autor aponta que “Os direitos sociais somente podem ser aliados da luta emancipatória na medida em que forem radicalmente universalizados, o que significa implementar sua distribuição genérica sem qualquer forma de contrapartida. O fim do modo de produção capitalista é o fim da garantia da subsistência apenas por meio da troca de força de trabalho por salário, e a única forma que o direito tem de ajudar nessa luta consiste em solapar a lógica da equivalência, inserindo mecanismos essencialmente não comportados pela forma. A luta pela inserção de tais mecanismos, entretanto, devolve a questão para sua verdadeira seara: a política e a economia”36.

A análise é certeira do ponto de vista da crítica jurídica. No entanto, parece sobrevalorizar as contradições e as lutas nas searas política e econômica. Com isso, remete o problema a outros domínios superestruturais, nos quais, como no direito, formulações ambíguas apenas refletirão contradições reais. A questão da sobrevalorização da política foi abordada anteriormente por mim com base na leitura de István Mészáros37:

32 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2014, p. 209.

35 Idem.

33 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 185.

36 F. R. BATISTA. Crítica da Tecnologia dos Direitos Sociais, 2013, p. 265.

34 F. R. BATISTA. Crítica da Tecnologia dos Direitos Sociais, 2013, p. 258.

37 R. MENEZES. Crítica dos Direitos Humanos à Luz da Leitura de István Mészáros, 2013, pp. 35-37.

20

21

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

“não é que a solução para a questão da alienação jurídica seja meramente a ‘luta política’. Tal solução remete circularmente de um problema a outro, pois a superestrutura política possui suas próprias contradições e conflitualidades, apresentando também potencialidades emancipatórias que contrastam com suas instituições separadas e abstratas, como se vê na dinâmica dos partidos socialistas e trabalhistas que se tornam partidos parlamentares38, e com práticas restringidas de acordo com os imperativos do sistema sociometabólico do capital. Não obstante a visão de totalidade que deve apoiar uma perspectiva crítica de análise, frequentemente a assertiva de que se deve buscar na luta política soluções para as questões jurídicas são um meio pelo qual (voluntária ou involuntariamente) se deixa de examinar com o devido rigor os problemas da superestrutura jurídica. István Mészáros trata esta questão de modo muito direto: ‘Claramente, no entanto, isso está muito longe de ser simplesmente uma questão política, apesar das preconcepções sectárias reducionistas e, em última análise, autoderrotistas defendidas nesse sentido. A ênfase exclusivista na política, ao custo das estratégias muito mais amplas de transformação estruturalmente viável a ser historicamente sustentada em todos os domínios reprodutivos, não pode ser uma abordagem viável a essas questões, não importa quão importante seja o papel que a intervenção política radical deva inicialmente desempenhar no processo emancipatório geral, especialmente na época de ruptura com a pressão da política alienada sobre a mudança societal.’”39 (grifei)

Ou seja, a “superestrutura política” também apresenta suas próprias limitações no contexto do sistema sociometabólico do capital e é mais um dos domínios reprodutivos em que as lutas pela superação deste são levadas a cabo. É dizer, a transformação social radical implica também a superação da política existente. E as contradições reais podem ser expressas tanto como questões po38 I. MÉSZÁROS, O Desafio e o Fardo do Tempo Histórico, 2007, p. 276 e seguintes, discute a questão da alternativa ao parlamentarismo e assevera que “alguns dos partidos mais importantes, bem como bem-sucedidos, do ponto de vista eleitoral, da esquerda radical, constituídos no interior da estrutura da Terceira Internacional, em condenação impetuosa e explícita do fracasso histórico irreparável da Segunda Internacional Socialdemocrata, seguiram – dessa vez realmente no devido tempo – o mesmo caminho desastroso dos partidos que implacavelmente denunciaram e descartaram. Neste sentido, basta pensar na ‘via parlamentar ao socialismo’ que os partidos comunistas italiano e francês seguiram”. 39 I. MÉSZÁROS, Estrutura Social e Formas de Consciência II, 2011, p. 136.

22

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

líticas, quanto como questões econômicas ou como questões jurídicas, ou ainda como envolvendo algumas ou todas estas questões ao mesmo tempo. Trocando em miúdos, a superação do modo de produção capitalista exige o revolucionamento estrutural e superestrutural, não apenas nas searas econômica e política, mas em todos os domínios reprodutivos. Primeiro porque estas tais “searas” sequer existem por si enquanto coisas a serem revolucionadas: elas são, antes de tudo, abstrações úteis para o pensamento, tanto quanto o é a seara jurídica (no máximo, há instituições a serem radicalmente transformadas para se adaptarem às novas exigências materiais). Segundo, o que será objeto de revolucionamento serão as relações sociais, e um tal revolucionamento só pode se dar se atingir as relações sociais como um todo, não apenas esta ou aquela seara (abstrata) da reprodução social. A suprassunção das contradições reais é a superação da política alienada, do direito e do modo de produção capitalista. Observe-se como a questão da habitação é tratada numa perspectiva que defende forçar internamente a política: “Padrões de habitabilidade mais elevados que implicam a existência de serviços de consumo coletivo material e culturalmente adequados para a reprodução dos trabalhadores só serão atingidos quando estes conseguirem desenvolver canais de reivindicação vigorosos e autônomos, tanto no que se refere às condições de trabalho como os que dizem respeito às melhorias urbanas. Neste sentido, o adequado em relação à reprodução da força de trabalho não decorre apenas do grau de desenvolvimento das forças produtivas mas, sobretudo, da capacidade que apresentarem as classes trabalhadoras de se apropriar de uma parcela da riqueza gerada pela sociedade. Em outras palavras, decorre do grau de organização das diferentes classes e camadas sociais que se confrontam na arena social numa determinada conjuntura histórica”40.

Igualmente, para Guilherme Boulos, líder do MTST, para a solução dos problemas habitacionais que levam às ocupações urbanas de prédios e terrenos não utilizados, “a receita é política”: “Combater a especulação imobiliária com regulação de mercado, tirar o controle da política urbana das mãos de grandes empreiteiras e de40 L. KOWARICK, A espoliação Urbana, 1979, p.73.

23

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

senvolver uma estratégia de desapropriação de terras que recupere a capacidade o poder público de planejar a política habitacional. Esses são importantes passos para quem quiser de fato acabar com as ocupações urbanas no Brasil”.

Todas estas propostas e outras dentro da luta jurídica e política são bem-vindas e devem ser empunhadas e defendidas. Mas o que deve ficar claro é se elas estão ligadas a propostas de longo alcance, a propostas que explicitem os limites e atinjam os alicerces do direito. Não deve haver dúvida quanto à crucial importância – a centralidade mesmo – das searas política e econômica neste processo. Seria mesmo desnecessário lembrar, dadas as premissas deste trabalho, que há uma sobredeterminação da seara econômica. Mas isto diz pouco sobre os desafios para a transformação social radical e diz menos ainda para a análise do direito à moradia e das políticas habitacionais. O que se deve frisar, porém, é que, após as experiências socialistas do século XX, qualquer pauta de transformação radical tem que passar pela crítica à ênfase exclusivista na política. Esta ênfase equivale a desprezar outras formas que sustentam o sociometabolismo do capital, como se a tomada do poder estatal e o controle dos meios de produção pelo Estado, por si só, pudessem conduzir ao objetivo de transferir o controle da produção ao produtor direto41. Assim, na seara da crítica ao direito, deve-se reconhecer as contradições reais que se refletem no sistema jurídico – e o modo específico de aparição destas contradições no direito é pela seleção do que deve ser juridicamente tutelado e do que deve ser juridicamente reprimido, bem como dos campos de “liberdade” de ação (em regra campos destinados à ação do capital). Mesmo porque conhecer os alicerces do capitalismo envolve conhecer também sua expressão jurídica42 e vice-versa. O próprio Flávio Roberto Batista o demonstrou ao investigar as margens, os limites do direito: a alocação universal é uma demanda que fomenta a contradição real do sistema capitalista, já que atinge alguns dos alicerces deste modo de produção, especificamente o princípio da equivalência e o despojamento do 41 Explicitando o malogro da experiência soviética e a superação do capitalismo sem superação do capital, reporta-se à grandiosa obra I. MÉSZÁROS, Para Além do Capital, 2002. 42 B. EDELMAN, A Legalização da Classe Operária, 2016, p.10, afirma que “o direito é um posto de observação insubstituível para ‘ler’ a evolução do mundo, atualizar suas forças secretas”.

24

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

trabalhador dos seus meios de subsistência. A alocação universal tem o potencial efeito de “liberar aqueles que não são proprietários dos meios de produção da obrigação de vender sua força de trabalho a qualquer capitalista”43. A sua implementação (garantia e efetivação) na via jurídica (não pela via jurídica, mas na via jurídica) apenas poderia ocorrer num contexto em que houvesse explosivas contradições reais - que também teriam suas expressões econômicas e políticas - que poderiam levar à superação do sociometabolismo do capital e, por isso mesmo, do próprio direito. Mas para chegar a esta proposta seminal, Batista realiza um salto teórico da análise da forma jurídica para um campo não reconhecido como jurídico no interior de seu enquadramento teórico – daí remeter a questão às searas política e econômica. O próprio autor recorre à Tese XI sobre Feuerbach44, de Marx, para sustentar este salto. Mas não há que se saltar a lugar nenhum: a reflexão sobre a margem, sobre o limite, nada mais é do que a reflexão sobre a negação determinada do objeto sobre o qual se reflete. Estamos na seara da crítica do direito. Ao se refletir numa perspectiva de totalidade, não se pode divisar soluções em outras searas abstratas, igualmente restritas, específicas, contextuais45. As teorias da “forma jurídica” tendem a passar ao largo destas questões. Daí desvelarem o papel estrutural do direito no contexto capitalista, mas muito pouco acrescentarem sobre as contradições refletidas no direito e sobre o elo entre a luta social imediata e a perspectiva da transformação social radical46. Transformações jurídicas só podem ser corretamente examinadas partindo da análise do próprio sistema de direito no seu contexto e atentando às media43 F. R. BATISTA. Crítica da Tecnologia dos Direitos Sociais, 2013, p. 263. 44 “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformálo”, K. MARX, Teses Sobre Feuerbach, 1845, disponível em https://www.marxists.org/ portugues/ marx/1845/tesfeuer.htm, acesso em 28 mai. 2016. 45 Daí a importância de se divisar precisamente, por um lado, o direito como expressão específica do capitalismo e, por outro lado, o direito que aparece como discurso político – neste caso, pode haver uma tentativa de uso do discurso jurídico para além da superestrutura jurídica, contra a superestrutura jurídica. Há aí um procedimento teórico que explora as margens, os limites do direito, mas não há porque saltar sem mais para a seara política ou econômica. A perspectiva da totalidade exige que os limites de todas estas searas sejam explicitados. 46 Para ficar na principal referência teórica sobre o assunto, E. B. PASUKANIS. A teoria geral do direito e o marxismo, 1989, sequer poderia ter enfrentado este problema, que não estava posto em sua época. Na verdade, o problema que ele buscava enfrentar era oposto, dizia respeito justamente às tendências do socialismo real de se valer do direito para transformar o modo de produção. Retrospectivamente, os limites desta abordagem são explícitos. Porém, há uma grande distância entre um Estado que, sob o

25

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

ções primárias e secundárias em questão. Contradições e movimentos dialéticos não repercutem apenas nas teorias políticas e econômicas, mas também no direito – como elemento extrínseco, não interno à dogmática jurídica, como aponta M. ORIONE: “Não há que se deixar de lado a importância que a luta pelos direitos assume no mundo atual, mais do que a própria aquisição dos direitos e sua introdução em um sistema específico. Este é um dado em que a dialética está presente, como elemento extrínseco e não interno ao direito” 47.

Esta é uma observação importante para evitar o entendimento equivocado de que o materialismo histórico dialético poderia servir para manusear categorias jurídicas internamente ao direito. O ponto foi desenvolvido por M. ORIONE: o método específico do direito é o positivismo jurídico e “o nosso papel, enquanto juristas, não seria usar apenas materialmente a dialética negando o direito, mas negar o direito constantemente pelos seus conceitos e classificações ordenadoras da realidade, segundo o ato de poder (e, portanto, negar a ideologia do direito). Mais do que isto: por esta atitude demonstrar que as contradições do direito são típicas contradições do capitalismo em si”48.

As contradições reais da sociedade capitalista podem aparecer nas mais diversas formas sociais. A proposta de alocação universal, por exemplo, nada mais é do que uma proposta de alteração na base com reflexo no direito, com uma formulação jurídica. Tal proposta aciona contradições latentes do sistema sociometabólico do capital, com impactos em diversas esferas reprodutivas. Por isso mesmo, poderia ser uma das medidas a sustentar um processo de transformação social radical. É preciso pontuar que esta perspectiva está longe de implicar um retorno à crítica do tipo “da classe a quem aproveita a instituição dos direitos sociais”, que

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

se contrapõe à abordagem da “forma jurídica”49. Nem uma, nem outra. A crítica sobre “a classe a quem aproveita” também remete, à sua maneira, a discussão para a seara política, desprezando as mediações próprias do direito. O que se preconiza aqui é que as contradições reais que têm expressão jurídica sejam analisadas enquanto tais, mediante uma metodologia de avaliação do próprio sistema jurídico em questão. Há problemas habitacionais? Como eles se expressam juridicamente? Qual o papel do direito na manutenção e na superação destes problemas? Como a transformação social radical resolverá este problema e superará as soluções jurídicas parciais? O ponto de partida para responder a estas perguntas é a ideia de que “O controle do domínio jurídico é obviamente o primeiro passo necessário na trilha para uma transformação social duradoura qualitativa. Mas não deve permitir que se converta, como convém às personificações herdadas ou novas do capital, em uma variante nova de ilusão jurídica adotada de maneira esperançosa”50.

Com este alerta, deve-se apontar as duas tarefas elementares da crítica dos direitos humanos: primeiro, realizar a análise e a crítica dos institutos jurídicos em seus próprios termos51, confrontando-os com o fundamento material que os engendram. Isto cumpre aquela diretriz apontada por David Harvey de que “A exposição clara de como as práticas dominantes funcionam deve ser o foco da teorização radical”52. Segundo, analisar quais demandas sociais alcançam expressão no direito e explicitar como as limitações jurídicas restringem estas demandas. Tudo isto só pode ser feito por meio do exame cuidadoso do próprio sistema de direito:

49 Estas duas abordagens têm como apoio teórico, respectivamente, P. I. STUCKA, Direito e Luta de Classes, 1988 e E. B. PASUKANIS, A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, 1989. 50 I. MÉSZÁROS, Estrutura Social e Formas de Consciência, 2009, p. 299.

47 M. ORIONE GONÇALVES CORREIA, Que Fazer, 2013, p. 559.

51 Neste sentido, M. ORIONE GONÇALVES CORREIA, Que Fazer, 2013, p. 537, entende que na análise crítica “deve-se usar dos conceitos típicos do positivismo jurídico (inclusive pós-positivismo). Portanto, a crítica pressupõe o domínio do positivismo jurídico, mas não se esgota em exercícios da utilização da forma jurídica. O exercício no sentido de melhorar, transformar pelo direito não é possível, já que tudo que é tocado pelo direito tende a retomar a ordem já estabelecida”.

48 Idem, p. 537.

52 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 195.

argumento de instaurar o socialismo, se vale do direito para isto, e movimentos sociais de explorados e excluídos de todos os tipos que buscam incitar as contradições nas diversas searas reprodutivas, inclusive na jurídica. Não se pode usar a mesma lente de análise para realidades absolutamente distintas.

26

27

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

“separar a teoria geral do direito da prática teórica do direito, produz efeitos teóricos e práticos incalculáveis: o abandono ao direito do próprio terreno que ele reivindica. A ignorância política do seu trabalho ‘teórico’ deixa, no fim de contas, o direito livre de se perpetuar na sua própria ilusão que se torna a nossa”53.

Para concluir este ponto, deve-se apenas deixar expresso aquilo que está já pressuposto: não se está a afirmar que se pode revolucionar o capitalismo a partir de normas de direito, que conquistas jurídicas podem levar à superação do sociometabolismo do capital. A transformação social radical decorre de contradições reais e da luta de classes. O que é transformador é aquilo que decorre de tais contradições e instaura renovadas relações sociais. O papel do materialismo histórico dialético nesta seara está em desvendar estas contradições e apontar, no momento adequado de transição, o surgimento das alternativas.

1.3. Análise do sistema de direito – sobre o direito à moradia Diante deste quadro, para se analisar o direito à moradia, deve-se expor como ele é garantido e qual a sua efetividade. Deve-se expor o quadro jurídico geral em que a habitação é realizada ou deixa de sê-lo, bem como explicar as razões de ser ou não realizada. Dois passos neste percurso: no primeiro, a análise dos aspectos legislativos, formais, dogmáticos e de políticas públicas (esta última com importância crucial quando se trata de direitos sociais); no segundo, confrontando o direito à moradia com demandas sociais e com limites econômicos, legais e institucionais para a sua implementação. Por mais que a análise transite por diversos contextos históricos, ao se analisar as lutas sociais, deve-se ter em conta sua formação social específica – e neste trabalho o foco é a sociedade brasileira urbana no século XXI, com sua inserção periférica no capitalismo global. Conhecer internamente as garantias internas e internacionais e as políticas públicas habitacionais (Programa Minha Casa, Minha Vida, Locação Social, Aluguel social, etc.) é conhecer teoricamente a ideologia do direito à moradia 53 B. EDELMAN, O Direito Capitado pela Fotografia, 1976, p. 20.

28

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

- “o próprio conhecimento da ideologia remete para a produção dos efeitos que ela engendra” e “o conhecimento concreto” do funcionamento da ideologia jurídica “é o próprio conhecimento teórico da ideologia”54. E ao destrinchar esta ideologia se verá que as classes trabalhadoras devem se tornar proprietárias, pois, enredadas nos circuitos da propriedade, estão sob controle mais estrito no sociometabolismo do capital; devem obter crédito público ou privado para adquirir bens de consumo e bens duráveis, ainda que via microcrédito, pagando os devidos juros, se necessário por décadas; devem pagar aluguel aos senhorios para remunerar a propriedade privada. Por trás disto tudo: as classes trabalhadoras devem continuar despojadas dos seus meios de subsistência, os quais devem ser adquiridos via mercado. A questão está em explicitar que direito há. Por que o direito à moradia é tal e qual em dado momento; não só saber como as regras do direito à moradia funcionam juridicamente (apenas isto é insatisfatório), mas saber porque as regras são estas neste contexto55. Analisa-se, assim, quanto ao direito à moradia, o seu modo específico de existência legal, como ele é mediado pelo contrato, pelo sujeito de direito, pela propriedade privada, pela renda, pela locação, pelo crédito e pela alienação fiduciária. Com tudo isto se realiza a primeira tarefa elementar da crítica jurídica, a análise e a crítica dos institutos jurídicos em seus próprios termos. A segunda tarefa elementar deve explicitar como as limitações do direito restringem as demandas sociais. No que tange à habitação, é necessário examinar os principais pressupostos do modo capitalista de produção e os sistemas jurídico e político que se erguem sobre eles. Os principais pressupostos do modo capitalista de produção56 podem ser expostos a partir de duas cisões: a cisão entre o trabalhador e os meios de produção; a cisão entre o trabalhador e os meios de subsistência. Para fins de análise 54 B. EDELMAN, O Direito Capitado pela Fotografia, 1976, p. 20. 55 MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. 3ª Ed. Lisboa: Estampa, 2005, p. 23, apud F. R. BATISTA, Os limites do bem-estar no Brasil, 2015, p. 614, “Porque, em definitivo, trata-se de saber porque é que dada regra jurídica, e não dada outra, rege dada sociedade, em dado momento. Se a ciência jurídica apenas nos pode dizer como essa regra funciona, ela encontra-se reduzida a uma tecnologia jurídica perfeitamente insatisfatória”. 56 Segue-se aqui a análise de K. MARX, que contrapõe ao modo de produção capitalista o modo de produção feudal, no qual os meios de produção e de subsistência estão imediatamente sob a posse do trabalhador, sendo este alienado não diretamente, economicamente, mas por meio de relações sociais específicas de dominação.

29

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

do direito à moradia, este último pressuposto deve ser mais bem compreendido. De forma elementar: “os trabalhadores vendem no mercado sua capacidade de trabalho, ou força de trabalho, e são pagos pelo valor dessa força de trabalho. Essa é uma troca de equivalentes, porque o valor da força de trabalho é, por suposto, alto o suficiente para garantir que a classe trabalhadora possa se reproduzir (e vender força de trabalho novamente no período seguinte), mas baixo demais para permitir que os trabalhadores, como classe, ameacem o monopólio capitalista dos meios de produção” 57.

Alto o suficiente, porém baixo demais: o sociometabolismo do capital não pode permitir que o valor da força de trabalho em geral escape destes limites. Para isto, toda o imenso sistema jurídico é ativado para manter o despojamento dos trabalhadores dos seus meios de subsistência, aos quais poderão ter acesso no mercado após receber o salário. A subsistência, num contexto em que não há exploração nem excedente, pode ser definida como igual ao produto total produzido pelo trabalho, que então é apenas o necessário (não há trabalho excedente). No contexto capitalista, a subsistência é mediada por relações específicas, voltadas e viabilizar a venda da força de trabalho para a produção. As necessidades dos trabalhadores são todos os bens e serviços por elas requeridos em dado estágio de desenvolvimento social. O contexto atual se caracteriza pela expansão generalizada do modo de produção capitalista e, na produção da habitação, a questão aparece assim também: ela tende a ser realizada por meio de trabalho alienado, especificamente capitalista, assim como sua distribuição segue principalmente os imperativos do sociometabolismo do capital. E um destes imperativos é justamente manter certos e determinados modos de acesso aos meios de subsistência que permitam a exploração contínua da força de trabalho. De fato, o funcionamento do modo de produção capitalista exige a produção de exclusões múltiplas, dentre elas a exclusão habitacional. O direito contribui decisivamente para esta exclusão. O fato observável e a ser explicado é que a exclusão habitacional tende a estar relacionada não à falta de imóveis habitáveis, mas às relações sociais que pressupõem e consolidam esta exclusão, assim como evidências apontam 57 SAAD FILHO, Alfredo. Salários e exploração na teoria marxista do valor, 2001.

30

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

que a fome no mundo não está relacionada à falta de alimentos58. A exclusão habitacional é funcional ao modo de produção capitalista. Trata-se de fenômeno por meio do qual o trabalhador é privado de um dos seus meios de subsistência, pelo qual o valor da força de trabalho pode ser mantido alto o suficiente e baixo demais. O relativo “enriquecimento” das classes trabalhadoras no século XX não retirou do capitalismo suas características fundamentais e nem anulou a contradição social fundamental que é a luta de classe, a oposição entre trabalhadores explorados e capitalistas. De fato, com o desenvolvimento do capitalismo, muitos trabalhadores se tornam proprietários dos mais diversos bens, entre eles imóveis para habitação. Trabalhadores se tornam até mesmo especuladores e rentistas no mercado imobiliário. Porém, por mais “posses” e “propriedades” que um trabalhador assalariado detenha, a produção da riqueza social continua subordinada ao sociometabolismo do capital, à extração de mais-valia na produção. Mesmo os trabalhadores mais bem remunerados, caso queiram manter sempre o seu padrão de vida, deverão colocar à venda sua força de trabalho no mercado para continuar a receber seus altos salários. O acesso aos meios de subsistência, mesmo os mais supérfluos, é pautado pelas relações de troca capitalistas e pela subsistência por meio da venda da força de trabalho.

58 Como explica Jean Ziegler, há uma financeirização da alimentação no mundo, “São vários os mecanismos que matam. A primeira explicação é a especulação nas bolsas de commodities com alimentos como trigo, arroz e milho, que correspondem a 75% do consumo mundial de alimentos. Após a crise financeira iniciada em 2008, com a quebra dos mercados de ações, os grandes bancos e os hedge funds (fundos de investimento de perfil muito agressivo) migraram para as bolsas de commodities, especialmente para as matérias-primas agrícolas. Aqui só é possível ganhar, porque todos somos obrigados a comprar alimentos. Essa especulação, que infelizmente é legal, produz lucros astronômicos para os fundos e mortes nas favelas. Nos últimos dois anos, o preço do milho no mercado mundial aumentou 63%. A tonelada de trigo dobrou. E a tonelada de arroz das Filipinas subiu de U$ 110 para U$ 1,2 mil. Isso gera um lucro tremendo para derivativos oferecidos pelos bancos. Ao mesmo tempo, há 1,2 bilhão de pessoas no mundo que vivem em pobreza extrema, segundo o Banco Mundial. Elas devem comprar comida com menos de U$ 1 por dia. Quando os preços explodem, os mais pobres não conseguem comprar os alimentos. No início do ano, estive numa favela em Lima, no Peru. Fiquei um dia no depósito onde se vendia arroz. Ninguém comprava um quilo de arroz. Todos compravam um copo de arroz, era o máximo que podiam pagar e essa seria a refeição das crianças para o dia. Esses especuladores de alimentos devem ser colocados diante de um tribunal internacional por crime contra a Humanidade. São diretamente responsáveis pela morte de milhares de pessoas”, entrevista disponível em http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/07/13/uma-crianca-que-morre-defome-hoje-assassinada-diz-jean-ziegler-503352.asp, acesso em 03 jun. 2015.

31

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Neste ponto, cabe se debruçar sobre a afirmação de Marx de que “o trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz”59. Como afirma Harvey, certamente o efeito político desta afirmação não escapava a Marx. Tecnicamente, a afirmação de Marx quer dizer que, com a expansão capitalista, o capital variável tende a ser cada vez menor que o capital constante. O trabalhador fica cada vez mais pobre diante da riqueza social total produzida, que serve não para o desfrute do trabalhador, mas para a reprodução infinita do próprio sistema. Vale atentar para a continuação do já citado trecho nos Manuscritos de Paris: “O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas (Sachenwelt) aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens (Menschenwelt).”60 Aliás, esta constatação de concomitante pauperização e aumento da riqueza social vem desde Hegel e ultrapassa Marx, como observa Vladimir Safatle: “Para ele [Hegel], esta tendência de aumento das desigualdades e da pauperização, tendência que o leva a afirmar que por mais que a sociedade civil seja rica, ela nunca é suficientemente rica para eliminar a pobreza, é um problema que exigiria o recurso a um conceito de Estado justo. Adorno sabe disto. Tanto que afirmará: ‘O livre jogo de forças da sociedade capitalista, cuja teoria econômica liberal Hegel aceitara, não possui nenhum antídoto para o fato de a pobreza, do ‘pauperismo’, segundo a terminologia de Hegel atualmente em desuso, aumentar com a riqueza social; menos ainda poderia Hegel imaginar uma elevação da produção que faria troça da afirmação de que a sociedade não seria suficientemente rica em mercadorias. O Estado é solicitado desesperadamente como uma instância para além desse jogo de forças’ (T. ADORNO, Três Estudos Sobre Hegel).”61 59 K. MARX. Manuscritos Econômico-filosóficos, 2004, p. 80. 60 Idem. Dois parágrafos depois, Marx insistirá na formulação, p. 81, “quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando (ausarbeitet), tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio (fremd) que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos [o trabalhador] pertence a si próprio. É do mesmo modo na religião. Quanto mais o homem põe em Deus, tanto menos ele retém em si mesmo.” 61 V. SAFATLE. Os deslocamentos da dialética, introdução à edição brasileira de “Três estudos sobre Hegel”, de T. ADORNO, disponível em https://www.academia.edu/5569939/Os_deslocamentos_da_ dial%C3%A9tica_introdu%C3%A7%C3%A3o_%C3%A0_edi%C3%A7%C3%A3o_brasileira_dos_ Tr%C3%AAs_estudos_sobre_Hegel_de_Adorno, acesso em 3 jun. 2015.

32

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

No contexto atual, o ser humano em geral se defronta com um sistema econômico que o aliena. O trabalhador sofre diretamente os impactos deste sistema com a alienação do produto do seu trabalho ao proprietário dos meios de produção. O resultado é a concentração de riqueza nas mãos das diversas personificações do capital. É dizer, a riqueza se reproduz cada vez mais e torna o ser humano cada vez mais pobre, mais alienado, mais subordinado à reprodução infinita do capital. De fato, as evidências apontam para o empobrecimento relativo do trabalhador em nome da consistente reprodução do sistema – o que tem sido traduzido no debate econômico atual, mesmo na esteira das obras de autores não marxistas como Thomas Piketty62, como crescimento da desigualdade social e de renda, tendência observada ao longo de praticamente todo o século XX, apesar do aumento absoluto do nível de vida de parcelas da classe trabalhadora. Há uma tendência a concluir que este “enriquecimento” de alguns trabalhadores, ou seja, a formação de “classes médias” e de seus estratos superiores teria “amortecido” a luta de classes, uma vez que muitos proletários teriam aderido ao Estado capitalista para a manutenção deste sistema e de seu conforto material, inclusive com acesso a sofisticados bens de consumo e, para o que diz respeito a este trabalho, à segurança de uma habitação ou duas para morar e especular, com todas as proteções jurídicas ao dispor do proprietário privado. Porém, estruturalmente, a sociedade se organiza ainda contrapondo capital e trabalho. Isto leva a que as decisões centrais da vida social sejam tomadas de acordo com esta contraposição. Assim, o despojamento do trabalhador de seus meios de subsistência continua a ser um pressuposto fundamental do sociometabolismo do capital. A análise do sistema de direito deve partir destas premissas. Assim como os tribunais trabalhistas refletem no contrato de trabalho e na propriedade privada dos meios de produção a separação real entre o trabalhador e seus meios de produção63, constata-se que o direito, os tribunais e as políticas públicas habitacionais refletem em seus mecanismos jurídicos a separação real entre o trabalhador e seus meios de subsistência, especificamente a habitação. Enquadrada no direito, a habitação é mediada pela troca de equivalentes; se submete às leis do mercado; bens imóveis aparecem como reserva de valor 62 Em especial T. PIKETTY, O Capital no Século XXI, 2014. 63 Vide B. EDELMAN, A Legalização da Classe Operária, 2016, p. 31.

33

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

para seus proprietários, o que interessa aí é se eles poderão ser adequada fonte de renda, juro ou lucro, independentemente de considerações sobre direitos alheios; ao adquirente ou ao inquilino de um bem imóvel, por outro lado, embora o valor de uso deste seja de grande relevância social, o que lhes é decisivo é se podem pagar a prestação ou o aluguel, é isto que estará decisivamente na esfera jurídica; aí, a sua capacidade de pagar vem, absolutamente, antes da sua necessidade de morar. Na prática, em nosso contexto, há imóveis em número suficiente para suprir as necessidades sociais de habitação64, mas o sociometabolismo do capital tem exigências anteriores que colocam a satisfação das necessidades como condicionadas à própria reprodução do capital. Assim, elucidar a inevitável e persistente inefetividade do direito à moradia passa por desvendar as principais determinações de tal direito no contexto atual. Tais determinações estão ligadas especialmente às questões do intercâmbio de mercadorias, da propriedade privada do solo urbano, da financeirização e da acumulação do capital. A importância de tal estudo é dupla: contribuir para o exame de tal direito numa perspectiva crítica, ou seja, confrontando as formulações jurídicas com a realidade em que se as formula; avaliar propostas de efetivação de tal direito e verificar se alguma delas poderia desestabilizar os alicerces da ordem capitalista, se alguma delas torna este “direito humano” uma força material das classes trabalhadoras65. 64 No Brasil, o Censo 2010 do IBGE indicou que dos Domicílios particulares permanentes, 86% estão ocupados, 1,3% estão fechados, 5,8% são de uso ocasional e 9% estão vagos. Em números absolutos, isto significa que o número de domicílios vagos no Brasil chega a 6,07 milhões (http://censo2010. ibge.gov.br/apps/atlas/, acesso em 10 abr. 2015). Em contraste, o déficit habitacional, em 2010, era calculado como sendo de 5,8 milhões de famílias (http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/produtos-eservicos1/2742-deficit-habitacional-no-brasil-3, acesso em 18 jan. 2015). O confronto destes dados foi feito pela própria agência de notícias governamental, como se vê em www.brasil.gov.br/noticias/ arquivos/2012/12/13/numero-de-casa-vazias-supera-deficit-habitacio nal-do-pais-indica-censo-2010. Aí se lê que “esse déficit habitacional foi calculado pelo Sindicato da Indústria da Construção Civil de São Paulo (Sinduscon-SP) com base em outro levantamento do IBGE, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). O déficit soma a quantidade de famílias que declaram não ter um teto, que habitam em locais inadequados ou que compartilham uma mesma moradia e pretendem se mudar. Não leva em conta as famílias que vivem em casas adequadas de aluguel”. 65 Neste ponto, não se pode confundir estas propostas com soluções ilusórias “dentro” do direito. Tais propostas se inserem num quadro em que se propõe a reconstrução qualitativa da superestrutura, parelha ao revolucionamento da base material em direção ao controle direto da produção pelos produtores associados. Uma discussão mais aprofundada do assunto foi feita por mim em minha dissertação de mestrado, R. MENEZES, Crítica dos Direitos Humanos à Luz da Leitura de István Mészáros, defendida em 13/11/2013 na Faculdade de Direito da USP (http://www.teses.usp.br/teses/ disponiveis/2/2140/tde-04042014-143450/pt-br.php).

34

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Neste sentido, deve-se adentrar em questões sobre o modo como imóveis não utilizados poderiam ser retirados do mercado para servirem às necessidades de habitação das populações de baixa renda. Um critério para verificar a possibilidade de uma proposta desestabilizar os alicerces da ordem capitalista é examinar se as reivindicações jurídicas das classes trabalhadoras contêm “um elemento desestabilizador, que ‘perturbe’ a quietude do domínio da ideologia jurídica”, como aquele presente na proposta de Engels que, “após analisar a tradicional reivindicação jurídica do movimento sindical em favor de um salário ‘justo’, sugere a sua substituição pela reivindicação de posse dos meios de produção pelos trabalhadores. Ora, essa reivindicação é incompatível com o direito burguês, revela os seus limites e demonstra a necessidade de sua abolição”66.

São estes os elementos metódicos básicos para a análise do direito à moradia neste trabalho. O controle capitalista sobre o produto do trabalho, sobre os seus meios de distribuição e sobre a composição do produto nacional leva à forma específica do direito e da política pública de habitação. Outras formas de realizar as necessidades dos trabalhadores só poderiam ser levadas adiante por meio de confrontação, composição ou alteração do sistema sociometabólico do capital. A análise crítica do sistema de direito à moradia apontará se alguma reivindicação jurídica pode cumprir o papel de perturbar a quietude da ideologia jurídica, explicitando com isso as contradições reais da sociedade capitalista.

66 Como explicita M. BILHARINO NAVES, Prefácio a f. ENGELS e K. KAUTSKY, Socialismo Jurídico, 2012, edição digital, p. 15.

35

Capítulo 2. A Característica Concomitância entre Enunciação e Ineficácia do Direito à Moradia “Este é um exemplo contundente de como a burguesia resolve a questão da moradia na prática. Os focos de epidemias, as covas e os buracos mais infames em que o modo de produção capitalista trancafia nossos trabalhadores noite após noite não são eliminados, mas apenas transferidos para outro lugar! A mesma necessidade econômica que os gerou no primeiro local também os gerará no segundo. E, enquanto existir o modo de produção capitalista, será loucura querer resolver isoladamente a questão da moradia ou qualquer outra questão social que afete o destino dos trabalhadores. A solução está antes na abolição do modo de produção capitalista, na apropriação de todos os meios de vida e trabalho pela própria classe trabalhadora.” (Friedrich Engels, Sobre a Questão da Moradia)

2.1. O papel das garantias de direito à moradia O direito à moradia tem ampla previsão normativa nacional e internacional. A sua enunciação é quase tão amplamente realizada quanto a sua inefetividade. Explicitar a razão desta disparidade entre enunciação e efetividade é a finalidade deste livro. Vejamos a amplitude da normativa. No âmbito internacional, este direito está previsto na Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, art. XXV, item 01: “Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direi37

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

to à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle”.

A Declaração Universal de Direitos Humanos é um documento fundante da vigente ordem jurídica internacional, que nada mais é do que a superestrutura do sociometabolismo global do capital. Este reconhecimento do direito à moradia – e também de outros direitos que expressam necessidades básicas dos trabalhadores – foi certamente um avanço na luta jurídica. Mas isto não significou a satisfação mundial das necessidades habitacionais dos trabalhadores. A Declaração de 1948 e os Pactos67 de 1966 conformam o arcabouço normativo básico do sistema universal de direitos humanos. E um dos tratados de 1966, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, no art. 11, item 1, dispôs que: “Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria continua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento”.

Aqui, o direito já aparece enunciado como “moradia adequada”, uma qualificação que reconhece que há certos tipos de moradias inadequadas, as quais seriam incompatíveis com a garantia jurídica em questão. É dizer, vai além da mera previsão do direito à moradia da Declaração de 1948, agora a garantia internacional é de moradia adequada. Mais um avanço em nível internacional na luta jurídica pela moradia, agora por meio de um tratado que, em 2016, conta com 164 Estados68. Tratados específicos também veicularam o direito à moradia. Veja-se a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965, art. V: 67 Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. 68 https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=IV-3&chapter=4&lang= en, acesso em 20 mai. 2016.

38

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

“Em conformidade com as obrigações fundamentais enunciadas no artigo 2, os Estados-partes comprometem-se a proibir e a eliminar a discriminação racial em todas as suas formas e a garantir o direito de cada um à igualdade perante a lei, sem distinção de raça, de cor ou de origem nacional ou étnica, principalmente no gozo dos seguintes direitos: (...) e) direitos econômicos, sociais e culturais, principalmente: i) direitos ao trabalho, à livre escolha de trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho, à proteção contra o desemprego, a um salário igual para um trabalho igual, a uma remuneração equitativa e satisfatória; ii) direito de fundar sindicatos e a eles se afiliar; iii) direito à habitação; iv) direitos à saúde pública, a tratamento médico, à previdência social e aos serviços sociais; v) direito à educação e à formação profissional; vi) direito à igual participação nas atividades culturais”.

Igualmente, na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979, em artigo que trata especificamente da mulher que vive em zona rural, art. 14.2, item h: “Os Estados-partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher nas zonas rurais, a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, que elas participem no desenvolvimento rural e dele se beneficiem, e em particular assegurar-lhes-ão o direito a: (...) h) gozar de condições de vida adequadas, particularmente nas esferas da habitação, dos serviços sanitários, da eletricidade e do abastecimento de água, do transporte e das comunicações”.

Além disso, o direito à moradia também está previsto na Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, art. 27, item 03: “Os Estados Partes, de acordo com as condições nacionais e dentro de suas possibilidades, adotarão medidas apropriadas a fim de ajudar os pais e outras pessoas responsáveis pela criança a tornar efetivo esse direito e, caso necessário, proporcionarão assistência material e programas de apoio, especialmente no que diz respeito à nutrição, ao vestuário e à habitação”.

Como se vê, em todos estes tratados internacionais, que tratam de direitos de grupos com vulnerabilidades específicas, o direito à moradia aparece previsto como um direito social, em regra em conjunto com outras necessi39

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

dades básicas expressas também como direitos sociais a serem assegurados pelos Estados aderentes. Além disso, diplomas internacionais mais específicos também enunciaram o direito à moradia: a Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver, decorrente da Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos de 1976, dispõe, nas Seções II.1 e III.8, respectivamente, que “A melhoria da qualidade de vida dos seres humanos é o primeiro e mais importante objetivo de qualquer política de assentamento humano. Estas políticas devem facilitar a melhoria rápida e contínua da qualidade de vida de todas as pessoas, começando com a satisfação das necessidades básicas de alimentação, abrigo, água limpa, emprego, saúde, educação, formação, segurança social, sem qualquer discriminação no que se refere a raça, cor, sexo, língua, religião, ideologia, origem nacional ou social ou outras causas, no quadro da liberdade, dignidade e justiça social”; “Abrigo e serviços adequados são um direito humano básico, que obriga os governos a garantir a sua realização para todas as pessoas, a começar pela assistência direta aos menos favorecidos através de programas de autoempoderamento e ação comunitária. Os governos deveriam se esforçar para remover todos os obstáculos que impedem a realização desses objetivos. De especial importância é a eliminação da segregação social e racial, inter alia, através da criação de comunidades diversificadas, que misture diferentes grupos sociais, ocupações, habitações e instalações”69.

Neste documento, mais específico, já se vê a preocupação em enunciar o direito à moradia ligado a uma concepção ampla de qualidade de vida, não restringindo o conceito apenas ao fato de se estar sob um teto, detalhando a noção de moradia adequada que fora prevista no pacto social de 1966. Não só habitação, mas habitação digna, num contexto com qualidade de vida. As garantias jurídicas avançam mais ainda no reconhecimento do direito à moradia. Estes avanços ocorrem num contexto de amplo otimismo – nos países de capitalismo avançado – quanto ao Estado Social, provedor dos direitos mais básicos para toda a população.

69 Tradução livre do documento em inglês disponível em http://unhabitat.org/the-vancouverdeclaration-on-human-settlements-from-the-report-of-habitat-united-nations-conference-onhuman-settlements-vancouve r-canada-31-may-to-11-june-1976/, acesso em 9 abr. 2015.

40

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

A segunda Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos, em 1996, reafirmou o “compromisso com a total e progressiva realização do direito a moradias adequadas, conforme estabelecido em instrumentos internacionais”. Estabeleceu também que, com “a participação dos nossos parceiros públicos, privados e não-governamentais, em todos os níveis” se busca assegurar a garantia legal de posse, a “proteção contra discriminação e igual acesso a moradias adequadas, a custos acessíveis, para todas as pessoas e suas famílias”. Interessante notar que o contexto desta segunda conferência é completamente diferente do da primeira, os Estados sociais estavam crise, o Estado soviético se desmantelara, o neoliberalismo avançava em todo o mundo. Sintomaticamente, os parceiros privados e não-governamentais aparecem como agentes importantes, ao lado do Estado, para assegurar a segurança na posse e o acesso a moradia adequada. Outro documento decorrente desta segunda Conferência foi a “Agenda Habitat”, na qual diversos parágrafos se referem aos direitos humanos e ao direito à moradia, em especial o parágrafo 61, onde se lê: “Desde a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, o direito à habitação adequada tem sido reconhecido como um componente importante direito a um padrão de vida adequado. Todos os Governos, sem exceção, têm responsabilidades no setor habitacional, conforme exemplificado pela criação de agências ou ministérios de habitação, pela alocação de fundos e por suas políticas, programas e projetos para o setor. A provisão de moradia adequada para todos exige ação não somente por parte de Governos, mas de todos os setores da sociedade, incluindo o setor privado, organizações não governamentais, comunidades e autoridades, além de organizações parceiras e entidades da comunidade internacional. Dentro do contexto geral de uma abordagem facilitadora, Governos devem empreender as ações apropriadas de forma a promover, proteger e garantir a realização progressiva e total do direito à habitação adequada.” 70 70 A tradução não oficial está disponível em http://www.empreende.org.br/pdf/Programas%20e%20 Pol%C3%ADticas%20Sociais/Agenda%20Habitat%20para%20Munic%C3%ADpios.pdf, acesso em 21 mai. 2016. No original, disponível em http://www.ohchr.org/Documents/Publications/FS21_rev_1_ Housing_en.pdf, acesso em 21 mai. 2016, se lê: “Since the adoption of the Universal Declaration of Human Rights in 1948, the right to adequate housing has been recognized as an important component of the right to an adequate standard of living. All Governments without exception have a responsibility in the shelter sector, as exemplified by their creation of ministries of housing or agencies, by their

41

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

O texto da “Agenda Habitat” colocará nos parágrafos seguintes uma série de avançadas garantias sobre desenvolvimento sustentável de assentamentos humanos, eficiência de mercados habitacionais, cooperação internacional, política de habitação, etc. No já referido artigo 61, enuncia regras não exaustivas as ações que o poder público deve realizar: (a) Garantia, em termos de habitação, que a lei proíba quaisquer formas de discriminação e assegure a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra discriminação de qualquer tipo, como raça, cor, sexo, língua, religião, opiniões políticas ou outras, origem social ou nacional, propriedade, nascimento ou outro status. (b) Garantias legais de segurança da posse e igual acesso à terra para todos, incluindo mulheres e pessoas vivendo na pobreza, além de proteção eficaz contra despejos forçados contrários à lei, considerando os direitos humanos, e que os desabrigados não devem ser penalizados pela sua condição. (c) Adoção de políticas voltadas para tornar as moradias habitáveis, acessíveis e a custos baixos e viáveis – inclusive para aqueles que não são capazes de garantir habitações adequadas por seus próprios meios, dentre outras ações: (i) Aumento da oferta de moradias de custos acessíveis por meio de medidas regulatórias e incentivos de mercado; (ii) Aumento da capacidade de compra através da provisão de subsídios e aluguel e outras formas de assistência à habitação para pessoas vivendo na pobreza; (iii) Apoio a programas comunitários, cooperativistas, de aluguel sem fins lucrativos e de moradia própria; (iv) Promoção de serviços para os desabrigados e outros grupos vulneráveis; (v) Mobilização de recursos financeiros inovadores e outros recursos – públicos e privados – para habitação e desenvolvimento comunitário; (vi) Criação e promoção de incentivos de mercado para estimular o setor privado a atender à necessidade de aluguéis e habitações próprias a preços acessíveis; (vii) Promoção de padrões de desenvolvimento espacial sustentável e sistemas de transporte que melhorem a acessibilidade a produtos, serviços, áreas de lazer e ao trabalho. (d) Monitoramento eficaz e avaliação das condições de habitação, incluindo a dimensão do déficit e da inadequação habitacional e, allocation of funds for the housing sector and by their policies, programmes and projects. The provision of adequate housing for everyone requires action not only by Governments, but by all sectors of society, including the private sector, nongovernmental organizations, communities and local authorities, as well as by partner organizations and entities of the international community. Within the overall context of an enabling approach, Governments should take appropriate action in order to promote, protect and ensure the full and progressive realization of the right to adequate housing.”

42

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

em consulta com as populações afetadas, formular e adotar políticas habitacionais apropriadas e implementar estratégias e planos efetivos para solucionar esses problemas.” 71

Nos dois últimos documentos mencionados, como é típico no direito internacional, tanto mais quando se trata de recomendações de agências internacionais e não de tratados diretamente assinados pelos Estados, as garantias são formuladas sem a força vinculativa de direitos subjetivos imediatamente exigíveis72 – daí a explícita previsão de “progressiva realização”, muito comum quando se trata de direitos sociais. Mesmo com esta limitação, ali estava assegurado o direito à moradia com amplo detalhamento sobre seu alcance, mais um grande avanço na luta jurídica por moradia.

71 Tradução não oficial está disponível em http://www.empreende.org.br/pdf/Programas%20e%20 Pol%C3%ADticas%20Sociais/Agenda%20Habitat%20para%20Munic%C3%ADpios.pdf, acesso em 21 mai. 2016. No original, disponível em http://www.ohchr.org/Documents/Publications/FS21_ rev_1_Housing_en.pdf, acesso em 21 mai. 2016, se lê: “These actions include, but are not limited to: (a) Providing, in the matter of housing, that the law shall prohibit any discrimination and guarantee to all persons equal and effective protection against discrimination on any ground such as race, colour, sex, language, religion, political or other opinion, national or social origin, property, birth or other status; (b) Providing legal security of tenure and equal access to land for all, including women and those living in poverty, as well as effective protection from forced evictions that are contrary to the law, taking human rights into consideration and bearing in mind that homeless people should not be penalized for their status; (c) Adopting policies aimed at making housing habitable, affordable and accessible, including for those who are unable to secure adequate housing through their own means, by, inter alia: (i) Expanding the supply of affordable housing through appropriate regulatory measures and market incentives; (ii) Increasing affordability through the provision of subsidies and rental and other forms of housing assistance to people living in poverty; (iii) Supporting communitybased, cooperative and non-profit rental and owner-occupied housing programmes; (iv) Promoting supporting services for the homeless and other vulnerable groups; (v) Mobilizing innovative financial and other resources - public and private - for housing and community development; (vi) Creating and promoting market-based incentives to encourage the private sector to meet the need for affordable rental and owner-occupied housing; (vii) Promoting sustainable spatial development patterns and transportation systems that improve accessibility of goods, services, amenities and work; (d) Effective monitoring and evaluation of housing conditions, including the extent of homelessness and inadequate housing, and, in consultation with the affected population, formulating and adopting appropriate housing policies and implementing effective strategies and plans to address those problems”. 72 Não se adentrará nas filigranas jurídicas da internalização do direito internacional. Basta mencionar que, no Brasil, após Emenda Constitucional nº 45, de 2004, tratados internacionais adquirem força constitucional se aprovados por rito similar ao de emenda constitucional. Tratados anteriores teriam força supralegal, mas infraconstitucional, segundo entendimento do STF (RE 466.343-SP).

43

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Também se previu disposição relativa a direito à moradia na Agenda 21 sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1992. No Capítulo 7 (Promoção do Desenvolvimento Sustentável dos assentamentos humanos), item 6, lê-se que “O acesso a habitação segura e saudável é essencial para o bem-estar físico, psicológico, social e econômico das pessoas, devendo ser parte fundamental das atividades nacionais e internacionais. O direito a habitação adequada enquanto direito humano fundamental está consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Apesar disso, estima-se que atualmente pelo menos 1 bilhão de pessoas não disponham de habitações seguras e saudáveis e que, caso não se tomem as medidas adequadas, esse total terá aumentado drasticamente até o final do século e além.”

Ainda, diversas resoluções sobre o assunto foram adotadas por órgãos da ONU, como, por exemplo, a Resolução 2000/201373 (E/CN.4/2000/13, 17 abr. 2000) da Comissão de Direitos Humanos, sobre direito das mulheres à propriedade igualitária, acesso e controle sobre a terra e sobre direitos iguais à propriedade e à moradia adequada; as Resoluções 1997/19 (E/CN.4/Sub.2/ RES/1997/19), 1998/15 (E/CN.4/Sub.2/RES/1998/15) e 1999/15 (E/CN.4/Sub.2/ RES/1999/15), da Subcomissão para a Prevenção da Discriminação e Proteção de Minorias, sobre o direito das mulheres a moradia adequada, à terra e à propriedade, e sobre o mulheres e direito ao desenvolvimento; e a resolução 42/1 (E/CN.6/1998/12), da Comissão sobre a Condição Jurídica e Social da Mulher, ligada ao Conselho Econômico e Social da ONU, sobre direitos humanos e discriminação nos direito fundiário. Institucionalmente, a ONU possui uma agência especializada para a questão da habitação, o Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (Habitat), ligada à Assembleia Geral. Possui também uma Relatoria Especial para o Direito à Moradia Adequada74, ligada ao Conselho de Direitos Humanos. Assim, a luta jurídica também logrou forjar espaços institucionais

73 Esta Subcomissão atualmente está ligada ao Conselho de Direitos Humanos e se chama Subcomissão para a promoção e proteção dos direitos humanos. 74 http://www.ohchr.org/EN/Issues/Housing/Pages/HousingIndex.aspx.

44

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

onde podem ser encaminhadas as questões do direito à moradia, e tudo isso com abrangência global. No âmbito interno, o direito à moradia também tem farta enunciação. Está previsto na Constituição Federal do Brasil no art. 6º, num rol não exaustivo de direitos sociais: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Esta redação foi dada pela Emenda Constitucional n. 26, de 14 fev. 2000, incluindo no rol originário o direito à moradia. Antes da previsão expressa, já se entendia que o direito à moradia decorria da proteção à dignidade humana e da meta de construção de uma sociedade justa, livre e igualitária75. Este direito também está previsto em diversos diplomas legais76 e infralegais77, com destaque para o Estatuto da Cidade, lei 10.257/2001, e para os planos diretores municipais. Assim, como se pode observar, não é por falta de garantia legislativa nacional e internacional que há pessoas em situação de rua, pessoas sem-teto e

75 O. SERRANO JUNIOR, O Direito Humano Fundamental à Moradia Digna, 2012, p. 86. 76 Tratando diretamente da garantia à habitação ou a especificando, mencione-se, exemplificativamente, o decreto-lei 9.760/1946, que dispõe sobre os bens imóveis da União; a lei 4.591/1964, que dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias; Decreto-lei 271/1967, que dispõe sobre o loteamento urbano e responsabilidade do loteador; lei 6767/1979, que dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano; a lei 10.188/2001, que criou o Programa de Arrendamento Residencial e institui o arrendamento residencial com opção de compra; a lei 9.636/1998, que dispõe sobre a regularização, administração, aforamento e alienação de bens imóveis de domínio da União; lei 11.124/2005, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social – SNHIS, cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS e institui o Conselho Gestor do FNHIS; lei 11.445, de 05 de jan. de 2007, que estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico; Medida Provisória n. 2.220, de 04 set. 2001, que dispõe sobre a concessão de uso especial de que trata o § 1o do art. 183 da Constituição, cria o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano – CNDU; a lei 11.977/2009, que dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas. 77 Tratando diretamente da garantia à habitação ou a especificando, mencione-se, na seara infralegal, exemplificativamente, o provimento 44/2015 do CNJ, que estabelece normas gerais para o registro da regularização fundiária urbana; as resoluções CONAMA nº 369/2006, que dispõe sobre os casos excepcionais, de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental, que possibilitam a intervenção ou supressão de vegetação em Área de Preservação Permanente-APP; Ministério das Cidades nº 127, de 16 set. 2011, que deliberou que as obras e empreendimentos que envolvam recursos federais voltados ao desenvolvimento urbano que ensejem reassentamentos, especialmente as intervenções previstas na Matriz de Responsabilidade da Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas 2016, garantam o direito à moradia e à cidade no seu processo de implantação.

45

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

pessoas vivendo em condições habitacionais inadequadas. Qual seria, então, o papel de toda esta positivação? O papel central é o seguinte: a captura, pelo direito, da luta pelas necessidades básicas dos trabalhadores, especificamente, da luta pelo direito à moradia. Numa análise sobre outro ramo do direito, o direito do trabalho, Bernard Edelman chegou à seguinte conclusão: “Sem voz ou, quando toma a palavra, acusada de anacronismo – ao lado de Lenin e Marx, o que não é tão mal –, acusada de espontaneísmo – ao lado de Mao –, ‘presa’, capturada nas categorias jurídicas, esmagada pela ideologia, pela tecnicidade, pelo economicismo, ela é obrigada a negociar, a exprimir-se na linguagem do ‘comedimento’, da ordem e do direito”78.

A captura pela linguagem do comedimento se dá potencialmente sempre que haja algum tipo de conflito de classe que se busca conter: na venda da força de trabalho, o direito do trabalho/direito sindical é o terreno adequado em que deve negociar; a condição para a venda da força de trabalho é o despojamento do trabalhador, e os conflitos neste terreno também são abduzidos para a arena especificamente jurídica. É dizer, a captura para a gramática do direito cria uma arena específica para o embate entre as classes e define as armas que cada participante do embate pode usar. As classes se diluem em sujeitos de direito e até mesmo em sujeitos de direitos coletivos. Também a luta pela habitação deve se limitar a ser uma luta jurídica pelo direito à moradia.

2.2. Direito à moradia como direito social Os assim chamados direitos humanos de segunda geração79 aparecem historicamente como resposta aos problemas sociais da expansão do capitalismo no século XIX. São eles os direitos sociais, econômicos e culturais, os direitos da 78 B. EDELMAN, A legalização da classe operária, 2016, p. 141. 79 A Teoria Geracional dos direitos humanos foi desenvolvida por Karel Vasak e é tida atualmente como uma teoria didática da história dos direitos humanos. Ela distingue três gerações (ou dimensões) de direitos: os direitos humanos de 1ª geração, que trazem como bandeira o direito à liberdade, na voz dos direitos civis e políticos; os direitos humanos de 2ª geração, que promovem o valor da igualdade e referem-se, sobretudo, aos direitos econômicos, sociais e culturais; e os direitos humanos de 3ª geração, que tomam como vetor o valor da solidariedade e envolvem os direitos difusos (em especial o direito ao desenvolvimento, o direito à autodeterminação dos povos, o direito ao meio ambiente,

46

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

igualdade material, os direitos que exigem do Estado prestações aos trabalhadores para evitar que vivam na pobreza e na miséria decorrentes das tendências do capital de absorver as riquezas sociais para sua reprodução e de manter os trabalhadores nos níveis de subsistência. Reivindicações sociais são reconhecidas como direitos pelo Estado. As classes trabalhadoras conquistam e aderem ao poder estatal. O que viabiliza esta guinada e o desenvolvimento de um Estado social capitalista é um contexto específico de massificação do consumo e da produção de bens de consumo. Os primeiros direitos sociais surgem como estímulo à ampliação do mercado consumidor, sob a bandeira do combate às crises capitalistas de superprodução. Mas o crescimento do mercado consumidor80 apenas expandirá o universo sobre o qual as crises se abatem. Há uma mudança profunda: se a questão social era estranha ao Estado liberal e com ela se lidava essencialmente por meio da caridade ou da repressão, com o Welfare State a questão social passa a ser atribuição do Estado enquanto promoção de certo nível de subsistência para as classes trabalhadoras. O Estado passa a ser garantidor não apenas da “paz” na produção, mas também de um mercado consumidor ampliado essencial à circulação. A partir deste patamar é que as condições mínimas de dignidade viáveis em dado momento e lugar são reconhecidas e asseguradas como “direito social”. Apenas nestes limites é que se pode dizer que há juridicidade destes direitos sociais: enquanto estes estejam reconhecidos e efetivados nos limites do que a reprodução do capital suporta em dado contexto (tempo e lugar); para além disso, se está no terreno da utopia concreta81 ou da luta política, não mais no terreno da juridicidade. o direito à paz). Estes últimos tratam de interesses da humanidade como um todo, de povos, ou de interesses intergeracionais. 80 Como observa F. R. BATISTA, Os limites do bem-estar no Brasil, 2015, p. 624, “A criação do mercado consumidor interno ocorre como garantia de emprego a quem pode trabalhar e de renda a quem não pode. Por isso o Estado social se constitui pelo patrocínio de políticas de pleno emprego com condições ótimas de trabalho, donde o crescimento também dos direitos trabalhistas junto com os níveis de emprego, e pela criação de um om sistema de previdência e assistência social, de modo a redistribuir renda para o consumo”. 81 No sentido apontado por A. L. MASCARO. Utopia e Direito – Ernst Bloch e a Ontologia Jurídica da Utopia, 2008, pp. 14, 113, 114 e 160, lendo E. Bloch, cujo “mote é bastante diverso da utopia tomada tradicionalmente pela filosofia e pela política”. Daí a distinção entre utopia abstrata (apoiada no idealismo, no imaginário, no não-lugar, no inexistente, como a Utopia de Thomas Morus) e utopia concreta (a qual parte da atividade humana, da realidade e de suas contradições dialéticas, das quais se descobre as possibilidades efetivas). Daí ser “a utopia concreta... uma práxis voltada ao amanhã”.

47

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Os direitos humanos de segunda geração não podem tocar no despojamento do trabalhador, na liberdade e igualdade para a venda da força de trabalho. Os seus limites são justamente o nível de despojamento adequado à exploração da mão de obra num dado contexto. Com o surgimento dos “direitos sociais”, o direito à moradia é uma das necessidades que passa a ser definida como tal. A habitação, como outras necessidades básicas de subsistência humana, passa a ser assegurada como norma jurídica estatal, passa a ser uma obrigação do Estado, obrigação de proteção, de promoção e de regulação. E as normas jurídicas evoluem paulatinamente, no âmbito internacional e interno, até ser assegurada não apenas a habitação, mas a habitação digna e os correlatos direitos que permitem a sua existência. Neste sentido, o Comentário Geral n.º 4, do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, sobre o direito a uma habitação condigna, que parte da noção de que tal direito “não deveria ser interpretado em um sentido estreito ou restrito que o equipara com, por exemplo, o abrigo provido meramente de um teto sobre a cabeça dos indivíduos ou julga o abrigo exclusivamente como uma mercadoria”. O Comentário, então, define os elementos básicos de adequabilidade de uma moradia em qualquer contexto: “a. Segurança legal de posse. A posse toma uma variedade de formas, incluindo locação (pública e privada) acomodação, habitação cooperativa, arrendamento, uso pelo próprio proprietário, habitação de emergência e assentamentos informais, incluindo ocupação de terreno ou propriedade. Independentemente do tipo de posse, todas as pessoas deveriam possuir um grau de sua segurança, o qual garanta proteção legal contra despejos forçados, pressões incômodas e outras ameaças. Estados-partes deveriam, conseqüentemente, tomar medidas imediatas com o objetivo de conferir segurança jurídica de posse sobre pessoas e domicílios em que falta proteção, em consulta real com pessoas e grupos afetados. b. Disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e infra-estrutura. Uma casa adequada deve conter certas facilidades essenciais para saúde, segurança, conforto e nutrição. Todos os beneficiários do direito à habitação adequada deveriam ter acesso sustentável a recursos naturais e comuns, água apropriada para beber, energia para cozinhar,

MASCARO ainda aproxima E. Bloch de E. B. Pachukanis ao afirmar que ambos comungam da visão do “caráter utópico da sociedade sem Estado e sem direito e, portanto, sem dominação institucional”.

48

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

aquecimento e iluminação, facilidades sanitárias, meios de armazenagem de comida, depósito dos resíduos e de lixo, drenagem do ambiente e serviços de emergência. c. Custo acessível. Os custos financeiros de um domicílio associados à habitação deveriam ser a um nível tal que a obtenção e satisfação de outras necessidades básicas não sejam ameaçadas ou comprometidas. Passos deveriam ser tomados pelos Estados-partes para assegurar que a porcentagem dos custos relacionados à habitação seja, em geral, mensurado de acordo com os níveis de renda. Estados-partes deveriam estabelecer subsídios habitacionais para aqueles incapazes de arcar com os custos da habitação, tão como formas e níveis de financiamento habitacional que adequadamente refletem necessidades de habitação. De acordo com o princípio dos custos acessíveis, os possuidores deveriam ser protegidos por meios apropriados contra níveis de aluguel ou aumentos de aluguel não razoáveis. Em sociedades em que materiais naturais constituem as principais fontes de materiais para construção, passos deveriam ser tomados pelos Estados-partes para assegurar a disponibilidade desses materiais. d. Habitabilidade. A habitação adequada deve ser habitável, em termos de prover os habitantes com espaço adequado e protegê-los do frio, umidade, calor, chuva, vento ou outras ameaças à saúde, riscos estruturais e riscos de doença. A segurança física dos ocupantes deve ser garantida. O Comitê estimula os Estados-partes a, de modo abrangente, aplicar os Princípios de Saúde na Habitação, preparado pela OMS, que vê a habitação como o fator ambiental mais freqüentemente associado a condições para doenças em análises epidemiológicas, isto é, condições de habitação e de vida inadequadas e deficientes são invariavelmente associadas com as mais altas taxas de mortalidade e morbidade. e. Acessibilidade. Habitações adequadas devem ser acessíveis àqueles com titularidade a elas. A grupos desfavorecidos deve ser concedido acesso total e sustentável para recursos de habitação adequada. Assim, a grupos desfavorecidos como idosos, crianças, deficientes físicos, os doentes terminais, os portadores de HIV, pessoas com problemas crônicos de saúde, os doentes mentais, vítimas de desastres naturais, pessoas vivendo em áreas propensas a desastres, e outros deveriam ser assegurados um patamar de consideração prioritária na esfera habitacional. Leis e políticas habitacionais deveriam levar em conta as ne49

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

cessidades especiais de habitação desses grupos. Internamente, muitos Estados-partes, aumentando o acesso a terra àqueles que não a possuem ou a segmentos empobrecidos da sociedade, deveriam constituir uma meta central de políticas. Obrigações governamentais precisam ser desenvolvidas, objetivando substanciar o direito de todos a um lugar seguro para viver com paz e dignidade, incluindo o acesso para o terreno como um direito reconhecido. f. Localização. A habitação adequada deve estar em uma localização que permita acesso a opções de trabalho, serviços de saúde, escolas, creches e outras facilidades sociais. Isso é válido para grandes cidades, como também para as áreas rurais, em que os custos para chegar ao local de trabalho podem gerar gastos excessivos sobre o orçamento dos lares pobres. Similarmente, habitações não deveriam ser construídas em locais poluídos nem nas proximidades de fontes de poluição que ameacem o direito à saúde dos habitantes. g. Adequação cultural. A maneira como a habitação é construída, os materiais de construção usados e as políticas em que se baseiam devem possibilitar apropriadamente a expressão da identidade e diversidade cultural da habitação. Atividades tomadas a fim do desenvolvimento ou modernização na esfera habitacional deveriam assegurar que as dimensões culturais da habitação não fossem sacrificadas, e que, entre outras, facilidades tecnológicas modernas sejam também asseguradas.”

Nada mais compreensivo e inclusivo. Articula-se o direito à moradia ao direto à cidade e à regulação urbanística, à segurança, habitabilidade e padrões culturais plurais. Mas a garantia jurídica à habitação é apenas mais uma no ordenamento, deve conviver e ser ponderada com outras garantias, com a liberdade, a igualdade, a propriedade privada e o livre trânsito de mercadorias – inclusive das que servem à habitação. A equação não fecha. A inefetividade crônica dos direitos sociais passa a ser típica do novo contexto de garantias jurídicas sociais. Direto ao ponto: os direitos sociais não superam as necessidades sociais dos trabalhadores, antes, as consolidam e criam uma arena própria para a sua discussão, a arena do direito. A doutrina jurídica romano-germânica, na segunda metade do século XX, passou por alterações principiológicas e pretendeu produzir um direito mais aberto à moral e à política, menos positivista, e também mais atento às decisões 50

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

judiciais82 e ao papel da interpretação, enfim, mais adaptado a novos tempos capitalistas. Será que esta “evolução do direito” pode levar a romper as dificuldades de satisfação das necessidades habitacionais dos trabalhadores? Senão vejamos. Princípios como o da função social da propriedade estabelecem limites ao direito de propriedade, rejeitando a concepção que este seria um direito absoluto. Por este meio, seria possível resolver o problema da falta de habitação? Uma perspectiva mais principiológica no direito levaria a uma aceitação maior do direito à moradia, a uma maior implementação das necessidades habitacionais pela via jurídica? A resposta categórica é não. Primeiro, observe-se como a doutrina jurídica vê a função social da propriedade. A função social da propriedade, especificamente, é conceito que afeta a propriedade a uma função que transcende os poderes do proprietário (usar, gozar, dispor e reaver). Foi desenvolvida inicialmente por Leon Duguit, antes mesmo de os direitos sociais serem aceitos como tais na doutrina jurídica e na legislação. Este autor contestava a noção de propriedade como direito subjetivo (individualista) e a via como função social. Atualmente, a doutrina civilista moderna entende haver uma “constitucionalização do direito civil”, com a submissão das regras do direito privado à dignidade da pessoa humana. Porém, as ideias refletem a realidade e não o contrário, por isso, positivamente, a propriedade continua sendo prevista como um direito. A doutrina 82 Veja-se, quanto a estas, como a função social e o direito à moradia podem ser implementados por um Tribunal: APELAÇÕES CÍVEIS. EMBARGOS DE TERCEIRO. DIREITO A MORADIA. DIREITO SOCIAL MÍNIMO. GARANTIA FUNDAMENTAL. ENTRECHOQUE COM DIREITO DE CRÉDITO. GARANTIA POR LEI ORDINÁRIA. PREVALÊNCIA. A função social da propriedade transcende não só à própria lei substantiva, mas também ao próprio direito individual, notadamente o direito de crédito. O direito à moradia de uma comunidade, como mínimo social, possui prevalência sobe o direito de crédito de instituição financeira. Apelações do banco improvidas e providas as apelações dos embargantes. Sucumbência redimensionada. (acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível Nº 70016616682, Décima Nona Câmara Cível, Relator Guinther Spode, Julgado em 10/10/2006). Esta decisão foi logo em seguida cassada pelo Tribunal, AgRg no REsp 974504(2007/0188692-3 - 21/09/2015), Decisão Monocrática- Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, com base em um precedente técnico: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. HIPOTECA. EFETIVAÇÃO ANTERIOR À AQUISIÇÃO DO IMÓVEL. EFICÁCIA. PREQUESTIONAMENTO DE TEMA CONSTITUCIONAL. DESCABIMENTO. I - Salvo nos casos de aquisições feitas através do Sistema Financeiro de Habitação, com vistas à obtenção da casa própria, o instituto da hipoteca deve ser prestigiado. Principalmente se o gravame é efetivado antes da celebração da compra e venda. II - Os embargos de declaração se prestam a expungir do julgado eventuais omissão, obscuridade ou contradição, não se caracterizando meio próprio à discussão de matéria constitucional, ainda que para fins de prequestionamento. Embargos de declaração acolhidos com fins aclaratórios, sem modificação do julgado.

51

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

jurídica descreve bem este fenômeno: “Estamos em crer que, ao lume do direito positivo constitucional, a propriedade ainda está claramente configurada como um direito que deve cumprir uma função social e não como sendo pura e simplesmente uma função social, isto é, bem protegido tão só na medida em que a realiza”83. Ou seja, o direito de propriedade deve cumprir uma função social. Segundo ponto, o legislativo. As coisas ficam mais claras: há limites também na função social. Aliás, ela nada mais é do que enuncia seu próprio nome, uma das funções da sociedade em que impera o sociometabolismo do capital. No Brasil, a função social da propriedade rural foi estabelecida na própria Constituição Federal, prevendo-se critérios objetivos para a verificação de sua observância: Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. (...) Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Observe-se que o direito de propriedade continua protegido mesmo quando não cumpre uma função social: a desapropriação decorrente da improdutividade do latifúndio garante a indenização ao proprietário, o que nada mais é do que uma proteção ao mero título jurídico sobre a terra.

83 C. A. BANDEIRA DE MELLO, Elementos de Direito Administrativo. São Paulo, Malheiros, 1987, p. 41.

52

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Não há na Constituição critérios similares para a função social da propriedade urbana. Apenas em 2001, o Estatuto da Cidade veio a estabelecer que: “Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei.”

Mas o dispositivo ainda é vago, necessitando de regulamentação municipal (ou estadual no caso de metrópoles). Apenas em 2013 a cidade de São Paulo, pioneiramente, cria um “Departamento de Controle Função Social da Propriedade-DCFSP”, na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, quando iniciará a aplicação do IPTU progressivo. Este prevê que em caso de descumprimento de obrigações de “parcelamento, edificação ou utilização compulsórios” (artigo 5º do Estatuto da cidade), “o Município procederá à aplicação do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU) progressivo no tempo, mediante a majoração da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos” (artigo 7º do Estatuto da cidade). Passados os 5 anos, possível a desapropriação com títulos da dívida pública. É dizer, a propriedade privada continua protegida, mesmo sem cumprir por anos a função social, já que a desapropriação se realiza com indenização com títulos da dívida pública. A “sanção” não importa em prejuízo financeiro direto ao proprietário descumpridor da função social. O Estatuto da Cidade resultou de lutas sociais por uma cidade mais inclusiva, tendo nele sido positivada uma “estratégia de regulação distributivista do solo”, centrada em instrumentos que deveriam permitir o acesso da população de baixa renda à terra urbanizada, “como as ZEIS de vazios e os instrumentos de sanção à retenção especulativa de terrenos em áreas bem localizadas e a chamada ‘gestão social da valorização mobiliária, que incluía o estabelecimento de instrumentos para captura de mais-valias imobiliárias para fundos públicos”84. Mas o contexto de sua aprovação era o do auge do neoliberalismo no Brasil, o qual não foi revertido nos governos subsequentes do PT (Partido dos Trabalhadores). Fato é que diversos princípios adotados no “Estatuto” decorreram de propostas

84 R. ROLNIK. 10 anos do Estatuto da Cidade: Das Lutas pela Reforma Urbana às Cidades da Copa do Mundo, 2013.

53

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

de movimentos sociais relacionados à luta da Reforma Urbana85, princípios cuja efetivação, entretanto, encontrariam diversos obstáculos no contexto de políticas de viés neoliberais. É neste sentido que observa Rolnik que

Os princípios previstos no artigo 2º do Estatuto da Cidade buscavam justamente efetivar as propostas deste movimento pela Reforma Urbana. Estes princípios são chamados “diretrizes gerais” no referido artigo, que assim dispõe:

“enquanto o movimento pela Reforma Urbana procurava fomentar o debate em torno da desmercantilização do solo urbano, em várias cidades brasileiras, Planos Estratégicos desenhados para reposicionar as cidades no âmbito da competição global pela atração de investimentos internacionais, plataforma neoliberal de resposta a crise, era também experimentada”86.

Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

O Estatuto trazia vitórias jurídicas que deveriam se submeter a um contexto econômico-social bastante restritivo: “Com a crise da dívida no Terceiro Mundo, no início dos anos 80, o frágil padrão de financiamento das cidades até então constituído, ruiu. Nessa ocasião, ocorre um importante aumento da influência e do poder de barganha das instituições multilaterais nas políticas públicas dos países em crise. A ação do BID e do Banco Mundial deixa de ser realizada em termos de recomendações e passa à intervenção mais ativa, como parte das exigências dos acordos de renegociação da dívida, protagonizados pelo Fundo Monetário Internacional. A reforma do sistema habitacional, a descentralização das políticas públicas, a criação de fundos de financiamento onerosos e o “ajuste fiscal das cidades” foram partes importantes das reformas estruturais dos anos 80. Esse último pretendeu corrigir as “distorções” de preços dos serviços públicos (que passariam a cobrar seu custo real), realizar cortes nos subsídios e ampliar as taxas e impostos urbanos”87.

I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social; IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente; V – oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais; VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar: a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos; b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes;

85 Sobre o Movimento Nacional para a Reforma Urbana, vide N. SAULE JR e K. UZZO, A trajetória da reforma urbana no Brasil, disponível em http://www.redbcm.com.br/arquivos/bibliografia/a%20 trajectoria%20n%20saule%20k%20uzzo.pdf, acesso em 05 jun. 2016. 86 R. ROLNIK. 10 anos do Estatuto da Cidade: Das Lutas pela Reforma Urbana às Cidades da Copa do Mundo, 2013, p. 10. 87 P. FIORI ARANTES, O Ajuste Urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades, 2006, p. 66.

54

c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana; d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente;

55

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização; f) a deterioração das áreas urbanizadas; g) a poluição e a degradação ambiental; h) a exposição da população a riscos de desastres (Incluído dada pela Lei n.º 12.608, de 2012); VII – integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área de influência; VIII – adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência; IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização; X – adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais; XI – recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos; XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico; XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população; XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais; XV – simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais; 56

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

XVI – isonomia de condições para os agentes públicos e privados na promoção de empreendimentos e atividades relativos ao processo de urbanização, atendido o interesse social. XVII - estímulo à utilização, nos parcelamentos do solo e nas edificações urbanas, de sistemas operacionais, padrões construtivos e aportes tecnológicos que objetivem a redução de impactos ambientais e a economia de recursos naturais.”

A legislação consolida lutas sociais e busca reduzi-las a disputas no âmbito jurídico, o que muitas vezes acaba apenas por ritualizar os movimentos de lutas sociais e as políticas públicas de distribuição de riqueza. O que há de fato é um urbanismo que distribui status, poder e riqueza sob os influxos do sociometabolismo do capital. Ronaldo Coutinho vai direto ao ponto e observa que: “Não há, em tese, dúvida sobre a intenção e o mérito do Estatuto da Cidade, na medida em que a referida Lei assenta na premissa de que a noção jurídica de propriedade privada hoje não comporta mais em si mesma os pressupostos de uma visão unívoca e absoluta, eis que há expressiva parcela de juristas de acordo com a noção de que a propriedade, como bem de produção, não deve ser simplesmente puro objeto de apropriação privada, mas sim deve reverter à coletividade os benefícios de sua funcionalidade. Em princípio, portanto, os instrumentos urbanísticos referidos no Estatuto da Cidade representariam o arcabouço jurídico de garantia do direito difuso à cidade, entendido este como a construção de uma cidadania participativa e democrática. Contudo, o que permanece intocado nessas abordagens é a lógica subjacente intrínseca à produção e à reprodução capitalista do espaço, lógica que está na própria origem do processo de acumulação do capital, caracterizado pelo desenvolvimento desigual e combinado das forças produtivas e pela contradição fundamental da qual deriva a sociabilidade própria do capitalismo.”88

Assim, o sociometabolismo do capital é que condiciona o desenvolvimento dos direitos sociais de segunda geração, assim como o desenvolvimento do pós-positivismo jurídico e de sua abertura hermenêutica para além do estrito positivismo kelseniano. Se a doutrina jurídica passa a reconhecer que 88 R. COUTINHO. A Mitologia da Cidade Sustentável no Capitalismo, 2011, p. 18-19.

57

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

o direito de propriedade não é um direito absoluto, em nível estrutural, este reconhecimento ocorre para evitar a concentração monopolista da propriedade dos meios de produção. No limite, visa a preservar a própria reprodução sociometabólica do capital. É o próprio estágio de desenvolvimento das forças produtivas e de acumulação do capital que dita os limites de implementação dos direitos sociais. As contradições sociais são mantidas com sucesso sob controle jurídico e político.

2.3. O papel da lei e de seus conflitos de interesse na produção habitacional Todas as garantias de direito à moradia, mais os elevados princípios jurídicos e o aparato judicial existentes, deveriam servir para implementar a habitação para quem não tem. Mas o ordenamento jurídico, visto como um todo, tem cuidado de manter o despojamento do trabalhador e o espaço para acumulação e expansão do capital nos níveis necessários à reprodução deste. Raquel Rolnik, analisando a legislação urbana de São Paulo no início da sua industrialização, explicitou a existência daquilo que ela chamou uma “teia normativa” que tinha como efeito principal não efetivar direitos, mas discriminar espaços de poder e de exclusão: “Uma teia invisível e silenciosa se estende sobre o território da cidade: a legislação urbana, coleção de leis, decretos e normas que regulam o uso e ocupação da terra urbana. Mais do que definir formas de apropriação do espaço permitidas ou proibidas, mais do que efetivamente regular o desenvolvimento de cidade, a legislação urbana atua como linha demarcatória, estabelecendo fronteiras de poder”89.

Realmente, a lei e o direito, historicamente, têm servido como mais um instrumento das classes dominantes para manter privilégios e impor interesses. Com alcance menor, possível na medida em que tal seja comportado pelos imperativos de reprodução do sistema sociometabólico do capital, serve como instrumento distributivo da riqueza socialmente produzida. A “teia invisível e silenciosa”, na verdade, nada mais é do que o sistema jurídico que se ergue 89 R. ROLNIK. Para além da lei: legislação urbanística e cidadania (São Paulo 1886-1936), 1999, p. 2.

58

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

sobre as relações econômicas – bastante visíveis – a moldar a dinâmica das cidades e da habitação. A cidade de São Paulo, cuja expansão urbana foi estudada em detalhes por Rolnik90, é um exemplo de como o uso de regras urbanísticas pelas classes dominantes demarcou localmente as regiões para esta habitar e frequentar e as regiões dos “outros”, dos excluídos da “cidade formal” ou “cidade legal”. O surgimento desta, na verdade, se deu à revelia da legislação urbana, que servia para modelar e regular o acesso às áreas urbanas mais centrais, daí a contraposição entre “cidade ilegal” e “cidade legal”. Esta contraposição mostra como o direito é instrumento mobilizado para assegurar a cisão de classe. As classes trabalhadoras eram excluídas primeiramente pelas leis de mercado, uma vez que não possuíam recursos para a aquisição de terras e moradias nas regiões centrais. Tal exclusão se consolidava com uma legislação urbanística que impunha padrões e regras de ocupação com a finalidade de garantir o padrão de vida dos grupos formuladores da lei. Os espaços que “sobravam” é que acabavam sendo ocupados por populações de baixa renda. Observar o desenvolvimento da cidade de São Paulo é de grande relevância para compreender dinâmicas capitalistas de expansão urbana, já que se tratou de um exemplo de crescimento impulsionado pela industrialização, que atraiu massas de trabalhadores à cidade ao longo do século XX. A expansão da cidade de São Paulo para além da zona central se deu em grande medida à margem da legislação urbanística, mas não à margem das “leis de mercado”: os interesses de empreendedores imobiliários e as necessidades de expansão do capitalismo industrial determinaram a expansão da cidade. Esta expansão seguia um padrão típico no qual o custo da moradia estava excluído ou era diminuto no custo da reprodução da força de trabalho91. Dito de outro modo, a autoprodução das moradias pelos trabalhadores levava a que custos com habitação fossem em grande parte excluídos do salário. Sobre esta questão, observa Flávio Villaça: “cabe destacar o papel da habitação nos custos de reprodução da força de trabalho. Quanto menos da riqueza social for gasto para vestir, alimen90 Vide, por exemplo, R. ROLNIK. Para além da lei: legislação urbanística e cidadania (São Paulo 18861936), 1999, e R. ROLNIK. A cidade e a Lei. Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo, 1997. 91 F. VILLAÇA, O que todo cidadão precisa saber sobre habitação, 1986, p. 7.

59

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

tar, cuidar da saúde e abrigar o trabalhador, tanto maior a parcela dessa mesma riqueza que sobrará para entrar no circuito da acumulação gerando lucros. O valor da parcela da riqueza social dispendida para sustentar e reproduzir o trabalhador, para a reprodução da força de trabalho, é o chamado ‘custo de reprodução da força de trabalho’. Grande parte desse custo é pago com o salário do trabalhador, de maneira que quanto mais alto seu padrão de vida, inclusive seu padrão de habitação, maior terá que ser o seu salário. Nem sempre é possível a burguesia rebaixar ao máximo os níveis de exploração do trabalhador (reduzir ao máximo o custo de reprodução da força de trabalho). Em alguns casos, em virtude da organização e da força política conseguidas pela classe trabalhadora, ela não consegue fazê-lo. Em outros casos, entretanto, havendo trabalhadores sobrando e sendo precário seu nível de organização política, a burguesia pode conseguir aumentar o nível de exploração da força de trabalho através de vários estratagemas. Um deles... é através da redução das condições de vida urbana e de moradia.”

Na dinâmica econômica que moldava a cidade de São Paulo e delimitava os espaços do capital e do trabalho, inicialmente, a regulação urbanística não teve como excluir completamente vilas e cortiços das regiões centrais92. Isto porque, primeiro, “a cidade não é resultado da aplicação inerte do modelo contido na lei”, mas sim “conseqüência da relação que a legalidade urbana estabelece com o funcionamento concreto dos mercados imobiliários que atuam na cidade”93. Em conjunto com isto, o afluxo populacional para a cidade e as necessidades habitacionais desta mão-de-obra industrial não eram acompanhadas pela legislação. Mas quando o espaço das cidades começou a ser disputado com mais intensidade para a própria reprodução do capital, a burguesia não tardou em relacionar a “questão urbana” e a “questão habitacional” à “questão sanitária”, 92 Observa R. ROLNIK. A cidade e a Lei. Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo, 1997, p. 123, que “As configurações das vilas e cortiços, formas de ocupação intensas dos miolos de quadras com espaços individualizados diminutos, contrariava por completo os regulamentos municipais de construção, que definiam desde 1886 as dimensões mínimas dos ‘cortiços, casas de operários e cubículos. De acordo com o Código Municipal, exigia-se uma frente mínima de terreno de 15 metros, e a separação de cada fileira de casas por 5 metros no mínimo. A área mínima de cada cômodo deveria ser de 7,5 metros quadrados, com uma latrina para cada duas habitações e uma área livre de 30 metros quadrados à frente de cada habitação”. 93 R. ROLNIK. Para além da lei: legislação urbanística e cidadania (São Paulo 1886-1936), 1999, p. 2.

60

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

que amedrontava as elites e servia como pretexto para legislações com viés segregacionista. Não era nenhuma novidade criada no contexto do capitalismo periférico brasileiro: no Século XIX, Engels já descrevia claramente o modo como ocorrera movimento similar na Inglaterra industrial: “As modernas ciências da natureza demonstraram que os chamados ‘bairros maus’ onde os operários estão apinhados são os focos de todas as epidemias que de tempos a tempos afligem as nossas cidades. A cólera, o tifo e a febre tifóide, a varíola e outras doenças devastadoras espalham os seus germes no ar pestilento e na água contaminada destes bairros operários. Quase nunca de lá desaparecem, desenvolvendo-se, logo que as circunstâncias o permitem, em grandes epidemias e, ultrapassando então os seus focos, vão atingir também as partes da cidade mais arejadas e sadias habitadas pelos senhores capitalistas. A dominação dos capitalistas não pode permitir-se impunemente o prazer de gerar doenças epidémicas entre a classe operária; as suas consequências recaem também sobre eles próprios e o anjo exterminador desencadeia a sua fúria entre os capitalistas de forma tão brutal como entre os operários.”

A saúde pública se torna um problema para as pessoas e uma solução para o movimento do capital: “A partir do momento em que isto ficou comprovado cientificamente, os humanitários burgueses inflamaram-se numa nobre emulação a favor da saúde dos seus operários. Fundaram-se sociedades, escreveram-se livros, surgiram propostas, foram debatidas e decretadas leis para acabar com as fontes das epidemias, que sempre regressam. Foram investigadas as condições de habitação dos operários e feitas tentativas para remediar os males mais gritantes. Nomeadamente em Inglaterra, onde se situava a maioria das grandes cidades e onde, portanto, o fogo com mais violência pressionava os grandes burgueses, foi desenvolvida uma grande actividade. Foram nomeadas comissões governamentais para investigar as condições sanitárias das classes trabalhadoras; os seus relatórios, que, pela sua exactidão, carácter completo e imparcialidade, distinguindo-se honrosamente de todas as fontes continentais, serviram de base a novas leis mais ou menos incisivamente interventoras.”94

94 F. ENGELS. A Questão da Habitação, 1873, Segunda Seção.

61

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

E também em São Paulo a questão da saúde dos moradores de cortiços passou a interessar enormemente aos “humanitários burgueses” e a intervenção na cidade e nos locais de habitação das classes operárias foi dura. Em 1894, o primeiro Código Sanitário do Estado proibia a habitação coletiva e determinava o desaparecimento das existentes. De acordo com esta legislação, “as casas subdivididas e as vilas operárias – que só podem agrupar-se em conjuntos de até seis moradas – deveriam ficar fora da aglomeração urbana”95. No mesmo ano, uma “Comissão de Exame e Inspeção das Habitações Operárias e Cortiços no Distrito de Santa Ifigênia” constatava a existência de 65 cortiços numa área de 14 quadras96. A “solução” encontrada para o problema foi a segregação: empresários seriam incentivados a “construir casas operárias ‘higiênicas’ em terrenos situados num raio de 15 quilômetros da cidade”97. Nos debates na Câmara Municipal para a viabilização destas habitações populares (que deram origem à lei 498/1900, que estabeleceu prescrições para a construção de casas de habitação operária), sobressaiam as “leis do mercado”, ou seja, a necessidade de equacionar o valor das habitações operárias com o nível dos salários percebidos (que determinava a capacidade de pagamento da contraprestação dos operários pela habitação) e com o preço da terra na cidade (que seria determinante para a localização dos empreendimentos). Neste sentido, “havia um pressuposto de que um negócio rentável de casas operárias requeria uma utilização mais intensa do lote e uma localização fora da ‘cidade’”98. Importante aqui ressaltar o papel que a legislação urbanística tem sobre a habitação – o urbanismo funciona, como já apontado, como marcador de riqueza, status e poder. Nos debates que originaram a lei acima mencionada, estava em questão a possibilidade de a especulação imobiliária atuar lucrativamente em duas frentes: tanto na área central, preservada para os espaços “diferenciados e exclusivos” das elites, como nas áreas periféricas, onde podia obter sua parcela de lucratividade fornecendo moradia às classes operárias. E neste caso, é claro, o interesse, não era o direito à moradia e nem mesmo a solução da “questão da habitação” pela satisfação das necessidades dos trabalhadores, mas a lucratividade do negócio imobiliário, que se constituía como mercado para 95 R. ROLNIK. A cidade e a Lei. Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo, 1997, p. 123. 96 Idem. 97 Idem, p. 124. 98 Idem, p. 125.

62

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

apropriar-se com sua lógica própria da riqueza social produzida pelo trabalho nas indústrias que surgiam na região. Como observa Rolnik: “Ao que tudo indica, sem resolver nem de longe o problema da moradia operária, a lei de 1900 solucionava o problema de um certo grupo de empreendedores, entre eles industriais interessados em construir casas de aluguel para os operários, garantindo para eles, empreendedores, a possibilidade de um investimento de alta rentabilidade, em pleno wild west... Além de permitir possibilidades seguras de retorno para grandes investimentos, a forma de expansão clandestina era de interesse de massas de imigrantes, na medida em que representava um dos meios disponíveis para sua ascensão social. A demanda era, desta forma, acomodada, de tal sorte que as únicas pressões e reclamações por parte dos operários diziam respeito ao alto custo dos aluguéis pagos por opções precárias de moradia”99.

Interessante notar que entre os empreendedores havia industriais que também tornavam empreendedores, num movimento que revela um fenômeno típico do capitalismo: o investimento de excedentes produtivos em outras atividades rentáveis, gerando novos mercados interligados à extração direta de mais-valia. Segundo Marx, o capitalista individual é compelido pelas leis da concorrência a reinvestir parte da mais-valia na própria produção. Isto, no Livro I d’O Capital (que faz abstração dos diversos atores sociais que reivindicam sua parcela na produção social capitalista), aparece claramente. Como explica Harvey100, Marx elabora no Livro I um modelo no qual há apenas trabalhador e capitalista, este comprando força de trabalho e pagando salário àquele na medida em que se apropria do produto do trabalho excedente. Pois bem, neste modelo, o capitalista, ao se apropriar do produto do trabalho excedente, reinveste uma parte na própria produção e usa o restante para consumo próprio101. Mais 99 Idem, p. 126 100 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 253, ao tratar da acumulação capitalista, expõe os pressupostos do modelo de Marx no Livro I, sendo um destes pressupostos que “a divisão do mais-valor entre juro, lucro do capital mercantil, renda e impostos não tem nenhum impacto... Quando eles são abandonados, como ocorre no Livro II, os resultados são diferentes”. 101 Como expõe K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, pp. 667 e 816, respectivamente, há um imperativo do sistema sociometabólico para que o mais-valor seja reinvestido: “Apenas como capital personificado o capitalista tem um valor histórico e dispõe daquele direito histórico à existência de que, como diz o espirituoso Lichnovski, nenhuma data não dispõe. Somente nesse caso sua própria necessidade

63

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

concretamente – para onde a análise de Marx certamente se dirigia no inacabado Livro III d’O Capital – o quadro se complexifica, pois, ao se apropriar do produto do trabalho excedente, o capitalista também paga impostos, paga aluguéis, paga juros bancários, assim como pode, por si só ou por terceiros reinvestir o excedente em outros ramos produtivos102. O que importa no momento é este reinvestimento de excedentes produtivos em outras atividades lucrativas: a expansão do capitalismo pela acumulação do capital se dá em boa medida por este meio. A produção de habitações, desde a “revolução industrial”, é um dos ramos por excelência em que este investimento se dá, mesmo porque isto tem sérios impactos na própria reprodução do sistema produtivo, já que a habitação é uma necessidade básica para subsistência do trabalhador. O investimento de excedentes produtivos em habitação aparece como resultado da acumulação de capital e da necessidade de sua aplicação produtiva, desenvolvendo uma “indústria da construção civil” e um mercado habitacional

transitória está incluída na necessidade transitória do modo de produção capitalista. Ainda assim, porém, sua força motriz não é o valor de uso e a fruição, mas o valor de troca e seu incremento. Como fanático da valorização do valor, o capitalista força inescrupulosamente a humanidade à produção pela produção e, consequentemente, a um desenvolvimento das forças produtivas sociais e à criação de condições materiais de produção que constituem as únicas bases reais possíveis de uma forma superior de sociedade, cujo princípio fundamental seja o pleno e livre desenvolvimento de cada indivíduo. O capitalista só é respeitável como personificação do capital. Como tal, ele partilha com o entesourador o impulso absoluto de enriquecimento. Mas o que neste aparece como mania individual, no capitalista é efeito do mecanismo social, no qual ele não é mais que uma engrenagem. Além disso, o desenvolvimento da produção capitalista converte em necessidade o aumento progressivo do capital investido numa empresa industrial, e a concorrência impõe a cada capitalista individual, como leis coercitivas externas, as leis imanentes do modo de produção capitalista. Obriga-o a ampliar continuamente seu capital a fim de conservá-lo, e ele não pode ampliá-lo senão por meio da acumulação progressiva”; “Acumulai, acumulai! Eis Moisés e os profetas! ‘A indústria provê o material que a poupança acumula’. Portanto, poupai, poupai, isto é, reconvertei em capital a maior parte possível do mais-valor ou do mais-produto! A acumulação pela acumulação, a produção pela produção: nessa fórmula, a economia clássica expressou a vocação histórica do período burguês”. O imperativo da acumulação requer que uma parte do mais-produtor seja transformada em capital”. 102 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 96, discutindo a questão do reinvestimento capitalista, chega a colocar que os capitalistas “têm a capacidade de escolha sobre no que vão reinvestir: podem reinvestir na expansão da produção ou podem usar sua riqueza para comprar ativos, como ações e títulos, propriedades, objetos de arte ou participações em alguma empreitada especulativa, como uma empresa de equidade privada, um fundo de cobertura ou algum outro instrumento financeiro a partir dos quais podem realizar ganhos de capital”. A rigor, a capacidade de escolha não é completa, pois depende bastante dos imperativos de reprodução do próprio sistema sociometabólico do capital, mas o que se deve reter é a existência de alguma margem para a expansão do próprio capitalismo.

64

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

como um ramo capitalista próprio. De fato, a acumulação de capital é um mecanismo para expansão do próprio capital e do capitalismo. Deve-se apontar ainda o interesse do capitalista individual na existência de moradias a preços acessíveis. Não precisassem os trabalhadores pagar aluguel ou parcelas de um financiamento imobiliário, mantidas todas as condições da produção, o custo da mão-de-obra baratearia, o trabalho excedente aumentaria e, assim, a mais-valia apropriada pelo capitalista também. Indiretamente, o investimento do excedente produtivo em habitação pode implicar na possibilidade de aumento da parcela do trabalho excedente apropriada pelo capitalista (embora esta não seja uma consequência necessária, dependendo em geral do modo como se forma o mercado habitacional). A construção de moradias para as classes trabalhadoras não visa, assim, a resolver a “questão da habitação”. O seu efeito pode ser aperfeiçoar a extração da riqueza produzida pelo trabalho. Para pagar a habitação, o operário precisa comprometer uma parte de seu salário, donde este precisa ser mais elevado do que seria no caso de o trabalhador ter sua própria moradia. Como se verá adiante, na questão da manutenção do despojamento do trabalhador da sua habitação, prevalecem funcionalidades do sociometabolismo do capital (relacionadas ao crédito e à renda), ao invés do simples interesse do capitalista individual em pagar um salário menor. Poder-se-ia pensar que no início da industrialização brasileira não havia qualquer “direito à moradia” garantido e que a evolução jurídica e legislativa levaria a uma alteração neste quadro de descaso com os trabalhadores mais pauperizados. A ocupação urbana aprofundaria, ao longo do século XX, o padrão de periferização e informalidade. O Brasil aderiu a todos os tratados internacionais mencionados anteriormente. Mas a garantia jurídica não implica em efetividade. Até aqui, é certo dizer que a “questão da habitação” esteve subordinada a problemas da acumulação capitalista, sem qualquer problematização do valor de troca imposto pelas “leis do mercado” e pelos interesses das classes dominantes. O papel da lei na produção habitacional estava voltado a otimizar a reprodução do capital. Indo mais fundo: o papel da lei era reconhecer as necessidades dos investidores capitalistas e viabilizar a segurança jurídica aos seus investimentos, seja por meio de flexibilização de parâmetros urbanísticos, seja por meio da não fiscalização da expansão urbana da cidade. A não regulação era um espaço de liberdade juridicamente demarcado. O direito era mobilizado pela classe 65

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

dirigente para manter o controle do acesso da classe trabalhadora ao espaço urbano. Esta não poderia ter qualquer ingerência no processo de acumulação do capital, que determinava a construção de habitações no interesse personificado por aquela outra classe, pautado pela acumulação do capital e pela necessidade de sua aplicação produtiva. Este processo de exclusão habitacional tem se perpetuado, apesar de todas as conquistas jurídicas que levaram à consagração do direito à moradia em nível nacional e internacional. Em razão disso, aquilo que aparece como avanço na luta jurídica, pode não significar coisa alguma na satisfação das necessidades dos trabalhadores. A positivação pode avançar o quanto for, ela refletirá, no limite, apenas o modo como a base econômica subjacente distribui a riqueza social. Este quadro de análise só ficará completo após o estudo das políticas públicas de habitação, que será feito nos capítulos 3 a 5, e com a reflexão sobre qual destas políticas pode significar romper com as barreiras da propriedade privada à moradia.

2.4. Por trás da ideologia: da ineficácia jurídica ao horizonte da transformação radical O que está por trás das garantias jurídicas, da lei/ordenamento jurídico, dos princípios jurídicos e das decisões judiciais é o contexto capitalista em que se coloca a questão da habitação. Este contexto explica o papel cumprido pelo direito. A produção do espaço em geral e a produção da habitação em particular são regidas pelos processos de apropriação e dominação e sobre estes processos se ergue o sistema jurídico103. Numa primeira análise, a habitação se mostra como necessidade básica para a subsistência, como utilidade para a moradia do trabalhador, portanto, como valor de uso. Mas no sociometabolismo do capital, a construção de casas apa103 J. S. WHITAKER FERREIRA, São Paulo: cidade da intolerância ou urbanismo ‘à brasileira’, 2011, disponível em http://cidadesparaquem.org/textos-acadmicos/2013/2/13/so-paulo-cidade-da-intolern cia-ou-o-urbanismo-brasileira, acesso em 09 jul. 2015, observa não o papel do direito, mas do Estado na produção urbana, mas o argumento pode ser adaptado se se pensa nas mediações de segunda ordem do direito e da política: “A produção do espaço urbano responde a uma lógica na qual se relacionam fundamentalmente o Estado, o mercado e a sociedade civil. A tensão existe no fato de que o mercado procura obter lucro por meio da valorização fundiária e imobiliária, enquanto que a sociedade civil interessa-se mais pelo valor de uso da terra urbana. Na cidade capitalista, tal tensão

66

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

rece primeiramente como um negócio, de modo que imóveis para habitação são produzidos tendo em vista o valor de troca. Em suma, o que aparece e controla a produção da habitação é a mercantilização. O valor de troca da habitação prevalece sobre o valor de uso104. Não à toa, políticas urbanas e habitacionais levadas a cabo pelo Banco Mundial no período neoliberal buscam fazer prevalecer as relações de propriedade, o valor de troca e o sistema de crédito: “Assim, no caso da habitação, o parâmetro mais importante passa a ser a renda familiar e não mais o estudo dos espaços necessários para abrigar adequadamente uma família105. Contrariando o que havia sido proposto pelos arquitetos modernos – os quais definiram, a partir do estudo das necessidades da vida moderna, como deveria ser o espaço habitacional mínimo –, a nova matriz postula que qualquer consideração sobre a qualidade do espaço é secundária, pois deve se submeter à

se exacerba, uma vez que a diferenciação de classes e a possibilidade de cada uma delas apropriar-se de áreas desigualmente valorizadas fazem com que a balança penda invariavelmente para o lado dos dominantes, que podem comprar terras nas áreas mais privilegiadas. Caberia ao Estado regulamentar o uso e a ocupação do solo, de tal forma a evitar tal desequilíbrio, restringir a supervalorização especulativa e garantir o acesso democrático à cidade a uma maior parcela da sociedade. Ocorre que quem alavanca a valorização da terra e dos imóveis nas cidades capitalistas é, paradoxalmente, o próprio Estado. O que dá valor à terra urbana é sua localização, definida pela disponibilidade de infraestrutura (VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Nobel, 2000): um lote é mais caro porque há “mais cidade” em torno dele, ou seja, avenidas e transporte público para acessálo, serviço de esgoto, água, luz, coleta de lixo. Porém, quem produz a infraestrutura é o Estado. Aí reside a contradição fundamental da cidade capitalista: um imóvel só tem valor em função de uma complexa malha de infraestrutura, que é construída com investimentos públicos. Assim, a valorização de um terreno decorrente do investimento coletivo, público, é apropriada individualmente por aqueles que possam “pagar pela localização” (DEÁK, Csaba. O mercado e o Estado na organização espacial da produção capitalista. Espaço & Debates, 28 pp.18-31, São Paulo: NERU, 1989). Por isso, o papel do Estado supostamente deveria ser o de regular e mediar esse antagonismo entre mercado e sociedade: garantindo uma produção homogênea de infraestrutura, evitando a exclusão das parcelas populacionais de menor renda, construindo equipamentos acessíveis por todos, e recuperando, com tributos, parte do lucro obtido pelo mercado em decorrência de investimentos públicos, a chamada ‘mais-valia urbana’.” 104 H. LEFEBVRE, A revolução urbana, 1999, p. 171, menciona o papel que passa a ter o usuário das habitações concebidas e executadas por técnicos (urbanistas, arquitetos, etc.) a serviço da trocabilidade, “O usuário? Quem é? Tudo se passa como se os componentes, os ‘agentes’, as autoridades afastassem de tal modo o uso em proveito da troca, que esse uso se confundisse com a usura. A partir daí, como o usuário é considerado? Como um personagem muito repugnante que emporcalha o que lhe é vendido novo e fresco, que deteriora, que estraga, que felizmente realiza uma função: a de tornar inevitável a substituição da coisa, de levar a obsolescência a contento. O que muito pouco o desculpa”. 105 BANCO MUNDIAL, Housing: Report on sectorial policy, Washington, 1975, p. 4.

67

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

capacidade de pagamento do futuro morador. Trata-se, aqui, da passagem do espaço mínimo para o custo mínimo. Tal prevalência da lógica mercantil sobre o valor de uso levou o Banco Mundial, por exemplo, a apoiar a produção de moradias cuja área construída por habitante era menor que a de celas prisionais...”106

Esta reestruturação visava a permitir a expansão da acumulação capitalista, inclusive pela “redução dos padrões habitacionais e urbanos”, redefinindo “o que é necessário para o trabalhador do Terceiro Mundo reproduzir sua força de trabalho, o que, no limite, contribui para deprimir ainda mais seus baixos salários” 107. A prevalência do valor de troca leva à aquisição especulativa de moradias, isto é, a aquisição de imóveis não para servir diretamente à habitação, mas para servir à expansão do capital e à valorização do valor e, quando menos, à busca por renda e entesouramento – o que também cumpre as devidas funções no sociometabolismo do capital, como se verá mais adiante. D. Harvey afirma que já “a partir do século XVIII, você tem a construção de casas especulativa – os terraços georgianos que eram construídos e vendidos posteriormente”. A partir de então, o desenvolvimento do mercado imobiliário implica que as casas se tornem “valores de troca para os consumidores na forma de poupança”. Em suma, é possível transformar a habitação numa reserva de valor e também numa fonte de extração de renda. Para Harvey, “isso levanta a questão: é uma boa ideia permitir que o valor de uso na habitação, que é crucial para as pessoas, seja definido por um sistema de valor de troca louco?”108. 106 P. FIORI ARANTES, O Ajuste Urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades, 2006, p. 65. 107 Idem. 108 R. BURTENSHAW e A. ROBINSON, A importância da imaginação pós-capitalista. Entrevista com David Harvey, in http://www.ihu.unisinos.br/noticias/523134-a-importancia-da-imaginacao-poscapitalista-entrevista-com-david-harvey, acesso em 10 mai. 2014. Vale a transcrição do trecho completo diz: “Todas as mercadorias devem ser entendidas como tendo um valor de uso e um valor de troca. Se eu tenho um bife, o valor de uso é que eu posso comê-lo, e o valor de troca é o quanto eu tive que pagar por ele. Mas a habitação é muito interessante, nesse sentido, porque, como um valor de uso, você pode entendê-la como abrigo, privacidade, um mundo de relações afetivas com as pessoas, uma grande lista de coisas para as quais você usa uma casa. Mas depois há a questão de como você consegue essa casa. Antigamente, as casas eram construídas pelas próprias pessoas, e não havia absolutamente nenhum valor de troca. Depois, a partir do século XVIII, você tem a construção de casas especulativa – os terraços georgianos que eram construídos e vendidos posteriormente. Assim, as casas se tornaram valores de troca para os consumidores na forma de poupança. Se eu comprar uma casa e pagar a hipoteca sobre ela, eu posso acabar como proprietário da casa. Então, eu tenho

68

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Neste ponto, deve-se observar que a terra urbana (ou os chamados bens imóveis) não tem inerentemente o caráter de mercadoria. Claro, as coisas adquirem o caráter de mercadoria em contextos muito específicos, em razão de relações sociais específicas. Mas, considerando-se o universo das mercadorias produzidas no contexto capitalista, a terra tem ainda um caráter bastante peculiar com relação às outras: segundo Karl Polanyi109, a terra é uma mercadoria fictícia, porque ela não é criada pelo trabalhador para ser levada ao mercado. O seu caráter de mercadoria é criado por meio de específicas e complexas relações sociais. Mas como tudo o que é fictício no capitalismo, a mercadoria fictícia também tem efetividade e funcionalidade específica: transformar um bem não imediatamente produzido pelo ser humano (portanto, no sentido marxista, sem valor) em mercadoria. As relações sociais impõem um valor de troca até mesmo à terra nua, onde se pode ver apenas o trabalho circundante como pressuposto de uma avaliação monetária da mesma. As garantias jurídicas aparecem como ideologia quanto se explicita a posição do direito no contexto capitalista: a classe dirigente molda o sistema jurídico de acordo com os imperativos do sistema sociometabólico do capital. Daí a prevalência da mercantilização na questão habitacional, a prevalência do valor de troca sobre o valor de uso das moradias. É antes a lei do valor e a institucionalidade jurídica, mais do que a disponibilidade de espaços habitáveis, que será decisiva para a “escassez” de imóveis num contexto capitalista, impedindo o acesso das pessoas ao valor de uso destes um bem... Assim, cerca de 30 anos atrás, as pessoas começaram a usar a habitação como uma forma de ganho especulativo. Você podia comprar uma casa e ‘virá-la’ – você compra uma casa por 200 mil livras e depois de um ano você recebe 250 mil libras por ela. Você ganhou 50 mil libras. Então, porque não fazê-lo? O valor de troca assume o comando. E assim você tem esse boom especulativo. No ano 2000, depois do colapso dos mercados acionários globais, o capital excedente começou a fluir para a habitação. É um tipo interessante de mercado. Se eu comprar uma casa, então os preços da habitação sobem, e você diz: ‘Os preços da habitação estão subindo, eu deveria comprar uma casa’. E, então, aparecem outras pessoas. Você tem uma bolha imobiliária. As pessoas são atraídas, e ela explode. Então, de repente, muitas pessoas descobrem que não podem mais ter o valor de uso do imóvel, porque o sistema de valor de troca o destruiu. Isso levanta a questão: é uma boa ideia permitir que o valor de uso na habitação, que é crucial para as pessoas, seja definido por um sistema de valor de troca louco?” 109 POLANYI, KARL. The Great Transformation, New York: Octagon Books, 1944, apud F. OBENGODOOM e F. STIWELL, Security of tenure in international development discourse, 2013, p. 325, que explicam que “The distinctive feature of a ‘fictitious commodity’ is that its provision and distribution is ‘embedded’ in complex social relationships”.

69

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

imóveis. Esta é a razão da “ineficácia” do direito à moradia – é dizer, a ineficácia do direito é inerente ao direito, não lhe é estranho. Daí a característica concomitância entre a enunciação e a ineficácia do direito à moradia. Diante deste quadro, surgem as seguintes questões: como os movimentos sociais se relacionam com o direito, qual o horizonte de transformação social radical e quais movimentos sociais são os sujeitos desta transformação? Estariam os sujeitos das lutas sociais completamente rendidos à ideologia jurídica? Os pressupostos para esta discussão já ficaram claros no capítulo anterior: o direito pretende que a luta pela habitação deve se limitar a ser uma luta jurídica. A resposta clássica a este problema tem sido a luta política. Ora, isto também já foi problematizado anteriormente: a política tal qual a conhecemos, com sua institucionalidade, captura igualmente a luta social para limites estabelecidos pelo sociometabolismo do capital. Dito de outro modo, o sistema político se ergue, como o sistema jurídico, sobre a base material existente110. Só se poderia falar em uma política alternativa numa base também alternativa, revolucionada. Portanto, saltar do problema da luta jurídica para o campo da luta política é ilusório – deve-se olhar, isto sim, para a base, para as condições materiais para a superação do sociometabolismo do capital e para as alternativas que daí surgirão. A transformação social radical é tema básico da crítica e a crítica jurídica também deve atentar a ele, tendo em vista que o projeto socialista não pode se definir “simplesmente nos termos de dizer não ao controle sistêmico do capital” e “não pode constituir uma alternativa viável... a não ser que seja com sucesso e articulado de maneira positiva... com seu próprio tipo de reciprocidade base110 I. MÉSZÁROS, Para Além do Capital, 2002, p. 514, aponta como as experiências soviética, baseadas numa ênfase exclusivística na “transformação política”, “só puderam sublinhar dolorosamente que, como coloca Marx, a forma econômica específica pela qual o trabalho excedente não pago é sugado dos produtores diretos determina a relação dos governantes e governados, já que ela emerge diretamente da própria produção e, por sua vez, reage sobre ela como elemento determinante (Marx, O Capital, vol. 3, p. 772). Nesse sentido, as razões para o trágico fracasso histórico de mais de sete décadas de poder soviético devem ser buscadas, para que sejam evitadas no futuro, tanto na modalidade experimentada de “sugar o trabalho excedente não pago dos produtores diretos” como na dura realidade do historicamente conhecido Estado pós-revolucionário como ‘elemento determinante’. Este, ao invés de liberar as forças de tomada de decisão autônomas, pelas quais, no devido tempo, o Estado poderia ‘fenecer’, impôs implacavelmente à sociedade o sistema do capital pós-capitalista de extração do trabalho excedente, perpetuando, com consequências desastrosas, uma ‘relação de governantes e governados’”.

70

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

ada na automediação consciente de seus indivíduos sociais”111. Um renovado sistema sociometabólico apoiado na atividade autodeterminada dos indivíduos livremente associados é cada dia mais uma necessidade histórica diante da destrutividade do capital112. Identificar os sujeitos da transformação social é identificar também de onde podem surgir as alternativas discursivas. Quais seriam os sujeitos da transformação social radical nos dias de hoje? Harvey é extremamente otimista sobre a questão da origem do movimento político anticapitalista. Segundo ele, tal movimento poderia surgir “nos processos de trabalho, em torno de concepções mentais, na relação com a natureza, nas relações sociais, na concepção de tecnologias e formas de organização revolucionárias, na vida diária ou nas tentativas de reformar as estruturas institucionais e administrativas, incluindo a reconfiguração dos poderes do Estado”113.

Com esta proposição, Harvey vai além da visão clássica marxista acerca do sujeito da revolução, segundo a qual este sujeito seria o proletário, o produtor direto separado dos meios de produção e alienado do produto de seu trabalho. Já em Harvey, todo tipo de movimento, não apenas o movimento operário com suas lutas trabalhistas, poderia ser um movimento político anticapitalista, desde que incorporasse a finalidade última de transferir o comando social sobre a produção e distribuição de excedentes para os produtores diretos. Trata-se de uma proposição ousada e até hoje apoiada apenas debilmente pela prática política efetiva. De fato, a autoenunciação de um movimento (estudantil, ecológico, feminista, trabalhista, teológico, jurídico...) como anticapitalista não é raro. Mas a prática revolucionária de tais movimentos corresponde às bandeiras que eles carregam? Em outros termos, o quanto estes movimentos conseguem avançar para atingir os alicerces do sistema sociometabólico do capital e construir alternativas viáveis a tal sistema? Estas questões são muito mais complicadas e Harvey parece não ter respostas prontas para elas. O que este autor em primeiro lugar pretendia com tal formulação era criticar o unilateralismo das experiências socialistas do século XX, que 111 I. MÉSZÁROS, Estrutura Social e Formas de Consciência II, 2011, p. 140. 112 Neste sentido, I. MÉSZÁROS, O Século XXI. Socialismo ou Barbárie, 2003, p. 22. E para um desenvolvimento amplo desta temática, vide I. MÉSZÁROS. Para Além do Capital, 2002, pp. 605 e seguintes. 113 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 185.

71

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

desprezavam aspectos cruciais da reprodução sociometabólica do capital, as quais foram incapazes de lidar com a multiplicidade dos desafios postos para a transformação social. Tais experiências não teriam sido capazes de se mover de uma esfera de atividade para a outra: “As tentativas anteriores de criar uma alternativa comunista ou socialista fracassaram fatalmente em manter o movimento a dialética entre as diferentes esferas de atividade e também não abraçaram as imprevisibilidades e incertezas no movimento dialético entre as esferas. O capitalismo tem sobrevivido precisamente por manter esse movimento dialético e por aceitar as inevitáveis tensões, incluindo as crises, que dele resultam”114.

Segundo Harvey, o movimento político deveria se mover de uma esfera para outra constantemente, de modo a se reforçar mutuamente. As dificuldades destes movimentos, na prática, são óbvias, em especial em razão dos imperativos impostos na vida dos indivíduos no sistema sociometabólico do capital: já é reduzida a capacidade de mobilização individual para lutar por demandas que atingem imediatamente os interesses dos indivíduos em questão, que dirá para se mover de uma esfera a outra. Trata-se de uma proposta teoricamente interessante, mas cuja efetividade prática constitui um grande desafio. Sem dúvida, não se poderia pensar, nos dias atuais, no clássico partido centralizado e portador da “síntese” dos interesses da classe trabalhadora, apto a agir em nome desta em direção aos objetivos revolucionários. As transformações sociais radicais deverão passar em alguma medida pelo caminho indicado por Harvey. O otimismo de Harvey continua com a definição do sujeito revolucionário para muito além da definição clássica marxista: descontentes e alienados seriam protagonistas de um movimento anticapitalista na medida em que concebem “o atual caminho de desenvolvimento capitalista como uma via que leva a um beco sem saída, se não a uma catástrofe para a humanidade”115. E é a partir daí que o autor conceitua dois grandes grupos de “destituídos e despossuídos”: “Há aqueles que são despossuídos dos frutos de seu poder criativo num processo de trabalho sob o comando do capital ou do Estado capitalista.

114 Idem. 115 Idem, p. 194.

72

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Depois, há aqueles que foram privados de seus bens, seu acesso aos meios de sobrevivência, de sua história, cultura e formas de sociabilidade, a fim de abrir espaço (às vezes literalmente) para a acumulação do capital”116.

Esta definição tem a virtude de explicar minimamente o fato de que não-operários (para usar uma oposição à expressão clássica) se mobilizem contra o sistema sociometabólico do capital. Os não-operários, como se sabe, podem trabalhar no comércio, em atividades reprodutivas e formam o exército industrial de reserva, sendo essenciais para a reprodução do sistema, que se desenvolve tanto pela mobilidade do capital e do trabalho, compensando superpopulações relativas e salários altos demais, como pela mecanização. Lefebvre, segundo Harvey, “ao invocar a ‘classe trabalhadora’ como agente da transformação revolucionária ao longo de seu texto” estaria “sugerindo tacitamente que a classe trabalhadora revolucionária era formada por trabalhadores urbanos, e não exclusivamente por operários fabris”117. Assim, Lefebvre se aproximava de uma visão que via complexidades e fragmentariedades nas classes trabalhadoras. A crítica de Harvey se torna ácida ao relembrar o modo como certos movimentos lidaram com a questão da luta de classe: “A fixação no trabalho na fábrica como o locus de ‘verdadeira ‘consciência de classe e luta de classes revolucionária foi sempre muito limitada, se não equivocada (esquerdistas têm ideias erradas, também!). Aqueles que trabalham nas florestas e campos, no ‘setor informal’ do trabalho intermitente nos becos das fábricas, nos serviços domésticos ou no setor de serviços em geral e o vasto exército de trabalhadores empregados na 116 Idem, p. 195. 117 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2014, pp. 16 e 17. Continua o autor a afirmar que “no mínimo, a lógica por trás da posição de Lefebvre tem se intensificado em nossa época. Em grande parte do mundo capitalista, as fábricas ou desapareceram ou diminuíram tão drasticamente que dizimouse a classe operária industrial clássica. O trabalho importante em permanente expansão de criar e manter a vida urbana é cada vez mais realizado por trabalhadores precários, quase sempre em jornadas de meio expediente, desorganizados e com salários irrisórios. O chamado ‘precariado’ substituiu o ‘proletariado’ tradicional. Se viermos a ter algum movimento revolucionário em nossa época, pelo menos em nossa parte do mundo (em oposição à China, em processo de industrialização), o problemático e desorganizado ‘precariado’ terá de ser levado em conta. O grande problema político consiste em saber como grupos tão desorganizados poderiam se auto-organizar de modo a constituir uma força revolucionária. E parte do trabalho consiste em entender as origens e natureza de suas queixas e exigências”.

73

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

construção civil ou nas trincheiras (muitas vezes literalmente) da urbanização não podem ser tratados como atores secundários... eles têm plena consciência de suas condições de exploração e estão profundamente alienados por sua existência precária e muitas vezes revoltados com o policiamento brutal de suas vidas diárias pelo poder estatal”118.

E a crítica à “esquerda tradicional” continua, uma vez que esta erraria ao “ignorar os movimentos sociais que ocorrem fora das fábricas e minas”. Para Harvey, “A consciência de classe é produzida e veiculada tanto nas ruas, bares, pubs, cozinhas, capelas, centros comunitários e quintais dos subúrbios da classe trabalhadora como nas fábricas”. E recorre a um exemplo histórico para reforçar sua posição, lembrando que “Os dois primeiros decretos da Comuna de Paris de 1871 foram, curiosamente, a suspensão do trabalho noturno nas padarias (uma questão de processo de trabalho) e uma moratória sobre os pagamentos de aluguel (uma questão de vida urbana diária)”119. A questão da habitação, uma questão de subsistência, não de produção, aparece como central num dos mais importantes movimentos populares. Não há dúvida sobre a existência alienada destes trabalhadores no contexto capitalista, muito embora possam não ser operários “clássicos”, por assim dizer. Porém, o que não resta claro é como seria equacionado o problema da organização destes sujeitos sociais em direção a uma transformação social radical. Em “Cidades Rebeldes”, Harvey enfrentou esta dificuldade sobre o potencial revolucionário de movimentos urbanos, dando especial foco ao estudo de movimentos que surgiram na “Guerra da Água”, na Bolívia, contra privatizações neoliberais dos recursos naturais do povo boliviano120. Mas ainda aí, não há respostas fechadas e definitivas, se está ainda a tatear como trabalhadores urbanos têm se organizado e buscado lutar contra a dominação capitalista. E o horizonte é que um movimento desses possa abrir “caminho ao florescimento humano universal, para além das coerções da dominação de classe e das determinações mercantilizadas do mercado. O mundo da verdadeira liberdade só começa, como insistia Marx, quando essas coerções materiais forem definitivamente relegadas ao pas118 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 196.

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

sado. Reivindicar e organizar as cidades para as lutas anticapitalistas é um grande ponto de partida”121.

O que se deve frisar aqui é que Harvey identifica uma diferença entre as lutas contra a exploração do trabalho e as lutas contra o desapossamento (processos de acumulação capitalista essenciais para a sobrevivência do sociometabolismo do capital, como se detalhará adiante neste trabalho). Se na história da acumulação primitiva “houve todo tipo de luta contra as expulsões e as expropriações forçadas”, Harvey reflete sobre “qual forma de luta de classe constitui ou constituirá o cerne de um movimento revolucionário contra o capitalismo num dado lugar e num dado momento”. De fato, historicamente, muitas mobilizações sociais se reivindicam anticapitalistas e apresentam pautas das mais variadas, certamente, na avaliação dos envolvidos, com potencial para atingir as estruturas do sistema sociometabólico do capital. Mas para isto é preciso que se esteja a enfrentar algum de seus pilares. Assumindo que um destes pilares é formado pelo complexo infra e superestrutural sobre a propriedade dos bens imóveis, deve-se concluir, com Harvey, que as “lutas políticas contra a acumulação por desapossamento são tão importantes quanto os movimentos proletários mais tradicionais”, de modo que deveria haver uma “relação orgânica” entre as formas de resistência à exploração do trabalho e ao desapossamento122. Assim, os movimentos de luta urbana são potenciais sujeitos de uma profunda transformação social: “A cidade é tanto um lugar de movimentos de classe como a fábrica e precisamos aumentar nossa visão pelo menos a esse nível e a essa dimensão da organização e prática política, em aliança com a vasta gama de movimentos rurais e camponeses, se alguma grande aliança para a mudança revolucionária está para ser construída”123.

Neste argumento, parece bastar que o movimento social incorpore em sua pauta de luta a finalidade última de transferir o comando social sobre a produção e distribuição de excedentes para os produtores diretos. Porém, esta é 121 Idem, p. 272.

119 Idem, p. 197.

122 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 298.

120 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2015, pp.250 e seguintes.

123 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 197.

74

75

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

uma visão excessivamente subjetivista da luta social. A transformação social depende de pautas objetivas e não de mera enunciação do movimento social de que é anticapitalista. Em “Cidades Rebeldes”124, Harvey aprofundará esta questão numa perspectiva mais objetiva, questionando se as lutas pela cidade e na cidade “devem ser consideradas fundamentais para a política anticapitalista”125. Buscando superar o ponto de vista que separa ou subordina os movimentos sociais urbanos a movimentos que surgem diretamente no processo produtivo, os únicos que teriam possibilidade de realizar a luta anticapitalista e a revolução social126, o autor formula de maneira mais acurada a necessidade de se pensar a luta anticapitalista de maneira ampla – como Marx teria exposto no segundo volume d’O Capital: “a circulação do capital compreende três processos distintos: o do dinheiro, o produtivo e o das mercadorias. Nenhum processo circulatório pode sobreviver, ou mesmo existir, sem os outros: eles se misturam e se codeterminam mutuamente. O controle dos trabalhadores ou coletivos comunitários em unidades de produção relativamente periféricas raramente consegue sobreviver – apesar de toda a esperançosa retórica autonomista, autogestionária e anarquista – diante de um ambiente financeiro e de um sistema de crédito hostis e das práticas predatórias do capital mercantil”127.

A conclusão é que “a abolição da relação de classe na produção depende da abolição dos poderes de que a lei capitalista do valor dispõe para ditar as condições da produção por meio do livre comércio no mercado mundial”128. E estes poderes se apoiam em diversos alicerces, como já se apontou acima. Identificando como questões fundamentais de uma agenda política transformadora (i) o “esmagador empobrecimento material de grande parte

124 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2015, pp. 209 e seguintes. 125 Idem, p. 216. 126 Idem, p. 217. Assim, por exemplo, “o movimento de trabalhadores de imigrantes desorganizados [nos Estados Unidos, a pretexto de proposta no Congresso Americano para criminalizar imigrantes sem documentos] em 2006 era basicamente para reivindicar direitos, e não a revolução”, 127 Idem, p. 221. 128 Idem, p. 221.

76

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

da população mundial, junto com a concomitante frustração do potencial do pleno desenvolvimento das capacidades e forças criativas humanas”; (ii) os “perigos da degradação ambiental e das transformações ecológicas descontroladas”; (iii) a compreensão da “trajetória do desenvolvimento capitalista”, que se baseia na lei da acumulação infinita do capital, uma lei simplesmente impossível de ser mantida; Harvey questiona se “os movimentos sociais de base urbana podem desempenhar um papel construtivo e deixar sua marca na luta anticapitalista nessas três dimensões”. Sua resposta envolve a ampliação do tradicional entendimento da luta de classes como restrita ao terreno da produção, à fábrica, onde se produziria a mais-valia. O autor lembra incansavelmente que “não foram os trabalhadores fabris que geraram a Comuna de Paris” e entende que a luta social poderia ser “ao mesmo tempo de classes e pelos direitos de cidadania no lugar onde as pessoas trabalhadoras viviam”. Obviamente, há uma tensão neste argumento, mas isto reflete uma tensão das próprias lutas sociais, que por vezes se restringem a conquistas jurídicas, mas deixam sempre como resultado sujeitos ainda alienados e, portanto, potencialmente prontos para levar a luta adiante. De qualquer modo, é fato que a dominação de classe especificamente capitalista vai bem além da produção: ganhos salariais podem ser recuperados “pelo conjunto da classe capitalista como um todo pelos comerciantes e proprietários, nas condições atuais, mais impiedosamente ainda pelos agiotas, banqueiros e financistas”129. De fato, Harvey observa que “a própria urbanização é produzida”, trabalhadores “participam de sua produção, e seu trabalho gera valor e mais-valia”. Daí que o horizonte de transformação social deve levar em conta também as lutas urbanas, pois aí também se reproduz a dominação capitalista, aí estão alguns de seus alicerces fundamentais.

129 Idem, pp. 228-231. Sobre a Comuna de Paris, às pp. 217-218, o autor observa que “ela é reivindicada (primeiro por Marx, e depois mais enfaticamente por Lenin) como uma ‘insurreição proletária’, e não como um movimento revolucionário muito mais complexo – animado tanto pelo desejo de reclamar a própria cidade de sua apropriação burguesa como pela almejada liberação dos trabalhadores do trabalho penoso que lhes é imposto pela opressão de classe em seus locais de trabalho. Considero simbólico que as duas primeiras ações da Comuna de Paris tenham sito a abolição do trabalho noturno nas padarias (uma questão trabalhista) [ademais, principalmente, uma conquista jurídica] e a imposição de uma moratória aos aluguéis (uma questão urbana)”.

77

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Ainda, o risco de captura destas lutas pelo direito ou pela política não é nada desprezível: “há um problema de enorme importância nesse cenário supostamente cor-de-rosa de desenvolvimento da luta anticapitalista.... qualquer movimento anticapitalista deslanchando ao longo de sucessivas rebeliões urbanas precisa ser consolidado a certa altura dos acontecimentos, em um nível muito mais alto de generalidade, a fim de que tudo não retroceda, ao nível do Estado, a um reformismo parlamentar e constitucional que pode fazer pouco mais do que reconstruir o liberalismo nos interstícios de um prolongado domínio imperialista””130.

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

como aparecem as garantias jurídicas de direito à moradia, explicitando-se a inefetividade crônica deste direito em contraste com os papéis reais do direito. Nos três capítulos, esta inefetividade aparecerá por meio da análise de políticas públicas de habitação. A reflexão sobre os horizontes de transformação radical do direito será feita no último destes capítulos.

Neste sentido, é importante saber se a própria luta por habitação dos “sem-teto” poderia atingir algum dos alicerces do sistema sociometabólico do capital. Este é o elemento objetivo que precisa ser analisado no estudo das transformações sociais e da luta pela habitação. E esta luta por habitação pode, inclusive, expressar-se juridicamente, confrontando o direito internamente ao problematizar certos alicerces do capitalismo. Assim, em consonância com a visão de que há diversos alicerces da ordem sociometabólica do capital, é possível afirmar que os sujeitos da revolução são também múltiplos. Deve-se, porém, adotar um critério mais objetivo para esta identificação, isto é, não apenas identificando intenções anticapitalistas dos movimentos, mas pautas e ações objetivas que efetivamente contribuam para aprofundar as contradições do sistema sociometabólico do capital e para a finalidade de transferir o comando social sobre a produção e distribuição de excedentes para os produtores diretos. Enfim, não se trata de uma mera identificação ideológica, mas de identificar pautas transformadoras. Diante do quadro delineado nos diversos tópicos deste capítulo, fica claro que não se tem conseguido confrontar o poder do capital para a satisfação das necessidades habitacionais, estando estas necessidades subordinadas simplesmente aos imperativos da acumulação capitalista. O direito à moradia aparece, assim, como mera enunciação vazia, incapaz de realizar as necessidades reais daqueles alijados de habitação digna. Isto apesar de haver uma quantidade de imóveis suficiente para suprir as necessidades de moradia adequada da população. Na verdade, a ineficácia é inerente ao direito. Foi visto no presente capítulo 130 Idem, p. 268.

78

79

Capítulo 3. Políticas Públicas de Acesso à Casa Própria – O Programa Minha Casa, Minha Vida “Num regime de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo, num regime de trabalho livre, a terra tinha que ser cativa” (José de Sousa Martins, Expropriação e Violência – a questão política no campo)

3.1. Preliminarmente: o pressuposto da propriedade privada e a terra cativa no Brasil Este capítulo analisa os principais mecanismos estatais que buscam efetivar o direito à moradia da população de baixa renda. Realizando-se uma crítica imanente destes mecanismos mesmos, pretende-se explicitar as suas limitações, as quais são inerentes ao próprio contexto social em que são enunciados e implementados. Caracteristicamente, os principais mecanismos estatais de acesso à habitação tomam a forma de políticas públicas, as quais organizam a ação do Estado para a realização de direitos. As políticas públicas podem ser definidas como o conjunto de decisões, normas e ações governamentais que visam a organizar a alocação de recursos estatais. Como tais, se amparam nos sistemas jurídico e político. As políticas públicas habitacionais existentes visam a promover certo modo de organização e produção de habitação, mais ou menos atrelados aos imperativos de reprodução do capital. Como deverá ficar claro, a questão da satisfação das necessidades habitacionais da população de baixa renda aparece como ideologia nestas políticas e não pode realizar-se. As principais políticas públicas habitacionais se baseiam na aquisição da propriedade privada, no “sonho da casa própria”. Isto não é acidental: por este 81

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

meio o trabalhador se vincula no espaço e no tempo, ao local de habitação e a um crédito imobiliário em regra pago em décadas. A propriedade privada tornou-se um dos principais institutos jurídicos do sistema sociometabólico do capital, basicamente porque i) é por meio dela que o capitalista reivindica e sustenta a posse dos meios de produção e do produto do trabalho; ii) por meio dele se define a própria condição do proletário, aquele que não tem a propriedade de seus meios de subsistência e que, por isso mesmo, sendo proprietário de sua força de trabalho, a vende ao capitalista por um salário; iii) as trocas em geral que viabilizam a produção capitalista são mediadas pela propriedade privada, ou seja, o instituto está nos extremos de toda relação de troca de mercadorias – é o proprietário da mercadoria que tem a faculdade de aliená-la no mercado e ao fazê-lo o comprador passa a se revestir da qualidade de proprietário; iv) o instituto está por trás do título jurídico que permite ao proprietário extrair renda ou juros com base neste título. Outros institutos jurídicos também são centrais para o sistema sociometabólico do capital, em especial igualdade e liberdade131. Apenas o trabalhador livre das amaras feudais pode dispor de sua força de trabalho no mercado e apenas aparecendo como igual perante o capitalista o trabalhador pode firmar com este um contrato de compra e venda desta força de trabalho. Todo este aparato jurídico – propriedade privada, liberdade, igualdade – estabelece aparências com base na qual funciona o sistema do capital. Marx expõe, a partir da análise da troca de equivalentes, como esta, junto com o direito de propriedade, aparece na prática capitalista de forma bastante distinta do que preconiza a teoria liberal: “na medida em que cada transação isolada obedece continuamente à lei da troca de mercadorias, segundo a qual o capitalista sempre compra a força de trabalho e o trabalhador sempre a vende – e, supomos 131 Como apontava K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, pp. 25-251, “A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e a venda da força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O contrato é o resultado, em que suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as partes. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo. A única força que os une e os põe em relação mútua é a de sua utilidade própria, de sua vantagem pessoal, de seus interesses privados.

82

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

aqui, por seu valor real –, é evidente que a lei da apropriação ou lei da propriedade privada, fundada na produção e na circulação de mercadorias, transforma-se, obedecendo a sua dialética própria, interna e inevitável, em seu direto oposto. A troca de equivalentes, que aparecia como a operação original, torceu-se ao ponto de que agora a troca se efetiva apenas na aparência, pois, em primeiro lugar, a própria parte do capital trocada por força de trabalho não é mais do que uma parte do produto do trabalho alheio, apropriado sem equivalente; em segundo lugar, seu produtor, o trabalhador, não só tem de repô-la, como tem de fazê-lo com um novo excedente. A relação de troca entre o capitalista e o trabalhador se converte, assim, em mera aparência pertencente ao processo de circulação, numa mera forma, estranha ao próprio conteúdo e que apenas o mistifica. A contínua compra e venda da força de trabalho é a forma. O conteúdo está no fato de que o capitalista troca continuamente uma parte do trabalho alheio já objetivado, do qual ele não cessa de se apropriar sem equivalente, por uma quantidade maior de trabalho vivo alheio. Originalmente, o direito de propriedade apareceu diante de nós como fundado no próprio trabalho. No mínimo esse suposto tinha de ser admitido, porquanto apenas possuidores de mercadorias com iguais direitos se confrontavam uns com os outros, mas o meio de apropriação da mercadoria alheia era apenas a alienação [Veräußerung] de sua mercadoria própria, e esta só se podia produzir mediante o trabalho. Agora, ao contrário, a propriedade aparece do lado do capitalista, como direito a apropriar-se de trabalho alheio não pago ou de seu produto; do lado do trabalhador, como impossibilidade de apropriar-se de seu próprio produto. A cisão entre propriedade e trabalho torna-se consequência necessária de uma lei que, aparentemente, tinha origem na identidade de ambos”132.

A relação de troca entre o capitalista e o trabalhador é mera aparência pertencente ao processo de circulação e, na essência, o capitalista se apropria do trabalho alheio não pago. O direito de propriedade moldado pelo sociometabolismo do capital institui o “direito a apropriar-se de trabalho alheio não pago ou de seu produto” para o capitalista e a “impossibilidade de apropriar-se de seu próprio produto” para o trabalhador.

132 K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, pp. 801 e 802.

83

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Mas atenção também ao que está pressuposto nesta passagem, aos meios de subsistência, dentre eles a habitação. Como já observado, um dos alicerces do modo de produção capitalista é a existência de um razoável número de trabalhadores despojados dos meios para a reprodução das suas condições de vida, para sua subsistência133 – aliás, o único meio de que dispõem estes trabalhadores é a sua própria força de trabalho, mas os mesmos são despojados mais e mais dos meios de produção e de subsistência. A maneira de adquirir estes meios de subsistência tende a se submeter a uma forma hegemônica no capitalismo: o trabalhador vende sua força de trabalho ao capitalista, recebe em troca o salário e com este adquire no mercado os bens necessários para sua subsistência134. O direito de propriedade atua em todo o processo viabilizando as várias formas de troca que sustentam o capitalismo. E ele submete também o modo de aquisição dos meios de subsistência. 133 Idem, p. 245. Marx observa que “Suas condições históricas de existência [do capital] não estão de modo algum dadas com a circulação das mercadorias e do dinheiro. Ele só surge quando o possuidor de meios de produção e de subsistência encontra no mercado o trabalhador livre como vendedor de sua força de trabalho, e essa condição histórica compreende toda uma história mundial.” E em Manuscritos Econômico-filosóficos, 2004, p. 81, K. Marx já observava que, pelo lado do trabalhador, “a objetivação tanto aparece como perda do objeto” que ele, o trabalhador, “é despojado dos objetos mais necessários não somente à vida, mas também dos objetos do trabalho. Sim, o trabalho mesmo se torna um objeto, do qual o trabalhador só pode se apossar com os maiores esforços e com as mais extraordinárias interrupções.” 134 Idem, pp. 245-246. Marx aponta que “Para sua manutenção, o indivíduo vivo necessita de certa quantidade de meios de subsistência. Assim, o tempo de trabalho necessário à produção da força de trabalho corresponde ao tempo de trabalho necessário à produção desses meios de subsistência, ou, dito de outro modo, o valor da força de trabalho é o valor dos meios de subsistência necessários à manutenção de seu possuidor. Porém, a força de trabalho só se atualiza [verwirklicht] por meio de sua exteriorização, só se aciona por meio do trabalho. Por meio de seu acionamento, o trabalho, gasta-se determinada quantidade de músculos, nervos, cérebro etc. humanos que tem de ser reposta. Esse gasto aumentado implica uma renda aumentada. Se o proprietário da força de trabalho trabalhou hoje, ele tem de poder repetir o mesmo processo amanhã, sob as mesmas condições no que diz respeito a sua saúde e força. A quantidade dos meios de subsistência tem, portanto, de ser suficiente para manter o indivíduo trabalhador como tal em sua condição normal de vida. As próprias necessidades naturais, como alimentação, vestimenta, aquecimento, habitação etc., são diferentes de acordo com o clima e outras peculiaridades naturais de um país. Por outro lado, a extensão das assim chamadas necessidades imediatas, assim como o modo de sua satisfação, é ela própria um produto histórico e, por isso, depende em grande medida do grau de cultura de um país, mas também depende, entre outros fatores, de sob quais condições e, por conseguinte, com quais costumes e exigências de vida se formou a classe dos trabalhadores livres num determinado local. Diferentemente das outras mercadorias, a determinação do valor da força de trabalho contém um elemento histórico e moral. No entanto, a quantidade média dos meios de subsistência necessários ao trabalhador num determinado país e num determinado período é algo dado”.

84

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Num contexto de hegemonia do capital, o sociometabolismo imposto por este exige que a satisfação das necessidades básicas dos trabalhadores se dê apenas após a disponibilização de força de trabalho135 no mercado. Assim, há uma tendência irrefreável para despojar os trabalhadores de suas necessidades básicas, como da necessidade de habitação, mas também da necessidade de água, comida, vestimenta, e também a necessidade de leitura, teatro, veículos automotores, shoppings centers e conexão à internet. Os bens que satisfazem estas necessidades, no contexto atual, são produzidos e distribuídos sob os imperativos capitalistas e quem não tenha condições de adquiri-los por esta via estará fadado à exclusão social. Assim, a satisfação de cada uma destas necessidades exige a troca de equivalentes, e a mediação em regra é feita pelo dinheiro, equivalente universal. Para obter este equivalente, os trabalhadores precisam vender a um capitalista sua única mercadoria, a força de trabalho – por meio desta operação o proprietário da força de trabalho vende por um determinado período136 a si mesmo, coloca-se à disposição do capitalista. A compreensão da exclusão habitacional passa pelo entendimento desta dinâmica capitalista: neste sistema, faz todo sentido que não haja a plena efetivação de um “direito à moradia” universal, assim como faz todo o sentido que milhões de habitações sejam mantidas vazias, como reservas de valor especulativas para seus proprietários, ainda que haja outras milhões de pessoas sem-teto. No Brasil, o Censo 2010 do IBGE137 indicou que dos Domicílios particulares permanentes, 86% estão ocupados, 1,3% estão fechados, 5,8% são de uso ocasional e 9% estão vagos. Em números absolutos, isto significa que o número de domicílios vagos no Brasil chega a 6,07 milhões. O déficit habitacional138, 135 Idem, p. 242. Aí, Marx define força de trabalho ou capacidade de trabalho como “o complexo [Inbegriff] das capacidades físicas e mentais que existem na corporeidade [Leiblichkeit], na personalidade viva de um homem e que ele põe em movimento sempre que produz valores de uso de qualquer tipo”. 136 Idem, p. 242. 137

http://censo2010.ibge.gov.br/apps/atlas/, acesso em 10 abr. 2015.

138 O déficit habitacional é calculado no Brasil desde 1995 pela Fundação João Pinheiro, tendo sido adotada oficialmente pelo governo federal (http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/produtos-e-servicos1/2742deficit-habitacional-no-brasil-3, acesso em 18 jan. 2015). Como esclarecido no documento sobre o déficit habitacional de 2013, “A partir do conceito mais amplo de necessidades habitacionais, a metodologia desenvolvida pela FJP trabalha com dois segmentos distintos: o déficit habitacional e a inadequação de moradias. Como déficit habitacional entende-se a noção mais imediata e intuitiva da necessidade de construção de novas moradias para a solução de problemas sociais e específicos de habitação detectados em

85

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

em 2010, era calculado como sendo de 5,8 milhões de famílias139. Mas aqueles imóveis desocupados cumprem funções específicas no sistema sociometabólico do capital, conforme se verá ao longo deste trabalho. Como afirma Marx, no Livro II de O Capital, “O trabalhador assalariado vive apenas da venda da força de trabalho. Sua subsistência – sua autossubsistência – requer o consumo diário”. Daí porque seu pagamento tem “de ser repetido constantemente em prazos relativamente curtos, para que ele possa repetir as compras necessárias para sua autossubsistência”. Ainda, no sentido acima já indicado, “para que a massa dos produtores diretos, os trabalhadores assalariados, possa realizar a operação T-D-M, é preciso que ela encontre constantemente os meios de subsistência em forma comprável, isto é, em forma de mercadorias. Essa situação requer um alto grau de circulação dos produtos como mercadorias e, portanto, do desenvolvimento da produção mercantil.”140

Para o que interessa neste ponto do trabalho, no caso da habitação, em regra, a autossubsistência do trabalhador requer também o consumo diário. Ao pensar em consumo diário, imediatamente se pensa no consumo de alimentos, de água, de transporte até o trabalho. Mas todas as funções básicas necessárias certo momento. A inadequação de moradias, por outro lado, reflete problemas na qualidade de vida dos moradores: não está relacionada ao dimensionamento do estoque de habitações e sim às suas especificidades internas. Seu dimensionamento visa o delineamento de políticas complementares à construção de moradias, voltadas para a melhoria dos domicílios. O déficit habitacional é calculado como a soma de quatro componentes: (a) domicílios precários; (b) coabitação familiar; (c) ônus excessivo com aluguel urbano; e (d) adensamento excessivo de domicílios alugados. Os componentes são calculados de forma sequencial, em que a verificação de um critério está condicionada à não ocorrência dos critérios anteriores. A forma de cálculo garante que não há dupla contagem de domicílios, exceto pela coexistência de algum dos critérios e uma ou mais famílias conviventes secundárias que desejem constituir novo domicílio” (grifos nossos), In http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman /cei/deficit-habitacional/596nota-tecnica-deficit-habitacional-2013normalizadarevisada/file, acesso em 18 jan. 2015. 139 O confronto destes dados foi feito pela própria agência de notícias governamental, como se vê em www. brasil.gov.br/noticias/arquivos/2012/12/13/numero-de-casa-vazias-supera-deficit-habitacio nal-do-paisindica-censo-2010. Aí se lê que “esse déficit habitacional foi calculado pelo Sindicato da Indústria da Construção Civil de São Paulo (Sinduscon-SP) com base em outro levantamento do IBGE, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). O déficit soma a quantidade de famílias que declaram não ter um teto, que habitam em locais inadequados ou que compartilham uma mesma moradia e pretendem se mudar. Não leva em conta as famílias que vivem em casas adequadas de aluguel”. 140 K. MARX, O Capital – Livro II, 2014, pp. 117/118.

86

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

à reprodução da vida do trabalhador e postas no mercado devem ser tidas como abarcadas pela noção de consumo diário. Assim, a habitação, desde que posta no mercado, está também englobada no que é diariamente consumido pelo trabalhador – e aqui nada importa que o pagamento seja feito por ele ao senhorio/ proprietário numa data específica do mês; também a alimentação pode ser obtida de uma só vez para consumo paulatino, e nem por isso deixa de ser abarcada na noção de consumo diário. Para que o trabalhador possa repetir o consumo de habitação, necessário para sua subsistência, deve receber o salário constantemente, “em prazos relativamente curtos”. As necessidades de moradia são então satisfeitas por meio de pagamento de aluguel ou de uma prestação de financiamento imobiliário. Apenas no caso de o trabalhador possuir um imóvel como patrimônio (familiar ou adquirido pelo próprio trabalhador), não haverá consumo de habitação nos termos aqui postos, ou seja, como comprometimento de parcela do salário percebido. Mas nem sempre acontece de os meios de subsistência estarem disponíveis no mercado, de modo que isto afeta o aspecto salarial, ou melhor, o valor dos meios de subsistência. A habitação, não estando no mercado, será consumida pelo trabalhador do modo que for: habitando junto a parentes, amigos, conhecidos, superpopulando habitações e até mesmo abrigando-se sob pontes e viadutos. De qualquer modo, o desenvolvimento do capitalismo exige que sejam criadas estas condições de despojamento do trabalhador dos seus meios de produção e de subsistência. O modo como isto se deu no desenvolvimento do capitalismo brasileiro, de inserção periférica no capitalismo mundial, deve ser olhado mais de perto. Como explica Marx, “as mesmas circunstâncias que produzem a condição fundamental da produção capitalista – a existência de uma classe de trabalhadores assalariados – exigem que toda produção de mercadorias se transforme em produção capitalista de mercadorias. À medida que esta última se desenvolve, ela exerce um efeito destrutivo e dissolvente sobre todas as formas anteriores de produção, que, voltadas preferencialmente à satisfação das necessidades imediatas do produtor, só convertem em mercadorias as sobras do que foi produzido”141. 141 Idem, p. 118.

87

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Estas transformações históricas são os pressupostos para a circulação do capital em um sistema capitalista de produção. O desenvolvimento da produção implica também no desenvolvimento de um mercado habitacional. A habitação passa a aparecer também como mercadoria – aliás, neste sistema de produção, tendencialmente, toda a produção de mercadorias se torna produção capitalista de mercadorias. O papel da propriedade privada na expansão do capitalismo e na manutenção dos espaços de poder e de exclusão deve ser frisado. É emblemático o caso da Austrália, que inspirou a classe agrária brasileira do século XIX a estabelecer regime similar de exclusão social, juridicamente fundada, da terra. Segundo James Holston, o teórico inglês da colonização, Edward Gibbon Wakefield, “desenvolveu suas teorias em resposta aos esforços fracassados dos capitalistas britânicos em reter trabalhadores nos assentamentos de imigrantes que financiaram na Austrália”142. Neste país, os trabalhadores eram “importados” a alto custo e logo conseguiam “abandonar seus empregadores para se tornar produtores independentes em pequenas porções de terra baratas ou gratuitas e assim competir com os que haviam subsidiado sua imigração”143. Diante desta situação, deveria haver um modo de tornar o trabalhador “livre” para vender sua força de trabalho como um igual ao explorador144. As amarras feudais não existiam na Austrália – ao contrário, o que existiam eram imensas porções de terras livres para serem ocupadas e exploradas. Mas o capitalismo “depende fundamentalmente de uma mercadoria capaz de produzir mais valor do que aquele que ela tem, e essa mercadoria é a força de trabalho”145. O desenvolvimento do capitalismo na Austrália dependeria da liberdade do trabalhador. Wakefield, então, em 1829, “propôs estancar essa hemorragia de trabalho e lucros encerrando as concessões gratuitas de terras e estabelecendo

142 J. HOLSTON. Cidadania Insurgente, 2013, p. 174. 143 Idem, p. 174. 144 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 278, lembra que os trabalhadores “são livres apenas no duplo sentido de ser capazes de vender sua força de trabalho para quem quiserem, ao mesmo tempo que são obrigados a vender essa força de trabalho para viver, porque foram libertados e liberados de todo e qualquer controle sobre os meios de produção!” 145 Idem, p. 279.

88

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

um ‘preço suficiente’ pelas terras desocupadas para torna-las inacessíveis aos imigrantes recentes”146. Assim, segundo Holston, “se tivessem um preço alto o bastante, os imigrantes teriam de trabalhar em troca de salários durante algum tempo antes de comprar terras para trabalhar por conta própria. Esse trabalho assalariado produziria lucros para financiar o emprego de mais trabalhadores. Quando tivessem ganhado dinheiro suficiente para se tornar proprietários independentes, os rendimentos das vendas das terras subsidiariam mais imigração, que renovaria o fornecimento de mão de obra, reduziria os salários e assim criaria o que Wakefield chamava de ‘um sistema autossustentável’ de colonização.”147

Karl Marx, no peculiar148 último capítulo do Livro I d’O Capital, tratou das teses sobre a colonização de Wakefield para desvendar o segredo da acumulação primitiva do capital. Interessante anotar inicialmente a observação de D. Harvey, de que Marx tratou “não da experiência colonial real e dos prognósticos das lutas revolucionárias anticoloniais (a expropriação dos senhores coloniais pela massa do povo colonizado), mas das teorias da colonização elaboradas por um homem chamado Wakefield, que nunca figurou entre os grandes economistas políticos de todos os tempos e escreveu seu livro sobre coloniza-

146 J. HOLSTON. Cidadania Insurgente, 2013, p. 174. 147 Idem, p. 174. 148 Segundo D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 278 e seguintes, “Os capítulos 24 e 25 d’O Capital apresentam uma nítida mudança de tom, conteúdo e método. Para começar, eles vão de encontro ao pressuposto central do resto do livro, estabelecido no capítulo 2, em que Marx aceita o mundo teórico de Adam Smith de trocas atomísticas realizadas no mercado; nesse mundo, a liberdade, a igualdade, liberdade e Bentham reinam de tal modo que todas as trocas de mercadoria ocorrem num ambiente não coercitivo de instituições liberais e perfeito funcionamento”. Marx usa a análise imanente para desconstruir os argumentos dos economistas clássicos – desconstruir “em seus próprios termos” estas teses, como explica Harvey. Mas também usou criticamente suas poderosas abstrações para penetrar a dinâmica real do capitalismo e revelar as origens das lutas em orno da duração da jornada de trabalho, das condições de vida do exército industrial de reserva e coisas do gênero. A análise do Livro I pode ser lida como um relato sofisticado e condenatório de que ‘não há nada mais desigual do que tratar desiguais como iguais”. A ideologia da liberdade de troca e da liberdade de contrato nos ludibria a todos”. Já nos capítulos 24 e 25, a finalidade é “esmiuçar a história da acumulação primitiva do século XVI em diante e investigar como esses processos foram postos em movimento”.

89

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

ção enquanto cumpria pena na prisão de Newgate por tentar seduzir a filha de uma família rica” 149.

capital”153. Marx critica ferrenhamente Wakefield para revelar a posição do assalariado e do trabalhador livre no sistema sociometabólico do capital:

Como explica Harvey, o tal do Wakefield “achou-se na companhia de prisioneiros prestes a ser enviados para a Austrália, e isso, é claro, levou-o a pensar sobre o papel da Austrália no esquema geral das coisas”150. De fato, a Austrália, como o Brasil, era uma gigantesca região geográfica para a qual o capitalismo europeu, em especial o inglês, se expandia investindo os excedentes que não puderam ser incorporados à própria economia inglesa. Segundo Harvey, Wakefield “sabia pouco do que estava acontecendo na Austrália, mas viu algo que Marx considerou de grande importância, porque significava uma refutação esmagadora de Adam Smith”: reconheceu que se poderia “levar para a Austrália todo o capital existente no mundo (dinheiro, instrumentos de trabalho, materiais de todos os tipos); no entanto, se não conseguimos encontrar trabalhadores ‘livres’ (no duplo sentido da palavra!) para trabalhar para nós, não podemos ser capitalistas”151. Nos próprios termos de Marx:

“O assalariado de hoje se torna, amanhã, um camponês ou artesão independente, que trabalha por conta própria. Ele desaparece do mercado de trabalho, mas... não retorna à workhouse. Essa constante transformação dos assalariados em produtores independentes, que trabalham para si mesmos em vez de trabalhar para o capital, e enriquecem a si mesmos em vez de enriquecer o senhor capitalista, repercute, por sua vez, de uma forma completamente prejudicial sobre as condições do mercado de trabalho. Não só o grau de exploração do assalariado permanece indecorosamente baixo. Este último ainda perde, junto com a relação de dependência, o sentimento de dependência em relação ao capitalista abstinente. Daí surgem todos os males que nosso E. G. Wakefield descreve de modo tão corajoso, eloquente e pungente”154.

“Wakefield descobriu nas colônias que a propriedade de dinheiro, meios de subsistência, máquinas e outros meios de produção não confere a ninguém a condição de capitalista se lhe falta o complemento: o trabalhador assalariado, o outro homem, forçado a vender a si mesmo voluntariamente. Ele descobriu que o capital não é uma coisa, mas uma relação social entre pessoas, intermediada por coisas.”152

Deve-se frisar: o capital não é uma coisa, como pensa a “cabeça do economista político”, mas uma relação social entre pessoas. Daí que “os meios de produção e de subsistência, como propriedades do produtor direto, não são

Marx, então, afirma que este modelo foi um retumbante fracasso, já que o fluxo migratório se desviou da Austrália para os Estados Unidos155, onde em 1862 foi editado o Homestead Act, segundo o qual a propriedade de 1 acre de terra seria adquirida por quem a cultivasse por cinco anos. Wakefield confrontara aquilo que concebeu como o sistema australiano com o sistema agrário dos Estados Unidos, que considerava livre demais, aumentando demasiadamente o preço do trabalho156. O que interessa neste ponto é que, através da análise de Wakefield, Marx explicita que “o modo capitalista de produção e acumulação – e, portanto, a propriedade privada capitalista – exige o aniquilamento da propriedade privada fundada no trabalho próprio, isto é, a expropriação do trabalhador”157.

153 Idem, p. 837. 149 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 288.

154 Idem, p. 839.

150 Idem.

155 Idem, p. 843.

151 Idem.

156 Observa D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 288, que “Como Wakesfield predisse corretamente, os Estados Unidos teriam de recorrer às táticas brutais da pré-história do capitalismo se quisessem que o sistema continuasse vivo no país. A luta entre o ‘trabalho livre’ na fronteira e o controle crescente da política agrária por interesses privados (em particular as ferrovias), assim como a retenção das populações imigrantes como trabalhadores assalariados nas cidades, eram aspectos vitais da acumulação”.

152 K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, p. 836. Vale ler a continuação do trecho de Marx pela ironia característica adotada: “O sr. Peel, lastima ele, levou consigo, da Inglaterra para o rio Swan, na Nova Holanda, meios de subsistência e de produção num total de £50 mil. Ele foi tão cauteloso que também levou consigo 3 mil pessoas da classe trabalhadora: homens, mulheres e crianças. Quando chegaram ao lugar de destino, “o sr. Peel ficou sem nenhum criado para fazer sua cama ou buscar-lhe água do rio”. Desditoso sr. Peel, que previu tudo, menos a exportação das relações inglesas de produção para o rio Swan!”.

90

157 K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, p. 844.

91

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

As ideias de Wakefield tiveram grande influência no Parlamento Britânico e na política agrária inglesa158, e por este meio estas teses chegam também ao Brasil159. A destinação das terras após a independência era uma discussão candente no Brasil. As experiências dos EUA e da Austrália eram discutidas pelos legisladores brasileiros quando dos debates para o que veio a resultar numa lei de reforma agrária e trabalhista em 1843, que tinha como objetivos: a) “criar condições nas quais o trabalho livre europeu substituiria o trabalho escravo nas lavouras”; b) “financiar essa substituição com fundos gerados pela venda de terras e regularização de títulos, cujo custo seria distribuído entre todos os proprietários de terras”; c) e “trazer ordem ao caos dominante na ocupação da terra ao distinguir as posses públicas das privadas e desenvolver um regime fundiário legal sob a autoridade do governo central”160. A lei adotou as diretrizes de Wakefield, impondo que as terras da Coroa poderiam ser vendidas apenas em lotes maiores que 2.688 acre, o que manteria os preços das terras elevados e inacessíveis a pequenos proprietários161. Outras duas medidas reforçavam esta finalidade de obstar o acesso de pequenos proprietários às terras: a criação de um imposto anual sobre a propriedade privada e a proibição de que “imigrantes subsidiados comprassem, arrendassem ou alugassem ou de qualquer forma obtivessem o uso da terra por três anos, a não ser que pagassem integralmente as despesas de sua imigração”162. Após, a partir da edição da Lei de Terras, em 1850 (mesmo ano da Lei Euzébio de Queiroz, que proibia o comércio de pessoas escravizadas), a única forma legal de posse da terra passa a ser a compra devidamente registrada em cartório de imóvel – passa a ser a propriedade privada, que apenas poderia ser transferida solenemente. Esta forma de aquisição da propriedade da terra, prevista numa lei do período pré-capitalista no Brasil (em que este país se inseria já como periferia do capitalismo mundial em expansão), influenciará

158 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 289. 159 Segundo J. HOLSTON. Cidadania Insurgente, 2013, p. 422, “Wakefield se tornou conhecido nas décadas de 1830 e 1840 e foi citado no trabalho de Jonh Stuart Mills como uma autoridade em colonização. Ele foi notoriamente criticado por Marx, que dedicou o último capítulo de O Capital a derrubar suas teorias sobre as ‘manufaturas de trabalhadores assalariados nas colônias’”. 160 J. HOLSTON. Cidadania Insurgente, 2013, p. 175.

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

fortemente a expansão urbana no século XX, período de intensa expansão geográfica capitalista no país. Com a Lei de Terras a propriedade da terra passa já a estar subordinada à lógica do valor de uso/valor de troca. A terra adquire o estatuto de mercadoria e a legislação formaliza ao extremo este estatuto, determinando que a transmissão da mesma só é reconhecida pela lei com o registro no cartório de imóveis competente. Este regime foi mantido pelo Código Civil de 2002, que regula a matéria atualmente: “Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. § 1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel. § 2º Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel”.

Este regime jurídico procura desvincular a posse da propriedade, sendo mitigado apenas pelo reconhecimento do instituto da usucapião, pelo qual se adquire a propriedade pela posse prolongada no tempo. A usucapião protege o proprietário por ao menos 5 anos, podendo o prazo chegar até a 15 anos. Acima de tudo, o instituto da propriedade buscava proteger a circulação formal da terra e preparava o terreno para a imigração e para a abolição da escravização dos negros. É discutível se o formalismo da transferência da propriedade tem efeitos positivos sobre o sistema sociometabólico do capital em geral, mas o mesmo fazia todo o sentido naquele momento histórico, em que as condições gerais para o desenvolvimento capitalista estavam sendo estabelecidas, não sem contradições próprias relacionadas aos interesses das classes dominantes de então. De qualquer modo, a terra adquire o estatuto de mercadoria, podendo circular apenas por meio de atos solenes, criando condições para o despojamento dos trabalhadores de seus meios de produção e de subsistência. A edição da lei de terras significou um abandono apenas parcial das ideias de Wakefield: “ao mesmo tempo que parecia estimular a pequena propriedade independente, a lei mantinha o princípio fundamental de Wakefield de que os imigrantes não deveriam ter acesso fácil à terra”163. Isto era feito mantendo-se o obstáculo de que “o Estado deveria vender, e não conceder [como chegou a ser

161 Idem. 162 Idem, p. 175/176.

92

163

J. HOLSTON. Cidadania Insurgente, 2013, p. 180. 93

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

feito nos Estados Unidos], terras públicas”, e também pela extinção do instituto da posse como forma legítima de propriedade fundiária, inclusive criminalizando a sua prática – com isso, “a lei eliminava a forma costumeira, se não a única, de os pobres adquirirem terras”164. Como observava Karl Marx, “A natureza não produz possuidores de dinheiro e de mercadorias, de um lado, e simples possuidores de suas próprias forças de trabalho, de outro. Essa não é uma relação histórico-natural [naturgeschichtliches], tampouco uma relação social comum a todos os períodos históricos, mas é claramente o resultado de um desenvolvimento histórico anterior, o produto de muitas revoluções econômicas, da destruição de toda uma série de formas anteriores de produção social”165.

Nas condições pré-capitalistas do Brasil, inserido já no contexto capitalista mundial numa trajetória de desenvolvimento dependente periférico, a acumulação primitiva exigia um sistema jurídico que consagrasse a propriedade privada da terra e toda a terra como propriedade privada, apta a transformar-se em mercadoria. O direito aparece aí a serviço da acumulação primitiva e da expansão capitalista para além da Europa, em especial para além da Inglaterra, que precisava aplicar seus excedentes produtivos e sustentar seu próprio desenvolvimento em bases imperialistas. Quando o trabalho “livre” surgir definitivamente o Brasil com a abolição da escravização de negros, a terra já será cativa – como afirmou Martins, “num regime de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo, num regime de trabalho livre, a terra tinha que ser cativa”166. Assim, o direito em geral e o instituto da propriedade privada em particular aparecem como decisivos na formação do capitalismo brasileiro, liberando os trabalhadores para o trabalho assalariado, afastando-os (ou buscando afastá-los) da terra “livre”. A propriedade privada é usada para produzir exclusão social e para fabricar as condições básicas para o desenvolvimento do capitalismo, em especial a despossessão da terra e dos demais meios de subsistência e produção, um típico processo de espoliação pré-capitalista. Assentadas as bases jurídicas 164 Idem. 165 K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, p. 244. 166 J. S. MARTINS. Expropriação e Violência (a questão política no campo), 1980, p. 32.

94

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

elementares para o capitalismo brasileiro e para o regime fundiário, mantidas ao longo da história, elas estabelecem os limites para as políticas públicas de habitação atuais, às quais se passa a analisar.

3.2. Do Projeto Moradia ao Programa Minha Casa, Minha Vida: o sonho da casa própria como ideologia para o desenvolvimento capitalista No Brasil, desde o início dos governos petistas em 2003, houve intensa disputa sobre qual modelo de política habitacional seria adotado. Grosso modo, os dois modelos em disputa eram: 1) o modelo do estímulo ao mercado, por meio do qual o governo atuaria para fomentar um ambiente favorável à produção em massa de mercadoria habitacional, se necessário por meio de subsídios públicos; 2) e o modelo do planejamento urbanístico-habitacional, pelo qual o Estado, nos três níveis, deveria ter um papel indutor da produção de moradia, através da articulação de políticas urbanas, fundiárias e habitacionais. Os dois modelos divergem quanto a finalidades específicas no âmbito do direito e da política, embora não quando ao modo de produção capitalista. A seguir, se descreve como aquele primeiro modelo prevaleceu diante dos imperativos da expansão e reprodução do capital no país. Na primeira década do século XXI, intensa produção legislativa e institucional sobre o direito à moradia teve lugar: em 2000 é constitucionalizado o direito à moradia (passa a ser previsto no artigo 6º da CF como direito social167) e em 2001 é aprovado o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01). A partir de 2003, com o primeiro governo Lula, começava-se a colocar em prática – não sem ambiguidades – uma perspectiva que concebia a política habitacional como íntima e indissociavelmente ligada à política urbana e fundiária (modelo do planejamento urbanístico-habitacional). Esta perspectiva fora desenvolvida antes de o PT assumir a presidência da república, no Instituto Cidadania, que, a pedido de Lula, desenvolveu o “Projeto Moradia”, que “enfatizava o

167 Constituição Federal, Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015)

95

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

caráter urbanístico da questão da moradia, ou seja, a impossibilidade de separar uma proposta de habitação de uma proposta para as cidades e propunha, entre outros aspectos, a criação do Ministério das Cidades e da Habitação”168. Como observou R. ROLNIK, “A proposta política habitacional do governo já estava esboçada desde a campanha eleitoral. O chamado Projeto Moradia fazia parte de um conjunto de propostas do Instituto Cidadania, coordenado por Lula, tendo em vista a construção de uma política de desenvolvimento para o país que associasse o enfrentamento da questão social ao crescimento econômico e à geração de empregos... Lançado em 2000, o projeto propôs a criação do Sistema Nacional de Habitação, formado pelos três entes da federação, que atuariam de forma estruturada sob a coordenação do novo Ministério das Cidades. O controle social seria exercido pelo Conselho Nacional das Cidades e por órgãos semelhantes nos estados e municípios, aos quais caberia gerir fundos de habitação que deveriam concentrar recursos orçamentários para subsidiar moradia para a população de baixa renda”169.

No primeiro ano de governo, 2003, foi criado o Ministério das Cidades, com atribuição de “formular a política urbana em nível nacional e fornecer apoio técnico e financeiro a governos locais, integrando as arenas institucionais das políticas federais de habitação, saneamento e transportes”170; em 2004, a Política Nacional de Habitação é aprovada pelo aprovada pelo Conselho das Cidades; em 2005 surge o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social; também em 2005 é aprovada a lei 11.124/05, que instituiu o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), cujo funcionamento iniciou em 2006171; em 2003 é realizada a Conferência Nacional das Cidades e em 2004 é instituído o Conselho Nacional das Cidades em 2004, como órgão consultivo e deliberativo. Finalmente, já no segundo governo Lula, em agosto de 2007, começa a ser elaborado o Plano Nacional de Habitação, que tinha como objetivo “formular 168 MARICATO, O impasse da política urbana no Brasil, pp. 6 e seguintes. 169 R. ROLNIK. Guerra dos Lugares, 2015, p. 295. 170 Idem, p. 294. 171 Idem, p. 295-296, afirma que o Fundo Nacional de Habitação era “bandeira do movimento de moradia que tramitava desde 1991 no Congresso Nacional. Inspirado no modelo do Sistema Único de Saúde, esse projeto de lei propunha um sistema federativo de articulação de orçamentos sob controle social.

96

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

uma estratégia de longo prazo para equacionar as necessidades habitacionais do país, direcionando da melhor maneira possível os recursos existentes e a serem mobilizados”172. O plano apresentava “uma estratégia nos quatro eixos estruturadores da política habitacional: modelo de financiamento e subsídio; política urbana e fundiária; arranjos institucionais e cadeia produtiva da construção civil”173. A partir destes eixos, se buscaria “implementar um conjunto de ações capazes de construir um caminho que permita avançar no sentido de atingir o principal objetivo da PNH [Política Nacional de Habitação]: universalizar o acesso à moradia digna para todo cidadão brasileiro”174. Ocorre que antes do lançamento do Plano Nacional, em 2009, o governo federal lança um programa mais específico e desvinculado do Plano e da Política Nacional de Habitação em elaboração: o Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV). Este programa inicialmente previa a construção de um milhão de moradias para pessoas de baixa renda e famílias nas faixas de renda de até 10 salários mínimos, tendo sido ampliado posteriormente. Na prática, foi este programa que passou a moldar a política habitacional do governo federal, ofuscando o Plano Nacional de Habitação, que seria divulgado – então praticamente natimorto – em dezembro de 2009, meses depois do lançamento do PMCMV. Neste sentido apontou Nabil Bonbuki: Ao publicizar o novo programa [Minha Casa, Minha Vida] antes de apresentar o Plano Nacional de Habitação (PlanHab) uma estratégia de longo prazo para equacionar o problema habitacional, formulada e debatida por ano e meio, sob a coordenação da Secretaria Nacional de Habitação, que estava pronta para ser publicada em janeiro de 2009, o governo perdeu uma excelente oportunidade para mostrar como uma ação anticíclica poderia se articular com uma estratégia estrutural para atacar um problema brasileiro crônico, no âmbito de um projeto nacional de desenvolvimento com inclusão social175.

A política de subsídios previa um mix de recursos não onerosos do Orçamento Geral da União (OGU) e do FGTS para viabilizar o crédito e o acesso à moradia digna para a população de baixa renda”. 172 BRASIL, Plano Nacional de Habitação, 2009, p. 9. 173 Idem. 174 Idem. 175 N. BONDUKI, Do Projeto Moradia ao programa Minha Casa, Minha Vida, 2009, p. 108.

97

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Como será detalhado adiante, o PMCMV tem um viés de construção em massa de unidades habitacionais, distanciando-se da articulação em quatro eixos176 proposta no Plano Nacional de Habitação – é dizer, os eixos política urbana e fundiária e arranjos institucionais foram deixados de lado pelo programa Minha Casa, Minha Vida. Por outro lado, os eixos sobre financiamento e construção civil se apoiou em aparatos jurídico e institucional bastante eficientes para a produção em massa da mercadoria habitação. No Plano Nacional de Habitação, o eixo política urbana e fundiária buscava “facilitar e baratear o acesso à terra urbanizada para Habitação de Interesse Social (HIS)”177 e se apoiava em três fatores básicos: “a) capacidade de ampliação e disponibilização de terra urbanizada bem localizada para a provisão de habitação de interesse social; b) estratégias de estímulo à cadeia produtiva da construção civil e; c) fomento ao desenvolvimento institucional dos agentes envolvidos no setor habitacional, especialmente os setores públicos municipal e estadual”178. Os instrumentos básicos que poderiam fazer trilhar este caminho seriam instrumentos de política urbana com vocação para reprimir o uso especulativo da terra urbana e o não cumprimento da função social da propriedade, cuja aplicação caberia em especial aos Municípios. Alguns destes instrumentos estão previstos no Estatuto da Cidade, mas têm aplicação praticamente residual, prevalecendo uma urbanização de “livre mercado”, sem planejamento estatal. Já o eixo “arranjos institucionais” buscava articular “ações com um sentido comum” entre os diversos entes governamentais. No Plano, a noção de arranjo institucional é restrita, voltada apenas aos agentes envolvidos na política pública179. A ideia de “ações com um sentido comum” despreza os interesses em conflito, interesses alinhados com modelos distintos de política habitacional e de desenvolvimento urbano180. Estas concepções diversas marcaram o pro176 Quais sejam, modelo de financiamento e subsídio; política urbana e fundiária; arranjos institucionais; e cadeia produtiva da construção civil. 177 BRASIL, Plano Nacional de Habitação, 2009, p. 13. 178 Idem, p. 6. 179 Ao contrário da concepção de arranjo institucional de Dallari Bucci, para quem “O arranjo institucional é a expressão formalizada da política pública, com uma dimensão sistemática” (Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas, 2013, p. 23) ou o “marco geral de ação, incluindo uma norma instituidora” (Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas, 2013, p. 179). 180 Os modelos de desenvolvimento urbano em disputa são o modelo do empreendedorismo das cidades (defendido pelas forças de mercado, construtoras, incorporadoras, bancos) e o modelo da reforma urbana

98

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

cesso histórico recente das políticas urbanísticas e têm íntima relação com os modelos de política habitacional de estímulo ao mercado ou de planejamento urbanístico-habitacional. O único sentido comum que pode haver, nestes casos, é a reprodução economicamente sustentada do mercado habitacional, realizando o papel destinado ao Estado sob o sociometabolismo do capital. No mais, este eixo “arranjos institucionais” criava estratégias que o alinhavam a propostas do movimento da Reforma Urbana: “1. Fortalecer o setor público e explicitar os papéis e competências de cada nível de governo no SNHIS; 2. Fortalecer os agentes não estatais para exercerem seu papel no SNHIS; 3. Garantir o controle social e participação da sociedade na implementação da política e dos planos nas três esferas federativas; 4. Criar o Índice de Capacidade Institucional Habitacional e de Gestão Urbana para bonificar com maior acesso aos recursos federais os entes federativos que se qualificarem para gerir adequadamente o setor habitacional; 5. Capacitar os vários agentes do SNHIS para garantir repertório comum, agilidade e qualidade na implementação do PlanHab; 6. Instituir o Sistema de Informações da Habitação a partir do cadastro nacional CadÚnico, completado com informações para a gestão e avaliação da política habitacional; 7. Criar um sistema de monitoramento e avaliação que permita o controle dos resultados e a revisão periódica do PlanHab.”181

Como já observado, no início do governo Lula, houve abertura institucional para a concepção da política habitacional como intimamente relacionada à política urbana e fundiária. Porém, em 2005, a governabilidade petista levou à entrega do Ministério das Cidades ao Partido Progressista (PP), estancando os avanços do movimento da reforma urbana e colocando em xeque a concepção de vinculação entre política habitacional e política fundiária e

(defendido por movimentos sociais e populares, por urbanistas próximos a estes e pelo já mencionado Instituto Cidadania, que elaborara a base programática do programa de governo nesta área). 181 BRASIL, Plano Nacional de Habitação, 2009, p. 108.

99

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

urbana. Perde fôlego aí a proposta de elaboração de um Plano Nacional de Desenvolvimento Urbano182. A governabilidade estava ligada à tentativa do petismo de realizar mudanças sociais sem enfrentar diretamente os interesses das classes dominantes no Brasil183. André Singer analisou a “inserção social” de trabalhadores pobres no Brasil como o projeto principal do governo Lula, pensando-a como um reformismo fraco em prol do que ele chama de “subproletariado” (que nada mais é do que a parcela mais pauperizada dentre a população de baixa renda), em prol da “redução da sobrepopulação trabalhadora superempobrecida permenente”184. E este projeto petista de “inserção social” dos trabalhadores pobres, ao contrário do indicado na obra, está longe de ser incompatível com as políticas neoliberais – não se trata, como pretende Singer, de um mero “caminho intermediário ao neoliberalismo da década anterior”185, mas da viabilização da continuidade do neoliberalismo no capitalismo periférico, ou, dito de outro modo, da continuidade da inserção periférica do Brasil no neoliberalismo global. A “inserção social” dos trabalhadores pauperizados ocorre num contexto de hegemonia global do projeto neoliberal, do qual o Brasil aparece como dependente. O processo que ocorre no Brasil se trata mais de uma “inserção social” via mercado (ao invés de apoiada em acesso universal a direitos), ocasionando uma ampliação de mercados capitalistas estimulada pelo Estado – uma das características mais evidentes do neoliberalismo é justamente que o Estado deve ser mínimo, com funções específicas como promover e estimular soluções de mercado para as necessidades sociais. A questão habitacional continuou a ser objeto de disputa dentro do governo, mas, como ficou mais claro no ano 2009, a vertente que se hegemonizou privilegiou não os eixos do Plano Nacional de Habitação (que incluía aquela vinculação entre política habitacional e política urbana e fundiária), mas o Programa Minha Casa, Minha Vida. A divulgação do Plano Nacional, em 2009, soou como um último suspiro de um movimento que perdia paulatinamente espaço no governo petista.

182 E. MARICATO, O impasse da política urbana no Brasil, pp. 62 e 63. 183 A. SINGER, Os Sentidos do Lulismo, 2012. 184 Idem, p. 168. 185 Idem, p. 13.

100

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

A parti dali, seria privilegiada a implementação do Programa Minha Casa, Minha Vida, com a derrocada da busca por articulação entre política habitacional e urbana. O que prevaleceria seria a agenda do mercado de construção civil e imobiliário, tendo havido, como será detalhado a seguir, centralização no nível federal da política habitacional, que passava ase apoiar na produção em massa da mercadoria habitação.

3.3. Linhas Gerais do Programa Minha Casa, Minha Vida O Programa Minha Casa, Minha Vida é uma política pública do governo federal voltada à construção de unidades habitacionais para a “população de baixa renda”, isto é, para as parcelas pauperizadas das classes trabalhadoras. Lançado em 2009, o programa construiu, segundo fontes oficiais, 2,6 milhões de moradias em todo o país, pretendendo-se ainda construir mais 2 milhões nos anos subsequentes, contemplando mais de 9,2 milhões de pessoas186. O programa anunciadamente visa a implementar o direito à moradia para a população de baixa renda por meio da aquisição de título de propriedade via financiamento imobiliário. Tem incidência principal em áreas urbanizadas, embora preveja também, ao lado do Programa Nacional de Habitação Urbana, o Programa Nacional de Habitação Rural187. Pelas regras do programa, os beneficiários devem estar em três faixas de renda familiar: a) até R$ 1.800,00 (Faixa 1); b) de R$ 1.800,01 até R$ 2.350,00 (faixa 1,5); c) de R$ 2.350,01 a R$ 3.600,00 (Faixa 2); de d) de R$ 3.600,00 até R$ 6.500,00 (Faixa 3). A primeira faixa de renda (faixa 1) é quase completamente subsidiada, podendo ser custeado até 90% do valor do imóvel. As faixas 1,5 e 2 também são subsidiadas, enquanto a não conta com subsídios, mas com

186 http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2016/03/minha-casa-minha-vida-chega-a-3a-fase-com-2milhoes-de-novas-moradias-ate-2018 e http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2015/09/minha-casaminha-vida-entregou-2-4-milhoes-de-moradias, consultas em 26/05/2016. 187 Art. 1º, incisos I e II, da Lei nº 11.977/2009. Sobre a origem deste programa, como aponta R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 301, “ainda em 2009, movimentos de sem-terra, envolvidos na luta pela reforma agrária, também pressionaram o governo e conseguiram aprovar uma modalidade de casas para suas cooperativas e pequenos produtores de agricultura familiar – o PNH-Rural – que também [como o MCMV-Entidades] obteve 500 milhões de reais para a construção de casas. Desde o lançamento do programa, MCMV-Entidades e PNH-Rural representam, juntos, 1% do total de unidades e recursos do MCMV”.

101

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

taxas de juros mais baixas do que as dos financiamentos imobiliários existentes no mercado. Portanto, o programa tem incidência em diversas faixas de renda das classes trabalhadoras, sendo de maior interesse para este trabalho analisar o papel do mesmo na “inserção habitacional” da população de baixa renda, aquelas público alvo da “Faixa 1”. Como já apontado, este programa suplantou o Plano Nacional de Habitação, que vinha sendo gestado no Ministério das Cidades e, dos quatro eixos previstos pelo plano (modelo de financiamento e subsídio; política urbana e fundiária; arranjos institucionais; e cadeia produtiva da construção civil), deu especial ênfase ao modelo de financiamento e subsídio e ao incentivo da cadeia produtiva da construção civil. Daí se identificar um desequilíbrio conceitual e teórico entre o PMCMV e o Plano Nacional de Habitação, já que “a execução das diretrizes do PlanHab através do Programa Minha Casa Minha Vida levou a uma série de distorções entre a intenção original e o resultado real”188; levou a uma defasagem entre a política de habitação e a política fundiária; e levou à priorização, pelo PMCMV, da expansão da indústria da construção civil em detrimento do combate ao déficit habitacional189. Apesar disso, o combate a este déficit continuou sendo o a justificativa e o mote do programa. Ocorre que o próprio problema do déficit habitacional não pode sequer ser enunciado pelo Estado capitalista senão como mistificação: “Bolaffi expõe, por exemplo, os curiosos malabarismos dos quais a classe dominante e obrigada a lançar mão para, em seu discurso, dizer que está resolvendo o problema da habitação. Inicialmente Bolaffi mostra que não tem cabimento falar-se em “déficit” habitacional numa economia de mercado, da mesma maneira que, a não ser transitoriamente, não tem cabimento falar-se de “déficit” de automóveis ou televisores. Do ponto de vista da economia política vigente, diz Bolaffi, o Brasil possui exatamente o número de habitações para o qual existe uma demanda monetária... Isso não quer dizer que o problema não exista. Quer dizer entretanto que a burguesia não pode enunciá-lo corretamente pois se o fizesse teria que reconhecer ao mesmo tempo sua incapacidade de resolvê-lo.”190

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

O problema do déficit habitacional, da maneira como é colocada pelo PMCMV, é um problema aparente, já que a escassez de imóveis é criada via mercado e protegida pelo direito e pela política. Não à toa, o déficit habitacional é menor do que o número de domicílios fechados/imóveis vazios no país191. Estes números dependem da demanda monetária e das massas salariais existentes, não da quantidade de imóveis. Mais do que incapaz de resolver o “déficit habitacional”, as classes dominantes instituem com sucesso mecanismos institucionais e legais para apartar as pessoas sem-teto dos imóveis vazios192. Engels, no século XIX, já observava que “existem conjuntos habitacionais suficientes nas metrópoles para remediar de imediato, por meio de sua utilização racional, toda a real ‘escassez de moradia’”193. Porém, para o autor, acomodar trabalhadores sem teto, em situação de rua ou habitantes de moradias indignas nos imóveis vazios só seria possível com a conquista do poder política pelo proletariado194. Pouco mudou desde então. Voltando ao Plano Nacional de Habitação, Ermínia Maricato afirma que este retomava uma necessária articulação para equacionar a questão da habitação, mas que “o lançamento do programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), em março de 2009, também o ignorou na maior parte”195. Diz a urbanista que “é importante constatar ainda que já havia uma proposta de política habitacional construída pelos movimentos sociais que deu origem ao FNHIS (Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social), que se diferenciava bastante do PMCMV... ela instituiria, se seguisse a proposta 191 Como já observado neste trabalho, item 3.1, o Censo 2010 do IBGE (http://censo2010.ibge.gov.br/ apps/atlas/, acesso em 10 abr. 2015) indicou que dos Domicílios particulares permanentes, 9% estão vagos, o que significa, em números absolutos, 6,07 milhões de imóveis vazios. O déficit habitacional, em 2010, era calculado como sendo de 5,8 milhões de famílias (levantamento do Sindicato da Indústria da Construção Civil de São Paulo - Sinduscon-SP, conforme www.brasil.gov.br/noticias/ arquivos/2012/12/13/numero-de-casa-vazias-supera-deficit-habitacional-do-pais-indica-censo-2010, acesso em 10 abr. 2010). 192 Exemplo das reintegrações de posse multitudinárias são a do Pinheirinho e a da Vila Soma, tendo ambos os casos sido levados à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em razão das violações de direito que ocasionaram ou que podem ainda ocasionar. Para as autoridades brasileiras, porém, estas reintegrações seguiram seu curso normal. Estes exemplos mostram apenas a face mais conflituosa do imenso aparato jurídico de exclusão de pessoas e de proteção de propriedades existente.

188 P. NASCIMENTO NETO et al., Housing Policy: A Critical Analysis on the Brazilian Experience, 2012, p. 65.

193 F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, p. 56.

189 Idem.

194 Idem.

190 F. VILLAÇA, O que todo cidadão precisa saber sobre habitação, 1986, p. 5.

195 E. MARICATO, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 63.

102

103

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

original, um sistema descentralizado de investimentos em habitação, representado por fundos e conselhos estaduais e municipais, que teriam autonomia para aplicação dos recursos repassados por meio do Fundo Nacional. Seguindo sua característica ambígua, o governo Lula respondeu, de certo modo, com o FNHIS para os movimentos sociais e com o PMCMV para os empresários, sendo que o primeiro, gerido por um conselho que tem a participação de representantes da sociedade, maneja recursos bem menos expressivos do que o segundo”.196

Mas apenas em diferente contexto socioeconômico a realidade poderia ser outra da apontada por Maricato. Anteriormente, o Governo desenvolvera o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) 1, de 2007, que tinha por finalidade a urbanização de assentamentos precários (favelas e áreas urbanas degradadas), o qual incidiria mais no desenvolvimento urbano do que o PMCMV197. Aquele programa, focado em urbanização, buscava impulsionar o melhor aproveitamento da infraestrutura urbana já existente e subutilizada – mas não incidia sobre o aspecto da produção habitacional. Por outro lado, o PMCMV “retoma a política habitacional com interesse apenas na quantidade de moradias, e não na sua fundamental condição urbana”198. Fato é que o Programa Minha Casa, Minha Vida decorreu de condições objetivas bem específicas para a expansão produtiva de excedentes monetários nacionais e internacionais no país – em específico, a existência de certo volume de capital monetário (gerido pelo Estado brasileiro) e de um farto banco de terras pertencentes à indústria da construção civil199. A lei 11.977/2009 (originada da Medida Provisória 459/2009), que “Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas”, é o diploma jurídico que organiza o programa, que foi previsto no capítulo I, enquanto os capítulos II e III trouxeram previsões, respectivamente, sobre a lei de registros públicos (lei

196 Idem. 197 Idem, p. 74. 198 Idem, p. 75. 199 Este banco de terras levou a que incorporadoras escolhessem onde construir os imóveis do PMCMV, e a escolha óbvia foi pelos terrenos nas “franjas das cidades”, deixando os terrenos mais centrais, aqueles mais valorizados, como reservas de valor.

104

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

6015/73), para instituir o sistema de registro eletrônico; e sobre a reforma da regularização fundiária. A desconexão entre os capítulos da lei, em especial entre os capítulos I e III, esconde menos do que revela. Como apontado especialmente no item 2.3 deste trabalho, não se pode discutir o acesso de pessoas de baixa renda a habitação sem se discutir o modo pelo qual a terra urbana é produzida e distribuída. O PMCMV, apesar de sua lei de regência ter um capítulo inteiro voltado para a regularização fundiária, se consolidou como mero programa de produção em massa de moradias. Como logo se explicitaria, o programa tinha as finalidades macroeconômicas como as mais proeminentes, tendo sido lançado antes como resposta à crise econômica mundial que se iniciou em 2008200, do que como mecanismo efetivo para a satisfação das necessidades habitacionais das classes trabalhadoras. Esta crise econômica mundial se desenvolvia numa ponta do capital financeiro internacional que não atingia com vigor o Brasil. Aí, estavam dadas as condições para o investimento de excedentes de capital – a economia tinha estoque monetário suficiente e as empresas de construção civil estavam capitalizadas com um estoque de terras e com mão de obra farta. Assim, o programa anunciava destinar-se aos “trabalhadores de mais baixa renda”, mas seu desenho concreto passou longe de solucionar a questão habitacional para estes trabalhadores. Como observei em outro trabalho, “A exposição de motivos da medida provisória 459/2009, que originou a lei 11.977/2009, já explicitava que o programa compunha ‘parte significativa do mosaico de ações do Governo para combater o déficit habitacional e a crise econômico-financeira global’ e que ‘De fato, diante do cenário de crise financeira mundial com o recrudescimento de seus impactos negativos sobre a atividade econômica, renda e nível de emprego do País é premente a necessidade de adoção de medidas de natureza anticíclicas no curto prazo, principalmente aquelas que possam garantir a melhoria da qualidade de vida da população de baixa renda e a manutenção do nível de atividade econômica’ (E.M. Interministerial 33/2009/ MF/MJ/MP/MMA/MCidades, itens 1 e 2, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Exm/EMI-33-MF-MJ-MP-MMA-Mcidades-09-Mpv-459.htm). Mas, ao mesmo tempo, afirmava

200 BONDUKI, Pioneiros da Habitação Social no Brasil, Volume 3, 2014, p. 118.

105

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

buscar a facilitação do acesso à moradia própria para as famílias de baixa renda201. Lê-se na exposição de motivos um diagnóstico correto sobre o déficit habitacional (de que ele ‘se concentra no segmento populacional de baixa renda, em razão da dificuldade dessa população em acessar financiamento e outros mecanismos de aquisição de moradia que demandem comprovação, regularidade e suficiência de renda, da decadência do SFH nos anos 80 e do fenômeno da urbanização mais acelerada da última década’), porém, a medida provisória, depois transformada na lei 11.977/2009, previu mecanismos que podem ser considerados restritos demais para atingir a população de mais baixa renda, onde se concentra o déficit habitacional.”202

A mencionada exposição de motivos adota o discurso do ataque ao déficit habitacional como um artifício para legitimar o programa, que tem a finalidade objetiva – também declarada – de aquecer o mercado da construção civil, com alguns efeitos laterais sobre o problema de habitação da parcela empobrecida da classe trabalhadora. A economia passa a ter um maior estoque de habitações disponível, mas isto não necessariamente implica numa melhoria nos níveis de subsistência dos trabalhadores, já que todo este estoque estará submetido ao sociometabolismo do capital. As finalidades econômicas do programa são bem marcadas, voltadas à expansão do mercado de construção civil e do mercado imobiliário no país. A urbanista Raquel Rolnik observa que “a política habitacional atual é concebida e praticada como elemento de dinamização econômica para enfrentar uma possível crise e gerar empregos, colocando-se de forma desarticulada com uma política de 201 Quando editada a MP 459/2011, esta previa atendimento às famílias com renda até 10 salários mínimos, que na época equivalia a R$ 4.650,00. A subvenção econômica prevista inicialmente para o programa, de 2.500.000.000,00 (dois bilhões e quinhentos milhões de reais), estava destinada para famílias com renda de até 6 salários mínimos (na época, R$ 2.790,00). No decreto 7499/2011, previuse que a subvenção se destinava às famílias com renda mensal de até R$ 3.100,00 – o salário mínimo, então, era de 545,00 reais, de modo que o novo valor previsto era inferior a 6 salários mínimos (3.270,00 reais). Não se previa mais a renda do programa atrelada a salários mínimos, de modo que os reajustes deste não gerasse impactos no programa. Com o decreto 7.825 out. 2012, o valor foi para 3.275,00 reais, e então 6 salários mínimos já valiam 3.732,00 reais. Desde então não houve reajuste no limite para a concessão da subvenção, apesar de alterações no salário mínimo. Observe-se que o programa criou três faixas de renda, sendo que apenas a primeira pode ser considerada como população de baixa renda: até R$ 1.600 (faixa 1), até R$ 3.100 (faixa 2) e até R$ 5 mil (faixa 3). 202 R. MENEZES, O Programa Minha Casa, Minha Vida: limites dos arranjos institucionais para uma política pública de habitação de interesse social, 2016, p. 274-275.

106

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

ordenamento territorial e fundiária destinada a disponibilizar terra para moradia popular. O resultado é um extraordinário aumento no preço de terras e imóveis. O programa Minha Casa Minha Vida, formulado como política industrial – e com grande apelo eleitoral - tem ignorado as conquistas no campo do direito à cidade, do direito à moradia e no campo da cidadania... O financiamento diretamente para as construtoras, como estímulo à produção habitacional de mercado, se transformou em um enorme mecanismo de transferência de subsídios públicos, do orçamento estatal, para o preço da terra e dos imóveis em uma conjuntura sem controle algum sobre o processo de especulação imobiliária”203.

No mesmo sentido, Nabil Bonduki observa que o enfrentamento do déficit habitacional por meio de subsídios públicos para a construção de moradias leva à elevação do “custo das moradias populares, mesmo se informais, e a ‘sugar’ as unidades de habitação social, produzidas com subsídio, para quem dele não tem necessidade, como aconteceu em toda a história da produção pública”204. O impacto principal deste aumento de custos se dá justamente sobre a população de baixa renda, tratando-se, na essência, de um mecanismo de manutenção das bases para a reprodução desta. Os mecanismos de preço no mercado da terra atuam para manter estas bases. E os bilionários subsídios estatais foram um dos principais fatores de aumento do preço da terra urbana desde o início do programa. O PMCMV oferece subsídios para trabalhadores de mais baixa renda, que precisam pagar apenas o valor básico de prestação para a Caixa Econômica Federal, o agente financeiro do programa205. Mas este programa não possui mecanismos de regulação do mercado de terra que evite a apropriação destes subsídios, por vias transversas, pelas classes capitalistas. O aumento do preço da terra urbana é um mecanismo básico de apropriação dos subsídios habitacionais 203 R. ROLNIK, Crescimento Econômico e Desenvolvimento Urbano: por que nossas cidades continuam tão precárias?, 2011, p. 14)”. 204 N. BONDUKI, Pioneiros da Habitação Social no Brasil. Volume 3, 2014, p. 112. O autor também afirma, à p. 120, que “ao elevar significativamente a demanda por terras aptas para a produção habitacional para o mercado, o programa gerou valorização do preço dos terrenos e glebas e especulação imobiliária, o que prejudicou, sobretudo, os empreendimentos na faixa social cujos tetos eram insuficientes para pagar os abusivos valores fundiários gerados pelo processo especulativo deflagrado”. 205 A prestação é limitada a 5% da renda familiar.

107

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

do governo pelos proprietários fundiários. E a apropriação da valorização fundiária é um mecanismo básico de acumulação no contexto capitalista brasileiro. O arranjo financeiro do PMCMV “implica a transferência de riscos para as instituições públicas, ao mesmo tempo que mantém os lucros – geralmente aumentados por subsídios indiretos – com agentes privados, reiterando os padrões históricos de apropriação de fundos públicos por atores privados no país”206. Com isso, o direito é mobilizado com sucesso pelo PMCMV para atingir as finalidades de investimento de excedentes de capital e de incentivo ao mercado imobiliário e de construção civil. O PMCMV se revela instrumento eficaz para fornecimento de compensação social e meio de subsistência ao trabalhador, o que interfere na massa salarial total. Uma parcela desta massa salarial é destinada, por meio do programa, à aquisição da mercadoria habitação. Há uma tendência de médio/longo prazo a que não haja qualquer efeito redistributivo relevante, já que os subsídios fornecidos pelo governo são em grande parte absorvidos pela economia de mercado. Tendo em vista a crescente escassez207 de terrenos até mesmo nas periferias das grandes cidades, a própria distribuição espacial dos imóveis já leva a um efeito socialmente regressivo, antidistributivo. Do ponto de vista dos compradores, da população de mais baixa renda, o recurso ao subsídio estatal se torna incontornável para o acesso à habitação por meio de aquisição da propriedade privada. Na dinâmica econômica existente, as regiões periféricas das cidades seriam, de um modo ou de outro, ocupadas pelos trabalhadores mais pobres. O que o PMCMV faz é transformar este processo numa oportunidade de negócios para incorporadoras, construtoras e demais empresas do ramo imobiliário, que agora podem lucrar com a construção de imóveis para os trabalhadores de mais baixa renda, seguindo o padrão de localização historicamente consolidada para o assentamento desta população: “Dentre as diferentes faixas de renda atendidas pelo programa, os conjuntos da faixa 3 são os que mais se aproximam das áreas centrais mais bem equipadas das cidades, enquanto os empreendimentos para faixa 1 estão claramente dispersos pelas periferias mais afastadas, próximos 206 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 309. 207 A escassez cresce porque o preço da terra aumenta, ocasionando maior poupança imobilizada. Com a valorização, o proprietário ou possuidor passa a ter mais interesse na proteção jurídica da propriedade ou posse.

108

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

às margens das cidades, em lugares que não apenas são distantes dos territórios privilegiados, mas também são homogêneos do ponto de vista social. Se o programa passou a atingir uma camada da população que historicamente não era atendida pelas iniciativas federais na área habitacional, não chegou a interferir no lugar tradicionalmente ocupado por ela nas cidades, reproduzindo o padrão periférico”208.

Ao invés de ocupar um terreno e realizar a construção da moradia por meios próprios, os trabalhadores pobres passam a estar inseridos num circuito formal de compra e venda da mercadoria moradia, tornando-se proprietários de sua moradia. Ou melhor, têm uma expectativa de se tornarem proprietários - imediatamente, se tornam detentores de direitos de aquisição. Tão logo quanto as necessidades da vida se imponham, o trabalhador venderá seu imóvel e o conjunto de negócios com estes imóveis conformará mercados imobiliários formais e informais para trabalhadores pauperizados. Os sujeitos de direito continuarão exercendo sua igualdade e liberdade no mercado imobiliário. Esta questão do preço da terra poderia ser enfrentada pelo poder público articulando a política habitacional com uma política urbana e fundiária voltada a evitar o uso especulativo da terra e a reprimir a propriedade sem função social. Esta articulação estava prevista no Plano Nacional de Habitação, mas foi ignorada pelo PMCMV. Isto em razão das exigências básicas do sociometabolismo do capital no contexto de inserção global dependente do Brasil. Alternativas para a produção de moradia, como “lotes urbanizados complementados com o financiamento de material de construção e assistência técnica” foram ofuscados pela produção em massa de unidades habitacionais de um programa que contou de início com 2% do orçamento geral da União (26 bilhões de reais) em subsídios, patamar que seria atingindo apenas em alguns anos de acordo com o Plano Nacional de Habitação: “Assim como fez o BNH durante o regime militar, [o PMCMV] fixou-se exclusivamente na produção de unidades prontas, alternativa que atendia as demandas do setor de construção civil, mas que relegou outras modalidades de enfrentamento do déficit habitacional. Além do financiamento e subsídio a unidades prontas, o plano [nacional de habitação] havia previsto um leque de programas habitacionais a cus-

208 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 312.

109

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

tos unitários mais reduzidos e podiam dialogar melhor com o processo popular de produção da moradia (como lotes urbanizados complementados com o financiamento de material de construção e assistência técnica), com potencial de atender um número maior de famílias a um custo unitário mais baixo, alternativa muito apropriada para municípios médios e pequenos”209.

Como já observado, a lei que instituiu o programa210 dedicava um capítulo à regularização fundiária, a qual teria impacto urbanístico nos assentamentos precários existentes. Mas a regularização fundiária não tinha a mesma escala do PMCMV e, grosso modo, se volta à titulação da terra para favorecer a inserção do imóvel no mercado. A lei 11.977/2009 foi, em primeiro lugar, o instrumento legal para viabilizar a produção massiva de unidades habitacionais por meio do PMCMV; lateralmente, trata da regularização urbanística de imóveis urbanos, criando um procedimento altamente burocratizado e intrincado que visa, ao fim e ao cabo, conferir a titulação individual a imóveis em assentamentos urbanos irregulares – ou seja, inserir no mercado formal os imóveis existentes nestes assentamentos. No fundo, tem a finalidade de expandir o mercado imobiliário por meio da formalização e titulação dos imóveis existentes. O alcance desta regularização é restrito em nosso contexto, já que o mercado de crédito no país não alcança as parcelas da população que dariam estes imóveis como garantia. Na prática, porém, a produção em massa de habitações é muito mais eficiente e a burocrática regularização fundiária desenhada na lei é implementada em escala muito menor. A respeito da inserção no mercado formal, os maiores beneficiários seriam as agências de crédito/bancos, que poderiam expandir empréstimos a trabalhadores pauperizados tomando os imóveis como garantias. O fato de o estímulo à construção civil ser mais eficiente decorre de um específico contexto de capitalização deste setor via capital monetário gerido pelo Estado. Num contexto um pouco diferente, mas no qual os capitalistas esperavam potencializar o desenvolvimento por meio de reformas jurídicas, houve regularização massiva em Lima, Peru, no período Fujimori, com se detalhará no capítulo 4. A ideia por trás da titulação era a de dinamizar toda a economia local: a propriedade

209 N. BONDUKI, Pioneiros da Habitação Social no Brasil. Volume 3, 2014, p. 118-119. 210 Lei 11.977/2009.

110

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

individual é um ativo que pode alavancar outros ativos e que permite acesso a crédito bancário, já que o imóvel pode ser dado como garantia. O processo de financeirização pode, assim, ampliar-se, com a tomada de imóveis como garantia. Quando necessário, utiliza-se todo o instrumental jurídico para expropriar os inadimplentes (este ponto será mais desenvolvido adiante no tópico “alienação fiduciária como instrumento jurídico de controle fundiário”) Se ao invés da regularização prevista no capítulo III da Lei 11.977/2011 se buscasse regularizar imóveis urbanos sem assentamento humano, ou seja, imóveis urbanos que não cumprem qualquer função social, nem mesmo a função elementar de servir de habitação (seja via domínio por proprietário ou por locação), poderia a política pública ter escancarado o problema central que impede o acesso à habitação pela população de baixa renda. Isto porque o maior empecilho para o acesso à moradia digna está longe de ser a titulação da terra urbana - o maior empecilho é, na verdade, o modo como o ordenamento jurídico sobre o assunto protege a propriedade em detrimento das necessidades básicas da população de baixa renda. Mas este tipo de solução não poderia ser abarcado pelo sociometabolismo do capital, por mais otimismo que se possa dar à luta por um “direito à cidade” para todos. De qualquer modo, mantidas as demais variáveis do sistema, a produção em massa de unidades habitacionais e também a regularização fundiária tendem a facilitar a acumulação capitalista e financeira. A lei n.º 11.977/2009 foi posteriormente alterada pelas leis n° 12.424, de 16 jun. 2011 (originada da Medida Provisória n.º 514, de 1º.12.2010), e n.º 12.722, de 3 out. 2012 (originada da Medida Provisória n.º 570, de 14.5.2012), as quais trouxeram alterações pontuais ao texto original, sendo pertinente ressaltar o seguinte. A lei n.º 12.722, de 3 out. 2012, tinha como escopo principal alterar a lei 10.836/2004 (lei do bolsa família), mas previu também alterações esparsas na lei 11.977. Por exemplo, revogou o Art. 82, que autorizava “o custeio, no âmbito do PMCMV, da aquisição e instalação de equipamentos de energia solar ou que contribuam para a redução do consumo de água em moradias”. Parece fora de propósito a referida revogação, exceto se se olha da perspectiva da redução de custos do empreendedor (o uso das soluções convencionais locais de energia e água, a critério do empreendedor/incorporador, barateia o custo da obra) e da restrição das hipóteses de custeio do programa, que se volta menos a soluções inovadoras do que à viabilização econômica da produção massiva de habitações 111

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

padronizadas e de baixo custo. O sociometabolismo do capital no Brasil não comporta este tipo de solução ambiental e tecnológica senão a custos elevados demais para este tipo de programa. A mesma lei n.º 12.722 incluiu também o Art. 82-D e parágrafos, dispondo que “No âmbito do PMCMV, no caso de empreendimentos construídos com recursos do FAR211, poderá ser custeada a edificação de equipamentos de educação, saúde e outros complementares à habitação, inclusive em terrenos de propriedade pública, nos termos do regulamento”. Esta é uma importante previsão de caráter urbanístico, mas não há notícia de que venha sendo implementada. Observe-se que esta previsão foi incorporada bem depois do início da fase 2 do PMCMV (iniciou-se em março de 2010), na lei n.º 12.722/2012, originada da Medida Provisória n.º 570, de 14/5/2012. Deve-se apontar, ainda, como a Exposição de Motivos Interministerial n.º 00014/2012 MDS MEC MF MP SAE, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Exm/ EMI-014-MDS-ME C-MF-MP-SAE-Mpv-570-12.doc ignora completamente a alteração aqui referida, não a mencionando. Neste aspecto, uma garantia prevista pela política pública não é implementada porque o desenho da política não é feito, primordialmente, para garantir a qualidade urbanística dos bairros destinados às populações de baixa renda. Por outro lado, a lei 12.424/2011 fez alterações operacionais nos fundos do programa, mudou normas de regularização fundiária e introduziu diversas outras alterações, dentre as quais cabe frisar a do artigo 13, par. 1º, que prevê que “A subvenção econômica do PNHR será concedida uma única vez por imóvel e por beneficiário”, impedindo sub-rogações contratuais “que permitam a transferência das subvenções concedidas” não apenas para o cidadão, mas também para o imóvel212. Esta previsão busca evitar a aquisição especulativa de imóveis por pessoas de baixa renda213. De fato, sendo o imóvel uma mercadoria, dotada 211 Pontue-se que o FAR é o Fundo de Arrendamento Residencial, o qual recebeu recursos do Orçamento Geral da União para viabilizar a construção de unidades habitacionais pelo PMCMV. 212 Exposição de Motivos Interministerial nº 00008/2010/MCIDADES/MF/MP/MJ, item 4, f, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Exm/EMi-8-MCIDADES--MF-MPMJ-MPv51 4-10.htm. 213 Norma similar está prevista em São Paulo no âmbito dos programas financiados por meio da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo – CDHU. A Lei nº. 12.276, de 21 fev. 2006 regulamenta especificamente a alienação dos imóveis financiados pela CDHU no curso do contrato de financiamento. Previa inicialmente o prazo de 2 anos a partir do qual o mutuário poderia alienar o imóvel. Foi alterada pela lei nº 14.672/2011, que aumentou este prazo para 10 anos.

112

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

do atributo da trocabilidade, o mesmo pode ser levado ao mercado pelo mutuário. Quando o imóvel ainda não está quitado, o que se negocia são os direitos de aquisição do imóvel. Estes direitos podem ser adquiridos por qualquer pessoa, sem necessidade de passar pelos processos de seleção do programa habitacional. Daí advém a necessidade da regra. Porém, a norma é extremamente mal desenhada, focando na sanção ao indivíduo que eventualmente transfira seu contrato a terceiros, ao invés de estabelecer mecanismos que evitem este expediente em caso de dificuldades financeiras e apurem as razões da transferência. A norma é efetiva para evitar que especuladores individuais ingressem no sistema de financiamento pela via da inscrição regular em nome próprio. Porém, não resguarda mutuários que tenham dificuldades financeiras e precisem transferir o contrato a terceiros. Mais adequado à realização do direito à moradia – porém mais “custoso” para o Estado num programa que visa a construção massiva de moradias – seria conceber, por exemplo, programas de refinanciamento ou segurança contra desemprego214 e programas de assistência social. Porém, a lei simplesmente exclui o beneficiário que revender seu imóvel. É claro: todas as alterações referidas aperfeiçoam o PMCMV como um programa voltado à dinamização dos mercados de construção civil e imobiliário. Em trabalho anterior215, anotei que

O Secretário de habitação à época justificava o aumento afirmando que “Não é justo uma pessoa adquirir o imóvel subsidiado e repassá-lo a terceiros enquanto há famílias necessitando de moradia. É um desrespeito com o suplente e com as famílias necessitadas” (http://www.portoferreirahoje.com.br/ noticia/2012/01/22/mutuarios-nao-poderao-ven der-casas-da-cdhu-antes-de-10-anos/, acesso em 18 dez. 2015). Fora do período de 10 anos, a CDHU exige ainda a anuência para a venda. 214 No âmbito do programa, está previsto o restritivo FGHab (Fundo Garantidor da Habitação Popular), que tem “por finalidade conceder as seguintes garantias: Quitação total ou parcial do saldo devedor do financiamento habitacional em caso de Morte; e Invalidez Permanente (MIP) do comprador ou dos compradores [desde que não esteja recebendo auxílio-doença]; Pagamento de despesas para recuperação de Danos Físicos no Imóvel (DFI); Concessão de empréstimo ao comprador ou aos compradores para pagamento de prestações do financiamento habitacional em caso de desemprego e redução temporária da capacidade de pagamento. O valor do FGHab vai de 2% a 7,14% sobre o valor da prestação e deve ser pago junto com a prestação habitacional. Esse valor pode ser reajustado conforme o aumento da idade, mas não pode ultrapassar 7,14%.” Fonte: http://www.caixa.gov.br/ downloads/habitacao-minha-casa-minha-vida/Contrato_Financiamento_P MCMV.pdf, acesso em 30 dez. 2015. Deve-se observar que este fundo garantidor não paga as prestações, ele cobre o mutuário por até 36 meses, com a prorrogação das prestações que deveriam ser pagas. 215 R. MENEZES, O Programa Minha Casa, Minha Vida: limites dos arranjos institucionais para uma política pública de habitação de interesse social, 2016, p. 268.

113

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

“os critérios que têm sido aplicados para a construção de unidades no Minha Casa, Minha Vida são mais critérios de mercado (com a escolha da localização dos imóveis sendo feita pelas empresas em regime de livre concorrência) (MARICATO, 2014, p. 76)216 do que critérios sociais (que envolveria a intervenção pública na disponibilidade de terrenos, em especial por meio de instrumentos urbanísticos do Estatuto da Cidade217). O impacto de tal conformação no déficit habitacional deverá ficar evidente quando houver divulgação de novos dados sobre estes (MARICATO, 2014, p. 77)218.”

No mesmo trabalho referido, indiquei que “a ideia de que esteja havendo um combate ao déficit habitacional” seria um “mito institucional” a respeito do PMCMV, “cujas regras são aplicadas cerimonialmente para a produção em massa de moradias sem maiores considerações sobre o desenvolvimento urbano

216 Nota em R. MENEZES, O Programa Minha Casa, Minha Vida: limites dos arranjos institucionais para uma política pública de habitação de interesse social, 2016, p. 268: “A autora afirmava na época que [rectius] “A maior parte da localização das novas moradias – grandes conjuntos, sendo alguns verdadeiras cidades – será definida nos municípios e metrópoles por agentes do mercado imobiliário sem obedecer a uma orientação pública, mas à lógica do mercado... Interesses privados desarticulados podem definir a localização da maior parte do 1 milhão de moradias do PMCMV, já que dificilmente as prefeituras e câmaras municipais, além da própria Caixa Econômica Federal, o grande agente unificador da aprovação dos projetos, deixarão de atender apelos para a aprovação de uma construção de porte. Pelo menos essa não é a tradição no Brasil” 217 Nota em R. MENEZES, O Programa Minha Casa, Minha Vida: limites dos arranjos institucionais para uma política pública de habitação de interesse social, 2016, p. 268: “A autora afirma que ‘Há quase quatro décadas é feita a crítica sobre a má localização dos conjuntos habitacionais populares e sobre a sua causa, que é a disputa pela renda imobiliária. Esses estudos produziram um sem-número de livros e teses que se referem à injustiça urbana, segregação territorial, produção de moradia informal, extensão horizontal urbana e insustentabilidade, especulação imobiliária, que deriva das características patrimonialista da sociedade brasileira. Há base legal para enfrentar esse problema. A função social da propriedade prevista na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) nasceu da crítica referida acima. Mas apesar da base legal para fazer mudanças, a propriedade fundiária e imobiliária continua a fomentar a desigualdade social e urbana. A geração e captação da renda fundiária e imobiliária continua a orientar o crescimento e a falta de controle sobre o uso e ocupação do solo no Brasil’.” 218 Nota em R. MENEZES, O Programa Minha Casa, Minha Vida: limites dos arranjos institucionais para uma política pública de habitação de interesse social, 2016, p. 268: “De qualquer modo, esta constatação inicial vai de encontro ao que N. BONDUKI, Pioneiros da Habitação Social, Vol. 3, 2014, p. 122, conclui, no sentido de que, apesar de produzir em massa unidades habitacionais, ‘a distribuição regional foi desequilibrada. Enquanto no Nordeste as unidades contratadas representaram 10,3% do déficit habitacional da Faixa 1 (até 3 salários mínimos), no Sudeste essa porcentagem alcançou apenas 6,1%’.”

114

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

e sobre a efetivação do direito à moradia adequada”219. Neste sentido, o programa em si evita medidas como o controle do preço da terra e dos aluguéis. A inefetividade do “direito à moradia” se articula, assim, com a inefetividade do “direito à cidade”.

3.3.1. O papel lateral dos Municípios e da participação popular no PMCMV A regulação urbanística e as garantias jurídicas de direito à moradia e de direito à cidade apenas podem ser implementadas se estiverem de acordo com o sociometabolismo do capital. Bem examinando, as cidades se estruturam como máquinas do capitalismo que deglutem os trabalhadores todos os dias, deles extraem a mais-valia para a digestão do capital e, no final do dia, os devolve às suas vidas de subsistência em periferias precarizadas. As cidades são o fundamento espacial para a reprodução diuturna da exploração capitalista. O ser humano cria a cidade capitalista para subordinar as forças da natureza, mas a cidade capitalista se impõe sobre o ser humano para subordinar suas forças à reprodução do sistema sociometabólico do capital. No contexto atual, sem solução para os problemas daí advindos, as cidades buscam inserção no capitalismo global, em que a financeirização pauta o desenvolvimento perpetuador das desigualdades habitacionais e do modo de extração de mais-valia da população de baixa renda. Esta população de baixa renda, que não habita mediada pelo direito de propriedade ou por outro título jurídico regular, aparece como estando na “ilega219 R. MENEZES, O Programa Minha Casa, Minha Vida: limites dos arranjos institucionais para uma política pública de habitação de interesse social, 2016, p. 269, onde observei neste trabalho que “como observam Rowam e Meyer, há dois meios para uma organização resolver os conflitos entre as regras cerimoniais e a eficiência: a separação (já que os esforços por coordenar e controlar as atividades nas organizações institucionais levam a conflitos e à perda de legitimidade, se separam os elementos da estrutura das atividades, ademais de separá-los uns dos outros) e a lógica da confiança e da boa-fé (quanto mais se deriva a estrutura de uma organização de mitos institucionalizados, mais se mantém a exibição de confiança, satisfação e boa-fé, interna e externamente) (MEYER e ROWAN, 1999, pp. 98 e 99). Ao que parece, o mecanismo da separação tem aparecido no PMCMV, o qual produz habitações em massa, mas descuida de uma visão totalizante da questão habitacional e do direito à moradia adequada. A propaganda oficial, no sentido de que tem atingido as metas do programa e de que está aumentando numericamente as novas metas apenas ajudam a consolidar o mito de que o programa é suficiente para o enfrentamento do déficit habitacional, quando, na verdade, a questão da habitação tem sido mal equacionada com o programa.”

115

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

lidade”. São pessoas que podem até mesmo possuir empregos formais, mas que, sem alternativa legal, “invade terra para morar. As terras que não interessam ao mercado imobiliário e são ocupadas pela população de baixa renda são exatamente as áreas de ecossistema frágil, sobre as quais incide a legislação de proteção ambiental”220. Se para alguns a propriedade não chega, para outros ela exacerba, ultrapassando os muros da habitação e buscando a privatização de todo o contexto urbano em que se insere a moradia: “a ilegalidade da propriedade da terra urbana não diz respeito só aos pobres. Os loteamentos fechados que se multiplicam nos arredores das grandes cidades são ilegais, já que o parcelamento da terra nua é regido pela Lei Federal 6.766/79, e não pela lei que rege os condomínios, a Lei 4.591/64. O primeiro e mais famoso dos condomínios – Alphaville, em Barueri, região metropolitana de São Paulo – tem parte de suas mansões construídas sobre terras da União. Juízes, promotores do Ministério Público, autoridades de todos os níveis de governo moram em loteamentos fechados. Eles usufruem privadamente de áreas verdes públicas e também vias de trânsito fechadas intramuros” 221.

A mobilização do direito e da política não raro é necessária para viabilizar o desenvolvimento conforme os imperativos de reprodução do capital: “Para viabilizar a privatização do patrimônio público quando ele se torna um produto irresistível ao mercado de alta renda, algumas prefeituras e câmaras municipais não titubearam em se mancomunar para aprovar leis locais que contrariam a lei federal [de loteamentos]” 222.

E justamente este tipo de mobilização do direito e da política foi levada a cabo no PMCMV para retirar das cidades o poder que pretendia lhes dar o Estatuto da Cidade. Realmente, o movimento da reforma urbana vem preconizando o fortalecimento dos Municípios para atendimento habitacional e desenvolvimento urbanístico. O PMCMV, no entanto, traçou caminho completamente oposto, centralizando no governo federal a política habitacional 220 E. MARICATO, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 185. 221 E. MARICATO, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 185/186. 222 Idem, p. 186.

116

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

e transferindo para construtoras e para o banco público Caixa Econômica Federal decisões da maior relevância, como a localização dos imóveis e os parâmetros construtivos destes. Como visto, até quando do lançamento do PMCMV, a política habitacional era objeto de disputas, contradições e ambiguidades no governo, as quais foram resolvidas com a derrocada do Plano Nacional de Habitação e da concepção por ele veiculada de articulação entre política habitacional e política urbana. A prevalência do PMCMV marcou a hegemonia das forças de mercado nas políticas habitacionais, o que exigia que os instrumentos de participação popular fossem relegados a segundo plano. Além disso, exigia a estabilidade de um programa centrado no governo federal, sem que os Municípios desempenhassem papel relevante na implementação das políticas. Isto fica bastante claro no papel das construtoras e incorporadoras na definição da localização dos empreendimentos, levando-os para periferias distantes, não dotadas de infraestrutura urbana. Isto está em total dissonância com a imposição legal de que seria o Plano Diretor elaborado participativamente no âmbito municipal, de que este Plano Diretor daria a orientação de crescimento das cidades223. Sobre a participação social, Como observei alhures, “constata-se que não há uma só palavra na lei 11.977 sobre ‘participação social’. De fato, tal lei deixa de trazer uma parte principiológica em seu bojo, razão pela qual seria de se esperar que o programa se remetesse às normas principiológicas já existentes (Neste sentido, mencione-se como normas básicas (princípios e regras) de participação popular o quanto previsto no Estatuto da Cidade: Art. 2º, II; art. 4º, III, f e § 3º; Art. 40. § 4º I; Art. 45) no ordenamento jurídico relacionado ao urbanismo e à habitação social, em especial no Estatuto das Cidades e nos diversos Planos Diretores Municipais existentes. Isto tampouco ocorreu, tendo o programa desenvolvido sua engenharia institucional própria alheia aos instrumentos de participação social, voltada ao incentivo do mercado de trabalho e da construção civil.” 224

223 E. MARICATO, O impasse da política urbana no Brasil, p. 76. 224 R. MENEZES, O Programa Minha Casa, Minha Vida: limites dos arranjos institucionais para uma política pública de habitação de interesse social, 2016, p. 280.

117

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Agora, esta principiologia participativa, na verdade, é uma conquista jurídica bastante controlada, pois

aos requisitos estabelecidos pelo Poder Executivo Federal, observado o respectivo plano diretor, quando existente (...)”

“a criação de mecanismos de participação local e inúmeros conselhos, apesar de seu limitadíssimo poder de acesso a fundos públicos, pretende criar um sentido de legitimidade para o novo governo. Advoga-se uma participação restrita (aos problemas ‘da comunidade’), mediada por ONGs, e, sobretudo, apaziguada. Como afirmou o então presidente do BID, Enrique Iglesias, a nova ‘good order’ é, ao fim, a superação da antiga ‘cultura política confrontacional’, em nome de uma ‘nova cultura cívica mais desiludida e mais pragmática, menos impaciente e mais madura, menos inclinada ao conflito e mais disposta à busca de convergências’.

Já o decreto regulamentador desta lei, simplesmente repete o dispositivo legal, deixando ampla liberdade ao agente de mercado e tornando despicienda a própria existência do Plano Diretor:

Trata-se de um paradigma da cidade em que a política seja proscrita e a pólis, negada. Como afirma Carlos Vainer, ‘banir a política da cidade competitiva e pacificada’ é um projeto no qual a ‘eliminação da esfera pública local, transformada em espaço de exercício de um projeto empresarial (...), conduz à destruição da cidade como espaço da política, como lugar de construção da cidadania’. Nos termos de Annik Osmont, persegue-se um poder estável, desembaraçado dos aspectos incontroláveis e conflituosos da política – desembaraçado, no limite, de qualquer compromisso com a democracia real –, uma administração estritamente técnica, capaz de promover um ambiente favorável aos negócios, transparência nos processos, utilização eficaz de recursos e paz civil”225.

Mas nem mesmo a participação social restrita do Estatuto da cidade seria contemplada. Dentro da malha urbana, a arquitetura institucional do PMCMV dava aos agentes de mercado o poder de decidir o modo pelo qual as cidades iriam crescer. A Medida Provisória 514/2010, neste sentido, a pretexto de regulamentar a questão e, na verdade, deixando ampla margem para a decisão dos agentes privados, acrescentava o artigo 5º-A à lei do PMCMV226, dispondo que “Para a implantação de empreendimentos no âmbito do PNHU [Programa Nacional de Habitação Urbana], deverão ser observados: I - localização do terreno na malha urbana ou em área de expansão que atenda

“Art. 6º Para a implantação de empreendimentos no âmbito do PNHU deverão ser respeitados os seguintes requisitos, observada a regulamentação do Ministério das Cidades: I - localização do terreno na malha urbana ou em área de expansão que atenda aos requisitos estabelecidos pelo Ministério das Cidades, observado o respectivo plano diretor, quando existente”.

Com isso, como já apontado, o programa levou à reprodução do padrão de expansão urbana brasileiro: os proprietários de terra (agora em grande medida incorporadoras e construtoras, como se verá adiante) deixam as terras mais próximas do centro ociosas, construindo nas periferias sem infraestrutura urbana; com o desenvolvimento da infraestrutura em direção a estas periferias, as terras intermediárias, que ficaram ociosas, serão valorizadas. Historicamente este modelo de expansão patrimonialista e especulativo incluía a autoconstrução de moradias pelos próprios trabalhadores nas regiões periféricas da cidade: “Francisco de Oliveira forneceu a chave explicativa para a gigantesca prática da autoconstrução da moradia ilegal (uma espécie de produção doméstica) pelos trabalhadores ou pela população mais pobre de um modo geral. Ela está no rebaixamento do custo da força de trabalho, que ocupa seus fins de semana (horários de descanso) na construção da casa. Essa prática contribuiu para a acumulação capitalista durante todo período de industrialização no Brasil, particularmente de 1940 a 1980 quando o país cresceu a taxas aproximadas de 7% ao ano e o processo de urbanização cresceu 5,5% ao ano (IBGE). À industrialização com baixos salários correspondeu a urbanização com baixos salários”227.

A autoconstrução é “uma alquimia que serve para reproduzir a força de trabalho a baixos custos para o capital”, ela “acirra ainda mais a dilapidação

225 P. FIORI ARANTES, O Ajuste Urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades, 2006, p. 69. 226 Lei 11.977/2009.

118

227 E. MARICATO, Cidades no Brasil: Neo-desenvolvimentismo ou crescimento periférico predatório?, 2015, p. 10.

119

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

daqueles que só têm energia física para oferecer a um sistema econômico que de per si já apresenta características marcadamente selvagens”228. Na atualidade, embora a autoconstrução continue a ocorrer, o processo geral ganha eficiência capitalista com empresas (construtoras, incorporadoras) implementando o mesmo modelo de expansão segregador229. A isso se acrescenta substancial volume de subsídios estatais supostamente voltados a realizar o direito à moradia de trabalhadores pauperizados. Prevaleceu, com isso, aparência de que não existiria “por parte dos que detêm o poder político nos vários níveis de governo e no setor privado, uma compreensão clara da dimensão fundiária, urbana, arquitetônica e ambiental da política habitacional, que ainda é tratada, por muitos, como uma mera questão de produção de unidades habitacionais ou de geração de crescimento econômico, emprego e crédito”230.

Na verdade, decisões deliberadas levaram a que a política habitacional brasileira ficasse submetida à política econômica anticíclica, desenvolvida como resposta à crise econômica mundial com medidas para incentivar o desenvolvimento capitalista do país. A arquitetura institucional do programa teria que, de saída, para viabilizar o protagonismo do mercado231, excluir a participação popular e eventual poder de decisão dos municípios. Isto foi uma escolha políti228 L. Kowarick, A Espoliação Urbana, 1979, p. 62. 229 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 314, aponta que “Apesar dos muitos bilhões de reais em subsídios públicos, o programa MCMV não impacta a segregação urbana existente. Pelo contrário, apenas a reforça, produzindo novas manchas urbanas multifuncionais ou aumentando a densidade populacional de zonas guetificadas já existentes. A intensa produção de moradia sem cidade ao longo de décadas de urbanização intensa acabou por gerar ampla segregação e uma série de problemas sociais que trouxeram ônus significativos para o poder público nas décadas seguintes, fenômeno que está se repetindo novamente”. 230 N. BONDUKI, Pioneiros da Habitação Social no Brasil. Volume 3, 2014, p. 107. 231 A consequência da arquitetura financeira do programa, segundo R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, pp. 310-311, foi a “construção de megaempreendimentos padronizados inseridos nas piores localizações da cidade, isto é, onde o solo urbano é mais barato” e “De acordo com representantes de construtoras de grande porte... a escala é uma condição para a lucratividade no contexto do programa: foi afirmado que, com taxas de retorno inferiores a 15%, só vale a pena construir empreendimentos de faixa 1 com mais de seiscentas unidades habitacionais. Embora apresentem impactos urbanísticos desastrosos, os grandes conjuntos possibilitam significativos ganhos de escala para as construtoras, ampliando sua margem de lucro”.

120

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

ca deliberada que contradizia toda a legislação urbanística aprovada no período anterior, em especial o Estatuto da Cidade. Por isso os empresários “desde os primeiros momentos... não jogaram o peso de sua representação nos conselhos participativos - de habitação ou das cidades nos três níveis de governo – e buscaram ligação direta com a Presidência da República e a Casa Civil. O Cndes (Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), criado para atuar em relação direta com a presidência, abriu espaço para tanto. De um lado, a profusão de conselhos – sobre diversos temas, em vários níveis da federação – ocupou as lideranças sociais que tiveram atendidas suas demandas fragmentadas por movimentos e regionalmente. Por outro lado, os empresários emplacaram suas propostas no PMCMV, que há muito estavam sendo ensaiadas, diretamente com o Planalto Central. Dessa forma, o governo atendeu aos diversos interesses, enquanto que uma visão mais sistêmica da Política Urbana e Metropolitana foi esquecida”232.

Ocorre que o Estatuto da Cidade (lei 10.257/2001) estabeleceu diretrizes para o desenvolvimento urbano que pretendiam dar aos Municípios papel muito mais relevante do que o que tem sido reservado a eles na política pública habitacional do governo federal. Por trás desta proposta, que vinha do movimento de reforma urbana, estava a ideia de que alguns municípios poderiam avançar em propostas do movimento quando tivessem gestões progressistas à frente. Porém, a organização do PMCMV centralizou recursos e tirou poder decisórios do Municípios, contrariando a própria legislação vigente (que eram resultado de lutas do movimento de reforma urbana). No PMCMV, basicamente, ao Município cabe indicar a demanda para imóveis que forem construídos em seu território. Um dos principais instrumentos criados pelo Estatuto das cidades é o Plano diretor, definido como instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana (artigo 40). O próprio nome do instrumento já revela a intenção do legislador, que encampava as propostas do movimento da reforma urbana: dar ao Município instrumento eficaz e abrangente que orientasse o desenvolvimento urbano com base no planejamento territorial, no atendimento à função social da propriedade233 e na participação popular. 232 E. MARICATO, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 90. 233 Como já apontado neste trabalho, o próprio cumprimento da função social da propriedade tem como parâmetros o estabelecido no Plano Diretor, conforme disposição do Estatuto da Cidade: Art.

121

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

À União, o Estatuto da Cidade reservou (Art. 3º, III) a promoção “por iniciativa própria e em conjunto com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, programas de construção de moradias e melhoria das condições habitacionais, de saneamento básico, das calçadas, dos passeios públicos, do mobiliário urbano e dos demais espaços de uso público”234. O dispositivo aí está porque a União historicamente tem mais capacidade financeira e institucional para realizar este tipo de programa. Ocorre que o PMCMV contraria a ratio do Estatuto ao reservar papel desprezível aos Municípios235. Apenas para ficar com alguns exemplos de normas que explicitam esta ratio, o Estatuto da cidade prevê (art. 2º) que “A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana”, tendo como uma das diretrizes gerais “XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população”. A lei 11.977/2009 chegou a prever como critério de prioridade para atendimento “a implementação pelos Municípios dos instrumentos da Lei no 10.257, de 10 jul. 2001, Estatuto da Cidade], voltados ao controle da retenção das áreas urbanas em ociosidade” (art. 3º, § 1º). O decreto regulamentador 7499/2011 apenas repetiu a redação deste dispositivo no art. 4º, III. Não há ainda pesquisas que permitam verificar a efetividade do dispositivo. Porém, pelo padrão de desenvolvimento dos empreendimentos habitacionais, é possível prever que este critério de prioridade não foi observado ou, no máximo, como sói ocorrer, foi observado apenas formalmente pelos Municípios, aprovando Planos Diretores pré-fabricados. Ademais, caso quisesse dar efetividade real ao dispositivo, o governo teria desenhado o mesmo como requisito para acesso aos recursos: “Embora esteja claro que a localização adequada dos projetos depende muito dos municípios, de seus planos diretores, e habitacionais e dos

39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2o desta Lei. 234 Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015, Estatuto da Pessoa com Deficiência. 235 Nem mesmo o Ministério das Cidades teve papel central na definição das diretrizes do programa, que foi gestado e efetivado pela Casa Civil da Presidência da República.

122

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

instrumentos urbanísticos que eles regulamentaram, cabe ao governo federal, ainda mais quando conta com um mecanismo poderoso de indução – recursos fartos para subsídio -, estimular a implantação dos novos empreendimentos em locais mais adequados e que gerem menor custo urbano, social e ambiental. O PlanHab propôs incentivar, com prioridade no acesso aos recursos, os municípios que estruturassem institucionalmente e que adotassem políticas fundiárias e urbanas voltadas a garantir a função social da propriedade, como a instituição do imposto progressivo para combater os imóveis ociosos e subutilizados. Isso, porém, ainda não foi levado adiante no PMCMV”.

Certo é que o combate à retenção de áreas urbanas ociosas dependia de proatividade especial dos Municípios, com busca por capacitação técnica e vontade política para enfrentar interesses fundiários historicamente consolidados. Mas nenhum poder foi dado aos Municípios para direcionar o programa neste ou naquele caminho, já que a centralização na União reproduziria o sociometabolismo do capital de maneira mais eficiente. Por outro lado, o Estatuto da Cidade previu uma série de regras sobre participação popular, cabendo destacar o seguinte: uma das diretrizes previstas no artigo 2º é a da “gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano”; o artigo 4º prevê como instrumento de planejamento municipal a “gestão orçamentária participativa” e dispõe que todos os instrumentos previstos que demandem “dispêndio de recursos por parte do Poder Público municipal devem ser objeto de controle social, garantida a participação de comunidades, movimentos e entidades da sociedade civil”. Há ainda previsão de participação popular em operações consorciadas (artigo 32)236 e na elaboração e fiscalização de implementação do plano diretor

236 Art. 32. Lei municipal específica, baseada no plano diretor, poderá delimitar área para aplicação de operações consorciadas. § 1o Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental.

123

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

(artigo 40, § 4º, I)237. Por fim, o capítulo IV do Estatuto é dedicado à gestão democrática da cidade e veicula disposições sobre a gestão orçamentária participativa e vincula a aprovação do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual à realização de debates, audiências e consultas públicas (artigo 44); prevê, também, que “Os organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas incluirão obrigatória e significativa participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania” (artigo 45). Neste sentido, sendo o PMCMV uma política habitacional com óbvios impactos urbanísticos, os conselhos participativos de habitação ou das cidades238 nos três níveis de governo deveriam ter participação assegurada nas decisões sobre os investimentos, sobre os padrões de construção, sobre a localização do empreendimento. Fato é que, para viabilizar a mais livre reprodução do capital, houve uma deslegitimação aberta das instâncias participativas, bem como de movimentos sociais e de profissionais da área, consolidada pelos próprios arranjos institucionais do programa. Neste sentido, “Com relação aos grupos organizados na sociedade, pode-se afirmar que se os empresários da construção civil tiveram participação nas negociações em torno do desenho do programa, o mesmo não ocorreu com os segmentos populares. Logo após o lançamento do programa, representantes dos movimentos sociais no Conselho Nacional das Cidades reclamaram da ausência de discussão sobre as medidas anunciadas. O conselho gestor do FNHIS se manifestou na mesma direção, afirmando não ter sido ouvido no processo de formulação dessa política. Em vários fóruns e em sites na internet, os movimentos sociais participantes desses colegiados demonstraram preocupação com problemas contidos no desenho do programa, declarando que a construção das unidades precisava estar associada à política urbana que garantisse o acesso a serviços públicos, como saúde, educação transporte, uma

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

vez que eles receavam que fosse repetida a experiência dos conjuntos habitacionais do período BNH. Sites na internet trazem também entrevistas e artigos críticos ao PMCMV formulados por urbanistas e profissionais ligados ao Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), argumentando sua pouca articulação com o planejamento urbano e apontando a ausência de mecanismos institucionais e incentivos para financiamento de reformas de moradias subutilizadas.”239.

De fato, observa-se no PMCMV pouca margem para mudanças de rumo que possam comprometer a sua finalidade efetiva, qual seja, estímulo econômico por meio de produção em massa de unidades habitacionais. As reivindicações participativas são descartadas porque envolveriam tempo de maturação incompatível com a necessidade de dar respostas imediatas ao contexto econômico240. Pontualmente, algumas sugestões de movimentos sociais ou profissionais da área são incorporadas, desde que não tenham impacto relevante no desenho geral do programa241. Intencionalmente, o programa desprezou toda a regulamentação jurídica sobre a participação popular e também sobre o papel dos Municípios na formulação e implementação da política habitacional e urbana. Assim, não é à toa que o PMCMV não tenha impacto redistributivo relevante e esteja a reproduzir padrões históricos de desigualdade242 e exclusão. Basicamente, a quantidade de imóveis vazios e de terrenos ociosos continua sem solução e o padrão de expansão periférica das cidades se consolida. O programa federal de habitação descumpre abertamente as normas sobre a função social da cidade e despreza possíveis políticas para reprimir o descumprimento da função social da propriedade, atendendo aos interesses 239 M. R. LOUREIRO et al., Democracia, Arenas Decisórias e Políticas Públicas: o Programa Minha Casa Minha Vida, 2013, pp. 22-23. 240 Ao contrário, o já mencionado Plano Nacional de Habitação, que foi colocado de lado pelo PMCMV, previa um planejamento de médio/longo prazo, até 2023. 241 M. R. LOUREIRO et. al., Democracia, Arenas Decisórias e Políticas Públicas: o Programa Minha Casa Minha Vida, 2013, pp. 27-28.

237 “No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão: I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade”. 238 Sobre experiências de diversos Conselhos de Habitação e Desenvolvimento Urbano, vide CYMBALISTA, Renato (ed.), Conselhos de Habitação e Desenvolvimento Urbano, 2000.

124

242 Como observa M. P. DALLARI BUCCI. Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas, 2013, p. 13: “As estruturas da desigualdade podem ser, se não modificadas, bastante perturbadas na sua inércia conservadora, mediante processos jurídicos institucionais bem articulados”. A observação é precisa no sentido em que indica que as estruturas não podem ser modificadas, podem no máximo ser perturbadas por arranjos na superestrutura jurídica e política. O PMCMV sequer pretendeu ir neste sentido.

125

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

mais imediatos da política macroeconômica e dos mercados de construção civil e imobiliário.

3.3.2. O subsídio e o crédito no PMCMV – papel do Estado e dos fundos públicos O direito é um dos instrumentos voltados à repartição, pelo Estado, dos frutos do trabalho socialmente realizado. Neste caso, a repartição é feita de modo formal e ritualístico. Na seara da habitação social, o direito tem servido tanto a movimentos sociais que buscam consagrar juridicamente normas para diminuição de desigualdades sociais; como tem servido ao mercado para ampliar e sofisticar sua atuação (em especial por meio de mecanismos financeiros243) e garantir suas intervenções e rentabilidade na construção de moradias. O PMCMV representou, no período histórico recente, a vitória desta última perspectiva sobre aquela e a prevalência de um modelo econômico de expansão capitalista por meio de incentivos estatais. Dentre os mais importantes mecanismos para incentivar esta expansão estão as políticas de melhoria e de garantia de renda das populações de baixa renda, por meio do aumento real do salário mínimo e de programas de transferência de renda244; assim como estão os subsídios fornecidos a esta população de baixa renda para aquisição de imóveis e a viabilização de acesso a crédito também para aquisição de imóveis. Estes dois últimos mecanismos foram implementados pelo Programa Minha Casa, Minha Vida. Sem os subsídios conferidos pelo governo federal por meio do PMCMV, dificilmente indivíduos da faixa de renda 1 (renda até 1.800 reais) teriam acesso a programas de financiamento habitacional, os quais, aplicados pelos agentes financeiros, buscam as parcelas de renda com maior capacidade de pagamento e endividamento. Nesta perspectiva, trata-se de uma política pública indispensável e o discurso jurídico é e continuará sendo mobilizado por movimentos sociais como instrumento para a continuidade destes subsídios públicos à habitação. Porém, como deve ter ficado claro acima, aquilo que é dado como subsídio por um lado, deixa de ter maior efeito prático quando, por outro lado, não há mecanismos efetivos para reprimir a especulação imobiliária e a absorção

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

dos subsídios pelos preços de mercado. Por isso, a questão precisa ser colocada em perspectiva mais ampla. Os movimentos sociais têm uma conquista jurídica, mas estão longe de conquistar efetivamente habitação para os sem-teto. Deve-se pontuar que o subsídio está longe de ser uma medida antimercantilizadora, sendo, ao contrário, um instrumento para permitir o acesso a e a criação de mercado nas faixas de renda mais baixas da população – é dizer, para a inclusão nos circuitos de propriedade formal, renda e crédito da população de baixa renda. Com isso, o programa está afinado com o que há de mais atual no capitalismo contemporâneo: a criação de mercados, inclusive financeiros, para os pobres. Como apontado por Raquel Rolnik, “Na década de 1980 surgiu um novo paradigma de financiamento que, aparentemente, seria capaz de atender aos mais pobres através da expansão de um crédito pequeno, informal e gerador de renda: o microfinanciamento. Os investidores financeiros privados foram convencidos da lucratividade do microfinanciamento e passaram a encarar os pobres como ‘bancáveis’ (...) Na realidade, a concepção de combate à pobreza presente nesse modelo está centrada na promoção do empreendedorismo e não na distribuição de renda, na abertura de oportunidades e na igualdade. O modelo de mitigação da pobreza é, assim, ao mesmo tempo, centrado nos pobres e contra o sistema de bem-estar (...)”245.

As políticas de microcrédito são voltadas, assim, à abertura de novos mercados capitalistas. Trata-se de um multiplicador de desigualdades e de exploração e de um mecanismo que permite a diferenciação meritocrática e a ascensão social entre os pobres. O PMCMV não é um programa de microcrédito246, mas tem o mesmo efeito de abertura de mercados buscado por estes – a expansão das fronteiras do mercado imobiliário, formal, acessível ao sistema financeiro. Neste sentido, realiza uma das principais bandeiras dos governos petistas, a inclusão social via mercado de consumo – no caso, consumo de habitação. Diante deste quadro, a habitação aparece como direito social universal atribuído a todos os sujeitos de direito e, ao mesmo tempo, como uma mercadoria cujo acesso precisa ser viabilizado por uma intervenção pontual do Estado, fo-

243 Sobre o assunto, vide M. FIX, Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário no Brasil, 2011.

245 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 131.

244 Como já mencionado, A. SINGER, Os Sentidos do Lulismo, 2012, expõe que estas foram duas das principais marcas dos governos Lula (2003-2010).

246 Este normalmente é um empréstimo de pequeno valor concedido a empreendedores sem acesso ao sistema financeiro tradicional e que não podem prestar garantias.

126

127

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

calizando-se na faixa de baixa renda não atendida espontaneamente pelo livre mercado. Este tipo de intervenção é coerente com os papéis do Estado no contexto neoliberal, em específico como o de promover uma estrutura institucional adequada às práticas de mercado e criar e fomentar estas estruturas onde elas não existem. Neste sentido, HARVEY anota que “O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas político-econômicas que propõe que o bem-estar humano pode ser mais bem promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas [neoliberais]; o Estado tem de garantir, por exemplo, a qualidade e a integridade do dinheiro. Deve também estabelecer as estruturasse funções militares, de defesa, da polícia e legais requeridas para garantir direitos de propriedade individuais e para assegurar, se necessário pela força, o funcionamento apropriado dos mercados. Além disso, se não existirem mercados (em áreas como a terra, a água, a instrução, o cuidado de saúde, a segurança social ou a poluição ambiental), estes devem ser criados, se necessário pela ação do Estado”247.

Certamente, os subsídios do PMCMV estão inseridos num contexto de estímulo econômico, de criação de mercados e de inserção social via consumo248. Para além do imediato efeito econômico de aquecimento da economia, o beneficiário do programa passará a ser proprietário de um ativo, o que conformará em breve um mercado imobiliário ampliado e poderá permitir que o imóvel possa servir de garantia a novos endividamentos249. Os subsídios para habitação da faixa 1 (renda até 1.600 reais) aparecem como salário indireto, viabilizando o acesso à mercadoria imobiliária que, de

247 D. HARVEY, Neoliberalismo, 2014, p. 12. 248 G. DUMÉNIL e D. LÉVY, A Crise do Neoliberalismo, 2014, p. 16, afirma que numa das facetas do neoliberalismo estão os “mecanismos macroeconômicos, cujas principais variáveis são o consumo e o investimento, o comércio externo e as dívidas doméstica e externa da economia dos Estados Unidos”. 249 Observe-se que, no contexto brasileiro, uma norma de cunho garantista, a saber, a proteção ao bem de família (8.009/90), que dispõe sobre a impenhorabilidade dobem de família), ainda impede a operacionalização de operações de crédito com o único imóvel do indivíduo sendo dado como garantia.

128

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

outro modo, não seria acessível250 a esta parcela da classe trabalhadora. Ademais, com a satisfação da necessidade habitacional, o capitalismo pode aprofundar a extração de mais-valia. Certo é que o PMCMV direciona o salário indireto dos trabalhadores para incentivo do setor de construção civil e para a realização da necessidade de habitação nos termos do programa. O programa pode vir rebaixar a massa salarial paga diretamente ao trabalhador – mas esta conclusão não é imediata porque em geral se considera que a autoconstrução de moradias no Brasil, modo mais difundido de acesso dos mais pobres à habitação251, também tenha contribuído para o rebaixamento dos salários, já que o trabalhador empregava seus próprios esforços (por vezes em mutirões, frequentemente com parentes e conhecidos que se ajudavam mutuamente) para construir sua habitação. A habitação, diz Oliveira, “bem resultante dessa operação, se produz por trabalho não pago, isto é, supertrabalho. Embora aparentemente esse bem não seja desapropriado pelo setor privado da produção, ele contribui para aumentar a taxa de exploração da força de trabalho – de que os gastos com habitação são um componente importante – e para deprimir os salários reais pagos pelas empresas. Assim, uma operação que é, na aparência, uma sobrevivência de práticas de ‘economia natural’ dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem com um processo de expansão capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa exploração da foça de trabalho”252.

Nestes casos, parte do salário individual poderia ou não ser usada para aquisição de materiais de construção ou mesmo para a remuneração de mão-de250 Com a valorização do preço da terra causada em parte pelo próprio PMCMV, torna-se cada vez mais difícil o acesso à terra urbana por pessoas nestas faixas de renda, já que a carestia da habitação se generaliza (tanto para aquisição, como para aluguel) e a mobilização de instrumentos jurídicos para a proteção da posse de imóveis ociosos contra ocupações torna-se mais importante a proprietários fundiários para defesa do patrimônio valorizado. 251 F. DE OLIVEIRA, Crítica à Razão Dualista, 2003, p. 59, descreveu já em 1972 (o texto publicado em 2003 decorre de um artigo publicado nos anos 70) o fenômeno da autoconstrução: “Uma nãoinsignificante porcentagem de residências das classes trabalhadoras foi construída pelos próprios proprietários, utilizando dias de folga, fins de semana e formas de cooperação como o ‘mutirão’”. 252 F. DE OLIVEIRA, Crítica à Razão Dualista, 2003, p. 59. Note-se que, na época em que o texto foi escrito – década de 1970 – o fenômeno da “desapropriação” pelo setor privado não tinha ainda encontrado seu suprassumo nos países subdesenvolvidos, consistentes nas políticas de titulação das moradias irregulares.

129

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

-obra253. Quando este não era o caso – tipicamente tratando-se de trabalhadores de mais baixa renda com precariedade habitacional extrema – a subsistência habitacional estava, aí sim, completamente excluída do salário individual eventualmente recebido. Como, por um lado, a autoconstrução já implicava no rebaixamento da massa salarial e, de outro lado, os próprios subsídios do programa levam ao aumento do preço da terra urbana e dos aluguéis, a conclusão sobre um ainda maior rebaixamento da massa salarial no programa Minha Casa, Minha Vida exige estudos mais aprofundados que fogem ao alcance deste trabalho. Poderia se supor que um programa público de construção de moradias aliado à política de valorização salarial dos governos petistas levaria a uma considerável melhoria de vida das parcelas empobrecidas das classes trabalhadoras. Não há ainda dados habitacionais suficientes que permitam realizar avaliação mais pormenorizada sobre a exclusão habitacional. De outro lado, seria necessária uma pesquisa de maior alcance para apurar se os contemplados pelo programa tiveram melhoria ou piora no nível de subsistência. Certo é que, dado o desenho geral do programa, em especial o fato de se se apoiar em propriedade privada, crédito e subsídio estatal para promoção do acesso ao mercado imobiliário, tendencialmente será mantida a exclusão habitacional, independentemente do número de imóveis construídos.

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

milhões de financiamentos habitacionais concedidos através do BNH, entre 1970 e 1986, tenha se dirigido aos setores de menor renda”255.

No PMCMV, dados de 2015 mostram que a quantidade de imóveis entregues para a faixa de renda mais baixa (faixa 1) é também maior do que a quantidade entregue para a faixa 2: “Com rendimento mensal de R$ 300, a auxiliar de cozinha integra a principal faixa de renda do Minha Casa Minha Vida, que beneficia famílias com ganho bruto de até R$ 1,6 mil por mês. O MCMV contratou a construção de 1,7 milhão de unidades nessa faixa de renda desde 2009, tendo entregado 778.651 das 958,7 mil já construídas. Já na Faixa 2, aquela que atende a famílias com renda mensal bruta de até R$ 3,2 mil, o número de unidades entregues soma 1,3 milhão de um total de mais de 1,4 milhão construídas. Nessa faixa de renda, os recursos financiados diretamente pela União somam R$ 27,4 bilhões e o que foi investido por meio do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) atingiu R$ 149,4 bilhões. Na Faixa 3, que abarca a renda entre R$ 3,2 mil e R$ 5 mil em ganho bruto por mês por família, foram entregues 192.530 unidades habitacionais de 299,2 mil concluídas. A União subsidiou com recursos próprios R$ 797,6 milhões. Outros R$ 2,7 bilhões foram financiados pelo FGTS.”256

Capital monetário gerido pelo Estado e subsídio O FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) foi o “principal funding do BNH”254 e continua sendo a principal fonte de recursos para a política habitacional do governo federal. Ocorre que, por se tratar de um fundo financeiro, as decisões sobre o mesmo devem se submeter à lógica de rentabilidade. Com isso, fortalece-se a dimensão financeira

Como se verifica, o número de unidades entregues para a faixa 2 é quase o dobro dos entregues para a faixa 1, na qual se concentra a maior parte do déficit habitacional. Segundo dados da Fundação João Pinheiro, há “concentração do déficit habitacional na faixa ‘até três salários mínimos’ em 2009: 90,1%. A categoria ‘mais de três a cinco’ compreende 7,0% das famílias, a ‘mais de cinco a dez’, 2,4% e a ‘mais de dez’, 0,5%. Assim, as famílias com renda até cinco salários mínimos totalizam 97,1% do déficit habitacional urbano”257.

“ao subordinar as decisões sobre para quem, onde, como e de que forma investir em habitação à necessidade de remuneração dos recursos deste fundo. Isso explica, em parte, por que apenas 30% do total de 4,5 253 N. BONDUKI, Origens da Habitação Social no Brasil (1930-1945): O Caso de São Paulo, 1994, p. 258, descreve a autoconstrução como aquela que é “edificada sob gerência direta do seu proprietário ou morador: adquire ou ocupa o terreno; traça, sem apoio técnico, um esquema de construção; viabiliza a obtenção dos materiais; agencia a mão de obra, gratuita e/ou remunerada informalmente; e constrói sua casa”. 254 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 284.

130

255 Idem. 256 http://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2015/09/minha-casa-minha-vida-entregou-2-4-milhoes-demoradias, acesso em 26 dez. 2015. 257 MINAS GERAIS. Fundação João Pinheiro. Déficit Habitacional no Brasil. 2009. Disponível em http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/deficit-habitacional/185-deficit-habitacional-200 9.

131

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Mas o foco dos agentes financeiros é a rentabilidade, não o déficit habitacional. Desde os tempos do BNH, o locus privilegiado de “formulação e implementação da política habitacional” é o setor financeiro nacional, que também se estruturou e se mantém em grande medida para desenvolver um mercado imobiliário e uma indústria de construção civil, que funcionam como “motores do próprio setor financeiro”258. Ainda hoje, a Caixa Econômica Federal (CEF) funciona, na prática, como órgão de organização financeira da política habitacional, praticamente como um substituto do BNH, gerenciando grande parte dos recursos destinados à habitação no país. O papel da CEF não se restringe apenas a conceder o financiamento, assumindo relevante papel já que “também tem influenciado o desenho do programa, pois além de contratar a operação financeira e acompanhar a execução das obras pelas empresas construtoras, estabelece os critérios técnicos para sua operacionalização e execução... [e tem] papel decisivo na gestão operacional do PMCMV, na medida em que é responsável pela concessão do financiamento tanto ao usuário quanto às construtoras e incorporadoras e pela aprovação do projeto do ponto de vista técnico, jurídico e econômico-financeiro”259.

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

com recursos do FGTS. Este, além de ser um fundo de poupança compulsória dos próprios trabalhadores, tem em seu Conselho Curador as centrais sindicais criadas com a redemocratização do Brasil – segundo ROLNIK, “esse desenho é fundamental para compreendermos o entrelaçamento político entre o capital financeiro e a nova liderança sindical nos anos 1990 e 2000”261. Assim, no setor habitacional brasileiro, o capital monetário é em grande parte administrado pelo Estado, por meio da Caixa Econômica Federal (banco público). Mas os subsídios e os juros baixos viabilizados por esta intervenção estatal na economia estão longe de realizar uma proudhoniana “justiça eterna”. Engels já criticava no século XIX as teses de que o rebaixamento das taxas de juro a zero por meios jurídico-legais levaria a resolver a questão da habitação. O proudhonista Arthur Mülberger escrevera: “Suponhamos agora que a produtividade do capital realmente seja agarrada pelos chifres, como cedo ou tarde deverá acontecer, por exemplo, mediante uma lei de transição que fixe o juro de todos os capitais em 1%, nota bene, com a tendência de aproximar também essa porcentagem cada vez mais do marco zero, de modo que, ao final, não se pagará nada além do trabalho necessário à transação do capital. Como acontece com todos os demais produtos, naturalmente também a casa e moradia estão contidos no quadro dessa lei. [...] O proprietário mesmo será o primeiro a estender a mão para a venda, dado que do contrário sua casa não seria utilizada e o capital nela investido simplesmente não serviria de nada”262.

Os defensores da financeirização pretendem a modernização do sistema financeiro do Brasil, com a expansão de instrumentos como fundos de investimento imobiliário e certificado de recebíveis imobiliários, os quais supostamente levariam a maiores investimentos – inclusive estrangeiros – no setor. Tentou-se esta modernização ainda na década de 90 para consumo de imóveis para habitação. Para os defensores deste modelo, “a melhor política de habitação social que se poderia fazer era desenhar um marco regulatório confiável para o setor imobiliário, com o objetivo de atrair investidores em potencial e fomentar a oferta habitacional através de relações de mercado”260. Mas o mercado habitacional para baixa renda, apesar destas pretensões, continuou dependente de incentivo público. Assim, no que tange ao atendimento habitacional para faixas de baixa renda, o principal meio de financiamento atual é o do PMCMV,

O desentendimento sobre o papel da lei e do direito no capitalismo é pleno em Mülberger. Este espera reduzir a nada o capital investido por meio de uma legislação de transição, desprezando que o direito é determinado pela base do sistema sociometabólico do capital. Fosse possível realizar aquela proeza – reduzir a nada o capital por meio de lei – esta simplesmente deixaria de ser direito e se tornaria alguma quimera. Para chegar a isto, os proudhonistas precisam apenas reprovar a “produtividade do capital”, que nada mais é do que a “apropriação do trabalho não pago de trabalhadores assalariados”263. Engels esclarece que

258 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 282.

261 Idem, p. 285.

259 M. R. LOUREIRO et. al., Democracia, Arenas Decisórias e Políticas Públicas: o Programa Minha Casa Minha Vida, 2013, p. 23.

262 A. MÜLBERGER, Die Wohnungsfrage, in Der Volksstaat, Leipzig, n. 13, 14 fev. 1872, p. 3, apud F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, pp. 56-57.

260 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 287.

263 F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, p. 57.

132

133

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

“A redução e, por fim, a abolição da taxa de juros realmente não seria de modo algum capaz de ‘agarrar pelos chifres’ a assim chamada ‘produtividade do capital’, mas apenas regulamentaria de maneira diferente a repartição entre os capitalistas individuais do mais-valor não pago que é tirado da classe trabalhadora, não assegurando nenhuma vantagem ao trabalhador em relação ao capitalista individual, mas tão somente ao capitalista individual em relação ao rentista”264.

No contexto brasileiro, subsídio e juros baixos não são benesses legalmente previstas para realizar o direito à moradia dos mais pobres, são benefícios legais para os capitalistas dos setores de construção civil e imobiliário em relação ao Estado gestor do capital monetário. Por meio dos instrumentos do subsídio e do crédito habitacional, o Estado brasileiro realiza a transferências de parcela da mais-valia (via recursos do tesouro nacional) e dos salários (via parcelas pagas pelos trabalhadores) para promover a expansão dos mercados imobiliário e de construção civil brasileiros, assegurando a manutenção e a expansão geográfica do conjunto de ganhos do capital (juro, renda, lucro). O desenho do PMCMV e sua efetivação não levam à redução do valor da força de trabalho por meio da realização do meio de subsistência habitação. Os efeitos do programa podem mesmo ser contrários a isto, com aumento do déficit habitacional, independentemente do número de imóveis construídos.

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

de sustentação do capitalismo265. Marx não chegou a publicar as partes de O Capital que tratavam especificamente de juros, crédito e finanças. Ele deixou apenas manuscritos, que foram depois revistos e publicados por Engels. As partes seções V e VI do Livro III da obra tratam mais diretamente do assunto. Trata-se, aí, do capital monetário. O dinheiro já aparecera desde a seção 1 do Livro 1 de O Capital, e ali aparece como o equivalente universal, como expressão do valor de todas as outras mercadorias, como forma de valor universal. Mas este equivalente universal tem um caráter fetichista, pois esconde o trabalho necessariamente existente em todas as mercadorias. No livro III, a argumentação retoma o conceito de fetichismo do dinheiro, afirmando, agora, que “No capital portador de juros, a relação-capital atinge sua forma mais alienada e mais fetichista... a figura fetichista do capital e a concepção do fetiche capital está acabada”266. O dinheiro, aí, esconde a vocação do próprio capital de acumulação infinita e faz o capitalista acreditar e perseguir a acumulação ilimitada de dinheiro. O juro é o preço ou o valor de troca do capital monetário. Porém, ao contrário do preço das mercadorias, que se aproximam do valor quando oferta e demanda estão em equilíbrio, o juro não tem valor algum do qual possa se aproximar. A taxa de juro é determinada, portanto, pela oferta e demanda de capital monetário267.

A irracionalidade do capital monetário e o papel do crédito na espoliação urbana O que deve ser frisado neste ponto é que por meio dos instrumentos do subsídio e do crédito habitacional, o Estado capitalista brasileiro realiza a transferências de parcela do trabalho excedente para assegurar a expansão do mercado imobiliário brasileiro, assegurando a manutenção e a expansão geográfica do conjunto de ganhos do capital (juro, renda, lucro). Pouco muda se o crédito é gerido pelo Estado ou por agentes privados, a função (e a disfunção) dele será a mesma. O sistema de crédito é um dos principais meios para acesso à habitação. Isto ocorre em razão dos elevados preços dos bens imóveis que servem à habitação – e o próprio sistema de crédito pode implicar em elevação ainda maior destes preços. Antes disso, o sistema de crédito é um dos principais pilares

264 Idem, p. 58.

134

265 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 286, citando K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, p. 824 a 826, diz que “não podemos entender esse papel crucial do Estado como força organizadora e como promotor do sistema colonial sem reconhecer a importância tanto da dívida nacional quanto do sistema de crédito público como meios pelos quais o poder do dinheiro pode começar a controlar o poder do Estado. A fusão do poder do dinheiro com o poder estatal a partir do século XVI é assinalada pelo advento de um ‘moderno sistema tributário’ e de um sistema internacional de crédito. Os ‘bancocratas, financistas, rentistas, corretores, stockjobbers [bolsistas]’ etc. que povoaram esse sistema passaram a desempenhar importantes funções de poder. O sistema colonial permitia que ‘os tesouros espoliados fora da Europa diretamente mediante o saqueio, a escravização e o latrocínio’ fossem levados ‘à metrópole’, onde ‘se transformavam em capital’, ao mesmo tempo que a dívida pública se tornava ‘uma das alavancas mais poderosas da acumulação primitiva.’” 266 K. MARX, O Capital – Crítica da Economia Política. O Processo Global de Produção Capitalista, 1986, p. 293-294. 267 Neste sentido, D. HARVEY, Para Entender o Capital – Livros II e III, 2014, p. 169, afirma que o preço (valor de troca) do capital monetário é chamado de juro, e o ciclo do capital monetário aparece agora como a circulação do capital portador de juros. Não há, no entanto, nenhuma ‘taxa natural de juro’ do tipo proposto pela teoria burguesa. Devemos lembrar que Marx considerava o preço ‘natural’ (o preço das mercadorias quando a oferta e a demanda estão em equilíbrio no mercado) uma aproximação do valor. Nesse caso, porém, o ‘preço natural’ não pode existir”. Para Harvey, há uma

135

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

A questão que se coloca no estudo do capital monetário é sobre a sua relação com o capital industrial – a relação entre juro e lucro. Segundo Harvey, a taxa de juro é fixada pela concorrência entre capitalistas industriais e capitalistas monetários268, sendo que, no contexto capitalista, o capital monetário depende da existência do capital industrial (“capital produtivo”)269. Mas “a oferta global de dinheiro é ilimitada, porque é feita apenas de números”270 e isto leva às crises monetárias e comerciais: “Relações de concessão de empréstimos podem fugir do controle e produzir cada vez mais dinheiro em forma de crédito (a proliferação de títulos de crédito). Isso confere necessariamente um caráter fictício a todos os mercados de crédito”271. Este caráter fictício dos mercados de crédito, como a irracionalidade da determinação da taxa de juro272, não significam a inutilidade prática do capital monetário – basta olhar para os efeitos práticos da crença religiosa na organização social para compreender a função efetiva do fetiche e da alienação. Este capital pode tanto impulsionar a oferta (o banco disponibiliza dinheiro para o empreiteiro construir imóveis), como pode impulsionar a demanda (o banco empresta dinheiro para o consumidor comprar imóveis). Harvey aponta que “isso pode se tornar um circuito fechado (uma bolha de ativos, digamos, na

profunda mudança conceitual no livro III de O Capital, já que Marx passa a explicar a taxa de juro a partir da oferta e da demanda de capital monetário, quando, no livro II, oferta e demanda seriam sempre “particularidades” que “não explicam nada quando estão em equilíbrio” (p. 169). Por escapar aos limites deste trabalho, não me ocuparei aqui desta suposta mudança conceitual. 268 D. HARVEY, Para Entender o Capital – Livros II e III, 2014, p. 170. 269 Idem, p. 171-172, afirma que “Segundo Marx, a ambição de muitos capitalistas industriais na Inglaterra frequentemente era trabalhar na produção até poderem se tornar rentistas ou financistas, e então poder mudar para uma propriedade rural e viver confortavelmente de renda. Mas se todos procurassem viver do juro ou da renda e ninguém produzisse mais-valor, observa Marx, a taxa de juro cairia a zero, e o lucro potencial sobre o reinvestimento da produção atingiria altitudes inéditas (C3, 501). Encontra-se aqui ao menos um ponto em que a circulação do capital portador de jutos tem de se submeter à produção de mais-valor.

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

produção e realização de imóveis). Esse é o ponto em que a taxa de juro e a taxa de lucro se interseccionam e interagem de maneira extremamente significativa e, muito frequentemente, especulativa”273. No que se refere à questão do crédito no setor habitacional para pessoas de baixa renda (basicamente o PMCMV) – não há “um processo de ‘financeirização’, na medida em que nem a formação de um mercado secundário de hipotecas, nem a participação mais intensa de fundos e veículos financeiros ocorreram”274. Nos limites do capitalismo periférico brasileiro, uma tímida busca por financeirização acabou por ocorrer apenas na capitalização das empresas do setor imobiliário e, no que se refere ao financiamento do consumo de imóveis, o papel principal coube ao próprio governo, ao FGTS e à Caixa Econômica Federal. Grandes empresas construtoras e incorporadoras do Brasil receberam aportes de capital estrangeiro no período anterior ao PMCMV275. E o mais importante passo que estas companhias deram foi investir em reservas fundiárias, comprando terras baratas para posterior investimento. A compra de terras baratas para esperar a sua valorização e para servir de reserva financeira é um instrumento básico do patrimonialismo brasileiro – mantêm-se imóveis ociosos à espera de investimentos públicos no entorno que os valorizem. Com as construtoras e incorporadoras capitalizadas, este movimento ganha escala impressionante: 9 empresas do setor listadas na Bovespa concentravam, em 2014, “100 bilhões de reais (37 bilhões de dólares) em terra, o que representa quase 620 mil quilômetros quadrados de solo urbano, em várias cidades do país”276. Isto terá impacto no preço da terra urbana pelo aumento da procura, assim como os subsídios estatais do PMCMV levarão a mais um movimento de alta do preço da terra e de valorização destes terrenos – estes subsídios, assim, acabam por ser absorvidos pelo mercado imobiliário pelo aumento do preço da terra. 273 D. HARVEY, Para Entender o Capital – Livros II e III, 2014, p. 173.

270 Idem, p. 172.

274 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 290.

271 Idem.

275 Idem, p. 290-291: “A Cyrela, por exemplo, empresa familiar fundada em São Paulo em 1962, associa-se em 1996 à IRSA, incorporadora argentina da qual participava George Soros, par criar a Brazil Realty. Parte da Gafisa, empresa também familiar que atuava no Rio de Janeiro desde 1954, é comprada pela GP Investments em 1997. A GP Investments... mobilizou investidores em todo o mundo para gerenciar o capital e/ou controlar cinquenta companhias lationo-americanas, principalmente brasileiras, dos setores imobiliário e de varejo, e também de logística e telecomunicações”.

272 Idem, p. 175, se vale de uma analogia interessante, afirmando que “a irracionalidade e o caráter contraditório do juro sobre o capital têm de ser considerados no sentido... [da] teoria do número. Só assim podemos então ver como formas fictícias são produzidas e com que efeito, de modo muito semelhante a como [o número] π [número irracional igual a 3,14159265359...; na matemática, número irracional é o número real que não pode ser escrito como uma fração de numerador inteiro e de denominador inteiro diferente de zero] pode ser usado na engenharia”.

136

276 Idem, p. 292.

137

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Um dos aspectos mais preocupantes do PMCMV é que os mecanismos de mercado levarão certamente, em poucos anos, a uma nova onda de exclusão habitacional e à formação de um mercado imobiliário de baixa renda com imóveis construídos via PMCMV. Aqueles que não puderem pagar pelas prestações (o financiamento é de 10 anos para a faixa 1 e de até 30 anos para as faixas 2 e 3) poderão vir a ter os imóveis retomados pela Caixa Econômica Federal ou venderão seus imóveis terceiros no mercado, migrando para o aluguel ou assumindo a condição de sem-teto. O processo de expansão do capital a que se assiste está intimamente aliado ao processo de espoliação ou desapossamento do trabalho alheio: os mecanismos jurídico-financeiros permitem cada vez com mais sofisticação a extração da renda do trabalho por meio do crédito e a reprodução perpétua do capital. Sobre a espoliação urbana, observe-se que, no contexto europeu, Marx desvendou como o desmantelamento das relações feudais de produção permitiram liberar o trabalhador camponês para que se transformasse em trabalhador assalariado e, assim, servisse à reprodução do próprio capital. A base desta liberação foi a expropriação da terra que antes pertencia ao produtor rural: “Na história da acumulação primitiva, o que faz época são todos os revolucionamentos que servem de alavanca à classe capitalista em formação, mas, acima de tudo, os momentos em que grandes massas humanas são despojadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários absolutamente livres. A expropriação da terra que antes pertencia ao produtor rural, ao camponês, constitui a base de todo o processo. Sua história assume tonalidades distintas nos diversos países e percorre as várias fases em sucessão diversa e em diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra, e por isso tomamos esse país como exemplo, tal expropriação se apresenta em sua forma clássica”277.

Na Inglaterra, a Revolução Gloriosa de 1689, “conduziu ao poder, com Guilherme III de Orange, os extratores de mais-valor, tanto proprietários fundiários como capitalistas. Estes inauguraram a nova era praticando em escala colossal o roubo de domínios estatais que, até então, era realizado apenas em

277 K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, p. 787.

138

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

proporções modestas”278. Esta foi a base dos domínios da oligarquia inglesa e os capitalistas burgueses “favoreceram a operação, entre outros motivos, para transformar o solo em artigo puramente comercial, ampliar a superfície da grande exploração agrícola, aumentar a oferta de proletários absolutamente livres, provenientes do campo etc.”279 Já a propriedade comunal, também foi usurpada nos séculos XV e XVI, “em geral acompanhada da transformação das terras de lavoura em pastagens... Nessa época, porém, o processo se efetua por meio de atos individuais de violência, contra os quais a legislação lutou, em vão, durante 150 anos” 280 . No século XVIII, a peculiaridade é que a própria lei281 é o veículo para a expropriação das terras: “O progresso alcançado no século XVIII está em que a própria lei se torna, agora, o veículo do roubo das terras do povo, embora os grandes arrendatários também empreguem paralelamente seus pequenos e independentes métodos privados. A forma parlamentar do roubo é a das “Bills for Inclosures of Commons” (leis para o cercamento da terra comunal), decretos de expropriação do povo, isto é, decretos mediante os quais os proprietários fundiários presenteiam a si mesmos, como propriedade privada, com as terras do povo. Sir Francis Morton Eden refuta sua própria argumentação espirituosa de advogado, na qual pro278 Idem, p. 795. 279 Idem, p. 796. 280 Idem, p. 796. 281 Sobre ser a própria lei o veículo para a expropriação das terras, deve-se observar que aí não está presente ainda a forma jurídica própria ao capitalismo, mas uma protoforma jurídica. Neste sentido, explica M. ORIONE, Dilma e a Vaca Profanada, In http://blogdaboitempo.com. br/2015/01/28/dilma-e-a-vacaprofanada/, acesso em 15 jun. 2015, que “a universalização da aparência de liberdade e igualdade, como condição indispensável à lógica de produção e circulação do capital, não se realiza sem a presença do estado. O estado é, pois, na sua mais acabada estruturação, forma típica do capitalismo. Logo, estado ou direito evoluíram no tempo e possuem características incipientes nos modos de produção anterior. No entanto, a mais bem-acabada manifestação de ambos somente pode-se dar no capitalismo. Merecem, pois, ser considerados como forma típica do capitalismo neste sentido. Em outro momento da humanidade, outras figuras que não se confundem com a atual de estado ou direito apareceram. No entanto, para a universalização da figura do sujeito de direito e de seus correlatos discursos de igualdade e liberdade, forma estatal e jurídica coincidem e são indispensáveis ao advento e andamento do capitalismo. Em se tratando de formas históricas, não existiram antes (mesmo que existissem suas protoformas) e não existirão eternamente, compondo outro modo de produção. Logo, são apenas formas transitórias, como o devem ser à luz do materialismo histórico-dialético. Não se tratam de formas transcendentais, eternas – que sempre teriam existido e que, inexoravelmente, sempre existirão.”

139

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

cura apresentar a propriedade comunal como propriedade privada dos latifundiários que assumiram o lugar dos senhores feudais, quando exige ‘uma lei parlamentar geral para o cercamento das terras comunais’, admitindo, com isso, ser necessário um golpe de Estado parlamentar para transformar essas terras em propriedade privada, e, por outro lado, quando reivindica ao poder legislativo uma ‘indenização’ para os pobres expropriados”282.

Esta indenização nada representará para a sorte dos camponeses, que comporão as crescentes fileiras do exército industrial nas cidades, dispondo de sua força de trabalho no mercado, pressuposto básico para o desenvolvimento do capitalismo. No final do século XIX o salário destes trabalhadores era tão baixo que a sua subsistência só era possível com o complemento da assistência oficial aos pobres283. Marx observa que se o trabalhador pode acumular para si mesmo – “o que ele pode fazer na medida em que permanece como proprietário de seus meios de produção –, a acumulação capitalista e o modo capitalista de produção são impossíveis”. Isto porque falta o capital variável, falta “a classe dos trabalhadores assalariados, imprescindíveis para esse fim”284. Marx desfaz, assim, o “conto de fadas” da acumulação por uma “elite laboriosa, inteligente e sobretudo parcimoniosa”, que se contraporia à “súcia de vadios a dissipar tudo o que tinham e ainda mais”285. Nesta versão, estes, apesar de trabalharem duramente, nada conseguem acumular para si em razão de sua própria incapacidade para economizar. Marx, porém, observa que “São trivialidades como essas que, por exemplo, o sr. Thiers, com a solenidade de um estadista, continua a ruminar aos franceses, outrora tão sagazes, como apologia da proprieté. Mas tão logo entra em jogo a questão da propriedade, torna-se dever sagrado sustentar o ponto de vista da cartilha infantil como o único válido para todas as faixas etárias e graus de desenvolvimento. Na história real, como se sabe, o papel principal é desempenhado pela conquista, a subjugação, o as-

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

sassínio para roubar, em suma, a violência... Na realidade, os métodos da acumulação primitiva podem ser qualquer coisa, menos idílicos... a história dessa expropriação está gravada nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo.”286

Uma das condições básicas para o surgimento do capitalismo, a acumulação de riqueza por algumas pessoas, aliado ao despojamento de muitas outras, não está relacionada a aspectos morais individuais como a avareza e a prodigalidade, mas à acumulação de capital por meio da espoliação. David Harvey, analisando o argumento de Marx e refletindo sobre o contexto atual do capitalismo, faz o seguinte questionamento: “uma vez que o capitalismo passou pela acumulação primitiva, e uma vez que a pré-história acabou e surgiu uma sociedade capitalista madura, os violentos processos que ele descreve tornam-se insignificantes e desnecessários ao modo como o capitalismo funciona?”287. Sobre a explicação de Marx da acumulação primitiva, Harvey aponta que nem todos os momentos desta acumulação primitiva foram violentos, tendo havido momentos em que “as populações eram menos forçadas a sair da terra do que atraídas pelas possibilidades de emprego e pelas perspectivas de uma vida melhor oferecidas pela urbanização e pela industrialização”288. Pode-se problematizar se não há violências pressupostas nestas “perspectivas de uma vida melhor”. É dizer, provavelmente a “vida melhor” prometida nos centros urbanos capitalistas corresponde via de regra a uma realidade concreta: a vida é de fato materialmente melhor aí em razão da dinâmica capitalista de produção e distribuição da riqueza, que tem como efeito também deixar o campo em condições de vida tão miseráveis que a vida mais degradante nas cidades se torna mais atraente. Assim, esta “perspectiva de uma vida melhor” deve ser vista para além da aparência: ela é, em regra, a ideologia por trás do desapossamento do campo, da concentração do capital nas cidades e no despojamento das massas para disponibilizar mão de obra no mercado. Esta “perspectiva de uma vida melhor” foi boa parte da história da migração para as regiões industriais no Brasil do século XX. O que interessa aqui é: o desapossamento e a correspondente acumulação

282 K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, p. 796. 283 Idem, p. 799.

286 Idem, p. 785 a 787.

284 Idem, p. 837.

287 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 280.

285 Idem, p. 785.

288 Idem, p. 291.

140

141

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

continuam a ocorrer no regime capitalista, aparecendo como movimentos de reorganização da acumulação e do capitalismo. A história da acumulação primitiva teria mais nuances do que as focalizadas por Marx no estreito espaço dos últimos capítulos do Livro I d’O Capital. Harvey identifica em Rosa Luxemburgo a introdução deste tema, quando a autora afirmava que o capitalismo se assentaria em duas formas de exploração: “uma diz respeito ao mercado de mercadorias e ao lugar onde o mais-valor é produzido – a fábrica, a mina, o latifúndio agrícola. Vista por esse prisma, a acumulação é um processo puramente econômico, cuja fase mais importante é a transação entre o capitalista e o trabalhador assalariado. [...] Aqui, ao menos formalmente, prevalecem a paz, a propriedade e a igualdade, e a aguda dialética da análise científica [e, segundo ela, essa foi a principal realização de Marx n’O Capital] era necessária para revelar como o direito de propriedade, no curso da acumulação, torna-se apropriação da propriedade de outrem, e como a troca de mercadoria se transforma em exploração e a igualdade, em domínio de classe... O outro aspecto da acumulação... diz respeito às relações entre o capitalismo e os modos não capitalistas de produção, que começam a surgir no cenário internacional. Seus métodos predominantes são a política colonial, um sistema de crédito internacional – uma política de esferas de interesse – e a guerra. A força, a fraude, a opressão e o saque são patrocinados abertamente, sem nenhuma tentativa de disfarce, e é necessário certo esforço para descobrir, nesse emaranhado de violência política e disputas de poder, as leis inexoráveis do processo econômico.”289

Haveria, então, uma “conexão orgânica” entre estes sistemas de exploração e acumulação. Os dois são dependentes entre si para existir da maneira em que existem e, juntos, possibilitam conhecer o curso histórico do capitalismo290. Neste sentido, “Marx estava errado, diz ela, em situar a acumulação primitiva num ponto antediluviano, numa pré-história do capitalismo. O capitalismo te289 R. LUXEMBURGO. A Acumulação do Capital, 2ª Ed., São Paulo: Nova Cultura, 1985, apud D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 292. 290 Esta a conclusão de R. LUXEMBURG, The Accumulation of Capital, disponível em https://www. marxists.org/archive/luxemburg/1913/accumulation-capital/ch31.htm, no trecho logo após aqueles citados na nota anterior, a saber, “In reality, political power is nothing but a vehicle for the economic process. The conditions for the reproduction of capital provide the organic link between these two aspects of the accumulation of capital. The historical career of capitalism can only be appreciated

142

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

ria deixado de existir há muito tempo, se não tivesse se engajado em novos ciclos de acumulação primitiva, sobretudo por meio da violência do imperialismo”291. Esta interpretação de que Rosa via um erro em Marx também foi adotada por Tadeusz Kowalik numa introdução à edição de The Accumulation of Capital da Routledge Classics, que afirmou que “Marx estava, segundo ela, errado quando apenas ressaltou o papel crucial do poder político e da violência nas fases iniciais da assim-chamada acumulação primitiva do capital. Na verdade, o poder político não é nada mais do que um veículo do processo econômico”292. O que interessa aqui é compreender que os processos de acumulação colonial/imperialista e de acumulação por desapossamento (via sistema de crédito, expropriação de populações, cercamento de propriedades, etc.) são próprias do capitalismo e cumprem função muito semelhante à que Marx atribuiu à acumulação primitiva. O que Harvey chama de processo de acumulação por desapossamento (para não usar a nomenclatura de acumulação primitiva para um processo atual) continua a ocorrer e é estrutural ao capitalismo293, é um dos seus modos de expansão e de sustentação. O desapossamento é um tipo de espoliação urbana. L. Kowarick trabalha com este último conceito:

by taking them together. ‘Sweating blood and filth with every pore from head to toe’ characterises not only the birth of capital but also its progress in the world at every step, and thus capitalism prepares its own downfall under ever more violent contortions and convulsions” – em tradução livre, “Na realidade, o poder politico não é mais do que um veículo para o processo econômico. As condições para a reprodução do capital proporcionam a ligação orgânica entre esses dois aspectos da acumulação de capital. O curso histórico do capitalismo só pode ser apreciado ao tomá-los em conjunto. ‘Transpirar sangue e imundície com todos os poros da cabeça aos pés’ caracteriza não só o nascimento de capital, mas também o seu progresso no mundo a cada passo, e, assim, o capitalismo prepara a sua própria queda sob contorções e convulsões cada vez mais violentas.” 291 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 292. 292 Tradução livre, introdução de Tadeusz Kowalik a R. LUXEMBURG, The Accumulation of Capital. Rotledge: Londres, 2003, p. XIII. 293 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 292, aponta que “os processos específicos de acumulação que Marx descreve – a expropriação das populações rurais e camponesas, a política de exploração colonial, neocolonial e imperialista, o uso de poderes do Estado para realocar recursos para a classe capitalista, o cercamento de terras comuns, a privatização das terras e dos recursos do Estado e o sistema internacional de finança e crédito, para não falar dos débitos nacionais crescentes e da continuação da escravidão por meio do tráfico de pessoas (especialmente mulheres) – todos esses traços ainda estão entre nós e, em alguns casos, parecem não ter sido relegados ao segundo plano, mas, como o sistema de crédito, o cercamento de terras comuns e a privatização, tornaram-se ainda mais proeminentes”.

143

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

“O chamado ‘problema’ habitacional deve ser equacionado tendo em vista dois processos interligados. O primeiro refere-se às condições de exploração do trabalho propriamente ditas, ou mais precisamente às condições de pauperização absoluta ou relativa a que estão sujeitos os diversos segmentos da classe trabalhadora. O segundo processo, que decorre do anterior e que só pode ser plenamente entendido quando analisado em razão dos movimentos contraditórios da acumulação do capital, pode ser nomeado de espoliação urbana: é o somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade dos serviços de consumo coletivos que se apresentam como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência e que agudizam ainda mais a dilapidação que se realiza no âmbito das relações de trabalho”294.

E continua apontando o papel central do Estado neste processo de espoliação: “Em ambos os processos o papel do Estado é fundamental. Em primeiro lugar, por criar o suporte de infraestrutura necessário à expansão industrial, financiando a curto ou a longo prazo as empresas e por agir diretamente enquanto investidor econômico. Ademais, por ser o agente que tem por encargo gerar os bens de consumo coletivo ligados às necessidades da reprodução da força de trabalho. Em segundo lugar por manter a ‘ordem social’ necessária à realização de um determinado modelo de acumulação”

Sobre “ter o encargo de gerar os bens de consumo coletivo ligados às necessidades da reprodução da força de trabalho”, observe-se que a neoliberalização prega justamente que o mercado pode cumprir esta função; a configuração do Programa Minha Casa, Minha Vida deixa clara esta mudança da função estatal no que se refere aos direitos sociais – fenômeno conhecido como mercantilização dos direitos sociais, que não poderia ter sido descrito plenamente em 1979 por Kowarick. O que continua constante e é estrutural ao capitalismo é o papel do Estado – e também do direito, na manutenção da ‘ordem social’ necessária ao modelo de acumulação vigente. Para manter a ‘ordem social’, o Estado mantém as instituições necessárias ao direito e à política e participa definitivamente na legi-

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

timação (jurídica e política) dos processos de expropriação por desapossamento e de espoliação urbana. No que tange ao movimento do capital monetário e financeiro, a expansão do capitalismo se dá com o reinvestimento do excedente produtivo, não sem que sucessivas crises orientem o fluxo destes excedentes295. Segundo D. Harvey, “houve centenas de crises financeiras ao redor do mundo desde 1973, em comparação com as muito poucas entre 1945 e 1973, e várias foram baseadas em questões de propriedade ou desenvolvimento urbano”296. De fato, “Estas crises, quando impactam as questões de propriedade e desenvolvimento urbano, envolvem a eclosão de um processo de aplicação de excedentes produtivos em mercados imobiliários, que leva à especulação com os preços dos imóveis – preços de venda e compra e de aluguel, afetando, decisivamente, a qualidade das moradias das classes mais pobres. Este movimento se sustenta até um momento em que os excedentes não mais podem sustentar o aumento dos preços e há, então, uma “correção” destes preços, com perdas generalizadas.”297

Estes fenômenos implicam que: i) do ponto de vista do trabalhador, economias obtidas por meio da venda da força de trabalho sejam perdidas nos momentos de crise com a desvalorização do preço do imóvel, algo que tem um efeito direto inicial diminuto para o trabalhador que usa o imóvel como moradia e não paga por ele, mas que afeta duramente o trabalhador enredado num financiamento bancário de muitos anos para a aquisição do imóvel; há aí 295 Sobre a relação entre a questão do excedente e a expansão urbana, HARVEY, David. The Right to the City. New Left Review 53, September-October 2008, afirma que “From their inception, cities have arisen through geographical and social concentrations of a surplus product. Urbanization has always been, therefore, a class phenomenon, since surpluses are extracted from somewhere and from somebody, while the control over their disbursement typically lies in a few hands. This general situation persists under capitalism, of course; but since urbanization depends on the mobilization of a surplus product, an intimate connection emerges between the development of capitalism and urbanization... The perpetual need to find profitable terrains for capital-surplus production and absorption shapes the politics of capitalism”. O autor, ademais, se questiona e argumenta o seguinte: “How, then, has the need to circumvent these barriers and to expand the terrain of profitable activity driven capitalist urbanization? I argue here that urbanization has played a particularly active role, alongside such phenomena as military expenditures, in absorbing the surplus product that capitalists perpetually produce in their search for profits”. 296 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 14.

294 L. KOWARICK. A Espoliação Urbana, 1979, p. 59.

144

297 R. MENEZES, Habitar a Cidade do Neoliberalismo, 2015, p. 157.

145

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

espoliação do trabalhador, com especial ênfase na manutenção do seu despojamento dos meios de subsistência, mantendo-se sua liberdade e igualdade para vender sua força de trabalho no mercado; ii) do ponto de vista dos trabalhadores298 rentistas ou que utilizam a compra de imóvel como poupança ou reserva de valor, a crise é um momento avassalador para esta poupança; também aqui há um processo de espoliação voltado à reorganização do capital; iii) do ponto de vista dos especuladores capitalistas, estas ocasiões são momentos em que os excedentes “investidos” nos imóveis são dirigidos para outros locais ou para outros ramos da economia. Os capitalistas são afetados de acordo com as leis da concorrência: para alguns, partes expressivas de seus excedentes produtivos investidos em imóveis se dissolverão; outros sairão como “ganhadores” e continuarão como personificações do capital espoliante. Mas o grande vencedor é o sistema sociometabólico do capital: este pode continuar a reproduzir a riqueza conforme sua lógica própria. Como observa Harvey, “o impacto redistributivo da perda dos investimentos em imóveis de milhões de pessoas e os enormes ganhos em Wall Street aparecem como um caso contemporâneo de forte predação e roubo legalizado típico da acumulação por desapossamento”299. A economia mundial é fortemente dependente do mercado imobiliário como locus para o investimento seguro de excedentes produtivos. Por isso se pode dizer que há aí um pilar estrutural do capitalismo. Crises neste mercado tendem a afetar inevitavelmente toda a economia, como a primeira crise em escala global do capitalismo no pós-Segunda Guerra, que “começou na primavera de 1973, seis meses antes de o embargo árabe sobre o petróleo elevar os preços do barril”. Esta crise, segundo Harvey, “originou-se em um crash do mercado imobiliário global, que derrubou vários bancos e afetou drasticamente não só as finanças dos governos municipais (como o de Nova York, que foi à falência técnica em 1975, antes de ser finalmente socorrido), mas também as finanças do Estado de modo mais geral”300.

298 Deve-se lembrar que, quando analisou brevemente “os efeitos das crises sobre a parcela mais bem remunerada da classe trabalhadora”, foi o próprio K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, que se referiu a esta “parcela” como uma aristocracia, não se tratando de uma invenção de correntes marxistas do século XX.

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Estas crises associadas a problemas nos mercados imobiliários, “tendem a ser mais duradouras do que as crises curtas e agudas que, às vezes, abalam os mercados de ações e os bancos diretamente”. Isto porque “os investimentos no espaço construído são em geral baseados em créditos de alto risco e de retorno demorado: quando o excesso de investimento é enfim revelado (como aconteceu recentemente em Dubai), o caos financeiro que leva muitos anos a ser produzido leva muitos anos para se desfazer”301. Conclui Harvey, portanto, que não há “nada de original no colapso atual [na crise financeira de 2009], além do tamanho e alcance. Também não há nada de anormal sobre seu enraizamento no desenvolvimento urbano e no mercado imobiliário”. Neste contexto, aprofunda-se a contradição entre o processo de produção social do espaço e sua apropriação privada302 – ou seja, primeiro, a apropriação individual aparece como negação determinada da produção social do espaço; segundo, no próprio processo de produção do espaço são extraídos excedentes produtivos e coloca-se o espaço produzido no circuito do mercado. Num período de “desenvolvimento”, o mercado de crédito se expande para que massas de trabalhadores se endividem e adquiram imóveis; depois, num período de crise, se aceleram os processos de acumulação por desapossamento. Para que o espaço socialmente produzido possa submeter-se à apropriação privada, a mediação jurídica da propriedade privada se impõe. Como observa Ana Fani Carlos, “a produção do espaço se realiza sob a égide da propriedade privada do solo urbana... deste modo, o espaço entra no circuito da troca, generalizando-se na sua dimensão de mercadoria”303. As crises são uma forma de reorganização do capital, que ocorre por meio de espoliação do trabalho pelo capital, para a autoalimentação deste e continuidade da reprodução capitalista. Trata-se de um processo de acumulação por desapossamento e questões habitacionais não raro estão envolvidas neste processo, seja por meio do sistema de crédito e suas execuções hipotecárias, seja por meio de políticas de segurança da posse excludentes de populações pobres e de formas alternativas de acesso à terra. Assim como “as violentas contradições exibidas no movimento superficial [do capital, foco de atenção dos economistas burgueses,] só podem ser anteci301 Idem.

299 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 298.

302 R. COUTINHO. A Mitologia da Cidade Sustentável no Capitalismo, 2011, p. 21.

300 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 14.

303 A. F. A. CARLOS. O espaço Urbano: novos escritos sobre a cidade, 2004, p. 91.

146

147

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

padas e entendidas por meio de um estudo das dinâmicas subjacentes que produzem as formas do fetiche e sustentam as intervenções fetichistas nas leis de movimento do capital”304, também as antinomias, inefetividades e divergências de todo o tipo do direito devem ser compreendidas no interior de dinâmicas que produzem a ideologia jurídica a partir das leis de movimento do capital. O sistema de crédito, com toda a sua regulamentação jurídica, é um mecanismo de acumulação por desapossamento: “o renascimento dos mecanismos de acumulação por desapossamento foi particularmente visível no papel cada vez maior do sistema de crédito e das apropriações financeiras, em cuja última onda milhões de norte-americanos perderam suas casa por execução hipotecária. Grande parte dessa perda de recursos aconteceu nos bairros mais pobres e teve implicações particularmente sérias para as mulheres e populações afro-americanas em cidades mais antigas, como Cleveland e Baltimore. Enquanto isso, os banqueiros de Wall Street – que nos anos prósperos ficaram imensamente ricos com o negócio – ganham bônus enormes mesmo quando perdem o emprego por causa das dificuldades financeiras. “O impacto redistributivo da perda dos investimentos em imóveis de milhões de pessoas e os enormes ganhos em Wall Street aparecem como um caso contemporâneo de forte predação e roubo legalizado típico da acumulação por desapossamento.”305

Trata-se de um mecanismo pelo qual o capitalismo, por meio de seu sistema financeiro, acumula excedentes produtivos para viabilizar a continuidade do sistema sociorreprodutivo vigente. Nada mais prático que valer-se de normas e instituições jurídicas para fazer valer o sagrado direito de propriedade: concede-se crédito por meio de contrato de mútuo, o qual extrai o salário do trabalhador a pretexto de que realize suas necessidades habitacionais; caso não pague, o contrato está garantido por alienação fiduciária, basta comprovar em Juízo a inadimplência e a propriedade se consolida para o agente financeiro. Um dos sintomas de que a habitação é um excelente meio para escoar os excedentes via financeirização se vê nos esforços do Banco Mundial para expandir a titulação da terra em países subdesenvolvidos (recorrendo, se o caso, ao

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

conceito jurídico de segurança da posse, como se verá adiante) para, no limite, estimular o mercado de crédito. Busca-se com isso homogeneizar os institutos jurídicos, transformar em propriedade privada comercializável as diferentes formas de posse, de modo a expandir o sistema de crédito e ampliar globalmente os locais disponíveis para aplicação lucrativa de excedentes. Deve ficar claro o papel dos bancos e do sistema de crédito como organizadores da acumulação e da expansão do capitalismo. Este papel só se efetiva em meio ao complexo sistema sociometabólico que transforma o trabalho realizado pelo trabalhador assalariado em salário, lucro, renda juros e impostos. Harvey faz uma observação crucial sobre os juros bancários: “Ficaríamos surpresos se nos informassem que o dinheiro original que depositamos numa caderneta de poupança por 5% de juros, por exemplo, não nos pertence mais depois de alguns anos. No que nos diz respeito, o capitalismo parece ser capaz de botar seus próprios ovos de ouro. Mas é legítimo perguntar de onde vêm s 5%, e, se Marx está certo, eles só podem vir da mobilização e da apropriação do mais-valor de alguém, em algum lugar. É inquietante pensar que esses 5% talvez venham da exploração cruel de trabalho vivo na província de Cantão, na China. Nossa superestrutura legal insiste em preservar os direitos originais de propriedade, assim como o direito de usar esses direitos para ter lucro. Mas os direitos de propriedade resultam do poder de classe do capital de extrair e manter o controle dos excedentes, porque a foça de trabalho se tornou, por processos históricos específicos, uma mercadoria comprada e vendida no mercado de trabalho. O que Marx diz aqui implica que para desafiar o capitalismo, é necessário desafiar não apenas a noção de direitos, o modo como as pessoas pensam sobre os direitos e a propriedade, mas também os processos materiais por meio dos quais os excedentes são criados e apropriados pelo capital”306.

Realmente, o direito garante a remuneração do capital bancário. No Brasil, o constituinte tentou limitar os abusivos juros bancários no artigo 192, par. 3º da Constituição Federal: “As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano”. E o dispositivo ia fundo “a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura,

304 D. HARVEY, Para Entender o Capital – Livros II e III, 2014, p. 170. 305 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 298.

148

306 D. HARVEY, Para Entender O Capital – Livro I, 2013, p. 240.

149

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar”. Mas a realidade não se dobrou à vontade do constituinte de submeter os agentes financeiros. O STF entendeu que a norma não era autoaplicável, necessitando de lei complementar (súmula 648 - A norma do § 3º do art. 192 da Constituição, revogada pela EC 40/2003, que limitava a taxa de juros reais a 12% ao ano, tinha sua aplicabilidade condicionada à edição de lei complementar). O constituinte derivado deu o golpe de misericórdia na “norma” com a EC 40/2003, revogando inteiramente o dispositivo. O sistema financeiro é livre para espoliar e acumular à taxa de juros que entender “tecnicamente” aplicável. Todo o gigantesco sistema jurídico viabiliza os processos materiais do sociometabolismo do capital. A transação legal aparece como mediação crucial na interação entre a produção e o crédito. Mas, como forma, ela a expressa, não a determina, conforme lição de Marx já mencionada: “As formas jurídicas em que essas transações econômicas aparecem como atos de vontade dos participantes, como expressões de sua vontade comum e como contratos cuja execução pode ser imposta à parte individual por meio do Estado não podem, como simples formas, determinar esse conteúdo. Elas apenas o expressam. Esse conteúdo é justo contanto que corresponda ao modo de produção, que lhe seja adequado.”307

O direito é manejado para que se adeque ao modo de produção capitalista. Este se encontra num estágio de “financeirização”, isto é, um estágio de crescente poder do capital financeiro, que, para alguns, inclusive, suplanta o capital produtivo – a relação, em verdade, é dialética, já que um não existe sem o outro. Não à toa, o aparecimento da terra como propriedade privada e como valor de troca leva ao desenvolvimento também de um mercado de crédito, enredando a questão da habitação nos circuitos da financeirização. Exemplo histórico do desenvolvimento do mercado de crédito é o do início da aceitação, por parte dos bancos, de imóveis urbanos “como garantia de empréstimos a fazendeiros de café”, em 1900308.

307 K. MARX, O Capital – Crítica da Economia Política. O Processo Global de Produção Capitalista, 1986, p. 256. 308 R. ROLNIK. A cidade e a Lei. Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo, 1997, p. 25, citando MELLO, Marcus André B.C. de. “O estado, o boom do século e a crise de habitação. Rio de Janeiro e Recife (1937-1946) In GOMES, Ana Fernandes e Marco Aurélio F. (org.). “Cidade e História: modernização das cidades brasileiras nos séculos XIX e XX, Salvador, UFBA, 1992, p. 147.

150

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

O direito garante também a acumulação crescente de propriedades, gerando um sistema de rentismo cada vez mais ampliado no capitalismo “avançado”. Tudo sob beneplácito jurídico, já que a irracionalidade do capital monetário é funcional ao capitalismo. Em que sentido é funcional ou alicerce do capitalismo? Conforme expõe Harvey, o sistema de crédito é “uma espécie de sistema nervoso central por meio do qual a circulação total do capital é coordenada. Ele permite a realocação do capital monetário entre as atividades, firmas, setores, regiões e países. Promove a articulação de diversas atividades, uma divisão incipiente do trabalho e uma redução nos tempos de rotação. Facilita a equalização das taxas de lucro e arbitra entre as forças que contribuem para a centralização e descentralização do capital. Ajuda a coordenar as relações entre os fluxos de capital fixo e capital circulante. A taxa de juros reduz os usos atuais em contraposição às exigências futuras, enquanto formas de capital fictício vinculam os fluxos do capital monetário atual com a antecipação dos frutos futuros do trabalho”.309

Em razão de todas estas funções, no setor da habitação, “qualquer aumento no fluxo de crédito para a construção de moradias” é “atualmente de pouco proveito sem um aumento paralelo no fluxo das finanças hipotecárias para facilitar a aquisição de moradias”. No Brasil, a alienação fiduciária, não a hipoteca, é o instrumento jurídico mais utilizado hoje, dando maior eficiência institucional em caso de necessidade de retomada do imóvel do mutuário inadimplente. E o complexo de subsídios, créditos e contratos de financiamentos é essencial para permitir o funcionamento do Programa Minha Casa, Minha Vida. O desenvolvimento do mercado financeiro da habitação é a degenerescência do “direito à moradia”. A expansão do capital financeiro tem uma fórmula para o desenvolvimento imobiliário e habitacional: a titulação da propriedade e a sua transformação em ativo financeiro. Os processos de titulação não levam à “segurança da posse” dos trabalhadores, à segurança no acesso aos meios de subsistência do trabalhador, mas à segurança da acumulação capitalista. O desenvolvimento do mercado imobiliário, a formação de grandes empresas de construção e incorporação, mediadas pelo mercado financeiro, é que é a finalidade última da expansão da titulação. Esta é uma estratégia de espoliação dos ativos 309 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 374.

151

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

territoriais que estão nas mãos dos mais pobres, um processo de acumulação por desapossamento que se aprofunda no período neoliberal310. A transformação de propriedades coletivas em títulos individuais inequívocos permite expandir a fronteira do capitalismo para outros territórios e aplacar crises alhures. Cria, ainda, novas carências materiais ao retirar destas populações a habitação como meio de subsistência, de modo a torna-las “livres” para trabalhos produtivos no esquema do sociometabolismo do capital. A funcionalidade dos programas de habitação é plena ao se apoiar no sistema de crédito. Associado à prevalência do valor de troca e da dimensão de mercadoria das habitações, desenvolve-se um sistema de crédito para permitir que as classes trabalhadoras tenham acesso a tais imóveis - e é o próprio desenvolvimento deste sistema de crédito impulsiona os preços para cima e implica, num círculo vicioso, em mais dependência dos assalariados do sistema de crédito para ter acesso à habitação em forma de propriedade. O capital monetário se autorreproduz. Como esclarece Harvey sobre o processo de aumento do crédito em geral que ocorreu nos EUA, “a lacuna entre o que o trabalho estava ganhando e o que ele poderia gastar foi preenchido pelo crescimento da indústria de cartões de crédito e aumento do endividamento. Nos EUA, em 1980 a dívida familiar agregada era em torno de 40 mil dólares (em dólares constantes), mas agora é cerca de 130 mil dólares para cada família, incluindo hipotecas...”311 Especificamente no que diz respeito às habitações postas no mercado imobiliário, Harvey explica que “Instituições financeiras como Fannie Mae e Freddie Mac foram pressionadas politicamente para afrouxar os requerimentos de crédito para todos. As instituições financeiras, inundadas com crédito, começaram a financiar a dívida de pessoas que não tinham renda constante. Se isso não tivesse acontecido, então quem teria comprado todas as novas casas e condomínios que os promotores de imóveis com financiamento estavam construindo? O problema da demanda foi temporariamente supe-

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

rado, no que diz respeito à habitação, pelo financiamento da dívida dos empreendedores, assim como dos compradores. As instituições financeiras controlavam tanto a oferta quanto a demanda por habitação!”312

Ora, se o controle e a demanda por habitação são controlados por instituições financeiras, não pode haver nada mais secundário do que um “direito à moradia” ou “direito à moradia”. A Relatora Especial sobre direito à moradia da ONU, em análise a partir da realidade de diversos países, apontou que “Políticas de habitação têm de maneira crescente se reduzido a sistemas de financiamento de habitação. O atual paradigma predominante das políticas de habitação sustenta que os mercados financeiros de habitação, se bem concebidos e regulados, pode fornecer acesso a uma habitação condigna para todos os segmentos da sociedade. O financiamento habitacional também se tornou um pilar central dos mercados financeiros globais, fundamental para o desenvolvimento do sector financeiro no país e a nível internacional. 63. Três principais mecanismos de financiamento de habitação (empréstimos hipotecários sub-prime, os subsídios da oferta e microfinanças de habitação) foram promovidos para facilitar especificamente o acesso das famílias de baixa renda ao financiamento habitacional, promovendo a propriedade de imóveis para habitação. Estas políticas têm sido implementadas no contexto de uma mudança do papel do Estado de fornecedor de habitação a preços acessíveis para facilitador dos mercados financeiros e habitação. 64. Tendo examinado o impacto destas políticas em várias regiões do mundo, o ponto de vista do Relator Especial é de que eles falharam enormemente na promoção do acesso à moradia adequada para os pobres. As evidências indicam que as políticas de habitação com base exclusivamente em facilitar o acesso ao crédito para a casa própria são incompatíveis com a plena realização do direito à moradia adequada das pessoas que vivem na pobreza, deixando de fornecer soluções de habitação digna, acessíveis e bem localizadas aos pobres. 65. Políticas de financiamento habitacional baseadas em crédito são inerentemente discriminatória contra famí-

310 Grosso modo, esse “é um novo estágio do capitalismo que surgiu na esteira da crise estrutural da década de 1970. Ele expressa a estratégia das classes capitalistas aliadas aos administradores de alto escalão, especificamente no setor financeiro, de reforçar sua hegemonia e expandi-la globalmente, conforme G. Duménil e D. Lévy, A Crise do Neoliberalismo, 2014, p. 11. 311 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 22.

152

312 D. HARVEY, O Enigma do Capital, 2011, p. 22.

153

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

lias de baixa renda, e no seu melhor aumentam a acessibilidade da habitação para grupos de alta e média renda”313.

O sociometabolismo do capital não pode oferecer mais do que discriminação, por mais bem intencionadas que sejam as garantias jurídicas. Exemplos trágicos disso são as políticas de habitação social desenvolvidas no Brasil, as quais, embora inicialmente destinadas às populações de baixa renda, acabam se desvirtuando e atendendo a faixas mais altas de renda, excluindo em especial as faixas de renda entre 0 e 3 salários mínimos, cuja situação de vulnerabilidade social é agravada por múltiplos aspectos, a começar pela exclusão habitacional. Por questões como esta que a recomendação 8 do relatório em questão preconize a mistura dos sistemas de posse, incluindo um setor de habitação pública não ligado a mercados liberalizados ou esquema de aluguéis regulados ou com limitação de renda. Dito diretamente, o “direito à moradia” subordina-se às regras do sociometabolismo do capital, e apenas se realiza na medida em que este permite. Assim, tal direito, sancionado pelo Estado, não passa de retórica vazia à luz do desenvolvimento real do capitalismo, em que as “moradias” são construídas para serem mercadorias, constantemente tratadas como um “investimento” até mesmo pelas populações de baixa renda. Mais amplamente, no que tange à regulação urbanística e à regulação do mercado de terra, este processo de financeirização transfere drasticamente o poder de decisão para os agentes econômicos, em detrimento dos agentes estatais e dos processos democráticos e participativos de decisão. Especificamente no que tange à habitação, esta passa a aparecer cada vez mais como um ativo financeiro, fragilizando políticas sociais. Para concluir este tópico: a questão da habitação depende da propriedade privada no contexto do sociometabolismo do capital. A acumulação por despossessão e o sistema de crédito são alicerces básicos deste sistema. No Brasil, dito nos dias de hoje “país em desenvolvimento”, a insuficiência do sistema de crédito privado leva à centralidade do Estado na administração do crédito para programas habitacionais. Tal é feito por meio do banco público Caixa Econômica Federal. A espoliação necessária à expansão do capital precisa do sistema de crédito – e pouco importa se ele é gerido pelo Estado ou por agentes financeiros privados. 313 Tradução livre do trecho de ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Relatório da Relatora Especial para o Direito à Moradia Adequada, 10 ago. 2012, A/67/286, disponível em http://www. ohchr.org/Documents/Issues/Housing /A-67-286.pdf, acesso em 25 mar. 2016.

154

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

3.3.3. Experimentos de movimentos sociais no PMCMV Movimentos sociais conseguiram reservar uma parcela do PMCMV para a construção de imóveis por meio de suas próprias organizações e para a requalificação de imóveis. Trata-se das modalidades do PMCMV-Entidades e PMCMV-Requalificação de imóveis. Ambas as modalidades são residuais se comparadas com a modalidade principal314. Deve-se examinar mais de perto o alcance destas “conquistas”. A primeira modalidade se destina a famílias com renda até três salários mínimos e é custeada pelo Fundo de Desenvolvimento Social – FDS315. Um dos benefícios conseguidos pelos movimentos foi a previsão de “recursos para a aquisição de terras previamente à aprovação dos projetos”316. A construção dos imóveis deve ser feita por meio de entidades sem fins lucrativos, como cooperativas e associações. Um dos principais efeitos desta modalidade do programa é a burocratização dos movimentos sociais, que passam a despender grandes energias para construir imóveis, tendo que passar por todas as etapas formais normalmente realizadas profissionalmente pelas construtoras. No contexto geral já explicitado acima, em que avanços urbanísticos demandariam luta social, aparece como muito conveniente ao mercado imobiliário que os movimentos sociais estejam dedicados a esta produção habitacional. Como observou ROLNIK, “embora em pequena escala e com grandes dificuldades para operar um programa desenhado para construtoras, movimentos sociais obtiveram ganhos relevantes com o MCMV no sentido de atender às suas bases, compostas principalmente por famílias em busca de uma moradia... Assumindo uma parcela pouco significativa das moradias produzidas e utilizando, sobretudo, sua representação nos conselhos, os movimentos passaram a integrar o jogo do controle da distribuição dos ativos polí-

314 Como já apontado neste trabalho, R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 301, aponta que “Desde o lançamento do programa, MCMV-Entidades e PNH-Rural representam, juntos, 1% do total de unidades e recursos do MCMV”. 315 Este fundo foi instituído pela lei n. 8.677/1993 e regulamentado pelo Decreto 1081/1994. 316 N. BONDUKI, Pioneiros da Habitação Social no Brasil. Volume 3, 2014, p. 122

155

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

ticos do governo, juntamente com lideranças e grupos partidários que compõem sua base”317

Como não há margem de lucro na construção destes imóveis, a qualidade dos mesmos tende a ser maior do que as do PMCMV-Construtoras. Um dos imóveis construídos pelo MTST em Taboão da Serra explicita isto: os apartamentos têm até 63 metros quadrados (3 quartos), enquanto os da modalidade construtoras em regra o mínimo de 39,6 metros quadrados (na fase 1 do programa a área mínima era de 42 metros quadrados). Fato é que, no desenho geral da política pública, os movimentos sociais aparecem, por um lado, como meros concorrentes das construtoras, disputando com elas recursos, terrenos e material de construção; por outro, como meros gestores de recursos, uma vez que a construção em si, embora também possa ser feita pelo sistema de mutirão, não raro é realizada por meio da contratação... de uma construtora! Os movimentos sociais, assim, conquistam o direito de construir suas próprias moradias por meio de construtoras que contratam. Certamente, não parece ser o tipo de conquista que vá emancipar a classe trabalhadora. Mas é o tipo de vitória jurídica que se reserva às lutas por direitos: no limite, o movimento social se torna um aparelho gestor da falta de moradias318. O movimento social é capturado pelo direito, mais ou menos como o sindicato se torna aparelho ideológico do Estado, “um aparelho que ‘gere’ a classe operária: planejamento, eficiência, ordem e subordinação, são as palavras-chave da tecnoestrutura”. A luta passa a se dar cada vez mais no terreno jurídico, na arena das políticas públicas – as armas da luta são dadas pelo direito e pela política. As energias do movimento são gastas para construir moradias. Não se pode mais dizer que haja movimento de transformação social radical se a luta é brecada neste ponto. Mesmo sendo este um eficaz instrumento de captura e cooptação da classe trabalhadora, o combate ideológico de direita à modalidade MCMV-Entidades é realizado pela via imprensa, como se verifica na Folha de São Paulo, que acusou as entidades de “furar a fila” do atendimento habitacional319; e pelo 317 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 309. 318 B. EDELMAN, A legalização da classe operária, 2016, p. 123. 319 A urbanista Raquel Rolnik escreveu texto em resposta ao editorial da Folha, http://www1.folha.uol. com.br/ colunas/raquelrolnik /2014/12/1555744-onde-mora-a-ideologia.shtml, acesso em 06 jan. 2016, em texto intitulado “Onde Mora a Ideologia?”.

156

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Estado, como se vê com a abertura de inquérito civil pelo Ministério Público do Estado de São Paulo320, pelo mesmo argumento, fundando o entendimento em suposta afronta ao princípio da isonomia. A questão virou objeto da disputa palaciana em 2016: a presidente Dilma Rousseff, às vésperas do seu afastamento da presidência, editou portaria autorizando a Caixa Econômica Federal a contratar 11.250 unidades. Um dos primeiros atos do governo interino foi revogar a portaria, sob argumento de “liberar amarras ideológicas e a burocracia que dificultam a execução das obras”321. O governo interino se revela mais afeito à repressão do que à cooptação. A outra proposta emplacada por movimentos sociais foi o PMCMV-Requalificação de imóveis urbanos. Deve-se observar que já o art. 1º da Lei 11.977/2009 previa que “O Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV tem por finalidade criar mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias com renda mensal de até R$ 4.650,00”, prevendo ainda a “aquisição de imóveis conjugada com a execução de obras e serviços voltados à recuperação e ocupação para fins habitacionais, admitida ainda a execução de obras e serviços necessários à modificação de uso”. Tal modalidade do programa por si só se aproximaria de finalidades urbanísticas e poderia ser levada a cabo em conjunto com outros instrumentos para recuperar imóveis urbanos abandonados. Porém, ela praticamente não saiu do papel. Em 2012, “em reunião realizada em agosto de 2012 em São Paulo, organizada pelo Sindicato de Corretores de Imóveis (CRECISP), com a participação de sindicatos de engenheiros e arquitetos, além de numerosos movimentos populares por moradia, [criticou-se a] falta de mecanismos institucionais e de incentivos para financiamento de reformas de moradias subutilizadas e demandam que o PMCMV incorpore a ‘inclusão e melhoria de imóveis existentes’”322

320 http://www.mpsp.mp.br/portal/pls/portal/!PORTAL.wwpob_page.show?_docname=2553127.PD acesso em 06 jan. 2016.

F,

321 http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/05/1772207-ministro-revoga-construcao-de-11250-uni dades-do-minha-casa-minha-vida.shtml, acesso em 27 mai. 2016. 322 M. R. LOUREIRO et. al., Democracia, Arenas Decisórias e Políticas Públicas: o Programa Minha Casa Minha Vida, 2013, p. 27.

157

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Mas esta continuou sendo uma das principais demandas não atendidas pelo programa. Deve-se observar que, na ausência de instrumentos urbanísticos de repressão ao uso especulativo destes imóveis degradados, o único meio disponível ao poder público seria a desapropriação dos mesmos para destinação a habitação social. Somada à requalificação, esta modalidade do programa é completamente proibitiva. Tal modalidade seria melhor aproveitada se os Municípios implementassem o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios e o IPTU progressivo. Mas isto seria possível apenas se a finalidade fosse aplacar as necessidades habitacionais dos trabalhadores, ao invés de promover o abstrato “direito à moradia”. Mesmo a busca por aplacar “exclusões sociais” pode ser funcional à continuidade da reprodução do capitalismo em dado momento. O efeito principal das propostas que buscam aplacar estas “exclusões sociais” é aceitar o terreno da luta jurídica, os limites dos sistemas jurídicos e políticos. O que fica claro com os experimentos aqui mencionados é que a única participação social possível é a dos capitalistas, das personificações do capital323.

3.4. Alienação fiduciária como instrumento jurídico de controle fundiário O acesso ao financiamento imobiliário tem sido feito principalmente por meio de alienação fiduciária do imóvel. O não pagamento das parcelas do financiamento ocasiona a consolidação da propriedade para o agente financiador. A alienação fiduciária é definida como sendo “o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel” (art. 22, Lei 9.514/97). Observe-se que a Lei 9.514/97 dispõe que “Art. 17. As operações de financiamento imobiliário em geral poderão ser garantidas por: I - hipoteca; II - cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis; III - caução de

323 Isto está na própria genética do programa, como expõe R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 301: “o ‘pacote’ foi elaborado pelo governo em diálogo direto com os empresários e investidores envolvidos e, inicialmente, tinha como objetivo salvar as empresas da débâcle e, ao mesmo tempo, funcionar como medida contracíclica para garantir empregos e crescimento num cenário internacional desfavorável”.

158

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

direitos creditórios ou aquisitivos decorrentes de contratos de venda ou promessa de venda de imóveis; IV - alienação fiduciária de coisa imóvel.”

A alienação fiduciária passou a ser mais comumente usada porque dá uma vantagem jurídico-institucional ao agente financeiro: a propriedade, juridicamente, é deste, não da parte tomadora do empréstimo. Isto significa que, em caso de inadimplência, a propriedade “se consolida” nas mãos do emprestador, que pode retomá-la rapidamente com uma ordem judicial ou até mesmo pela via extrajudicial, junto ao cartório de imóveis324. Ela difere da garantia hipotecária, que exige uma demanda judicial para apurar o saldo devedor, podendo levar anos para o imóvel ir a hasta pública. Após, com a arrematação do bem, o adquirente deve socorrer-se do judiciário para desocupar o bem. A alienação fiduciária agiliza o processo de despojamento. Esta é a sua astúcia: fazer aparecer juridicamente a necessidade premente do sociometabolismo do capital, a necessidade de uma forma mais eficiente de desapossamento. Marx, falando do dinheiro emprestado pelo capitalista prestamista ao capitalista industrial diz: “O primeiro dispêndio, que transfere o capital das mãos do prestamista para as do mutuário, é uma transação jurídica, que nada tem a ver com o processo real de reprodução, mas apenas o encaminha. O reembolso, que transfere novamente o capital refluído das mãos do mutuário para as do prestamista, é uma segunda transação jurídica, o complemento da primeira; uma encaminha o processo real, a outra é um ato posterior a esse processo. Ponto de partida e ponto de retorno, entrega a restituição do capital emprestado, aparecem assim como movimentos arbitrários, mediados por transações jurídicas e que ocorrem antese depois do movimento real do capital, e que nada têm a ver com o próprio. Para este, seria indiferente se o capital pertencesse de antemão ao capitalista industrial e, por isso simplesmente refluísse para ele como sua propriedade.”

Pode-se dizer o mesmo do desapossamento jurídico: é indiferente se a propriedade pertence de antemão ao mutuário ou ao mutuante. Ao capital interessa que o processo possa se dar da maneira mais célere possível e foi isso que a introdução da alienação fiduciária pretendeu promover no Brasil.

324 Conforme artigos 26 e 27 da Lei 9.514/97.

159

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Isto deixa especialmente vulneráveis os beneficiários da faixa 1, que tendem a ter rendimentos mais instáveis e mais influenciados pela inflação. Garantias de refinanciamento da dívida em caso de comprovada dificuldade financeira sequer foram previstas. No mais, como já apontado, o programa deixou de prever mecanismos para evitar compra e venda especulativa dos imóveis, podendo o comprador passar estes ao mercado sem qualquer restrição antes mesmo de ser finalizado o financiamento (observe-se que os prazos de financiamento vão de 10 a 30 anos325; na verdade, a única restrição é a impossibilidade pessoal de ser beneficiado novamente pelo programa). Num contexto de mercado, a própria previsão contratual entre agente financiador e mutuário vedando a alienação do imóvel antes do fim do financiamento ou dentro de determinado prazo é altamente problemática, já que acaba gerando um “mercado ilegal” destes imóveis. Isto tem ocorrido há tempos em São Paulo, onde tanto COHABs (companhias municipais de habitação) como CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo) movem reiteradamente ações judiciais para retomar imóveis de pessoas que os adquirem via “contratos de gaveta”, indo contra as regras contratuais que dificultam a alienação do imóvel a terceiros (a CDHU impede a venda nos primeiros 10 anos de financiamento e exige sua anuência; a COHAB-São Paulo exige autorização formal para a venda do imóvel). Uma das causas da inadimplência diz com o comprometimento da renda das pessoas de baixa renda com o crédito imobiliário e com os gastos com o imóvel. Mesmo que o valor que a faixa 1 de renda tenha que pagar seja de apenas 5% da renda – o que não é nada desprezível para quem está nos estratos mais baixos desta faixa de renda326 – outro aspecto que pesa para estas pessoas é a necessidade de arcar com novos gastos decorrentes da moradia própria, em especial as taxas condominiais e outras despesas de manutenção do imóvel. Segundo Raquel Rolnik, a prestação pode chegar a representar 17% da renda na faixa 1 e, “quando se adiciona o valor da taxa condominial, o comprometimento médio já dá um primeiro salto, passando para quase 40% da renda nessa faixa”, sendo que o comprometimento pode chegar a 77% da renda quando se incluem as

325 Na faixa 1, o prazo é de 10 anos. Nas demais faixas, o prazo pode ser de até 30 anos. 326 Como se sabe, famílias de menor renda concentram seus gastos nos itens de consumo mais essenciais à subsistência.

160

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

contas de água, luz e gás327. Deve-se, ainda, pensar nos gastos com transportes que pesarão sobre estes trabalhadores, tendo em vista a localização periférica das moradias, distantes de locais de trabalho. Em termos históricos, assiste-se a “mais do mesmo”, conforme se lê na crítica de L. Kowarick aos programas habitacionais da década de 1970: “as agências governamentais têm empregado vultuosos recursos no financiamento das habitações. Contudo, a imensa parcela dos montantes empregados segue uma lógica de financiamento ditada pela lei do lucro, destinando-se aos estratos de renda que podem pagar o preço de mercado da construção habitacional”. Até mesmo os programas que se destinam para a assim chamada demanda de ‘interesse social’, não só são quantitativamente pouco expressivos, como também, frequentemente, as camadas que deveriam ser beneficiadas não têm condições de amortizar as prestações previstas pelas fantasiosas soluções oficiais. O resultado é que as habitações ou ficam vazias ou acabam sendo transferidas para os grupos de renda mais elevada enquanto que as pessoas a quem se destinavam os programas subsidiados pelo poder público acabam voltando às suas condições originais de moradia, que, aliás, são aquelas que a imensa parcela da classe trabalhadora precisa adotar para continuar se reproduzindo nas cidades”328.

Certamente, o PMCMV poderia levar à redução do valor da força de trabalho, por meio da realização do meio de subsistência habitação. Porém, a efetivação do programa deixa clara a inviabilidade desta realização. A necessidade habitação não pode efetivar-se para todos os trabalhadores sem alterações estruturais e o PMCMV é mais um mecanismo que supostamente combate o “déficit habitacional”, quando, na verdade, apenas viabiliza a reprodução do sociometabolismo do capital de acordo com o específico contexto em que este sem encontra. É dizer, o programa consolida a hegemonia da propriedade privada (do “sonho da casa própria”) e o faz valendo-se da alienação fiduciária. 327 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 314-315. Em outro texto, R. ROLNIK, http://raquelrolnik. wordpress.com/2012/09/19/minha-casa-minha-divida/, acesso em 07 dez. 2014, afirma que “Uma família que compromete parte considerável de sua renda no pagamento de um imóvel corre o risco de ter que rebaixar suas condições de vida – alimentação, saúde e educação, por exemplo – para conseguir pagar as prestações”. 328 L. KOWARICK, A Espoliação Urbana, 1979, p. 60.

161

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Aquela hegemonia decorre das necessidades de expansão do capitalismo, de expansão global da propriedade privada (e de sua trocabilidade) para permitir o mais livre trânsito financeiro. A alienação fiduciária garante a retomada rápida do imóvel pelo agente financeiro, que logo poderá comercializá-lo novamente e continuar a extração de juro sobre o capital.

3.5 Algumas conclusões sobre a política habitacional da “casa própria” Deve ficar claro que, no que tange ao direito à moradia, a política pública realmente existente no Brasil é, na verdade, uma política voltada ao estímulo e expansão do capitalismo local, da construção civil e do mercado imobiliário. O Programa Minha Casa, Minha Vida apareceu como uma das propostas para enfrentar a crise internacional e teve como efeito prático enterrar de vez as discussões sobre um Plano Nacional de Habitação. Como aponta Rolnik, “De pacote de salvamento de incorporadoras financeirizadas, o MCMV transformou-se na política habitacional do país, baseada no modelo único de promoção da casa própria, acessada via mercado e crédito hipotecário. Abortou-se, assim, a incipiente construção de uma política habitacional diversificada, aderente às especificidades locais e sob controle social, aposta dos movimentos sociais e dos militantes da reforma urbana no início do governo Lula”329.

O programa tem diversos problemas em seus arranjos institucionais quando se trata de articular política urbana e fundiária e política de habitação. Mas não se pode dizer que sejam problemas despropositados. Ao invés disso, trata-se de consequência da implementação de um modelo de política habitacional de estímulo ao mercado, em detrimento de um modelo de planejamento urbanístico-habitacional. Esta prevalência se amolda bem ao papel do Estado no período neoliberal, ao qual cabe criar mercados onde não existem e realizar a inclusão social de maneira pontual, por meio de compensações sociais e da inclusão dos pobres no mercado de consumo (criação e ampliação

329 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 309.

162

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

de mercados). Este modo de inclusão social visa a preservar e ampliar os espaços de reprodução do capital. Assim, no âmbito do PMCMV, identifica-se claramente a mercantilização da questão habitacional. Um serviço público de acesso universal à habitação não estava em questão e não poderia estar – o que interessa primordialmente à política pública é otimizar a reprodução do capital. Mediante a comprovação da ausência de recursos para pagar por uma habitação, se acessa o crédito e o subsídio estatal focalizado. Os subsídios aparecem aí com caráter compensatório, como resposta a carências pela via da inclusão dos pobres no mercado. Apontou-se que uma das funções do Estado, para a doutrina neoliberal, é a de criação de mercados nos casos em que tais mercados inexistem. No que se refere à habitação para a população de baixa renda, o Estado brasileiro, com o Programa Minha Casa, Minha Vida, desenvolveu justamente um programa de criação de mercado para esta parcela da população, buscando a sua inserção nos circuitos imobiliários formais, consolidando o projeto dos governos petistas de inclusão social pelo consumo330. Assim, não se está diante de um programa cuja finalidade seja a efetivação universal de um direito social ou que se articule num conjunto de políticas típicas de Welfare State. Ao contrário, o programa privilegia o aspecto macroeconômico e o desenvolvimento capitalista (com as marcas do desenvolvimento periférico), consagrando a liberdade de circulação do capital como marca deste desenvolvimento. Por outro lado, desestimula intervenções urbanas/urbanísticas, consagrando a propriedade privada e a sua livre alienação. O PMCMV reproduz a segregação espacial das cidades brasileiras, dando eficiência capitalista ao modo tradicional de expansão destas cidades e de especulação imobiliária – ocupação de periferias cada vez mais distantes, sem infraestrutura, pelos trabalhadores de menor renda. O papel do direito e da política é marcante neste processo, em especial pelos espaços de liberdade de 330 A inclusão social pelo consumo foi a marca do governo Lula. Uma interpretação sobre as possíveis consequências deste modo de inclusão social é dada por G. BOULOS, De que Lado Você Está, 2015, p. 13, discutindo o modelo conciliatório e despolitizador do governo Lula, observa que “Uma ascensão social pelo consumo cria consumidores, que pensam com a cabeça de consumidores. O discurso individualista e meritocrático, que abomina a solidariedade, não é nenhum intruso aí. Por isso, não surpreende tanto assim o forte discurso antipetista entre beneficiários do ProUni, diagnosticado durante a campanha de 2014. A estratégia da conciliação foi despolitizadora e bloqueou a criação de uma base social duradoura de defesa do projeto”. Neste sentido, uma ascensão social pelo reconhecimento de direitos poderia ter criado cidadãos, mas não foi este o caso do período lulo-

163

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

mercado - espaços em que o direito incide apenas como regulador de processo, como esqueleto de políticas públicas de incentivo a mercados e como meio de contenção de propostas de planejamento urbanístico e de reivindicações de movimentos populares, as quais podem até ser garantidas em normas positivas, mas que só podem ser efetivadas na medida em que permitam a reprodução do sistema sociometabólico e o controle social. Ademais, o PMCMV é peça central no projeto petista de inclusão via mercado, consolidando o papel dos indivíduos como sujeitos de direito livres e proprietários não só de sua força de trabalho, mas de um bem que pode ser dado em garantia num mercado de crédito desenvolvido. A conclusão inevitável é que o PMCMV não necessariamente implica numa melhoria dos níveis de subsistência da população de baixa renda. Administrar um financiamento de pelo menos dez anos, residindo em local periférico, em geral sem infraestrutura social básica, deve levar ao agravamento da situação individual. O desenvolvimento das regiões periféricas da cidade onde se encontram estes imóveis, com a expansão de serviços sociais públicos, não será imediato. Os mecanismos de mercado continuarão a excluir a população de baixa renda, em especial quando se consolidar um mercado destes imóveis destinados aos trabalhadores mais pauperizados. Tanto o Projeto Moradia, que embasaria o Plano Nacional de Habitação, como o PMCMV, mobilizam a linguagem da realização do direito à moradia para a população de baixa renda. São políticas que seguem modelos com diferenças marcantes – o modelo do planejamento urbanístico-habitacional e o modelo do estímulo ao mercado. A disputa entre aqueles modelos se dá nos marcos do sistema sociometabólico do capital e, por isso, ambas podem mobilizar a linguagem do direito à moradia. A diferença é que, para o modelo de estímulo ao mercado, alinhado ao modelo capitalista neoliberal, os direitos sociais, dentre eles o direito à moradia, devem ser tratados como instrumentos de controle do acesso da classe trabalhadora aos meios de subsistência elementares; ou como bens a serem distribuídos por meio de um mercado capitalista. O PMCMV justamente permite o acesso à habitação via mercado e mantém o trabalhador vinculado a um financiamento garantido por alienação fiduciária. Já o modelo de planejamento urbanístico-habitacional exigiria profunda intervenção estatal petista. De qualquer modo, esta é uma querela ainda interna à superestrutura política, não poderá oferecer mais que “cidadania” e garantias de “direitos”.

164

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

na propriedade privada e na renda patrimonial, num tipo de atuação desconectada da cartilha vigente sobre o papel do Estado. De qualquer modo, a concepção jurídica de direito à moradia não poderia ser implementada universalmente no contexto da reprodução sociometabólica do capital, em que as garantias jurídicas de direitos sociais devem servir, no máximo, à subsistência básica dos trabalhadores mais pauperizados, é dizer, à manutenção da separação entre trabalhador e meio de subsistência. O controle exclusivo do capitalismo, via Estado, sobre o conjunto dos frutos do trabalho, determina a forma específica da política pública de habitação vigente. Outras maneiras de realizar as necessidades habitacionais das pessoas e de evitar o uso especulativo da terra poderiam ser levadas adiante por meio de conquistas dos trabalhadores nos marcos do sistema sociometabólico do capital – mas as discussões sobre elas só podem se dar conforme estes marcos, no terreno da legalidade e das políticas públicas. No mesmo sentido em que observou B. Edelman sobre os sindicatos, pode-se dizer que, também no campo da habitação social, “a burguesia tentou – e, de certo modo conseguiu – negar às massas qualquer palavra e qualquer existência fora da legalidade”331. Apenas a superação deste sistema e do próprio direito à moradia permitiria falar em acesso do trabalhador à habitação sem a mediação da venda da força de trabalho.

331 B. EDELMAN, A legalização da classe operária, 2016, p. 111.

165

Capítulo 4. Direito à Moradia para Além da Propriedade Privada? “A barreira que a propriedade fundiária coloca entre o trabalho e a terra é socialmente necessária para a perpetuação do capitalismo” (D. HARVEY, Os Limites do Capital) A propriedade privada, na forma específica que ela assume no sistema capitalista de produção, determina o despojamento dos trabalhadores deste meio de subsistência básico que é a habitação. Apesar de fisicamente poder haver uma quantidade de imóveis suficiente para todos, as mediações jurídicas ajudam a sustentar a escassez de imóveis para habitação. No meio destas mediações jurídicas não se encontra apenas a propriedade privada e as políticas de aquisição de casa própria. Também se encontra a renda da terra urbana e o aluguel, bem como políticas públicas de proteção da posse, de acesso à moradia via “locações” públicas e de abrigamento de pessoas em situação de rua. São estas políticas de acesso à habitação que vão para além da promoção da “casa própria” que são abordadas a seguir.

4.1. Crítica da noção jurídica de segurança da posse O acesso à habitação pode se dar de diversos modos, especificamente por meio de apossamento, aluguel ou aquisição da propriedade privada de um bem imóvel. Lúcio Kowarick já descrevia o variado fenômeno na década de 1970 no Brasil: “É o aluguel de um cômodo de cortiço localizado em áreas deterioradas ou de uma casa de mínimas dimensões nas ‘periferias’ distantes da cidade, ambas as soluções implicando em condições de habitabilidade extremamente precárias e, no mais das vezes, em gastos de aluguéis que 167

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

comprimem ainda mais o já minguado orçamento de consumo das famílias trabalhadoras. A solução de sobrevivência mais econômica, mas também mais drástica, é a favela, para onde... são drenados os patamares mais pobres da classe trabalhadora”332

O que determina a prevalência deste ou daquele modo de acesso à habitação é o nível de desenvolvimento do capitalismo e de abrangência das relações sociais baseadas na propriedade privada das coisas. Ao se discutir uma política pública habitacional para a população de baixa renda, é comum se apontar que a política pública não pode ser desenhada com base apenas em financiamento habitacional, devendo prever formas de acesso variadas e proteção da posse. Isto porque a população de baixa renda não pode fazer frente ao pagamento de parcelas de financiamentos habitacionais. Aliás, não raro não podem nem mesmo fazer frente ao pagamento de aluguéis. Daí a conclusão de que o Estado deveria diversificar sua política habitacional e conferir proteção não só à propriedade, mas também à posse. A relatora da ONU para o direito à Moradia, Raquel Rolnik, se debruçou sobre esta questão e buscou consolidar a noção de que habitar não tem necessariamente relação com deter a propriedade privada de um bem imóvel. Para a relatora, a solução para a questão do acesso à moradia digna deve ir para além da proteção e promoção exclusivista do direito de propriedade, do acesso à “casa própria”. Daí recorrer ao instituto de “segurança da posse” e recomendar a criação de parâmetros legais e institucionais para assegurar a segurança da posse para várias formas de posse, incluindo a decorrente de locações333. O que se busca, no fundo, é mais proteção jurídica à posse. Este conceito de segurança da posse já era enunciado em 1976 na Conferência da ONU sobre assentamentos humanos – Habitat I, que ocorreu em Vancouver, Canadá, especificamente no Plano de Ação de Vancouver334. Enquanto 332 L. KOWARICK, A espoliação Urbana, 1979, pp. 60-61. 333 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Relatório da Relatora Especial para o Direito à Moradia Adequada, 10 ago. 2012, A/67/286, disponível em http://www.ohchr.org/Documents /Issues/Housing /A-67-286.pdf, acesso em 25 mar. 2016. 334 J. SCHELA, Security of Tenure through the Habitat Agenda, 1976–2016, P. 2, observa que “A seção C do Plano de Ação de Vancouver (PAV), “Moradia, infraestrutura e serviços”, contém a Recomendação C.8 ‘Construção pelo setor informal’, que conclama todos a ‘assegurar a segurança da posse da terra para assentamentos não planejados, se for caso disso, ou, se necessário, fornecendo para o internamento e reassentamento com oportunidade de emprego (Prioridade (i))”, tradução livre de “The VAP’s

168

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

conceito amparado na teoria dos direitos humanos, a segurança da posse parece ter muito a oferecer aos mais pobres. Mas, quando se busca conferir proteção jurídica à posse, a especificidade desta “proteção” deve ser explicitada: ela se desenvolve apenas nos limites permitidos pelo sociometabolismo do capital. Não à toa, o instituto vem sendo promovido há décadas pelo Banco Mundial, pela FAO (Organização para Alimentação e Agricultura da ONU) e por outras agências internacionais e a sua efetivação levada a cabo nestas instâncias está mais relacionada às necessidades de expansão sustentada do sociometabolismo do capital do que à realização de necessidades habitacionais. Percebe-se que há diferenças marcantes no enfoque do conceito usado pelo Banco Mundial e pela Relatora Especial para o Direito à Moradia da ONU. Para Obeng-Odoom e Stiwell, agências como o Banco Mundial tratam a segurança da posse como uma panaceia. Segundo os autores, evidências empíricas mostram que a posse segura da terra é um significante elemento para contribuir para o crescimento econômico e para a redução da pobreza335. Ocorre que o Banco Mundial, já em 1989, equiparava a segurança da posse à titulação da terra336, reduzindo drasticamente o seu alcance. Nesta perspectiva: “a posse da terra informal e costumeira é tida como transitória e efêmera, normalmente tendendo para um modelo ocidental de posse formal da terra. Consistente com essa postura, o Banco Mundial repassou a quantidade considerável de dinheiro e assistência técnica para apoio oferecido muitos países da África para obter segurança da posse da terra por meio de titulação... Assim, para o Banco, a segurança da posse acontece quando a titulação e a formalização curam o que tem sido referido como ‘primitivismo cultural’ nas comunidades onde a posse “informal” e comunitária prevalecem”337.

Section C. “Shelter, infrastructure and services” contains Recommendation C.8 “Construction by the informal sector,” which calls for “ensuring security of land tenure for unplanned settlements, where appropriate, or, if necessary, providing for relocation and resettlement with opportunity for employment” (Priority (i)).” 335 Vide F. OBENG-ODOOM e F. STIWELL, Security of tenure in international development discourse, 2013. 336 Neste sentido, F. OBENG-ODOOM e F. STIWELL, Security of tenure in international development discourse, 2013, mencionam o relatório “Land Tenure for Growth and Poverty Reduction” do Banco Mundial, onde se equipara segurança da posse com direitos de propriedade. 337 Tradução livre de F. OBENG-ODOOM e F. STIWELL, Security of tenure in international development discourse, 2013, p. 318.

169

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Esta equiparação entre segurança da posse e titulação visa, no limite, a estimular o sistema de crédito e o desenvolvimento capitalista: se a posse do bem imóvel é formalmente reconhecida pelo direito, é respaldada por um título de propriedade, então o imóvel pode ser oferecido como garantia para um empréstimo, estimulando o desenvolvimento do mercado de crédito. Um dos expoentes da ideia da titulação das terras dos pobres é o economista peruano Hernando de Soto338, para quem a pobreza estaria relacionada à dificuldade dos mais pobres de acessar os meios adequados para “enriquecer”. A promoção de soluções microempresariais e do genuíno empreendedorismo local seriam as chaves para lidar com a pobreza urbana. De fato, Hernando de Soto se tornou “internacionalmente conhecido ao defender que essa enorme população de ex-camponeses e trabalhadores marginalizados é uma colmeia frenética de protocapitalistas cobiçosos de direitos formais de propriedades e pelo espaço competitivo não regulamentado”339. As suas ideias liberais para a superação da pobreza consistiam na seguinte receita: “tirem do caminho o Estado (e os sindicatos do setor formal), acrescentem microcrédito para microempresários e títulos de posse da terra para invasores, depois deixem o mercado seguir seu curso para produzir a transubstanciação da pobreza em capital” 340. Isto levou “alguns burocratas de instituições financeiras de fomento a redefinir as favelas como ‘sistemas de gerenciamento urbano estratégico de baixa renda’”341. Em especial, o acesso ao crédito seria uma importante alavanca para superar as dificuldades para “enriquecer”. Transformando a terra irregular em instru-

338 Entre suas principais obras está H. DE SOTO, El Otro Sendero – La Revolución Informal, 1986, na qual o autor adota de uma perspectiva liberal e busca desenvolver propostas para os problemas socioeconômicos dos países subdesenvolvidos. Sintomaticamente, dada a íntima relação entre a superestrutura jurídica e a base econômica, prega que o desenvolvimento de instituições jurídicas confiáveis e a aderência da economia informal ao direito é a melhor via para o desenvolvimento. Assim, as principais soluções que oferece são a juridicização das relações econômicas informais já existentes entre os mais pobres. Direitos de propriedade e responsabilidade e exigibilidade contratual seriam o caminho para o desenvolvimento do capitalismo localmente. 339 M. DAVIS, Planeta Favela, 2006, p. 179, o trecho continua citando KRUECKEBERG, Donald, The Lessos of Jonh Locke or Hernando de Soto: What if Your Dreams Come True, In Housing Policy Debate, v. 15, n. 1, 2004, p. 2: “’Marx provavelmente ficaria chocado se descobrisse como, nos países em desenvolvimento, parte tão grande da massa transbordante não consiste de proletários legais oprimidos, mas de pequenos empresários extralegais oprimidos”. 340 M. DAVIS, Planeta Favela, 2006, p. 180. 341 Idem.

170

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

mento para a concessão de empréstimos a esta parcela da população, esta poderia deixar a condição de pobreza. Diz o economista peruano que “As casas dos pobres estão construídas sobre lotes com direitos de propriedade inadequadamente definidos, a empresas não estão constituídas com obrigações claras e as indústrias se ocultam onde os financistas e investidores não podem vê-las. Sem direitos adequadamente documentados, essas posses resultam em ativos difíceis de converter em capital, não podem ser comercializadas fora dos estreitos círculos locais onde as pessoas mantêm confiança mútua, não servem de garantia para um empréstimo nem como participação em um investimento”342.

A titulação da terra facilitaria o acesso ao crédito porque os mais pobres, então, teriam como oferecer seus imóveis como garantias às agências financeiras. Transformar a terra “irregular” em terra juridicamente regular seria a via segura para o desenvolvimento capitalista343. É dizer, para o desenvolvimento do sistema capitalista de produção importa menos a questão do acesso universal à habitação do que os meios para buscar atingir esta finalidade – e os meios são basicamente o estímulo econômico, o que se consegue conferindo titulação jurídica aos imóveis, dando às pessoas a liberdade para participar de um mercado imobiliário desenvolvido, do sistema de crédito e dos mecanismos de acumulação por espoliação. A possibilidade de tornar a terra num ativo financeiro seria a alavanca para a ampliação do acesso ao crédito. E o acesso ao crédito é uma das portas para a “liberdade, igualdade e Bentham”, para o desenvolvimento capitalista local e para sua inserção no capitalismo global. Uma condição que acelera este processo é que a terra esteja “cativa”, que não esteja livre: “Se a terra estivesse [...] à livre disposição de todos, então estaria faltando um elemento principal para a formação do capital. [...] Assim, a ‘produção’ do trabalho não remunerado de outra pessoa se tornaria impossível e isso poria um fim definitivo à produção

342 H. DE SOTO, El Misterio Del Capital, Ciudad de Mexico, Diana, 2001, p. 32, apud R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, p. 195. 343 Segundo F. OBENG-ODOOM e F. STIWELL, Security of tenure in international development discourse, 2013, p. 324, H. De Soto contrasta a escassez de sistemas de informações e de posse da terra nos países desenvolvidos com a situação dos países desenvolvidos, onde cada parcela da terra está formalmente documentada.

171

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

capitalista”344. Além disso, “quando o capital encontra situações em que a propriedade da terra não existe, ele deve dar passos ativos para criá-la e desse modo garantir a produção do trabalho assalariado”345. O que deve ficar claro é o papel de alicerce estrutural da posse e da propriedade fundiárias, tanto no surgimento do capitalismo, quanto nos processos atuais de expansão e desenvolvimento – “a necessidade de negar o acesso do trabalhador à terra como meio de produção não diminui de modo algum com o avanço do capitalismo”346. O sistema jurídico corresponde aos imperativos de reprodução e expansão do capital, calibrando o direito à moradia para que não atrapalhe aquele avanço. A partir dos anos 80, o Banco Mundial passa a promover políticas massivas de regularização fundiária na África e América Latina, buscando a regularização jurídica de assentamentos informais com a concessão de títulos de propriedade individuais a cada imóvel nestes assentamentos. Este processo nada mais representou do que a busca pela homogeneização jurídica necessária à expansão do capital financeiro internacional. Assim, entre 1995 e 2014, o Banco Mundial promoveu “mais de quarenta projetos relacionados a regularização fundiária, titulação, registro imobiliário e/ou cadastro, apenas no meio urbano, em países da América Latina – principalmente Peru e países da América Central –, em antigos países socialistas da Ásia Central e dos Balcãs, e em países do Sudeste e do Sul Asiático, como Tailândia, Filipinas, Sri Lanka e Paquistão. Não por acaso, também, esses programas aparecem ‘empacotados’ como componentes de empréstimos de ajuste estrutural (structural adjustment loans – SAL), posteriormente rebatizados como empréstimos para políticas de desenvolvimento (development policy loans – DPL) ou como projetos de implementação de reformas de sistemas financeiros e de mercados imobiliários”347.

344 K. MARX, Theories of Surplus Value, Londres, Lawrence and Wishart, parte 3, 1972, pp. 43-44, apud D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 462. 345 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 462. 346 Idem. 347 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, pp. 202-203.

172

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

A tese por trás da formalização jurídica da terra é que ela levará à formalização de outras esferas da vida. Mas estes programas não tiveram o sucesso esperado pelo Banco Mundial e por seus entusiastas348, embora continue a ser implementado e haja avaliações no sentido de que ainda são insuficientes349. O principal legado dos programas de titulação, certamente, é ter criado condições para processos futuros de expansão dos mercados imobiliários e de crédito local, interligando estes países subdesenvolvidos ao circuito capitalista global. A sua principal utilidade é permitir a aquisição jurídica dos ativos territoriais locais. Este é um dos pilares da financeirização global e da integração geográfica destes assentamentos informais ao sistema capitalista mundial. Apesar de o capitalismo ser extremamente maleável e mutável, adaptando diferenças a sua forma própria de reprodução, a sua estrutura básica exige a lógica da equivalência, a qual, por seu turno, exige um mínimo de estabilidade nas estruturas de troca e um sistema jurídico que confira segurança a estas. No mercado fundiário, a titulação da terra é o meio pelo qual esta estabilidade é obtida – se no Brasil ou no Peru há um sistema cartorial extremamente burocrático de titulação da terra, isto é efeito de um mercado de terras subdesenvolvido, não a causa deste subdesenvolvimento. A titulação da terra estabiliza o seu comércio numa escala ampliada, necessária tanto ao capitalismo local em certo ponto de desenvolvimento, e ainda mais necessário ao expansionista capitalismo global. Ela ocorrerá em larga escala de acordo com estas necessidades sociometabólicas do capital, não como resultado automático da titulação generalizada. As instituições de crédito demandam fortemente esta estabilidade para expandir. O que fica claro é que a busca pela titulação de terras é um movimento no sentido de incluir nos grandes circuitos do mercado capitalista bens imóveis que estão fora dele por não se subsumirem à lógica da equivalência. Em 2000, a Declaração do Milênio, que adotou os Objetivos de Desenvolvimento para o Milênio, referendou o ponto de vista do Banco Mun-

348 M. DAVIS, Planeta Favela, 2006, pp. 87-88, afirma que “As fastidiosas declarações oficiais sobre ‘capacitação’ e ‘boa governança’ evitam questões básicas da dívida e da desigualdade global e, em último caso, não passam de jogos de linguagem que encobrem a ausência de macroestratégias para reduzir a pobreza urbana. Talvez essa consciência culpada da lacuna entre promessa e necessidade explique parte do fervor com que as ONGs e as instituições de empréstimo internacionais abraçaram as ideias de Hernando de Soto, empresário peruano que se tornou o guru global do populismo neoliberal”. 349 R. ROLNIK, Guerra dos Lugares, 2015, pp. 218, menciona documento de revisão crítica em que se prega que a titulação não é suficiente, por si só, para “destravar” o capital nestes locais.

173

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

dial 350. Os Objetivos do Milênio, como outras iniciativas de grande alcance de combate à pobreza que não encontram resistências do capital – ao contrário – buscam criar e otimizar condições de reprodução do capital, o que se faz por meio de uma reestruturação da pobreza, ou seja, da posição dos pobres em estado tal que possam disponibilizar sua força de trabalho para exploração produtiva pelo capital. Neste sentido, o sétimo objetivo de desenvolvimento do milênio praticamente reduz a questão da melhoria de vida nas favelas à segurança da posse351. A questão ganha contornos dramáticos quando se atenta ao fato de que no contexto de neoliberalização econômica a questão da moradia irregular se mistura com o controle penal da pobreza, o meio mais eficiente para manter a desigualdade extrema entre as classes dominantes e as classes trabalhadoras352. As pessoas que vivem em favelas fazem parte do exército de mão de obra barata e do exército de reserva das grandes cidades ao redor do mundo. A expansão do capitalismo nestes espaços se dá na medida em que haja suficientes excedentes produtivos para transformar estas pessoas em operários ou em trabalhadores do setor de serviço, mantendo-se as populações sob controle militar353 e penal enquanto não aceitem as condições de vida disponíveis. O objetivo sétimo, assim, serve para a criação das condições para a inserção destas pessoas nos mercados formais de circulação. A resistência à implementação destes programas de titulação de terras e ao amesquinhamento do conceito de segurança da posse partiu de movimentos sociais e de organismos de defesa dos direitos humanos – o mencionado relatório da Relatora Especial da ONU para o Direito à Moradia se insere neste contexto. Aponta-se que as perspectivas econômicas neoclássicas enfatizam a segurança da posse do ponto de vista dos proprietários, adotando a premissa de que meros direitos formais de propriedade teriam impulsionado o desenvolvimento dos países capitalistas centrais354. Esta premissa desprezaria 350 Idem. 351 Idem. 352 A respeito, vide A. DE GIORGI. A miséria governada através do sistema penal, 2006. 353 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2015, p. 235, observa que, em razão de lutas de classes se darem sempre com mais intensidade nas cidades, “o Estado capitalista se prepara continuamente para lutas urbanas militarizadas como linha de frente da luta de classes nos próximos anos”. 354 F. OBENG-ODOOM e F. STIWELL, Security of tenure in international development discourse, 2013, p. 323.

174

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

os termos desiguais do comércio com as colônias/países subdesenvolvidos e o papel centralizador e imperialista das principais economias mundiais no processo de acumulação do capital355. Mas esta resistência arrisca fortalecer o direito, ao invés de alterá-lo. Este é um verdadeiro paradoxo das lutas sociais, já que o direito aí está para assegurar o despojamento da classe trabalhadora, não para superá-lo, objetivo que estaria no horizonte de tais lutas sociais. Neste sentido, não se pode defender maior juridicidade ao conceito de segurança da posse. Ao mesmo tempo, movimentos de luta por moradia se veem premidos a, taticamente, defender justamente mais direitos, mais garantias, mais segurança. Esta defesa não poderá, jamais, ir para além da prevalência do direito de propriedade e dos imperativos do capitalismo. Mas movimentos sociais e organizações de direitos humanos têm recorrido ao conceito de segurança da posse numa linha defensiva, sem ativar contradições no sistema jurídico. Para eles, o conceito de segurança da posse deveria se desvincular da ênfase na propriedade formal da terra, ligando-se mais a uma perspectiva de garantia de que não haverá remoção arbitrária ou, em caso de haver, que haverá uma justa indenização, paga previamente à remoção356. A segurança da posse não deveria ser apenas decorrência da propriedade privada formal. Obeng-Odoom e Stiwell apontam que o conceito de segurança da posse deve ser multidimensional357, não se restringir à titulação e à remoção de favelas. Porém, detalham pouco quais outras dimensões o conceito deveria ter. Uma das poucas indicações dos autores diz respeito à necessidade de taxação de toda propriedade, com o reinvestimento em benefício dos mais pobres, o que acaba por remeter a questão à criação, via Estado, de um aparato de segurança da posse.

355 Idem, p. 324, afirmam que “foi o acesso ao trabalho livre no Sul em desenvolvimento, as condições desiguais de comércio e exploração massiva das colônias por matérias-primas que impulsionaram o Ocidente para garantir sua liderança no processo de acumulação de capital” (tradução livre). 356 F. OBENG-ODOOM e F. STIWELL, Security of tenure in international development discourse, 2013, p. 325. 357 Idem, p. 328. Os autores apontam que “Em alguns casos, a ênfase na titulação da terra e na redução de favelas levou a remoções dolorosas e errôneas. Levando estas questões em conta, a ortodoxia prevalente não deveria ser aceita acriticamente, para que não acenda o cinismo e fomente a discórdia social. Como a propriedade, a ‘posse segura’ precisa ser vista como um conceito multidimensional e deve ser viabilizada por meio de um conjunto amplo de iniciativas políticas estratégicas” (tradução livre).

175

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

No contexto capitalista, a terra é uma mercadoria e, para Karl Polanyi358, uma mercadoria fictícia, porque ela não é criada pelo trabalhador para ser levada ao mercado, mas o seu caráter de mercadoria é criado por meio de específicas e complexas relações sociais. Como foi visto anteriormente, em razão deste caráter da mercadoria terra, Obeng-Odoom e Stiwell entendem que a segurança da posse seria assegurada de modo mais eficaz por meio de reforma agrária ou urbana, e não por meio da extensão de direitos de propriedade ou de processos de mercado: “a ênfase da política se desloca para a distribuição e para a equidade, ao invés da eficiência alocativa tal como compreendida na perspectiva neoclássica”359. O direito aí possuiria um claro papel indutor e transformador das relações de propriedade. Este tipo de solução, porém, idealiza o direito e a política e despreza seu papel na reprodução do sistema do capital. No Brasil, por exemplo, a propriedade ostenta violento aparato legal e institucional para a sua proteção. Os que não habitam mediados pelo direito de propriedade estão, em regra, na ilegalidade – “O mercado residencial legal no Brasil atende perto de 30% da população. Ele deixa de fora, em muitas cidades, até mesmo parte da classe média que ganha entre cinco e sete salários mínimos”360. Neste contexto é que, mais do que a generalização da propriedade, com todos os seus entraves legais e socioeconômicos, a proteção jurídica da posse aparece como aparente solução. Seguindo a linha de Obeng-Odoom e Stiwell, a relatora da ONU para o direito à moradia realizou um forte questionamento ao absolutismo do sistema da propriedade privada em seus relatórios. De fato, em um Relatório temático da Relatora Especial para o direito à moradia adequada, em que trata da financeirização da habitação361, Rolnik constatou que o paradigma dominante nas políticas habitacionais é o financiamento para a obtenção da propriedade

358 Polanyi, Karl. The Great Transformation, New York: Octagon Books, 1944, apud F. OBENG-ODOOM e F. STIWELL, Security of tenure in international development discourse, 2013, p. 325, que explicam que “a característica distintiva de uma “mercadoria fictícia” é que sua provisão e distribuição está embebida em relações sociais complexas” (tradução livre).

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

imobiliária. O relatório avalia os impactos das políticas de financiamento habitacional para pessoas pobres, concluindo que apenas mecanismos financeiros não podem resolver o problema da moradia adequada para esta parcela da população. A saída estaria em mudar o paradigma das políticas de moradia para que tenham fundamento nos direitos humanos. No relatório, se aponta que países desenvolvidos passaram a desenvolver no final do século XIX programas de moradia para indivíduos ou casais, fornecendo a estes ajuda para aquisição de moradias ou as disponibilizando diretamente; já nos países em desenvolvimento, a rápida urbanização foi desordenada e se deu por meio da construção de bairros informais; por seu turno, os países de economia planificada aplicaram o modelo de construção planificada de moradias de aluguel362. Mas no final dos anos 70 houve uma mudança radical nas políticas habitacionais, sustentada pela doutrina econômica dominante, que pregava a transferência das atividades sob controle do Estado para a iniciativa privada. O foco passa a ser criar as condições, as instituições e a legislação adequadas para sustentar o sistema de financiamento habitacional voltado a promover o acesso à propriedade. Assim, continua a Relatora, passam a prevalecer os dogmas neoliberais da confiança na propriedade e no livre mercado. O relatório ainda aponta que o setor financeiro, as políticas de crédito e o mercado imobiliário privado foram os principais mecanismos nos quais se buscou soluções para o problema da moradia. Em muitos países houve a privatização das moradias públicas, com a venda dos imóveis aos locatários e nas antigas economias planificadas, houve privatização em massa das moradias públicas. Esta tendência geral se relaciona com o “desenvolvimento” do próprio capitalismo, cujos excedentes produtivos, que tomam a forma de capital financeiro, constantemente buscam e criam mercados imobiliários. A relatora coloca como uma das suas recomendações sobre este ponto a necessidade de os Estados promoverem a mistura dos sistemas de posse, para além do foco exclusivista na moradia como propriedade privada, incluindo um setor de moradias públicas ou um regime de aluguéis regulado, o que evitaria a exclusão social e a segregação363.

359 F. OBENG-ODOOM e F. STIWELL, Security of tenure in international development discourse, 2013, p. 325 (tradução livre). 360 E. MARICATO, O impasse da política urbana no Brasil, 2014, p. 185.

362 Idem, p. 3.

361 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, ASSEMBLEIA GERAL, A/67/286, Special Rapporteur on adequate housing as a component of the right to an adequate standard of living, disponível em http://direitoamoradia.org/wp-content/uploads/2012/09/A-67-286.pdf, acesso em 11 abr. 2015.

363 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, ASSEMBLEIA GERAL, A/67/286, Special Rapporteur on adequate housing as a component of the right to an adequate standard of living, disponível em http:// direitoamoradia.org/wp-content/uploads/2012/09/A-67-286.pdf, p. 23, acesso em 11 de abr. 2015.

176

177

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

O relatório faz um preciso diagnóstico do desenvolvimento do capitalismo atual, porém, aponta apenas para soluções nos limites do direito e da políticas. Isto decorre das próprias limitações institucionais da ONU. Estas limitações, por si só, já explicitam a essência do direito a nível internacional. As soluções possíveis de sugestão, neste âmbito, talvez pudessem amenizar a questão da escassez da habitação, mas, definitivamente, o que decidirá isto serão os imperativos da expansão do sistema do capital. Estando a proteção dos sistemas de posse regulados pelo sistema jurídico, certamente cederá, quando for imperativo, em ponderações com outros direitos, em especial, os direitos de propriedade relacionados àquela expansão. Tematizar na seara jurídica a segurança da posse incorpora limitações importantes às lutas sociais. Isto porque o direito é especificamente capitalista e não pode oferecer soluções “fora” do sociometabolismo do capital. Aquelas limitações deveriam ser superadas para levar as lutas a novo patamar, em que pudessem forçar contradições do sistema sociometabólico do capital, das quais poderão surgir propostas para que pilares deste sistema sejam revolucionados. A “segurança da posse”, portanto, enquanto noção jurídica, não solucionará a questão da habitação, que está ligada à necessária liberação e despojamento do trabalhador para a reprodução e expansão do capitalismo. No atual contexto de financeirização global, importa cada vez mais tornar a terra “cativa” por meio de processos como os de acumulação por despossessão. Por mais proteção que se busque pela via do aumento da densidade jurídica de um conceito como segurança da posse, isto apenas aumentará a subordinação do conceito e, assim, do discurso dos movimentos sociais e das organizações de direitos humanos, à lógica do sociometabolismo do capital. O que está por trás da busca por conferir à posse uma segurança próxima à da propriedade é a mistificação da segurança jurídica, como se esta pudesse ser conferida universalmente independentemente dos mecanismos de inclusão e exclusão necessários à reprodução e expansão do capital. Como deve ter ficado claro, a busca por uniformização ou homogeneização das estruturas legais globais, de modo a permitir a expansão do capital em diversas partes do mundo, é que justifica as políticas de titulação com base em propriedade privada. O Banco Mundial, reconhecendo a persistência da posse consuetudinária, adota “o ponto de vista de que tais arranjos possessórios deveriam ser progressivamente formalizados por meio registro escrito, de levanta178

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

mento para definição dos exatos limites da propriedade e por estruturas jurídicas ocidentais formais”. Porém, desde que não seja empecilho para a reprodução e a expansão do capital, um conceito amplo de segurança da posse poderia ser referendado pelo Banco Mundial364. O aparato jurídico de proteção da posse se tornaria rapidamente funcional ao mercado na medida em que se identificasse o sujeito de direito beneficiário dela. A diferença específica com relação à propriedade estaria apenas na origem do “título” jurídico de proteção. A segurança da posse tenderia a facilitar a troca dos bens imóveis em medida similar à facilitação promovida pela titulação da propriedade – aliás, nem é necessária esta proteção para que um mercado de posses se desenvolva, como o demonstra o comércio de imóveis já existente – independentemente de registro formal da propriedade – nas periferias brasileira e peruana. Assim, no contexto capitalista, a melhoria das condições de habitação da população de baixa renda só poderia realizar-se em termos tais que não gerasse empecilhos à reprodução do capital – o que significa que inovações, inclusive jurídicas, devem ser sempre compatíveis com e adaptar-se ao o sociometabolismo do capital. Este sociometabolismo determina que o valor de troca do imóvel se sobreponha ao valor de uso da habitação; determina a formação de um mercado imobiliário, no qual o imóvel aparece como produto, como reserva de valor, como poupança e como investimento especulativo365, 364 Sobre as políticas do Banco Mundial, confirmando o caráter de sustentáculo que as políticas urbanas possuem no capitalismo avançado, P. FIORI ARANTES, O Ajuste Urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades, 2006, p.60, observa que “ao ajuste estrutural que se seguiu à crise da dívida no Terceiro Mundo, no início dos anos 80 – e ainda persiste como um ajuste permanente –, parece ter ocorrido um correspondente “ajuste urbano”. Em ambos os casos, o Banco Mundial e, na América Latina, o BID, tiveram ação decisiva, em parceria com as elites e tecnocracias locais”. Realmente, “os empréstimos do Banco Mundial e do BID – que aparecem aos gestores públicos como “tábuas de salvação” em tempos de crise –, não são “neutros” e carregam consigo uma agenda afirmativa: pretendem modelar um determinado padrão de uso do recurso público e de organização do Estado. As duas instituições difundem políticas públicas que seguem critérios empresariais de rentabilidade e um modelo de gestão estatal terceirizada, à mercê de um corpo técnico privado – formado por gerenciadoras de projeto, fundações privadas, ONGs e inúmeros consultores. Seu objetivo é transformar uma parcela dos governos locais nos países em desenvolvimento, especialmente os que administram os territórios que dão suporte aos negócios transnacionais, em estruturas administrativas treinadas para responder aos grandes interesses privados, ao mesmo tempo em que se desembaraçam de qualquer compromisso com a democracia real”. 365 O relatório da Relatoria para o Direito à Moradia da ONU constata este ponto (http://direitoamoradia. org/wp-content/uploads/2012/09/A-67-286.pdf, parágrafo 11, acesso em 11 de abr. 2015): a moradia

179

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

tudo enredado num sistema financeiro ávido por reproduzir-se ad infinitum; determina que o acesso à habitação enquanto meio de subsistência se dará apenas enquanto isto não atrapalhe a disponibilização da força de trabalho no mercado, em troca de salário. Daí porque continua atual a afirmação de Engels, já mencionada no primeiro capítulo deste trabalho, de que “enquanto o modo de produção capitalista existir, será disparate pretender resolver isoladamente a questão da habitação ou qualquer outra questão social que diga respeito à sorte dos operários. A solução reside, sim, na abolição do modo de produção capitalista, na apropriação pela classe operária de todos os meios de vida e de trabalho.”366

A forma mercadoria e a equivalência necessária à circulação capturariam sem pestanejar os diferentes tipos de posse que viessem a ser juridicamente protegidas. Num contexto capitalista, os efeitos disto para a população de baixa renda continuariam a ser devastadores. A taxação da propriedade e a destinação para a construção de moradias públicas seriam medidas para aliviar ou obstar temporariamente, mas não resolver, o fato de que a distribuição de habitações no capitalismo é estruturalmente excludente. A princípio, para evitar aquela captura, os esquemas de segurança da posse deveriam prever também mecanismos de proteção contra mecanismos típicos de espoliação capitalista. Mas isto, obviamente, não tomará forma jurídica enquanto viger o sistema sociometabólico do capital.

4.2. Renda da Terra e Acesso à Habitação Via Locação A primeira forma habitacional massiva das classes trabalhadoras urbanas brasileiras foi o cortiço. Villaça observa que: “A principal forma de abrigo que a sociedade brasileira vai desenvolver para alojar essas multidões é o cortiço. O cortiço é uma ‘solução’ de mer-

aparece como uma mercadoria, como um ativo financeiro e como uma estratégia de acumulação de riqueza pelas famílias, deixando-se de lado aspectos sociais. 366 F. ENGELS. Para a Questão da Habitação, 1873, Segunda Seção, disponível em https://www.marxists. or g/portugues/marx/1873/habita/cap02.htm.

180

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

cado, é uma moradia alugada, é um produto de iniciativa privada. Em seus diversos tipos, foi a primeira forma física de habitação oferecida ao ‘homem livre’ brasileiro da mesma maneira que o aluguel foi a primeira forma econômica.”367

O aluguel ou locação era e continua sendo uma das principais maneiras para as classes trabalhadoras acessarem o meio de subsistência habitacional. Por este meio, o trabalhador paga certa quantia ao senhorio (proprietário fundiário) pelo uso temporário de um imóvel. Esta quantia é uma parte do salário do trabalhador e é uma renda para o senhorio. O despojamento completo dos trabalhadores, incluindo o despojamento da habitação, é um dos primeiros impulsos necessários para a liberação deles como a servos da terra no feudalismo para se tornarem proletários. A falta de habita367 F. VILLAÇA, O que todo cidadão precisa saber sobre habitação, 1986, p. 14-15. Vale a transcrição integral da continuação do trecho: “O cortiço descrito por Aluísio de Azevedo era típico, na época, das grandes cidades do sul do Brasil. Eram várias casinhas especialmente construídas para aluguel, com tanques de lavar roupa e instalações sanitárias de uso comum... Ameaçada pelo cortiço (foco de epidemias) mas ao mesmo tempo necessitando dele, a burguesia deu início a uma série de medidas ambíguas destinadas a regular sua convivência com ele. De um lado, a classe dominante precisava de um discurso que lhe permitisse demolir os cortiços quando isso fosse necessário, e de outro, precisava mantê-los e tolera-los, pois, necessitava deles para abrigar a população trabalhadora. Essa população, convém lembrar, crescia vertiginosamente não só em São Paulo e Rio, mas em todas as atuais metrópoles do país. Dentre as medidas tomadas para dar a aparência de que os cortiços estavam sendo realmente combatidos, destacam-se os Códigos Municipais de Posturas, que continham dispositivos determinando a sua demolição ou o cerceamento de suas construções. A razão invocada é sempre a saúde pública pois não eram raras as epidemias, das quais as de febre amarela no Rio de Janeiro, foram apenas as mais famosas. Havia epidemias de varíola, de peste bubônica, de tifo e de cólera. A ameaça que o cortiço, como a habitação operária em geral, representava para o valor dos imóveis burgueses, não foi mencionada nunca, embora o ataque a essa ameaça esteja claro em alguns dispositivos legais sobre aquelas habitações. O Código de Posturas Municipais do Município de São Paulo de 1886, por exemplo, contém uma série de dispositivos regulamentando os cortiços. Não só número e dimensões de cômodos, instalações sanitárias, ventilação e insolação, mas também suas localizações. A construção de cortiços era proibida ‘no perímetro do comércio’ e quando seus terrenos fossem contíguos a ‘casas de habitação’ deveriam ter no mínimo 15 metros de frente. Também no Rio de Janeiro, segundo Ribeiro e Peachman, em 1889... a Postura Municipal determinava que no perímetro central da cidade ficavam proibidos o estabelecimento e a construção de cortiços, casinhas e edificações acanhadas... Vê-se que estas regulamentações nada tinham a ver com o combate a epidemia nem com a proteção da saúde pública, mas sim com o afastamento dos cortiços das áreas onde as camadas de mais alta renda residiam, circulavam e tinham seus imóveis mais nobres. A proteção dos valores imobiliários viria a ser nas décadas subseqüentes, até os dias de hoje, uma das razões inconfessas de muitas leis urbanísticas nos municípios brasileiros.”

181

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

ção aparece historicamente como necessária ao surgimento e à reprodução do sociometabolismo do capital. Neste processo, a terra urbana “cativa” se torna fonte de renda para seus proprietários. O trabalhador, despojado de tudo, paga um preço, determinado pelo mercado imobiliário, para realizar sua necessidade habitacional. A existência da renda da terra urbana leva, inclusive, a um aumento geral do preço da própria terra, que, num círculo vicioso, passa a ser inacessível ao trabalhador, que precisa então recorrer ao aluguel, se necessário nas condições mais degradantes. A renda fundiária, como o crédito, também é uma forma de capital fictício. Antes disso, ela aparece como um excedente sobre o lucro médio no específico contexto capitalista. Esta especificidade foi apontada por Marx, “onde, portanto, o capital ainda não submeteu a seu controle o trabalho social, ou só o fez esporadicamente, não se pode sequer falar de renda no sentido moderno, da renda como excedente sobre o lucro médio, ou seja, sobre a participação proporcional de cada capital individual na mais-valia produzida pelo capital social global”368.

Este excedente é o “mistério” que a teoria da renda de Marx desvenda como a parcela da mais-valia que os proprietários fundiários conseguem extrair para si em razão de seu monopólio sobre certas quantidades de terra. A análise de Marx se concentra na propriedade fundiária rural, mas esta mesma conclusão se pode tirar sobre a propriedade fundiária urbana. Tomada neste sentido, nem todo o preço do aluguel é renda, como se detalhará a seguir. A apropriação da terra e o interesse alheio pelo seu uso conforma a renda. Esta aparece então como uma forma econômica de apropriação direta ou indireta do trabalho social. A apropriação direta ocorre sem etapas intermediárias entre proprietário e arrendatário (o arrendatário produz na terra e paga diretamente ao proprietário), de modo que a renda fundiária se assemelha aí com a extração de mais-valia. O contrato de arrendamento se aproxima aqui do contrato de trabalho e é o instrumento jurídico que assegura a exploração do trabalho do arrendatário pelo proprietário fundiário. Já a apropriação indireta ocorre quando o arrendatário não produz ele próprio riqueza, mas extrai mais-valia de terceiros, pagando o proprietário com parcela da mais-valia obtida.

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Neste caso, a renda fundiária aparece plenamente como uso da propriedade para assegurar participação na riqueza socialmente produzida. No livro I do capital, Marx apontou a terra não cultivada como exemplo de coisa que tem preço, apesar de não tem valor: “Mas a forma-preço permite não apenas a possibilidade de uma incongruência quantitativa entre grandeza de valor e preço, isto é, entre a grandeza de valor e sua própria expressão monetária, mas pode abrigar uma contradição qualitativa, de modo que o preço deixe absolutamente de ser expressão de valor, embora o dinheiro não seja mais do que a forma de valor das mercadorias. Assim, coisas que em si mesmas não são mercadorias, como a consciência, a honra etc. podem ser compradas de seus possuidores com dinheiro e, mediante seu preço, assumir a forma-mercadoria, de modo que uma coisa pode formalmente ter um preço mesmo sem ter valor. A expressão do preço se torna aqui imaginária tal como certas grandezas da matemática. Por outro lado, também a forma-preço imaginária – como o preço do solo não cultivado, que não tem valor porque nele nenhum trabalho humano está objetivado –, abriga uma relação efetiva de valor ou uma relação dela derivada.”369

Assim, mesmo a terra não cultivada pode ter um preço, e isto em razão das específicas relações sociais que determinam esta forma-preço imaginária. O valor pode surgir por meio do trabalho produtivo na terra. E deve-se considerar que o a terra urbana pode também ser objeto de intervenção produtiva, com a construção de prédios, fábricas, casas, lojas, estradas, enfim, de todo o aparato urbano construído pelo trabalho humano. Para o proprietário fundiário que realiza a construção de um prédio, uma parcela dos aluguéis aparece como “um caso especial de juros sobre o capital fixo ou sobre o fundo de consumo”370. Mas o aluguel em regra supera esta parcela, de modo que o restante aparece justamente como renda da terra, como uma forma-preço imaginária. Ora, pode-se descrever o crédito como uma alma fantasmagórica fetichista, sendo o direito a forma de manifestação desta alma. A sua substância, claro, é a base material capitalista. Por meio do juro esta alma fantasmagórica se revela e aparece como dinheiro, embora não exista valor algum ao qual possa se referir. O direito or-

369 K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, p. 177. 368 K. MARX, O Capital – Livro III, 1988, p. 245.

182

370 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 428.

183

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

ganiza os efeitos reais do crédito. Do mesmo modo, a renda fundiária é uma alma fantasmagórica fetichista e o direito é a sua forma de manifestação. O aluguel pago ao senhorio é a revelação desta alma fantasmagórica, que aparece como propriedade privada que não é capital. A existência da renda fundiária é fetichista porque o benefício retirado do bem excede aquele que decorreria do juro decorrente de investimento do capital. Mas há um efeito real nas formas fetichistas que é o de impulsionar, de algum modo, a produção e a circulação. É a renda da terra o objeto de preocupação de Marx no capítulo 47 do Livro 3 d’O Capital: “de onde... após a distribuição de toda a mais-valia que há para distribuir aparentemente já ocorrida, procede, então, a parte ainda excedente dessa mais-valia que o capital investido na terra paga sob a forma de renda fundiária ao proprietário da terra”371. Se a terra não cultivada e a terra urbana não têm valor, como podem ser trocadas como mercadorias? Harvey tentou destrinchar a questão com base em Marx:

refletem a competição e são receptíveis à acumulação”373. Com estas funções de coordenação374 é que a renda da terra se torna possível e se legitima no contexto sociometabólico do capital. Harvey afirma que

“Marx insiste que os pagamentos de aluguel não são feitos à terra e que as rendas não crescem do solo. Pagamentos desse tipo são feitos aos [rectius] senhorios e seriam impossíveis sem a troca geral de mercadorias, a plena monetização da economia e todas as armadilhas legais e jurídicas da propriedade privada da terra. Mas ele também está consciente que essa base legal nada decide e que toda a explicação da renda tem de tornar compatível um pagamento feito ostensivamente à terra com uma teoria do valor que se concentra no trabalho.”372

Este mesmo capital que rende juros não hesitará em promover atividades de pilhagem e destruição para ampliar suas possibilidades de aplicação. Isto pode, a depender do caso, levar a distorções especulativas376. De qualquer modo, esta forma de capital buscará sempre novos horizontes onde possa gerar renda fundiária e juro (este é o ganho sobre o capital efetivamente investido), promovendo, por exemplo, titulação de terras onde haja apenas posse fundiária e haja espaço para o desenvolvimento da oferta e da demanda de capital monetário. Em suma,

Para Harvey, Marx resistia a dar um lugar de destaque para fatos da distribuição, mas as relações de distribuição, como o juro, o crédito e a renda, podem “ocupar papéis de coordenação estratégica dentro do modo de produção capitalista”. A renda, por exemplo, exerce uma função de coordenação “na alocação da terra para usos e na moldagem da organização geográfica de modos que

“A circulação do capital que rende juros nos mercados fundiários coordena o uso da terra em relação à produção de mais-valor mais ou menos da mesma maneira que ajuda a coordenar as alocações da força de trabalho e equalizar a taxa de lucro entre as diferentes linhas de produção em geral. (...) a circulação do capital que rende juros promove atividades na terra que visam seus mais elevados e melhores usos, não simplesmente no presente, mas também prevendo a produção futura de mais-valor. Os proprietários de terra que tratam a terra como um simples bem financeiro desempenham exatamente essa tarefa. Eles coagem o capital (por meio de aumento das rendas, por exemplo) ou cooperam com ele para garantir a criação de rendas fundiárias mais elevadas”375.

“a circulação ‘adequada’ do capital mediante o uso da terra e, por isso, todo o processo de moldagem de uma organização espacial ‘apropriada’ das atividades (repletas de contradições) estão ajustados ao funcionamento dos mercados fundiários, que por sua vez se baseiam na capacida-

373 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, pp. 428-429. 371 K. MARX, O Capital – Livro III, 1988, p. 245. 372 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 428. A tradução disponível em português da obra usa as expressões “senhores feudais” ou “feudalista”, ao invés de “senhorios” ou “proprietários fundiários”, para a palavra landlord. Obviamente, aquela tradução é completamente descabida no contexto em questão, gerando imensa confusão, já que no período capitalista não se pode afirmar que haja relações feudais senão como reminiscência histórica e os landlord, que extraem renda da terra no contexto capitalista, não são senhores feudais, por mais resquícios de parasitismo nobiliárquico que existam nas relações em que tomam parte.

184

374 Como observa M. FIX, São Paulo, Cidade Global, 2007, p. 135, descrevendo o avanço do mercado imobiliário no bairro Vila Olímpia, em São Paulo, “Quanto mais livre for o capital portador de juros para perambular pelos mercados de terra na busca de títulos para se apropriar da renda futura, melhor ele pode assumir seu papel de coordenador (esse capital pode ter como substituto a securitização...). Contudo, ao mesmo tempo, quanto mais aberto for o mercado de terras, mais imprudentemente o capital pode procurar realizar suas expectativas excessivas por meio da pilhagem e da destruição das condições de produção do espaço.” 375 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 472. 376 Idem, p. 473.

185

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

de de se apropriar da renda. Como o capital que rende juros, a apropriação da renda tem papéis positivos e negativos a desempenhar em relação à acumulação. Suas funções de coordenação são adquiridas à custa de permitir formas insanas de especulação da terra. Mas tal argumento é dificilmente perceptível nos textos de Marx, e ele parece extremamente relutante em admitir qualquer papel positivo para o [rectius] proprietário fundiário no capitalismo”377.

Isto explica a manutenção da renda da terra no contexto capitalista. Mas a teoria do valor de Marx se mantém de pé. Comprova-se isso pela constatação de que o proprietário fundiário não detém o controle último da terra e da renda no contexto capitalista. Aqui, são as condições da produção que determinam em última instância a parcela de mais-valia – se alguma – que cabe aos proprietários fundiários. Daí o papel destes proprietários, que pode ser considerado secundário, mas não sem grande relevância para o sociometabolismo do capital. A própria manutenção da propriedade fundiária especulativa no contexto capitalista só se explica pela funcionalidade que ela pode cumprir neste contexto. Marx aponta as principais funcionalidades da apropriação da terra na parte final do seguinte trecho, que começa com a clarificação sobre a natureza da renda fundiária como componente da mais-valia: “Lucro de capital (ganho empresarial mais juros) e renda fundiária não são, portanto, nada mais que componentes específicos da mais-valia, categorias em que esta é distinguida conforme ela recaia no capital ou na propriedade fundiária, rubricas que, no entanto, não alteram nada em sua essência. Somados, constituem o total da mais-valia social. O capital suga o mais-trabalho, que representa a mais-valia e o mais-produto, diretamente dos trabalhadores. Pode, portanto, nesse sentido ser considerado como produtor da mais-valia. A propriedade fundiária não tem nada a ver com o real processo de produção. Seu papel se restringe a fazer com que parte da mais-valia produzida passe do bolso do capital para o seu próprio. O proprietário da terra desempenha, no entanto, um papel no processo de produção capitalista não só pela pressão que ele exerce sobre o capital, nem só porque a grande propriedade fundiária é um pressuposto e uma condição da produção capitalista - visto que constitui a expropriação das condições de trabalho do trabalhador -,

377 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 429.

186

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

mas especialmente porque ele aparece como personificação de uma das condições essenciais da produção.”378

Na dinâmica da luta entre a burguesia e os proprietários fundiários, por um lado, o próprio preço da terra depende das “relações entre a acumulação do capital e a oferta e a demanda de capital monetário”379 e, por outro lado, “os preços da terra criam sinais aos quais os vários agentes econômicos podem responder”380. A acumulação de capital e o desenvolvimento e expansão dos espaços socioeconômicos estão intimamente interligados. Daí a renda fundiária e a propriedade privada serem necessárias para a sustentação e para a expansão381 do capitalismo, serem um dos alicerces deste sistema sociometabólico. Aquele papel secundário não significa que os proprietários fundiários não tenham um papel de grande relevância na “questão da habitação”. Ao contrário. A atividade destes proprietários determina o despojamento do trabalhador de meios de produção e de subsistência. Marx observa que na comercialização da terra está sempre presente a especulação e Harvey ressalta o exemplo de que na “construção de casas em cidades que crescem rapidamente”, “o lucro da construção é extremamente pequeno e ‘o lucro principal vem de elevar a renda fundiária’, de modo que é ‘renda fundiária, e não a casa, que é o objeto real da especulação imobiliária’”382. Ademais, é fato largamente observado que “o valor criado na produção pode ser recuperado dos trabalhadores em benefício da classe capitalista por aluguéis altos cobrados pelos proprietários”383. Ainda mais, com o desenvolvimento do capitalismo, só sobreviverão os proprietários 378 K. MARX, O Capital – Livro III, 1988, p. 274. 379 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 471. 380 Idem, p. 474. 381 Idem, p. 476, sobre esta expansão, observa que “a circulação do capital que rende juros em títulos fundiários desempenha um papel análogo àquele do capital fictício em geral. Ela indica os caminhos de localização para a futura acumulação e atua como um agente de força catalizadora que reorganiza a configuração espacial da acumulação segundo os imperativos básicos da acumulação. O fato de isso às vezes pressionar muito... ou em direções equivocadas... simplesmente estabelece que o mercado fundiário necessariamente internaliza todas as contradições básicas fundamentais do modo de produção capitalista. Por isso, impõe tais contradições ao próprio cenário físico do próprio capitalismo”. 382 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 472, citando K. MARX, O Capital – Livro III, Nova York, International Publishers, 1967, p.774-6 e K. MARX, O Capital – Livro II, Nova York, International Publishers, 1967, p. 234. 383 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2015, p. 232.

187

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

fundiários que tratarem a terra como um bem financeiro384. O interesse dos proprietários fundiários na expansão urbana fica muito claro, assim como o seu papel na criação da escassez de habitações. A locação do uso de uma casa, um quarto ou uma cama para moradia é um dos principais meios de acesso dos trabalhadores à habitação. A relação que aí se estabelece está inteiramente na esfera da circulação. Não há trabalho algum na relação contratual entre o locador e o locatário, daí se dizer que se está diante de capital fictício. A teoria da renda fundiária de Marx esclarece que a terra pode ter um preço, ser uma mercadoria e que o proprietário fundiário tem um direito à participação nos frutos do trabalho – esta é a natureza da renda fundiária. Mas apenas em razão das funções positivas acima indicadas é que esta renda pode ser amparada pelo sistema jurídico capitalista. Engels deixa claro que o ponto de partida da análise da estrutura social atual deve ser a “pedra angular do modo de produção de capitalista”, que consiste em que na compra, pelo capitalista, da “força de trabalho do trabalhador por seu valor” e da extração de “muito mais do que o valor pago por ela, fazendo com que o trabalhador trabalhe mais tempo do que o necessário para reposição do preço pago pela força de trabalho”385. Neste sentido, para compreendermos a renda, deve-se ter em mente que “o mais-valor gerado dessa maneira é repartido entre todos os integrantes da classe dos capitalistas e proprietários de terras, bem como seus servidores pagos, desde o papa e o imperador até o vigia noturno e abaixo dele. [...] o que se sabe aqui com certeza é isso: todos os que não trabalham só podem viver dos restos desse mais-valor que fluem até eles de uma maneira ou de outra”386.

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

“uso temporário de uma moradia”387. A “posse fundiária” aparece aí como uma mercadoria. Por meio do contrato civil de locação se opera a “transferência de um valor já existente, previamente gerado”, de modo que “a soma total dos valores possuídos em conjunto pelo locatário e pelo locador permanece sempre a mesma”388, é dizer, não é gerado valor algum na operação. Trata-se de repartição na esfera da circulação. O proprietário fundiário detém a prerrogativa jurídica de extrair renda de seu bem imóvel389. Mas o aluguel pago pelo trabalhador pela casa não é constituído apenas de renda: ele inclui uma série de elementos: [1] “os juros referentes à construção da casa”; [2] a cobertura dos consertos e do [3] “montante médio de dívidas ruins, aluguéis não pagos, [4] bem como os períodos ocasionais em que a casa fica vazia”; [5] a amortização em parcelas anuais do “capital investido numa casa perecível, que com o passar do tempo torna-se inabitável e sem valor”; [6] e “os juros referentes ao aumento de valor do terreno em que se encontra a casa”, a renda fundiária390. Relações econômicas específicas e a viabilidade da extração de juros e renda pelo proprietário fundiário é que permitem que juros e renda sejam pagos ao proprietário fundiário. Por isso, a divisão legal de obrigações entre locatário e locador não tem impacto decisivo no aluguel – ela nada decide – e eventual alteração não afetaria sobremaneira o fluxo da parcela de mais-valia que cabe ao proprietário fundiário. A lei de locação brasileira divide detalhadamente as obrigações do locador

387 Idem, p. 41. 388 Idem, p. 41.

385 F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, p. 38.

389 Deve-se atentar que Marx tratou da propriedade fundiária rural no livro III d’O Capital, mas que suas conclusões sobre a transformação da propriedade fundiária para uma forma especificamente capitalista, suprassumindo-se as figuras da renda e do proprietário fundiário ao novo contexto socioeconômico, podem ser aplicadas para a propriedade fundiária urbana. A permanência da renda neste contexto é explicada pela sua funcionalidade com a ordem sociometabólica posta, como detalha D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 462: “A extração da renda dos camponeses por parte dos [rectius] proprietários fundiários desempenha um papel vital no pressionamento dos camponeses para separar pelo menos uma parte do seu produto em vez de eles próprios o consumirem. Mas para a total dominação do capital sobre o trabalho ser conseguida, antes de tudo deve ser criada uma força de trabalho assalariada, um proletariado sem terra. A acumulação primitiva fora da terra produz trabalhadores assalariados. Uma forma definida de propriedade fundiária preenche esse papel histórico e continua a preenche-lo, na medida em que a ampliação e o aprofundamento do capitalismo no cenário mundial o requeiram”.

386 F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, pp. 38-39.

390 F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, pp. 42-43.

Na locação, há uma “simples venda de mercadoria”, o locatário possui dinheiro (que adquiriu vendendo sua própria força de trabalho) ou crédito (garantido pela “venda iminente dessa força de trabalho”) e o paga ao locador pelo

384 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 476, afirma que “A terra deve se tornar uma forma de capital fictício e ser tratada como um campo aberto para a circulação de capital que rende juros. Somente nestas condições a aparente contradição entre a lei do valor e a existência da renda sobre a terra desaparece”.

188

189

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

e do locatário nos artigos 22 e 23391. Esta divisão visa apenas a otimizar a extra391 Art. 22. O locador é obrigado a: I - entregar ao locatário o imóvel alugado em estado de servir ao uso a que se destina; II - garantir, durante o tempo da locação, o uso pacífico do imóvel locado; III - manter, durante a locação, a forma e o destino do imóvel; IV - responder pelos vícios ou defeitos anteriores à locação; V - fornecer ao locatário, caso este solicite, descrição minuciosa do estado do imóvel, quando de sua entrega, com expressa referência aos eventuais defeitos existentes; VI - fornecer ao locatário recibo discriminado das importâncias por este pagas, vedada a quitação genérica; VII pagar as taxas de administração imobiliária, se houver, e de intermediações, nestas compreendidas as despesas necessárias à aferição da idoneidade do pretendente ou de seu fiador; VIII - pagar os impostos e taxas, e ainda o prêmio de seguro complementar contra fogo, que incidam ou venham a incidir sobre o imóvel, salvo disposição expressa em contrário no contrato; IX - exibir ao locatário, quando solicitado, os comprovantes relativos às parcelas que estejam sendo exigidas; X - pagar as despesas extraordinárias de condomínio. Parágrafo único. Por despesas extraordinárias de condomínio se entendem aquelas que não se refiram aos gastos rotineiros de manutenção do edifício, especialmente: a) obras de reformas ou acréscimos que interessem à estrutura integral do imóvel; b) pintura das fachadas, empenas, poços de aeração e iluminação, bem como das esquadrias externas; c) obras destinadas a repor as condições de habitabilidade do edifício; d) indenizações trabalhistas e previdenciárias pela dispensa de empregados, ocorridas em data anterior ao início da locação; e) instalação de equipamento de segurança e de incêndio, de telefonia, de intercomunicação, de esporte e de lazer; f) despesas de decoração e paisagismo nas partes de uso comum; g) constituição de fundo de reserva. Art. 23. O locatário é obrigado a: I - pagar pontualmente o aluguel e os encargos da locação, legal ou contratualmente exigíveis, no prazo estipulado ou, em sua falta, até o sexto dia útil do mês seguinte ao vencido, no imóvel locado, quando outro local não tiver sido indicado no contrato; II - servir - se do imóvel para o uso convencionado ou presumido, compatível com a natureza deste e com o fim a que se destina, devendo tratá-lo com o mesmo cuidado como se fosse seu; III - restituir o imóvel, finda a locação, no estado em que o recebeu, salvo as deteriorações decorrentes do seu uso normal; IV - levar imediatamente ao conhecimento do locador o surgimento de qualquer dano ou defeito cuja reparação a este incumba, bem como as eventuais turbações de terceiros; V - realizar a imediata reparação dos danos verificados no imóvel, ou nas suas instalações, provocadas por si, seus dependentes, familiares, visitantes ou prepostos; VI - não modificar a forma interna ou externa do imóvel sem o consentimento prévio e por escrito do locador; VII - entregar imediatamente ao locador os documentos de cobrança de tributos e encargos condominiais, bem como qualquer intimação, multa ou exigência de autoridade pública, ainda que dirigida a ele, locatário; VIII - pagar as despesas de telefone e de consumo de força, luz e gás, água e esgoto; IX - permitir a vistoria do imóvel pelo locador ou por seu mandatário, mediante combinação prévia de dia e hora, bem como admitir que seja o mesmo visitado e examinado por terceiros, na hipótese prevista no art. 27; X - cumprir integralmente a convenção de condomínio e os regulamentos internos; XI - pagar o prêmio do seguro de fiança; XII - pagar as despesas ordinárias de condomínio. 1º Por despesas ordinárias de condomínio se entendem as necessárias à administração respectiva, especialmente: a) salários, encargos trabalhistas, contribuições previdenciárias e sociais dos empregados do condomínio; b) consumo de água e esgoto, gás, luz e força das áreas de uso comum; c) limpeza, conservação e pintura das instalações e dependências de uso comum; d) manutenção e conservação das instalações e equipamentos hidráulicos, elétricos, mecânicos e de segurança, de uso comum; e) manutenção e conservação das instalações e equipamentos de uso comum destinados à prática de esportes e lazer; f) manutenção e conservação de elevadores, porteiro eletrônico e antenas coletivas; g) pequenos reparos nas dependências e instalações elétricas e hidráulicas de uso comum; h) rateios de saldo devedor, salvo se referentes a período anterior ao início da locação; i) reposição do fundo de reserva, total ou parcialmente utilizado no custeio ou complementação das despesas referidas

190

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

ção da renda da terra e dos juros, não tendo impacto decisivo sobre o montante global destes. Assim, a abolição de quaisquer das obrigações do locador, por si só, não tem o condão de afetar a repartição da mais-valia. Da mesma forma, as políticas de controle de preço de aluguéis têm impactos alocativos importantes para a habitação e para o consumo de bens e serviços para os trabalhadores de baixa renda (menores gastos com aluguéis em razão de controle de preços destes beneficiam os mais pobres, que podem consumir mais outros bens e serviços). Porém, estas políticas não afetam a natureza dos aluguéis e a participação dos proprietários fundiários na mais-valia extraída na esfera produtiva. No Brasil, em que o capitalismo periférico impõe a competitividade das cidades392 para a atração de investimentos internacionais, parece inconcebível que políticas de controle de preços do aluguel sejam implementadas para incentivo do acesso de trabalhadores mais pobres a regiões mais centrais das cidades. Estas políticas tendem a ser implantadas apenas onde haja condições tais que não atrapalhem a expansão e a acumulação do capital. Diante destas considerações, deve-se concluir que apenas as condições econômicas explicam a escassez de habitação e o direito não faz mais do que organizar formalmente esta escassez. Imóveis vazios não são disponibilizados para aluguel porque não há demanda suficiente para maior participação dos proprietários fundiários na distribuição da mais-valia. O déficit habitacional, contrastado com imóveis vazios que não são sequer disponibilizados para aluguel, decorre das próprias condições econômicas. A escassez econômica, nas alíneas anteriores, salvo se referentes a período anterior ao início da locação. 2º O locatário fica obrigado ao pagamento das despesas referidas no parágrafo anterior, desde que comprovadas a previsão orçamentária e o rateio mensal, podendo exigir a qualquer tempo a comprovação das mesmas. 3º No edifício constituído por unidades imobiliárias autônomas, de propriedade da mesma pessoa, os locatários ficam obrigados ao pagamento das despesas referidas no § 1º deste artigo, desde que comprovadas. 392 Vide D. HARVEY, From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism, 1989. Também, sobre o assunto, P. FIORI ARANTES, O Ajuste Urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades, 2006, pp. 67-68, questiona “Afinal, como reduzir consistentemente a pobreza em um quadro de competição entre cidades, redução das políticas sociais e gestão empresarial dos serviços e das infra-estruturas? Ou, como as metas da Organização das Nações Unidas para o novo milênio poderão ser cumpridas por países submetidos às determinações do Fundo Monetário Internacional? O que se percebe nas políticas pro-poor das duas instituições, dos anos 90 para cá, é que foram capazes de alimentar um hábil marketing de responsabilidade social, enquanto implementavam programas compensatórios e focalizados em substituição às políticas públicas de caráter universal, as quais estavam sendo desmanchadas e privatizadas. Seu caráter substitutivo e não complementar às redes universais (saúde, educação, assistência social, saneamento, etc.), como alertou Laura Tavares, revela o verdadeiro objetivo de tais políticas”.

191

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

juridicamente organizada, existe apesar do excesso de imóveis vazios e sem destinação para habitação. O direito não poderia abolir “por decreto” a renda fundiária e o juro do proprietário fundiário. Tampouco um decreto desta natureza poderia levar à resolução da “questão da habitação”. Engels ironizada as propostas proudhonianas neste sentido, as quais acreditavam que abolir o juro do proprietário fundiário levaria à disponibilização efetiva, pelos proprietários, de casas para os trabalhadores sem-teto. Não se poderia resolver esta questão com a proibição de extração de renda fundiária e juro de “uma única subespécie de capitalistas, mais precisamente aqueles capitalistas que nem mesmo fazem compra direta da força de trabalho e, portanto, não levam à produção de nenhum mais-valor”. É dizer, a explicação daquela escassez não é a mera vontade ou ganância dos proprietários fundiários, mas o sociometabolismo do capital que se fundamenta na extração de mais-valia do trabalho. Neste quadro, não há reforma jurídica da lei do inquilinato que possa resolver a questão do acesso à habitação digna para a população de baixa renda. Apenas descuidando da compreensão sobre o papel do direito no contexto atual é que se pode defender esta linha de raciocínio. No século XIX, Engels ironizava o ponto de vista de Proudhon, a quem escapava a especificidade das formas jurídica e política, escapava “toda e qualquer noção da conexão entre as leis do Estado e as condições de produção da sociedade”, de modo que as leis do Estado apareceriam “necessariamente como ordens puramente arbitrárias, que a qualquer momento podem também ser substituídas por ordens diametralmente opostas”393.

4.3. Programas públicos de aluguel social e locação social – a experiência recente da cidade de São Paulo Como já observou Harvey, “a barreira que a [rectius] propriedade fundiária coloca entre o trabalho e a terra é socialmente necessária para a perpetuação do capitalismo”394, já que a propriedade fundiária funciona como uma barreira 393 F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, p. 59. 394 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 462, rectius, conforme D. HARVEY, The Limits to Capital, 1982, p. 343 e seguintes. A tradução disponível em português da obra usa a expressão “feudalismo”,

192

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

para o acesso do trabalhador aos meios de produção395 e subsistência, criando as condições para sua liberdade especificamente capitalista. Assim, ao “possibilitar a reprodução do trabalho assalariado, a apropriação da renda também se torna possível” 396, nascendo então uma classe de proprietários fundiários em pleno capitalismo. No tópico anterior se verificou as funções específica que estes devem cumprir neste contexto. Marx problematizou, em manuscritos não publicados em vida, que, para estar satisfeita a condição de desapropriação e de liberdade da classe trabalhadora, não necessariamente a propriedade deveria ser de um agente privado – ela poderia ser propriedade do Estado, caso em que seria “propriedade comum da classe burguesa, do capital”397. A razão que ele apontou para que tal não se generalizasse é de natureza mais ideológica: um ataque do Estado à forma propriedade fundiária poderia colocar em dúvida, para os agentes capitalistas em geral, as intenções do Estado quanto à propriedade dos meios de produção398. Mas estruturalmente, a função da propriedade fundiária e da renda como regu-

ao invés de “propriedade fundiária”, para a palavra landed property. Obviamente, aquela tradução é completamente descabida no contexto em questão, gerando imensa confusão, já que no período capitalista não se pode afirmar que haja relações feudalismo senão como reminiscência histórica e a landed property, de onde é extraída renda da terra no contexto capitalista, estão em relações sociais completamente diferentes das que estavam no período histórico do feudalismo, por mais resquícios de parasitismo nobiliárquico que existam nas relações em que tomam parte. Daí a opção por uma tradução historicamente mais precisa. 395 Neste caso, é comum exemplificar com a propriedade fundiária e na produção via cultivo da terra, mas se poderia pensar também na terra urbana que poderia servir de suporte para a produção de equipamentos urbanos. 396 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 462. 397 K. MARX, Theories of Surplus Value, Londres, Lawrence and Wishart, parte 3, 1972, p. 44, apud D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 463. A obra “Teorias da Mais-Valia - A História Crítica do Pensamento Econômico (Livro IV de O Capital)” trata-se da sistematização, por Kautsky, dos manuscritos de Marx para escrever O Capital, publicada em 1905. 398 K. MARX, Theories of Surplus Value, Londres, Lawrence and Wishart, parte 3, 1972, p. 104, apud D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 463. Harvey ainda desenvolve o ponto para afirmar que “por isso, a preservação, e até melhoria, da propriedade privada na terra desempenha uma função ideológica e legitimadora para todas as formas de propriedade privada; daí, argumentariam alguns, a importância de conferir privilégios de moradia (possessão de um meio de consumo) à classe trabalhadora. Desse ponto de vista, podemos encarar a renda como um pagamento suplementar permitido aos proprietários de terra para preservar a santidade e a inviolabilidade da propriedade privada em geral”.

193

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

ladoras da alocação da terra aos usos no sistema do capital399 poderia ser cumprida tanto pelo Estado, como de fato este faz em dados contextos400, quanto por agentes privados. Caso o trabalhador não possa adquirir imediatamente um imóvel, tornar-se mutuário de valores para a aquisição deste imóvel. Se não puder emprestar os valores de que necessita, pode acessar a habitação pagando aluguéis a um senhorio. Mas e se esta opção também for inacessível ao trabalhador, como de fato é para a população de baixa renda? Também aí o Estado pode aparecer com soluções públicas para atender a estas parcelas da classe trabalhadora. Na cidade de São Paulo, algumas experiências pontuais pretenderam fornecer moradia a estes trabalhadores, mas até hoje não passaram justamente de experiências sem aptidão alguma para generalizar-se e confrontar as formas da circulação impostas pelo sociometabolismo do capital. No governo Marta Suplicy (2001-2004), foi criado o Programa de Locação Social, um serviço público que consistia em disponibilização de moradias a pessoas de baixa renda – renda menor que três salários mínimos – no centro da cidade: “provocada pela pressão da luta popular, a prefeitura toma a iniciativa de produzir habitação de interesse social no centro da cidade, com o município mantendo-se proprietário dos imóveis e alugando-os a baixo custo para famílias de baixa renda. Inicia-se, assim, o Programa de Locação Social como uma alternativa que visava garantir a inclusão habitacional da população de baixa renda na região central, mantendo o trabalhador próximo à infraestrutura urbana. O programa é dirigido a pessoas sós e a famílias cuja renda seja de até três salários mínimos ou àqueles cuja renda per capita familiar seja inferior a um salário mínimo. É prioritariamente destinado à população que se encontra nas seguintes situações:

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

pessoas acima de 60 anos; pessoas em situação de rua; pessoas com deficiência; e moradores em áreas de risco e de insalubridade. A experiência paulista foi a primeira do país e, até o momento, se mantém como único parque público de habitação popular. Para o Programa de Locação Social foram construídos ou reformados prédios na região central, viabilizando cinco empreendimentos e um total de 853 unidades habitacionais. No entanto, lamentavelmente, a prefeitura não desenvolveu um trabalho social sistemático para inserção social dos moradores, conforme estabelecido na Resolução do Programa, e a gestão ficou bastante limitada ao patrimônio. Esse abandono gerou muitos problemas às famílias, aos empreendimentos e ao próprio programa”401.

Neste modelo, o Município é proprietário dos imóveis e os aluga a famílias de baixa renda, conforme as possibilidades de pagamento destas. Trata-se da única experiência brasileira que começou a constituir um parque público de habitação social. No entanto, o programa não adquiriu escala para atender sequer o restrito público alvo inicial, em especial as mais pauperizadas na população de baixa renda: “pessoas acima de 60 anos; pessoas em situação de rua; pessoas com deficiência; e moradores em áreas de risco e de insalubridade”. O programa foi regulamentado pela Resolução CFMH n.º 23 de 2002 e pela Instrução Normativa 01/2003 da Secretaria Municipal de Habitação. Considerando que a própria Exposição de motivos daquela resolução supunha uma demanda de 600 mil moradias402, a experiência foi definitivamente pontual e residual: apenas 853 unidades habitacionais foram viabilizadas, num total de 6 empreendimentos entregues ao longo de várias gestões municipais: Parque dos Gatos e Olarias entregues em 2004; Vila dos Idosos em 2007; Asdrúbal Nascimento e Senador Feijó, em 2009; e o Palacete dos Artistas, em 2014.

399 D. HARVEY, Os Limites do Capital, 2013, p. 473 afirma que “O mercado fundiário molda a alocação do capital à terra e, desse modo, molda a estrutura geográfica da produção, da troca e do consumo, a divisão técnica do trabalho no espaço, os espaços socioeconômicos da reprodução e assim por diante”.

401 L. KOHARA, F. COMARU e M. C. FERRO, Pela retomada dos programas de locação social, disponível em https://observasp.wordpress.com/2015/04/22/pela-retomada-dos-programas-de-locacao-social/, acesso em 24 mar. 2016.

400 Na seara habitacional, o exemplo clássico é Cingapura, em que 82% da população vive em imóveis públicos, sendo considerado um caso de sucesso na questão da habitação para trabalhadores pauperizados. O parque habitacional é financiado por descontos de 20% sobre o salário dos trabalhadores do país. Vide, por exemplo, B. YUEN, Squatters no More: Singapore Social Housing, In http://www.globalurban.org/GUDMag07Vol 3Iss1/Yuen.htm, acesso em 25 mar. 2016, em que se aponta que “Enquanto os pobres em outros lugares são sem-teto, os 20% mais pobres dos agregados familiares em Singapura têm igual acesso aos recursos de habitação, ainda que habitação pública, e muitos são os proprietários” (tradução livre).

402 Lê-se na exposição de motivos (disponível em http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias / upload/RESOLUCAOCFMH23_1252610964.pdf, acesso em 24 mar. 2016) que “Nos setores de baixa renda, há uma demanda de aproximadamente 600 mil pessoas, conforme estimativa da FIPE, em 1994, que vivem em cortiços, isto é, fora do mercado formal, em péssimas condições de habitabilidade e submetidas a explorações nos valores dos aluguéis. Os encortiçados submetem-se às condições dos cortiços devido à falta de ofertas de moradias para locação acessível a sua renda e, também, porque muitos, por trabalharem no mercado informal, não possuem comprovação de renda... Além disso, a pesquisa realizada pela FIPE em 2000, identificou aproximadamente 9.000 pessoas vivendo nas ruas

194

195

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

O programa locação social impunha a necessidade de “Reavaliar, direta ou indiretamente, a cada (24) vinte e quatro meses, a situação sócio-econômica dos beneficiários, assegurando a adequação do subsídio concedido às necessidades dos beneficiários” (Instrução Normativa 01/2003 SEHAB, artigo 2º, g). Isto se explica pela própria natureza deste programa, tido como de atendimento habitacional provisório – a estruturação familiar que seria facilitada pelo suprimento de moradia deveria permitir à família, subsequentemente, acessar um programa para atendimento habitacional definitivo, em regra, um financiamento habitacional para a aquisição da “casa própria”. Isto demonstra já demonstra uma fragilidade inicial do programa locação social. Um outro programa403, denominado “Parceria Social” (disciplinado pela Resolução CMH n.º 31/2007 e Instrução Normativa SEHAB 02/2009), instituído no governo Gilberto Kassab (2006-2009; 2009-2013), muda a natureza da intervenção pública – ao invés de um parque público de habitações, o Estado fornece diretamente valores monetários aos beneficiários para que estes paguem aluguéis no mercado privado. Assume, assim, a natureza de programa de transferência de renda. O critério básico de elegibilidade define como beneficiários famílias com renda de 1 a 3 salários mínimos. Isto significa que indivíduos e famílias em situação de extrema vulnerabilidade econômica, auferindo menos de 1 salário mínimo mensal, não poderia ser beneficiário do programa público de atendimento habitacional provisório. A estas pessoas restaria a assistência social. Há, portanto, uma restrição clara do público alvo em relação ao programa anterior, que não estabelecia renda mínima para acesso. No programa “parda cidade de São Paulo”. Ainda que se leve em conta a contagem da Fundação João Pinheiro, de 2010, que apontava déficit habitacional de cerca de 210 mil unidades na cidade de São Paulo (http:// www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/deficit-habitacional/216-deficit-habitacional-municipalno-brasil-2010/file, acesso em 24 mar. 2016), o número de unidades disponibilizadas no programa ainda é residual. 403 Houve, ainda, outros programas de atendimento habitacional provisório ainda mais residuais, cabendo mencionar o aluguel social, também conhecido como auxílio-aluguel, que não está regulamentado formalmente, sendo concedido a partir de análises de conveniência e oportunidade pela Prefeitura, normalmente em casos de grande comoção pública; o Programa Bolsa Aluguel (disciplinado pela Resolução do Conselho Municipal de Habitação nº 04/2004 e pela Instrução Normativa SEHAB 01/2004), anterior ao programa parceria social, pretendia fornecer subsídio para aluguel a famílias com renda de 1 a 10 salários mínimos; e a Verba de Atendimento Habitacional (VAH), disciplinado pela Portaria 138/06, que visa a atender famílias provenientes de favelas, loteamentos irregulares e cortiços em processo de urbanização, ou de regiões de risco.

196

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

ceria social”, além de auferir de 1 a 3 salários mínimos, as famílias deveriam se enquadrar em algum outro critério de elegibilidade previsto na Instrução Normativa SEHAB 02/2009404. Neste novo programa, o Estado paga o valor de R$ 300 reais por mês ao beneficiário, pelo prazo máximo de 30 meses. Este valor é declaradamente um “auxílio” para ajudar a complementar o valor dos aluguéis normalmente cobrados na cidade. Mas além do pagamento em dinheiro, o programa exige contrapartidas das famílias, como a obrigação de todos os membros da família maiores de 18 (dezoito) anos providenciar documentação pessoal completa: CPF, RG, Título de Eleitor, Certificado de Reservista; a obrigação de frequência em aula dos filhos em idade escolar; a obrigação de manter a vacinação em dia; a obrigação de mulheres grávidas de realizar pré-natal; a obrigação de fazer depósitos em sua caderneta de poupança, a fim de criar uma reserva monetária. Em 2015, entrou em vigor a Portaria n.º 131 da Secretaria Municipal de Habitação, a qual tem como objetivos “estabelecer alternativas de atendimento habitacional provisório, fixar os valores limites e regulamentar as condições e os procedimentos para a sua concessão e manutenção”. Por meio deste programa de aluguel social a Prefeitura paga R$ 400,00 para auxiliar no pagamento de aluguéis. Em seu artigo 1º, parágrafo 1º, a portaria estabelece que o atendimento habitacional provisório é “a concessão de benefício financeiro complementar à renda familiar, com a finalidade de auxiliar à família na cobertura das despesas com moradia”. O auxílio que a portaria estabelece é uma forma de atendimento habitacional provisório. A portaria elenca como beneficiários do auxílio moradia famílias que se enquadrem em situação de extrema vulnerabilidade, que necessitem de complementação financeira para cobrir despesas habitacionais, elencando rol taxativo das situações passíveis de atendimento: famílias “que se enquadre nos limites de 404 a) pessoas em situação de rua atendidas na rede de proteção social especial, conveniadas com a SMADS; b) idosos com atividade remunerada, aposentadoria ou benefício de prestação continuada; c) mulheres e/ou famílias com filhos em situação de rua e/ou vítimas de violência; d) pessoas sós em situação de rua e em processo de trajetória de inclusão social; e) famílias com filhos crianças e adolescentes abrigados ou em vias de abrigamento; f) aos moradores em áreas de risco; g) às pessoas ou às famílias em alojamentos provisórios; h) às pessoas ou às famílias em áreas desapropriadas pela Prefeitura do Município de São Paulo; i) famílias desalojadas por obras públicas. Caberá ao Secretário de Habitação definir, diretamente ou pela Superintendência de Habitação Popular-HABI, quais serão as áreas de intervenção cujos ocupantes serão beneficiados pelo Programa.

197

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

renda previstos no artigo 8º [até 4 membros, 2.400 reais; 5 ou mais membros, 500 reais per capita] e que se encontre em alguma das seguintes situações: a) família com titulares idosos ou com idosos na composição familiar, com renda insuficiente ou sem condições de trabalho, observados os demais critérios previstos nesta Portaria; b) família com pessoas portadoras de deficiência ou com doenças crônicas graves; c) família sob a chefia de mulher em situação de violência doméstica; d) família com menor(es) em situação de desacolhimento” (artigo 2º, par. 3º, a). Assim, a Prefeitura de São Paulo mantém, de forma absolutamente precária e residual, uma miríade de programas de acesso à moradia que envolvem, por um lado, um pequeno parque público de habitações em que as famílias residentes pagam aluguel ao governo, não em valores de mercado, mas de acordo com a capacidade de pagamento de cada família e, por outro lado, o fornecimento direto de dinheiro a famílias de baixa renda para subsidiar o pagamento de aluguéis no mercado imobiliário privado. Nenhum destes programas se apoia no acesso à propriedade privada, porém, o alcance de todos é absolutamente restringido no contexto do sociometabolismo do capital pelos imperativos da propriedade fundiária urbana. Realmente, os programas de primeiro tipo (“aluguel social”), que fornecem dinheiro para pagamento de aluguéis de imóveis para moradia, funcionam como programas de transferência de renda, com destinação específica dos valores pagos para dado bem de subsistência. Não há dados oficiais disponíveis para a cidade de São Paulo, mas estima-se que cerca de 30 mil pessoas estejam recebendo atualmente benefícios do tipo “aluguel social”. Como política de subsídio para auxílio a pessoas em dificuldades financeiras, ela estimula a inserção destas pessoas no mercado de aluguéis, estimulando, portanto, o setor privado de locações. Assim, tem características marcadamente neoliberais de estímulo de criação de mercados e de disciplinamento dos trabalhadores por meio da concessão condicionada de benefício social. Um dos argumentos frequentemente usados contra programas de aluguel social é o de que os subsídios gerariam inflação do preço do aluguel. Realmente, o mero acréscimo de dinheiro no mercado de aluguel pode ter efeito inflacionário. Porém, este efeito poderia ser imediatamente superado pela disponibilização de imóveis que antes estavam fora do mercado. Isto poderia ocorrer realmente ocorrer na cidade de São Paulo, já que há grande estoque de imóveis vazios na cidade. Muitos destes imóveis estão vazios especulativamente (os proprietários deixam o 198

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

imóvel sem uso aguardando valorização decorrente de investimentos públicos ou privados na região, ou aguardando a viabilidade de alugar por preços que cubram juros e renda), alguns sequer seriam disponibilizados para aluguel (mesmo porque não há legislação que os obrigue a tanto, muito menos políticas efetivas que impeçam o uso especulativo da propriedade urbana, como já apontado anteriormente neste trabalho). Porém, outros poderiam entrar no mercado assim que os proprietários entenderem que é vantajoso alugar pelos preços de mercado, considerando o nível de retorno monetário (que inclua os juros sobre o capital investido e a renda) possível. Trata-se de equação econômica que não é simples de resolver dadas outras variáveis possíveis, como o nível geral de salários. Já o Programa Locação Social funciona pelo fornecimento direto de moradia pelo Estado mediante remuneração paga de acordo com a capacidade do locatário. Caso os custos de manutenção sejam maiores que os valores pagos pelo conjunto dos locatários, um fundo público é mobilizado para fazer frente a tais custos. Neste programa, o Estado aparece como proprietário do parque habitacional e o fundo público subsidia os trabalhadores que não podem fazer frente aos custos de mercado de manutenção dos imóveis. Não há juros ou renda no preço do aluguel, mas custos administrativos cobertos pelo pagamento de impostos – portanto, pela parcela da mais-valia destinada ao Estado. Na cidade de São Paulo, como visto, o programa é residual – apenas 853 famílias são beneficiadas pelo programa. Fosse o programa realizado em escala, certamente teria efeitos no mercado imobiliário privado, rebaixando o valor do aluguel neste, mas possivelmente aumentando especulativamente o valor da terra com a mobilização de fundos públicos para a aquisição do parque habitacional. Pode-se fazer um paralelo entre a locação social e “vila operária”: nesta o capitalista fornece moradia, naquela outra, o Estado. Engels, analisando a situação da Inglaterra, onde os grandes fabricantes rurais “há muito reconheceram que a instalação de moradias para trabalhadores é não só uma necessidade e parte da própria planta da fábrica, mas também muito rentável...”, constata que “Os trabalhadores, porém, em vez de se sentirem gratos aos capitalistas filantrópicos, desde sempre fizeram sérias objeções a esse ‘sistema de cottage’”. Isto “Não só porque têm de pagar preços monopolizados pelas casas, visto que o dono da fábrica não tem concorrentes, mas também porque, a cada greve, eles ficam desabrigados”405. No caso da locação social, igualmente, parece muito 405 F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, p. 83.

199

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

rentável para os capitalistas que o Estado forneça moradia de acordo com a capacidade de pagamento do trabalhador – isto deveria permitir, desde logo, o rebaixamento dos salários deste, que poderia ser compensado com aumento da participação estatal na mais-valia, tendo em vista a necessidade de manutenção do programa habitacional. Como no caso do fornecimento de moradia pelos próprios capitalistas, “todo e qualquer investimento de capital que satisfaça uma necessidade é rentável quando gerido de maneira racional” 406. Mas então, isto vale para ambas, “por que, apesar disso, perdura a escassez de moradia?”407. A exclusão habitacional se evidencia pelo fato de que a taxa de imóveis vagos é superior à demanda por moradia408. A falta de habitação é uma imposição do lado da oferta de imóveis e é aí protegida juridicamente409. Para a cidade de São Paulo, de acordo com os dados da prefeitura municipal, atualmente o déficit habitacional é de 230 mil moradias, e 89 mil famílias vivem em condições precárias410. O número de imóveis vazios contados em São Paulo pelo último Censo do IBGE era de 290.000411. Tratando do “auxílio do Estado” para a realização da necessidade básica habitacional dos trabalhadores, Engels analisa as propostas de Emil Sax (“As Condições de Moradia das Classes Trabalhadoras e Sua Reforma”, Viena, 1869); para este, o Estado, primeiro, deveria erradicar toda legislação que pudesse promover a escassez de moradia; segundo, deveria realizar inspeções sanitárias e vistorias arquitetônicas nas moradias disponibilizadas aos trabalhadores; terceiro, o Estado deveria remediar ativamente a escassez de moradia existentes. Nos interessa, neste ponto, esta última solução. Afirma Engels: 406 F. ENGELS, Sobre a Questão da Moradia, 2015, pp. 89-90. 407 Idem. 408 http://www.brasil.gov.br/governo/2010/12/numero-de-casas-vazias-supera-deficit-habitacional-d o-pais-indica-censo-2010, acesso em 26 mar. 2016. 409 V. I. LENIN, O Estado e a Revolução, 1918, disponível em https://www.marxists.org/portugues / lenin/1917/08/estadoerevolucao/, acesso em 02/04/2016, observava que “Uma coisa é, incontestável: é que atualmente, nas grandes cidades, há imóveis bastantes para satisfazer as necessidades reais de todos, sob a condição de serem utilizados racionalmente” e entendia que a única forma de se proceder a esta utilização racional era “expropriar os proprietários atuais e de instalar em seus imóveis os trabalhadores sem habitação ou vivendo atualmente em habitações superlotadas”.

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

“Está claro como a luz do sol que o Estado atual não pode nem quer remediar o flagelo da falta de moradias. O Estado nada mais é que a totalidade do poder organizado das classes possuidoras, dos proprietários de terras e dos capitalistas em confronto com as classes espoliadas, os agricultores e os trabalhadores. O que não quererem os capitalistas individuais (e são só eles que estão em questão aqui, dado que, nesse assunto, o proprietário de terras também aparece, em primeira linha, em sua qualidade de capitalista) tampouco quer o seu Estado. Portanto, embora individualmente o capitalista lamente a escassez de moradia, dificilmente mexerá um dedo para dissimular mesmo que superficialmente suas consequências mais terríveis, e o capitalistas global, o Estado, também não fará mais do que isso”412.

A escassez de moradia perdura, apesar de estarem à mão diversas “soluções racionais” para ela, porque esta é uma necessidade do sociometabolismo do capital. No quadro traçado por Engels, ainda absolutamente atual, nada espanta que no Brasil a habitação não seja tratada como um serviço público, mas como um problema a ser resolvido por mecanismos de mercado; que o uso especulativo da terra não tenha a menor sanção jurídica; e que os programas de aluguel social e locação social existentes não interfiram efetivamente nos mercados imobiliários. Programas de aluguel social e de locação social como os desenvolvidos em São Paulo, sem relação com medidas urbanísticas que evitem o uso especulativo dos imóveis e da terra urbana, têm como efeito estimular os mercados imobiliários e fornecer paliativos à questão da falta de habitações. Dadas as políticas públicas habitacionais realmente existentes (basicamente o Programa Minha Casa, Minha Vida e estas políticas) e os programas esparsos de aluguel social e locação social, acrescendo-se uma lei do inquilinato ao melhor gosto dos proprietários fundiários e uma legislação urbanística implementada apenas naquilo em que possa estimular o livre mercado, explicita-se a ideologia sobre o direito à moradia para a população de baixa renda. A generalizada escassez de habitação é necessária ao sociometabolismo do capital, explicita o despojamento dos trabalhadores de suas condições de produção e subsistência, tudo amparado pelo direito.

410 http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/10/1692792-cobranca-em-ocupacoes-de-sem-tet o-divide-urbanistas-e-movimentos.shtml, acesso em 26 mar. 2016. 411 http://www.estadao.com.br/noticias/geral,sao-paulo-tem-290-mil-imoveis-sem-moradores-dizibge,650598, acesso em 26 mar. 2016.

200

412 F. ENGELS, Sobre a Questão da Habitação, 2015, pp. 99-100.

201

Capítulo 5. Pessoas em Situação de Rua e a Questão da Habitação “Numa palavra, censurais-nos por querermos suprimir a vossa propriedade. Certamente, é isso mesmo que queremos. A partir do momento em que o trabalho já não possa ser transformado em capital, em dinheiro, em renda, em suma, num poder social monopolizável, i. é, a partir do momento em que a propriedade pessoal já não possa converter-se em propriedade burguesa, a partir desse momento declarais que a pessoa é suprimida. Concedeis, por conseguinte, que por pessoa não entendeis mais ninguém a não ser o burguês, o proprietário burguês. E esta pessoa tem certamente de ser suprimida. (...) Para o lugar da velha sociedade burguesa com as suas classes e oposições de classes entra uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos.” (Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista)

5.1. Sobre as pessoas em situação de rua Na análise da situação habitacional das pessoas em situação de rua é que se explicita com mais agudeza como a “exclusão habitacional” é inerente ao funcionamento do capitalismo e, portanto, do sistema jurídico. Os problemas desta parcela da população de baixa renda, as pessoas em situação de rua, são 203

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

capturados por uma gramática jurídica específica. Como tende a ocorrer com os direitos sociais, fora desta gramática não há meios de expressão para tais problemas. Bom, claro, resta ainda a luta política. Mas nesta seara também há uma gramática restrita, também há campos de luta determinados, em especial pelas instituições representativas e partidárias – e, no caso das pessoas em situação de rua, os meios de representação política são absolutamente precários. Pessoas em situação de rua é um fenômeno praticamente universal nas grandes cidades do sistema socioeconômico capitalista. No século XIX, ao analisar a situação das classes trabalhadoras na Inglaterra, Engels já verificava que “No fim das contas, porém, os que dispõem de todo modo de um teto são mais felizes que aqueles que não o têm: todas as manhãs, em Londres, 50 mil pessoas acordam sem a menor ideia de onde repousarão a cabeça na noite seguinte. Dessas 50 mil pessoas, afortunadas são aquelas que conseguem 1 ou 2 pence para pagar um abrigo nos albergues noturnos (lodging-houses) que, numerosos, existem em todas as grandes cidades. Mas que abrigo! Os alojamentos estão cheios de camas, de alto a baixo: num quarto, quatro, cinco e seis camas, quantas caibam e, em cada cama, empilham-se quatro, cinco e seis pessoas, também quantos caibam, sadias e doentes, velhos e jovens, homens e mulheres, sóbrios e bêbados, todos misturados. Naturalmente, discutem, agridem-se, ferem-se e, se chegam a algum acordo, pior ainda: planejam roubos e entregam-se a práticas cuja bestialidade nossa língua humanizada se recusa a descrever. E quanto àqueles que nem esse tipo de alojamento podem pagar? Pois bem: dormem em qualquer lugar, nas esquinas, sob uma arcada, num canto qualquer onde a polícia ou os proprietários os deixem descansar tranquilos; alguns se acomodam em asilos construídos aqui e acolá pela beneficência privada, outros nos bancos dos jardins, quase sob as janelas da rainha Vitória.”413.

Nada disso foi inventado pelo socialista alemão, sendo realidade notória, publicada e noticiada na época – citando o The Times, de 12 out. 1843, continua Engels: “... Mas é assustador que, no próprio recinto da riqueza, da alegria e da elegância, junto à grandeza real de St. James, nas proximidades do es-

plêndido palácio de Bayswater, onde se encontram o velho e o novo bairros aristocráticos, numa área da cidade onde o requinte da arquitetura moderna prudentemente impediu que se construísse qualquer moradia para a pobreza, numa área que parece consagrada ao desfrute da riqueza, é assustador que exatamente aí venham instalar-se a fome e a miséria, a doença e o vício, com todo o seu cortejo de horrores, destruindo um corpo atrás de outro, uma alma atrás de outra! (...) Que todos reflitam e compreendam, não para construir teorias, mas para agir. Sabe Deus que atualmente há muito que fazer ali!”414

A atualidade do noticiário é espantosa. O autor continua com a descrição da superlotação e da falta de vagas nos albergues: “Já mencionei os albergues para os desabrigados – a que ponto estão lotados, mostram-nos dois exemplos. Um Refuge of houseless [Refúgio para desabrigados], recentemente construído na Upper Ogle Street e que pode abrigar trezentas pessoas por noite, acolheu, de sua abertura em 27 de janeiro até 17 de março de 1844, por uma noite ou mais, 2.740 pessoas – e, embora o tempo se tornasse menos inclemente, o número dos que demandam hospitalidade aumentou consideravelmente aí, tanto como nos albergues da Whitecross Street e de Wapping, e todas as noites uma multidão de desabrigados não podia ser atendida por falta de espaço. Um outro, o albergue central de Playhouse Yard, que dispõe de 460 camas, abrigou nos três primeiros meses de 1844 um total de 6.681 pessoas, distribuindo 96.141 rações de pão. Contudo, seu comitê diretor declarou que o estabelecimento só se mostrou de algum modo suficiente em relação à demanda quando foi aberto um outro albergue na região leste”415.

Estas longas citações são necessárias para fins de contraste com a situação atual das classes trabalhadoras sem teto e em situação de rua. Praticamente, não há contraste algum. A situação da assistência social a estas pessoas hodiernamente não se distancia do relato de Engels, exceto talvez pela escala mundial da desigualdade e do modelo de atendimento aos excluídos em sociedades que funcionam segundo o sistema sociometabólico do capital416. 414 F. ENGELS. A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra, 2008, p. 75. 415 Idem, p. 76.

413 F. ENGELS. A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra, 2008, p. 75.

204

416 Há grande dificuldade em calcular a quantidade global de pessoas em situação de rua, a começar pelas diferentes metodologias utilizadas nos diversos países para a contagem, além da própria divergência

205

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Em São Paulo, o número de pessoas em situação de rua contadas no censo da população em situação de rua417 de 2011 era de 14.478, sendo que destas, 7.713 foram contadas em albergues418 ou centros de acolhida. Já em 2015, o número sobe para 15.905, sendo 8.570 acolhidos419. Os principais motivos para que nem todas as pessoas em situação de rua passem a noite nestes centros de acolhida municipais se relacionam à precariedade do atendimento, com quartos coletivos, sem qualquer resguardo da intimidade das pessoas; às regras rígidas dos albergue, nem sempre compatíveis com casos individuais (por exemplo, o horário de entrada às 17hs é incompatível com o horário de trabalho de pessoas em situação de rua que trabalham em horários variados) e por vezes arbitrárias; ao não acolhimento de famílias (os albergues são masculinos ou femininos, no máximo aceitando crianças nestes últimos, numa caricata discriminação de gênero); além da própria ausência de vagas (se todas as 15.905 pessoas fossem aos albergues, simplesmente cerca de 7.000 teriam que se contentar com o sereno das ruas). Enquanto os albergues são objeto das políticas de assistência social, questões relacionadas a atendimento habitacional são objeto de políticas completamente apartadas destas. Já foi apontado: o atendimento habitacional para a população de baixa renda é tratado em regra como uma via para a aquisição de uma mercadoria por quem, pelas regras vigentes no mercado comum de moradia,

sobre a definição de quem seja uma pessoa em situação de rua ou desabrigada, para não falar do negacionismo sobre o problema por parte de alguns governos. A ONU estima em 100 milhões o número de pessoas em situação de rua, uma estimativa considerada conservadora. Em 2005, um relatório (E/CN.4/2005/48, 3 March 2005, COMMISSION ON HUMAN RIGHTS, Sixty-first session) do Relator para o Direito à Moradia Adequada da ONU, Miloon Kothari, se debruçou sobre as questões relacionadas à população em situação de rua. Segundo o Relator, as causas para a situação de rua são diversas, como a falta de habitação a preços acessíveis (aqui deve-se pensar tanto em compra e venda, como em aluguel de imóveis para habitação), a especulação em habitação e terra para fins de investimento, a privatização dos serviços à comunidade, os conflitos étnicos armados e a rápida e má planejada urbanização. O relator constata a abrangência mundial do problema e a necessidade de uma abordagem para o problema que combine direitos humanos e direito humanitário. 417 http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/assistencia_social/arquivos/Cops/Mo nitoramento/censo2011.pdf, acesso em 20 de abr. de 2015. 418 Chamados em São Paulo de Centros de Acolhida para a população em situação de rua; referidos no Decreto da Política Nacional para a População em Situação de Rua (Decreto 7053/2009) como serviço de acolhimento temporário. 419 http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/assistencia_social/observatorio_social /2015/censo/FIPE_smads_CENSO_2015_coletivafinal.pdf, acesso em 20 abr. 2015.

206

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

não teria condições de adquiri-la integralmente com a renda que aufere. Daí o governo manter políticas de subsídios públicos para a aquisição proprietária. Como foi visto neste trabalho, o principal programa governamental dos últimos anos, o Programa Minha Casa, Minha Vida, tem como foco o subsídio financeiro à habitação, com claras finalidades macroeconômicas e baixa efetividade na solução do direito à moradia para a população de baixa renda – em especial, para as pessoas em situação de rua, para quem o programa não chega. Este programa em pouco altera a exclusão habitacional estrutural. Uma coisa é comum a todas as políticas habitacionais: elas não têm como público alvo pessoas das faixas de renda mais baixas, com rendimentos instáveis no tempo ou sem renda e, particularmente, não se dirigem a pessoas em situação de rua420. Isto ocorre porque estas políticas são pautadas pela propriedade privada e pelo mercado de crédito (público ou privado). No Brasil, o Estado fornece ao trabalhador subsídios para adquirir a mercadoria habitação e se tornar proprietário dela. Não são raros os casos em que a instabilidade da vida da população de baixa renda leva à necessidade de alienar421 o bem adquirido para satisfazer outras necessidades, retornando ao aluguel ou à condição de sem-teto.

420 Uma notícia de que um “morador de rua” foi contemplado no Rio de Janeiro pelo programa Minha Casa, Minha Via (entre 15 que foram inscritos por uma assistente social no programa) apenas serve para demonstrar a casualidade e excepcionalidade do acontecimento, quanto ao qual inexiste qualquer política pública sistemática de atendimento: “Primeiro morador de rua do RJ contemplado pelo ‘Minha Casa, Minha Vida’ vai se mudar para apartamento. Sebastião Luiz da Silva, de 39 anos, está dando adeus às duas décadas que passou como morador de rua. Ele foi contemplado pelo programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, e agora terá um endereço fixo no bairro Santa Cruz, no Rio de Janeiro. A inscrição foi feita pela assistente social Patrícia Cristina Santana, do Centro Municipal Especializado em Atendimento à População de Rua (Centro Pop) José Saramago, da Secretaria municipal de Assistência Social. Ele foi o primeiro morador de rua a ser sorteado no estado. Outros catorze também estão inscritos no programa. Tiãozinho, como é conhecido, foi conhecer na sextafeira (8) o apartamento onde vai morar, com dois quartos, sala, cozinha e banheiro no condomínio de 25 prédios, com salão de festas, além de quadras, jardins, horta e um parque. Ele recebe R$ 60 do Bolsa Família, dos quais vai retirar R$ 25 por mês pelo apartamento. Além disso, ganha R$ 100 mensais como ajudante em uma barraca no centro da cidade. ‘Estou muito feliz. Vou ter minha casa e poder assistir ao jogo do Flamengo no sofá. E vou tomar banho quente. Sou abençoado’, afirmou em entrevista à imprensa”, in http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/05/primeiro-morador-de-ruacontemplado-pelo-minha-casa-minha-vida-vai-se-mudar-para-apartamento/, acesso em 14 jun. 2015. 421 Isto para não falar das alienações especulativas, pelas quais algumas pessoas se aproveitam dos subsídios estatais e da falta de fiscalização de empresas como CDHU e Cohab para especular sobre imóveis destinados ao atendimento habitacional da população de baixa renda, o que impacta o acesso – ou, especialmente, a falta de acesso - desta população à moradia.

207

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Caso não tenha renda suficiente para um aluguel, nem apoio familiar ou social, habitar nas ruas será a única saída. A relatora da ONU para o direito à moradia entre 2008 e 2013, Raquel Rolnik, já observou que o mercado habitacional, submetido à lógica financeira, não conduziu a soluções de moradia adequada para os mais pobres422. Ainda mais, políticas financeiras habitacionais levaram ao aumento das desigualdades na questão da habitação, “aumentando a insegurança da posse, localizações ruins e baixa habitabilidade, segregação social e, por vezes, aumento da população em situação de rua”423. Esta tendência já vinha sendo observada pelo anterior relator para o direito à moradia, Miloon Kothari, que observava que cidades em países em desenvolvimento que atraiam com sucesso um fluxo de capital privado normalmente enfrentavam rápido crescimento sem aumento na oferta de moradia adequada, resultando em um aumento do número de pobres que residem em assentamentos precários e em situação de rua, sem segurança ou serviços públicos. Isto aconteceria porque a forma atual de “globalização” estaria reforçando a armadilha da pobreza internacional424, produzindo mão de obra barata para o capital – como foi visto ao longo deste trabalho, esta é uma faceta da acumulação e dos processos de espoliação e despossessão. Já a relatora atual para o direito à moradia, Leilani Farha, tem dado foco especial às pessoas em situação de rua, conclamando os países a acabarem com o problema até 2030425. Porém, a dura realidade é que não haverá solução, exceto se houver mudanças estruturais no sociometabolismo do capital. 422 Relatório Temático sobre direito à moradia adequada, A/67/286, http://direitoamoradia.org/wpcontent /uploads/2012/09/A-67-286.pdf, parágrafo 68. 423 Idem. 424 Relatório sobre moradia adequada como componente do direito a um padrão de vida adequado, E/ CN.4/ 2005/48, disponível em http://direitoamoradia.org/wp-content/uploads/2014/07/Report_Ho melessness_2005_EN.pdf, acesso em 20 de abr. de 2015. 425 Report of the Special Rapporteur on adequate housing as a component of the right to an adequate standard of living, and on the right to non-discrimination in this context, A/HRC/31/54, disponível em http://daccess-ods.un.org/access.nsf/Get?Open&DS=A/HRC/31/54&Lang=E, acesso em 26 mai. 2016. A relatora frisou em texto sobre o relatório (Homelessness is not just about housing it’s a human rights failure, disponível em http://citiscope.org/habitatIII/commentary/2016/02/ homelessness-not-just-about-housing-its-human-rights-failure#sthash.XpwKIOZZ.dpuf, acesso em 27 mai. 2016, ) que há não só homens, mas também mulheres, crianças, famílias inteiras em situação de rua, uma realidade que foi explicitada em informe dirigido à relatora pelo Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo (vide http://www.ohchr.org/Documents/

208

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

Como deve ter ficado claro ao longo deste trabalho, são antes a lei do valor e a institucionalidade jurídica, mais do que a disponibilidade de espaços habitáveis, que são decisivas para a “escassez” de imóveis, para impedir o acesso à habitação para aqueles que não possam pagar. O direito, por meio dos instrumentos de política urbana, não interfere ou interfere muito pouco na quantidade de imóveis vazios. Isto impactará não apenas o setor habitacional strictu sensu, mas também as habitações destinadas às pessoas em situação de rua pela assistência social. Cria-se, então, um atendimento precário, tão próximo quanto possível do atendimento prestado no sistema penitenciário426, para a população excluída por completo do acesso à habitação427. O heterogêneo agrupamento social que não tem mínimas condições de adquirir a mercadoria moradia, que nem mesmo se enquadra em critérios de renda de qualquer programa estatal de moradia e que por diversas razões usa ruas e/ ou equipamentos públicos de assistência social para pernoitar forma a chamada população em situação de rua – também chamados “moradores de rua”. Na

Issues/Housing/Homelessness/NHRI/13112015-Public_Defender _of_Sao_Paulo_Brazil.doc, de onde a relatora extrai expressamente que, apesar de haver vultuosos investimentos em habitação, inclusive com subsídios aos mais pobres, continua a haver pessoas sem teto e em situação de rua, sendo que o Estado tem falhado na regulamentação do mercado imobiliário, permitindo a existência de pessoas em situação de rua). Também mencionou a relatora que as pessoas em situação de rua sofrem de discriminação, estigmatização e criminalização. Outrossim, frisou que as pessoas em situação de rua não têm acesso a necessidades básicas como água e saneamento básico e fez um reconhecimento essencial: “Leis e políticas criam as pessoas em situação de rua e, então, as penalizam por estarem em situação de rua”. Diante destes e de outros fatores apontados, a relatora exorta os países a focarem não só nas circunstâncias individuais que levam à situação de rua mas também nas causas estruturais que levam a esta situação. Diz que uma abordagem de direitos humanos é um bom ponto de partida - formula, assim, o conceito da pessoa em situação de rua como sendo a falha na implementação do direito à moradia. Diz que algumas das raízes destes problemas são o abandono, pelos Estados, de suas obrigações de proteção social; e a falha dos mesmos em regular o mercado imobiliário. Ela então, por fim, conclama os Estados a acabarem com o problema de pessoas viverem nas ruas até 2030 (prazo que coincide com o das Metas de Desenvolvimento Sustentável de acabar com a pobreza e fornecer moradia digna para todos). Fecha o texto dizendo que construir casas é parte de qualquer estratégia para dar um teto a todos, mas apenas uma reposta de direitos humanos poderá ser satisfatória para um problema que é de violação de direitos humanos. Vê-se, assim, que se mantêm nos limites institucionais dos direitos humanos. 426 Muitos egressos do sistema prisional realmente acabam em situação de rua, ganham aí a liberdade plena para vender sua força de trabalho. 427 Não à toa, autores como D. GARLAND, A Cultura do Controle, 2008, e A. DE GIORGI. A miséria governada através do sistema penal, 2006, enxergam uma correlação entre a expansão do sistema penal e a retração das políticas sociais, o que será objeto de aprofundamento no desenvolvimento deste trabalho.

209

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

mesma medida em que protege a propriedade privada, o direito evita que ela seja acessada sem as mediações jurídicas impostas pela lei do valor.

5.2. Entre Habitação e Assistência Social Juridicamente, a assistência social define-se como “política de Estado”, como “direito social”, “sob o princípio da universalidade do acesso, com a finalidade de inserir a população no sistema de bem-estar brasileiro”428. A assistência social reconhece institucionalmente a “legitimidade das demandas de seus beneficiários e usuários”429. A assistência social conforma o terreno jurídico dentro do qual são definidas demandas sociais atendidas sem contrapartida pela seguridade social430. Trata-se do terreno jurídico que lida com as mais graves “exclusões sociais”. A locução “exclusão social” é usada nos mais diversos sentidos, mas basicamente poderia ser definida para as finalidades deste trabalho como a exclusão de certas parcelas da população dos benefícios materiais do desenvolvimento econômico e dos serviços públicos estatais. O ponto de partida para a apreensão do fenômeno da exclusão social, conforme R. Coutinho, deve ser o “processo que estabelece a base constitutiva do próprio capitalismo, que Marx denomina expropriação dos trabalhadores diretos”431. É o próprio processo de produção capitalista que cria o excedente populacional e reproduz o pauperismo432. Deste processo decorre os correlativos processos de espoliação urbana, que dão sustentáculo à expropriação direta dos trabalhadores. Grosso modo, a classe trabalhadora são os despossuídos, aqueles que estão despojados dos meios de sobrevivência e de produção e que, para adquiri-lo, precisam vender sua força de trabalho em troca de um salário (e aqui a conceituação não excetua os trabalhadores que mantêm alto padrão de vida e salários elevados – aquele padrão de vida só pode ser sustentado pela venda 428 C. SIMÕES, Curso de Direito do Serviço Social, 2014, p. 186.

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

da sua força de trabalho). Mas a classe trabalhadora é não apenas o conjunto das pessoas exploradas diretamente no processo produtivo capitalista, envolvendo também os desempregados433 e subempregados, uma vez que formam a superpopulação relativa ou o exército industrial de reserva essencial para o capitalismo. Estes trabalhadores estão incluídos no sistema sociometabólico do capital por esta função que nele cumprem. À aparente “exclusão social” corresponde a inclusão econômica funcional. Marx já dividia o “sedimento mais baixo da superpopulação relativa” em: a) os aptos para o trabalho, cujo número “engrossa a cada crise e diminui a cada retomada dos negócios”; b) “os órfãos e os filhos de indigentes”, que “são candidatos ao exército industrial de reserva e, em épocas de grande prosperidade, como, por exemplo, em 1860, são rápida e massivamente alistados no exército ativo de trabalhadores”; e c) os “degradados, maltrapilhos, incapacitados para o trabalho”, em suma, os inaptos para o trabalho, o “peso morto do exército industrial de reserva”. Estas pessoas são as que dependem da previdência e da assistência social (ou, na ausência destas, da beneficência privada), são as que “sucumbem por sua imobilidade, causada pela divisão do trabalho”, as que “ultrapassam a idade normal de um trabalhador” e as que são “vítimas da indústria – aleijados, doentes, viúvas etc. –, cujo número aumenta com a maquinaria perigosa, a mineração, as fábricas químicas etc”434. Marx mesmo é quem apontava como esta superpopulação relativa se inclui no sistema sociometabólico do capital, in verbis: “sua produção [do pauperismo] está incluída na produção da superpopulação relativa, sua necessidade na necessidade dela, e juntos eles formam uma condição de existência da produção capitalista e do desenvolvimento da riqueza. O pauperismo pertence aos faux frais [às rubricas das despesas adicionais, necessariamente mínimas, para o modo de produção capitalista]”435. Aquilo que se convencionou chamar de “precariado”, a parcela da classe trabalhadora que enfrenta condições cada vez mais precárias de trabalho, não

430 No Brasil, a seguridade social é definida como o “conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (artigo 196 da CF).

433 Sobre estes, D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2015, p. 236, observa, inclusive, seu importante papel nas lutas sociais, apontando que “Quando olhadas mais de perto, a maioria das lutas travadas por trabalhadores fabris demonstra ter uma base muito mais ampla”, questionando “que sucesso teriam tido as ocupações grevistas de Flint, de 1937, não fossem as massas de desempregados e as organizações comunitárias diante dos portões, oferecendo apoio moral e material infalível aos grevistas”.

431 R. COUTINHO. A Mitologia da Cidade Sustentável no Capitalismo, 2011, p. 27.

434 K. MARX, O Capital – Livro I, 2013, p. 974.

432 R. COUTINHO. A Mitologia da Cidade Sustentável no Capitalismo, 2011, p. 29.

435 Idem.

429 Idem.

210

211

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

se destaca conceitualmente do conceito de classe trabalhadora aqui adotado436. Ao contrário, faz parte da classe trabalhadora437, a classe que precisa vender sua força de trabalho para assegurar sua própria subsistência. O que diferencia esta parcela do operariado do operário tradicional, com estabilidade trabalhista e diversos direitos assegurados pelo Estado, é a densificação de exclusões sociais, a começar pelas exclusões da própria segurança do emprego e dos direitos trabalhistas, exclusões estas características da “globalização neoliberal”. Já se deixou claro neste trabalho que estas parcelas das classes trabalhadoras têm uma importância crucial quando se pensa nas perspectivas atuais das lutas sociais. A respeito, Harvey aponta que “o conceito de trabalho precisa passar de uma definição restrita às modalidades industriais para o terreno mais amplo do trabalho vinculado à produção e reprodução de uma vida cotidiana cada vez mais urbanizada. As distinções entre lutas de base trabalhista e base comunitária começam a se diluir, assim como a ideia de que classe e trabalho são definidos em lugar de produção isolado do lugar de reprodução social da habitação. (...) essa concepção revitalizada de proletariado inclui e acolhe os setores informais, hoje abundantes, que se caracterizam pelo trabalho temporário, inseguro e desorganizado. (...) A política desses grupos desorganizados foi frequentemente e equivocadamente menosprezada pela esquerda convencional como ‘ralé urbana’ (ou, de maneira ainda mais infeliz, como ‘lumpemproletariado’, na tradição marxista), tanto que para que fosse temida ou para que fosse incluída. É imperativo que esses segmentos da população sejam agora acolhidos como cruciais para a política anticapitalista, em vez de excluídos”438.

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

População em Situação de Rua (2008)439, os principais motivos para as pessoas estarem nesta situação dizem respeito a problemas relacionados ao uso problemático de drogas (35,5%); desemprego (29,8%) e desavenças com pai/mãe/ irmãos (29,1%), sendo que 71,3% dos entrevistados citaram ao menos um desses três motivos, que podem estar correlacionados440. Os dois primeiros motivos se relacionam mais diretamente à impossibilidade de acessar a habitação em razão de ausência de fonte de renda; o terceiro motivo também pode estar relacionado a isto, mas há também um elemento de impossibilidade de acesso ao patrimônio familiar que torna o problema menos diretamente econômico, mas também com impactos no sistema sociometabólico do capital. Muitas pessoas em situação de rua sofrem com problemas de saúde metal, algo que pode escapar a uma pesquisa nos moldes da Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, que se baseia em entrevista com estas pessoas. Apenas 6,1% das pessoas citaram ter problema psiquiátrico/ mental. Deve-se observar que os locais de onde as pessoas que estão em situação de rua proveem dificilmente há serviços públicos adequados para tratamento destes problemas441. De qualquer modo, estas pessoas fazem parte daquele “sedimento mais baixo da superpopulação relativa” a que se referia Marx, são vítimas de múltiplas exclusões sociais decorrentes do sociometabolismo do capital e eventualmente têm trabalho precário disponível para si. Importante dado da mencionada pesquisa diz respeito ao trabalho, demonstrando que se trata realmente de trabalhadores precarizados e contradizendo a comum associação entre pessoas em situação de rua e mendicância: “•A população em situação de rua é composta, em grande parte, por trabalhadores: 70,9% exercem alguma atividade remunerada.

Daí que se poderia conceber uma proposta jurídica para perturbar a quietude jurídica e que tivesse relação com as demandas das pessoas em situação de rua. A população de rua é multifacetada e não existe uma causa única para cada pessoa estar na rua. De fato, de acordo com a Pesquisa Nacional sobre a

436 Em sentido contrário, autores e obras como G. STANDING. The Precariat – The New Dangerous Class, 2011 e R. CASTEL. From Manual Workers to Wage Laborers: Transformation of the Social Question, 2003, entendem que o proletariado seria uma nova classe social, distinta da classe trabalhadora. 437 Neste sentido, vide R. BRAGA. A política do precariado. Do Populismo à Hegemonia Lulista, 2012. 438 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2015, pp. 248-250.

212

• Dessas atividades destacam-se: catador de materiais recicláveis (27,5%), flanelinha (14,1%), construção civil (6,3%), limpeza (4,2%) e carregador/estivador (3,1%)”

439 Disponível em http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/31/Documentos/sum%C3% A1rio_ exe cutivo_pop_rua_pesq_censo_MDS.pdf, acesso em 12 dez. 2015. 440 Idem. 441 Realmente, a reforma psiquiátrica buscada pela Lei 10.216/2010 não foi acompanhada de uma política consistente para a implementação da Rede de Atenção Psicossocial.

213

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

• Apenas 15,7% das pessoas pedem dinheiro como principal meio para a sobrevivência. Esses dados são importantes para desmistificar o fato de que a população em situação de rua é composta por “mendigos” e “pedintes”. Aqueles que pedem dinheiro para sobreviver constituem minoria. • Desse modo, a maioria tem profissão: 58,6% dos entrevistados afirmaram ter alguma profissão. • Entre as profissões mais citadas destacam-se aquelas ligadas à construção civil (27,2%), ao comércio (4,4%), ao trabalho doméstico (4,4%) e à mecânica (4,1%). • Contudo, a maior parte dos trabalhos realizados situa-se na chamada economia informal: apenas 1,9% dos entrevistados afirmaram estar trabalhando atual mente com carteira assinada. Essa não é uma situação ocasional. 47,7% dos entrevistados nunca trabalharam com carteira assinada. • Entre aqueles que afirmaram já ter trabalhado alguma vez na vida com carteira assinada, a maior parte respondeu que isso ocorreu há muito tempo (50% há mais de cinco anos; 22,9% de dois a cinco anos).”442

As pessoas em situação de rua cumprem uma função no sistema sociometabólico do capital: rebaixar os salários em geral, em razão de não estar abarcado no preço da força de trabalho a necessidade de gastos habitacionais (aluguel, prestação ou outros gastos relacionados). Eventuais custos são, no melhor dos casos, cobertos pelo Estado, com a criação das moradias coletivas chamadas albergues ou centros de acolhida. E grande parte das pessoas em situação de rua pernoita na rua, em geral realizando todas as necessidades fisiológicas e de reprodução da vida diária também na rua ou em equipamentos públicos precários, como, por exemplo, banheiros públicos em metrôs ou estações de ônibus. Assim, o custo deste aspecto da subsistência é zero para o empregador, que pode rebaixar proporcionalmente o salário pago ao trabalhador, com impacto na massa salarial geral tanto maior, quanto maior seja a quantidade de pessoas em situação de rua. Um dado não mencionado na pesquisa e que deveria ter constado diz respeito ao número de desempregados – segundo critérios do IBGE, pessoas desempregadas ou desocupadas são aquelas que não estavam trabalhando, 442 Idem.

214

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

mas que estavam disponíveis para trabalhar e tomaram alguma providência para conseguir trabalho nos trinta dias anteriores à pesquisa. Com isso se poderia ter uma melhor ideia da composição do grupo que declara não exercer atividade remunerada. No que tange ao abrigamento, a Pesquisa referida constatou que a maioria destas pessoas dorme na rua (69,6%), enquanto expressiva minoria (22,1%) costuma dormir em albergues ou outras instituições beneficentes. Uma minoria alterna entre albergues e rua (8,3%)443. “Pessoas em situação de rua” nada mais são do que pessoas despojadas de um teto, despojadas de habitação, este meio de subsistência básico. Mas o direito cinde as necessidades habitacionais: para uns, albergues gratuitos, porém, tão parecidos quanto possam ser com prisões; para outros, financiamento imobiliário; com sorte, políticas públicas habitacionais intermediárias, como aluguel e locação social. Deste modo o direito e a política têm elaborado a questão da habitação: pessoas em situação de rua são destinatárias da assistência social e se considera que há não tanto uma questão de moradia adequada colocada, no máximo há uma questão de abrigamento destas pessoas; a habitação é objeto das políticas habitacionais gerais, que assumem finalidades econômicas amplas, viabilizando o acesso a “moradia” a trabalhadores por meio de financiamento acessível, o que exclui os trabalhadores mais pauperizados. A articulação entre políticas de assistência social e políticas de habitação é praticamente inexistente. É dizer, as políticas de assistência social dificilmente estão relacionadas com políticas de habitação popular. As lutas sociais são, em regra, igualmente cindidas. Movimentos sociais de sem-teto têm em geral pautas de luta que incluem o fornecimento de moradia subsidiada pelo Estado, mas ainda com alguma contraprestação paga pelos beneficiários. Já os movimentos de população em situação de rua pouco adentram em questões relativas a fornecimento de moradia adequada pelo Estado – em geral, as lutas estão menos avançadas e as reivindicações são para que os abrigos coletivos ofereçam o mínimo de dignidade humana – e este mínimo é tão rebaixado quanto possa ser num contexto 443 Idem. Lê-se na Pesquisa que: “Entre aqueles que manifestaram preferência por dormir em albergue, 69,3% apontaram a violência como o principal motivo da não preferência por dormir na rua. O segundo principal motivo foi o desconforto (45,2%). Entre aqueles que manifestaram preferência por dormir na rua, 44,3% apontaram a falta de liberdade como o principal motivo da não preferência por dormir em albergue. O segundo principal motivo foi o horário (27,1%) e o terceiro a proibição do uso de álcool e drogas (21,4%), ambos igualmente relacionados com a falta de liberdade.”

215

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

de controle social e penal da pobreza como o atual. Ambas, lutas por políticas públicas ou por garantia e efetividade de direitos, restritas a disputas no interior do sistema jurídico. A desconexão444 das políticas de moradia e de assistência social também demonstra o quanto soluções de mercado podem ser excludentes. Isto porque, como apontado, a maioria das pessoas em situação de rua têm renda, mas tal renda não é jamais suficiente para enquadramento nas faixas de renda de atendimento habitacional. Não é à toa que as faixas de renda contempladas por programas habitacionais sejam de 1 a 3 salários mínimos, excluindo sempre as famílias que auferem de 0 a 1 salário mínimo. Sem contraprestação não há acesso à moradia, o único serviço disponibilizado pelo Estado, se tanto, é a assistência social. Mesmo quando pessoas em situação de rua possuem renda decorrente da assistência social, como o BPC (benefício de prestação continuada445), inexiste fluxo de atendimento que as leve a ter atendimento habitacional. O preço da moradia (aluguel ou prestação de compra e venda) é um dos maiores empecilhos para que este tipo de política seja viabilizado e, como visto ao longo deste trabalho, o Estado não lança mão de quaisquer instrumentos de política urbana para o fim de reprimir o uso especulativo de moradias e a quantidade de imóveis vazios. É dizer, na essência, não são o desemprego e os problemas de

444 Em São Paulo, isto se dá apesar da Lei Municipal nº 15.913, de 16/12/13, que institui o Programa de Atendimento à População em Situação de Rua integrado com os benefícios de atendimento habitacional e de saúde, que em seu Art. 2º dispõe: “O Programa de Atendimento à População em Situação de Rua será executado de forma descentralizada e articulada entre as secretarias de Assistência Social, Saúde, Empreendedorismo e Habitação do Município de São Paulo”. Também se lê no Art. 5º que “São diretrizes do Programa: II - inclusão prioritária da população em situação de rua em atendimento habitacional temporário e definitivo.” A garantia jurídica não serviu para avançar na satisfação das necessidades desta parcela da população de baixa renda. 445 “Vide em http://mds.gov.br/assuntos/assistencia-social/beneficios-assistenciais/bpc, acesso em 26 mai. 2016, detalhamento sobre o Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social (BPC): “é um benefício individual, não vitalício e intransferível. Instituído pela Constituição Federal de 1988, ele garante a transferência de 1 (um) salário mínimo à pessoa idosa, com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais, e à pessoa com deficiência de qualquer idade, que comprovem não possuir meios de se sustentar ou de ser sustentado pela família. Para ter direito ao benefício, o solicitante precisa comprovar que a renda mensal por pessoa da família é inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo (Como calcular a renda per capita familiar). As pessoas com deficiência também precisam passar por avaliação médica e social realizadas por profissionais do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). É importante esclarecer que o benefício não pode ser concedido ao cidadão que recebe qualquer benefício previdenciário público ou privado.”

216

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

saúde mental as principais explicações para o grande número de pessoas que se encontram em situação de rua, mas a ausência estrutural de políticas que enfrentem a questão numa perspectiva de implementação de habitação adequada e de organização do uso da terra urbana na cidade. Os Estados Unidos da América são o Estado central do capitalismo mundial, tendo sempre convivido com índices de desigualdade muito maiores do que os demais países ditos de capitalismo desenvolvido (por exemplo, Alemanha, França, Japão, Canadá e Austrália). Em razão disso, vale atentar para algumas das políticas voltadas à população em situação de rua deste país. O abismo habitacional aumentou nas últimas décadas nos Estados Unidos, como em todo país que adotou políticas neoliberais (retirando direitos sociais conquistados anteriormente pelas classes trabalhadoras), as quais viabilizam a acumulação mais intensiva de riqueza pelas classes capitalistas e, com isso, a escassez de moradias a preços acessíveis (para aluguel e para compra e venda). As políticas neoliberais envolvem cortes de investimentos em habitação social e enfraquecimento das leis de regulação do aluguel. Nos EUA, este processo levou à perda de milhares de habitações que poderiam ser consideradas de baixo custo446. Importante anotar que nos EUA cerca de 800.000 pessoas por dia se encontram em situação de rua447. Isto corresponde a cerca de 0,267 por cento da população norte-americana. A questão que cabe aqui esclarecer é por que a potência capitalista mundial não consegue resolver a questão habitacional desta pequena parcela pauperizada da classe trabalhadora. Deve-se observar que há uma flutuação nesta parcela de pessoas que se encontram em situação de rua: muitas pessoas conseguem sair desta situação, mas muitas outras que nunca estiveram nela, experimentam esta nova situação de despojamento. Com isso, alguns cálculos apontam entre 2,3 e 3,5 milhões o total de pessoas que chegaram a estar em situação de rua em um ano – o que representa 1 em cada 10 trabalhadores pobres dos EUA448. A organização de advocacy “Coalition for the Homeless”, indica que “nos últimos anos, a falta de moradia em Nova York atingiu os níveis mais altos desde 446 Vide, a respeito, http://www.coalitionforthehomeless.org/ending-homelessness/proven-solutions, acesso em 20 abr. 2015. 447 M. R. BURT, What will it take to end homeless?, 2001, disponível em http://citeseerx.ist.psu.edu/ viewdoc/summary?doi=10.1.1.368.8652, acesso em 25 nov. 2015, p. 1. 448 Idem, p. 1.

217

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

a Grande Depressão da década de 1930”449. A cidade contabilizou, em outubro de 2014, 59.246 pessoas desabrigadas – um aumento de 91% com relação ao ano de 2002. Ao longo de 2013, mais de 111 mil pessoas desabrigadas passaram pelo sistema de abrigo municipal. Desde a década de 1970, dois fatores básicos parecem ter incrementado drasticamente o número de pessoas em situação de rua em Nova York: a diminuição do número de moradias baratas para os pobres, em especial a grande diminuição das habitações de um cômodo (single-room houses), que incluem albergues coletivos com banheiro e cozinha compartilhados; e as mudanças nas políticas de saúde mental que envolveram o aumento de tratamentos ambulatoriais e de uso de medicamentos psicotrópicos, mas sem que tenha havido a criação de uma rede de assistência às pessoas desinstitucionalizadas450. Em Nova York, tentou-se resolver a questão da falta de abrigos por meio de uma ação judicial coletiva. Callahan v. Carey estabeleceu o direito ao abrigamento para pessoas em situação de rua na cidade. A ação foi jugada procedente em 1979 e, então, seu cumprimento se tornou o desafio das autoridades públicas. Após dois anos de negociação, foi editado na cidade o decreto Callahan (o nome do decreto é uma homenagem a Robert Callaham, o primeiro autor da 449 http://www.coalitionforthehomeless.org/the-catastrophe-of-homelessness/facts-about-homele ssness, acesso em 20 abr. 2015. 450 http://www.coalitionforthehomeless.org/the-catastrophe-of-homelessness/why-are-so-many-peo ple-homeless/, acesso em 20 abr. 2015. Segundo dados mencionados pela organização, o “número de unidades de um só cômodo caiu de cerca de 129.000 em 1960 para apenas 25 mil em 1978”. “Entre 1965 e 1979 por si só, o número de pacientes residentes no Estado centros psiquiátricos caiu de 85.000 a 27.000 pacientes, uma redução de 68 por cento”. Interessante notar, quanto às diminuição do número de unidades de um só cômodo, o papel da legislação urbanística, a qual pode apontar para um processo de gentrificação guiado pela lei: “O mercado de moradias de um cômodo tornou-se cada vez mais regulado, e, em 1955, mudanças nos códigos de habitação essencialmente proibiram a conversão ou construção de novas habitações de um cômodo... Na década de 1970 o declínio do mercado de habitações de um cômodo acelerou com a um ritmo tremendo devido à conversão e à demolição... As alterações na política fiscal da propriedade tiveram um papel decisivo nas perdas do mercado das habitações de um cômodo... em 1985, em resposta à enorme perda do estoque de habitações de um cômodo e da crescente população de rua, a cidade estabeleceu uma moratória temporária (depois anulada pelos tribunais estaduais) em todas as conversões destas habitações, depois estabelecendo procedimentos mais restritivas para a conversão de habitações de um cômodo. No entanto, a maioria das habitações de um cômodo da cidade de Nova York já havia sido perdida, e continuou a diminuir ao longo dos anos 1980 e 1990”. Complementam os dados ainda afirmando que “Há evidências de que o declínio da habitação de quarto individual persistiu através da década de 1990. De 1991 a 1993, por si só, de acordo com um estudo, houve uma redução de 18 por cento no número de quartos único unidades habitacionais em New York City.”

218

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

ação, pessoa que vivia em situação de rua e acabou morrendo enquanto dormia nas ruas de Manhatan). Outros dois casos judiciais importantes representaram conquistas jurídicas adicionais na temática do direito ao abrigamento em Nova York: Eldredge v. Koch (1983), estabeleceu o direito ao abrigamento para mulheres em situação de rua e McCain v. Koch (1983) estabeleceu o direito ao abrigamento para famílias com crianças. Foram necessárias ações específicas para se buscar a efetivação para grupos específicos. Ainda assim, nada feito. Nada mais característico ao direito e aos obstáculos necessários do sociometabolismo do capital que ela viabiliza: num sistema da “common law”451, o judiciário garante e reconhece o direto, mas não há como efetivá-lo. Como já apontado, são diversos os fatores que levam alguém a estar em situação de rua e o mero fornecimento de um imóvel ou cômodo para habitação pode não alterar em nada a permanência da pessoa na rua. Em regra, serão necessárias ações de assistência social continuadas. Mas então, por que não fazê-lo? Algumas abordagens pretendem justamente o fornecimento imediato de moradia para pessoas em situação de rua, isto é, o fornecimento de moradia sem condições prévias, para que então, após o embasamento territorial da pessoa, esta possa se inseri na comunidade com assistência social452. Ora, se o que se busca é a inserção da pessoa na comunidade, então, deve-se inseri-las desde logo, sem necessidade de um “preparo” em instituições de abrigamento453, nas quais a socialização tem características completamente distintas da que ocorre em comunidade e com habitação própria. Divide-se as políticas baseadas em moradia para a população de rua nos EUA em basicamente de três tipos: a) Programas habitacionais federais de assistência – os dois maiores são o programa de habitação pública e o programa de vale habitação, conhecido como Vales de Escolha de Habitação (Housing

451 Sistema jurídico mais comum nos países anglo-saxões, baseado mais em precedentes judiciais que na lei, contrapondo-se ao sistema romano-germânico, mais comum na Europa continental, baseado mais na lei que em precedentes/jurisprudência. 452 http://www.housingrights.org.uk/news/housing-first-because-learning-swim-much-easier-water, para quem “aprender a nadar é mais fácil na água” acesso em 20 abr. 2015. 453 http://www.coalitionforthehomeless.org/ending-homelessness/proven-solutions, acesso em 21 abr. 2015, aponta que este tipo de política de fornecimento de moradia seria menos custoso do que políticas de abrigamento, de assistência institucional, mas não há dados suficientes disponíveis para esta conclusão.

219

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Choice Vouchers ou Section 8 Vouchers). Estes vales permitem que famílias de baixa renda possam alugar habitações modestas a preço de mercado, por escolha própria, recebendo um subsídio flexível ao longo do tempo, ajustável à renda da família454; b) Habitação de apoio permanente: este modelo combina assistência para habitação a preços acessíveis com serviços de apoio a indivíduos com problemas de saúde mental, HIV/AIDS ou outros sérios problemas de saúde, tendo sido inicialmente desenvolvido em Nova York455; c) Programa “Casa Primeiro” (“housing first”): trata-se de outro programa desenvolvido em Nova York, baseado na ideia de fornecimento imediato uma moradia a pessoas em situação de rua, ao invés de incluí-las em programas “progressivos” nos quais apenas a última etapa é uma moradia. É voltado para pessoas que estão há muito em situação de rua, normalmente com problemas de saúde mental, abuso de drogas e outros sérios problemas de saúde, fornecendo-se moradia imediatamente, em conjunto com serviços assistenciais456. O programa Casa primeiro457 é um programa de redução de danos direcionado especialmente para a população em situação de rua com problemas de saúde mental e, em sua origem, se contrapõe à abordagem do tipo “tratamento

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

primeiro”458, pelo qual as pessoas receberiam tratamento de saúde e seriam progressivamente incluídas em equipamentos de acolhida, até estarem “aptas” a uma habitação independente. Este tipo de programa, como os outros, é completamente inapto a realizar a finalidade política última de acabar com a existência de pessoas em situação de rua. No contexto em que se desenvolve, aparece como mais um produto da governança neoliberal da pobreza459. Segundo Hennigan, que examinou a prática do “housing first” em Phoenix, Arizona, este programa é operado como um programa de reabilitação que reproduz estigmatização, atuando em conjunto com lei higienistas para remover a população em situação de rua das áreas gentrificadas da cidade460. Os potenciais do “housing first” para reabilitar e criar indivíduos autossuficientes estariam severamente limitados pela neoliberalização do Estado social461. Estes elementos que impedem a realização de programas como o “housing first”, na verdade, são parte das limitações impostas no sistema sociometabólico do capital à provisão das necessidades de subsistência da classe trabalhadora ou, olhada a questão pelo ângulo do direito, à realização de direitos sociais como o direito à moradia. A “Coalition for the Homeless” parece bem otimista quanto às possibilidades de acabar com pessoas morando nas ruas por meio de políticas de habitação: “podemos acabar com a crise de pessoas em situação de rua. Por meio de estabilização das pessoas em abrigos, movendo-as para moradias permanentes e implementando programas de assistência para mantê-las em

454 Idem, lendo-se aí que “estudos mostram que habitações públicas e os vales habitação federais são altamente bem sucedidos na redução do número de famílias em situação de rua e no assegurar que estas famílias fiquem estáveis habitacionalmente, fora do sistema de abrigamento”. Certamente, no sistema de abrigamento a autonomia destas famílias é muito menor do que no sistema de subsídios para aluguel ou no sistema de moradias públicas. 455 Idem. Segundo a Organização, “Numerosos estudos têm mostrado que a habitação de apoio permanente custa menos do que outras formas de cuidados emergenciais e institucionais. O marco destes programas é o ‘Acordo de New York/New York’, Cidade-Estado, de 1990, que foi renovado por duas vezes, e é o principal exemplo de uma iniciativa de habitação de apoio permanente que conseguiu reduzir a falta de moradia em Nova York e economizou dólares dos contribuintes que teriam sido gastos em abrigos e hospitalizações dispendiosos.” 456 Idem. “Os estudos mostram que a maioria das pessoas em situação de rua pessoas de longa data que mudaram para os apartamentos do “habitação primeiro” tiveram melhorias significativas em seus problemas de saúde e permanecem alojados de forma estável. Como no caso da habitação de apoio permanente, a abordagem do ‘habitação primeiro’ é muito menos dispendiosa do que a cuidados de emergência e institucionais, tais como abrigos, hospitais e estabelecimentos prisionais.” 457 O modelo do programa foi desenvolvido pela organização Pathways to Housing, apoiado em estudos como P. RIDGEWAY, A. M. ZIPPLE, The paradigm shift in residential services: From the linear continuum to supported housing approaches. Psychosocial Rehabilitation Journal, 1990, 13, 11-31, e P. J. CARLING, Major mental illness, housing, and supports: The promise of community integration. American Psychologist, 1990, 45, 969-975.

220

458 D. K. PADGETT, L. GULCUR e S. TSEMBERIS, Housing First Services for People Who Are Homeless With Co-Occurring Serious Mental Illness and Substance Abuse, 2006, p. 74, apontam (em tradução livre) “Há dois paradigmas contrastantes de serviços para as pessoas que estão desabrigadas com doença grave mental, um é o tradicional continuum de cuidados e tratamento primeiro e o outro um movimento voltado ao consumidor (habitação primeiro) que ganhou impulso nos últimos anos... Programas de habitação primeiro colocam a habitação estável como a primeira e máxima prioridade vis-à-vis a abstinência do uso de substâncias e / ou abuso, assim praticando uma abordagem de redução de danos. Os programas de “tratamento primeiro” invertem esta sequência e requerem desintoxicação e sobriedade antes de dar acesso a serviços de habitação independente”. 459 B. R. HENNIGAN, House Broken: The Functions and Contradictions of ‘Housing First’, 2013. 460 Idem, p. 2. 461 Idem, afirmando o autor que “Even still, housing first functions to cheaply hide the most visible victims of capitalist contradiction and neoliberal policy to facilitate capital accumulation across metropolitan Phoenix.”

221

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

suas casas, nós podemos não apenas reduzir, mas eliminar a situação de rua de pessoas em Nova York”462.

Este otimismo enunciativo é compreensível para uma organização de advocacy. Porém, as soluções apresentadas esbarram no sistema sociometabólico do capital e não têm o condão de superar os imperativos impostos por este. A questão que deve ser respondida é: por que nos Estados Unidos da América, o país central do capitalismo mundial, é incapaz de acabar com a situação de rua de milhares, talvez milhões de pessoas (algumas estimativas falam de 2,5 milhões de pessoas em situação de rua nos EUA)? De outro modo, por que programas de habitação pública, de subsídios para compra ou para aluguel, programas de fornecimento de habitação para população em situação de rua combinados com assistência social, por que todos estes programas combinados não conseguem efetivar o direito à moradia? Estas questões podem ser respondidas por meio da tese desenvolvida neste trabalho.

5.3. Acesso à Habitação pela População em Situação de Rua? Todos os limites juridicamente impostos463, moldados de acordo com as necessidades do sistema sociometabólico do capital, impedem o acesso à habitação adequada para a população de baixa renda - em específico, às pessoas em situação de rua. O “nó da terra”464, na verdade, reflete o nó da acumulação capitalista que se destina a garantir a reprodução do capital. Para os trabalhadores mais pauperizados, o preço da moradia (aluguel ou prestações de um financiamento 462 http://www.coalitionforthehomeless.org/ending-homelessness/proven-solutions, acesso em 21 abr. 2015. 463 Estes limites jurídicos são a expressão superestrutural dos limites do sistema do capital como um todo, cuja “tendência universalizante... não pode jamais alcançar a fruição real dentro de seu próprio quadro, uma vez que o capital tem de declarar as barreiras que não consegue transpor – a saber, suas próprias limitações estruturais – como sendo ‘o limite sagrado’ de toda a produção, Ao mesmo tempo, o que deveria ser reconhecido e respeitado como uma determinação objetiva, vitalmente importante – a natureza em toda a sua complexidade como o ‘corpo real dos homens’ – é totalmente menosprezado na subjugação, degradação e destruição sistemática da natureza já que os interesses da expansão contínua do capital devem prevalecer até sobre as mais elementares condições da vida humana, que estão diretamente enraizadas na natureza” (I. MÉSZÁROS, Filosofia, Ideologia e Ciência Social, 2008, p. 154). 464 Expressão usada por urbanistas para se referir ao emaranhado jurídico que, no limite, protege a propriedade privada. Vide, por exemplo, E. MARICATO, A Terra é um Nó na Sociedade Brasileira, 2001.

222

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

imobiliário) é uma barreira intransponível. Este é o resultado da prevalência dos mecanismos de mercado e de certa faceta da legislação urbanística inapta a reprimir o uso especulativo de moradias e de imóveis vazios. Prevalência e inaptidão que são estruturais e necessárias à reprodução do capital. A única solução viável para a moradia adequada para a população em situação de rua é uma política de fornecimento universal de habitação sem contrapartida financeira. Tal exigiria a construção de imóveis públicos, em quantidade correspondente à quantidade de pessoas em situação de rua, que seriam disponibilizados sem contraprestação a estas pessoas e, sucessivamente, a outras parcelas da população de baixa renda que não pudessem pagar por habitação digna. Esta última solução seria necessária em razão da inevitável procura por vagas nestes imóveis públicos por outras parcelas da população de baixa renda. As moradias não poderiam ser objeto de comercialização. O fornecimento de tantas habitações quanto necessárias implicaria no paulatino desfazimento do mercado imobiliário e na eliminação de algumas das principais bases de acumulação do capital, como o uso do espaço e de imóveis como reserva de valor, a renda fundiária urbana e o sistema de crédito habitacional. Esta solução não pode ser imediata? Não há problemas. Enquanto não há imóveis públicos em número suficiente para atender a toda a população em situação de rua, a repressão ao uso especulativo de moradias mediante legislação e fiscalização por órgãos próprios seria a saída mais adequada. Nenhum imóvel vazio, ninguém dormindo nas ruas. O direito à moradia vigente se efetivando universalmente. Imóveis não poderiam ficar vazios, desabitados ou sem uso por mais de dois meses. Ocorrendo isto, aplica-se multa progressiva (com natureza jurídica de sanção) ao proprietário ou possuidor pelo não uso do imóvel para que providencie uso para moradia ou comercial – e os fundos advindos de tais multas poderiam até mesmo servir para construção de habitação popular e incentivo a políticas públicas e mecanismos de repressão ao uso especulativo de moradias. Isto, inicialmente, estimulará proprietários a abaixar o valor do aluguel; depois, rebaixará o valor de compra e venda, em razão de muitos proprietários não poderem manter os imóveis vazios. Em caso de imóveis vazios por dois anos, o mesmo sofreria um processo de desapropriação para que fosse transformado em imóvel público. O valor da desapropriação não seria o valor de mercado, mas deveria ser ponderado de acordo com o histórico de cumprimento da função social do imóvel em específico, levando-se em conta que a função 223

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

social engloba, primeiramente, a necessidade de o imóvel ter um uso, donde um imóvel sem uso necessariamente deve ter a desapropriação facilitada para fins de reforma urbana. No caso de jamais ter cumprido sua função social, seria possível a expropriação do imóvel, Tais medidas evitariam, por exemplo, que imóveis em regiões centrais, servidas de todas as benesses urbanísticas públicas, permanecessem vazios, como sói ocorrer no mercado imobiliário capitalista “desenvolvido”. Com isto a legislação forçaria o valor de troca a se submeter ao valor de uso. Por este caminho seria viável falar em prioridade da satisfação das necessidades habitacionais. A superação (aufgehoben) da apropriação privada dos excedentes socialmente produzidos é um processo complexo e multifacetado. Com medidas jurídicas como as aqui apontadas, haveria complicações para a reprodução do capital na medida em que o sistema de crédito e todo uso especulativo de moradias seriam duramente atingidos. Seriam também obviamente devastadores os impactos econômicos nas transferências de excesso de capitais entre os circuitos primário, secundário e terciário da economia465. A capacidade de adaptação do capital a novas realidades talvez pudesse contornar tal situação e manter a acumulação e a expansão do capital por outros meios. Haveria diminuição dos níveis de desigualdade social e de exclusão social, ao menos porque as necessidade habitacionais estariam satisfeitas. Mas é improvável que uma mudança neste patamar chegue a ser realizada sem grandes confrontos. O olhar precisa levantar-se para além do direito. A legislação não tem a função pressuposta nas propostas acima e, talhada a esta maneira, só poderia ser uma legislação evanescente. Propostas com tal conteúdo não podem ser formuladas senão como propostas de transformação social radical – como propostas, portanto, que vão para além do direito. Tais propostas não podem aparecer senão como utopia concreta466.

Medidas jurídicas não podem, por si só, levar ao revolucionamento do sistema sociometabólico do capital. Acabar “por decreto” com o valor de troca dos bens imóveis não levará à suprassunção do sistema do capital e à satisfação das necessidades habitacionais de todos os trabalhadores. Tampouco se pode cair em argumentos esquemáticos do tipo “a questão é política” ou “basta a apropriação dos meios de produção pelos produtores diretos”. A questão do revolucionamento social passa pela superação da base e do direito e da política que sobre ela se levanta – é, portanto, uma questão de amplo alcance. As propostas “jurídicas” aqui sugeridas só teriam consequência em meio a intensas lutas sociais que elas refletiriam e fomentariam. A Comuna de Paris é uma exemplo de vaga revolucionária muitas vezes relembrado por David Harvey, que a interpreta como envolvendo importantes elementos de “direito à cidade”, mas justamente num sentido de ruptura com o sistema jurídico. Observa o autor:

465 D. HARVEY, The Urbanization of Capital, 1985, explica que crises de sobreacumulação do capitalismo são, não raro, transitoriamente resolvidas pela transferência de capital através dos circuitos primário, secundário e terciário. Estes são definidos, grosso modo, assim: o circuito primário é o circuito da produção de mercadorias em sentido estrito, na qual se produz valor e mais-valor por meio do trabalho. O circuito secundário está relacionado à expansão de infraestrutura, do ambiente construído, inclusive à construção de habitações. Já o circuito terciário engloba investimentos em ciência e tecnologia e os gastos sociais.

da imaginação do futuro, correntes até então na filosofia por conta da desconfiança do progresso ou das idealizações totalitaristas, Bloch aponta ao fato ontológico de que o ser, sempre, ainda não é. A natureza está aberta ao novo. A história, pela fome e pela incompletude, aponta para sua transformação. A práxis urge a efetivação da possibilidade. Assim, ultrapassa-se o velho utopismo do não-lugar dos sonhos vãos: trata-se, em Bloch, da utopia concreta”. Ainda, MASCARO observa que, para Bloch, “a plenitude da justiça é o perecimento final do direito [forma jurídica]” e “o serainda-não jurídico é a extinção do direito, a sua superação numa sociedade socialista... que tenha por teto não institutos jurídicos, mas sim os princípios jurídicos da dignidade e da solidariedade. O tema de Bloch não é o da maior parte dos juristas. O tema de Bloch é o fim da dominação dos juristas...”

466 Mais ou menos no sentido já apontado por A. L. MASCARO. Utopia e Direito – Ernst Bloch e a Ontologia Jurídica da Utopia, 2008, p. 193 e seguintes, lendo Ernst Bloch, que “deu à utopia uma posição de liderança na política de transformação dos tempos. Para além da vergonha e da proibição

224

“Se os participantes da Comuna de Paris reivindicavam seu direito a uma cidade que haviam ajudado coletivamente a produzir, então por que a expressão ‘o direito à cidade’ não poderia se tornar uma palavra de ordem para mobilizar a luta anticapitalista? Como de início observei, o direito à cidade é um significante vazio repleto de possibilidades imanentes, mas não transcendentes. Isso não significa que seja irrelevante ou politicamente impotente. Tudo depende de quem conferirá ao significante um significado imanente revolucionário, em oposição ao significado reformista (...) Da mesma forma que Marx descreveu as restrições à jornada de trabalho como um primeiro passo de uma trajetória revolucionária, reivindicar o direito de todos a viver em uma casa e um ambiente decentes pode ser visto como um primeiro passo de um movimento revolucionário mais abrangente”467.

467 D. HARVEY, Cidades Rebeldes, 2015, pp. 244-245.

225

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Apenas em contextos de transformação social radical se poderia chegar a questionar consequentemente alguns dos mais importantes fundamentos da reprodução do capital, por mais supérfluos e destrutivos que estejam sendo aos próprios pressupostos materiais desta reprodução 468. As medidas jurídicas aqui propostas só poderiam ser realmente implementadas num contexto em que a superação do sociometabolismo do capital estivesse em curso e, então, apareceriam como sistema jurídico evanescente, como superação do próprio direito. Ora, o neoliberalismo e suas políticas de controle social são um capítulo central da luta de classes, apontando para um cerco de classe por meio do qual se cria a hipermobilidade da força de trabalho e o estrito controle dos seres humanos excedentes, em direção à dominância completa do capital fixo e do sistema sociometabólico do capital. As estruturas estatais de seguridade social, de garantias de direitos, de habitação social, etc, tendem a ser capturadas por este projeto de neoliberalização econômica, criminalizando paulatinamente e ao máximo quaisquer lutas sociais que se coloquem contra o avanço do capital. Enquanto a serviço do capital, os trabalhadores recebem em troca o salário; quando descartados até mesmo dos trabalhos mais precários e instáveis, o Estado disponibiliza meios para controle e para a estrita subsistência destes trabalhadores, agora como parte de um exército industrial de reserva cada vez mais ampliado. O capital, para assegurar a sua mais desenvolta reprodução, busca o desmonte de prestações de direito social que estimulem o acesso a meios de subsistência sem necessidade de vender a força de trabalho aos capitalistas. Do ponto de vista político, ademais, se evita que o contexto de Estado social acumule conquistas para as classes trabalhadoras. A tematização desde logo de propostas como a aqui apresentada poderia somar no rompimento do cerco neoliberal? Posto de outro modo, propostas de 468 Deve-se lembrar aqui a reflexão de I. MÉSZÁROS, Filosofia, Ideologia e Ciência Social, 2008, pp. 150 e seguintes, para quem “do mesmo modo como a necessidade natural original é historicamente deslocada e se torna uma coerção supérflua e intolerável, do ponto de vista tanto do indivíduo como do metabolismo social em geral, também o ‘luxo’ anterior, supérfluo e geralmente inalcançável, se torna vitalmente necessário, mas não apenas do ponto de vista de indivíduos isolados, mas sobretudo com relação à reprodução continuada das condições recém criadas da vida social como tal, pois, através do avanço das forças produtivas, o estritamente natural recua progressivamente e um novo conjunto de determinações toma seu lugar. Como consequência, a remoção dos ‘luxos’ recémadquiridos e estruturalmente incorporados (difundidos, generalizados) da organização de produção existente, acarretaria o colapso de todo o sistema de produção”.

226

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

políticas de habitação com viés anticapitalistas colocariam, ao menos, em xeque o cerco neoliberal, atingindo alguns importantes pilares do sistema sociometabólico do capital? Certamente a resposta é sim, mas deve-se atentar que a pura tematização jurídica não pode guiar processos consistentes de resistência e transformação. Lutar pela implementação das propostas em questão levaria a uma conflituosa separação entre habitação pública e habitação de mercado, mas a expansão daquela, que seria viabilizada pelo controle da habitabilidade dos imóveis e do preço da terra urbana, tenderia a colocar fim nos processos de acumulação por despossessão que ocorrem com imóveis urbanos que servem à moradia. Sem avançar para a discussão mais ampla sobre o sistema de crédito como um todo, sobre o pressuposto da propriedade privada e sobre satisfação das necessidades habitacionais dos trabalhadores, qualquer processo de transformação se esgotaria e seria absorvido pelo sociometabolismo do capital. Na atualidade, a dureza dos fatos é esta: o espaço para avanços é diminuto e a luta social está longe de avançar o suficiente para propostas consistentes que desestabilizem a quietude jurídica. O direito captura a realidade da exclusão habitacional para preservar as necessidades do sociometabolismo do capital, dentre elas, a manutenção de exércitos de reserva, a absorção seletiva de trabalhadores pelo mercado de trabalho de acordo com a qualificação e o grau de desenvolvimento das forças produtivas, um atendimento socioassistencial residual (faux frais), a manutenção do despojamento dos trabalhadores e a acumulação por despossessão, etc. Trata-se da captura da linguagem e da gramática de expressão dos conflitos sociais. Para a resolução de “conflitos”, não apenas o terreno jurídico é imposto pelo sociometabolismo do capital, também as armas para a luta são impostas por ele: garantias legais, constitucionais e até internacionais, ponderação de direitos, efetividade jurídica, direito à moradia, moradia digna, etc. O direito captura as necessidades sociais e as transforma em direitos humanos. Esta é a astúcia do direito: servir como instrumento de captura, de formalização, de controle das demandas sociais. O direito faz isso tanto quanto a política469: o terreno imposto pela política é o da política parlamentar e partidária, o da democracia representativa e formal, com mediações oficiais, institucionais, atreladas a um modo de apa469 E não é raro que as melhores intenções jurídicas e políticas se deparem com processos de ironia objetiva, “desses que convertem as melhores intenções no seu avesso, realizando, não por desvio, mas por finalidade interna, o contrário do que prometiam”, como aponta O. ARANTES, Uma estratégia

227

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

recer e de responsabilizar-se especificamente político e jurídico. A política impõe seus limites à luta e distribui as armas de acordo com as necessidades do avanço do sociometabolismo do capital. O progressismo jurídico e político é levado a lutar num terreno discursivo específico. Não é permitido ir além dele. A especificidade está justamente em serem superestruturas historicamente necessárias. À pergunta da abertura deste capítulo sobre se haveria meios jurídicos pelos quais seria possível alterar os alicerces do sistema sociometabólico do capital, deve-se responder: sim, especificamente, a efetivação universal do direito à moradia, independentemente de contrapartida financeira. Esta proposta não seria comportada pelo sistema jurídico e, tomasse alguma roupagem jurídica, só poderia ser direito evanescente. Este capítulo e os dois anteriores examinaram o modo como políticas de direito à moradia supostamente atendem às necessidades reais de moradia da população de baixa renda. Ficou claro que, no sistema sociometabólico do capital, a manutenção da classe trabalhadora num nível de subsistência é estruturante e que daí decorrem limitações às “políticas habitacionais” e de direito social à habitação. Se se concebe a resolução da “questão da habitação” como fornecimento universal de habitação digna, esta se opõe aos imperativos próprios daquele sistema sociometabólico. O discurso do “combate ao déficit habitacional” aparece como ideologia, como falseamento, como embuste. A questão da satisfação das necessidades habitacionais da população de baixa renda não pode realizar-se senão rompendo uma série de mediações que sustentam a circulação e a produção existentes, como a renda da terra e o sistema de crédito. Neste contexto, as políticas públicas de habitação e de assistência social só podem existir para manter o despojamento, os níveis de subsistência e o exército industrial de reserva.

Fatal, 2013, p. 11, falando sobre o estudo da arquitetura, cuja conclusão será, pp. 67-68, que “a singular comédia ideológica a que estamos assistindo” mostra “de um lado, urbanistas e arquitetos – na maioria dos casos, de clara ascendência progressista – projetando em termos gerenciais acintosamente explícitos, aliás apresentados como garantia da consistência do projeto, o que paradoxalmente lhe acrescenta um charme complementar. De outro, o espetáculo surrealista oferecido por empresários e banqueiros enaltecendo, como nos bons tempos do contextualismo que se imaginava sinceramente dissidente, o ‘pulsar de cada rua, praça ou fragmento urbano’. (...) Para encurtar: deu-se o que estamos vendo, algo como um pensamento único das cidades – em que se casam o interesse econômico da cultura e as alegações culturais do comando econômico- que ronda as cidades em competição pelo financiamento escasso no sistema mundial, e por isso mesmo compartilhado à revelia das preferências político-ideológicas dos administradores de turno.”

228

Conclusões Buscou-se neste livro descrever os limites do direito à moradia e das políticas habitacionais. Tais direito e políticas não dão conta das necessidades de moradia da população de baixa renda. Ao contrário, o sistema jurídico tem sido mais eficaz em proteger a acumulação e a rentabilização imobiliárias. Prevalece o direito à propriedade privada sobre o direito à moradia. As políticas habitacionais produzem casas para o mercado, não para solucionar a exclusão habitacional. Daí que o déficit habitacional no Brasil, que é de cerca de 5,8 milhões de moradias, tenha a mesma magnitude da quantidade de imóveis vazios (6,07 milhões). Ao consagrar o direito à moradia, o sistema jurídico não protege senão abstratamente o acesso de todos à habitação. O manejo da tecnologia jurídica pelas classes e instituições capitalistas se dá, no limite, observando as necessidades de reprodução do próprio sistema sociometabólico do capital. Até por isso, a manutenção do “emaranhado jurídico” ou do “nó do direito” é conveniente e funcional à dominação de classe. O direito determina de antemão a classe a quem aproveita as disputas jurídicas e determina a incontornável ineficácia do direito à habitação470. Por outro lado, as necessidades habitacionais da população de baixa renda apenas se efetivam nos limites impostos pelo contexto capitalista. Neste contexto, as relações sociais são pautadas pelo despojamento do trabalhador dos seus meios de subsistência, os quais só poderão ser adquiridos no mercado após a venda da força de trabalho contra o pagamento de salário. Daí não ser o escopo do direito satisfazer amplamente esta que é uma das necessidades humanas mais básicas, a necessidade habitacional. Pode ser que haja bens materiais suficientes, mas eles não chegarão aos que deles necessitam. 470 F. R. BATISTA. Crítica da Tecnologia dos Direitos Sociais, 2013, p. 214, observa, sobre o problema da individualização e da judicialização dos direitos sociais, que “o problema, é óbvio, não é de imperfeição dos mecanismos processuais, pelo que não adianta desperdiçar anos de trabalho e páginas e mais páginas de texto tentando aprimorar os instrumentos existentes para a implementação supraindividual dos direitos. Repito, ainda uma vez, porque constitui o núcleo do trabalho: o problema é de forma. É a forma jurídica que determina a insuperável ineficácia dos mecanismos processuais de implementação transindividual dos direitos sociais”.

229

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

A crítica jurídica reinsere o direito à moradia no seu contexto e busca as determinações que engendraram este objeto, bem como as suas possíveis transformações. Estas transformações, pensadas para além da estrutura social dada, pensadas como revolução social, como superação (aufgehoben), só podem ser vislumbradas a partir das próprias lutas sociais, cuja expressão mais radical no direito é a luta contra a forma da equivalência. O horizonte de luta contra a forma da equivalência é o elo entre a perspectiva de longo alcance (a revolução social) e a de alcance mais restrito (a luta por direitos ou a luta política) das lutas sociais. E este horizonte continua a existir, por mais confusão ideológica que haja, em razão da permanência da exploração capitalista e, portanto, das contradições sociais basilares a esta exploração. A crítica jurídica busca, portanto, para além de explicitar os limites de todas as garantias jurídicas e políticas públicas, desvendar se tais contradições têm alguma expressão no próprio direito. Demandas de direito à moradia revelam necessidades básicas das classes trabalhadoras. Quando consagradas como garantia, como direito legislado, estas demandas podem aparecer no sistema jurídico como reflexo das lutas sociais – um reflexo, vale dizer, distorcido pela própria forma jurídica. O lado ativo do direito à moradia é a faceta que expressa aquelas demandas das classes trabalhadoras, imprimindo uma tensão no conteúdo jurídico e uma forma incompatível com o direito. Estas tensão e incompatibilidade são o combustível das lutas sociais e das propostas na seara jurídica que buscam ativar contradições reais. Mas a forma jurídica terminará, no limite, por esmagar estas demandas, a não ser que seja ela própria superada na dinâmica das contradições sociais – o transbordamento dos “direitos sociais” acabaria, então, por afogar a própria forma jurídica. Verificou-se neste livro os instrumentos jurídicos nacionais e internacionais que garantem amplamente o direito à moradia, as instituições voltadas a sua realização, a principiologia que retira o caráter absoluto da propriedade privada com sua promessa de reprimir o uso especulativo da terra e da moradia. Apontou-se que, para uma perspectiva garantista dos direitos sociais, estão disponíveis sanções constitucionais e legais ao descumprimento da função social da propriedade; instrumentos urbanísticos repressivos e diretivos e investimentos públicos redistributivos; tudo isto para promoção de habitação social, que deve ser entendida nos termos da definição ampla do Comentário n. 4 do Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, sobre o direito a uma habitação condigna. Mas, no fundo, estes mecanismos revelam como as contradições sociais são capturadas pelo direito e mantidas sob controle na forma de conflitos 230

Crítica do Direito à Moradia e das Políticas Habitacionais

jurídicos. Direitos sociais como o direito à moradia não satisfazem as necessidades sociais dos trabalhadores, antes, as consolidam e estabelecem uma arena própria para a discussão destas necessidades, a arena jurídica. A concomitante garantia e ineficácia do direito à moradia são inerentes ao direito e sustentam seus “conflitos” e seus mecanismos de “resolução de conflitos”. Na produção habitacional brasileira, o direito à moradia tem se realizado apenas sob os pressupostos da propriedade privada, do valor de troca e da reprodução do capital. Políticas públicas habitacionais se justificam pela busca da realização do direito à moradia. A ineficácia deste direito é o alimento daquelas políticas. Aparece mais um terreno de luta jurídica: as políticas públicas para implementação de direitos. Mais um terreno para “resolução de conflitos”. O Programa Minha Casa, Minha Vida, principal programa de combate ao “déficit habitacional”, mantém vivo o despojamento do trabalhador como um “conflito jurídico” em vias de resolução pela construção massiva de casas. Por trás da finalidade anunciada, a realidade de uma eficiente política pública para investimento de excedentes de capital e de incentivo ao mercado imobiliário e de construção civil, bem como para inclusão da população de baixa renda nos circuitos do crédito e da propriedade privada, bem de acordo com os desígnios do período neoliberal. Alguns não conseguem habitação por esta via. O direito então disponibiliza outros meios engenhosos para a realização das necessidades habitacionais: o aluguel, que assegura a remuneração da propriedade da terra (neste caso, o proprietário pode ser até mesmo o Estado, em programas de locação social); o aluguel social, pelo qual o Estado redistribui renda e estimula mercados de aluguéis; o abrigamento coletivo, destinado, no fundo, a “armazenar” grandes quantidades de pessoas excluídas dos circuitos formais da riqueza social. E sempre há pessoas habitando “livremente” as ruas e viadutos das grandes cidades. Tudo isto alimenta o próprio sociometabolismo do capital pela manutenção estrutural do despojamento do trabalhador de seus meios de subsistência. Em suma, o sistema jurídico restringe incontornavelmente os direitos sociais. Mas lutas sociais para realizar as necessidades prementes dos trabalhadores são também incontornáveis. A captura das demandas sociais para a seara jurídica tem se mostrado uma estratégia bem-sucedida: os conflitos são domesticados pelo direito, as disputas se dão no terreno jurídico, com as armas jurídicas. As contradições das lutas sociais, assim, se refletem no direito e nestes reflexos se lê uma expressão específica de tais contradições, uma expressão distorci231

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

da e apaziguada destas contradições. Aquilo que transborda da forma jurídica, aquilo que não é bem expresso no direito, será invariavelmente repelido. As pessoas em situação de rua são exemplo claro das restrições discursivas e práticas impostas pelo direito. Diante de todas as necessidades que estas pessoas socialmente vivenciam, o direito e as políticas públicas analisam, recortam, enquadram cada necessidade num ramo específico. Mas haveria meios jurídicos pelos quais seria possível atingir os alicerces do sistema sociometabólico do capital? A tese aqui desenvolvida é de que uma política habitacional para pessoas em situação de rua que contemplasse o fornecimento universal de habitação adequada, sem contrapartida financeira alguma, seria um meio que atingiria os alicerces da renda e do crédito, bem como, parcialmente, o alicerce da produção. As formas fictícias da renda e do crédito que impulsionam a circulação e o investimento produtivo, assim como o despojamento dos trabalhadores de seus meios de subsistência que impulsiona a livre venda da força de trabalho seriam atingidas. Uma política habitacional deste tipo desestabiliza a ideologia jurídica. Ela não é comportada pelo direito, nem pelas políticas públicas. A luta jurídica por direito à moradia apenas verá este horizonte como utopia, como superação do estado atual de coisas, como superação do próprio “direito à moradia”. Desfazer o “nó da terra” pressupõe desfazer o “nó da acumulação capitalista” na seara da habitação. Subsistência do trabalhador, salário, sistema de crédito, contexto de financeirização, cidades globais, segregação e controle social – todos estes aspectos, e outros, estão enredados neste nó. A solução do fornecimento de habitação, sem contrapartida, à população em situação de rua, levaria a novas demandas sociais para a expansão desta medida para toda a população de baixa renda e, depois, para os trabalhadores em geral, abalando o pressuposto do despojamento destes dos seus meios de subsistência. Esta proposta para satisfação de necessidades habitacionais de pessoas em situação de rua atinge as margens, os limites do direito e só poderia levar a contradições irremediáveis caso fosse completamente implantada. Por isso, só pode ser formulada como um direito evanescente. É possível que as lutas sociais continuem a avançar com propostas jurídicas ou políticas, que podem retardar o ritmo da acumulação capitalista, da degradação ambiental e brecar o atual cerco do capitalismo neoliberal global às classes trabalhadoras. Mas o grande desafio que se coloca é justamente o de escapar do terreno da luta jurídica para, enfim, colocar em xeque todos os alicerces do sociometabolismo do capital. 232

Bibliografia

ALFONSIN, Jacques Távora. O Acesso à Terra Como conteúdo de Direitos Humanos Fundamentais à Alimentação e à Moradia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003. ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 7ª ed., São Paulo: Cortez, 2000. ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Uma Estratégia Fatal – A cultura nas novas gestões urbanas. In ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia, A Cidade do Pensamento Único, 8ª Ed., Petrópolis: Vozes, 2013. ARANTES, Paulo Fiori. O Ajuste Urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades. Pós, Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP, n. 20, São Paulo, dezembro 2006, pp. 60-75. ANTUNES, Ricardo. Afinal, quem é a classe trabalhadora hoje? In Margem Esquerda, São Paulo: Boitempo, n. 7, maio de 2006. AZEVEDO JR., José Osório de. Direitos Imobiliários da População de Baixa Renda. São Paulo: Sarandi, 2011. BANCO MUNDIAL, Housing: Report on sectorial policy, Washington, 1975. BATISTA, Flávio Roberto. Crítica da Tecnologia dos Direitos Sociais. São Paulo: Outras Expressões, Dobra Editorial, 2013. BATISTA, Flávio Roberto. Os limites do bem-estar no Brasil. In KASHIURA JR., Celso Naoto et. al. (Orgs.). Para a Crítica do Direito. São Paulo: Outras Expressões, Sobra Editorial, 2015. BEER, Max. História do Socialismo e das Lutas Sociais. São Paulo: Expressão Popular, 2006. BONDUKI, Nabil. Do Projeto Moradia ao programa Minha Casa, Minha Vida. 2009, disponível em , acesso em 02 fev. 2014.

CARLOS, Ana Fani Alessandri. O Espaço Urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2004.

BONDUKI, Nabil. Origens da Habitação social no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.

CARLOS, Ana Fani Alessandri. A Cidade. 4ª ed. São Paulo: Contexto, 1999.

BONDUKI, Nabil. Origens da Habitação Social no Brasil (1930-1945): O Caso de São Paulo. Tese de doutorado, FAU-USP, 1994.

CARVALHO, Claudio; RIBEIRO, Guilherme; RODRIGUES, Raoni. Em Busca da Cidade: a luta pela moradia adequada como força motriz da reforma urbana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

BONDUKI, Nabil. Pioneiros da Habitação Social no Brasil. Volume 1. Cem anos de política pública no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2014.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. 5ª Ed. São Paulo: Atlas, 2013.

BONDUKI, Nabil. Pioneiros da Habitação Social no Brasil. Volume 2. Inventário da produção pública no Brasil entre 1930 e 1964. São Paulo: Editora UNESP, 2014.

CASTEL, Robert. From Manual Workers to Wage Laborers: Transformation of the Social Question. New Brunswick: Transaction Publishers, 2003.

BONDUKI, Nabil. Pioneiros da Habitação Social no Brasil. Volume 3. Onze propostas para morar para o Brasil moderno. São Paulo: Editora UNESP, 2014.

CASTEL, Robert. L’insecurité Social – Qu’est-ce qu’être protege? Paris: Seuil, 2003.

BOULOS, Guilherme. De que lado você está? Reflexões sobre a conjuntura política e urbana no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2015. BRASIL. Plano Nacional de Habitação. Brasília. 2009. BURT, Martha; ARON, Laudan Y.; Lee, Edgar; VALENTE, Jesse. Helping America’s Homeless: Emergency Shelter or Affordable Housing? Urban Institute Press: Washington DC, 2001. BURT, Martha. What will it take to end homeless? 2001, disponível em . BRAGA, Ruy. A Política do Precariado. Do Populismo à Hegemonia Lulista. Boitempo: São Paulo, 2012. BUENO, Laura e CYMBALISTA, Renato (orgs.). Planos Diretores Municipais: novos conceitos de planejamento territorial. São Paulo: Pólis, 2007. CAPELLA, Ana Cláudia N. Perspectivas teóricas sobre o processo de formulação de políticas públicas. In HOCHMAN, Gilberto, ARRETCHE, Marta, MARQUES, Eduardo (orgs.), Políticas Públicas no Brasil, Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007, pp. 87-124.

234

CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Por uma metodologia dos direitos humanos – uma análise na perspectiva dos direitos sociais. Revista do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP, São Paulo, v. 2, n. 4, jul./dez. 2007, pp. 119/149. CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Que Fazer. In Direito: Teoria e Experiência. Estudos em Homenagem a Eros Roberto Grau. Tomo I. São Paulo: Malheiros, 2013. CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. A Vaca Profanada. In , consulta em 15 jun. 2015. COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi. Direito da Cidade. Novas Concepções sobre as Relações Jurídicas no Espaço Social Urbano. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. COUTINHO, Ronaldo. A Mitologia da Cidade Sustentável no Capitalismo. In COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi. Direito da Cidade. Novas Concepções sobre as Relações Jurídicas no Espaço Social Urbano. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, pp. 17-46. CYMBALISTA, Renato (ed.). Conselhos de habitação e desenvolvimento urbano. São Paulo: Pólis, 2000 235

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Referências

CYMBALISTA, Renato e ROLNIK, Raquel. Instrumentos Urbanísticos contra a exclusão social. Pólis n. 29. São Paulo: Pólis, 1997.

FIX, Mariana. Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário no Brasil. Tese de Doutorado. Instituto de Economia da UNICAMP, 2011.

DALLARI BUCCI, Maria Paula. Fundamentos para uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2013.

FIX, Mariana. São Paulo Cidade Global. São Paulo: Boitempo, 2007.

DALLARI BUCCI, Maria Paula. Quadro de referência de uma política pública - Primeiras linhas de uma visão jurídico-institucional. No Prelo. Disponível em , consulta em 22 dez. 2015. DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006. DUMÉNIL, Gérard, LÉVY, Domenique. A Crise do Neoliberalismo, São Paulo: Boitempo, 2014. EDELMAN, Bernard. O direito captado pela fotografia. Coimbra: Centelha, 1976. EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo, 2016. ENGELS, Friedrich. A Condição da Classe Trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008. ENGELS, Friedrich. Para a Questão da Habitação. Disponível em . FERREIRA, João Sette Whitaker. São Paulo: cidade da intolerância, ou o urbanismo “à brasileira”. Revista do IEA – Estudos Avançados – Dossiê São Paulo - vol. 25, n.º 71, São Paulo, jan./abr. 2011. FERREIRA, João Sette Whitaker. Produzir casas ou construir cidades. Desafios para um novo Brasil urbano. Parâmetros de qualidade para implantação de projetos habitacionais e urbanos. São Paulo: Editora Fupam, 2012 FIX, Mariana. Parceiros da Exclusão. São Paulo: Boitempo, 2001.

236

FRUEND, Bill. Forced resettlement and the political economy of South Africa. Review of African Political Economy, Volume 11, Issue 29, 1984, pp. 49-63. GARLAND, David. A Cultura do Controle. Rio de Janeiro: Revan, 2008. GARNIER, Jean-Pierre. Du Droit au Logement au Droit à la Ville. In http://blog. agone.org /post/2011/03/25/du-droit-au-logement-au-droit-a-la-ville-1. GONH, Maria da Glória. História dos Movimentos Sociais e Lutas pela Moradia. São Paulo: Loyola, 1995. HARVEY, David. A produção Capitalista do Espaço. São Paulo: Annablume, 2005. HARVEY, David. From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism. Geografiska Annaler. Series B, Human Geography, Vol. 71, No. 1, The Roots of Geographical Change: 1973 to the Present. (1989), pp. 3-17. HARVEY, David. Cidades Rebeldes. São Paulo: Martins Fontes, 2014. HARVEY, David. Los limites del capitalismo y la teoría marxista. México: Fondo de Cultura Económica, 1990. HARVEY, David. O Enigma do Capital e as Crises do Capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2012. HARVEY, David. Os Limites do Capital. São Paulo: Boitempo, 2013. HARVEY, David. O Neoliberalismo. História e implicações. São Paulo: Loyola, 2014. HARVEY, David. Para Entender o Capital. Livro I. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. HARVEY, David. Para Entender o Capital. Livros II e III. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2014.

237

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

HARVEY, David. Spaces of Capital. Towards a Critical Geography. Nova York: Routledge, 2012. HARVEY, David. The Right to the City. New Left Review 53, September-October 2008. HARVEY, David. The Urbanization of Capital. Studies in the History and Theory of Capitalist Urbanization. Oxford: Blackwell, 1985. HENNIGAN, Brian Richard. House Broken: The Functions and Contradictions of ‘Housing First’. Syracuse University, Theses – ALL, 2013, Paper 15. HOLSTON, James. Cidadania Insurgente – Disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. KOHARA, Luiz; COMARU, Francisco; FERRO, Maria Carolina Ferro. Pela retomada dos programas de locação social, disponível em , consulta em 24 mar. 2016. KOWARICK, Lúcio. A Espoliação Urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. LEFEBVRE, Henri. A Re-Produção das Relações Sociais. Porto: Escorpião, 1973. LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Trad. Sérgio Martins. Belo Horizonte: UFMG, 1999. LEFEBVRE, Henri. Espaço e Política. Trad. Margarida Maria de Andrade e Sérgio Martins. Belo Horizonte: UFMG, 1999. LEFEBVRE, Henri. L’Espace: Produit Social et Valeur d’usage. La Nouvelle Revue Socialiste, 1976, n. 18. LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. 5ª Ed. São Paulo: Centauro, 2008. LENIN, Vladimir Ilitich. O Imperialismo, Etapa Superior do Capitalismo. Campinas: UNICAMP/Navegando Publicações, 2011. LENIN, Vladimir Ilitich. O Estado e a Revolução. Campinas: UNICAMP, 2011.

238

Referências

LOUREIRO, Maria Rita; MACÁRIO, Vinicius; GUERRA, Pedro. Democracia, Arenas Decisórias e Políticas Públicas: o Programa Minha Casa Minha Vida. Brasília, Rio de Janeiro: Ipea, 2013. MARICATO, Ermínia (Org.). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil Industrial. São Paulo: Alfa-ômega, 1987. MARICATO, Ermínia. A Terra é um Nó na Sociedade Brasileira. Revista Democracia Viva. Rio de Janeiro: IBASE, vol. 11, 2001, pp. 3-7. MARICATO, Ermínia. Brasil, Cidades: Alternativas para a Crise Urbana. Petrópolis: Vozes, 2001. MARICATO, Ermínia. Cidades no Brasil: Neo-desenvolvimentismo ou crescimento periférico predatório? Revista da Defensoria Pública do Estado de São Paulo – Edição Especial de Habitação e Urbanismo. São Paulo: Defensoria Pública do Estado de São Paulo, 2015. MARICATO, Ermínia. O contexto do Estatuto das Cidades. In Brasil Cidades: alternativas para a crise urbana. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. MARICATO, Ermínia. O impasse da política urbana no Brasil. 3ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2014. MARTINELLI, Mário Eduardo. A deterioração dos Direitos de Igualdade Material no Neoliberalismo. Campinas: Millennium, 2009. MARTINS, José de Souza. Expropriação e Violência (a questão política no campo). São Paulo: Hucitec, 1980. MARX, Karl. Contribuição para a crítica da Economia Política. Lisboa: Estampa, 1973. MARX, Karl. Contribuição para a crítica da Economia Política. São Paulo: Expressão Popular, 2008. MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. In ANTUNES, Ricardo. A dialética do Trabalho. Escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão Popular, 2004.

239

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Referências

MARX, Karl. O Capital – Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013.

MÉSZÁROS, István. A Teoria da Alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006.

MARX, Karl. O Capital Livro II . São Paulo: Boitempo, 2014.

MÉSZÁROS, István. Estrutura Social e Formas de Consciência. São Paulo: Boitempo, 2009.

MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. O processo de circulação do capital. Livro Segundo. Volume III. 3ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. MARX, KARL. O Capital: crítica da economia política. O Processo global de circulação do capital. Volume IV, Livro Terceiro, Tomo 1. 2ª Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1986.

MÉSZÁROS, István. Marxismo e Direitos Humanos. In Filosofia, Ideologia e Ciência Social. São Paulo: Boitempo, 2008. MÉSZÁROS, István. Para Além do Capital. Rumo a uma Teoria da Transição. Trad. Paulo César Castanheira e Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2002.

MARX, Karl. Grundrisse. Trad. Mário Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.

MÉSZÁROS, István. O Desafio e o Fardo do Tempo Histórico. Trad. Ana Cotrim e Vera Cotrim. São Paulo: Boitempo, 2007.

MARX, Karl. Sobre a Questão Judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.

MÉSZÁROS, István. O Século XXI – Socialismo ou Barbárie. São Paulo: Boitempo, 2003.

MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. MASCARO, Alysson Leandro. Utopia e Direito – Ernst Bloch e a Ontologia Jurídica da Utopia. Quartier Latin: São Paulo, 2008. MELO, Marcus André de. Estruturação intra-urbana, regimes de acumulação e sistemas financeiros de habitação: Brasil em perspectiva comparada. In Espaço & Debates, ano X, n. 31, 1990. MENEZES, Rafael de Sá. Crítica dos Direitos Humanos à Luz da Leitura de István Mészáros. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Direito da USP, 2013. MENEZES, Rafael de Sá. Habitar a Cidade do Neoliberalismo: Necessidade de Repensar a Efetividade dos Instrumentos Urbanísticos à Luz do Direito à Moradia e Vice-Versa. In: Revista da Defensoria Pública do Estado de São Paulo – Edição Especial de Habitação e Urbanismo. São Paulo: Defensoria Pública do Estado de São Paulo, 2015. MENEZES, Rafael de Sá. O Programa Minha Casa, Minha Vida: limites dos arranjos institucionais para uma política pública de habitação de interesse social. In: CUNHA FILHO, Alexandre J. Carneiro da et al., Direito Urbanístico – Ensaios por uma cidade sustentável – Da Formulação de Políticas à sua aplicação. São Paulo: Quartier Latin, 2016.

240

MEYER, John W.; ROWAN, Brian. Organizaciones institucionalizadas: la estructura formal como mito y ceremonia. In El Nuevo Institucionalismo en el Análisis Organizacional. POWELL, Walter W.; DiMAGGIO, Paul J. (orgs.), Fondo de Cultura Económica, México, 1999, pp. 33-103. MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. 3ª Edição. Lisboa: Editorial Estampa, 2005. NALINI, José Renato; LEVY, Wilson. Regularização Fundiária. Rio de Janeiro: Forense, 2013. NASCIMENTO, Denise Morado; BRAGA, Raquel Carvalho de Queiroz. Déficit habitacional: um problema a ser resolvido ou uma lição a ser aprendida? Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo - Programa de pós-graduação do departamento de arquitetura e urbanismo, USP, n. 9, 2009, pp. 56-97, disponível em . NASCIMENTO NETO, Paulo; MOREIRA, Tomás; SCHUSSEL, Zulma. Housing Policy: A Critical Analysis on the Brazilian Experience. In TeMA Journal of Land Use Mobility and Environment 3, 2012.

241

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

NETTO, Antonio José de Mattos. Questão Agrária no Brasil: Aspecto Sociojurídico. In COSTA, Paulo Sérgio Weyl A. (coord.), Direitos Humanos em Concreto. Curitiba: Juruá, 2009. OBENG-ODOOM, Franklin e STIWELL, Frank. Security of tenure in international development discourse. In International Development Planning Review, 35 (4) 2013. OLIVEIRA, Francisco. Crítica à razão dualista – O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003. OLIVEIRA, Francisco de. Acumulação Capitalista, Estado e Urbanização: a Nova Qualidade do Conflito de Classe. In Contraponto, Ano 1, n. 1, novembro de 1976. PADGETT, Deborah K.; GULCUR, Leyla; TSEMBERIS, Sam. Housing First Services for People Who Are Homeless With Co-Occurring Serious Mental Illness and Substance Abuse. Research on Social Work Practice, Vol. 16, No. 1, January 2006, 74-83. PASUKANIS, Eugeny Bronislanovich. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo. Rio de Janeiro: Renovar, 1989. PAULO NETTO, José. Capitalismo monopolista e serviço social. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1992. PEREIRA, Silvia Regina; COSTA, Benhur Pinós da; SOUZA, Edson Belo Clemente de. Teorias e práticas territoriais: análises espaço-temporais. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

Referências

ROLNIK, Raquel. A cidade e A Lei. Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel, FAPESP, 1997. ROLNIK, Raquel. Crescimento Econômico e Desenvolvimento Urbano: por que nossas cidades continuam tão precárias? In Novos Estudos CEBRAP, v. 89, pp. 89-109, 2011. ROLNIK, Raquel. Democracia no fio da Navalha: limites e possibilidades para a implementação de uma agenda de Reforma Urbana no Brasil. In Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 11, n. 2, p. 31-50, nov. 2009. ROLNIK, Raquel. Direito à Moradia. In Desafios do Desenvolvimento, v. 51, 2009. ROLNIK, Raquel. Guerra dos Lugares. São Paulo: Boitempo, 2015. ROLNIK, Raquel. Instrumentos Urbanísticos – concepção e gestão. In Oculum, Campinas, v. 1, 2000. ROLNIK, Raquel. Para além da lei: legislação urbanística e cidadania (São Paulo 1886-1936). In: SOUZA, Maria Adélia A.; LINS, Sonia C.; SANTOS, Maria do Pilar C.; SANTOS, Murilo da Costa (Org.). Metrópole e Globalização-Conhecendo a cidade de São Paulo. São Paulo: Editora CEDESP, 1999, disponível em . ROLNIK, Raquel e NAKANO, K. As armadilhas do pacote habitacional. In Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, n. 20, mar. 2009.

PIKETTY, Thomas. O capital no Século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.

ROLNIK, Raquel; NAKANO, Kazuo; CYMBALISTA, Renato. Urban land and social housing in Brazil: the issue of land. In: Participatory Master Plans: the challenges of democratic management in Brazil: the right of the city. Instituto Pólis/ Fundação Ford: São Paulo, 2008.

RECH, Adir Ubaldo; RECH, Adivandro. Direito Urbanístico. Fundamentos para a construção de um Plano Diretor Sustentável na Área Urbana e Rural. Caxias do Sul: EDUCS, 2010.

RIPLEY, Randall B. Stages of the Policy Process. In McCOOL, Daniel. Public Policy Theories, Models and Concepts – An anthology. Prentice Hall: New Jersey, 1995.

ROLNIK, Raquel. 10 anos do Estatuto da Cidade: Das Lutas pela Reforma Urbana às Cidades da Copa do Mundo. 2013, disponível em , consulta em 19 abr. 2015.

SAAD FILHO, Alfredo. Salários e exploração na teoria marxista do valor. Revista Economia e Sociedade, Campinas, (16): 27-42, jun. 2001. Disponível em , última consulta em 26 mai. 2016.

242

243

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

SANTORO, Paula. Regulação para viabilizar HIS: o caso de São Paulo, publicado em , consulta em 29 abr. 2015. SANTOS, Boaventura de Sousa. Democratizar a Democracia. Os Caminhos da Democracia Participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. SAULE JR., Nelson, UZZO, Karina. A trajetória da reforma urbana no Brasil, disponível em , consulta em 05 jun. 2016. SCHECHLA, Joseph, Security of Tenure through the Habitat Agenda, 1976–2016, In , consulta em 24 mar. 2016. SERPA, Cláudia. Limites e Possibilidades de uma Política Fundiária no Estado Capitalista – Políticas de Terra do BNH. Rio de Janeiro: Dissertação de mestrado. IPPUR-UFRJ, 1988. SERRANO JUNIOR, Odoné. O Direito Humano Fundamental à Moradia. Curitiba: Juruá, 2012. SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010. SINGER, André. Os sentidos do lulismo. Reforma Gradual e Pacto Conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. SOTO, Hermano. El Otro Sendero – La Revolucion Informal. Lima: Editorial El Barranco, 1986. STANDING, Guy. The Precariat – The New Dangerous Class. Nova York: Bloomsbury, 2011. STANDING, Guy. Work After Globalization – Building Occupational Citizenship. Chelteham: Edward Elgar Publishing Limited, 2009. STROZAKE, Juvelino (org.). Questões Agrárias: julgados comentados e pareceres. São Paulo: Método, 2002. STUCKA, Petr Ivanovich. Direito e Luta de Classes. São Paulo: Acadêmica, 1988.

244

Referências

TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A Propriedade e a Posse. Um Confronto em torno da Função Social. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. VILLAÇA, Flávio. O que todo cidadão precisa saber sobre habitação. São Paulo: Global, 1986. WACQUANT, Loic. As Duas Faces do Gheto. São Paulo: Boitempo, 2008. WALLERSTEIN, Immanuel. A mercantilização de tudo: produção de capital. In: Capitalismo histórico e civilização capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. YUEN, Belinda. Squatters no More: Singapore Social Housing, In http://www. globalurban.org/GUDMag07Vol3Iss1/Yuen.htm, consulta em 25 mar. 2016.

Websites consultados BRASIL. Exposição de Motivos Interministerial n.º 00008/2010/MCIDADES/ MF/MP/MJ. . BRASIL. Número de Casas Vazias Supera Déficit Habitacional. . BRASIL. Minha Casa, Minha Vida chega a 3ª fase com 2 milhões de novas moradias até 2018. . BRASIL. Minha Casa, Minha Vida entregou 2,4 milhões de moradias. . BRASIL. Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua – MDS. . BURTENSHAW, Ronan, ROBINSON, Aubrey. A importância da imaginação pós-capitalista. Entrevista com David Harvey. . CAIXA ECONÔMICA FDERAL. Contrato de Financiamento Minha Casa, Minha Vida. . COALITION FOR THE HOMELESS. Proven Solutions. . COALITION FOR THE HOMELESS. The Catastrophe of Homelessness. . DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Informe à Relatora Especial sobre direito à moradia da ONU pelo Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo. . ENGELS, Friedrich. Para a Questão da Habitação, 1873, Primeira Seção, disponível em . O ESTADO DE SÃO PAULO. São Paulo tem 290 mil imóveis sem moradores, diz IBGE. . FARHA, Leila. Homelessness is not just about housing - it’s a human rights failure. . FOLHA DE SÃO PAULO. Cobrança em ocupações de sem-teto divide urbanistas e movimentos. . FOLHA DE SÃO PAULO. Ministro Revoga Construção de 11.250 unidades do Minha Casa, Minha Vida. . 246

Referências

HOUSING RIGHTS. Housing First because learning swim is much easiear in water. . HUFFINGTON POST. Michigans campaign to end homelessness numbers decreasing statewide and Detroit. . LENIN, Vladmir. O Estado e a Revolução, 1918, . LUXEMBURG, Rosa. The Accumulation of Capital, . MARX, Karl. Teses Sobre Feuerbach, 1845. . MINAS GERAIS. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Déficit habitacional no Brasil. , , e . MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. . MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. Resolução CFMH 23/2002, Programa Locação Social. . MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. Censo da População em Situação de Rua. .

247

Rafael Lessa V. de Sá Menezes

Referências

MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. FIPE. Censo da População em Situação de Rua. .

www.academia.edu/5569939/Os_deslocamentos_da_dial%C3%A9tica_intr odu%C3%A7%C3%A3o_%C3%A0_edi%C3%A7%C3%A3o_brasileira_dos_ Tr%C3%AAs_estudos_sobre_Hegel_de_Adorno>.

NEW YORK TIMES. How Detroit became the world capital of staring at abandoned old buildings. .

YUEN, B. Squatters no More: Singapore Social Housing, .

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. “Agenda Habitat” da Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos. . Original, disponível em . ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório da Relatora Especial para o Direito à Moradia Adequada, 10 ago. 2012, A/67/286. . ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatora Especial para Moradia Digna. Annual report - Main focus: Homelessness as a global human rights crisis that demands an urgent global response. 2016. A/31/54. . PORTO FERREIRA HOJE. Mutuários não poderão vender casas da CDHU antes de 10 anos. . REVISTA FÓRUM. Primeiro morador de rua contemplado pelo Minha Casa, Minha Vida vai se mudar para apartamento. . ROLNIK, Raquel. Onde mora a ideologia. . SAFATLE, Vladmir. Os deslocamentos da dialética, introdução à edição brasileira de “Três estudos sobre Hegel”, de T. ADORNO, disponível em